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Universidade Federal do Rio Grande Do Sul
Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
Deficiência mental como produção social:
uma discussão a partir de histórias de vida
de adultos com síndrome de Down
Maria Sylvia Cardoso Carneiro
Porto Alegre, abril de 2007
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Maria Sylvia Cardoso Carneiro
Deficiência mental como produção social:
uma discussão a partir de histórias de vida
de adultos com síndrome de Down
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Educação.
Orientador: Prof. Dr. Claudio Roberto Baptista
Porto Alegre, abril de 2007
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Para meus inseparáveis companheiros de jornada,
Vítor e João, que foram aprendendo
a reorganizar a vida para acompanhar meus movimentos.
AGRADECIMENTOS
Há muitas pessoas que participaram de maneira especial durante esta caminhada, e
é a elas que quero agradecer por mais essa conquista.
Inicialmente ao meu orientador, Prof. Claudio Baptista, pelos múltiplos
aprendizados e pela presença constante durante esses últimos quatro anos de convivência.
Aos amigos e familiares que apoiaram minha decisão de fazer o Doutorado, em
especial aos que estiveram mais próximos: Murilo, Titi, Juliana, Fernando, Tiago, Lucena,
Rosalba, Maria Helena, Francisca, Beto, D. Benta, Scheilla, Tuca, Maria José... Valeu a
torcida!
Às colegas do NEPIE/UFRGS, pelo carinho, pelos momentos de troca e
cumplicidade, fundamentais numa empreitada como essa, ainda mais quando se está longe
de casa.
Aos funcionários do PPGEdu, sempre atenciosos e acolhedores, em especial ao
Eduardo e à Mary.
Ao Prof. Miguel López Melero e à Profª. María José Parages López, pela acolhida
amorosa a mim e aos meus filhos em Málaga.
A Ivan, Paula e León, pela confiança que depositaram em meu trabalho, e pela
intensidade com que expuseram suas histórias de vida com suas lutas, conquistas e
fragilidades.
Ao Sérgio Meira (Soma), que com sua sensibilidade e seu olhar atento, editou e
revisou todo o trabalho, contribuindo com valiosas sugestões.
E, finalmente, à CAPES, pela concessão das bolsas de estudos que possibilitaram a
realização desta pesquisa.
SUMÁRIO
RESUMO 06
RESUMEN 07
ABSTRACT 08
1 PONTOS DE PARTIDA 09
1.1 Situando a pesquisa 09
1.2 A educação de sujeitos com história de deficiência 14
1.3 Diferentes olhares sobre a deficiência mental a partir de Jean Itard 19
1.4 O conceito de deficiência mental hoje 23
2 VIGOTSKI, A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL E OS
ESTUDOS DA DEFECTOLOGIA: OUTRAS POSSIBILIDADES
DE COMPREENSÃO DA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO 29
2.1 O contexto histórico e cultural 30
2.2. A abordagem proposta por Vigotski 32
2.3. Os estudos da Defectologia 37
2.4. A deficiência mental como produção social 46
3 AS HISTÓRIAS DE VIDA COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA 49
3.1 O uso de métodos narrativos na pesquisa sobre deficiência mental 51
3.2 A construção da amostra: o perfil dos sujeitos 55
3.3 As entrevistas 56
3.4 A elaboração das histórias 57
4. OS SUJEITOS DA PESQUISA E SUAS HISTÓRIAS 60
4.1 Algumas particularidades das pessoas com síndrome de Down 60
4.2 Sobre a apresentação das histórias 65
4.3 A história de Ivan 65
4.4 A história de Paula 89
4.5 A história de León 122
5 TECENDO ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DAS HISTÓRIAS 165
5.1 A ruptura com os prognósticos negativos e
a construção de outras possibilidades de desenvolvimento 166
5.2 A escolarização no ensino comum 171
5.3 A imagem que cada sujeito mostra de si 177
5.4 As vivências no mundo do trabalho 180
5.5 Palavras Finais 183
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 186
ANEXO 01 192
ANEXO 02 193
RESUMO
O presente trabalho apresenta uma pesquisa cujo objetivo central é discutir a deficiência
mental como condição que se desenvolve a partir das relações sociais estabelecidas com
sujeitos que apresentam características singulares em relação à maioria da população e não
como uma incapacidade própria. Esta visão contraria as concepções tradicionais de
deficiência mental e apóia-se na abordagem histórico-cultural, especialmente nas
contribuições de Vigotski. A idéia-base é que, mesmo diante de qualquer alteração
orgânica, ainda que esta seja em nível estrutural ou funcional do sistema nervoso, é pelas e
nas relações sociais que o sujeito se desenvolverá, ou não, como deficiente mental. Como
estratégia metodológica, foram utilizados relatos de histórias de vida de três adultos com
síndrome de Down que se constituíram como sujeitos sem deficiência mental. Os três se
escolarizaram no ensino comum, em diferentes contextos do Brasil e da Espanha,
chegando ao ensino superior. Tais histórias podem mostrar que, mesmo na presença de
condições orgânicas desfavoráveis, as pessoas se desenvolvem a partir das interações que
estabelecem em seus grupos e das condições materiais de vida. A utilização de métodos
narrativos em pesquisas sobre a deficiência mental possibilita o reconhecimento dos
sujeitos da pesquisa como atores e autores de sua história. No caso desta pesquisa, foram
realizadas repetidas entrevistas com os sujeitos-alvo, além de buscas de informações
complementares, com professores e familiares, respeitando as especificidades de cada
caso.Vivendo em diferentes contextos e de modos muito peculiares, é possível identificar
nas três histórias o desafio aos prognósticos de deficiência mental e de baixa escolaridade,
mostrando processos de compensação social que possibilitaram a superação de limites,
ainda hoje vistos como intransponíveis. Buscou-se compreender os movimentos
constitutivos das trajetórias desses sujeitos por meio da análise de eixos de sentido que
envolveram: a ruptura com os prognósticos negativos e a construção de outras
possibilidades de desenvolvimento, a escolarização na escola comum, a imagem que cada
sujeito mostra de si e as vivências no mundo do trabalho. O olhar atento a essas e a outras
histórias de ruptura pode nos ajudar a reafirmar que a constituição do ser humano em
“humano”, ainda que em condições de desvantagem, se dá na relação com os demais.
Palavras-chave: educação, educação especial, deficiência mental, abordagem histórico-
cultural, métodos narrativos, história de vida.
RESUMEN
Este trabajo presenta un estudio cuyo objetivo central es discutir la deficiencia mental como
condición que se desarrolla a partir de las relaciones sociales establecidas con individuos
que presentan características singulares en relación a la mayoría de la población y no como
una incapacidad propia. Esta visión es contraria a las concepciones tradicionales de
deficiencia mental y se apoya en el abordaje histórico/cultural, especialmente en las
contribuciones de Vigotski. La idea básica es que, aún frente a cualquier alteración
orgánica, aunque ésta sea a nivel estructural o funcional del sistema nervioso, será por y en
las relaciones sociales que el individuo se desarrollará, o no, como deficiente mental. Como
estrategia metodológica, se utilizaron relatos de historias de vida de tres adultos con
síndrome de Down que se constituyeron como individuos sin deficiencia mental. Los tres
estudiaron en escuelas comunes, en diferentes contextos de Brasil y de España, llegando a
la enseñanza superior. Estas historias pueden mostrar que, aún en presencia de condiciones
orgánicas adversas, las personas se desarrollan a partir de las interacciones que establecen
en sus grupos y de las condiciones materiales de vida. El uso de métodos narrativos en
estudios sobre la deficiencia mental facilita el reconocimiento de los individuos del estudio
como actores y autores de su historia. En el caso de este estudio, se realizaron repetidas
entrevistas con los individuos específicos, además de buscar informaciones
complementarias, con profesores y familiares, respetando las especificaciones de cada caso.
Viviendo en diferentes contextos y de formas muy peculiares, se puede identificar en las
tres historias el desafío a los pronósticos de deficiencia mental y de baja escolaridad,
mostrando procesos de compensación social que permitieron la superación de límites, aún
hoy vistos como infranqueables. Se ha buscado comprender los movimientos constitutivos
de las trayectorias de esos individuos por medio del análisis de ejes de sentido que
involucraron: la ruptura con los pronósticos negativos y la construcción de otras
posibilidades de desarrollo, el estudio en la escuela común, la imagen que cada individuo
muestra de sí mismo y las vivencias en el mundo del trabajo. La mirada atenta a estas y a
otras historias de ruptura nos puede ayudar a reafirmar que la constitución del ser humano
en “humano”, aún en condiciones de desventaja, se da en la relación con los demás.
Palabras claves: educación, educación especial, deficiencia mental, abordaje
histórico/cultural, métodos narrativos, historia de vida.
ABSTRACT
This piece of research argues that mental deficiency is a condition that arises from social
relations established with individuals who present unique characteristics in relation to the
major part of population, and not as incapability. Based on a historical-cultural approach,
this standpoint goes against traditional concepts of mental deficiency, especially that one
informed by Vigotski. Notwithstanding any structural or functional organic alteration in the
nervous system, a subject develops himself/herself through social relations – not as a
mental handicap. As regards the methods, the story lives’ reports have been used of three
adults with Down syndrome, who claimed to be mental deficiency-free. The three of them
have been educated in regular schools, in Brazil and Spain, up to undergraduate level.
These reports may portray that people develop themselves from interactions established in
their groups and according to material resources available, despite their disfavorable
organic conditions. Using narrative methods in research on mental deficiency enables one
to acknowledge research subjects as actors and authors of their own story. In order to obtain
data, target subjects have been interviewed, and mentors and relatives have also supplied
additional information, always with respect to the specificities of each case. It was possible
to identity challenge apropos the prognostics of mental deficiency and low education level
in the three stories in the three different contexts and their very peculiar conditions. Social
compensation processes seem to have enabled surpassing limits, which are taken as
unsurpassable still in the present. Additionally, this research sought to comprehend
constitutive elements of the subjects’ trajectory aforementioned. Directional axes’ analyses
involved: breaking down negative prognostics, shaping up varied development possibilities,
being educated at regular schools, the self-image each one presented, relations established
in their workplace. Looking close at these and other breakthrough stories may help us
reassure that one constitutes him/herself a human being relating to others, albeit
disfavorable conditions.
Key words: Education, Special Education, Mental Deficiency, Historical-cultural Approach,
Narrative Methods, Story Life.
9
1 PONTOS DE PARTIDA
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
(Mario Quintana)
1.1 Situando a pesquisa
A presente pesquisa vem se delineando desde 2001, quando passei a focalizar
minha atenção em histórias de vida de jovens e adultos com síndrome de Down
1
que se
constituíram sem diagnóstico de deficiência mental. Tais sujeitos, por diferentes
circunstâncias, tiveram uma trajetória bastante diferente da que estava prevista para eles:
mesmo com dificuldades e barreiras, se escolarizaram no ensino comum, mostrando-se
capazes de chegar ao ensino médio e até mesmo ao superior.
Meu interesse por essas histórias está relacionado com minha trajetória de
formação e atuação profissional, iniciada com a graduação em Psicologia – Bacharelado e
Licenciatura, passando pelo Curso de Especialização em Fundamentos Psicopedagógicos
do Ensino, e também pelo Mestrado em Educação.
2
Desde 1992, atuo no Núcleo de
Investigação do Desenvolvimento Humano, da Universidade Federal de Santa Catarina
(NUCLEIND/CED/UFSC), dedicando-me a atividades de pesquisa e extensão voltadas ao
estudo do desenvolvimento humano, mais especificamente aos processos de escolarização
de pessoas com história de deficiência mental.
Minha entrada no Doutorado em Educação (PPGEdu/UFRGS), em 2003, e a
posterior vinculação ao NEPIE - Núcleo de Estudos em Políticas de Inclusão Escolar
(PPGEdu/UFRGS), representou mais um espaço acadêmico de pesquisa, onde encontro
interlocução com outros colegas que investigam temáticas relacionadas aos sujeitos com
necessidades educativas especiais e aos processos inclusivos.
1
O termo síndrome refere-se a um conjunto de sinais e de sintomas que caracterizam um determinado quadro
clínico. A síndrome de Down é uma anomalia genética caracterizada pela existência de um cromossomo
adicional no par 21. Por isso, é também conhecida como trissomia do par 21. Sobre aspectos orgânicos da
Síndrome de Down, ver Schwartzman (1999).
2
Meus trabalhos finais em ambos os cursos já estavam direcionados a histórias de sujeitos marcados pelos
estigmas da não-aprendizagem e da deficiência mental. A monografia de Especialização intitula-se O
significado da reprovação para o aluno na primeira série e a dissertação de Mestrado Alunos considerados
portadores de necessidades educativas especiais nas redes públicas de ensino regular: integração ou
exclusão?
10
O objetivo central desta pesquisa é discutir a deficiência mental como condição
que se desenvolve a partir das relações sociais estabelecidas com sujeitos que apresentam
características significativamente diferentes da maioria da população e não como uma
incapacidade própria. Tal visão contraria as concepções tradicionais de deficiência mental
3
e apóia-se na abordagem histórico-cultural, especialmente nas contribuições de Vigotski
4
.
Defendo a idéia de que, mesmo diante de qualquer alteração orgânica, ainda que esta seja
em nível estrutural ou funcional do sistema nervoso, é pelas e nas relações sociais que o
sujeito se desenvolverá, ou não, como deficiente mental.
Como se constitui um sujeito com deficiência mental? Como desafiar os
prognósticos de incapacidade e de limite no desenvolvimento? Estudos atuais de diferentes
trajetórias de desenvolvimento de sujeitos com diagnóstico e/ou prognóstico de deficiência
mental têm demonstrado que essa condição é uma produção social e que, mesmo aqueles
sujeitos identificados como deficientes mentais podem modificar o curso de seu
desenvolvimento.
Um desses estudos é o de Da Ros (2002)
que, trabalhando com uma proposta
pedagógica fundamentada em Reuven Feuerstein, mostra processos de mudança em
adultos com história de deficiência mental
5
, reafirmando a impossibilidade de previsão de
limites para o desenvolvimento humano.
Padilha (2001), apoiada na abordagem histórico-cultural, discute a constituição
do sujeito simbólico por meio da intervenção pedagógica. Apresentando a trajetória de
uma jovem dos 17 aos 20 anos de idade, mostra a possibilidade de uma maior compreensão
de que alguns aspectos do desenvolvimento – que do ponto de vista neurológico anunciam
deficiência mental e limitações – podem ser superados.
Wise & Glass (2003) apresentam um relato detalhado do processo de inclusão
escolar, em uma instituição de educação infantil na Inglaterra, de uma criança com
síndrome de Down e com graves dificuldades de mobilidade e de comunicação. As autoras
3
Concepções apoiadas no entendimento da deficiência mental como uma incapacidade própria do sujeito,
presentes na obra de autores como Cruickshank & Johnson (1975), Telford & Sawrey (1976), Kirk &
Gallagher (1987) e Fierro (1995).
4
A escrita do nome Vigotski aparecerá nesse trabalho sempre com dois is, a não ser quando for citação de
uma obra, caso em que será mantida a forma original da escrita da ficha catalográfica.
5 A expressão “sujeitos com história de deficiência”, proposta por Da Ros (2002), será por mim utilizada ao
longo deste trabalho para referir-me aos sujeitos que são identificados como portadores de alguma
deficiência. Considero esta expressão mais apropriada, pois ao invés de nos referirmos ao portador de
deficiência ou de necessidades especiais, ampliamos a referência, saindo do indivíduo e focalizando o seu
processo histórico de constituição como sujeito.
11
mostram a importância de apoios específicos para que aquela fosse uma história de êxito
na inclusão escolar.
O trabalho de Saad (2003) focaliza o processo de aprendizagem escolar de
jovens com síndrome de Down, com base em Vigotski e colaboradores, chamando a
atenção para mitos e preconceitos em relação à pessoa com esta síndrome.
Tunes e Piantino (2003), apresentam o Programa da Lurdinha. Trata-se de um
programa de estimulação criado por uma das autoras, mãe de um menino com síndrome de
Down, para que o filho tivesse um desenvolvimento o mais próximo possível das crianças
de sua idade. Com o relato, propõem questionamentos e apontam múltiplas possibilidades
para o desenvolvimento de crianças com síndrome de Down, dentre elas a de se constituir
sem a marca da deficiência mental, considerada pelas autoras como uma construção social.
López Melero (2003a, 2004) disponibiliza conhecimentos produzidos a partir
das experiências do Projeto Roma
6
. O foco central de seu trabalho é o reconhecimento da
diversidade humana como elemento a ser valorizado e não como marca social. Além disso,
as intervenções propostas não estão dirigidas às pessoas identificadas como deficientes,
mas aos seus contextos de convivência, em especial a família e a escola. Considerando que
é a partir dos contextos humanos que as pessoas se apropriam de ferramentas da cultura,
como a linguagem, por exemplo, a proposta é oferecer essas ferramentas culturais,
proporcionando oportunidades de superar suas dificuldades.
Motivada pelas pesquisas desenvolvidas no âmbito do Projeto Roma, no
período de agosto de 2005 a julho de 2006, realizei um estágio
7
na Facultad de Educación
da Universidad de Málaga, sob a orientação do Prof. Miguel López Melero.
Já havia participado, em 2003, do II Congreso Internacional sobre el Proyecto
Roma, em Málaga, Espanha. Naquela ocasião, tive oportunidade de conhecer as bases
teórico-metodológicas do Projeto, tanto pelas exposições das mesas de trabalho quanto
pela bibliografia adquirida durante o Congresso. Considerando os contatos tão próximos
com este grupo de pesquisa, destaco aqui as idéias centrais do Projeto Roma, sintônicas
com a abordagem teórica do presente trabalho.
O Projeto Roma, coordenado pelo Prof. López Melero, conta com a
participação de um grupo formado por pessoas com síndrome de Down e suas famílias,
professores de diferentes níveis de ensino e outros profissionais designados como
mediadores. O Projeto teve início em 1991, a partir de uma parceria entre a Universidad de
6
Proyecto Roma, grupo de pesquisa vinculado à Universidad de Málaga, Espanha.
7
Estágio financiado pelo Programa de Doutorado com Estágio no Exterior – PDEE/CAPES.
12
Málaga e o Serviço Neuropsicopedagógico do Hospital “Bambino Gesù”, de Roma, Itália.
Inicialmente, foi criada uma equipe multidisciplinar para avaliar os processos de ensino-
aprendizagem de pessoas com síndrome de Down. Naquele momento, o foco central da
pesquisa eram as possibilidades cognitivas e culturais destas pessoas como fonte para
mudar a concepção do conceito clássico de inteligência
8
. Uma das questões norteadoras da
pesquisa era: “A inteligência se define ou se constrói?” Segundo López Melero (2003b)
9
,
para que se construísse uma nova teoria da inteligência: “não se poderia seguir mantendo o
princípio das capacidades pessoais inatas e gerais nos seres humanos, pois estaríamos
deixando de lado as diferenças que nos fazem seres humanos.”
Dessa pesquisa inicial, o Projeto avançou, aprofundando outras questões e
constituindo-se como um modelo pedagógico para a educação de pessoas em geral e não
apenas aquelas com alguma peculiaridade, como as pessoas com síndrome de Down.
Atualmente, está sendo implementando, também, em Mendoza (Argentina); em
Guadalajara, Tepic, Chihuahua e Culiacán (México); e em Santiago de Chile (Chile). No
Brasil, há algumas experiências a partir do modelo do Projeto Roma, organizadas por
grupos de pais de crianças com síndrome de Down, em Campinas/SP, Belo Horizonte/MG
e em São Paulo
10
.
As bases teóricas do Projeto Roma incluem: Habermas e, mais concretamente,
sua Teoria da Ação Comunicativa (1981); a concepção de investigação-ação de Kemmis
(1988); a concepção de inteligência de Luria (1974); Vigotski (1987 e 1997) e a
abordagem histórico-cultural; Bruner (1988, 1990 e 1997) e sua concepção de educação
como uma forma de culturização do ser humano; além da Biologia do Conhecimento,
proposta por Maturana (1992, 1994).
Como proposição teórica, a premissa básica é de que o ser humano funciona
como um todo, embora sejam propostas quatro dimensões para a compreensão deste todo:
processos cognitivos, afetividade, autonomia e linguagem como meio de comunicação.
Quando se pretende melhorar as condições cognitivas, lingüísticas, afetivas e de autonomia
das pessoas com síndrome de Down, por exemplo, faz-se necessário qualificar os contextos
onde vivem. Essa proposição expressa uma concepção de desenvolvimento determinado
pelos contextos e pelas peculiaridades e idiossincrasias de cada um. Em outras palavras, a
origem do desenvolvimento, da aprendizagem e da inteligência é social.
8
Inteligência como um atributo desta ou daquela pessoa ou como uma propriedade individual.
9
As citações em português de textos em outras línguas são traduções minhas.
10
Sobre a experiência do Projeto “Educar Mais 1”, de São Paulo, ver a obra de Voivodic (2004).
13
Nessa mesma direção, no âmbito específico da presente pesquisa, procurando
dar visibilidade a trajetórias que rompem com prognósticos de deficiência mental, trabalhei
com as histórias de vida de três adultos com síndrome de Down. Essas pessoas tiveram
oportunidades, desde a infância, de se desenvolver de um modo bastante distinto das
expectativas que ainda se tem em relação às pessoas com essa síndrome. São adultos que
se escolarizaram no ensino comum e que, mesmo com dificuldades e necessidade de apoio
constante, chegaram à universidade, numa luta permanente pelo reconhecimento social de
suas capacidades.
Para defender a tese de que a deficiência mental é uma produção social, este
trabalho focaliza as singularidades e as similaridades presentes nas histórias e tem como
objetivos específicos:
explicitar a deficiência mental como condição que se desenvolve nas
relações sociais;
discutir a relação entre diagnóstico e prognóstico referente ao
desenvolvimento cognitivo na síndrome de Down; e
dar visibilidade a histórias de vida de jovens e adultos com síndrome de
Down que se constituíram como sujeitos sem deficiência mental.
Ao apresentar e discutir as três histórias, procurei focalizar:
a ruptura com os prognósticos negativos e a construção de outras
possibilidades de desenvolvimento;
a escolarização na escola comum;
a imagem que cada sujeito mostra de si; e
as vivências no mundo do trabalho.
Convém ressaltar que este não é um trabalho sobre a síndrome de Down,
embora ela esteja presente nos três sujeitos da pesquisa. A discussão é sobre a constituição
de sujeitos com síndrome de Down que, rompendo com as expectativas sociais e com os
prognósticos médicos, chegam à idade adulta com uma maneira de estar no mundo muito
distante do que se entende como deficiência mental. Em suas histórias, é inegável o
comprometimento orgânico. Portanto, através delas, pretendo mostrar que, mesmo na
presença de condições orgânicas desfavoráveis, mesmo diante de prognósticos negativos,
14
as pessoas se desenvolvem a partir das interações que estabelecem em seus grupos e das
condições materiais de vida.
1.2 A educação de sujeitos com história de deficiência
A educação de sujeitos com história de deficiência foi, durante muito tempo,
tema tratado por especialistas na área, fossem eles professores especializados ou
profissionais de outras áreas, como psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, terapeutas
ocupacionais e médicos, integrando a chamada Educação Especial.
No Brasil, a segregação que marcou a educação desses sujeitos se associa a
uma história de exclusão de grande parte das populações marginalizadas. Sob a influência
de teorias racistas e de outras teorias de caráter liberal, o foco da responsabilidade pela
evasão e reprovação escolares ainda recai sobre os alunos, suas famílias, sua cultura
(PATTO, 1993). Portanto, deste ponto de vista podemos considerar relevante o papel da
educação especial, na medida em que ela representa uma alternativa de atendimento
àqueles alunos considerados incapazes de freqüentar a escola comum.
Pessotti (1984), Kirk & Gallagher (1987), Mazotta (1996), dentre outros
autores, situando o início da educação especial a partir do surgimento, na Europa, no final
do Século XVIII, de instituições especializadas na educação de surdos e cegos, destacam a
expansão de oportunidades educacionais para as pessoas com história de deficiência.
Focalizando outros aspectos, Bueno (1993b) mostra que a educação especial
surge nas sociedades ocidentais industriais no Século XVIII, em meio a um conjunto de
reivindicações de acesso à riqueza produzida, que inaugurou a democracia republicana
representativa, cujo modelo expressivo foi o implantado na França pela Revolução de
1789. Exigia-se naquele momento o fim dos privilégios concedidos à nobreza e o direito a
todos de ter acesso à escola. Assim,
[...] a história nos mostra que a Educação Especial não nasceu para dar
oportunidade a crianças que, por anormalidades específicas, apresentavam
dificuldades na escola regular. A Educação Especial nasceu voltada para a
oferta de escolarização a crianças cujas anormalidades foram aprioristicamente
determinadas como prejudiciais ou impeditivas para sua inserção em processos
regulares de ensino. (Ibid, p. 27. Grifos do autor)
Neste sentido, os trabalhos pioneiros de Itard e Sèguin, entre outros que se
dedicaram ao desenvolvimento de metodologias específicas para a educação de pessoas
15
consideradas deficientes, até então segregadas em asilos e hospitais, podem ser entendidos
para além de uma tentativa de reduzir a segregação destas pessoas. Era o início do Século
XIX e tais metodologias respondiam, de certa forma, às exigências de uma sociedade que
via na escolarização uma possibilidade de ascensão social.
A análise de Jannuzzi (2004) aponta, nesse processo de surgimento de
metodologias e de escolas especiais, dois movimentos que se opõem:
De um lado a continuação da separação e, mais que isso, a patenteação pungente
da diferença. De outro lado, essa própria escola especial tornou-se uma
alternativa que de alguma maneira viabilizou, na época, uma participação mais
efetiva dos deficientes na vida cotidiana, já que dispensava um ensino mais
particularizado e uma atenção mais constante sobre o desenvolvimento dessas
crianças. (Ibid, p. 66)
No Brasil, a expansão da educação especial, verificada principalmente na
segunda metade do Século XX, embora inegavelmente tenha ampliado as oportunidades
educacionais a crianças que não seriam absorvidas pelas redes de ensino, incorporou uma
população identificada como portadora de déficits na aprendizagem, na sua grande maioria
provenientes das classes populares. Assim, tal expansão se constituiu em mais um
elemento no processo de seletividade social promovido pela escola pública no Brasil. A
partir da década de 60, a exclusão maciça de alunos nas redes públicas já nas séries
iniciais, seja pela evasão ou pela reprovação, ou ainda pela falta de oportunidade de acesso,
encontrava mais do que nunca respaldo técnico-científico, pois aqueles alunos que
fracassavam na escola eram vistos como portadores de algum tipo de problema que não
competia mais à escola comum resolver. (CARNEIRO, 1996)
Na década de 70, há a implantação das classes especiais nas escolas comuns,
para o atendimento de alunos considerados deficientes mentais “leves”. Autores como
Schneider (1974), Paschoalick (1981), Cunha (1988) e Machado (1994) mostram que tais
classes acabaram servindo mais para atender alunos com problemas de aprendizagem e/ou
de comportamento que já eram atendidos em classes comuns do que para integrar à escola
alunos considerados deficientes mentais leves. As classes especiais passaram a se constituir
em um espaço de segregação dentro das escolas comuns.
O movimento de integração, iniciado na Europa na década de 60, ganha força
no Brasil nos anos 80, embora já possamos identificar forte influência dos princípios de
normalização e integração
11
nos documentos elaborados pelos órgãos oficiais de educação
especial na esfera federal na década de 70 (MENDES, 1994). Embora tais princípios se
11
Sobre os princípios de normalização e integração, ver a obra de Pereira (1980).
16
traduzissem na prática como segregação e exclusão, sabemos que a sua presença na
legislação e nas discussões da área impulsionaram alguns inegáveis avanços.
Nas duas últimas décadas, mais especificamente a partir de 1994, com a
divulgação da Declaração de Salamanca, as discussões sobre a integração/inclusão
12
de
alunos com necessidades educacionais especiais no ensino comum foram intensificadas. O
que propõe esta Declaração? Basicamente, a inclusão de toda criança no ensino regular,
independente de suas condições físicas, sociais ou culturais. Assim, são necessárias
mudanças significativas nas escolas para que estas possam cumprir seu papel de
possibilitar o acesso ao conhecimento a todos os alunos, inclusive àqueles considerados
com necessidades educativas especiais. A presença desses alunos nas escolas regulares vai
imprimindo mudanças contextuais que repercutem nas crenças e valores da sociedade, que
se expressam nas propostas e políticas educacionais. Os impasses e dificuldades no
cotidiano escolar têm mostrado que, tão importante quanto proporcionar apoios específicos
a alunos com tal condição, é a problematização de outros aspectos, tais como formação de
educadores na perspectiva da inclusão, políticas de inclusão escolar e diferentes
possibilidades de organização escolar.
13
Sabemos das dificuldades para a implementação de uma política de educação
inclusiva, uma vez que, como já apontado, o atendimento aos alunos considerados
especiais tradicionalmente se dá através de programas segregacionistas, em classes e
escolas especiais, sem contar o grande número de crianças, jovens e adultos com história
de deficiência que ainda não têm acesso a qualquer tipo de escolarização. Considerando
esta dificuldade, a Declaração de Salamanca, ao mesmo tempo em que propõe a educação
inclusiva através da matrícula de todos os alunos em escolas comuns, abre espaço para que,
em determinados casos isso não ocorra, quando acrescenta “a menos que existam fortes
razões para agir de outra forma”. Quais seriam estas “fortes razões”? A exceção seria para
aqueles casos menos freqüentes onde a educação na classe comum fosse incapaz de
atender às necessidades educacionais ou sociais da criança. Quem definiria estes casos?
Haveria então critérios para o sujeito ser elegível ou não para uma proposta educacional
inclusiva? A inclusão estaria condicionada à gravidade da condição dos sujeitos? Esta é
uma das questões polêmicas nas discussões sobre a inclusão escolar de todos os alunos.
Defendendo que “todas” as crianças podem aprender nas interações com os
demais, entendo que ter em sala de aula um grupo de alunos com diferentes possibilidades
12
Sobre os diferentes usos dos termos integração e inclusão, ver a obra de Santos (2002).
13
Ver Jesus, Baptista e Victor (2006).
17
exige que pensemos a aprendizagem de forma coletiva, distinta do modelo de escola que
temos hoje. A abordagem histórico-cultural aponta a heterogeneidade como característica
de qualquer grupo humano, sendo um fator imprescindível para as interações em sala de
aula. A diversidade de experiências, trajetórias pessoais, contextos familiares, valores e
níveis de conhecimento de cada membro do grupo viabiliza no cotidiano escolar a
possibilidade de trocas, confrontos, ajuda mútua e conseqüente ampliação das capacidades
individuais e coletivas. Esta seria a síntese de uma argumentação teórica para a defesa de
que todos os alunos podem ser educados nos sistemas comuns de ensino.
A prática que decorre de todo esse discurso em defesa da inclusão possui forte
embasamento legal. A atual legislação educacional brasileira prevê as adequações
necessárias nos sistemas de ensino para que a inclusão seja implementada. Assim, a partir
da LDBEN (Lei nº 9.394/96) e do Decreto nº 3.298/99 (que dispõe sobre a Política
nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência), a Resolução CNE/CEB Nº
2, de 11 de setembro de 2001 (que institui diretrizes nacionais para a educação especial na
educação básica), no seu art. 3º, diz que:
Por educação especial, modalidade da educação escolar, entende-se um processo
educacional definido por uma proposta pedagógica que assegure recursos e
serviços educacionais especiais, organizados institucionalmente para apoiar,
complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços
educacionais comuns de modo a garantir a educação escolar e promover o
desenvolvimento das potencialidades dos educandos que apresentam
necessidades educacionais especiais, em todas as etapas e modalidades da
educação básica.
Portanto, a educação especial, legalmente reconhecida como modalidade
escolar, está inserida na educação infantil e fundamental e no ensino médio.
14
O Relatório do Parecer nº 17/2001 do Conselho Nacional de Educação deixa
claro que a política de inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais na rede
comum de ensino não consiste apenas na permanência física destes junto aos demais, mas
representa a ousadia de rever concepções e paradigmas que permitam desenvolver o
potencial dessas pessoas, respeitando suas diferenças e atendendo suas necessidades.
Além disso, a proposição dessas políticas deve centrar seu foco de discussão na
função social da escola. É no projeto político-pedagógico que esta se posiciona em relação
ao seu compromisso com uma educação de qualidade para todos os seus alunos. Assim, a
escola deve assumir o papel de possibilitar ações que favoreçam interações sociais
14
Para uma discussão mais detalhada da Resolução 02/2001, ver Kassar (2002).
18
promotoras de aprendizagem, definindo, em seu currículo, uma opção por práticas
heterogêneas e inclusivas.
As propostas de educação inclusiva representariam, então, o fim da educação
especial? Eu diria que a educação inclusiva “redefine” a educação especial, exigindo uma
maior articulação entre os profissionais da educação em geral e os da educação especial.
Como esclarece Baptista (2002, p. 163. Grifo do autor):
A educação inclusiva introduziu intensas mudanças na discussão pedagógica
relativa aos locais de atendimento educativo e às propostas de intervenção. Tais
mudanças atingem mais diretamente a educação especial, pois há uma
proposição que altera a estruturação do atendimento que a caracteriza, ou seja,
que transforma os serviços especializados. A trajetória mais recente das
pesquisas nessa área tem mostrado uma intensificação da análise sobre os efeitos
do trabalho educativo realizado de maneira exclusiva em instituições
especializadas, como as escolas especiais. Discute-se muito esses efeitos em
função: de um afastamento do aluno das condições de vida cotidiana; da possível
segregação associada a essa experiência educativa; de uma tendência histórica no
sentido das práticas desenvolvidas nessas instituições serem baseadas em um
paradigma médico, o qual visa, ao menos no plano do discurso, corrigir o sujeito
considerado anormal. Nesse sentido a educação inclusiva transforma a educação
especial.
As questões aqui apresentadas podem nos levar a uma reflexão sobre as
transformações necessárias para que a escola recupere aquilo que ainda considero ser a sua
essência, o seu objeto de trabalho: o ensinar e o aprender.
López Melero (2004) traz uma importante reflexão sobre a necessidade de tais
transformações. Sustentando a idéia da possibilidade de construção de uma escola sem
exclusões, sua argumentação contempla as seguintes transformações:
- o reconhecimento da diversidade dos alunos como valor e não como defeito;
- a transformação da sala de aula em uma comunidade de convivência e de
aprendizagem;
- a busca de um patrimônio cultural comum, diversificado, traduzido na
construção conjunta do currículo com todos os alunos;
- o investimento na formação de educadores para a compreensão da
diversidade;
- uma reorganização espaço-temporal da escola; e
- a ruptura das escolas antidemocráticas, pressupondo a participação efetiva
dos professores e das famílias na sua construção.
O autor sintetiza assim sua compreensão desse movimento de transformação:
19
A educação para a convivência democrática e participativa nos abre a esperança
para a construção de um projeto de sociedade e de humanização novas, onde o
pluralismo, a cooperação, a tolerância e a liberdade serão os valores que
definirão as relações entre famílias e professorado, entre professorado e alunado,
e entre professorado e comunidade educativa; onde o reconhecimento da
diversidade humana esteja garantido como elemento de valor e não como marca
social. (LÓPEZ MELERO, 2005, p. 57)
As proposições de López Melero são instigantes, constituindo-se em um
desafio já anunciado em distintas experiências de inovação educativa.
1.3 Diferentes olhares sobre a deficiência mental a partir de Jean Itard
Os estudos sobre as deficiências iniciaram a partir do Século XVI como uma
preocupação da Medicina em classificar os indivíduos que desviavam do padrão de
normalidade definido para a época. É só no Século XIX que entram em cena também os
pedagogos, interessados no estudo da deficiência mental e nas possibilidades de educação
dos indivíduos considerados deficientes.
Em meio aos ideais do naturalismo humanista, o médico Jean Itard, que já havia
organizado o primeiro programa sistemático de educação especial para surdos a partir
dessa base filosófica, recebe do governo francês, em 1801, a tarefa de educar o menino
selvagem, conhecido como Victor de Aveyron, que fora capturado na floresta de La Caune.
Para Pessotti (1984, p. 36), Victor se constituiu no “protótipo vivo do ideal rousseauniano
do selvagem inculto, naturalmente inteligente e generoso”.
O primeiro grande desafio colocado para Itard foi o diagnóstico do mais
célebre psiquiatra francês da época, Philippe Pinel, que examinou Victor. Pinel compara o
menino a outros indivíduos que estavam no asilo de Bicêtre, concluindo que ele teria sido
abandonado por ser idiota, e não haveria esperança alguma na possibilidade de educá-lo.
Itard relata a descrição do selvagem feita por Pinel em uma sessão da Sociedade Médica de
Paris:
Iniciando com a exposição das funções sensoriais do jovem selvagem, o cidadão
Pinel apresentou-nos seus sentidos reduzidos a tamanho estado de inércia que
aquele desafortunado se encontrava, sob esse aspecto,bem inferior a alguns de
nossos animais domésticos[...] Passando em seguida ao estado das funções
intelectuais desse menino, o autor do relatório no-lo apresentou incapaz de
atenção (a não ser para os objetos de suas necessidades) e, conseqüentemente,
de todas as operações da mente acarretadas pela primeira; desprovido de
memória, de julgamento e de aptidão para a imitação e de tal modo limitado nas
próprias idéias relativas às suas necessidades que ainda não conseguira abrir
20
uma porta nem subir numa cadeira para alcançar os alimentos que eram
levantados fora do alcance de sua mão; enfim, desprovido de qualquer meio de
comunicação, não conferindo nem expressão nem intenção aos gestos e aos
movimentos de seu corpo; passando com rapidez e sem nenhum motivo
presumível de uma tristeza apática às mais imoderadas gargalhadas; insensível a
qualquer espécie de afeições morais; seu discernimento não passava de um
cálculo de gulodice, seu prazer, uma sensação agradável dos órgãos do gosto,
sua inteligência, a suscetibilidade de produzir algumas idéias incoerentes,
relativas às suas necessidades; toda a sua existência, numa palavra, uma vida
puramente animal”. (BANKS-LEITE e GALVÃO, 2000, p. 131-132)
A convicção de Itard de que “o homem não nasce como homem, mas é
construído como homem (PESSOTTI, 1984, p. 36), é que o fez opor-se ao diagnóstico
dado por Pinel. Para Itard, o retardo de Victor não se devia a uma deficiência biológica e
sim a uma insuficiência cultural, à carência de experiências de exercício intelectual. Deste
modo, a estimulação e ordenação da experiência se constituiriam nas estratégias de “cura”
do retardo.
Todo o trabalho desenvolvido por Itard com Victor aponta uma questão até
hoje bastante polêmica na educação especial: a da avaliação. O diagnóstico dado por Pinel
encaminharia Victor a uma instituição hospitalar para dementes, sem oportunidades de
ensino ou educação. A visão de Itard, porém, considerava a educabilidade do selvagem,
ainda que não houvesse uma metodologia para tal. Com base nos princípios do naturalismo
e no trabalho já desenvolvido com surdos, ele tenta criar uma metodologia capaz de
“despertar” naquele indivíduo as faculdades mentais que lhe permitissem se fazer humano.
Itard dedicou-se à educação de Victor, obtendo avanços significativos à medida que
traçava planos pedagógicos a partir dos progressos apresentados. O trabalho, lento e
gradual, foi acompanhado de inúmeras reflexões sobre o método que estava sendo
formulado. O relato desta experiência está ricamente descrito por Itard na obra Mémoire
sur les premiers développements de Victor de l’Aveyron, publicada em 1801
15
. Nela
encontram-se, pois, os fundamentos da avaliação e da didática na área da deficiência
mental. Sobre a importância da obra de Itard, Pessotti (1984, p. 50-51) afirma que:
A atualidade, presente em muitos aspectos de sua doutrina, à distância de quase
dois séculos, resulta [...] de uma característica inalienável, ontem como hoje, da
educação especial: a individualização do ensino entendida não como mera
segregação metodológica do educando, mas como ajustamento de programas,
procedimentos e critérios de avaliação às peculiaridades do aluno como pessoa
com desejos, aversões, interesses e inércias e como organismo biológico mais ou
menos equipado de funções sensoriais e corticais.[...] Em Itard, essa
individualização não é uma necessidade, devida à carência de experiências
similares conhecidas, mas o produto de uma postura filosófica ante o ser
15
No Brasil, a primeira publicação dos Relatórios de Jean Itard traduzidos para o português encontra-se na
obra de Banks-Leite & Galvão (2000).
21
humano, diante do educando e frente ao organismo biológico a ser posto em
funcionamento adequado.
Todo este esforço de Itard se dá ainda em meio ao fatalismo imposto pelos
grandes nomes da Medicina da época. Sobre a hegemonia do saber médico a respeito da
deficiência mental, Pessotti (Ibid, p. 103) considera:
A deficiência mental, que após a inquisição se tornara um problema médico e
não mais teológico, passara de um enfoque supersticioso a um tratamento
naturalista, por parte de muitos médicos e raros pedagogos; essa atitude
naturalista, porém, não implica necessariamente a abordagem científica da
questão. A verdade não é mais buscada no dogma trazido pelo clero, mas ainda
emana de uma autoridade, que domina o saber e o poder diante da deficiência
mental. Essa autoridade que dirige a busca de explicações e as iniciativas
educacionais, terapêuticas e institucionais e que arbitra as polêmicas é o
médico.[...] Na medida em que a autoridade do sábio e não o rigor e a
replicabilidade da metodologia de pesquisa é o critério de validade e
fidedignidade, o enfoque da deficiência já não é necessariamente supersticioso e
já não é metafísico; é naturalista mas pré-científico, e por vezes pseudocientífico.
A idéia de incurabilidade permanece até hoje, não se opondo, porém, à de
educabilidade. A hegemonia doutrinária dos médicos no campo da deficiência mental vai
perdendo espaço e sofrendo críticas severas, na medida em que as idéias sobre a
educabilidade do deficiente vão se desenvolvendo e se confirmando. A crítica maior vem
de um outro médico, aluno de Itard: Édouard Sèguin. Em sua obra Traitement moral,
hygiène et éducation des idiots et des autres enfants arriérés, publicada em 1846, Sèguin
faz acusações contundentes aos médicos de sua época que escreviam sobre a idiotia
16
,
como neste trecho, citado por Pessotti (Ibid, p. 109) : “Em suma, eu acuso os médicos por
não terem nem observado, nem tratado, nem definido, nem analisado a idiotia, e de terem
falado demais sobre ela”.
A obra de Sèguin rompe com a visão unitarista de uma idiotia única - que ainda
era hegemônica entre os médicos - pois ele descreve as categorias idiotia, imbecilidade e
debilidade como quadros diferentes com etiologias também diferentes. E considera, além
de causas orgânicas (hereditárias ou não), causas ambientais ou psicológicas.
Para Pessotti (Ibid, p. 115), “Sèguin se afigura na história um genuíno redentor
dos idiotas, cretinos, imbecis e retardados.” E atribui essa posição e importância aos dez
anos de observação, prática e estudo que este passou ao lado de Itard, de Esquirol e,
principalmente, das crianças deficientes: “já em 1838 educara um idiota em 18 meses, e
por oito anos, antes do Traitement moral vir a público, dedicara-se à educação sistemática
16
Idiotia era o termo que designava a deficiência mental naquela época.
22
de idiotas, primeiro no Hospital dos Incuráveis e depois em Bicêtre, onde organizara uma
verdadeira escola especial.” (Ibid)
No Traitement moral, obra já referida, Sèguin dedica 200 páginas para tratar de
questões teóricas sobre a idiotia e distúrbios correlatos. No restante da obra, que tem 729
páginas no total, ele propõe detalhadamente seu método, que chama de método fisiológico
ou educação fisiológica, caracterizado por técnicas especiais de ensino a deficientes
mentais, adequadas às peculiaridades de cada caso.
Portanto, as contribuições de Itard e Sèguin são inegáveis tanto para os avanços
no estudo sobre a deficiência mental quanto para a formulação de metodologia específica
para o ensino de pessoas consideradas portadoras de deficiência mental. Nas palavras de
Pessotti (Ibid, p. 121):
Maria Montessori, além de outras celebridades, já entrevira nas páginas de
Sèguin a semente de uma nova estratégia didática, embora influenciada
decisivamente pelos escritos de Itard, aos quais faltava, por serem pioneiros, uma
sistematização de princípios, métodos e técnicas sobre a base de uma exaustiva
análise teórica da deficiência mental. Tudo o que Itard apresenta de intuição e
invenção, Sèguin oferece de análise e de prática sistematizada.
Porém, mesmo com os resultados dos estudos de Itard e Sèguin sobre a
educabilidade dos deficientes, a gênese do conceito de deficiência mental, essencialmente
médica, continuaria organicista, enfatizando tanto sua determinação genética ou perinatal
quanto prognósticos nada animadores.
Uma das obras considerada referência na Medicina da época é o Dictionnaire
Encyclopédique des Sciences Médicales, que se tornou o registro de famosas polêmicas
onde se confrontavam autoridades, escolas e facções doutrinárias, constituindo-se no
retrato crítico da Medicina do Século XIX. Nele podemos encontrar uma teoria médica
deste século sobre a deficiência mental, ficando claro o princípio do organicismo fatalista
e, conseqüentemente, o da segregação como forma de garantir a ordem social.
É preciso estar atento ao fato de que a produção do conhecimento humano
apóia-se nos avanços científicos e na correlação de forças presentes em cada época,
respondendo à forma de organização social vigente. Assim, é importante resgatar que o
conceito de deficiência mental foi construído a partir da exigência e valorização de uma
produtividade intelectual. No Brasil, por exemplo, até o Século XIX, tinha-se uma
organização social essencialmente rural e oral, que exigia menos dos indivíduos que uma
sociedade urbana, onde a escrita é mediação marcante. É a partir do processo de
industrialização da economia brasileira, inserido num modelo capitalista de organização,
23
que são colocados requisitos de escolaridade, de conhecimentos mais elaborados e de
produtividade. É a partir destas exigências que emergem os diferentes, os considerados
improdutivos. Coloca-se, então, a necessidade de medir a capacidade intelectual dos
indivíduos, classificando-os. (CARNEIRO, 1996)
A contribuição psicométrica de Alfred Binet, no início do Século XX, quando a
Psicologia passou a se dedicar a estudos sobre os limites das capacidades mentais, é
inegável. Com o objetivo inicial de identificar crianças cujo fracasso escolar sugerisse a
necessidade de alguma forma de educação diferenciada, Binet selecionou uma ampla série
de tarefas, ordenadas segundo o grau de dificuldade, buscando um valor numérico capaz de
expressar a potencialidade global de cada criança. Gould (1991, p. 155), discutindo os
objetivos originais da escala de Binet, afirma que “o propósito da escala era identificar a
criança com problemas e ajudá-la a melhorar: nunca atribuir-lhe um rótulo e impor-lhe
limites.” Nesse sentido, o uso das medidas de QI
17
, proposto a partir da escala de Binet e
posteriormente adotado como medida de inteligência, permitiu comparar o
desenvolvimento “normal” e o atrasado, oferecendo elementos para o diagnóstico
psicológico da deficiência mental. Assim, a partir de Binet, a deficiência mental deixa de
ser propriedade da Medicina e torna-se atribuição da Psicologia como questão teórica. Esta
contribuição se traduzirá, mais tarde, na estigmatização e cristalização dos rótulos de
deficiente mental, limítrofe, dentre outros termos que passarão a expressar a incapacidade
intelectual daqueles indivíduos que não correspondem às expectativas exigidas pelas
provas de inteligência. (PESSOTTI, 1984)
1.4 O conceito de deficiência mental hoje
O termo deficiente mental, segundo Würth, citado por Jannuzzi (1992, p. 15),
surgiu em 1939, no Congresso de Genebra, como tentativa de padronizar mundialmente a
referência, e também em substituição ao termo anormal, considerado muito genérico. Para
autores como Cruickshank & Johnson (1979), Telford e Sawrey (1975), Machado e
Almeida (1969), citados por Bueno (1993a), a preocupação com o estigma da deficiência
desencadeou discussões - especialmente nos Estados Unidos - no sentido de se buscar uma
17
Quociente de Inteligência
24
nova terminologia, que amenizasse a carga negativa que os termos deficiente, retardado,
prejudicado ou diminuído carregam.
A análise desta terminologia e, em especial, do conceito de excepcionalidade
feita por Bueno (Ibid) resgata a relação normalidade/patologia e a produção da
marginalidade na sociedade moderna. Apontando os determinantes sociais que levaram à
construção histórica destes conceitos a partir de uma determinada visão de anormalidade, o
autor considera que:
O conceito corrente de excepcionalidade, bem como as argumentações que o
consideram como mais preciso e menos estigmatizante, partem do pressuposto
de que a excepcionalidade, tal como é hoje encarada, refere-se a um fenômeno
que se manifestou sempre da mesma forma mas que, somente com o advento da
moderna sociedade industrial e do conhecimento científico objetivo e neutro é
que pôde ser devidamente caracterizado e dimensionado. (Ibid, p. 31. Grifos do
autor)
Na verdade, o termo excepcionalidade passou a ser utilizado nos Estados
Unidos no pós-guerra, ampliando o leque de problemas a serem atendidos pela educação
especial. Passava-se a incluir como excepcionais não mais só os portadores de alguma
deficiência (mental, física, auditiva ou visual), como também os alunos com distúrbios de
linguagem, distúrbios emocionais, de aprendizagem e, por último, os superdotados. Assim,
embora aparentemente esta ampliação do conceito tenha resultado em mais oportunidades
educacionais àquelas crianças que não se beneficiavam da escolarização regular, a
proliferação de escolas especiais tem um significado muito mais perverso, qual seja, o de
dissimular as diferenças de classe, oferecendo ensino qualitativamente diferente, amparado
por argumentos tidos como científicos e confiáveis, aos diferentes extratos sociais. (Ibid)
Mesmo com pesquisas apontando resultados favoráveis à aprendizagem de
sujeitos com deficiência mental, ainda há dúvidas, por parte dos professores, acerca da
possibilidade de escolarização destes sujeitos. Na verdade, o professor expressa a visão que
a sociedade tem da deficiência:
A deficiência mental é encarada pelo corpo social, através de uma visão
qualitativa e não quantitativa, não apenas como se faltasse um coeficiente ideal
de inteligência, como aos outros deficientes faltam os sentidos da visão ou da
audição, ou até mesmo um membro ou a impossibilidade de usá-lo, mas como se
lhe faltasse a própria essência da humanidade - a racionalidade. Justificam-se,
assim, a discriminação, a segregação, a exclusão do conjunto da sociedade, a
legitimidade do controle exercido por um sujeito racional e a eterna recorrência à
tutela e à caridade pública. (LINO DE PAULA, 1994, p. 5)
A bibliografia especializada predominante sobre os diferentes quadros de
deficiência é marcada por questões específicas, com um enfoque clínico que identifica as
25
dificuldades como se fossem intrínsecas aos sujeitos. Embora nas últimas décadas tenham
sido resgatadas questões referentes às possibilidades de desenvolvimento de todos os
indivíduos, incluindo aqui aqueles com história de deficiência mental, o atraso no
desenvolvimento cognitivo ainda é visto como característica própria do sujeito,
imprimindo-lhe a marca da não-aprendizagem. A literatura tradicional sobre as
classificações de deficiência mental contribui para esta visão que os professores e a
sociedade em geral têm sobre o deficiente mental. Pessotti (1982) mostra que os níveis de
Q.I. são utilizados como critérios de classificação dos deficientes mentais. E, mais grave
que a classificação, são os “tetos” de aprendizagem fixados por inúmeros autores para
indivíduos com diagnóstico de deficiência mental. São estes prognósticos que acabam
definindo e consolidando o desenvolvimento “deficiente” destes indivíduos.
