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ALÉM DA ESCOLA: PERCURSOS ENTRE NIETZSCHE E
DELEUZE
Karen Elisabete Rosa Nodari
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Karen Elisabete Rosa Nodari
Além da escola: percursos entre Nietzsche e Deleuze
Porto Alegre
2007
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, como requisito
parcial para a obtenção do título de
Doutora em Educação. Orientadora:
Profª. Drª. Sandra Mara Corazza.
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Além da escola: percursos entre Nietzsche e Deleuze
Defendida em 19 de outubro de 2007.
________________________________________
Profª. Drª. Sandra Mara Corazza (Orientadora)
_________________________________________
Profª.Drª. Paola Gomes Zordan (PPGED/UFRGS)
____________________________________________
Profª. Drª. Vânia Dutra de Azeredo (PUC/CAMPINAS)
_____________________________________________
Profª.Drª. Tânia Mara Galli Fonseca (PPGPSI/UFRGS)
_____________________________________________
Profª. Drª. Selda Engelman (IPA)
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutora em Educação.
Orientadora: Profª. Drª. Sandra Mara Corazza.
Agradeço muito aos que me acompanharam nas idas e vindas:
Em especial à Sandra como também ao Hugo;
Ao Tomaz;
Aos parceiros do Bando de Orientação e Pesquisa;
Aos colegas do Núcleo de Orientação e Psicologia Escolar do
Colégio de Aplicação da UFRGS;
Ao André;
À Natália, à Gabriela e ao Luiz Fernando.
Diagramação: Cristina Ely
Imagens: Colégio de Aplicação da UFRGS - Porto Alegre
Por Cristina Ely
Turim
Fonte: www.teatrostabiletorino.it
RESUMO
Percursos. Foram muitos. Extensivos e intensivos.
Personagens em deslocamento. Num espaço que tanto pode ser
escolar como não. Lugares tanto conhecidos como desconhecidos.
Movimentos repetidos. De Nietzsche, alunos, professores,
funcionários, pais. Da estação de Porta Nuova até a Piazza Carlo
Alberto. Do ponto do ônibus até a escola. Do pátio ao saguão. Do
corredor às reuniões. Dentro da sala de aula. Sempre iguais, mas
nunca os mesmos. Traçado de linhas que extrapolam pontos. O
primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto, período da manhã.
De março a dezembro. Cinco dias por semana. Repetir. Repetir.
Repetir. Falas, gestos, posições. Contudo, por mais que na escola se
repita visando à reprodução exata, ela nunca acontece. Nenhum
caminho é igual ao outro. Voltas e revoltas pelos corredores, pelo
saguão, pelas salas de aula, pelas salas de reuniões. Trilham-se
percursos imprevisíveis dentro dos previsíveis. Mesmo que não se
saia do lugar. Pois, há uma potência própria da repetição. Num
instante, surgem linhas que escapam ao conhecido, ao esperado,
fogem ao pensamento representacional. Afinal, aqueles trajetos são
de um só personagem e de vários? Trata-se de um único percurso e
também de muitos? O quê? Ninguém sabe dizer. Isso não importa.
Suspense produzido por aquele que foge à representação. O próprio
movimento de estabelecer a identidade entre o que se ensina e o que se
aprende, entre a produção e o produto da escola, faz surgir algo
indiferenciado de difícil distinção. Um afrontamento às certezas, às
verdades estabelecidas sobre modelos de aluno, professor, aula,
aprender, pensar. Para poder criar.
Palavras-chave: educação, filosofia da diferença, agenciamento,
repetição.
RÉSUMÉ
Des percours. Ils ont été beaucoup. Extensifs et intensifs. Des
personnages em déplacement. Dans un espace écolier ou pas écolier.
Des lieux connus ou pas connus. Des movements répétés. De
Nietzsche, des élèves, des professeurs, des fonctionnaires, des
parents. De la station de Porta Nuova jusqu'à la Piazza Carlo Alberto.
De l'arrêt d'autobus à l'école. De la cour au foyer. Du couloir aux
réunions. Dans la salla de classe. Toujours pareils mais jamais les
mêmes. Tracé de lignes qui extrapolent des points. Le premier, le
deuxième, le troisième, le quatrième, le cinquième temps du matin.
Des mars à decembre. Cinc jours par semaine. Répéter, répetér,
répéter. Des monts, des gestes, des positions. Pourtant, même si
l'école repete en envisageant la reproduction exacte, elle n'arrive
jamais. Aucun chemin parreil à l'autre. Tours et retours par les couloir,
le foyer, les salle de classe, les salles de réunions. Ont fait des parcours
imprévisibles dans les parcours prévisibles. Même si on rest das la
même place. Ça fait partie de la répétition. Dans un instant on aperçoit
des lignes qui échappent au connu, au dèjá vu. Enfin, ces parcours
appartienent à un personnage ou à plusiers? Il s'agit d'un seul ou des
plusieurs parcurs? Quoi? Personne sait le dire. Ça n'importe pas. Du
suspense produit par celui qui feit à la representation. Le mouvement
d'établir l'identité entre ce qui on ensigne et qu'on apprend, entre la
prodution et le produit de l'école provoque quelque chose
indifférenciée de difficile distinction. Un affrontement aux certitudes
établies sur modèles d'élèves, de professeurs, de la classe, d'apprendre
et de penser. Pour pouvoir créer.
Mots clés: éducation, philosofie de la différence, agencement,
répétition.
SUMÁRIO
Caminhos de Nietzsche p. 13
Na estação de Porta Nouva p. 14
Turim um encontro p. 18
Primeiros passeios p. 22
Pela janela p. 27
Ao despachar uma carta p. 32
O solo da cigana p. 37
De volta ao quarto p. 43
Último passeio p. 49
Repetição dos percursos p. 59
Ao sair de casa p. 60
Ao despertar p. 64
Na escola p. 67
De carona p. 71
Na sala de reuniões p. 74
Até bater p. 82
Em direção ao leste p. 85
No corredor p. 91
Na sala de aula p. 96
No banheiro p. 103
Das bolas p. 108
No sexto período p. 117
Muitos percursos em um? p. 124
Primeiro p. 125
Segundo p. 129
Terceiro p. 130
Quarto p. 134
Quinto p. 138
Sexto p. 141
Sétimo p. 147
Oitavo p. 150
Nono p. 161
Décimo p. 168
Mapa dos percursos p. 174
Caminhos p. 175
Repetição p. 178
Muitos p. 183
Idéias-força p. 185
13
Caminhos de Nietzsche
Na estação de Porta Nuova
Quinta-feira, dez horas da manhã. Um dia nublado de abril.
Uma vez mais, desembarco do trem. Sozinho. Agora na estação de
Porta Nuova. Depois de atravessar a costa norte do Mediterrâneo via
Alessandria e Asti. Não sem antes tomar o trem errado em Savona, sua
única conexão e ter ido parar em Gênova. Será que não li direito o
aviso da plataforma? Ou a indicação do destino na lateral do vagão?
Senti-me tão mal com esse contratempo, que fui obrigado a alugar um
quarto, numa pensão em Sampierdarena. Sem dúvida, a viagenzinha
mais desafortunada que alguém pode ter feito. Uma profunda
fraqueza tomou conta de mim no trajeto, fiz tudo errado, agi de
maneira estúpida... No primeiro dia sentia-me impotente. Estava só,
novamente. Sem amigos, sem dinheiro. Apenas, recentemente, acabei
de pagar a publicação da edição da Genealogia da Moral. Meus
livros? Não vendem.
No dia seguinte, porém, ao caminhar pelo centro antigo de
Gênova, fiz uma completa reavaliação da minha posição. Minha
mente trabalhava, novamente, sobre um outro conjunto de idéias:
amor, nobreza, prazer, gratidão, vontade, coragem e cura. Ao
percorrer, novamente, as ruas e os becos íngremes daquela cidade,
voltei a um inverno incrivelmente desolado, longe dos médicos, dos
amigos, das relações. Ao passar pela frente de um conjunto de casas
enfileiradas numa encosta, próximo ao Teatro Lírico, meu olhar volta-
se para o último andar. Ainda podia sentir o frio que passei naquele
14
sótão gelado. Tempo em que escrevera Aurora, além de algumas
partes da A gaia ciência. Era como se ao sair daquela cidade pesada e
melancólica, também saísse de mim mesmo. Nunca me senti tão
agradecido ao destino como naquela época da existência ermitã em
Gênova.
Ao descer do trem carrego, além do meu sobretudo, um livro
no bolso. Olho para o céu será que vai chover? Procuro por minha
bagagem e não a encontro. Essa não é a minha primeira viagem, nem
será a última, como isso pode ter ocorrido? Em verdade, tenho cada
vez mais dificuldade em viajar sozinho. Não me recordo de ter
passado por esse tipo de situação quando Elisabeth viajava comigo.
Mas, isto foi antes dela ter se casado. Nesse intervalo muita coisa se
passou.... Entre uma mala e outra, um apito e outro, um passageiro e
outro, um pacote e outro, volto para a minha última temporada em
Nice a forte enxaqueca que sofri logo depois de chegar, o que me
obrigou a passar dois dias inteiros na cama do quarto do hotel, só,
completamente no escuro. Sem ao menos poder ler a carta que guardo
comigo...
Basiléia, 20 de março de 1888
Caro amigo Friedrich
15
Faz algum tempo que anseio por noticias tuas. Lamento não
ter podido te escrever antes, mas os afazeres acadêmicos têm me
exigido bastante. Por onde tens andado? Gênova? Veneza? Sorrento?
Como está a tua saúde? Ela permite que continues trabalhando? Tens
podido publicar alguns dos teus trabalhos? Quem, gentilmente,
forneceu o teu endereço em Nice foi o nosso amigo Overbeck.
De modo algum quero te trazer aborrecimentos. Mas, a nossa
amizade permite que divida algumas das minhas preocupações
contigo. Pois, como tu bens sabes, após a tua saída da Universidade
fiquei sem muitos interlocutores. As coisas por aqui não andam muito
diferentes do tempo em que trabalhavas. O diretor administrativo
ainda é o velho Vischer. Mas, para ser bem sincero, de fato, as coisas
estão é piores. Por isso, te escrevo. Na Suíça, a situação,
rapidamente, se deteriora. Como um câncer. A cultura está ameaçada
posta à venda como algo venal, submeteram-na às leis que regem as
transações comerciais. Quem e quantos a consomem é a questão
fundamental para avaliar qualquer produção cultural. Os filisteus da
cultura estão tomando conta! Aqueles que tu bens conheces: estritos
cumpridores das leis, dedicados executores dos deveres acadêmicos.
Personagens do bom-senso, incultos em questões de arte, acreditam
na ordem natural das coisas. No entanto, têm a ilusão de serem cultos.
Incapazes de criar, limitam-se a imitar e a consumir.
O saber a qualquer preço, o excesso de história, a ruminação
do passado, a cultura da memória é o que impera hoje no
Pädagogium. Que tristeza! Os alunos estão cada vez mais passivos,
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meros expectadores das classes. Cultura enciclopédica e a qualquer
preço é o que tentam neles inculcar. Pelo que sei, continuas
produzindo. Anteriormente, admirei o que escrevestes sobre a
educação na segunda das Considerações extemporâneas Da
utilidade e desvantagem da história para a vida, onde denuncias o
enfraquecimento da cultura causado pela expansão sem limites da
ciência histórica. Além de criticares os historiadores universitários,
seres empanturrados de saber, meros espectadores do passado e não
criadores de vida e cultura. E na terceira das Considerações
expontâneas Schopenhauer educador, na qual condenas os
filósofos universitários e a sua mania de erudição. Como também,
insistes no papel crítico da filosofia e no seu poder de transformação
da ordem estabelecida.
Caro amigo, com as palavras tens a força de um trovão e um
dia, tenho certeza, serás reconhecido. A coragem e precisão com que
colocas o dedo na nossa pior ferida será admirada. Não será chegada
a hora de produzires a quinta Extemporânea? Retomares o projeto de
escrevê-las, até a nona, de acordo com o teu plano inicial? Mais do
que nunca, a tua coragem de criticar o estabelecido se faz necessária.
Creio que tens elementos e força suficiente para tal façanha. Aguardo
notícias tuas, assim como muito me alegraria obter uma resposta
favorável ao meu apelo.
Com apreço e saudades, do teu amigo Rohde.
17
Turim um encontro
Ao ler a carta era como se as palavras saíssem do papel para
compor um quadro de lembranças. O tempo passado na Universidade
da Basiléia, as classes de filologia clássica, os alunos Heinrich
Koselitz e Heinrich Wideman que deixaram Leipzig para freqüentar
minhas aulas, o fiel amigo Franz Overbeck, misturado ao cansaço de
ter de viajar sozinho, de trocar o trem na conexão, de cuidar da minha
mala, de enfrentar a minha fraqueza. De repente, mergulho em um
outro tempo dentro do mesmo tempo... volto aos meus 24 anos,
quando queria ser mais do que um instrutor de bons filólogos.
Preocupava-me com os deveres de um mestre, com a geração futura.
Preparava minhas aulas com dedicação. E, aos sábados e domingos,
deslocava-me para Tribschen, a minha pequena Itália. Desfrutava da
alegre companhia dos Wagner. Dos passeios à beira do lago
Viervaldstätt de braço com Cosima. Ainda posso ouvir R.
improvisando ao piano, suas idéias sobre Shopenhauer, o filósofo que
mais entendia de música, seus grandiosos planos para a construção do
teatro de Bayreuth. Ou as leituras de O pote dourado de Hoffmann,
onde Cosima se encarregava da serpente mágica Serpentina, R. ele
próprio, o diabólico arquivista Landhorst, cabendo a mim o
18
desajeitado estudante Anselmus. Tempos felizes. No entanto, estava
preso à rotina acadêmica, sem poder escrever e viajar. Até me
licenciar da Universidade. Depois de um certo tempo, os médicos
começaram a me proibir as leituras e a me prescrever leite. Então,
estou aqui sem saber o que fazer com essa carta, que resposta lhe dar...
Gostaria de, simplesmente, ignorá-la. Mas, trata-se de um pedido de
um bom e velho amigo, sobre um tema que me tocou diretamente.
Retomar a escrita das Considerações Extemporâneas? A primeira
delas teve boa aceitação no meio acadêmico e leitores atentos. Não
posso dizer o mesmo das outras. Fui ignorado pela maioria dos
colegas e pela imprensa. Exceto pelos amigos fiéis como Rohde. Mas,
na verdade não estou preocupado com isso. Ocorre que, no momento,
sinto-me distante dos assuntos educacionais. Além disso, estou
envolvido com outros interesses, em especial a música. Talvez, ainda
tenha um acerto de contas a fazer. Desta vez, comigo mesmo.
Ao sair a pé da estação com a minha bagagem, por uma das
ruas paralelas que se estendem em direção a Piazza Castello, os
pensamentos sobre o tempo passado na Universidade da Basiléia e os
dias alegres em Tribschen vão tomando distância. A cada passo que
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dou Turim me invade. A cidade me surpreende. As suas cores me
encantam. Não me lembro de ter visto, ao longo das minhas andanças,
construções com tal cor de amarelo e laranja. Tons quentes,
aconchegantes, vibrantes, agem sob o meu espírito criativo. Olho com
admiração para as amplas arcadas da estação férrea, dos prédios
setecentistas. Todas são perfeitas para as minhas caminhadas ao ar
livre. A cada passo, o seu ar ameno e seco me revigora. Sem esquecer
as calçadas, delas muito já ouvira falar. Qual outro lugar possui
pavimentos desse tipo? Sob a luz do sol, não tinha visto ainda tal
beleza. Pois, encontram-se não apenas pessoas, mas idéias, entidades
e cidades. A metrópole barroca traçada pelo arquiteto Guarino Guarini
é majestosa e séria. Por enquanto, não vejo nela nada de moderno,
capital, como eu temia: é muito mais uma residência do século XVII,
com a corte, a nobreza e um gosto particular em que tudo predomina.
É a tranqüilidade aristocrática que está aqui preservada em todas as
suas coisas: não há subúrbios miseráveis, há uma unidade de gosto
que se estende nas cores amarela e marrom-avermelhada das
construções. Tanto para os pés, como para os olhos é um lugar
clássico. Que calçadas, que praças sérias e esplêndidas! Os habitantes
são agradáveis. O estilo dos palácios é despretensioso, as ruas são
limpas, tudo mais imponente do que esperava. Turim é realmente a
cidade que agora posso desfrutar!
20
Caminho até a Piazza Carlo Alberto. Procuro pela casa de
número 6. Encontro uma ampla construção de esquina, ao lado da
agência dos correios. Instalo-me no quarto que aluguei no último
andar da residência do sr. Davide Fino. Homem educado, fala francês,
diretor do escritório público e de uma banca de livros e jornais. Quero
morar numa casa asseada e bem administrada, onde haja tempo para
ler e tocar piano. De uns anos para cá trabalho numa peça musical.
Ainda não tenho nome para ela, mas trata-se de um hino à amizade e à
alegre aceitação da vida a despeito da dor. Uma querida amiga lhes
escreveu os versos. A chegada da primavera provocou a minha saída
de Nice. No entanto, ao instalar-me no meu novo cômodo, foi difícil
dormir. O tempo estava nublado e chuvoso. Apesar de cansado, as
variações de temperatura provocavam desconforto. As mudanças na
atmosfera costumam agir sob os meus nervos.
Qual o melhor lugar para se viver quando se padece de
terríveis enxaquecas? Não sei ao certo, mas sigo nessa busca desde os
34 anos, quando deixei a Universidade da Basiléia, em 1879. Apenas
sei que devo evitar a luz solar, o calor e o frio extremo. Em quase dez
anos de vida errante morei em Sorrento, Gênova, Veneza, nos Alpes
suíços e em Nice. Uma vida feita de deslocamentos, entre diferentes
países e cidades, arrumando e desarrumando malas, chegando e
saindo de estações férreas, de quarto de pensões, de restaurantes, de
hotéis. Um ir e vir a pôr em movimento não apenas o meu corpo, mas
os meus pensamentos. Há muitos anos tenho por hábito passar o verão
nos Alpes suíços e a primavera na Riviera francesa. Desconheço um
lugar que me seja agradável entre abril e maio.
21
Primeiros passeios
O que podem pensar de um sujeito andrajoso, com enormes
bigodes e um livro no bolso sentado num trem? Um filósofo
ambulante? Um escritor alemão exilado? Um professor rejeitado?
Um profeta? Um Colombo a navegar por mares desconhecidos? Um
Napoleão em busca de novas conquistas? Um gênio? Isso não
importa, não estou preocupado com questões desse tipo. E sim, com o
fato de não poder passar todo o dia lendo e escrevendo, isso exige
muito da minha vista. Além de ainda não saber que resposta dar ao
pedido de Rohde. Escrever mais uma vez sobre a educação? No
passado já fiz isto, não sei se disponho de saúde suficiente para tal.
Embora fuja das definições, postulo um mundo onde tudo é máscara.
Considero-me apenas um filósofo que está na fímbria das coisas,
apenas na fimbria das coisas... Recordo-me das palavras de R. a meu
respeito... disse que possuo a capacidade de me duplicar. Quanto mais
extrema a minha dor, maior o meu poder criativo. O poder de retornar
de um salto; a capacidade física e espiritual de ser um Übermensch.
Como os nômades, sem passado ou futuro, tenho uma afinidade pelo
meio, pelo devir: filósofo ambulante, professor de filologia, filho de
Fransiska, amigo de Franz Overbeck, de Heirich Közelitz, explorador
destemido?
22
Aproximo-me do estreito balcão exterior à janela do meu
quarto. Mesmo com o mau tempo, é possível avistar la collina os
morros verdes de Turim a sudoeste e, num dia claro, os Alpes a
noroeste. Deste lugar tenho uma visão privilegiada para a pequena
Piazza Carlo Alberto, onde o primeiro soberano Savóia de Piemeonte
e Sardenha aparece imortalizado numa grande estátua eqüestre. À
direita, situa-se o palácio Carignano, com sua imponente fachada.
Enquanto à esquerda, outro prédio burocrático, o Departamento de
Finanças e Tributos.
Levantar cedo, banhar-me em água fria, tomar o café da
manhã, ler e escrever cartas, eis a rotina que estabeleci para mim.
Força-me a vista, ler e escrever. Consigo trabalhar somente umas
poucas horas, pois as palavras se misturam sob a página, tão logo
começo a cansar. Então, saio para mais um passeio. Com um pequeno
bloco para anotações, parto como um explorador destemido. Essa não
é a minha primeira jornada, nem será a última. Nesse meio, muita
coisa se passa. Ao descer os lances da escada que conduzem à rua
Carlo Alberto, Ernesto Fino, esbarra em mim. Era como se os pés do
pequeno Fino voassem pelos degraus. Tão logo ele se dá conta do
ocorrido, da minha surpresa, pede-me desculpas. E, antes que volte a
correr, pergunto se pode me dizer aonde vai com tamanha pressa. Um
tanto encabulado, diz que não pode parar, senão se atrasará para a
escola. Fico parado ao ouvir a sua resposta. Cristalizado, como se os
23
ponteiros do relógio tivessem parado. A última palavra do menino
ainda ecoa em meus ouvidos. Ela traz de volta a carta de Rohde e o seu
apelo. Escreverei ou não mais uma vez sobre a educação? Darei
continuidade às Considerações Extemporâneas? Mas, como fazer
isso? Pois, trata-se de um projeto longo. Não sei se tenho tal fôlego e
tempo suficiente. Ainda não sei, é cedo para responder. Preciso me
exercitar ao ar livre. Atividade que em qualquer lugar me acalma e me
estimula. Todo o meu trabalho está temperado pelo viandante. Palavra
que em alemão não quer dizer apenas itinerante, mas aquele que
caminha por prazer. Ao me virar para me despedir do filho do sr. Fino,
percebo que ele já tinha ido embora. Termino de descer as escadas.
Sigo em direção aos quatro lados porticados da Piazza Castello, pela
coberta Via Pó, rio abaixo. Entre o início e o fim da caminhada sou
assaltado pelos meus pensamentos como se do exterior, como se de
cima e de baixo, pois como filósofo, permanentemente, experimento
vejo, ouço, suspeito, aspiro, sonho coisas extraordinárias, como se
através de acontecimentos e cataclismas a se...
Repetir. Uma vez mais, depois outra e assim, sucessivamente.
Sem parar... Ser atravessado pelo movimento dos coches, dos bondes,
das pessoas entrando e saindo dos cafés, das crianças oscilando com o
carrossel da praça... Mais uma vez, respirar o ar ameno e seco de
Turim. Sinto-me leve, tenho pés ligeiros, o peso da existência deixei
em uma esquina qualquer. Danço com o vai e vem das nuvens, com o
apito do guarda da rua, com o menino que corre atrás do vendedor de
24
algodão doce, com a minha sombra. Hoje estou aqui. E, amanhã?
Alguém sabe do amanhã? De que adianta rezar? Posso estar aqui ou
não estar. Veneza, Nice, Sorrento, Gênova, já me viram passar.
Quantas mais virão? E, por tanto amar o jeito viandante de ser, a
reunião de pés e olhos, querer repeti-lo eternamente... Compor-me
com o fluxo do subir e descer das girafas, dos elefantes, dos cavalos,
das cores das roupas, dos chapéus, dos cabelos, dos sapatos, dos
bancos, das árvores, das nuvens, do som da orquestra da Sala de
Música, misturado à luz dos candelabros... Dos eixos sair, perder o
rumo. Embaralhar-me. E, fora do prumo, azular. Imperceptível, sou
como todo o mundo, sou com o mundo, sou com a praça. Imiscuído na
paisagem. Visito outras terras, subo montanhas, sem me deslocar. Vou
muito longe, sem sair do lugar. No intervalo de mais uma volta, tudo
passa e, aparentemente, nada muda. As girafas, os elefantes, os
cavalos seguem as suas trajetórias. Assim como o pipoqueiro e as
crianças que aguardam, impacientes, a sua vez de andar. Perambulo
entre a terra e o céu, novamente. Mais uma vez. Derradeira volta na
qual tudo o que é ruim não retorna. A vista fraca, a dor de cabeça, a
náusea. Um gosto pela zona vertiginosa. Região incerta, veloz.
Desestabilizadora. Nem aqui, nem lá. Nem antes, ou depois.
Passagem eterna. Uma simpatia pelo meio. Onde não há mais nada a
reconhecer, só a encontrar. Nem professor, nem filólogo, nem
filósofo, nem poeta. Possibilidades de vida, novos modos de ser, de
pensar. Um outro e desconhecido eu, fora de mim, mescla de humano
25
e animal, de animado e inanimado, de pele e madeira. A querer
caminhar mais uma vez pelas ruas de Turim, mais uma volta com o
corcel azul. Sim, mais uma volta, a penúltima. Nunca a última.
26
Pela janela
Sem me dar conta, a noite se aproxima. Perdido no meu
passeio, pelas praças, pelas ruas, nos meus pensamentos, nos meus
apontamentos. Devo ter caminhado por várias horas... Volto para a
residência dos Fino. Instalo-me na mesa do meu pequeno quarto.
Escrevo, mais uma vez, para a minha mãe.
Turim, 10 de abril de 1889
Minha querida mãe: como estás? O que tens feito desde a
última carta que me enviastes? Tens notícia da nossa Elisabeth?
Escrevo para me sentir mais próximo de ti, para compartilhares,
mesmo distante, um pouco dos meus dias. Depois de ter passado por
alguns percalços para chegar em Turim, tenho boas notícias para te
dar. Cometi alguns enganos, desci na estação errada. Ainda não
entendi como pude ser tão tolo. Só depois de me recuperar uns dias
em Sampierdarena cheguei ao meu destino. Depois de localizar a
minha bagagem na estação de Porta Nuova, me pus a caminhar. Algo
que sempre me deu prazer.
Turim é a minha cidade. Ou serei eu que pertenço a Turim? O
único lugar que eu posso ser, onde sou possível. Situada aos pés dos
27
Alpes, a capital piemontesa é um posto ideal entre os balneários
costeiros e as altas montanhas. E as estradas parecem subir
alinhadas em direção ao centro. Possui um ar majestoso e sério. Os
palácios possuem um estilo despretensioso. As construções são altas
e amplas, o que me proporciona uma agradável sensação de
liberdade. Sem falar que a vida aqui me parece mais barato do que em
outras cidades italianas.
Instalei-me num aposento que mede, aproximadamente, dez
metros quadrados. Nele se distribuem uma cama, um roupeiro, um
criado mudo, uma mesa e até um piano. E a vista ampla que tenho
dele, em quase todas as direções é muito agradável. A pequena Piazza
Carlo Alberto onde o primeiro soberano Savoia de Piemonte e
Sardenha está representado numa grande estátua eqüestre. O palácio
Carignano, com sua imponente fachada municipal e o prédio
burocrático que abriga o Departamento de Finanças e Tributos.
Aluguei-o, por um preço acessível de um homem muito distinto, o sr.
Fino. Ele não fala somente italiano, mas francês, o que facilita a
nossa comunicação.
Aqui sinto a minha coragem para a vida crescer outra vez.
Experimento Turim. Turim age sobre mim. O ar ameno e seco, as
calçadas esplendidas, as ruas, os bondes, os ônibus, as arcadas
espaçosas, as praças, os cafés, tiram-me da queixa, da doença, me
dão vitalidade. Um agenciamento, uma reunião de elementos
heterogêneos a agir e a reagir uns sobre os outros, a proliferar...
Idéias embaladas pelas calçadas que tanto ouvira falar, pelas ruas
29
limpas e sérias, pelos ônibus e bondes que funcionam bem.
Estava em vias de contar-lhe sobre o inusitado pedido de
Rohde e a situação educacional da Suíça, quando o meu aposento é
invadido por acordes. Será a orquestra do Teatro Carignano? Mas,
tenho a impressão de ter ouvido crianças cantar uma conhecida
melodia. Será o filho do sr. Fino? A curiosidade me faz levantar e olhar
pela janela. Lá em baixo vejo pessoas se despedindo, se distanciando.
Onde estão os pequenos cantores? Algo naquele som transporta-me
para o meu passeio da manhã. Os cavalos, as girafas, os elefantes, as
crianças, ainda estão no parque a girar... Enquanto isso, espalhados
ao redor do carrossel, pais aguardam o momento de tirá-las de lá.
Depois de algum tempo o brinquedo pára, as crianças descem com
mais ou menos pressa, com mais ou menos coisas a carregar, com
mais ou menos vontade de partir. Não importa. Mais uma vez, eles
saem da Piazza Ninna, cruzam pela via Sellimio Severo e voltam a se
conectar com a máquina. Antes que a sirene toque outra vez. Nesse
meio tempo, alguns professores deixam as suas salas, cruzam o
saguão e dirigem-se, munidos de livros, pastas, caixa de giz, para as
suas aulas. Alguns retardatários se apressam, não querem chegar
atrasados, outros se despedem dos seus amigos tão intensamente
como se não fossem vê-los tão cedo. Sem esquecer aqueles que,
disfarçadamente, atravessam o pátio em direção ao bar.
É importante que o lugar seja o mesmo, que a hora seja
determinada, as salas marcadas, as falas preparadas, que os atores,
uma vez mais, tomem suas posições no palco. Sem corpos situados no
30
tempo e no espaço, o espetáculo não tem início. Atores, palco,
espetáculo, então, se trata de um teatro, não de uma escola? Sim e não.
