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Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
Fernando Hartmann
A voz na escrita
Porto Alegre
2007
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2
Fernando Harmann
A voz na Escrita
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em
Educação.
Orientadora:
Profa. Dra. Regina Maria Varini
Mutti
Porto Alegre
2007
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3
Fernando Harmann
A voz na Escrita
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em
Educação.
Aprovada em 17 de maio de 2007.
________________________________________________________________________
Profa. Dra. Regina Maria Varini Mutti – Orientadora
_________________________________________________________________________
Profa. Dra. Margaret Axt
(Professora da Faced)
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Mario Fleig
(Professor Visitante – Unisinos)
_________________________________________________________________________
Profa. Dra. Terezinha Marlene Teixeira
(Professora Visitante – Unisinos)
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Gabriel Bergounioux
(Professor Visitante – Université d’Orleans – França)
4
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
________________________________________________________________________________
H333v Hartmann, Fernando
A voz da escrita / Fernando Hartmann; orientadora: Regina Maria Varini
Mutti. - 2007.
250 f.
Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de
Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2007, Porto Alegre, BR-RS.
1. Ambiente de aprendizagem Ensino a distância Voz Escrita. 2. Forchat
Comunidade virtual
Análise do discurso. 3. Lingüística. 4. Psicanálise. 5. Lacan,
Jacques Marie Emille. 6. Authier-Revuz, Jaqueli-ne. 7. Bergounioux, Gabriel. 7. Nassif,
Jacques.
I. Mutti, Regina Maria Vari-ni.. II. Título.
CDU37.018.43
___________________________________________________________________________________
Bibliotecária Neliana Schirmer Antunes Menezes – CRB 10/939
5
Para Magale e Isadora.
6
Ao concluir este trabalho, quero agradecer ao Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ao CNPQ pela bolsa no Brasil e à CAPES
pela bolsa sanduíche na França, sem o apoio destas instituições teria sido impossível
realizar este trabalho.
Desejo agradecer a todos aqueles, amigos e pesquisadores, que através de sua voz me
ajudaram a reconhecer e acreditar na minha voz, em especial à
Regina Maria Varini Mutti
Jacqueline Authier-Revuz
Gabriel Bergounioux
Jacques Nassif
Sonia Branca-Rosoff
Magale Machado
Margaret Axt
Mario Fleig
Marlene Teixeira
Emilie Nee
Roland Chemama
Ângela Jesuíno Ferreto
Norton da Roza
Sonia Bley
José Luis Caon
Contardo Calligaris
Valdir Flores
Donaldo Shüler
7
Qu’on dise reste oublié derrière ce qui se dit dans ce qui s’entend.
(Jacques Lacan, 2001a, L’étourdit)
8
Resumo
O humano, para tornar-se humano, para ser e estar em uma comunidade, tem a necessidade
de que alguém lhe enderece uma voz. A educação implica a interação de vozes na
construção, conservação e transmissão da cultura de uma comunidade. Nós afirmamos que
as novas tecnologias utilizadas na educação a distância são novas formas que a voz adquiriu
com a passagem do tempo. Com a análise da voz na escrita nós nos colocamos contrários à
suposição na qual a máquina e as novas tecnologias dispensam o contato humano.
O quadro teórico principal é a psicanálise lacaniana e a teoria das não-coincidências do
dizer de Jacqueline Authier-Revuz. Ele é sustentado pelo trabalho recente de Gabriel
Bergounioux sobre discurso interior e Jacques Nassif sobre a escrita e a voz. Nós
procuramos construir um dispositivo teórico com o objetivo de realizar a análise da voz na
escrita. O corpus analisado é composto pelas mensagens postadas em um programa de
computador (forchat) que funcionou como uma espécie de fórum de discussão com
objetivos pedagógicos no ambiente de rede.
As marcas na língua onde nós podemos supor a voz do locutor-auditor são os lugares onde
a palavra se apresenta opaca, resistindo à língua, resistindo ao jogo significante, mas esta
resistência somente evidencia a articulação entre a voz e o significante. A partir dos estudos
realizados nesta pesquisa evidenciou-se que o endereço de que se trata na comunicação via
internet não é o endereço real do locutor ou ouvinte, mas o endereço da voz. As marcas na
língua destacadas para evidenciar a representação da voz na escrita foram: as figuras de
acréscimo, mais especificamente o parêntese e as reticências, por meio das quais
analisamos a representação da voz latente; as formas do discurso relatado, tais como o
discurso direto, discurso indireto, modalização em discurso segundo, onde analisamos a
representação da voz do outro; e a modalização autonímica de empréstimo na classificação
das não-coincidências do dizer, onde analisamos a representação da voz própria do locutor.
Nós destacamos cinco operações da voz que colaboram na construção de uma comunidade
de aprendizagem: separação, marcando a diferença entre enunciação e enunciado;
repetição, que proporciona a mensagem ser escrita; reflexividade, o ouvir-se-falar ou ouvir-
se-escrever; o endereçamento da mensagem a alguém também dotado de voz ; leitura, que
é a articulação realizada pela voz dos significantes em sistema.
9
A língua vive do empréstimo da voz de cada falante, ela se nutre e se mantém viva pelo
endereçamento da voz. Em troca a língua proporciona ao humano, portador da voz, a
condição de pertencer e ser reconhecido em uma comunidade, a condição de ser sujeito.
PALAVRAS-CHAVES: Educação a distância, voz, escrita, psicanálise, lingüística.
10
Résumé
L'humain pour devenir humain, pour être dans une communauté, a besoin que quelqu’un lui
adresse une voix. L'éducation implique l’interation des voix dans la construction,
conservation et transmission, de la culture d'une communauté. Nous affirmons que les
nouvelles technologies utilisées dans l'éducation à distance sont des nouvelles formes que
la voix a acquis avec le passage des temps. Avec l’analyse de la voix dans l'écrit nous nous
plaçons contraire à supposition dont la machine et les nouvelles technologies dispensent le
contact humain.
Le cadre théorique principal est la psychanalyse lacaniana et la théorie des non-
coïncidences du dire de Jacqueline Authier-Revuz. Il est soutenu dans le travail récent de
Gabriel Bergounioux sur discours intérieur et Jacques Nassif sur l'écrit et la voix. Nous
cherchons construire un dispositif théorique avec l'objectif de réaliser l'analyse de la voix
dans l'écrit. On a analysé un corpus qui se compose des messages postés dans un logiciel
(forchat) qui a fonctionné comme une espèce de forum de discussion avec des objectifs
pédagogiques sur des réseaux internet.
Les marques dans la langue où nous pouvons supposer la voix du locuteur-auditeur sont les
places dont le mot se présent opaque, en résistant à la langue, en résistant au jeu des
signifiants, mais cette résistance seulement rendre évident l’articulation entre la voix e le
signifiant. À partir des études réalisées dans cette recherche il s'est prouvé que l'adresse qui
se traite dans la communication dans le forchat n'est pas l'adresse réelle du locuteur ou
l'auditeur, mais l'adresse de la voix. Nous analysons les marques dans la langue où nous
pouvons supposer autre voix en intervenant dans l'énonciation, que ce n'est pas en fait une
autre voix, mais la représentation de l'image d'autre voix. Les marques dans la langue
détachées pour prouver la représentation de la voix dans l'écriture ont été: les figures
d'ajout, plus spécifiquement la parenthèse et les points de suspension, où nous analysons la
représentation de la voix latente; les formes du discours rapporté, tels comme le discours
direct, le discours indirect, la modalisation en discours second, où nous analysons la
représentation de la voix de l'autre; et la modalisation autonymique d’emprunt dans le
11
classement des non-coïncidence du dire, où nous analysons la représentation de la voix
propre de l'orateur.
Nous détachons cinq opérations de la voix qui collaborent dans la construction d'une
communauté d'apprentissage : la séparation, en marquant la différence entre énonciation et
énoncée; la répétition, ce que permet à message être écrit; la réflexivité, le locuteur-écrivain
comme l’auditeur-lecteur de soi même; l'adresse du message à quelqu'un aussi doté de
voix; la lecture, que c'est l’articulation alisé par la voix des significatifs dans un système.
La langue vit du prêt de la voix de chaque être parlant, elle se nourrit et se maintient vit
chaque fois qui la voix est adressée, même adressée à soi même (la lecture, le discours
intérieur). En échange, la langue fournit à l'humain, porteur de la voix, la condition
d'appartenir et d'être reconnue dans une communauté, la condition d'être un sujet.
MOTS-CLÉS : Éducation à distance, voix, écriture, psychanalyse, linguistique.
12
SUMÁRIO
1 MINHA VOZ... ................................................................................................................ 14
2 A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA E A VOZ ................................................................... 21
3 A VOZ DOS OUTROS ................................................................................................... 28
3.1 O EU E A VOZ ........................................................................................................ 28
3.2 A VOZ DE JACQUES LACAN .............................................................................. 34
3.3 A VOZ DE GABRIEL BERGOUNIOUX .............................................................. 39
3.4 A VOZ DE JACQUES NASSIF .............................................................................. 42
3.5 A VOZ DE JACQUES DERRIDA .......................................................................... 46
3.6 A VOZ DE MIKHAIL BAKHTIN .......................................................................... 51
3.7 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ............................................................................ 59
4 A VOZ E O DISCURSO INTERIOR ............................................................................ 61
4.1 O DIALOGISMO .................................................................................................... 61
4.2 O AUTODIALOGISMO ........................................................................................ 63
4.3 AS VOZES NOS OUVIDOS DE SCHREBER ...................................................... 70
4.4 O DISCURSO INTERIOR EM VIGOTSKI ........................................................... 82
4.5 A VOZ NO SONHO ................................................................................................ 87
5 DA VOZ À LINGUAGEM, DA LINGUAGEM À LÍNGUA ...................................... 92
5.1 COMUNIDADE DE APRENDIZAGEM, APRENDIZAGEM DE COMUNIDADE
....................................................................................................................................... 92
5.2 A TEORIA ENUNCIATIVA DE JACQUELINE AUTHIER-REVUZ ............... 101
5.2.1 Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva .......................... 103
5.2.2 Reflexividade da linguagem ............................................................................. 107
5.2.3 Locutor seu próprio ouvinte ............................................................................ 109
5.2.4 Modalização autonímica ................................................................................... 111
5.2.5 Não-coincidências do dizer ............................................................................... 114
5.2.6 (Auto)-representação e o irrepresentável: o meta-enunciativo como
imaginário da enunciação ......................................................................................... 119
6 A CONSTRUÇÃO DO CORPUS ................................................................................ 123
6.1 O FORCHAT ......................................................................................................... 126
6.2 ALGUNS ESTUDOS SOBRE FÓRUM DE DISCUSSÃO NA INTERNET ...... 129
7 ANÁLISE: A VOZ NA ESCRITA ............................................................................... 145
7.1 O ENDEREÇO DA VOZ ...................................................................................... 147
7.1.1 Os advérbios de tempo e espaço ...................................................................... 150
7.2 A VOZ LATENTE REPRESENTADA NA ESCRITA ....................................... 156
7.2.1 O parêntese ........................................................................................................ 159
7.2.2 As reticências ..................................................................................................... 166
13
7.3 A VOZ DO OUTRO REPRESENTADA NA ESCRITA .................................... 172
7.3.1 O Discurso Direto .............................................................................................. 175
7.3.2 O Discurso Indireto .......................................................................................... 178
7.3.3 A Modalização em Discurso Segundo ............................................................. 181
7.4 A VOZ PRÓPRIA REPRESENTADA NA ESCRITA ......................................... 184
7.4.1 A Modalização Autonímica de Empréstimo ................................................... 184
7.4.2 A Não-Coincidência Interlocutiva ................................................................... 187
7.4.3 A Não-Coincidência do Discurso Consigo Mesmo ......................................... 191
7.4.4 A Não-Coincidência Entre as Palavras e as Coisas........................................ 196
7.4.5 A Não-Coincidência das Palavras a Elas Mesmas ......................................... 200
7.5 AS OPERAÇÕES DA VOZ .................................................................................. 208
8 A VOZ DO LEITOR ..................................................................................................... 215
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 222
ANEXO A – MENSAGENS POSTADAS NO FORCHAT EM 10/12/2003. .............. 230
14
1 MINHA VOZ...
Terá sido a questão da verdade que se nos apresentou ou, pelo contrário,
fomos nós quem nos apresentamos a ela? Qual de nós é aqui Édipo?
Quem a Esfinge? (Friedrich Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal)
A complexidade das pesquisas acadêmicas na área das ciências humanas, das
dissertações e teses, está na dificuldade de abordarmos metodologicamente as coisas mais
simples e banais da vida. Facilmente esquecemos o cotidiano construindo fórmulas
complexas que nos afastam daquilo que é no dia-a-dia de todo humano a sua condição.
Neste sentido entendemos a educação, de uma maneira ampla, próximo ao que Werner
Jaeger (1994) explicita, buscando uma definição do que Paidéia era para os gregos.
Podemos referir várias expressões modernas como cultura, tradição, literatura, civilização e
também educação, porém a Paidéia era mais do que isso, era a formação do homem grego.
Para Jaeger (1994, p.3) a educação “é o princípio por meio do qual a comunidade humana
conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual”. Tomando a educação como um
princípio de manutenção e recriação da comunidade humana, podemos nos perguntar: onde
é conservada e de que forma é transmitida a experiência humana? Encontramos facilmente
a resposta, pois estamos lidando, neste momento, com a matéria que possibilita este
movimento de formação do homem que é a educação. A materialidade à qual estamos nos
referindo é a língua, seja ela oral ou escrita. Através da língua a comunidade humana
conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual.
Uma língua precisa, para tomar lugar no mundo, de uma matéria onde ela poderá se
presentificar, porém o que faz a especificidade de um língua não é a matéria onde ela es
inscrita, tanto que uma língua pode ser oral ou escrita, quer dizer, ser representada pelo som
ou pelo traço. A língua é um sistema de diferenças
1
no qual um elemento toma consistência
devido a sua distinção aos outros elementos do sistema. A criação de uma língua deriva de
1
Conforme Ferdinand de Saussure no Curso de Lingüística Geral, São Paulo: Editora Cultrix, 1995.
15
uma capacidade humana de diferenciação e recorte dos elementos do mundo de tal forma
que a articulação destes elementos forme um sistema. A articulação ocorre através da
oposição entre os elementos do sistema. Então, esses elementos podem representar outra
coisa do que o elemento em si, quer dizer, o som não representa o som, o traço não
representa o traço em sua materialidade de coisa do mundo, mas enquanto elemento do
sistema. Esta lógica diz que um signo toma consistência por ser diferente dos outros signos,
um significante é por ser diferente de todos os outros significantes do sistema. Dito de outra
forma, é a capacidade humana para a linguagem o que possibilita a criação de uma língua,
que é um sistema construído na relação do homem com outros homens.
A linguagem é algo que possibilita ao humano fazer conjunto, seja conjunto com
outros seres humanos, seja conjunto de sons, de cores, de traços etc. Não se trata de um
instrumento que o humano utiliza, mas de algo que constitui o humano como ser social. A
linguagem é a condição do humano para a relação com o semelhante, é também a condição
de poder romper a barreira do espaço e do tempo de tal forma que a cultura adquirida por
uma comunidade possa permanecer durante gerações e em lugares distantes, possibilitando
assim o que conhecemos como educação. Na linguagem as coisas podem ser repetidas
enquanto representação, mas se trata da repetição do diferente, se assim podemos dizer,
pois a representação da coisa não é a coisa em si. Em um certo sentido a linguagem é a
possibilidade do humano de se enganar, sair do real ausente de simbólico para compor a
realidade construída e reconstruída a cada palavra. Como sabemos, a educação não é uma
simples cópia de saberes adquiridos por outros, mas um constante ato de criação, de
invenção.
De fato, a entrada no simbólico é a perda da relação direta do homem com as coisas
da natureza. Após o simbólico, jamais uma coisa qualquer do mundo será ela mesma, ela
será sempre, possivelmente, outra coisa criada pela linguagem. Então, a linguagem faz
conjunto e, ao fazer conjunto, faz a língua. Mas uma língua não é apenas um conjunto de
sons ou traços muito bem articulados. A língua é a possibilidade do homem, enquanto ser
social, de ler e escutar o mundo. Sem uma língua não escutaríamos ou leríamos, nós
simplesmente ouviríamos os sons e veríamos as coisas sem poder interpretar. Mas o que
16
torna possível ao humano a escuta e a leitura de uma língua? Não existe possibilidade de
leitura ou de escuta sem a língua estar articulada ao que conhecemos como voz. A voz é o
que articula os significantes tanto na enunciação quanto na leitura-escuta dos significantes.
Esta é uma das hipóteses que seguimos nesta tese.
A voz é o que proporciona vida à palavra, mas ela em si é opaca, ou seja, sem
significado. A voz é sem essência. Nenhum predicado é cabível à voz. A voz não é o
sujeito e nem o significante ou significado, ela é algo que vem a ocupar o lugar daquilo que
o humano perdeu (a relação direta com a natureza) ao entrar no mundo da linguagem.
Temos voz, e com ela construímos o social e o discurso interior. Sem a voz, esse meio
termo entre o orgânico e o psíquico, nenhuma comunidade humana ou discurso interior tem
como tomar lugar no mundo. Neste sentido a voz é o rio por onde navega a educação, é ela
que viabiliza o trânsito entre o particular e o social presente em qualquer forma de relação
pedagógica. No caso da educação a distância, o que é enviado a longas distâncias e outros
espaços são os significantes articulados pela voz. Não podemos desconsiderar que o som, o
traço, o dígito, etc. precisam de uma voz na partida e de uma voz na chegada para poderem
ser entendidos na forma de uma língua.
Essas questões abordadas de forma ampla nesta introdução servem para levantar o
nosso tema, o nosso sujeito de pesquisa
2
que é a voz. Mais especificamente a voz na escrita.
Voz endereçada a outro, esse também dotado de voz. Voz que utilizamos para ler qualquer
texto. Voz que, como esperamos demonstrar nestas páginas que se seguem, é o que amarra
os homens uns aos outros sem que eles saibam o que é que lhes prende. Voz que o cadáver
e a máquina não pronunciam. Voz que é a única forma do humano tocar a si mesmo sem a
necessidade de um meio externo físico. Voz que tenta dissimular a morte e continuar na
forma de significante para além da vida daquele que a enunciou.
2
Utilizamos aqui sujeito no sentido que a língua francesa proporciona a palavra “sujet”, que significa sujeito
e tema.
17
A nossa pesquisa tem como ponto de partida a voz, conceptualizada como o que
proporciona o encontro dos humanos em comunidades, na medida em que a formação do
homem é resultado da interação com outros homens. Neste sentido, sem voz não há
educação. É a voz que vai nos dizer que atrás de cada palavra, seja escrita ou falada, há um
homem que dotado de voz enuncia, se endereça a outro homem, também dotado de voz.
A partir desses pressupostos, as questões que nortearam a presente pesquisa são:
1) Qual a relação entre a língua, o sujeito e a voz?
2) Qual a importância da voz na educação a distância realizada via seminário virtual?
3) A partir de um texto escrito é possível analisarmos a representação da voz do
locutor-ouvinte
3
?
4) Na comunidade virtual de aprendizagem, como analisar o endereçamento, troca e
apropriação de discursos?
5) Qual a relação entre a voz e o discurso interior e qual sua importância para a
educação?
Às questões referidas correspondem os seguintes objetivos:
1) Pesquisar a especificidade do que seja a voz na sua relação com o sujeito e a língua.
2) Questionar a importância da voz na educação a distância realizada via seminário
virtual.
3) Identificar e analisar marcas na língua escrita, no corpus constituído, que apontem
para a representação da voz.
4) Analisar marcas na língua escrita que apontem para o endereçamento, encontro e
apropriação de discursos pelo locutor-ouvinte, que possibilitem a definição de uma
comunidade virtual de aprendizagem.
5) Interrogar a relação entre a voz e o discurso interior, buscando sua relação com o
processo de aprendizagem via língua escrita no seminário virtual.
3
Locutor-ouvinte no sentido de que todo locutor é ouvinte de suas palavras, mas também no sentido de que
todo ouvinte é um locutor que direciona seu dizer a si próprio. Nem locutor nem ouvinte são separáveis ou
passivos.
18
O nosso ponto de partida teórico é a psicanálise tal qual ela foi formulada pelo
psicanalista Jacques Lacan
4
. No desenvolvimento da pesquisa nos baseamos principalmente
na teoria da lingüista Jacqueline Authier-Revuz
5
, que, embora não trate diretamente do
objeto voz, nos forneceu vários indícios que possibilitaram analisar nas manifestações da
língua escrita - enfocadas a partir das não-coincidências do dizer, do discurso relatado, das
figuras de acréscimo - a materialidade necessária para apontarmos marcas deste objeto tão
opaco que é a voz. Seguindo a referida teoria de Authier-Revuz, sentimos a necessidade de
incluir o filosofo da linguagem Mikhail Bakhtin
6
em nossos estudos. Também devemos a
Authier-Revuz a possibilidade do aporte teórico de Jacques Nassif
7
, de onde retiramos os
pressupostos para supor a voz na escrita, e de Gabriel Bergounioux
8
, de onde retiramos os
pressupostos para relação entre voz e discurso interior. A partir deste último, nos vimos
convocados a também passarmos por Semenovich Vigotski (1989, 2001), justamente
devido às questões levantadas com relação à construção do discurso interior. Jacques
Derrida (1994, 1995) também entrou na pesquisa, devido a algumas indicações de Jacques
Nassif (2004, 2005), como um suporte teórico que foi utilizado de forma mais pontual, no
qual buscamos principalmente a crítica que ele faz do ouvir-se-falar ou auto-afeição pura.
A auto-representação da enunciação, teoria elaborada por Jaqueline Authier-Revuz
(1995), baseada nas não coincidências do dizer, parte do pressuposto de que todo locutor é
4
A teoria lacaniana está divida em uma parte escrita nos livros Escritos (1998) e Autres écrits (2001a) e em
27 seminários transcritos que perpassam as décadas de 50, 60 e 70, alguns estão publicados e vários são ainda
inéditos os quais obtemos via publições internas de associações psicanalíticas.
5
A teoria de Jacqueline Authier-Revuz está concentrada no livro Ces mots qui ne vont pas de soi – Boucles
réflexives e non-coincidences du dire (1995), mas além deste livro existem numerosos artigos publicados
em lugares diversos e que são imprescindíveis para melhor compreendermos esta complexa teoria. Estes
artigos me foram enviados pela autora via e-mail, pois de fato não teríamos condições de encontrar todas as
revistas e livros franceses onde se encontram tais publicações. Devido a isso, a numeração das páginas não
será citada tendo em vista que difere da publicação.
6
Os principais textos utilizados da teoria bakhtiniana são: o artigo sobre cronotopos que faz parte da
Esthétique et théorie du roman (2003a); alguns artigos de Estética da criação verbal (2000),
principalmente os de datas mais recentes; e o livro, como um todo, Problemas da poética de Dostoiévski
(2002).
7
A teoria de Jacques Nassif nós retiramos do livro L’écrit, la voix (2004) e de uma conferência pronunciada
por Nassif (2005) em Grenoble, na França, que o autor fez a gentileza de nos enviar por e-mail.
8
Quanto a teoria de Bergounioux, nos baseamos no livro Le moyen de parler (2004) e no artigo Esquisse
d’une histoire négative de l’endophasie, publicado na revista Langue Française (2001). Este artigo foi-me
gentilmente enviado por e-mail por Bergounioux, sendo assim as páginas também não conferem com a
publicação.
19
ouvinte de sua fala. O ouvir-se-falar somente é possível a partir da colocação em
movimento da voz. A auto-representação da enunciação é a imagem (representação) que o
locutor faz, através do seu dizer, da sua própria enunciação, durante o ato de enunciar.
Trata-se de um retorno do dizer sobre o ato de dizer, ou seja, uma forma de meta-
enunciação.
Nos capítulos 1 e 2, procuramos justificar a relação entre as novas tecnologias da
comunicação e a voz. Postulamos que as tecnologias da comunicação possibilitaram nestes
últimos séculos o envio da voz a distâncias e tempos que excedem ao limite físico do corpo
falante. Defendemos que o que possibilita a interlocução, quando os interlocutores estão em
tempos e espaços diferenciados, como no caso da educação a distância via internet, é a voz,
como elemento que possibilita a diferença e a conseqüente repetição, seja do som, do traço,
do dígito na intenção de significar algo via uma língua.
No capítulo 3, conceitualizamos o que é a voz no contexto desta pesquisa. Fazemos
uma retomada da teoria de alguns autores que estudaram a voz, visando constituir um
objeto de pesquisa bem delimitado. Nomeamos este capítulo de “A voz dos outros” porque
a voz própria somente toma consistência a partir da voz dos outros. No capítulo 4,
buscamos fazer uma relação entre a voz e o discurso interior, partindo principalmente do
fato de que todo locutor é seu ouvinte, seja quando ele fala em voz alta ou em silêncio. Este
capítulo é importante no sentido de evidenciar qual é a materialidade da voz que nos
interessa nesta pesquisa.
No capítulo 5, procuramos fazer um caminho que vai da voz à linguagem e da
linguagem à língua, na intenção de podermos analisar as marcas indicativas da voz na
materialidade linguística. O foco principal deste capítulo é a teoria enunciativa de Authier-
Revuz, enfocada de um lugar que viabilizasse as análises que seguem nos capítulos
seguintes. O capítulo 6 trata mais especificamente da construção do corpus a ser analisado.
No capítulo 7, começamos por definir o método de análise que utilizaremos para
indicar a voz na escrita e realizamos a análise do endereço da voz em um seminário virtual
20
com objetivos pedagógicos. Buscamos evidenciar que o endereço de que se trata na
comunicação não é o endereço real do locutor ou ouvinte, mas o endereço da voz. Neste
iniciamos a análise da voz na escrita. As marcas na língua destacadas para evidenciar a
representação da voz na escrita foram: as figuras de acréscimo, mais especificamente o
parêntese e as reticências, onde analisamos a representação da voz latente; as formas do
discurso relatado, tais como o discurso direto, discurso indireto, modalização em discurso
segundo, onde analisamos a representação da voz do outro; e a modalização autonímica de
empréstimo na classificação das não-coincidências do dizer, onde analisamos a
representação da voz própria do locutor. O resultado de nossa análise, por assim dizer, foi a
classificação das cinco operações da voz: separação, repetição, reflexividade,
endereçamento e leitura; as quais se mostram no uso de uma língua, evidenciando a
complexa relação entre significante e voz. Trata-se de uma relação de limite entre um e
outro que tem como efeito o sujeito.
Sendo assim, esperamos poder tornar as vozes que povoaram o percurso desta
pesquisa em “minha voz”. Este é o movimento que acreditamos ser um dos pilares da
educação, a complexa rede de discursos, articulados por vozes diversas, que na
singularidade de uma enunciação refletem o social, a comunidade como razão do humano.
21
2 A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA E A VOZ
E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três
entes diferentes, como três criaturas que falam e andam.
– São realmente três entes diferentes, com vida própria e real. Deus talvez
saiba o por quê... Ah, mas o por que é que falamos? Quem é que nos faz
continuar falando? (Fernando Pessoa, O Marinheiro)
O interesse inicial desta pesquisa residia no inevitável caminho que começou a se
desenhar a partir da revolução tecnológica, social e subjetiva
9
que é a rede mundial de
computadores. A educação sendo profundamente afetada por esta revolução. Porém, logo
vimos que o nosso foco não era a mediação do processo de ensino-aprendizagem por um
aparato tecnológico. O foco não era a máquina ou o software. O foco não era a interação do
humano com a máquina, mas do humano com o humano. A partir deste pressuposto
decidimos que nosso objeto de pesquisa deveria ser a voz.
A educação a distância não é algo novo no contexto educacional do mundo nem no
Brasil. Trata-se de uma forma de educação de crescente importância, buscando objetivos
diversos, sejam eles econômicos ou sociais, quantitativos, como o número de alunos que
podem ser beneficiados, ou qualitativos, visando a uma melhoria nas práticas pedagógicas.
Peters (2003, p.29) insere a educação a distância desde as epístolas de São Paulo; com o
objetivo de ensinar às comunidades cristãs da Ásia Menor, relata que Paulo “usou as
tecnologias da escrita e dos meios de transporte a fim de fazer seu trabalho missionário sem
ser forçado a viajar”. A escrita, sem dúvida, possui este poder de criar um outro corpo,
tendo a característica de poder levar as palavras para um lugar distante e um tempo
independente do sujeito que com sua voz as pronuncia.
9
Chamamos de revolução tecnológica, social e subjetiva a partir das análises realizadas por Zygmund
Bauman nos livros Globalização – As conseqüências humanas (1999) e Modernidade Líquida (2001).
22
Existem várias formas de educação a distância. Estas dependem dos objetivos a
serem alcançados, das condições geográficas e econômicas dos países e instituições em
questão. Segundo Peters (2003), a educação por correspondência foi usada em vários
países, como, por exemplo: Argentina, Canadá, União Soviética devido a extensão
territorial destes países. Na Inglaterra e França foi usada para prover os alunos de suas
colônias. A China, Índia, Turquia, países populosos e extensos, possuem ainda hoje um
amplo programa de educação a distância, baseado em técnicas de rádio e televisão. No
Brasil dos anos 80 tivemos um grande investimento no programa chamado TV Escola,
cujos méritos não cabe discutir aqui. Porém, atualmente vivenciamos uma educação a
distância em transição; com o advento da rede mundial de computadores, novas
perspectivas estão em movimento. As possibilidades de envio e recepção de dados
aumentaram radicalmente.
Esse movimento da educação a distância ocorre porque os seres humanos vivem
interligados em grupos, comunidades, empresas, cidades, nações. Não existe possibilidade
de um humano estar fora de uma rede de relações na qual se articulam diversas funções que
proporcionam o reconhecimento a cada homem de seu pertencimento a algo que é maior do
que ele. Todo o imenso avanço tecnológico do século passado, e que continua neste novo
século, caminha em direção de uma aproximação e dependência cada vez maior entre
homens e nações. Existem gradativamente, dia após dia, mais pessoas em todo o mundo
interligadas tecnologicamente, diretamente ou indiretamente, umas com as outras.
Hoje, as invenções que revolucionaram e intensificaram as relações entre as
pessoas, fazendo uma imensa rede onde os homens se interligam, como a imprensa, o
telégrafo, o telefone, o rádio e a televisão, o que chamamos meios de comunicação de
massa, abrem espaço para uma espécie de rede extremamente ágil que carrega
possibilidades de conexões inimagináveis tanto em volume como em conteúdo (DOWBOR,
2001), rompendo definitivamente com paradigmas de espaço e tempo que sustentavam os
outros meios utilizados até então. Essa rede é a internet, que conta atualmente com mais de
23
um bilhão de usuários em todo o mundo
10
. Porém, como não perceber que toda essa
revolução tecnológica começou faz muito tempo, com as diversas formas que a linguagem
adquire no homem e para o homem? Se pudéssemos retirar o que é da linguagem das novas
tecnologias elas desapareceriam.
Do ponto de vista da linguagem podemos considerar essa revolução tecnológica,
que hoje tem seu expoente maior no computador e na rede internet, como uma revolução
tecnolingüística, como chama Sylvain Auroux
11
, cujo ponto de partida é o código binário;
quer dizer que, ao invés de escrever a letra “a”, eu posso decidir por uma combinação de
“0” e “1” e, se optarmos por unidades de 8 dígitos, cada letra do alfabeto poderá ser
substituída por algo como, por exemplo, 00101101. Como se trata de dois dígitos, com oito
posições, podemos ter 256 combinações, permitindo a expressão não apenas do alfabeto,
como dos números, um lá menor de um timbre determinado, um ponto de cor numa tela, e
aumentando o tamanho da palavra digital essas possibilidades, como bem conhecemos,
tornam-se imensas. O essencial nesta lógica é que para ter dois sinais diferentes precisamos
ter uma variação. Esta variação se exprime graficamente como combinações de “0” e “1”,
mas pode ser representada concretamente como pólo negativo ou positivo em termos
magnéticos ou como variação de comprimento de ondas de luz e assim por diante. O
10
Certamente existem muitas pessoas pobres que estão mais afastadas desta rede, mas que nem por isso
deixam de sentir seus efeitos, o que quer dizer que elas não estão excluídas, antes poderíamos dizer que elas
estão incluídas como desfavorecidas, somente recebendo os efeitos, maléficos ou benéficos, que a rede lhes
proporciona. Atualmente não existe a possibilidade, por exemplo, de uma determinada cidade ou país estar
fora dos efeitos das novas tecnologias digitais; mesmo que as pessoas não tenham acesso a estas tecnologias
elas sofrem seus efeitos, sejam eles econômicos, culturais ou psiquícos. Dentro desta necessidade
imprescindível de participação na rede digital, levantamos algumas dificuldades existentes, tais como: o alto
custo da tecnologia, o desconhecimento dos meios de inserção na rede digital, a falta de vias de acesso, a
desarticulação política entre as nações e grupos econômicos.