As classificações por nível de QI expressam uma visão psicométrica da
deficiência e apontam prognósticos desanimadores. O foco do problema é colocado no
sujeito, no seu desempenho, consolidando o atraso cognitivo como característica individual
e contribuindo para uma baixa expectativa dos professores em relação a este aluno.
Em 1992, a AAMR (American Association on Mental Retardation) divulgou
uma nova definição e sistema de classificação de “retardo mental”
18
, caracterizada como
uma concepção multidimensional. A definição atual, divulgada em uma revisão conhecida
como o Sistema 2002 (2006, p. 20), é a seguinte: “Retardo mental é uma incapacidade
caracterizada por importantes limitações, tanto no funcionamento intelectual quanto no
comportamento adaptativo, está expresso nas habilidades conceituais, sociais e práticas.
Essa incapacidade tem início antes dos 18 anos de idade.” (2006, p. 20) A aplicação desta
definição inclui cinco recomendações, que a AAMR denomina “hipóteses”:
1. As limitações no funcionamento atual devem ser consideradas dentro do
contexto dos ambientes da comunidade característicos das pessoas da
mesma faixa etária e da mesma cultura do indivíduo.
2. A avaliação válida considera a diversidade cultural e lingüística, e também
as diferenças na comunicação, nos fatores sensoriais, motores e
comportamentais.
3. Em cada indivíduo, as limitações freqüentemente coexistem com as
potencialidades.
18
A AAMR (2002, p. viii-ix) continua utilizando o termo retardo mental, mesmo reconhecendo que “ele é
estigmatizante e erroneamente usado como um resumo global a respeito de seres humanos complexos.
Depois de muitas deliberações de vários grupos, não se chegou a um consenso sobre um termo alternativo
aceitável que signifique a mesma coisa.”
26
4. Um propósito importante ao descrever as limitações é o de desenvolver um
perfil dos apoios necessários.
5. Com apoios personalizados apropriados durante um determinado período
de tempo, o funcionamento cotidiano da pessoa com retardo mental em
geral melhora. (Ibid, p. 25)
É interessante observar, como apontam Carvalho e Maciel (2002), que a
AAMR, embora se dedique ao campo da deficiência mental desde 1876, influenciando
sistemas de classificação internacionalmente conhecidos como o DSM-IV
19
e a CID-10
20
,
não é igualmente conhecida em nosso país, talvez pela pouca divulgação de suas produções
entre especialistas e pesquisadores brasileiros. Cabe destacar que a décima edição do
Manual da AAMR (Retardo Mental: Definição, Classificação e Sistemas de Apoio) tem
sua primeira publicação no Brasil em 2006.
O discurso da AAMR, no Sistema 2002, traz uma visão multidimensional,
propondo cinco dimensões para a compreensão do “retardo mental”. As dimensões
propostas são caracterizadas a seguir:
Dimensão I: Habilidades Intelectuais inclui o raciocínio, planejamento,
resolução de problemas, pensamento abstrato, compreensão de idéias complexas, rapidez
de aprendizagem e aprendizagem pela experiência. A inteligência, então, é entendida como
uma competência mental geral. As habilidades intelectuais são objetivamente avaliadas por
meio de testes psicométricos de inteligência. A dimensão intelectual passa a ser, no
Sistema 2002, um dos indicadores de déficit intelectual, considerado em relação às outras
dimensões. Assim, a mensuração da inteligência continua ocupando um lugar de destaque,
mas não é suficiente para o diagnóstico do “retardo mental”.
Dimensão II: Comportamento Adaptativo – este é definido como a “reunião de
habilidades conceituais, sociais e práticas que foram aprendidas pelas pessoas para elas
funcionarem no seu cotidiano.” (AAMR, 2006, p. 25) As “habilidades conceituais”
relacionam-se aos aspectos acadêmicos, cognitivos e de comunicação (linguagem receptiva
e expressiva, leitura e escrita e conceitos de dinheiro). As “habilidades sociais” referem-se
à competência social (responsabilidade, auto-estima, habilidades interpessoais,
credibilidade, ingenuidade, observância de regras, normas e leis e capacidade para evitar a
vitimização). E as “habilidades práticas” referem-se às de vida independente (alimentar-se
19
Diagnostic and statistical manual: Mental disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos
Mentais). Quarta edição, publicada pela American Psychiatric Association em 1994.
20
Classificação Internacional das Doenças. Décima edição, publicada pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) em 1993.
27
e preparar alimentos, deslocar-se de maneira independente, utilizar meios de transporte,
cuidar da higiene pessoal, vestir-se, cuidar da casa, tomar remédios, lidar com dinheiro,
usar o telefone, além de habilidades ocupacionais e de cuidados com o ambiente no que se
refere à segurança). A avaliação do comportamento adaptativo deve ser feita através do uso
de medidas padronizadas, existentes nos Estados Unidos, mas (felizmente) sem
padronização para o Brasil. Esta proposta de avaliação quantitativa de uma dimensão
constituída por elementos subjetivos, interativos e contextuais já demonstra a fragilidade
do caráter inovador do discurso, que não se sustenta se não houver dados mensuráveis,
quantificáveis, para a avaliação e o diagnóstico.
Dimensão III: Participação, Iinterações e Papéis Sociais – esta dimensão
destaca a importância da participação na vida comunitária, através tanto da observação
direta das atividades cotidianas, quanto de depoimentos de quem convive com o sujeito.
Dimensão IV: SaúdeO Sistema 2002 indica a necessidade de considerar, na
avaliação diagnóstica do retardo mental, fatores etiológicos e de saúde física e mental, já
que tais condições influenciam o funcionamento das pessoas, facilitando ou inibindo sua
participação na vida cotidiana.
Dimensão V – Contextos – a dimensão contextual considera as condições nas
quais as pessoas vivem o seu cotidiano. É avaliada basicamente considerando as
oportunidades oferecidas aos sujeitos (no que se refere à educação, trabalho, lazer e apoios
em ambientes integrados), bem como os estímulos ao seu bem-estar (saúde, segurança
pessoal, conforto material, segurança financeira, atividades comunitárias e cívicas, lazer e
recreação).
Além da visão multidimensional, outro aspecto considerado mais avançado no
discurso da AAMR é a proposta de um novo sistema de classificação baseado nas
intensidades dos apoios necessários, enquanto os modelos ainda mais utilizados de
classificação da deficiência mental definem os níveis de severidade pelo Q.I. (leve,
moderado, severo e profundo). No Manual, é destacado que “embora o conceito de apoios
não seja de modo algum novo, o que é novidade é a crença de que a aplicação criteriosa
dos apoios pode melhorar a capacidade funcional dos indivíduos com retardo mental.”
(AAMR, 2006, p. 141. Grifos dos autores) Aqui se percebe que o sistema de apoios
proposto tem um caráter individualizado, ou seja, é dirigido ao sujeito que apresenta as
limitações significativas.
Na concepção de deficiência mental proposta pela AAMR, o foco ainda é o
sujeito e suas limitações. Daí a necessidade de quantificar os limites e definir a intensidade
28
e a modalidade de apoios. Portanto, é necessário cautela para evitar que uma leitura
entusiasmada de tal proposta possa gerar equívocos, como o que lemos no próprio Manual,
na página 142:
Psicologicamente, o conceito dos apoios está em harmonia com a noção de zona
de desenvolvimento proximal, definida como a distância entre os níveis de
resolução de problemas de forma independente e assistida. Como foi discutido
por Vygotsky (1986) e Scharnhost e Buchel (1990) o funcionamento de um
indivíduo pode ser bastante melhorado ao inquirir-se sobre as tarefas que a
pessoa pode resolver em comparação com as tarefas que ela poderia resolver
com a ajuda de um membro mais capaz da sociedade.
A simplificação do conceito de zona de desenvolvimento proximal, reduzindo-o
à distância entre os níveis de resolução de problemas, bem como a compreensão de que sua
aplicação seria na melhora do funcionamento do sujeito, mostra uma apreensão bastante
diferente da apresentada ao longo do presente trabalho. Mostra uma concepção de sujeito
que se constitui a partir de suas condições individuais, como se estas estivessem separadas
do contexto histórico-cultural onde ele está inserido.
Mesmo com essa crítica à concepção de sujeito presente na proposta do
Sistema 2002 da AAMR, considero que a visão multidimensional da deficiência mental
representa um avanço em relação aos modelos tradicionais ainda vigentes. Se observarmos
com cuidado, as limitações referidas na definição se constituem no curso do
desenvolvimento das pessoas, ou seja, não são inatas, não estão dadas ao nascer
(habilidades intelectuais, sociais, conceituais e práticas). Então, ainda que essa definição
priorize atributos individuais quantificáveis, as premissas apresentadas são
multidimensionais e parecem valorizar o contexto em que os sujeitos vivem. Esse
movimento contraditório pode nos dar pistas para se compreender a deficiência mental
como uma condição socialmente construída, resultado do entrelaçamento indissociável
entre os aspectos biológicos e os culturais, como será discutido no próximo capítulo.
29
2 VIGOTSKI, A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL E OS ESTUDOS DA
DEFECTOLOGIA
21
: OUTRAS POSSIBILIDADES DE COMPREENSÃO DA
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO
Conocemos bien que al dar el primer paso, no podremos
evitar cometer muchos errores y serios. Pero todo el
problema reside en que el primer paso sea dado en una
dirección correcta. Lo demás vendrá a su tiempo. Lo
incorrecto se eliminará, lo que falta se agregará.
(Vigotski)
A contribuição de Vigotski para a construção de uma nova Psicologia,
embasada nos princípios do materialismo histórico e dialético, é bastante significativa, na
medida em que a perspectiva por ele apontada rompe com o dualismo psicofísico presente
nas teorias psicológicas de sua época. De um lado, um grupo baseado em pressupostos
empiristas, que via a Psicologia como ciência natural que devia se ocupar dos
comportamentos observáveis, entendidos como habilidades mecanicamente constituídas, e
limitava-se à análise dos processos mais elementares, desconsiderando os fenômenos
complexos da atividade consciente, especificamente humana. De outro, um grupo
inspirado em princípios idealistas, que a entendia como ciência mental, postulando que a
vida psíquica humana não poderia ser objeto de estudo da ciência objetiva. Por isso,
detinha-se na descrição subjetiva dos fenômenos psíquicos tipicamente humanos.
Com uma produção de mais de 180 trabalhos (monografias, teses, relatórios,
cursos, prólogos, etc) em 10 anos de trabalho, no período entre 1924 a 1934, a atualidade
da obra de Vigotski é assim comentada por Shuare (1990, p. 57-58):
Podemos dizer que se algo distingue a atitude dos psicólogos contemporâneos
de Vigotski é que voltamos a ele não como um cientista do passado, um
personagem da história da psicologia, mas como um pensador de hoje e
estudamos suas obras como se não houvessem sido escritas há mais de meio
século, mas agora.
21
Defectologia é o termo russo utilizado para definir os estudos sobre as deficiências (cegueira, surdez,
deficiência mental, etc.). Os textos que abordam especificamente esses estudos estão reunidos no Tomo V –
Fundamentos de Defectología, das Obras Escogidas.
30
2.1 O contexto histórico e cultural
O contexto histórico e cultural em que Vigotski viveu (1896-1934) era propício
para sua proposta inovadora. A ciência e seus avanços eram bastante valorizados na
sociedade soviética pós-revolucionária, uma vez que poderiam apontar soluções para os
problemas sociais e econômicos então existentes. Rego (1994, p. 27) sintetiza este
contexto, afirmando que
a atmosfera de sua época era de grande inquietação e estímulo para a busca de
respostas às exigências de uma sociedade em franco processo de transformação.
Um bom exemplo destas aspirações era o enorme poder atribuído à educação,
que se traduzia no esforço de elaboração de programas educacionais eficientes,
que erradicassem o analfabetismo e oferecessem melhores oportunidades aos
cidadãos.
Até os 15 anos, Vigotski estudou em casa, com um tutor particular. Filho de
uma família de origem judaica, vivia com os pais e sete irmãos, tendo acesso tanto à
biblioteca de sua casa quanto a uma biblioteca pública. O acesso a fontes variadas de
informações, aliado ao aprendizado de diferentes línguas (alemão, latim, hebraico, francês
e inglês), contribuiu para a sólida formação intelectual de Vigotski. De 1914 a 1917,
estudou Direito na Universidade de Moscou. Nesse mesmo período, assistia aulas de
História, Filosofia, Psicologia e Literatura na Universidade Popular de Shanyavskii.
No final dos anos 20, Vigotski viajou por toda a União Soviética, dedicando-se
à docência, principalmente à formação de educadores, e à ajuda na constituição de novos
laboratórios de investigação. No início dos anos 30, começou a assistir aulas de Medicina,
especialmente de Neurologia. Seu interesse pela Medicina parece ter iniciado a partir de
seu desejo de conhecer mais sobre as desordens neurológicas relacionadas com a fala e o
pensamento, já manifestado em 1929 em seus escritos sobre a afasia.
Essas breves informações sobre o seu percurso acadêmico
22
, mostram
claramente que Vigotski circulou por diferentes áreas do conhecimento: Arte, Literatura,
Lingüística, Filosofia, Antropologia, Psicologia, Neurologia, Defectologia e temas
relacionados à Educação.
Vigotski iniciou sua atuação profissional aos 21 anos, após a Revolução Russa
de 1917. Em Gomel (cidade onde viveu parte da infância até a juventude), no período de
22
Para mais informações sobre a biografia de Vigotski, em especial seu percurso acadêmico, ver Rivière
(1985), Wertsch (1988) e Rego (1995).
31
1917 a 1923, lecionou e proferiu palestras sobre temas relacionados à Literatura e
Psicologia em várias instituições. Nessa época já aparece também seu interesse por
questões ligadas à Pedagogia.
23
Seu interesse pela Psicologia iniciou a partir de seu contato, no trabalho
voltado à formação de professores, com problemas de desenvolvimento fora do padrão
normal, apresentados por crianças cegas, surdas, deficientes mentais, etc. Tal experiência o
impulsionou a buscar alternativas que pudessem ajudar o desenvolvimento de crianças com
essas e outras deficiências. Porém, seus estudos no campo da Defectologia (que serão
tratados mais adiante neste capítulo) tinham como objetivo não só contribuir para a
compreensão do desenvolvimento dessas crianças, mas significava também uma excelente
oportunidade de compreensão dos processos mentais humanos, assunto que viria a ser o
foco central de suas pesquisas posteriores.
A partir de 1924, Vigotski passa a se dedicar mais sistematicamente à
Psicologia. Sua brilhante participação no II Congresso Pan-Russo de Psiconeurologia,
realizado neste ano em Leningrado, causou grande impacto e proporcionou novos rumos à
chamada psicologia soviética.
Para Vigotski, tanto as tendências de caráter mecanicista quanto as de cunho
idealista, presentes não só na psicologia soviética, mas também na Europa e nos Estados
Unidos, não conseguiam explicar a natureza dos processos psicológicos humanos. Este
impasse, gerado pela cisão psicofísica, ficou conhecido como a crise na Psicologia.
Apesar de diversas escolas da psicologia terem surgido no final do Século XIX
e início do Século XX propagando uma suposta superação dessa “crise”,
nenhuma delas foi capaz de fugir desse esquema dicotômico: ou são psicologias
que propõem uma análise mecanicista dos processos psicológicos superiores
nos moldes do esquema estímulo-resposta, ou são psicologias de cunho
idealista, que não conseguem dar conta de conjugar às suas descrições a base
fisiológica, material do homem. (ZANELLA, 2001, p. 61)
No Congresso acima referido, durante sua primeira comunicação científica
pública, Vigotski apresenta sua crítica às tentativas até então feitas no sentido de criar uma
nova Psicologia, que compreendesse o homem segundo uma visão marxista.
Uma das tentativas, proposta por Bekhterev como uma nova ciência pautada
em pressupostos marxistas, era a Reflexologia. Esta propunha-se a estudar os fundamentos
23
Cf Rego, (1995, p. 22 ), “Em 1922, por exemplo, publicou um estudo sobre os métodos de ensino da
literatura nas escolas secundárias. Nessa fase, dirigia a seção de teatro do Departamento de Educação de
Gomel. Na mesma cidade fundou ainda uma editora, uma revista literária e um laboratório de psicologia no
Instituto de Treinamento de Professores, local onde ministrava cursos de psicologia.”
32
da conduta, porém suas explicações sobre as formas mais complexas de comportamento
eram esquemáticas e retóricas na medida em que as reduziam à mera soma de reflexos.
Esta proposição, entendida como expressão de um materialismo mecanicista e vulgar por
apresentar uma visão extremamente causal e linear das funções psicológicas superiores,
estava longe, portanto, da perspectiva materialista dialética. (KOZULIN, 1994)
Uma outra proposta de Psicologia marxista, a Reactologia de Kornilov,
considerava o papel dos processos sociais no comportamento individual, propondo como
unidade metodológica da investigação psicológica a “reação”, definida como a resposta do
organismo a estímulos tanto físicos como sociais. Ou seja, era uma proposta muito
semelhante ao behaviorismo norte-americano.
Ainda em 1924, Vigotski apresentou, no Instituto de Psicologia de Moscou, a
conferência intitulada A consciência como problema da psicologia da conduta. Segundo
Rivière (1985, p. 29. Grifos do autor), tal conferência apresenta “[...] uma atitude bem mais
crítica e irônica quanto às pretensões reducionistas dos reflexólogos e, ao mesmo tempo, se
aproxima mais claramente de uma idéia que terminaria por se converter no núcleo
principal da psicologia vigotskiana: o princípio da gênese social da consciência.”
Foi neste contexto que Vigotski, junto com Luria e Leontiev, jovens
pesquisadores do Instituto de Psicologia de Moscou, dedicaram-se intensamente à tarefa de
elaborar uma nova Psicologia fundamentada no materialismo histórico e dialético.
2.2. A abordagem proposta por Vigotski
Vigotski faz da cultura a categoria central de uma nova concepção do
desenvolvimento psicológico do homem. “Com isso abre-se no pensamento psicológico
tradicional um novo caminho capaz de trazer novas luzes à compreensão da natureza
humana, na qual a palavra humana traduz a síntese da relação natureza e cultura.” (PINO,
2005, p. 35. Grifos do autor)
Seu ponto de partida é a premissa básica do materialismo histórico: a existência
de seres humanos vivos, que se distinguem dos outros animais por produzirem seus meios
de vida, que satisfazem as necessidades básicas de beber, comer, morar, vestir-se. A ação
de satisfazer e os instrumentos usados para tal produzem novas necessidades, o que para
Marx & Engels (1989, p. 23) constitui-se no primeiro ato histórico. Seguindo neste
raciocínio, o homem, sujeito de sua própria história, é um ser pensante, que representa para
33
si e para os outros o que faz. Os homens produzem e pensam: produzem materialmente e
produzem representações, idéias sobre sua produção material. Essas representações, essas
idéias, formam a consciência, que é determinada pelas mesmas condições materiais de
produção.
A produção material humana pressupõe a utilização de instrumentos, portanto
toda atividade humana é instrumental. Tais instrumentos, historicamente construídos,
podem ser tanto de natureza física (as ferramentas, que modificam o meio físico e o sujeito
da ação) quanto psíquica (os signos, que modificam as relações com outros sujeitos e
consigo mesmo, conferindo ao real uma outra forma de existência: a existência simbólica).
Os signos são mediadores das atividades humanas e, portanto, são constitutivos
do homem. Estes podem ser a linguagem (oral, gestual, escrita, etc.), um desenho ou uma
obra de arte, dentre outros. É a sua presença que caracteriza a atividade humana como
instrumental, ou seja, a atividade humana é sempre mediada por signos culturais. Nesse
sentido, Vigotski (1999, p. 150) cita Marx: “Se a essência das coisas e sua forma de se
manifestar coincidissem diretamente, toda ciência seria supérflua”.
A linguagem oral é um signo por excelência, pois é através dela que
expressamos nossas idéias cotidianamente. A fala, porém, não é simples articulação de
palavras. Como diz Bakhtin (1988, p. 95), “não são palavras o que pronunciamos ou
escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais,
agradáveis ou desagradáveis etc.” A fala não é uma produção do indivíduo, mas uma
produção social. Para Bakhtin (ibid, p. 113), “a palavra é o território comum do locutor e
do interlocutor.” É esse caráter interlocutório da fala que faz dela o lugar de produção de
“sentidos”. As palavras veiculam “significados” socialmente construídos, possibilitando a
comunicação entre os membros de uma mesma comunidade lingüística. Entretanto, ao
serem enunciadas, elas permitem a emergência de múltiplos sentidos em função da
realidade pessoal dos interlocutores e das condições concretas em que ocorre a
interlocução. Tanto Bakhtin como Vigotski distinguem entre significado e sentido na fala.
Enquanto o significado está ligado à história de um povo ou comunidade lingüística, o
sentido é construído na história pessoal dos sujeitos, emergindo na relação discursiva.
Smolka (2004 , p. 45. Grifos da autora) refere-se a essa distinção da seguinte maneira: “As
significações produzidas na trama vivenciada nas relações com os outros constituem o
drama vivenciado, de maneira singular, no nível individual.”
Portanto, os sistemas simbólicos, especialmente a linguagem, funcionam como
elementos mediadores que permitem a comunicação entre os indivíduos, o estabelecimento
34
de significados compartilhados por um determinado grupo cultural, bem como a produção
de sentidos, que possibilitam a percepção e interpretação do mundo no qual estamos
inseridos. Por tudo isso, Vigotski afirma que os processos de funcionamento mental do
homem são fornecidos pela cultura, através da mediação semiótica.
O ser humano, ao nascer, dispõe apenas de recursos biológicos característicos
da espécie, que podem ser considerados a base para o processo de humanização. Mas é a
convivência com o outro que vai possibilitar que esse processo se concretize. Por isso,
podemos falar metaforicamente em um duplo nascimento da criança: um biológico e outro
cultural. A partir do momento em que a criança nasce, progressivamente ingressa num
mundo onde as relações são mediadas pelas significações, valores e verdades de sua
cultura. Isso não quer dizer que ela será passivamente moldada pela cultura. Mas que irá
interagir com ela. É a partir dessas interações que se constituirá como ser humano. Assim,
podemos afirmar que o homem é produto e produtor de cultura. Ou seja, somos fruto das
circunstâncias, mas também contribuímos na construção destas circunstâncias.
Participamos como sujeito singular, que se singularizou a partir de sua cultura. Essa é a
essência das contribuições de Vigotski que, sem reduzir o ser humano às determinações
sociais, e ao mesmo tempo considerando as características orgânicas como base
imprescindível, conclui que a gênese da sua constituição é histórico-cultural.
Os casos de “crianças selvagens” descritos na literatura (MALSON, 1988)
podem nos ajudar a discutir a constituição histórico-cultural do sujeito. Como estas
crianças se constituíram como seres humanos? Sem referências culturais humanas, quando
foram encontradas apresentavam traços comportamentais muito mais próximas dos
animais.
Partindo da tese central de Vigotski acerca da natureza cultural do
desenvolvimento da criança, Pino (2005) propõe a hipótese de um “momento zero
cultural”, buscando indícios do início do processo de transformação das funções biológicas
em funções culturais. A busca de tais indícios deu-se através de uma pesquisa, que
consistiu na observação e registro em vídeo, de momentos da vida de uma criança desde o
nascimento até um ano de idade. Pino alerta que nesta pesquisa, na perspectiva histórico-
cultural,
[...] o que interessa [...] é o processo de transformação das funções biológicas
pela ação da cultura, transformações que só podem ser detectadas por meio dos
indícios da sua ocorrência. O objeto de análise neste trabalho não é a criança na
sua singularidade, mas o processo por que ela passa, o qual, apesar das variações
35
idiossincrásicas de cada uma das crianças, deve ser similar em todas elas. (ibid,
p. 190. Grifos do autor)
Uma das conclusões apresentadas pelo autor é a de que uma vez ocorrido o
nascimento e ter sido ativado o processo de ação da cultura, já não é possível separar os
aspectos biológicos dos culturais. “Mesmo nos casos extremos – de patologias orgânicas
ou mentais profundas – tal separação é impossível, pois as funções orgânicas são, lenta e
constantemente, humanizadas.” (ibid, p. 265)
Esta complexa relação biologia/cultura remete-nos ao modo pelo qual cada um
se apropria das práticas sociais. A ênfase na gênese social dessa apropriação é claramente
enunciada por Vigotski na “lei genética geral do desenvolvimento cultural”:
Qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas
vezes, em dois planos: primeiro como algo social, depois como algo psicológico;
primeiro entre as pessoas, como uma categoria interpsíquica, depois dentro da
criança, como uma categoria intrapsíquica. (VIGOTSKI, 1987, p. 161)
Vigotski esclarece o significado da palavra “social” em sua proposição teórica.
No sentido mais amplo, significa que tudo que é cultural é social. A cultura é precisamente
o produto da vida social e da atividade compartilhada dos homens, e, por isso, a própria
idéia do desenvolvimento cultural, já nos introduz, de maneira direta, no plano social do
desenvolvimento.
A enunciação da lei genética geral do desenvolvimento cultural contrapõe-se
tanto às teorias inatistas quanto às ambientalistas, pois considera que o processo consiste
em uma conversão de funções elementares em funções superiores. As funções psicológicas
superiores, caracteristicamente humanas, pressupõem a utilização de signos, pois o contato
com o mundo real, com a matéria, não é direto. A presença, junto dos estímulos já dados,
dos estímulos-instrumentos ou signos, criados pelo homem, é, para Vigotski, a diferença
específica do desenvolvimento humano
O processo de constituição da criança como ser humano depende duplamente
do outro: tanto pela herança genética quanto pela herança cultural. Então, a apropriação da
cultura passa, necessariamente, pelo outro, mediador entre a criança e o universo cultural.
Embora a mediação do outro seja condição necessária, não é suficiente para que ocorra
esse processo, pois ele implica uma transformação ou conversão das funções sociais em
funções pessoais.
É interessante notar que na presença de uma deficiência fica mais evidente que
o processo de desenvolvimento não se dá naturalmente, mas é construído a partir de
36
condições concretas de vida, que não estão pré-definidas no sujeito nem na família ou
grupo cultural ao qual pertence, mas que se constroem nas relações sociais. É a partir das
significações, atribuídas inicialmente pelo outro, e mais tarde, internalizadas pelo próprio
sujeito, no seu contexto, que cada um se constitui de maneira singular. Nessa perspectiva,
não se pode mais aceitar que se reduza os sujeitos a algumas peculiaridades presentes em
sua trajetória de desenvolvimento, tais como a deficiência física, mental, auditiva, visual e
tantas outras caracterizações. Porque é a atribuição de significados a esta peculiaridade que
vai constituir este sujeito, que continuará com suas características orgânicas, mas que
definirá, sempre na relação com o outro, uma maneira singular de ser e estar no mundo.
Sabemos que essa não é a concepção hegemônica de desenvolvimento humano.
Se observarmos com atenção as práticas sociais, mais especificamente as práticas
escolares, vamos encontrar a valorização do desenvolvimento já efetivado,
desconsiderando as funções que estão em processo de maturação. O produto é mais
valorizado que o processo, o aluno é avaliado pelas respostas que dá individualmente. Esta
perspectiva de avaliação considera apenas o nível de desenvolvimento efetivo, ou seja,
aquelas funções que já estão desenvolvidas na criança e que permitem que ela resolva
determinados problemas de forma independente. E não considera que as interações
promovem processos de aprendizagem, impulsionando o desenvolvimento.
Depois que o sujeito se apropria desses processos, estes não só farão parte do
seu desenvolvimento como também o impulsionarão para novos avanços. Portanto,
Vigotski evidencia que, para a avaliação do nível de desenvolvimento cognitivo da criança,
deve-se considerar também o nível de desenvolvimento potencial, referindo-se ao nível
expresso pela criança quando soluciona problemas sob orientação de um adulto ou com
auxílio de companheiros mais experientes. A consideração destes dois níveis de
desenvolvimento permite que se identifique não só o processo de desenvolvimento já
efetivado como também os processos que estão em vias de se efetivar. O movimento entre
estes dois níveis de desenvolvimento, traduzidos nas tarefas que a criança consegue
realizar com auxílio de pessoas mais experientes, é denominado por Vigotski de zona de
desenvolvimento proximal (ZDP).
Zanella (2001, p 113) traz uma contribuição importante nos estudos sobre a
ZDP:
A ZDP consiste no campo interpsicológico onde significações são socialmente
produzidas e particularmente apropriadas, constituído nas e pelas relações
sociais em que os sujeitos encontram-se envolvidos com problemas ou situações
em que há o embate, a troca de idéias, o compartilhar e confrontar pontos de
37
vista diferenciados. E que relações são essas? Podem ser tanto relações
adulto/criança, relações de pares ou mesmo relações com um interlocutor
ausente: o que caracteriza a ZDP é a confrontação ativa e cooperativa de
compreensões variadas a respeito de uma dada situação.
A partir destas idéias, podemos entender a ZDP como um campo de
possibilidades, como uma “teia coletiva" em que todos estão envolvidos com a criação de
pontos de apoio. Este campo de possibilidades é concreto, pois há trocas efetivas, há
interações entre pessoas com diferentes trajetórias e leituras. Portanto, é nas ZDPs que
professores e alunos precisam atuar, na tentativa de disponibilização de signos mediadores,
que atribuam significados e possibilitem a criação de sentidos aos conteúdos estudados.
Campione et al (1984, p. 79) apontam que Vigotski desenvolveu o conceito de
zona de desenvolvimento proximal quando era diretor do Instituto de Defectologia de
Moscou e se encontrava diante do problema de avaliação educacional no contexto instável
de uma sociedade pós-revolucionária. Havia uma preocupação com a questão da garantia
de acesso à escolarização, no sistema obrigatório de ensino estabelecido pelo governo
soviético, àqueles alunos com história de deficiência e/ou fracasso. Naquele momento, o
mais importante não era avaliar o desempenho atual de uma massa de indivíduos com
história de fracasso, e sim propor soluções que viabilizassem o acesso ao conhecimento a
todos.
O conceito de ZDP nos auxilia a compreender a interconexão entre o ensino e o
desenvolvimento. Vigotski afirmava que o ensino não deve apoiar-se tanto no que já foi
alcançado pela criança, mas nos processos em desenvolvimento, que ainda não se
consolidaram. Assim, a elaboração desse conceito demonstra uma vez mais que Vigotski
concentrou seu interesse nas possibilidades das crianças e não em suas dificuldades,
mesmo no caso de crianças com deficiência.
2.3. Os estudos da Defectologia
Vigotski define a Defectologia como “o ramo do saber acerca da variedade
qualitativa do desenvolvimento das crianças anormais, da diversidade de tipos deste
desenvolvimento e, sobre essa base, esboça os principais objetivos teóricos e práticos que
enfrentam a Defectologia e a escola especial soviética.” (BEIN, LEVINA e MORÓZOVA,
1997, p. 37)
38
Kozulin (1994) traz algumas informações sobre o início da educação especial
na Rússia. Em Moscou, a primeira escuela sanatório
24
para crianças “anormais” havia sido
organizada em 1908 por V. P. Kaschenko. Em San Petersburgo, foi criado um instituto
para formar professores de educação especial. Depois da revolução, este campo recebeu o
nome de Defectologia, e os especialistas em desenvolvimento anormal e educação especial
eram conhecidos como “defectólogos”. Kozulin esclarece que “o termo ‘defectologia’
provavelmente trazia consigo algumas conotações técnicas, mas nenhum sentido de
preconceito.” (ibid, p. 191)
Além de premissas teóricas, principalmente aquela das origens sociais das
funções psicológicas superiores, havia também razões práticas para o interesse de Vigotski
e outros estudiosos soviéticos dos anos 20 no estudo das formas divergentes de
desenvolvimento: a revolução e a guerra civil deixaram milhares de crianças de todas as
idades vagando pelas ruas das cidades e povoados russos. Estas haviam sofrido abandono e
privações de toda ordem por um período de quatro ou cinco anos, comprometendo
seriamente seu desenvolvimento. Para o estudo desses casos, foi criado o Serviço de
Defectologia .
Segundo Kozulin (ibid.), na União Soviética dos anos 20, todos os transtornos,
tanto físicos como mentais, eram vistos já em uma perspectiva social. O nome do primeiro
congresso nacional dedicado ao bem-estar infantil, realizado em 1920, expressa esta visão:
Congreso para la Lucha contra la Defectividad, Delincuencia y Abandono Infantil.
Os primeiros trabalhos de Vigotski sobre Defectologia foram publicados em
1924, período em que se dedicou simultaneamente às investigações científicas no Instituto
de Psicologia e ao trabalho no Comisariato del Pueblo de Instrucción Pública (CPIP), na
subseção de educação das crianças deficientes. Nos anos seguintes (1925-26) organizou
um laboratório de psicologia da infância anormal em Moscou (posteriormente denominado
Instituto Defectológico Experimental del CPIP). Durante os últimos anos de sua vida, ele
foi o diretor científico deste Instituto. (BEIN et al, 1997)
Vigotski situa a Defectologia naquele momento (anos 20 e 30), afirmando que:
Na defectologia, se começou antes a calcular e a medir do que a experimentar,
observar, analisar, diferenciar e generalizar, descrever e definir
qualitativamente. A defectologia prática também elegeu o caminho mais fácil
do número e da medida, e tentou tomar consciência de si como pedagogia
menor. Enquanto na teoria o problema se reduzia a um desenvolvimento
24
O termo escuela sanatório indica a referência a uma modalidade de atendimento educacional junto a
instituições psiquiátricas, presente no século XIX na Europa.
39
quantitativamente limitado e de proporções diminuídas, na prática,
naturalmente, se promoveu a idéia de um ensino reduzido e mais lento.
(Vigotski, 1997, p. 11-12)
Reagindo a este enfoque quantitativo, ele apresenta o que chama de tese básica
da Defectologia: “A criança cujo desenvolvimento está complicado pelo defeito
25
não é
simplesmente uma criança menos desenvolvida que seus coetâneos normais, mas
desenvolvido de outro modo”. (ibid, 1997, p. 12. Grifos do autor)
Assim, para Vigotski, os princípios de desenvolvimento das crianças com
deficiência são os mesmos das crianças ditas normais, apenas com alterações na
organização da estrutura durante o curso desse desenvolvimento. Por isso, considerava que
se deve tomar as leis gerais do desenvolvimento da criança e, a partir daí, estudar o que é
peculiar à criança com atraso - ao sujeito concreto, não às categorias “deficientes mentais”,
“síndrome de Down”, “paralisia cerebral”, etc.
Citando Stern
26
, Vigotski ressalta que, do ponto de vista qualitativo, o processo
de desenvolvimento infantil pode ser compreendido como uma cadeia de metamorfoses.
Assim como a criança em cada etapa do desenvolvimento apresenta uma peculiaridade
quantitativa, uma estrutura específica do organismo e da personalidade, da mesma forma, a
criança com alguma deficiência apresenta um desenvolvimento qualitativamente distinto,
peculiar. Segundo palavras de Gürtler (apud Vigotski, ibid, p. 12), “assim como do
oxigênio e do hidrogênio não surge uma mescla de gases, mas água, de igual modo a
personalidade da criança com deficiência mental é algo qualitativamente distinto da
simples soma das funções e propriedades pouco desenvolvidas”.
Vigotski apresenta outra tese central da Defectologia de sua época: “Todo
defeito cria os estímulos para elaborar uma compensação”. (Ibid, 1997, p. 14) Por isso, os
processos compensatórios constituem-se em um aspecto central no estudo do
desenvolvimento da criança com deficiência.
O fato fundamental que encontramos no desenvolvimento agravado pelo defeito
é o duplo papel que desempenha a insuficiência orgânica no processo desse
desenvolvimento e da formação da personalidade da criança. Por um lado, o
defeito é o menos, a limitação, a debilidade, a diminuição do desenvolvimento;
por outro, precisamente porque cria dificuldades, estimula um avanço elevado e
intensificado. (Ibid, p. 14)
25
O autor utiliza, nos textos publicados no Tomo V das Obras Escogidas, termos como defeito,
anormalidade, retardo, entre outros, que atualmente têm sido evitados por serem compreendidos como
estigmatizadores.
26
Stern, William (1871-1938). Psicólogo alemão. Trabalhou no campo da psicologia infantil e diferencial.
40
O conceito de compensação é trabalhado a partir das contribuições de Stern e
de Adler
27
. Em Stern, encontramos a discussão do “duplo papel do defeito”, ou seja, uma
incapacidade pode ser compensada pelo desenvolvimento intenso de outra. Vigotski
reconhece o caráter dialético da teoria de Adler, que considerava a base social do
desenvolvimento da personalidade, destacando particularmente sua proposição de que a
estrutura dos processos compensatórios era mediada pelas conseqüências sociais da
deficiência.
Ao mesmo tempo em que reconhece as contribuições de Adler, Vigotski o
critica, afirmando que:
Se pode e se deve discrepar de Adler quando ele atribui ao processo de
compensação um significado universal em qualquer desenvolvimento psíquico,
mas não existe agora, ao que parece, um defectólogo que negue a importância
primordial da reação da personalidade ao defeito, dos processos compensatórios
no desenvolvimento, quer dizer, esse quadro sumamente completo de
influências positivas do defeito, os caminhos alternativos do desenvolvimento,
seus complicados ziquezagues, quadro que observamos em cada criança com
um defeito. O mais importante é que, junto com o defeito orgânico estão dadas
as forças, as tendências, as aspirações a superá-lo ou nivelá-lo. E essas
tendências até o desenvolvimento elevado são as que não advertiu a
defectologia anterior. Ainda que precisamente elas sejam as que outorgam
peculiaridade ao desenvolvimento da criança deficiente, são as que criam
formas de desenvolvimento criativas, infinitamente diferentes, às vezes
profundamente raras, iguais ou semelhantes às que observamos no
desenvolvimento típico de uma criança normal. Não há necessidade de ser
adleriano nem de compartilhar os princípios de sua escola para reconhecer a
justeza desta tese. (Ibid, p. 15-16. Grifo do autor)
Vigotski ressalta que o processo de compensação nem sempre terá êxito, bem
como não se dá naturalmente. Trata-se de um processo de superação e de luta. Sempre há
uma reação ao defeito, que desencadeia os processos compensatórios, mas há que se
destacar que as causas orgânicas inatas não atuam por si mesmas, não diretamente, mas de
forma indireta, através do lugar social que a criança passa a ocupar na presença de alguma
limitação.
Os processos de compensação criam, então, novas vias para o
desenvolvimento. Uma criança cega ou surda pode alcançar os mesmos níveis de
desenvolvimento de uma criança “normal”, mas o consegue de outro modo, por outro
caminho, com outros meios. Portanto, a intervenção pedagógica deveria centrar-se nos
aspectos secundários da deficiência, no desenvolvimento dos processos superiores mais
27
Adler, Alfred (1870-1937). Psiquiatra e psicólogo austríaco, criador da corrente psicológica conhecida
como Psicologia Individual. Colaborador de Freud, rompe com este por divergências de ordem política e
social.
41
suscetíveis de compensação. Os aspectos primários da deficiência desencadeiam certas
limitações naturais na criança, mas são as limitações secundárias, mediadas social e
psicologicamente, as que definem o perfil particular de uma pessoa com deficiência. Ou
seja, o que está alterado são os processos naturais de visão, audição, movimento ou
atividade intelectual, enquanto que o que precisa ser desenvolvido são os processos
superiores, através da educação, de atenção seletiva, inteligência verbal, memória lógica,
etc. Portanto, o treinamento sensório-motor, as atividades simplificadas e repetitivas não
contribuem para os processos de compensação social.
Vejamos agora o que nos diz Vigotski sobre os processos compensatórios no
desenvolvimento da criança com deficiência mental. Inicialmente, ele faz uma crítica ao
modelo clínico, que
tomou o retardo mental “como uma coisa”, e não como um processo. Se
interessaram pelos sintomas de estabilidade, de perseverança, enquanto que a
dinâmica da criança mentalmente retardada, as leis de seu desenvolvimento e a
unidade dessas com as leis de desenvolvimento da criança normal, tudo isso
ficou – e, em realidade, não podia deixar de ficar – fora do campo visual da
clínica. (Ibid, p. 131)
Esse modelo influenciou fortemente a educação especial, que construiu sua
prática a partir deste enfoque clínico, que focaliza os limites, o “defeito” e não as
possibilidades de desenvolvimento.
Nessa mesma direção, López Melero (2004) critica o conceito clássico de
diagnóstico, que rotula as pessoas com alguma deficiência como doentes-retardados-
subnormais-deficientes. Segundo ele, tal concepção de diagnóstico expressa o Paradigma
Deficitário e não oferece possibilidade de mudança às pessoas. É um diagnóstico
fragmentado, estático, determinista e classificador.
Contrapondo-se ao Paradigma Deficitário, a possibilidade de mudança traduz-
se no Paradigma Competencial educativo, que reconhece as pessoas com deficiência como
pessoas e não como doentes. Neste paradigma, o diagnóstico não se limita aos déficits,
apontando também as competências. Ou seja, o diagnóstico pode representar a
oportunidade para a mudança. Nas palavras de López Melero (2003a, p. 284-285):
Nós pensamos que o diagnóstico não pode ser algo perverso. Ao contrário, o
diagnóstico é como o umbral do conhecimento, é como uma porta aberta à
indagação e à descoberta: é um convite à busca permanente e sempre há de ter
um caráter provisório. O desenvolvimento humano não consiste só em assinalar
o que alguém é agora, mas o que pode ser com a ajuda educativa dos demais e
com a cultura.
42
Portanto, mais importante que diagnosticar a deficiência, é apresentar
propostas de intervenção que promovam o desenvolvimento. Para tanto, é imprescindível
que se conheçam as leis que regem tanto o desenvolvimento normal quanto o
desenvolvimento alterado por alguma deficiência.
Nesta discussão, Vigotski retoma sua premissa sobre a unidade de leis que
regem o desenvolvimento das crianças, mesmo aquelas com deficiência mental, ou com
qualquer outra condição diferenciada. E reafirma que tal premissa não nega o fato de que
as leis de desenvolvimento da criança com deficiência adquirem uma expressão específica
qualitativamente peculiar. Ao contrário, é necessário demonstrar que estas leis, únicas em
sua essência e seus princípios, adquirem sua expressão concreta e específica aplicadas à
criança com deficiência.
Deparamo-nos então com outro problema, outra compreensão ainda aceita
hoje, no Século XXI, de que na deficiência mental há alterações primárias, de caráter
orgânico, que seriam a base de todo o desenvolvimento posterior, como é o caso da
associação de causa e efeito que ainda se faz entre síndrome de Down e deficiência mental.
Vigotski (1997, p. 133) coloca-se totalmente contrário a essa visão, dizendo que: “Desde o
ponto de vista dialético, não há concepção mais errônea e incorreta que esta, porque
precisamente no processo de desenvolvimento, o primário, que aparece na etapa inicial do
desenvolvimento é ‘superado’ reiteradamente pelas novas formações qualitativas que se
originam.” O autor chama a atenção para a palavra “superação” (sniatie, em russo),
dizendo que às vezes é traduzida e, portanto, compreendida de forma incorreta. Vigotski
esclarece:
Esta palavra provém da alemã “aufheben” [“sjoronti” - guardar, esconder], mas
em alemão essa palavra tem duplo significado, assim como a palavra “sjoronti”
tem em russo duplo significado. Quando se diz “sjoronti” a propósito de uma
regularidade orgânica, não significa que [ela] deixou de existir, mas que está
conservada em alguma parte, que se encontra em segundo plano, está contida
dentro de alguma coisa, retrocedeu a um plano posterior em comparação com as
regularidades que surgiram em etapas mais tardias. Por isso é compreensível
que as regularidades biológicas, que se originam nas determinações da primeira
etapa do desenvolvimento dos retardados mentais, estejam “escondidas”, não
eliminadas, mas “superadas”, no processo de desenvolvimento da criança
mentalmente retardada. (ibid, p. 133-134)
E complementa, afirmando que o foco da atenção deve ser o desenvolvimento
da criança, os movimentos de reestruturação diante das dificuldades, e não as dificuldades
em si:
43
Para a educação da criança mentalmente retardada, é importante conhecer como
se desenvolve, não é importante a insuficiência em si, a carência, o déficit, o
defeito em si, mas a reação que nasce na personalidade da criança, durante o
processo de desenvolvimento, em resposta à dificuldade com a qual tropeça e
que deriva dessa insuficiência. A criança mentalmente retardada não está
constituída só de defeitos e carências, seu organismo se reestrutura como um
todo único. (ibidem, p. 134)
De onde provém a força motriz dos processos compensatórios? Vigotski diz
claramente que é da vida social da criança, das oportunidades de acesso aos signos
culturais, nos quais encontra o material para construir funções psicológicas superiores que
lhe permitam estar inserida nas práticas sociais de seu grupo cultural.
Portanto, é através da compensação, que sempre será social, que sujeitos com
características diferentes da maioria da população podem se desenvolver numa direção
diferente daquela traçada pelos prognósticos tradicionais.
Uma outra questão importante trabalhada por Vigotski é a correlação entre o
intelecto e o afeto, principalmente na compreensão da peculiaridade de desenvolvimento
de crianças consideradas deficientes mentais. Enquanto inicialmente os processos afetivos
influem nos cognitivos, no curso do desenvolvimento, as funções psicológicas superiores
começam a exercer uma influência inversa, organizadora, sobre os processos afetivos que
estão em sua base.
Vigotski realizou uma revisão da teoria dinâmica proposta por Kurt Lewin
28
,
um dos primeiros a propor que a deficiência mental não é decorrência apenas da
deficiência do intelecto. Lewin aponta a imaturidade da motivação como um componente
fundamental da deficiência mental. Através de uma série de experimentos, demonstrou o
caráter imaturo dos processos afetivos das crianças retardadas. Sua conclusão era de que as
estruturas dinâmicas da mente retardada estão menos diferenciadas e são mais rígidas que
as do psiquismo normal. As crianças com deficiência mental se comportam muitas vezes
de um modo disjuntivo (ou isto ou aquilo), mostrando-se incapazes de adequar-se a
mudanças. Lewin considera que a principal característica dessas crianças é a falta de
fantasia. Isso não significa que careçam de representações, possuindo com freqüência boa
memória de fatos concretos. Ainda assim, seu pensamento carece de imaginação, já que
nele está ausente a mobilidade necessária à atividade imaginativa.
Vigotski destaca o fato de que a rigidez da conduta está diretamente ligada à
natureza excessivamente concreta do pensamento retardado. Mas, ainda que a rigidez na
28
Kurt Lewin (1890-1947). Psicólogo alemão, considerado por muitos autores como o fundador da
Psicologia Social.
44
esfera afetiva aprisione o pensamento em situações concretas, quando este alcança um
maior nível de abstração, a conduta se faz mais flexível. Vigotski e seus colaboradores
refizeram alguns dos experimentos feitos por Lewin com modificações cuja meta era
explorar a influência recíproca da inteligência e dos processos afetivos. Assim, em um
estudo sobre a saciedade psicológica, se pedia às crianças que realizassem determinadas
tarefas, como traçar linhas muitas vezes. Todas elas terminavam por negar-se a seguir a
tarefa, o que era um indício de que haviam alcançado um estado de saciedade. Nesse
momento, a situação se modificava numa tentativa de induzi-las a seguir com sua
atividade. As crianças com deficiência mental só prosseguiam na tarefa se fossem
modificadas as condições físicas: por exemplo, substituir um lápis preto por outro de cor;
depois, o de cor se trocava por um pincel; e assim sucessivamente. Por outro lado, as
demais crianças, sem deficiência, prosseguiam na tarefa quando mudava apenas o
significado da situação, sem modificá-la fisicamente. Por exemplo, era suficiente que se
dissesse à criança que agora ela seria a instrutora e teria que ensinar outra criança como
fazê-lo. Com o grupo com deficiência mental, o método de mudar o significado não
funcionava. O que levou Vigotski a concluir que a flexibilidade da motivação depende
essencialmente do desenvolvimento da abstração e da imaginação.
Vigotski chegou à conclusão de que a tese de Lewin acerca da influência da
motivação sobre o conhecimento devia completar-se com a tese de que existe uma
influência recíproca da inteligência sobre os processos afetivos. A análise comparada de
crianças com e sem deficiência mental mostrava que nem a inteligência nem a motivação
separadamente distinguem o seu funcionamento mental, mas sim a forma particular de
relação interfuncional que se produz entre ambas as esferas.
A análise crítica feita sobre a teoria de Lewin acerca da deficiência mental
aponta para um núcleo que Vigotski considerava valioso, que consiste na idéia da unidade
dos processos afetivos e intelectuais. Porém, o grande erro de Lewin estava em separar a
dinâmica afetiva da manifestação do intelecto, não vendo nexo entre ambos. Nas palavras
de Vigotski,
Lewin não conhece a regra dialética de que no curso do desenvolvimento a
causa e o efeito mudam de lugar, que as formações psíquicas superiores, uma
vez surgidas sobre a base de certas premissas dinâmicas, exercem uma
influência inversa nos processos que elas geraram, que no desenvolvimento, o
que é inferior é substituído pelo que é superior, que no desenvolvimento se
modificam não só as funções fisiológicas em si, mas em primeiro lugar mudam
os nexos e as relações interfuncionais entre os processos singulares, em
particular entre o intelecto e o afeto. Lewin examina o afeto fora do
desenvolvimento e fora do vínculo com a vida psíquica restante. Supõe que o
45
lugar do afeto na vida psíquica se mantém imutável e constante em todo o
transcurso do desenvolvimento e que, por conseguinte, as relações do intelecto e
o afeto são de uma magnitude constante. Mas em realidade, Lewin só toma um
caso particular de toda a diversidade de relações entre o intelecto e o afeto, que
se observam efetivamente no desenvolvimento, o caso particular que se refere
precisamente às regularidades nos níveis mais baixos e mais primitivos do
desenvolvimento e eleva este caso particular à categoria de lei geral. (Ibid,
1997, p. 262)
Vigotski (1997, p. 265) utiliza uma analogia para esclarecer sua crítica a
metodologias como a utilizada por Lewin: se queremos explicar por que a água apaga o
fogo, é inútil recorrer à decomposição da água em seus elementos, pois nos daremos conta
de que o hidrogênio queima por si só e que o oxigênio mantém a combustão. Então, a saída
seria substituir a análise que decompõe a unidade em elementos, por uma análise que
articule as unidades complexas em unidades relativamente simples, posteriormente
indivisíveis, e que representem na forma mais simples as unidades próprias do todo. É esse
o raciocínio dialético utilizado pelo autor para o entendimento da unidade indivisível do
intelecto e afeto.
Levando em conta as possibilidades das crianças com deficiência mental ou
com outras deficiências, Vigotski faz profundas críticas a outras teorias basicamente
pessimistas, que consideravam o treinamento de funções como o método para o ensino e a
educação da criança com deficiência mental. Opôs-se a essa visão afirmando que se a
criança chega a dominar os rudimentos do pensamento e da linguagem, signo por
excelência, estão dadas as possibilidades de construção de funções psicológicas superiores.
Outros estudiosos continuaram o trabalho iniciado por Vigotski no Instituto de
Defectologia , tais como seus ex-alunos Roza Levina, Natalya Morózova e Jozefina Shif.
Além deles, Ivan Sokolyanski, que não era membro do grupo, desenvolveu uma
metodologia de reabilitação para surdos-cegos, a partir do modelo teórico proposto por
Vigotski. Esta metodologia estava calcada no princípio da atividade compartilhada, na qual
o educador deveria realizar primeiro toda a ação segurando as mãos da criança. Depois, era
ela que entrava em ação com auxílio e, por último, o educador se limitava a proporcionar
um sinal para que ela iniciasse a ação. Segundo Kozulin (1994.), Sokolyanski recriou a
zona de desenvolvimento proximal quase em estado puro.