É e não é. Ora um e ora outro. Simultaneamente. Máquina paradoxal.
Aponta para os dois sentidos, num mesmo instante.
Previsível e imprevisível. Regular e irregular. Velha e nova.
Conhecida e desconhecida. Completa e incompleta. Certa e incerta.
Calma e agitada. Rápida e lenta. Aberta e fechada. Próxima e distante.
Forte e fraca. Clara e escura. Grande e pequena. Alegre e triste.
Simples e complexa. Quente e fria. Sagrada e profana. Amada e
odiada. Tantas características opostas dificultam qualquer
identificação ou julgamento que se queira fazer a seu respeito: está
em crise, falida, embolorada, ultrapassada, cheira a era medieval?
Isso não tem importância.
Serei capaz de dizer um sonoro sim ao seu funcionamento, e a
tudo o que ele implica: saber e ignorância, acertos e erros, encontros e
desencontros, arranjos e desarranjos, alegrias e tristezas, atrasos e
antecipações, novidades e mesmices, agitação e calmaria, aprovação
e reprovação?
Volto a abrir os olhos, eles ardem bastante, as palavras se
embaralham no papel. Mesmo sem ter pedido novos pares de meias
para minha mãe, vou parar de escrever a carta por aqui. Está muito
tarde. É melhor tomar meu cloral e tentar dormir.
31
Ao despachar uma carta
Um novo dia começa. Levantar cedo, banhar-me em água fria,
tomar o café da manhã, ler e escrever cartas, eis a rotina que estabeleci
para mim. Termino a correspondência que havia começado para a
minha mãe. Conto-lhe que ainda é cedo para dizer se vou aceitar ou
não o convite de Rohde e voltar a escrever sobre a educação. No caso
de aceitar o seu pedido, escreveria por simpatia. Não se trata de um
sentimento vago de estima, mas da mistura de corpos, afetar e ser
afetado, caso de amor ou de ódio. Simpatia pelo que se passa entre -
mais um período de aula, mais um recreio, mais uma troca de
períodos, mais uma reunião... Antes de encerrá-la, faço um pedido.
Solicito-lhe que da próxima vez, não me envie salsichas tão salgadas
como as últimas. Tenho que zelar pelo meu frágil equilíbrio físico.
Pego e meu chapéu e saio para despachar a carta. Antes de
entregá-la no correio perambulo pelas ruas de Turim. Sigo a minha
rotina, sempre os mesmos movimentos, na mesma ordem, mas nunca
um dia é igual ao outro. Passeio pelas margens do rio Pó, à direita e à
esquerda da ponte Vittorio. Caminhar me acalma e me estimula.
Cruzo a via Carlo Alberto, além da estação de Porta Nuova. Afasto-me
do centro da cidade. Procuro por um café, um local que possa sentar,
tomar um sorvete e fazer alguns apontamentos. No caminho converso
com minha sombra. Quando darei uma resposta ao convide de Rohde?
Surgem algumas idéias, mas nada sistemático, são como fragmentos.
Não me agrada escrever sobre a máquina escolar. Mas, seguí-la,
32
deixar-me levar pelos seus movimentos. Uma sucessão deles que
ocorre num espaço específico, a partir de uma aliança de um lado
crianças, suas expectativas e a de seus familiares, arquivos, cadernos,
livros, lápis, borracha, régua, lápis de cor, estojos, cola, tesoura. E de
outro alunos aprovados, em recuperação ou reprovados. Uma grande
linha de montagem. Não tenho idéia do que dessa experiência possa
resultar, mas creio que se fosse colocá-la no papel, o seu formato seria
bem diferente de qualquer coisa que escrevi anteriormente.
Um vento leve, frívolo, encantador, começa a soprar neste dia
de tempo bom, dá asas aos meus pensamentos... Ocorre-me que como
toda máquina, ela não opera isoladamente. Não se trata de uma ilha.
Máquinas, máquinas e mais máquinas, máquinas de máquinas, um
universo... Em todo e qualquer lugar elas funcionam, se acoplam, se
conectam para produzir. Uma máquina-órgão produz e interpreta o
que nela ocorre segundo o seu próprio fluxo, de acordo com a energia
que dela sai, no caso, ligada ao saber. Uma força racional, mental, que
provém da filha dileta de Zeus. Palas Atena, nasceu da cabeça do seu
pai já adulta e armada. Deusa guerreira e sábia, protege a vida
civilizada, as atividades artesanais e a agricultura. Seu nome quer
dizer conselheira, o que indica a posse de uma sabedoria prática, reúne
a habilidade de utilizar as mãos em articulação com o cérebro. Um
agenciamento a produzir não somente formas, certezas, padrões, mas
o informe, o incerto, o sem medida. Pois a sabedoria o conhecimento e
a razão estão em relação com um Não que os integra. Isto é, todos os
três possuem uma sombra, um pensamento não pensante que é
necessário enfrentar para se dizer outra coisa, o não dito, o não
33
pensado sobre a sua produção.
O interessante deixa de ser como alcançar os objetivos
trimestrais, como não tirar o conceito D na prova de Matemática, ou
atingir a aprovação ao final do ano, não é chegar nos pontos, nas
marcas estabelecidas do seu funcionamento e, sim o que acontece no
caminho. Uma trilha repleta de linhas que extrapolam os planos de
ensino, os textos, os livros didáticos, os exercícios, a planilha de
rendimento escolar, o que é dito nas reuniões pedagógicas pois, é
assim que se começa a pensar sobre o agenciamento escolar: fora das
formas do que é uma escola, do que significa aprender, do que é uma
aula, um aluno, um professor, no desacordo entre as coisas e o
pensamento. Porém, são tantos os clichês, as idéias pré-existentes e
pré-estabelecidas sobre a produção dessa máquina que é preciso fazer
passar uma corrente de ar fresco saído do caos que restabeleça a visão
e o pensar. O que pode ser visto, o que pode ser dito, hoje, sobre a
produção da máquina escolar?
Pouco importa quando a máquina escolar começa a funcionar,
nem o momento em que ela pára. Não se trata do fim ou do início de
mais um ano letivo, dos turnos, dos períodos de aula, dos recreios, das
explicações, dos exercícios, das perguntas, das avaliações, das
correções, dos laboratórios de ensino, dos Conselhos de Classe, das
reuniões de Séria, de Área, de Departamento e Gerais. Como,
também, da produção dos aprovados, dos reprovados ou dos que estão
em recuperação. Sobre a finalidade da máquina escolar, seus
objetivos, suas metas, há muita coisa escrita, muito já se disse.
34
Alguém ainda não ouviu dizer que a escola está em crise, que ela está
ultrapassada, que seus métodos remontam a Idade Média? Ou que os
professores estão desmotivados e que os alunos pouco aprendem? E
sempre que se pensa desse modo, não demora se instaurar um tribunal.
Ah, que tédio! De antemão, já se sabe o desfecho dessa história. Pois,
uma vez mais a máquina escolar ocupa o banco dos réus. Culpada ou
inocente? Necessária ou desnecessária? Atual ou ultrapassada?
Quanta polêmica, quanto tempo gasto, quanto blá, blá, blá... Começa-
se a ponderar sobre os seus acertos e os seus erros, por um lado ela é
culpada, de outro, é inocentada. Em seguida, surgem apelos de lá e de
cá, ambos os lados expõem seus argumentos e ao final, chega-se a um
veredicto, algo, verdadeiramente, dito. Verdade que passa a ser
verdadeira, incontestável, enunciados são produzidos. Os quais,
geralmente, voltam a incidir sobre a máquina, de modo a implicar em
alguma espécie de reformulação da sua estrutura.
Depois de percorrer quadras e mais quadras da via Nizza e não
ter encontrado uma cafeteria, sigo em direção a Piazza Carlo Felice
onde se situa uma agência dos correios. Tão logo entro no local,
coloco a mão no bolso e procuro pela carta. Onde a coloquei? Será que
a perdi? Ou a esqueci no meu quarto? Como estou bem longe da
Piazza San Carlo e da residência dos Fino, por ora não há como saber o
que aconteceu.
35
36
O solo da cigana
Mais um fim de tarde chega. Volto para o meu aposento na
residência dos Fino, depois de ter passado pelo mercado e feito
compras. Procuro pela carta que escrevi para a minha mãe e não a
encontro. Terei a deixado cair na rua? Apresso-me ao trocar de roupa.
Coloco o meu melhor terno. Olho-me no espelho, antes de sair. Estou
elegante? Sim, aprovo o que vejo. Toda essa preparação é para
conhecer o teatro Carignano. Numa das conversas com a sra. Cândida
Fino ela assegurou-me que é a mais famosa casa de espetáculo, não
somente de Turim, mas do Piemonte. Construída pelo príncipe de
Carignano no final do século XVII, no início era apenas freqüentada
pela nobreza. Depois de passar por um terrível incêndio, sofreu uma
grande restauração que a deixou como está agora. Dentro em breve,
assistirei a mais uma apresentação da ópera Carmen de Bizet. Naquela
ocasião, antes de nos despedirmos, a sra. Cândida convidou-me para
uma visita, uma oportunidade para ouvir uma de suas filhas, Irene,
tocar piano. Creio que chegou ao seu conhecimento que sou um
amante da música.
A proximidade da casa dos Fino do Teatro permitiu que fosse
um dos primeiros a chegar. Assim, dispunha de tempo para admirar o
seu interior, enquanto aguardava o início da ópera. Sentei-me numa
cadeira da platéia. Como um príncipe num trono de veludo vermelho,
espaldar alto e arremates em dourado. Muito confortável. Toda a sua
decoração tem por base essas duas cores, algo majestoso. A cortina do
37
palco é de veludo vermelho com bordados e franjas douradas. Esta
última cor predomina nas belas cariátides. No teto há desenhos que
retratam o triunfo de Dioniso e a sua ciranda de ninfas. Há um grande
número de camarotes distribuídos em semi-círculo por quatro
andares.
Eis que a espera que se anunciava longa, passou muito
rapidamente. Pois, quando me dei conta, a casa havia lotado e o
espetáculo já ai ter início. Silêncio total na platéia. Tão logo as luzes se
apagaram e as pesadas cortinas se abriram, surge Carmen. Uma
cigana que a todos enfeitiça com seu corpo e sua voz. Mulher
selvagem, orgulhosa, alegre, no seu desapego com as coisas. Amava
quem e quando queria, sem se prender a ninguém. Acima de tudo
prezava a liberdade. Não conhecia regras nem escrúpulos, era um
animal vivo, saltitante. Meus ouvidos são tocados por uma melodia
leve, nova, bem trabalhada. Há muito tempo não me sentia feliz assim.
Com Bizet o amor foi devolvido ao seu lugar na natureza. Sem
maiores explicações, doloroso, violento. Um tom mais moreno, mais
sulista, mais bronzeado. Nada de brumas, do clima frio, do
pessimismo nórdico. Tudo o que é divino dança em pés delicados.
Dança cigana, dança
Com a leveza de teus pés,
Espanta a dor, a tristeza,
As brumas do pesar,
Rodopia sob mil dorsos
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Dança cigana, dança
Dança de mil maneiras,
Afirma a tua graça, a tua cor, o teu amor,
Amor ao destino, fatal, cruel,
Livre como um pássaro
Dança cigana, dança
Como os trovadores,
Entre os santos e as meretrizes,
Entre o bem e o mal,
Entre Deus e o mundo inteiro
Dança cigana, dança
Em plena luz, sob o calor do sol,
Em plena praça, na arena dos touros
Tão distante do frio, do norte
Inventa um mundo só teu
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No IV ato, a mezzo soprano Carmen canta um solo, sua voz me
arrepia. A cigana domina a cena, dançando de um lado para o outro do
palco. Fecho os olhos para ouvir melhor. De repente, um grito me
desperta. Mas, não era um canto? Quem gritou? Carmen? Mas, um
grito não teria mais a ver com esse grupo? O grito não está mais de
acordo com o que se passa numa sala fechada, composta por seis filas
de classes, uma atrás da outra, defronte a um quadro verde? Embora
todos gritem, não lhes ocorre que seja uma arte. Gritam sem dar
importância, até sem se dar conta. No intervalo das aulas, no corredor,
durante o recreio, na entrada e saída dos turnos. Mesmo sem notar que
é uma de suas características. Quem não o ouviu, não conhece o seu
poder. Impossível esquecer aquele som. O inusitado daquele canto era
tão grande, que nem mesmo o espírito mais obtuso podia resistir. Não
havia como não ser arrebatado por ele. Todos, naquele momento,
interromperam o que estavam fazendo. Os que prestavam atenção nas
palavras da professora e os que não prestavam. Os que olhavam pela
janela e os que olhavam para frente. Os que se distraiam com as
figuras da revista em baixo da classe e os que escreviam no caderno. O
bilhete que circulava por entre as filas, passava de mão em mão, ficou
entre os dedos da aluna mais tímida da classe. A dupla que permanecia
de costas para o quadro, numa conversa que nenhuma advertência
conseguia conter, calou. Assim como os três alunos que jogavam uma
borracha de um canto para o outro da sala, enquanto cabeças se
abaixavam, deixaram-na cair no chão. Inclusive a professora que
entre um pedido e outro de silêncio, uma interrupção e outra da sua
fala, esforçava-se para que a turma entendesse os tipos de sujeito, não
sabia o que dizer, nem o que pensar.
Todos naquele instante olhavam para Josefina. Ela
permanecia de pé, sem se mover, aparentemente, inabalável. Uma
aluna pequena, de corpo frágil e voz rouca. Ninguém era capaz de rir
do que aconteceu. Apesar de algumas das suas características físicas
serem motivo de riso em outras ocasiões. Pois, aquele grito os salvou.
Salvou do tédio, da rotina, da não correspondência entre as palavras
da professora e o que se passava ao redor. Aquele som os levou para
outro território, onde não havia mais sujeito: nem simples, nem
composto, nem oculto. Muito menos o seu núcleo. Restou apenas um
sujeito indeterminado, incontrolável, selvagem, a romper com as
individualidades. Ou, pelo menos, algo que lhes dava ânimo para
suportar tudo aquilo. Um estímulo para prosseguir, um pouco mais,
até bater para o recreio. Até estarem livres das explicações e sentirem-
41
se vivos. Um grito se impôs com seu nada de voz, com seu nada de
técnica e tocou-lhes a alma. Algo das suas breves e abandonadas
infâncias nele havia. Uma perda que não se pode voltar a encontrar.
Alguma coisa da vida cotidiana, de pequenas alegrias
incompreensíveis e no entanto, que não se pode esquecer. Um grito
que se liberou da opressão da rotina escolar e, ao mesmo tempo, a
liberar toda a classe, durante um breve instante.
Quando a professora se refez, dirigiu-se até a classe da
Josefina. Queria saber o que tinha se passado, se ela estava bem. Mas,
eis que professora não a encontrou. Ela não estava mais lá.
Inexplicavelmente. Ninguém sabe como ela saiu da sala. Tam- pouco,
alguém a viu sair de lá. Mas, para onde foi Josefina e o seu canto?
42
De volta ao quarto
Depois de sentar por quase cinco horas, com a música
dançando em minha cabeça L'amour, l'amour, l'amour, l'amour.
L'amour est enfant de boehme. I'l n'a jamais, jamais connu de lois.
Atravesso a Piazza Carlo Alberto e retorno ao meu quarto. É muito
tarde. Meus olhos estão cansados para iniciar mais uma carta. Apago a
luz sob a minha mesa, deito e procuro dormir. Ainda há movimento na
rua, é possível ouvir o barulho dos coches em baixo da minha janela.
Paulatinamente, o som vai se afastando, não ouço mais nada. Mas, eis
que dali a instantes, um apito quebra o silêncio. Um trem se aproxima?
Enquanto isso, na plataforma de embarque, uma multidão de crianças
das mais variadas idades, as menores acompanhadas de seus pais,
aguardam a sua chegada. Algumas delas estão impacientes, mal
podem esperar para partir. Outras, nem tanto. Aparentam sono.
Enquanto os adultos olham o relógio, demonstram pressa para saírem
dali, para chegarem no trabalho. Mais uma viagem? Irei mais uma vez
para Sils Maria? Juntamente com pais, mães e crianças? Dentro em
breve o trem as levará até lá. Novamente, apreciarei as cores daquela
região? Mas, não estou distante da estação férrea? Como posso ter
ouvido essa sirene? Sirene? O sinal de uma escola? Um som que avisa
aos professores e alunos que mais uma aula vai começar. Tocará
sempre mais uma vez? E, de novo, existirão os que chegam no horário,
os que atrasam, os que faltam? Um sinal ouvido por alguns, não
ouvido por outros, sendo que uns ao ouvi-lo tratam de ir para outro
lugar. Onde não existem leituras, nem exercícios, nem correções a
43
fazer. Como a rampa do prédio, munidos de faixas, apitos e cartazes
que serão utilizados num protesto contra a direção. Antes que o
professor entre na sala e feche a porta. Uma vez mais seguirei até os
Alpes suíços, com uma valise nova e um pouco de salsicha continental
sem gordura Lachsschinkenwurst que a minha mãe me enviara
para as refeições vespertinas? Serei capaz de repetir, novamente, esse
conhecido trajeto? Direi sim ao deslocamento do trem para nordeste
através de Milão? Assim como a tudo o que esse translado implica: as
baldeações inevitáveis, a perda da bagagem, os ataques da enxaqueca,
a náusea, o vômito? E, o professor, dirá sim aos que faltam, aos que
chegam atrasados, aos que nunca perguntam e conversam enquanto
corrige um exercício no quadro, aos pedidos para ir ao banheiro, aos
que perguntam, aos risos dos que acham graça das perguntas, aos
papéis jogados de um lado para o outro da sala? Serei capaz de
encantar-me com a vista ao pé das montanhas escarpadas, as águas
cintilantes orladas de altos ciprestes, as palmeiras, os espruces e os
abeatos? E, ao lado da linha férrea que dá para a margem mais
movimentada, serei capaz de admirar as pessoas se banhando,
andando de barco, pescando e se reunindo?
Atordoado por tantos questionamentos, nem percebi que
estava sentado ao lado de uma mãe e sua filha. A menina apesar de
estar ao lado da janela, não olhava para fora. Abria e fechava a sua
pasta repetidas vezes. O que estaria procurando? Não sei. Só sei que
na última hora, entrei no vagão. Mais uma vez, o trem atravessa a
fronteira Ítalo-suiça, serpenteia e cruza o Passo de Majola, a 1700 m.
de altitude. Então, o escarpado declive dá lugar ao solo plano,
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revelando, novamente, o espaço amplo, leve e aberto do vale de Sils e
os lagos contíguos de Sils e Silvaplana. É nesse local que o trem faz
uma parada para as crianças descerem. Algumas delas gritam, outras
se empurram, enquanto poucas aguardam, pacientemente, até a porta
se abrir e seguirem até a escola. Logo mais serei eu a desembarcar no
vilarejo de Sils. Novamente, alugarei um quarto da família Durish? A
mesma acomodação austera no andar de cima, forrada de madeira,
com uma pequena janela que dá para o sul e mobiliada com cama,
mesa e um lavatório? Apesar de nele já ter tremido de frio nunca o
troquei por outro mais quente.
Uma vez mais estou nessa pequena e despretensiosa cidade.
Absolutamente não-dramática exceto pelo sítio natural, bem diferente
da sua glamourosa vizinha St. Morritz, mas com uma clientela regular
no verão. Desempacoto as camisas novas enviadas por minha mãe
para substituir as já rotas pelos anos de penúria e negligência consigo
mesmo. Almoço no Hotel Alpenrose, do outro lado da ponte para Sils
Baselgia. Não canso de caminhar, pensar e escrever. À noite, sento-
me no meu minúsculo aposento, do qual avisto uma parede de rochas
sempre úmidas. Entra ano, sai ano, o mesmo vilarejo, o mesmo
quarto, a mesma janela, as mesmas rochas molhadas, as mesmas dores
de cabeça, do estômago, a náusea, o vômito. Estarei condenado a
viver esse momento para sempre? Primavera, verão, outono, inverno.
Todas as manhãs eles chegam... com mais ou menos sono, com mais
ou menos pressa, com mais ou menos coisas a carregar, com mais ou
menos vontade de começar... novamente. Tão certo como há manhãs
em que sol aparece e noutras em que permanece atrás das nuvens.
Certos dias eles aguardam mais, outros aguardam menos. Certas
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vezes eles conversam mais, noutras eles conversam menos. Em certas
aulas eles aprendem mais, noutras aprendem menos. Entra ano e sai
ano, a mesma escola, os mesmos professores, os mesmos alunos, os
mesmos pais, os mesmos conteúdos, as mesmas reuniões. Estarão
condenados a viver esse momento para sempre?
Com o chapéu novo que adquiri em Turim saio para caminhar.
Ao abrir o guarda chuva que trago comigo, um monte de bolinhas de
papel caem sob minha cabeça. Quem as colocou aqui? A menina que
viajou ao meu lado no trem? Será que ela sabia que também fui um
professor? Ou, quem sabe, foi uma daquelas crianças que esperavam
o trem na plataforma? Mas, não havia um outro professor no trem?
Um sujeito gentil, afável, mas com um ar cansado, sentado num dos
bancos da frente a procurar pelo seu guarda-chuva? Ouvi quando ele
disse que ontem o esqueceu na sala de aula e um aluno lhe entregou.
Terá ele trocado o seu com o meu? Isso não tem importância agora. Ao
andar, admiro o rosa brilhante e profundo da rosa alpina e os azuis
intensos da genciana. O vento em tornos dos lagos, repentinamente,
começa a soprar forte. Revelando um jogo de luz e sombra dramático.
O tempo muda com freqüência e rapidamente, uma força perigosa e
temperamental conhecida na região. Percebo que com o vento a água
muda de cor, do turquesa ao esmeralda e ao negro, e depois prata; mas
em determinados momentos a claridade comovente da água revela o
fundo arenoso. A partir daí, caminho em diferentes direções até os
confins do lago Silvaplana, onde fica o monólito Surlej. Como,
também, percorro os bosques da península Chasté, onde sonhei
construir uma cabana.
46
O ponto de encontro entre a Itália e a Finlândia, o lar de todos
os tons de prata que a natureza possui, este pedaço de Além-terra
Oberwerd age sobre mim. Assim como o lago Silvaplana com o seu
perímetro uniforme, sem acidentes. Além do jorro da cachoeira acima
da pedra Surlej, com tal força e beleza que parece água derramando
gaze do céu. O ruído, ensurdecedor, ofusca o canto dos pássaros, os
cincerros e as vozes que normalmente amenizam o silêncio do vale.
Ao mesmo tempo, gotículas de água se espalham pelo ar como gotas
de fumaça. Ao fixar o olhar na cachoeira fico atordoado. Olho para
trás, na direção de Sils, vejo claramente como às coníferas dão à água
do lago sua misteriosa palheta verde, azul e rosa. Nesse momento de
grande inspiração, sinto cosmicamente. Para além do eu e do tu. Isso
não significa a fusão do pequeno eu com o organismo cósmico em
geral, mas sentir o inaudito dentro do qual estou contido. O tempo cuja
duração é infinita, deve repetir de período em período uma disposição
idêntica de coisas. Tudo voltará a ser. Dentro de tal número de dias,
número imprevisível, imenso, porém limitado, um homem como eu,
sentado à sombra desta rocha, encontrará de novo esta mesma idéia. É
necessário que cada dor, cada alegria, cada pensamento e cada suspiro
retorne para ti na mesma série, na mesma ordem e também, está
aranha que estás olhando e esta lua cor prata entre as árvores... A
perene ampulheta do existir será sempre virada novamente e você
com ela, partícula de poeira. Choro com a mais sincera alegria.
Ao ouvir um choro alto, dou um salto, abro os olhos. Onde
estou? O que aconteceu? Acordo. Não enxergo quase nada. Sei apenas
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que despertei ao ouvir algo, teria sido um choro? Esse som deve ter
vindo da rua. Sim, ainda posso ouvir vozes ao longe, o barulho das
pessoas circulando pela praça. E, agora como irei adormecer? Onde
está o meu cloral? Se quiser voltar a dormir terei de tomá-lo.
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O último passeio
O sol já estava alto quando acordei. Como pude dormir tanto?
A minha higiene pessoal é feita ainda sob o efeito da ópera de Bizet. A
leveza daquela música embala meus pensamentos. Antes de sair para
mais uma caminhada, inicio uma carta para uma querida amiga que
me escreveu em Nice. Na verdade, ela é mais que uma amiga, uma
irmã. Sempre atenta a minha vida de escritor itinerante, aos meus
relacionamentos, ao meu estado de saúde.
Turim, 20 de abril de 1888
Estimada Malwida:
Como tens passado? Como vai a tua vida em Londres?
Continuas lecionando a língua alemã? Ultimamente, tenho lembrado
com muito carinho da nossa temporada em Nice. Dos dias que
passamos juntos, das conversas animadas nos cafés, da companhia
estimulante de Paul. Lamento só agora ser possível responder a tua
carta. Nesse meio tempo, com a proximidade da primavera, saí de
Nice. Estava quase seguindo para Veneza, a convite de Peter Gast.
Mas, faltou-me disposição. Há mais de meio ano estou afastado do
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convívio social. Então, decidi, no último instante, viajar para Turim.
Foi a escolha mais acertada que fiz na minha vida. Esta cidade parece
que foi feita para mim. Ou serei eu feito para ela? Não importa, e sim
o encontro que se deu. Algo que a cada passeio supera toda e
qualquer expectativa.
Turim é uma cidade calma, aristocrática. Traçada com
precisão geométrica e que preserva um ar meridional. Encanto-me
com a homogeneidade de gosto que predomina nas construções, nas
cores dos prédios, nas calçadas. Caminhar por essas ruas imponentes
é uma delícia. Como em Nice, em Gênova, preciso estar perto da
música. O quarto que aluguei fica a poucos metros do Teatro
Carignano e da Sala de Música. Onde quase duas mil pessoas
assistem às bandas disputarem os mais elevados lauréis. Sem falar
que aqui estou sendo reconhecido. Na livraria Loescher, na via Pó,
alguns clientes mais eruditos vieram falar comigo. Como o professor
de filosofia Pasquale d'Ercole. Além disso, a garçonete da trattoria
do Hotel Nacionale atende-me com muita deferência. Até as melhores
uvas ela reserva para mim nos almoços.
Descrevo-te um pouco dessa cidade, pois aqui a linha dura
dos aborrecimentos, da falta de dinheiro, de companhia, começa a ser
rompida. As linhas flexíveis da criação podem ser traçadas,
novamente. Quando menos espero. Como naquela tarde agradável.
Saíra para dar mais um passeio. Como tu sabes, só por algumas horas
posso ler e escrever. No resto do tempo exercito-me. Caminho e
penso, penso e caminho. Peguei o meu chapéu, o bloco de notas e
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tomei a direção da torre do Mole. Uma obra do arquiteto Antonelli,
uma imensa estrutura em domo, com 165 metros de altura, a sudoeste
do centro da cidade.
Depois de admirar a cidade vista de cima, de respirar o seu ar
ameno, retornei ao centro. Mais uma caminhada ao ar livre. Passado
um tempo, decidi descansar no Café Nazionale, onde um conjunto de
doze instrumentos costuma tocar. Um lugar muito elegante que serve
o melhor chocolate que já experimentei. Comparável, somente, ao de
Monte Carlo. Naquela ocasião escolhi uma mesa nem muito perto,
nem muito longe da música. Tão logo sentei, o garçom aproximou-se
e fiz o meu pedido. Uma taça de sorvete acompanhada de água
mineral. Enquanto esperava, lia as manchetes do jornal Des Débats.
Passado alguns instantes, tirei os olhos da leitura. Avistei o
garçom se aproximar equilibrando a bandeja com o sorvete e a água.
Quando ele inclinou-se para servir-me, surge uma criança correndo,
não sei de onde e tropeça nos seus pés. A bandeja, o copo, a garrafa, a
taça de sorvete, voam pelo ar, caem sob a mesa e se espatifam pelo
chão. O menino sacode-se, passa a mão nos joelhos e volta a correr. O
estrago foi grande. Por um instante tudo pára. A água transformou-se
em ácido oxálico. O líquido foi jogado na calça de um aluno em plena
feira de Ciências. O auditório da escola estava lotado. Eram mães,
pais, irmãos, colegas e professores a circular por entre os estandes.
Em cada um deles um experimento diferente. Há poucos instantes o
evento havia sido, oficialmente, aberto com as palavras da diretora.
Embora muitos dos presentes não tenham prestado atenção ao que
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era dito. Havia alunos que circulavam e pais que ao se encontrarem
não paravam de conversar.
De qualquer modo, a sua fala louvava a iniciativa dos
professores de Ciências e a grande receptividade dos alunos. Além de
consistir numa oportunidade de convívio harmonioso e uma troca de
experiências entre os jovens de diferentes séries. Pelo menos foi esse o
tom que a direção quis imprimir ao evento. No entanto, ao circular
pelos estandes, Rafael destoava. A sua curiosidade não tinha relação
com o que se passava com os tubos de ensaio, com os corantes, com as
pipetas. Nem com o que ia acontecer com o ratinho preso numa caixa.