11
As revoluções tecnolingüísticas são, segundo Sylvain Auroux (2001, p.289), três: “(...) a primeira revolução
tecnolingüísta foi a invenção da escrita, cujos efeitos foram amplificados com a criação da imprensa. A
segunda foi a gramatização das diferentes línguas do mundo, amplificada ela também pelo estabelecimento de
políticas lingüísticas nacionais e da alfabetização. Parece dificilmente contestável que sejamos
contemporâneos da terceira grande revolução nesse domínio, a do tratamento eletrônico da informação,
apresentada em linguagem natural. Trata-se verdadeiramente de uma mecanização das formas privilegiadas da
comunicação humana. Essa última revolução se apóia amplamente nas duas primeiras e vem, de certa
maneira, arrematá-las. Para se dar bem conta disso, convém compreender duas coisas:
- De um lado, o computador digital, no princípio de base de seu funcionamento, estende ao seu extremo limite
a exploração de uma propriedade fundamental da linguagem, o caráter discreto de suas unidades constitutivas,
propriedade justamente separada e sistematizada pela grafematização. De outro lado, as tecnologias
informáticas da linguagem utilizam tudo o que, nos produtos da gramatização, presta-se a um tratamento
automatizado (...)”.
24
essencial é termos a possibilidade de constituir uma diferença que instaure a repetição. Isso
também ocorre com a voz, quando ela se relaciona a uma língua, seja ela falada ou escrita,
uma diferença inscrita em um sistema que possibilite a repetição.
Mas na linguagem do código binário não existe voz, assim como não existe a
possibilidade de falha, ambigüidade, engano. No sistema binário é zero ou é um. A voz não
está no código, seja ele qual for, a voz é sempre de um homem. A voz diz mais respeito ao
vazio existente entre 0 e 1, a impossibilidade de 0 tornar-se 1, a não-coincidência entre 0 e
1, enfim a voz é algo que o digo não compreende. Ora, por exemplo, o vazio não existe
na lógica binária, assim como não é possível um computador fazer um ato falho, salvo se
ele já estiver programado e, desta forma, não poderemos mais chamar de ato falho.
Exatamente por isso um computador não conversa com outro, ele no máximo troca
informações, pois ele não precisa do outro para preencher seus vazios. Um computador não
tem voz, ele tem som, imagem, letras. Neste sentido, as pesquisas em inteligência artificial
ainda não conseguiram achar uma solução
12
para questões simples, como por exemplo um
computador fazer uma metáfora sem estar programado para tal, pois para isso ele precisaria
do vazio entre 0 e 1, ou seja, a possibilidade de um terceiro elemento que não fosse nem o 0
nem o 1.
A linguagem como um sistema que possibilita a construção do mundo humano tal
qual o conhecemos está ligada a pelo menos dois elementos essenciais que lhe conferem
uma certa materialidade e eficácia na inter-relação entre os homens: a voz e a língua. As
novas tecnologias da informação e da comunicação, assim como as antigas tecnologias da
informação e da comunicação, têm na sua origem e no seu fim a tentativa de apreensão da
voz. A voz como origem é o elemento que está entre a enunciação, enquanto ato de
enunciar algo, e o enunciado, enquanto produto deste ato. Quando falamos endereçamos o
som a alguém que pretendemos que o escute, o som simplesmente não é a voz. O que
entendemos como voz é a diferença entre os sons dentro do som que emitimos. Diferença
essa que marca o locutor que emite o som. Então a voz, enquanto diferença, poderá ser
12
Para um aprofundamento nesta questão, que não é o foco desta pesquisa, recomendamos o livro A mente
nova do rei – Computadores, mentes e as leis da física, que foi escrito pelo físico matemático Roger Penrose.
Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1991.
25
encontrada não somente na fala, mas também na escrita, na imagem, no gesto, desde que
seja marcada a diferença entre os elementos enunciados e a diferença entre o enunciador e o
meio ao qual ele dirige o enunciado. A voz como fim é o que torna possível qualquer
leitura, qualquer audição de uma língua, ou seja, os recortes, a diferenciação, dos diversos
elementos lidos ou ouvidos. Não se trata de um sistema de codificação e decodificação,
para isso não precisamos de voz, como podemos verificar nos computadores. A voz, sendo
o que divide, é, também, o objeto que une o produto da divisão na construção de um meio
social. A voz é o elemento que propicia a diferença necessária para construção do sistema
que chamamos língua, mas não é a língua.
Para realizar esta tese nos referenciamos em Lacan (2001a, p.252, tradução nossa),
quando este aponta a responsabilidade do psicanalista com relação à ciência: “(...) A
posição na qual fixei a psicanálise na sua relação com a ciência, aquela de extrair a verdade
que lhe responde em termos nos quais o resto de voz nos é confessado”. Toda mensagem
endereçada a não importa quem somente cumprirá seu objetivo através do uso de uma voz e
de uma língua. A voz é o elo de ligação entre a materialidade inerte do som, do traço, da
imagem, do gesto, do dígito com o homem. Uma parte deste trabalho se relaciona a apontar
para a voz que resta esquecida atrás da ciência.
Ao longo da história o homem tem procurado, através da ciência, transformar,
controlar, recalcar a voz. A transformação da voz nós podemos seguir, em primeiro lugar,
pela sua transformação em som, a fonetização, separação de diferentes possibilidades de
recortes do som emitido pelo homem. Em seguida, pela sua transformação em escrita,
depois a imprensa. Nos últimos séculos nós tivemos a oportunidade de acompanhar a sua
transformação em sinais elétricos, ondas magnéticas e enfim em dígitos. A revolução
tecnológica que é a internet deriva das transformações da voz. Trata-se de uma
transformação da voz assim como foi a língua falada, língua escrita, telégrafo, telefone,
televisão. Todas estas transformações são também formas de controlar e utilizar a voz. No
entanto, após estas transformações esquecemos que na origem do som, da escrita, do sinal
telegráfico, do dígito existe uma voz pronunciada por um homem e também esquecemos
26
que para ler qualquer sinal, seja ele composto no som, na imagem, no traço ou gesto s
precisamos da voz. A leitura é realizada através da voz própria, silenciosa ou não.
Ninguém é dono de uma linguagem ou de uma língua, mas podemos ser
proprietários de uma voz. Essa materialidade da voz é o que permite enviá-la de um lado
para o outro do planeta, quer seja através de ondas sonoras ou magneticamente pouco
importa. O que a humanidade fez nestes últimos séculos foi enviar a voz aos quatro cantos
do planeta. Enfim é a voz, algo que permite a repetição, o que também permite ao sujeito
do enunciado se descolar do sujeito da enunciação, o que sustenta toda essa corrida da
ciência nos três últimos séculos na direção da globalização. De que forma isso aconteceria
se não tivéssemos a possibilidade de enviar a voz de um homem a 5 mil quilômetros de
distância e a séculos adiante? Certamente, isso começou com a escrita há muito tempo
atrás, mas nos últimos séculos nada teve tantos avanços no campo da ciência como a
possibilidade da voz ser planetarizada. No final do seminário sobre Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, Lacan (1990, p.259) faz uma indicação referente ao objeto
“a”
13
, na função da voz e do olhar, e sua relação com a ciência:
[. . .] o interesse que há em situar, no nível do estatuto subjetivo
determinado como o do objeto “a”, o que o homem há três séculos definiu
na ciência. Talvez que traços que aparecem em nossos dias de maneira tão
explosiva sob os aspectos do que se chama mais ou menos propriamente
os mass-media, talvez que nossa relação mesma com a ciência que cada
vez mais invade nosso campo, talvez que tudo isso se esclareça pela
referência a esses dois objetos (...) – a voz, quase que planetarizada, senão
estratosferizada por nossos aparelhos – e o olhar, cujo caráter invasor não
é menos sugestivo, pois por tantos espetáculos, tantas fantasias, não é
tanto nossa visão que é solicitada mas o olhar que é solicitado.
13
O objeto “a”, de acordo com a teoria lacaniana, é “o objeto causa do desejo, é o que vem a ocupar o lugar
de uma perda que é constitutiva do sujeito na sua relação com a linguagem. Para falar o sujeito sacrifica algo,
tornando a relação direta do sujeito com o real impossível. A relação do sujeito com o mundo, a partir dessa
perda, vai se dar sempre via discurso. O que vem a ocupar o lugar do que foi sacrificado é o objeto causa do
desejo (HARTMANN, 2005a, p.175)”.
27
A questão é que estamos tão acostumados com essas vozes possibilitadas pela
tecnologia que por vezes esquecemos que são vozes de homens. Quem emite uma voz via
dígitos não o faz para um destinatário não importa qual; mesmo que possa não parecer, ele
não se direciona a uma máquina que vai codificar e decodificar sua voz. Sempre que
emitimos uma voz nós o fazemos endereçando a outro humano, este também dotado de voz.
Desta forma, justificamos a presente pesquisa, em primeiro lugar, pela necessidade
de diferenciarmos nas interações de caráter pedagógico realizadas a distância o que é da
voz, da língua e do sujeito; em segundo lugar, pela importância de relacionarmos a voz, a
vida na palavra, com as mensagens trocadas, discutidas, incorporadas. Sendo a educação
este emaranhado de vozes se misturando na construção, preservação e transmissão da
cultura de uma comunidade, não podemos, depois de toda esta evolução tecnológica,
esquecer do humano na sua origem e no seu destino.
28
3 A VOZ DOS OUTROS
“Poderiam agora as suas convicções ser diferentes das minhas? Poderei eu
ter outros sentimentos, outras aspirações que não sejam as dela?...”
(F. Dostoiévski, Crime e Castigo)
3.1 O EU E A VOZ
Na psicanálise a função do Eu é uma função imaginária. Sigmund Freud (1987a),
em sua teoria, definia o Eu como uma pequena parte do inconsciente que se diferencia no
decorrer do desenvolvimento. Desta forma, tirava o Eu do centro de controle no homem. O
Eu, neste caso, é uma pequena parte daquilo que somos, mas uma parte muito importante,
sem a qual nenhuma relação é possível no social. Dizer que se trata de uma função
imaginária quer dizer o quê? Em princípio, o imaginário se baseia no reflexo do semelhante
ao semelhante; seguindo a lógica lacaniana, o imaginário é o que proporciona consistência,
o simbólico a insistência e o real a existência. Lacan, no seminário de 25 de maio de 1955,
diz que:
Não há meio de compreender o que quer que seja da dialética
analítica se não afirmarmos que o eu é uma construção imaginária.
Isso, o fato de ser imaginário, não retira nada dele, desse pobre eu –
diria até que isso é o que ele tem de bom. Se ele não fosse
imaginário, não seríamos homens seríamos luas. O que não quer
dizer que basta ter esse eu imaginário para sermos homens.
Na sua entrada na psicanálise, Lacan trabalhou em um texto de 1936 o conceito de
estádio do espelho como formador da função do Eu, conceito esse que ele jamais
abandonará e que se refere à constituição do Eu a partir de um processo especular, então,
imaginário. O estádio do espelho situa-se no período infantil de 6 a 18 meses e consiste
numa antecipação da aquisição da unidade funcional do corpo pela criança. Trata-se de uma
29
identificação, no sentido que a psicanálise confere a esse termo, ou seja, “a transformação
produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (LACAN, 1998, p.97). Neste
momento do desenvolvimento o bebê já consegue diferenciar que ele e sua imagem não são
a mesma coisa.
Lacan parte de uma observação psicológica para compor esse conceito. O filhote do
homem, ainda submetido à total dependência da mãe e dentro de uma impotência motora
muito grande é capaz de reconhecer a sua imagem em um espelho, o que para os outros
animais está longe de ser possível. Nos outros animais, de uma forma geral, os filhotes já
nascem preparados para exercer sua vida enquanto espécie. O filhote do homem fará esta
diferenciação, ou seja, que ele é outro, porque a linguagem já está lá, quer dizer, ele
enquanto sujeito já está lá, o que ele poderá constituir como Eu vem depois, como uma
imagem que o sujeito faz de si. O estádio do espelho não é simplesmente uma fase do
desenvolvimento, ele revela certas relações do sujeito à sua imagem.
Lacan (1998) diz que é devido à prematuração específica do nascimento no homem,
justamente por essa brecha, essa incompletude característica do filhote do homem, que se
abre no imaginário as possibilidades do que vem a ocupar o estágio do espelho. Segundo
Lacan (1986, p.96), o estágio do espelho é uma “aventura original através da qual, pela
primeira vez, o homem passa pela experiência de que se vê, se reflete e se concebe como
outro que não ele mesmo, dimensão essencial do humano, que estrutura toda sua vida de
fantasia”. A questão é que o filhote do homem consegue desde muito cedo compor uma
imagem de si, algo que não acontece nos outros seres vivos. Para tanto, a relação polar pela
qual a imagem especular se liga, como unificadora, ao chamado conjunto de elementos
imaginários do corpo fornece um par, que não é preparado apenas por uma conveniência
natural de desenvolvimento e de estrutura para servir de homólogo à relação simbólica
Mãe-Criança. O par imaginário do estádio do espelho, convém relacioná-lo com uma
prematuração específica do nascimento no homem e mostra-se apropriado para dar ao
imaginário uma base que a relação simbólica possa de alguma forma abarcar.
30
Com efeito, é pela hiância que essa prematuração abre no
imaginário, e onde pululam os efeitos do estádio do espelho, que o
animal humano é capaz de se imaginar mortal; não que possamos
dizer que ele pudesse fazer sem sua simbiose com o simbólico, mas
sim que, sem essa hiância que o aliena em sua própria imagem, não
poderia produzir-se essa simbiose com o simbólico onde ele se
constitui como sujeito para a morte. (LACAN, 1998, p.558)
Antes da constituição do Eu muitas outras coisas se passam no universo do bebê
com relação à linguagem. Bem sabemos que a criança somente começa a se compreender, a
se chamar, como um Eu, bem depois de começar a falar. Ela pode dizer “nenê quer isso” ou
“Maria quer aquilo”, mas o “Eu quero isso” somente vem depois de a criança já ter uma
relação de diferenciação mais definida. O Eu é uma função, se assim podemos dizer, que
somente aparece na criança após a linguagem estar bem desenvolvida no seu
desdobramento em uma língua. Obviamente, a linguagem somente é necessária e viável na
relação com um outro também portador de linguagem.
A unidade imaginária que compõe o Eu somente se realiza na relação do sujeito
com o outro, que é o semelhante e o diferente ao mesmo tempo, porém essa relação com o
outro somente é possível através da linguagem, que cria um Outro
14
além do outro. Esta é a
realização do simbólico, a criação de um Outro que não é o outro enquanto semelhante ou
diferente, mas o Outro sem o qual nenhuma relação de interlocução é possível. O que isso
quer dizer? Que além do outro semelhante, existe um Outro que a linguagem cria. Em
outras palavras, a linguagem é um Outro para o sujeito. A linguagem não representa o
mundo, ela cria um mundo no qual o Eu e o Outro compartilham a beleza e a tristeza de
uma vida ao mesmo tempo limitada e expandida pelas palavras. Limitada, porque não
temos como sair do mundo das palavras. Expandida, porque dentro deste mundo tudo pode
ser outra coisa, quer dizer, trata-se de um mundo inconcluso. Estamos sempre recriando o
mundo.
Se antes do Eu muitas coisas acontecem no nível da linguagem, antes de a criança
começar a falar também acontece coisas, pois antes da fala com palavras a criança utiliza a
14
O Outro com letra maiúscula na teoria lacaniana é o lugar onde se encontram os significantes.
31
sua voz. Ela grita, ela chora. E quando o bebê utiliza sua voz? Quando ele necessita de
alimento, do seio, de carinho, da voz da mãe ou do pai, quando está molhada ou com dor,
etc. Neste período de vida a criança não sabe nem tem como saber que ela e o seio da mãe,
ou a própria mãe, são coisas diferentes. Ela não tem essa idéia de separação entre ela e o
outro, ela e o mundo. A criança começa a sentir a separação quando sente falta do seio que
a alimenta, do calor do corpo da mãe, da voz da mãe, mas também quando sente que algo
se desgruda do seu corpo como as fezes, a sua voz. O processo de separação da mãe, do
corpo da mãe, é algo que podemos observar desde muito cedo, um bom exemplo é o
período de desmame. Além da diferenciação da criança do corpo da mãe, a criança também
sofre um processo de diferenciação dela e do mundo, dos objetos e pessoas ao seu redor, o
que também podemos observar, por exemplo, quando quebra um objeto e a criança começa
a chorar como se ela tivesse se machucado. Aos poucos a criança vai deixando de fazer
parte da mãe e do mundo ao seu redor de forma simbiótica e passa a constituir uma
unidade, quer dizer, começa a formar um Eu. Porém, neste processo ela perde o suposto
acesso imediato às coisas que lhe interessam. Ela já não é mais o conjunto, mas apenas um
elemento do conjunto.
A voz é o que mais preenche as faltas provocadas pela separação mãe-bebê, bebê-
mundo. Primeiro a voz, o grito, o choro ocupam esse espaço que resta da separação, depois
as palavras “mama”, “nenê”, “baba” etc. Como acontece esse envolvimento da voz pela
palavra? Quando o bebê grita continuamente, vem uma voz que lhe diz: “O bebê está com
fome”; “O bebê quer a mamãe”; “O bebê está com frio”, etc. Essa voz, endereçada a uma
outra voz, o grito, supõe que essa voz que grita seja sustentada por um sujeito, supõe que
ela represente um sujeito. E esta suposição é essencial para que a criança, então dotada de
voz, possa se tornar um sujeito. Está claro que aqui não se trata dos significados das
palavras bebê, frio, fome, mamãe. A criança ainda não possui condição de definir esses
referentes. O que conta então? É o endereçamento da voz a um suposto sujeito também
dotado de voz. A criança, quando grita, o faz para marcar um lugar para um outro; o
endereçamento de sua voz, a princípio, é direcionado para a voz que ela escuta.
32
Quando falamos temos a impressão de que somos a nossa voz, impressão que
aumenta quando falamos com nós mesmos. Porém, não somos uma voz, nós temos uma
voz. Voz que é modelada a partir das vozes escutadas. Isso pode ser observado no caso dos
dialetos, dos acentos diferenciados dados às palavras dependendo da região onde elas são
faladas. Esta é uma das razões das crianças gritarem, chorarem diferente dependendo da
língua em que elas estão inseridas. Elas moldam a voz de acordo com a língua que elas
escutam e para a voz que elas escutam. A voz do bebê reflete as vozes e a língua que o
cerca. Vamos um pouco mais adiante. O bebê escuta várias vozes (mãe, pai, irmão, tio, voz
própria, etc.). Para ele enunciar, precisa fazer de todas estas vozes um conjunto único, que
será a sua voz. Ele não repete como um gravador o que escutou, as vozes separadas e em
tons diversos. Ele somente falará, por exemplo, a palavra mamãe após escutá-la de várias
formas, talvez dita por várias vozes. Como resultado de todas as vozes escutadas teremos
uma voz que é pronunciada sendo endereçada a alguém, pode ser até mesmo ao próprio
locutor. Esta voz pronunciada é então um conjunto resultante de todas as vozes escutadas.
Como o falante escuta também a sua própria voz, este conjunto deveria necessariamente
conter, dentro dele, a própria voz também, ou seja, seria necessário um conjunto que
contém a si mesmo. O que de fato é um paradoxo.
Como resolver esse paradoxo? A voz resultante do somatório de todas as vozes
entra no conjunto como um elemento que falta ao conjunto, pois ele não tem como conter a
si mesmo. Este elemento que falta, a voz própria, o somatório de todas as vozes, nós vamos
colocá-lo no conjunto representando esta falta, representando a voz própria e portanto
representando também o somatório de todas as vozes escutadas. Este elemento que
representa a falta representa também o somatório de todas as vozes, quer dizer que todas as
vozes do conjunto estão duplicadas neste elemento que representa o seu somatório. Este
elemento que falta e que representa o somatório de todos os elementos do conjunto
organiza então o conjunto, pois cada elemento terá nele a sua referência. Quer dizer: a voz
do pai faz parte do conjunto de vozes escutadas, mas também faz parte do somatório
resultante de todas as vozes, ela também está neste elemento que representa o somatório de
vozes, a voz própria e a voz que falta ao conjunto. A possibilidade de construir este
conjunto está na inclusão de um elemento que represente a falta, ou seja, que represente a si
33
mesmo como faltante. Esta é também a possibilidade do particular frente ao universal. O
particular não é o individual, mas a relação de um elemento do conjunto com os outros
elementos do conjunto. A particularidade somente existe na heterogeneidade. Este elemento
que falta não é nada de metafísico. Devemos nos lembrar que é um conjunto de vozes a que
estamos nos referindo, e o elemento que representa a falta, representa a falta de voz. Em
outras palavras, este elemento é o silêncio. Silêncio dentro da fala, silêncio dentro da voz,
aquele que marca o passo, que distingue uma palavra, um significante na continuidade de
sons escutados.
As pausas do grito do bebê, quando começam a ter uma certa cadência, uma certa
sonoridade, possibilitam à mãe escutar na voz do filho uma língua, que é a sua. Isso lhe
possibilita conferir sentidos aos diferentes sons que o bebê emite. A criança então começa a
falar impulsionada pelo desejo da mãe de que ela fale: “O bebê está com fome”; “O bebê
quer carinho”; “O bebê quer dormir”. É a partir de falas endereçadas à criança que o grito
emitido em função de uma necessidade de se alimentar se torna um grito cadenciado, que
representa um sujeito. Como vemos, a linguagem já estava lá com o bebê desde o princípio,
o grito estava lá também, mas se não lhe for endereçada uma voz o sujeito não aparece, não
vem para ocupar o seu lugar no mundo. Sabemos, através da clínica psicanalítica
15
que
quando a voz não é endereçada ao bebê, supondo lá um sujeito que a escute, pode ocorrer o
autismo ou a psicose. Hoje já existem tratamentos psicanalíticos para bebês, se assim
podemos chamar, e um dos trabalhos realizados é justamente o endereçamento da voz aos
bebês, possibilitando assim que ali um sujeito possa vir a tomar seu lugar.
A teorização do Eu como uma função imaginária é de grande importância nesta
pesquisa, justamente como base para realizarmos as análises, no capítulo 7, quando
abordamos a representação da voz própria, a representação da voz dos outros e a
representação da voz latente. Conforme a teoria de Authier-Revuz (1995), o imaginário da
enunciação é o que confere a pretensa homogeneidade à própria enunciação. A estreita
relação entre o Eu e o outro, articulada pela voz, é um dos pilares deste trabalho.
15
Conforme trabalhos de Marie-Christine Laznik-Penot (1997), dentre os quais Rumo à palavra – três
crianças autistas em psicanálise.
34
3.2 A VOZ DE JACQUES LACAN
Lacan construiu sua teoria ministrando oralmente seminários abertos durante o
período de 27 anos. Embora ele tenha também escrito vários artigos, o maior volume de sua
obra são os seminários sustentados por sua voz. Os textos escritos, que foram publicados
justamente com o nome de Escritos, segundo ele próprio (1990), não eram para serem
lidos
16
. Diante disso restou uma questão para aqueles que não puderam estar
presencialmente em seus seminários: Como fazer a transcrição da palavra falada para a
palavra escrita? Como decidir a pontuação, as homofonias, os mal-entendidos, os
parênteses, os travessões, as reticências? Como restabelecer a voz de Lacan? Jacques Nassif
(2004, p.191, tradução nossa) procura resolver a questão - de que os escritos não são para
serem lidos - da seguinte forma:
Ora é suficiente que esta afirmação seja lida como uma incitação a pensar
que o escrito, em sua fatura, é apenas um revezamento, no limite
supérfluo, entre a proferimento pela voz de um autor e a restituição pela
voz de seu leitor, para que esta fórmula, de fato, tome sentido. Aqui quase
toda questão torna-se então saber o que o leitor vai tirar de sua leitura se
apagando ela mesma.
Na releitura da obra de Freud realizada por Lacan (1986, 1990, 1998), nós
encontramos a voz como um objeto da pulsão invocante. Freud conduziu a questão do
objeto na psicanálise como um objeto perdido em jogo na repetição. Lacan (1990) retoma
de Freud (1987b) o conceito de pulsão e o torna um dos quatro conceitos fundamentais da
psicanálise junto com a repetição, a transferência e o inconsciente. Situando a pulsão na
relação com o objeto, esta torna-se pulsão parcial, quer dizer, nunca completa. Ele conserva
16
“Escrevendo Escritos no invólucro da coletânea, é o que eu ouvia a mim mesmo prometer-me: um escrito, a
meu ver, é feito para não se ler.” (LACAN, 1990, p.263)
35
os componentes freudianos da pulsão: fonte (quelle), impulso (drang), objekt (objeto), alvo
(ziel).
No sentido freudiano a pulsão é uma energia, a fonte de todo funcionamento
humano. Para Freud (1987b) a pulsão tem sua fonte na excitação corporal, seu objetivo é de
suprimir a tensão que reina na fonte de excitação e obter assim a satisfação; o objeto é o
que a pulsão procura atingir. Freud (1987b) coloca o acento sobre as pulsões sexuais, mas
estende o conceito a outros domínios; Freud fala, por exemplo, de pulsão do Eu, de auto-
conservação, pulsão de vida e pulsão de morte. Segundo Freud (1987b, p.158), no artigo A
pulsão e suas vicissitudes: “se o objeto se torna uma fonte de sensações agradáveis,
estabelece-se uma ância (urge) motora que procura trazer o objeto mais perto do Eu e
incorporá-lo ao Eu”. No artigo O inconsciente, Freud (1987c) se refere a pulsão como
meio termo entre o orgânico e o psíquico. A pulsão em Freud (1987c, p.203) é sempre
inconsciente:
De fato, sou da opinião que a antítese entre consciente e inconsciente não
se aplica às pulsões. Uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da
consciência – só a idéia que a representa pode. Além disso, mesmo no
inconsciente, uma pulsão não pode ser representada de outra forma a não
ser por uma idéia (apresentação).
Quanto à tensão que compõe a pulsão, Lacan (1990, p.169) diz que “a tensão é
sempre um fecho, e não pode ser dissolidarizada de seu retorno sobre a zona erógena”.
Segundo Lacan (1990), a pulsão parte da borda erógena (boca, olho, etc.) faz um trajeto em
torno do objeto para retornar sobre a borda de onde partiu. O que é fundamental é o trajeto
de ida e vinda em circuito. Para Lacan (1990, p.170), o “alvo da pulsão não é outra coisa
senão esse retorno em circuito”. A satisfação da pulsão não está em atingir o seu objeto,
mas em fazer o trajeto em torno do objeto, retornando ao lugar de onde partiu. Lacan
(1990) refere que para Freud este objeto é apenas a presença de um vazio, ocupável por não
importa que objeto, e cuja instância nós conhecemos na forma de objeto perdido “a”, que,
de fato, não é a origem da pulsão, ele é o que nos diz que nenhum objeto jamais satisfará a
36
pulsão, ou seja, nenhum alimento satisfará a pulsão oral, tendo em vista que sua satisfação
não está no objeto mas no trajeto em circuito. Neste sentido é que damos nomes variados
aos alimentos, inventamos mil e uma formas de jantar, vamos a restaurantes exóticos,
porque a questão não é o alimentar-se pura e simplesmente.
O corpo biológico, após sua introdução na linguagem, se transforma em um corpo
falante, pom o corpo falante não é o mesmo que o corpo biológico, embora a relação seja
evidente. O corpo falante é um corpo tecido pela linguagem, é um corpo tomado pelo
significante, repleto de significados diversos que excedem em muito as necessidades
fisiológicas. Funções como alimentação, defecação, ser tocado, emitir sons e olhares, não
se inscrevem no puramente fisiológico mas em uma relação simbólica e imaginária que
colabora com a introdução do bebê no mundo humano no mesmo momento em que o
diferencia do mundo e dos outros humanos. Nas primeiras relações do bebê com o mundo,
é a partir de seus orifícios que começa a mediação entre o que é o bebê e o que é o mundo
do qual o bebê se diferencia. Os objetos originários destes orifícios e o corpo todo da
criança estão longe do caráter puramente biológico. A boca é lugar de satisfação da
necessidade oral e de emissão da voz, o orifício anal é lugar de cuidados maternais e de
uma demanda posterior de propriedade, nos olhos abre-se o olhar ao mundo e o ser olhado,
e ainda temos os orifícios da pele, o toque.
Os objetos da pulsão, os objetos “a”, na vida do bebê são quatro, segundo Lacan: o
seio (objeto da pulsão oral), as fezes (objeto da pulsão anal), o olhar (objeto da pulsão
escópica) e a voz (objeto da pulsão invocante). Esses objetos fazem parte do corpo erógeno
do bebê. São objetos que se destacam do corpo, mas que continuam a fazer parte do corpo
como algo que é possível perder, então que lhe faz falta. A relação com esses objetos
acontece em meio a um banho de linguagem. A mãe diz: “Está com fome, está limpo, o que
o bebê quer? Olha a mamãe”. De fato, esses objetos são mais os estilhos do objeto “a”,
que é sem essência; eles cumprem a função de objeto “a”, que é sempre uma função de
separação.
37
Lacan (1990), no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, aborda o objeto “a” mais especificamente com relação ao olhar, ou seja, a
pulsão escópica. O olhar na função de objeto “a”, nos diz Lacan (1990), está ligado à
função da introdução do fascinatório, quer dizer, é um objeto que fascina. Ele diz que no
campo escópico o sujeito não é essencialmente indeterminado, pois neste caso ele é
determinado pela separação que o objeto proporciona no sentido de olhar e ser olhado.
Neste sentido Lacan (1990, p.114) vai sublinhar a importância da “distinção total do
registro escópico em relação ao campo invocante, vocatório”, pois no campo vocatório o
sujeito, efeito da linguagem, é sempre indeterminado.
O Objeto “a” é alguma coisa de nosso corpo que restará para sempre desconhecida,
inacessível, é o objeto que conserva sua conotação de real não simbolizável. Vários serão
os objetos que ao longo de uma vida poderão ocupar o lugar de objeto “a” para o sujeito,
porém a condição de ser do objeto “a” é sempre de incompletude, de uma perda, ou seja,
sua condição é deixar aberta a possibilidade de troca com outros homens, com o meio
ambiente transformado pela linguagem. Enfim é poder desejar, tendo em vista que algo nos
falta, que não somos completos. Essa falta, como dissemos antes, não é uma necessidade
puramente fisiológica. Ela está diretamente ligada à linguagem, quer dizer, é a
representação da falta. Então não temos fome de alimento simplesmente, temos fome de
mamadeira, lasanha, bife, do nada no caso da anorexia, ou seja, temos fome de letras
também. Letras, palavras que nos vêm da boca de outros. Pela palavra desejamos o que o
outro deseja. Enfim desejamos desejar. Esta é uma das relações da linguagem com o desejo.
Então, se o objeto “a” é o objeto causa do desejo, ele o é na medida em que ele pode ser
qualquer coisa desde que mantenha o desejo, ou seja, que não o satisfaça de um todo.
O objeto “a” na sua função de voz é a parte mais opaca do discurso, porém é o
elemento pelo qual é possível a repetição. Ele é sem essência porque pode assumir várias
formas, e é justamente por esse caminho que a relação da linguagem com o objeto “a” é
necessária. A linguagem precisa de um objeto que seja sem essência, como um recipiente
vazio, para poder ali se fazer. Por isso a linguagem pode se fazer através do som, dos
gestos, do traço, das cores, porque de fato o que a possibilita não é a matéria, mas as
38
relações de diferença entre os elementos da matéria recortados tal qual o modelo da voz. De
fato, o objeto “a” somente é objeto “a” na sua relação com a linguagem.