Kozulin comenta também o trabalho de Alexander Mescheryakov, discípulo de
Luria e Sokolyanski, que igualmente desenvolveu metodologias de reabilitação para
crianças com deficiências graves, criando uma escola especial em Zagorsk, perto de
Moscou. Quatro de seus estudantes surdo-cegos, depois de terminar os estudos na escola
46
especial, matricularam-se no programa de Psicologia da Universidade de Moscou. Estes
casos geraram intensos debates, que retomaram a polêmica sobre a influência da natureza
frente à da educação. Alguns filósofos, sobretudo Evald Ilyenkov, defendiam que o êxito
do desenvolvimento cognitivo dos surdo-cegos era uma prova a favor da educação, pois
nem mesmo o mais severo déficit conseguia determinar o curso do desenvolvimento
psicológico do indivíduo.
2.4 A deficiência mental como produção social
É a partir dos pressupostos apresentados, em especial dessa relação
indissociável entre biologia e cultura, que se inscreve minha tese de que a deficiência
mental é uma produção social.
Vigotski distingue aspectos de ordem primária e de ordem secundária na
constituição de uma deficiência. Os aspectos primários referem-se a lesões orgânicas,
lesões cerebrais, malformações orgânicas, alterações cromossômicas, enfim, características
físicas comumente apontadas como causas da deficiência e que interferem
significativamente no processo de desenvolvimento de indivíduos considerados portadores
dessa deficiência. Os aspectos secundários não estão diretamente ligados ao primário, mas
traduzem as dificuldades geradas pela deficiência primária. Vejamos o que diz Vigotski
(1977, p.18): “A própria ação do defeito resulta sempre secundária, não direta, refletida.
Como já dissemos, a criança não sente diretamente sua deficiência. Percebe as dificuldades
que derivam da mesma. A conseqüência direta do defeito é o rebaixamento da posição
social da criança; o defeito se realiza como desvio social.”
A distinção destes dois aspectos leva Vigotski a formular a seguinte questão:
“O desenvolvimento incompleto das funções superiores na criança com deficiência mental
está determinado diretamente pela causa originária (primária) ou se trata de uma
complicação de ordem secundária?” E responde, com base em dados experimentais e em
estudos clínicos: “O desenvolvimento incompleto das funções superiores está ligado ao
desenvolvimento cultural incompleto da criança mentalmente retardada, à sua exclusão do
ambiente cultural, da nutrição ambiental.” Freqüentemente as dificuldades secundárias são
o resultado de uma educação incompleta, de uma negligência pedagógica. (Ibid, p. 144.
Grifos do autor)
A idéia de que a incompletude do desenvolvimento das funções superiores na
criança com deficiência mental está vinculada às relações sociais estabelecidas com ela, e
47
não somente às dificuldades individuais, dadas pela sua configuração biológica, é o foco da
tese que defendo: a deficiência mental como uma produção social, resultado das relações
com o sujeito que apresenta como característica primária algum comprometimento
cerebral, ou mesmo com sujeitos que não apresentam nenhum comprometimento orgânico.
Nestes últimos casos, a produção social da deficiência é ainda mais evidente.
Não se trata aqui de negar a existência da deficiência mental como condição
apresentada por sujeitos com algum comprometimento, orgânico ou não, e, sim, de
compreender que esta condição não está dada inicialmente, mas que vai se construindo na
medida em que não se possibilita condições de desenvolvimento de acordo com suas
peculiaridades. Além disso, é preciso considerar o quanto se oferece a estes sujeitos
ambientes e práticas simplificadas, adaptadas à condição inicial apresentada por cada um
deles. Nas palavras de Vigotski:
Um ensino orientado até uma etapa de desenvolvimento já realizado é ineficaz
do ponto de vista do desenvolvimento geral da criança, não é capaz de dirigir o
processo de desenvolvimento, mas vai atrás dele. A teoria do âmbito de
desenvolvimento potencial [zona de desenvolvimento proximal] origina uma
fórmula que contradiz exatamente a orientação tradicional: o único bom ensino é
o que se adianta ao desenvolvimento. (VIGOTSKI, 1988, p. 114. Grifos do
autor)
E, mais especificamente, sobre o ensino de crianças com deficiência mental:
[...] o sistema de ensino baseado somente no concreto – um sistema que elimina
do ensino tudo aquilo que está associado ao pensamento abstrato – falha em
ajudar as crianças retardadas a superarem suas deficiências inatas, além de
reforçar essas deficiências, acostumando as crianças exclusivamente ao
pensamento concreto e suprimindo, assim, os rudimentos de qualquer
pensamento abstrato que essas crianças ainda possam ter. Precisamente porque
as crianças retardadas, quando deixadas a si mesmas, nunca atingirão formas
bem elaboradas de pensamento abstrato, é que a escola deveria fazer todo
esforço para empurrá-las nessa direção, para desenvolver nelas o que está
intrinsecamente faltando no seu próprio desenvolvimento. (VIGOTSKI, 1991, p.
100)
A criança inicia seu desenvolvimento em um mundo já humanizado, carregado
de significados sociais atribuídos pelas gerações que a precedem. É principalmente a partir
das interações na família que ela se constitui e isso não se dá naturalmente. Daí a
importância dos primeiros anos de vida, que devem ser plenos de experiências
significativas de apropriação dos valores culturais. No caso de crianças com algum déficit,
seja sensorial, motor, neurológico ou qualquer outro que represente uma situação de risco
ao desenvolvimento, tais experiências precisam ser intensificadas, garantindo assim a
48
possibilidade de formação de funções psicológicas superiores. A escassez de estimulação
significativa compromete o seu desenvolvimento integral.
Nesse sentido, a deficiência mental pode ser entendida como uma decorrência
mais das condições concretas de vida, das relações que se estabelecem entre as pessoas, do
que das características pessoais próprias de quem tem alguma limitação orgânica. Assim, é
possível compreender que as pessoas, mesmo aquelas com características físicas
identificadas socialmente como deficiências, podem relacionar-se e constituir-se de outras
formas, a partir de outras relações. (GARCIA, 1999)
Focalizando a importância dos contextos sociais, é possível afirmar que
enquanto o sujeito não tem acesso ao universo dos signos e aos processos de significação,
ele não desenvolve formas superiores de pensamento. Portanto, este não-desenvolvimento
tem muito mais a ver com a escassez ou mesmo ausência de oportunidades de mediação
semiótica do que com a lesão, com a alteração cromossômica ou com qualquer outra
condição, orgânica ou não, significada como incapacidade individual. Consideremos
somente a condição orgânica de uma pessoa com síndrome de Down, por exemplo.
Sabemos que a trissomia do 21 altera todas as células, todos os sistemas, em especial o
sistema nervoso, tanto na formação de estruturas quanto no seu funcionamento. Deste
ponto de vista, as possibilidades de desenvolvimento cognitivo são limitadas, pois há
alterações estruturais e funcionais. Porém, se diante dessas condições alteradas,
possibilitamos a esta pessoa uma “nutrição ambiental”, com muito mais estímulos,
desafios, acesso aos signos mediadores que permitem a formação de funções superiores, aí
é impossível a previsão dos limites e possibilidades.
Não se trata de comparar o desenvolvimento desses sujeitos, que possuem
limites marcados biologicamente, com o daqueles que trazem as possibilidades orgânicas
sem comprometimentos, dentro do padrão considerado normal. Quero é ressaltar que é
possível mudar a relação com esses sujeitos. Partindo do princípio de que todo ser humano
pode aprender, podemos afirmar que todos, ainda que com condições físicas, mentais,
sensoriais, neurológicas ou emocionais significativamente diferentes, podem desenvolver
suas funções superiores.
Portanto, é possível reafirmar que o desenvolvimento humano, incluindo aqui
tanto o padrão considerado normal quanto o desenvolvimento peculiar de sujeitos com
diferenças significativas, se dá sempre no entrelaçamento de aspectos biológicos e
culturais.
49
3 AS HISTÓRIAS DE VIDA COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA
A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente
recorda, e como recorda para contá-la.
(Gabriel García Márquez - Viver para contar)
A utilização de métodos narrativos em pesquisas na área da educação vem
ganhando espaço nos últimos anos, especialmente as biografias, autobiografias e histórias
de vida.
Há argumentos importantes que sustentam o crescimento do uso de tais
metodologias. Um deles é a crítica às grandes explicações universalizantes. Há uma
tendência, tanto no campo da História quanto das Ciências Sociais, e mais especificamente
na Educação, de se valorizar a experiência subjetiva, singular, apoiando-se em pontos de
vista individuais e incorporando elementos e perspectivas às vezes ausentes em outras
práticas: subjetividade, emoções e cotidiano.
Isso não significa reduzir a discussão a uma experiência individual, pois, como
afirma Vieira (1999, p. 50): “A história de vida de uma pessoa, para além de todas as
subjectividades individuais e da idiossincrasia de alguns factos, acaba por ser social e não
apenas singular.”
Lozano (2002), discorrendo sobre práticas de pesquisa em História Oral
29
,
afirma que a consideração do âmbito subjetivo da experiência humana é o núcleo do
trabalho deste método de pesquisa histórica. Aponta também o reconhecimento de que a
História Oral constitui-se numa confluência multidisciplinar
30
entre a História e as demais
ciências sociais e do comportamento, especialmente a Antropologia, a Sociologia e a
Psicologia. Nestas áreas, a utilização de fontes orais ainda é vista com certa desconfiança,
em função da “matéria-prima” utilizada: “a oralidade vertida em depoimentos e tradições,
relatos e histórias de vida, narrações, recordações, memória e esquecimentos etc., todos
29
“A denominação ‘história oral’ é ambígua, pois adjetiva a História e não as fontes – estas, sim, orais. A
designação foi criada numa época em que as incipientes pesquisas históricas com fontes orais eram alvo de
críticas ácidas do mundo acadêmico, que se recusava a considerá-las objetos dignos de atenção e,
principalmente, a conceder-lhes status institucional. No embate que se seguiu, pela demarcação e aceitação
do novo campo de estudos, o adjetivo ‘oral’, colado ao substantivo ‘história’, foi sendo divulgado e reforçado
pelos próprios praticantes da nova metodologia, desejosos de realçar-lhe a singularidade, diferenciando-a das
outras metodologias em uso, ao mesmo tempo em que lhe afirmavam o caráter histórico.” (AMADO &
FERREIRA, 2002, p. xii,)
30
Sobre o caráter multidisciplinar da História Oral, ver também Weber (1996).
50
estes rotulados como elementos subjetivos de difícil manejo científico.” (LOZANO, 2002,
p. 18. Grifo do autor)
Aqui é possível resgatar um argumento diante de possíveis críticas quanto à
confiabilidade do conteúdo das narrativas produzidas pelos sujeitos. Eu diria que o que
importa não é a “verdade”, a objetividade dos fatos, sua regularidade, mas como e por que
o sujeito articula sua narrativa. O que importa é a “verdade” construída pelo sujeito datado,
na teia de relações na qual ele se constitui. Sarmento (1994, p. 123. Grifo do autor),
falando sobre narrativas e métodos qualitativos em estudos educacionais e organizacionais,
afirma que:
Contar histórias é uma forma que os seres humanos utilizam para dar corpo a
idéias, assunções, crenças e valores, que se entretecem nas intrigas narrativas e
se sintetizam na moralidade final que todas as boas histórias apresentam. Mas,
contar histórias é também uma forma de estabelecer laços de sociabilidade e de
fazer reflectir, no enredo, os fundamentos mesmos da reunião de quem se
encontra para (ouvir) contar histórias [...]. Contar histórias é, finalmente, não
apenas a demonstração de um saber, mas a realização de um fazer: quem conta
histórias organiza um mundo, dá-lhe sentido, comunica-o de tal forma que, pelo
confronto com o mundo, que está fora ou para além da história, este é
transformado, ganhando novos sentidos e interpretações.
Caiado (2006, p. 44), trabalhando com depoimentos orais temáticos de cegos
que trazem lembranças de sua escolarização, faz uma importante reflexão sobre este
procedimento metodológico na pesquisa em educação especial:
Estudar um indivíduo real é uma opção metodológica que se recusa a trabalhar
sobre uma idealização de homem, de educação (especial), de escola. Visa, sim,
a conhecer as determinações sociais que engendraram a narrativa daquela vida
e, então, refletir sobre as determinações sociais que no tempo presente tecem
novas vidas.
Mais especificamente sobre a utilização da História de Vida, Glat et al (2004)
apresentam uma síntese de um conjunto de pesquisas na área da educação especial que
utilizam esse método no Brasil desde o final do anos 80. Os autores mostram que os
sujeitos ouvidos nessas investigações são tanto pessoas com história de deficiência quanto
profissionais que atuam diretamente com elas, havendo também estudos que focalizam as
percepções e vivências de familiares dessas pessoas.
Antoinette Errante, a partir de sua vivência como pesquisadora em história oral
durante 13 anos em Portugal e Moçambique, também aponta questões importantes sobre o
uso de narrativas nas pesquisas em educação, principalmente para o fato de ainda utilizá-
las como uma estratégia de pesquisa sem uma discussão de métodos particulares para o
engajamento no trabalho narrativo: “O que significa coletar e analisar narrativas pessoais?
51
Como as pessoas verbalizam suas narrativas ou como narram sua voz?” (ERRANTE, 2000,
p. 143) Considerando estas questões, ressalta que nas histórias narradas, a voz que emerge
é resultado da interação entrevistador-narrador, ou seja, é a partir desta interação que a
história é narrada. O narrador produz uma versão de sua história articulando lembranças,
vivências, pensamentos e sentimentos. Ainda que a palavra seja dada ao narrador, é no
diálogo com o entrevistador que a trama da narrativa é tecida. Portanto, mais que contar
uma história, narrador e entrevistador estão produzindo uma versão dessa história,
atravessada por concepções teóricas, crenças e valores.
3.1 O uso de métodos narrativos na pesquisa sobre deficiência mental
A relação entrevistador-narrador rompe com a tradicional relação
entrevistador-entrevistado. Tira o sujeito que narra do papel de mero informante e confere-
lhe um lugar de produtor de sua história.
Essa perspectiva é bastante promissora para uma ruptura nos modelos de
pesquisa com sujeitos considerados deficientes mentais, cujo cotidiano vem sendo alvo de
inúmeras pesquisas em educação especial. Porém, ainda são poucos os trabalhos
desenvolvidos a partir do olhar e da voz destes sujeitos. Fala-se deles, mas não com eles.
Ainda hoje, é forte o estereótipo do deficiente mental como uma pessoa que não tem
condição de falar sobre sua vida, seus desejos, sentimentos, opiniões, precisando emprestar
a voz de outrem para se fazer ouvir. (JANNUZZI, 1994)
O uso de métodos tradicionais de pesquisa que confere a esses sujeitos um
lugar de objeto de estudo, subordinado aos interesses e à narrativa do pesquisador, reforça
o modelo médico da deficiência mental como uma incapacidade individual, inerente ao
sujeito. Já o uso das narrativas como estratégia metodológica pode integrar estas pessoas
como partícipes na investigação, rompendo com a idéia de incapacidades localizadas no
sujeito.
Dentre as poucas pesquisas que utilizam métodos narrativos com sujeitos com
diagnóstico de deficiência mental ou com dificuldades de expressão oral, destaco os
trabalhos desenvolvidos por Glat (1989) Booth (1998), Kassar (2003) e Meletti (2002).
Glat (1989) entrevistou mulheres diagnosticadas como deficientes mentais,
alunas de três instituições especializadas, com o objetivo de ouvir o que essas mulheres
52
tinham a dizer sobre si mesmas e tentar entender até que ponto suas vidas estavam restritas
ao papel social estereotipado de deficiente
O trabalho de Booth (1998) apresenta diferentes modalidades e propósitos de
métodos narrativos, apontando também características comuns, afirmando que eles
proporcionam uma “visão interior das pessoas”, porque as tratam como “testemunhas
especializadas” ou “peritas” nos assuntos de suas próprias vidas. Problematizando a
relação entre o individual e o coletivo, cita Bertaux-Wiame:
Escutando além das palavras de um informante particular, é possível perceber os
ecos da experiência de outras pessoas e identificar os temas que lhes convertem
também em relatos de um grupo. Estes fios comuns que unem as explicações das
pessoas revelam como suas vidas estão conformadas pela sociedade mais ampla,
e descobrem a rede de relações sociais às quais pertencem. (Ibid, p. 256)
Nesse sentido, cita também Ferrarotti
31
, que afirma que “o esforço por
compreender uma biografia em toda sua singularidade [...] se converte no esforço por
interpretar um sistema social.” (Ibid, 1998, p. 256)
Apoiando-se em seu estudo sobre a visão de paternidade dada por pais com
dificuldades de aprendizagem, através do método de relato de vida
32
, Booth elenca
problemas comuns na utilização de métodos narrativos com sujeitos incapazes de
comunicar-se com fluência mediante palavras. O primeiro deles é o relato em si. Embora
na metodologia de relato de vida se utilizem entrevistas abertas, com o mínimo de
intervenção do entrevistador, nesse estudo, os narradores tendiam mais a responder às
perguntas com uma palavra, uma frase curta ou solta. Muitas informações só eram obtidas
mediante perguntas diretas. Mesmo assim, Booth afirma que essa carência na fluência
verbal não era obstáculo para que os pais contassem suas histórias. O que acontecia era que
o entrevistador, mesmo trabalhando com uma metodologia em que o foco está no narrador,
precisava adequar técnicas de entrevista, revendo também o tempo necessário para obter as
informações. Além disso, precisava reconhecer que, diante da falta de um relato contínuo e
compreensível por si, aumentava sua responsabilidade na transformação dos relatos em
texto. A questão da redação é destacada por Booth, que aponta os riscos que se corre ao se
cortar determinadas informações repetitivas, ao acrescentar palavras para conferir
inteligibilidade ao texto, ou ainda ao traduzir expressões corporais, silêncios e outras
manifestações não-verbais do narrador. A redação implica um processo de interpretação,
31
Franco Ferrarotti. Sociólogo italiano, representante da escola italiana de História Oral.
32
Booth diferencia “Relato de Vida”, um relato oral de toda a vida de um sujeito ou de parte dela, de
“História de Vida”, relato de vida incluindo também informação biográfica obtida em outras fontes. (Ibid,
1998, p. 255).
53
que vai além da análise das informações, incluindo também a discussão da representação e
da autoria. Sobre essa questão, Booth (Ibid, p. 261) destaca que:
[...] as pessoas com dificuldades de aprendizagem estão em má posição para
enfrentar a falsa interpretação que na literatura se dá de sua experiência. Devido
em parte a esta razão, alguns estudiosos exigem uma “ética da representação”
que obrigue aos investigadores narrativos a deixar bem claro quem é que fala em
suas histórias.
Sobre a questão da autoria (referida por Booth como “a propriedade”), é
importante que se pense na perspectiva de um trabalho de colaboração, já que as histórias
narradas surgem como produto de ao menos dois autores: o narrador e o pesquisador.
Pensando no produto final, na história narrada de forma coletiva, articulando a fala do
narrador à redação feita pelo pesquisador, pode-se retomar uma das críticas acerca da
fidedignidade das informações coletadas por meio de relatos orais. O autor pontua essa
questão como a distinção entre “o relato” e “a verdade”: “Cada relato de vida é só uma
dentre as muitas versões possíveis, e todas devem algo a essa determinada relação da qual
surgem.”(Ibid, 1998, p. 262) Dessa forma, reafirma que o interesse central na utilização
dos métodos narrativos não é conhecer uma verdade que possa ser comprovada, mas
conhecer a verdade articulada pelo narrador.
No outro trabalho destacado, Kassar (2003, p. 417), buscando entender como
ex-alunos encaminhados para classes especiais para deficientes mentais no município de
Corumbá (MS) percebem as ações propostas, focaliza a voz e o olhar desses sujeitos.
Através de entrevistas abertas com ex-alunos (hoje com idades entre 20 e 25 anos),
entrelaçadas aos depoimentos de seus professores (coletados na época em que os alunos
freqüentavam o serviço de educação especial), é colocada a possibilidade de uma
“reconstrução da história pelos sujeitos” que a viveram.
Kassar aponta que o desenvolvimento de suas pesquisas sobre políticas
educacionais e educação especial tem levado à necessidade de contato com diferentes
campos do conhecimento, com destaque para a História e a Psicologia. Buscando entender
o ser humano inserido no movimento da história, privilegia fontes de informação para além
daquelas usuais, tais como documentos e outros registros escritos: as histórias que os
alunos têm pra contar sobre suas vivências escolares. Propondo-se a entender a história sob
o “olhar” de quem a vive,
[...] tentamos dar nitidez às figuras sem contorno definido, às imagens disformes
ou aos dizeres sem sentido aparente. Numa relação de interseção de diferentes
campos do saber, tentamos construir o conhecimento. Buscando considerar a
54
totalidade, olhamos os detalhes; procurando explicitar o singular, olhamos o
genérico; tentando entender o sujeito, olhamos a sociedade. (Ibid, p. 417)
O trabalho de Meletti (2002), também já destacado, constitui-se em mais uma
contribuição para a discussão sobre a utilização de métodos narrativos em pesquisas com
sujeitos com história de deficiência mental. As reflexões trazidas pela autora se apóiam na
pesquisa que consistiu na análise do cotidiano dessas pessoas em uma instituição de
educação especial, tendo por objetivo “analisar o significado que o processo de preparação
para o trabalho tem para jovens e adultos considerados deficientes mentais, através de seu
relato oral” (Ibid, p. 1.093) A autora utilizou a entrevista recorrente como técnica de coleta
de informações. Tal procedimento, além de ter proporcionado uma análise minuciosa do
cotidiano institucional, possibilitou aos sujeitos participantes a reflexão e o
aprofundamento dos conteúdos de seu próprio discurso. Sobre a opção de dar a voz à
pessoa com deficiência mental, Meletti (Ibid, p. 1.093) afirma que: “[...] dar-lhe a palavra é
uma forma de começar a romper com o estereótipo de que ela não é capaz de compreender
o que a cerca, dando-lhe a possibilidade de se fazer ouvir sem ser através da voz do outro”.
Nessa mesma direção, procuro dar visibilidade a histórias de vida de três
adultos que tiveram prognóstico de deficiência mental na infância. Dois deles têm
síndrome de Down. O outro está aguardando resultado de novo cariótipo
33
, pois convive
desde a infância com a dúvida de ter ou não a síndrome. Estas três pessoas eram candidatas
à escola especial e ao diagnóstico de deficiência mental, porém, por diferentes
circunstâncias, tiveram uma trajetória bastante diferente da que estava prevista para elas.
Todas se escolarizaram no ensino comum e, mesmo com dificuldades e barreiras,
chegaram à universidade.
Para defender a tese de que a deficiência mental é também uma produção
social, considero ser uma estratégia interessante o trabalho com histórias de vida de
sujeitos com tais características.
33
O diagnóstico preciso da síndrome de Down é confirmado com o estudo cromossômico, através de um
exame conhecido como cariograma, que analisa o material cromossômico de cada núcleo celular através de
uma amostra de células do sangue. Através do cariograma é possível obter o cariótipo de uma pessoa, que
seria uma espécie de carteira de identidade genética. (WERNECK,1995; SCHWARTZMAN, 1999 e TUNES
& PIANTINO, 2003)
55
3.2 A construção da amostra: o perfil dos sujeitos
Ainda são poucos os casos conhecidos de pessoas com alterações orgânicas
significativas que, superando seus limites e/ou aprendendo a conviver com eles, rompem
com o prognóstico da deficiência mental. Os sujeitos desta pesquisa possuem esse perfil.
Considero importante aqui destacar como se deu a construção dos critérios para eleger tais
sujeitos. A pesquisa começou a se desenhar a partir do primeiro contato com Ivan e sua
família. Com uma história de significativo atraso no desenvolvimento neuropsicomotor e
dúvidas quanto a ser ou não portador de síndrome de Down, Ivan sempre freqüentou
escolas do ensino comum, concluiu o ensino médio e ingressou em um curso superior:
Curso Seqüencial
34
na área de Informática. Além disso, havia trabalhado como instrutor de
Informática para crianças de 1ª a 8ª série, possuindo também habilitação de técnico em
Informática, o que lhe permite trabalhar eventualmente com manutenção de computadores.
Tal perfil contraria as expectativas que ainda se têm em relação às possibilidades de
desenvolvimento de uma pessoa com síndrome de Down e outras alterações orgânicas
significativas.
A literatura especializada ainda aponta a deficiência mental como uma das
características da síndrome de Down, da mesma forma que inclui a deficiência mental
como característica na fenilcetonúria, no hipotireoidismo congênito, na paralisia cerebral e
em outras alterações da estrutura e/ou funcionamento do sistema nervoso central, como se
à alteração orgânica estivesse associado naturalmente o déficit intelectual.
O raciocínio que sustenta essa concepção é linear, pois justifica a deficiência
mental pela alteração orgânica, que pode afetar tanto a formação quanto o funcionamento
do sistema nervoso. Desconsidera, portanto, as relações sociais vividas pelo sujeito que
apresenta tais características orgânicas.
O interesse pela história de Ivan mobilizou discussões, em outros espaços,
sobre trajetórias de desenvolvimento de pessoas com essas características. Através destas
discussões, tomei conhecimento de outras pessoas com síndrome de Down que
contrariaram as expectativas previstas, concluindo o ensino médio, ingressando na
34
Os Cursos Superiores Seqüenciais consistem em uma nova modalidade de ensino superior criada pela Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96) - LDB, e regulamentada pela Resolução CES 01/99.
São cursos pós-médios e portanto de nível superior, mas não são de graduação. O que se busca ao definir-se
um Curso Seqüencial é uma formação específica em um dado "campo do saber" e não em uma "área de
conhecimento e suas habilitações". Por exemplo, na área de computação, pode-se ter um Curso Seqüencial
em Redes de Computadores, onde o objetivo é claro e pode ser atingido em um prazo relativamente curto.
(Disponível em http://www.inf.ufrgs.br/mec/ceeinf.sequencial.html
).
56
universidade e se inserindo no mercado de trabalho. Todas elas se constituíram como
sujeitos sem deficiência mental.
Portanto, a construção do perfil dos sujeitos foi acontecendo na medida em que
eu sabia de mais um caso, como o de Paula e, mais tarde, o de León, na Espanha.
Hoje, além das três histórias aqui apresentadas e discutidas, tenho informações
sobre outras pessoas com síndrome de Down no Brasil que possuem pelo menos duas
características desse mesmo perfil: concluíram o ensino médio, chegaram à universidade e
estão inseridas no mundo do trabalho. A intenção de trabalhar com três sujeitos é de
enriquecer o trabalho com diferentes histórias. Não há preocupação com a
representatividade numérica da amostra, pois o objetivo maior é dar visibilidade a tais
histórias, ampliando o debate sobre a constituição dos sujeitos com história de deficiência
mental.
3.3 As entrevistas
As narrativas dos sujeitos da pesquisa foram coletadas através de entrevistas
abertas, gravadas em fita cassete e posteriormente transcritas. Com Ivan e Paula, o contato
inicial foi por telefone, explicando os objetivos da pesquisa e convidando-os a participar
como narradores de suas histórias de vida. No primeiro encontro com cada um, apresentei
o Termo de Consentimento Informado (anexo 1), esclarecendo novamente os objetivos da
pesquisa e a tarefa que lhes cabia, ou seja, através de entrevistas eles iriam relatar aspectos
que considerassem significativos na sua trajetória de vida desde o nascimento. Esclareci
também que as entrevistas seriam abertas, mas que eu apresentaria um roteiro para facilitar
o relato (anexo 2). Ambos concordaram com a gravação em fita cassete, sendo que todas as
entrevistas foram realizadas nas residências dos sujeitos e duraram, em média, uma hora .
Com Ivan, tive dois encontros informais antes das duas entrevistas gravadas. O
primeiro foi em sua casa, com a presença da mãe, e o segundo em uma lanchonete de
propriedade de sua irmã, onde ele trabalhava nos finais de semana. Neste segundo contato
é que conseguimos marcar a primeira entrevista. Depois da segunda entrevista, Ivan
manteve contato comigo por telefone e por e-mail.
Os contatos com Paula foram sempre diretamente com ela. Ao me identificar
para a mãe, que atendeu ao meu primeiro telefonema, ela imediatamente chamou a filha
para que conversasse comigo. Paula me atendeu sozinha, em uma das salas da escola que
57
fica em um prédio anexo a sua casa, onde foram realizadas as duas primeiras entrevistas. A
última foi na sala de jantar de sua casa. A mãe só participou de uma conversa depois da
entrevista porque eu a chamei.
O contato inicial com León, na Espanha, foi diferente. Ele foi convidado a
participar como sujeito de pesquisa em uma reunião do Grupo de Investigação do Projeto
Roma
35
, na qual eu estava presente, e lhe apresentei a idéia central de meu projeto de
pesquisa. León mostrou-se interessado na proposta de investigação e aceitou participar
como narrador de sua história de vida. Depois de alguns contatos por e-mail, marcamos o
primeiro encontro em sua casa, ocasião em que, como com os demais sujeitos, apresentei o
Termo de Consentimento Informado. Conversamos novamente sobre os objetivos da
pesquisa e sobre a dinâmica das entrevistas, que seriam abertas. Mostrei o roteiro,
esclarecendo que ele decidiria por onde começar e o que contar. Tanto o Termo de
Consentimento Informado como o roteiro foram traduzidos para o espanhol. Foram
realizadas quatro entrevistas com duração média de uma hora, todas em espanhol. León é
muito falante, e tinha sempre o cuidado de usar palavras e expressões que eu pudesse
compreender. Quando usava termos regionais ou gírias, preocupava-se em explicar-me o
significado. Muitas vezes, quando eu não compreendia o que falava, tratava de construir a
frase ou a idéia de uma outra maneira, para que ficasse claro para mim o que ele estava
querendo dizer. Tanto o primeiro encontro como as três primeiras entrevistas foram
realizadas em sua casa, sempre com a presença da mãe por perto. Ela saía da sala durante a
entrevista, mas voltava no final para oferecer um chá ou café. A última entrevista foi
realizada em uma sala da Universidade onde ele estuda.
3.4 A elaboração das histórias
A transcrição de todas as entrevistas foi feita por mim. Procurei registrar a fala
dos narradores e a minha, como entrevistadora/pesquisadora, da maneira mais fiel possível,
incluindo os silêncios, as ênfases, as mudanças no tom da voz, as hesitações ao falar, enfim
as marcas presentes na expressão oral de cada um. Após cada transcrição, fiz cuidadosa
revisão, re-escutando as gravações e corrigindo e/ou completando possíveis lapsos.
No caso de León, ele me auxiliou na revisão da transcrição de cada entrevista
realizada com ele, tendo em vista as minhas dificuldades com o idioma espanhol; cada
35
Em sua trajetória escolar, desde o 3º ano primário, León teve apoios organizados por uma equipe vinculada
ao Projeto Roma.
58
revisão durou pelo menos 2 horas. Então, dos três sujeitos, foi com León que eu estive
mais tempo. Na revisão das transcrições, ele mesmo ia fazendo as correções com a caneta,
sinalizando sempre da maneira mais clara possível cada correção. Muitas vezes modificou
as palavras ou a construção de frases, ou ainda acrescentou informações, por julgar que
aquilo que queria dizer não havia ficado claro.
No primeiro encontro para a revisão das transcrições, cheguei na sala
previamente agendada na Universidade com o material impresso e as fitas das entrevistas.
Comecei a ler e mostrar a León as sinalizações de minhas dúvidas. Ele esclarecia o que era
possível a partir da escrita, mas em muitos momentos tivemos que escutar a gravação
novamente. Nem sempre ele conseguia compreender o que havia dito na entrevista. Então,
pelo contexto, lembrava do que queira dizer e reconstruía a idéia. Além destes
esclarecimentos, ele corrigiu erros ortográficos e outros de construção de frases, próprios
de quem, como eu, não dominava o idioma. No início, eu ia fazendo as alterações com a
caneta no papel. Mas logo León pediu-me para fazer as correções, comentando num tom
bem-humorado: “São as minhas falas, né? É melhor que eu mesmo faça”. A partir daí, ele
ia lendo e parando não só nos trechos ou palavras grifadas, mas em outras palavras e frases
construídas incorretamente. Assim foram os quatro encontros de revisão das transcrições.
León corrigia a escrita e eu me ocupava com o gravador. Então, além do valioso auxílio
para a conclusão da transcrição das entrevistas, tarefa a qual eu havia me dedicado
solitariamente no caso de Ivan e de Paula, estes foram, para mim, momentos de muito
aprendizado. Por um lado, aprendi mais do idioma, pois León dava explicações, com
exemplos, a cada correção que fazia. Além disso, foi mais uma oportunidade de vê-lo
ocupando seu lugar de sujeito, de protagonista de sua narrativa.
Depois de transcritas todas as entrevistas é que iniciei a elaboração das
histórias. Procurei incluir o máximo possível do conteúdo narrado por cada um, sendo que
fui eu também me tornando narradora de cada história. O processo da escrita da história de
cada sujeito constituiu-se em momento de intenso trabalho, quando eu procurei expressar
aquilo ao qual já me referi anteriormente como a “interação entrevistador/narrador”. Iniciei
a escrita tentando transformar as entrevistas em um texto narrativo, suprimindo repetições,
digressões que não fossem pertinentes, e evitando trechos com perguntas e respostas.
Porém, o que emergia era uma narrativa produzida a partir de um diálogo, a partir da
presença do outro que indaga, que se torna cúmplice com seus comentários, que possibilita
um fluxo de articulações de lembranças/esquecimentos, idéias, juízos de valor, queixas,
choros, risos e também gargalhadas. Por isso, em todas as histórias há trechos mantidos na
59
forma de diálogo, para que o encadeamento da interação não se perdesse. Da mesma
forma, como já dito, mantive algumas marcas da expressão oral, como hesitações,
silêncios, choros e risos, tentando dar visibilidade às interações estabelecidas com cada
sujeito de pesquisa.
Sobre esse processo da escrita expressando a interação entrevistador/narrador,
a conhecida litografia de Escher, Drawing Hands (1948), (Figura 1) traz a força da imagem
de uma mão que tece a outra, de uma escrita que escreve e inscreve a outra.
Figura 1 - Escher – Drawing Hands – Litografia (1948)
Fonte: Bruno Ernest (1991, p. 22)
60
4 OS SUJEITOS DA PESQUISA E SUAS HISTÓRIAS
A vida vem em ondas como um mar
Num indo e vindo infinito
(Lulu Santos e Nelson Motta - Como uma onda)
As histórias de Ivan, Paula e León são apresentadas neste capítulo. Em sua
singularidade, tanto no que diz respeito à trajetória de vida, quanto ao estilo narrativo, os
três apresentam aspectos comuns entre si. Destaco o fato de serem adultos portadores de
síndrome de Down que conseguiram romper com o prognóstico da deficiência mental. Ser
portador desta síndrome pressupõe algumas características biológicas comuns, que são
expressas de maneira muito singular. Por isso, antes de passar às histórias, optei por
caracterizar brevemente alguns aspectos comumente presentes em pessoas com síndrome
de Down.
4.1 Algumas particularidades das pessoas com síndrome de Down
Ao trazer informações e reflexões sobre algumas particularidades apresentadas
pelas pessoas com síndrome de Down, esclareço já de início que o foco será as pessoas e
não a síndrome. Portanto, não falo do ponto de vista biomédico, nem me preocupei em me
estender na caracterização da síndrome. Embora reconheça que há informações básicas
relevantes referentes tanto à estrutura quanto ao funcionamento orgânico (afinal, já afirmei
anteriormente que o desenvolvimento humano se dá no entrelaçamento de aspectos
biológicos e culturais), o foco não será as características físicas, os possíveis limites e a
configuração genética. Será, sim, as possibilidades de desenvolvimento dessas pessoas,
como estas pessoas conseguem compensar suas dificuldades, superar preconceitos e se
inserir no mundo de maneira que rompem com a visão tradicional que ainda se têm de
sujeitos com alguma deficiência. Para essa tarefa, destaco alguns interlocutores, com os
quais compartilho tais idéias: o Prof. Miguel López Melero, da Universidade de Málaga,
Espanha; a Profª Elizabeth Tunes, da UnB; bem como a artista plástica L. Danezy Piantino
(Lurdinha), mãe de um menino com síndrome de Down, que publicou em parceria com E.
Tunes o livro: Cadê a síndrome de Down que estava aqui? O gato comeu...: o programa
da Lurdinha, já comentado no Capítulo 1 desse trabalho.
Feitos estes esclarecimentos iniciais, pergunto: afinal, o que é a síndrome de
Down e quais são os limites e possibilidades no desenvolvimento de pessoas com tal
61
síndrome? Para começar a responder esta pergunta, apoiei-me nos trabalhos de Werneck
(1993), Schwartzman (1999) e Tunes & Piantino (2003).
O termo síndrome refere-se a um conjunto de sinais e de sintomas que
caracterizam um determinado quadro clínico. A síndrome de Down é uma anomalia
genética caracterizada pela existência de um cromossomo adicional no par 21. Por isso, é
também conhecida como “trissomia do par 21”.
Em grande número de casos, a síndrome de Down pode ser diagnosticada no
nascimento, pela presença de uma série de características físicas que, se consideradas em
conjunto, permitem a suspeita diagnóstica. Os bebês com síndrome de Down costumam
nascer menores e mais leves do que os outros bebês. Em geral são bochechudos (devido à
flacidez muscular) e têm olhos amendoados relativamente distantes um do outro. Alguns
têm prega epicântica, ou seja, um excesso de pele no canto interno dos olhos (característica
comum nos orientais). Os braços e as pernas são curtos. As orelhas – implantadas um
pouco abaixo do normal – e o nariz são pequenos. O dedo mínimo se mostra ligeiramente
curvo. As mãos são menores e gordas, com a palma atravessada por uma única prega
transversa. Nos pés, é comum apresentarem uma distância grande entre o primeiro e o
segundo dedos. Muitos recém-nascidos possuem algumas dessas características, não tendo,
necessariamente, síndrome de Down.
Algumas alterações fenotípicas podem ser observadas já no feto, por meio de
exame de ultra-sonografia. Porém, o diagnóstico preciso da síndrome de Down é
confirmado com o estudo cromossômico, através de um exame conhecido como
cariograma, que analisa o material cromossômico de cada núcleo celular através de uma
amostra de células do sangue ou da placenta, no caso de um feto. Depois de colhidas, estas
células são cultivadas em laboratório e preparadas para o estudo. Na fase exata da divisão
celular, uma substância interrompe este processo. Os cromossomos são então,
fotografados, recortados e colados, com seus pares organizados lado a lado, por ordem de
tamanho, do maior para o menor. Estes pares são numerados de 1 a 22, sendo que o par de
cromossomos sexuais recebe as letras XX, no caso das mulheres, e XY, no dos homens.
Portanto, através do cariograma é possível obter o cariótipo de uma pessoa, que seria uma
espécie de carteira de identidade genética.
Existem três tipos de cariótipo em pessoas com síndrome de Down. Os sinais e
sintomas são os mesmos, embora suas causas sejam diferentes. Normalmente, as células
reprodutivas (espermatozóides e óvulos) têm 23 cromossomos cada. No momento da
fecundação, em circunstâncias normais, será formada uma célula com 46 cromossomos.
62
Posteriormente, terá início o processo de divisão celular, que gerará outra célula com 46
cromossomos e assim por diante. Quando, no momento da divisão, não ocorre a disjunção
adequada dos cromossomos do par 21, dois destes “ficam grudados”. Assim, as células
geradas por essa divisão serão uma de 47 e outra de 45 cromossomos (esta última é
eliminada). Dessa forma, a divisão prosseguirá, produzindo mais células com 47
cromossomos. Nesse caso, diz-se que ocorreu uma “trissomia simples” do par 21 (por não-
disjunção). Cerca de 95% dos casos são desse tipo. Há outras duas possibilidades de
origem da síndrome de Down: a “trissomia por translocação” (cerca de 3% dos casos), em
que existem três cromossomos 21, mas o braço longo de um deles liga-se a outro
cromossomo. Metade dos casos de translocação é herdada de um dos pais, a outra metade
ocorre durante a formação da criança. Há também o “mosaicismo” (2% dos casos), em que
a reprodução celular gera células com 46 e 47 cromossomos.
Segundo Werneck (1993), clinicamente, a criança com trissomia por
translocação não tem diferença daquela que tem trissomia simples. Já nos casos de
mosaicismo, alguns estudiosos (não referidos pela autora) afirmam que os traços físicos
seriam mais atenuados, referindo-se até mesmo a um retardo mental menos acentuado. A
autora ressalta que na prática, entretanto, isto nem sempre é comprovado e que a única
diferença continua sendo percebida no momento em que se faz a leitura do cariótipo.
É consensual que as pessoas com síndrome de Down apresentam características
físicas semelhantes, que podem ser notadas em sua aparência desde o nascimento, porém o
comportamento e o padrão de desenvolvimento se apresentam com muitas diferenças,
únicas em cada pessoa. Segundo Schwartzman (1999), não há um padrão estereotipado e
previsível em todas as crianças com síndrome de Down, uma vez que tanto o
comportamento quanto o desenvolvimento da inteligência não dependem exclusivamente
da alteração cromossômica, mas, também, do restante do potencial genético bem como das
influências do meio em que a criança vive.
O desenvolvimento motor da criança com síndrome de Down geralmente
mostra um atraso significativo, sendo que todos os seus marcos (sentar, ficar de pé, andar)
ocorrerão mais tarde na maioria dos casos, se comparados com o padrão considerado
normal. A presença de hipotonia muscular contribui para esse atraso motor, que interfere
no desenvolvimento de outros aspectos, se considerarmos que é através da exploração do
ambiente que a criança constrói seu conhecimento do mundo. (Ibid)
No que se refere ao desenvolvimento da inteligência, a deficiência mental tem
sido considerada uma das características mais constantes da síndrome de Down,
63
“aceitando-se que seja inevitável um atraso em todas as áreas do desenvolvimento que
levarão a um estado de permanente deficiência mental.” (Ibid, p. 58) Embora apresente
críticas à utilização e interpretação dos resultados dos testes de QI para a avaliação de
crianças com deficiências, Schwartzman afirma que:
Quando discutimos o prognóstico destes pacientes é importante deixar claro que
há grande variabilidade clínica tanto no que se refere aos aspectos físicos quanto
cognitivos. Algumas crianças são muito mais afetadas do que outras, de forma
que o espectro do comprometimento é muito amplo. Não temos elementos para
firmar prognósticos seguros quanto ao grau de comprometimento destas
crianças durante os dois primeiros anos de vida. Muito embora alguns autores
tenham tentado correlacionar dados físicos, tais como hipotonia muscular e peso
de nascimento, com o desenvolvimento ulterior, estes dados deverão ser
interpretados com muita cautela, uma vez que se sabe que algumas crianças
com graus severos de hipotonia demonstram desenvolvimento bastante razoável
nas áreas da linguagem e cognição. (Ibid, p. 59-60)
Apesar de expressar um avanço na literatura especializada sobre a síndrome de
Down, reconhecendo a importância das interações ambientais, bem como a singularidade
do processo de desenvolvimento de cada sujeito, estes argumentos sobre a
imprevisibilidade dos prognósticos ainda são marcadamente vinculados às características e
comprometimentos orgânicos dos sujeitos.
Quando aborda os comprometimentos do sistema nervoso na síndrome de
Down, a argumentação de Schwartzman mais uma vez se apóia na determinação orgânica:
Como resultado da presença de um cromossomo 21 adicional e a conseqüente
alteração da dosagem gênica, anormalidades estruturais e funcionais ocorrem
sempre em vários sistemas do organismo, sendo particularmente freqüentes e
importantes as repercussões para o lado do sistema nervoso central (SNC). Estas
anormalidades determinarão as disfunções neurológicas que estão sempre
presentes, variando, entretanto, quanto às suas manifestações e intensidade.
(Ibid, p. 44)
Como já ponderei anteriormente, não se trata de negar os comprometimentos
orgânicos, mas, sim, de compreender como estes comprometimentos se constituem e se
expressam, considerando sempre o sujeito inteiro, tanto do ponto de vista biológico quanto
cultural.
Outros autores também têm divulgado avanços no sentido de pontuar as
possibilidades de desenvolvimento das pessoas com síndrome de Down. Há um
reconhecimento de que o padrão de desenvolvimento destas pessoas vem se modificando
nos últimos anos. Porém, ainda permanece a relação linear entre síndrome de Down e
deficiência mental, como na afirmação apresentada a seguir: “Crianças com síndrome de
Down têm desenvolvimento intelectual limitado, sendo que a maioria apresenta retardo
64
mental leve ou moderado. [...] A razão pela qual crianças com síndrome de Down
apresentam retardo mental está relacionada a anormalidades cerebrais.” (PUESCHEL,
1993, p. 63) Ou ainda nesta: “A síndrome de Down é a principal causa genética da
deficiência mental.” (BRUNONI, 1999, p. 32)
Embora estas relações ainda estejam bastante presentes na Medicina (e áreas
afins), na Psicologia e na educação especial, as histórias de vida narradas pelos sujeitos da
presente pesquisa, além de outras, como a de Lúcio (TUNES & PIANTINO, 2003), Liane
(COLLARES, 2004), David, Mitchell, Jason, John, Andy, Mariana, Chris, Luis Felipe e
outras tantas apresentadas por Werneck (1995), e outras mais ainda não tornadas públicas,
têm mostrado que todos os sujeitos humanos se constituem no entrelaçamento de aspectos
biológicos e histórico-culturais. Tais histórias contrariam a relação linear entre síndrome de
Down e deficiência mental. Portanto, através delas o argumento do entrelaçamento
biologia/cultura se fortalece.
Tunes & Piantino (2003, p. 11), referindo-se à síndrome de Down como uma
anomalia, um defeito genético, ressaltam que
[...] tal defeito não implica, necessariamente, o desenvolvimento de uma
deficiência. Apesar de se afigurar como uma dificuldade ou uma barreira para o
processo de desenvolvimento comum à maioria das pessoas, ela não é
intransponível ou incontornável.
Nessa mesma direção, destaco uma descrição de López Melero sobre as
pessoas com síndrome de Down que, com certeza, rompe com o que encontramos na
literatura especializada:
[Elas] nos têm ensinado a reconhecê-las como pessoas, com suas singularidades
e suas peculiaridades, com suas possibilidades de desenvolvimento e com seus
desejos de aprender. Provavelmente disponham de uma maneira distinta de
adquirir a informação que lhes chega, talvez não saibam dar uma resposta
imediata e, inclusive, pode ser que não disponham das estratégias necessárias
para controlar sua própria aprendizagem no momento oportuno; mas tudo isso,
longe de ser um obstáculo para seu conhecimento e compreensão, tem sido um
incentivo que nos permitiu procurar conhecê-las melhor, como identidades
únicas e irrepetíveis. [...] São muitíssimo mais que um conjunto de genes, são
pessoas que sentem, que querem e que gostam de sentir-se queridas, são pessoas
carregadas de emoção, carregadas de vida. E querem o mesmo que queremos
todos os seres humanos: respeito, carinho e compreensão. Sem dúvida,
tristemente, são vistas e avaliadas mais de um ponto de vista biológico
(genético) que social e humano, como pessoas deficientes. (LÓPEZ MELERO,
2003a, p. 287-288)
Embora esta não seja a concepção hegemônica neste momento, sua divulgação
é fundamental para romper com a idéia de uma natureza humana desvinculada e anterior ao
65
social. Mais do que resgatar uma possibilidade de se relacionar com as pessoas e não com
a síndrome de Down, tal visão pode contribuir para compreender as dificuldades de
aprendizagem, os atrasos no desenvolvimento, bem como as diferentes manifestações de
deficiências como produções sociais, que não se encontram a priori nos sujeitos, mas que
vão se formando e se cristalizando nas e pelas interações sociais.
4.2 Sobre a apresentação das histórias
As três histórias são apresentadas em um mesmo formato, possibilitando ao
leitor perceber o fluxo da narrativa produzida como resultado da interação da pesquisadora
com cada narrador(a).
Para melhor visualização das falas, optei por apresentá-las em itálico, mesmo
considerando que as falas são citações e, por isso, deveriam estar entre aspas. Essa opção
deve-se ao fato de que muitas das falas trazem citações e estas, sim, serão aspadas quando
ocorrerem, como no exemplo desta fala de Ivan: E de repente, eu disse: “Mãe, eu quero
mudar de médico”. A gente foi lá, mudou de médico. Além disso, marquei de maneira
distinta as minhas falas, que expressam os diferentes lugares por mim ocupados: o da
narradora (fonte normal) e o da interlocutora (em itálico).
Todos os nomes de pessoas e de instituições são fictícios, preservando assim, a
identidade dos sujeitos. Há duas exceções na história de León: o Projeto Roma e seu
coordenador, Prof. Miguel López Melero. Essa decisão foi tomada com o objetivo de
caracterizar com mais clareza os apoios proporcionados pelo Projeto Roma ao processo de
escolarização de León.
4.3 A história de Ivan
Ivan vive em um município da Grande Florianópolis, em uma localidade na
zona rural, muito próxima das vias de acesso tanto à capital e região metropolitana quanto
à região serrana de Santa Catarina. Tem 31 anos. Vive na mesma casa desde que nasceu e
foi ali, na sala de jantar, que foram realizadas as entrevistas e as conversas iniciais. O pai é
agricultor, tem 75 anos e trabalha em sua propriedade. A mãe é professora normalista,
aposentada, e trabalhou na escola onde Ivan iniciou o ensino fundamental. Tem 75 anos e
conta que quando ele iniciou a 1ª série já estava aposentada. Ivan é o caçula de dez filhos.
66
Soube da condição de Ivan através de uma pedagoga da APAE de sua cidade,
que comentou que conhecia uma família com dois casos de síndrome de Down: um rapaz
de uns 25 anos, que sempre freqüentou o ensino comum, concluiu dois cursos de ensino
médio (Administração e Contabilidade) e cursou durante um ano, em uma Universidade
privada, disciplinas de Informática oferecidas para compor um curso seqüencial; e uma
prima de Ivan, aproximadamente com a mesma idade, que é aluna da APAE, até hoje, em
uma Oficina para Dependentes.
Conheci Ivan e sua família em 2001, três anos antes do convite para que ele
participasse como narrador de sua história de vida para a presente pesquisa. Naquele
momento, o contato era para convidá-lo a participar de uma mesa-redonda com pessoas
com síndrome de Down para falar sobre suas experiências em relação à família, escola,
amigos e trabalho, que aconteceria durante um Encontro sobre síndrome de Down.
Quando telefonei para sua casa, foi Ivan quem atendeu, identificando-se.
Fiquei surpresa ao ouvir sua voz, tão clara e bem articulada. Perguntei: Tu és o Ivan, que
tem síndrome de Down? Ele respondeu imediatamente: Não, eu não tenho nada disso.
A partir daí, tive vários contatos com Ivan e sua família. Tanto a mãe como ele
reafirmaram que ele não tem síndrome de Down, mas diante dos relatos sobre suas
dificuldades de desenvolvimento e seu sucesso na escolarização, considerei que sua
participação no Encontro seria importante. Ele não aceitou participar, alegando que estaria
trabalhando no final de semana em que aconteceria o evento.
Em nossa primeira conversa, eles contaram também das idas a médicos,
fisioterapeuta e fonoaudióloga. Lembro bem do destaque que deram ao Dr. André,
neuropediatra que acompanhou o desenvolvimento de Ivan desde muito pequeno. A mãe
mostrou muitos documentos e exames que ele fez ao longo da infância, dentre eles um
Relatório elaborado por este médico, quando Ivan tinha 8 anos, em que declara que ele é
um “paciente portador de inteligência limítrofe com grau mediano de torpeza motora com
hipoacusia bilateral (condução) com traços e estigmas genéticos, sendo que o cariótipo é
normal, sem causa esclarecida.” Ela se referiu a este relatório como um documento que
confirma que seu filho não tem síndrome de Down. Ele fez o cariograma quando era bebê,
mas não se encontrou o cariótipo. Considero este detalhe bastante relevante, parecendo que
há uma negação da síndrome de Down na família.