Ou com o esqueleto deitado numa maca. Estava mais interessado em
ver quem estava atrás das mesas. Quais eram os colegas que iriam
apresentar os trabalhos. Quem entre os seus pares ia se destacar
naquela tarde. Quem ia ser beijado e fotografado ao lado dos pais.
Quem ia receber a atenção dos professores. Por isso, circulava,
rapidamente, por entre as mesas. Ficava um mínimo de tempo e saia.
O necessário para não evidenciar que tinha pressa. Queria disfarçar
a ânsia para que algo rompesse com aquele espetáculo no qual era
apenas platéia. Não estava habituado com esse papel. Geralmente
era protagonista. Líder dos agitos e confusões. Até avistar a Carla e
ser mordido pela raiva. Como ela e seu grupo de colegas podiam
estar ali? Logo a Carla. Aquela menina insegura, estudiosa e tímida.
Excluída do grupo mais popular da turma na quinta série. Aquela que
nunca olhara para ele. Nem quando fazia a maior bagunça e era
retirado da sala de aula. Por isso Rafael ia e vinha. Parava no seu
estande, insultava-lhe, saia e voltava. Retornava com novos ataques.
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A Carla fazia de tudo para ignorá-lo. Fixava o olhar nos tubos e
continuava a demonstrar a experiência. Mas, essa tática não estava
funcionando. Mesmo sem querer, ela começou a se perturbar. Tinha
dificuldade em se concentrar no que dizia. As suas mãos tremiam.
Rafael, finalmente, estava conseguindo o que queria. As colegas do
grupo pediam, insistentemente, que ele fosse embora. Ele as
ignorava. Continuava com o seu deboche. Chegou a vez de Carla lhe
dizer para ir embora, aborrecer outro. Mas, ele não ouvia, estava se
divertindo e seguia lhe provocando com palavras. Até Carla não
agüentar mais e jogar o ácido na sua calça. Quem estava lá não
acreditou no que se passou. A reação de Carla a todos surpreendeu.
Principalmente, ela mesma. Sem falar no Rafael que saiu dali
esbravejando. Agora, tudo o que ele queria era uma calça nova.
Enquanto isso, o garçom se desculpou, limpou o estrago e trouxe,
novamente, o meu pedido.
Quando menos espero, no meio de uma caminhada, num café,
no teatro, o meu pensamento adquire asas, ganha velocidade, visita
outros territórios. Talvez, aproveite-as para um novo trabalho. Não
sei. No momento, penso em escrever algo, diretamente, relacionado à
música. Agora tens uma idéia de como tenho passado os meus dias.
Cara amiga. Aguardo notícias tuas. Por favor, não leve tanto tempo
para me escrever como eu.
53
Abraços, F. Nietzsche.
Saio para mais uma caminhada. Não sem antes elaborar mais
uma lista para o meu bom funcionamento: esperar esfriar o chá antes
de beber, evitar toda a bebida alcoólica e multidões, ler, escrever
cartas, vestir roupas quentes à noite, usar o guardanapo no café da
manhã, não esquecer o caderno de notas. Não me lembro de ter visto
uma cidade tão bonita sob a luz do sol. Do seu interior posso ver os
Alpes cobertos de neve. A paisagem da montanha, a altitude, um posto
de observação único. Com a altitude das montanhas tenho a sensação
de poder entregar-me ao trabalho de maneira mais eficiente; de poder
ver mais longe. Ao contrário do reino das idéias de Platão, as altas
montanhas não sugerem um mundo ideal incognoscível e situado
além, mas o melhor posto de observação possível nesse mundo real -
um mundo que é apenas a soma de suas imagens. Não estou
interessado num duplo sistema de valores que compense as aparentes
limitações da existência humana, mas numa melhor maneira de ver
que a existência é realmente limitada. E, ao experimentar essa
limitação dela me liberto. Pois, enxergo longe e acima das nações,
credos e indivíduos, elevando-me acima da desordem, indo além do
mundo conhecido para ver a arbitrariedade de seus valores...
Lamento ainda não ter escrito uma carta em resposta ao pedido
de Rohde. Pois, não sei o que lhe dizer. Confesso que fiquei surpreso
com o seu convite. Tendo em vista que no passado, nem todos os
textos que escrevi sobre o futuro das escolas foram bem recebidos.
Normalmente não sou bem compreendido, quer seja pelo meio
acadêmico, quer seja pelo público em geral. Os meus leitores, até
agora, são poucos. Será por que estou à frente do meu tempo? Nesse
sentido, escrevo para o futuro, para um povo que virá, um dia. Sigo
escrevendo para todos e para ninguém. Apesar de ter ficado bastante
sensibilizado com o relato sobre a situação da educação na Suíça,
estou inclinado a não atender ao seu convite. Em primeiro lugar, por
não me ocupar, especificamente, com temas educacionais há bastante
tempo. Em segundo lugar, pela minha saúde instável. Em terceiro
lugar, por estar escrevendo, no momento, um memorando às
embaixadas européias conclamando-as à formação de uma liga anti-
germânica. O meu intento é prender o Reich numa camisa de força e
obrigá-lo a uma guerra desesperada.
Sem me dar conta havia chegado na Piazza Vittorio Veneto.
Encontro um banco para sentar e descansar. Depois de algum tempo,
ponho-me a andar. Sigo em direção da ponte Umberto. Ao dar início a
travessia as pessoas que encontro me saúdam. Será que elas me
reconhecem? Leram os meus livros? A primeira, não consigo
distinguir bem, de longe parece uma cigana. O seu vestido é colorido,
colado ao corpo, comprido. Será Carmen? Ao se deslocar tenho a
impressão que ela não caminha, mas desliza. Ou melhor, ela dança em
55
minha direção. Não canso de admirar a leveza dos seus movimentos.
A música de Bizet embala os nossos passos. Sim, agora estou a
rodopiar com ela. O seu corpo sensual pulsa, vibra em meus braços,
entre um acorde e outro. Ela sorri e aproxima a sua cabeça em direção
ao meu ouvido. Tenho a impressão que ela tem algo a me dizer, a me
sussurrar. Quando chego mais perto, ela solta um grito. Dou um salto
para trás. Onde foi parar a cigana? Agora quem está na minha frente é
Josefina. O som que ela emite tem o poder de paralisar a todos. Quem
está próximo olha para o seu corpo frágil e não acredita no poder do
seu grito. Por um breve instante, ela levou-os para longe das suas
preocupações, dos seus afazeres, quebrou as suas rotinas. Ela não teve
tempo de me dizer nada. Estava com muita pressa. Tinha que correr. E,
ao se afastar com tamanha pressa, não era mais Josefina quem corria,
mas a Carla. Ela quer alcançar aquele colega que a insultou na feira de
Ciências, antes que bata o sinal. Antes que todos entrem nas suas salas
e mais uma aula comece. O que será que ela fará agora? Terá mais
ácido para jogar nele? Mas, eis que o garoto é veloz. Corre muito.
Tenta escapar das bolas que ela joga. E, mesmo ao ser perseguido, ele
se vira para trás e continua a lhe xingar. A menina vai se enfurecendo,
mais e mais. A raiva é tamanha que a cega. Ela não olha mais para onde
anda. Sem notar, derruba uma criança. É um menino que cai sob os
meus pés. Será que ele se machucou? Quando vou ajundá-lo a se
56
levantar, ele me diz oi. Sim, a criança me conhece. É Ernesto Fino.
Ofereço-me para acompanhá-lo, levá-lo até a sua casa. Mas, a sua
professora chega correndo, me cumprimenta e diz que vai levá-lo à
escola. Depois de todos esses percalços, chego até a outra margem do
rio, sinto uma vertigem.
Caminho próximo à via Pó, a procura de uma banca de frutas.
Converso, animadamente, com o vendedor e os seus clientes. Aqui em
Turim as uvas são mais doces e baratas do que em Veneza. E, as
pessoas me reverenciam como um príncipe. Não sou de fato um
príncipe? Por onde ando atraio o olhar curioso das mulheres, elas
comentam os meus livros, admiram minhas idéias. Sem dúvida, sou a
pessoa mais importante de todos os tempos. Minha mãe gostaria de
saber que seu filho é extremamente célebre, claro que não na
Alemanha, cujos habitantes são muito estúpidos e vulgares para a
altura do meu espírito. Pretendo receber em meus aposentos o rei e a
rainha da Itália. Mas, para isso preciso da colaboração do sr. Fino. O
meu quarto necessita ser remodelado para essa ocasião. Colocar-lhe
afrescos seria o mais apropriado, a fim de se pareça com um templo.
Espero logo encontrá-lo para falar-lhe desse assunto.
Percorro a via Pó, desde a Piazza Carlo Alberto e depois à
direita, seguindo o rio até o Parco Valentino. Ao longe escuto o estalar
de um chicote. Não enxergo bem o que se passa de onde estou. Só
percebo uma aglomeração de pessoas. Caminho até encontrar um
cavalo sendo massacrado por não puxar uma carga muito superior ao
seu peso. Cruelmente, o animal recebe as chibatadas do seu condutor.
57
Não sei por mais quanto tempo o pobre animal suportará tantos maus
tratos. Só sei que eu não agüento mais presenciar esse espetáculo
deplorável. Acabou. Tudo acabou aqui. Não mais escreverei uma
linha sequer. Abraço-me ao cavalo. Caímos juntos. Não temo o que
possa acontecer. Vou ao encontro do meu destino.
58
Repetição dos percursos
59
Ao sair de casa
Entre passos determinados, em meio a neblina, a cidade
acorda. Janelas se abrem lentamente, carros deixam as suas garagens,
o guarda noturno pega a sua bicicleta e vai embora, sem perceber que
um cachorro o segue pela sarjeta. Envolta em uma névoa fina, rasteira
e branca, percorro até o ponto do ônibus, exatamente, sete quadras.
Todos os dias, exceto os sábados e os domingos. Não são oito, nem
seis. Mas, sete. Nem mais, nem menos. Algarismo ímpar e primo,
divisível somente por um e por si mesmo. Consagrado ao deus Osíris
no Egito (símbolo da imortalidade), ao deus Apolo na Grécia (o
número de cordas da sua lira), a Mitra, deus persa da luz (o número de
estágios de iniciação nesse culto), a Buda (seus sete emblemas).
Número considerado perfeito para o judaísmo, cristianismo e
islamismo: relativo às cores, as notas musicais, aos planetas, aos dias
da semana: segunda, terça, quarta, quinta... a seguir um pós outro,
numa certa ordem. Um modo de me proteger do caos, do devir que
tudo arrasta, à deposição de todas as permanências, ao rompimento
das medidas, dos limites. Seqüência de dias, seqüência de quadras,
seqüência de passos... até a parada. Um ponto fixo, uma espera
estabelecida para corpos em trânsito, como o meu. Será que eles
também, diariamente, percorrem o mesmo percurso? Será que eles,
também, se vêem envolvidos numa seqüência repetida, infindável de
gestos? Será que eles, também, se encontram presos a um movimento
circular? Momentaneamente, sou obrigada a fazer uma pausa,
necessária reterritorialização entre outros tantos corpos. E, o
60
pensamento? Ele não obedece a convenções, ele não aguarda, ele não
é barrado por sinaleiras, ele escapa pelas as ruas entre tantos carros e
ônibus. Antecipa movimentos, pula o trajeto, percorre quilômetros
num segundo, coloca-se, diretamente, em conexão com o que o está
por vir...
Primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, período do turno
da manhã. Primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, período do
turno da tarde. Os professores e as suas reuniões de Série, de Área, de
Departamento e as Gerais. Todos os dias, inverno ou verão, quer
chova ou faça sol, às oito horas iniciam as aulas, às doze horas e dez
minutos elas acabam. E se não conseguir ver, se não tiver o que dizer,
se não souber o que está ocorrendo, pois as idéias mal esboçadas
fogem, seja pelo esquecimento, por uma espécie de embaralhamento
ou superposição? Novamente, estou envolvida por uma seqüência de
pontos arbitrários, fixos, a ordenar tempos, espaços, posturas, gestos,
sons... Antes de entrar nessa rede de incontáveis nós, chega o esperado
ônibus. O corpo põe-se em movimento. Movimentos repetidos,
automatizados, em busca de um lugar para sentar. A paisagem,
rapidamente, se desloca pela janela. Um ponto fixo, tudo passa por
mim e retorna... Um eterno dobrar e desdobrar do insondável abismo
divino, da eternidade. A mesma avenida, o mesmo corredor, o mesmo
riacho, a mesma ponte, as mesmas árvores, os mesmos canteiros, o
mesmo vendedor de jornais, a mesma grama crescida, até a
carrocinha é a mesma... Parece que tudo isso já passou por mim,
parece que já passei por tudo isso, parece que é sempre o mesmo dia,
parece que tudo se repete... afinal, este é um novo dia ou uma reedição
do dia anterior? Quando me dou conta, chego na escola... a mesma. É
aqui, tenho que descer.
62
Ao despertar
Não, eu não desci da cama. De fato eu caí, enrolada em
lençóis, tentando abafar aquele maldito despertador. Invenção
torturante! Vai ver que foi criado por um professor um obcecado por
horário. Apesar da minha performance, da dor no traseiro, o infame
não desliga, volta a tocar. Maldição! Saio correndo do banheiro, em
direção ao criado mudo e lhe calo com um tapa. Antes que o tal acorde
o meu irmãozinho. Daí sim, é bronca na certa. Ainda não aprendestes
como o relógio funciona, menina? Será que tens que acordar toda a
casa? Todos os dias, acordo morrendo de sono, me visto, tomo o meu
café, pego os meus materiais e saio com pressa. Não, eu não consigo
dormir cedo, apesar dos repetidos apelos da minha mãe. Às vezes, a
rapidez é tanta, que esqueço de pingar o meu colírio. Os meus olhos
ardem, amanhecem vermelhos, não sei se é sono, ou outra coisa.
Então, coloco um colírio para aliviar essa sensação. Mas, nem sempre
me lembro desse ritual. Quando o esqueço, é melhor cantar: quem não
tem colírio usa óculos escuros. Não é o que diz uma velha canção, uma
daquelas que a minha tia canta? Pois, é. Nem essa alternativa me
resta. Os meus óculos de sol eu não consigo encontrar, será que os
perdi? Com ou sem colírio, saio de casa em direção ao meu caminho.
Um trajeto que leva, mais ou menos, 20 minutos. Há dias em
que esse tempo parece escorrer entre meus passos. O sol nascente me
aquece, as buzinas me distraem, o vento que sacode os galhos das
árvores é o mesmo que agita os meus cabelos. Suave som verde soa
64
como música em meus ouvidos a me transportar para o bosque. Por
detrás do pátio da casa da minha tia se chegava até ele. Que maravilha,
voltar a brincar nos balanços, na gangorra, no escorregador... se
cansar de tanto correr, de tanto gritar, de tanto pular, de tanto se
esconder, de tanto se perder entre as sombras daquelas enormes
árvores... Agora, quando nos dias de chuva o meu pai resolve me
levar, o tempo não passa. Assim como as suas perguntas. Ou melhor,
um interrogatório: como fostes na prova de matemática? Não fostes
bem? Mais uma vez? Como não me falastes nada? Ah! Falastes para a
tua mãe. Por que não me mostrastes a avaliação? Estás em
recuperação? Os resultados da escola ainda não saíram? Não te vejo
estudar! Somente navegar na Internet. Quando é que vais começar a
encarar a tua situação de frente? O que estás esperando? O tempo está
passando minha filha! Em meio a tal bombardeio, não consigo
explicar nada, nem sei por onde começar, me perco entre as respostas
e o tempo congela.
De fato, têm vezes que esse corre-corre cansa. Para que tanta
pressa, eu me pergunto? Sim, vocês sabem que eu sei a resposta. Para
não chegar atrasada, para não ter que pegar uma autorização para
entrar em aula, para não ter que me explicar. Só e por tudo isso. No
entanto, perder-me pelo caminho, ao dobrar uma esquina, não será
mais interessante do que chegar? Quanta coisa pode-se encontrar ao
se perder? Cumprir horário, permanecer na sala de aula, carregar os
materiais, manter as leituras e as tarefas em dia, estudar para as
provas. Ah! Já vi esse filme! Tudo se repete, tudo recomeça, nada tem
fim... Parece que na escola, em síntese, não se faz outra coisa além de
65
repetir: leituras, exercícios, correção dos exercícios, provas, mais
leituras, correção das provas... O sinal toca, entra professor, sai
professor, tudo tão rotineiro, sem graça, previsível....
66
Na escola
Desço em direção ao esperado. Ou será o esperado que me
dirige? Horários, regras, ordens, rotinas... Não sei dizer. Desço em
direção ao sabido. Dar aulas, corrigir trabalhos, planejar avaliações,
fazer perguntas, responder perguntas... Desço em direção ao
conhecido. O grupo de professores, as turmas de alunos, os
funcionários... Só sei que ao me aproximar da escola, não sei explicar,
algo em mim acontece... Meus passos se tornam mais decididos,
minha cabeça fica ereta, respiro mais forte, os pelos se arrepiam, meu
coração acelera... Sigo em frente. Mais alguns passos e entrarei em
cena, a fim de representar um papel. Uma ponta de ansiedade surge,
inevitável... Num segundo, volto no tempo, como se fosse uma
principiante... Ah! Como eu transpirava, gesticulava, não sabia direito
o que fazer com as mãos. Muito menos o que dizer com todos aqueles
olhos sobre mim. Embora tenha passado por essa situação há muito
tempo, algo na sua repetição não passou de todo. Insiste. Só sei que há
algo no esperado que me faz retornar... Cruzo os dedos, a fim de que a
minha expectativa se cumpra e não se cumpra, que todos os alunos
estejam me esperando e não estejam. Faço uma aposta que as
promessas feitas sejam realizadas e não se realizem, que todos tenham
lido o texto sobre os pronomes oblíquos e não tenham. Torço que tudo
volte a acontecer as aulas, as explicações, os trabalhos, as perguntas
e não volte, ao mesmo tempo... Que o inesperado se faça. Todos os
dias, aguardo a produção dos movimentos da escola em sentidos
opostos, simultaneamente. Uma simpatia pelos paradoxos.
67
Atravesso o saguão, caminho por entre alunos e suas
mochilas, por entre pais que buscam informações junto aos
funcionários, por entre os motoristas do transporte escolar, por entre
colegas carregados de materiais, por entre o som do telefone que toca,
como se dele fizesse parte. Todos os dias aqueles gestos, aquelas falas,
aquelas cores, aquelas posturas, aqueles sons, compõem um espaço,
um território, uma cena. Cenas repetidas, guardam muita semelhança
com um teatro. Um teatro clássico que visa representar a repetição a
fim de atingir uma semelhança extrema ou equivalência perfeita? Ou
um teatro dionisíaco e intempestivo produzido pelas velocidades,
intensidades e afectos que subordinam as formas consagradas à
deformidade do movimento?
Ao mesmo tempo em que ao cruzar o saguão participo desse
espetáculo, meu pensamento se desloca. Parece que sai do meu corpo,
como uma espécie de observador a me dizer que já vivi esse momento
anteriormente. Paro em frente à porta da minha sala, tiro a chave do
bolso para abri-la, sem mesmo ter completado a volta na fechadura, já
sei o que me aguarda. O prefixo latino re e o seu significado de
repetição, de reforço. Tudo de novo? Sim, pois essa escola,
permanentemente, ensaia. Exercita, muitas e muitas vezes, com seus
professores e seus alunos uma série de atividades relacionadas às mais
diversas áreas do conhecimento. Desde a leitura, a escrita e a
interpretação de textos na Língua Portuguesa, até o canto Oh Happy
Day, na Música.
Oh! Escola repetidora. Oh! Escola incessante. Oh! Escola
circular. Repete o que não pode ser substituído. Uma vez que o seu
modo de operar impede que se troque um aluno por outro, um
professor por outro, uma aula por outra, um Conselho de Classe por
outro, uma reunião por outra, um dia letivo por outro. Pois,
professores e alunos não produzem apenas aulas, ensino,
aprendizagem, em geral. Há uma singularidade dos elementos que
compõem a escola e a sua relação. Apesar de externamente, todos
afirmarem seguir as mesmas normas do regimento escolar,
internamente, não há uma relação de semelhança ou equivalência
entre o ensino dos professores, como entre o aprender dos alunos.
Ao abrir a porta da minha sala, ao largar minhas coisas sobre a
mesa, ouço o telefone tocar. Sentimentos conflitantes tomam conta de
mim. Uma disputa de forças se estabelece. Sinto-me dividida. Uma
delas aprecia a previsibilidade do teatro antigo, aquele que busca
representar a repetição a fim de atingir uma semelhança extrema ou
equivalência perfeita. Mas, não será isto uma ficção? Ou o seu
69
movimento aparente? A outra força quer a repetição como uma
renovação. Pois, ao repetir-se uma cena, será possível repetir a mesma
coisa, será que se pode copiá-la, duplicá-la, ou produzi-la fielmente?
Um movimento que se funda em relação ao que não pode ser
substituído, a uma singularidade não trocável, insubstituível. Uma
repetição que está na origem de toda a renovação, como as estações
primavera, verão, outono, inverno que forma um ciclo que se repete
a cada ano. Será que não se trata de uma repetição de dissimetria que
se oculta nos efeitos simétricos, a repetição do outro sob a repetição do
mesmo? Não sei, só posso dizer que oscilo, vibro, entre repetir e
representar.
O telefone continua chamando sem que o tenha atendido.
Depois de soar, insistentemente, retiro o fone do gancho. Avisam-me
que a reunião de professores de hoje à tarde foi antecipada. Solicitam-
me que divulgue o trabalho de campo planejado com os meus alunos
aos demais colegas da série. Novamente, volto a pensar na produção
do inesperado dentro do esperado, do surgimento do teatro novo
dentro do teatro velho, no modo de funcionar dessa máquina. Em
termos práticos, conseguirei terminar o planejamento do trabalho de
campo dos alunos mais cedo?
70
De carona
Eis que o trajeto da minha casa até a escola que, normalmente,
leva uns 20 minutos, hoje parece que levou o dobro o tempo. Apesar
de tê-lo feito de carro. Não, não foi o meu pai quem me largou na
escola. Como também, não houve engarrafamento algum. Ocorre que
ao sair de casa com a pressa de sempre, em plena rua, ouço repetidas e
curtas buzinas. Como o som parecia me seguir, me viro para trás e vejo
a professora de História parar o seu carro e me oferecer uma carona.
Tive um ímpeto de dizer não, mas antes de me dar por conta, já estava
sentada ao seu lado. Apesar da vontade, não pude lhe negar essa
gentileza.
Bem que eu queria ficar calada. Bem que eu queria cantarolar.
Bem que eu queria me distrair com o corta e recorta das motos. E, por
fim, bem que eu queria pular pela janela do carro. Mas, não teve jeito.
Não havia como escapar. Tive de ouvi-la todo o tempo. Até o fim.
Aquela mulher falou sem parar. Claro, o assunto não podia ser outro...
as aulas de História. Parece que não existe nada além das suas aulas,
não existe nada mais importante do que os Gregos, os Romanos, os
Bárbaros... Meu Deus, como ela se repete. Como ela gosta de dar
exemplos. Parece que está dando uma aula, na qual tenho que
entender tudo direitinho. Na qual eu tenho que ter as respostas na
ponta da língua. As mesmas que ela têm, claro. E, para lhe
corresponder, só faço é balançar a cabeça.
71
Contou-me, mais de uma vez que, quais conteúdos vai
trabalhar nesse trimestre. Assim como, o modo de ensiná-los: os seus
textos devem ser lidos, resumidos e respondidos, sempre de uma aula
para outra. Tudo de acordo como ela explicou, anteriormente, em
aula. Aula, que segundo o comentário de amigas, ninguém fica quieto,
ou presta atenção, depois dos 10 minutos iniciais, pois só ela fala.
Queixou-se, não sei quantas vezes, da falta de estudo dos alunos.
Comentou até, que não entende como eles passaram de ano, uma vez
que demonstram saber tão pouco. Disse estar preocupada com alguns
deles, que tem até perdido o sono aqueles que não entregam
trabalhos, que vão mal nas provas, que faltam aulas. E, além disso,
que não a procuram para tirar alguma dúvida. Mas, de que jeito
alguém pode alguém esclarecer algo, se ela não pára de falar? Agora, o
seu grande enigma é decifrar o que se passa com uns poucos que ora
estão em aula, ora não estão. Quando entregam os trabalhos vão bem,
mas nem sempre isso acontece. Na maioria das vezes estão quietos,
alheios, mas quando perguntados, respondem corretamente. Afinal,
são ou não alunos dessa escola? Ela disse que não sabe muito bem o
que fazer com eles. Nem normais ou anormais, a escapar de qualquer
referência normativa se alojam na extremidade, vivem na margem.
Assunto que ela faz questão de encaminhar para a discussão na
próxima reunião de professores.
Quando estava estacionando o carro, entre uma volta na
direção e outra, lhe ocorreu perguntar pelo meu desempenho em
História, neste ano. Finalmente, surge a oportunidade de eu dizer
alguma coisa, mesmo que não tivesse nenhuma vontade de comentar
72
sobre os meus estudos. Mas, antes que abrisse a boca ela notou algo
em meu rosto: nossa, como os teus olhos estão vermelhos! Fiquei
meio sem graça com o comentário. Olhei-os pelo espelho retrovisor e
lhe dei razão. É mesmo, de casa até aqui, eles não pararam de arder.
Tratei de pegar meu material, rapidamente, e descer do carro. Antes,
que ela tivesse tempo de fazer outro comentário. Quando botei o pé
para fora da porta, vi a Aline chegar. Então, agradeci a corona, corri até
Aline, gritando: espera me espera!
73
Na sala de reuniões
A sala de reuniões fica no segundo pavimento. Próxima a ala
administrativa. Muito em breve, a grande mesa retangular situada
bem no centro do espaço, estará repleta de colegas, representantes das
diversas áreas do conhecimento. Invariavelmente, eles ocupam os
mesmos lugares. Na grande maioria das vezes, participam do mesmo
modo. Os professores de Inglês ao lado da professora de Português,
próximo do professor de Espanhol, de fronte ao professor de
Matemática, ao lado da professora de Ciências, distante dos
professores de Educação Física. Um pouco depois, deve chegar a
professora de Geografia, que leva algum tempo até encontrar um
lugar. Geralmente, próximo ao professor de História, que senta ao
lado da professora de Artes. Do andar inferior onde me situo, até lá,
basta caminhar até o fim do corredor, subir dois lances de escada,
seguir em linha reta por mais um corredor, passar por três portas e
dobrar à direita. Refaço mentalmente o caminho. É só fechar os olhos
e, facilmente, vou de um ponto ao outro. Sem desvios, ou
interrupções. Conhecido trajeto, incontáveis vezes trilhado no
decorrer das semanas. E a reunião? Qual rumo seguirá? O esperado?
O de sempre? Seguirá uma linha reta entre a produção e o produto da
escola, entre a aprendizagem e os aprendizes?
Mais uma reunião, uma reunião a mais entre muitas de mais
um ano letivo. Reuniões que reproduzem o movimento circular do
oroboro, aquele animal com o corpo flexível, a descrever um círculo
74
largo a volta do corpo e a abocanhar com os dentes a própria cauda.
Hoje, por mais que caminhe em sua direção, parece que nunca chego.
Não, eu não encontrei outro colega para conversar, tão pouco um
aluno me chamou pelos corredores. Não parei por motivo algum.
Nem para ir ao banheiro. Ando e ao andar é como se a sala se afastasse
de mim. Ou serei eu quem dela se afasta? Ando e ao andar, o cansaço
toma conta dos meus membros. Exaustão por caminhar, exaustão por
chegar nos pontos arbitrários, exaustão por identificar, exaustão por
ter que reconhecer tudo o que a escola produz. Que mesmice! A cada
passo, é como se a sala ficasse mais longe. Minhas pernas fraquejam.
Ao chegar, finalmente, no pavimento superior, cruzo pelas três portas
que antecedem a sala de reuniões e não consigo encontrá-la. O que
está havendo? Estou perdida? Errei o caminho? Por fim, paro em
frente a uma porta com um grande cartaz, um aviso. Ele informa uma
alteração dos horários das reuniões.
Ao colocar a mão na maçaneta, ouço vozes. Será essa a minha
reunião? E, se não for? Devo entrar na sala? Entro e fico sem graça.
Pois, não sei como explicar, a reunião começou. Vários colegas já se
encontram sentados na disposição de sempre. Como posso ter me
atrasado? Não, eu não me atrasei, ocorre que uma reunião nunca
acaba. Uma reunião permanece de uma semana para outra. Os
assuntos não são vencidos, eles ressoam, ecoam pelos corredores,
75
pelas salas, até em festas... mesmo com a troca de lugares os alunos da
turma 61 seguem conversando..., um grupo de alunos da turma 62 foi
visto circulando pelo pátio no horário de aula..., há vários alunos da
turma 62 que não estão assistindo às aulas de laboratório... Ou melhor,
uma reunião segue após outra, ininterruptamente, de forma que
parece sempre a mesma. A sala é a mesma. A pauta é a mesma. Mudam
os alunos? Ou, também, são sempre os mesmos? Embora não tenha
sido explicitado, cada professor possui pressupostos sobre o que é
aprender, o que é uma aula ideal, um bom aluno, os quais regem as
suas ações neste trimestre os alunos vão realizar trabalhos de
campo, escreverão relatórios, elaborarão pesquisas, farão trabalhos
individuais, além das provas. Enquanto, para outro como estamos
estudando a Segunda Guerra Mundial, os alunos assistirão a
documentários sobre esse episódio, além de elaborarem em grupo
pesquisas a serem, posteriormente, apresentadas aos colegas. Por
enquanto, não pretendo aplicar provas. Já, para um terceiro as provas
são fundamentais, pretende aplicar várias no decorrer do trimestre,
todas sem consulta.