Charles Melman (2005), no congresso de verão da Association Lacanienne
Internationale, nos apresentou um bom exemplo, partindo da matemática, do que seria o
objeto “a”: ele parte da questão que, entre o número 0 e o número 1 existe um intervalo e
que, para o número 0 passar a ser número 1, nós devemos começar uma série, por exemplo:
0,1; 0,12; 0;123; 0,1234 e irmos aumentando até chegarmos bem próximos de 1, mas
sabemos que jamais chegaremos a 1. Isso que falta para chegar no 1 é o objeto “a”. No
seminário XV, lição de 21 de fevereiro de 1968, Lacan (2001b, tradução nossa) diz que “a
função do objeto pequeno “a” é de falta e de distância e nunca de mediação”, ele é um
objeto que cai sempre. O objeto “a” é definido como um resto irredutível à simbolização no
lugar do Outro.
Na teoria lacaniana, a voz cumpre a função de objeto “a”. O objeto “a”, para Lacan
(2001b, tradução nossa), no seminário de 20 de março de 1968, é o que produz a divisão do
sujeito; ele diz que o “(...) sujeito decisivamente se separa, se reconhece por ser causado
pelo objeto em questão. Causado em quê? Causado na divisão de sujeito”. A voz se
relaciona diretamente ao significante no sentido de que o significante diz da estrutura da
linguagem e a voz é o que o significante não consegue engolir, quer dizer a voz, com
relação à estrutura, ela resta de fora. Ainda no seminário XV, lição de 24 de janeiro de
1968, Lacan (2001b, tradução nossa) diz que “este objeto ‘a’ é absolutamente decisivo para
o que se trata concernente à estrutura do inconsciente”, justamente porque ele é a causa da
separação entre o enunciado e a enunciação, o que quer dizer que ele é a causa do
inconsciente estruturado como uma linguagem.
Lacan (1998, p.840) nos lembra que nós não somos um corpo, nós temos um corpo.
Esse corpo é construído pela linguagem. Ter um corpo é ter uma representação para si e
para o outro. Então, o objeto a” é o que separa o corpo falante do que ele produz, do
mundo em que este corpo está embebido, ao mesmo tempo em que o introduz em uma
relação de troca que deverá persistir até à morte. A linguagem aqui joga seu papel principal,
39
ou seja, a possibilidade de algo poder ser, via representação, aquilo que não é. E ainda
poder representar a própria representação. A possibilidade do engano, da ambigüidade, ou
seja, de representação, nos leva à possibilidade do bebê se satisfazer com algo que não é a
necessidade orgânica. É o que faz das fezes, do seio, algo que se relaciona à demanda de
amor, atenção etc. Esse duplo processo de ligação e separação concerne então à construção
do corpo falante e diz respeito à inscrição do sujeito em uma língua.
No seminário XXIII, Lacan (2005, p.72) apresenta o objeto “a” no centro do nó
borromeano como algo que participa, ao mesmo tempo, do simbólico, do imaginário e do
real. Se nós pensarmos a voz como fazendo a função de objeto “a”, como a causa da
divisão do sujeito e conseqüentemente como causa do desejo, nós encontraremos que a voz
é o objeto que tem em si a condição de estar no real (existência)
17
, no simbólico
(insistência) e no imaginário (consistência) ao mesmo tempo.
3.3 A VOZ DE GABRIEL BERGOUNIOUX
Gabriel Bergounioux, lingüista, professor da Universidade de Orleans na França
vem desenvolvendo uma teoria sobre a endofasia, conhecida como fala interior ou discurso
interior. Em 2001 ele organizou o volume 132 da revista Langue Française, tematizando a
fala interior e, em 2004, publicou o livro Le moyen de parler, no qual apresenta mais
detalhadamente sua teoria sobre a endofasia ou fala interior. A dificuldade de abordar um
tema como esse no campo da linguistica é evidente. Quais são os corpora, a materialidade
lingüística que poderemos analisar no caso da endofasia? Bergounioux propõe pensarmos a
lingüística não somente do ponto de vista do locutor, como é o mais comum, mas a
pensarmos a partir do lugar do ouvinte. Neste momento, o que nos interessa das colocações
17
A relação do real como existência, do simbólico como insistência e do imaginário como consistência nos é
fornecida por Lacan ao longo dos seus seminários. Essa lógica foi trabalhada por nós no artigo O pai do
sonho (HARTMANN, 2002), no qual trabalhamos a problematização do real como impossível, do desejo
como contingente e da repetição como necessário.
40
de Bergounioux (2004, p.203, tradução nossa) é a aproximação que ele faz da fala interior
com a voz :
A fala interior é indissociável da voz de dentro que a realiza, ao mesmo
tempo projeção do ouvinte e produto das relações sociais, aquisição que
recapitula uma existência e suas aspirações, à semelhança dos modelos
que lhe escapam. Falar de endofasia não seria possível sem que fosse
questionada a morfogênese desta voz sem sinal.
Bergounioux (2004) considera a voz como um sociograma. Ele defende a idéia de
que a voz não é uma cópia ou uma imitação de outras vozes, embora ela se modele sobre
outras vozes. Para ele não há outra possibilidade para a fonogênese que a reprodução,
nenhum estado mais natural existe, relativo ao que viria introduzir as formas apropriadas
para a escuta. Porém, esta reprodução não é da ordem de uma simples escolha. A mistura
de vozes que atua na formatação da voz relaciona-se a um processo de aprendizagem no
qual componentes endógenos não são destacáveis dos componentes exógenos. A produção
falada depende do que é ouvido. As vozes não são recopiadas, elas são interiorizadas. Nada
do que elas são em um ouvinte as precede. A aquisição de uma língua por uma criança
também é indissociável da socialização.
Segundo Bergounioux (2004, p.204, tradução nossa), a voz é “a memória das
identificações sucessivas onde, em uma inflexão, segue-se facilmente a lembrança de um
acento dialetal, que a influência de um tal amigo, o modelo de um personagem”, tornaram
possível fixar em um traço de pronunciação. A voz se modela de acordo com processos de
recusa ou filiação, seja a figuras parentais, grupos sociais, políticos, econômicos ou mesmo
em função das paixões que impulsionam aquele que fala. Para Bergounioux (2004, p.205,
tradução nossa), a voz se modela, “se define, com relação a um parceiro, em uma gama
estendida da autoridade à sedução, da obediência ao desafio, seguindo os cânones em vigor
em uma sociedade”.
41
A voz também é um índice de diferenciação, seja referente ao sexo, idade,
determinado dialeto; Bergouniuox (2004) refere-se ao conjunto de marcas da voz como
uma espécie de “impressão digital”, única para cada indivíduo. Sendo assim, ela é um
princípio de classificação, objeto de julgamentos e avaliações. Bergounioux (2004, p.206,
tradução nossa) postula que o processo de construção de uma imagem de si é explicado
“pela introversão de seus produtos linguageiros, um momento de eco”. O eco surge após
que a voz escape à procura de um ouvinte e retorne sozinha, sem ser reanimada por outro
ser falante. No instante no qual se produz o retorno, a ausência de troca dialógica transfere
ao emissor a carga de ser seu próprio respondente. O eco proporciona o testemunho da
presença do sujeito no mundo. O processo de identificação que sofre a voz somente
encontra cumprimento no imaginário. Segundo Bergounioux (2004, p.208, tradução nossa):
“dentre as vozes familiares a um ouvinte, somente a sua não chega, para aquele que ouve, a
coincidir com ela mesma, suplantada, quando ela é proferida, por uma reconstrução mental
que a ultrapassa e a traveste”.
Bergounioux (2004), tomando emprestado de Freud a nominação de eu ideal e ideal
do eu, faz uma analogia com o seu conceito de voz. A voz ideal é aquela à qual gostaríamos
de nos identificar, é o modelo de voz buscado, imaginado. Conforme Bergounioux (2004,
p.209, tradução nossa): “a voz é percebida por aquele que a profere, menos marcada que
por aquele que a recebe, estigmatizada de menos acentos, com indicadores sociais e
dialetais menos acusados”. De fato, a voz que imaginamos ter, a própria voz ouvida pelo
locutor, esta não precisa de retificações tais quais as praticadas por outros ouvintes no
sentido de adequar as diferenças relativas à imagem, às identificações de cada locutor.
Bergounioux (2004) relaciona a voz ideal aos propósitos das citações entre aspas, de fazer
ressoar no leitor essa duplicidade da voz.
Para Bergounioux (2004, p.210, tradução nossa), “a voz própria ou relatada está
presente logo que exista palavra, mesmo na leitura silenciosa, mesmo no dialogo interior, e
é (a) esta voz que se inventa que o ouvinte se concilia”. Ele exemplifica a voz ideal com o
estranhamento que sentimos ao ouvir nossa própria voz gravada, pois a voz que
imaginamos ser a nossa não parece ser aquela que ouvimos em uma gravação.
42
A voz ideal está ligada à busca de um modelo vocal, à construção de um estilo. As
fontes deste estilo são encontradas e controladas nas relações sociais. As relações de forças
entre grupos, as instituições de poder, os usos oficiais, a escolha do tipo de escrita, os usos
nos meios de comunicação de massa como rádio, cinema, televisão proporcionam modelos
aos quais se pode integrar ou diferenciar a própria voz. Atualmente, devido às novas
tecnologias da comunicação que possibilitaram a globalização de determinados modelos de
voz e o conseqüente apagamento de outros, encontramos modelos de voz muito distantes
daqueles que até então eram praticados em determinada região ou grupo social.
Bergounioux (2004, p.212, tradução nossa) diz que “o modelo vocal passou do professor
lendo o ditado ao animador apostrofando seu público, da sala de aula às mídias
audiovisuais”.
A voz ideal, que o ouvinte imagina ser a sua quando fala porque ele se ouve quando
fala, é inseparável de um ideal da voz que puxa e que atrai em direção dela a realização
sonora. O ideal da voz fica a distância de seu modelo. O ideal da voz desenha as hierarquias
e os domínios que se impõem conflituosamente a uma comunidade lingüística.
Bergounioux (2004) mantém sobre tensão as vozes ideais onde estão sedimentadas as
sucessões de aprendizagens comandadas pelas referências que transparecem nas situações
de discurso. O ideal da voz é o impossível de ser alcançado, porém ele influencia o
agrupamento das vozes ideais, dos modelos de voz, no sentido de possibilitar a emissão da
voz sem esperar uma identificação completa, por assim dizer. Neste jogo entre as vozes
ideais e o ideal da voz o locutor compõe a sua voz, única, singular, não coincidente com
nenhuma outra voz no mundo.
3.4 A VOZ DE JACQUES NASSIF
O conceito de voz no sentido que Jacques Nassif (2004) nos apresenta em seu livro
L’écrit, la voix, é a voz que endereçamos a um outro e é também a voz que escutamos, as
43
vozes que durante o sonho vêm povoar nossos pensamentos, a voz que damos a um texto
quando o lemos, a voz que fala conosco constantemente. A voz singular de cada um na
medida em que ela é estranha ao próprio sujeito quando este a escuta gravada. É a voz para
além da significação, além do sentido, o que ele busca desvelar em seu livro. A voz como
possibilitadora da diferença :
A voz, ou o que podemos definir como tal, é o instrumento da diferença: o
que permite à criança aceitar sair de sua autarquia ou se dispensar de se
acreditar fechada na prisão que pode constituir seu grito, se ela não
percebe, seja nela, seja ao lado dela, uma voz suscetível de a separar, tanto
de sua aderência a seu corpo próprio como da total dependência ao corpo
do outro. (NASSIF, 2004, p.316, tradução nossa)
Para Nassif (2004) a conceitualização da voz implica, em primeiro lugar, que
saiamos dos grandes quadros de generalizações que são o espaço euclidiano e o tempo
cronológico. Para a apreender, é preciso que seja isolada uma situação que vai além da
intersubjetividade. É preciso que algum outro, por seu silêncio ou sua ausência, seja
percebido como outro, remetendo então em questão o “familiar” da voz como pertencente
ao falante e também como um fenômeno. Nassif (2004) defende que a voz é sempre no
início a voz de um outro.
A voz é precisamente o mais imediatamente disponível para fazer existir o sujeito,
lá onde ele não é mais, ou seja, utilizamos a voz para separar o corpo falante daquilo que é
falado. Através da voz podemos dizer: “eu estou aqui”, quando estamos em outro lugar. E
esta transformação se fará neste espaço material onde se desenvolve e ressoa a questão: “Há
alguém aí?”, um espaço que a cadeia significante não é suficiente para recobrir e saturar.
Nós temos vozes, no lugar de sermos uma voz, o que implica uma confuo entre o som
emitido e o som recebido.
Nassif (2004) relaciona o conceito de voz ao conceito de leitura no sentido de que
toda leitura supõe do leitor que ele leia em voz alta ou baixa, pouco importa, mas com sua
própria voz. Ele relata que os afásicos motores, quando perdem a capacidade de falar,
44
perdem também a capacidade de ler. É uma das conseqüências diretas: a alexia é arrastada
pela afasia motora. Segundo Nassif (2004) nós podemos tomar a voz como a escuta interna
que temos de nosso ato de ler. Neste sentido a voz excede sempre sua retradução por escrito
ou o texto lido relança sempre à escuta de um dito. Para Nassif (2004), é a partir da leitura,
como distinta da escritura, que se encontra a voz como sendo o que há de mais recalcado, o
que há de mais esquecido.
Em uma conferência em Grenoble
18
, Nassif (2005, tradução nossa) fala que seu
livro L´écrit, la voix refere um retorno à clinica neurológica. Ele se refere à diferença entre
o cérebro direito e o cérebro esquerdo, pois nos destros “os sons da linguagem se localizam
no cérebro esquerdo, mas as melodias, tudo o que faz a musicalidade da voz, do lado direito
do cérebro”. Esta questão é colocada não no sentido de uma supremacia do orgânico, mas
justamente para refletir sobre a relação do orgânico com a linguagem. Por essa via ele diz
que, para falar de voz, precisou afastar o canto, afastar as melodias. Nassif (2005, tradução
nossa) indica que o que lhe interessa é “o grão e não a melodia da voz”
19
; para ele, a voz se
coloca em relevo na medida em que ela não se perde na sedução do canto.
Nassif (2005) retoma o aforismo de Lacan (2001a, p.449, tradução nossa), escrito
em L’Ètourdit, a 14 de julho de 1972 : “o que se diga resta esquecido atrás do que se diz
no que se ouve”. Ele vai dizer que aqui há duas vezes o verbo dizer e, segundo ele, o
primeiro “o que dizemos” é a voz, a voz que é subjacente. Mas dizendo: “resta esquecida”.
Nassif (2005) ainda defende que Lacan é freudiano e portanto para ele esquecimento e
recalque são a mesma coisa, assim como era para Freud. Nassif (2005) analisa que há três
lugares neste aforismo: o lugar daquele que ouve, atrás do que se diz, aquele ocupado por
aquele que atesta que houve um dizer, então uma vontade de fazer ouvir com sua voz, de
transmitir por ela alguma coisa, além do que se diz, que em seguida é esquecido na fala,
então recalcado. Esquecemos que ouvimos a voz do outro para fazer brotar o sentido na
18
O texto desta conferência me foi gentilmente enviado por Jacques Nassif com o título Ma voix à Grenoble.
“Une des hypothèses auxquelles je me suis risqué, tout à fait à la fin de mon livre, dans la conclusion, a aussi
consisté à revenir à la clinique neurologique, c’est-à-dire, à faire un sort à la différence entre cerveau droit et
cerveau gauche, puisque chez les droitiers en tous les cas, les sons du langage se localisent dans le cerveau
gauche, alors que les mélodies, tout ce qui fait la musicalité de la voix est du côté du cerveau droit.”.
45
interlocução. Assim que o sentido brota, aparece, esquecemos que havia a intenção de
construir o sentido através do endereçamento da voz.
Nós vivemos um esquecimento da voz porque o mais importante na sociedade atual
é o escrito. Segundo Nassif (2005, tradução nossa), “nós vivemos em uma sociedade em
que todos os atos da vida são registrados, arquivados, para a fiscalização, para o direito,
para o controle, para a contabilidade... O escrito está aí para fazer esquecer a voz”. De fato,
esquecemos que foi necessária uma voz para podermos ler. Nassif (2004) nos dá o exemplo
do “sim” dito no casamento, necessário no ritual, mas esquecido atrás dos registros em
cartório, das assinaturas das testemunhas. O que vale socialmente é o escrito
20
.
Nassif (2005) diz que através da leitura que faz ouvir a voz e da escrita que a faz
esquecer, que a torna supérflua e que a recalca, nós teremos a chaves para entrar no seu
livro, L’écrit, la voix. Para ele, o sujeito existe no tempo da leitura. Neste livro Nassif
(2004) apresenta a tese da escrita como objeto da voz, objeto no sentido de objeto da
pulsão, objeto substituível, objeto lábil e inconsistente da pulsão freudiana
21
. Aqui Nassif
faz uma inversão em relação a teoria lacaniana, pois para ele a voz não é somente um
objeto da pulsão, mas a própria pulsão. Pulsão que Nassif (2004) colocará o nome de
“Otique”, que está ligada à orelha, ao ouvir.
Para Nassif (2004) a leitura é um ato de emissão. Um ato que não podemos passar
em silêncio. Ele defende que a aprendizagem da fala nas crianças está diretamente ligada ao
fato de as crianças não pararem de ler sua própria voz. A voz é uma pulsão que oferece o
paradoxo de não podermos situar sua fonte, se ela é interior ou exterior, fixa, etc. Para
Nassif (2005), a voz não é somente uma pulsão, “é a pulsão mais arcaica. É talvez a
primeira pulsão, mas é também o lugar indispensável para a humanidade”. Ela é diferente
20
A este respeito podemos destacar uma relação entre a lei e a escrita. “Como bem sabemos, uma lei
constitui-se na possibilidade de repetição, portanto é necessária uma língua para se ter uma lei. A lei é anterior
à escrita, mas pela escrita ela encontrou uma maneira forte de se estabelecer. Supostamente sem equívocos
(HARTMANN, 2005b, p.50)”, porém retirar os equívocos seria desfazer a língua, ou seja, desfazer a lei.
21
Freud (1987b), no texto A pulsão e suas vicissitudes define a pulsão como “medida de exigência do
trabalho imposto ao psíquico em conseqüência de sua ligação ao corporal.”
46
das outras pulsões descritas na psicanálise, como a pulsão escópica, na qual a fonte são os
olhos, a pulsão oral, na qual a fonte é a boca, a pulsão anal, na qual a fonte é o ânus.
Podemos pensar que a laringe pode ser o lugar de sua emissão, mas não é verdade. É um
sopro, nos diz Nassif (2005, tradução nossa), “mas o sopro é uma coluna que se desloca, e é
necessário encontrar seu sopro, soprar o mais baixo possível. Em resumo, é uma grande
complicação”. A voz não se reduz à emissão, ao fazer sair pela boca, o que seria reduzir o
locutor a um alto-falante. A atribuição de origem do som não é situável com precisão nem
no corpo nem fora dele.
Conforme Nassif (2004), somente existe um domínio onde o sujeito não é dotado
para se defender contra a excitação. Esse domínio é a voz. De fato o sujeito não cessa
jamais de ser exposto à excitação de sua voz. O organismo não está dotado de nenhum tipo
de defesa contra a voz e não basta tapar as orelhas.
3.5 A VOZ DE JACQUES DERRIDA
Nunca houve percepção, e a “apresentação” é uma representação da
representação que, nela, se deseja como seu nascimento ou sua morte.
(Jacques Derrida, A voz e o fenômeno)
Da plena luz da presença, fora da galeria, nenhuma percepção nos é dada,
nem certamente, prometida. A galeria é o labirinto que compreende em si
suas saídas : nunca se cai ali como em um caso particular da experiência
(...) Então, resta falar, fazer ressoar a voz nos corredores, para suprir o
brilho da presença. O fonema, a akumene é o fenômeno do labirinto.
(Jacques Derrida, A voz e o fenômeno)
Não pretendemos aqui abordar a filosofia de Jacques Derrida em seu todo, apenas
tomar-lhe emprestadas algumas indicações que acreditamos serem pertinentes ao nosso
objeto de pesquisa. Abordaremos somente o conceito de voz, que Derrida (1994) nos
47
apresenta no ensaio A voz e o fenômeno, ensaio que o próprio autor
22
define como o que
mais preza. Trata-se de um ensaio que condensa o que Derrida (1995) desenvolverá mais
tarde na Escritura e a Diferença sobre o privilégio da voz e da escritura fonética em
relação a história do Ocidente. Neste ensaio ele parte de uma análise da fenomenologia.
Para Derrida (1994, p.92):
A escritura é um corpo que só exprime se pronunciar na atualidade a
expressão verbal que o anima, se o seu espaço for temporalizado. A
palavra é um corpo que só quer dizer alguma coisa se a intenção atual o
animar e o fizer passar de um estado de sonoridade inerte para o estado de
corpo animado. Esse corpo próprio da palavra só exprime se é animado
pelo ato de um querer-dizer que o transforma em carne espiritual.
O querer dizer é o endereçamento, e a carne espiritual é a voz. Por exemplo: quando
alguém lê uma frase de Lacan, precisa utilizar a sua voz para tal realização. Sem a voz, essa
corrente com a qual nos amarramos, que é a linguagem, não amarra nada. Nós poderíamos
ter uma argumentação contrária, como: mas hoje nós temos a possibilidade de reproduzir a
escrita, a voz, a imagem, até o infinito, e essa reprodução não tem uma voz que a sustenta.
Ela é simplesmente a reprodução. O que rebatemos, pois, se não for lido por alguém,
continuam no estado de sonoridade inerte. Ainda é necessário, para a voz que lê, encontrar
um resto de voz, seja qual for, por trás das palavras que são lidas. Um resto de voz, que já
não mais como voz simplesmente, mas como um significante, diriam os psicanalistas,
representa um sujeito.
O que nos interessa na teoria desenvolvida por Derrida (1994, p.89) é o conceito de
auto-afeição pura na sua relação com a voz:
22
Em uma entrevista concedida a Henri Ronse, publicada no livro Positions, Derrida (1994) diz que: “A voz
e o fenômeno talvez seja o ensaio que mais prezo. Em uma arquitetura filosófica clássica, A voz viria em
primeiro lugar [em relação a De la grammatologie e L’ecriture et la différence]: a obra se coloca em um ponto
que, por razões que não posso explicar aqui, parece juridicamente decisivo, a questão do privilégio da voz e
da escritura fonética em suas relações com toda a história do Ocidente, tal como essa se deixa representar na
história da metafísica, e em sua forma mais moderna, mais crítica, mais vigilante: a fenomenologia
transcendental de Husserl. O que é o ‘querer-dizer’, quais são suas relações históricas com o que se acredita
identificar com o nome de ‘voz’ e como valor da presença, presença do objeto, presença do sentido, presença
a si na palavra dita viva e na consciência de si ?”.
48
O sujeito pode ouvir-se ou falar-se, deixar-se afetar pelo significante que
ele produz sem nenhum desvio pela instância da exterioridade, do mundo,
ou do não próprio em geral. Qualquer outra forma de auto-afeição deve
passar pelo não próprio ou renunciar à universalidade. Quando eu me
vejo, seja porque uma região limitada do meu corpo se dá ao meu olhar,
seja pela reflexão especular, o não-próprio já entrou no campo dessa auto-
afeição, que desde então não é mais pura. Na experiência do tocante-
tocado acontece o mesmo. Nos dois casos, a superfície do meu corpo,
como relação com a exterioridade, deve começar por expor-se ao mundo.
A auto-afeição pura é basicamente a possibilidade de o sujeito, ao falar, se ouvir,
sem necessitar de meios exteriores. Isso somente é possível na voz; por exemplo, com
relação ao olhar, o se olhar olhando somente é possível via espelhos. Essa capacidade que
possuímos com a voz, de nos ouvir falar, chega a tal ponto que não precisamos mais falar
para nos ouvir, pois é o próprio sujeito quem fala e escuta. Seguindo Derrida (1994, p.90):
Não exigindo a intervenção de nenhuma superfície determinada no
mundo, produzindo-se no mundo como auto-afeição pura, ela (voz) é uma
substância significante absolutamente disponível. Pois a voz não encontra
nenhum obstáculo à sua emissão no mundo, precisamente enquanto ela se
produz nele como auto-afeição pura. Essa auto-afeição é, sem dúvida, a
possibilidade do que se chama subjetividade ou para-si; mas, sem ela,
nenhum mundo apareceria como tal, pois ela supõe, em sua profundidade,
a unidade do som (que está no mundo) e da phonè (no sentido
fenomenológico).
Na condição da auto-afeição pura, do “ouvir-se-falar”, o som pode não ser mais
emitido em direção ao outro, porque o outro a quem nos direcionamos está dentro de nós,
mas continuamos utilizando a voz. Porque a voz não é a materialidade, o som. Ela é a vida
das palavras por assim dizer, sua alma. Como disse Derrida (1994, p.22),
[. . .] não é a substância sonora ou à voz física, ao corpo da voz no mundo,
que ele (Husserl) reconhecerá uma afinidade de origem com o logos em
49
geral, mas à voz fenomenológica, à voz em sua carne transcendental, ao
sopro, a animação intencional que transforma o corpo da palavra em
carne. A voz fenomenológica seria essa carne espiritual que continua a
falar e a estar presente a si – a ouvir-se – na ausência do mundo.
A auto-afeição pura é a única possibilidade de o homem se dobrar sobre si mesmo,
sem a necessidade de um exterior a si. Como diz Derrida (1994, p.90), “a voz como auto-
afeição pura não corre o risco de morte no corpo de um significante entregue ao mundo e à
visibilidade do espaço”. O que está em questão aqui vem ao encontro do que é apontado
por Lacan (1998), Authier-Revuz (1995), Nassif (2004), Bergounioux (2004), que é a
possibilidade humana de ouvir-se-falar, de escutar a própria voz quando falamos. De tal
forma que é possível “ouvir-se-falar” em silêncio, sem a emissão de nenhuma
materialidade. Esse é o conceito de voz que, a partir destes autores, procuramos delimitar.
Conforme Derrida (1994, p. 89):
A operação do “ouvir-se-falar” é uma auto-afeição de um tipo
absolutamente único. Por um lado, ela opera no médium da
universalidade; os significados que aparecem devem ser idealidades que
se deve idealiter poder repetir, ou transmitir indefinidamente como os
mesmos. Por outro lado, o sujeito pode ouvir-se ou falar-se, deixar-se
afetar pelo significante que ele produz sem nenhum desvio pela instância
da exterioridade, do mundo, ou do não-próprio em geral.
A universalidade diz que a fala deverá ser capaz de ser entendida por outros, que ela
utiliza-se de uma língua, que o falante não construiu sozinho, quer dizer, a fala faz parte de
um universal que é a própria condição da língua. A relação entre o universal e o particular
do “ouvir-se-falar” é a própria condição humana. A educação se insere justamente nesta
lógica, que diz que o que é do singular têm sua origem no encontro entre o universal de
uma língua e o particular de um “ouvir-se-falar”. Se Derrida nos diz que a voz é a
consciência, é no sentido de sua relação com o universal. Não se trata de autoconsciência:
50
É essa universalidade que faz com que, estruturalmente e de direito,
nenhuma consciência seja possível sem voz. A voz é o ser junto de si, na
forma da universalidade, com com-sciência. A voz é a consciência. No
colóquio, a propagação dos significantes parece não encontrar nenhum
obstáculo, já que relaciona duas origens fenomenológicas da auto-afeição
pura. Falar a alguém é, certamente, ouvir-se falar, ser ouvido por si, mas
também, e, por isso mesmo, se se é ouvido pelo outro, fazer com que ele
repita imediatamente em si o ouvir-se-falar na mesma forma em que eu o
produzi. Repeti-lo imediatamente, isto é, reproduzir a auto-afeição pura
sem o auxílio de nenhuma exterioridade. (DERRIDA, 1994, p.90)
A consciência enquanto voz é o próprio afetar-se com as palavras que recebemos do
outro e de nós mesmos, evidentemente outro também dotado de voz. O universal e o
particular encontram na voz toda sua possibilidade de existência. Sem a voz, nem o
universal nem o particular tem como se sustentar no mundo humano, o mundo da
linguagem.
Nassif, que foi aluno de Derrida, refere que a diferença entre a sua teoria e a de
Derrida está na questão de distinguir leitura de escritura
23
. Segundo ele, para Derrida leitura
e escritura estão unidas sem possibilidade de separação, já para Nassif a leitura é distinta da
escritura e é isso o que lhe possibilita definir a voz como o que temos de mais recalcado,
mais esquecido. De fato, Derrida (1995) procura destronar a voz de seu lugar nas ciências
humanas, em especial na fenomenologia, em proveito do traço, do escrito. Ele buscava com
isso uma crítica à metafísica. Porém isso não causa um apagamento da voz, a qual ele vai
teorizar desde seus primeiros escritos, como é o caso de A voz e o fenômeno, uma crítica à
23
Nassif (2005, tradução nossa) relata: “Eu percebi que há todo um caminho percorrido entre, por exemplo, A
Escritura e a diferença, e o livro: O monolinguismo do outro, onde precisamente eu acredito que a
escritura e a leitura podem se dissociar. Na época, ao contrário de textos como Farmácia de Platão ou Freud
e a cena da escritura – onde o texto de Freud é ele mesmo decodificado, então mesmo que ele recalque
aparentemente a escritura, como a fazendo existir enquanto traço - é retomado justamente tudo o que Freud
escreve na carta 52, sobre o recalcamento como insucesso na tradução, ou no Bloco mágico, sobre a escritura
como memória não apagável do acontecimento. E é relendo textos desta ordem que tudo o que vinha no
sentido de fazer existir o traço estava imediatamente colocado ao crédito da psicanálise como podendo talvez
escapar da metafísica, do logocentrismo. Ora, para fazer isso, para realizar esta operação, não havia distinção
a fazer entre escritura e leitura. Escrever e ler são dois gestos do pensamento que vão completamente de par.
Isso não faz nenhuma sombra de dúvida que ler é escrever, e que escrever é ler. Ora, longe de ser o caso; o
que eu encontro é de preferência que a voz, ela mesma, que é recalcada, longe de ser o que há de mais
imediato para o sujeito do conhecimento no qual podemos nos apoiar, como o fazem os metafísicos. No A
voz e o fenômeno, um dos primeiros livros de Derrida, esta aderência da voz ao ser do sujeito é tematizada e
descrita, ao passo que é a partir da leitura como distinta da escritura que eu encontro a voz como o que há de
mais recalcado, o que há de mais esquecido”.
51
teoria da fenomenologia de Husserl. Sua conclusão no final deste livro é evidente: “Ao
contrário do que a fenomenologia - que é sempre fenomenologia da percepção – tentou nos
fazer acreditar, ao contrário do que nosso desejo não pode deixar de ser tentado a crer, a
própria coisa se esquiva sempre” (DERRIDA, 1994, p.117). Dizendo isso, ele afasta a
possibilidade da percepção da voz como o ponto de apoio do ser do sujeito.
Se a coisa escapa sempre é porque a voz, mesmo enquanto “ouvir-se-falar”,
enquanto auto-afeição pura, somente é voz estando intrinsecamente amarrada a linguagem.
Ou seja, nem mesmo a auto-afeição pura escapa da impossibilidade do absoluto. Derrida
(1994, p115) também escreve que “uma voz sem diferência
24
, uma voz sem escritura é, a
um só tempo, absolutamente viva e absolutamente morta”. A escrita e a fala são maneiras
do humano poder repetir o que lhe é endereçado e isso é realizado na e pela linguagem. A
voz por ela só, ou seja, sem estar tomada pela linguagem, não teria o estatuto de uma auto-
afeição. Mas somente a linguagem não basta, é necessária a palavra, ou seja, uma língua,
que nunca vai por si própria, que sempre vem do outro. Então, mesmo no caso da auto-
afeição pura, do “ouvir-se-falar”, que com certeza carrega sua peculiaridade, ainda não
estamos diante de um ponto absoluto onde poderíamos sustentar o fundamento de uma
existência incontestável, dentro da qual o um poderia se dizer o um independente da
linguagem, da língua e da voz do outro.