Outros comentários da mãe e do próprio Ivan durante as entrevistas me fazem
pensar que há mais que uma dúvida em relação ao diagnóstico:
67
Ele teve todos estes problemas, sempre teve um desenvolvimento
atrasado, mas nós fizemos tudo o que era possível. Ele teve um
acompanhamento muito bom. Mas não é nada desta síndrome, não.
O Dr. André nos garantiu. Porque na nossa família nunca teve
nada disso. Eu e meu marido temos saúde e todos os outros filhos
também.
A mãe nunca fez nenhuma referência à sobrinha, filha de sua irmã, que tem
síndrome de Down. Mostrou muitos documentos e fotos da família toda e emocionou-se ao
referir-se aos outros filhos e todo o apoio que sempre deram ao filho caçula.
O pai estava trabalhando, mas veio em casa durante a tarde e também
participou da conversa. Chorou também ao se referir à família, à luta que foi proporcionar
tudo o que Ivan precisava. Referiram-se a inúmeras cirurgias (de ouvido e ortopédicas) e
tratamentos que ele faz desde pequeno. Recentemente, Ivan usou aparelho ortodôntico, fez
cirurgia corretiva de estrabismo e manifestou o desejo de fazer uma cirurgia nos olhos para
“tirar o jeito de chinês”. Usa óculos e possui traços fisionômicos característicos da
síndrome de Down bastante atenuados.
O pai comentou também sobre os conhecimentos de Informática de Ivan: Ele
dá jeito em problemas de equipamento que muitos técnicos com mais experiência não
conseguem dar. E me ajuda também: na colheita, dirige trator, pega no pesado também.
Após esse encontro seguiram-se inúmeros contatos por telefone e visitas
informais a sua casa para, enfim, combinarmos a realização das entrevistas. Expliquei que
estas seriam abertas e que Ivan poderia escolher o quê e como contar sobre sua trajetória de
vida. Realizamos duas entrevistas gravadas. A partir destas e das anotações de meu diário
de campo, construí o texto de sua história. Sua narrativa caracterizava-se por respostas às
perguntas e comentários que eu fazia. Ou a comentários feitos pela mãe, que em alguns
momentos participou das entrevistas. Creio que o texto, na forma como o apresento aqui,
revela um pouco a dinâmica das entrevistas e da interação pesquisadora-narrador. O
próprio Ivan, em um determinado momento, fala sobre a dificuldade que sente para
expressar-se, para comunicar suas idéias.
Foi difícil começar a primeira entrevista. Ivan parecia não estar à vontade e
ficou esperando que eu fizesse perguntas, dizendo que não sabia o que eu gostaria de saber.
Sugeri então que ele iniciasse contando o que lembrava das dificuldades enfrentadas no seu
desenvolvimento.
68
A minha vida começou assim: custei a engatinhar, custei a andar,
custei a falar. Por aí começou a minha vida, né? Comecei a me
tratar desde pequenino com o Dr. André, e aí começou a minha
vida. Eu me lembro de coisas desde os três, quatro anos. Desde
quando eu comecei os tratamentos, quando eu fazia reabilitação.
Ao pedir que escolhesse alguma lembrança de dificuldade que tinha e que
superou, Ivan relata: Antigamente eu tinha muita falta de coordenação motora. Eu tenho
ainda, mas hoje eu tiro de letra. A minha letra hoje não é muito boa também, mas a minha
letra quando eu era pequeno...
Comento que hoje dá pra entender bem, considerando sua letra no
preenchimento do Termo de Consentimento, e ele retruca: É... mas antes não dava pra
entender legal. A grande dificuldade mesmo foi coordenação motora. Foi escrever. E
raciocínio. O meu raciocínio é lento.
Peço que explique melhor e ele diz:
É... como posso falar? Por exemplo, no colégio, a gente às vezes vê
que as pessoas conseguem raciocinar um pouco mais rápido e eu
consigo raciocinar um pouco mais lento. Às vezes meu irmão vinha
dar aula de Matemática pra mim porque o meu ponto forte não era
Matemática. Tinha dificuldade às vezes de pegar o raciocínio de
Matemática. Até pegar o raciocínio de Matemática levava um
tempinho, né?
E também a audição. Minha audição, se não me engano, eu tinha
uma perda de 80%. Eu escutava muito pouco, as pessoas falavam
muito alto comigo, eu sentia isso aí. Hoje só tenho falta de 30% .
Mas isso hoje não faz falta pra mim. Hoje eu já escuto. Antes eu
não conseguia nem escutar o barulho dos pássaros. Hoje eu
consigo escutar tranqüilamente. Isto eu corrigi com cirurgia.
Principalmente a última cirurgia. O último médico queria que eu
usasse um aparelho e eu era contra botar um aparelho, eu era
contra. E de repente, eu disse: “Mãe, eu quero mudar de médico”.
A gente foi lá, mudou de médico. A mãe queria me levar pra
69
Curitiba. Eu disse: “Vamos ver se não tem médico especialista
aqui.” Eu consegui encontrar o Dr. Heitor aqui. Ele abriu as
portas pra mim. Disse que não tinha nada que botar aparelho, que
essa cirurgia resolveria. Isso foi em 2000 [quando Ivan tinha 25
anos de idade]; em 2000 é que eu consegui resolver meu problema
de audição.
Eu me tratei muito tempo com um outro médico. Aí botava e tirava
o carretel, botava e tirava o carretel. Depois foi outro e a mesma
coisa: tirava e botava o carretel e disse que não adiantava mais
fazer cirurgia, não sei o que, que não ia resolver o meu problema...
Daí até que enfim eu encontrei uma porta... Eu tinha uma perda de
quase 80%.
Pergunto como era na escola, escutando tão pouco.
Ah, a gente levava, né? Os professores falavam um pouquinho mais
alto, a gente ia levando... Eu tinha que prestar muito mais atenção
naquilo que os professores falavam.
Sobre a coordenação motora, eu superei, né? Era muito difícil. Na
Clínica de Recursos Humanos era muito difícil, eu escrevia,
brincava... raciocínio também. Era muitos jogos, era muita
criatividade, brincavam bastante comigo, fazia bastante exercício
lá, né? Aquelas bolinhas, a gente mexia bastante, trabalhava
bastante lá. E assim eu fui superando. Eu fui amadurecendo
também. E de repente a gente vai aprendendo um pouco mais...
Sobre as lembranças do tempo da escola, diz:
Todo mundo me dava atenção, todo mundo queria brincar comigo,
todo mundo me dava o apoio... as crianças, os meus colegas, que
eu estudei de primeira a sétima série, uma turma. Daí na sétima
série eu fiquei doente, suspeita de meningite. [Mais adiante Ivan
voltará a esse assunto, com informações complementares da mãe]
Daí, a professora... peguei, tentei recuperar a matéria, tentei
70
recuperar a matéria e não consegui. A professora de Português...
Aí eu fiz segunda época. A professora de Português me chamou no
Colégio e disse: “Ivan, falta 6 décimos pra tu passar. Só que eu
acho que tu tás muito fraco pra passar. Acho que não tem
condições de chegar aí e te passar”. Daí ficou por isso. Ela me
rodou. Rodei um ano na sétima... Foi o único ano que eu rodei,
porque não consegui recuperar a matéria.
Em diferentes momentos, perguntei a Ivan se havia alguma lembrança de
discriminação ou de algum obstáculo que ele tenha enfrentado na escola com os colegas ou
com os professores. Ele sempre respondeu que não, que os anos que passou na escola
foram muito bons.
Pergunto se nunca se sentiu discriminado na escola. E ele responde vindo para
um tempo mais próximo do presente:
Na escola, não, mas no mercado... no mercado, sim. Por exemplo,
quando eu entrei aqui no Supermercado, muita gente dizia que não
daria certo. Porque... já me conheciam e achavam que eu não
tinha capacidade. Aí tinha um sub-gerente, que me conhecia muito
bem e disse: “Nada a ver. Não tem nada a ver. Eu vou pegar e
colocar este aluno aqui.” Hoje eu sinto um pouco de discriminação
ainda, mas é bem mais raro. Mas quando eu entrei, foi um baque
no Supermercado.
Ivan conseguiu o emprego no supermercado através de um Programa oferecido
por uma instituição de educação especial. Uma amiga da família foi quem orientou Ivan a
procurar a instituição. O contrato inicial era de três meses. Após esse período, foi
contratado com carteira assinada, sem vínculo com esta instituição. Ele conta que mais
recentemente quis aumentar a carga horária de 6 para 8 horas diárias, mas o gerente não
estava querendo, alegando que ele era contratado via instituição. Em resposta, lembrou ao
chefe que já não tinha mais aquele vínculo, que o contrato dele era direto com o
Supermercado, que já era um funcionário como os outros e poderia, sim, aumentar sua
carga horária.
Ivan conta que entrou como Auxiliar de gerente, na área de Informática:
71
Eu trabalhava mais dentro do CPD, né? Só que o CPD é uma coisa
muito puxada. Tem que lidar todos os dias com computador; pra
mim era complicado. Eu acho que eu não consegui atingir o
objetivo que eles queriam.
Os outros foram me explicando como é que funcionava o CPD; eu
nunca tinha trabalhado ali. Depois me pediram pra fazer um
projeto, que seria um projeto pras gôndolas, pra ver quantos
produtos podiam botar em gôndolas, mais ou menos assim, mas
não me explicaram direito como funcionava, como tinha que fazer.
Eu tinha que executar um programa. Tinha que pegar e jogar as
informações dentro deste programa, tá? Só que essas informações
eram complicadas. Tinha vezes que explicavam de uma maneira,
tinha vezes que explicavam de outra maneira, eu não tava bem
esclarecido.
Era um sistema meio complicado na época. Hoje já é mais fácil
lidar com ele, mas na época era mais difícil. E... aquela coisa, né?
Eu não tinha aquela maturidade, aquela maturidade toda como eu
tenho hoje. Hoje eu me sinto mais maduro, hoje eu me sinto mais
capaz de fazer as coisas.
Agora é que a gente conseguiu botar este programa em
funcionamento. Foi o ano passado que a gente conseguiu botar
este programa em funcionamento.
Pergunto como ele se sentia diante daquelas dificuldades, numa área em que
ele tinha formação.
Eu me sentia assim... meio perdido, né?... era uma coisa que tava
vindo na minha frente, eu nunca tinha trabalhado com aquilo.
Eu me sentia inseguro, eu tava inseguro com aquilo que eu tava
fazendo... Eu tava vendo que eu não tava dando conta do recado.
Eu via que uma pessoa que trabalhava à noite... ela também não
dava conta do recado. Daí eu pegava, virava ... ajudava ela... fazia
o meu serviço das 4 às 6, e das 6 às 10 eu ajudava ela. E o gerente
72
não sabia. Aí o gerente disse: “Pô, Ivan, tu não tá conseguindo
render o que eu ... o que precisa num programa, né? Não tá
conseguindo chegar ao meu objetivo”. Aí eu disse pra ele: “Não é
que eu não tô conseguindo chegar ao objetivo. É que esse
programa aí tá mal explicado. Uma hora vocês falam de uma
coisa, uma hora vocês falam de uma outra”. Daí... passou.
Peço que ele conte como foi a saída do CPD para a reposição.
Eu também comecei a trabalhar na reposição e daí a chefe de
loja... às vezes ela me botava pra trabalhar de manhã, às vezes me
botava pra trabalhar à tarde. Sempre havia uma intriga entre nós
dois. Sempre havia um duelo. Uma hora eu disse que não dava
mais. Aí, eu chamei o gerente, né? Ele perguntou o que é que
estava havendo. Sei que ele andou conversando com a gente,
andou conversando com a chefe de loja e hoje a gente mais ou
menos se entende, né? A gente sempre se olha atravessado, mas,
sempre se... a gente trabalha numa boa, sem discussão, sem
nenhum... Quando ela pede uma coisa pra mim eu sempre tento
fazer, mas sempre com um pé atrás, né? Com os outros colegas é
normal, tudo bem tranqüilo.
Pergunto se ele fez amizades ou se o relacionamento é só como colega de
trabalho.
Eu fiz amizade, de vez em quando a gente sai, a gente conversa, a
gente...
Mas, eu não estou contente não, porque a gente trabalha de
domingo a domingo... É terrível. A gente trabalha de domingo a
domingo, só tem uma folga na semana. Essa semana, por exemplo,
... folguei terça e quarta porque eu tinha uma folga desde o Natal e
agora é que eu to conseguindo abrir um pouquinho mais o espaço,
né; é agora que eu to conseguindo tirar a folga, as minhas folgas.
73
Outro dia eu disse pro meu chefe: “Olha, acho que daqui a pouco
não vou agüentar mais aqui dentro”. Aí o gerente me chamou:
“Ivan, güenta mais um pouco. Vê o que é que dá pra fazer. Vou te
tirar lá do fundo da reposição, vou te botar lá na frente de caixa.
Mas não sei, tá puxado pra você...” Aí a gente foi conversando, se
ajeitou.
A insatisfação no trabalho é um tema que ele retomou algumas vezes.
Retomava o assunto num tom de queixa e depois ficava em silêncio. Numa das vezes, eu
argumentei: Ivan, tu tens formação. Tu tens dois cursos de nível médio, um ano de
faculdade, tens experiência, quer dizer, eu acho que é muito pouco pra ti...
Ele só confirmou: Com certeza!
Pergunto sobre o primeiro emprego, em uma escola particular, que conseguiu
através de um amigo da família.
O meu primeiro emprego foi no Educandário
36
. Se não me engano
foi em... noventa e...oito. 98. Até 2000. Foi a minha primeira
experiência. No primeiro dia o pessoal também já me olhava meio
atravessado, né? O pessoal olha meio atravessado. Será que ele
vai ter capacidade? Será que vai ter como... As pessoas estão
sempre duvidando da minha capacidade, estão sempre duvidando.
E eu tenho sempre que comprovar aquilo que eu preciso fazer.
Depois eu fui me entrosando, vendo como é que era, eu fui
conhecendo aquilo que eles queriam. Comecei dando aula... aula
de computação pra crianças, mas é... era complicado.
Primeiro eu comecei de 1ª a 4ª, depois eu peguei 5ª a 8ª. Já tinha
um professor lá, mas ele viajava muito. Depois ele parou um pouco
de viajar, ele começou a assumir as coisas dele, né? Daí eu
comecei a pegar mais digitação, a digitar provas e fazer trabalhos
pros professores. E assim foi. Teve uma época que a escola deu
uma diminuída de alunos. A irmã me chamou lá e disse: “tu és o
funcionário mais novo, tu não és casado, nada... vou ter que,
36
Colégio confessional.
74
sinceramente, te botar pra rua”. Trabalhei lá quase três anos. Foi
2 anos e meio. Foi antes de eu entrar na faculdade. Eu já tinha
feito vários cursos de computação: Windows, Word, Excel...
Alguns eu fiz no SENAC, outros eu fiz numa escola de Informática
aqui na cidade mesmo.
Ivan segue contando outros trabalhos que fazia no Educandário: Lá tinha uma
biblioteca, e eu tinha que digitar os livros, tudo no computador. Tinha que registrar e
botar mais ou menos a história de um livrinho, um resumo. Quem fazia o resumo era uma
colega... eu digitava tudo e passava então pro computador.
Pergunto como era dar aula pras crianças.
Era legal. Tinha vezes que eu me atrapalhava um pouco. Pegava a
7ª, pegava a 8ª, tinha gente que não gostava daquilo que eu
explicava, né? Que eles já são... são de colégio particular, o
pessoal já tinha muita informação de computação, daí eu...
Tinha vezes que eu mandava um pra direção. Tinha vezes que eu
deixava ele ficar à vontade dentro da sala de aula mesmo. Se ele
não tava a fim, eu não podia forçar.
Eu trabalhava junto com outro professor. Tinha vezes que eu
trabalhava sozinho, mas normalmente eu trabalhava com o
professor junto.
Sobre os grupos com os quais mais gostou de trabalhar, diz que foi com as
turmas de 1ª a 4ª,
porque eles são bem ingênuos, bem tranqüilos, daí não tinham
muita informação de computador. Daí eu conseguia dar aula bem
melhor, né?
Eu sentia que eles aprendiam, com certeza. Era mais gratificante.
Mas assim... como eu posso te falar... eu sinto que às vezes, assim...
não sou uma pessoa... muito... como posso te falar? Muito
atenciosa. Às vezes eu faço uma coisa, às vezes eu deixo de fazer
75
uma coisa, vou lá e faço outra. Entendesse? Eu não sou aquela
pessoa que... que...
- Que deveria ser... com características de um professor, é isso? Tu achas que
tu não serias um bom professor...
Não só de um professor, mas... Eu não sou aquela pessoa que
deveria ser. Eu acho que eu tenho muito mais capacidade de fazer
as coisas. Mas eu tenho muita dificuldade de mostrar. Eu tenho
muita dificuldade de mostrar aquilo que eu sinto por dentro e jogar
pra fora. Sai de outro jeito, eu não consigo me expressar. Eu tenho
muita dificuldade de me expressar. Eu não sei por quê. Eu acho
que eu fui criado... fui muito mimado. Eu não tive esta experiência
de pegar e me expressar. Eu fui muito mimado pelo meu pai, pela
minha mãe.
A minha infância, a minha... agora com esse emprego no
Supermercado é que eu estou conseguindo me soltar um pouco
mais. Mas sempre fui muito protegido, até o meu primeiro emprego
eu sempre fui muito protegido. Sempre a minha mãe dizia: “Não,
eu vou te levar lá em baixo [Florianópolis]”. Sempre a minha mãe
me levava, ou o meu pai... Sempre me levavam na Clínica de
Recursos Humanos, sempre, nunca fui sozinho. Agora, sim, hoje,
sim, eu já ando de ônibus, já ando de carro, já faço tudo sozinho.
Hoje eu já consegui um pouco mais essa independência. Mas
assim, eles sempre estão com um pé atrás comigo, sempre me
controlando um pouco mais. De vez em quando eu saio com o
carro. O pai diz: “Não gosto que tu saia de noite, gosto quando tu
sai de dia.” Sempre me controlando, sempre me vigiando. Ele diz
sempre que eu tenho um pouco de falta de atenção, sempre tem que
ter um pouco mais de atenção nas coisas que eu faço, né?
Eu percebo essa falta de atenção no emprego também, eu não
consigo fazer aquilo que eu quero também. Quando eu dirijo
também. Eu não me sinto totalmente seguro quando eu faço as
coisas. É falta de atenção, é insegurança, não me sinto seguro
76
naquilo que eu faço. No trabalho, às vezes eu também me sinto
inseguro. Se tu pedir pra eu fazer uma coisa nova, às vezes eu me
sinto... Inovar, entendesse? Às vezes eu me sinto um pouco
inseguro.
Eu tento fazer o meu serviço dentro... ver como é que se faz, como
é que... procurar as pessoas certas. Eu procuro ajuda. No
Educandário aconteceu muitas vezes... de eu ir fazer uma coisa, me
sentia muito inseguro, eu pegava e tentava passar por cima. Hoje
eu já tô um pouco mais amadurecido, já sei que a coisa é diferente,
não é bem assim. Quer dizer então, quando tu tá inseguro tu pára e
procura alguém, a pessoa certa pra te ajudar, pra te orientar.
Pergunto se ele sabia sobre o porquê das dificuldades de desenvolvimento.
Não chegaram a me explicar muito bem isso. Eu tinha curiosidade,
perguntava pra minha mãe; a minha mãe me explica, sempre, mas
assim, explica quando eu pergunto as coisas, entendes? Às vezes
ela me esconde um pouco também, né? Eu sinto que ela me
esconde um pouco também, da minha vida, da minha infância. A
gente percebe assim, no convívio, né? Eu sei quando a mãe
esconde, quando ela quer que eu faça uma coisa que... quando eu
quero fazer uma coisa que ela não gosta, a gente percebe pelo jeito
dela, né? Mas, assim, eu tô contente com a minha vida, com
certeza, se ela quer contar ela conta, se ela não quer contar ela
não vai contar.
Ivan comentou também sobre sua saída com um grupo de amigos do
Supermercado. A mãe já havia me contado, mas foi importante ouvir a versão dele
também, pois mais uma vez aparece a queixa em relação à superproteção da família. Ele
foi convidado para ir a um bar numa praia do município vizinho, num final de semana.
Uma das moças pediu para ele dirigir o carro na volta, e Ivan o fez sem problemas.
Voltaram cerca de duas horas da manhã. Na versão da mãe, ela se preocupou por achar que
as moças podem estar abusando da boa vontade dele e convidando-o para sair por interesse
77
em fazer dele um motorista. Ivan sabe dessa preocupação da mãe e comenta: Nada a ver,
nada a ver...
- E sobre a continuidade dos estudos?
- Tenho vontade de talvez fazer uma faculdade. A mãe diz: “Se tu quiser fazer
uma faculdade, eu pago pra ti”. Só que não é questão de pagar, é como eu te falo, a
faculdade particular hoje é muito dinheiro, entendes? Se eu começar a fazer alguma coisa,
eu quero pegar, começar e terminar. Seria mais na parte de computação. Só que, ao
mesmo tempo eu penso: computação é cheio de Matemática e também eu me apavoro um
pouquinho também. Será que eu vou conseguir chegar lá?
Há outras questões sobre as quais Ivan quer falar. Mas, como já comentei, na
primeira entrevista, ele esperava que eu fizesse perguntas. Chegou um momento que me
pareceu que ele só falava respondendo a perguntas. Como não era essa a idéia da
entrevista, propus que encerrássemos, que deixássemos pra retomar a narrativa em outro
dia. Então, perguntei a ele:
- Hoje teria mais alguma coisa que tu gostarias de falar, ou que tu gostarias de
perguntar? Tu podes perguntar também. Como não é uma entrevista dirigida, é aberta, é
como uma conversa, tudo que tu quiseres me perguntar, tu podes me perguntar também. E
ele imediatamente pergunta:
-O que é síndrome de Down pra ti?
A pergunta me surpreendeu. E, mais ainda o diálogo que se estabeleceu a partir
daí:
- Ah, o que que é síndrome de Down? É...uma série de características que
algumas pessoas têm quando nascem, né?... tu já estudaste genética?
- Já.
- Então, ela não é transmitida de pai pra filho, né? É considerada uma
alteração cromossômica. Tem livros que trazem como um acidente genético. Então, na
hora da separação das células pra formar um novo ser, um dos cromossomos, ao invés de
formar um par, ele fica três, que é o cromossomo 21. Por isso que é conhecida como a
trissomia do 21. Aí o que é que acontece? A pessoa fica com... todas as células do
organismo dela ficam com uma alteração e dá algumas características. Porque não é uma
doença. Tem muita gente que acha que é uma doença. Toda síndrome é um conjunto de
características. Então, quais são as características mais comuns? A pessoa tem um
desenvolvimento motor mais lento, que é o que se chama de hipotonia, né? A pessoa mais
molinha, tem que fazer bastante fisioterapia, ser bastante estimulada. Algumas pessoas
78
ficam com problema de fala, algumas superam, outras não. Podem ficar com problema de
audição, problema cardíaco, respiratório, com o raciocínio mais lento. Muitas ficam com
deficiência mental, não por causa da síndrome, que é justamente isso que eu quero
estudar, que a deficiência mental é sempre construída socialmente, quer dizer, ninguém
nasce com deficiência mental. A pessoa pode até nascer com uma série de dificuldades...
Mas se ela for estimulada, se ela for estimulada, incentivada, desafiada, ela consegue, né?
Tu já leste alguma coisa sobre síndrome de Down?
- Já, já li um pouco.
- E é mais ou menos isso?
- É mais ou menos isso.
- Por que tu estás me perguntando isso?
- Não, eu queria saber...
- Curiosidade?
- É, curiosidade mesmo, eu queria saber.
- Então, embora algumas características sejam comuns (os olhos puxados, por
exemplo), cada pessoa é única, se desenvolve de acordo com as condições de estimulação
da família, da escola. Eu conheci na Espanha outros jovens com síndrome de Down com
características físicas parecidas, mas com um desenvolvimento bem diferente. São jovens
que, como tu, superaram suas dificuldades, convivem com outras, mas conseguiram se
formar, trabalham, têm uma vida independente. Alguma vez alguém te perguntou se tu
tinhas síndrome de Down?
- Sim.
- E o que tu respondeste?
- Que não, que eu não tinha.
- Como assim?
- Sim, eu tenho, mas eu não digo.
- Por que?
- Porque eu não me considero com síndrome de Down. Eu não me sinto com
síndrome de Down.
- É, as tuas características físicas são bem suaves, dá pra duvidar que tu tens a
síndrome , principalmente pelo teu jeito de falar, por tudo que tu superaste. Não é isso que
se espera de uma pessoa com síndrome de Down. Tu não achas que seria melhor tu falar
que tem a síndrome?
79
- Não, porque as pessoas não pensam assim como tu. Tu achas que eu vou
dizer que tenho síndrome de Down? Aí mesmo é que vão duvidar da minha capacidade. Eu
fiz um exame que comprovou a síndrome de Down. Está lá na Instituição [de Educação
Especial].
- Tu lembras da primeira vez que eu falei contigo pelo telefone? Lembras que
quando tu disseste que tu eras o Ivan, eu perguntei se era tu que tinha síndrome de Down?
- Lembro. Eu disse que não tinha isso.
- Eu achava que tu não sabias o que era síndrome de Down.
- É, eu já tinha uma idéia...
Ao final desse diálogo, Ivan me mostra um álbum com fotos dele desde bebê.
Fiquei surpresa com as fotos. Até por volta de 12 anos, eu não identificaria que era uma
criança com síndrome de Down. As fotos são todas aquelas tradicionais de bebês e
crianças: no colo, sentado, no berço, suas festas de aniversário, brincadeiras com outras
crianças ou andando de motoca. Na maior parte das fotos está com muitas pessoas, a
maioria crianças: os irmãos e os primos. Há também fotos de desfile de 7 de setembro e de
festa junina na escola. Por último, as fotos da formatura. Ivan comenta que não era
formatura, pois foi o final de um ano do Curso Seqüencial, mas fizeram uma cerimônia
como se fosse uma formatura com beca, discurso etc. Nestas fotos, mais recentes, mais
nítidas, mais de perto, estão mais claros os traços da síndrome de Down, como se
apresentam hoje. Ele tem fotos com o grupo todo, sozinho e abraçado com uma colega de
turma.
Peço que ele fale sobre a família...
Família pra mim é tudo, entendes? Sempre o apoio... sempre, de
todo mundo, principalmente meus pais. Eles fizeram de tudo.
Fizeram tudo que eu precisava.
Eu ia quase toda semana lá pra baixo [Florianópolis], fazendo
terapia, fazendo uma coisa..., até aconselharam me internar na
APAE. Minha mãe disse: “De jeito nenhum, ele vai estudar em
colégio normal, ele não tem nada...” Não tinha motivo nenhum pra
eu estudar numa APAE. Porque... como tu diz... posso ter uma
síndrome de Down, mas é muito pouca coisa. Não dá pra... notar
muita coisa. Entendeu? Muita gente me chama de japonês. Eu até
tenho o olhinho puxado, mas é... [risos meus e dele] isso eu dava a
80
volta, não respondia. Meus colegas desde pequeninho me chamam
de japonês: “Ah, lá vem o japa!” ... Eu morria de rir. Ah, não tem
nada a ver. Eles me chamavam e me chamam. Tinha aqueles filmes
... Jaspion, Super Dínamo, que era tudo japonês, tudo puxadinho...
Eles pegavam e me chamavam. Eu não dava nem bola também...
E sobre dificuldades na escola:
Na primeira série sempre tive dificuldade em Português e
Matemática. Eram meus pontos fracos, né? Português e
Matemática sempre foi... Desde o começo. Dificuldade em
caligrafia. Caligrafia eu não era tão bom... Desde o começo... com
meus colegas sempre me dei bem, sempre... da primeira série até a
sétima série, era um grupinho que... foi indo junto. Era a mesma
turma. Até a sétima série que eu freqüentei com esse grupo...
Na primeira e segunda série foi a mesma professora, terceira e
quarta foi outra. Daí de quinta começa a... Começa mais
professores.
Pergunto a Ivan como sentiu a relação das professoras com ele, se ele acha que
elas acreditavam na sua capacidade: Elas acreditavam no meu potencial. Com certeza.
Insisto: Não tem nenhuma assim que tu achas que duvidava...?
Não! [bem enfático] Não, nunca duvidaram do meu potencial. Os
professores sempre me deram apoio e sempre tentaram fazer o
máximo que pudessem por mim. Os meus colegas também, né? Até
a sétima série foi tudo normal... Sempre na mesma escola. Da
primeira a sétima série. Até o segundo grau, tá? Até o segundo
grau, sempre na mesma escola. Depois, fiz Contabilidade num
colégio Cenecista
37
.
37
Os Colégios Cenecistas são integrantes da CNEC (Campanha Nacional de Escolas da Comunidade),
sociedade civil de direito privado, sem fins lucrativos. Fundada em 1943, em Recife/PE, como Campanha do
Ginasiano Pobre, a CNEC na sua origem tinha como principal objetivo oferecer ensino gratuito a jovens
carentes. Os Colégios Cenecistas são, portanto, escolas comunitárias mantidas com “o apoio da comunidade,
de pessoas físicas e jurídicas, de instituições públicas e privadas e de organismos nacionais e internacionais,
81
- E quando tu mudaste de escola e fosse para esse Cenecista, tu sentisse
alguma mudança, discriminação...?
- Não. Eles já me conheciam. É aqui na cidade também.
A mãe comenta que o diretor do colégio era muito amigo,... já conhecia ele.
Comenta também que Ivan lá era quase um dos primeiros em... Matemática ou Física?
Ivan mostra-se irritado com o comentário da mãe e a corrige, dizendo que a
disciplina era Contabilidade. A mãe insiste achando que ele está confundindo o nome da
disciplina com o curso, e ele responde, com ênfase: Mãe, Con-ta-bi-li-da-de. É, mãe, uma
matéria chamada contabilidade. É tipo Matemática... mas bem específico.
Comento sobre a referência que ele havia feito à Matemática como seu ponto fraco.
E ele argumenta: Não, desde o primeiro grau eu sempre tive dificuldade em Matemática.
Só que lá era... uma matéria que não era tão puxada. Não era tão puxada como a
Matemática.
Sobre o apoio que recebia dos irmãos:
Desde a quinta em diante, tinha um irmão que me ajudava na
Matemática. De quinta até o segundo grau, que eu tive... porque
são mais professores, é muita coisa, né, pra acompanhar... Era
assim: a gente chegava aqui sábado de tarde, às vezes domingo e
estudava, explicava, meu irmão fazia eu raciocinar... Dia de
semana, quando precisava, quando tinha prova no outro dia, ele
me...
A mãe complementa, dizendo:
Na leitura e cópia, era eu. Ele... passou uns cortados, mas se não
fosse assim, né? Se fosse deixar por conta, hoje ele tava aí... Só que
o difícil dele é a letra, né? A coordenação motora dele é... Mas que
ele treinou muito, treinou, né? Todo dia ele tinha que fazer a cópia,
pra poder....
mediante parcerias, contudo sem o envolvimento em atividades de caráter confessional e partidário.”
(http://www.cnec.br/portal/index.php ).
82
Me diziam que ele tinha que ir para a escola da APAE. Mas, as
professoras que tinham aqui eram tudo do meu grau... de
instrução, né? Além de ... quando elas iam se aposentar, pra não
trabalhar, pediam pra ir pra escola especial, pra se encostar lá,
né? Aí quando eu vi aquilo, eu disse: “O quê? O quê? Pra lá ele
não vai.” Decerto pensavam que ajudava. Eu disse: “não”. Se
tivesse uma professora especializada, mas especializada não tem
nenhuma. Porque são tudo... sem especialização.
E mesmo o Dr. André disse assim que não, que ele não precisava ir
pra escola especial. Ele podia ir pra uma escola [...] e se a
professora tiver amor, ele vai... ele consegue. Aí ele foi comigo
junto, né, porque eu lecionava aqui, né? E ele foi, só que quando
ele entrou na aula eu já me aposentei. Aí não deu pra aproveitar ...
Mas os professores, eles sempre tiveram muito respeito comigo. Os
professores dele, muitos foram meus alunos. Mas ser amigo não é
tão fácil, não.
Pergunto sobre lembranças da pré-escola e ele responde: Ah... as brincadeiras... A
gente brincava bastante,... A gente desenhava... eu participava de tudo.
A mãe complementa, dizendo que levou-o ao “Colégio das freiras” com receio de
que elas não fossem aceitá-lo. Mas elas a tranqüilizaram, dizendo que
ele ia fazer tudo o que as outras crianças fizessem; que ele era
assim mais molinho, mais lento, mas que ele ia conseguir fazer
tudo. A freira era muito querida... Ali também, eu ia levar todo dia
de carro. Todo dia levava, vinha embora e depois ia buscar. Minha
vida foi assim. Mas eu não me arrependo não. Se todos... todos
assim com o problema que ele teve, tivessem uma mãe que fizesse
isso, né? Todo mundo hoje se admira. Até se admiram que ele tem
namorada. Aí dizem assim: isso é pra ti mesmo, tu já és, já eras
professora, pudesse fazer tratamento com ele. Quem não pôde
fazer, tá tudo aí rolando.
Eu comento:
83
Mas há muitas pessoas que têm bastante condição também e não
acreditam. Até porque tem muitos médicos, e muitos livros que
ainda continuam sendo publicados, dizendo que a pessoa... não só
com síndrome de Down, com paralisia cerebral, com outras
Síndromes também, que... não podem isso, não podem aquilo... Eu
acredito que o desenvolvimento da pessoa não vai depender da
Síndrome ou se ela é assim ou... vai depender das oportunidades
que ela tiver e do que ela conseguir...
Ivan comenta, interrompendo-me: Acho que se ela tiver incentivo, acho que é tudo,
né?
Eu continuo: Claro! E limite todo mundo tem. Não vai todo mundo aprender igual.
A mãe segue:
Pra mim... o que é que eu fiz com ele? O melhor de tudo foi o
amor... E acreditar nele! Acreditar que ele ia conseguir. E não ter
preguiça. Às vezes, amanhecia dia de chuva...” ah, acho que eu
não vou.” Que nada... Um conhecido nosso [...] tem uma menina
mocinha, né? [pela entonação da voz e outros comentários que não
consegui transcrever, parece tratar-se de uma moça com alguma
deficiência]. Ele até deu pra mãe cuidar. Nem cuida da filha.
Parece que não quer... não mostra a criança, sabe? Porque tem
que enfrentar tudo isso, né? Preconceito... As pessoas, querendo ou
não, olham, né?
Pergunto a Ivan se ele sentia isso, o preconceito. Pela primeira vez ele
responde que sim: Sentir, senti, mas eu não dava bola pra isso. Eu não me importava com
isso. E tinha o apoio da mãe. Mas, perceber, sempre tu percebe.
Pergunto quando ele começou a perceber que as pessoas o olhavam diferente:
No jardim. Já no jardim, eu percebia por parte dos adultos, das crianças, todo mundo,
todo mundo ao redor... o meu pai me chamava de japonesinho. Ah, lá vem o japonesinho,
lá vem o [...]. Era como uma brincadeira. Aí eu pegava e entrava na brincadeira...
A mãe comenta que na escola os colegas eram muito bonzinhos com ele. Até
por sinal, o dia que ele não ia à aula, acontecia algum imprevisto, eles emprestavam o
84
caderno pra ele copiar a matéria... Ele sempre tirava nota boa. Ele acompanhava. Ele
nunca ficou em recuperação.
Pergunto se as avaliações, como prova, por exemplo, era sempre tudo igual ao
dos outros alunos, ou se algo era mais facilitado... e Ivan responde: Tudo igual. Nada mais
facilitado.
E a mãe relata:
Uma vez ele... na sétima série... ele fez a prova de Ciências, né, e
ele precisava de um tal ponto assim. Aí ele chegou aqui e disse: “é,
mãe, eu acho que eu não passei.” Aí eu disse: “Deixa eu ver a tua
prova.” Eu olhei a prova. Uma questão que tava certa, e a
professora botou errado, né? Abaixou um ponto e meio. Parece
que foi. Aí, eu fiquei quieta... eu olhei assim... também, eu não sou
tão burra assim, não. Aí eu disse assim: “Tu vais lá...” a
professora é lá de baixo... São José, né, eu sei onde é. Ela é muito
boazinha. Mas aqui, não tava certo... Aí eu olhei, “não, isso aqui
não tá errado. É assim, assim, assim...” Eu olhei pelo livro, né?
Primeiro tem que olhar bem, pra não dar uma... um vexame
também. Aí eu disse: “Vai lá e diz pra ela... pergunta se essa
pergunta aqui tá certa”. Eu nem apareci. Eu disse: “Vai lá, fala
com ela. Pede licença, entra lá... na sala dos professores. Vai lá e
diz assim, olha, essa pergunta aqui como é que tá, se ela tá certa
ou tá errada.” Ela olhou, olhou, olhou... :“É mesmo, eu botei
errado, tava certa.” Aí ele passou. Ia ficar só por causa daquele
ponto. Pois ele estudou tanto! Eu ensinei tanto aqui! Aí depois de
noite eu ainda mostrei pro meu filho que veio, né, esse que
ensinava ele. Aí ele disse: “Ah, mas devia ser comigo!”
Matemática também. Uma vez também a de Matemática... ele tinha
acertado e ela botou errada. Era assim, assim... ele [o irmão]
telefonou pra ela daqui e ela disse: “Ah, mas foi decerto engano.”
E ele disse: “É, mas na prova não tem engano não. Pode ter
engano pro aluno, mas professor não pode ter engano”. Porque ele
é um gênio na Matemática, né? Ele tirava sempre primeiro lugar
85
no Colégio. Esse que é engenheiro. Aí ele nunca ficou. Só o ano da
sétima série que ele ficou porque deu aquela meningite viral, né?
Ivan corrige dizendo que não podem dizer que foi meningite viral, o médico
não sabe dizer o que é que foi ... E a mãe continua: É, a gente diz que foi viral. Aí quando
eu disse que ele não ia pra aula, que parecia que era meningite, ih! Os alunos não vieram
mais nenhuma aula, com medo, né? As pessoas vieram visitá-lo, e eu disse: “não, não tem
problema não, porque não tem... não é aquela contagiosa”.
Ivan conta: Eu tava comendo maçã no colégio, e, de repente caí no... caí na
quadra. Deu uma tontura e caí na quadra. Aí, pegaram, me levaram para o Hospital e
deram Plasil. Normal! Dois dias depois, eu caí no banheiro. Aí, foi procurado o meu
neuro, né?
Mãe:
[...] a minha vizinha ali, porque ele tava saindo, aí... com espuma
pela boca, e eu disse: “Meu Deus do céu, não é coisa boa, não!”
Eu liguei pro
Dr. André. Aí ele disse: “Traz ele aqui, traz ele ligeiro!” Eu
mandei chamar o meu marido, ele tava saindo com o trator. Aí,
botamos ele no carro, troquei de roupa num instante. Esse eletro
eu ainda tenho aí. E eu sei que ... deu aquela convulsão e pronto!
Não deu mais nada. Aí ele deu aquele...
Ivan:
Tegretol. Tomei uns três anos, e foi diminuindo a quantidade...
Eu tava na sétima série. Aí tentei voltar pra escola de novo. Peguei
recuperação, tudo... Perdi quase um mês de aula. Aí não consegui
recuperar. Fiz segunda época, tudo. É que faltava um ponto pra eu
passar numa prova. Daí, conversamos com a professora,... mas
não deu. Foi o único ano que eu reprovei.
A mãe conta mais sobre essa reprovação na sétima série:
86
A diretora mandou me chamar. Mandou a servente me chamar. Aí
eu disse assim: “Eu já sei pra quê.” Eu já tava calculando. “Eu já
sei pra que é. Diz pra ela que eu não vou lá. Se ela quiser, ela vem
aqui. Eu não vou lá pra pedir nota pro meu filho, não. Diz pra ela
– ela é muito... é cunhada de uma filha minha, sabes? - Olha diz
pra ela que faça o que a consciência dela manda. Porque se ele
merece, passa ele. Se ele não merece, fica. Eu não quero pedir
nota... nunca dei nota de graça pra aluno nem vou pedir de graça
pra ele. Se ele merece, toca ele pra frente, se ele não merece, deixa
ele lá repetir o ano”. Só que ela não podia ter rodado ele só por
causa daquele ponto... não chegou a... acho que não chegou nem a
meio ponto, né? Décimos... Professora de Português muito boa,
muito honesta, né? Muito honesta, ela. Não queria dar o que
faltava. Acho que era 5 décimos, se não me engano. Ela devia ter
considerado que ele ficou tanto tempo fora e mesmo assim ele
conseguiu, né, por tão pouco...
Aí, nas férias, verão, nós tínhamos casa de praia, e a diretora aqui
... justamente naquele domingo ela almoçou conosco na minha
casa [...] ele, acostumado com os colegas desde a primeira série
até a sétima, sempre aquela turminha, sabe? Aí separou... e a febre
que deu nele, né? É, a aula ia começar segunda, e... domingo ele
deu isso. Aí, sabe o que é que eu fiz? Ela disse: “Ah, o Ivan tá
doente.” E eu: “Pois é, sabes o que é que é isso? É que amanhã ele
vai enfrentar vida nova. Ele perdeu todos os amiguinhos dele.”
Ivan: É, não foi fácil... Não foi fácil, mas eu consegui...
A mãe prossegue:
[...] aí eu disse pra diretora: “Eu vou te falar uma coisa, tu és bem
interessada, bem sabida. Se acontecer alguma coisa com ele, vocês
vão se ver comigo. Vai todo mundo pra Secretaria de Educação...”
Porque não se roda um aluno por causa de cinco décimos. Ainda
mais ele que nunca rodou. Por ele ter algum problema? Mas ele
acompanha todo mundo. Ele nunca pediu nada de ninguém,
87
nenhum décimo. Nunca copiou de aluno. Nunca pediu a um aluno
pra ajudar ele na escola. Ele fazia... ficava assim [sem olhar para o
lado], fazia o que sabia. Nunca perguntou assim... ou espiava...
Aí, quando chegou de manhã, eu peguei o carro... antes de 8 horas,
e fui na casa da professora de Português dele... outro município...
fui lá. Me sujeitei a isso, né? Eu assim... o nome dela é Elza: “Elza,
estou aqui por causa disso. Chega lá, tu vais mais cedo pra aula,
chega lá, chama o Ivan e... conversa com ele, explica... que isso
não faz mal, que ele vai se dar bem com os colegas... conversa com
ele pra fazer entender que ele vai começar como se fosse uma vida
nova... com a turminha deles.” A turminha já era diferente dele,
né? Aí, eu disse assim: ”Cuida, né? Eu nem sei se ele vai na aula
hoje. Ele tá bem doente... febre... febre sem ter doença.” E a febre
era desse nervosismo dele...
E disse mais: “Não é fácil, não, porque... Eu levei uma vida toda
cuidando dele. Não é por causa de cinco décimos... por causa de
cinco décimos que ele agora vai começar tudo de novo. Agora, se
ele regredir, tu podes te preparar”...
Não foi o caso... Aí, ela veio, ela veio, chamou ele, conversou com
ele, tudo... E eu disse assim: ”Vocês tratem ele com muito carinho,
porque não foi fácil trazer ele até aqui assim hoje, não. Eu também
perdi muita noite de sono, gastei muito, estou na tua casa essa
hora, podia estar em casa, e agora eu não quero que ele vá
regredir”.
Na formatura dele, foi muito lindo... me chamaram cá no banco
onde eu estava, pra eu entregar o certificado pra ele. Ele é que
entregou o presente pra mim, foi ele que entregou presente pra
quem mais... pra professora, pra coordenadora de não sei o quê...
Por que não botaram os outros? Porque ele tinha... ele sabia
conversar e tava muito bem... a aparência dele era muito bonita,
ele tinha uma roupa muito... de destaque mesmo, né? Porque eu fiz
tudo por ele, né? Aí chamaram o pai e a mãe pra entregar...
Acharam que ele deu um pulo... Nem conheciam que era ele lá.
Arrumadinho que ele tava e... extrovertido. Isso é que é. Ele só não
88
foi orador porque ele não sabia se expressar ainda muito bem, mas
queriam dar orador pra ele. Mas foi bom fazer isso... Pra eles não
fazerem com nenhum aluno o que ela fez com ele. Eu fiquei
quietinha.
A mãe vai buscar umas fotos mais recentes de Ivan que eu já havia visto: a
conclusão de um ano do curso de Computação na Universidade. Ivan explica: esse aí foi
um curso seqüencial que eu fiz na Universidade. Não é bem a faculdade. É um curso. [Esta
explicação é porque a foto é da turma usando beca].
Pergunto se ele pensa em voltar para a universidade: Eu só penso, né. [suspiro]
É aquela coisa, né? Eu não sei como é que tá esse curso hoje, pra eu pegar e me formar lá
dentro…
Peço que ele fale mais sobre isso: É... às vezes é pouco incentivo, é pouco falta
de vontade, entende? Um monte de tempo parado, pegar, voltar a estudar de novo...
agora... é aquela coisa... um curso hoje não deve estar barato. Não deve estar barato.
Agora, o meu pai tá construindo, tudo...
Pergunto se o pai o ajudaria e ele diz: com certeza, sim.
Na história de Ivan, como já comentei no início, há uma dúvida em relação a
um diagnóstico mais preciso que explique tanto o atraso significativo no desenvolvimento
quanto as suas características físicas peculiares. Desde as primeiras conversas com ele e
sua família, percebi uma negação do diagnóstico de síndrome de Down. Ivan constituiu-se
em meio a esta dúvida/negação, sendo chamado de japonês pelo pai e também por vizinhos
e amigos da escola. Ele mesmo conta que desde o Jardim de Infância, percebia que as
pessoas o olhavam de maneira diferente. E traz consigo marcas da
deficiência/incapacidade: os traços físicos, a hipotonia (superada na infância, mas
comentada por ele quando me mostrou as fotos), as dificuldades motoras, o problema de
audição, o “raciocínio lento”, como ele mesmo diz. Tanto ele como outras pessoas da
família se referem ao seu desejo de fazer a cirurgia para “tirar o jeito de japonês”. Seria
uma das dificuldades/marcas não superadas? Em sua narrativa, evoca os problemas e os
esforços para a superação, sempre destacando o apoio da família.
O convite e a negociação para participar como sujeito de pesquisa exigiu de
mim um cuidado na descrição do perfil dos sujeitos que eu procurava. Expliquei que eu me
interessava por histórias de jovens e adultos que, apesar de seus problemas de
desenvolvimento, conseguiram, com o apoio de outras pessoas, superar dificuldades e ter
89
sucesso na escola, no trabalho, na vida. Foi difícil introduzir o critério da síndrome de
Down, pois não sabia como ele entenderia a proposta. Então, informei também que estaria
entrevistando outros jovens e adultos com a síndrome que, como ele, tinham enfrentado
muitas dificuldades para se desenvolver, mas que tinham tido sucesso, etc.
Já na primeira entrevista Ivan traz as pistas sobre o tema síndrome de Down na
família. Quando ele diz que não se considera com, que não se sente com síndrome de
Down, não parece estar negando a sua condição biológica, mas sim negando-se a encaixar-
se no estereótipo da síndrome. Esta é uma questão que virá à tona novamente quando, em
uma conversa informal, ele conta que está namorando e que pretende casar-se. Pergunto se
ele já conversou com a namorada sobre a dúvida em relação ao seu diagnóstico. Ele diz
que não, demonstrando dificuldade em conversar sobre o assunto. Chegou a propor, em um
outro momento, que eu conversasse com a namorada para explicar-lhe a situação. Ponderei
com ele que essa deveria ser uma conversa entre eles, sem preocupação com a precisão da
informação, e sim com as dúvidas e dificuldades que ele sentia. A partir daí, conversamos
sobre a possibilidade de Ivan fazer uma avaliação genética, numa tentativa de esclarecer a
questão. Ao mesmo tempo que relutou, mostrou-se interessado e procurou uma médica
geneticista, que solicitou a realização de um novo cariograma. Até o presente momento, ele
está aguardando o resultado do exame, que acha já estar pronto, mas ainda aguarda a
consulta com a médica. Ele comenta que a médica lhe disse que ele não tem características
de síndrome de Down, que deve ser outro quadro. Ao meu ver, deve ser difícil olhar para
Ivan, falando bem, bem educado, arrumado, bem tratado, e relacionar esta imagem com a
síndrome de Down.
4.4 A história de Paula
Paula tem 43 anos e vive em Porto Alegre. Com diagnóstico de síndrome de
Down por mosaicismo, sempre estudou em escolas comuns, chegando à Universidade,
onde se formou em Pedagogia Séries Iniciais e mais tarde em Pedagogia Educação
Especial. Cheguei até Paula através de um grupo de alunas de Pedagogia da UFRGS que
fizeram um trabalho de observação na escola onde ela trabalha.
Minha primeira impressão é de que tinha havido um engano por parte das
alunas que me falaram que Paula tinha síndrome de Down. Não notei nenhum traço físico
90
da síndrome nela, embora a sua postura corporal, seu olhar estrábico e sua maneira de falar
me dissessem que eu estava diante de uma pessoa com uma diferença significativa.
Paula é a quinta numa família de nove filhos. O pai, com 75 anos, é engenheiro
eletricista e mecânico, tendo fundado uma empresa de engenharia em Porto Alegre há mais
de 50 anos, onde trabalha até hoje, junto com três filhos. A mãe tem 70 anos, é professora
normalista e sempre gostou de desenhar e pintar. Até hoje, dá aulas de desenho e pintura.
Com o apoio de toda a família, sempre investiu em todas as possibilidades de estimulação
que se apresentavam para que Paula avançasse em seu desenvolvimento. O envolvimento
foi tal que a mãe, que já dava aulas particulares, montou uma escola especial junto a sua
casa, atendendo a alunos com diferentes níveis de dificuldades no processo de
ensino/aprendizagem, muitos deles com diagnóstico de deficiência mental. Recentemente,
a mãe publicou um livro contando a história da trajetória de Paula e dos 25 anos de sua
escola: ... já que íamos construir um ateliê, resolvi então fazer mais uma sala de aula para
que Paula trabalhasse comigo tentando ajudar outras pessoas, assim como eu consegui
com ela. Foi assim que iniciou a minha escola.
A escola funciona em uma construção junto à casa onde Paula mora com sua
família desde que nasceu. Atende cerca de 40 alunos com necessidades especiais (com
retardo mental, síndrome de Down e outras síndromes, segundo Paula). A maioria é de
jovens e adultos, com idade entre 18 e 25 anos, distribuídos em três salas. A mãe trabalha
com um grupo maior, uma outra professora com um segundo grupo e Paula trabalha com
um grupo que ela chama de Turma de Alfabetização.
No primeiro contato por telefone, foi a mãe quem me atendeu e já sugeriu que
eu fizesse as combinações diretamente com Paula. Em todas as entrevistas, a mãe estava
em casa, mas nunca participou nem se aproximou da sala onde estávamos, com exceção da
última, quando a convidei para participar, ao final. As duas primeiras entrevistas foram
realizadas na sala mais ampla da escola. A terceira foi na sala de jantar de sua casa.
Na primeira conversa com Paula, ela sugeriu que eu fosse observar seu
trabalho com os alunos. Considerei que seria importante vê-la atuando como professora e
fui uma tarde conhecer seu ambiente de trabalho. Então, inseri no texto de sua história,
impressões minhas sobre a visita, além de alguns comentários feitos por ela sobre seus
alunos, por considerar que eles revelam um pouco de sua concepção de educação.