Porém, as linhas da reunião começam a se misturar quando se
trata de reconhecer e representar o que a escola produz. Pois, não é
76
nenhuma novidade, faz parte do funcionamento da escola não
funcionar bem. A capacidade de representar pressupõe uma
identidade num conceito, duas coisas são entendidas como idênticas
somente se elas coincidem num conceito idêntico. O coordenador da
reunião ia começar a ler os nomes dos alunos de cada turma, a fim de
que cada professor falasse sobre o rendimento de cada um. De
repente, antes do primeiro nome ser lido, ouve-se a porta da sala de
reuniões abrir e fechar. Alguém entrou? Aparentemente, não. Como,
também, ninguém foi visto circulando pelo corredor. Mas, um ar
gelado invade a sala, apesar da janela estar fechada. Ao mesmo tempo,
a luminosidade da peça fica prejudicada. Há mais alguém na sala? É
difícil esconder o desconforto, o mal-estar, ninguém sabe muito bem o
que pensar, nem o que dizer, daquele que pode estar em aula e não
estar, aparece e desaparece, faz alguns trabalhos e não faz outros.
Imiscui-se entre os demais, quer tornar-se imperceptível. Parece um
aluno como os outros, mas não é. Furta-se aos padrões, aos modelos.
Não se deixa representar. Como é possível não saber o que se passa
com esse aluno? Há alguma patologia que justifique o seu
comportamento ou não? Como pode algo não ser representado? A
impossibilidade de saber do que se trata desconcerta. Um grande
desconforto se instala... O frio e a escuridão aumentam. Como é
possível não ter respostas na ponta da língua sobre tudo, suportar o
silêncio do não saber, numa escola que se caracteriza pela sua
produção?
No lugar do silêncio, no lugar do pensamento, para se restituir
o encontro das faculdades, facilmente, pode-se traçar uma linha dura.
Aquela que tentará reconhecê-lo, classificá-lo na categoria do desvio,
da doença. O traçado desta linha pode dar origem a um carimbo, um
rótulo. E o risco que se corre é o de colocar o rótulo no aluno, passar a
não enxergá-lo nele mesmo, e sim de acordo com o nome que lhe foi
dado. Será que isso tornará tudo mais fácil? Será que assim todos
respirarão aliviados? Afinal, uma categoria foi encontrada para ele. A
partir desse momento se saberá como trabalhar com esse aluno? Ou,
tão logo ele for enquadrado, as queixas de sempre voltarão?
Direcionadas para aqueles que não se deixam representar, confundem
os sentidos, dificultam o reconhecimento?
Ainda com a visão prejudicada, envoltos pelo ar frio, vários
integrantes da mesa querem falar, eles têm algo a dizer sobre o aluno-
simulacro. Aqueles que disfarçam, desafiam os modelos produzidos
pela escola, encerram uma dessemelhança interior. As linhas da
reunião se enrolam mais um pouco... Ah! Ele aparece na tua aula? Na
minha não. E, contigo? Ele entrega os trabalhos? É, comigo ele não
quer falar, só escrever. Assim não dá para entender nada, pois para
mim é o oposto. De quem estamos falando? Do mesmo aluno ou de
um outro? Comigo ele não escreve nem uma linha. Pede até que
78
escrevam para ele. Mas acompanha bem a aula. Além de adorar ler,
devora o que cai nas suas mãos. Quando está disposto a participar faz
boas perguntas. Não, comigo o maior problema são as faltas, pois ele
sabe a matéria. Mas, faz tempo que não o vejo. Não tenho o que me
queixar dele, pois na minha disciplina além dele ser presente, seus
desenhos são muito criativos.
A semelhança que se busca não é de uma percepção sensível,
mas de uma semelhança interna. Diz-se que dois alunos são
semelhantes não quando existe entre eles uma similitude aparente ou
exterior, senão quando existe uma identidade entre as suas relações
internas. Nomeia-se um aluno na medida na medida em que se parece
à Idéia de aluno. Mas, o que dizer daqueles que não possuem nenhuma
relação intrínseca a um modelo ou fundamento? Desde muito tempo
se quer acorrentá-los no fundo do mar, pois eles encerram uma
perversão, um desvio essencial. Em absoluto eles são umas cópias
degradadas, pois são portadores de uma potência positiva ao negar
tanto o modelo como a sua produção. Mas, não importa o tamanho ou
o peso das correntes, eles sempre conseguem escapar, subir à
superfície e aparecer em mais uma reunião de série.
E, se de tão confusos, de tão estarrecidos, todos permanecerem
calados? Olho em volta e não mais reconheço a sala, uma penumbra
79
vermelha envolve a todos, assim como cortinas pesadas e escuras
cobrem as janelas. Não consigo mais distinguir nenhum rosto,
somente uma voz. Trata-se de uma voz perturbada, ansiosa, tem algo a
dizer. Será mais uma de suas aparições? O professor estava confuso,
assombrado, com os sentidos embaralhados. Nesse momento, um
outro colega levanta-se em direção a um candelabro para acender
umas velas. Ele estava lá, tinha certeza que era ele. Apareceu no
laboratório de Ciências, durante uma experiência comum, na semana
passada. No fundo da sala, num lugar pouco iluminado... Sacudindo o
seu corpo numa cadeira, com a sua mochila fechada no chão, para
frente e para trás, alheio a tudo. Não, ele não copiou nada. Não que ele
não soubesse escrever. Ele não queria escrever. Não queria deixar
rastros. No entanto, era capaz de fazer o relato da experiência e de
explicar aos colegas o que se passou em aula. Depois de um certo
tempo, após ter dado algumas instruções no quadro, fui falar com o
aluno. Mas, para a minha surpresa ele já não estava mais lá.
Desapareceu, não sei dizer como, sem deixar nenhum trabalho,
nenhum rastro.
Ao ouvir o relato sinto um calafrio percorrer a espinha.
Sentimentos misturados se apoderam de mim, enquanto procuro por
um lugar para sentar. Partilho com os colegas o desconforto de ser
confundida. A angústia por não ter o que dizer. De não saber o que
80
fazer para me aproximar dele, quando todas as abordagens falharam.
Entrevistas? Todas foram em vão. Como não assustá-lo? O que fazer
para conhecê-lo? E, ao mesmo tempo, preservar o seu mistério? Pois,
sou atraída pelos simulacro-fantasma. Pela potência que encerram ao
se disfarçar em meio ao outros, de ser e não ser, de se encaixar e não se
encaixar nos padrões estabelecidos. Potência de abalar o que é dito
nas reuniões pedagógicas as verdades sobre aprender, sobre as suas
etapas, sobre a caracterização psicológica da sua faixa etária. Potência
positiva ao negar tanto o modelo de aluno como a sua reprodução.
Uma atração pelo que embaralha a visão, pelo impensado, pelo que
provoca o pensar, pelo que desafia o sentido único, pelo que pede para
ser visto nele mesmo.
Quando, finalmente, encontro um lugar para sentar, não
reconheço os colegas. O que houve? Não entendo mais nada. Olho em
volta e percebo que outra reunião já teve início. Onde foram os
colegas? Saíram da sala? Sem que tivesse percebido. Sem ter me
manifestado. A sala é a mesma, a pauta é a mesma, os alunos são
outros. As linhas de mais uma reunião estão para serem traçadas.
Como um show, a reunião não pode parar. Mas, o abrir e fechar da
porta? E a brisa gelada? E a falta de luminosidade? Será que ele
voltará a aparecer? Ele voltará a assombrar? Tanto melhor, mais uma
oportunidade para provocar um estranhamento, um mal-estar... Mal
posso esperar por mais um dos seus passeios pela escola, livre das
correntes, entrando e saindo das salas, dos corredores, das reuniões...
Uma nova oportunidade de quem sabe, pensá-los,
independentemente, de padrões e modelos.
81
Até bater
Alice espera, quero te falar. Que bom te ver. Meus olhos? O
que houve? Sei, lá. Estão ardendo de novo. Se não melhorar até
amanhã, vou pedir para a minha marcar um horário com a
oftalmologista. Vamos ver o que a médica vai descobrir. Vai ver que é
uma doença antiga, uma alergia a aula. Ou, uma reação à carona que
peguei com a professora de História. Meu Deus, como aquela mulher
fala! Fiquei tonta. Ainda bem que te vi logo ao chegar. Foi a minha
salvação. Só assim, pude descer rápido do carro. Mas onde é que tu
vais com tanta pressa? Não vamos deixar primeiro as nossas mochilas
na sala de aula? Ah! Nós vamos para o pátio, sentar nos bancos. Não?
Vamos para os fundos da casa das máquinas? Ok! Meus Deus, então
temos que apertar o passo, daqui a pouco vai bater. Mas, que cara é
essa Alice? Estás chateada? O que houve? Não vais me contar? Nem
para a tua melhor amiga? Ah! Não chora. Brigastes, de novo, com a
tua mãe? Ela te proibiu de sair? Não. Pior. Vão cortar a tua mesada?
Não. O quê? Discutistes pelo telefone com o Gui? Quando? Ontem à
tarde? E ele não te ligou mais? E tu estas morrendo de vontade de falar
com ele? Calma, boba ele vai te ligar, dá um gelo nele. Mas, qual foi o
motivo da bronca? Não, eu não acredito. Só, por que ele não quer ir à
festa da Paula? E, daí? Ah, ele não quer que tu vás também? Ah, nada a
ver. Qual é a dele, ciúmes agora?
Não fica assim, amiga. Calma. Vem. Vamos embora, trata de
secar o rosto e pegar o teu arquivo. Acho que ouvi o sinal. Sim, ele já
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deve ter tocado, são 7h. e 50 minutos. Daqui até a sala de aula é um
tanto longe. Será que vale a pena correr? Não, tu tens razão, já estamos
atrasadas. Ah! De novo, não. Que saco! Isso não podia ocorrer. Não
suporto dar explicações para aquela mulher. Parece que estou vendo o
que ela vai dizer atrasada de novo menina? O que houve? Não tens
despertador em casa? Será que terei de mandar um bilhete para os teus
pais? Parece que ela sente prazer em me repreender. Posso até ver
aquele sorrisinho em seu rosto redondo. Droga! Jurei para mim
mesma que isso não voltaria a acontecer. Mas, não tem jeito, temos de
enfrentar a fera.
Cruzo a porta da escola, entro no saguão e é como se não
existisse mais ninguém. Nem a Alice. Só tenho olhos, só enxergo o
balcão onde são feitos os registros de atraso. Mas, não tem ninguém
ali. Não acredito! Nem ela nem nenhum outro aluno. Por essa não
esperava. Só vejo o segurança. Olho para o lado, disfarço, finjo que
não o vi. Sigo reto. Alice faz o mesmo. Esta bem atrás de mim. Procuro
nem respirar, não fazer o menor barulho. Caminhamos lado-a-lado
pelo corredor. Até encontrar a quinta porta à esquerda. E agora? É hora
de entrar em aula. Será que o professor vai deixar?
84
Em direção ao leste
Ao dobrar na próxima avenida, muita coisa passa. Passo por
carros, ônibus, lotações, a formar longas filas, a se deslocarem ora
rápida, ora lentamente, andam e depois param. Ao longo do trajeto
alguns deles estacionam, enquanto outros seguem pela elevada.
Sendo que uns, mais adiante, dobram à esquerda e desaparecem no
túnel. Acompanho uma seqüência de movimentos repetidos, engatar a
primeira, a segunda, a terceira marcha, frear... Acelerar e depois
desacelerar, andar e depois parar, expandir e se contrair, como as
batidas do órgão vital. Vibro ao circular pelas suas artérias, suas ruas,
seus parques, suas elevadas. Um gosto por circular pelas suas
esquinas agitadas e as esquecidas, pelos seus conhecidos lugares, pois
a volta, por mais conhecida que seja, nunca é a mesma. A fuligem dos
carros, o cheiro de verde dos parques, as buzinas dos
engarrafamentos, o burburinho das ruas, misturam-se, compõem
novos percursos, novas possibilidades de vida dentro do mesmo
trajeto.
Passeio pelos seus espaços de encontro, de passagem, de
trabalho, de lazer. Dou voltas e mais voltas em direção ao leste, onde o
sol se levanta, traz a luz, o calor e o verde. A tranqüilidade das árvores
me acompanha, subo morros, sigo trilhas, distraio-me com o sobrevôo
dos pássaros de um galho a outro, com o cão que aparece e desaparece
na mata farejando algo, até chegar a um conhecido lugar. O pátio e os
bancos, o prédio central, o amplo saguão, as salas repletas de classes,
85
o quadro verde, os longos corredores com seus armários, as quadras
de esporte, os banheiros, iguais a tantos outros e tão diferentes. Tudo
tão conhecido e desconhecido ao mesmo tempo.
Ao me aproximar da entrada principal, ouço bater um sinal...
De repente, vejo tudo se acelerar... os carros, enfileirados, disputam
uma vaga em frente ao portão, um espaço seguro para que os alunos e
suas mochilas desçam; a funcionária do balcão despacha,
rapidamente, um professor que pede giz, enquanto solicita que a
pessoa do outro lado do telefone aguarde; o segurança uniformizado
apressa o passo em direção a entrada secundária; o motorista do
transporte escolar corre com um aluno pela mão a fim de alcançar os
colegas do menino; os alunos que circulam pelo corredor, entre
conversas e risos, entram nas suas salas; os pais que aguardam a
chegada da professora, despedem-se dos seus filhos e vão embora. E,
assim, mais um turno de aulas tem início. Sempre igual e nunca o
mesmo.
Aquele som forte e prolongado me atravessa. Não é a primeira
vez que ele ecoa, nem será a última. Nesse intervalo muita coisa
acontece... De repente, tudo se desacelera, no pátio distribuem-se
quatro pavilhões de madeira pintada de verde. A servente do avental
xadrez, circula pelo beiral do prédio principal, entra e sai da cozinha
com uma grande bandeja de madeira. Alunos com uniformes nas
cores branca e azul marinho chegam à pé e se espalham pelo terreno.
Mães cruzam o portão trazendo seus filhos e filhas pelas mãos,
aguardam no pátio até as crianças formarem fila. As professoras, tão
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logo chegam, passam pela secretaria para assinar o ponto. A
funcionária encaminha-se para a extremidade esquerda do balcão,
alcança a sineta que dali a instantes sacudirá. Lugares diferentes,
épocas diferentes, conectados por um gesto repetido... Um outro sinal,
dentro do mesmo sinal... Vestígios do inesperado dentro do esperado,
pois nunca se sabe, exatamente, o que irá resultar dos movimentos
repetidos dos alunos que chegam a escola, dos professores que se
dirigem para mais uma aula, dos pais que conduzem seus filhos e
aguardam mais um dia letivo começar.
Percorro, rapidamente, as suas diversas salas, corredores,
saguão, laboratórios, quadras e pátio, sem ser vista. Embora, há quem
diga que já me viu de branco, entrando e saindo de reuniões quando,
em mais um fim de tarde, ainda existem decisões a serem tomadas.
Aquelas que devem ser pautadas pela razão aprovação, reprovação,
transferência de alunos. Mas, nem sempre fico por aqui, posso tomar
outros rumos. Quem sabe o oeste, onde o sol se põe, direção do frio, da
morte e das trevas? Ou o norte de onde provém os ventos furiosos? Ou
o sul ligado ao fogo e a paixão? Pois há quem afirme ter visto uma
mulher de branco dançando ao luar no convés do Queen Mary. De
quem se trata? De mim? Não sei, isso não importa. Talvez, só
tenhamos em comum a cor. O branco. A luz da rua se apaga quando
mais um dia começa. A cidade, sonolenta, desperta com o ruído dos
ônibus, dos carros que deixam as suas garagens, com a água que
escorre pela mangueira e limpa a calçada, com o cão que late para
uma carroça que passa, com o som do rádio de pilha do trabalhador,
com o piar dos pássaros que mudam de galho em busca de abrigo. A
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cidade e seus movimentos previsíveis, aparentemente, iguais, a
produzir uma outra volta dentro da mesma volta. As pessoas saem de
suas casas, transitam por vários lugares, a fim de ganhar mais um dia,
mesmo sabendo que seja o que for que aconteça, irão perdê-lo. Andam
com mais ou menos pressa, com mais ou menos determinação, com
mais ou menos cansaço, por caminhos conhecidos e desconhecidos.
Não importa. O que conta é repetição dos movimentos entre mais um
ir e vir, o que conta é a produção de dissimetria dentro da simetria, o
que conta é a mudança de rumos dentro do mesmo rumo... Antes de
retornarem para suas casas, com mais um dia ganho e perdido, e as
luzes voltarem a se acender.
Sigo uma trajetória cortada, não linear, pois uma vez na
escola, ligo-me ao fluxo de saber que ela produz. Algo que não é posse
de ninguém, nem se encontra em um único e específico lugar. Mas,
que é inacabado, fendido. Pois, nunca se vê tudo o que se diz, nem
nunca se diz tudo o que se vê. Mesmo assim, fico aflita com a
ignorância, com o fato de não poder solucionar tudo o que ocorre, de
não saber o que se passa no saguão. Não é por acaso que o símbolo
dessa escola é a coruja. Gostaria de ter os poderes do animal de Atena,
ser veloz e ágil, de enxergar até cem vezes mais do que os humanos e
girar o pescoço em 180 graus. Misturo-me a vários alunos que descem
a rampa correndo em direção a uma bola branca. Uma bola de tênis de
mesa? Ouço um deles dizer que é uma das bolas que saiu do globo.
Aquele utilizado para o sorteio dos candidatos a alunos da escola.
Cada um deles quer alcançá-la primeiro. E, agora? Alguém a pegará?
A bola se perderá? O sorteio será interrompido? Olho para o globo que
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dá voltas e mais voltas... Não consigo definir nada, alunos e
candidatos misturam-se, os que querem a vaga e os que não querem a
vaga, os que gostarão da escola e os que não gostarão, os que terão
condições de aqui permanecerem e os que não terão, um emaranhado
de linhas se forma. Ao seguir os giros da circunferência de metal sinto
uma vertigem... as linhas retas que conduziam a seleção dos
candidatos não mais existem, o chão balança sob os meus pés, tonteio,
sinto que vou cair.
Caminho alguns passos e agarro-me na maçaneta de uma porta
entreaberta. Esta conduz a uma sala onde alguns professores estão
definindo os critérios de quem entra ou não nessa escola. As linhas
que ligam os candidatos às vagas não se embolam, o seu traçado é
reto. Trata-se de uma reunião que define, previamente, os pré-
requisitos que os candidatos devem possuir para ingressar. Além
disso, os postulantes a uma vaga serão submetidos a exames, a eles
cabe provar que possuem as mínimas condições de estudarem aqui. O
candidato a ser escolhido deve refletir a imagem ideal de aluno
definida pelos professores. De repente, alguém do lado de dentro da
sala fecha a porta. Sinto um puxão, abro os olhos e nem sinal da
reunião. Agarro-me ao corrimão da rampa. Sigo olhando para o globo
que vai sendo retirado. Não entendo mais nada. Um aluno chega
correndo e devolve a bola ao funcionário que a recoloca numa caixa
de madeira. Aos poucos o globo se afasta. E o sorteio, acabou? Como
os novos alunos irão ingressar? Qual tipo de seleção se fará? Não, não
é nada disso, hoje não é o grande dia. Tudo não passou de um teste dos
equipamentos.
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Poderia ir embora, mas não consigo me afastar deste lugar...
Onde as aulas têm início no mesmo horário, na mesma sala, com suas
explicações, leituras, exercícios e avaliações. Com os mesmos
professores e as suas correções, os mesmos alunos e os seus acertos,
os seus erros, as suas dúvidas, a produzir mais aulas, novas
explicações, mais exercícios e outras avaliações. Há algo nesta
repetição que me faz retornar... O outro que se disfarça sob a capa do
mesmo... Não consigo me afastar da repetição dos movimentos da
escolar que visam representar uma forma. Uma forma de aprender,
uma forma de responder corretamente aos exercícios, uma forma de
participar das aulas, uma forma de corresponder ao que os professores
esperam. Não consigo me afastar das linhas que rompem os contornos
das formas... do grupo de alunos que conversa no fundo da sala,
enquanto o professor vai iniciar mais uma aula, do aluno que balança
o corpo numa cadeira, ao mesmo tempo, que seus colegas escrevem
um relatório, do professor que corrige mais um exercício de Inglês,
enquanto dois alunos trocam um bilhete.
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No corredor
Deixo a minha sala em direção ao laboratório de Ciências.
Uma vez mais cruzar o corredor para preparar mais uma aula. Abro a
porta com cuidado. Lentamente. Antes de fechá-la e sair pelo
corredor, olho para os dois lados. Não vejo ninguém circulando, além
das funcionárias da limpeza. Entre uma vassourada e outra, recebo um
aceno. Inclino a cabeça. Esboço um ligeiro sorriso em retribuição. Por
enquanto, aparentemente, tudo está tranqüilo. Será um bom sinal? A
calma, o silêncio, atiça meus nervos, um frio percorre a minha
espinha. Algo se passa e não chega a perturbar o andamento geral da
escola: as aulas continuam ocorrendo, as explicações são dadas, as
perguntas respondidas, os exercícios realizados, os recreios
aguardados, as avaliações marcadas. Dou mais alguns passos. Ouço o
estrondo de uma porta que bate. Olho, rapidamente, para trás. De
repente, parece que as cores das paredes, das portas, dos painéis estão
mais vivas. Mas, não vejo ninguém, sigo sozinho. Será que foi o
vento? O laboratório, tão próximo, se torna distante. Anseio por lá
chegar, o mais breve possível. Devo preparar a sala para mais uma
experiência, antes que o sinal do terceiro período bata e os alunos
cheguem. No caminho espero não ser interrompido, chamado por
ninguém. Mas, se ele aparecer e desaparecer, novamente? O que é que
eu faço? Devo interpelá-lo? Fingir que não o vejo? Procurar por
alguém da direção? Essas incertezas me consomem. Tento disfarçar,
manter a cabeça ereta, mas meu pisar inseguro, tateante, me denuncia.
Envolvo-me pelas dúvidas, distraio-me, sigo além do laboratório, em
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direção ao final do corredor. Lá chegando, dobro à esquerda, entro no
banheiro e inclino a cabeça na pia para lavar o rosto. Quem sabe o meu
devaneio não vai embora, escorrega pelo ralo como a água. Ao secar
as minhas mãos, sou surpreendido, não sei vindo de onde, por um som
conhecido. Será ele? Estará na sala ao lado? Ou na de cima? Aquele
som repetido, insistente, trás o episódio de volta, rouba a minha paz.
Era um dia como o hoje. Estava no laboratório com a turma em mais
uma aula prática. Os alunos espalhavam-se pelas mesas hexagonais
em cinco grupos. Em cada uma delas havia um tubo, uma pipeta, e
duas substâncias químicas a serem misturadas. Inicialmente, dei as
instruções gerais do experimento, sendo que ao final do trabalho, cada
um deveria entregar o seu relato por escrito. Na medida que as
explicações eram dadas, os alunos faziam uso dos seus materiais para
fazer devidas anotações. Menos ele que mantinha a sua pasta fechada
e, aparentemente, alheio a tudo, seguia embalando o seu corpo com a
cadeira. E, agora? Deveria ignorar aquelas batidas do móvel no chão
ou não? Depois de passar pelos outros grupos, de dar mais
explicações, aproximei-me do seu grupo. Observei que os demais
92
colegas já haviam começado a escrever, menos ele. Perguntei-lhe o
que estava havendo. Ele me disse que não havia nada de errado,
apenas que não queria escrever. Ao mesmo tempo, ele era capaz de
explicar, detalhadamente, aos colegas e a mim o que ocorreu no
experimento. Naquele instante, era como se tivesse perdido a
capacidade de reagir ao que se passava. Afinal, quem estava sentado
naquela cadeira? Um aluno como os outros? Um outro aluno? Um
falso aluno?
Os embalos sucessivos da cadeira, um corpo a se inclinar para
frente e para trás.... De repente, surge uma vontade de escapar do
tédio, do aborrecimento, do cansaço. Como se há muito tempo os
corpos ocupassem aquele laboratório, como se não houvesse
nenhuma novidade naquelas instruções, como se tudo já fosse visto, já
fosse dito e já fosse sabido. Uma exaustão por não acreditar mais
nesse mundo, onde tudo carrega a forma do que já estava presente, do
pré-existente. Estranha sensação de paralisia... Uma vontade de não
fazer nada, de deixar tudo como está. De não avançar, mas também de
não recuar. Algo como a fórmula perturbadora de Bartlebly, o
escriturário criado por Melville, que ao ser solicitado a reler uma
cópia que dois escreventes fizeram, respondeu ao seu chefe: preferia
não, em inglês, I would prefer not to. Uma passividade paciente.
Diferença maldita, assustadora, desafiadora, está atrás de toda coisa,
93
mas não há nada atrás dela. A diferença é que faz com que o fundo
suba e dissolva a forma. A repetição é o que se disfarça ao se produzir e
só produz ao se disfarçar, diferença sem conceito, não mediatizada.
Diferença que não se submete à identidade, à oposição, à analogia e a
semelhança. Uma má vontade, pois não se chega a saber o que todo o
mundo sabe, que contraria o que se considera ser reconhecido por
todo o mundo, que não pensa naturalmente, que não tem pressupostos,
só repete, diferenciando-se.
Os embalos sucessivos da cadeira, um corpo que se inclina
para frente e para trás, até cair... Uma vontade, súbita, de escorregar
pelo chão e, lentamente, sair da sala, seguir pelo corredor, ganhar o
pátio, o ar livre... Pode até parecer idiota, mas que seja ao modo russo.
Como um homem do subsolo, que não se reconhece nos pressupostos
subjetivos de um pensamento natural, nem nos pressupostos objetivos
da cultura de seu tempo. Um quer não ser reconhecido, comparado aos
demais, a quebrar os padrões de comportamento consideráveis
aceitáveis pela escola, a expressar uma singularidade. A singularidade
de ser capaz de aprender e não escrever, sem usar a mão, expressando
o que sabe somente pela fala. Um outro aprender, singular, que não
quer deixar marcas, rastros, que não se deixa fixar, ambulante,
nômade. Singularidade que faz pensar sobre o aprender. Um aprender
outro, um outro aprender, não igual, não como o de sempre, nem de
94
acordo com modelos.
Termino de secar as minhas mãos e ouço o sinal. Bateu! O que
estou fazendo aqui? Como pude me demorar tanto no banheiro?
Tenho que ir depressa, pois muito em breve eles chegarão no
laboratório.
95
Na sala de aula
O que houve com a lotação? Estou aqui há mais de 15 minutos
e ela não passa. A parada já está cheia. E eu cheio de ficar em pé aqui a
me abrigar do vento. Como tantos outros vindos dos mais diversos
pontos do bairro à espera de se deslocarem. Ponto, espera, parada.
Parada, ponto, espera. Espera, parada, ponto. Espera, ponto, parada.
Brinco com a ordem das palavras para passar o tempo, repito os nomes
de um e de outro jeito, como um mântra e nada. Começo a sentir o peso
da minha pasta. Troco-a de mão. Olho para o relógio, novamente. Fixo
os olhos na rua, na esperança de enxergar além dos carros, além do
cruzamento, além do azulzinho, além do trânsito lento. De que
adianta? Nem sinal dela. Abro a minha pasta para me distrair, para
matar o tempo, para diminuir minha espera. Mais uma vez, tudo está
ali o velho estojo de canetas, os exercícios corrigidos, o caderno de
anotações, a gramática. Não, não esqueci de nada. Que lástima!
Talvez, se tivesse esquecido os materiais em casa, alguma coisa
pudesse mudar...
Por um momento fecho os olhos, já cansados de tanto fixar a
visão. Não consigo relaxar, não consigo parar de pensar. Atrás de
mim, ouço a palavra caos, vinda não sei de quem, a reclamar do
trânsito. Volta à mente um lugar que era feito de calor, umidade,
geada, zonas secretas e escuras. Algo que fazia parte do meu sonho da
noite passada. Não sei bem que lugar era, mas estava em meio ao
informe, a confusão, ao abismo nebuloso, o terrível caos. O caos
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caotiza, é menos a falta de determinação do que a velocidade infinita
com a qual as idéias se apagam. Meio de todos os meios. Meio de
passagem. Onde as coisas não têm lei, nem geometria, dispostas em
lugares tão diferentes, o que torna impossível encontrar um lugar de
acolhimento, por sobre umas e outras, um nicho comum. Tratava de
evitar a embaraçosa situação de não poder dizer nada sobre eles os
freqüentes, os pouco freqüentes, os ativos, os menos ativos, os
rápidos, os lentos, os entusiasmados, os apáticos ao permanecerem
espalhados, sem um lugar comum. Corpos que inquietam, lugar de
potências: ações e paixões em termos de profundidade. E, com
relação à superfície, de acontecimentos, de vapores, de
acontecimentos incorporais decorrentes daquelas misturas.