3.6 A VOZ DE MIKHAIL BAKHTIN
No texto de 1974, último escrito por Bakhtin (2000, p.404), intitulado A propósito
da metodologia das ciências humanas, o autor reafirma que o texto só vive em contato
com outro texto, de modo que “por trás deste contato há o contato de pessoas e não de
coisas”. Bakhtin (2000, p.404) prossegue, referindo a voz a esse contato de pessoas:
“Assim que convertermos o diálogo num texto compacto, ou seja, assim que apagarmos a
24
Diferência é um conceito que Derrida utiliza buscando um certo afastamento da palavra diferença. Digamos
que para Derrida a diferência vem antes da diferença.
52
distinção das vozes [...] o sentido profundo (infinito) desaparecerá (teremos batido no
fundo, ficaremos em ponto morto).”
O conceito de voz em Bakhtin diz da impossibilidade de um enunciado sem um
sujeito falante. Para o autor, a voz é a vida na palavra. Bakhtin (2000, p.350) diz que “é
aqui que encontramos, em toda sua integridade, posições, pessoas (A pessoa prescinde de
revelação extensiva: pode manifestar-se por um único som, revelar-se por uma única
palavra), justamente vozes”.
Em Bakhtin (2000) o sentido se distribui entre diversas vozes, e a voz tem uma
importância excepcional na individualidade. Porém, a voz em si não tem sentido. “Os
elementos lingüísticos são neutros a respeito da segmentação em enunciados e se movem
livremente, ignorando os limites de um enunciado, sem reconhecer nem respeitar a
soberania das vozes” (BAKHTIN, 2000, p.542). Nessa via o que interessa para Bakhtin
(2000, p.340) é a voz na palavra, como ele refere, “as vozes (no sentido de materialização
dos estilos sociais)”. É a voz enquanto diferente da palavra, mas não separada desta o que
possibilita a análise estilística que o autor realiza da obra de Dostoievski, por exemplo. Em
Estética da criação verbal (2000, p.353), afirma que:
Uma atitude fecunda com a língua exclui a palavra separada da voz, a
palavra da pessoa. Em cada palavra há vozes, vozes que podem ser
infinitamente longínquas, anônimas, quase despersonalizadas (a voz dos
matizes lexicais, dos estilos, etc.) inapreensíveis, e vozes próximas que
soam simultaneamente.
Esta diferenciação entre voz e palavra é extremamente importante na teoria de
Bakhtin (2000, p.44) para podermos compreender termos como polifonia, por exemplo:
“São vozes diferentes, cantando diversamente o mesmo tema. Isto constitui precisamente a
‘polifonia’, que desvela o multifacetado da existência e a complexidade dos sofrimentos
humanos”. Seguindo esta lógica, são as vozes que tornam a palavra polifônica. A polifonia
somente está na palavra na medida em que esta for carregada de vozes. A palavra vazia de
53
vozes não é polifônica. Então aqui nós temos que diferenciar, conforme Bakhtin (2000), o
que é da lingüística e o que o ele chamou de metalingüística ou translingüística (varia com
as traduções), quer dizer, algo que, não ignorando a lingüística propõe uma outra
abordagem da linguagem.
Em Esthétique et théorie du roman, no terceiro estudo, intitulado Formas do
tempo e do cronotopos no romance, texto escrito em 1937-1938, Bakhtin (2003a, p.384,
tradução nossa), acrescenta em 1973, um último capítulo intitulado “Observações finais”,
no qual ele passa a utilizar um termo que não encontramos nos seus textos anteriores, o
qual vem a ser extremamente pertinente para a nossa pesquisa. O termo é “ouvinte-leitor”,
sendo as duas palavras escritas formando um conjunto. Nesse estudo Bakhtin (2003a) faz
uma análise estilística de um imenso número de obras literárias; trata-se de um trabalho
bem diferente do que ele realizou quando analisou a obra somente de Dostoievski (2002) ou
somente de Rabelais (2003b), que são os outros dois livros que formam, com Esthétique et
théorie du roman, segundo Michel Acouturier
25
, “uma trilogia audaciosa e inovadora
sobre a teoria do romance”. Nesse livro, Bakhtin (2003a) se apresenta mais livre,
justamente, por não precisar se deter em um autor somente, podendo assim dar uma ênfase
maior a sua teoria.
Nós vamos nos deter neste texto acrescentado em 1973, no qual Bakhtin trabalha o
conceito de cronotopos. Antes faremos algumas breves considerações sobre o que vem a ser
cronotopos para Bakhtin (2003a, p.237, tradução nossa):
Nós chamaremos cronotopos, o que se traduz, literalmente, por ‘tempo-
espaço’: a correlação essencial espaço-temporal, tal como ela é assimilada
pela literatura. O termo é próprio aos matemáticos, ele foi introduzido e
adaptado sobre a base da teoria da relatividade de Einstein. (...) Nós
contamos de o introduzir na história literária quase (mas não
absolutamente) como uma metáfora. O que conta para nós é que ele
exprime a indissolubilidade do espaço e do tempo (este como quarta
dimensão do espaço).
25
Tradutor francês de Bakhtin no prefácio de Esthétique et teorie du roman, 2003a.
54
Ao longo do estudo sobre as formas do tempo e do cronotropos, Bakhtin (2003a)
busca relações entre interior e exterior relativo ao romance, entre cronotopos interior e
cronotopos exterior; mas o que seria para ele este exterior e interior? Em uma passagem
onde Bakhtin (2003a, p.279, tradução nossa) analisa as biografias e autobiografias antigas,
ele escreve que o cronotopos interior é “o espaço e o tempo da vida evocados, mas antes de
tudo o real, dentro do qual se completa esta evocação de sua vida própria ou aquela de um
outro [...] O cronotopo real é a praça pública, a agora.” Ele segue neste mesmo estudo
dizendo que, em Platão, “o homem, ele próprio, não porta nele nenhum nó inaudível,
invisível: nós o vemos, o ouvimos, ele é todo exterior”.
Segundo Bakhtin (2003a, p.282, tradução nossa), na antiguidade não existiam
esferas de existência mudas e invisíveis; por exemplo, para ele, as Confissões de Santo
Agostinho “não podem ser lidas em silêncio,[...] devemos declamar em voz alta e ainda
vivaz na forma do espírito da praça pública grega [...]”. Bakhtin (2003a, p.282, tradução
nossa) continua sua reflexão sobre o interior e o exterior, partindo dos gregos, que
“contrariamente a nós não conheciam a separação entre ‘exterior’ e ‘interior’ (mudo e
invisível). Nosso fórum interior estava no mesmo plano que nosso ‘exterior’, tão visível e
audível, e existia fora tanto para os outros como para ele”. O que Bakhtin (2003a, p.283,
tradução nossa) coloca é que no curso das épocas seguintes, as esferas, mudas e invisíveis,
de uma vida interior isolada do mundo, começam a tomar consistência no homem e que o
“mutismo e a cegueira penetram nele (...). Sua consciência própria, tendo perdido o
cronotopo popular de praça pública, não soube encontrar um outro, tão real, tão coerente e
único”.
É na análise da obra de Rabelais que Bakhtin (2003a, p.383, tradução nossa) vai
encontrar “o cronotopo de existência humana, ilimitado e universal”. Justamente porque na
obra de Rabelais, segundo Bakhtin (2003a, p.380, tradução nossa), não há a mínima
concepção de uma vida interior do indivíduo, o homem é todo fora. “Ele toca os limites de
exteriorização do homem, porque, ao longo de toda a sua enorme obra, não há uma só
passagem na qual sejam evocados os pensamentos do herói, seus sentimentos, seu
55
monólogo interior”. Neste sentido, na obra de François Rabelais não há mundo interior,
tudo é exprimido pela ação e pelo diálogo, pelo social.
No texto de 1973, Bakhtin (2003a, p.384, tradução nossa) inicia com a afirmação de
que “o cronotopo determina a unidade artística de uma obra literária na sua relação com a
realidade”. Para Bakthin (2003a, p.391, tradução nossa), é no cronotopo que o tempo
adquire um caráter “sensualmente concreto, no cronotopo os acontecimentos do romance
tomam corpo, se revestem de carne, enchem de sangue”. Todos os elementos abstratos do
romance gravitam em torno do cronotopo. A questão que nos interessa não é a análise
estilística do romance, formas de classificação da crítica literária, mas uma pergunta que o
próprio Bakhtin (2003a) se faz, que acreditamos ser extremamente pertinente para a
construção do nosso objeto de pesquisa. Não somente a pergunta, mas como ele a responde.
De certa forma ela vai muito além de uma análise literária e se refere ao âmago da
problemática instaurada entre o oral e o escrito, principalmente como podemos abordá-la
hoje com o advento da internet. Bakhtin (2003a, p.393, tradução nossa) se pergunta: “Como
são transmitidos os cronotopos do autor e do ouvinte-leitor?”. A sua resposta, embora seja
um pouco longa e complexa, merece ser relatada e discutida de acordo com os propósitos
estabelecidos nesta pesquisa. Bakhtin (2003a, p.393, tradução nossa) responde:
A princípio pelo fato exterior, material da obra, pela evidência de sua
composição. Mas seu material não é inerte: ele é falante, significante (ou
semiótico). Não somente nós o vemos, o tocamos, mas ali nós sempre
ouvimos vozes, mesmo no curso de uma leitura silenciosa, para si próprio.
Um texto nos é dado. Ele ocupa um lugar precioso no espaço, o que quer
dizer que ele é localizável. Mas sua criação, o conhecimento que nós
temos, se desenvolve no tempo. O texto, em tanto que tal, não se
apresenta como morto: partimos de não importa que texto para passar as
vezes por uma longa seqüência de elos intermediários, chegamos, no final
das contas, à voz humana, esbarramos, se assim podemos dizer, no
homem.
A importância da voz aqui é evidente. A voz é sempre voz de um sujeito, de um
humano. Está fora de questão uma voz que não seja, na origem, voz humana. E esta voz
precisa de uma materialidade para ser composta. Mas não se trata somente de uma
56
materialidade sonora. A voz é o que está impresso do humano na matéria que se endereça a
outro humano, de fato a voz compõe um texto. Bakhtin (2003a, p.393, tradução nossa)
segue na sua resposta e nós, com ele:
Ora um texto é sempre fixado em um material inerte: nas primeiras fases
da literatura, eram sonoridades audíveis, na fase da escritura foram os
manuscritos (sobre a pedra, o tijolo, o couro, o papiros, o papel). Mais
tarde o manuscrito pôde tomar a forma de um livro (volume-rolo, volume-
codex). Mas qualquer que seja a forma dos manuscritos e dos livros, eles
já se encontram na fronteira entre a natureza inerte e a cultura. E se nós os
abordamos como portadores de textos, eles entram no domínio da cultura
[...]
Para Bakhtin (2003a, tradução nossa), a cultura é o “tempo e o espaço de fato reais
onde ressoa a obra, onde se situa o manuscrito ou o volume, o homem real, que compôs o
discurso, o escrito, o livro”, assim como é também onde se encontram os seres verdadeiros
que escutam ou lêem o texto. Qualquer manifestação escrita é cultural, é social. A matéria
inerte, tocada pela cultura, endereçada ao outro, faz o texto. Este texto está fora do homem
e pode assumir várias formas. Atualmente as possibilidades são bem mais complexas que o
livro, como no caso da rede internet, mas mesmo assim a lógica que nos apresenta Bakhtin
(2003a, p.393, tradução nossa) ainda é completamente praticável. E ela diz o seguinte:
Evidentemente, autor, ouvinte, leitor podem se situar (e se situam
freqüentemente) em tempos e espaços diferentes, separados às vezes por
séculos ou distâncias enormes, mas pouco importa: eles estão todos
reunidos em um mundo único, real, inacabado, histórico, separado por
uma fronteira brutal e rigorosa do mundo representado no texto.
Essa questão é fundamental para pensarmos o que quer que seja com relação a
internet. Os interlocutores (locutores, leitores, ouvintes) não são separados pela distância ou
pelo tempo, pois eles estão reunidos no mundo representado no texto. A possibilidade de
representação do mundo, obviamente via linguagem, é o que reúne os homens
57
independentemente do tempo ou da distância que estão uns com relação aos outros.
Conforme o autor:
Nós podemos então falar deste mundo (representante) como criador do
texto: todos seus elementos – tanto o reflexo da realidade, como os
autores, os executantes (se eles existem), enfim os ouvintes-leitores que
reconstituem e, o fazendo, renovam o texto, todos participam em partes
iguais na criação de um mundo representado. Dos cronotopos reais do
mundo criador, se deduzem os cronotopos refletidos e criados do mundo
no qual a obra (o texto) dá a imagem. (BAKHTIN, 2003a, p.394, tradução
nossa)
A criação e recriação do mundo representado, na qual autor e ouvinte-leitor estão
implicados ativamente, não é puramente abstrata, pois ela precisa de uma matéria inerte e
da cultura, ou seja, da vida das pessoas que carregam uma história mantida justamente no
texto. O que é importante aqui é que: “Entre estes dois mundos [...] passa uma fronteira
radical. É preciso nunca esquecer. Nós não podemos confundir [...] o mundo representado e
o mundo representante [...]” (BAKHTIN, 2003a, p.394, tradução nossa). Esta separação
marca de fato a divisão da qual todos somos reféns, sem a mínima possibilidade, por mais
que se tente, através de inúmeras propostas tecnológicas, colar, fazer Um da divisão entre
mundo representado e mundo representante.
O mundo representado, sendo uma representação, “não pode jamais ser idêntico do
ponto de vista espaço-temporal ao mundo real, representante, aquele onde se encontra o
autor que criou esta imagem” (BAKHTIN, 2003a, p.396, tradução nossa). O mundo
representante é o texto e o mundo ao qual ele dá origem. Com relação ao tempo esta
diferença pode ficar mais clara, quer dizer, “o tempo que representa e aquele que é
representado” (BAKHTIN, 2003a, p.395, tradução nossa). O mundo real é o mundo
representante, o mundo do texto, o mundo vivo. O mundo representado é a representação
do mundo real. O mundo representado, como o próprio termo já diz, é uma representação,
o mundo representante é o meio pelo qual esta representação se materializa. Vamos seguir
com Bakhtin para ver se isso se esclarece um pouco mais. Bakhtin (2003a, p.394, tradução
58
nossa) diz que é inadmissível do ponto de vista metodológico uma confusão entre mundo
representante e mundo representado, porém
não é mais admissível conservar esta fronteira como absoluta e
impenetrável (especificação de um dogmatismo simplista). A despeito da
impossibilidade de confundir o mundo representado e o mundo
representante, a despeito da fronteira rigorosa que os separa, eles estão
indissociavelmente ligados um ao outro e se encontram em uma ação
recíproca constante; entres eles têm lugar trocas ininterruptas, igualmente
às do organismo vivo com seu meio ambiente: enquanto o organismo resta
vivo, ele não se confunde com seu meio, mas ele morrerá se o
arrancarmos do seu meio. A obra e o mundo ao qual ela dá a imagem
penetra no mundo real e o enriquece. E o mundo real penetra na obra e no
mundo que ela representa, tanto no momento de sua criação como em
seguida, renovando continuamente a obra por meio da percepção criativa
dos ouvintes-leitores.
O que está em questão aqui, em primeiro lugar, é a diferença entre o mundo
representante, que diz respeito à matéria inerte trabalhada pela cultura humana, e o mundo
representado, ou seja, o mundo criado e re-criado. Bakhtin (2003a, p.394, tradução nossa)
defende a existência de “um cronotopo particular, criador, dentro do qual tem lugar esta
troca entre a obra e a vida, no qual se passa a vida singular de uma obra”. Como ocorrem
estas trocas entre a obra (texto) e a vida? No início de sua própria resposta, Bakhtin refere
que chegaremos, ao final das contas, na voz humana. O objeto de troca, se é que podemos
dizer assim, é a voz. É a voz o que torna possível a separação entre mundo representante e
mundo representado. Tirando a voz, o mundo representante não poderá representar nada,
faltará o meio pelo qual é possível a um texto representar qualquer coisa que seja. Bakhtin
(2003a) diz que em cada mundo representante, seguindo os elos da corrente, chegamos à
voz humana. A representação do mundo ocorre pela atividade do autor (voz na partida) e do
ouvinte-leitor (voz na re-partida). É a voz o que liga e separa o mundo real, o mundo
representante e o mundo representado. Somente a voz pertence a estes três planos (real,
representante e representado) e a nenhum totalmente.
59
3.7 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Finalizando este capítulo sobre a voz dos outros, algumas considerações se fazem
necessárias. Apresentamos aqui autores com teorias diferentes, que se inscrevem em
campos diferentes, seja a literatura, psicanálise, lingüística, filosofia. Esses autores foram
requisitados não devido a seus campos de inscrição ou a suas teorias como um todo, mas
basicamente devido ao questionamento sobre um ponto específico: o que é a voz no
humano. Quando tomamos as palavras de outros, assim como fizemos nesta tese, as
palavras vêm carregadas de suas vozes. A voz é o que confere vida à palavra, porém
quando tomamos estas palavras para compor este escrito, a voz que passa a dar vida a estas
palavras não é mais a de Bakhtin, Bergounioux, Nassif, Lacan, mas a voz daquele que lê.
Bem entendido que também aquele que escreve lê, enquanto escreve, quer dizer, ouve a sua
voz.
Então, quando dizemos que a voz enquanto objeto da pulsão precisa “cair”, ceder
lugar, para que o significante possa se ligar a outro significante em uma nova enunciação,
isso não quer dizer que a palavra não tenha sempre na origem uma voz, que vozes
continuem ecoando nesta palavra, como a polifonia para Bakhtin (2000). A voz “cair” diz
respeito ao fato de ela poder ser recalcada, esquecida. Na psicanálise a voz é objeto da
pulsão, ela faz parte do corpo falante. Ninguém é dono de uma língua, de uma linguagem,
de uma palavra, mas somos donos de uma voz. Podemos trocar palavras, discursos, nos
apropriarmos do dito de outros, mas nós não conseguimos nos apropriar da voz do outro e
nem o outro se apropriar da nossa voz. Essa é a diferença da voz com relação aos outros
elementos possíveis de um discurso.
Toda palavra tem sua ligação com uma voz que a pronunciou e é resultado de várias
vozes, mas, quando um sujeito toma esta palavra para compor a sua enunciação, a voz que
ainda ecoa na palavra não tem como tomar o lugar da voz particular do enunciador e
somente pode participar da construção da enunciação como a imagem da voz do outro,
jamais como a voz do outro em si. Não somos gravadores, simples repetidores da voz do
60
outro; quando a palavra se acomoda em outra voz isso não ocorre sem conseqüências. O ato
de tornar sua a palavra que vem do outro é um processo complexo que exige a queda
daquilo que organiza o discurso do outro, ou seja, a sua voz. A palavra do outro que o
locutor então pode incorporar ao seu discurso não carrega a voz do outro. A escrita é uma
prova disso. Necessitamos ouvir a nossa própria voz para realizar uma leitura, e não a voz
do outro. O que está contido nas palavras, em qualquer palavra, seja falada ou escrita, não é
a voz do outro, mas a imagem da voz do outro. A questão toda gira em torno de que é na
voz ouvida que está a essência da palavra. Uma palavra somente é palavra quando é ouvida,
por isso o sentido é construído na interlocução e não transmitido. Este é um de nossos
interesses na questão do discurso interior, tema que estudaremos no capítulo seguinte.
61
4 A VOZ E O DISCURSO INTERIOR
Gregor horrorizou-se ao ouvir sua própria voz, que era a de sempre, sim,
porém que saía misturada com um doloroso e irreprimível assobio fino, no
qual as palavras em princípio claras confundiam-se depois, ressoando de
modo que ninguém poderia estar certo de tê-las ouvido. (Franz Kafka, A
Metamorfose)
4.1 O DIALOGISMO
O que importa sublinhar, a nossos olhos, no conceito de dialogismo proposto por
Bakhtin (2000, 2002), é a dimensão global da produção do discurso e do sentido como
dependendo essencialmente das relações dialógicas. Na teoria de Bakhtin (2000), o sentido
somente se produz na interação de um discurso com outro discurso. O dialogismo é uma
concepção dinâmica da produção de discurso, e justamente este dinamismo confere ao
discurso uma propensão à pluralidade de sentidos, pois o sentido para Bakhtin (2000)
jamais se dá como pronto ou estanque, mas sempre no próprio movimento dialógico e,
sendo assim, sempre como inconcluso, inacabado, dependendo da presença do outro. Em
Bakthin (2002, p.257) o diálogo não é um meio, mas um fim. “Ser significa comunicar-se
pelo diálogo. Quando termina o diálogo tudo termina. Daí o diálogo, em essência, não
poder nem dever terminar”.
No dialogismo a unidade da enunciação se apresenta recortada pela presença do
outro discurso. A presença do outro discurso no um da enunciação é algo que nos interessa
na teoria bakhtiniana :
Um membro de um grupo falante nunca encontra previamente a palavra
como palavra neutra da língua, isenta das aspirações e avaliações de
outros ou despovoada das vozes dos outros. Absolutamente. A palavra, ele
a recebe da voz de outro e repleta de voz de outro. No contexto dele, a
62
palavra deriva de outro contexto, é impregnada de elucidações de outros.
(BAKHTIN, 2002, p.203)
Na teoria de Bakhtin (2000) cada palavra tem uma história, uma vida de palavra.
Ninguém é dono de uma palavra e também não existe uma palavra que não tenha sido
pronunciada por alguém. As palavras disponíveis em uma língua não são as mesmas
disponíveis em outra língua. O locutor tem a responsabilidade pelas palavras em seu
discurso, mas as vozes que ressoam nas suas palavras pronunciadas estão para além dele
próprio.
Em Bakhtin (2000) a palavra do outro é apropriada pelo locutor através das relações
dialógicas. Palavra que é sempre, de alguma forma, “semi-estrangeira”, com acentos
“estrangeiros”. O trabalho de apropriação da palavra do outro realizado pela enunciação se
revela de várias formas na estrutura da língua, seja no discurso relatado, aspas, itálico,
parênteses, tiras, pausa, entonação etc. Enfim todo trabalho que faz com que diferentes
palavras passem por diferentes vozes. É interessante sublinhar que este trabalho de
apropriação das palavras do outro não ocorre de forma consciente, como uma decisão
daquele que fala; o agente, neste caso, é o discurso e as relações dialógicas pelas quais ele
se faz. Em Bakhtin (2000), a verdade do funcionamento da linguagem é o diálogo, é a
interação do homem com o homem, seja com ele próprio seja com o semelhante. Como diz
Bakhtin (2002, p.257): “duas vozes são o mínimo de vida, o mínimo de existência”.
O que caracteriza a autoria para Bakhtin (2002) está intrinsecamente ligado ao
caráter dialógico da linguagem. Para ele um enunciado tem um autor na medida em que a
enunciação deste enunciado provocar uma reação dialógica na qual a enunciação será
personificada. De fato é a reação dialógica que produz o autor. O autor não é somente
aquele que escreve, fala, copia, enfim que enuncia, mas aquele que ao enunciar provoca
uma reação dialógica, quer dizer, aquele que é reconhecido no diálogo:
63
Todo enunciado tem uma espécie de autor, que no próprio enunciado
escutamos como seu criador. Podemos não saber absolutamente nada
sobre o autor real, como ele existe fora do enunciado. As formas dessa
autoria real podem ser muito diversas. Uma obra qualquer pode ser
produto de um trabalho de equipe, pode ser interpretada como um
trabalho hereditário de várias gerações, etc., e apesar de tudo, sentimos
nela uma vontade criativa única, uma posição determinada diante da qual
se pode reagir dialogicamente. A reação dialógica personifica toda
enunciação à qual ela reage. As relações dialógicas são possíveis não
apenas entre enunciações integrais (relativamente), mas o enfoque
dialógico é possível a qualquer parte significante do enunciado, inclusive
a uma palavra isolada, caso esta não seja interpretada como palavra
impessoal da língua, mas como signo de posição semântica de um outro,
como representante do enunciado de um outro, ou seja, se ouvimos nela a
voz do outro. (BAKHTIN, 2002, p.184)
O que é importante sublinhar nessas colocações de Bakhtin é que o enunciado ou
qualquer parte significante do enunciado pode representar um sujeito quando ouvimos nele
a voz do outro. Ora, se qualquer parte significante do enunciado pode representar um
sujeito, nós teremos uma constelação de enunciados, ou de partes de enunciados, se
dirigindo a outros enunciados. Porém estes enunciados, ou parte deles, somente são
significantes quando representam aquele que os pronunciou. Destaca-se neste sentido o fato
de que cada parte significante do enunciado está relacionada a uma voz que foi pronunciada
por um humano.
4.2 O AUTODIALOGISMO
O dialogismo que Bakhtin (2002) analisa nos textos de Dostoiévski não é somente
a estrutura da fala como diálogo, mas o autodialogismo ou ainda discurso interior, que são
todos nomes dados ao mesmo fenômeno discursivo da fala interior, o falar consigo mesmo.
Nenhum ser humano, na sua relação com a linguagem, escapa a esse fenômeno, que na
verdade, ao longo de uma vida, é muito mais freqüente do que a fala exterior. O problema é
que se trata de um fenômeno ao qual estamos familiarizados, mas que é impossível ser
analisado diretamente, isso devido ao fato de ele não produzir um material concreto no
64
nível da língua. Tal fato não descarta a relação deste fenômeno com a língua. Diante disso,
o que nos é possível analisar é tão somente a representação do discurso interior e não o
discurso interior em si.
Bakhtin (2002), antes de tocar na questão do autodialogismo, desenvolve o conceito
de imagem da idéia em Dostoiévski. O que vem a ser isso? Quando falamos de imagem da
idéia, logo duas questões vêm a mente; a primeira : o que é uma idéia? e a segunda: o que é
uma imagem? Entretanto na análise crítica literária da obra de Dostoiévski, realizada por
Bakhtin (2002), o que está em jogo é a representação da idéia. A imagem da idéia está
ligada à imagem do homem seu portador e neste sentido ela é inacabada. “Não se trata de
caráter, temperamento ou tipo social ou psicológico: é evidente que a imagem da idéia
plenivalente não pode combinar-se com semelhantes imagens exteriorizadas e acabadas dos
homens” (BAKHTIN, 2002, p.84). A dificuldade que se apresenta aqui é a representação de
uma imagem inacabada. Todos sabemos que a imagem se apresenta como plena, porém a
imagem resta inacabada se ela é simbolizada, ou seja, se ela é capturada pelo discurso.
Vejamos:
A idéia, como a considerava Dostoiévski-artista, não é uma formação
psicológico-individual subjetiva com “sede permanente” na cabeça do
homem; não a idéia é interindividual e intersubjetiva, a esfera da sua
existência não é a consciência individual mas a comunicação dialogada
entre as consciências. A idéia é um acontecimento vivo, que irrompe no
ponto de contato dialogado entre duas ou várias consciências. Neste
sentido a idéia é semelhante ao discurso, com o qual forma uma unidade
dialética. Como o discurso, a idéia quer ser ouvida, entendida e
“respondida” por outras vozes e de outras posições. Como o discurso, a
idéia é por natureza dialógica (...) (BAKHTIN, 2002, p.87)
Segundo Bakhtin (2002, p.87), Dostoiévski representava artisticamente a idéia em
sua natureza dialógica. “Não há nenhuma formação psicológica da idéia numa consciência
fechada”. A criação da imagem da idéia em Dostoiévski refere-se à natureza dialógica da
idéia, à natureza dialógica do pensamento humano, pois a idéia não vive na consciência
individual isolada de um homem. Conforme o autor:
65
O pensamento humano só se torna pensamento autêntico, isto é, idéia, sob
as condições de um contato vivo com o pensamento dos outros,
materializado na voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros
expressa na palavra. É no ponto desse contato entre vozes-consciências
que nasce e vive a idéia. (BAKHTIN, 2002, p.86)
Bakhtin, ao realizar a análise estilística da obra de Dostoiévski, no livro Problemas
da Poética de Dostoiévski, publicado em 1929, apresenta uma complexa teoria que vai
muito além de mais uma forma de interpretação e análise estilística possível na literatura;
ele constrói uma verdadeira filosofia da linguagem
26
. Bakhtin (2002, p.272), analisa o
princípio de construção dos diálogos em Dostoiévski da seguinte forma:
Em toda parte é o cruzamento, a consonância ou a dissonância de réplicas
do diálogo aberto com as réplicas do diálogo interior dos heróis. Em toda
parte um determinado conjunto de idéias, pensamentos e palavras passa
por várias vozes imiscíveis, soando em cada uma de modo diferente. (...)
Visto assim, o diálogo exterior composicionalmente expresso é
inseparável do diálogo interior, ou seja, do microdiálogo, e em certo
sentido neste se baseia.
A amarragem do diálogo exterior com o diálogo interior é uma das chaves para
podermos analisar, via indireta, mas não totalmente, o discurso interior. Em todo diálogo
26
Aliás trata-se de uma filosofia da linguagem que difere em alguns aspectos daquela que se apresenta em
Marxismo e Filosofia da Linguagem (1992), cuja autoria ainda é uma incógnita. Quando Jacqueline
Authier-Revuz (1995) cita Marxismo e filosofia da linguagem (1992) ou Freudismo (2001), ela o faz
referindo-se sempre a Voloshinov como autor e não a Bakhtin. Authier-Revuz (1995) afirma que Bakhtin não
desconhece, contrariamente a Volochinov, o fato da língua como sistema estável com unidades reprodutíveis
e considera válido o estudo lingüístico. A metalingüística que Bakhtin defende não desmerece a lingüística,
como acontece em Marxismo e filosofia da linguagem (1992), com a crítica totalmente contrária a abstração
da língua realizada pela linguística. Isso fica evidente na definição de discurso que Bakhtin (2002, p.181)
apresenta em Problemas na poética de Dostoiévski (2002) ao escrever que o que lhe interessa é “o discurso,
ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da lingüística,
obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do
discurso.” Bakhtin (2002, p.181) ainda continua a definição de seu objetivo, sendo bem específico ao dizer
que suas análises “não são lingüísticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser situadas na metalingüística [.
. .]. As pesquisas metalingüísticas, evidentemente, não podem ignorar a lingüística e devem aplicar os seus
resultados”.
66
exterior existe o cruzamento com o diálogo interior. E mais ainda, se o diálogo exterior se
baseia no diálogo interior, assim como é muito bem representado por Dostoiévski nos seus
romances, nós podemos via análise do diálogo exterior na enunciação buscar as marcas
indicativas do discurso interior.
As réplicas antecipadas do discurso outro presente nos diálogos interiores escritos
por Dostoiévski
27
nos mostram de uma forma plástica impressionante a construção do
sentido no momento do diálogo. A palavra antecipada, tendo em vista o outro discurso,
colabora na organização do discurso no momento em que ele se faz. A palavra é antecipada
no diálogo interior. O personagem antecipando a réplica do outro realiza uma inclusão do
discurso do outro no seu próprio discurso.
Algumas análises realizadas por Bakhtin (2002) da obra de Dostoiévski serão por
nós repetidas e expandidas no sentido da construção do nosso objeto de pesquisa, que é a
voz na escrita. Em seu livro Bakhtin (2002) analisa o artigo publicitário O meio, escrito por
Dostoiévski. O artigo expressa uma série de considerações dos personagens, os quais
interrompem, como sempre, as suas idéias com as vozes dos outros. Seguem alguns
recortes deste artigo, os quais, entre outros, foram analisados por Bakhtin (2002), visando à
construção do conceito de representação da idéia em Dostoiévski. Para nós, não interessa o
texto de Dostoiévski enquanto obra literária mas, especificamente, o modo como, no texto
escrito, segundo Bakhtin, Dostoiévski representa as vozes de seus personagens. Vejamos o
seguinte texto de Dostoiévski citado por Bakhtin:
“Mesmo supondoparece-me ouvir a voz – que as vossas bases sólidas
(ou seja, cristãs) sejam as mesmas e que, com efeito, deva-se ser acima de
tudo um cidadão e neste caso manter a honra, etc [. . .]
-É claro que há verdade na vossa observação – respondo à voz, um pouco
desanimado – no entanto mais uma vez o povo russo...
- O povo russo? desculpe – parece-me ouvir outra voz – dizem que
dádivas lhe caíram do céu e o esmagaram. [. . .]
27
Os textos de Dostoiévski a que estamos nos referindo são somente os textos apresentados e analisados por
Bakhtin (2002). Não estamos abordando os textos de Dostoiévski, mas a leitura que Bakthin (2002) realiza
destes textos.