Paula orientou sua narrativa pelo roteiro que eu apresentei na primeira
entrevista. Narrou sua história desde o nascimento, trazendo muitos detalhes e focalizando
sempre as conquistas, a superação das dificuldades que ia enfrentando, especialmente em
91
sua trajetória escolar. O texto da sua história – organizado a partir das entrevistas e das
anotações de meu diário de campo – mantém o encadeamento feito por ela. Ou seja,
transformei as entrevistas em um texto narrativo, onde Paula se apresenta como a narradora
que define o fio condutor da história, embora eu também apareça como narradora que
organizou as informações disponíveis, incluindo comentários e impressões pessoais. Em
alguns momentos, apresento diálogos tal como foram construídos durante as entrevistas,
chamando a atenção do leitor para a riqueza da interação entrevistadora/narradora.
Paula é muito falante e tem uma narrativa bem articulada. Abre parênteses para
detalhar ou comentar algum assunto, mas depois volta e retoma a narrativa. Destaco
também seu sotaque porto-alegrense. Mantive palavras e modos de expressar-se tal como
ela utiliza, por entender que essa é uma apropriação importante que Paula fez de seu grupo
cultural.
38
Até o momento em que eu nasci a mãe não sabia que eu seria uma
criança síndrome de Down. Então, quando eu nasci, os médicos
diziam: “Bah, não vai caminhar, vai demorar pra caminhar, ela
não vai falar, vai demorar pra falar”, ...tudo bem mais complicado
foi comigo no início. Porque a minha mãe nunca teve uma criança
síndrome de Down em casa pra poder trabalhar. E daí, a partir do
convívio comigo..., eu comecei a crescer, daí a partir dos... acho
que a partir dos quatro meses, que ela começou as fisioterapias,
né, essas coisas todas. Porque como eu era nenê, não dava pra
fazer nada disso ainda. Então, com 4 meses é que a mãe começou
a... pegava no meu braço, a puxar um pouco... Seria um tipo de
fisioterapia em casa, né?... Uma estimulação precoce em casa, pra
eu adquirir força porque os meus braços eram muito moles, na
época. Sabe, toda criança síndrome de Down nasce com uma...
uma hipotonia muscular.
Daí foi trabalhando, e sempre que ela me levava no médico eles
diziam que eu ia demorar pra falar, que eu ia demorar pra
caminhar, que eu ia ter que fazer muita fisioterapia pra poder
38
Nas histórias de Ivan e de León, fiz correções lingüísticas ao transpor a narrativa oral para a escrita. No
caso de Paula, nem sempre procedi assim para que fosse possível dar visibilidade ao seu sotaque porto-
alegrense.
92
desenvolver. E daí... eu acho que um ano, um ano e pouco, eu
comecei a fisioterapia. Eu ia em lugares específicos pra
desenvolver a motricidade... Estimulação precoce, pra desenvolver
a motricidade, as pernas, os braços... uma série de aparelhagens
junto. Daí a mãe me levava, eu ia com ela... eu acho que tinha um
motorista da família, da firma do pai, a mãe me levava lá. Depois a
mãe se interessou em comprar as aparelhagens e montar um tipo
de uma academia pra eu poder trabalhar ali em cima [Uma sala
nos fundos da casa onde hoje funciona uma das salas da escola].
A mãe conta que foi uma fase que ela corria muito comigo, né?
Porque levava na fisioterapia... até fonoaudióloga eu tinha. Daí eu
comecei todo o trabalho em casa porque ela montou a
aparelhagem. Meu vô ajudou a montar os aparelhos. Quando a
aparelhagem ficou pronta, a mãe ia lá pra cima comigo, eu
fazendo as aparelhagens... a gente ficava tipo uma hora, uma hora
e meia, todo dia. A fonoaudiologia, eu me lembro que... a gente...
ela desenvolvia a partir do assoprar balão, ...depois com o tempo
eu comecei a assoprar fósforo, a assoprar apito, até criar uma
força maior aqui [apontando os seus lábios] porque era muito
flácido. E daí também, todo dia eu pegava junto...
Depois eu fui criando mais força pra tudo, até pra caminhar, no
início eu usava aquelas botas ortopédicas, porque meu pé era meio
pra dentro, né? Então, eu caía muito. Por causa do pé que era
mais puxado pra dentro. Então até bota ortopédica eu me lembro
que eu usei até uns sete anos, eu acho. Até melhorar o pé. Daí não
precisei mais usar bota. E depois, com... acho que foi aos sete
anos, que eu comecei a usar o óculos. Porque... com o tempo, a
mãe foi descobrindo que eu tava com dificuldades na visão. Então,
a partir dos sete eu comecei a usar óculos, mas era fundo de
garrafa, era bem forte mesmo. Com o tempo foi diminuindo,
diminuindo e atualmente o óculos eu não uso mais. Só quando eu
vou num ambiente muito escuro, daí eu boto, mas senão, não é
necessário, eu não sinto mais a falta dele, porque agora já é um
grau... muito pequeno.
93
Paula continua contando que aos seis anos foi para a pré-escola. Como a mãe
nem sempre tinha tempo, todos na casa lhe ajudavam:
Às vezes a mãe não tinha tempo pra subir comigo, aí subiam as
minhas irmãs... a mãe dava dicas do que era pra fazer e elas
subiam comigo. Aí eu fazia as aparelhagens. Às vezes precisava ir
nos médicos, os meus irmãos ajudavam... porque às vezes a mãe
não tinha tempo, né? Tinha nove filhos pra cuidar! Eu fui a quinta,
então... já tinha muita experiência antes e depois de mim também.
Todo mundo ajudou, não foi só a mãe, né? Quando a mãe não
podia, o pai, os irmãos ajudavam também. Meus irmãos lembram
de muitas histórias dessa época e me contam. Eu tive muita ajuda.
Até dos avós eu tive, porque às vezes precisava... às vezes o
motorista da firma não podia, né, e os meus avós me ajudavam.
Mas o meu contato maior foi com meu avô materno. Porque o
outro morreu quando eu tinha, eu acho, que uns quatro ou cinco
anos. Então, eu nem me lembro muito dele. Só de fotos, quando ele
vinha, às vezes eu me lembro dele, mas muito pouco. Ele tinha
problema de asma e morreu por essa insuficiência. E o outro...
meu contato maior foi com o outro, que me ajudava, que inclusive
botou umas roldanas, que eu fazia... levantamento, pra poder
levantar e abaixar os braços, né? Pra fortificar os braços. Até
roldana ele fazia. Tinha uma roldana fixa e a outra era daquela
móvel. Eles faziam tudo, todas as aparelhagens foram feitas tipo
caseiras, né? Eles viam a forma, pra ele poder fazer... Então meu
contato maior realmente foi com esse avô. Inclusive às vezes ele me
levava nos jogos do Inter. Eu tinha até uma camisa e bandeira do
Inter. Então, ele fez a minha cabeça pra ser do Inter e eu... até
agora sou do Inter. E é uma lembrança dele, porque, se ele não
forçasse isso, eu não iria ser colorada. Eu sou a única colorada da
família. Pra seguir o avô. O resto é tudo gremista. Foi uma
herança dele, né? Continuei... E eu sempre gosto de ver um
futebolzinho... sempre que eu posso.
94
Então, com sete anos, depois de todo o esforço dele, a minha mãe
conseguiu uma escola pra eu poder ir, mas foi difícil. Porque
ninguém queria me aceitar, porque eles viam as minhas
dificuldades... físicas, né? Tinha que ter... até pra entrar na escola
tinha que ter laudo médico. O pessoal das escolas via que eu era
síndrome de Down, e não queriam me aceitar. A partir daí
começou a discriminação. A mãe conhecia uma professora, que
trabalhava no Colégio São José
39
... Ela era uma professora da 1ª
série. A mãe contou a situação, e ela disse que não podia ficar
assim. Que era uma discriminação. Daí que ela conversou no
Colégio e conseguiu uma vaga pra eu começar lá. Eu comecei na
pré-escola com... seis, sete anos. Era meu primeiro ano, eu
chorava muito, eu me lembro que eu chorava muito, me
relacionava pouco com os colegas. Eu me lembro que eu tinha
alguma dificuldade pra me comunicar com os colegas... pra falar
com os colegas... nesta época, né? Porque isso acontece muito com
as crianças com síndrome de Down...
Tento completar a frase para esclarecer o que Paula quer dizer: ... que têm
algum problema de fala... aí a criança acaba ficando isolada...
É, se isola...
...porque ela não consegue se fazer entender, né?
Paula concorda, mas volta para o assunto que estava falando. Mais adiante,
retoma(re)mos essa questão das dificuldades na comunicação.
No fim eu acabei repetindo a pré-escola no ano seguinte com a
minha irmã mais nova, que tem um ano a menos que eu. A partir
daí, eu consegui passar pra 1ª série. A minha professora era a
Clara. Foi ela quem conseguiu minha vaga lá no Colégio. Ela foi
comigo da 1ª até a 4ª série. Ela foi me seguindo até a 4ª série. E
daí, quando eu fui pra 5ª, já eram mais professores, aí já eram
39
Colégio confessional.
95
mais específicas, né? Ciências, Biologia, Matemática... mas
Matemática eu nunca tive muito problema.
Eu estudava com a mãe, mas Matemática não foi o meu maior
problema, eu não tinha muita dificuldade. Eu acho que o meu
maior problema foi Português, que tem muita decoreba ...
Português, Biologia, Química, então, estas coisas que dependiam
mais da decoreba... eu até estudava Matemática com ela também.
As outras matérias, tinha que memorizar... muitos nomes, muitas
regras...
Então, de 1ª a 4ª foi com a Clara. Depois eu passei pra segunda
parte do 1ª grau, né? Que é 5ª, 6ª, 7ª e 8ª, lá no Colégio também.
Sempre estudando com ajuda da mãe em casa, desde a 1ª série.
Mas, a partir da 5ª, começou uma dificuldade um pouquinho
maior, porque daí já eram mais matérias...
Daí eu já tive alguma discriminação desses professores lá de
dentro também. Mas não foi tanta, não foi muita discriminação
dentro do Colégio. Eram alguns... dava pra contar nos dedos os
professores que discriminavam, eram pouquíssimos.
Com o tempo eu fui me relacionando melhor com a turma. Com
meus colegas. Na 4ª série eu já falava com todo mundo. Já não era
tanta... já não me isolava tanto. Inclusive, tinha a Marli, que me
acompanhou até a 6ª série, eu acho, no Colégio. E era uma baita
duma amiga! Ela me ajudava em tudo lá dentro. O nosso
relacionamento realmente foi grande. Como ela tinha algumas
dificuldades também, às vezes vinha pra poder estudar com a
minha mãe. Às vezes estudávamos junto, às vezes separado..
quando as dúvidas dela eram diferentes das minhas.
Mas, na 6ª série ela saiu do Colégio e a gente perdeu o contato.
Depois eu fui encontrá-la dentro da Universidade. Eu tava
tirando... Séries Iniciais, que foi o que eu tirei primeiro, e ela tava
lá tirando a pré-escola. Só que ela tava mais adiantada, eu tava
entrando no 1º semestre, ela tava no 3º ou no 4º. Só que depois ela
trancou a faculdade. Perdemos o contato e depois nós nos
encontramos de novo por um ... por um acaso do destino. Mas
96
sempre a gente se encontra. Ela foi uma baita duma amiga! Até a
6ª série...
Então, eu tava dando uma palestra numa faculdade, e no meio da
palestra surge a Marli correndo. Reconheceu minha voz, a porta
tava aberta... Era no auditório da faculdade. Lá pelas tantas, ela
escutou minha voz, reconheceu e entrou dizendo: “Eu acompanhei
o desenvolvimento dessa guria. Eu sou o relato de vida dela.” E
daí conversamos bastante, foi um encontro emocionante, até eu
chorei... dei uma choradinha, ela também porque ... nem eu sabia
que ela tava fazendo Pedagogia lá.
Peço a Paula que explique melhor sobre o contexto da palestra.
Era sobre Educação Especial. Era pro curso de Psicologia. É
porque eu fiz uma... vieram fazer aqui uma reportagem pra um
Jornal. E daí, o pessoal da faculdade, as alunas e os professores
da Psicologia de lá se interessaram. O pai e a mãe me levaram. Eu
nunca tinha segurado um microfone na mão. Fui lá despreparada.
Pensei que fosse uma coisa simples... cheguei lá, me deram até
microfone na mão. No fim, o pessoal dizia: “Oh! Como tu fala bem
no microfone”. E eu: “É a primeira vez que eu falo no microfone,
vocês me desculpem.” Nessa época, eu já tinha me formado em
Educação Especial.
Continuando... Daí, com muito esforço, eu consegui me formar no
1º grau, ... com ajuda da mãe, da família; às vezes a mãe não tinha
condições, não tinha tempo às vezes, pra estudar comigo... ou às
vezes até ela não entendia... Então daí meus irmãos, até essa
minha irmã que tava fazendo comigo o Colégio, ela me ajudava às
vezes.
Pra mim foi muito bom me formar no primeiro grau. Foi uma festa
muito importante que fizeram lá no Colégio. A partir daí a mãe
abriu a escola, e não pôde mais me ajudar nos estudos. E eu fui
trabalhando junto com ela. Começou com 3 alunos. A partir desses
97
3, foi aumentando porque foram divulgando e agora já tem quase
60 alunos entre manhã e tarde.
Dez anos depois que a mãe abriu a escola, ocorreu um incêndio na
minha casa, que foi o estopim pra eu chegar e dizer pra mãe: “Eu
quero tirar o 2º grau supletivo”. Porque...e se toda a minha família
tivesse morrido no incêndio, como é que ia ser? Quando eu disse
pra mãe que eu queria voltar a estudar, eu já tinha ido lá no
cursinho Supletivo. Era lá no Centro. Eu já sabia onde era, já
conhecia a secretária, o pessoal já tinha me explicado tudo. Só que
eu não tinha me matriculado ainda porque eu precisava dizer pra
minha mãe e pro meu pai. Eu não faço nada sem dizer pra eles. Eu
acho muito importante isso. A confiança neles, né? Tem que ter a
confiança em alguém pra fazer as coisas. Minha mãe ficou
apavorada, achando que eu não ia conseguir, mas eu me senti em
condições e fui. Ela disse: “Olha, Paula, vai ser bem diferente,
agora terás que estudar sozinha porque eu não tenho mais tempo
de passar horas e horas contigo explicando e te tomando as
lições.”
Paula fez então o ensino médio, concluindo num prazo bastante curto:
Fiz o 2º grau em 1 ano. Me deu uma motivação incrível, porque eu
tinha colegas que vinham aqui pra estudar comigo. Tinha gente até
que me convidava pra ir na casa delas pra estudar
40
. Então, ali eu
fui mantendo uma relação grande com esse pessoal, durante um
ano.
Nesse cursinho de 2º grau, tinha uma colega que era a Marta,
muito pobrezinha; ela fazia o 2º grau junto comigo. A aula era de
manhã e de tarde Marta trabalhava num Hotel, porque ela
precisava de dinheiro pra sustentar a família, inclusive uma filha
40
Embora o tom desse comentário possa sugerir um sentimento de autodepreciação, chamo a atenção para o
fato de Paula utilizar muito a palavra até na sua fala. Na passagem da narrativa oral para a escrita, suprimi
muitos até, né, tipo, bah, que me parecem vícios de linguagem ou mesmo características próprias do sotaque
porto-alegrense. Nesse comentário eu mantive, por me parecer que indica o sinal autodepreciativo e confere
um tom de novidade na trajetória de Paula. Ela fez o 1º grau em um colégio confessional. No supletivo, o
perfil dos colegas era outro.
98
que era... deficiente. Ela queria que eu conhecesse a filha. Um dia
eu fui, coitadinha, me levou lá na casa dela, pra conhecer a filha.
Mas uma casa pequenininha! Lá pelas tantas, eu conversando com
ela, tomando um cafezinho, surge a guria, caminhando mal e mal,
falando mal e mal. Me deu pena da guria.
Ela sabia que a mãe tinha a escola, mas como é que ela ia trazer a
guria nessa longeira? Ela morava lá num beco, depois do Centro,
numa viela; ela não tinha nem condições de trazer a guria pra
trabalhar aqui. Aí eu comecei a pensar: “Peraí, Marta, como é que
vai ser o futuro da tua filha?” “Ah, nem eu sei, ela nasceu assim.”
Sabe por que? Porque demoraram muito tempo pra tirar a nenê da
barriga. Então, ela foi criando essas deficiências a partir do
tempo. A Marta ia no médico, o médico dizia que dava pra esperar
um pouco pra tirar ela da barriga, e foi indo, foi indo, foi indo, foi
tirar acho que uns 20 dias depois; nasceu aquela guria assim. Aí
me dava uma pena dela. Porque como é que ela, ruim de dinheiro,
morando numa casa pequenininha, tendo aquela guria com aquela
dificuldade... Diz ela que a sorte era que tinha uma outra filha boa,
que daí de dia podia ficar em casa com essa guria, porque ela saía
de manhã de casa pra fazer o 2º grau conosco lá no Supletivo e
depois já ia direto pro Hotel. Ela era telefonista lá. Então, me deu
pena dessa guria. Não tinha nem como sustentar as filhas. Ela
quase chorava quando me falava dessa guria... era separada do
marido. Quando ele viu a dificuldade da guria, quis se separar
dela. E daí ela começou a morar sozinha com as duas filhas.
Depois que eu terminei o segundo grau, a gente até se ligou
algumas vezes. Aí parece que ela perdeu o emprego, parece que ia
procurar outro. E daí realmente eu perdi o contato, porque ela não
tinha telefone e eu não tinha como falar com ela.
Paula conta que no convívio com seus colegas nesse período também havia
discriminação dos que não compreendiam seu esforço para superar as dificuldades:
99
Mas foi um... o convívio com o pessoal do 2º grau lá do Supletivo
foi muito bom. E tinha alguns inclusive que me discriminavam.
Aliás, tinha uns que diziam: “Ah, essa aí não vai conseguir se
formar nunca no 2º grau.” E eu tava conseguindo notas melhores
do que eles. Só em algumas provas que dava alguns probleminhas,
tipo, de eu ir mal, a prova valer 10, e eu tirar 4. Mas eu tinha uma
força dentro de mim, que eu conseguia recuperar. Inclusive tinha a
cadeira de Biologia, que eu fui mal numa prova, eu tirei tipo 3. E
daí eu me esforcei pra segunda prova de Biologia, porque senão eu
teria que pegar recuperação. Eu só podia tirar 10. A única nota
que me salvava da recuperação era o 10. Eu estudei tanto, mas
tanto, mas tanto, que o professor olhou pra mim: “Não sei o que é
que aconteceu contigo, mas foi o único 10 da turma.” Eu olhei pra
ele e falei: “Professor, eu tive muito esforço e estudo junto, sabe.
Se eu fui mal numa prova não foi por falta de estudo. É porque eu
tava com algum... não sei, com alguma dificuldade”.
No Supletivo, eu sentia que alguns me discriminavam, mas também
não eram todos. Os que conheciam o meu esforço, não me
discriminavam. Os que discriminavam eram aqueles que não me
conheciam direito. Às vezes os professores explicavam alguma
coisa que na hora eu não conseguia entender. Aí eu perguntava de
novo. No fim, eles perdem a paciência com as pessoa. Tá
explicando, explicando, explicando toda hora a mesma coisa, aí é
brabo, porque os outros querem aprender. Mas acontece que no
fim eu estudava em casa e conseguia entender. Eles até
respondiam, mas no fim eu sentia que... eu sentia, pelo linguajar
deles, que eles já tavam sem paciência. E alguns colegas também.
“Pô, colega, ele já explicou, porque que tu pergunta de novo?”
Pra mim isso já é um pouquinho de discriminação. Eu tenho as
minhas dificuldades, eu reconheço que eu tenho, por isso que eu
pergunto.
Tinha um colega lá que faltava muito à aula e quando ia, vivia
perguntando as coisas pros professores também. Mas esse é
porque faltava à aula. O pessoal olhava pra ele e dizia: “Tu é
100
chato mesmo, né?” Mas é porque o cara faltava à aula e quando
ia, ficava caçando borboleta lá dentro. Foi bem complicado
também. Mas o problema foi, foi... eu dava a volta por cima, né?
Todos nós, com deficiência, temos que saber o momento de
conseguir dar a volta por cima. Às vezes algumas crianças aqui da
escola não conseguem. Tem gente, tem criança aqui, na escola, que
até pra tomar banho precisa de ajuda. Pra fazer a barba... fazer
barba é uma coisa que é perigosa pra eles, né? (Penso em deixar
essa frase do texto sublinhada, apontando o destaque que quero
fazer.
Aí eles precisam de ajuda. Pra amarrar tênis... a maioria não
consegue. E isso é coisa que eu me lembro. Eu aprendi, mas
demorei. Eu aprendi a amarrar o tênis... olha, eu saí pulando
quando eu consegui. Mas eu aprendi a amarrar com nove, dez
anos. Mas aprendi. E saí pulando: “Oh, aprendi, oba!” Cada
coisa que eu aprendia, dava pulo.
Para esclarecer um pouco mais essas impressões de Paula, estabeleço com ela o
diálogo a seguir transcrito.
- Paula, quando tu dizes assim: “Nós, com deficiência, temos que saber o
momento de dar a volta por cima”... Tu te sentes uma pessoa deficiente?
- Não, não é deficiente. Eu me sinto uma pessoa limitada. Dificuldades pra
fazer algumas coisas.
- Que tipo de coisas?
- Tipo.. a...
- Me diz alguma coisa que tu precisas de ajuda, por exemplo... Porque eu te
acho tão independente, tão senhora de si, tu falas super bem...
- Ajuda?
- É; ajuda.
- No início, eu precisava de muita ajuda. Quando eu comecei a fazer tricô, eu
tinha alguma dificuldade. Agora eu já faço sem olhar. Mas no início eu tinha dificuldade.
- Mas isso, há quanto tempo atrás?
- Eu acho que uns 15, 20 anos. Mas já faz tempo que eu faço; eu faço blusão
pros meus irmãos...
101
- Mas hoje, nós duas aqui conversando, tu te sentes uma pessoa limitada? Em
que? Eu queria entender isso.
- Em alguns aspectos. Tipo, na direção do carro, precisa movimentar de um
lado pro outro.
- Mas tu não diriges...
- Eu não dirijo.
- Tem pessoas adultas que não dirigem.
- Eu não dirijo, mas eu olho pra pessoa que tá dirigindo: “Pô, será quando
que eu vou fazer isso?”
- Tu te sentes limitada... Mas de coisas que tu fazes, assim no teu dia-a-dia, tu
te sentes limitada? Tem alguma coisa que tu ainda precisas da ajuda de outras pessoas?
- É... Pouca coisa. Atualmente realmente muito pouco. No início eu precisava
muito da ajuda dos outros, sim. Tipo, até pra amarrar o sapato. “Quem é que vai amarrar
pra mim? Vamos ver.”
- Isso até os nove anos...
- Até os nove anos, claro. Mas, até aí, eu precisava de ajuda.
- Mas, tentando trazer pra hoje, pro presente. Hoje, tu adulta, com toda a tua
vivência..
Ela responde exemplificando essa necessidade a partir de uma situação que
vivenciara recentemente:
Inclusive eu tive algumas dificuldades há... uns dois meses atrás.
Eu tenho uma cunhada, esposa do meu irmão, que adora fazer
bordado, esses ponto-cruz, fazer tricô, esses trabalhos manuais. E
daí eu me interessei que ela me ensinasse a fazer o ponto-cruz.
Não, não era o ponto-cruz. Era casa caiada. E daí eu realmente
tive alguma dificuldade pra entender. É porque precisa entender o
ponto. Porque é tudo num desenhinho. Precisa entender como vai
formar o balãozinho, quando não vai formar o balãozinho. Eu tive
alguma dificuldade pra entender. No fim, eu realmente entendi,
mas quase no fim do trabalho. Levei um tempo, até eu conseguir
me adaptar com aquilo. “Pô, esse aqui tá errado, então eu vou
desmanchar e vou fazer...” No fim, eu já sabia que tava errado, já
desmanchava e já arrumava. No início, eu fazia, mas não tinha
102
noção que tava errado aquilo. Então, eu mostrava pra ela e ela
dizia que tava errado. Daí eu desmanchava, mas ela precisava
dizer que tava errado pra eu poder desmanchar. E no fim eu já
tinha noção de que tava errado, daí eu desmanchava... No fim,
ficou um trabalhinho. Não ficou ótimo, claro. Mas foi um trabalho
feito por mim, pra eu poder aprender o tal do ponto casa caiada.
Aqui, Paula revela que tem consciência de suas dificuldades, e talvez tenha
sido esse o sentido que quis dar ao dizer que toda pessoa com alguma deficiência deve se
dar conta do momento de “dar a volta por cima”. Porém, ao referir-se a si e a suas
dificuldades, a fala torna-se ambígua, pois ora se reconhece como alguém que superou
muitas dificuldades e prognósticos negativos, ora se considera alguém com muitos limites,
embora não consiga apontar nenhum. O único limite concreto ao qual se referiu é seu
sentimento de impossibilidade de aprender a dirigir.
No primeiro contato que tivemos, Paula falou de sua dificuldade em se
expressar por escrito. Disse que gostava mais de falar, e para as entrevistas gostaria de ter o
roteiro à sua frente, para não divagar muito.
Ao contar sobre a época do cursinho pré-vestibular, Paula retoma essa questão,
quando refere-se a suas dificuldades para fazer redações:
Voltando a minha história, depois do 2º grau, com aquela
dificuldade toda - eu pensei que eu não fosse conseguir terminar
esse 2º grau... em um ano consegui... Depois desse 2º grau, fiz o
cursinho, lá no Supletivo. Inclusive eu tenho uma irmã, que
também tava fazendo cursinho... só que eu fiz no Supletivo e ela fez
no ... no outro cursinho. Eram os dois no centro, um perto do
outro. Mas eu não me lembro qual foi o cursinho que ela fez.
Eu resolvi fazer no Supletivo porque já tinha colegas do 2º grau lá.
Eu já tinha um relacionamento com eles, né, então eu resolvi fazer
o cursinho lá também. O pai levava e nos deixava lá na Borges. Eu
ia pro meu e ela ia pro dela. Mas daí, depois desse meio ano, a
minha irmã foi fazer vestibular. Porque ela já tinha terminado o 2º
grau, tinha feito o cursinho e foi fazer o vestibular. Daí eu pensei:
“quem sabe eu faço o vestibular também, né, só pra experiência.
103
Eu acho que eu não vou passar, mas tudo bem.” Eu tinha muito
problema no cursinho, eu tinha... eu tenho... muito problema na
redação. Eu saio muito do contexto. Eu tenho esse problema.
(risos) Então, eu tenho que me cuidar pra não sair do contexto. E a
mãe até diz que esse pessoal da escola tem o mesmo problema, nas
redações. Pois é, tem que cuidar o contexto. Porque se sai do
contexto, já diminui a nota. Lá, toda semana a gente fazia redação.
Algumas notas eram boas, outras mais pra baixo, mas eu tinha que
dar a volta por cima.
Então, eu nunca tinha feito vestibular, né? O meu primeiro
vestibular... Daí, inclusive, no dia eu entrei na sala, bem bela, toda
com medo, o primeiro vestibular da vida. Cheguei, entrei... No dia
da primeira prova. A minha irmã, como era outra letra, ficava em
outra sala. Então, eu ficava sozinha nessa sala. Tá, daí sentei lá, e
comecei. Lá pelas tantas, me entra uma guria que eu já conhecia
daqui da escola, que tinha reforço com a mãe. Só que ela queria
fazer vestibular pra Direito. Pra Direito, é complicado. Ela tem
paralisia... cerebral, num lado do corpo. É só um lado do corpo
paralisado. Bem esperta a guria. Sabe tudo de computação. Ela
tava aqui na escola, depois saiu. Eu acho que ela saiu pra fazer
cursinho pré-vestibular. Só que ela queria pra Direito e eu pra
Pedagogia, né? Pra mim era muito mais fácil passar. Ela teria que
estudar muito mais. Poderia, pode até passar pra Direito, que ela
quer, só que tem que estudar bem mais, né? Eu não falei nada,
mas, pobre guria. Imagina, como é que vai passar em Direito? Mas
tudo bem. Tem que tentar, né? Eu me sentei praticamente do lado
dela. Fiz, tudo bem com calma, a guria, não sei ... umas duas
horas, uma hora e meia depois que nós recebemos as provas, a
guria já tava saindo. Ela fazia rápido a prova. E daí no fim,
chuleamos, pra ver se passamos, no fim eu passei e ela não. Eu
tava naquela expectativa. Eu pensei que eu não fosse conseguir
passar, né? Bah, daí passei!
104
A entrada na Universidade irá marcar o início de um novo período de luta
contra a discriminação por parte das colegas de turma.
Então, comecei a Pedagogia Séries Iniciais. Daí começou uma
outra discriminação dentro da Universidade
41
. Inclusive tinha duas
colegas da minha turma, das séries iniciais, que me discriminavam.
Pra elas eu era um lixo. Elas não davam valor aos trabalhos que
eu fazia, acabavam colocando mais a parte delas do que as minhas
e eu por isso não gostava muito de fazer trabalho em grupo lá. A
turma das séries iniciais era um grupo muito... não era muito
grande, eram umas 15 pessoas. Então, eu fazia o possível pra não
me relacionar muito com essas duas gurias. Aquelas duas faziam
panelinha com as outras, então eu ficava numa situação mais
complicada por causa disso, porque elas falavam pras outras e as
outras entravam na panelinha delas. Aí era bem complicado
mesmo. Mas no fim eu tinha que dar a volta por cima, era do
grupo...
Mas sempre existem as colegas legais, daí eu conheci a Laura. A
coitada era uma gaguinha, muito pobrezinha, mas era muito legal.
No 1º e no 2º semestre ela não tava junto, a partir do 3º que eu
comecei a ter contato, comecei a conhecê-la mais a partir das
disciplinas que fazíamos juntas. Ela me convidava para participar
dos trabalhos, a gente fazia em duplas... era muito legal. Me
convidava para ir na casa dela, eu a convidava para vir aqui...era
bem legal a guria; às vezes vinha tomar banho de piscina comigo.
Era bem pobrezinha a coitadinha, bah! Ela se formou nas séries
iniciais junto comigo. Às vezes a gente saía para passear, era uma
companhia. Então às vezes a gente fazia trabalho em grupo. Às
vezes precisava modificar um pouco a minha parte, às vezes
precisava modificar a dela e a gente conversava sobre isso. Era
pouca coisa que a gente modificava, não era tudo. Sempre tinha
41
Uma Universidade privada confessional em Porto Alegre.
105
alguma parte minha que ela colocava no trabalho. Ela colocava
muito mais do que as outras duas.
A entrada na Universidade também significou para Paula um período de novas
dificuldades:
Mas quando eu entrei na Universidade foi bem complicado porque
era muito, era muita, muita coisa. Eram nove cadeiras por
semestre nos dois primeiros semestres. Eu pegava algumas
recuperações. No Colégio eu também pegava e conseguia passar.
Na Universidade, eu pegava e às vezes não dava, eu não conseguia
passar porque era muita matéria. Daí, tudo bem, eu recuperava, eu
não ia me matar por isso, né? Eu recuperava depois a cadeira.
Fazer o quê? Mas os primeiros dois semestres foi muito corrido,
porque era muito ... assim ... Matemática, o início da Matemática,
vamos aprender a dividir, a somar, mas da forma das crianças,
não era da nossa forma, de cabeça. Pra entender a forma das
crianças, com ábaco, com material dourado, essas coisas assim.
Ciências, ciências também.
As cadeiras específicas começaram a partir do terceiro semestre,
daí a gente começa a gostar mais da coisa. Inclusive, no primeiro e
no segundo, juntam as Pedagogias: Séries Iniciais e Pré-Escola
ficavam juntas. A Educação Especial e Habilitações ficavam juntas
na outra turma, então o contato maior nosso foi com o pessoal da
Pré-Escola. A gente conversava, era um grupo bem legal.
Algumas cadeiras eu não conseguia passar, tinha que fazer de
novo. Então, eu estudava e conseguia passar.
Paula se detém num episódio que pode ser visto como um exemplo das suas
dificuldades naquele momento e de seu empenho para superá-las:
Teve até uma cadeira, essa foi complicada, foi Ciências da
Educação. Essa cadeira teve em dois semestres e no segundo
semestre tinha que fazer uma monografia. Daí eu resolvi fazer
106
sobre o gato, porque aqui em casa tem muitos gatos e cachorros,
mas eu me interessei mais pelos gatos, eu acho mais meigos. Eu fiz
várias pesquisas sobre os tipos de gatos, falando dos gatos, tipos
de pêlo, fiz um trabalho muito organizado, com mapeamento e
tudo. Eu tinha que fazer um plano de aula sobre o mesmo assunto
também. Ficou um trabalho muito bom, mas no fim a professora
acabou me deixando em recuperação porque... eu tirei uma nota
muito baixa – essa professora já me discriminava, a tal da Edna.
Realmente eu já não gostava muito dela, ela me olhava com uma
cara esquisita mesmo. Tá, daí tudo bem, fiz a monografia,
entreguei... lá pelas tantas ela escreveu que a monografia tava
muito boa, só que ela iria me deixar em recuperação por causa do
plano de aula. Só por causa de um plano de aula ela me deixou em
recuperação.
Eu era a única da turma que tinha ficado em recuperação com essa
professora. Cheguei lá no dia da prova... tudo bem... e daí tava eu
fazendo a prova e ela dando uma aula. Uma aula não sei de quê
para os outros alunos, ao mesmo tempo. Isso tira um pouco a
concentração. Daí eu comecei; lá pelas tantas tinha umas
perguntas sobre a água, sobre os tipos de água e essas coisas.
Tinha que fazer um plano de aula sobre a água, que não sei o quê,
e falar sobre a água... E não tinha nenhum material de pesquisa.
Era só eu e a prova, e ela não tinha comentado conosco nada
sobre a água. Daí eu fiz, mas daquele jeito, né. Fiz daquilo que eu
lembrava da época do colégio. Tinha até que fazer uns tipos de
atividade para poder trabalhar a água com eles. Eu pensei: “mas
espera aí, como é que ela bota água aqui no meio se ela não
trabalhou o semestre inteiro com a água?”. Daí eu tinha, inclusive,
uma outra colega, que era muito amiga minha e no fim ela me deu
o maior apoio. Era bem esperta a guria, só que ela não começou
desde o início comigo. Ela foi até o quinto semestre, depois ela se
casou e foi morar fora do Rio Grande do Sul e trancou a matrícula
aqui. Quando ela voltou, foi fazer Pedagogia Séries Iniciais.
Então, eu fui conhecê-la no quinto semestre, quando ela voltou e
107
foi fazer as cadeiras que faltavam para se formar. Daí ela ficou
muito amiga também, estudava comigo, dava um apoio muito
grande para mim e pra Laura. Daí eu liguei para a casa dela e
falei da prova, que era sobre a água e que a professora não tinha
comentado nada conosco naquele semestre. Daí ela disse: “mas
que absurdo é esse? Se ela não comentou nada na aula sobre a
água, como é que ela foi fazer uma prova sobre a água”?
É claro que eu não consegui passar na recuperação. Aí eu fiz outra
prova. Eu também não consegui passar porque, inclusive, era bem
mais complexa a prova. Tinha que fazer um plano de aula, tinha
que botar uma reflexão, pensamentos próprios, daí já envolveu
alguns dos conteúdos do semestre. Mas pra mim, reflexão,
pensamentos próprios, plano de aula, em duas horas, é bem
complicado de fazer. Isso é coisa que envolve mais tempo, tu
precisa pensar em como vai fazer. Daí não deu para passar e eu
tive que repetir a cadeira. Só que, no dia da rematrícula, eu fui lá
olhar minhas notas e o computador me aprovou naquela cadeira.
Não sei o que aconteceu, mas o computador errou e me aprovou.
“Ah, passei que maravilha! O computador me passou, agora eu
tenho como comprovar que eu passei...” Tá, tudo bem. Me
matriculei para o outro semestre, paguei as cadeiras tudo bem
direitinho e no fim ela tinha uma irmã que nos dava Matemática.
Daí eu estava me recuperando na cadeira da irmã dela que eu
também não tinha passado. No fim do semestre, passei na
Matemática, tudo bem. Daí ela chegou e disse: “Peraí, no semestre
que vem tu vai ter que recuperar Ciências né?” Eu disse: “Não, eu
passei, o computador me colocou média 5, eu passei.” E ela:
“Não, mas tu não passou”. E eu: “Não, eu passei, tá no meu
currículo, no histórico das notas que eu passei”.
É interessante notar a perspicácia de Paula ao admitir que um erro do
computador acabou lhe favorecendo, numa situação em que, ao que parece, não foram
valorizados seus esforços para atingir a aprovação na disciplina. Continuando a narrativa,
108
mais uma vez ela demonstra que conhecia toda a situação, inclusive os seus limites para
convencer a professora de que esse não era um problema seu:
Então eu tive que entrar com o meu pai na história. Teve que entrar
uma pessoa que tivesse mais lábia do que eu para conversar com a
professora. No início do outro semestre eu vim com meu pai, eu
sabia que ia dar problema. Daí chegou o pai lá, com o histórico,
mostrou para a professora. E ela disse: “Mas como ela passou aqui
se ela pegou recuperação e não passou?” E o meu pai: “Mas aqui
ela está passada.” No fim, passou, não passou, eu tive que fazer uns
trabalhinhos - ela disse para eu fazer uns trabalhinhos – e daí eu
ficava com aquela nota mesmo. Ela até me deu uma assistência,
alguma orientação. Eu preparava o plano, ia lá, e ela me dava
orientação.
Embora o episódio relativo à cadeira de Ciências da Educação tenha terminado
favoravelmente, Paula teve que fazer a cadeira de Prática de Ensino por duas vezes:
Tive que fazer duas vezes porque num semestre não deu certo. Daí,
no semestre seguinte eu passei. Nessa cadeira de Prática, que é o
primeiro contato nosso com as crianças, tem as observações e
depois a gente pega uma semana dando aula. Na Prática, a
Universidade indica uma escola. Na primeira, foi numa escola
estadual. A segunda Prática foi na escola... ai, a segunda eu não
me lembro. No estágio, se a gente conseguir uma escola tudo bem,
mas se a gente não conseguir aí a Universidade indica. O estágio
eu fiz numa escola municipal de primeiro grau. Era uma escola
municipal e a maioria das crianças morava lá por perto. Eu peguei
uma turma muito boa, muito legal. Era uma segunda série. Até
tinha aqueles alunos bem bagunceiros, que às vezes eu não
conseguia dar conta porque era uma turma grande, tinha quase 35
alunos. Nas séries iniciais as turmas são normais. O único que
tinha problema físico era um que tinha paralisia em um lado do
corpo, então ele tinha dificuldade para se equilibrar, daí a gente
109
precisava segurar de um lado para ele caminhar para chegar em
sala. O resto era tudo normal. Como era numa escola municipal,
às vezes eu era procurada pelos pais. Às vezes as crianças saíam
da escola e em vez de irem para casa eles iam jogar futebol e
chegavam tarde em casa. Daí o problema não era meu, eu
comentava: “olha, vocês têm que sair da escola e ir pra casa”. Os
pais ficavam chateados, achavam que era eu a culpada quando
não era, porque quando terminava o horário o pessoal ia embora e
eu pensava que eles iam embora. E às vezes eles iam jogar futebol,
iam na casa de algum amigo e nem avisavam. Só que essas
crianças assim, muitas vezes nem têm telefone. Daí ficam os pais
procurando pela zona as crianças.
A professora era muito legal, ela me deu um apoio grande.
Inclusive minha mãe já conhecia essa professora, a Flávia, porque
ela dava aula numa escola onde uma criança daqui da escola
estudava.
No estágio, quando tinha atividade fora da escola, eu ia junto. Aí,
a titular acompanhava, porque nessas coisas precisa de duas
pessoas, né? Depois que a gente chegava em sala de aula a gente
fazia tipo uma historinha a partir daquele teatro. Por exemplo:
como é que começou a peça? O que veio depois? Depois, pra fazer
os momentos que eles lembravam pra montar uma historinha do
teatro. Eles até gostavam quando eu lia um livrinho e a gente
trabalhava em cima, por exemplo: qual foi a parte que mais
gostou? Qual foi a parte que menos gostou? Era uma coisa que eu
dava liberdade para eles dizerem, era uma escola construtivista.
Depois, fazer um desenho da parte que vocês mais gostaram, daí
vamos votar no desenho melhor, vamos escrever alguma coisa
sobre a historinha que eu li. Daí eu chamava lá na frente , eles
liam e depois eu dava um prêmio para o que contava melhor, o que
se salientasse melhor nesse trabalhinho deles. Isso era mais
individual, eu chamava cada um lá frente, cada um lia o que
escreveu e depois a gente votava no melhor.
110
Paula conta também que trabalhava muito a partir de material concreto, usando
materiais como, por exemplo, palitos de picolé.
Às vezes eu até pedia para eles levarem material concreto pra
gente poder trabalhar em cima, porque escola municipal não tem
material para todo mundo. Ás vezes eu até pedia para eles
trazerem garrafas descartáveis para a gente poder trabalhar, tipo
o lixo reciclável e o lixo sujo. Foi um bom trabalho que eu fiz sobre
isso, porque tinha a coleta lá na escola, então eles tinham que
saber separar o lixo sujo do lixo reciclável. Inclusive, na época do
Dia das Mães – me aproveitando disso, né – eu fiz um trabalhinho
com eles a partir de uma garrafa de plástico. Cortamos a metade
da garrafa e aí a gente virava as pontas, botava terra e uma
sementinha dentro. Daí ficava uma plantinha num vasinho para
levar para as mães. Depois as mães vieram agradecer que as
plantinhas já estavam crescendo ...
No estágio, eu, a orientadora da Universidade e a professora, nós
três... fizemos um bom trabalho, eu gostei realmente, foi uma turma
bem legal, algumas briguinhas às vezes com alguns, porque às
vezes precisava me impor. A turma era muito grande e às vezes
eles faziam bagunça , então daí eu tinha...não é nem briguinha, é
chamamento de atenção eu chamo, porque não é fácil lidar com
uma turma de trinta e cinco e, às vezes, a titular não ia, então só ia
eu.
Com o tempo eu fui adquirindo segurança com as crianças, mas no
início realmente ela estava junto. Quando ela começou a sentir que
eu já me sentia mais segura, que eu já estava mais segura, daí ela
às vezes tirava uma folguinha e eu ficava com eles. Inclusive ela
teve um problema, porque a mãe dela morreu atropelada durante o
semestre que eu tava com as crianças. Então, ela ficou uma
semana sem ir. Daí foi até um enfoque para eu poder trabalhar
com as crianças sobre a morte. Então um até me contou da avó que
tava no hospital e tava naquele “não ata nem desata”, já tava uns
111
dois meses no hospital, no fim a família tava sofrendo junto. Uns
dias depois ele veio me contar que a avó tinha falecido.
Mas realmente foi um período muito bom, fizeram uma festa pra
mim e pra outra professora que tava estagiando lá. Só que ela tava
estagiando numa terceira série e eu numa segunda. Quando a
gente tava na folga do recreio eu conversava bastante com ela
também. Ela se chamava Simone, e era bem legal. Troca de
experiência entre eu e ela, porque nós duas estávamos no mesmo
barco. Inclusive no último dia teve a festa com as crianças e depois
a escola preparou uma festa surpresa pra mim e pra outra guria...
foi bem legal. Foi um bom momento.
Tudo isso foi em 94. Na minha formatura, veio a minha família
toda. Eu tinha dito pra mãe: “Olha mãe, eu vou me formar, mas
tem um problema, eu quero festa”. Daí prepararam uma festa num
clube para mim. Porque as gurias que tavam se formando, algumas
iam ter festas individuais e outras iam se reunir num lugar só, tipo
numa danceteria. Eu gostaria de ter uma festa só minha, daí a mãe
alugou o local e nós fizemos uma festa lá. Foi bem legal! Quase
150 pessoas. Família, amigos... Irmãos, tios, primos, parentes,
amigos, uma turma bem legal. Até uns professores de tênis que eu
tive, porque eu jogo tênis, né?
Aqui Paula se detém nas atividades físicas que pratica. Mas, logo em seguida
retoma a narrativa dos fatos de sua festa.
Além de jogar tênis eu faço ginástica aeróbica. Inclusive essa
ginástica aeróbica foi um probleminha, porque eu nunca tinha feito
ginástica aeróbica na vida. As crianças da escola têm uma
professora que dá aula de balé para eles. Ela tem uma academia
onde dá aula de ginástica aeróbica. Conversando com ela,
comentei que eu gostaria de fazer tipo uma ginástica que eu
pudesse me movimentar mais. Então ela deu essa sugestão da
ginástica aeróbica: “olha, vai lá, faz uns testes, se gostar gostou,
se não gostar não tem problema”. Aí eu fui lá e fiz, mas no início
112
deu problema, porque eu nunca tinha feito ginástica aeróbica e
depende muito da coordenação, né? O primeiro mês foi
complicado, mas depois fui vencendo as etapas e agora eu já
acompanho normal faz cinco anos.
O tênis é um hobby para mim. Eu toco violão também. Mas que
também no início foi difícil por causa da coordenação, da
movimentação dos dedos para fazer a posição... Mas eu vou
desenvolvendo e é muito legal. Com um mês de aula a professora
disse que eu tava desenvolvendo muito. Com a Universidade eu
tive que parar, mas era bem legal a aula, eu gostava, fiz uns
quatro, cinco anos com ela. A ginástica e o tênis eu continuo.
Mas daí, eu vou te contar da festa que foi bem interessante...
inclusive, a Laura não foi, que era minha colega, mas a Marta foi.
A Marta se formou um semestre antes de mim, foi até interessante,
porque na época do estágio eu fiz na mesma escola que ela fez, só
que ela pegou exatamente o mesmo grupo meu, só que no fim do
outro ano e eu no início, ela pegou no segundo semestre da
primeira série e eu no início da segunda. Ela conhecia a maioria,
então me dava uns toques. Eu até mostrei meu trabalho para ela,
porque tem que fazer um trabalho final, relatório final. Ela gostou,
inclusive na festa ela foi com o marido, porque é casada. Foi bem
interessante, porque a mãe fez uma homenagem pra mim lá. Então,
no meio da festa, ela começou a contar umas coisas da minha vida.
Contou, falou de toda minha história de vida, uma coisa que já
tava gravada, ela deixou gravada, daí falou, falou, falou. No fim
ela pediu para eu dançar uma valsa com meu sobrinho Vinícius,
que é filho do meu irmão. Ele é meu afilhado e na época tava com
dez anos. Depois que a mãe falou tudo eu e ele dançamos valsa e o
pessoal começou... Foi o primeiro contato com aquele pessoal
todo. Primeira festa só minha, porque eu não gosto muito de
comemorar meu aniversário. Eu faço aniversário em fevereiro. A
maior parte do pessoal em fevereiro não tá em Porto Alegre. Eu às
vezes até comemoro depois.
113
Inclusive nos meus 40 anos eu tava pensando em fazer uma festa
para comemorar, mas aí eu tive um problema. Eu tava com
problemas ginecológicos, e no fim eu acabei tirando útero e ovário
e foi descoberto um câncer. No ovário. Daí, aquele ano foi aquela
expectativa. Eu me operei em fevereiro. Então no primeiro ano tem
que fazer o chek-up mais seguido, tem que ir até na “oncologista”.
Inclusive, ela tinha me recomendado fazer a quimioterapia... não,
não, não foi quimioterapia, foi radioterapia, porque o câncer tava
no início. No fim o radioterapeuta disse que não precisava fazer
porque tava no início, só que tem que fazer os exames periódicos
para ver se não tem outro câncer, pra ter um acompanhamento
mais geral. Mas foi uma preocupação muito grande da família,
porque eu fui a primeira pessoa que teve câncer na família,
ninguém tinha tido.
Paula conta que, depois que terminou o curso de Séries Iniciais, resolveu fazer
um curso de inglês.
Daí meio ano depois eu descobri que poderia fazer as cadeiras que
faltavam para Educação Especial, fazendo um teste psicotécnico,
que eram uns testes que eles iam fazer nessa cadeira. Essa cadeira,
inclusive, tem no primeiro semestre da Educação Especial; então
eu fiz com as alunas que estavam fazendo o primeiro semestre da
Educação Especial. Junto com elas. Nesse psicotécnico deu alguns
probleminhas, mas no fim eu acabei passando. Graças a Deus!
Deu problema na avaliação deles, porque até eles me vendo eles já
sentem que a pessoa vai ser mais complicada, então teve aqueles
professores que me olhavam de uma forma mais esquisita. Não é
um professor só, tem vários professores na sala de aula, aí já de
escolas especiais. A gente tem que fazer um exame médico também.
Pergunto a Paula se todo aluno que quer fazer Pedagogia Educação Especial
passa por isso.
114
Todos. Tem que passar por essa... Psicopedagogia, é para ver se a
pessoa se adapta. Essa cadeira é oferecida no primeiro semestre e
se a pessoa não se adapta ela nem segue. Tem pessoas normais que
vão em escolas especiais e têm um treco. Eu já tive contato com as
crianças da escola da mãe, mas tem pessoas que nunca viram uma
criança especial. Agora, eu acho que se as pessoas se interessam
desde o início, já deve ter um contato. Não vai nu e cru entrar na
Educação Especial, né?
Aí eu fui me matriculando só nas cadeiras da Habilitação. E em
quatro anos...Eu fiz em quatro anos a Educação Especial. Séries
Iniciais eu acho que deu uns seis anos, sete ao todo. Porque alguns
semestres eu fiz só uma cadeira que eu precisava. É, foi. As Séries
Iniciais em sete e a Educação Especial em quatro.
Algumas cadeiras eu fiz com professores que eu já conhecia. A
Educação Especial foi aquilo, né? Eu comecei devagarinho, com...
eu fui encaixar com o pessoal do terceiro ou quarto semestre,
porque aquelas disciplinas do início eu já tinha. Eu gostei desde o
início porque era muita observação, até podia fazer observação do
pessoal daqui, relatava, levava para eles e eles gostavam. Mas aí,
na Educação Especial eu também tive alguma discriminação da
Universidade. Alguns professores, não eram todos, mas realmente
tinha. Foi bem complicada a coisa mesmo, porque eles não
valorizavam às vezes o meu trabalho. Eu fazia os trabalhos, daí
eles diziam que não era bem assim, que não sei o quê. Às vezes eu
até modificava um pouco, até para aprender né, mas depois tinha
que reavaliar, entregava de novo... Foi bem complicado. Só que na
Educação Especial, eu tive algumas amigas, realmente as amigas
foram bem legais. Tinha uma tal de Alice que me acompanhou e
que eu já conhecia das Séries inicias, porque quando eu tava
fazendo as Séries Iniciais ela já tinha começado na Educação
Especial. Nós inclusive nos formamos juntas. Ela morava aqui
perto, a gente se reunia para estudar, mas era bem legal mesmo.
Era bem negrinha ela, mas era bem legal mesmo. Pobrezinha. Ela
inclusive teve problema na Prática dela da Educação Especial e
115
acabou trocando de escola; foi bem complicado. Já eu, na
Educação Especial, na Prática não tive problemas.
O problema maior foi no início da Educação Especial. O pessoal
da Universidade não queria que eu entrasse porque achava que eu
não tinha condições, e daí eu botei um advogado. Esse advogado,
inclusive, é o marido de uma das professoras aqui da escola. Ele
veio um dia com a mulher me trazer a filhinha que era recém
nascida, e daí sem querer eu comentei a situação e ele disse: “Não,
pode deixar que eu cuido disso”. Eu nem sabia direito que ele era
advogado e lá pelas tantas ele me ligou dizendo que já tava
botando processo, que era só eu esperar um pouquinho. Eu ganhei
a causa e voltei para a Universidade. Daí fui continuando, lá pelas
tantas eu tive que botar advogado de novo porque eles estavam
começando a me prejudicar no meio da Educação Especial
também. Daí eu cheguei: “Não, eu sei que eu tenho condições de
fazer Educação Especial também, se eu não tivesse condições eu
não ia fazer”. Daí tive que botar advogado de novo. Olha, na
Educação Especial, como eu me incomodei. Primeiro para poder
iniciar e depois durante o curso. No final do estágio tavam
querendo me prejudicar também. Aí eu botei de novo um
advogado. Três vezes, na Educação Especial.