Repetíveis, transformáveis, ligados a outros acontecimentos. Dos
quais pouco se sabe: suas aproximações, seus afastamentos, os limites
dos seus territórios, suas afinidades.
Ao caminhar por um longo corredor com portas dos dois
lados, abria e fechava a pasta para me certificar que tudo estava ali,
que não havia esquecido nada antes chegar à sala: o velho estojo de
canetas, os exercícios corrigidos, o caderno de anotações, a
gramática. Preparava-me para chegar a um fim. Para que os alunos
atingissem os objetivos trimestrais, para que eles estudassem, para
que eles obtivessem o conceito A. Previa um dia antes, queria antever
o que poderia ocorrer amanhã, antecipar as prováveis conseqüências
do meu detalhado plano. Atribuía muita importância a finalidade do
que fazia, como também, da escola a qual fazia parte: estaria
realmente falida, perdida no tempo, ainda presa na era medieval?
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Preocupava-me com o antes, com o modo de atingir os objetivos da
minha disciplina. Assim como me aborrecia ou me alegrava com o
depois, dependendo dos resultados dos meus esforços. Era guiado
pelos marcos estabelecidos, arbitrários da escola: os dias e os horários
dos períodos, das reuniões de Série, de Área, de Departamento e
Gerais, das datas comemorativas, das avaliações, dos Conselhos de
Classe, da entrega dos conceitos ao setor pedagógico.
Preparava-me sempre, para um futuro, um amanhã, um
depois. Por isso, aquele movimento repetido me proporcionava
segurança o estojo era mais do que um estojo, assim como o caderno
laranja e a gramática. Com eles sentia-me forte, capaz. Eram como
bússolas a me apontar o Norte, a direção onde o Sol nasce, luz em
meio às trevas. Serviam como guias no espaço, uma proteção contra o
caos. Estranho poder conferido aos materiais, como se através deles
pudesse traçar coordenadas, saber qual direção seguir, o que dizer, o
que fazer, quando o sinal tocasse. Desfilava de um ponto a outro pelo
espaço estriado da escola, como uma grande rede, onde as linhas da
trajetória se subordinavam aos nós do tecido que se ia compondo. Ao
olhar de longe para essa rede, tinha a impressão dela ser regular,
uniforme. Porém, vista de perto surgem os buracos, as falhas. Ou seja,
por mais que aparente, esse percurso não é de todo estável e
previsível. Tudo pode acontecer...
Ao trocar os passos, ao revisar meu material mais uma vez, me
pergunto: será que já não vivi isso antes? Era como se estivesse preso a
um ciclo; em que passado, presente e futuro eram a mesma coisa.
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Aparentemente tudo igual, mas será a mesma coisa? Pode até parecer
enfadonho repetir aulas, leituras, exercícios, trabalhos de campo,
pesquisas, exercícios. Mas, há uma potência própria da repetição. Não
se trata de reproduzir uma aula e os seus diferentes momentos uma,
duas, ou três vezes. Porém, de elevar cada vez a sua enésima potência.
Repetia gestos, posições, falas, pausas, como num teatro que visa a
semelhança exata, a equivalência perfeita. Será que nesse teatro tudo
pode ser representado? Representação que trata de manter uma
igualdade entre um conceito e um objeto. De modo que tudo o que a
escola produz passa a ser rotulado, carimbado.
Como as idas e vindas da lotação, com as suas voltas, é preciso
que esse teatro se repita incessantemente, a fim de diferenciar-se de si
mesmo e produza o novo. Uma vez que sem repetição não existe
diferença. Pois, ao repetir-se uma cena, não se repete a mesma coisa,
já que não se pode copiá-la, nem duplicá-la, nem produzi-la fielmente.
Assim como ao repetir-se uma volta com a lotação, apesar do percurso
ser o mesmo, nunca se trata da mesma volta. Um movimento que se
funda em relação ao que não pode ser substituído, a uma singularidade
não trocável, insubstituível. A sua repetição trata de afirmar algo
naqueles corpos que é singular, insubstituível, diferente sem
identidade. Uma repetição sem modelos prévios, não visa reproduzir
o mesmo ou o semelhante, ao contrário, é a repetição que produz o
único “mesmo” naquilo que difere. A verdade das cenas está na
máscara, no disfarce, na dissimulação, pois a repetição não se oculta
em algo, mas se produz no disfarce.
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De modo algum é uma falsa imitação, mas um teatro
dionisíaco e intempestivo produzido pelas velocidades, intensidades
e afetos que subordinam a forma consagrada dos corpos à
deformidade do movimento. Repetição que forma e deforma os
corpos produzindo um desmoronamento do espaço representativo.
Um teatro que busca fazer da repetição de cenas daquela máquina algo
novo, uma prova seletiva, ligada à vontade e à liberdade. Há uma
potência que se afirma contra a lei da generalidade. A repetição
expressa a singularidade contra o geral, um relevante contra o
ordinário, uma universalidade contra uma particularidade. Nesse
sentido, repetir é transgredir. Um teatro que, também, contrapõe a
repetição à lei moral, coloca o pensamento para além do bem e do mal.
Por isso, repetir é da ordem do pensamento do futuro. Tudo é potência.
Quer seja o que se queira naquela máquina, trata-se de elevá-lo à
enésima potência, de extrair sua forma superior através da operação
seletiva do pensamento.
Ao me aproximar da sala de aula, ouço a sirene, novamente. E,
agora o que vai se passar? A campainha avisa que o esperado vai ter
início. O espetáculo vai começar. Ou será que já começou? Ao mesmo
tempo o inesperado se produz. O não visto e o já visto passam a
significar a mesma coisa. Uma vez após outra, por mais semelhante
que pareça, jamais se trata da mesma aula. A repetição mecânica dos
gestos como pegar o meu casaco, a minha pasta, a caixa de giz, abrir e
fechar a porta, encobre algo mais profundo. Uma grande incógnita se
impõe. O coração dispara, os pêlos se arrepiam, um nó tranca a
garganta. O pátio, o amplo saguão, os longos corredores, as salas, as
quadras de esporte, o bar, a biblioteca, os alunos, os pais, a pasta de
100
couro marrom, a gramática, os funcionários são os mesmos. Porém,
como nenhum dia é igual ao outro, nunca se sabe o que a escola vai
produzir... O que irá resultar do funcionamento das suas engrenagens?
Entro na sala de aula. Alguns olhares se voltam para mim.
Outros, parecem fazer questão de me ignorar. Como sempre. Com
muito ruído, os alunos começam a se dirigir para os seus lugares.
Cruzo a sala em linha reta até o seu lado oposto, para colocar a minha
pasta sobre a mesa. Olho o relógio. Mais uma vez está na hora de
começar, de fechar a porta, de solicitar silêncio, de falar com o grupo,
de ser ouvido, de fazer a chamada. Repetidos movimentos a me levar
de um ponto a outro, a formar uma linha reta. Dirijo-me até a porta,
estico o braço para fechá-la. Empurro-a e sinto uma pressão no
sentido oposto. Paro de fazer força. Haverá alguém atrás dela? Um
aluno atrasado? Ouço risos. Serão um ou dois alunos? Quando o corpo
se inclina para o lado, a fim de ser visto, um raio vermelho acerta bem
os seus olhos. Imediatamente, a aluna os fecha, esfrega-os com a mão
esquerda. Desequilibra-se e encosta-se na colega de pé ao seu lado.
Logo a seguir, ela volta a abrir os olhos e percebo que eles estão bem
vermelhos. O que houve? Não sei explicar... Não posso mais
enquadrar, classificar, acomodar, o que vejo. Algo rompe o
planejamento, o previsto, o esperado, a dissimetria se repete. O que eu
faço? Não sei, não sei como agir. Fui atacado pelo mundo para pensar.
Saio dos modelos, das respostas prontas, das receitas. A linha reta que
se estendia de um ponto ao outro se rompe. Bem próximo, perto
mesmo daqueles olhos é como se o seu fundo branco e a sua íris
desaparecessem. Água e terra se misturam. Surge um vermelho
101
cruzado, um emaranhado de pequenos vasos que se conectam e se
sobrepõem. Uma rede de fios vermelhos, rede vital, da paixão. Nelas
me perco, não sei aonde vou... Sem que me dê conta sigo a luz do
corpo. Envolvo-me num emaranhado de linhas. Uma trama que Palas
Atena tece com o vermelho do sangue, da vida. Sangue que nas
batalhas em defesa das cidades verte sobre a terra. Terra ocre,
vermelha a se espalhar sobre os mortos. Onde todos os estratos se
ligam e se sobrepõem. Meio vital. Cabe à deusa grega com o escudo, o
broquel e o raio de Zeus pai proteger. Impedir que a cidade sucumba.
Atena é conhecida, também, pelos seus “olhos cinzentos”, ou
“cintilantes”, olhos que são a luz do corpo, suas lâmpadas.
Ouço a aluna pedir para ir ao banheiro, pois seus olhos ardem.
Não sei o que lhe responder. Mas, antes que eu possa lhe dar uma
resposta, uma buzina soa forte. De repente, abro os meus olhos. Eis
que a minha visão é tomada pelo vermelho da lotação. Não estou mais
na escola. Finalmente, o meu transporte chegou. E pára bem na minha
frente. Subo, com pressa, os seus degraus, pois não quero me atrasar
para mais uma aula.
102
No banheiro
Ai, como os meus olhos ardem. De tanto esfregá-los, não
tenho idéia por onde estou andando. Tropecei em algo, o que será?
Não sei. Felizmente, o professor me deixou ir até o banheiro. O
percurso é curto, é só seguir reto e no final do corredor, dobrar à
direita. É perto, mas agora parece distante. Tão logo entro no local,
procuro pelo espelho. É, os meus olhos estão com a cor de sangue.
Não sei por que isso incomoda tanto. E se eles estivessem verdes? Ah!
Que divertido. Ninguém saberia o que pensar. E, agora? O que é que
eu vou dizer para aquela mulher? Sim, infelizmente, vou ter que falar
com ela. Hoje consegui entrar em aula, não perder mais um período,
não ganhar mais uma falta, mas de enfrentá-la será que posso escapar?
Abro a torneira da pia. Com a água corrente lavo minhas mãos,
em seguida o meu rosto. Volto a me olhar no espelho e está a mesma
coisa. Aquele vermelho não desapareceu. Parece até ter se espalhado.
Saio do banheiro. Refaço o caminho de volta até à minha sala,
caminho pelo corredor, sem perceber as outras salas de aula, sem
notar o que se passa ao meu redor. Cada passo trocado me aproxima,
não somente da aula, mas do que se passou comigo hoje pela manhã...
O despertador não tocou, como sempre, as 6:30 horas. Acordo
com um pulo, assustada: sonhei que tinha me atrasado para a aula.
Atiro as cobertas para o lado, saio da cama, rapidamente e entro no
banheiro. Lavo o rosto com água fria, mas não conseguia parar de
103
bocejar, estava difícil livrar-me do sono. Então, ao abrir a porta do
armário sob a pia, tive a idéia de pingar algumas gotas de colírio para
ver se acordava de vez. Pego o frasco na mão, tiro a tampa, inclino a
cabeça para trás e coloco uma gota em cada olho. Passado nem um
minuto, começo a gritar, a esfregar fortemente os olhos, tal era a
ardência. Parecia que meus olhos queimavam. Lavei-os com muita
água, mas eles continuavam lacrimejando. Quando tive condições de
ler, vi o que tinha feito. Não era um colírio que havia usado, mas um
perfume que estava num frasco muito semelhante ao do colírio. E,
apressada, visto-me, tomo o café da manhã, saio para a escola. Porém,
mesmo correndo, chego atrasada para a primeira aula. Abri,
repentinamente, a porta da sua sala de aula e o professor faz cara de
espanto.
Sigo caminhando, mais alguns passos e...
Será que ouvi o relógio tocar? São 6:30 horas? Não sei, acho
que não ouvi. Acordo sem pressa, e lembro do sonho que tive: havia
chegado atrasada em aula. Porém, a lembrança do sonho não me
104
perturba. Atiro as cobertas para o lado, saio da cama, calmamente, e
entro no banheiro. Quando estava lavando o rosto, ao piscar sinto um
desconforto: eis que um cílio entrou no meu olho esquerdo. De várias
maneiras, tento tirá-lo: assopro o olho, puxo a pálpebra, giro-o de um
lado para outro. Tudo em vão. Ao piscar novamente, percebo que ele
ainda esta lá. Então, abro a porta do armário sob a pia, à procura de um
colírio. Tiro a tampa do frasco, coloco-a sob a pia, inclino a cabeça e
pingo duas gotas naquele olho. Sinto um alívio, ao conseguir me livrar
do incômodo.Visto-me, tomo o café da manhã, sigo para a escola.
Apesar do contratempo no banheiro, entro na sala de aula, antes de
iniciar a aula de Português.
Chego mais perto, dou mais um passo e...
Não sei como, mas havia acordado antes do relógio tocar. Tão
logo abro os olhos, tento lembrar-me do sonho que tive. Por alguns
segundos, faço um esforço para evocar alguma imagem, qualquer
lembrança. Porém, não consigo. Atiro as cobertas para o lado, saio da
cama e tropeço num carrinho de controle remoto que meu irmão
deixara no chão. Acabo cortando o dedão do pé. Entro no banheiro,
lavo o rosto e abro a porta do armário, sob a pia, para alcançar o estojo
dos primeiros socorros. Sento-me no vaso e faço um curativo. Coloco
minhas roupas, mas não tomo o meu café da manhã: sigo para a
escola. Quando estava caminhando no corredor em direção a sala de
aula, chega um colega correndo e tropeça no seu pé. Ao me encostar
na parede do corredor choro, sinto dor. Quando me recupero, vou
mancando até a sala de aula. Devagar, caminho até uma classe e se
sento, um pouco antes da chegada do professor.
Não, ainda não cheguei, falta pouco, um passo a mais e...
O relógio tocou, como sempre, às 6:30 horas. Embora tenha
despertado logo, tive a impressão que meus olhos custaram a abrir.
Atiro as cobertas para o lado, saio da cama, repentinamente e entro no
banheiro. Lavo o rosto com água fria, enquanto esfrego os olhos, sinto
uma ardência. Principalmente, no esquerdo. Então, levanto a cabeça a
fim de me enxergar no espelho. Noto que as minhas pálpebras
inferiores estão, levemente, inchadas. Não dou muita atenção ao fato,
pois não quero chegar atrasada ao primeiro período de aula. Coloco
minha roupa, tomo meu café da manhã e sigo para a escola. No
106
caminho, por umas três vezes, coço o olho esquerdo. Quando estava
próxima da sua sala de aula, uma colega que cruzava o corredor, olha
para mim e se espanta com o vermelho dos meus olhos. Antes de
chegar na sala de aula, vou com ela ao banheiro. Ficamos
conversando por algum tempo. Sem ao menos dar tchau à minha
colega, saio correndo, apressada, esfregando os olhos e abro,
repentinamente, a porta da sala de aula.
Abro a porta da sala de aula. O início do dia volta, mas
embaralhado. Retorna aos poucos, com os meus passos. Misturado a
outras manhãs, a outros despertar. Um só e único dia ou uma sucessão
deles? Quem sabe? Ou será que tudo o que se passou não consiste num
jogo, num jogo das possibilidades de acordar?
107
Das bolas
Depois de muitas voltas, escorrego. Bato no canta da mesa.
Caio no chão. E, agora, aonde vou? Desço em direção a uma rampa,
mais e mais, por entre pés curiosos, esperançosos, atentos, descrentes,
ansiosos, cansados, confiantes, distraídos. Desde muito cedo eles vão
chegando. Alguns, de muito longe, atravessaram a cidade para lá
estar. Outros não, moram perto. Enquanto uns estacionam e saem dos
seus carros, um grupo desce de um ônibus na parada mais próxima,
outros se despedem de suas caronas e há, ainda, os que surgem a pé.
São mães, pais, irmãos, padrinhos, tios, primos, avós e amigos. Aos
poucos, eles vão entrando, praticamente sem fazer perguntas, mas
com grande curiosidade, cheios de expectativa nos olhos. De algum
modo, mais à direita ou à esquerda da porta principal, encostados na
parede do saguão, ou até mesmo, sob o vão da rampa, eles aguardam.
Os mais ansiosos se agitam, enquanto outros permanecem onde estão.
A espera pode durar horas. Formam um universo: são pessoas das
mais variadas idades, cores, raças, religiões, profissões, bairros e
nível sócio-econômico a partilhar um mesmo objetivo.
Parei de descer. Por enquanto, rolo no plano, pois até então,
minha falta não foi notada. Ninguém veio atrás de mim. Não sei onde
108
nem quando vou parar... Talvez, até no bolso de alguém, numa sala de
aula, ou, num canto qualquer.... Só sei que a cada ano eles voltam. A
cada ano isso se repete. A cada isso é produzido. A cada ano dou voltas
e mais voltas sem saber se sairei ou não do globo. Não se trata de uma
metáfora. A cada ano uma grande aposta se renova ensinar os novos
alunos, atender as suas expectativas, contar com o apoio das suas
famílias... Em meio ao meu errante percurso muita coisa passa...
Arrastado por fluxos, a cada giro do globo. Pela vontade de conseguir
uma vaga, de não pagar por um ensino de qualidade, de que essa
escola abra as portas do futuro, de alcançar uma formação superior,
de ter sucesso na carreira.
O espetáculo é o mesmo, mas é sempre outro, uma repetição
que salva da repetição. Alguém será capaz de dizer, previamente,
depois de tantos giros, qual número será lido? Qual bolinha sairá
daquele globo? A ocupar um espaço central no saguão do andar
superior. Juntamente com um quadro verde, um microfone, caixas de
som e alto-falantes. Em meio a tanta gente, algumas centenas de
pessoas, misturo-me com as vozes, os rostos, os gestos, os olhares, as
cores das pessoas. Não é possível distinguir nada nem ninguém. Ao
girar das bolas no globo, abre-se um espaço que não é o da forma, das
medidas extensivas, porém do informe e da intensidade. Uma fenda
no tempo se faz, Cronos cede lugar a Aion. O tempo é liberado do
presente, da ação dos corpos, das medidas, do círculo. E passo a seguir
uma linha reta sem antes nem depois, pulsante, a flutuar. De repente,
envolvo-me num jogo, não usual, mas ideal: não há regras categóricas
anteriores, nem hipóteses que dividem o acaso entre a perda ou o
ganho e que servem para organizar a pluralidade das jogadas. No qual
o conjunto dos lances afirma todo o acaso. Os giros e voltas das bolas
no globo são como um princípio afirmador do caos. Um jogo muito
movimentado, sem normas, vencedores ou vencidos. Agora todos
estão satisfeitos. Tanto aqueles que não querem ser sorteados, como
os que querem ser chamados. E, desse modo, não mais existe aquele
que ao ser escolhido fica triste, pois não quer mudar de escola, deixar
sua turma de colegas, são os seus pais que o escreveram no sorteio.
Ou, a expressão de desapontamento do outro que não foi contemplado
e vê frustrada a esperança de pertencer a uma instituição de qualidade.
Assim como, aquela que pula de alegria e abraça a melhor amiga, pois
conseguiu uma vaga na sua turma.
O ar exala uma grande expectativa, flutuo com a linha que se
forma, com as possibilidades de pertencer. Pois, ao contrário daquele
jogo que se passa no pensamento esse é real, possui regras e resultará
em vencedores e vencidos. Dentre os 600 inscritos uma minoria fará
parte da escola, enquanto a maioria irá embora. As bolas se agitam,
rolam, giram, param e a cada rodada, um novo fluxo se estabelece. As
pessoas acompanham, atentamente, a leitura dos números e o seu
110
registro no quadro. A cena tem um toque de surrealismo, de
inacreditável, de impossível. Nela tudo é mistura, os sentimentos
irrompem, se cruzam. Ouvem-se gritos, risadas, aplausos e choros, à
medida que um número e mais outro, são lidos. Abraços, beijos e
pulos mesclam-se às expressões de tristeza, incredulidade e
desapontamento daqueles que não foram chamados.
A cada interrupção do movimento caótico das bolinhas no
globo, mais um número é lido, um novo aluno, uma vaga a menos. A
cada novo giro, algo incorporal se passa na superfície dos corpos, um
extra-ser que os envolve, uma ação que se passa além dos movimentos
dos corpos, na sua borda, como também num tempo-borda que reúne
o passado e o futuro, e se furta ao presente de um estado de coisas.
Uma transformação que se refere aos corpos, mas ela mesma é
incorporal: a partir do instante que a pequena bola sai do globo e o seu
número é lido, ela deixa de pertencer ao universo dos candidatos e se
transforma num aluno, estudante dessa escola, adquire uma nova
identidade.
O movimento errante das bolinhas, o seu vai e vem, produz
uma indefinição, um indiscernível, uma bruma se forma com o
111
choque dos corpos que se cortam, se penetram. Não é possível separar
aluno de candidato, os que moram em Porto Alegre e os que moram
em Viamão, os que têm pais analfabetos, os que têm pais com curso
superior, os que freqüentaram a pré-escola, os que não freqüentaram a
pré-escola, os que possuem bom rendimento escolar, dos que não
possuem bom rendimento escolar, os que gostam da escola, os que
não gostam da escola. Tudo isso produz uma névoa que não consiste
num estado de coisas (os sorteados e os não sorteados), mas nele se
atualiza, nos corpos, no que se passa. Sempre existe um lado sombrio
e secreto, que não deixa de se furtar ou se acrescentar à sua
atualização: contrariamente ao momento em que as pequenas bolas
param de rodar e uma delas é retirada, a ação de sortear não começa
nem acaba: quando é que se deixa de ser candidato? Qual é o momento
em se começa a ser aluno? Interminável, ele não acaba nem começa,
não finda nem acontece, o movimento é infinito.
Algo, naquele instante, foge à sua própria atualização. Um
entre-tempo que não é eterno, é devir. Os intervalos das ações
comunicam-se numa zona de indiscernibilidade, de indecibilidade.
Uma mistura de elementos heterogêneos, todos simultâneos, cada um
num entre-tempo a se comunicar. Algo se passa entre o momento do
112
início do sorteio e o seu término... A fissura torna-se a primeira, não
sigo uma cadeia de ações, mas dela fujo: no alto da mesa, dentro do
globo, as pequenas bolas giram, dão voltas e mais voltas, sem cessar...
Ao fundo, uma grande platéia atenta mantém a visão fixa no
movimento errante das bolinhas. Olhos que tentam adivinhar o futuro,
o que vai acontecer: meu filho ficará com uma vaga? Será que irá
gostar dessa escola? Conseguirá acompanhar a exigência dos
professores? Sairá daqui preparado para enfrentar um vestibular? Que
tipo de aluno entrará? Os que possuem facilidade para aprender? Os
que possuem dificuldade? Aqueles que a família participa da vida
escolar? Aqueles que não dispõem do auxílio dos pais na sua vida
escolar? Alunos provenientes de escolas públicas? Alunos
provenientes de escolas particulares? Alunos com um nível sócio-
econômico baixo? Alunos com um nível sócio-econômico alto? Os
olhos são a luz do corpo, suas lâmpadas. É um órgão divino associado
à divindade. A capacidade da vidência é a eles atribuída, sendo que os
israelitas chamavam de “videntes” os seus antigos profetas. Para os
humanistas um único olho representa Deus, assim como Zeus e Shiva
possuíam três. Estão relacionados com a visão espiritual, a sabedoria
e a onisciência.
Enquanto isso, o globo segue girando, as bolinhas continuam
se batendo, se misturando e uma bruma, uma névoa se forma. Entro
num outro tempo, um outro espaço... Um lugar onde não há mais
sorteio. Ao parar o movimento do globo, apenas uma bola deveria ser
sorteada. Um aluno a mais, uma vaga a menos. Mas, ninguém sabe
bem o que aconteceu, quando o movimento circular cessou, ao invés
113
de sair um só número, todos os restantes escaparam. As bolas não
paravam de saltar e rolar por todos os cantos. O caos tomou conta da
cena. Num primeiro momento, atônitos, os que estavam mais
próximos se abaixaram para apanhá-las. Mas, a tarefa não era nada
fácil. Rapidamente, algumas rolaram pela rampa. Num ambiente tão
cheio, não havia como correr atrás delas. Em poucos segundos elas se
espalharam por entre pais, mães, filhos, avós, padrinhos, tios,
professores e funcionários. Não havia mais ninguém parado, nem
calado. O inusitado da situação quebrou a formalidade do momento.
Lá pelas tantas, as pessoas começaram a se apresentar. As
curiosidades dos filhos e dos pais com relação à escola, estavam sendo
saciadas. Houve um professor que falou sobre o sistema de ensino.
Enquanto outra explicou o que era uma escola laboratório. Já, um
terceiro forneceu várias informações sobre os projetos de ensino. Sem
esquecer uma outra que discorreu sobre os horários das diferentes
séries. As dúvidas dos professores em relação aos candidatos também
foram diminuindo. Muitos deles disseram de qual escola provinham,
onde e com quem moravam, como pretendiam chegar na escola, se
faziam alguma atividade extra-classe e por que queriam ali estudar.
A partir desse momento, selecionar alunos deixou de ser um
problema. Muitas famílias que não sabiam o que era uma escola
laboratório foram embora. Entenderam que esse não era o ensino que
esperavam para o seu filho. Sem falar naqueles que estavam ali
obrigados pela família. Tiveram uma oportunidade de conversarem
com seus pais sobre esse assunto e de adiarem a troca de escola. E,
assim, permaneceram ali aqueles que ao entenderem a proposta da
115
escola, decidiram que esta era a mais adequada ao seu filho. Ou os
candidatos que ao conhecerem os professores, ficaram entusiasmados
com o seu trabalho e resolveram nela ingressar.
Com o sorteio nada passa, porém tudo muda. E, assim, nessa
escola, a cada ano, novas turmas vão se compondo. Uma mescla, uma
matéria informe, bruta, molecular que se relaciona com forças do
cosmos. Arte do acaso, do lance de dados, da mistura. É a mesma
modalidade de seleção que se repete, há muito tempo, mas o sorteio é
sempre único. Produção de singularidade. Uma grande novidade. De
algum modo, as características atribuídas a Atena: inteligência, razão
e equilíbrio passam a ser buscadas naqueles alunos. Como se a deusa
lhes brindasse com os seus atributos. Uma trama, um trançado, um
tecido vai se compondo, sempre igual e nunca o mesmo. A cada
interrupção dos giros do globo, a cada nova rodada, a cada novo
sorteio, a cada novo ano. Um grande desarranjo produzido por essa
escola logo irá, novamente, ser introduzido na produção.
116
No sexto período
Retorno ao labirinto, mais uma vez. Onde tudo recomeça,
sempre, no mesmo local, na mesma hora, a cada novo dia. Uma vez
mais percorrer os seus muitos caminhos. Novamente, refazer o
movimento circular? Aquele que conduz ao primeiro, segundo,
terceiro, quarto, quinto, períodos do turno da manhã. Ao primeiro,
segundo, terceiro, quarto, quinto, períodos do turno da tarde. De
segunda à sexta-feira. Talvez sim, talvez não. Ou, quem sabe, os dois?
Sim e não. Ao mesmo tempo. Pois, ninguém sabe muito bem o que
pode acontecer ao percorrer os seus caminhos. Ao contrário de Teseu,
não recebo auxílio de Ariadne, não sigo nenhum fio de seda. Não se
trata do labirinto construído por Dédalo para encerrar o Minotauro.
Nem os jovens que aqui se encontram esperam ser devorados por um
monstro.
Na verdade, professores e alunos são guiados por uma linha
que vai de um ponto a outro: do jardim nível B para a primeira série do
Ensino Fundamental, de uma experiência de Ciências para um filme
de História, dos conteúdos do primeiro trimestre de Português para os
do segundo. O espaço vai sendo estriado, repartido como uma grade,
onde as diversas áreas do conhecimento se encontram representadas.
É necessário que cada disciplina crie um meio, a fim de afastar as
forças do caos, fixe um ponto como centro. Além da demarcação do
território, através de suas particularidades, o tempo é também por elas
fracionado: quatro períodos para Português, mais quatro para
117
Matemática, outros três para História, sem esquecer os três de
Geografia, e assim por diante. O espaço é ocupado de ponto a ponto,
de acordo com os movimentos que nele se produzem.
Pode parecer que essa trama é composta somente por uma
sucessão de normas, horários, rotinas e regularidades. Uma grande e
eterna mesmice se instala. Como se fosse um teatro da repetição,
onde se repete para alcançar a semelhança ou equivalência perfeita
entre a produção e o produto dessa máquina. Então, ao caminhar pelo
labirinto, vêem-se apenas coisas, estados, um mundo estático. Cria-se
um ponto de vista para ser reproduzido. Dá-se uma forma ao que essa
escola produz. Regida pelo intelecto. Apartada de tudo que não possa
ser conhecido, identificado, denominado. As ações produzidas nessa
escola devem se pautar pela racionalidade e o equilíbrio, uma vez que
dela flui uma força que provém de Atena, deusa que nasce da cabeça
de Zeus. Cabeça, a parte mais elevada do corpo, integra a esfera do
mundo superior, relaciona-se com o céu, com a transcendência, com
modelos.