67
Em parte isso é a voz dos eslavófilos - penso cá comigo. – A idéia é
efetivamente consoladora, ao passo que a hipótese da resignação do povo
diante de um poder recebido como dádiva e doado a um povo ainda
“indigno” [. . .]
É claro, é claro, que têm eles, ou melhor, todos eles a ver com o ‘meio’? –
penso cá comigo. – Se bem que as idéias flutuem no ar, e nas idéias exista
alguma coisa penetrante...
- Aí é que está a coisa! – gargalha a voz sarcástica.
- Mas o que fazer se o nosso povo, inclusive pelo seu próprio ser,
suponhamos que até pelas suas inclinações eslavas, tenha uma propensão
especial pela doutrina do meio? O que fazer se na Europa ele é
precisamente o melhor alvo dos diversos propagadores ?
A voz sarcástica dá gargalhadas ainda mais estridentes mas de certa
forma salientes.” (DOSTOIÉVSKI apud BAKHTIN, 2002, p.93, grifo
nosso)
Neste exemplo podemos visualizar claramente as várias vozes que interagem na
enunciação do personagem, elas são explicitamente mostradas quando o personagem auto-
enuncia: “parece-me ouvir a voz”, “respondo à voz um pouco desanimado”, “
Em parte isso é
a voz dos eslavófilos - penso cá comigo
”, “gargalha a voz sarcástica”. O que nos interessa
sublinhar aqui é o fato dessas vozes aparecem no texto destacadas através da marca dos
travessões como um acréscimo ao texto de base, o qual parece ser proveniente da voz
primeira, por assim dizer, do personagem. Bakhtin (2002, p.90) designa as vozes tomadas
neste exemplo de diálogo de “vozes-idéias”. O que nos parece estar em questão em Bakhtin
com conceitos como imagens de idéias, vozes-idéias, é justamente o que apontamos no
capítulo anterior como a imagem da voz e não a voz em si. O que está representado nos
textos de Dostoiévski são imagens de vozes. Então, quando utilizamos o termo voz com
relação ao texto escrito, fica subentendido que se trata da representação da imagem da voz.
Outra forma de acréscimo ao discurso de base, que merece ser ressaltada, é as
reticências, que entram no jogo como uma possibilidade de acréscimo, como uma
possibilidade da entrada de outra voz no discurso, uma marca da inconclusão do diálogo.
São as marcas do que Bakhtin (2002) vai chamar de evasivas. Elas estão bem demarcadas
neste outro exemplo de diálogo da personagem central consigo mesma, que Bakhtin retira
de O Sósia, escrito por Dostoiévski:
68
Enquanto procurava animar-se com estas expressões de boa disposição,
sentia no coração como que um espinho, uma inquietação pungente. Não
sabia a que sentimentos ceder. E pensava:
- Bem; esperemos por mais um dia... para nos alegrarmos. Mas, por que,
diabo, estou me afligindo? O melhor é pensar no caso...Pensemos,
pensemos para ver em que se cifra tudo!... Em primeiro lugar, há um
indivíduo que se parece exatamente comigo. Está bem. E que mais? Devo
afligir-me porque há um indivíduo parecido comigo? Que diabo me importa
isso? Mantenho-me à distância dele. Que leve o diabo, e acabou-se! Se
quer trabalhar, que trabalhe!... Quanto aos dois irmãos siameses... Por
que siameses?... Bem; também não interessa. Todos os grandes homens
tiveram suas peculiaridades. A história conta que o famoso Suvórov
cantava como galo. E também os grãos-senhores têm todos as suas
esquisitices. Mas, que tenho eu a ver com os grão-senhores? Vivo só para
mim e não conheço ninguém. Nem quero conhecer. Com o sentimento da
minha inocência, desprezo todos os meus inimigos. Não sou nenhum
intrigante, graças a Deus. Sou um homem franco, carinhoso e ando sempre
com o coração nas mãos... (DOSTOIÉVSKI apud BAKHTIN, 2002,
p.214, grifo nosso)
As reticências marcam pausas. Neste exemplo, em cada marcação das reticências
podemos verificar claramente as réplicas antecipadas do discurso outro, o que acontece é
uma abertura à entrada do outro discurso através da antecipação deste discurso. Conforme
analisa Bakhtin (2002, p.267): “o acento de profundíssima convicção nos discursos dos
heróis de Dostoiévski é, na imensa maioria dos casos, apenas o resultado do fato de ser a
palavra pronunciada uma réplica do diálogo interior e dever ela persuadir o próprio
falante”. A complexidade das vozes que entram no discurso após as reticências é grande,
pois, às vezes, entra uma voz afirmativa, segura, como em “esperemos por mais um dia...
para nos alegrarmos”, em outro momento entra uma voz tímida, insegura como em “Quanto
aos dois irmãos siameses...Por que siameses?”. O que nos interessa sublinhar aqui é o fato
de não existir uma voz dominante, que controle as outras vozes. Todas as vozes participam
da composição do diálogo interior, o que lhe confere não uma homogeneidade e sim uma
heterogeneidade, que podemos chamar, junto com Authier-Revuz (1995), de constitutiva.
Um ponto importante para a nossa pesquisa são as relações do diálogo interior com
o diálogo exterior, sempre lembrando que, para Bakhtin, essa separação, absoluta entre
dentro e fora, não existe. Bakhtin (2002, p.225), utiliza o conceito de vozes reais para
69
referir o que seria uma voz relativa ao diálogo exterior, mas que faz parte normalmente do
diálogo interior. Afirma ele:
Em cada obra de Dostoiévski verificamos em diferentes graus e em
diferentes sentidos ideológicos casos em que a voz do outro cochicha ao
ouvido do herói as próprias palavras deste com acento deslocado e uma
resultante combinação singularmente original de palavras e vozes
orientadas para diferentes fins numa mesma fala; num mesmo discurso,
verificamos a confluência de duas consciências numa consciência. Essa
combinação contrapontística de vozes orientadas para fins diversos nos
limites de uma consciência é aplicada pelo autor, como base, como
terreno no qual ele introduz outras vozes reais.
A voz humana real em Bakhtin (2002) é a voz do personagem ao se dirigir ao outro,
é a fala que conhecemos cotidianamente nas nossas relações com os semelhantes. O diálogo
interior é interminável e as réplicas antecipadas do discurso do outro ou a introdução de
vozes reais não coloca fim a esse diálogo, somente o joga para mais adiante. Conforme
Bakhtin (2002, p.259): “o diálogo interior e os princípios de sua construção constituíram a
base na qual Dostoiévski introduziu outras vozes reais”. O interessante de sublinhar no
estudo que Bakhtin realiza da obra de Dostoiévski é a complexa relação entre as vozes e a
construção do discurso interior dos personagens.
Retomando: o nosso interesse em estudarmos o discurso interior tem dois propósitos
principais: um é a definição do que é a voz, e o outro é o questionamento sobre a
construção do discurso. Do ponto de vista da pedagogia, estes propósitos se traduzem no
estudo do que possibilita a trocas entre os humanos (conservação e transmissão da cultura)
e no questionamento sobre a articulação dos discursos na construção do pensamento, na
formação do humano.
70
4.3 AS VOZES NOS OUVIDOS DE SCHREBER
No capítulo anterior tivemos a oportunidade de acompanhar, através dos escritos de
Bakhtin, a criação literária de imagens de vozes que, ao dialogarem, compõem o discurso
interior e a enunciação dos personagens de Dostoiévski. Neste capítulo trataremos de
enfocar outro tipo de escrita, não mais o romance ou crítica literária, mas uma
autobiografia. Um texto que busca ser o mais fiel possível aos acontecimentos vivenciados
pelo autor durante um determinado período de sua vida.
O livro Memória de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber (1984) é uma
das principais referências clínicas para o estudo da paranóia. Trata-se da autobiografia de
um jurista alemão, que sofria de paranóia, escrita no início do século passado e que até hoje
continua a ser estudada por médicos, psicólogos, psicanalistas. Sigmund Freud (1987d)
publicou um ensaio sobre este livro em 1911, e Lacan em 1959 o retoma durante o
seminário sobre as psicoses (1988), o que resultou em um artigo publicado nos Escritos
(1998), que se intitula De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose. Neste sentido Charles Melman (2006, p. 21) comenta no livro Retorno a
Schreber: “esse maravilhoso relatório clínico que Schreber nos dá de sua psicose”. No
livro de Schreber, também a composição do discurso interior é produto de várias vozes,
porém não se trata somente de um efeito estilístico, como no caso anterior, mas de um
relato, uma descrição de um caso clínico.
Daniel Paul Schreber foi um homem culto, inteligente, proveniente de uma família
de burgueses protestantes. Seus antepassados eram conhecidos por obras nas áreas do
Direito, Economia, Pedagogia e Ciências Naturais. Seu pai era médico ortopedista e
pedagogo, autor de cerca de vinte livros sobre ginástica, higiene e educação das crianças.
Daniel Paul Schreber era doutor em direito. O livro relata principalmente o período durante
suas internações na clínica de doenças nervosas da Universidade de Leipzig e no sanatório
de Sonnestein. Schreber permanece internado em Sonnestein de 1894 a 1902, com o
diagnóstico de “demendia paranoides”. Esta última internação ocorre, segundo Marilene
71
Carone (apud SCHREBER, 1984, p.13), tradutora do livro de Schreber para o português,
alguns meses após Schreber receber
a visita do ministro da justiça da Saxônia, que veio pessoalmente à sua
casa anunciar-lhe sua iminente nomeação para o cargo de Senatspräsident
(juiz-presidente da corte de apelação) na cidade de Dresden. Era um posto
excepcionalmente elevado para sua idade (51 anos), e a nomeação era
irreversível por ser determinação direta do rei, era um cargo que não podia
sequer ser solicitado e sua recusa implicaria em delito lesa-majestade. O
posto era vitalício, representando, portanto, para a carreira de Schreber,
seu ponto máximo e último.
Na paranóia acontece por vezes um delírio sistematizado, no qual são comuns as
alucinações auditivas e visuais, quer dizer, ouvir vozes e ver imagens que são fruto da
própria atividade do pensamento. Neste sentido o que nos interessa no relato de Schreber é
a forma como o paranóico explicita a construção de seu discurso interior, o que este livro
apresenta exemplarmente. As pessoas que sofrem de paranóia, segundo Freud (1987c,
p.23), possuem “a peculiaridade de revelar (de forma distorcida, é verdade) exatamente
aquelas coisas que outros neuróticos mantêm escondidas como segredo”.
Schreber vai repetir, ao longo de sua autobiografia, como e o que as várias vozes
que ele escutava na sua cabeça falavam com ele; são frases do tipo: “as vozes que falam
comigo” (1984, p.61), “vozes interiores, várias vezes mencionadas, que desde então falam
ininterruptamente comigo” (1984, p.67), “todas essas almas apareciam na minha cabeça na
qualidade de ‘vozes’, de um modo mais ou menos indiferenciado, sem que nenhuma
soubesse da presença da outra” (1984, p.72), “chamado de ‘judeu errante’ pelas vozes que
falavam comigo” (1984, p.74).
Schreber faz um inventário fantástico das vozes que compõem seu discurso interior.
O que pretendemos ressaltar é a completa independência destas vozes, umas das outras. As
vozes são como personagens verdadeiros e independentes, são freqüentemente ligadas a
nomes de pessoas que Schreber conheceu, ouviu falar ou inventou, são sempre vozes de
72
alguém identificado, mesmo que seja uma entidade. No inventário de Schreber as vozes não
estão soltas, pairando no ar, existe sempre alguém que as emite, ou seja, elas estão sempre
ligadas a um nome, sempre identificadas. O exemplo que segue, retirado da narração de
Schreber mostra de uma forma fantástica a quantidade de vozes por ele identificadas. Como
vemos o pensamento de Schreber se coloca como completamente heterogêneo. A sua
narração, que às vezes é realizada como um prontuário clínico, é de grande importância
para podermos enfocar o que é a voz e o que é a imagem da voz, ou seja, ao que a voz é
identificada. No texto que segue, podemos dizer que o que é enumerado são as imagens das
vozes para Schreber. Trata-se de uma heterogeneidade surpreendente. Vejamos:
Poderia aqui mencionar centenas, senão milhares de nomes (...) Nos
portadores destes nomes, em muitos casos o interesse religioso ficava em
primeiro plano, havendo particularmente entre eles muitos católicos, os
quais esperavam, segundo uma conduta a ser combatida por mim, um
incremento do catolicismo e em especial uma catolicização da Saxônia e
de Leipzig; entre eles estavam o pároco St., de Leipzig, “quatorze
católicos de Leipzig” (dos quais só me foi citado o nome do cônsul-geral
D., provavelmente uma associação católica ou sua diretoria), o padre
jesuíta S., de Dresden, o arcebispo de Praga, o pároco Monfang, os
cardeais Rampolla, Galimberti e Casati, o próprio papa chefiando um
estranho “raio chamuscado” e finalmente numerosos monges e freiras;
certa ocasião entraram em minha cabeça, na qualidade de almas, para nela
encontrarem seu fim, duzentos e quarenta beneditinos de uma só vez.
Em outras almas estavam em questão motivos nacionalistas mesclados a
interesses religiosos; entre eles um neurologista vienense cujo nome era
idêntico ao do mencionado padre beneditino, judeu batizado e eslavófilo
que queria por meu intermédio eslavizar a Alemanha (...) Um outro grupo
era formado principalmente por ex-membros da corporação saxônica,
de Leipzig, à qual o professor Flechsig havia pertencido, na qualidade de
companheiro de boêmia (...) entre eles estavam o advogado Dr. G.S., de
Dresden, o médico Dr. S., de Leipzig, o juiz G. E numerosos membros
mais jovens da corporação (...) por outro lado havia também muitos
membros de associações estudantis (...) entre eles os mais proeminentes
eram: A.K. advogado e vice-presidente da câmara dos Deputados, a
quem de resto nunca conheci pessoalmente em minha vida, o reitor
professor W. E o advogado H., de Leipzig (...) Menciono aqui o
conselheiro Dr. Wachter, (...) e o conselheiro eclesiástico Dr. Hoffman
(...) já estando mortos há muito tempo, eles pareciam já ter atingido um
grau mais elevado de beatitude. Ambos me conheceram pessoalmente em
vida, tendo por isso provavelmente um certo interesse por mim.
Finalmente, sejam ainda mencionados vários dos meus parentes (além de
meu pai e meu irmão, que já foram citados anteriormente, minha mãe,
minha mulher e meu sogro), meu amigo de juventude Erneste K., já
73
falecido no ano de 1864 (...), um príncipe na qualidade de “homúnculo”
(...) Todas estas almas apareciam na minha cabeça na qualidade de
“vozes”, de um modo mais ou menos indiferenciado, sem que uma
soubesse da presença da outra. (SCHREBER, 1984, p.71, grifo nosso)
No livro de Schreber (1984) as vozes são chamadas também de almas, raios ou
nervos, sempre na condição de seres falantes. Schreber (1984) relata que essas vozes lhe
ocupam desde o início de sua doença, sem interrupção, salvo em alguns momentos
enquanto ele dorme. Ele nomeia esse fenômeno de “coação a pensar”, que consiste “no fato
de que o homem é forçado a pensar ininterruptamente; em outras palavras, o direito natural
do homem de conceber de vez em quando o necessário repouso aos nervos do intelecto
através do não pensar, este direito me foi limitado desde o início (...)” (Schreber, 1984,
p.69).
O fenômeno da coação a pensar nos interessa basicamente por dois motivos que
estão interligados: um é a ponte que Schreber (1984) faz entre as vozes e o discurso
interior, e outro se refere à impossibilidade de parar de pensar. As vozes são responsáveis
pelo pensamento ininterrupto, para Schreber são elas que incitam o pensamento. Ele faz
uma relação da coação a pensar com outro fenômeno, que é igualmente de grande
importância para analisarmos a produção do discurso interior. Schreber (1984, p.225) relata
que todos os ruídos que ouve
parecem falar: particularmente os que têm maior duração, como o barulho
dos trens, o rumor dos barcos a vapor, a música de certos concertos, etc.,
as palavras faladas pelas vozes dentro da minha cabeça, bem como as
palavras com as quais formulo, independentemente, meus pensamentos,
com vibrações correspondentes dos nervos.
Em Schreber (1984) qualquer coisa que produza som pode falar. Ele escuta vozes
praticamente o tempo todo. Para Schreber (1984) o som produzido pelo trem se torna uma
fala. Como o barulho dos trens pode repetir as palavras faladas pelas vozes na cabeça de
Schreber? Porque as palavras, elas não são das vozes, as palavras não são de ninguém. O
74
recortar um som para fazer dele um significante que tende a um significado é trabalho do
ouvinte. Mesmo quando o locutor fala, ele ouve sua voz. Schreber escreve: “as palavras
com as quais formulo meus pensamentos”; estas palavras ele bem sabe que não são de sua
propriedade. Schreber não escreve “as palavras com as quais represento meu pensamento”
e sim “com as quais formulo”, ou seja, as palavras lhe vêm do Outro, elas não lhe o
próprias, e sua dificuldade está no fato de que as palavras estão ligadas às imagens das
vozes. As vozes identificadas por Schreber não cedem lugar à voz do enunciador, elas não
desaparecem para deixar assim as palavras livres para compor a enunciação de Schreber.
As palavras estão sempre ligadas a uma imagem de voz. A imagem da voz é a quem a voz é
identificada. Lacan (1998, p.544), ao analisar este texto de Schreber (1984), diz que:
Trata-se de algo bastante próximo das mensagens que os lingüistas
chamam de autônimas, na medida em que é o próprio significante (e não o
que ele significa) que é objeto da comunicação. Mas essa relação da
mensagem consigo mesma, singular porém normal, reduplica-se, aqui, por
serem essas mensagens tidas como sustentadas por seres cujas relações
elas mesmas enunciam, sob modos que se revelam muito análogos às
conexões do significante. (...) Relação, aqui, do sistema com sua própria
constituição de significante (...).
Se a voz não cai, quer dizer, se ela se mantém enquanto um grito, urro, puro som,
ela se mantém distante do significado, pois o sentido, para tomar lugar, precisa da queda da
voz, ou seja, para o significante ser ouvido a voz precisa ceder espaço. No discurso de
Schreber (1984) as palavras representam sujeitos, e é neste sentido que Lacan (1998) refere
que no discurso de Schreber existe uma analogia com as conexões significantes, pois
segundo Lacan (1998) um significante é o que representa um sujeito para outro significante.
Schreber (1984) descreve o que ele vai chamar de língua dos nervos como sendo
uma outra espécie de língua, diferente da língua humana; compara-a ao processo de guardar
na memória em seqüência palavras de uma oração silenciosa, sermão. São palavras
repetidas em silêncio, nas quais não se utiliza, ou se utiliza casualmente, o aparelho
fonador. Assim formula:
75
O uso desta língua dos nervos, em condições normais, depende
naturalmente da vontade das pessoas de cujos nervos se trata; ninguém
pode por si obrigar um homem a se utilizar desta língua dos nervos. Mas
no meu caso, desde a mencionada reviravolta crítica em minha doença
nervosa, ocorre que meus nervos são postos em movimento a partir do
exterior, e isto incessantemente, sem interrupção. (SCHREBER, 1984,
p.68)
Schreber (1984) nos diz que o que coloca seus nervos, suas vozes, em movimento
vem do exterior; caso voltarmos a Bakhtin (2000), vem do outro enquanto discurso. É a
partir do discurso exterior que o discurso interior é colocado em movimento. Esta é toda a
relação das vozes que estão presentes não somente no discurso paranóico, no qual elas são
explicitadas com uma crueza assombrosa, mas em todo e qualquer discurso. Schreber
(1984, p.291), no seu excesso, nos apresenta o relato de uma dificuldade que o assolava: a
heterogeneidade de vozes e a impossibilidade de unificação destas, que significaria para ele
a intencionalidade. Assim explica:
Em todos os momentos, eu preciso me orientar pelo pensamento que é
aparentemente incompreensível para os raios, mas para o homem é
infinitamente importante: o pensamento da intencionalidade, isto é, em
cada momento eu preciso me perguntar: você quer dormir, ou pelo menos
descansar, ou se dedicar a uma atividade intelectual, ou ainda realizar
alguma função corporal, como, por exemplo, evacuar, etc.? Para atingir
qualquer meta, via de regra, me é necessária uma unificação de todos os
raios (...)
Schreber refere este relato já no final de sua internação em Sonnestein. A
“intencionalidade” é caracterizada como uma unificação dos raios, ou seja, das vozes. Toda
aquela pluralidade de vozes precisa se tornar uma unidade. Schreber (1984) nos relata
claramente como ele utilizava sua voz descolada da articulação significante para fazer a
união das vozes que lhe povoavam a cabeça. Ele emitia urros; constantemente tinha acesso
de urros, o que inclusive resultou em seu isolamento em uma sala especial do sanatório
76
durante as noites, nas quais ele passava urrando durante muito tempo. Ele refere que os
urros aparecem nas pausas de pensamento. Os urros de Schreber que, segundo ele próprio,
eram uma prova de sua integridade física e dos milagres que lhe aconteciam, continuam até
o fim de sua internação e mesmo após, os urros eram utilizados por Schreber (1984, p.291)
para poder dormir e também como ele relata: “estes estados de urros agora (...) ocorrem
todo dia pela manhã, quando me levanto da cama, me visto, me lavo ou quando em outras
circunstâncias (também no banho) desnudo o corpo”, ou seja, para realizar atividades que
necessitem um imaginário do corpo que possibilite a constituição de um Eu. Enfim uma
unidade perante a heterogeneidade. Em Schreber (1984, p.291) este artifício é desesperado,
(...) incômodos são os estados de urros, que surgem regularmente como
fenômenos concomitantes à retirada dos raios, em parte porque eu
naturalmente sinto como algo indigno ter que urrar de certo modo como
um animal selvagem, por causa dos milagres realizados contra mim, em
parte também porque os urros continuamente repetidos provocam um
abalo muito desagradável na cabeça, que num certo sentido poderia
igualmente chamar de doloroso. Não obstante sou coagido a suportar os
urros, quando não ultrapassam um certo grau, especialmente à noite,
quando os meios em geral adequados à defesa: falar alto, tocar piano, etc.,
não são aplicáveis ou o são apenas de um modo limitado. O urrar então
me proporciona a vantagem de que tudo que em seguida for falado dentro
da minha cabeça será abafado pelo estrondo dos urros, de modo que logo
sobrevém novamente a união de todos os raios, que em certas
circunstâncias me leva a adormecer de novo, ou pelo menos me permite
continuar na cama, numa condição física às vezes bastante agradável pela
manhã (...)
Os urros são a voz opaca de Schreber sem carregar nenhum sentido, é algo que se
assemelha ao grito dos bebês. O urro é a voz desprovida da ligação a um sistema como a
língua. Como diz Melman (2006, p.91), o urro é “a voz privada de toda articulação
significante”. O interessante em Schreber é que os urros têm o poder de unificar os raios,
ou seja, unir as vozes que falam em sua cabeça. Essa união de todas as vozes, que como
vimos é também a voz própria de Schreber, é um elemento que falta ao conjunto de vozes.
Justamente o elemento vazio, o elemento que representa a falta no conjunto de vozes,
aquele que representa o somatório de todas as vozes, este elemento está capenga em
77
Schreber. Isso é evidente também no fenômeno que Schreber (1984) chama de coação a
pensar, isso que não pára nunca, ou seja, não deixa espaço vazio. “Lacan bem o dissera em
seu texto sobre Schreber, que na psicose o significante se impõe como tal, em sua dimensão
de voz” (Melman, 2006, p.93). O que acontece de fato é que a voz está de tal forma
grudada ao significante que ela não cai, quer dizer, o objeto não se perde para assim poder
dar vazão à articulação significante. A forma que Schreber (1984) encontra para unificar as
vozes que vêm dos outros é através dos seus urros.
O que Schreber (1984) relata ao referir as meias sentenças sem sentido é justamente
esta falta de queda da voz
28
. A voz resta e não produz sentido. Schreber nos enumera o
exemplo de seis frases que antes eram pronunciadas pelas vozes até o fim e passaram a ser
pronunciadas incompletas:
1) “Agora eu vou me”;
2) “Você deve de fato”;
3) “Nisto eu quero”;
4) “Mas agora ele deveria”;
5) “Mas isto era realmente”;
6) “Falta-nos agora”. (SCHREBER, 1984, p.210)
Segundo ele as locuções deveriam ser pronunciadas assim:
1) “Agora eu vou me render ao fato de que sou burro”;
28
Durante algum tempo uma analisante lia, nos classificados dos jornais cotidianos, mensagens endereçadas a
ela pelo seu médico. Tratava-se de mensagens de amor, declarações e também ameaças caso ela não aceitasse
o seu amor. Inclusive ameaças de morte a ela e a sua família, o que a deixava muito preocupada. Ela me trazia
os jornais e o que eu lia nas mensagens era algo totalmente diferente. O sentido que ela dava às mensagens
não era o mesmo que eu e a grande maioria de leitores daquele jornal poderíamos dar. Por que a sua leitura
era diferente? Ela parou de ler as mensagens como sendo enviadas pelo seu médico quando na sua análise
conseguiu correlacionar que as mensagens que lia eram vozes e que ela precisava se apropriar destas vozes,
pois elas diziam do seu desejo. O que ela lia era uma imagem de sua voz, uma imagem daquilo que ela
desejava. Podemos dizer que ela ficava hipnotizada diante da imagem de sua voz, imagem do objeto causa do
desejo, diz Lacan (1998), isso mantinha os significantes congelados, pois a voz não caindo para proporcionar
a articulação dos significantes, ocasionava a leitura da imagem do seu objeto de desejo e não a articulação
significante.
78
2) “Você deve de fato ser representado como renegador de Deus,
dedicado a excessos de volúpia, etc.”;
3) “Nisto eu quero pensar primeiro”;
4) “Mas agora ele deveria estar bem cozido, o assado de porco”;
5) “Mas isto era realmente demais para a concepção das almas”;
6) “Falta-nos agora o pensamento principal, isto é, nós os raios, não temos
pensamento”. (SCHREBER, 1984, p.210)
Aqui é preciso um pequeno esforço para entender o que seria escutar inúmeras
vezes “Falta-nos agora”, “Falta-nos agora”, “Falta-nos agora”, “Falta-nos agora” como no
exemplo da frase (6). A frase é cortada, poderíamos dizer que ela é censurada. Quando
Schreber nos apresenta como seria a frase inteira: “Falta-nos agora o pensamento principal,
isto é, nós os raios, não temos pensamento”; nós podemos vislumbrar a importância do
diálogo interior em Schreber, um diálogo muitas vezes interrompido, censurado, onde o
corte realizado em “Falta-nos agora” não abre para vários sentidos e sim para uma
impossibilidade, aquela de descolar as palavras, o pensamento, das vozes, dos raios.
No artigo O Eu e o Isso, Freud (1987d, p.33) sugere que a diferença real entre uma
idéia (pensamento) do inconsciente ou do pré-consciente consiste nisto: “que a primeira é
efetuada em algum material que permanece desconhecido, enquanto a última (a do pré-
consciente) é, além disso, colocada em vinculação com representações verbais”. Freud
(1987d, p.34) segue na sua formulação para nos apontar que:
os resíduos verbais derivam primariamente das percepções auditivas, de
maneira que o sistema pré-consciente possui, por assim dizer, uma fonte
sensória especial. Os componentes visuais das representações verbais são
secundários, adquiridos mediante a leitura, e podem, inicialmente, serem
deixados de lado, assim também imagens motoras das palavras (...). Em
essência uma palavra é, em última análise, o resíduo mnêmico de uma
palavra que foi ouvida.
Para nós esta questão tem toda a importância. Em Schreber não se trata de outra
coisa, a palavra é a palavra ouvida, e o seu discurso é resultado do discurso dos outros.
79
Melman (2006, p.42), no seminário que ministrou sobre Schreber, diz que o que nos
diferencia de Schreber é que “em geral, não passamos
29
pelos mesmos fenômenos, mas
raciocinamos como ele”. De saída esta afirmação nos coloca dois problemas: um é o que
seria “raciocínio” e outro, o que seria “fenômeno” nesta lógica. Aqui arriscamos uma
hipótese: o “raciocínio” seria a construção do discurso interior a partir do discurso dos
outros, e o “fenômeno” seria a não supressão da voz do outro, que se mantém como
imagem no discurso psicótico, ou seja, uma impossibilidade de se apropriar das vozes dos
outros, tornando-as sua voz. Freud (1987e, p.229), no artigo A perda da realidade na
neurose e na psicose escreve que uma das características que diferenciam uma neurose de
uma psicose é
o fato de em uma neurose o Eu, em sua dependência da realidade,
suprimir um fragmento do Isso (da vida pulsional), ao passo que, em uma
psicose esse mesmo Eu, a serviço do Isso, se afasta de um fragmento da
realidade. Assim para uma neurose o fator decisivo seria a predominância
da influência da realidade, enquanto para uma psicose, esse fator seria a
predominância do Isso.
Por que a predominância do Isso na psicose? Porque na psicose não há a perda deste
fragmento do Isso, do objeto da pulsão, se assim podemos dizer. O objeto não cai. Como o
objeto não cai, ele não deixa disponível o significante para ligar-se a outro fragmento da
realidade eemprestar a esse outro fragmento uma importância especial e um significado
secreto que nós (nem sempre de modo inteiramente apropriado) chamamos de simbólico
(Freud, 1987e, p. 234)”.
Embora os textos de Schreber (1984) e Bakhtin (2002) sejam completamente
diferentes quanto ao seu propósito, eles refletem uma questão muito similar no que
concerne ao discurso interior: o fato de o pensamento ser composto por vozes do outro. As
vozes em Schreber (1984) são vozes personificadas, como no diálogo, mas elas são mais
29
Supondo que o nós aqui se refere aos neuróticos.
80
informações, ordens. As vozes que Bakhtin (2002) vê em Dostoievski são diálogos abertos
nos quais o discurso interior e o discurso exterior se mesclam constantemente.
Freud (1987f), em 1928, publicou uma análise da escrita de Dostoiévski que serviu
de introdução a uma publicação alemã do livro Os Irmãos Karamassovi. Ele não fará uma
análise a partir do ponto de vista artístico, assim como fez Bakhtin (2002), e sim de indícios
do que seria uma neurose histérica em Dostoiévski. Ele levanta a hipótese de que as crises
epiléticas de Dostoiévski seriam uma conversão histérica, desenvolvendo uma análise sobre
o parricídio e determinados pontos da vida do autor. Porém, Freud (1987f, p.205) escreve
que “diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem de depor suas armas”.
A questão do artista criador é o que interessa a Bakhtin (2002).
Freud (1987d) também analisou o livro de Schreber (1984), tornando-o conhecido
no mundo. Mas no caso desta pesquisa o que nos interessa não é nem a questão literária
nem a questão psicológica no sentido de uma descrição da paranóia. O nosso interesse
reside exclusivamente na relação da voz com a língua e o sujeito e a construção do discurso
interior tal qual podemos pensar a partir das representações da voz, da imagem da voz, na
escrita que Schreber (1984) e Bakhtin (2002, 2003a) realizaram em suas obras.
No discurso interior, como se trata do sujeito falando com ele mesmo, muitas
palavras são omitidas por não serem necessárias à constituição do sentido. Bergounioux
(2004) e Vigotski (2001) também referem o fenômeno da omissão de palavras como
participante do discurso interior. Neste sentido, em uma nota de rodapé, Schreber nos
fornece mais um dado importante para analisarmos a construção de seu discurso interior.
Schreber (1984, p.69) escreve:
A palavra “pensar” foi omitida na resposta acima [Na Ordem do Mundo é
que ele deveria”, subentendido, pensar (...)]. As almas – já antes da
ocorrência da situação contrária à Ordem do Mundo – tinham o hábito de
dar aos seus pensamentos (na conversa entre elas) apenas uma expressão
gramatical incompleta, isto é, omitindo certas palavras que, em todo caso,
pelo sentido podiam ser dispensadas. Este hábito, com o passar do tempo,
com relação a mim, degenerou em abuso vergonhoso, dado que os nervos
81
do entendimento do homem (o seu “subsolo”, como diz a expressão na
língua fundamental) são continuamente excitados por tais frases
interrompidas, pois eles se esforçam por procurar involuntariamente a
palavra que falta para completar o sentido. Assim para dar apenas um dos
inúmeros exemplos, há anos ouço diariamente centenas de vezes a
pergunta: “Por que não diz?, onde são omitidas as palavras “em voz alta”
realmente necessárias para completar o sentido, e os raios então dão eles
próprios a resposta, como se fosse pronunciada por mim: “Porque sou um
idiota, algo assim”.
