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uma porta nem subir numa cadeira para alcançar os alimentos que eram
levantados fora do alcance de sua mão; enfim, desprovido de qualquer meio de
comunicação, não conferindo nem expressão nem intenção aos gestos e aos
movimentos de seu corpo; passando com rapidez e sem nenhum motivo
presumível de uma tristeza apática às mais imoderadas gargalhadas; insensível a
qualquer espécie de afeições morais; seu discernimento não passava de um
cálculo de gulodice, seu prazer, uma sensação agradável dos órgãos do gosto,
sua inteligência, a suscetibilidade de produzir algumas idéias incoerentes,
relativas às suas necessidades; toda a sua existência, numa palavra, uma vida
puramente animal”. (BANKS-LEITE e GALVÃO, 2000, p. 131-132)
A convicção de Itard de que “o homem não nasce como homem, mas é
construído como homem” (PESSOTTI, 1984, p. 36), é que o fez opor-se ao diagnóstico
dado por Pinel. Para Itard, o retardo de Victor não se devia a uma deficiência biológica e
sim a uma insuficiência cultural, à carência de experiências de exercício intelectual. Deste
modo, a estimulação e ordenação da experiência se constituiriam nas estratégias de “cura”
do retardo.
Todo o trabalho desenvolvido por Itard com Victor aponta uma questão até
hoje bastante polêmica na educação especial: a da avaliação. O diagnóstico dado por Pinel
encaminharia Victor a uma instituição hospitalar para dementes, sem oportunidades de
ensino ou educação. A visão de Itard, porém, considerava a educabilidade do selvagem,
ainda que não houvesse uma metodologia para tal. Com base nos princípios do naturalismo
e no trabalho já desenvolvido com surdos, ele tenta criar uma metodologia capaz de
“despertar” naquele indivíduo as faculdades mentais que lhe permitissem se fazer humano.
Itard dedicou-se à educação de Victor, obtendo avanços significativos à medida que
traçava planos pedagógicos a partir dos progressos apresentados. O trabalho, lento e
gradual, foi acompanhado de inúmeras reflexões sobre o método que estava sendo
formulado. O relato desta experiência está ricamente descrito por Itard na obra Mémoire
sur les premiers développements de Victor de l’Aveyron, publicada em 1801
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. Nela
encontram-se, pois, os fundamentos da avaliação e da didática na área da deficiência
mental. Sobre a importância da obra de Itard, Pessotti (1984, p. 50-51) afirma que:
A atualidade, presente em muitos aspectos de sua doutrina, à distância de quase
dois séculos, resulta [...] de uma característica inalienável, ontem como hoje, da
educação especial: a individualização do ensino entendida não como mera
segregação metodológica do educando, mas como ajustamento de programas,
procedimentos e critérios de avaliação às peculiaridades do aluno como pessoa
com desejos, aversões, interesses e inércias e como organismo biológico mais ou
menos equipado de funções sensoriais e corticais.[...] Em Itard, essa
individualização não é uma necessidade, devida à carência de experiências
similares conhecidas, mas o produto de uma postura filosófica ante o ser
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No Brasil, a primeira publicação dos Relatórios de Jean Itard traduzidos para o português encontra-se na
obra de Banks-Leite & Galvão (2000).