Eis que aquela linha reta me conduz para mais um período de
aula. O sexto do dia. Depois do intervalo do almoço, parece que o
calor aumenta, tudo fica ainda mais pesado. Os alunos aguardam
estirados no corredor, com suas mochilas e garrafas de água. Está
quase na hora deles entrarem na sala. Lá, os ventiladores estão
funcionando a pleno e o ar pouco refresca. A porta se abre,
paulatinamente, as classes vão sendo ocupadas. Ninguém se apressa.
Apesar da temperatura elevada, os alunos sentam em duplas. Será
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que a turma terminou de ler o texto da aula passada? Fizeram os
exercícios dos pronomes pessoais? Calma! Uma coisa de cada vez.
Vou colocar os livros sobre a mesa e começar pela chamada para ver se
eles param de conversar. Ana Cristina, Angélica, Artur, ... Peço
silêncio, que baixem o volume da voz, aviso que quem eu chamar e
não responder ficará com falta. Sigo com os nomes: Beatriz, Berenice,
Davi... Apesar do pedido de parar a conversa, ainda posso ouvir ruído
de vozes...
Meu Deus, cadê a bendita folha de exercício? Será que deixei
sobre a escrivaninha do meu quarto? Achei! Está aqui, solta entre as
pastas. Mas, droga! Esqueci de responder as questões. O que vou
fazer? Rápido, P. dá uma idéia, o que é que eu faço? Sei lá, vai ao
banheiro, começa a passar mal. Não sei..., acho que não vai dar certo.
Ao concluir a chamada, levanto da mesa. Peço que todos
peguem a folha da aula anterior, releiam o texto pois a seguir, iniciarei
a correção dos exercícios.
É melhor me acalmar e começar a ler. Quem sabe ele me
esquece, não me nota? Se eu deitar a cabeça sobre a classe e fechar os
olhos...
Começo a caminhar por entre as filas, entre os alunos, suas
mochilas e seus exercícios. De longe, vejo um corpo se inclinar sobre
o verde da classe. Sem pressa, vou conferir o que está se passando,
enquanto caminho, ouço risos. Porém, ao me aproximar, não sei mais
119
o que vejo. A linha reta subordinada aos pontos se rompe. Sigo um
emaranhado de fios castanhos que se espalham por todos os lados. De
repente, só há o marrom. Um solo argiloso, primitivo de onde os seres
se originam. Útero da vida. A fertilidade da terra cultivada que
sustentava a minha família. Na lavoura, de quando em quando, havia
um pouco de verde: a sombra dos cinamomos que abrigavam as
minhas brincadeiras de infância. Lá no interior, com meus pais e
irmãos, o verão era tão divertido e tão quente...
Ouço alguém perguntar se tenho uma caneta para emprestar.
Não respondo, é melhor ficar bem quietinha. Aos poucos, parece que
tudo vai ficando distante, as vozes, os risos, as perguntas, as respostas,
o professor... Transporto-me para a minha casa, não tenho aula, nem
faz calor. Ou melhor, estou no meu quarto dançando com o rádio
ligado. As folhas dos exercícios de Inglês, de Matemática e de
Ciências se espalham sobre a escrivaninha. Quanta coisa para fazer!
E, nem comecei a arrumar minha cama. Se a minha mãe entrar aqui
estou frita. Para ela eu estou sempre atrasada. O problema é que tenho
deixado as tarefas para depois. Depois da música, da conversa, do
lanche. É tão bom ouvir música, falar ao telefone com minhas amigas
e navegar na Internet. Nossa, são 20 horas, não arrumei nada: os
exercícios estão incompletos e nem tomei banho. É melhor guardar
tudo bem depressa, colocar as folhas na pasta e descer para jantar. J.?
Acho que estão me chamando, é melhor descer... J. podes ler a questão
número 5?
Com os sentidos embaralhados, fico confuso, não sei mais o
120
que se passou. Ao me aproximar, não teria visto dois corpos se
inclinarem sobre o verde da classe? Um se levanta, se ajeita na
cadeira. E o outro? Parece que continua como está. Vou conferir o que
está ocorrendo. A sala fica silenciosa. Todos aguardam o que vai
acontecer. Porém, ao me aproximar, não sei mais o que vejo. Um
grosso feixe de fios castanhos pende sobre o verde. Agora, gotas de
sangue começam a pingar. Sangue? Sigo uma linha que passa entre os
pontos. Retorno ao acidente que ocorreu quando estava vindo para a
escola. O trânsito parou, os carros rapidamente se enfileiraram,
queimavam sob o sol. Tudo o que pude perceber era o corpo esguio de
um cavalo deitado na grama do canteiro. O marrom de sua crina
estendida no verde da grama. E uma de suas patas encolhida e
ensangüentada.
Ouço alguém perguntar se tenho uma caneta para emprestar.
Não quero responder, nem emprestar coisa alguma. Uma vontade de
fazer nada me domina. Como é bom fechar os olhos. E, por uns
instantes poder me isolar de tudo e de todos. Como posso não estar
cansada? Como poderia ter terminado o tema de Inglês? Sinto-me
exausta, depois de ter feito os exercícios de Matemática e Ciências,
até bem tarde da noite. Quando pensava que tudo estava terminado,
surge no meio das folhas, mais um exercício de Inglês. Bem que tentei
acabá-lo para hoje mas, o sono me venceu. Estava começando a
guardar meu material na mochila, quando ouço a minha mãe me
chamar: J., vai dormir, já é tarde. J., podes ler a questão número 5?
Com os sentidos embaralhados, fico confuso, não sei mais o
121
que se passa. Entro num labirinto sem fio. Volto a caminhar por entre
as filas. De longe vejo uma classe vazia, parece que um corpo se
abaixa: havia alguém sentado ali, ou não? Vou conferir o que está se
passando. Enquanto me dirijo naquela direção, batem à porta. Os sons
das batidas me remetem fora dali.
De repente, não me encontro mais em aula, mas sentado na
sala de reuniões. Elas ocorrem, no mínimo, uma vez por mês. Nela, as
várias áreas do conhecimento estão representadas: as Línguas, as
Ciências Físicas e Biológicas, a Matemática, as Ciências Humanas,
Artes e a Educação Física. Aos poucos, os professores chegam e o
trabalho só começa, após todos estarem presentes. A pauta é lida. O
principal assunto é a disponibilidade de planejamento de atividades
interdisciplinares com as turmas. Inicialmente, o representante de
cada área do conhecimento expõe o que pretende trabalhar, ao longo
do ano. A tarefa parece não ter ido muito adiante, pois foi combinado
que, no decorrer da semana, quem tiver interesse nesse trabalho,
procurará seu colega. O próximo assunto é encaminhado por uma
professora, sua fala encontra eco no grupo. Ela afirma a necessidade
de conhecer com maior profundidade os alunos. Alega, para tal,
razões de planejamento. De fato, eles esperam que lhes seja fornecido
um diagnóstico em termos cognitivos das turmas. Uma linha dura está
para ser traçada. Os grupos apresentam prontidão para as atividades,
são muito barulhentos, brincalhões, ou demonstram pouca autonomia
para aprender?
Será que tudo o que a escola produz tem que ser reconhecido e
representado? O pensamento será suprimido tendo em vista a ânsia
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por dominar, por solucionar os imprevistos? Será que nada nem
ninguém podem ficar sem respostas? Todos os fluxos têm que ser
reconhecidos, carimbados, classificados? O verdadeiro problema não
consiste na sua irrupção, mas em capturá-los segundo formas pré-
determinadas. Instaura-se uma volúpia pelo saber, por saber tudo
sobre todos, a energia de Atena é exacerbada. Tal onipotência e
onipresença impedem que verdadeiramente se pense sobre o que foge
do esperado, dos cadernos, dos livros, das metodologias, dos planos
de ensino. Como se os problemas desaparecessem na medida que as
suas soluções fossem encontradas. No entanto, só os resolvemos
quando se restauram suas quebras, suas descontinuidades tendo uma
Idéia, o plano virtual, como fundo. Isso ocorre quando se explora
todas as suas possibilidades e não ao conformar a situação
problemática ao conhecido.
O som das batidas na porta fica mais forte. Depois de abri-la,
recebo a informação que foi cancelada a reunião de professores das 16
horas.
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124
Muitos percursos em um?
Primeiro
Desço na parada do ônibus. A de sempre. Velha conhecida a
sinalizar que o mesmo se aproxima cumprir os horários, assistir às
aulas, ter os cadernos em dia, fazer as tarefas, estudar, não tirar o
conceito D nas disciplinas, passar de ano. Que saco, tudo de novo!
Caminho, lentamente, até a escola. Afinal, para que ter pressa se lá
tudo se repete? Qualquer coisa que eu venha a perder será retomada.
Explicações, provas e trabalhos. E, caso nada disso funcione, repete-
se o ano. Tudo, novamente. Mais alguns minutos e estarei lá. A
distância que dela me separa é pequena. É só atravessar a avenida e
seguir por mais três quadras que não são longas. Perto o suficiente
para não cansar, mas os meus passos ficam pesados só em pensar em
tantos deveres, no meu papel de aluno. O peso de ser... o que os outros
querem que eu seja. O peso de ser... o que os outros afirmam que é o
melhor para mim. O peso de ser... igual aos outros. Um papel
estabelecido que não se ajusta muito bem... Ou é grande demais para
mim, ou serei eu pequeno demais para ele? Quem sabe, ambos? Ou,
quem sabe, nem um nem outro? Talvez fosse melhor manter distância
dessa posição, não preferir nada disso. Ficar longe dos olhares que me
avaliam. A verdade é que desde que me entendo por gente, sempre
sobra ou falta alguma coisa em relação à minha vida escolar.
O que fazer se a exatidão me aborrece, se a definição me
paralisa, se sempre borre os contornos? O fato é que muita coisa se
passa entre o excesso de algumas habilidades e a escassez de outras,
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como dizem os meus professores. O que não tem medida, o que não
tem jeito, o que atrasa, o que adianta, o que escapa, o que burla.
Uma vida a corrigir. Uma vida a passar a limpo. Uma vida a
aperfeiçoar. Lá se vão anos de advertência...
Senta, abre o caderno e copia.
Sentar, para quê? Por que não posso ficar em pé? Por que não
posso passear pela sala? Copiar o quê?
Ora, o que está no quadro. Mas, eu já sei o que está no quadro.
Sei ler tudo. Queres ver?
Então, copia.
Mas, copiar para quê?
Para teres a matéria no caderno.
Mas, eu sei a matéria. Para quê copiar?
E depois...
Mais, rápido. Vamos, mais rápido. Corre! Pega a bola do
colega e sai correndo para o outro lado do campo.
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Para o outro lado? Não pode ser por aqui? Tenho que correr
sempre?
E depois...
Falar, resumidamente, do livro que eu li? Mas, eu sei contar
muitas coisas, muitos detalhes. Lido, inclusive, em outros livros. Não
importa? É para falar pouco?
Por entre o muito e o pouco me movimento.
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Segundo
Abro o portão, entro mais uma vez no pátio. Agora vazio,
senão fosse pelo cachorro deitado a tomar sol. Onde estão todos? Será
que já bateu? Por que o estacionamento está lotado? Aonde vou? O
que vim fazer aqui? Onde poderei ter paz? Qual o lugar que posso
deixar de ser observado? Em meio a essas dúvidas, com pés de
chumbo, procuro por um outro rumo dentro do mesmo espaço. Só sei
que ao caminhar evito ser visto. Tudo ficaria mais fácil se fosse
invisível e atravessasse paredes. Se tão logo me vissem,
desaparecesse. Se pudesse embaralhar a visão, caminhar envolto
numa névoa. A todos confundir afinal, era ele ou não era? Eu o vi ou
não? Ele estava ou não estava no pátio? Assistiu ou não assistiu à
aula? Uma vez que não possuo tais poderes, é melhor tomar distância
dos olhares dos inquiridores: O que estás fazendo aqui? Chegastes
atrasado outra vez na aula? Não consegues acordar mais cedo pela
manhã? Será possível não deitares tão tarde? Será que terei que
chamar, novamente, os teus pais? Perguntas e mais perguntas.
Repetidas. As de sempre. Mas, que respostas dar às velhas perguntas?
As conhecidas? Será que eles já não sabem as respostas? Ou será que o
que quer que eu diga, soará como velho? Os professores insistem
numa justificativa, enquanto a minha vontade é de não dizer nada e
mais uma vez pular fora. Mesmo que não saia do lugar. Fora da sala de
aula, fora dos trabalhos, fora dos horários, fora do que dizem que devo
fazer, fora do que dizem que é bom para mim, fora do que dizem que
devo aprender, fora da escola.
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Terceiro
E se eu contar que hoje a minha intenção não era a de chegar
atrasado. Será que eles irão acreditar? Ficarão surpreendidos? Qual a
minha justificativa? Querem uma nova? Ou serve a dos outros dias?
Tem que ser uma só? E, se forem várias? Todas incompossíveis. Todas
aconteceram e não aconteceram num só dia. Todas existiram e não
existiram ao mesmo tempo. Todas compõem e não compõem o meu
dia. Como foi que acordei? Será que fiquei na cama mais tempo do
que devia? Será que o despertador tocou? Será que ninguém me
chamou? Não sei dizer. Não ouvi. Ontem, só consegui dormir depois
dos sanduíches que comi. Parece que ter assistido a maratona dos
episódios do Arquivo X na TV me deu fome. E, com o estômago
vazio, não consigo dormir. Não sei depois de quanto tempo, ouço
gritos e a buzina dos carros bem embaixo da minha janela. Odeio
acordar assustado. Parecia que mal havia pegado no sono. Estava
muito sonolento. Virei em direção ao relógio e o mostrador marcava 7
h. e 20 min. Como posso ter dormido tanto? Por mais que tentasse me
apressar, não teria como chegar a tempo do primeiro período. Então
fui ao banheiro, me vesti, tomei meu café, calmamente, peguei minha
mochila e saí. Caminhei até a parada mais próxima. Lá permaneci por
alguns minutos, até o meu ônibus chegar. Desta vez, consegui sentar.
Olhei para fora da janela. O céu estava cinza, carregado de nuvens, de
repente, pequenas gotas de água começaram a molhar o vidro. Por
enquanto eu estava seco. O ônibus andava e parava, gente subia, gente
descia, o fluxo do trânsito era lento. Minha atenção ao que se passava
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ao meu redor flutuava com as gotas da chuva, ora vinham, ora iam
embora. Até enxergar numa vitrine de uma loja, um despertador igual
ao meu. Imediatamente, volto para o meu quarto. Onde está o meu
despertador? Como foi que acordei? Como cheguei até aqui? Ouvi
alguém me chamar? O despertador tocou? Aquele som, juro eu não
suportava mais. Entra ano e sai ano e ele segue ao meu lado buzinando
nos meus ouvidos. Num impulso, o desliguei, bem rápido, para que
ele não voltasse a gritar. Em seguida, voltei para a cama, acho que
fechei os olhos. Não sei por quanto tempo. Ontem, só consegui dormir
depois de terminar de ler um conto de mistério de W. G. Wells. Ah! que
vontade de não ir para a escola, mas para um castelo em Lorraine.
Uma construção muito antiga, cercada de lendas, como a do quarto
vermelho. Poderia me esconder em seus aposentos e atrair os
incrédulos, aqueles que não acreditam em fantasmas. Os que só crêem
no que podem comprovar. E embaralhar, confundir, perturbar os
sentidos de quem lá entrasse! Adoro histórias sobre o medo que os
fantasmas despertam nas pessoas, era difícil largar o livro. Acho que
adormeci com ele entre as mãos. Só sei que dei um pulo da cama
quando ouvi uma sirene. O livro caiu no chão ao lado da cama. Uma
ambulância? Talvez. Quando cheguei à janela, seja o que for que
tenha ocorrido, já tinha passado. Não sabia bem que horas eram. Mas,
já que estava acordado tratei de me preparar para sair. Fui ao banheiro,
vesti minhas roupas. Ao chegar na cozinha, decidi não tomar café,
estava sem fome. Depois, peguei minha mochila e bati a porta do
apartamento. Até a parada fui caminhando. Era perto. Tão logo
cheguei lá, entrei no ônibus. Mas, foi difícil, ele estava bem cheio.
Não pude sentar. Mal podia ver por onde andava. Estava cercado de
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gente por todos os lados. Quando me dei conta, já havia passado o
ponto de descer. Droga! Perguntei as horas para o cobrador. Eram 7 h.
e 45 min. Ainda havia tempo de assistir ao primeiro período. Decidi
continuar até o fim da linha no ônibus. Era mais seguro do que voltar a
pé sozinho. Depois de cinco paradas, desci. Caminhei, rapidamente,
até a escola. Mas, a cada passo trocado, meu estômago dava voltas.
Tinha a impressão que seus roncos podiam ser ouvidos de longe. A
fome era tanta que, ao entrar no pátio, fui direto ao bar tomar um café.
Antes mesmo de servirem o meu pedido ouvi o sinal. Incrível. Esse
som é muito parecido com o do meu despertador. Hoje pela manhã ele
tocou? Sim, tão alto que dei um pulo, bati o meu braço nele e derrubei-
o no chão. Terá ele estragado? Não sei. Ontem demorei muito tempo
para dormir. Rolava na cama e nada. Já estava ficando impaciente. Fui
à cozinha e tomei um copo de leite morno. E, para garantir que
dormiria logo, comecei a fazer um caça palavras. Isso comigo não
falha. Nem cheguei a completar a primeira página, já estava
bocejando. Apaguei a luz do abajur e não vi mais nada. Mas, será que
ajustei o relógio para despertar? Não sei. Fui acordado por alguém?
Como cheguei até aqui? Ontem à noite fiquei por muito tempo no
computador. Afinal, tinha que alimentar o meu bichinho de estimação
virtual e aumentar o meu escore de pontos. Não posso ficar atrás do
Raul, só falta aquele nerd alcançar a minha pontuação. Ele sim, passa
mais tempo do que eu brincando com os Neopets e não dá nada. Não
leva bronca alguma. Ninguém lhe chateia, nem em casa, nem na
escola. Lá ele só aparece quando está a fim. Não de estudar, mas de
zoar. Mas, esta é outra história. Quando me dei conta, já era muito
tarde. Estava com muita fome e nem havia tomado banho. Aí, o
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telefone tocou. Corri para atendê-lo, tropecei na minha mochila, caí
no chão. Tudo isso por nada, o telefonema era engano. Estava muito
cansado, tomei um banho rápido e fui me deitar. Mas, o maldito
cachorro da vizinha não parava de uivar. Nem colocando o travesseiro
no ouvido aquela lamúria era abafada. Virava-me de um lado para o
outro na cama e nada. Não havia jeito de dormir. Foi então que me
lembrei de comer. Fui até a cozinha, assaltei a geladeira. Voltei para a
cama. Depois disso, não lembro se tomei o café da manhã, mas peguei
a minha mochila e saí para a escola. Será que foi mesmo isso? Onde
estão todos? Que horas são? Será que estou atrasado, novamente? O
que estou fazendo aqui? Será que hoje é feriado e não tem aula?
133
Quarto
E se eu contar que a minha intenção ao chegar era de encontrar
a Simone e pedir emprestado o seu caderno de Geografia. Simone,
aluna exemplar, uma unanimidade entre os professores, um modelo a
ser seguido. Menos por mim. Modelo de aluna, modelo de colega,
modelo de filha. Uma pretendente bem fundada ao título de melhor
aluna, garantida pela semelhança que possui com uma imagem ideal
de aluna. Além de ser a dona do mais completo e caprichado caderno
da turma. Não que eu tivesse vontade de estudar a matéria, mas é que a
professora de Geografia resolveu pegar no meu pé. É isso mesmo, ela
me deu um ultimato, ameaçou chamar os meus pais, se eu não lhe
entregar o caderno com toda a matéria, até a próxima aula. Aquela
mulher cisma que eu não sei escrever, que eu tenho algum problema
grave, só por que não copio nada nas suas aulas. Copiar para quê se eu
vou bem nas provas, se respondo as suas perguntas, se não tiro D no
trimestre? Caminhava pelo pátio, olhava para os grupos de alunos, a
fim de enxergar a colega. Ficarão convencidos? E se eu disser que
perambulava envolto em dúvidas onde está a Simone? Será que já
bateu? Estou atrasado? E, se me virem fora da sala de aula? Vou me
ferrar? Chamarão os meus pais? Quando me dei conta, já havia
entrado no saguão. Como vim parar aqui? Não sei. Ah! Avistei uma
menina magrinha, com cabelos crespos, que parecia a Simone a me
acenar de longe, através da porta de vidro. Ela estava próxima ao
balcão da portaria, junto a outras meninas, do lado interno do saguão.
Desloquei-me até lá, queria encontrá-la. Mas, de que jeito? Ao entrar
no prédio não consigo nem me mexer de tão cheio. Como vou passar
se mal consigo entrar? Em meio a uma multidão não adianta ter
pressa. Eram pais, mães, crianças, avós, amigos, tios, padrinhos, a me
cercar. Espalhados, a tomar conta do espaço, como os gases. Embora
não os conhecesse, era como se já os tivesse visto antes por aqui...
Acho que eles ainda não participaram de nada igual, pois pareciam
hipnotizados. Aquelas pessoas olhavam para cima, não me viam.
Perfeito. Tinha uma chance de circular sem ser visto. Quem sabe,
voltar para o pátio? Ou dar mais um passeio sem sair do lugar? Estava
em meio a uma multidão, mas era como se não estivesse ali. Era como
se fosse invisível. Sensação que muito me agrada. Garantido pelo
anonimato... danço entre as sombras com uma mulher vestida de
branco. Será um convés? Ela sussurra em meu ouvido que se trata de
um navio cruzeiro, ativo até 1967, o Queen Mary, que serviu ao
exército britânico na Segunda Guerra Mundial. Depois, sou
conduzido pela misteriosa dama em direção a uma piscina vazia, a fim
de deixar rastros de pegadas molhadas para os visitantes que se
aproximam. Ao nos afastarmos do deck ouço gritos. Por mais que a
minha acompanhante quisesse que eu os ignorasse, não podia, olhei
para trás. Será ela? Acho que sim, aquele penteado capacete poderia
reconhecer em qualquer lugar. Incrível, nem mesmo à beira da piscina
vejo um fio de cabelo fora do lugar. É ela, a professora de História.
Será que vai me reconhecer? Vai chamar os meus pais? Será que vai
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136
lembrar que ainda não lhe entreguei o trabalho sobre o Brasil
colonial? Não creio. Uma vez que ela está tão pálida, sem a mínima
condição de me perguntar nada, de cobrar qualquer coisa. Pois, ela
está morta, morta de medo. Entre as gargalhadas da minha
acompanhante desapareço, sem deixar pistas. Volto a aparecer nas
proximidades de uma mansão vitoriana que nunca foi completamente
terminada e habitada. Como ela se chama? Woodchester? Monto num
cavalo branco a espera de alguém... paro em frente a de um de seus
portões de ferro. Aguardo o vigário local... Será que ele não vai perder
a fala se eu aparecer num de seus portões e logo desaparecer? Para
surgir num de seus banheiros, na mão a sacudir uma cabeça flutuante?
De repente, sinto uma batida em meu ombro. Será que me
viram? É a professora de História? Já estão me procurando? Será que
estou atrasado? O que faço aqui? Como explicar que ainda não fui
para a sala de aula?
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Quinto
E se eu contar que ao chegar a minha intenção era a de ir ao
banheiro. Será que ficarão convencidos? Ainda não disse isso antes?
Dessa vez, a minha intenção não era a de me esconder, mas poder
assoar o meu nariz. Além disso, teria alguns minutos de privacidade
para arrumar o meu disfarce o cabelo despenteado, a calça folgada,
o tênis sem cadarço, o casaco enorme, a mochila vazia. Tudo isso para
ficar igual aos outros e não ser percebido. Tudo isso para não perturbar
o andamento geral da escola: as aulas continuam ocorrendo, as
explicações são dadas, as perguntas respondidas, os exercícios
realizados, os recreios aguardados, as avaliações marcadas. Tudo isso
para confundir e poder escapar das certezas Será que ele tem algum
problema? Será que ele é portador de alguma patologia ou não? Mas,
para chegar até o banheiro tinha que atravessar o saguão. Caminhei na
sua direção, sem me preocupar muito com o horário. Só que ao chegar
lá me vi cercado por uma multidão. Abri espaço entre os presentes
para conferir o que estava se passando. De onde estava não conseguia
ver muito bem. Mal havia espichado meu pescoço, algo bateu em meu
pé. Não, não era outro pé, nem a minha mochila que caiu, mas algo
branco, redondo. Uma bola de papel? De onde ela surgiu? Alguém a
138
jogou? Será que era destinada a um professor? Só pode ter escapado lá
de cima, do globo. Incrível. Como pode chegar até aqui? Abaixei-me
para apanhá-la. Mas, como era difícil mantê-la em minhas mãos. Ela
escorregava para cima, para baixo, depois para um lado, logo a seguir,
para o outro. Fazia tudo para escapar... O que pode uma bola? Sortear
e não sortear? Furtar-se de participar de um processo seletivo?
Escapar das definições? Embaralhar a escolha de quem entrará e de
quem ficará fora da escola? Com que facilidade ela escorregava por
entre meus dedos... Uma bola pode percorrer outro percurso, uma
bola pode driblar a sorte e o azar...
Ao tentar mantê-la em minhas mãos, um outro tempo se
desenrola dentro do mesmo tempo. Foi assim que tudo começou...
disseram-me que participaria de um grande jogo. Como uma
brincadeira. Nele poderia ter sorte ou azar, ficar com uma vaga ou
não, independentemente, do que soubesse. Por mais que me
explicassem, era difícil entender o significado de tudo aquilo. Ao
tentar mantê-la em minhas mãos, divirto-me com a sua leveza, com a
sua forma redonda, com os seus movimentos. Mas, mas não será ela
quem brincou comigo? Não joguei o seu jogo? Ela não me capturou?
Isso foi há tanto tempo... Por causa de uma bola como essa não estou
aqui? E em nenhum outro lugar? Camuflado entre tantos outros,
aparentemente, sendo mais um deles, mas não sendo, ao mesmo
tempo? Todos os dias tendo que me disfarçar, forçado a agir como os
demais? Questão de sorte ou de azar? Não sei, quem sabe não seja
nada disso? Só sei que não fui o primeiro, nem serei o último sorteado.
Desde que esse sistema de escolha foi implantado, muitos giros foram
dados, muitos giros ainda serão dados. Centenas já passaram por aqui,
outras centenas ainda irão passar. Mas, algo se passa entre a primeira e
a última vez... Algo que não quer ser fixado... que embaralha os
sentidos... que não quer ser identificado.... nem rotulado.... algo que
foge. Desde que possa me esconder em meio a tanta indefinição,
pouco me importa como essa história vai terminar.
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Sexto
Qual a minha intenção ao chegar na escola? O que foi que
ocorreu? Por que não estou em aula? Onde estava? Caminhava com os
passos lentos, com a quase certeza de já estar atrasado. E, agora o que
vou fazer se o saguão estiver vazio? Como posso atravessá-lo sem ser
notado? Atordoado, com a possibilidade de voltar a ouvir aquela
maldita pergunta: atrasado, de novo? Só em repeti-la na minha mente,
era como se caminhasse na ponta dos pés. Mal tocava o chão.
Levitava. Não queria fazer barulho ou deixar rastros. Sinais a destoar,
grandes demais ou pequenos demais, adiantados ou atrasados, fora da
ordem, fora do esperado. Sinais do descompasso. Além do mais, não
estava a fim de justificar nada para ninguém. E, se eu evitasse passar
pelo saguão? Não, não tinha como. Para entrar em aula, só passando
por ele. E, se eu não fosse para a aula? Se eu vagasse pelos pátios,
corredores, escadas e banheiros? Se eu não me fixasse em lugar
nenhum? Se eu conseguisse confundir aqueles que insistem em me
apanhar? E, se alguém me visse? Eu poderia contornar o prédio, entrar
pela sua outra porta, mais longe da portaria. Quem sabe, passaria
despercebido? Foi por esse outro caminho que entrei no prédio. Uma
manobra desnecessária, tal era o número de presentes no lugar. O que
fazia aquela multidão por aqui? Eles estavam com os olhos fixos lá em
cima, no que ocorria no andar superior. O que era tudo aquilo?
Microfones, alto falantes, uma mesa, um grande globo, um quadro
verde. Ao levantar minha cabeça em direção ao piso superior, não
havia como não ser atraído pelas voltas e mais voltas das bolas no
141
globo. Estava contagiado pela expectativa que se criava... as bolas se
agitavam, o tempo congelava quem entraria?, quem ficaria fora?
Dentro em breve, mais um número seria lido. O que pode um sorteio?
Será capaz de transformar um candidato num aluno? Quando se deixa
de ser candidato? No exato instante em que o movimento do globo foi
interrompido e uma bola foi sorteada? É como se, a partir de então,
todos tivessem que vestir um uniforme que serviu aos que me
antecederam e que deve servir aos que irão me suceder... Uma forma
única que deve passar de geração em geração, desde aquelas que
estudaram no Campus Central até, as que hoje estudam no Campus do
Vale.
Um número é lido, o tempo voltou a seguir seu curso, um
aluno a mais, uma vaga a menos. Sorrisos e choros misturam-se a
palmas e gritos. Um entra e muitos outros ficam fora. Alegria e
tristeza se espalham ao meu redor. E se a minha aula tivesse
começado? Sabia que tinha de ir embora. Mas, como sair dali? Como
não ser capturado pelos giros, pela mistura de todos os inscritos, pelo
movimento incessante? Voltas e mais voltas das bolas no globo. Nada
está definido. Uma mistura de todas as formas. Momento nebuloso.