Por outros caminhos, ou seja, através de sua própria doença mental, Schreber (1984)
chega a uma definição de autodialogismo muito similar à de Bakhtin (2002). Chega a ser
surpreendente como estes dois autores, com propósitos tão diferentes em seus textos,
manifestam a relação das vozes com o discurso interior. Schreber (1984, p.287) expõe
dissertativamente o que acontecia com ele durante o período de sua internação em
Sonnestein:
Comigo (...) as pausas nas falas das vozes nunca se verificam (...) portanto
desde há quase sete anos, não tive – exceto durante o sono – sequer um
instante em que não tenha ouvido vozes. Elas me acompanham a toda
parte e em todas as ocasiões; continuam ressoando mesmo quando
converso com outras pessoas; continuam sem parar mesmo quando eu me
dedico atentamente a outras coisas, por exemplo, quando leio um livro ou
um jornal, toco piano, etc. só que, naturalmente, enquanto converso em
voz alta com outras pessoas, ou falo sozinho em voz alta, elas são
abafadas pelo som mais forte das palavras faladas, e deste modo não são
ouvidas por mim temporariamente. Mas a retomada imediata das frases
que conheço bem, a partir de um som tomado por acaso no meio delas, me
faz ver que nesse ínterim o fio da conversação não deixou de se
desenvolver, isto é, que os estímulos sensoriais ou vibrações nervosas, por
meio dos quais é provocado o efeito sonoro correspondente às vozes,
continuaram mesmo enquanto eu falava em voz alta.
É interessante sublinhar o fato que Schreber relata da não existência de pausas na
fala das vozes. No texto de Dostoiévski utilizado como exemplo por Bakhtin (2002),
principalmente os discursos interiores são marcados pelo uso de reticências, ou seja, de
pausas na escrita. No texto de Schreber (1984) não existem reticências no sentido de
pausas. Quando ele usa reticências é para encobrir uma palavra que ele julga não ser de
82
bom tom pronunciar, por exemplo, cagar é escrito “c...” , ele jamais utiliza reticências, por
exemplo, no fim das frases que ele chama de inacabadas, que estão ligadas ao fenômeno da
coação a pensar. Mas por que a vozes que falam a Schreber não fazem pausas? O
distanciamento, a pausa, a separação, quem é responsável por isso é a voz, mas é a voz na
medida em que ela cai, quer dizer, que ela se retira para deixar aberto o espaço para ligação
com algum fragmento da realidade, um outro significante, poderíamos dizer. Se a voz
continua colada ao significante quem cai é o sujeito que se paralisa frente ao objeto da
pulsão. Por isso a questão na paranóia, como nos aponta Melman (2006) é ou Eu ou Ele.
Não existe espo para os dois termos: ou fica o Eu ou o Ele enquanto o dogma. Não pode
existir espaço vazio, o objeto não caiu. Neste sentido o sujeito paranóico carrega uma
dificuldade com relação ao convívio social, ele se sente constantemente ameaçado pelos
outros e busca não deixar um espaço vazio onde o outro poderia entrar para
imagirariamente prejudicá-lo.
O fato de insistirmos na definição de algumas diferenças entre a neurose e a psicose
deve-se somente à tentativa de buscarmos o que seria a especificidade da voz na sua relação
com a língua e o sujeito. Tomando o sujeito como um efeito da linguagem e as estruturas
psíquicas como decorrentes da relação entre o sujeito e a linguagem, acreditamos que
algumas peculiaridades, como as que acabamos de relatar, são mais características em uma
estrutura psíquica do que em outra. Desta forma, como referímos com relação à psicose,
onde a voz permanece ligada ao significante, e na neurose, onde a voz deve ser suprimida
para o significante poder se ligar a um outro fragmento da realidade e assim produzir
sentidos outros, esse objeto voz organiza a relação do sujeito com o outro, seja o outro
discurso, outro sujeito, outro sentido.
4.4 O DISCURSO INTERIOR EM VIGOTSKI
Quanto ao discurso interior, o que nos interessa especificamente é o fato do material
necessário para sua realização vir do exterior, do outro; entendemos aqui por material a
83
língua, as palavras. Para se compor o discurso interior de cada sujeito, é necessário o
discurso do outro. Sem este material nada é possível em termos de discurso interior. Como
não temos acesso ao discurso interior, teremos de recorrer ao discurso exterior e nele buscar
as marcas possíveis das vozes que lhe compuseram, isto tendo em vista a estreita relação,
como já foi mencionado anteriormente, entre o discurso interior e o discurso exterior.
Para Vigotski (2001, p.412), “o pensamento não se expressa mas se realiza na
palavra”, o que quer dizer que a palavra não é uma tradução do pensamento, mas o material
mesmo no qual o pensamento acontece. Porém qual é a materialidade da palavra? Seria o
som no caso da fala, o traço no caso da escrita? Não, segundo Vigotski (2001, p.122), “a
essência do problema não está nos sons mas no emprego funcional do signo,
correspondente a fala humana”. Para Vigotski (2001, p.121) a linguagem não se encontra
exclusivamente em forma sonora, embora seja correspondente à fala “em princípio a
linguagem não está vinculada a um material (veja-se a linguagem escrita)”. Seguindo este
princípio é que chegamos à suposição de que não é a matéria enquanto traço ou som o que
importa, mas o receptáculo onde a linguagem deverá se fazer.
Embora Vigotski (2001) parta da teoria de Piaget
30
sobre a linguagem interior ou
linguagem egocêntrica para construir a sua teoria sobre o discurso interior, não iremos
discutir aqui a teoria piagetiana. Pretendemos, devido à especificidade de nosso objeto de
pesquisa que é a voz, nos determos em Vigotski
31
, até mesmo porque ele descarta as teorias
30
Vigotski (2001) confere a Piaget o fato de ser o primeiro a perceber a função especial da linguagem
egocêntrica na criança, embora ele critique a interpretação dada por Piaget.
31
Bakhtin (2002) está mais para Vigotski (2001) do que para Piaget (1987a, 1987b) com relação à polêmica
de a criança abandonar a fala egocêntrica na medida que se socializa, para os dois primeiros acontece
justamente o contrário, na medida em que a criança se socializa, ela incorpora a fala coletiva, tornando-a fala
interior. Um exemplo claro em Bakhtin (2002, p.210, grifo nosso) é um trecho da análise da obra de
Dostoievski. “No último trecho que citamos é ainda mais evidente e marcante a introdução de palavras e
especialmente de acentos do discurso do outro no discurso de Diévuchkin. Aqui as palavras com o acento
polemicamente deturpado do outro estão inclusive entre aspas: “Ora veja, ele é copista!...” Nas três linhas
anteriores a palavra “copiar” aparece três vezes. Em cada um desses três casos o possível acento do outro está
presente na palavra ‘copiar’ mas é sufocado pelo próprio acento de Diévuchkin. No entanto ele se torna
cada vez mais forte até acabar irrompendo e assumindo a forma de discurso direto do outro. Deste
modo temos aqui como se dá uma gradação da intensificação gradual do acento do outro [. . .] Com
estes sinais indicamos o acento do outro e sua paulatina intensificação, até que ele acaba dominando
inteiramente as palavras já colocadas em grifo. No entanto, nessas últimas palavras, palavras do outro, há
também a voz de Diévuchkin, que, como dissemos, deturpa pela polêmica esse acento do outro. Na medida
84
que defendem que o discurso interior é o mesmo discurso exterior menos o som. Ele de fato
se acha obrigado a entrar no estudo do discurso interior por acreditar que sem ele seria
impossível estabelecer uma relação entre o pensamento e a palavra, que é o tema de sua
vasta pesquisa.
Vigotski (2001, p.427) diz que a linguagem egocêntrica é “a chave para a
investigação do discurso interior. Isto porque ela é um discurso ainda vocalizado, sonoro,
isto é, um discurso exterior pelo modo de sua manifestação e, ao mesmo tempo, um
discurso interior por suas funções e estrutura.” Para ele a linguagem egocêntrica é como
uma espécie de experimento natural, pois se trata de um discurso interior “acessível à
observação direta e à experimentação”. A linguagem egocêntrica, basicamente, é a fala
observada em crianças de pouca idade que falam consigo mesmas em voz alta. Vigotski
(2001) observou o comportamento de crianças de 3-5 anos em situações em que estas se
encontravam em dificuldades durante a realização de alguma tarefa. Se, na realização desta
tarefa surgia algum obstáculo, aparecendo ante a criança uma dificuldade que lhe impedia
de cumprir a tarefa, a criança começava a falar. Aparentemente esta fala não estava dirigida
a outras pessoas, a criança falava mesmo quando no recinto não houvesse ninguém. Às
vezes a criança se dirigia ao experimentador solicitando ajuda, outras vezes descrevia a
situação em que se encontrava e perguntava a si mesma como faria para resolver a tarefa.
Vigotski (2001, p.438) descreve algumas peculiaridades deste tipo de fala nas
crianças:
1) O fato de representar um monólogo coletivo, isto é, não se manifestar a
não ser em grupo de crianças e na presença de outras crianças igualmente
ocupadas na atividade e não quando a criança está sozinha; 2) O fato
desse monólogo coletivo ser acompanhado, como observou Piaget, da
ilusão de compreensão [ . . . ] 3) O fato de que essa linguagem para si tem
caráter de linguagem externa, sem lembrar a linguagem socializada, e não
se pronuncia por sussurros, de forma desarticulada para si mesma.
em que se intensifica o acento do outro, intensifica-se também o acento de Diévuchkin que a ele se
contrapõe”.
85
Essas peculiaridades levaram Vigotski (2001, p.438) a concluir que a linguagem
egocêntrica, “do ponto de vista da criança, ainda não está subjetivamente separada do social
(ilusão de compreensão), é objetiva por situação (monólogo coletivo) e por forma
(vocalização)”, ou seja, ela não está separada da linguagem social.
Vigotski (2001) se pergunta o que significa o declínio do coeficiente de linguagem
egocêntrica, no sentido de que este tipo de fala vai diminuindo com a idade. Ele responde
que o declínio da linguagem egocêntrica não diz nada mais a não ser que declina
exclusivamente uma única peculiaridade dessa linguagem: exatamente a sua vocalização, o
seu som. Mas isso não quer dizer que esse tipo de linguagem se extinguiu. Luria (2001),
seguindo os caminhos traçados por Vigotski, comprova que esta linguagem permanece até
o fim da vida, não desaparecendo na infância. Como diz Vigotski (2001, p.434), em um
certo momento do desenvolvimento, “quando a linguagem para si se separa definitivamente
da linguagem para os outros, ela deve necessariamente deixar de ser sonora e,
conseqüentemente, criar a ilusão de seu desaparecimento e de sua total extinção. Mas isso é
precisamente uma ilusão”.
Segundo Vigotski (2001, p.435), a linguagem egocêntrica declina na medida em que
cresce o discurso interior. Para ele, a princípio, a diferença radical entre a linguagem
(discurso)
32
interior e a exterior é a ausência de vocalização, mas não apenas isso:
A linguagem interior é uma linguagem muda, silenciosa. Esse é seu
principal traço distintivo. (...) Sua vocalização declina até chegar a zero,
ela se torna uma linguagem muda. (...) O fato de que esse traço se
desenvolve gradualmente, de que a linguagem egocêntrica se isola antes
32
Convém aqui ressaltar uma nota de rodapé do tradutor, Paulo Bezerra, deste livro de Vigotski (2001,
p.421): “Vamos manter o termo ‘linguagem interior’ por uma questão de coerência, uma vez que, neste livro,
ele está inicialmente ligado à categoria de linguagem egocênctrica desenvolvida por Piaget e discutida por
Vigotski. Entretanto a reflexão de Vigotski, especialmente a partir desta página, não só distingue o conceito
das suas interpretações e aplicações anteriores como lhe dá um novo sentido e uma nova dimensão teórica e
prática, que justifica tranqüilamente a sua substituição por discurso interior, termo, a meu ver, bem mais
amplo e mais específico que linguagem interior”. Tal afirmação nos é pertinente até mesmo porque em russo
a palavra utilizada para discurso é a mesma utilizada para fala, então podemos entender tanto discurso interior
como fala interior, o que ao nosso ver está muito distante conceitualmente de linguagem interior.
86
em termos funcionais e estruturais que em termos de vocalização, sugere
apenas o que tomamos por base da nossa hipótese sobre o
desenvolvimento da linguagem interior, isto é, sugere que a linguagem
interior se desenvolve através do enfraquecimento externo de seu aspecto
sonoro, passando da fala para o sussurro e do sussurro para a linguagem
surda e, através do isolamento funcional e estrutural, da linguagem
externa para linguagem egocêntrica e da egocêntrica para a interior.
Trata-se de um processo no qual o ouvir a voz do outro e “ouvir-se-falar” são
elementos essenciais. Principalmente o “ouvir-se-falar” sem o qual a linguagem egocêntrica
não teria como se estruturar. Para Vigotski (2001, p.444) “(...) nos aspectos subjetivo e
objetivo essa linguagem (egocêntrica) é uma forma mista e transitória entre a linguagem
para os outros e a linguagem para si – nisto reside a lei básica do desenvolvimento da
linguagem (discurso) interior”
33
. Em outra experiência realizada por Vigotski (2001,
p.443), ele procedeu da seguinte forma: colocou as crianças em uma sala grande separada
por intervalos, com um som de orquestra ao fundo, impossibilitando que as crianças
ouvissem a voz dos outros e mesmo a sua própria voz quando pronunciada externamente. O
resultado foi que a vocalização da linguagem egocêntrica diminuiu vertiginosamente. O que
isso revelou? Mesmo quando a criança fala para os outros ela fala para si e mesmo quando
fala para si ela fala para os outros na linguagem egocêntrica.
Segundo Vigotski (2001, p.445), o discurso interior não deve ser visto como fala
menos o som, “mas como uma função discursiva absolutamente específica e original por
sua estrutura e seu funcionamento, que, em razão de ser organizada em um plano da
linguagem exterior, mantém com esta uma indissolúvel unidade dinâmica de transições de
um plano a outro”. O discurso interior não é o reflexo especular do discurso exterior, sua
sintaxe é especifica. Podemos supor que o discurso interior é bem mais abreviado e
33
Vigotski (2001, p.444) fornece um exemplo, procurando esclarecer a relação entre a linguagem egocêntrica
e o discurso interior, que é a própria experiência da psicanálise no uso do divã: “Para esclarecer o sentido da
hipótese que desenvolvemos, vejamos um exemplo imaginável: estou sentado a uma mesa e converso com
uma pessoa que está atrás de mim, naturalmente fora da minha visão pela situação em que me encontro; sem
que eu perceba, meu interlocutor sai da sala; continuo a conversar, alimento a ilusão de que estou sendo
ouvido e entendido. Neste caso, minha fala lembra pela aparência a linguagem egocêntrica, uma linguagem a
sós consigo mesma, uma linguagem para si. Mas em termos psicológicos e por sua natureza ela é
evidentemente uma linguagem social”.
87
fragmentado em comparação ao discurso exterior. O caráter predicativo do discurso interior
observado a partir da linguagem egocêntrica é o aspecto que Vigotski enfatiza e que
Bergounioux (2004) mantém no seu livro sobre o discurso interior. Vigotski (2001, p.447)
escreve que:
Em termos de lei geral, podemos afirmar que a linguagem egocêntrica, na
medida em que se desenvolve, revela não uma simples tendência para
abreviação e a omissão de palavra, não uma simples transmissão para o
estilo telegráfico, mas uma tendência totalmente original para abreviação
da frase e da oração no sentido da manutenção do predicado e dos termos
integrantes da oração a ele vinculados à custa da omissão do sujeito e das
palavras a ele vinculadas. Essa tendência da sintaxe predicativa da
linguagem (discurso) interior aparece em todas as nossas experiências
com uma regularidade e uma justeza quase sem exceção.
Essa característica da sintaxe do discurso interior tal como é proposta por Vigotski
(2001) é possível de ser verificada também no diálogo de duas pessoas que se conhecem
bem, ou em grupos que convivem muito tempo juntos, onde muitas palavras podem ser
dispensadas na composição do sentido partilhado, pois a experiência do convívio dispensa
certas especificações.
4.5 A VOZ NO SONHO
Bakhtin (2002) e Vigotski (2001) enfocaram significativamente a questão do
discurso interior e defendem que a fala interior é a internalização da fala coletiva, social.
Neste sentido a articulação do universal com o particular, do singular com o coletivo,
constitui o traço mais substancial da fala interior. Nós reconhecemos o caminho trilhado
por estes autores, porém procuramos avançar no sentido da relação entre discurso interior e
voz, mantendo como ponto de apoio a teoria do inconsciente desenvolvida pela psicanálise
lacaniana e freudiana.
88
Nem Bakhtin (2002) nem Vigotski (2001) consideraram em suas teorias o conceito
de inconsciente tal qual ele é postulado pela psicanálise lacaniana. s acreditamos que a
consideração da hipótese de que temos um inconsciente que articula grande parte de nossa
vida mental é imprescindível para melhor abordarmos os conceitos de voz e de discurso
interior. O que pretendemos questionar nesta parte da teoria que estamos desenvolvendo é a
voz no sonho, para através deste caminho tentar tocar minimamente em algo relativo ao
inconsciente. Todos sabemos que as pessoas falam enquanto dormem. Falam nos seus
sonhos. Elas falam durante o sonho sem terem consciência alguma do que dizem, sem
saberem o que dizem, seja em voz alta ou para si próprios. Então neste aspecto podemos
desfazer a idéia de que controlamos perfeitamente aquilo que falamos, pois podemos falar
durante o sono em um sonho, sem ter nenhum controle daquilo que dizemos e ainda
podemos não nos lembrar, quando acordamos, que falamos algo. Embora as frases
gramaticalmente tenham sido perfeitas.
Os sonhos são uma atividade que não podemos compartilhar com outros. O único
diálogo viável no sonho é o diálogo consigo mesmo. Nós somente podemos ter contato com
as representações que o sonhador faz de seus sonhos e nunca com o sonho em si. Mesmo
quando falamos durante um sonho, não o fazemos com aquele que ali nos escuta, mas com
a imagem daquele que compõe a história que se desenrola em nossa mente. Às vezes nós
nos lembramos dos nossos sonhos, lembramos o que dissemos e não importa se o dito foi
em voz alta ou em silêncio.
Como este tema é muito complexo e demasiadamente subjetivo, procuraremos
trabalhar um exemplo que nos parece muito elucidativo com respeito à relação entre a voz,
o discurso interior e o sonho. Quando eu e minha família fomos para Paris, fazer uma parte
de meus estudos doutorais com Jacqueline Authier-Revuz, minha filha tinha cinco anos e
não falava uma palavra em francês. Logo que chegamos em Paris ela começou a freqüentar
a escola maternal francesa. Após dois meses e alguns dias, durante os quais ela não falou
praticamente nada em francês, ela começou a falar durante seu sono em língua francesa.
Falava longas frases, completamente estruturadas, utilizando tempos corretos e até mesmo
a fonética do francês. Logo após as falas noturnas em francês, ela começou a falar o francês
89
naturalmente na escola, com os amigos, em casa com seus pais. O que isso nos mostrou?
Que o processo de aprendizagem da língua francesa já havia começado antes dela
pronunciar qualquer palavra em francês na vigília; ela primeiro precisou escutar, ser uma
ouvinte da língua, e isso que ela escutou fazia movimentos em seus pensamentos de tal
forma que ela organizava histórias, sonhos, já na língua francesa, ou seja, existe um
processo inconsciente de aprendizagem que está ligado à língua e à fala, e que independe
do Eu consciente. Isso nos leva a supor que ela necessitou em primeiro lugar escutar a
língua francesa, após foi necessária a elaboração desta escuta no seu inconsciente para
somente depois ser possível a fala na vigília. Podemos supor que um diálogo interior na
língua francesa aconteceu durante o seu sonho, o que a ajudou na preparação para a fala na
vigília.
Na observação do sono de minha filha ocorreram falas do tipo: “Je ne veux plus
jouer”, “On y va”, “Jean, est-ce que je peux jouer?”, falas que demonstravam claramente
que se tratava de um diálogo. Ela estava falando com alguém. Mas a fala deste alguém não
era sonorizada, somente a sua. Então ela estava respondendo a quem? Era ela mesma que
criava os outros personagens, mas eles não tinham voz, somente a sonhadora. O que não
quer dizer que no sonho eles não falavam. O que acontece é que somente a sonhadora ouvia
as falas dos personagens que ela trazia para o sonho. Ela fala com a sua voz, mas apenas
ouve as vozes dos outros, pois ela não empresta a sua voz aos outros personagens do sonho.
No sonho a pessoa fala com sua própria voz, representa ela mesma na história e
quando fala em voz alta normalmente trata-se de um diálogo onde ela responde ou convoca
outras pessoas. No caso da observação de minha filha, ela falava uma língua que ainda não
dominava na vigília. O fato de falar com sua própria voz pode ser um pouco esclarecido
com esta colocação de Bakhtin (2000, p.48), em Estética da criação verbal:
O mundo de meu devaneio se dispõe à minha frente, semelhante ao
horizonte que se oferece à minha visão efetiva, e eu figuro neste mundo
como personagem principal que seduz os corações, cobre-se de glória,
etc., sem ter, com isso, a menor representação da minha imagem externa,
ao passo que a imagem das outras personagens que povoam meu
90
devaneio, ainda que sejam personagens secundárias, se apresentam com
uma nitidez em geral impressionante, que chega a transmitir a expressão
dos seus rostos – espanto, admiração, medo, amor - , mas aquele a quem
se dirige o medo, a admiração, o amor, ou seja, eu, este não o vejo, vivo
meu eu por dentro. Mesmo quando sonho com meus encantos externos,
não tenho a necessidade de uma representação de mim mesmo, registro
apenas o resultado da impressão sobre os outros. De um ponto de vista
plástico-pictural, o mundo do devaneio se assemelha ao mundo da
percepção efetiva; nele tampouco, a personagem principal não é expressa
externamente, não se situa no mesmo plano dos outros personagens:
enquanto estas últimas são expressas externamente, a personagem
principal, por sua vez, é vivida por dentro.
Normalmente, nos casos que observamos, a pessoa fala como se fosse ela mesma a
locutora, ela falando com outros personagens de seu sonho. Trata-se da sua própria voz no
sonho. Ela não fala imitando a voz de uma personagem de seu sonho. O que podemos dizer
é que o mais comum e observável é a pessoa falar com sua própria voz, no caso ela
representando ela mesma na história que montou. Não se trata de repetições de frases que
foram pronunciadas ou escutadas durante o dia, mas de construções
34
, articulações
realizadas a partir de frases que foram escutadas no dia anterior e mesmo ao longo da vida.
São várias associações, condensações, deslocamentos que trabalham no sentido de montar
uma história que por vezes reconta longos períodos de vida em poucos minutos. Neste
sentido podemos verificar o poder de aglutinação do discurso interior. Lacan (1998) traz as
figuras da metáfora e metonímia para explicar o movimento no sonho, seguindo as pistas,
deixadas por Freud
35
(1987g), da condensação e do deslocamento, respectivamente.
34
No sonho, não apenas são utilizados para compor a história elementos que recompõem histórias já vividas,
mas utilizamos também elementos já vivenciados para prever o futuro, isso ocorre desde os tempos antigos,
desde as histórias bíblicas. Quer dizer que no sonho existe uma capacidade de prever o futuro? Não, no sonho
existe uma complexa lógica de relação entre os diversos elementos que são incluidos em um processo de
pensamento e essa lógica possibilita até mesmo prever logicamente coisas através da relação entre os
elementos que na vigilia o sujeito não tem possibilidade de o fazer. Existem vários casos de pessoas que
resolveram problemas, ou questões importantes de pesquisa, através dos sonhos.
35
Freud, por volta de 1900, com os livros A interpretação dos sonhos (1987g), Psicopatologia da vida
cotidiana (1987h) e Os chistes e sua relação com o inconsciente (1987i) apontava para a relação entre a
linguagem e o psiquismo através de estudos dos atos falhos, (palavras que faltam quando desejamos dizer
algo ou quando pensamos algo e dizemos uma palavra diferente da que pensamos) dos chistes (que não é nada
mais que a vagabundagem do sentido, possibilidade que uma palavra possui de carregar vários sentidos,
mesmo opostos) e dos sonhos (ou seja, um momento onde a consciência não está lá, mas no qual a atividade
mental é imensa e diretamente ligada à estrutura da linguagem).
91
Vigotski (2001, p.217) também concorda com essa questão das formas da língua no sonho;
ele diz que “se tomarmos as formas mais primitivas do pensamento humano em sua
manifestação nos sonhos, encontramos esse antigo mecanismo primitivo de pensamento por
complexos, fusão direta, condensação e deslocamento de imagens”. Ora, essa é a base de
movimento do sentido em qualquer língua. Continuando ainda com Vigotski (2001, p.246):
A investigação nos ensina que, em qualquer nível do seu
desenvolvimento, o conceito é, em termos psicológicos, um ato de
generalização. O resultado mais importante de todas as investigações
nesse campo é a tese solidamente estabelecida segundo a qual os
conceitos psicologicamente concebidos evoluem como significados das
palavras. A essência do seu desenvolvimento é, em primeiro lugar, a
transição de uma estrutura de generalização a outra. Em qualquer idade,
um conceito expresso por uma palavra representa uma generalização. Mas
os significados das palavra evoluem. Quando uma palavra nova, ligada a
um determinado significado, é apreendida pela criança, o seu
desenvolvimento está apenas começando; no início ela é uma
generalização do tipo mais elementar que, à medida que a criança se
desenvolve, é substituída por generalizações de um tipo cada vez mais
elevado, culminando o processo na formação dos verdadeiros conceitos.
O que são as generalizações no plano da linguagem, a construção de conceitos,
senão os processos de metáfora e metonímia ou condensação e deslocamento? No sonho
ocorre o mesmo processo que ocorre na vida em vigília no que diz respeito à formação de
conceitos. Se a fala e a construção de conceitos ocorre involuntariamente durante o sonho,
podemos supor que na vida em vigília tanto a fala como a construção de conceitos possui
sua parte involuntária, não controlável. Se o discurso interior ocorre no sonho, tal qual
ocorre na vida em vigília, nós podemos também supor que a formação do discurso interior
não depende de um estado de alerta da pessoa, que ele ocorre involuntariamente. Todos
sabemos, por experiência própria, que o discurso interior ocorre constantemente e por conta
própria, no caso do sonho isso fica apenas mais evidente ainda.
92
5 DA VOZ À LINGUAGEM, DA LINGUAGEM À LÍNGUA
Posso sem dúvida escolher hoje para mim esta ou aquela escrita, e nesse
gesto afirmar a minha liberdade, pretender buscar um frescor ou uma
tradição; já não a posso desenvolver numa duração sem me tornar pouco a
pouco prisioneiro das palavras de outrem e até de minhas próprias.
(Roland Barthes, 2000, O grau zero da escrita)
5.1 COMUNIDADE DE APRENDIZAGEM, APRENDIZAGEM DE COMUNIDADE
A educação é um processo através do qual um ser humano aprende formas de fazer
parte de uma comunidade que através do tempo acumulou maneiras de relacionamento
com o semelhante, com a natureza, com a vida e a morte. Do ponto de vista da construção e
manutenção de uma comunidade, o que não é passado organicamente, geneticamente, de
pai para filho, precisa ser aprendido na relação com o outro, com a comunidade existente.
Os animais na natureza não necessitam da aprendizagem para conservarem seu modo de
vida e morte. O homem precisa aprender a viver e a morrer. Por quê? Já não se trata mais
somente de sua vida e morte, mas de algo incorporado, modificado pelo social, criado na e
pela linguagem.
Seguindo esta lógica de diferenciar o que é do animal na natureza e o que é do
homem no que diz respeito à aprendizagem, seremos obrigados a fazer algumas distinções.
Os animais na natureza
36
, no seu início de vida, também aprendem a pedir comida, formas
de locomoção, maneiras de sobrevivência que dizem respeito a sua adaptação ao meio
ambiente. Certamente existe uma gama imensa de diferenças entre as várias espécies, mas
essa não é a nossa questão. Referimos isso simplesmente para apontar que o aprender a
andar ou chorar para solicitar alimento não fazem em si uma aprendizagem, a não ser que
esse movimento seja verbalizado. Por que a fala verbal é tão importante? Porque através da
36
Referimo-nos a animais na natureza porque os animais domesticados, como o cão da experiência de Pavlov,
já possuem uma relação com a linguagem que modifica sua forma de vida e morte.
93
fala esse movimento prende um outro registro, enquanto palavra ele poderá ser
questionado, recortado, modificado, apagado, quer dizer que quando um movimento se
torna palavra ele passa a ser incompleto. Sempre faltará algo neste movimento, um
indizível, uma impossibilidade de dizer com a palavra o que seria o todo deste movimento.
Em outras palavras, com a palavra nos afastamos do movimento em si, após a nomeação
jamais o movimento será o mesmo, jamais ele poderá ser tocado em sua totalidade de
movimento. Mas, em contrapartida, ele estará relacionado a outras palavras que poderão
referir, refletir esse movimento. Segundo Vigotski, (2001) desde os estágios iniciais, a fala
funciona como uma parte ativa da percepção que inclui o movimento. Para ele, no começo
da infância o foco inicial é a percepção direta, sem a fala mediada, no qual a criança
percebe o todo
37
, após, com a fala, não se trata mais da percepção direta, mas de algo bem
mais complexo que possibilita uma tomada de distância deste todo.
Uma palavra somente existe dentro de uma língua, isso quer dizer que a partir da
primeira palavra já se está na língua
38
. A palavra para Vigotski (2001) implica em um
contexto socializado, nunca permanecendo sozinha. Palavra para ele se trata de um
constante relacionamento circular entre palavra-pensamento-palavra, ela seria como uma
espécie de conjunto, cada palavra sendo uma teoria dentro de um contexto socializado,
nunca permanecendo sozinha. Então quando o bebê escuta uma palavra, sustentada por uma
voz endereçada a ele, quando esta palavra que representa um sujeito, ou seja, enquanto um
significante, passa a fazer cadeia e nesta cadeia envolver o sujeito, isso quer dizer que já se
está na língua. Uma palavra escutada enquanto significante já implica toda uma língua, toda
a estrutura da linguagem. Este momento, que segundo o psicanalista Gabriel Balbo (2005)
37
Com relação à percepção do todo e a palavra, Vigotski (2001) escreve que: “As observações de crianças
em uma idade muito precoce nos mostraram que a função primária da palavra que a criança usa pode ser
realmente reduzida a apontar, a isolar um objeto dado do todo percebido pela criança na situação integral. O
fato de que as primeiras palavras da criança são acompanhadas por gestos muito expressivos como também
uma série de observações de teste nos convence disso. Até nos primeiros passos do desenvolvimento da
criança, a palavra entremete-se em sua percepção, isolando elementos separados, sobrepujando a estrutura
natural do campo sensório, e aparentemente formando novos centros estruturais móveis, artificialmente
introduzidos. A fala não acompanha simplesmente a percepção das crianças, desde as primeiras fases, começa
a assumir uma parte ativa nela; a criança começa a perceber o mundo não só através de seus olhos, mas
também através de sua fala. O ponto essencial no desenvolvimento da percepção das crianças pode ser
especificamente reduzido a este processo”.
38
Neste ponto sempre vale a pena retomar Ferdinand de Saussure (1995) no Curso de Lingüística Geral, pois
a noção de língua enquanto sistema de diferenças nos mostra a impossibilidade de uma palavra fora da língua.
94
ocorre entre os três ou quatro meses de vida, que diz respeito à entrada do sujeito na
linguagem, não ocorre sem uma perda, a perda do acesso à coisa em si. A partir deste
momento, as coisas começam a se organizar na vida do bebê em torno disto que vem no
lugar da coisa em si, ou seja, a voz. É a voz que vai fazer a mediação entre o que é o seio,
corpo da mãe, e a palavra “mama”, que está inscrita em uma língua. Esta língua, que é a
língua materna, torna possível desde o princípio que “mama” tenha o significado de seio,
mãe, fome, carinho, dor, etc. As relações entre o que é do sujeito, que então começa a
escutar e falar, com este objeto, que é a voz, são o que vai determinar a organização dos
significantes no conjunto que forma o Outro de cada sujeito.