Sobre essa questão do advogado, transcrevo um pequeno diálogo que tive com
ela e que inicia com minha indagação:
– Como é que eles conseguiram convencer ou obrigar a Universidade a te
aceitar? Como eles fizeram?
– Bom, na primeira a Universidade não queria me aceitar, porque eu já tinha
me formado nas Séries Iniciais e eles achavam besteira eu fazer essas cadeiras que faltam
para Educação Especial.
– Mas tu tinhas o direito de fazer.
É porque eles sentiram que nas Séries Iniciais eu tinha passado
capengando. Claro que eu tive alguma dificuldade, mas eu superei
e passei. Agora, na Educação Especial, eles não estavam querendo
116
deixar eu entrar por isso. Daí já entrou esse advogado, desde o
início.
– Tu lembras no que eles se basearam?
Se basearam na lei da discriminação. Porque isso já seria uma
discriminação, não quererem a minha volta. Porque isso depende
do interesse da pessoa. Se eu me sinto em condições de fazer um
curso e fazer as cadeiras que faltam para o outro curso, a
Universidade tem que aceitar, não deveria me discriminar desde o
início. Mas desde o início deu problema. Mas eu consegui superar
tudo. Lutei contra tudo e contra todos.
– E como é que tu te sentias nessa luta?
Sabe que para mim a Educação Especial foi mais complicado que
as Séries Iniciais mesmo, porque o grupo não era o mesmo. Como
eu fazia cadeiras soltas, então eu pegava com um grupo, às vezes
eu pegava com outro grupo, então foi bem complicadinho para eu
ter toda uma adaptação com uma turma e depois ter que ter com
outra turma. Com um professor e depois com outro professor;
tinha discriminação de professores também na Educação Especial.
Foi bem mais complicadinho, mas deu para me formar. Foi legal,
no fim como experiência a gente acaba ganhando sempre. Até dá
para ver pela escola né, tu estás vendo, tu viu o trabalho que eu to
fazendo com as crianças.
Pergunto a Paula se ela teve alguma outra experiência de trabalho, além da
escola.
– Não, só nos estágios, né? Nas escolas... às vezes eu tinha que fazer algumas
observações em escola.
– E trabalho como professora, como tu trabalhas aqui?
– Ah, é difícil de conseguir... Só aqui na escola, mas é uma baita experiência
né?
117
– Quando tu me dizes que é difícil conseguir trabalho, esse difícil é em geral
ou tu achas que é difícil para ti?
Eu acho que é difícil em geral. Tem muita gente sem conseguir
trabalho no Brasil. Inclusive, eu tenho uma sobrinha que mora em
Brasília... Ela se formou no início do ano e até agora não
conseguiu emprego. Tem muita gente desempregada, não é só no
Brasil também né; em vários países tem esse problema. O Brasil é
um dos países que têm mais desempregados, eu acho. Olha, o
desemprego no Brasil ta muito grande, tá brabo!
– Como é a tua relação com os alunos, com as famílias dos alunos...?
– Com os alunos a minha relação é boa, eu procuro respeitar eles como eles
me respeitam, então daí se cria uma relação boa. Agora com os pais deles eu até converso
às vezes, mas quem mais conversa com eles é a mãe, porque daí eles vêm aqui...
– Mas eles não te procuram para conversar, para saber como é que estão os
filhos?
Eu tenho dois ou três que me procuram, os pais, né? A gente
conversa um pouquinho, eu digo como é que eles estão... Porque
alguns, como uma aluna minha, vêm de ônibus, então ela vem todo
dia com a mãe e eu converso, dou uma conversada com a mãe
dela. Outros vêm de carro e às vezes descem sozinhos. E os outros
vêm de Kombi Escolar, então daí eu tenho pouco contato, só nas
reuniões de escola mesmo ou nas festas da escola.
– E vocês costumam fazer reunião com os pais?
– Com os pais a gente procura fazer uma vez por ano, não é muito, porque eles
não têm muito tempo também, então para não encher o saco deles a gente faz assim. Esse
ano nós fizemos uma reunião, em agosto, parece.
– Tu participas da reunião?
Quando eu tô sem as crianças eu participo. Em agosto era na hora
da aula, então eu tinha que estar cuidando aqui em baixo, tinha
118
que ajudar a cuidar enquanto a mãe tava conversando. Depois as
crianças tinham que subir para fazer uma apresentaçãozinha,
inclusive eu toquei violão. Eu toco violão, canto... Mas quando não
é... quando é fora do horário da aula eu participo. Também não é
todos os pais que têm interesse nisso.
– E com os outros professores da escola, como é o teu relacionamento com
eles?
– Ah, eu procuro me relacionar sempre bem, às vezes vejo algumas atitudes
erradas deles e procuro conversar para explicar...é sempre assim né?
– E eles em relação a ti, também vêm conversar? Se vêem alguma coisa que
não está correta, também te chamam a atenção?
– Ah, também. É uma ajuda mútua, eu ajudo eles e eles me ajudam, mas eu, é
difícil cometer alguma gafe, é muito difícil, porque agora eu to sozinha com os meus.
Tinha uma outra professora antes também, só que ela conseguiu outro emprego e daí eu
fiquei sozinha lá com os meus.
Paula fala também sobre sua boa relação com os funcionários da limpeza: um
caseiro e a faxineira que já trabalham em sua casa há tempo. Eles fazem o trabalho na
escola como um “extra”, ou seja, não são contratados por esta escola que, inclusive, não
tem registro como instituição de ensino. Segundo ela, haveria muitas exigências, dentre as
quais questões trabalhistas, a serem cumpridas para que houvesse esse reconhecimento.
Assim, o vínculo de trabalho de Paula, como o dos demais funcionários, é informal, em
uma instituição especial não formalmente caracterizada como escola.
No período em que estava fazendo as entrevistas, a convite de Paula, combinei
com ela uma visita a sua sala de aula. Apresento aqui alguns aspectos que observei, tanto
no espaço físico quanto na dinâmica do trabalho dela com seus alunos.
Paula refere-se ao seu grupo como a Turma de Alfabetização, dando a entender
que é o único grupo na escola que trabalha com leitura e escrita. A turma tem 5 alunos
“freqüentes”, que eram os que estavam na sala naquela tarde. São dois rapazes e três
moças, com idades variando de 15 a 25 anos. Apesar da faixa etária, Paula se refere a eles
e aos demais alunos da escola como crianças. Há mais dois que vão às vezes. A sala é
grande, mas tem apenas uma mesa retangular para 6 pessoas e uma pequena estante com
alguns materiais como lápis e papel. Na parede, um relógio, um Calendário de 2004
119
confeccionado na escola com espaço para o dia da semana e os nomes dos alunos. Há
também um cartaz sobre a higiene do corpo.
Quando cheguei na sala, havia apenas dois alunos: Rui e Clara. Os outros três
estavam na aula de teatro. Segundo Paula, Clara não faz teatro porque não fala. Rui,
porque não gosta. Perguntei seus nomes e os dois responderam. Clara falava pouco, com a
cabeça e a voz baixa, mas pude entender perfeitamente suas respostas. Cada um fazia uma
atividade diferente. Enquanto ele fazia exercícios de escrita, ela fazia exercícios de
representação de quantidades e de numerais no caderno. Paula lhe perguntava qual era o
numeral e ela respondia até acertar. Pareceu-me que ela dava qualquer resposta. E Paula
comentava: Ela só conhece bem até o 5. Ela tem muita dificuldade. Pude perceber que
Clara tem um problema visual e procurava uma posição para enxergar o que estava escrito
na folha. Pareceu-me também que a demora em responder era em função desta dificuldade.
Perguntei a ela se tinha dificuldade para enxergar e ela disse que sim. Enquanto Paula
ajudava Rui, perguntei a Clara se podia ajudá-la e ela novamente disse que sim. O
exercício era desenhar o número de bolinhas correspondente ao numeral escrito. Ela
precisava de ajuda para saber qual era este numeral. Depois, desenhava as bolinhas
contando em voz alta com ajuda. Como fazia algumas bolinhas a mais, perguntei se
gostaria de pintar o número correto. Ela aceitou e escolheu a cor vermelha, nomeando-a
corretamente. Paula vinha acompanhar o exercício e pediu que o próximo fosse pintado
com a cor amarela. Clara pegava os lápis sem olhar e Paula insistiu: amarelo. Pedi a Clara
que olhasse o lápis antes de pegar. Olhou e pegou corretamente. Depois Paula pediu o
laranja. Clara pegou outra cor. Paula logo explicou: ela conhece mais as cores primárias.
Pedi a ela que pegasse o laranja para veres como ela tem dificuldade com as secundárias.
Depois pediu o azul, o verde e o marrom. Paula, ao mesmo tempo em que falava sobre as
dificuldades de Clara, comentava também sobre coisas que ela sabe fazer, como a
tapeçaria. Comentou: Clara, depois vamos mostrar pra Maria Sylvia como tu sabes fazer
tapeçaria. E eu comentei que pra fazer tapeçaria também tem que contar, calcular quando
muda de cor... Paula disse que nem sempre, que ela vai fazendo. Depois pude ver que o
trabalho de tapeçaria é bastante mecânico. Me pareceu que ela coloca uma cor e vai
bordando até o final do fio. Quando termina, muda a cor. Que vontade de já fazer uma
discussão sobre isso e explorar a questão das quantidades neste trabalho manual! Porém, o
foco ali era outro. Eu estava visitando a turma de Paula, conhecendo o seu trabalho.
Os demais alunos chegaram da aula de teatro, sentaram-se e começamos a
conversar. Paula me apresentou a eles e pediu que contassem sobre um passeio que fizeram
120
a uma fazenda, em comemoração ao dia da criança. Os alunos atendidos pela escola são, na
sua maioria, jovens e adultos, mas escola programa um passeio comemorativo ao dia da
criança. Ou seja, mais uma vez, aparece claramente a visão infantilizada que não só Paula,
mas também a escola, tem dos alunos. Eles queriam falar das músicas que ouviam no
ônibus, da namorada de um deles que foi junto, pois o passeio era para todos os alunos da
escola. Mas Paula fazia perguntas, tais como: Qual era o nome da fazenda? Onde fica?
Que bichinhos havia na fazenda? Quem deu comida para o coelho? Quem andou a
cavalo? Quem tirou leite da vaca? Alguém foi no parquinho? Que brinquedos havia? Qual
era o lanche no passeio? Pareceu-me que ela queria demonstrar que elaborava perguntas
para explorar bem o passeio. Uma das alunas (com síndrome de Down, 15 anos) não queria
responder às perguntas. Então, Paula pediu que ela dissesse o nome da melhor amiga. Aí
ela respondeu à pergunta. Ou seja, Paula fez uma pergunta que já sabia de antemão que
teria resposta. Assim, todos os alunos responderam a alguma pergunta.
Na hora do recreio eu saí com eles da sala. Era um recreio de jovens e adultos.
Não vi brincadeiras, brigas, correrias, apesar de o pátio ser espaçoso. Alguns alunos faziam
seu lanche sozinhos, outros em pequenos grupos. De pé ou sentados, conversavam,
paqueravam.
Quando eu estava me despedindo, Paula comentou comigo que eles não têm
noção da idade. Ou seja, a dificuldade em expressar sua idade é vista por ela (e por muitos
professores, com certeza) como falta de noção de idade. Comentei que talvez não haja uma
valorização, para aquelas pessoas, em saber a idade. Por isso, eles respondem qualquer
coisa. Perguntei se eles recebiam algum certificado ou diploma na escola, e ela logo
respondeu: Não, porque eles são especiais. Como eles são especiais, não dá pra dizer se
estão no nível de 1ª, 2ª, 3ª série. Eles têm muitas dificuldades. Alguns têm muitos
problemas com a socialização. Alguns com síndrome de Down têm muitos problemas de
socialização.
Aí está um paradoxo: ela conseguiu transpor muitos obstáculos, mas parece
que isso não a faz acreditar que outras pessoas possam, “porque têm retardo mental. Ou
seja, mesmo tendo vivido experiências de superação, de “compensação social”, como diria
Vigotski, Paula apresenta o perfil tradicional da professora de educação especial, que
interage com os sujeitos pela sua deficiência e não pelas possibilidades que eles
demonstram. Ao explicar o pressuposto básico de minha tese, de que a deficiência mental
não está no sujeito, ela completou: está dentro da cabeça. E eu respondi num impulso:
“Não é que ela exista porque a pessoa tenha alguma limitação. A deficiência mental existe
121
porque não se consegue lidar com as dificuldades que a pessoa tem. Se ela for trabalhada,
estimulada desde cedo, desenvolverá sua inteligência, como tu, que superaste tanta
coisa.” E ela comentou:
É, tem crianças aqui que são deficientes porque os pais não sabem
ou não podem ajudar. Tenho uma aluna muito boa. Estou
ensinando as famílias silábicas e vejo que ela sabe, mas tem
vergonha de falar com medo de errar. Fala bem baixinho. Então,
os pais que têm recursos podem estimular as crianças desde cedo.
Na última entrevista, revendo com Paula se havia ainda mais alguma coisa que
quisesse contar, entro num assunto de natureza particular, mais delicado, e indago:
– Uma outra questão, Paula, que eu senti curiosidade também de saber,
porque a gente não entrou, nem sei se tu gostarias de falar sobre isso, mas em relação a
namoro, tu já tivesse alguma experiência, tu já tivesse algum namorado ou paquera, como
é que é isso para ti?
Olha, eu sou muito caseira, é muito difícil eu sair de casa. Quando
eu estava fazendo o Supletivo... eu sentia que tinha alguns guris
interessados em mim, mas depois se dissipou porque daí eu saí e...
fui para a universidade e não tive mais contato com eles. Mas eu,
namorado, namorado, meu mesmo, de contato com ele não tive
nenhum. Eu sou muito caseira mesmo.
– E tu nunca te interessaste por ninguém, por nenhum rapaz?
Não, porque é difícil eu sair de casa. Às vezes sexta-feira eu tiro
para passear e daí eu vou no shopping. Agora eu estou em função
da fisioterapia também... Mas quando eu estou em casa, eu gosto
de escutar uma musiquinha, ler um livrinho, ler uma revista de
fofoca, jogar um joguinho...Eu gosto daqueles joguinhos de bolso,
tipo mini game, eu gosto de jogar, sempre jogo um pouquinho.
– E leitura, que tipo de livro tu gostas de ler?
122
– Ah, eu gosto mais das biografias. Este ano eu li o livro do Ayrton Senna, do
Cazuza e do Osmar Santos. E agora eu to lendo o livro Diários de Motocicleta. Esse eu
comecei no domingo, mas os outros três eu já terminei. Achei bem interessante.
– É, eu gosto de biografias também.
Biografia e aventura, é o que eu gosto. Eu gosto dos livros do Amir
Klink. Eu li os dois primeiros livros dele e agora, depois que eu
terminar esse Diários de Motocicleta eu vou ler esse que eu já
tenho também. Eu gosto das aventuras que ele faz no meio do rio,
do mar... Ele faz diários da vida dele dentro do barco. O primeiro
foi num barco que nem ele sabe como é que conseguiu terminar a
viagem, de tão pequeno que era. O segundo já foi um barco um
pouquinho maior e esse terceiro é maior ainda, só que esse
terceiro eu até comecei a ler o livro, parei...
A força da narrativa de Paula, que apresenta um universo marcado pela luta
constante desde a infância, mostra processos de compensação social, conceito Vigotskiano
já trabalhado no capítulo 2. Na história de Paula, aparece a resistência de sua mãe ao
prognóstico ruim de desenvolvimento dado por um médico nas primeiras semanas de vida
da filha; e a força gerada por tal resistência. Paula relata a clássica história de pouca
credibilidade em relação ao desenvolvimento de crianças com síndrome de Down: Eu
lembro que quando eu era bem pequena um médico falou pra minha mãe que eu não ia
falar, não ia andar, ia ter dificuldade em tudo. Depois de adulta eu voltei lá e até toquei
violão pra ele ver. Ele ficou abismado. Não acreditava que era eu.
4.5 A história de León
León é espanhol, tem 32 anos, vive na Espanha, na mesma cidade
42
onde
nasceu, é professor habilitado para Séries Iiniciais e Educação Especial
43
e atualmente
42
Uma cidade ao sul da Espanha, com 600 mil habitantes.
43
A formação de professores na Espanha se dá na Universidade, no curso de Magistério. A duração do curso
é de três anos, sendo que o professor sai com o título de maestro, habilitado para lecionar na educação
infantil, primária ou educação especial. Além dessas, há mais quatro opções de “especialidades”: Audição e
Linguagem, Educação Física, Educação Musical e Língua Estrangeira. Há a opção também de continuar os
123
segue seus estudos no curso de PsicoPedagogia, sempre em uma universidade pública. É
portador de síndrome de Down por trissomia simples. Atualmente está desempregado, mas
trabalhou durante três anos em projetos de inserção laboral de pessoas com deficiência.
É o caçula de uma família de quatro filhos. A mãe tem 73 anos, nível de
escolaridade primária, e sempre trabalhou em casa cuidando da família. O pai tem 78 anos
e seu nível de escolaridade também é primário. Trabalhou como pescador, depois em uma
loja de eletrodomésticos, e por último como encarregado de organizar a sala de espetáculos
de um teatro, onde se aposentou. Quanto aos irmãos, um é médico, outro é engenheiro
superior de telecomunicações, e o terceiro trabalha com informática.
León participa do Projeto Roma, que acompanha sua trajetória escolar desde o
terceiro ano da Educação Básica, quando ele tinha oito anos, proporcionando os apoios
necessários à sua escolarização. Participei de uma das reuniões do Projeto, na qual
apresentei a idéia central de meu projeto de pesquisa. Nesta reunião, León foi convidado e
aceitou participar como narrador de sua história de vida.
Depois de alguns contatos por e-mail, marcamos o primeiro encontro em sua
casa. No primeiro encontro, conheci sua mãe. León nos apresentou, trocamos algumas
palavras e ela disse que nos deixaria à vontade para trabalhar, mas, tanto neste dia quanto
durante as três entrevistas realizadas em sua casa, sempre estava por perto, causando-me a
sensação de que queria estar a par do que conversávamos.
Expliquei a León que no trabalho com histórias de vida, as entrevistas são
abertas, havendo apenas um roteiro prévio para que ele tenha idéia do que interessa à
minha pesquisa. Ele ficou surpreso, dizendo que nunca havia participado de um trabalho
assim. Já havia dado entrevistas a outros estudantes de doutorado, mas sempre havia
perguntas prévias. E comenta: As propostas de países da América do Sul me parecem mais
avançadas do que o que se faz aqui na Espanha. Aqui não se faz este tipo de trabalho.
Desde o primeiro encontro, León mostrou-se disposto ao diálogo. Ele está
habituado a dar entrevistas para a imprensa, proferir palestras, e atualmente participa como
convidado em um programa semanal em uma rádio de sua cidade. Me impressionou sua
sensibilidade às minhas dificuldades com o idioma, tendo sempre o cuidado de usar
palavras e expressões que eu pudesse compreender. Quando usava termos regionais ou
gírias, preocupava-se em explicar-me o significado. Muitas vezes, quando eu sinalizava
estudos em um chamado segundo ciclo, que são mais dois anos, conferindo ao professor o título de
Licenciado em Pedagogia ou em Psicopedagogia.
124
que não estava compreendendo, construía a frase ou a idéia de uma outra maneira, para que
ficasse claro para mim o que ele estava querendo dizer.
A narrativa de León é intensa e extremamente organizada. Chamou minha
atenção como ele organizava o conteúdo sabendo que teria uma hora para falar. Cada
entrevista tem um tema específico. Nas três primeiras, ele definiu o tema, que eu utilizei
como subtítulos da forma escrita da sua narrativa: A entrada na escola e os anos iniciais; A
escola secundária; A formação universitária. Na quarta entrevista, eu propus que falasse
sobre a família e o trabalho, temas que ainda não haviam aparecido nas entrevistas
anteriores. Em decorrência dessas características, organizei a história de León seguindo a
seqüência narrada nas quatro entrevistas.
A entrada na escola e os anos iniciais
Eu posso te contar a minha história desde que tinha seis anos. De
zero aos seis eu lembro muito pouco. [risos] Eu lembro, mas é um
pouco confuso, são coisas isoladas... através do que me conta
minha mãe... muitas partes da minha infância quem mais lembra é
minha mãe.
Eu fui consciente da minha vida a partir dos seis, sete anos,... a
partir da minha entrada no colégio. Eu tinha seis anos quando
entrei no primeiro de EGB, antes se chamava assim, primeiro de
Educação Geral Básica, que era o que seria agora educação
primária, né? E eu, quando entrei..., pelo menos te conto assim da
minha óptica, não da óptica de mãe, mas da óptica de menino...
A verdade é que quando entrei no colégio eu o via como algo muito
grande... e me surpreendia, aquele espaço tão grande e tão... entre
aspas, selvagem, não? O colégio me pareceu muito grande, cheio
de crianças que eu não conhecia. Eu já tinha tido contato com
crianças antes, no centro paroquial (não me lembro como se
chamaria). Seria uma creche ou jardim-de-infância em um centro
paroquial que fica muito perto de casa. Muito perto de casa, muito
protegido... tu sabes o que quero te dizer, não? Quando fui ao
Colégio, me parecia como uma selva. Porque, claro, quando a
gente sai de um lugar pequeno como esse centro paroquial, com
125
poucas crianças e uma professora, e entra em um lugar muito
grande, cheio de pessoas que não conhece... é um contraste muito
grande, não? Antes, poucas crianças, a maioria do bairro, da rua,
alguns eram familiares meus, primos meus e... muito protegido,
com uma professora mais velha, bastante simpática, bastante
agradável, que também vivia perto daqui. De repente tu vais a um
colégio muito maior, cheio de crianças [risos] que não conheces...
Me dava essa imagem da selva... Eu pensava: “onde me meti?”
Era tão grande aquele colégio, que eu não me situava.
Eu... naquela época, não era consciente do por quê, mas ... eu via
as pessoas aturdidas, não? Não sabendo o que fazer. Pessoas com
boa vontade, mas que não sabiam o que fazer. Eu as via como
nervosas e não sabia o porquê deste nervosismo... mas eu já
percebia. Naquela época, eu não sabia nem o que era síndrome de
Down. Então, claro, eu não sabia nada. Eu sabia que estava em um
lugar novo, grandíssimo, parecia uma selva em comparação com o
colégio do centro paroquial, que as pessoas me pareciam nervosas,
[risos] ... Eu tinha uma impressão estranha quando entrei... uma
impressão muito estranha. Eu pensava: “Que é que eu faço aqui?
O que está acontecendo? Por que todos me olham e estão tão
nervosos?” Essa foi minha primeira impressão, do meu primeiro
dia, né? Pouco a pouco... foram passando os dias e... outras coisas
foram acontecendo.
Um dia, veio uma mulher já mais velha, que eu soube depois que
era professora do colégio... tudo muito depois. Essa professora me
pegou, me fez uma pequena entrevista, umas quatro perguntas. Eu,
desde pequeno seguia a política, eu gostava muito dos noticiários...
disso eu gostava, desde que era muito pequeno... já seguia as
atualidades... E aquela mulher me fazia muitas perguntas sobre
atualidades... sobre muitas coisas, e eu, claro, respondia desde
meu ponto de vista. Mas, eu não sabia nem por que, nem para que,
nem nada. Ela ficou muito contente, me parecia que estava
contente.
126
León vai narrando essas lembranças com muitos detalhes, que aqui foram
sintetizados para não tornar o texto da história muito longo. É importante destacar também
a intensidade com que narra. É como se estivesse revivendo cada cena que conta.
Eu percebia que algumas crianças me olhavam... alguns me
olhavam assim como... como se dissessem: “pobrezinho!” Eu
ficava um pouquinho como... sem entender. Eu escutava algumas
crianças dizendo: “Pobrezinho, está doente”... Me dava uma raiva
tremenda! Tremenda, porque, olha, isso de pobrezinho, eram as
mães que diziam para os filhos... Eu não era consciente de nada,
mas aquilo... eu não gostava. No entanto, eu seguia com minha
rotina, né? Depois, eu também via muitas mudanças de professor.
Era uma mudança constante. Claro, quando a gente é pequeno,
não percebe a realidade como é. Eu tive uma professora mais
velha... eu via que ela não simpatizava comigo. Ou seja, que não
estava à vontade. Parecia um pouco agitada,nervosa. Claro,
depois descobri, muito tempo depois, que essa professora tinha
muitas reticências de que eu estivesse na sua sala. Claro, tinha
reticências porque eu era síndrome de Down... isso eu só descobri
depois. Depois já me inteirei de todos os movimentos...
León conta também sobre suas saídas para a classe de apoio:
Eu saía muito de sala. A classe de apoio estaria a... seria 100, 200
metros. Então, eu sabia perfeitamente já o percurso. E o que eu
fazia todos os dias era isso. Ia, entrava na minha sala, voltava a
sair, voltava a entrar, recreio... sempre fazia um pouco o mesmo,
né?
A partir daí começam já as lembranças mais claras. Por que até aí
é uma época mais... como menos organizado. Isso foi um ano
talvez, eu teria sete anos... Primeiro e Segundo da básica, né? Mas,
a partir do Terceiro da básica, as lembranças já são melhores,
mais organizadas. Eu estava com um professor mais velho. Isso eu
lembro perfeitamente, porque foi já minha época mais consciente:
127
Sr. Héctor Ruiz Pérez. Lembro até dos sobrenomes. Esteve comigo
três anos. Durante o ciclo médio da básica, que era Terceiro,
Quarto e Quinto.
Aí, já tenho as lembranças mais organizadas. Eu era maior,... E aí
as lembranças são realmente maravilhosas porque... era muito
bom, de verdade. Eu me divertia com os companheiros, brincava
muito com eles... E, as aulas, eu gostava, dependendo da
disciplina, claro, porque eu... nunca gostei de Matemática [risos] ,
nunca, jamais! Claro, quando era Matemática, tinha que fazer... eu
fazia, mas não gostava. Eu gostava mais dos temas sociais:
História... naquela época se chamava ciências sociais. Eu gostava
muito de temas sociais, tinha uma facilidade enorme, eu adorava,
os assuntos de História... e continuo gostando muito. A História, a
informação, gosto muito de tudo isso. No entanto, a Física, a
Química, a Matemática... eu não gostava de jeito nenhum. Mas,
bem, tinha que estudar. Foi minha melhor época, sem dúvida
alguma. Eu vejo Primeiro e Segundo por um lado, por outro
Terceiro, Quarto e Quinto. Segui os três anos junto com meus
colegas. Foi uma época feliz para mim. Eu me divertia
muitíssimo... tanto em sala como no recreio...
Mas a partir daí, vêm fatos... como dizer... adjacentes, fatos
exteriores, mas que me marcaram muito. Nessa época houve
muitas coisas que me marcaram e que além disso, pouco a pouco
foi... Foi uma época de grandes experiências, de descobertas. Foi
quando eu comecei a ir só ao colégio, a ir e a voltar só. Eu jamais
tinha pegado um ônibus. Tinha que pegar dois ônibus, tanto para
ir como para voltar Sozinho. Claro, a princípio com vigilância...
da minha família. Eu não notava... Eu ia só, pegava meu ônibus
com meu cartão... e não percebia nada. Ao contrário, eu ia tão
normal com meu cartão, pegava meu ônibus, entrava, me sentava,
e... em frente! Só depois me contaram como me vigiavam. Eu via
uma pessoa na parada com um jornal. Depois descobri que era
meu irmão [risos] . Eu não via nada, pegava meu ônibus
tranqüilamente, sentava, voltava, via os carros atrás, chegava,
128
descia, pegava o outro e... em frente! E na volta, a mesma coisa.
Mas, claro, depois, quando chegava em casa... quando chegava em
casa de meu tio, porque em casa se comia um pouquinho mais
tarde porque meu pai trabalhava e... eu comia com meu tio.
Naquela época, a jornada no Colégio era partida. Ou seja, eu
entrava às 9 da manhã e saía às 12:30. Depois, entrava muito
cedo, às 3, e saía pelas 5, 5 e meia. Isso depois mudou, agora a
jornada é contínua, mas em minha época era assim. Pois eu saía
do colégio, ia para casa, comia, e voltava à escola. Depois, quando
acabava, voltava a pegar os ônibus para casa. Isso era todos os
dias. E, claro, a verdade é que, quando a gente vai só, podem
acontecer muitíssimas situações, de pessoas que estavam a meu
lado e diziam: “Está perdido?” E eu: “Não, eu vou a minha casa”.
Me perguntavam se estava perdido, me perguntavam se estava só,
se necessitava de ajuda... Eu não notava o preconceito, mas, ainda
há muitas coisas... desse tipo, não?
Até esta época, eu não era consciente de que tinha síndrome de
Down, meus pais nunca haviam me explicado. Um dia, eu devia ter
sete, oito anos, um professor da Universidade, Prof. Miguel López
Melero... entrou no gabinete do diretor do colégio. O diretor o
conhecia, mas eu não. Eu estava habituado a entrar e sair de todos
os lugares do colégio [risos], e nesse dia eu estava no gabinete do
diretor. E esse senhor, Miguel, entra... Eu o vi e perguntei pra mim
mesmo: “Quem será?” Eu vi que ele mancava e que tinha muita
barba. “Que homem, com essa barba, quem será esse homem?”
Pois não o conhecia. E qual minha surpresa quando diz: “Você é
León, não?” “Sim, sou León.” Ele me conhecia já! Mas eu não! Eu
fiquei surpreso. Pensava: “De onde me conhece? [risos] Bom,
depois Miguel me explicou. Ele estava dando aula a um grupo de
estudantes na Universidade, e ele dizia - naquela época se dizia, tu
sabes que em educação não se falava como agora de síndrome de
Down, de jeito nenhum - e Miguel dizia naquela época, que os
síndrome de Down, não sabíamos... ou que não éramos muito
espertos, algo assim dizia Miguel. Ele me explicou depois que uma
129
garota, [...] que era namorada de um primo meu, disse: “Ah, não,
pois eu tenho um primo que é síndrome de Down e que é muito
esperto.” “E quem é?” “É León Palacios!” Por isso me conhecia.
Soube disso muito depois, muitíssimo depois. Tu vês que, claro, eu
fiquei um pouco surpreso quando disse: “León”. E, logo em
seguida, com total naturalidade, me diz: “León, tu sabes que és
síndrome de Down?” Eu fiquei um pouquinho... surpreso, não?
[risos] E pensava: “O que será isso?” E eu disse: “Sim, claro, sim.”
Respondi que sim, quando não sabia nada, nem o que era. [risos]
“Sim, claro”. Ele sabia que eu não sabia. E começou explicando
que os genes... que os cromossomos... [risos] Não tinha nem idéia do
que estava me falando. Para mim era como... chinês. [risos] Chinês.
E perguntei: “Miguel, sou bobo?” E ele respondeu: “Não, não és
bobo. Não!” “E posso seguir estudando?” “Sim, claro, podes seguir
estudando.” “E posso seguir aqui no colégio?” “Sim, claro.” E a
partir daí foi como conheci Miguel López Melero.
Comentei com León que não entendia por que ele tinha feito essa pergunta a
Miguel, se era bobo. Ele já tinha escutado algo sobre síndrome de Down? E ele responde:
Não, nunca. É que... Eu não entendia... de genes, de
cromossomos... Toda a explicação sobre células, genes,
cromossomos... Eu pensava: “Do que está falando?” Porque,
claro, as crianças... tu sabes que as crianças com essa idade não
fazem julgamentos indiretos, vamos muito direto. Às crianças lhes
preocupa muito se são bobos ou não são bobos. Claro, eu lhe
perguntei o que me preocupava, o que preocupa a qualquer
menino. Ou seja, primeiro, se sou bobo, entende? Segundo, se
podia seguir estudando, e terceiro, se eu podia estar no colégio
com meus colegas. Claro, essas são as coisas que mais preocupam
a um menino. Se não há problema, seguimos adiante! Certo?
Então, a partir do que Miguel me disse, eu já fui tomando
consciência do que era síndrome de Down,... isso eu devo a
Miguel. Eu, a partir daí, já tomei consciência de todo o tema da
130
integração. Eu já tomei consciência que havia que lutar a favor
dos síndrome de Down. A partir daí foi quando eu já levantei a
bandeira da síndrome de Down! Isso se vê muito bem em um
pequeno vídeo que foi gravado quando eu tinha 11 anos. Eu já
dizia, me lembro da frase: “Deixem que as crianças...” me lembro
até do tom [risos] . “Deixem que as crianças com síndrome de
Down entrem nos colégios, deixem que as crianças com síndrome
de Down brinquem no recreio...!” Eu já era consciente da luta, né?
Pergunto se nessa época ele conhecia outras crianças com síndrome de Down,
e León diz que não: Não, nunca. Porque naquela época não havia nenhum síndrome de
Down nos colégios... Eu não conhecia ninguém, nenhum síndrome de Down.
Depois, Miguel me disse que foi fazendo a mesma experiência em
outros colégios aqui. Ele foi, digamos, pondo mais crianças com
síndrome de Down em experiências em mais colégios.
A partir dessa tomada de consciência começou uma etapa muito
bonita, porque... eu desfrutava com meus companheiros, com o
colégio... já estava consciente de coisas que já percebia antes mas
não entendia. Já a partir daí, o “pobrezinho, está doente”, que
tanta raiva me dava quando era menor, já fui entendendo.
Pergunto a León se nessa época percebia preconceito por parte dos colegas, e
ele responde que não, embora sua professora de apoio destaque que nessa época ele estava
sempre sozinho no pátio, sentado próximo à portaria.
Com os colegas, não, nunca. Eu desfrutava... Mas, havia um
menino que tinha um nome feio, além disso, o pobre era feio, muito
feio esse menino
44
. Tinha um nome feiíssimo. Se chamava Rogério.
Um nome feio demais. Fisicamente era muito feio. E implicava
44
O menino era um gitano, denominação dada a uma “comunidade ou etnia com uma origem e
características similares mas heterogêneas, presente quase todos os estados europeus, em numerosos estados
americanos e em alguns africanos ou asiáticos.” (informações retiradas da página web
http://es.wikipedia.org/wiki/Gitano
) Na Espanha, o termo gitano tem conotação pejorativa. León não se
refere ao menino como gitano, apenas refere-se a ele através de características negativas. A informação de
que se tratava de um gitano é de um integrante do Projeto Roma.
131
muito comigo. Me insultava, me ofendia: “Ei mongolóide, você...
não sei que...” Não era meu colega de classe, mas era aluno no
colégio. Implicava comigo quando meus colegas não estavam. Até
que um dia,... foi uma experiência muito bonita, porque... meus
companheiros me protegiam. Um dia... todos os colegas de classe
enfrentaram ele, e disseram: “Se você provocar León... [risos] você
vai se ver conosco”. Ou seja, se encorajaram, encararam ele e me
protegeram. Não foram os professores, foram meus próprios
colegas os que saíram em minha defesa ante os insultos... Me
defenderam... E a partir daí ele já me deixou em paz.
Pergunto como era com relação aos professores, e León explica que naquela
época só tinha um professor: Sr. Héctor.
Esse homem, Sr. Héctor, foi um professor estupendo, um professor
que tinha uma confiança em mim, e em minhas possibilidades...
tanto ele como a professora anterior, Gracia, foram os dois
professores que me apoiaram mais. Gracia foi minha professora de
apoio no primeiro e no segundo. No Terceiro, Quarto e Quinto
também... Eu fazia o mesmo, ou seja, descia da classe normal à
classe de apoio. A verdade é que os dois professores para mim
foram os fundamentais... A base. Me apoiaram muitíssimo,...
professores realmente incríveis, sabe? A verdade é que me
marcaram muito, porque confiaram muito em mim, eram pessoas
muito queridas, muito sensíveis, eram pessoas realmente
estupendas. Eu acho que Gracia e o Sr. Héctor foram a base, né?
Sem eles, não seria eu, de verdade. Foram os dois que me...
impulsionaram, confiaram em mim e... claro, a partir do Terceiro e
Quarto, é preciso acrescentar Miguel, né? Ou seja, os três me
apoiaram muito. Miguel não fazia nenhum trabalho na escola...
Era um apoio de amizade. Miguel era quem me aconselhava, que
me... era como essa pessoa que está aí, que dá conselhos e tal, mas
não era nada formal. Nada formal até quinto. Ou seja, até quinto,
ele só dava um apoio externo. Porque eu estava muito bem com Sr.
132
Héctor, com Gracia, estava muito bem, tudo muito planejado,
estudava normal, fazia meus deveres...
Pergunto se tudo isso acontecia independente da presença de Miguel, ou seja,
se era uma característica pessoal desses professores, de sua maneira de trabalhar... E León
responde: Não, Miguel aí não atuou em nada. O Sr. Héctor foi que, com sua forma de
trabalhar, e sua iniciativa, e tal, com afinco e vontade, conseguiu com que eu aprendesse.
Digamos que foi uma etapa para mim estupenda, uma etapa... magnífica. Com os
companheiros, com Sr. Héctor, com Gracia...
León valoriza a postura pessoal dos professores, não os identificando como
membros que eram do Projeto Roma.
Foi muita luta, né? Muita luta no colégio. Claro, digamos que em
Terceiro, Quarto e Quinto as aprendizagens são fundamentais,
muito básicas, né? Mas, chega Sexto. Sexto, Sétimo e Oitavo, que é
o ciclo superior da básica. E aí as coisas já se complicam. Porque,
claro, até então, só havia um professor para todas as disciplinas.
No ciclo superior era um professor por disciplina. Um para
Matemática, um para inglês,... ou seja, já se complicava. Claro, o
nível era cada vez maior, tinha que aprender coisas mais difíceis,
mais complexas. Eu fazia os deveres em casa. Meus irmãos foram
como meus professores. Porque eram os que me ensinavam em
casa, me ajudavam nos deveres...
Digamos que a aprendizagem daquela época foi através deles, em
casa, com os irmãos, com meus pais também. Mas, além do apoio
familiar... aí é quando entra mais seriamente Miguel, a partir do
sexto. Miguel pensou que me fazia falta apoio, reforços às
disciplinas que mais me custavam, como por exemplo, Matemática.
Ele pôs estudantes seus como professores de apoio meus, de
reforços em certas disciplinas, dentro do colégio. Eu fazia o mesmo
que anteriormente, ou seja, saía da minha classe normal e ia à
classe de apoio, o mesmo que antes. Até que um dia, no ciclo
superior, um professor meu não deixou que eu saísse da sala
sempre. Ele dizia que eu tinha que estar em classe, ou seja, que
133
devia aprender o mesmo que o resto dos colegas. E que eu devia
estar em classe. Isso de uma classe a outra, não! A partir daí já foi,
digamos, um movimento mais brusco. “Não, você está em classe,
você vai aprender o mesmo que o resto.” E, o que eu fiz? Passei a
ter as aulas de reforço, as aulas de apoio, nos tempos livres. Ou
seja, no recreio. Primeiro ia um pouco ao recreio e depois já ia à
aula de apoio. Ou em algumas tardes, também pelas tardes em
algum tempo livre... Mas, não saía mais de sala, certo? Assim foi
todo o ciclo superior, Sexto, Sétimo e OItavo. A partir daí, a coisa
mudou, porque muitos colegas se foram... alguns ficaram, outros se
foram. Então, tu tens que... habituar-te aos novos colegas, aos
novos professores, claro, custa. E também a todas as disciplinas:
Física, Química, Matemática, História, Inglês... [risos] Tinha que
habituar-me a esta mudança, não? Mas, eu te digo, pelos colegas...
sou uma pessoa muito sociável. Não tenho problemas para mudar
de colegas. Voltei a relacionar-me de uma forma muito boa com
meus novos colegas... me relacionava muito bem também com
todos os professores... Mas aqui, já começava a haver os
preconceitos dos professores...
A verdade é que nos últimos anos da básica, o ambiente não era o
mesmo, porque os colegas, muitos se foram, claro, o normal, né?
Os colegas passam... o ambiente um pouco diferente. Se havia
algum preconceito por parte dos colegas, não se notava... Era
muito provável que não, porque... Eu me sentia muito à vontade
nas aulas, muito à vontade com meus colegas. O que sim, mudou,
eu acho que para bem, de verdade, foi a exigência do
professorado. Primeiro, que tinha muito mais professores, antes só
havia um, já começou a divisão em disciplinas, e a cada disciplina
correspondia um professor. Isso é complicado de adaptar-se. Cada
um com seu estilo, claro, tu tens que te adaptar. Eu me adaptava
bastante bem aos ritmos de aula, aos estilos, e tal. Claro, o nível de
exigência era bastante maior. Inclusive, quando acabei o oitavo da
básica, foi tanto o nível de exigência que havia, que ficou me
faltando uma disciplina, que era Matemática. E o professor queria
134
que eu repetisse... estava aprovado em tudo, mas... ele queria que
eu repetisse a disciplina, para reforçar-me mais. Porque a
exigência era muito a mais. Ele queria que eu repetisse a
disciplina, mas Miguel pensou que não. Que não, que eu tinha que
ir já ao Instituto [escola secundária]. E conversou com o
professor...
A escola secundária
Em minha época, o Instituto, o ensino secundário, eram quatro
anos. Três de Bachirelato, mais um que era um curso pré-
universitário. Hoje é diferente, mas naquela época era 1º de BUP,
2º de BUP..., e depois o COU - Curso de Orientação Universitária.
Vamos falar Secundária que assim nos entendemos mais. Instituto
de Secundária... O Instituto estava muito perto daqui de casa.
Eu entrei no Bachirelato... isso foi em 1990... eu teria... 16 anos
quando entrei no Instituto. Eu temia que fosse uma época um
pouco mais... dura, né? E começou... começou duro. Te explico...
Tu sabes que quando termina a básica, tu podes entrar
automaticamente no Instituto. Em meu caso, o claustro de
professores
45
votou minha admissão, ou seja... fizeram uma
votação para ver se me admitiam ou não. Eu só soube depois. Eu
soube quando já estava dentro. Eu não sabia a princípio.
Era a primeira experiência de integração de um aluno com síndrome de Down
no ensino secundário na Espanha e os professores estavam preocupados, mas tinham a
assessoria do Prof. Miguel, mais a da professora de apoio e a equipe psicopedagógica,
formada por uma psicóloga e um fisioterapeuta que pertenciam ao Projeto Roma.
Tive muitíssima sorte o fato de que me aceitaram. Mesmo com
alguns professores que não me queriam lá... Mas, passados os
anos, já viram... esses mesmos professores já viram que eu era
capaz, né? Mas a princípio havia suas diferenças, uns que sim,
45
Denominação para uma reunião dos professores de uma escola.
135
outros que não. Claro, já comecei a notar como entrava em outro
mundo, diferente do colégio... já não estava tão protegido como no
colégio. Aquilo era mais selva, muito mais selva. [risos e suspiros]
Todos os colegas diferentes, todos os professores também
diferentes. Miguel lutava na Delegação de Educação para que
Estrella
46
fosse minha professora de apoio no Instituto. E ela foi
minha professora de apoio. Para todos era uma novidade. Nunca
tinham visto um síndrome de Down [na Secundária]. Mas eu, pouco
a pouco, ... eu nesse instante, não sei que neurônio ou o que, me
entrou: “León, aqui é preciso demonstrar muito, aqui é preciso
demonstrar muito.” E fui usando minha simpatia e minhas
habilidades... minha simpatia e o dom de falar, e tal... e pouco a
pouco fui conquistando os colegas. E a verdade é que esse
primeiro ano de BUP foi muito bom. Claro, para os professores foi
uma grande surpresa, porque nunca tinham trabalhado com um
síndrome de Down, mas se saíram bastante bem.
Eu participava de tudo... participava com todos. Participávamos de
tudo Foi uma experiência muito interessante. Além disso, neste
ano, entrei em contato... isso está um pouco proibitivo [risos] mas
para mim era um pouco como novo. Neste ano conheci uma
garota... no Instituto. Uma garota lindíssima. Uma loira, muito
bonita. Começamos a falar, e tal, mas isso era para mim muito
novo. Nunca tinha tido um contato tão de perto com uma garota,
né? E foi através dela que entrei em um grupo de jovens da igreja
da Vitória. E a partir daí comecei a entrar em contato com ela, e
com todo mundo, e também com esse pequeno grupo aqui na
igreja. Isso era muito bom pra mim. Foi um ano para mim, muito
bom, muito bom. A outra garota que conheci, minha colega de
sala, era uma garota muito especial, Maria Inés Ronda, uma
garota muito especial. Também um pouquinho tímida, mais...,
muito especial, não? Era mais tímida, quase não participava na
aula... Ficava mais isolada... Nós nos relacionamos perfeitamente.
46 Estrella era membro do Projeto Roma.
136
Nós dois, que temos este pequeno... esta pequena etiqueta, nos
relacionávamos de uma maneira genial. Inclusive muitas vezes nos
isolávamos os dois, e ficávamos conversando... Estudávamos
juntos, íamos ao recreio juntos... Havia muita amizade, muitíssima
amizade. Posso te mostrar, se queres, uma foto dela, publicada no
jornal! Foi muito curioso, porque saiu no anuário do Diário Sul
[jornal local] deste ano. Aí já começou outra vez o movimento dos
meios de comunicação. Claro, era a primeira vez que um síndrome
de Down entrava em um Instituto e os meios de comunicação
falavam muito sobre isso.
Tenho um dossiê, com artigos que saíram na imprensa. Vou buscá-
lo e tu verás rapidamente... [encontra a pasta e começa a mostrar e
explicar]: estes são todos... o grupo de colegas de classe. E minha
colega era essa [mostrando a foto]. Saímos no anuário do Sul.
Começava a sair nos meios de comunicação, comecei a viajar. Foi
uma época intensa. [vai mostrando alguns artigos com fotos]: vê,
este é Miguel. E isto foi quando ganhamos um prêmio na Galícia.
Aqui foi minha primeira viagem, com Miguel. Isso é das Canárias,
eu fui às Ilhas Canárias também. E pouco a pouco foi ampliando
minha época de viagens, né, porque... a imprensa ia divulgando e
me chamavam, para me ouvir, para... Olha só. Fui até a Itália. Em
91 fui à Itália com Miguel e com meus pais. E depois, chegava o
boom, o apogeu em nível nacional. Foi a partir daqui.
Como te dizia, o primeiro ano foi muito bom, de verdade... Quando
eu comecei a sair nos meios de comunicação... eu me saía bem, de
uma forma muito natural, muito espontânea. De fato, nessa foto
com todo o grupo de colegas se pode ver a reação, né? Uma
reação muito natural, muito espontânea com as câmaras... Não
tinham nenhuma dificuldade em que lhes fizessem fotos... Alguns
jornais lhes faziam perguntas e eles respondiam, o pessoal entrava
na sala, os professores não se queixavam... [risos] Até que chegou,
digamos o boom em nível nacional, neste ano, 91, e aí foi demais.
A imprensa entrou muitíssimo no instituto, muitas câmaras de
televisão, e isso originou queixas, por parte do professorado.
137
Porque, uma coisa é umas fotos aqui, em nível local, e outra coisa
já é em nível nacional, com câmaras de televisão... claro, isso já
não é o mesmo. O professorado se incomodou um pouco, né? Há
um limite.
A verdade é que o primeiro BUP foi um ano... muito interessante,
muito interessante. Os companheiros todos me queriam muitíssimo,
a verdade é que estava muito integrado. Mas, as coisas mudam. A
coisa mudou...
Comento com León que sinto que se ele marca que esse primeiro foi tão bom é
porque algo diferente aconteceu nos outros, depois. E ele confirma:
Sim. [Suspiro] A coisa mudou sobretudo no segundo, segundo de
BUP. Aí os professores mudaram. Também os colegas mudaram. E
aí estava a chave. Se o primeiro era um grupo que me queria
muitíssimo, no segundo a coisa já mudou, para pior. Já entraram
garotos e garotas de classe... aqui chamamos “pijos”: crianças de
pais com dinheiro, classe econômica média alta, que já não têm a
mesma sensibilidade. Esses garotos já não me olhavam tão bem, já
tinham essa arrogância, esse de olhar-te por cima do ombro, ... já
não era o mesmo.
Eu era completamente consciente de toda a situação. Claro, eu...
se no primeiro estava muito integrado na sala, no segundo estava
cada vez mais e mais marginalizado. Maria Inés e eu nos unimos
mais ainda. Porque nos marginalizavam aos dois, a ela e a mim.
Estrella continuava no Instituto, mas ela já não entrava em classe.
Ela trabalhava com os professores. Mas, claro, o professorado
também não mudou, pois tinham muito mais preconceitos acerca
das minhas possibilidades. Não confiavam em mim. Eram mais
exigentes e mais... Aí Estrella teve que brigar muitíssimo com o
professorado.
Os professores eram mais velhos, no segundo de BUP entrou um
professorado bastante mais velho. Então, claro, foi um ano para
mim muito mau. Poucos professores confiavam nas minhas
138
capacidades. Eram muito mais velhos, com idéias muito...
tradicionais, antigas... Aí me custou muitíssimo. Depois, ver todos
os dias a cara amarrada dos colegas, a marginalização era maior.
A verdade é que isso te dá muitíssima impotência.
Eu seguia no grupo de jovens da igreja, mas já não era o mesmo
grupo. Mesmo que fossem os mesmos, no primeiro ano eu via a
cara amável do grupo... aqui dizemos “guay”
47
, a cara “guay” do
grupo. Mas, já no segundo, vi a outra cara. Eles também me
marginalizavam, não queriam que estivesse... Eu, naquela época ia
da reunião à missa, era meu costume. Descia da reunião e ia à
missa. Esperávamos fora, na porta da igreja para dar uma volta.
Mas, qual minha surpresa quando um dia, desci à missa, e quando
saí, já tinham ido. Todos! E me deixaram só.
Para mim, esse ano foi o pior que passei, de verdade. Estive a
ponto de atirar a toalha, de deixar tudo. Mas, algo me disse:
“León, tu segues, tu continuas, não te intimida, segue!” E segui. E
eu, claro, sou muito cabeça-dura, muito tenaz, não me afundei.
Mesmo sendo difícil, eu seguia, continuava. E além disso, esse
sentimento de impotência, guardei só para mim. Jamais disse a
meus pais. Eles não sabiam de nada... eu contei muitíssimos anos
depois, eu já estava na Universidade.
Nesse momento pergunto a León se ele não comentava nem com Miguel ou
Estrella, que eram adultos que estavam tão próximos, que o apoiavam tanto...:
Para ninguém. Sim, eu conversava já com Miguel sobre assuntos
assim, mas eu não queria dizer, não queria... E sim, poderia haver
dito a Estrella, que era minha professora de apoio, mas também
não disse nada. Me calei. Estrella estava com os professores, não
notava nada. Claro, Miguel também não sabia. O único que sabia
era eu. E a verdade é que... para mim foi muito difícil, porque...
era eu que enfrentava só com os colegas, sem pedir ajuda de
47
“Guay” é uma gíria muito utilizada na Espanha para referir-se a algo muito bom, o equivalente a legal no
Brasil.
139
Miguel, sem pedir ajuda de Estrella, nem pedir ajuda dos meus
irmãos, dos meus pais, eu enfrentava só. [risos] ... Mas, bom,
quando acabou junho desse ano
48
, a verdade é que eu fiquei
aliviado... por fim consegui! [risos]
Comento com León que se ele foi aprovado em todas as disciplinas em um
contexto assim tão difícil, essa era uma mostra para ele mesmo e para os demais de quanto
era capaz.
Eu acho que... já quando acabei em junho, me dei conta... que esse
ano tinha me servido... E tinha me servido porque eu percebi neste
sentido... no sentido de reafirmar-me: “eu posso!” Serviu para
reafirmar-me como pessoa, né? E aí vi que minha auto-estima era
muito grande. “Eu sou síndrome de Down, com muita honra!” Isso
me lembro que disse em uma reportagem na televisão espanhola.