Uma bruma se forma, se espalha, levanta do chão e começa a invadir o
ambiente. Ninguém tem condições de distinguir coisa alguma. Um
grande vir a ser... Entre aluno e candidato. Nem um nem outro. Entre
aluno e não aluno. Nem um nem outro. Entre candidato e não
candidato. Nem um nem outro. As fronteiras se apagam, os contornos
se esfumam, os limites somem. Um encontro com a zona de
passagem. De repente, tudo se afasta...
142
Onde estou? No convés do Queen Mary? Num de seus
banheiros? Na mansão Woodchester? Caminho entre as portas das
salas de aula que vão se sucedendo à direita e à esquerda. À medida
que caminho, é estranho, o corredor vai ficando escuro, envolto em
sombras, as portas desaparecem. Apesar da penumbra, sigo
caminhando até encontrar uma escada em caracol. Subo por ela até o
fim, dobro à esquerda, percorro um estreito corredor gelado que me
conduz a uma porta. Pego uma vela de um candeeiro na prancha do
seu lado de fora. Antes de abri-la, não sei o que aconteceu, percebo
que estou leve. Estou livre. Experimento a sensação de me desprender
do corpo. Afinal, ele me mantinha preso à ordem da existência. Por
sua causa estava ligado à identidade e a imortalidade, a personalidade
e a ressurectibilidade, a incomunicabilidade e a integridade. Agora,
meu espírito está livre das propriedades que o corpo lhe impunha. Ao
caminhar pelo corredor, escapo do sistema divino que tem por base a
identidade: a de Deus como único fundamento, a do mundo como
meio ambiente, a da pessoa como instância bem fundada, a do corpo
como base e por último, a da linguagem como potência para designar
todo o resto. Aproximo-me da porta, o máximo possível, a fim de
poder escutar alguma coisa do seu interior. Nada. Ao resolver entrar
na sala, fecho a porta, imediatamente, atrás de mim.
Após verificar, se realmente, havia fechado a porta dou alguns
passos, examino em volta de cada peça de mobília, enrolo os
cortinados da cama e abro parcialmente as cortinas. Não se trata de um
aposento qualquer... Mas, de um quarto grande e penumbroso, com
144
suas janelas de sacadas envoltas em sombras, cantos negros e trevas
viscinais. Sim, é este. O quarto vermelho no qual morrera um jovem
duque, ou melhor, no qual ele começara a morrer, ao abrir a porta e
cair de ponta cabeça nos degraus da escada que acabara de galgar. O
que provocou a sua morte súbita? Dizem que ele estava fugindo das
brincadeiras a que foi submetido. Minha vela era apenas uma pequena
chama na sua vastidão, insuficiente para penetrar no extremo oposto
do quarto, o que deixava um ar de mistério e insinuações além do meu
ponto de luz. A curiosidade me conduzia, como não inspecionar o
ambiente?
Movi a vela de um lado para o outro para tentar ver em que tipo
de nicho me encontrava. Descobri um grande espelho no quarto, com
um par de arandelas com velas e, sobre o aparador, também encontrei
mais velas em candeeiros de louça. Empurrei as persianas e examinei
os ferrolhos de várias janelas, antes de fechar as folhas, abaixei-me e
olhei o negrume da grande chaminé e bati de leve nos lambris de
carvalho escuro em busca de alguma passagem secreta. Por enquanto,
não encontrei nada. Ao caminhar, esbarrei numa poltrona coberta de
chintz, posta na lateral de uma lareira com lenha. Para o meu espanto,
ao me dirigir à janela...
Tudo se aproxima, a mesa, o globo, as pessoas me cercam.
Quero caminhar mas, não posso. Sinto uma dor na minha perna. O que
houve? O que aconteceu? Levei um chute? Alguém esbarrou em
mim? Olho para o lado e vejo uma avó gritar, pular, ficar eufórica,
abraçar uma menina e, num impulso, suspendê-la no ar. Surpresa,
145
com o rosto incrédulo, a garota sorri em retribuição. Do outro lado um
casal continua atento ao número que vai sendo escrito no quadro. O
homem confere o papel que tem na mão. Sacode a cabeça e comenta
com a mulher que por um número o seu filho deixou de ser sorteado.
Ela não esconde o seu desapontamento, pois o menino queria estudar
na mesma escola que o seu primo. Mais um a ficar de fora. Minha
atenção se volta para a avó, não consigo esquecê-la. Será que a sua
neta se tornou uma aluna? Será que ela conseguirá desempenhar esse
papel? Ou será mais uma como eu? A vagar pelos corredores, pátios,
salas, saguão, quadras, sem descanso. A escapar das
responsabilidades pendentes. A fugir dos rótulos. A embaralhar os
sentidos. Aparecendo num período e desaparecendo em outro, sendo
um mau aluno e não sendo, simultaneamente. Imaterial, sem corpo,
desafiando quem queira me identificar. Visível em apenas alguns
momentos e somente por algumas pessoas. Na maior parte do tempo a
carregar um disfarce. Sim, uma fantasia. Um figurino de aluno. Algo
que me torne igual aos demais. Algo que não me destaque. Calça
folgada, tênis desamarrado, casaco comprido, mochila. Algo que
permita me movimentar: ir além ou aquém dos pontos estabelecidos,
atrasar ou adiantar o que querem que eu faça.
Sem querer, a bola que segurava cai da minha mão. Rola pelo
chão. Mistura-se em meio a tantos pés. Não posso perdê-la de vista.
Tenho que seguí-la. Mas, é difícil me deslocar pelo saguão e
acompanhá-la. Aonde poderá ter ido?
146
Sétimo
E, se eu contar que a minha intenção ao chegar não era de
atravessar paredes, nem arrastar correntes, ou usar roupas brancas. O
quê? O professor não sabe dizer o que se passou? Não falou nada para
ninguém? Não registrou nenhuma ocorrência disciplinar? Foi
surpreendido? Perdeu a fala? Não, não foi culpa minha. Eu não fiz
nada, juro. Nem era a minha intenção assustá-lo. Mas, para que eu
entrasse, ele deveria sair da sala. Senão, o interrogatório viria mais
uma vez. O que aconteceu? Não tinha outra alternativa, a não ser
escapar por entre mais um período, mais um exercício, mais uma
redação, mais um trabalho de campo, mais uma explicação, mais um
sorteio... Não poderia deixar de encontrar aquela insubordinada.
Aonde ela foi? Não consigo lembrar o que aconteceu. Será que a
deixei cair do bolso enquanto dançava no convés do Queen Mary? Ou,
talvez, tenha ficado perto da sua piscina? E se ela rolou até um dos
banheiros da mansão Woodchester? Ou entrou na sala vermelha de um
castelo em Lorraine? Será que virou diversão dos fantasmas? Que
importa se eles existem ou não existem, se vivem ou não em casas ou
locais onde morreram ou, se são, de fato almas penadas em busca de
acertar contas anteriores? No entanto, o mais inusitado poderia ter
acontecido. A bola poderia ter entrado numa sala de aula. Tenho que
encontrá-la. Por onde começar a minha busca? Olho à minha direita,
além do saguão, em direção ao corredor. Minha atenção foi atraída por
um grupo de alunos a chutar algo branco e redondo que dava voltas
pelo ar. Eles se empurravam, corriam de um lado para o outro, todos
147
queriam alcançá-la por primeiro. Será que a encontrei? Ou será que
vão me encontrar? Aos poucos consegui cruzar o saguão em direção
ao corredor. Quando, finalmente, me aproximo do local, vi um dos
alunos do grupo colocar algo no bolso, antes de entrar numa das salas
de aula. E, agora? Tinha que seguí-la onde quer que ela fosse. Mesmo
numa aula. Corria o risco de ouvir as perguntas de sempre O que
estás fazendo aqui? Como podes não estar na aula menino? Terei que
chamar os teus pais novamente? Nem sempre quero dar respostas.
Tenho vontade é de escapar das perguntas. É comum não saber o que
dizer. Outras vezes tenho é vontade de fazer perguntas: por acaso, não
vistes uma bola branca? Alguém a encontrou? Podes me avisar se
alguém a achar? De qualquer forma, não dava para ficar muito tempo
no corredor. Mas, como entraria na sala? Se alguém saísse para ir ai
banheiro, poderia aproveitar para entrar... O tempo passava, a porta
não abria. Então, dei uma batida na porta. Nada, ninguém veio abri-la.
Será que não ouviram? Decidi insistir. Antes de bater, novamente,
empurrei para dentro da sala um envelope. Será que até isso
ignorariam? Alguns segundos que mais pareciam séculos se
passaram. Ouço passos... O professor abriu a porta, estava com o
papel na mão. Olhou para os dois lados do corredor, em busca do seu
entregador. Não viu nada. Coçou a cabeça... Levou algum tempo para
se convencer que não havia ninguém. Teria lido o convite? Nesta
altura dos acontecimentos já estava em aula, sentado no fundo da
classe. Será que ele me notaria? Aonde andaria a bola? É ele, sim, é
aquele o colega que a tinha colocado no bolso. Ele está sentado, de
costas para a parede, com algo na mão. Mas, para a minha surpresa,
depois do professor fechar a porta da sala e ficar de frente para o
quadro, aquele mesmo colega atirou uma bola branca no professor.
Por pouco, ela não atinge a sua cabeça. E, agora? Como irei pegá-la?
Mas, nem deu tempo de encontrar uma solução e, bolas e mais bolas
foram jogadas no professor. Bolas de caderno, bolas de papel. O que
pode uma bola? O que podem várias bolas? Quem ficou mais perdido?
O professor inundado pelas bolinhas ou eu sem encontrar a minha em
meio a tantas outras? Quem ficou mais sem graça?
149
Oitavo
E, se eu disser que ao chegar percorri os pátios, os corredores,
as escadas e as quadras da escola, em segundos. Sem cansar, sem ser
visto. Será que vão acreditar em mim? Não me farão mais perguntas?
O curioso é que tive a sensação de não estar sozinho. Parecia estar
acompanhado por alguém, como se estivesse sendo seguido. Senti
uma presença, uma presença imaterial. Querem saber se estava com
medo? Não, de modo algum, isso até era divertido. Estava era
intrigado. Quem estaria me acompanhando em meus percursos? A
mulher de branco? A mesma que me levou a passear pelo Queen
Mary? Acho pouco provável, pois ela não gosta de ambientes
fechados, muito menos de pó de giz misturado a gritos de crianças.
Pelo que sei, ela pertence ao mar, ao vento, aos navios. Quem sabe
uma outra? Uma que foi vista mais de uma vez por aqui. Uma que
também usa branco. Uma cor ligada a pureza, a verdade, ao sagrado.
Como o saber que ela gostaria de encontrar nesta escola. Um saber
imaculado. Idealizado. Capaz de resolver toda e qualquer situação
que surja. E assim, instaura-se uma volúpia pelo saber, por saber tudo
sobre todos O que dizer da cor dos olhos de uma aluna que chegou
atrasada? De um outro que se negou a realizar um exercício por
escrito? E, de uma outra aluna que, aparentemente, dormia em aula?
No entanto, será que tudo o que a escola produz pode ser identificado,
rotulado, carimbado?
150
Só sei que entre fluxos e cortes, idas e vindas, como o
movimento das marés, a escola produz. A passagem entre o não-saber
e o saber não é obrigatória, não está dada de antemão, nem é
automática. É um grande mistério. E a dama de branco, certamente, se
inquietaria ao perceber o que se passa numa segunda-feira. O dia em
que tudo recomeça. Soa o sinal. Alunos das mais variadas séries
caminham pelo corredor. Ao longe, surge uma professora de
Português, grupos de alunos encaminham-se, lentamente, para a sala
de aula. A porta se fecha, três deles correm, riem, não conseguem
entrar em aula. Passam-se 50 minutos, sai a professora de Português,
retornam dois dos atrasados. Chega o professor de Espanhol, mais
outro período de aula, enquanto ele explica a matéria, um bilhete
passa de mão em mão. Uma aluna é excluída da sala. Esta encontra o
colega atrasado que estava fora de aula e saem a caminhar pelo pátio.
Aguarda-se o recreio. Novamente, soa o sinal. Professores andam,
rapidamente, em direção às suas salas. Alunos correm pelo pátio,
outros conversam em círculo, enquanto dois casais de namorados se
abraçam no banco. Ouvem-se gritos para comprar lanche no bar. Uma
auxiliar do Serviço de Atendimento ao Estudante faz um curativo no
braço de um aluno que brigou com outro. Dor, espera, raiva. O sinal
toca mais uma vez. Termina o recreio. Professores com os seus
materiais voltam às suas turmas, os alunos entram em suas salas,
menos dois que depois de saírem do banheiro, tomaram o rumo das
quadras de esporte. Enquanto isso, a professora de Matemática chega
para dar aula. Quatro alunos dela se aproximam, rapidamente, lhe
perguntam: haverá prova? Será que a mulher de branco perceberá que
151
a produção da escola é cortada, cruzada, emaranhada e não um fio,
uma linha reta que se estende entre um aluno e uma matéria?
Embora nas minhas andanças ainda não a tenha encontrado,
dizem que ela não fica muito tempo sem aparecer. Costuma desfilar
pelas salas, pelos corredores, num final de tarde. Enquanto os
professores estão reunidos. Contam que a mulher torce para que as
decisões aqui tomadas sejam pautadas pela racionalidade e o
equilíbrio. Uma vez que da escola flui uma força que provém de
Atena, deusa que nasceu da cabeça de Zeus. Cabeça, a parte mais
elevada do corpo, integra a esfera do mundo superior, relaciona-se
com o céu, com modelos, com a transcendência. Assim como lhe
agrada ver os problemas que surgem na escola solucionados. Será que
todos os problemas são passíveis de solução? Será que verdadeiro
problema dessa escola é uma categoria subjetiva do processo de
conhecimento? Como uma falha de procedimento, uma infelicidade
de não saber algo que desapareceria com o saber adquirido: O
professor de Espanhol avisa que está doente? Quem dará aula para os
seus alunos no primeiro período? O que fazer com os cinco alunos que
não trouxeram o livro e foram excluídos do período de Português?
Será que a mulher de branco viveu aqui? Terá algum acerto de contas a
fazer? Ou alguma responsabilidade pendente? Teria sido vítima de
alguma injustiça? Será que vão acreditar em mim? Será que não falei
isso antes? Será que vão desistir de chamar meus pais?
Voltas e mais voltas pelos pátios, pelos corredores, pelas
escadas e pelas quadras. E nem sinal dela. Da mulher de branco? Não,
152
da bola. Estará no quarto vermelho? Procuro por ela atrás de latas, em
baixo dos armários, na grama, enquanto os outros estão em aula. As
boas almas, ou melhor os bons alunos. Aqueles que desde Platão até
hoje são destacados. Por que são chamados assim? Já li sobre essa
história em algum livro, apesar de não me lembrar do nome, sei que
ela é muito antiga e tem origem na Grécia. Os bons alunos são os
pretendentes bem fundados, garantidos pela semelhança. A
semelhança que aquele filósofo grego se refere não é a de uma
percepção sensível, senão de uma relação interna. Nomeia-se algo na
medida em que se parece a Idéia desse algo. Um bom aluno é aquele
que se parece com a Idéia de aluno. A intenção de Platão era a de
separar os postulantes, distinguí-los. De um lado o puro, do outro o
impuro, de um lado o autêntico, do outro o inautêntico, de um lado o
bom, do outro o mau. Isso tudo para distinguir os modelos (formas)
das cópias (corpos). Ou melhor, separar a coisa mesma e as suas
imagens, o original e a cópia, o modelo e o simulacro/fantasma.
O que fazer com o simulacro/fantasma? Aquele que é
formado a partir de uma dissimilitude, é um farsante, encerra uma
perversão, um desvio essencial. Platão queria assegurar a vitória das
cópias sobre o simulacro, mantê-lo acorrentado ao fundo do mar,
impedir que ele suba à superfície e corrompa tudo. Tanto esforço para
não pensar a diferença em si mesma. No entanto, o
simulacro/fantasma apesar de acorrentado consegue escapar e
aparece em meu quarto, enquanto lia. Ontem, li bastante tranqüilo até
as vinte e duas e trinta. Então faltou luz no bairro. Fui em busca de
velas para continuar minha leitura. Acendi duas delas no meu criado
153
mudo. Deixei a porta do quarto entre-aberta e atirei-me vestido na
cama. Lembro de ter acertado o despertador para às sete horas. À
minha frente, o lume estava alto e, no tapete, provavelmente
adormecido estava o Sultão, o gato de minha mãe. Mais ou menos
meia hora depois, senti um ar extremamente frio passar pelo rosto,
como uma brisa súbita. Imaginei que a porta do quarto que dava para o
corredor se abrira. Mas, não ela continuava como estava. Voltei então
os olhos à minha direita e vi as chamas das velas balançarem com
força, como sob a ação de uma golfada de vento. No mesmo instante o
despertador deslizou suavemente da mesa muito lentamente, sem
que qualquer mão o tocasse e desapareceu. Pulei da cama, olhei o
chão em torno. Nem sinal do relógio.
Não tenho dúvidas de que era ele. Muitos querem evitar a
desordem que ele provoca. Assim como os meus passeios que burlam
os horários, os períodos de aula, os exercícios. Mas, não posso ir para
a aula agora. Quem sabe, depois. Tenho que encontrar aquela bola.
Caminho mais um pouco. Percorro o corredor do andar térreo que,
paulatinamente, vai ficando escuro, silencioso, sombrio. Embora haja
falta de iluminação, sigo caminhando até avistar uma escada em
caracol. Subo por ela até o fim, dobro à esquerda, percorro um estreito
corredor gelado que me conduz a uma porta. Antes de entrar na sala
tenho que pegar uma vela, pois está tudo muito escuro, pouco
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enxergo. Quando vou me aproximar da prancha, ouço vozes. Olho
para trás, para me certificar que não está vindo alguém. Por enquanto,
tudo tranqüilo. Mas, as vozes continuam. Estranho, elas parecem
conhecidas. E, estão vindo do outro lado da porta. Não, não pode ser.
Há mais alguém na sala vermelha? Quem mais sabe da sua existência?
Será que conhecem a sua fama? As lendas que existem a seu respeito?
Entro na sala com a vela na mão. Nesse exato momento, a
chama da vela começa a tremer. Não entendo como, pois não há
corrente de ar. As janelas encontram-se fechadas. Cruzo de fronte o
grande espelho, tenho dificuldade de encontrá-lo, pois está tapado por
um longo pano branco, um lençol. Deixo o aparador para trás, em
direção das vozes. Ao me aproximar da chaminé, bati uma três vezes
nos lambris de carvalho escuro, em busca de uma passagem secreta e
não encontrei nada. Tomei cuidado para não esbarrar na poltrona
coberta de chintz, ao lado da lareira. As vozes me conduzem para
perto da janela. Para o meu espanto, ao chegar bem próximo da
grande abertura ouço nomes.... Joana, Juliana, Júlio. Nomes
conhecidos. O que está se passando? Há mais alguém aqui? Dou mais
alguns passos, a chama da vela tremula. Não acredito no que vejo, ou
no que consigo distinguir na escuridão. São eles, todos eles, sentados
em torno de uma grande mesa retangular. Na parede próxima à mesa,
no alto, encontram-se uma série de fotos. Reconheço alguns daqueles
rostos, outros não. São todos os antigos diretores. Posicionados, lado
a lado, para dar a impressão de uma continuidade. Uma linearidade.
Neste exato momento, a leitura da chamada é interrompida, há uma
discórdia no grupo. Ninguém é capaz de estabelecer a identidade entre
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o que a escola faz e o que diz que faz, entre a aprendizagem e os
aprendizes. Os professores buscam ajustar as experiências a um
modelo pré-concebido e ideal de aprender, o que implica na produção
de um modelo pré-concebido e ideal de aluno. No entanto, uma
professora pede a palavra e diz que para aprender é necessário partir.
Iniciar uma viagem sem que ninguém saiba onde se pode chegar. Fixá-
lo é difícil: ele corre, salta, é ligeiro. Sem deixar o ninho, o sossego, a
segurança do que é conhecido ninguém aprende. Apesar de ser
possível defini-lo: apprehendere, quer dizer tomar conhecimento,
instruir-se, ficar sabendo, ignora-se como ele ocorre. Pois, como todo
o verbo no infinitivo, ele trata de devires ou acontecimentos que vão
além dos modos e dos tempos. Ao terminar a sua fala, a expressão no
rosto dos colegas alternava-se entre a concordância e a ansiedade.
Apesar do seu depoimento, eles voltam a sua tarefa, não conseguem
chegar a um consenso sobre alguns alunos. Em certas disciplinas eles
não faltam às aulas, noutras eles não aparecem. Para alguns
professores eles entregam os trabalhos, para os outros não entregam.
Há provas que eles acertam tudo, noutras, erram muito. Em Artes são
os melhores alunos, mas não fizeram nenhuma redação. A discussão
prosseguia, até o professor decano ter uma idéia. O seu plano consiste
em chamar, sem exceção, todos os nomes. Se bem entendi, cada um
dos chamados deve se submeter a uma prova. A prova do espelho. O
professor se levanta e retira o lençol que o cobria. Um exame
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definitivo, pois há casos de dúvida. Situações embaraçosas em que
eles não sabem bem o que pensar ou que atitude tomar com relação a
certos alunos. Afinal, trata-se de uma patologia ou não? Ele é um
aluno como os demais ou não é? Corresponde a imagem de aluno
estabelecida pela escola ou não? Por isso um espelho, diante do qual
os casos indefinidos deverão se postar. Aqueles que tiverem suas
imagens refletidas de volta, ótimo, estão salvos. Pois, sabem-se quem
são. E, a partir daí, pode-se definir uma estratégia de ação. Mas,
aqueles que não tiverem a sua imagem refletida... devem ser
apartados dos demais corpos, pois podem espalhar a desordem que
subsiste e corrói a ordem escolar. A potência equívoca e múltipla deve
ser aprisionada, contida numa sala fechada chamada de Limbo. Mas,
aprisioná-los até quando? Pergunta outro professor. Até, os pais virem
à escola e tratarem desse assunto.
E, agora? Tenho que sair daqui, antes que seja tarde, antes que
seja chamado para me apresentar na frente do espelho. Antes que
meus pais venham à escola. Ouço alguém se aproximar... Quem será?
A mulher que veste branco? Um professor? Um pai? Um outro aluno?
Uma voz conhecida indaga onde fica a sala vermelha. Será que
alguém irá lhe dizer? O que ele quer aqui? Será que foi chamado pelos
professores? Só sei que, anteriormente, um jovem duque ao cair de
ponta-cabeça nos degraus da escada que conduz ao aposento veio a
falecer. Dizem que foi por causa de uma das minhas brincadeiras. Eu?
Vocês acreditam nisso? Jamais faria uma coisa dessas. Será que os
zeladores não lhe avisaram que não há escola como essa? Nem todos
resistem ao que aqui se passa...
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Afasto-me da janela, tomo distância da grande mesa.
Aproximo-me da porta. Ouço passos percorrem o corredor,
comprido, atravessado por correntes de ar, gelado e empoeirado.
Abro a porta do quarto e vejo as velas de um candeeiro tremularem,
suas sombras tremerem, se agitarem. Vi, bem à minha frente, a
impressão de um pé como que subitamente formar-se. Parei onde
estava. Diante daquela pegada, tão subitamente como antes, fez-se
uma outra. A impressão que tive é que se tratava de um pé descalço.
Mas, de quem? De uma mulher? Eis que a porta do quarto se abre e
alguém despeja um monte de bolinhas para dentro e sai correndo. As
bolas deslizam, chocam-se, fazem barulho. Quero me aproximar
delas, mas não posso. Será que a bola que estou procurando estará
entre elas? Como elas vieram parar aqui? Só sei que elas acabaram
por perturbar a reunião dos professores. Alguns deixaram de lado o
que estavam fazendo, saíram dos seus lugares para verificar o que
estava acontecendo. A essas alturas procuro, rapidamente, por um
lugar para me esconder. Desloco-me para atrás da poltrona.
Abaixado, imóvel, espero que eles não me vejam, não me encontrem.
Daria tudo para chegar nas bolinhas antes deles, mas não havia como.
Só me restava não fazer o menor barulho e observar. A professora de
História foi a primeira a se abaixar e a pegar uma delas na mão. Eis
que ela a atira na direção do professor de Espanhol e solta uma
gargalhada. Seu riso fácil ecoa pela sala. Com a cara de quem não
entendeu nada, sem conseguir pegá-la, o professor observa a esfera
rolar pelo chão, até parar ao lado da poltrona. E, agora será que ele
virá pegá-la? Será que vai me encontrar? O tempo congela. Não sei o
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que fazer. E, se eles me encontrarem aqui? A professora caminha de
volta à mesa, diz para os seus colegas voltarem aos seus lugares, pois
as bolinhas que foram jogadas eram de papel.
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160
Nono
E se eu disser que hoje eu cheguei muito cedo. Não posso
afirmar, exatamente, que horas eram, só encontrei o funcionário da
portaria. Este não conseguia esconder a sua cara de espanto ao me ver.
Até ajeitou os óculos para conferir. Será que fui o primeiro a entrar no
prédio? Inacreditável. Tudo indicava que tinha tempo mais do que
suficiente para caminhar até a minha sala de aula. Deveria ir para lá?
Comecei a me distrair com o barulho dos meus próprios passos no
corredor. Passos arrastados pelo sono a quebrar o silêncio. Sim, dormi
pouco, fiquei rolando na cama de um lado para o outro. Não conseguia
dormir. Não conseguia parar de pensar que depois de amanhã é o
grande dia. O dia do Conselho Participativo. Aquela manhã em que
tenho que sentar com os meus professores para conversar sobre o meu
desempenho no trimestre. Sim, falar com todos eles. Sozinho, frente a
frente, com cada um. Só em pensar naqueles olhares sobre mim, um
calafrio percorreu o meu corpo. Como se cada um deles medisse a
distância que estou do aluno ideal. Aquele que é assíduo, pontual, faz
perguntas, interage com os colegas, entrega os trabalhos em dia, vai
bem nas avaliações. Cada um deles a me mostrar uma falta ou quem
sabe, um excesso. Falta de estudo, falta de participação, falta de
trabalhos entregues. Ou excesso de faltas, excesso de atrasos, excesso
de passeios, excesso de perguntas, excesso de participação oral,
excesso de lentidão. Virava-me na cama, de um lado para outro,
pensando no que dizer para eles. Por que tenho que me justificar? Não
será melhor não dizer nada? Sentar, ouvir e não falar. Não dizer nem
161
sim nem não. Não mover nenhum músculo. Confundir-me com a
mobília da sala. Ou quem sabe, não parar de falar? Atordoá-los com as
minhas justificativas. Para cada um deles contar uma história
diferente? Aquela que eles querem ouvir? Aquela que confirma o que
eles pensam a meu respeito? Ou uma outra que os deixam intrigados?
Professora eu estava doente, por isso não entreguei o trabalho. O
atestado médico? Sim, eu sei que deveria tê-lo trazido, mas ao sair de
casa, na pressa, o deixei sobre a mesa da sala. Professor eu não fiz a
sua prova, pois tive que viajar para o interior. Meu que morava em São
Luiz Gonzaga faleceu e fui acompanhar a minha mãe no enterro. Não
poderia deixá-la sozinha nessa hora. Acho que entendes a minha
situação, não? Professora na quinta-feira da semana passada eu
cheguei em casa exausto. Cansado depois de ter corrido ao longo de
duas quadras dos assaltantes. Dormi demais e não acordei a tempo de
vir fazer a avaliação. Sim, naquele dia ao sair da escola fui perseguido
por dois marginais. Felizmente, eles não conseguiram me pegar pois,
parei num posto de gasolina. Foi a minha sorte. Ou, quem sabe, não
deva ir ao Conselho? Ou, então, seja melhor chegar atrasado e não
conversar com todos os professores? Depois de imaginar não sei
quantas maneiras de participar do Conselho, acabei dormindo. Talvez
tivesse sido melhor ter ficado acordado. Pois, assim que fechei os
olhos, três homens vieram à minha cela e a destrancaram. Dois deles
eram carcereiros, o outro era o padre Francisco, amigo de infância da
minha mãe. Após um aperto de mão rápido e forte, ele tentou me
explicar como conseguiu estar aqui, como foi que o deixaram
substituir o capelão da cadeia, mas não entendia nada. Só lembro que
ele trazia uma pequena Bíblia na mão, com o indicador marcando a
162
página. Quis lhe dizer alguma coisa, mas tive receio de gaguejar, de
não encontrar as palavras apropriadas. O guarda habitual da galeria,
um sujeito imenso, bronco e gentil, sacou do bolso uma pequena
garrafa de whisky e me ofereceu um gole. De olhos fechados, dei um
longo gole na bebida. Afinal, num momento desses não havia risco de
virar um hábito. Tinha a esperança que com o tônico para os nervos, a
coisa toda seria mais fácil. Dos sete apenados, apenas três disseram-
me palavras de despedida. O Juca que matara um carcereiro ao tentar
fugir da prisão, o Beto um assaltante de bancos que liquidara um vigia
e Tonho que assassinara a namorada e os dois policiais que foram
capturá-lo. Os demais permaneceram mudos em suas celas.