Enquanto que nos animais o que os reúne em grupos é química, odor, cor, som, nos
humanos é a voz. O que reúne os seres humanos em conjuntos, grupos, nações é a voz na
sua materialidade gasosa, por assim dizer, uma materialidade que pode assumir várias
formas, seja o som, a imagem, as ondas magnéticas, o dígito. A voz na sua característica
primeira de separar o sujeito da enunciação do sujeito do enunciado. É a voz antes de
qualquer outra materialidade vivida o que possibilita ao homem ser reconhecido onde ele
não está, a voz que sai de seu corpo e se propaga no espaço e no tempo. A voz que pode ser
escrita, desenhada, gesticulada, sonorizada.
A respeito da discussão sobre a diferença entre a linguagem no homem e a
comunicação no animal, Émile Benveniste (1995, p.60) diz que “aplicada ao mundo
animal, a noção de linguagem só tem crédito por um abuso de termos.” No artigo
Comunicação animal e linguagem humana (1952), ele compara pesquisas feitas entre o
processo de comunicação nas abelhas e a linguagem no homem. As abelhas possuem um
sistema de comunicação muito preciso para indicar, através de movimentos que se
assemelham a uma dança, a localização exata onde os membros da colméia poderiam
encontrar néctar e pólen. Através de várias pesquisas, foi possível constatar que as abelhas
mostram-se capazes de produzir e de entender uma verdadeira mensagem, que encerra
inúmeros dados. A diferença capital, com relação à linguagem humana, Benveniste (1995)
aponta ser o fato de que uma mensagem produzirá na outra abelha somente uma certa
conduta que não é uma resposta. Uma abelha, através da “dança”, indica à outra abelha
95
onde se encontra o jardim de flores, mas isso não produz um diálogo, mas sim uma conduta
da outra abelha de dirigir-se até o jardim. Após fazer este trajeto esta outra abelha poderá
indicar à outra o local através da mesma dança, porém ela não poderá indicar o local sem
antes fazer o trajeto, ou seja, é necessária a experiência objetiva, não sendo possível a
transmissão a partir de uma mensagem.
Segundo Benveniste (1995, p.65), “o caráter da linguagem é o de propiciar um
substituto da experiência que seja adequado para ser transmitido sem fim no espaço e no
tempo, o que é típico do nosso simbolismo e o fundamento da tradição lingüística”; esse é
também o fundamento de uma comunidade de aprendizagem. Uma outra diferença é o fato
de que a mensagem das abelhas não poder ser recortada e recomposta de forma diferente,
ela se apresenta em bloco. Não havendo decomposição da mensagem em elementos, não
haverá também a combinação entre elementos que poderiam propiciar algo de novo,
diferente, como acontece na linguagem humana, ou seja, a dança em oito sempre indicará a
distância no mundo das abelhas. Trata-se de uma espécie de totalidade do movimento que
referimos anteriormente.
Se uma abelha utilizasse a dança em oito para indicar outra coisa que não a
distância, ou seja, se ela pudesse utilizar a dança em oito como um significante, as coisas
poderiam ser diferentes. No lugar de uma comunicação do tipo codificação e posterior
decodificação, teríamos uma linguagem. Benveniste chamará de poder e privilégio das
línguas naturais esta capacidade de se tomar reflexivamente por objeto. Isso se refere ao
caráter autonímico da linguagem. Seguindo este pressuposto, Josette Rey-Debove (2003,
p.335) afirma que “a autonímia não é somente uma noção necessária para compreender o
funcionamento da linguagem, é o fundamento mesmo da existência específica do sistema
de signos”. A relação da autonímia com a aprendizagem foi estudada em minha dissertação
de mestrado (HARTMANN, 2003) na qual analisamos a aprendizagem da língua escrita em
crianças do ensino fundamental, onde constatamos a necessidade do uso da autonímia no
aprendizado da língua escrita.
96
A construção e a manutenção de uma comunidade de aprendizagem estão
diretamente ligadas ao funcionamento da linguagem. O estudo do funcionamento da
linguagem possibilita uma melhor abordagem das formas de aprendizagem em uma
determinada comunidade. Para Vigotski (2001, p.27):
Devido à participação da fala na operação, a criança adquire uma
liberdade incomparavelmente maior do que é observado no
comportamento instrumental do macaco; a criança tem a possibilidade de
resolver a situação prática usando ferramentas que não estão no campo
direto de sua percepção; ela controla a situação externa preliminarmente
se autocontrolando e preliminarmente organizando seu próprio
comportamento. Em todas essas operações, a própria estrutura do
processo mental muda substancialmente; ações diretas sobre o ambiente
são substituídas por ações complexas mediadas. A fala inclusa na
operação foi o sistema de signos psicológicos que adquiriram um
significado funcional muito especial e resultaram em uma completa
reorganização do comportamento.
Essa proposição de Vigotski colabora com o desenvolvimento da idéia de que a
linguagem nos humanos é completamente diferente do que quer que seja no mundo animal
e também que ela é fundamental para a aprendizagem. A aprendizagem é a forma de
passarmos modos de vida e morte para as gerações futuras, uma forma de ultrapassarmos as
barreiras de tempo e espaço. O ensinamento para as gerações futuras da cultura que
sustenta um povo somente é possível na e pela linguagem, sem ela nada ultrapassa o
instante e tudo se mantém na totalidade de uma relação direta com o tempo e o espaço.
Conforme Benveniste (1995, p.289):
Seja qual for o tipo de língua, comprova-se em toda parte certa
organização lingüística da noção de tempo. Pouco importa que essa
noção se marque na flexão de um verbo ou por meio de palavras de outras
classes (partículas, advérbios, variações lexicais, etc.); é problema de
estrutura formal. De uma forma ou de outra uma língua distingue sempre
‘tempos’ (...)
97
O conceito de cronotopos que Bakhtin (2003a, p.237) desenvolve em Esthétique et
théorie du roman para analisar o romance, confirma esta possibilidade da linguagem, de
transpor tempo e espaço. Porém neste caso podemos acrescentar mais um elemento que é
essencial para melhor conceitualizarmos o que seria próprio da aprendizagem. A saber que
a aprendizagem não se trata simplesmente de uma passagem de conhecimento entre as
gerações, uma forma de burlar o tempo e o espaço, mas um processo de criação através do
qual os povos não apenas repassam sua história, antes disso, eles a recriam a cada momento
em que ela é retomada em um processo no qual a linguagem é soberana. A aprendizagem é
um constante processo de criação do mundo. Voltamos aqui a questão levantada
anteriormente sobre a totalidade do movimento, ou seja, a dança do oito das abelhas. A
linguagem não traduz o mundo, ela cria o mundo. Após a entrada do sujeito no trem da
linguagem, a realidade será sempre aquela criada pela linguagem.
Se aceitarmos que a linguagem é a via régia da educação, teremos que nos perguntar
se a linguagem é algo adquirido ou constitutivo do sujeito, pois se ela é adquirida como um
instrumento ela é posterior à aprendizagem, o que desqualifica a nossa proposta. Caso ela
seja constitutiva do sujeito, então poderemos seguir na nossa hipótese. Vigotski (2001, p.9)
afirmou claramente que “a atividade simbólica da criança não é inventada por ela e não é
memorizada”. Sem linguagem não existe sujeito, este é o afastamento, a divisão ocasionada
pelo distanciamento da totalidade do movimento da dança do oito das abelhas. O sujeito se
refere à dança do oito enquanto significante que representa o sujeito para outro significante.
Neste sentido, trata-se da possibilidade de se estar inserido em uma língua, um sistema de
diferenças que proporciona a cada um, em relação ao coletivo, ser único, diferente de todos
os outros. Como disse Lacan (2005, p.133, tradução nossa):
Nós criamos uma língua a todo instante que lhe damos um sentido. Nós
lhe damos uma mãozinha, sem o que a língua não seria viva. Ela é viva
porque a cada instante nós a criamos. É por isso que não há inconsciente
coletivo. Há somente inconscientes particulares, para tanto cada um, a
cada instante, dá uma mãozinha à língua que ele fala.
98
A língua vive do empréstimo da voz, ela se nutre, vive e cresce a partir do
endereçamento da voz. Nenhuma língua existe sem uma voz que a sustente. Em troca a
língua possibilita ao homem portador da voz a possibilidade de pertencimento a uma
comunidade e de reconhecimento frente a essa comunidade. Justamente nesta tensão entre o
que é do singular e o que é do coletivo, do um e do outro, é que podemos pensar o sujeito.
Como não existe transmissão de pensamento, o que seria muito próximo do conceito de
inconsciente coletivo, nós precisamos de um meio através do qual a interlocução, o fazer
comunidade, seja possível. Esse meio é a língua. Essa língua que o sujeito cria, que
colabora um tanto para que a língua na qual ele está inscrito esteja viva, quer dizer, se
transforme, seja falada, essa língua não é sem relação à língua que já existe, que é social.
Certamente é impossível conceber uma língua particular, pois seria algo totalmente fora de
propósito.
A aprendizagem enquanto uma maneira de relacionamento entre o sujeito e o social
atesta a impossibilidade de um inconsciente coletivo. O fato de necessitarmos aprender uma
língua marca a singularidade de cada sujeito, a maneira particular como cada um entra na
linguagem. Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, conforme nos diz Lacan
(1998), é porque a possibilidade de estarmos amarrados uns aos outros a devemos à
linguagem, essa corrente que diz tanto do inconsciente de cada sujeito quanto do social
onde ele está imerso. Vivemos assim um constante processo de reconhecimento, de
pertencimento, que diz respeito à construção do laço social.
Benveniste (1995), com relação ao caráter inato da linguagem, ao contrário de
tomá-la como um instrumento que se aprende no decorrer da vida, diz que:
Falar de instrumento, é pôr em oposição o homem e a
natureza. A picareta, a flecha, a roda não estão na natureza.
São fabricações. A linguagem está na natureza do homem,
que não a fabricou. Inclinamo-nos sempre para a
imaginação ingênua de um período original, em que um
homem completo descobriria um semelhante igualmente
completo e, entre eles, pouco a pouco, se elaboraria a
linguagem. Isso é pura ficção. Não atingimos nunca o
99
homem separado da linguagem e não o vemos nunca
inventando-a . Não atingimos jamais o homem reduzido a si
mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um
homem falando que encontramos no mundo, um homem
falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria
definição do homem. (BENVENISTE, 1995, p.285)
Não se é humano por ser igual ao outro humano, se é humano por se estar amarrado
por um sistema que é a linguagem. O lugar que um sujeito ocupa neste sistema jamais será
o mesmo que qualquer outro sujeito, pois somente com relação ao social se pode ser
singular do ponto de vista da linguagem.
Não podemos falar de linguagem sem uma língua. Dizer que existe a linguagem dos
sinais, a linguagem das cores, das imagens, dos gestos sem uma língua é algo
completamente impossível. A língua não é o todo da linguagem, que a priori é o
simbólico, mas sem uma língua como abordar a relação entre linguagem e aprendizagem?
A construção de uma palavra diz de um processo de aprendizagem. Que espécie de
aprendizagem é essa? A linguagem, a criança não aprende, ela é natural no humano, seja
para Benveniste (1995), Lacan (1998), Vigotski (2001), mas a língua... O que é a
aprendizagem de uma língua? É o processo de transformação, materialização da linguagem
em língua. Porém se pensarmos a aprendizagem não somente de uma língua como o
português ou inglês, mas a aprendizagem também da matemática, química, física, veremos
que toda aprendizagem é um processo de transformação da linguagem, ou seja, da condição
do simbólico, em materialidades cambiáveis, articuláveis, em espécies de línguas, sistemas
que introduzindo o imaginário, a significação, possibilitam sentidos diversos, construindo
assim discursos, fazendo realidades.
Segundo Benveniste (1995, p.104): “O princípio fundamental é que a língua
constitui um sistema do qual todas as partes são unidas por uma relação de solidariedade e
de dependência. Esse sistema organiza unidades, que são os signos articulados, que se
diferenciam e se delimitam mutuamente”. Não se trata de um esquema de assimilação, mas
de inserção na língua, pertencimento, na medida em que este pertencimento se torna mais
efetivo, a transformação da própria língua também ocorre de modo mais efetivo. Trata-se
100
de um processo de entrada gradativa no social e ao mesmo tempo de transformação deste
social pela própria entrada de um sujeito que faz diferença. Somente é possível a entrada no
sistema como diferente. Um sujeito entra no sistema somente como um diferente de todos
os outros sujeitos.
Nós não temos acesso a seja lá o que for da linguagem sem uma língua. A língua é
algo que vem do outro, quer dizer, vem de fora do corpo, mesmo que ela possa ser inscrita
no cérebro via neurônios, mesmo que seja possível delimitar áreas no cérebro relativas a tal
ou tal função da linguagem, a língua diz da relação do homem com outro homem. O
cérebro não produz uma língua. Nenhum ser humano produz sozinho uma língua. Como
escreveu Saussure (1995), a língua é o caráter social da linguagem. A língua é aprendida e
construída no diálogo com o outro. Mas para que o diálogo possa ser ouvido ou lido é
necessária a interferência da voz.
É interessante sublinhar que a voz que pode ser separada do corpo, que pode ser
registrada, gravada, transformada materialmente, é também a mesma voz que compõe o
discurso interior. O que o homem tem de mais íntimo na relação dele consigo mesmo,
como a voz no discurso interior, é também o que ele pode ter de mais distante, pois mesmo
além de sua vida sua voz gravada ou escrita pode continuar a soar. A diferença é que a
gravação da voz sonora não invoca outra voz para se fazer soar, ao passo que a escrita com
traços, imagens, letras, precisa de uma outra voz para se fazer soar. Em um certo sentido a
escrita carrega uma armadilha, pois a voz transformada em letra jamais será recomposta,
mesmo se o próprio escritor a ler. Será sempre com uma outra voz que lemos o escrito,
jamais com a voz que lhe deu origem. Aquele que lê é obrigado, no ato de leitura, a
depositar ali sua voz. A leitura é sempre um encontro de vozes, pelo menos duas, uma
latente, transformada em letra e outra viva, em plena atividade, aquela daquele que lê.
A voz viva é a voz da leitura, da escuta, a voz latente é a voz expressa seja pelo
som, imagem, ou gesto. O que carrega a voz fora do corpo falante (som, letra, imagem,
gesto) a carrega em forma latente, representando aquele que a pronunciou. Porém toda voz
expressa é também ouvida pelo próprio locutor que, no momento da enunciação, constrói
101
uma imagem de si singular. A relação entre a voz viva, que se ouve ao falar, com a voz
latente, que sai do corpo falante, possibilita um retorno do dizer sobre o próprio ato de
dizer, é o que proporciona uma relação de espelhamento, de construção de uma imagem do
dizer. A voz, ao tocar a linguagem, ao ser revestida por uma língua, proporciona ao sujeito
a possibilidade de marcar um endereço no mundo humano. Endereço que somente adquire
sentido no endereçamento a outros homens também dotados de voz.
O endereçamento da voz somente faz sentido se houver um sistema comum de
interpretação, ou seja, de leitura. A língua não é apenas um sistema de expressão, ela é
antes um sistema de audição, de leitura. Somente com a língua nós podemos ler todos os
outros sistemas. Nenhuma espécie de linguagem pode interpretar todas as outras como a
língua o faz. Nós podemos nos expressar através de outros sistemas de linguagem, mas não
podemos ler através de outros sistemas de linguagem salvo a língua. E a língua, enquanto
discurso, carrega como seu elemento mais opaco a voz.
Não existe uma língua sem voz. As línguas morrem, desaparecem, sem a voz. O
mundo tem acompanhado esse forte movimento de desaparecimento de línguas nos últimos
séculos com a construção dos impérios, as conquistas, a globalização. Essa é a questão do
multilinguismo
39
hoje em dia, a preocupação com o desaparecimento das línguas. Por quê
as línguas desaparecem? Porque não têm mais voz que sustente estas línguas. Porque
nenhum humano empresta mais sua voz a estas línguas.
5.2 A TEORIA ENUNCIATIVA DE JACQUELINE AUTHIER-REVUZ
A teoria de Authier-Revuz é consagrada à questão da auto-representação da
enunciação através do estudo sistemático de glosas reflexivas do tipo: se você entende o
39
A questão do multilingüismo foi amplamente discutida no colóquio Technologies du langage: vers les
sociétés du savoir que ocorreu na sede da Unesco em Paris no ano de 2005. O colóquio foi organizado por
Claudia Wanderley (coordenadora), Fernando Hartmann, Carlos Piovezani e Luzmara Ferreira. Atualmente
Fernando Hartmann faz parte da cátedra de multilingüismo da Unesco na UNICAMP, coordenada por Claudia
Wanderley.
102
que quero dizer, como você diz, o que chamamos de..., no sentido de... etc. No conjunto de
sua teoria encontramos a análise exaustiva de um fato da língua, que apesar de ser muito
freqüente, seguidamente passa despercebido tanto para aquele que fala como para aquele
que ouve. A enunciação, se redobrando sobre um comentário sobre ela mesma, se
representa como não coincidente a ela mesma. O signo com o qual falamos se torna, ao
mesmo tempo, o signo do qual falamos. Esta estrutura complexa corresponde a um modo
de enunciação redobrado, no qual o dizer se mostra como explicitamente heterogêneo.
Procuraremos seguir neste capítulo o caminho traçado por Authier-Revuz (1995) até
chegar ao que ela denominou de não-coincidências do dizer. Certamente não abordaremos
o todo de sua teoria, mas especificamente a parte que acreditamos se relacionar como o
nosso estudo sobre a voz. Authier-Revuz não trabalha em seus textos o conceito de voz.
Ela se mantém na lingüística, mais propriamente falando, com enfoque na enunciação. Ela
busca exteriores teóricos (psicanálise de Lacan, dialogismo de Bakhtin, interdiscurso de
Michel Pêcheux), fora da lingüística, para ajudar a compor a sua teoria. Porém é necessário
ressaltar que, para Authier-Revuz, eles são exteriores a seu campo teórico, que de fato é a
lingüística. No nosso caso o ponto de vista é um pouco diferente, pois o nosso campo
teórico de origem é a psicanálise e a teoria de Authier-Revuz é então para nós um exterior
teórico.
Um dos nossos pontos de interesse na teoria de Authier-Revuz se endossa na
seguinte colocação de Jacques Nassif (2004, p.29, tradução nossa):
Parece justo pensar que a voz se manifesta, não quando ela se endereça a
não sei qual absoluto de gozo, mas quando ela cai nas falhas do sentido,
seja por causa de uma comprovação mal negociada da virada dos vetores
da intenção de significar e de retroação do sentido, seja por causa do
caráter tênue e sempre arriscado da imposição do código de uma língua
que pode sempre ser extravasada para – ou deportada em direção a – uma
outra língua.
103
O que Nassif nos apresenta é que as falhas do sentido, as negociações realizadas na
intenção de significar, as batalhas travadas com a materialidade da língua, o código na sua
possibilidade sempre aberta a uma outra forma são pontos nos quais podemos supor a
manifestação da voz. Em outras palavras, que as não-coincidências do dizer podem ser
tomadas como manifestações da voz. Na irrepresentabilidade da voz, no elemento mais
opaco do discurso, é ali onde se produz o sentido, justamente pelo vazio de significado, o
que torna possível supor na análise da língua, de seus elementos, a parte mais escondida e
ao mesmo tempo a mais evidente de toda língua, seja ela oral ou escrita, a saber a voz.
5.2.1 Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva
A heterogeneidade está na origem da construção teórica de Authier-Revuz que vai
buscar, a partir da perspectiva lingüística, uma relação de alteridade, o que refletirá no
conceito de heterogeneidade constitutiva. Para embasar o conceito de heterogeneidade
constitutiva apóia-se basicamente em duas teorias: o dialogismo do círculo de Bakthtin e a
teoria do sujeito efeito da linguagem da psicanálise lacaniana. Do dialogismo, tal como foi
postulado pelo círculo de Bakhtin, Authier-Revuz (1982) sublinha o fato de a interação com
o discurso que vem do outro ser a lei constitutiva de qualquer discurso enunciado. Um
ponto importante da teoria de Bakhtin que Authier-Revuz faz uso é a presença das palavras
do outro no um do discurso. Na psicanálise, tal qual defende Lacan ao fazer uma releitura
de Freud, Authier-Revuz se liga principalmente à concepção de sujeito do inconsciente,
sujeito dividido, como ela (1982, p.38) diz: “contrariamente à imagem de um sujeito
‘pleno’, que seria a causa primeira e autônoma de uma palavra homogênea, sua posição é a
de uma palavra heterogênea que está no fato de um sujeito dividido”.
A heterogeneidade mostrada se refere à presença do outro discurso mostrada
lingüisticamente no fio do discurso no momento em que ele se faz. A heterogeneidade
mostrada está relacionada diretamente à heterogeneidade constitutiva, que não é
exclusivamente lingüística, mas dependente de exteriores lingüísticos, o que refere o caráter
constitutivamente heterogêneo da língua. Como escreve Authier-Revuz (1982, p.12): “para
104
a descrição lingüística das formas de heterogeneidade mostrada, o levar em conta a
heterogeneidade constitutiva é (...) uma ancoragem necessária no exterior do lingüístico”.
Como já abordamos em capítulos anteriores a parte da teoria de Bakhtin que nos
interessava, daremos preferência neste capítulo à teoria da psicanálise no que ela se
relaciona à teoria de Authier-Revuz. Além disso, a psicanálise é o porto de onde partimos e
para onde, nesta tese, sempre retornamos de tempos em tempos. Em primeiro lugar, temos
que considerar que a psicanálise, inventada pelo médico Sigmund Freud, é uma prática
clinica de escuta. Ela visa o tratamento de doenças mentais. A partir desta escuta se
estruturou uma teoria que diz respeito às relações do sujeito com a linguagem. Authier-
Revuz (1982, p.44) diz que “é na letra do discurso, na base do material lingüístico, do
significante, que se detém a escuta analítica [...]. Os lapsos, os chistes, os sonhos, não são
senão as emergências surpreendentes de uma presença permanente”. Essa afirmação é
importante para afastar a idéia do inconsciente como algo escondido, oculto, que se
manifesta de vez em quando.
Uma definição simples do inconsciente, para espantar as suposições mágicas de
algo que comanda os sujeitos, nós encontramos na seguinte proposição de Roland
Chemama (2003, p.241) :
O inconsciente, dizia Lacan, é o social. De uma forma talvez extrema,
essa fórmula tem o mérito de lembrar que o sujeito individual depende
estreitamente do quadro transindividual que a polis constitui e
notadamente os discursos que fazem laço social
.
Se para Lacan o inconsciente é o social, a política
40
, o real furado pelo
significante
41
, transindividual e inacessível para nós, o que fica presente é que ele é
estruturado como uma linguagem. Lacan vai repetir ao longo de seus 27 seminários: “o
40
Conforme Lacan no seminário inédito A lógica do fantasma, lição de 10/05/67. “Eu nem digo que a
política é o inconsciente, mas simplesmente que o inconsciente é a política”.
41
Conforme Lacan no seminário inédito RSI, lição de 15/04/75. “A meu ver não há outra definição possível
do inconsciente. O inconsciente é o real. Meço minhas palavras se digo – é o real na medida em que ele é
furado”.
105
inconsciente é o discurso do Outro”. Essa amarragem é justamente o que nos faz sujeitos
por estarmos completamente presos à estrutura da linguagem e desta forma, enquanto
sujeito, sermos diferentes de todos os outros sujeitos do mundo. Assim como um
significante
42
adquire estatuto pela oposição aos outros significantes da estrutura, o sujeito
também adquire estatuto via oposição. Não existe um sujeito sozinho, somente um sujeito
em relação a outros sujeitos, tal qual o significante na língua.
Authier-Revuz (1982, p.61, grifo da autora), apontando para a heterogeneidade
constitutiva do discurso, não concebe a heterogeneidade mostrada como um “reflexo fiel”
da referida heterogeneidade constitutiva. Diz ela:
Minha hipótese é a seguinte: no discurso, a heterogeneidade mostrada não
é um espelho da heterogeneidade constitutiva do discurso; ela também
não é “independente”. Ela corresponde a uma forma de negociação –
necessária – do sujeito falante com esta heterogeneidade constitutiva –
inelutável mas que lhe é necessário reconhecer, sendo que a forma
“normal” desta negociação se alia ao mecanismo da denegação.
A denegação é uma forma de negação
43
; na psicanálise designa uma forma de
resistência. No português, o texto “Die Verneingung” foi traduzido por “A Negativa”, o
que, não parece condizente com o que Freud (1987j) está querendo designar, pois não se
trata de uma simples negação, mas antes de uma negação que ao, negar, afirma um suposto,
um outro, o que combina melhor com o termo denegation, proposto por Lacan, que em
português é denegação. A denegação é então uma forma de negação que ao negar afirma.
Freud (1987j) parte da idéia, derivada da escuta de seus pacientes, de que quando emitimos
uma negação, devemos considerar que o que estamos negando, por exemplo: “eu não te
42
“Lacan cria uma teoria do significante, na qual este não é mais a outra face do signo em relação ao
significado e só existindo nessa associação, mas a ordem do espaçamento segundo a qual sustenta-se uma
cadeia em que se marca a lei como diferença.” (HARTMANN, 2003, p.35)
43
Na gramática de usos do português de Maria Helena de Moura Neves (2000, p.330), em um capítulo
intitulado A negação como operação pragmática encontra-se que “[...] os enunciados negativos não são
empregados primariamente para expressar informação nova, mas sim para assentar uma manifestação acerca
de informações já expressas, ou supostas na interação lingüística”, o que nos leva a uma estreita ligação entre
negação e afirmação.
106
amo”, passou pela mente como “eu te amo”. Isso não quer dizer que ame, mas a idéia de
amar passou pela mente. Desse modo:
A maneira pela qual nossos pacientes apresentam suas associações
durante o trabalho de análise, fornece-nos oportunidade para realizar
algumas observações interessantes. ‘Agora o senhor vai pensar que quero
dizer algo insultante, mas realmente não tenho essa intenção.’
Compreendemos que isso é um repúdio, por projeção, de uma idéia que
acaba de ocorrer. Ou: ‘O senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no
sonho. Não é minha mãe.’ Emendamos isso para: ‘Então é a mãe dele.’
Em nossa interpretação, tomamos a liberdade de desprezar a negativa e de
escolher apenas o tema geral da associação. É como se o paciente tivesse
dito: ‘É verdade que minha mãe me veio à lembrança quando pensei nessa
pessoa, porém não estou inclinado a permitir que essa associação entre em
consideração. (FREUD, 1987j, p.295)
Como é comum nos textos freudianos a utilização de metáforas decisivas para
explicitar determinados funcionamentos mentais, neste artigo encontramos que “um juízo
negativo é o substituto intelectual da repressão; o seu ‘não’ é a marca distintiva da
repressão, um certificado de origem – tal como digamos, Made in Germany” (1987j,
p.297).
A utilização que Authier-Revuz (1982) faz do conceito de denegação designa uma
escolha teórica voltada para a concepção do sujeito como um efeito de linguagem, que não
é a origem do sentido, assim como não possui domínio completo sobre o dizer. A
denegação apresenta-se como fundamental na explicitação da heterogeneidade mostrada
como dependente da heterogeneidade constitutiva, conforme a autora:
As marcas explícitas de heterogeneidade respondem à ameaça que
representa, para o desejo de domínio do sujeito falante, o fato de que ele
não pode escapar à aquisição de uma fala que, fundamentalmente, é
heterogênea. Através dessas marcas, designando o outro localizadamente,
o sujeito empenha-se em fortalecer o estatuto do um. É nesse sentido que
a heterogeneidade mostrada pode ser considerada como um modo de
denegação no discurso da heterogeneidade constitutiva que, ela, depende
do outro no um. (AUTHIER-REVUZ, 1982, p.64, grifo da autora)
107
A heterogeneidade mostrada se apresenta então como uma tensão entre o que é do
outro e o que é do um no discurso. É do interior desta tensão que o sujeito falante procura
sustentar o domínio sobre o seu dizer buscando assim mostrar o um do seu discurso. Na
teoria de Authier-Revuz a designação do outro localizadamente também está relacionada a
uma propriedade essencial da linguagem que é a reflexividade.
5.2.2 Reflexividade da linguagem
A reflexividade da linguagem é um dos pontos de partida de Authier-Revuz (1995)
para a abordagem da auto-representação da enunciação. Segundo Marlene Teixeira (2000)
“a propriedade da reflexibilidade da linguagem – ou seja, a capacidade que ela tem de ser
sua própria metalinguagem – é o grande campo onde se inscreve a pesquisa de Authier-
Revuz”. A reflexividade da linguagem é a capacidade da linguagem de ser sua própria
metalinguagem graças à existência em toda língua de um conjunto de formas as quais
permitem assegurar esta reflexividade, que como já dissemos, é considerada a propriedade
fundamental da linguagem humana. A reflexividade é a capacidade da língua que
Benveniste (1995) descreve como “poder maior da língua” devido ao fato de ela poder criar
um segundo nível de enunciação onde é possível reter de propósito os significantes sobre a
significação. O fato de ser seu próprio interpretante especifica a língua entre todos os outros
sistemas de signos que, de fato, ela engloba. Para Benveniste (1995) é nesta faculdade
metalingüística que encontramos a origem da relação de interpretância pela qual a língua
engloba os outros sistemas. A faculdade de falar uma língua implica a faculdade de falar
desta língua, tanto que ela forma um aspecto de nosso comportamento verbal espontâneo.
Ao falar de reflexividade da língua nós necessariamente devemos abordar a questão
da metalinguagem. Não podemos esquecer aqui o famoso aforisma de Lacan (1998): “Não
108
há metalinguagem”, que seria o mesmo que dizer: não há Outro do Outro. Conforme
Authier-Revuz (2004a, tradução nossa):
“Não há metalinguagem”, quer dizer um lugar, exterior a linguagem de
onde poderíamos tomar a linguagem, o sentido e a enunciação por
objeto... Mas há – e não é Lacan, meta-enunciador impenitente, que virá
aqui se inscrever em falso – do interior da linguagem e do dizer, retorno
reflexivo do enunciador sobre suas próprias palavras; há este estrato
metalinguageiro no qual se inscreve o movimento reflexivo, segundo o
qual “nós somente podemos retornar nos deixando ir cada vez mais
adiante”
44
.
Não devemos confundir aqui a metalinguagem dos lógicos e a metalinguagem
natural. A metalinguagem lógica refere uma possibilidade de sair da língua para poder
explicá-la, para poder tomá-la como objeto. Essa não é a metalinguagem que abordaremos.
Consideraremos que a linguagem humana não é um sistema de signos entre outros. A
linguagem permite estágios complicados, pois podemos sempre utilizá-la para falar sobre a
linguagem. Este é um traço que não encontramos jamais na comunicação animal. A
reflexividade diz então do fato de a língua poder se tomar a si mesma sem sair da língua. É
importante sublinhar que se trata da reflexividade na língua, da própria língua, não se trata
do sujeito como se fosse algo fora e independente da língua, refletindo sobre a língua.
A reflexividade da qual fala Authier-Revuz (1995, p.42, tradução nossa) não é a
mesma da pragmática ou de teses de “filósofos da linguagem ordinária que fazem intervir
de maneira crucial a reflexividade nas suas teorias gerais da significação, colocando que
todo enunciado proporciona as indicações concernentes ao fato de sua própria enunciação”.
Ela postula uma reflexividade inerente a toda enunciação. Ela vai analisar os fatos
particulares de reflexividade meta-enunciativa observável em certos enunciados.
44
A citação de Lacan (1998, p.272), dentro da citação de Authier-Revuz, em francês no original está escrita:
“Nous ne pouvons nous retourner qu’en nous laissant pousser toujours plus avant”; em português, nos
Escritos (1998) esta frase foi traduzida como: “só podemos voltar as costas para essa ação”; ao invés de:
“retornar sobre suas palavras” indo cada vez mais adiante. Uma tradução que, sem dúvida, compromete o
sentido proposto pelo autor.