Porque neste ano, já começou a televisão espanhola a colocar meu
caso. Todas as emissoras de TV começaram a falar muito, não?
Isso, por causa de um congresso que eu fui a Madri, sobre
Psicologia e Avaliação. E, claro, a imprensa se alvoroçou. Foram
ao Instituto, os professores já se queixaram. Aí reprovei em muitas
disciplinas. Estava muito distraído com os congressos... Isso eu
disse à uma emissora: “Eu sou síndrome de Down com muita
honra!” Sobre isso há muito material filmado. Saiu em muitos
programas, em nível nacional e... bom, esse ano foi tremendo, de
entrevistas, de... eu não sei como dei conta. [risos]
Voltando ao tema Instituto, acabei o Segundo de BUP, e já passei
ao Terceiro. E voltou a mudar para melhor. Os professores eram
mais jovens, me aceitaram mais, me apoiavam muito mais, e
também mudaram os colegas. Os companheiros eram todos novos,
mas geniais, uns companheiros estupendos. Eu estava super
alegre, já não era o mesmo. Muito alegre, muito participativo, me
implicava em todas as aulas, tinha aulas de grego... [risos] O
48
Junho é o final do ano letivo na Espanha.
140
terceiro ano, eu fiz em dois anos, porque havia muitíssimas
disciplinas, e tivemos que dividir em dois anos.
León esclarece minha dúvida sobre esse curso dividido em dois: Somente eu fiz
isso. Fiz umas disciplinas em um ano e outras no seguinte.
Nessa divisão do Terceiro em dois anos, os colegas mudaram outra
vez mais. Aí havia quem me aceitava, já havia quem não me
aceitava... Mas, eu estava mais maduro. Já não me importava que
não me aceitavam. Quem quer, me aceite, não quer, não me
aceite... E por isso me sentia muito mais fortalecido. E participava
muito mais das atividades nas aulas. Também nesse ano,...
aconteceram muitíssimas coisas... primeiro, deixei o grupo da
igreja. E ingressei em um grupo de escoteiros. No mesmo grupo no
qual estiveram meus irmãos, muitos anos atrás. E também nesse
grupo, já quando entrei, digamos que foi uma solução a minha
marginalização. E a verdade é que passei uns anos muito felizes
com esse grupo. Fiquei com esse grupo por três anos. Como vês,
foi uma época muito intensa, né? [risos] Com os escoteiros,me
estimulei fisicamente, porque tinha que andar muito, umas
caminhadas longas por lugares que para eles eram muito fáceis,
com umas subidas muito pronunciadas, com as condições de clima
muito extremas... Fazem os acampamentos, eu ia aos
acampamentos. Para mim, caminhar sempre me custou muito.
Sempre fui uma pessoa muito... muito cômoda, muito tranqüila,
muito de casa, muito de estar aqui... muito de estudar. Então, para
mim era um desafio, não? Era uma atividade física, sair, andar...
Muito bom. O último acampamento que fiz foi aos Pireneus. Nesse
verão fez 10 anos.
O Curso Pré-Universitário(COU), também fiz em dois anos: 93-94
e 94-95. A verdade é que o COU também foi uma época muito boa.
Colegas estupendos... Participávamos muito,... também o dividi em
dois anos. Foi uma época... dois anos, muito agradáveis, muito
felizes com eles... aí Estrella já me fazia o apoio fora da sala, para
141
planejar as atividades, né? Os professores do COU eram muito
mais exigentes, claro. Já era o último degrau para a universidade,
Aí os professores apertavam bastante. E, claro, aí Estrella me
ajudou muitíssimo, porque já tinha disciplinas complicadas, né?
Por exemplo, História da Arte... tive que decidir no Terceiro, se
fazia Ciências ou Letras. E eu escolhi o COU de letras. Por isso
tive Latim e Grego.
Aí Estrella foi meu grande apoio, ajudando-me a fazer os exames,
vendo em que falhava... ou seja, um pouco de reforço naquelas
disciplinas em que eu podia estar mais... menos preparado, e tal.
Nesses dois últimos anos, tinha que estudar muito, mas eu me saía
bem.
Vi que os colegas eram companheiros meus de verdade, e que me
queriam e que me apoiavam e que... Isso te anima a estudar, te
anima a seguir adiante, não? Mas, bom, essa parte [BUP e COU]
termina em um ato muito lindo. Porque... aqui na Espanha, quando
termina o COU, dão uns prêmios especiais...
Neste ato... me deram um prêmio especial, distinto. Foi um
momento muito emocionante, porque... Bom, foi inimaginável.
Porque... primeiro o diretor do centro disse umas palavras muito
bonitas: “vamos dar agora um prêmio especial a uma pessoa que
vocês já conhecem... é um garoto muito especial, um garoto que
trabalhou muito e que nunca lhe demos nenhum privilégio,
nenhuma... nunca lhe passamos a mão, nunca... ajudamos, mas
nunca...” uma coisa assim. Foi muito lindo.
E eu pensei: “Quem será?” [risos] Eu fiquei muito surpreso,
“quem será?” Porque eu não sabia, não sabia de nada. “E vocês
já sabem quem é”, disse o diretor. “León Palacios!”
Justo aí fui até o palco para receber o prêmio e aí foi o momento
mais especial. O salão de atos estava cheio. É muito grande, e
estava lotado, de garotos, professores,... e as famílias. Foi dizer
meu nome e todo o salão de atos, todo o salão de atos, cheio de
garotos, garotas e professores, se puseram de pé..., começaram...
aplaudindo-me, ... claro que fui me emocionando cada vez mais.
142
León começa a chorar e tenta desculpar-se. Comento que a emoção faz parte da
vida, e que não é preciso desculpar-se.
Sim, é verdade [segue chorando] Todos no salão de atos cheio, em
pé. Todos chorando, aplaudindo-me, gritando: “toureiro,
toureiro”. Eu não sabia que fazer, essa é a verdade... não sabia
para onde olhava. Todo mundo aplaudindo. Eu fiquei
impressionado. “Toureiro!” E tive que... fazer uma reverência.
Comento que, por sorte, ele já estava acostumado com grandes públicos...
Sim, mas isso... Não essa emoção, nem essa emoção nem essa
intensidade, não? E com muitíssima surpresa. Minha mãe estava.
Foi a única que estava da minha família. Meu pai trabalhava no
teatro, não estavam nenhum dos meus irmãos. Minha mãe foi a
única, da minha família, no ato. Minha mãe, da emoção que sentiu,
não pôde nem se levantar da cadeira. Minha mãe ficou com as
pernas tremendo, mas tremendo! Não podia levantar-se. A verdade
é que os professores se emocionaram, muitos garotos se
emocionaram.
A formação universitária
Voltando ao ato, [a homenagem, o prêmio que ganhou...] a verdade
é que, eu, quando terminou as emoções do ato, já comecei a descer
os pés à terra. E... fiz a seletividade, como qualquer garoto.
Peço que me explique o que é a seletividade:
Mudou muito. Com as leis de educação... Em minha época, quando
se acabava o curso pré-universitário, tinha que fazer um exame, a
seletividade, para poder ingressar em uma universidade. Te
explico... aqui na Espanha...havia duas opções. Se tu entravas num
143
Bachirelato, o BUP, era para ir à Universidade, certo? Enquanto
que, havia um ramo paralelo, que é FP, Formação Profissional.
Naquela época, a Formação Profissional não estava tão
valorizada. Agora sim, agora está muitíssimo. Naquela época, FP
era para os que não gostavam de estudar. A maioria ia fazer seu
Bachirelato, seu Curso pré-universitário, faziam seu exame de
seletividade... Já no Bachirelato havia duas opções: Ciências ou
Letras, segundo a formação que tu querias. No COU também, o
mesmo, Ciências ou Letras. Ou seja, já era tudo encadeado. Eu
escolhi BUP de Letras, COU de Letras também, e fiz minha
seletividade. Fiz no verão de 95. Era julho Eu nunca pensei que
podia entrar na universidade, verdade. Nunca pensei que... claro,
tinha ilusão
49
, como todos os garotos com essa idade, com 20, 21
anos, têm a ilusão de entrar, não? Têm a ilusão, mas não o vêem
tão de perto, não? Na época do instituto tinha como uma ilusão,
mas quando chegou a seletividade, eu já me vi no caminho. E a
verdade é que eu sou uma pessoa de caráter muito tranqüilo,
muito... Não sou pessoa nem que me angustie, nem nada parecido.
Eu estudava os temas, e no dia do exame, quando os garotos se
põem muito nervosos, eu, nada... Super tranqüilo. Então nesse dia,
o primeiro dia dos exames, meu irmão me levou. Me levou à
Universidade, onde eu fazia o exame. Ali estava Estrella. Os dois
estavam “como um flan”, muito nervosos. E Estrella dizia: [León
altera a voz, em um tom bem humorado] “É preciso ver, que
León... estou nervosa, e León está tranqüilo.” [risos] Eu ia, fazia
meus exames, tão normal, saía, e no dia seguinte... eram dois ou
três dias que duravam o exame. Fiz os exames, e nada, ou seja, fiz
e... no dia em que saíram as notas [o resultado da seletividade], eu
fiquei com tanta tranqüilidade, que fui à praia. Fui à praia tão
tranqüilo... e quando voltei, Estrella telefonou pra dizer-me que eu
estava aprovado. Alegria imensa, alegria grande de ter sido
49
A palavra ilusión em espanhol tem também o sentido de esperança, desejo, que é o sentido dado por León
aqui.
144
aprovado, e logo em seguida já começou o debate sobre que curso
ia escolher.
Eu comento para esclarecer: Ah, sim, porque fazes a seletividade, mas escolhes
o curso depois.
Claro, ou seja, tu não chegas na Universidade em seguida, tu
pegas uma ordem de preferência do curso que tu queres. Eu
gostava de muitos cursos. Eu gosto muito de tudo que é referente a
informação, a história. Se eu tivesse escolhido agora, teria
escolhido Jornalismo, História, porque eu gosto muito dessas
coisas. Mas, aí chega Miguel ... [risos] e me diz, conversa comigo
um dia e me convence para que faça Magistério. Ah, também
queria ser advogado, vê só. Porque eu tinha um primo distante que
era advogado e eu gostava. Como tu vês, tinha um cacau grande
50
.
Tudo isso eu gostava. Mas Miguel me convenceu para que fizesse
Magistério. Porque seria mais acessível para mim, que Jornalismo
e Advocacia são carreiras muito competitivas... e pouco a pouco
me convenceu que teria que fazer Magistério. A verdade é que,
quando eu cheguei em casa e comentei que queria fazer
Magistério, meus pais se surpreenderam. Houve um debate grande
em casa, entre meus irmãos, meus irmãos com meus pais, com
Miguel... houve um grande debate. E no final, decidi fazer
Magistério Educação Especial. Perfeito, vou matricular-me, e tal,
e aí começa a primeira parte. Vamos ver como te explico, para que
entendas bem. Eu queria entrar na Universidade pela quota [para
pessoas com deficiência]. Para poder entrar na Universidade, se
pode fazer de várias formas. Pessoas com deficiência entram por
uma quota especial para deficientes, certo? Há vagas reservadas
para pessoas com deficiência. Mas, para isso, tinha que ter uma
porcentagem de deficiência, uma porcentagem muito elevada. Era
65%. Muito alto. É que nessa porcentagem, se englobavam tanto
50
Grande quantidade de idéias.
145
as deficiências físicas como intelectuais. Bom, como pode entrar
na universidade uma pessoa com 65% de deficiência intelectual? É
impossível. Ou seja, é impossível. 65% de deficiência intelectual é
muito.
Pergunto como avaliavam essa porcentagem, pois isso é complicado, muito
subjetivo.
Sim, é muito subjetivo. Porque este sistema está montado com base
em graus, em porcentagens. É um sistema geralmente... um
pouco... assistencial, um pouco... que avalia o déficit, graus,
porcentagem de deficiência,...
Investigo um pouco mais essa questão da avaliação:
– Mas, havia outras possibilidades para tua entrada...
– Sim, mas a minha era por aí. Minha porcentagem de deficiência é de 33...
– Tu tens...
– 33%.
– Como? 33 como?
[silêncio]
– Quem disse que tu tens 33% de deficiência?
– Isso eu também queria saber, mas, bem...
– Mas, quem te avaliou?
– Os psicólogos. Aqui na Espanha, os psicólogos fazem um teste de
inteligência. Através de um teste, tiram a porcentagem de deficiência.
– Ah, sim? Ah...
– Tiram nível e porcentagem de deficiência.
[Não resisto a essa resposta e comento, ironizando]: Sim, medem teu cérebro
com uma régua e...
[Gargalhadas] e medem a porcentagem.
– Sim, esse tem 20%, esse 90...
– Exatamente. E todos vão assim, uns têm 20, outros 90, outros 80...
– Bom, tu estavas fora, então, da porcentagem...
146
Eu estava fora dessa porcentagem tão elevada. Uma porcentagem
que é quase um desastre, pois é tanto para o físico quanto para o
intelectual. Uma pessoa com essa porcentagem intelectual não
pode fazer um curso superior. Com físico, sim, ou uma pessoa cega
ou surda, que também entram por aí. Mas um síndrome de Down
ou uma pessoa... não pode entrar com 65% de deficiência, não
pode entrar, porque... não pode estudar. Claro, quanto mais
porcentagem tu tenhsa, mais dificuldade tu tens. Ou seja, vimos
que aquilo não podia ser. E iniciamos uma luta com a
Universidade. Uma luta grande com o reitor, aí, tudo administrado
por Miguel. Tivemos que recorrer ao governo [da Comunidade
Autônoma onde vive] para eu poder entrar na Universidade.
Como León não pôde entrar pela porcentagem prevista na lei da cota, entrou
pela sua nota, ou seja, como os demais colegas aprovados.
A verdade é que quando eu entrei na Universidade, sabia que para
mim era algo... era outro mundo. Não tinha nada a ver, ou seja...
não tinha nada a ver nem com o Colégio nem com o Instituto. Nada
a ver. Nada.
A verdade é que o primeiro dia que entrei, me sentia... tranqüilo,
mas intranqüilo. Ou seja, eu ia tranqüilo, pois sou uma pessoa que
não me altero, uma pessoa muito tranqüila, não? Mas pensava:
“como serão os professores, como serão meus colegas, ou seja... O
que me espera?” Porque sabia que aquilo não era o mesmo. Ali já
não tinha professora de apoio, ou seja, não havia nenhuma
proteção. Ali, era eu contra o resto. [risos] E é assim. Era eu
contra o resto. No primeiro dia, ia no ônibus, desde minha casa até
a universidade: “como será, como serão meus colegas, e tal, e
qual...” Mas quando entrei na universidade... a verdade é que
impõe, quando tu entras, eu olhei para cima, que é muito grande, e
disse: “Seja o que deus quiser... Já estou aqui, “a lo hecho,
147
pecho”
51
, já não me importava, né? E eu ... “para dentro, à sala!”
Claro, quando entrei, os colegas ficaram muito surpresos, não?
Porque era o primeiro dia de aula para todos, para toda a
faculdade. Ficaram muito surpresos ao ver-me. E eu também
estava surpreso por vê-los, né? [risos] Claro, a surpresa foi mútua.
Quando entrei na sala, "se quedaram de piedra”
52
, eu também
“me quedè de piedra”, mas me sentei. Quando eu me sento já
havia uma garota, ao lado, que pedia todos os números de telefone.
[risos] Assim, de repente! A verdade é que a Universidade
surpreende, não? Desde o primeiro dia, se surpreende, não? E
essa garota se aproximou de mim e, claro, eu disse meu telefone, e
tal... Sentei-me ali... mas naquele momento, naqueles cinco, dez
minutos, ninguém me conhecia, eu era como um a mais. Surpresos,
mas, como um a mais. Chega um professor, Pedro Montiel. [risos]
Foi aluno de Miguel. Entra na classe. Cumprimenta a todos e diz:
“Aqui temos um companheiro que acaba de entrar, León
Palacios.” Como ele me conhecia, me apresentou ao resto da
classe. Eu queria passar despercebido, mas todo mundo me olhou.
[risos] .Nesse primeiro dia, comecei a conhecer a gente da sala,
comecei a fazer os primeiros amigos. A verdade é que fui pela
primeira vez à cafeteria, tomei café com os colegas. [risos] . Para
mim, foi uma mudança radical, entrar na Universidade... Porque,
claro, eu estava acostumado a ir pela manhã ao Instituto, voltar,
passar em casa toda a tarde. Claro, o fato de ir à universidade me
dá mais autonomia, não? Tu tens que sair pela tarde, tens que
comer antes, tens que pegar dois ônibus... Sair dali às 9 da noite.
Chegava aqui às 10, 10 e pouco da noite. Chegava morto. Ou seja,
chegava feito pó, porque era o dia todo fora.
Eu tinha aula todos os dias. Desde as 3 da tarde até as 9 da noite.
Mais 1 hora e meia de ônibus para casa. Não é como no colégio.
Era pesado. Eram muitas horas... A verdade é que, claro, isso me
51
Expressão em espanhol que significa literalmente: ao que está feito, peito! No sentido de bancar as
decisões tomadas, mesmo que se julguem incorretas ou inapropriadas. Não voltar atrás.
52
Equivalente em português a ficaram de cara, que significa ficar surpreso, em suspense, por haver visto ou
ouvido alguma coisa extraordinário ou inesperada.
148
mudou totalmente. Tanto me mudou, que deixei os escoteiros. Não
havia tempo para ir aos escoteiros, que era aos sábados pela
manhã. Então, claro, não podia ser. Tu vês, entrei no meu papel de
estudante a sério, ou seja, passar horas estudando... mesmo, claro,
tendo tempo livre. Pouco, mas tinha tempo livre. Sábados, tarde e
noite. Mesmo tendo que estudar, mas tinha que ter tempo livre. Ou
seja, tu já tinhas que te organizar. Já não é o mesmo. Tinha que
organizar as horas de estudos, o tempo livre... Tinha que planejar.
Não é como o Instituto. E eu, naquela época, lia muita literatura
em geral. Mas, claro, quando já chegas na universidade,... são
leituras específicas... mais técnicas,... às vezes tinha que ler cada
coisa... tremenda! A verdade é que os textos de leitura mudaram
totalmente. E meus costumes também, porque... Eram tantas horas
de leituras tão técnicas, tão sólidas, tão... tão..., [risos] claro, já te
dava vontade de ...desconectar, né? Ver televisão, desligar...
Esvaziar um pouco o cérebro, né? Tudo isso... tive que planejar,
tive que mudar os costumes, hábitos, os horários, tudo. A tudo isso,
ah, espera que tem mais, porque... não somente dedicar-me aos
estudos, mas foi a época em que Miguel me requeria para as
reuniões do Projeto Roma. Com o qual me dividi... eu participava
de forma mais ativa no Projeto Roma. Eu era membro do conselho
do Projeto e pertencia ao grupo de pesquisa, ou seja, Miguel me
introduziu no Projeto. Então, tinha mais tarefas, mais
compromissos... claro... já comecei a fazer mais coisas, mais
atividades. Depois também entrei em um grupo de crisma; eu não
estava crismado, entrei em um grupo de preparação para a crisma
na igreja da Vitória. A mesma igreja. Onde tenho grandes amigos.
Então, é grupo de confirmação, Projeto Roma, a Universidade, e,
pouco a pouco também, a atividade pública. Porque, claro, os
meios de comunicação me requeriam cada vez mais. Foi uma
época na qual os meios de comunicação cada vez me punham mais
notoriedade, mais... Pois, claro, entrar em uma Universidade
alvoroçou a imprensa, não, porque: um síndrome de Down fazendo
um curso universitário! [com ênfase] Isso lhes deu... tu sabes que
149
os jornalistas gostam disso. Era outra atividade mais. Atender à
imprensa, ... ir a congressos. Inclusive, em 97, abri um congresso
internacional em Madri [com ar solene]. A verdade é que esse ano
foi muito... um ano de atividade intensiva. Primeiro, minha entrada
na universidade, isso causa sensação, sempre... Depois, um
congresso internacional do Projeto de Pesquisa, em 97. Houve
grande difusão nos meios de comunicação. Depois, o congresso em
Madri.
Minha época na Universidade foi de luta, estudo, e também com
bons momentos... Bons momentos com os colegas e... Em minha
época universitária eu tinha relações muito boas com muita gente.
Mas, em geral, eu sempre fui... muito só. Sempre. Porque eu tive
colegas, não amigos.
Isso foi algo que me marcou muito, não? Fazia mais amigos fora
da Universidade, que na própria Universidade. Isso eu vivia muito,
e continuo vivendo. Na Universidade eu não tive amigos, tive
colegas. Estiveram comigo nos estudos, trabalhos em equipe para
as aulas, para as disciplinas, mas foi só. Não houve mais. Havia
coleguismo, mas não havia amizade.
Bom, a princípio, tinha uma senhora mais velha. A mais velha de
todos. Maria Gracia... me lembro até do nome. Nos fizemos
bastante amigos. Conversávamos muito. Ela, além disso, me trazia
muito para casa, me apanhava aqui em casa para a Universidade,
me trazia da Universidade pra casa... mas, amigos, amigos, eu não
tive.
Pergunto se no Instituto teve amigos ou tem esse mesmo sentimento:
Pois, eu acho que é o mesmo sentimento. Exceto no Colégio, do
Instituto em diante, sempre tive o mesmo sentimento. De andar
muito só, não? De ir muito só, de não ter verdadeiros amigos.
E agora é a mesma coisa. Eu acho que isso me condicionou por
toda a vida. Ou seja, o fato de não ter amigos, somente colegas.
Isso aconteceu mais ainda na Universidade, onde cada um é
150
independente. Cada um vai por si. E eu ia muito só. Eu ia e voltava
pra casa só. Ia e voltava sempre só. Sempre andava só. Quando
havia uma festa fora ou tal, ou se a festa era dentro da faculdade...
Eu também tenho um caráter muito especial... sou muito tranqüilo,
muito de casa, não gosto de sair à noite... exceto as situações muito
controladas... hoje, sexta-feira, os jovens saem. E aos sábados,
igual. Mas... eu não gosto. E, claro, entre o caráter por um lado, os
preconceitos com a síndrome de Down por outro, tudo isso...
juntando tudo isso... é duro, é realmente duro. Os professores
também se davam conta, na Universidade, Miguel e meus pais
também o sabiam, pois é claro, é duro, estar aí só, uma pessoa
muito só na biblioteca... muito metido na biblioteca. Eu adoro os
anuários... A verdade é que foi um momento para mim, muito duro,
nesse sentido, sempre só, sem ter amigos... Claro, quando acabei
Magistério, quando acabei Educação Especial, se notou. Se notou
porque os colegas que eu tive por três anos... quando acabei
Magistério, houve um corte, ou seja, perdi o contato com todos os
colegas. Se cortou, todos meus colegas de Magistério
desapareceram... Não tive a sensação de estar, de ser um
universitário. Em torno da Universidade há uma vida muito
peculiar, né? de saídas, de festas... Eu não participei da vida
universitária. Era isso! Ia às aulas e voltava.
Pergunto: Nunca uma saída, um café, um cinema, nada?
É muito curioso, porque com os companheiros de classe nunca,
jamais! Havia três garotas italianas, que vieram pelo Erasmus
53
,
para estudar, eram alunas de Miguel. Elas vinham, na sua origem,
para dar-me aulas de italiano. Eu naquela época viajava muito à
Itália, eu gostava da Itália, do italiano, da língua italiana, de fato
eu me entendo bastante bem, falando italiano. Falando, não
estudando em profundidade, né? Mas... Vinham para dar-me aula
53
Programa de intercâmbio para universitários da União Européia.
151
de italiano. Mas, aula, aula, [risos] começamos a sair, ir ao
cinema... me convidavam para jantar... tudo isso fora da
Universidade... Ou seja, todas as minhas saídas... não eram com
meus colegas... nunca.
Pergunto sobre as práticas/ estágio de Magistério:
Aí, tu acabas de abrir outra frente muito interessante, porque,... Eu
escolhi um centro que naquela época então era pioneiro em turmas
de integração. Que era o Colégio La Plata. “Concertado”
54
,
muito pioneiro no tema de integração. O primeiro Colégio
Instituto, em que o Projeto Roma se aplicou. Anos 90, estamos nos
anos 90. Uma professora super simpática, genial... muito
influenciada pelas idéias do Projeto Roma, muito progressista...
ela já era progressista, totalmente... uma feminista, totalmente
convencida. O estágio foi realmente legal, lindo. Aqueles
companheiros, aqueles garotos... a primeira vez que me
apresentaram aos garotos, quando comecei a prática, foi uma
surpresa também, porque... nunca esperavam um síndrome de
Down como professor.
Claro, aquilo foi uma surpresa para eles. Havia dois garotos com
síndrome de Down do Projeto Roma dentro do Instituto, mas eram
alunos. Os alunos [da turma do estágio] se aproximaram muito de
mim. Era uma novidade. Gostavam muito de mim. E eu deles. E
fazíamos de tudo. Esse Colégio era muito inovador, os
planejamentos e sua forma de avaliar, porque... eles faziam auto-
avaliações, as crianças se auto-avaliavam. Os professores apenas
escreviam a nota, o que eles diziam, o que diziam os garotos. Foi
muito curioso isso de anotar, porque em todas as práticas
estávamos os dois, a professora e eu, passando a auto-avaliação. E
a fila maior era a minha.
54
Escola privada que recebe subvenção pública.
152
A professora me dizia: “Que bem que você está no trabalho!” A
fila maior era a minha. Todos queriam estar comigo, todos
queriam... foi ótimo... ótimo [suspiro] Inclusive no final, também foi
muito emocionante. O final foi super emocionante. Claro, o estágio
termina, tem um momento que termina... Termina quase no final do
curso. Você vê, claro, quando chegou o final do estágio, eu disse
aos garotos: Olha, eu tenho que ir... já não volto mais... a verdade
é que causou uma grande tristeza entre os garotos. E o último dia
que eu fui... foi tremendo... foi espetacular, com os companheiros...
[começa a chorar] Oh, deus... Foi tremendo, porque... todos tinham
uma grande tristeza por... eu porque me ia... Todos chorando,...
[chora mais] porque eu me ia. Adolescentes! Todos chorando
porque eu me ia... Eu chorei, o que eu chorei naquele ato de
despedida! ... [mais choro] A professora, também. Todo mundo
chorando. [gargalhadas com choro] Me encheram de presentes, me
deram presentes, bom... foi realmente tremendo! Me deram um
poema, ... Quando eu vim pra casa, vim carregado de presentes e
com os olhos... vermelhos, de tanto chorar. [chorando, muito
emocionado] A verdade é que, essa prática foi para mim muito
importante, muito importante porque me dei conta que meu futuro
era o ensino. Eu era tão querido pelos adolescentes que... me dei
conta que eu... servia para isso [chorando outra vez] que gostava,
não? Tu sabes...Que eu servia para... que Magistério é minha
vocação, não?
Trabalho e Família
A entrevista sobre estes dois temas aconteceu em uma sala na Universidade.
León já havia contado sobre sua trajetória escolar nas entrevistas anteriores, em sua casa.
Lá, a mãe sempre estava por perto, em alguns momentos entrava na sala para oferecer um
chá ou um café, comentava alguma coisa, ou seja, entrava na conversa. Por isso, considerei
que mudar o local da entrevista poderia contribuir para que León estivesse mais à vontade
para falar, tanto sobre sua família quanto sobre o seu trabalho.
153
No início desta entrevista, eu comentei com León que havia dois temas que me
interessavam e sobre os quais ele ainda não havia falado: família e trabalho. Esclareci que
ele decidiria sobre o que falaria e mesmo sobre se falaria ou não. Ele escolheu iniciar
falando sobre o trabalho. Sua narrativa assume um tom mais formal, diferente do tom nas
entrevistas anteriores. Seria o ambiente acadêmico? Penso que sim. Ali, o contexto era
outro. Uma sala confortável, onde estávamos sós, em meio ao silêncio, e León fala dos
fatos mesclando um pouco seus sentimentos e opiniões sobre seus três anos de trabalho.
Nesta entrevista aparece também a questão dos conflitos entre o Prof. Miguel e a família de
León.
Meu primeiro trabalho foi na área de bem-estar social, da
Prefeitura. Contrataram-me para... como posso te explicar... para
explicar às empresas acerca das vantagens fiscais, econômicas, e
tal, de contratar pessoas com deficiência.Isso se chama “técnico
insertor”, certo? Para isso me contrataram, mas, pouco a pouco
foi mudando um pouco,... os objetivos do meu trabalho. Então,
digamos que a relação inicial com meu trabalho, começou um
pouquinho... a relação com o trabalho... eu esperava mais. Porque
foram mudando os objetivos do meu trabalho, ou seja, me
contrataram para essa função. Depois, passei para a área de bem-
estar social, mas como sensibilizador, ou seja, eu atuava dentro de
uma equipe, na área de deficiência, e o que fazia era colaborar
com a área de infância em todas as atividades onde se podiam
incluir as pessoas com deficiência. Em temas educativos ou em
temas de lazer, por exemplo. A verdade é que eu gostei, ou seja,
essa primeira parte eu gostei, porque... A área de infância é uma
área com muita iniciativa, ... e a responsável das pessoas com
deficiência e eu planejávamos as atividades... a inclusão das
pessoas com deficiência nestas atividades. Foi muito interessante,
de verdade. Digamos, como que supriu um pouco o fracasso da
primeira idéia. Essa época foi uma época muito boa, muito boa...
fiz muitas coisas, fazíamos muitíssimas atividades, íamos em
excursão, ... ou, seja, participávamos de tudo que era da área de
infância, não? Eu gostei muito. Eu estive ali, precisamente, desde
154
fevereiro, até o mês de setembro. Em setembro desse mesmo ano,
de 2003, o diretor da área de bem-estar social disse... que esse não
deveria ser meu trabalho. Ele seguia pensando que eu poderia ser
“técnico insertor”. E me mudou de trabalho. Para um projeto que
seria iniciado, de emprego com pessoas com risco de
marginalização, digamos assim. Que se chamava Jábegas... que é
um barco daqui. Então, chamaram ‘Jábegas para emprego’.
Também com o mesmo objetivo, não? Eu tinha que explicar aos
empresários... certo? Mas, não se cumpriu também. Pouco a pouco
foi se convertendo em uma ajuda um pouquinho vaga, um
pouquinho difusa, à equipe psicopedagógica que coordenava todo
o projeto. E ficou nisso: uma ajuda para a equipe. Como assessor
da equipe. E a verdade é que, já não comecei no mesmo objetivo.
Então, fazia outra coisa diferente do que devia fazer. E isso
condicionou muito a relação com o trabalho, porque... claro, me
colocavam um objetivo, muito lindo, muito ambicioso e tal, mas
depois não faço nada do que se tinha projetado. E isso frustra, isso
frustra uma pessoa, não? Tu vais fazer, mas agora tu não vais
fazer. Em que ficamos? E isso te condiciona. Então, esse projeto,
“Jábegas para o emprego”, durou até maio de 2004. A verdade é
que, como experiência, sim, me serviu. De verdade. Como
experiência para saber como é o mundo do trabalho. Isso sim me
serviu. Ou seja, desde o ponto de vista relacional, sim, me serviu,...
desde o ponto de vista da experiência, sim, me serviu trabalhar,
não? Levantar-se cedo [risos]... todas essas experiências, é preciso
vivê-las, não? Me serviu como experiência, para conhecer outras
pessoas, para viver outra situação, mas, claro, o problema é que...
os problemas que encontrei em meu trabalho foram, por um lado, o
não cumprir os objetivos que me tinham colocado, por um lado.
Depois, levar o estudo e o trabalho juntos... porque eu estava aqui
na Universidade, já estava com PsicoPedagogia. Eu comecei no
curso 99/2000, e comecei a trabalhar em 2003.
Como experiência me serviu, para conhecer outras pessoas
também me serviu, mas, claro, a questão de não fazer o que me
155
propuseram, a questão de levar o estudo e o trabalho juntos. Isso
custa muito. Porque, estudar e trabalhar ao mesmo tempo é
complicado. De fato, meu rendimento nos estudos, caiu. Porque,
claro, eu me levantava muito cedo. Levantava às 6 e quinze da
manhã, para entrar às 8. De 8 a 3 da tarde, o horário do
funcionalismo público espanhol. E, claro, já quando saía, ou ia a
minha casa ou ia à faculdade. Eu tinha que estar às 4 ou 5 horas
na faculdade. Morto... Muito cansado, muito cansado. Essa
atividade tão frenética, todos os dias, pois claro, por isso é que
Miguel me disse, e em parte é verdade, que minha qualidade de
vida caiu, ou seja, essas atividades, essas tantas horas de estudo,
de trabalho, levantar-se tão cedo, chegar em casa muito cansado,
pois claro, me tirava muito tempo de... não tinha tempo para fazer
outras coisas, não? Ir a concertos, muitas coisas. Claro, a
qualidade de vida caiu, o rendimento nos estudos caiu, e além
disso não estava fazendo o que me diziam que deveria fazer. Isso,
essas três coisas, condicionaram muito toda minha experiência
trabalhista, certo? Trabalhei nesse Projeto “Jábegas para o
emprego”, até maio de 2004. A partir daí, começa o Projeto
Redes.... É o mesmo, é a mesma idéia, não? E, outra vez, com um
cargo muito... com um nome muito assim, muito vistoso, que se
chama “preparador trabalhista para as pessoas com deficiência”.
[com ar de pompa].
Mais uma vez, não faço nada de preparador trabalhista. Me
transformei em um... aqui chamamos burocrata. Ou seja, uma
pessoa que está lidando com muita papelada. Como a cidade está
dividida por distritos, e em cada um há um técnico insertor... Pois,
claro, mandam muitos papéis. E quem organizava toda a
papelada? Eu, o “preparador trabalhista para pessoas com
deficiência”. [fala com ironia] Então, claro, volto a repetir o
mesmo erro, não? Volto a não fazer o que me tinham dito, me
transformo em um burocrata, o que volta a gerar em mim uma
insatisfação muito grande. E eu pensei: “bom, me puseram como
um vaso, um enfeite, em meu trabalho. Porque, é preciso lembrar-
156
se que quando eu entrei no trabalho, em 2003, foi ano eleitoral.
Houve eleições municipais aqui. Então, claro, a gente pensa: “Me
terão posto a trabalhar para colocar uma medalha às minhas
custas e me tiveram como um vaso para não fazer nada do que
tinham dito que ia fazer?” Esse sentimento em mim aflorou, não?
Pergunto a León quando ele se deu conta de tudo isso.
Eu me dei conta disso nesse ano, sobretudo. Eu comecei a notar no
primeiro projeto. Porque, na verdade eu não estava fazendo o que
devia fazer. Estava à toa! Os chefes não me davam nada para
fazer, não? E, claro, se gerou um pouco de... “que estou fazendo
aqui?” Levei um tempo até compreendê-lo, não? Então, claro,
quando chega o segundo projeto, tu voltas a tropeçar na mesma
pedra. Além disso, sou um personagem público, aparecendo em
muitos meios de comunicação... e a todos os meios de comunicação
digo o que não estou fazendo, pois, também se gera o sentimento
que... estou mentindo aos meios de comunicação. Ou seja, estou
dizendo o que não estou fazendo. Claro, porque eu lhes dizia: “Eu
sou um preparador trabalhista para pessoas com deficiência” [em
tom irônico]... e isso não existe [risos]. Claro, em teoria... era para
fazer, mas... não se fez! Esse sentimento... que estou mentindo aos
meios de comunicação, quando estou dizendo o que não estou
fazendo... assim, claro, tudo isso condicionou minha época de
trabalho.
Mas, a partir do segundo projeto, um irmão meu que é assim
mais...como te diria, que é assim mais prático, mais ligado ao
econômico, ao trabalhista, me pergunta:“Você está insatisfeito
com o trabalho? Você está dizendo? Você fala claro? Você diz isso
para eles?”... ou seja, esteve me colocando que eu tinha que pedir
a meus chefes que fizesse o que tinha que estar fazendo. Veja, foi
uma voz discordante em minha família, a única voz discordante.
Meu irmão, o segundo. Porque dizia isso, o que estava pensando.
Que eu não estava fazendo o que devia fazer e que eu merecia mais
157
do que estava fazendo. Claro, em minha família isso gerou um
pouco de debate, não? Porque meus pais são muito mais clássicos,
são mais velhos, e pensam o trabalhar por trabalhar. Tu sabes o
que quero dizer, não? Ou seja, para meus pais o importante é que
eu estava trabalhando. Não importa o que tu faças, não importa o
que tu sentes, não importa se assim tu acabas ou não teu curso
universitário, isso não importa. Importa é que estava trabalhando.
Mas é doloroso... exceto meu irmão, que pensava tudo o contrário.
Eu estava já um pouco... um pouco... como que acostumado à
dinâmica do trabalho, e também não sabia como dizê-lo a meus
chefes. E sei que... podem me dizer muitas coisas, mas, claro,
antes, minha dignidade... Então, disse a meu irmão: “Isso está
muito bem, mas não sei se posso dizê-lo a meu chefe, não?”
Porque ele dizia: “Tu tens que falar com teus chefes, porque tu
tens que pedir mais, porque tu...” claro, e como o faço? Porque, é
difícil,... uma coisa é falar com meu irmão... outro discurso é com
meus chefes.
Claro, estava trabalhando. Também não podia perder o trabalho
por uma discussão. Uma situação difícil. De verdade. Eu, como
dizer a meu chefe que ele estava abusando de mim,... Eu estava
começando a trabalhar. Não posso dizer a meu chefe: “Meu chefe,
[risos] o que você me pediu e nada é o mesmo.” [risos]
Pois, claro, estava aí em um triplo jogo. Primeiro, meu irmão que
dizia isso. Por outro, Miguel que... que dizia que eu estava
perdendo qualidade de vida com o trabalho. E terceiro, meus pais,
que é o trabalho pelo trabalho. Isso é o que condicionou minha
experiência trabalhista. É um fogo cruzado entre minha família e
Miguel. Isso é complicado. Ainda bem que eu tenho um chip [risos]
que é muito móvel [risos]. Claro, aprendo a conviver com essas
coisas. Muitas vezes... muitas vezes, quando estou com Miguel,
penso que sim, ele tem razão... Mas, quando entro em minha casa,
mudo o chip. Inclusive quando meus pais... falam de Miguel...
passo eu também a desacreditar em Miguel, mudando totalmente o
chip.
158
Muitas vezes me custa dizer o que penso... Há um jogo familiar. De
modo que eu não quero romper com a família, né? Então, claro, é
complicado, porque... aí acabo de falar de uma faceta minha muito
importante agora porque... eu com minha família não posso
defender Miguel...
Comento que não se trata de defender Miguel, mas de defender a ele mesmo
como alguém competente, como alguém que tem suas opiniões, seus pensamentos.
Não posso pensar minhas idéias, minhas opiniões porque em
seguida vêm meus pais, todos, minha família em geral, pensam que
não são minhas idéias Pensam que são as idéias de Miguel López
Melero. E que estou influenciado por ele. E com meus irmãos,
acontece o mesmo. Eu acho que a mentalidade dos meus pais é
uma peça chave na família. Então, claro, o que pensam meus pais,
costuma estender-se a meus irmãos. Inclusive a meu tio
55
. Então,...
criou-se em minha casa, em minha família... uma má imagem de
Miguel.... uma imagem de que... ele me influencia, me manipula,
etc, etc.
Pergunto: Como eles vêem a tua decisão de seguir os estudos? O fato de
estares aqui, na Universidade, em contato com Miguel, com suas idéias...
- Lhes parece bem e mal... Bem, porque avanço. Mal porque estou em contato
com Miguel. No entanto, é muito curioso, porque minha família... Minha família pensa mal
de Miguel, mas quando há algum problema acadêmico, a quem meus pais chamam? A
Miguel.
Eu pondero, dizendo: Não é que pensem mal, é que pensam diferente.
León concorda, dizendo que eles têm idéias muito clássicas.
Inclusive meus irmãos, que são jovens, também têm essas idéias
clássicas, não? São todos muito tradicionais. Claro, essa idéia
tradicional do trabalho pelo trabalho, que um fim justifica os
meios, que.. essas idéias... Então, estou no meio desses dois
55
Irmão do pai, 84 anos, vive perto de León.
159
discursos, ou seja, o progressista de Miguel e o tradicional da
minha casa. Estou no meio dos dois discursos. [...] Além disso,
minha família, por tradicional que é, muitas vezes pensa que a
influência de Miguel na família, é má.
E eu pergunto: Como te parece que tua família te vê?
León responde, com um suspiro:
É curioso, é difícil, porque eles dizem que me vêem como pessoa,
como uma pessoa normal, e tal... Mas às vezes eu penso: “Será ou
não será?” Porque claro, agora mesmo, estou te contando essas
coisas, mas tenho que dizer tudo ao contrário a minha família,
tudo o contrário do que estou dizendo aqui... não lhes digo tudo o
que estou dizendo aqui. Porque claro, se eles vêem que tenho uma
opinião má sobre eles... [risos]
Comento: Eles interpretam como se tu estivesses falando mal, mas não é isso.
Tu estás falando de ti. De como tu vês tua família, de teus sentimentos. Não estamos aqui
julgando se são bons ou se são maus. Isso que me contas é tua história, do teu ponto de
vista, é a tua maneira de ver o mundo, as pessoas...
León concorda e segue:
E eu penso: “me tratarão como pessoa, me tratarão como uma
pessoa normal ou me tratarão como um síndrome de Down?”
Quando eu era menor, claro, não tinha essa consciência que tenho
agora... Quando tu és pequeno... nos parece que os pais são os
ídolos. Os melhores do mundo. Mas, quando a gente cresce, já
pára para analisar as coisas, já não é o mesmo. Claro, tu já vês
coisas que não vias antes. Por experiências, não? Mesmo que
sejam tolices, não? Mas,... te condicionam. Agora vou te explicar.
Por exemplo, pode ser uma bobagem, mas, por exemplo, eu gosto
de música moderna. Eu gosto de comprar discos de música
moderna. E, ... que acontece? Quem compra os discos pra mim?
Ou seja, quem me ajuda a comprar os discos? Meu tio! E o faço
160
quando meus pais estão fora da cidade. Veja, é um fato muito tolo,
mas marca, porque... bom, porque tenho que comprar a música
que eu gosto às escondidas. Meus pais gostam da música clássica,
a ópera, meus pais, meus irmãos... Eu gosto da música moderna,
eu gosto dos “Cuarenta Principales”
56
, “Operación Triunfo”
57
.
Pois, tenho uma sensação, digamos assim, que sou a ovelha negra
da família.
Quando eu era mais jovem, ia muito a teatro, apreciava a música
clássica. Meus pais adoravam isso. Pois, claro, chega um
momento em que a gente tem que dizer... do que a gente gosta.
Poder escolher meus gostos próprios. Eu escolhi... vou escutar
música moderna, ou escutar os Cuarenta Principales ou ver
Operación Triunfo... fica um pouco a sensação de ovelha negra da
família. Ou porque vejo futebol... em minha casa ninguém gosta
de futebol. Eu gosto. E já fico com a sensação que porque eu gosto
de futebol, sou a ovelha negra da família. Ou porque eu gosto das
séries de televisão, sou a ovelha negra da família. Então, [risos]
parece que não, parece uma bobagem, mas essa sensação ocorre,
não? Essa sensação tu tens, na convivência diária. De fato, minha
mãe me disse por ativa e por passiva: “Antes tu ias muito ao
teatro e agora não, tu estás te infantilizando”... ou seja... porque
não vou mais ao teatro, porque escuto aos Cuarenta Principales...
ou porque vejo Operación Triunfo, ou tal... Ela tem uma posição
muito tradicional acerca da cultura, que a música clássica é o
único que dá cultura, que os demais não são cultura, mas são
tolices. [risos] Claro, isso é cultura para as pessoas mais velhas.
Voltando à pergunta: “Estão me tratando como uma pessoa? Ou
me estão tratando como um deficiente?” Tenho essa sensação...
essa dúvida... Miguel o tem muito claro, diz que eles costumam me
tratar como um deficiente. Eu estou na dúvida. Claro, a verdade é
que eu me paro a pensar... e a conta bancária... eu não posso ter
56
Emissora de rádio, uma das mais populares.
57
Programa no formato reality show, que tem por objetivo formar novos cantores, equivalente ao FAMA, no
Brasil, que era produzido pela Rede Globo.
161
uma conta própria. Estamos os três... Meu pai, minha mãe e eu.
Não posso ter uma conta sozinho...
Fiquei surpresa, e pergunto como não tinha uma conta se ele trabalhou por três
anos?
- Sim, eu tenho, mas na cartilha da conta, estamos meu pai, minha mãe e eu.
- Por que? Se tu tens 32 anos, não?
- Aí está a questão! Tenho 32. Miguel me pergunta o mesmo.
- Eu acho que tu tens capacidade para administrar tua conta, ou não?
- Claro! Uma vez me disse minha mãe, sobre a conta: “Quem disse isso,
Miguel? Quem é Miguel para se meter na vida familiar?” Claro, muitas vezes não sei se
meus pais estão pensando em que sou pessoa ou em que sou um deficiente.
- Sim. E, tu te sentes em condições de administrar tua vida?
Essa é uma pergunta realmente boa, de verdade. Eu cada vez me
vejo mais capaz de fazer mais coisas, entre elas administrar uma
conta. Eu sim me vejo capaz de fazê-lo. O que acontece é que...
essa dualidade, de quando pegas a cartilha – meu nome e dos
meus pais, ai, por deus! te cria esse dilema: são detalhes que...,
são detalhes que... meus pais me vêem como uma pessoa, ou como
deficiente?Além disso, eu não posso sequer expressar meus
sentimentos por isso, porque acham que não são meus
sentimentos, são as idéias de Miguel. Pensam que eu não posso ter
opiniões próprias. E... [risos] Claro, sempre há influência.
Eu acho que em minha família estão um pouco obsedados com
Miguel. Eu já estou um pouquinho farto dessa obsessão. [silêncio]
Mas, não posso falar sobre isso. Meus pais... [silêncio] Por um
lado querem que eu venha à faculdade, mas por outro temem que
me encontre com Miguel. [suspiro] Miguel quer que eu venha ao
Projeto Roma. [silêncio]
Eu então pergunto: e tu, tens vontade de vir, de participar?
162
Eu estou em uma dinâmica pessoal que já... que me empurra a sair
do Projeto Roma, porque... eu já levo muitos anos com o Projeto.
Desde que tinha 15 anos. Claro, haverá um momento em que eu
tenha que sair. Claro, no fundo, Miguel, mesmo que pense de
forma um pouco mais progressista, também pensa como meus pais.
- Ah, sim, te parece?
Sim! No fundo, sim! [com ênfase] Porque... Miguel quer que me
independentize dos meus pais, mas no fundo não quer que me
independentize dele! [fala forte]. Quer que eu seja do Projeto
Roma, quer que... mantenha o vínculo com ele. Então, claro,
também tem essa tessitura, digo, se me independentizo de um, por
que não vou me independentizar do outro? [risos] Não posso
estar... se sou livre, sou livre.
Claro, entendo. Me diz uma coisa, León, como tu vês o teu futuro? Por
exemplo, queres terminar teu curso universitário, para trabalhar como professor?
Para trabalhar como profissional, claro que sim. Eu sabia
perfeitamente que meus trabalhos eram trabalhos pontuais,
trabalhos temporários, projetos com início, meio e fim. Claro, o
sonho é ter uma carreira profissional extensa e que não pare, não.
Então, claro, para isso é preciso terminar o curso de
psicopedagogia. Agora tenho um momento muito mais propício
para poder estudar. Então, claro, quero dedicar-me ao estudo,
avançar esse ano no estudo. Até que saia uma oferta.
- Tu pensas em fazer um concurso?
- Sim, mas é muito complicado.
- Por que?
- Porque... a questão é se um síndrome de... se um deficiente mental pode fazer
um concurso para professor.
- Tu te consideras um deficiente mental?
163
- Eu, não, mas a sociedade sim me considera um deficiente mental, porque
consideram a síndrome de Down como uma deficiência mental. Então, claro, um deficiente
mental, para as leis, não pode fazer concurso.
- Mas, se tu tens um título... Não pode?
- Mas prevalece mais a síndrome de Down que o título.
- Ah, sim? Mas, se tu tens teu diploma, e queres te inscrever, não pode?
- Mas, aí está, aqui temos um refrão que diz: “Aunque la mona se vista de
seda, mona se queda.”
58
Eu posso ter um título, dez, vinte, para a sociedade, sigo sendo
um deficiente mental.
- Isso eu entendo, mas legalmente tu tens o direito de fazê-lo. Ou não?
- Pois, legalmente, há inconvenientes, obstáculos legais.
- Há? Qual, por exemplo? Há algo... um edital, há normas para o concurso,
sim?
- Há normas.
- E há algo dizendo que uma pessoa com síndrome de Down não pode fazer?
- É curioso porque na constituição espanhola, quando fala do acesso ao
funcionalismo, não dizem taxativamente, ou seja, não dizem com essas palavras, não
dizem.
- Não dizem que é proibido.
- Mas o proíbem.
- Como o proíbem?
- Não dizem “os síndrome de Down não podem ser funcionários”, não. Assim
não o dizem. Mas dizem: o acesso ao conjunto de funcionários... muito bem. Eu o li.
Diz que, para que seja funcionário depende da capacidade que tenha essa
pessoa, com o qual estão dizendo que se tu tens uma deficiência, não pode.
Mas, se tu tens um diploma de professor...
- Isso é a interpretação contrária.
- Com curso universitário, se tu terminas Psicopedagogia, como vão te dizer
que és incapaz?
- Certo, é totalmente certo.
- Pensa. Terás que argumentar por aí.
58
A tradução literal é: “Mesmo vestida de seda, a macaca continua sendo macaca”.
164
- Sim, é certo. É preciso tentar sem dúvida, é preciso tentar porque é uma
ambigüidade muito grande, não?
- É isso que eu quero saber: tu queres realmente isso?
- Claro que quero. Eu, desde que tomei consciência que era síndrome de
Down, e que... era como era... eu sempre senti muita vontade de romper as regras.
Sempre, e sempre vou ter. Ou seja, barreira de espinhos, eu quero rompê-las.
165
5 TECENDO ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DAS HISTÓRIAS
A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto
em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua
altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi,
estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a
interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras
palavras: “Que bela paisagem, que magnífico panorama,
que deslumbrante ponto de vista!”
(José Saramago - As pequenas memórias)
Ter síndrome de Down e constituir-se como sujeito adulto, sem o diagnóstico
de deficiência mental, certamente é o aspecto que mais chama a atenção nas histórias de
Ivan, Paula e León. Tal aspecto expressa uma possibilidade de percurso distinto do que
estava previsto para esses sujeitos. Os três narradores, cada qual com seu estilo singular de
viver e de narrar, evocam suas lembranças carregadas de significados e sentidos,
provocando em quem os escuta momentos de surpresa e, por que não dizer, de impactos.
É interessante observar características similares e outras tantas diferentes nas
três histórias. A característica similar mais evidente é a síndrome de Down. Porém, cada
sujeito teve uma trajetória peculiar de desenvolvimento, que se construiu na trama de
relações estabelecidas ao longo da sua vida. Então, a síndrome não definiu suas trajetórias.
Mas o significado da síndrome para cada um, as lutas empreendidas pelas famílias, os
embates na escola e no trabalho, tudo isso imprimiu marcas em suas vidas.
Buscando uma organização para analisar e discutir as histórias, reportei-me às
categorias iniciais de análise, definidas no roteiro para as entrevistas (anexo 2): as relações
com a família, amigos, escola e trabalho. Os sujeitos construíram suas narrativas a partir
dessas categorias, mas outras foram emergindo durante o processo narrativo: as
dificuldades, os apoios, os preconceitos, as lutas, a concepção de deficiência mental, os
significados e sentidos da síndrome de Down.