Obedeciam a hierarquia do crime. Aquele que mata a céu aberto, que
abate seu inimigo no ardor do combate, nutre desprezo pelas
variedades humanas de ratos, aranhas e cobras. Todos sabiam que era
quase oito horas. O horário em que eu iria para a cadeira. Quando
estava saindo para o corredor da morte tive um lampejo. As
testemunhas, os espectadores, os preparativos para a execução,
adquiriram uma aura de irrealidade. Num lampejo, tive a sensação de
que estavam cometendo um terrível engano. Por que deveria ser
amarrado à cadeira? O que havia feito de errado? Nada me ocorria
além de ter tirado o conceito D em quatro disciplinas, de ter matado
vários períodos de aula, de ter tido vários atrasos. Nos breves
momentos em que atavam as correias, fui sacudido. Mais de uma vez.
Depois, vieram os chamados: acorda, vamos! É hora de saíres da
cama. Não ouvistes o despertador tocar? Fazia muito tempo que não
ficava tão aliviado ao ver o rosto da minha mãe. Tive vontade de lhe
dar um beijo, mas ela já havia deixado o quarto. Aliviado por acordar
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levantei. Acordei para entrar num ônibus lotado, chegar até aqui,
caminhar pelo corredor e estranhar. Em meio ao silêncio, ouço algo. O
que será? Alguém me acompanha? Estarei sendo observado? Por um
instante paro, olho para trás, depois para os lados e nada. Não vi coisa
alguma, estava só. Não havia mais ninguém por aqui. O que poderia
ser? Os meus próprios passos? O som deles retornava para mim e me
assustava. O vazio me apavorava. E, agora? O que fazer quando
ninguém me observava? Como cruzar pelo corredor sem me
disfarçar? O que mostrar? O que viria a tona? Que passos eram esses?
Meus? E não o dos outros? Dos que, geralmente, me circundam, dos
que auxiliam a me disfarçar? Dos que organizam o modo como posso
aparecer? Os que estruturam o meu espaço? Os que me mostram o
meu grau de liberdade, o quanto posso me distanciar, sem me
destacar- mais ao fundo da sala, à esquerda. Atrás daquele trio que
não pára de rir e conversar. Ou que sabe, é mais seguro ficar à direita,
na penúltima classe, atrás da aluna mais alta da turma e não tirar o
material da mochila, nem abrir a boca para nada? Daqueles que,
normalmente, sabem aonde vão o próximo período é o de
Matemática, vem depressa. Vem comigo tirar um xerox desse
polígrafo enquanto o professor não chega. Depois que ele fechar a
porta da sala não adianta pedir, ele não vai deixar sair. Assim como a
professora de História, o último período. Meus colegas me convidam
para chegar e sair, ir de um ponto ao outro. Mas, como lhes explicar a
minha falta de rapidez? Mesmo na lentidão, embora os professores
não permitam, é possível fugir dos pontos, escapar pela diagonal.
Mas, não para fazer xerox, é claro. Ir para muito longe, em busca de
uma formação estranha que surge numa lareira em Balmez de la
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Moradela. Ninguém sabe muito bem o que é. E isso me diverte.
Assustado, o dono da casa a destruiu e colocou cimento em seu lugar.
Uma semana depois, manchas reaparecem no chão. A lareira foi
reconstruída e em poucas semanas, imagens de rostos voltam a
aparecer. Todos ficam assombrados, ninguém consegue provar que é
uma farsa, mas também não sabem explicar do que se trata. Sem me
dar conta, ainda sentido o cheiro de brasa nas mãos, entrei na minha
sala de aula. A sua quietude me inquieta. A falta de gente me expõe.
Não posso ficar aqui. Sem aqueles que ocupam o centro da sala, o alvo
das atenções, dos olhares, a fim de que possa circular pela sua
periferia. Necessitava, urgentemente, de proteção. Larguei minha
mochila sobre a classe e decidi dar uma volta. Cruzei pelo saguão, saí
pela porta principal em direção a casa de força. Um lugar onde posso
descansar, onde posso respirar, onde posso retocar o meu disfarce,
sem ser interrompido com perguntas inúteis. Sentei na grama,
encostei minhas costas na parede da construção, a fim de aguardar. Só
me restava esperar até que o pátio ficasse cheio de gente. Até que eu
pudesse me misturar em meio a eles. E sumir. De repente, não estava
mais sozinho. Raios de sol vieram me fazer companhia e começaram
a me esquentar. Não me incomodo, eles não fazem perguntas. Fecho
os olhos. Respiro fundo. Mais uma respiração profunda. Afasto-me
do pátio. Aguardo na minha cela, na ala dos condenados. Por
enquanto estou só, mas disseram que logo virão mais. Na semana
passada, alguns foram levados. Distraio-me com uma formiga que
tenta escalar uma folha de papel em branco. Barro o seu caminho com
um envelope. Observo o contorno que ela é obrigada a fazer. Um
inseto minúsculo, mas persistente. Creio não estar muito distante da
165
sala vermelha. Às vezes, no fim da tarde de quarta-feira, é possível
ouvi-los discutindo. Sim, há reuniões em que eles discordam. O aluno
G. acompanha as aulas, é inteligente, mas não quer escrever, deve ter
alguma patologia, alguma doença... O G. não, não pode ser ele.
Comigo ele não fala, mas escreve. Entrega os trabalhos. É, mas para
mim ele é um turista. Quando aparece em aula até faz alguma coisa. O
que fazer com o G? Sem falar na M. aquela menina é muito estranha.
Na minha última aula, sem mais nem menos, ela soltou um grito.
Ninguém entendeu nada. Aparentemente, nem ela. Não sabia explicar
a sua atitude. Não entendo, pois não havia se machucado. A M.? Nas
minhas aulas ela é tão calma. Até demais. Têm vezes que ela se
debruça sobre a classe por um longo tempo. Não faz nada. Nem
parece que está ali. Depois, ela se levanta. Caminha um pouco pela
sala e volta a sentar. Não entendo o que se passa com a M. Sem mais
nem menos, solta umas gargalhadas no fundo da classe. Para dali a
alguns minutos estar brava, agressiva com os colegas. O tempo
corria, eles discutiam, argumentavam e não chegavam a nenhum
consenso. Até um professor ter a idéia de aplicar um teste derradeiro.
Fui colocado de fronte a um grande espelho na sala vermelha para ver
se a minha imagem refletida era clara. Se fosse nítida, poderia ser
classificado. Alguma coisa, uma ação poderia ser desencadeada, a
partir de então. Mas, para a minha surpresa e a dos demais, nada
apareceu de volta quando parei na sua frente. Depois de conversarem
mais um pouco, decidiram me dar mais uma chance. Após limparem o
espelho fui, novamente, colocado na sua frente e o resultado foi o
mesmo. A minha imagem não apareceu de volta. Como se eu não
tivesse um corpo. Uma identidade. Por isto estou aqui. Na sala do
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Limbo. Um mundo à margem do mundo. Onde ficam os alunos que se
situam entre a normalidade e a anormalidade, os desvios. Aqueles que
ninguém sabe que nome dar. Nem o que fazer. Até ser chamado para o
derradeiro momento. Quando o estalido do ferrolho de aço da porta do
final do corredor for ouvido. Já vi três serem levados para o seu
destino: um enlouquecido, debatendo-se como um lobo preso numa
armadilha; outra não menos fora de si, elevando louvores e glórias aos
céus, um terceiro, prostrado e agarrado a sua mochila. Ouvi um
barulho. A porta ao lado da minha cela se abriu. Mais uma alma
chegou para ocupá-la. A sua porta voltou a se fechar. Quem foi pego?
Quem estará ao meu lado? Por uns momentos não ouço nada, só
silêncio. De repente, algo começa a picar no chão. Será que a
encontrei? A bola do sorteio? Será que durante toda a minha procura
sempre esteve com o colega ao lado? Preciso descobrir, encontrar um
modo de me comunicar com o meu vizinho. Sim, eu tenho papel e
caneta. Posso lhe enviar um bilhete. Fui até a minha mesa. Sentei,
baixei a cabeça, ia começar a escrever quando bateram em mim. Dei
um pulo. O que foi que houve? Num impulso, atirei seja lá o que fosse
para bem longe. Em seguida, vieram os risos. Não entendia mais nada.
Apenas vi os meninos correrem atrás da bola de vôlei que escapou da
quadra e veio parar aqui.
167
Décimo
E se eu contar que hoje não cheguei à escola nem cedo nem
tarde. De fato, entrei com a maioria dos alunos e professores no
prédio. Estava confortável entre eles, procurava caminhar nem muito
rápido, nem muito depressa. Não ficar aquém nem além da
movimentação dos colegas e professores. Não chamar atenção sobre
mim. Aprendi que andar na média me protege. Evita qualquer tipo de
pergunta. Principalmente, as conhecidas, as de sempre, as que me
fixam nos pontos. Tratava apenas de seguir o fluxo dos passos que me
circundavam. Uns mais rápidos, outros mais lentos, uns mais leves,
outros mais pesados, a se misturarem com os meus. De modo que era
difícil distinguí-los. No entanto, ao cruzar o saguão, fiquei paralisado.
Pois, a partir dali, os passos tomavam múltiplas direções. Não havia
um caminho único. E, sim um cruzamento. Para onde deveria ir? Que
rumo tomar? Acompanhar o fluxo dos que vão para a sala de aula, para
o bar, para o pátio, para as quadras, para os banheiros? Ou circular por
todos esses lugares? Fiquei parado enquanto a resposta não vinha. Foi
então que comecei a ouvir gritos e risadas, não de muito longe. Gritos
repetidos: abre, abre! Olhei para os lados. Percebi que o som vinha da
esquerda, na direção do corredor. De onde estava, vi uma
aglomeração de alunos em pé com as suas mochilas, enquanto os
demais entravam e saiam das outras salas. Desloquei-me para lá.
Antes mesmo de chegar no local e saber o que se tratava, tive a certeza
que a confusão incluía os meus colegas. Reconhecia aquelas vozes, os
risos, os gritos de qualquer distância. A maior parte da turma estava do
168
lado de fora da sala. Ninguém podia entrar. Como, também, não se
sabia como a chave da porta não fora encontrada. Por enquanto, só
restava aguardar o resultado do encontro dos representantes da turma
com o funcionário da portaria. Este após conversar com os alunos,
fora chamar o vice-diretor. Nesse meio tempo, bateu o sinal. O
professor de Ciências chegou e avisou ao grupo que não havia
nenhum problema, pois a aula estava planejada para acontecer no
laboratório. Com aquelas palavras a espera, os risos, os gritos, a
indefinição, terminou e começou o deslocamento. Pois, para se
chegar ao laboratório, há que atravessar o saguão e alcançar o outro
lado do corredor. Novamente, tive o cuidado de acompanhar o grupo.
Meus passos quase não podiam ser ouvidos, pois se confundiam com
os demais. Ao chegar no laboratório aconteceu o inevitável. Mais uma
espera. Não era a chave que faltava. Ocorre que só entraríamos na sala
antes de ouvirmos os avisos do professor não correr pelo laboratório,
sentar em grupos de cinco, colocar as mochilas no chão, não mexer
em nenhuma substância química sem a sua autorização. No início,
tentei prestar alguma atenção ao que era dito, algumas vezes, dirigia o
meu olhar em sua direção. Principalmente, quando achava que ele
estava olhando para mim. Mas, depois de algum tempo, o tom
monocórdio da sua voz tinha o efeito de igualar tudo o que ouvia. As
suas palavras foram se distanciando, se afastando, mais pareciam
169
ruídos ao fundo. Ou era eu quem submergia, afogado num mar de
explicações e observações? Não, não se tratava disso. Não sucumbia
no mar, pois este é revolto. E, sim em águas paradas. Na falta de uma
bóia, desliguei-me das suas palavras. Uma questão de sobrevivência.
Continuava em meio ao grupo, próximo à parede. Estava ali e não
estava ali, ao mesmo tempo. Quando me dei conta escalava a parede.
O meu equilíbrio era fantástico. Podia andar na horizontal sem cair.
Como era possível ter passado por aqui incontáveis vezes e não ter
percebido aquelas linhas? Comecei a percorrê-las. Quem sabe
poderiam me tirar dali? Primeiro no sentido vertical, depois no
horizontal. Só então notei que elas ao se encontrar formavam
pequenos quadrados. Socorro, socorro! Estou preso num cubículo.
Do lado de fora do banheiro eles riem, dão gargalhadas. Começo a
passar mal. Um ataque de claustrofobia? E, agora? Aonde é a saída?
Pelo amor de Deus! Uma saída. Começo a me abanar, a suar frio.
Preciso sair dessas quatro paredes. Eles me trancaram aqui! Botaram-
me de castigo, só por que erro todas as bolas. É que eu não sei jogar.
Dizem que eu enterro o time. Preciso sair dessa forma que me limita,
me imobiliza. Cada um dos seus lados liga-se a um elemento da
natureza: água, fogo, ar e terra. Examinava cada um deles em busca do
ar. Qual deles seria? O elemento que poderia arrastar com o mural, os
avisos e as substâncias do laboratório. O professor continuava falando
e eu comecei a analisar as peças. Não só isso, eu me pus a contá-las.
De onde estava até o mural havia umas quarenta. Poderia saber o
número exato se a colega ao meu lado não tivesse me empurrado.
Como não tinha certeza, refiz minha soma. Para ser mais preciso,
eram umas quarenta e oito em cada linha. Isto, na horizontal. Mas,
170
quantas linhas existiam do mural até o chão, no sentido vertical? Ao
recomeçar a contagem, sinto uma leve batida em meu ombro. Antes
mesmo de adivinhar quem seria, uma voz me perguntou o que estava
esperando para entrar na sala. De repente, percebi que no corredor não
havia mais ninguém, além de mim e o professor. Estava,
completamente, desprotegido. Meu disfarce caíra, sem perceber.
Todos os demais colegas já haviam entrado na sala. Era melhor não
lhe responder nada, esconder minha pouca vontade de entrar na sala.
Fiquei calado, rapidamente, peguei a minha mochila do chão e sentei-
me numa mesa onde havia lugar. Estava no fundo do laboratório, com
várias delas na frente, distante da mesa do professor. Mesmo assim,
tirei da mochila uma touca e a enterrei na cabeça para que ele visse só
um pouco da minha testa. A fim de que restasse alguma dúvida. Se a
mantivesse exposta, quem sabe, corria o risco de ser classificado pela
sua forma. Se for mais larga, pode ser de um indivíduo espiritual, com
pendor para o sacerdócio. No caso de ter um sulco acima da
sobrancelha, o seu possuidor pode sofrer uma morte violenta. Se a
fronte possuir um profundo sulco na sua parte superior, cuidado. O
sujeito pode sofrer um ferimento na cabeça. Fonte alta e arredondada
caracteriza um sujeito conciliador e bem sucedido. Sem falar no pior
171
dos casos. A fronte mostra idiotia se tiver, no meio e em baixo, uma
concavidade de forma alongada, ainda que pouco visível. Existem
livros sobre isso. Aqui mesmo, na biblioteca da escola. Quem sabe,
ele também não os leu? Será que deles não faz uso quando está com
dúvidas em avaliar algum de nós? Posso até vê-lo consultando o livro,
em sua sala, quando não consegue lançar os conceitos na planilha. No
momento que tem dificuldade em dizer se o aluno ficará com C ou D.
Enquanto arrumava a touca na cabeça, as instruções da experiência
eram dadas. Cada grupo deveria misturar as duas substâncias
químicas que recebera num tubo de ensaio e observar o que
aconteceu. O tempo de reação das substâncias. Depois, repetiríamos a
experiência usando um catalizador. Após o grupo chegar as suas
conclusões, cada aluno deveria entregar, ao final do período, o seu
relatório. Enquanto o meu grupo discutia a fim de decidir quem
misturaria o que, eu balançava o meu corpo na cadeira. Para frente e
para trás. Quando me lançava para frente, perdia o professor de vista.
Quando voltava para trás, tinha o cuidado de localizá-lo. Queria que
ele me visse sentado como os demais. Os impulsos repetidos que dava
com o corpo foram se intensificando, me tiraram do laboratório. Não
estava mais respirando substâncias químicas, mas o ar puro do
parque. Encontrava-me cercado por árvores, pela gangorra, pelo
escorregador e a caixa de areia. Embalava meu corpo no balanço.
Muito mais do que correr com as outras crianças, era disso que
gostava. Não sentia o chão sob os meus pés, flutuava, entre o céu e a
terra. Zona de vertigem. Ninguém entendia muito porque eu ria
172
sozinho ao me embalar. Muito menos, porque eu não aceitava os
convites para jogar bola. O balanço não podia parar, dei mais um
impulso, fui um pouco mais alto. Ainda não estava bom, ainda não
sentia um frio percorrer a minha barriga, dei mais um impulso e caí.
Antes mesmo que tivesse me ajeitado na cadeira, o professor já estava
do meu lado. Com uma fisionomia de indignação. Nem perguntou se
eu havia me machucado. Queria saber porque o meu material
continuava na mochila. E quando eu ia lhe entregar o relatório.
Relatório? Então, comecei a explicar o que havia ocorrido na
experiência. Falei dos tempos da reação das substâncias com e sem o
catalizador. Alguns colegas fizeram perguntas ao professor. Ele lhes
disse que perguntassem a mim. Para o seu espanto, calmamente, lhes
expliquei. Soube lhes responder. Talvez, nem o livro das fisionomias
possa auxiliar o professor a entender o que se passou.
173
Mapa dos percursos
174
Caminhos
Turim e a Piazza Castello, o rio Pó, a margem esquerda e a
direita da ponte Vittorio Emanuele II, a Piazza San Carlo, a estação de
Porta Nouva, a via Carlo Alberto, a livraria Loescher, o Teatro
Carignano, o café Nazionale. Pontos geográficos que ligados pela
conjunção E formam um roteiro de Nietzsche por aquela cidade.
Acompanhado por sua sombra e um bloco de notas, o viandante não
apenas gastou o solado das suas botas dobrando esquinas, protegeu-se
da chuva nas arcadas prédios setecentistas, deliciou-se com o sabor
dos sorvetes nas confeitarias. O ar ameno e seco da cidade, a
proximidade dos Alpes, o tom alaranjado dos prédios, os desenhos das
calçadas de pedra agiram sobre ele. Nietzsche e Turim como tudo
no universo, uma questão de encontro. Sem dúvida, um bom
encontro. Uma reunião de elementos heterogêneos a agir e a reagir
entre si, a proliferar. Entre uma leitura e outra. Entre a escrita de uma
carta e outra. Entre um banho de água gelada e outro Nietzsche
caminha. Pensamentos impulsionados pela repetição dos seus
passeios por Turim. Trabalhava apenas algumas poucas horas. Pois,
ler e escrever forçava sua fraca vista. E, ao andar não apenas seu corpo
se movimenta, o seu pensamento adquire velocidade. Ao seguir pelas
ruas e calçadas de Turim, Nietzsche explora territórios. Não apenas
em extensão. Horas e mais horas a percorrer caminhos que o levaram
bem longe da doença, da falta de dinheiro, dos amigos. Pés e olhos
agenciados o conduziram muito além si mesmo, das suas mazelas,
conectaram-se com a máquina escolar. Muito embora ele tenha
175
recusado o convite do amigo Rohde para voltar a escrever sobre a
Educação. Há anos afastara-se da Universidade da Basiléia, do meio
acadêmico e das discussões educacionais. Naquele momento, estava
mais ligado à música. Motivos não faltaram para recusar aquele
pedido. Mas o inevitável aconteceu. Enquanto caminhava escrevia
em sua mente. Pois, como filósofo, constantemente experimentava,
assaltado pelos seus próprios pensamentos como que do exterior. De
repente, sentado no Teatro Carignano não era mais a cigana Carmen
que ouvia, mas o grito de Josefina que desconcertou os colegas, a
professora, inclusive ela própria. Naquele instante, todos deixaram a
sala de aula e foram para outro lugar. Nietzsche é invadido por
pensamentos que não tinham intenção de falar sobre a máquina
educacional, de julgá-la, mas de seguir seus movimentos. A operar
integrações sobre substâncias qualificadas (alunos, professores,
funcionários, pais) e funções finalizadas (educação). Movimentos
que não formam um saber acabado, mas fendido. Pois, nunca se vê
tudo o que se diz, nem se diz tudo o que se vê. E, assim, com rupturas,
com a não correspondência, outros saberes são produzidos que
colocam em questão qualquer idéia previamente construída sobre
eles. Não lhe interessava chegar nos pontos, nas marcas estabelecidas
do seu funcionamento e sim, o que acontece no caminho. E, ao seguí-
lo, surgem linhas que extrapolam os planos de ensino, os livros
didáticos, os textos, as planilhas de rendimento escolar. Os caminhos
de Nietzsche e os do agenciamento escolar passam a se cruzar,
interferem-se reciprocamente. Surge uma multiplicidade de linhas
que não forma um todo. Até que numa noite, volta-lhe em sonho, o
pensamento abissal do eterno retorno. Momento divisor de águas,
176
pois não se trata de uma teoria física, mas de um modo ético de viver.
E ele passa a dizer sim a tudo o que lhe acontece, de grande e de
pequeno, de oportuno e inoportuno, de alegre e triste. Como também,
em seus devaneios, passa a dizer sim à repetição dos movimentos da
máquina escolar. Uma vez que não há escola melhor, perfeita, em
algum outro lugar, ou mesmo no além... Em seus pensamentos
passou a afirmar o seu funcionamento, sem nada excluir, nem um
momento sequer. Amor fati.
177
Repetição
Uma escola e seus espaços
O saguão, a portaria, os corredores,
A rampa, as salas de aula, a sala da direção,
A biblioteca, o pátio, os banheiros,
As quadras de esporte, o bar
Uma escola e seus movimentos
O primeiro, o segundo, o terceiro período, o recreio,
O quarto, o quinto período do turno da manhã,
Um ciclo a se repetir de março a dezembro,
Inverno ou verão,
Chova ou faça sol
Uma escola e seu corpo
Os professores, os alunos, os funcionários, os pais
Os Conselhos de Classe do primeiro, do segundo, do terceiro
trimestres,
Mas, por mais que repitam,
Nada é igual a coisa alguma
Um corpo sem órgãos sempre se produz
Ei-la, de novo, sem dúvida hão de pensar. Uma vez mais a
escola retorna como tema, como matéria. Por certo, não será a última
178
vez que isto ocorre, quem sabe a penúltima... Algo se passa entre a
primeira e a última, alguma coisa nesse intervalo insiste, quer passar.
Afinidade por estar no meio, em pleno funcionamento das coisas, no
turbilhão, no olho do furacão, longe das margens, dos limites, das
fronteiras, de qualquer início ou fim. Onde o pensar é chacoalhado,
forçado a deixar de reconhecer, de identificar, de nomear, o que a
escola produz e adquire velocidade. Cinco dias na semana, de março a
dezembro, alunos, professores, pais e funcionários, deslocam-se em
sua direção. E, ao chegar, repetem muitos caminhos dentro do mesmo
espaço. Alguns deles são, aparentemente, conhecidos, outros nem
tanto. Pois, muitas vezes, percorrem caminhos imprevisíveis dentro
dos previsíveis. Mesmo sem sair do lugar. De antemão, pode-se
pensar que não há nenhuma novidade em tamanha repetição, nada
além da produção dos alunos aprovados e dos reprovados. Todo o dia
aquela mesma e inalterável seqüência: às oito horas começa o
primeiro período, passam-se mais dois até às dez quando inicia o
recreio e daí, só faltam mais dois, até às doze horas e dez minutos,
quando finda o turno da manhã. No entanto, nunca se sabe,
exatamente, o que vai passar, ou o que vai passar exatamente.
Acompanhar os movimentos repetidos de professores, alunos
e pais, não significa apenas traçar linhas retas que ligam um ponto ao
outro dos marcos estabelecidos do funcionamento escolar. Há uma
potência própria da repetição. De repente, surgem linhas que fogem
do conhecido, do esperado, a escapar do pensamento
representacional. Isso significa romper com a lógica binária da
verdade e da falsidade, do acerto e do erro, do recuperável e do
179
irrecuperável, do atrasado e do adiantado, do normal e do anormal. A
repetição mecânica dos gestos como caminhar pelos corredores,
dirigir-se para a sala de aula, abrir a porta da sala de reuniões, encobre
algo mais profundo. Uma repetição de dissimetria que se oculta nos
efeitos simétricos, a repetição do Outro sob a repetição do Mesmo. É
preciso que aqueles gestos se repitam incessantemente, diferenciem-
se de si mesmos e produzam algo novo. Repetição que forma e
deforma os corpos produzindo um desmoronamento do espaço
representativo. A capacidade de representar pressupõe uma
identidade no conceito, duas coisas são entendidas como idênticas
somente se elas coincidem num conceito idêntico. É disso o que trata
o prefixo RE: a forma conceitual do idêntico que aprisiona a
diferença. E, facilmente, o que a escola produz passa a ser rotulado,
carimbado. Será que tudo o que se produz naquele constante ir e vir,
entrar e sair de salas, pode ser representado?
Os trajetos de alunos, professores e pais pela escola
assemelham-se a um campo de forças composto por fios que prendem
ou liberam passagens. Algo rompe o previsto, o esperado, a
dissimetria se repete. Nem sempre se pode classificar, enquadrar,
acomodar o que se vê. O pensamento corta os fios que o conduzem ao
exercício representativo para seguir os que traçam a experimentação.
E uma linha diagonal pode ser traçada. Aquela que liga o percebido ao
que escapa à sua percepção frontal. Não se vai mais de um ponto a
outro. Os pontos estão subordinados aos trajetos. Uma outra maneira
de estar no espaço, de ser no espaço, de pensar. Trata-se das
singularidades de uma matéria ou material aos quais não se tenta
180
descobrir a forma. Real ou imaginário, mente e corpo, objetivo e
subjetivo, atual e virtual. Impossível dizer o que é uma e o que é outra.
Há, tão somente, o traçado de uma linha que se bifurca e não pára de se
bifurcar. Surge um mundo onde a identidade se perde, onde não há
mais identidade do Uno e unidade do Todo, porém uma multiplicidade
intensa e o poder de se metamorfosear.
181
182
Muitos
Da parada do ônibus ao portão da escola, do saguão para o
convés do Queen Mary, do pátio para um castelo em Lorraine, da sala
de aula para uma mansão na Escócia. Ou seria da parada do ônibus ao
saguão, do saguão ao pátio, do pátio à sala de aula? Estes pontos
formam um único roteiro? Alguém, realmente, perambulou por todos
esses lugares numa manhã? Caminhos reais ou imaginários?
Verdadeiros ou falsos? Trajetos percorridos numa escola por um
único aluno, ou por vários? Um só percurso a se bifurcar, ou mais de
um a se misturar? Afinal, aquele aluno que não se sabe o nome chegou
ou não atrasado ao primeiro período da manhã? Não é possível
responder a nenhuma destas perguntas. O que importa é que algo
acontece da parada do ônibus a escola, do pátio ao saguão, do saguão
ao corredor, do corredor a sala de aula. Percursos reais ou imaginários
a sacudir as certezas, as convicções, os saberes estabelecidos na
escola.
De fato, não se sabe bem do que se trata, nem quem é. Mais
parece um espectro a rondar a escola. Embora pelos seus caminhos
não arraste correntes, nem atravesse paredes. Quando surge, perturba
os sentidos e o reconhecimento. Pois, assim como aparece,
desaparece. É e não é um aluno. Participa e não participa das
atividades escolares. Atrasado e adiantado. Muito e pouco. Ativo e
passivo. Ao misturar-se aos outros corpos, aparentemente, é como os
demais, pois é hábil em se disfarçar. O próprio movimento de
183
estabelecer a identidade entre o que se ensina e o que se aprende, entre
a produção e o produto da escola, faz surgir algo indiferenciado de
difícil distinção. Ao seguir os seus múltiplos caminhos outras
verdades passam a ser afirmadas sobre o que é um aluno que colocam
em questão qualquer idéia previamente construída sobre ele.
Quem sabe, não seria mais coerente respeitar essa potência
desestabilizadora e não nomeá-la, acompanhar os seus passeios pela
sala vermelha, pelo convés do Queen Mary, mantê-lo no limbo,
perpetuar o seu mistério? Mas, como isso prejudicaria a expressão,
decidiu-se tomar emprestado de Deleuze o termo
simulacro/fantasma. Aquele que ao rondar pela escola, ao andar pelos
seus corredores, pátios e salas, trilha outros caminhos que não os pré-
determinados. Mesmo que não saia do lugar. E, ao percorrê-los,
afronta o modelo de aluno, de aula, de aprender. Os seus movimentos
dão origem a uma outra coisa, uma cópia sem semelhança. De modo
algum, trata-se de uma cópia degradada, de uma imitação grosseira.
Mas, de uma potência positiva ao negar tanto o modelo como a
reprodução. A cópia possui uma semelhança interior com a idéia da
coisa, mas o simulacro/fantasma não. Por isso ele assusta,
desacomoda, mesmo que não arraste as correntes, atravesse paredes,
ou vista-se de branco. Pois, ele tem o poder de afirmar o falso, através
da produção de caminhos simultâneos e de abalar as verdades
estabelecidas sobre o aprender.
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