Retornando aos objetivos da pesquisa, e atenta aos conteúdos articulados pelos
sujeitos, defini os seguintes tópicos para a análise e discussão das histórias:
a ruptura com os prognósticos negativos e a construção de outras
possibilidades de desenvolvimento;
a escolarização na escola comum;
a imagem que cada sujeito mostra de si; e
vivências no mundo do trabalho
166
Em cada um desses tópicos estão presentes as três histórias, considerando a
existência de similaridades e peculiaridades. Em relação a alguns aspectos, foi possível
estabelecer paralelos entre elas. Ao longo do capítulo, vão sendo puxados outros fios que
permitem tecer tramas de reflexões que, por vezes, ultrapassam a riqueza das histórias aqui
apresentadas.
Um desses fios, presente nas tramas e nos dramas das três histórias, são as
redes de relações que foram se constituindo como redes de apoio nas vidas desses sujeitos.
Sem dúvida, estas foram fundamentais para os processos de ruptura, bem como para a
consolidação dos novos caminhos a serem trilhados. Por isso, ao longo do texto, este será
um dos fios mais puxados, tanto para compreender a dinâmica de cada história quanto para
tecer as reflexões que elas podem proporcionar.
5.1 A ruptura com os prognósticos negativos e a construção de outras possibilidades
de desenvolvimento
Os sujeitos da pesquisa têm uma condição sócio-econômica que favoreceu o
seu desenvolvimento. O investimento feito pelas famílias passa não só pela condição
econômica, mas pelo envolvimento de familiares e de outras pessoas, que constituíram
redes de apoios necessários a cada sujeito. É importante lembrar que há muitas pessoas
com síndrome de Down que, mesmo com condições sócio-econômicas favoráveis, se
desenvolvem dentro do estereótipo clássico da síndrome. A justificativa para as
dificuldades ainda tem sido a síndrome. Como se o desenvolvimento abaixo do padrão, os
atrasos, a deficiência mental, se devessem à condição orgânica. A discussão proposta nesta
investigação vai contra essa concepção organicista da deficiência. Ou seja, mesmo na
presença de alguma dificuldade significativa - os aspectos primários da deficiência, como
se refere Vigotski - o desenvolvimento humano se dá a partir das interações vividas pelo
sujeito nos diferentes contextos.
Então, as crianças com síndrome de Down de famílias com uma condição
sócio-econômica desfavorável, são duplamente discriminadas: por terem a síndrome e por
serem pobres, sem acesso a um investimento mínimo necessário para que tenham as
oportunidades de desenvolvimento a que toda criança tem direito. Na perspectiva
Vigotskiana, essas crianças são prejudicadas inicialmente pelos aspectos primários
determinados pela síndrome (hipotonia muscular e outras alterações estruturais e/ou
167
funcionais significativas nos diferentes sistemas, particularmente no sistema nervoso
central). Muitos desses aspectos se expressam como dificuldades ou atrasos no
desenvolvimento que, através dos processos de compensação social, fundamentais na
constituição do sujeito, podem ser superados. Na ausência ou insuficiência de movimentos
que viabilizem esses processos de compensação, emergem os aspectos secundários da
síndrome, como as dificuldades motoras, de expressão oral e de seguir regras, posturas
corporais inadequadas, e todo o conjunto de limitações presentes no conceito de
deficiência mental. Embora ainda compreendidos como decorrências naturais da alteração
cromossômica, é importante lembrar que muitos destes aspectos secundários são
construídos a partir da significação social que é dada à síndrome de Down. Um exemplo
dessa compreensão equivocada são as situações vividas por León quando começou a pegar
ônibus sozinho para ir e voltar da escola: “quando a gente vai só, podem acontecer
muitíssimas situações, de pessoas que estavam a meu lado e diziam: “Está perdido?” E eu:
“Não, eu vou a minha casa”. Me perguntavam se estava perdido, me perguntavam se
estava só, se necessitava de ajuda... Eu não notava o preconceito, mas, ainda há muitas
coisas... desse tipo, não?”
Analisando as três histórias, procuro momentos, situações, características dos
sujeitos e de seus grupos mais próximos que apontem como foi possível que eles
percorressem uma trajetória de desenvolvimento tão diferente da tradicionalmente
esperada para pessoas com síndrome de Down. Os três possuem uma linguagem clara,
riqueza de vocabulário e de recursos de expressão oral. Os três se escolarizaram no ensino
comum e chegaram à Universidade. Ivan e Paula referem-se a longos períodos de
acompanhamento fonoaudiológico e fisioterápico. León fala muito da escola e dos apoios
que teve, mas nunca mencionou fonoaudiologia ou fisioterapia, da mesma forma como
nunca se referiu a dificuldades na fala ou no desenvolvimento motor.
Um dos aspectos que chama a atenção nas três histórias é a confiança
depositada em cada sujeito, por parte da família e de amigos, no caso de Ivan e Paula, e por
parte dos membros do Projeto Roma no caso de León. Os três sujeitos dão destaque aos
apoios recebidos ao longo de sua trajetória. Enquanto León focaliza os apoios recebidos na
escola e na Universidade, Ivan e Paula trazem a presença marcante da família e também de
amigos que, de alguma forma, incentivaram sua permanência na escola, ou no caso de
Ivan, os amigos da família que acreditaram na sua capacidade de trabalho e contribuíram
para o seu acesso tanto ao emprego no Educandário quanto no Supermercado.
168
Ou seja, foram construídas expectativas diferentes, podendo-se dizer até
contrárias ao que se esperava inicialmente de cada um. Aqui, entramos na questão dos
prognósticos que havia para cada um deles. Nas histórias de pessoas com síndrome de
Down, o prognóstico mais comum é o de deficiência mental, estando presente, embora não
explicitamente, nas três histórias. Vejamos o que estava previsto para cada um deles.
Paula é quem traz com mais evidência a presença de prognósticos muito ruins
por parte de médicos: “quando eu nasci, os médicos diziam: ‘Bah, não vai caminhar, vai demorar
pra caminhar, ela não vai falar, vai demorar pra falar’”.
Por outro lado, em sua narrativa
aparece também o esforço da família para investir em movimentos que possibilitassem
uma outra trajetória. Tais movimentos são exemplos dos chamados processos de
compensação social: onde havia dificuldades e limites, se colocavam também as forças
para sua superação. Parece-me que as forças para a compensação, no caso de Paula, foram
dadas, essencialmente, pelo apoio do grupo familiar.
No caso de León, não aparece explicitamente a presença de prognósticos ruins,
mas a presença de preconceitos por parte de professores, ao lado da confiança por parte dos
profissionais integrantes do Projeto Roma. León é tido como um dos ícones do Prometo e
representa a possibilidade concreta de superação de limites, a possibilidade de construir um
modelo educativo que viabilize o desenvolvimento de todos os alunos. Junto com sua
história “de sucesso”, ele traz também o sentimento de que sua família o considera como
um deficiente mental com autonomia limitada, necessitando da tutela familiar. E expressa
claramente tal sentimento na última entrevista, quando, ao responder a minha pergunta:
“Como te parece que tua família te vê?” Diz, com um suspiro: “É curioso, é difícil, porque
eles dizem que me vêem como pessoa, como uma pessoa normal, e tal... Mas às vezes eu
penso: ‘Será ou não será?’” E mais adiante: “a verdade é que eu me paro a pensar... e a
conta bancária... eu não posso ter uma conta própria. Estamos os três... Meu pai, minha
mãe e eu. Não posso ter uma conta sozinho...”
León identifica com clareza que está no meio de um fogo cruzado. Ou seja,
está em meio a dois paradigmas diferentes: o paradigma “deficitário”, expresso pela
família, e o “competencial”, assumido pelo grupo do Projeto Roma.
Ainda que as intervenções do Projeto Roma tenham se constituído em apoios
necessários para León avançar em seu desenvolvimento, ele assume o papel de
protagonista e mostra o seu lugar nos processos de compensação social, por exemplo,
quando diz, ao final da última entrevista: “Eu, desde que tomei consciência que era
169
síndrome de Down, e que... era como era... eu sempre senti muita vontade de romper as
regras. Sempre, e sempre vou ter. Ou seja, barreira de espinhos, eu quero rompê-las.”
Para Ivan, foi apresentado um prognóstico muito bom, com um parecer médico
de atraso no desenvolvimento: “paciente portador de inteligência limítrofe com grau
mediano de torpeza motora com hipoacusia bilateral (condução) com traços e estigmas
genéticos, sendo que o cariótipo é normal, sem causa esclarecida”. Além disso, o médico
indicou que ele freqüentasse a escola comum. Ivan convive até hoje com dúvida em
relação a ter ou não a síndrome de Down. Porém, me parece que há mais que uma dúvida
em relação ao diagnóstico. Ivan diz que não se considera com síndrome de Down, que não
se sente com a síndrome de Down. Quando pergunto se não seria melhor dizer que tem a
síndrome e mostrar o quanto superou as dificuldades iniciais, ele responde com firmeza:
“Não, porque as pessoas não pensam assim como tu. Tu achas que eu vou dizer que tenho
Síndrome de Down? Aí mesmo é que vão duvidar da minha capacidade”. Ou seja, ele não
está negando a sua condição biológica, mas sim negando-se a encaixar-se no estereótipo da
síndrome. Sua família, da mesma forma, nunca aceitou o prognóstico de desenvolvimento
socialmente atribuído às pessoas com síndrome de Down. A fala da mãe mostra que houve
o reconhecimento das dificuldades e da necessidade de superá-las: “Ele teve todos estes
problemas, sempre teve um desenvolvimento atrasado, mas nós fizemos tudo o que era
possível. Ele teve um acompanhamento muito bom”. Junto a esse movimento, que
possibilitou processos compensatórios no desenvolvimento de Ivan, aparece a negação da
síndrome. Cabe destacar que a mãe nunca fez referência à sobrinha, filha de sua irmã, que
tem síndrome de Down, parecendo querer preservar a família do olhar preconceituoso da
sociedade. É o que sugere a fala da mãe: “Mas não é nada desta síndrome, não. O Dr.
André nos garantiu. Porque na nossa família nunca teve nada disso. Eu e meu marido
temos saúde e todos os outros filhos também.”
É importante ressaltar que Ivan, Paula e León não tiveram diagnóstico de
deficiência mental em sua trajetória, provavelmente por nunca haverem freqüentado uma
instituição de educação especial.
Ivan foi o único que teve vínculo com uma instituição pública de educação
especial, a partir dos 10 meses até os 27 anos de idade. Passo a descrever algumas das
informações obtidas em seu prontuário na Instituição, por considerar que seu percurso
pode nos ajudar a problematizar os processos de deficientização do sujeito.
Os motivos dos primeiros encaminhamentos, feitos pelo neuropediatra que
acompanhava seu desenvolvimento, não ficam claros, mas há referências à suspeita de
170
microcefalia, encefalopatia e lesão cerebral, não havendo nenhuma referência à síndrome
de Down. Aos quatro anos, foi detectada uma perda auditiva, sendo esse um dos motivos
de encaminhamento pelo neuropediatra nessa idade.
Com um ano, começou a tomar medicação anticonvulsiva. Com dois anos e
meio, há registros referindo-se a ele como uma criança de difícil avaliação, hiperativo,
hipercinético, indisciplinado e irritado. A indicação é que seja avaliado pela psiquiatria.
Com dois anos e nove meses, a medicação anticonvulsiva é trocada por outra e há a
prescrição de um antidepresivo
59
.
É importante destacar que há registros sobre a recusa da mãe aos atendimentos
pedagógicos oferecidos pela Instituição. Da mesma forma, a mãe não seguia o calendário
de acompanhamento, nem a medicação prescrita, retornando assistematicamente à
Instituição com Ivan até os nove anos, quando os pareceres dos diferentes profissionais
indicam a continuidade no ensino comum.
Ao ter acesso a essas informações, é possível identificar o movimento feito
pela família de Ivan, de buscar os recursos indicados, sem necessariamente aceitá-los. A
não-aceitação do atendimento pedagógico na instituição especial, bem como a recusa em
medicar o filho, podem ser vistas como uma transgressão ao processo de deficientização
que era anunciado. A família optou pelo vínculo com um neuropediatra que ofereceu um
bom prognóstico de desenvolvimento. E investiu na escolarização de Ivan no ensino
comum.
Ivan retornou à Instituição quando já era adulto e estava desempregado.
Mesmo sem vínculo com esta e com características bastante diferentes da clientela
comumente atendida, seu prontuário estava lá, com todos os registros do acompanhamento
que teve, permitindo que ele se matriculasse em um programa de encaminhamento ao
mercado de trabalho. Foi quando iniciou o trabalho no Supermercado, com um contrato de
emprego apoiado por três meses. O último registro constante de seu prontuário na
Instituição é: “Educando com excelente desempenho profissional, devendo, conforme
avaliação da equipe de RH da empresa ser contratado no início de dezembro.”
A família de Ivan, ao optar por uma trajetória de desenvolvimento à margem da
educação especial, recusa o paradigma deficitário, investindo na construção de outras
possibilidades de desenvolvimento para seu filho.
59
Imipramina, antidepressivo tricíclico, com inúmeros efeitos colaterais, sendo que é comum a reação de
piora dos sintomas em crianças com diagnóstico de hiperatividade.
171
Na história de León, é interessante perceber que, mesmo tendo sido aprovado
na seletividade para ingressar na Universidade e não tendo diagnóstico de deficiência
mental, ele queria entrar pela cota para pessoas com deficiência.
Eu queria entrar na Universidade pela quota [para pessoas com deficiência]. Para
poder entrar na Universidade, se pode fazer de várias formas. Pessoas com
deficiência entram por uma quota especial para deficientes, certo? Há vagas
reservadas para pessoas com deficiência. Mas, para isso, tinha que ter uma
porcentagem de deficiência, uma porcentagem muito elevada. Era 65%. Muito
alto. É que nessa porcentagem, se englobavam tanto as deficiências físicas como
intelectuais. Bom, como pode entrar na Universidade uma pessoa com 65% de
deficiência intelectual? É impossível. Ou seja, é impossível. 65% de deficiência
intelectual é muito.
Fiquei surpresa com essa fala, e mais ainda quando ele se refere a uma
avaliação de sua inteligência: “Minha porcentagem de deficiência é de 33.. 33%”. Alguma
coisa destoava da narrativa de León até então. Se ele tinha sido aprovado na seletividade,
não precisava entrar pela cota. Ele poderia escolher o curso que quisesse, de acordo com
sua nota, como os demais aprovados. Querer entrar pela cota seria reconhecer-se como
deficiente. Conversando sobre essa questão com o grupo do Projeto Roma, a situação foi
esclarecida: mesmo contrariamente aos princípios do Projeto, León havia se submetido a
uma avaliação da inteligência em um outro momento, quando sua família desejava pleitear
um auxílio para pessoas com deficiência mental. Quando estava para entrar na
Universidade, a família achava que seria melhor que ele entrasse pela cota, garantindo os
apoios que se fizessem necessários.
Aqui aparece o conflito então existente entre a família e as propostas do
Projeto Roma. Além disso, é importante destacar que nos dois momentos nos quais León
poderia “beneficiar-se” por ter um déficit intelectual, ele esteve em desvantagem, por não
atingir o percentual mínimo exigido para tal. A solução, no caso da Universidade, foi
demonstrar suas competências e contar com o apoio oferecido pelo Projeto Roma para
enfrentar as dificuldades.
5.2. A escolarização no ensino comum
Identifico a escolarização no ensino comum como um importante elemento
constitutivo desses sujeitos. A entrada de cada um deles na escola deu-se de maneira
peculiar, porém é interessante pontuar que os três iniciaram sua escolarização na educação
172
infantil. Outro aspecto importante é que Ivan e León iniciaram na idade esperada para a
entrada na educação infantil, portanto seus pares eram crianças da mesma faixa etária.
Paula iniciou com seis ou sete anos, ficando por dois anos na educação infantil.
A fala da mãe de Ivan sobre a entrada dele na escola mostra a importância do
olhar do outro, em especial quando esse outro é um profissional, nesse caso da Educação.
Havia um receio de que as freiras não fossem aceitá-lo no Colégio, mas elas a
tranqüilizaram, dizendo que “ele ia fazer tudo o que as outras crianças fizessem; que ele
era assim mais molinho, mais lento, mas que ele ia conseguir fazer tudo”. A mãe já tinha
tido um bom prognóstico do neuropediatra, e agora mais uma profissional dizia que Ivan
iria “conseguir fazer tudo”. Com certeza uma postura assim autoriza a família a confiar nas
possibilidades de desenvolvimento da criança. Quando Ivan ingressa na escola primária,
onde sua mãe havia sido professora, ele chega com a experiência da educação infantil
comum, e com a firme convicção da mãe de que ele não iria para uma escola especial: “Me
diziam que ele tinha que ir para a escola da APAE. Mas, as professoras [...] eram tudo do
meu grau de instrução, né? Além de ... quando elas iam se aposentar, pra não trabalhar,
pediam pra ir pra escola especial, pra se encostar lá, né? Aí quando eu vi aquilo, eu disse:
‘o quê? O quê? Pra lá ele não vai.’ [...] E mesmo o Dr. André disse assim que não, que ele
não precisava ir pra escola especial.”
León passou por uma instituição pequena na educação infantil, um centro
paroquial, um ambiente “muito protegido”, de acordo com sua narrativa. Suas lembranças
da entrada na escola primária mostram que havia tanto atitudes que demonstravam falta de
confiança nas suas possibilidades de aprendizagem em uma escola comum quanto atitudes
positivas, de aposta nas suas capacidades. É interessante destacar que León, em sua
narrativa, diz que já percebia os olhares diferentes e o nervosismo dos adultos com a sua
presença na escola, mas não identificava como atitudes preconceituosas. Até porque não se
percebia como uma criança essencialmente diferente das outras. Porém, a lembrança dos
olhares e do sentimento que isso gerava, são retomados quando ele se dá conta de que tinha
uma diferença significativa, de que tinha síndrome de Down. Dar-se conta desse fato não
se limita às informações que recebeu de Miguel aos oito anos. Mas as informações o
ajudam a re-significar o olhar do outro.
Esse mesmo movimento se dá em relação às atitudes de confiança que ele
percebia nos membros do Projeto Roma no seu dia-a-dia na escola. Embora não se dê
conta do início das intervenções do Projeto em seu processo de escolarização a partir do
terceiro ano, ele consegue identificar e reconhecer a importância dos apoios que recebia.
173
Este reconhecimento aparece, por exemplo, quando ele se refere ao seu professor de
terceiro, quarto e quinto ano, o Sr. Héctor: “[...] foi um professor estupendo, um professor
que tinha uma confiança em mim, e em minhas possibilidades... tanto ele como a
professora anterior, Gracia, foram os dois professores que me apoiaram mais. Gracia foi
minha professora de apoio no primeiro e no segundo. No terceiro, quarto e quinto também
[...] A verdade é que os dois para mim foram os fundamentais... A base. Me apoiaram
muitíssimo [...]. A verdade é que me marcaram muito, porque confiaram muito em
mim,[...] Eu acho que Gracia e o Sr. Héctor foram a base, né? Sem eles, não seria eu, de
verdade. Foram os dois que me... impulsionaram...”
Embora a trajetória escolar de León tenha sido marcada por estratégias
planejadas para permanência e avanço na escolarização, na sua narrativa, é somente a
partir do sexto ano que ele identifica a presença de pessoas vinculadas ao Projeto Roma na
escola para apoiá-lo. Ele conheceu o coordenador do Projeto, Prof. Miguel, na escola, aos
oito anos, mas identifica-o como um amigo e confidente até o sexto ano: “[...] a partir de
terceiro e quarto, é preciso acrescentar Miguel, né? [...]. Miguel não fazia nenhum trabalho
na escola... Era um apoio de amizade. Miguel era quem me aconselhava, que me... era
como essa pessoa que está aí, que dá conselhos e tal, mas não era nada formal. Nada
formal até quinto. Ou seja, até quinto, ele só dava um apoio externo. Porque eu estava
muito bem com Sr. Héctor, com Gracia, estava muito bem, tudo muito planejado, estudava
normal, fazia meus deveres...”
Então, na história de León, é possível perceber que os apoios planejados
atingiam seus objetivos, uma vez que, mesmo sem identificá-los como vinculados ao
Projeto ou a Miguel, ele aponta seu valor, associando a acolhida dos professores como uma
atitude individual de cada um deles. Para León, o valor estava no acolhimento, na
credibilidade expressa pelos professores, e não nos modos como as ações eram articuladas.
A entrada de Paula na educação infantil foi bem diferente. Após tentativas
frustradas em diferentes instituições, Paula conseguiu matricular-se no Colégio onde
seguiu seus estudos no ensino fundamental, através de Clara, uma professora conhecida da
família. Na primeira série, Clara foi sua professora. “Ela foi comigo da 1ª até a 4ª série. Ela
foi me seguindo até a 4ª série”. Esta também é uma prática comum nas histórias de alunos
com necessidades especiais que se matriculam em escolas comuns: os professores
acompanham a turma desse aluno, muitas vezes porque não há outros professores que se
dispõem a aceitá-lo. Não sei se este foi o caso de Paula. O que é possível perceber é que
ela foi construindo uma história de “sucesso escolar”, mesmo enfrentando dificuldades e
174
tendo necessidade de apoio que, no caso dela, era dado pela mãe em casa. Que práticas
aconteceram na escola e em casa para que Paula não só interagisse com os demais, mas
também demonstrasse interesse e competência para as aprendizagens valorizadas pela
escola?
A presença da mesma professora nas séries iniciais pode ser vista como
facilitadora da relação com Paula. Esta prática da continuidade, não necessariamente como
uma decisão do professor para seguir o processo de aprendizagem de um aluno ou de um
grupo, é adotada em diferentes sistemas de ensino como uma alternativa de
aprofundamento dos vínculos professor/aluno, definida num projeto pedagógico coletivo.
Um exemplo desta prática é a experiência italiana de pluridocência nos cinco anos da
escolarização inicial, apresentada e discutida por Baptista (2004, p. 196-197):
Um aspecto interessante é que se procura manter esse grupo de professores ao
longo dos cinco anos da escolarização inicial. [...] Desse modo, concilia-se a
ruptura à continuidade. Não se depende (apenas) da relação de um professor com
aquele aluno, ao longo de um ano. Por outro lado, os professores conhecem os
alunos os quais atendem durante cinco anos.
Esta pluralidade de relações vivenciadas por professores e alunos está presente
também no sistema de ensino atual na Espanha. A educação primária, seriada do 1º ao 6º
ano, está organizada em três ciclos de dois anos. O professor regente (tutor), juntamente
com os professores de artes plásticas, música, inglês e educação física, acompanham a
turma por dois anos. Então, a cada mudança de ciclo é que ocorre a mudança de professor
regente, permanecendo, em muitos casos, os demais professores.
León vivenciou a experiência de continuidade, estreitando o vínculo com o
Prof. Héctor e Gracia (professora de apoio) por três anos, mas em sua narrativa não
aparece a presença de outros professores. O que aparece é a multiplicidade de relações
proporcionada pela dinâmica do Projeto Roma na escola. Além dos professores já
mencionados, León contava com Miguel, coordenador do Projeto, como um amigo que o
apoiou para além das necessidades educacionais. Essa figura do educador como alguém
que não atua somente no palco, mas que está também nos bastidores, atento aos
movimentos do processo de ensino-aprendizagem, pode ser evocada na reflexão proposta
por Arroyo (2004), ao falar do caráter instigante das propostas de inovação educacional,
tais como aquelas que organizam a escola em ciclos:
Podemos encontrar a instigação dessas propostas no fato de elas tentarem
recuperar para a função social da escola e da docência a tarefa de educar.
175
Recuperar a educação. Colocar o foco nos educandos e em seus processos
formadores. Reconhecer em cada criança, adolescente, jovem ou adulto um ser
humano em formação. Os processos de formação humana incluem os processos
de ensino, de aprendizagem e de construção do conhecimento. Mas vão além.
Defrontam-se com as complexas e tensas artes de formação do ser humano.
Tarefa esquecida ou secundarizada muitas vezes no pensamento e no fazer
educativo escolar. Inclusive nas pesquisas, nas análises e nas teorizações da
academia. (Ibid, p. 11-12)
Portanto, a escolarização em escolas comuns, presente nas três histórias, ainda
que de maneiras muito peculiares, pode ser compreendida como um importante elemento
na constituição desses sujeitos. Elemento que com certeza contribuiu para que eles se
constituíssem como pessoas que se expressam bem, que têm acesso ao conhecimento
historicamente produzido, que se colocam como autores e atores de sua história e que têm
consciência de seu lugar social como pessoas com síndrome de Down.
No percurso escolar de cada um estiveram sempre presentes apoios, planejados
ou não, no âmbito institucional ou familiar. A necessidade de tais apoios ia sendo
identificada, criando-se condições diferenciadas para cada momento ao longo do processo
de aprendizagem. Assim, foi organizado um espaço de atenção individualizada em casa
pelas mães e irmãos a Ivan e a Paula. No caso de León, o Projeto Roma criou um espaço
de acolhimento aos professores e às famílias, buscando qualificar os contextos nos quais
León convivia.
É importante destacar as diferenças entre os contextos em que cada sujeito
viveu seu processo de escolarização. León vive o início de sua escolarização nos anos 80,
na Espanha um momento marcado por experiências de integração escolar de alunos com
história de deficiência. Na experiência vivida por León ao longo de toda sua trajetória
acadêmica, um grupo de pesquisa com propostas teórico-metodológicas inovadoras
viabilizava os apoios pedagógicos necessários à escolarização dele e de outros alunos com
síndrome de Down.
Paula, em Porto Alegre, no início dos anos 70, não encontra tais modalidades
de apoio. Sua família percorre várias escolas que não a aceitam, por ter síndrome de Down.
Ela consegue matrícula em um Colégio, por intermédio de uma professora conhecida que
vai assumir pessoalmente a busca de estratégias e apoios para que Paula possa permanecer
na escola. Mas é a mãe que, em casa, apóia mais efetivamente os processos de
aprendizagem da filha.
Ivan, vivendo em uma localidade da zona rural, apropria-se dos conhecimentos
aí veiculados. Como diz o pai sobre os conhecimentos e habilidades do filho, tanto na área
176
de informática quanto na lida do campo: “Ele dá jeito em problemas de equipamento que
muitos técnicos com mais experiência não conseguem dar. E me ajuda também: na
colheita, dirige trator, pega no pesado também”. Ele aprende a “pegar no pesado” com o
pai, que sempre o incentivou a estudar, dispondo-se inclusive a financiar seu curso
superior. E encontra na mãe, professora experiente, a figura que vai apoiá-lo, que vai lutar
pela sua escolarização desde a educação infantil no ensino comum, nos anos 80. Da mesma
forma que ocorreu com Paula, o apoio efetivo para o sucesso da escolarização de Ivan é
proporcionado em casa, pela família, principalmente através da mãe.
É evidente a luta empreendida pelas famílias de Ivan e de Paula, em contextos
brasileiros, como um movimento mais individualizado, contrastando com os movimentos
institucionalizados presentes na trajetória de León num contexto espanhol. Um exemplo
desta luta assumida por um grupo de profissionais e não da família é o que León nos conta
quando ao final do 8º ano, o professor de Matemática queria reprová-lo: “[...] mas Miguel
pensou que não. Que não, que eu tinha que ir já ao Instituto [escola secundária]. E
conversou com o professor...” Diferentemente de Paula e de Ivan, não é a família que vai
conversar com o professor, é o coordenador do Projeto Roma que vai argumentar a favor
da aprovação de León para que ele inicie os estudos secundários. Os movimentos da
família de León muitas vezes são até contrários ao modelo de escolarização que ele teve.
Em sua história percebe-se a presença simultânea de dois paradigmas: o “competencial”,
assumido pela Universidade e apoiado pela escola, e o “deficitário”, representado pela
família. León tem clareza dessa situação, referindo-se mais de uma vez a ela, como quando
diz: “Então, estou no meio desses dois discursos, ou seja, o progressista de Miguel e o
tradicional da minha casa.”
De uma forma mais velada, estes dois paradigmas estão presentes também na
história de Ivan. Mesmo tendo havido um grande investimento em recursos para
compensação de suas dificuldades, até hoje ele se queixa da superproteção por parte de
sua família. Tal atitude pode revelar a falta de confiança que a família tem em relação às
competências de Ivan. Nos relatos da mãe, também estão presentes situações de
superproteção, principalmente em questões referentes à escola.
O investimento em recursos para compensação social também está presente na
história de Paula. Porém, na família desta, diferentemente da família de Ivan, vemos uma
necessidade de mostrar os resultados alcançados. Podemos ver isso na motivação para abrir
a escola por parte da mãe. Ela deixa clara a intenção de compartilhar com outras pessoas a
experiência de superação de dificuldades vivida com Paula. Outro momento em que isso se
177
evidencia é quando a mãe publica um livro, contando em detalhes a trajetória da família e a
rede de apoio criada para impulsionar o desenvolvimento da filha. Ao lado desse
movimento de divulgar outras possibilidades de lidar com prognósticos ruins de
desenvolvimento, observo na família de Paula um movimento de construção e de
consolidação de espaços protegidos para o seu cotidiano: a escola em casa, onde Paula
trabalha, as aulas de tênis também em casa e as opções de lazer: ouvir música, ler e jogar.
A opção por esses espaços protegidos pode nos levar a diferentes leituras,
dentre elas a de que estaríamos diante de um modo de compreender a deficiência mais
próximo do paradigma deficitário, ao se proporcionar todo o possível para avanços no
desenvolvimento, mas com limites para a atuação do sujeito, que necessita de tutela
permanente.
5.3 A imagem que cada sujeito mostra de si
Embora Ivan, Paula e León tenham dado destaque aos apoios que receberam ao
longo de sua trajetória, eles se apresentam como autores e atores de sua história. Os três
falam de suas dificuldades, dos desafios que enfrentaram (e continuam enfrentando) e
também dos momentos de superação. Ou seja, embora reconheçam a importância dos
apoios que receberam, eles conseguem colocar-se como pessoas que tiveram que esforçar-
se para romper muitas barreiras na sua caminhada.
É interessante pontuar como cada sujeito se narra, que imagem cada um
constrói de si na sua narrativa.
Paula conta sua história desde que nasceu, referindo-se até mesmo a um tempo
anterior ao seu nascimento: “Até o momento em que eu nasci a mãe não sabia que eu seria
uma criança síndrome de Down”. A partir daí, Paula vai “se narrando”, com muitos
detalhes, focalizando as relações que estabelecia com os demais. Por exemplo, na família:
“o meu contato maior foi com meu avô materno...” Nos primeiros anos da escola: “Era
meu primeiro ano, eu chorava muito, eu me lembro que eu chorava muito, me relacionava
pouco com os colegas. [...] Com o tempo eu fui me relacionando melhor com a turma. No
ensino médio: [...] Tinha gente até que me convidava pra ir na casa delas pra estudar.
Então, ali eu fui mantendo uma relação grande com esse pessoal, durante um ano. No
cursinho pré-vestibular: Eu resolvi fazer no Supletivo porque já tinha colegas do 2º grau
lá. Eu já tinha um relacionamento com eles, né, então eu resolvi fazer o cursinho lá
178
também. Na Universidade: [...] eu fazia o possível pra não me relacionar muito com essas
duas gurias [que a discriminavam]. [...] Mas no fim eu tinha que dar a volta por cima, era
do grupo... [...]. Mas sempre existem as colegas legais, daí eu conheci a Laura. [...] No
estágio, eu, a orientadora da Universidade e a professora, nós três... fizemos um bom
trabalho [...] na Educação Especial, eu tive algumas amigas, realmente as amigas foram
bem legais.”
Paula evoca os nomes das amigas que fez ao longo de sua trajetória escolar. É
interessante observar a maneira pela qual ela refere-se a algumas delas, identificando
características, sempre no diminutivo, que são marcas sociais de exclusão: pobrezinha,
negrinha, gaguinha. As amigas estiveram sempre vinculadas ao contexto escolar. Algumas
chegaram a freqüentar a casa de Paula enquanto estudavam juntas. Porém, depois parece
que esses vínculos não se mantiveram.
Paula se vê como uma pessoa muito caseira: “é muito difícil eu sair de casa.
Às vezes sexta-feira eu tiro para passear e daí eu vou no shopping. [...] em casa, eu gosto
de escutar uma musiquinha, ler um livrinho, ler uma revista de fofoca, jogar um
joguinho...” Seus momentos de lazer são basicamente em casa, seu trabalho é em casa.
Sua vida se organiza no âmbito do privado.
Da mesma forma, León também tem sua vida organizada no âmbito do
privado. Freqüenta a Universidade, trabalhou na Prefeitura por três anos, dá entrevistas
para a imprensa, palestras para diferentes públicos, mas o seu cotidiano é marcado pela
solidão, pelo recolhimento em casa. Em diferentes momentos, ele fala sobre esses
aspectos: “Na Universidade eu não tive amigos, tive colegas. Estiveram comigo nos
estudos, trabalhos em equipe para as aulas, para as disciplinas, mas foi só. Não houve mais.
Havia coleguismo, mas não havia amizade. [...] Eu também tenho um caráter muito
especial... sou muito tranqüilo, muito de casa, não gosto de sair à noite... exceto as
situações muito controladas... hoje, sexta-feira, os jovens saem. E aos sábados, igual.
Mas... eu não gosto. E, claro, entre o caráter por um lado, os preconceitos com a síndrome
de Down por outro, tudo isso... juntando tudo isso... é duro, é realmente duro.”
Sobre a construção narrativa de León, ele deixa claro que suas primeiras
lembranças são da época de sua entrada na escola: “Eu posso te contar a minha história
desde que tinha seis anos. Do zero aos seis eu lembro muito pouco [risos]. Eu lembro, mas
é um pouco confuso, são coisas isoladas... através do que me conta minha mãe... muitas
partes da minha infância quem mais lembra é minha mãe. Eu fui consciente da minha vida
a partir dos seis, sete anos, ... a partir da minha entrada no Colégio”. E é sobre a vida
179
escolar, com suas dificuldades, surpresas, descobertas e conquistas, que León constrói sua
narrativa, com muitos detalhes e em meio a emoções intensas.
Ivan, durante as entrevistas mostrou-se mais tímido, pouco à vontade para falar
espontaneamente e articular sua história. Ele inicia sua narrativa a partir do meu pedido de
falar sobre suas dificuldades de desenvolvimento desde que era muito pequeno: “A minha
vida começou assim: custei a engatinhar, custei a andar, custei a falar”. Nos contatos
anteriores às entrevistas, referia-se sempre à época atual de sua vida. Na primeira
entrevista, foi sobre essa época que falou com mais espontaneidade e detalhes. É desse
tempo que ele quer falar: desse momento em que se vê como sujeito autônomo, que tem
seu emprego, que tem amigos, que dirige, que namora, que vai em busca do esclarecimento
para a dúvida diagnóstica que o acompanha há tempo.
Apesar do jeito mais reservado de ser, Ivan, diferentemente de Paula e de León,
revela ter uma vida social para além do contexto familiar. Talvez por viver em uma
localidade pequena, em uma família com muitos irmãos e primos, onde os vizinhos se
conhecem, Ivan parece ter sido aceito e valorizado nos contextos nos quais viveu. Assim é
sua narrativa do tempo da escola: “Todo mundo me dava atenção, todo mundo queria
brincar comigo, todo mundo me dava o apoio... as crianças, os meus colegas, que eu
estudei de primeira à sétima série, uma turma”. Ivan não se refere a preconceitos ou
discriminações durante a infância e adolescência, mas ao ser perguntado sobre quando
começou a perceber que as pessoas o olhavam diferente, ele responde que foi no Jardim de
Infância: “Já no jardim, eu percebia por parte dos adultos, das crianças, todo mundo, todo
mundo ao redor... o meu pai me chamava de japonesinho. Ah, lá vem o japonesinho, lá
vem o [...]”. Era como uma brincadeira. Aí eu pegava e entrava na brincadeira... Ou seja,
ele jogava o jogo, aparentemente não se importando com o que diziam. Mas já percebia o
olhar diferente dos outros, aqui exemplificado pela maneira que o pai usava para referir-se
a ele. A fala do pai o coloca num determinado lugar, evocando a marca da diferença.
Ainda que com a dúvida diagnóstica, Ivan carrega essa marca. Ele se constituiu
como um adulto trabalhador, se expressa bem, mas ele quer mais, ele tem mais a dizer: “Eu
não sou aquela pessoa que deveria ser. Eu acho que eu tenho muito mais capacidade de
fazer as coisas. Mas eu tenho muita dificuldade de mostrar. Eu tenho muita dificuldade de
mostrar aquilo que eu sinto por dentro e jogar pra fora. Sai de outro jeito, eu não consigo
me expressar.”
180
5.4 As vivências no mundo do trabalho
Ivan está insatisfeito com seu emprego no Supermercado, pois ganha pouco e
trabalha muito, inclusive nos finais de semana e feriados. Mesmo insatisfeito, ele sabe que
o trabalho lhe proporciona autonomia pessoal. É importante lembrar que Ivan ingressou no
Supermercado na condição de deficiente que precisava de uma instituição que o
encaminhasse ao mercado de trabalho. Ele já havia trabalhado como Instrutor de
Informática no Educandário durante dois anos e meio. A falta de perspectiva de trabalho o
empurrou para um emprego apoiado. Mesmo tendo iniciado nesta condição, após três
meses, Ivan desvinculou-se da Instituição, sendo contratado diretamente pelo
Supermercado.
É a partir da narrativa sobre o trabalho que Ivan traz lembranças de situações
de discriminação. Quando ele fala sobre o tempo de escola, eu pergunto uma vez mais se
ele nunca se sentiu discriminado naquela época. E ele responde:
Na escola, não, mas no mercado... no mercado, sim. Por exemplo, quando eu
entrei aqui no Supermercado, muita gente dizia que não daria certo. Porque... já
me conheciam e achavam que eu não tinha capacidade. Aí tinha um sub-gerente,
que me conhecia muito bem e disse: “Nada a ver. Não tem nada a ver. Eu vou
pegar e colocar este aluno aqui.” Hoje eu sinto um pouco de discriminação ainda,
mas é bem mais raro. Mas quando eu entrei, foi um baque no Supermercado.
O olhar preconceituoso, a falta de credibilidade, são também percebidos no
primeiro emprego: “No primeiro dia o pessoal também já me olhava meio atravessado, né?
[...] ‘Será que ele vai ter capacidade?’ As pessoas estão sempre duvidando da minha
capacidade. E eu tenho sempre que comprovar aquilo que eu preciso fazer.”
É também a partir do trabalho que ele se vê como alguém que mudou, que
amadureceu, que desenvolveu sua autonomia pessoal: “Eu não tinha aquela maturidade,
aquela maturidade toda como eu tenho hoje. Hoje eu me sinto mais maduro, hoje eu me
sinto mais capaz de fazer as coisas”. Ser capaz de fazer as coisas não significa ser auto-
suficiente. Ivan expressa uma concepção de autonomia que de fato não se refere à idéia de
auto-suficiência, referindo-se basicamente à capacidade de identificar uma dificuldade e o
apoio necessário para superá-la: “quando tu tá inseguro tu pára e procura alguém, a pessoa
certa pra te ajudar, pra te orientar.”
Junto com a consciência do amadurecimento e da autonomia, vêm as queixas
pela superproteção que Ivan sente por parte dos familiares: “agora com esse emprego no
181
Supermercado é que eu estou conseguindo me soltar um pouco mais. Mas sempre fui
muito protegido, até o meu primeiro emprego eu sempre fui muito protegido.”
A narrativa de León sobre suas experiências com o mundo do trabalho, traz
questões sobre sua relação com a família e com o Projeto Roma. Insatisfeito com suas
vivências de trabalho, reconhece que elas lhe proporcionaram aprendizados importantes:
“desde o ponto de vista relacional, sim, me serviu,... desde o ponto de vista da experiência,
sim, me serviu trabalhar, não? Levantar-se cedo ... todas essas experiências, é preciso vivê-
las, não? Me serviu como experiência, para conhecer outras pessoas, para viver outra
situação...” Por outro lado, ele tinha consciência de que não estava fazendo o que deveria
fazer: “Estava à toa! Os chefes não me davam nada para fazer”. Além da insatisfação, por
não ter feito aquilo que lhe era proposto, León traz também uma reflexão acerca da
sobrecarga para o estudante trabalhador: “[...] os problemas que encontrei em meu trabalho
foram, por um lado, o não cumprir os objetivos que me tinham colocado. Depois, levar o
estudo e o trabalho juntos [...] estudar e trabalhar ao mesmo tempo é complicado. De fato,
meu rendimento nos estudos caiu.”
Outra questão importante trazida por León é seu sentimento de estar mentindo
para a mídia em relação ao seu trabalho. A proposta de trabalho que lhe foi feita era muito
interessante: uma pessoa com síndrome de Down sensibilizando empresários para contratar
pessoas com alguma deficiência. Ele deu entrevistas falando sobre esse trabalho, como se
estivesse atuando de acordo com a proposta inicial. Ele é um personagem público e cultiva
a imagem de ser uma pessoa com síndrome de Down esclarecida, bem sucedida. León
demonstra competência para se adequar aos diferentes lugares sociais que ocupa: o
estudante bem sucedido, o palestrante que causa impacto com suas idéias e sua maneira de
falar, o entrevistado dentro de um padrão que agrada à mídia, o filho que se incomoda com
as posturas dos pais, mas que as releva por compreender que eles são mais velhos e
dificilmente mudarão de opinião. Para cada lugar, muda a configuração do “chip”: “Ainda
bem que eu tenho um chip que é muito móvel. Claro, aprendo a conviver com essas coisas.
Muitas vezes... muitas vezes, quando estou com Miguel, penso que sim, ele tem razão...
Mas, quando entro em minha casa, mudo o chip. Inclusive quando meus pais... falam de
Miguel... passo eu também a desacreditar em Miguel, mudando totalmente o chip.”
O “chip” muda de tal maneira que, ao mesmo tempo que León se mostra
consciente de sua luta e de suas conquistas, ele transita também no paradigma
“deficitário”: quer entrar na Universidade através da cota para pessoas com deficiência,
acha que não poderá fazer concurso para professor porque vão identificá-lo como
182
deficiente mental, aceita o fato de não poder ter uma conta bancária em seu próprio nome.
Refere-se à deficiência mental como um desastre, uma impossibilidade para estar em uma
Universidade. Tem uma visão de compromisso político com a “causa” dos excluídos. Dá
entrevistas, participa de programas de rádio e TV, dá palestras para públicos diversificados
(entre eles, professores). É neste embate de paradigmas que León emerge como sujeito que
quer sempre “romper barreiras de espinhos.”
A experiência de Paula no mundo do trabalho nos traz outros elementos para
problematização. Pedagoga com habilitação em Séries Iniciais e em Educação Especial,
sua atuação como professora expressa o paradigma de sua formação profissional. A relação
com os alunos parece ter como foco as dificuldades, que são apontadas com uma intenção
de superação, embora com um baixo nível de exigência. Mesmo tendo vivido experiências
de “compensação social”, Paula parece não acreditar que alguns de seus alunos
conseguirão ter avanços significativos em seu desenvolvimento. Seus alunos são jovens e
adultos, mas ela se refere a eles e aos demais alunos da escola como crianças. Da mesma
forma, atribui às ações e estados dos alunos significados relacionados a dificuldades. No
caso da aluna Clara, compreende sua voz baixa e inexpressiva como “não falar”. Da
mesma forma, identifica nessa aluna uma dificuldade de relacionar número e quantidade,
quando o que parece é que ela apresenta dificuldade para enxergar.
Estaria eu sendo exigente demais em relação à professora Paula? Penso que
sim. Sua trajetória de luta e superação gerou em mim expectativas quanto ao seu
posicionamento diante de dificuldades enfrentadas por outras pessoas. A formação pessoal
e profissional de Paula lhe possibilitariam um outro olhar? Como e por quê Paula teria uma
visão mais crítica, por exemplo em relação ao formato de reuniões com famílias
comumente organizadas pelas escolas especiais? Sobre tais reuniões, ela expressa com
espontaneidade o que outros profissionais diriam de uma maneira mais “politicamente
correta”: “Com os pais a gente procura fazer uma vez por ano, não é muito, porque eles
não têm muito tempo também, então para não encher o saco deles a gente faz assim. Esse
ano nós fizemos uma reunião, em agosto, parece... Depois as crianças tinham que subir
para fazer uma apresentaçãozinha, inclusive eu toquei violão.”
Paula, Ivan e León romperam muitas barreiras, surpreendem pelos seus
posicionamentos, pelo lugar social que conquistaram, mas não podemos esquecer que eles
se constituíram em uma sociedade excludente, preconceituosa, onde a visão hegemônica
acerca da deficiência ainda é organicista, focada nos sujeitos que trazem marcas
significadas como limites e impossibilidades. Na sua maneira de ser e de estar no mundo,
183
cada um expressa suas lutas, e esta expressão revela também o olhar do outro que
discrimina, que não confia em suas competências, que duvida das possibilidades de
superação.
As práticas sociais aqui narradas e discutidas mostram, em alguns momentos
com muita clareza, que a constituição do sujeito se dá sempre na relação com o outro. As
expectativas, os preconceitos, as oportunidades, a aposta nas possibilidades de
desenvolvimento, a formação da auto-imagem, tudo isso está presente nas histórias destes
sujeitos que se constituíram desafiando os prognósticos de deficiência mental e de baixa
escolaridade, mostrando possibilidades de superação de limites, ainda hoje vistos como
intransponíveis.
A opção metodológica pelas histórias de vida dá visibilidade a tais
movimentos, reafirmando as palavras de Vieira (1999, p. 71), quando diz que:
Elas [as histórias de vida] não são, em absoluto, a tábua de salvação para o devir
das ciências sociais, mas são certamente uma redescoberta inegavelmente rica,
multiforme e multifuncional, capaz de dar respostas a quem entende o individual
como produto de uma construção social. [...] Não são pois mero passado. São
processos históricos, na acepção plena da palavra. É assim que a vida individual
e social não pode ser considerada um dado, mas sim uma construção em auto-re-
organização permanente.
O lugar de narrador com certeza proporciona uma outra possibilidade de estar
no mundo, uma possibilidade concreta de reconstrução da história da sua constituição
como sujeito. Ao mesmo tempo, pode possibilitar também um novo olhar aos sujeitos
identificados como portadores de deficiência mental, conferindo a eles um lugar de pessoas
capazes de ter suas próprias histórias para contar.
5.5 Palavras finais
Chega o momento de fechamento do trabalho. Momento difícil, delicado.
Misturam-se o desejo de encerrar e o de dizer mais. Porque há que encerrar, ainda que
momentaneamente, embora haja também muito mais a dizer. Concluir, não, mas manter a
discussão em aberto.
Fica a expectativa do impacto que essas histórias podem causar, dos
movimentos que elas podem desencadear, das discussões teórico-metodológicas que
podem se estabelecer a partir caqui.
184
Trabalhei com três histórias de vida, mas há mais pessoas com síndrome de
Down no Brasil e em outros países chegando a Universidade, tendo êxito no ensino médio
e em outros níveis de escolarização. Estas histórias precisam ser conhecidas. Elas podem
constituir-se como estratégia para desmistificar a idéia de que a deficiência mental é uma
das características da síndrome de Down. Reafirmo que do ponto de vista educacional, o
que define o limite, o atraso, a deficiência mental, não é a síndrome ou qualquer
característica orgânica, que são aspectos primários da deficiência. É a insuficiente
“nutrição ambiental” ou a “negligência pedagógica”, tal como se refere Vigotski, que vai
consolidar as dificuldades secundárias, surgidas a partir das práticas sociais vividas por
esses sujeitos.
Ivan, Paula e León conviveram com o prognóstico de deficiência mental,
sendo, portanto, candidatos a receber este diagnóstico. Por diferentes circunstâncias de
vida, conseguiram construir um outro caminho de desenvolvimento, mas eles trazem a
marca da deficiência, vivendo no fio da navalha, num movimento permanente de
comprovação de suas capacidades.
A luta para constituir-se de outro modo possibilitou saltos qualitativos no
percurso de desenvolvimento dos três sujeitos. Portanto, estas histórias, ao mostrar os
movimentos de ruptura e a construção de outras possibilidades, mostram também o avesso
da deficiência mental.
Como esses sujeitos desenvolveram suas funções superiores, chegando a níveis
surpreendentes de organização cognitiva que lhes permite ocupar lugares sociais antes
inimagináveis para pessoas com síndrome de Down? León e Paula demonstram uma
capacidade refinada de expressar-se oralmente. Eles são professores com formação
universitária. Muitos dirão que são exceções, por serem pessoas mais capazes. Como se
tornaram pessoas capazes de chegar a esse nível de escolaridade? Teriam uma
predisposição biológica, condições orgânicas diferenciadas para desenvolver suas funções
superiores? Ou as oportunidades de escolarização, no caso específico de León e Paula a
formação pedagógica, teriam contribuído para o desenvolvimento da riqueza da expressão
oral de ambos?
Igualmente importante é o avesso dos apoios, claramente identificado por
León. Ele se queixa do que considera um excesso na manutenção dos apoios, ao perceber
que, no fundo, tanto sua família quanto Miguel querem protegê-lo. Ele quer exercer sua
autonomia, com certeza conquistada com o apoio das intervenções do Projeto Roma, mas
não quer ser tutelado.
185
Num sentido mais amplo, identifico também o avesso da educação especial no
vínculo de Ivan com a instituição e o movimento para não estar vinculado a ela,
ressignificando seu papel. A família de Ivan consegue fugir das armadilhas que surgiram
ao fazer vínculo com uma instituição de educação especial, recusando-se a seguir o
caminho da deficientização. Ivan retorna quando adulto, autônomo, com dois diplomas de
nível médio, certificado de técnico em informática e com experiência de trabalho anterior,
num momento em que a instituição pode apoiá-lo. O contraste entre os registros iniciais e o
registro final no prontuário é emblemático. Dos 10 meses (momento do primeiro registro)
aos 27 anos, Ivan teve oportunidades de se desenvolver em ambientes não segregados,
distintos do que a instituição lhe propunha.
Pautadas por rupturas, lutas e superações, as três histórias surpreendem,
causam impactos, mostram o olhar dos sujeitos sobre o mundo e sobre si mesmos. O olhar
atento a essas e a outras histórias de ruptura pode nos ajudar a reafirmar que a constituição
do ser humano em humano, ainda que em condições de desvantagem, se dá sempre na
relação com os demais.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
(Fernando Pessoa – Lisbon Revisited,
poema, por Álvaro de Campos, 1923)
186
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192
ANEXO 1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÂO
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Declaro que estou de acordo em fornecer informações pessoais a Maria Sylvia
Cardoso Carneiro, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS,
para o desenvolvimento da pesquisa relativa a sua tese de doutorado, provisoriamente
intitulada A produção social da deficiência mental.
Estou ciente de que todas as informações fornecidas serão utilizadas de maneira
sigilosa, sem referência a minha identificação pessoal. Além disso, estou ciente também de
que tenho o direito de desistir de participar desta pesquisa a qualquer momento, se assim o
desejar.
Declaro ainda que tenho conhecimento de que a minha participação nesta fase do
projeto consiste em conceder entrevistas, que poderão ser gravadas em fitas cassete, sobre
a minha história de vida pessoal.
Nome por extenso:_______________________________________________________
Assinatura: ____________________________________________________________
Assinatura da pesquisadora responsável: _____________________________________
193
ANEXO 2
ROTEIRO PARA AS ENTREVISTAS
HISTÓRIA DE VIDA
1. Família e amigos
- Relação com o pai/ mãe/ irmãos/ primos/ tios/ avós/ outros.
2. Escola
- Relação com professores/alunos/funcionários.
- Discriminação/preconceito
- O que era fácil?
- O que era difícil?
- Pré/1º grau/2º grau/Universidade
3. Trabalho
- Relação com chefia/ colegas/ clientes.
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