109
5.2.3 Locutor seu próprio ouvinte
Como vimos nos capítulos anteriores, a voz carrega em si essa fantástica capacidade
do locutor ser seu próprio ouvinte. Este fato, assim como é postulado pelos estudiosos da
voz que citamos, é o ponto no qual podemos fazer uma relação com a teoria de Auhtier-
Revuz. Ela estuda esta capacidade do ponto de vista da lingüística. Ao nosso ver ela
exemplifica como a língua pode nos mostrar esta especificidade da voz. Desde que falamos
escutamos a nós mesmos, isso nos possibilita tomarmos a nossa fala como um objeto do
qual podemos falar no momento em que falamos. Desta forma podemos retomar as palavras
que enunciamos, corrigir, desdizer, enfatizar os enunciados que acharmos pertinentes.
Trata-se de uma possibilidade contínua de tomarmos a nossa enunciação como objeto e,
desta forma, modificá-la na linearidade do discurso.
As formas na língua que nos explicitam esse fenômeno são bem freqüentes, como
por exemplo: X, mas não era isso que eu queria dizer; X, é essa mesmo a palavra, X, essa
palavra me fascina. Estas formas do dizer mostram o locutor, que ao escutar o que diz,
reforça ou nega o dito. Trata-se de uma forma de auto-representação do dizer no momento
em que ele se faz. Esse fato deixa evidente a materialidade da língua, quer dizer, o locutor
ao retomar o dito realiza uma operação sobre um objeto que tem uma materialidade, não
simplesmente sonora ou imagética, mas de diferenciação de sons e traços que dentro de um
sistema, no caso a língua, fazem sentido. Bakhtin (2002), a este respeito, se refere às
relações dialógicas, que além de serem dialógicas com relação ao outro interlocutor são
também dialógicas na relação do locutor com suas próprias palavras; segundo ele o
enunciador deixa aparecer ou coloca em cena a estrutura e o mecanismo, continuamente
presente, de um autodialogismo inseparável da distância interna de toda enunciação.
Para Authier-Revuz (1995, p.48, tradução nossa, grifo da autora) :
110
Falar de desdobramento do enunciador em comentador de seu próprio
dizer, ocupando com relação a este dizer, no interior deste dizer,“uma
‘posição’ méta-enunciativa de ‘distância’, de ‘afastamento’, de
‘sustentação’ com relação às palavras tomadas como objetos, é derivada
de uma tentativa de representação intuitiva do mecanismo subjetivo
subjacente às formas observáveis de reflexividade meta-enunciativa.
É de uma maneira complexa que, tomando-se ela mesma por objeto, a enunciação se
dá como não sendo um bloco fechado, pois nesta retomada do dizer o que fica evidente é o
deslize do sentido, as não-coincidências do dizer. A dimensão da auto-recepção é contrária
à idéia da comunicação como transmissão de uma mensagem entre emissor e receptor,
tendo em vista que a retomada do dizer mostra o sentido sendo construído no próprio
processo de enunciação e mesmo como autodialogismo, se tomarmos Bakhtin (2000). A
linguagem neste caso, conforme Authier-Revuz (1995, p.34, tradução nossa), “se revela
como um sistema, mas um sistema aberto”. Não se trata de diálogo como uma conversação,
diz respeito ao sujeito no momento em que ele enuncia. É o dizer que se auto-representa.
Passagem de um dizer simples a um dizer complexo.
Assim é claro que a posição de distância do enunciador às palavras
que ele enuncia ou seu desdobramento não saberiam ter o mesmo
estatuto segundo, esquematicamente, o quadro no qual eles são
realizados, no qual o sujeito é concebido como utilizador de uma
língua instrumento em uma relação de exterioridade, ou no quadro
de um sujeito marcado de uma clivagem interna a ele mesmo, pelo
fato da linguagem da qual ele é o produto. (AUTHIER-REVUZ,
1995, p.48, tradução nossa)
O enunciador aparece como enunciando duplamente, quando ele enuncia X e
quando ele enuncia o fato de ter enunciado X, o que corresponde a um desdobramento do
dizer, evidenciando a cisão de um diálogo interno. “O comentário meta-enunciativo não é
simplesmente duplicação reflexiva, mas também resposta que o enunciador se dá a si
mesmo, desde a posição ‘exterior’ de receptor, que ele ocupa no interior de sua própria
enunciação” (Authier-Revuz,1995, p.148, tradução nossa).
111
No caso da modalização autonímica, trata-se de um diálogo do enunciador com ele
mesmo, que reage a sua própria palavra, ocupando ao mesmo tempo, no interior de um
processo enunciativo, os dois pólos de emissor e receptor na interlocução:
É em uma perspectiva enunciativa de modalização reflexiva do
dizer que eu inscrevo a estrutura descrita como ‘conotação
autonímica’ como apresentando um acúmulo, hierarquizado, de
duas semióticas, com bloqueio da sinonímia, recaindo sobre uma
modalidade reflexiva opacificante do dizer. (AUTHIER-REVUZ,
1995, p.33, tradução nossa)
O locutor, ao ouvir a sua voz, e isso serve também para escrita e não somente para a
fala, tem a possibilidade de tomar a sua própria enunciação como um objeto. O que
Authier-Revuz (1995) nos mostra é que o locutor, ao ouvir-se falar, procura modalizar o
seu dizer buscando uma homogeneidade imaginária que sustente o seu dito. Na
modalização autonímica as palavras são pronunciadas e após serem ouvidas pelo próprio
locutor elas são modalizadas, ou seja, elas são reforçadas, reafirmadas, colocadas em
dúvida, negadas, etc.
5.2.4 Modalização autonímica
A modalização autonímica é uma configuração enunciativa complexa, acumulando
o uso de uma palavra para designar uma coisa e o retorno, em menção, sobre esta palavra.
Sua identificação como forma de representação do discurso outro, quer dizer, como
modalização autonímica de empréstimo, é uma diferenciação do campo mais vasto da
modalização autonímica como um todo. A utilização da modalização autonímica de
empréstimo deixa claro que as palavras incorporadas do outro discurso pelo locutor deixam
o sentido em suspenso, pois é justamente na tentativa de unificar o sentido que o locutor
evidencia a materialidade da língua e a então necessidade de modalizar o seu dizer,
procurando afastar ou marcar a ambigüidade do sentido das palavras que ele incorpora ao
112
seu dizer. O locutor expressa que ele e as palavras que enuncia não são a mesma coisa, mas
que ele precisa destas palavras que vêm do outro para poder enunciar, para poder ser um.
Neste caso se torna mais clara a luta entre o locutor e as palavras na tentativa de formação
de um discurso que corresponda à suposta unidade daquele que enuncia.
Para Authier-Revuz (1995), apoiada em J. Rey-Debove, a autonímia é a
possibilidade de usar os signos para remeter a eles próprios e se refere à forma significante
do dizer e não apenas ao seu conteúdo. Na frase: “A palavra casa tem quatro letras” nós
temos um exemplo de autonímia com a palavra casa. Mas na frase: “A casa que você mora
é bonita” a palavra casa está sendo utilizada somente na forma de uso. Assim, fica claro que
a autonímia exclui a sinonímia, pois no primeiro caso não podemos substituir “casa” por “o
lugar em que você mora” tem quatro letras.
A noção de acúmulo semiótico que denota (sentido literal, referente) a coisa e
conota (desvio do sentido, associação a outros sentidos) a palavra, é de onde
provém a noção de modalização autonímica via uma redefinição (que
desloca para o ponto de vista enunciativo) como modo de dizer que, ao
modo de dizer ´simples´ de um elemento X que remete a um referente x:
X-> x, opõe o modo de dizer complexo, de desdobramento opacificante,
no qual a nomeação do referente x se realiza com a intervenção, qualquer
que seja o modo, do autônimo X`, homônimo de X: [ ...X`...] -> x”.
(AUTHIER-REVUZ, 1998, p.182)
A modalização autonímica refere-se a um retorno sobre o dizer. Está relacionada à
opacificação do elemento auto-representado do dizer (por oposição a transparência
45
),
coloca em jogo, na representação, via autonímia, a forma significante do dizer. O que quer
dizer que não podemos desconsiderar a forma na língua. Via opacificação, o que ela torna
visível é um enunciador lutando com as palavras, com a materialidade da língua, buscando
45
Com relação à noção de transparência e opacificação do signo devemos nos remeter a François Récanati em
seu livro La transparence et l’énonciation, Paris: Éditions du Seuil, 1979.
113
constituir um imaginário da enunciação, uma unidade que suporte os discursos vindos do
Outro.
Para Authier-Revuz (1998, p.183), a modalização autonímica é uma forma de
enunciação que comporta uma representação da enunciação e concerne “ao campo
heterogêneo da enunciação em que a língua (...) encontra a fala, o discurso, o sujeito”. A
modalização autonímica é uma forma de reflexividade enunciativa, isolável como tal sobre
a cadeia. A conotação reflete sobre o dito, sobre o enunciado, por exemplo: a palavra casa
tem quatro letras; ao passo que a modalização reflete sobre o fato de ter dito, sobre a
enunciação, por exemplo: casa, se posso chamar aquilo de casa, se é que você entende o
que estou dizendo.
A modalização autonímica acontece quando a enunciação de um determinado
elemento X é acompanhada de uma enunciação sobre o fato de ter enunciado este elemento
X. O locutor, ao ouvir-se-falar, ao ouvir-se-escrever, toma a sua própria enunciação como
um objeto. Esse fato nos apresenta a enunciação não mais transparente, no sentido de que
aquilo que se diz possa ter uma colagem com as coisas do mundo de tal forma que mundo
representante e mundo representado sejam a mesma coisa, mas opaca, no sentido de que
utilizamos uma língua para representar e essa língua, esse mundo representante, não é o
mesmo que o mundo representado. Metaforicamente podemos pensar a transparência como
o ver através das palavras, como se a materialidade da língua não influenciasse, ao passo
que na opacidade vemos o mundo com as palavras, quer dizer temos que nos debater com
esta materialidade da língua que nos vem do exterior. A opacidade da língua, no
desdobramento meta-enunciativo que a modalização autonímica revela, mostra que entre o
locutor e seu dito existe uma distância, que o locutor e seu dito não são a mesma coisa, pois
para falar ele precisa de algo externo a ele mesmo, o que lhe vem através de uma
materialidade lingüística. A modalização cumpre um papel de tentar fazer do locutor e de
seu dito uma imagem unificada, uma imagem de um, uma imagem do dizer no momento
em que ele se faz. A imagem do dizer buscada na modalização autonímica é uma auto-
representação do locutor.
114
5.2.5 Não-coincidências do dizer
Ao desenvolver sua teoria, Authier-Revuz (1998) acrescenta ao conceito de
heterogeneidade o conceito de não-coincidência do dizer. Por esta via, a heterogeneidade
constitutiva refere que o dizer é afetado por quatro campos de não-coincidência, de forma
“inerente, permanente e irrepresentável”. Essas não-coincidências constitutivas que
atravessam o dizer obrigam o enunciador a uma negociação onde se manifesta, através da
denegação, o jogo da heterogeneidade mostrada com a heterogeneidade constitutiva que
podemos destacar através das marcas lingüísticas referidas pela modalização autonímica.
Na procura de manter um domínio ilusório sobre a fala é que se apresenta a
heterogeneidade. Através das marcas das não-coincidências, que designam o outro
localizadamente, o sujeito empenha-se em fortalecer o estatuto do um. No processo de
desdobramento meta-enunciativo do locutor na modalização autonímica, Authier-Revuz
(1995) encontrará o que ela chama de alteridades representadas
que afetam o dizer. São
quatro: a não identidade dos interlocutores, a não unidade dos discursos, a não
correspondência estrita entre as palavras e as coisas e a não univocidade dos signos. A
partir destas alteridades ela comporá as não-coincidências do dizer:
É, de fato, no real das não-coincidências fundamentais, irredutíveis,
permanentes, onde elas afetam o dizer, que se produz o sentido. Assim é
fundamentalmente que as palavras que dizemos “não vão de si próprias”,
mas se desejarmos... ‘do Outro’: do Outro, abrindo o discurso sobre sua
exterioridade interdiscursiva interna, a nominação sobre sua perda relativa
a coisa, a cadeia sobre o excesso de sua ‘significância’, a comunicação
sobre o afastamento intersubjetivo, e ao todo a enunciação sobre a não-
coincidência a ela mesma do sujeito, dividido, desta enunciação.
(AUTHIER-REVUZ, 1995, p.804, tradução nossa)
Nós não podemos separar este espaço de não-coincidência onde nasce o sentido
daquilo que é a razão da linguagem, que é sustentar a fala, ou seja, fazer conjunto com
115
outros seres humanos. Essa é a questão e a necessidade da enunciação, ou seja, situada na
tensão entre o Um e o não-Um, como diz Authier-Revuz (1995), entre o singular e o
coletivo, fazer, manter um conjunto, que é o social, e que é também a única possibilidade
de existência do locutor-ouvinte. O sentido é criado e re-criado nas relações de diálogo
entre os sujeitos, na medida em que o humano necessita de outro humano para ser humano.
Somos humanos, não-coincidentes uns com os outros, irremediavelmente amarrados pela
linguagem.
As não-coincidências do dizer, na sua configuração enunciativa complexa da
reflexividade opacificante, evidenciam esta estranha peculiaridade da enunciação de se
fazer singular justamente pela necessária invasão das palavras do Outro. A modalização
autonímica evidencia o locutor ouvinte de suas palavras, mas essas palavras não são suas,
elas não vêm por si próprias, elas vêm do Outro. Essa não coincidência entre o que se ouve
e o ouvinte, mesmo quando ela ocorre em silêncio, na fala interior, ela mostra o nó que
amarra o Um ao o-Um, o singular ao social.
O locutor ouvindo sua própria fala e a comentando é o que evidencia que essa fala
não vem de si, mas vem do Outro. A modalização autonímica, na sua complexidade, mostra
o retorno sobre o dito na tentativa de suturar o discurso de tal forma que ele se apresente
como Um e não como uma colcha de retalhos. O outro discurso é percebido pelo locutor-
ouvinte e a modalização autonímica visa a sua anulação, porém na tentativa de anular esse
outro discurso o que vem a tona é o locutor-ouvinte brigando com as palavras, procurando
desfazer as possíveis não-coincidências do dizer:
A presença do Outro emerge bem, de fato, no discurso, nestes pontos nos
quais a insistência vem a rasgar o um das coincidências imaginárias que o
sustentam – aquelas da homogeneidade do discurso, da unidade das
palavras, da adequação à coisa, da comunicação, e jogando em todas as
dimensões, aquela da coincidência do sujeito a ele mesmo. Mas é sobre o
modo de uma auto-representação
do dizer, que produzindo, no lugar
mesmo onde se abre sobre a heterogeneidade que o afeta, uma imagem
dele mesmo, onde se reforça o um, pondo em relevo um ‘trabalho de
denegação’ (...). (AUTHIER-REVUZ, 1995, p.805, tradução nossa, grifo
da autora)
116
Como refere Authier-Revuz (1995, p.805, tradução nossa), “este espelho de glosas
meta-enunciativas” que convertem as não-coincidências constitutivas do dizer do sujeito
em figuras nas quais a imagem do um é assegurada e onde a heterogeneidade se inscreve no
discurso, através de encontros disfarçados em uma homogeneidade, é o que sustenta o
disfarce de uma comunicação transparente, “transformando, enfim, fundamentalmente, o
irrepresentável do não-um da enunciação para um sujeito divido, efeito da linguagem, em
gestos de auto-representação, onde, desde uma posição de sustentação sobre o dizer, o
enunciador se desdobra” (Authier-Revuz, 1995, p.806, tradução nossa). Este jogo é o que
mantém o imaginário da unidade frente à pluralidade.
A questão gira em torno de manter uma fala, de tal forma que ela possibilite ao
locutor-ouvinte uma imagem de unidade do dizer e, conseqüentemente, dele próprio
enquanto sujeito no mundo. Considerando o sujeito como um efeito da linguagem, ou seja,
sem a fala não existe sujeito e, também, supondo que nesta fala as palavras utilizadas vêm
do outro, somos levados a refletir sobre esta influência do outro (não-um) na construção do
um.
Uma língua somente se mantém pelo trabalho dos locutores-ouvintes. O que
podemos visualizar na língua através da modalização autonímica é o encontro do um com o
não-um, mas o que é interessante de sublinhar aqui é que justamente este encontro, esta
invasão, pois não há possibilidade de recusa, ele é a condição de suporte do imaginário sem
o qual não podemos nos referir ao um. O Eu, figura de unidade, como vimos no capítulo 3,
é derivado do Outro, seja para Freud (1987), Lacan (1998), Bakhtin (2002), Derrida (2001).
A linguagem é a possibilidade de fazer conjunto, porém não se trata de um conjunto unido
pela identidade ou igualdade, mas pela diferença, isso no sentido de que um elemento faz
parte do conjunto justamente por ser diferente dos outros elementos. O que sustenta o
conjunto é o fato de que cada peça se refere a todas as outras do conjunto, e o traço que liga
117
estes elementos não é uma marca identificável que cada elemento possuiria, mas a falta de
uma marca identificatória. O traço comum é manter o conjunto como uma unidade
46
.
Com relação ao sujeito da enunciação, Authier-Revuz (1995, p.807, tradução nossa)
cita Jean Claude Milner, explicando que “o Eu como significante [...] designa o sujeito
enquanto ele fala atualmente. É dizer que ele designa o sujeito da enunciação, mas que ele
não o significa”. O que quer dizer que o sujeito na língua deve ser procurado em fenômenos
mais sutis, ou seja, nas falhas do sentido, nos atos falhos, nos trocadilhos, e como nos
propõe Authier-Revuz (1995), nas não-coincidências do dizer.
A linguagem é para o sujeito falante uma espécie de “exterioridade interna”
(Authier-Revuz, 1995, p.808, tradução nossa) e, respondendo (...) às falhas que abre na
linguagem pela própria linguagem, “a modalização autonímica faz nó, em cada um dos
pontos onde ela opera, entre o inevitável real do heterogêneo e a necessária ilusão protetora
do um”. A não-coincidência do dizer é uma separação subjetivante operada pela língua no
sujeito, ao mesmo tempo que marca a distância objetivante representada pelo sujeito entre
ele e sua língua.
As não-coincidências do dizer refletem o radical afastamento existente entre os
sujeitos interlocutores, a palavras e as coisas, o discurso a ele mesmo e as palavras a elas
próprias. E diante desta demarcação de distância as mesmas evidenciam um afastamento
ainda mais contundente que é o do sujeito a ele mesmo, fruto da divisão entre enunciado e
enunciação. Essa divisão é provocada pela instauração da diferença entre o um e o não-um.
A diferença entre sujeito falante e língua é causada pela voz humana ao marcar o
afastamento entre a mãe e o bebê, o bebê e o mundo que o rodeia. Esta separação,
afastamento, é o que faz o bebê desejar ser um. A questão é que o ser um, é ser reconhecido
como um pelo outro. O reconhecimento ocorre através da voz, que não mais como voz, mas
46
Os grupos humanos seguem as mesmas regras, o que sustenta o grupo é a diferença na igualdade. Todos
desejamos ser reconhecidos por algum determinado grupo, ser reconhecido implica ter algum traço que se
assemelhe ao grupo, falar a mesma língua, usar as mesmas roupas, ter a mesma idade etc., mas também ser
diferente, não homogêneo, caso contrário, o que será reconhecido?
118
já transformada em significante, representa o sujeito. O reconhecimento que se trata, aquele
que pedimos constantemente, é sempre o reconhecimento do significante, quer dizer, é um
fato da língua. Nós, seres da linguagem, não conseguimos reconhecer outra coisa a não ser
o significante, porém onde está o significante é justamente onde o sujeito não está. De fato,
somente podemos ser reconhecidos onde não estamos. Essa não-coincidência derradeira
chega a seu termo quando esta voz que separa é também a voz que ao falar-se-ouve e
ouvindo-se em voz alta ou em silêncio cria uma auto-representação, uma imagem que
sustenta o particular de uma enunciação. Essa imagem da voz é que poderá ser reconhecida
e nomeada por aqueles a quem ela se dirige demandando, como toda voz, o reconhecimento
do endereço de onde ela parte e reparte.
A modalização autonímica, tal como ela foi teorizada por Authier-Revuz (1995),
carrega estes elementos cruciais para pensar a relação do sujeito falante com a língua. Ela
analisa o fato do ouvir-se-falar presente nas formas da língua como a reflexidade
opacificante inerente à materialidade da língua. A necessidade de criação pelo locutor-
ouvinte de um imaginário da enunciação que amenize as não-coincidências do dizer, e as
amenizando torne possível o reconhecimento daquele que se endereça ao outro, mantendo a
fala viva, mantendo a ligação entre os homens, é antes de um efeito de estilo uma condição
para enunciar.
Na medida em que esta tensão entre o particular e o social é irrepresentável, quer
dizer, na impossibilidade de conciliação, de se fazer um entre o sujeito falante e a língua, é
que podemos pensar no inconsciente como sendo o social. O inconsciente é o discurso do
Outro e ao mesmo tempo é o que está mais dentro de cada um. O inconsciente estruturado
como uma linguagem é este paradoxo de um social irrepresentável que joga nesta dinâmica
entre o um e o não-um, entre o sujeito falante e o Outro, entre o sujeito e o objeto.
119
5.2.6 (Auto)-representação e o irrepresentável: o meta-enunciativo como imaginário
da enunciação
A teoria que Authier-Revuz (1995) nos apresenta no livro Ces mots qui ne vont
pas de soi trata de uma configuração enunciativa particular de auto-representação do dizer;
ela estuda as formas de reflexividade opacificante e da modalização autonímica no
discurso. Trata-se de configurações enunciativas sob as quais se realiza, na linearidade,
uma ruptura de um tipo particular que inscreve sobre o fio de um dizer sobre as coisas, um
“boucle”
47
meta-enunciativo, voltado sobre as palavras do dizer. O que fica evidente nestas
formas que a língua assume é o enunciador fazendo uma imagem do seu dizer. Trata-se de
uma auto-representação do dizer, da construção de um imaginário enunciativo.
O ser humano quando está em relação de interlocução com outro ser humano,
digamos em uma conversa face a face, faz uma auto-representação que lhe é necessária
para poder enunciar. Esta auto-representação se trata de uma imagem que ele faz de si
mesmo. A questão é que quando endereçamos a palavra a um outro que está em nossa
presença nós mesmos não temos a condição de nos ver falando, quer dizer, o nosso rosto, o
que nos caracteriza imaginariamente, nós não o vemos. Porém, nós podemos ver o rosto
dos outros que nos falam, podemos ver as emoções que eles passam através das mais
variadas formas que o rosto pode assumir, de fato vemos algo que o outro interlocutor não
vê. Além disso, devido a uma questão topológica, o mundo da perspectiva que eu vejo não
é o mesmo mundo da perspectiva que o outro vê. Os lugares são diferentes,
conseqüentemente o visível será outro. Isso nos leva a supor que o que constrói o
imaginário de minha enunciação é composto entre outras coisas pela auto-representação
que faço de mim mesmo a partir daquilo que eu vejo no outro e que ele não vê de si
mesmo. A auto-representação é composta pela imagem que o outro proporciona, porém
esta imagem vem de forma invertida, desfigurada, pois a compomos a partir da imagem que
47
Boucle é uma palavra que Authier-Revuz utiliza freqüentemente em sua teoria, na tradução para o
português o sentido poderia ser: retorno, volta. Por exemplo, a história de cachinhos dourados é conhecida na
França como “boucle d’or”.
120
o outro faz de si mesmo ao olhar no outro interlocutor aquilo que lhe falta. Dessa forma, é a
partir de um irrepresentável na auto-representação que o imaginário é composto.
Quando enunciamos fazemos uma imagem de nós mesmos no processo de
enunciação. Para enunciar necessitamos constituir um imaginário que dê consistência, que
possibilite fazer um conjunto dos discursos pronunciados, referindo-os a um enunciador. O
locutor se constituindo no processo de enunciação, através de um retorno sobre o ato de
enunciar constitui um imaginário de si mesmo enquanto aquele que enuncia. Por exemplo:
os dizeres “X, se é que você entende o que estou dizendo”, “X, para dizer a palavra exata”,
“X, em todos os sentidos desta palavra”, “Estou dizendo X, para não dizer Y”. Neste
retorno sobre a palavra - retorno sobre a enunciação, lugar onde caracterizamos a meta-
enunciação
48
- podemos verificar o esforço do locutor ao tentar unificar o sentido das
palavras no seu discurso no momento em que ele é endereçado a um interlocutor. Esta
tentativa de unificação e controle do sentido acaba refletindo a materialidade da língua e
torna evidente a distância existente entre a palavra enquanto matéria e o sentido que através
dela se movimenta. De fato, o que ocorre é que na auto-representação algo escapa e
mantém um espaço de irrepresentabilidade. Conforme Authier-Revuz (1995, p.100,
tradução nossa), trata-se de reconhecer na posição meta-enunciativa “um lugar privilegiado
do imaginário da enunciação desde quando ele é colocado, como condição fundamental
dela, que ‘não há metalinguagem’, mas um sujeito, efeito de divisão pela linguagem, não
coincidente a ele mesmo e indeferido do controle de um sentido que lhe é irrepresentável
(...)”.
Assim a representação do enunciador, como desdobrado em comentador de seu
dizer, é encarada em sua solidariedade ao fato da divisão, da clivagem do sujeito. As
imagens de afastamento, de não-um no dizer, produzidas no plano meta-enunciativo, são
tomadas, quanto a sua função na enunciação, na relação complexa de emergência e de
encobrimento que elas mantêm com as heterogeneidades funcionais constitutivas da
enunciação: distanciamento entre os interlocutores, marcando o impossível da
48
A meta-enunciação é o retorno enunciativo sobre a enunciação, ou seja, a enunciação se referindo ao ato de
enunciar.
121
comunicação; distanciamento entre a palavra e a coisa, marcando o impossível da
nominação completa do real; distanciamento do discurso dele mesmo, impondo o dizer de
um outro lugar, do interdiscurso; distanciamento das palavras a elas mesmas, impondo ao
dizer um outro sentido.
A articulação do irrepresentável com as não-coincidências constitutivas do dizer
revela a incompletude de uma descrição puramente lingüística da enunciação. Então somos
levados a ter que nos deparar com o irrepresentável como parte de qualquer representação.
O problema de realizar uma análise discursiva que considere no interior de seu processo o
irrepresentável é justamente a dificuldade de relacionar o que é da ordem do representável
com o que é da ordem do irrepresentável. Mais especificamente, esta dificuldade diz
respeito a manter a tensão entre o representável e o irrepresentável. Conforme nos coloca
Authier-Revuz (1995, p.236, tradução nossa):
Nesta heterogeneidade constitutiva, condição de existência do discurso e
do sentido, as formas de heterogeneidade mostrada correspondentes são
emergências locais, sob a espécie de imagens que produzem nelas mesmo
o discurso. Importa não reduzir um dos planos ao outro, e não dissociar
um do outro, pretendendo, por exemplo, tomar o funcionamento e a
função do segundo – aquele das imagens de um discurso e da pontual
presença nele mesmo de um discurso outro– sem articular ao que constitui
uma representação, reconhecimento e denegação ao mesmo tempo do
primeiro plano – aquele da não-coincidência a si mesmo onde se produz
permanentemente todo discurso e que lhe é, a ele mesmo, irrepresentável.
O imaginário da enunciação é composto por formas na língua nas quais o locutor
toma a palavra do outro, mostrando que ela é do outro, visando constituir um discurso
unificado por aquele que enuncia. Essa tentativa de composição pelo enunciador de uma
imagem unificada do seu dizer é a nosso ver uma forma de vestimenta, se assim podemos
chamar, da voz. O imaginário da enunciação é antes a imagem da voz. O elemento que é
irrepresentável no discurso não é o outro, a língua ou o próprio enunciador, mas a voz. Ela
é o elemento mais opaco do discurso. A imagem que construímos em uma enunciação não é
a imagem do sujeito que enuncia, é antes a imagem do objeto ao qual o sujeito está
identificado no discurso. Este objeto ao qual o sujeito está identificado no discurso, o qual
122
marca o seu endereço, é a voz. Voz que na interlocução cede lugar ao significante para
talvez, em um outro tempo e espaço, dar lugar à outra voz, aquela através da qual se
escuta, se lê, aquela que anima o discurso interior.
123
6 A CONSTRUÇÃO DO CORPUS
...Falai ao mesmo tempo do que eu para não deixardes sozinha a minha
voz...Tenho menos medo à minha voz do que à idéia da minha voz, dentro
de mim, se for reparar que estou falando... (Fernando Pessoa, O
Marinheiro)
Adotamos o termo construção do corpus por acreditar que a definição da
materialidade lingüística a ser analisada, bem como os recortes do corpus, fazem parte de
uma construção do analista. Desta forma a implicação do pesquisador já está posta desde o
início. Nós não encontramos a realidade no mundo pronta para ser analisada como se fosse
possível legitimar a pesquisa a partir de um recorte do real. A realidade é discursiva, o que
quer dizer que exige um confronto de vozes, de discursos.
De fato a leitura começa antes do
olhar.
No quadro de novos dispositivos de formação a distância aparecem formas de
comunicação pedagógica desconhecidas até então, fundadas com a utilização de redes na
internet. Estas novas formas de interlocução interrogam tanto a lingüística como a
pedagogia. Acreditamos que uma análise do uso da língua nestas novas formas de
interlocução colocadas em prática no campo pedagógico é pertinente tanto para a reflexão
sobre metodologias pedagógicas possíveis como para reflexão sobre as relações entre
sujeito e língua que interagem na estruturação do discurso através destas novas formas de
interlocução possibilitadas pela tecnologia.
A constituição da materialidade discursiva analisada é fruto de um Seminário
Avançado que fazia parte de uma disciplina
49
do primeiro mestrado a distância stricto sensu
49
A disciplina foi ministrada por Margarte Axt, cujo tema era a teoria do filósofo da linguagem Mikhail
Bakhtin. O seminário ocorreu com a participação efetiva de aproximadamente vinte alunos e foi realizado no
2º semestre de 2003 no Programa de Pós-Graduação de Informática na Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. O seminário se desenvolveu através de vários procedimentos metodológicos tais como:
lista de e-mail, criação pelos alunos de memoriais de conceitos (com experiências pessoais incluídas), mapa
conceitual, home page e monografia individual. Neste seminário estavam inscritos alunos do
PPGEDU/UFRGS (Programa de Pós-Graduação em Educação), do PGIE/UFRGS (Programa de Pós-
124
do Brasil, constituído como uma experiência piloto nacional para programas de pós-
graduação a distância stricto sensu. Em consonância aos objetivos desta pesquisa e ao
referencial teórico adotado, destacamos para análise uma prática pedagógica tal como a
referida, a qual privilegiasse a interação on line e pretendesse a criação de uma comunidade
de aprendizagem.
O Seminário Avançado é uma modalidade de desenvolvimento curricular adotada
pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul no qual se busca o aprofundamento teórico de temas específicos. Em tese um seminário
é uma forma do discurso pedagógico no qual a diferença de saberes, condição necessária à
pedagogia, não se faz tanto na diferença entre mestre e aluno, mas na diferença entre o tema
que é estudado e as dificuldades impostas àqueles que buscam estudá-lo. A troca de saberes
entre os participantes é motivada pressupondo que cada participante tem algo a partilhar e
que se expressa pelo direito a enunciar suas idéias. Trata-se de um dispositivo pedagógico
muito utilizado na área da pesquisa, da produção de conhecimento.
Segundo Bergounioux (2005, p.15, tradução nossa), o termo seminário não se
separa facilmente de dois empregos que o precedem e o ilustram. Em primeiro lugar o uso
religioso do termo imposto pelo Concílio de Trento ligado aos procedimentos de ensino da
Igreja Católica; e em segundo lugar seu uso nas universidades francesas “reformistas” do
século XIX que rompendo com a tradição do curso magistral “mais elouquente que
científico, mais brilhante que verdadeiro [. . .] reservavam a um pequeno grupo de
estudantes voluntários o acesso a um curso que não levaria a nenhum concurso”. Para
Bergounioux (2005, p.15, tradução nossa), “o tema da vocação não está longe, da vocação,
quer dizer, da voz. O seminário é uma prática oral pela boa razão que ele é indissociável do
comentário de textos escritos antes, que intervêm na crítica que faz uma letra viva do
documento que se tornou silencioso”.
Graduação em Informática na Educação) e do MEAD (Mestrado a Distância), que era suportado pelo
PPGEDU.
125
As intervenções dos participantes foram registradas no ambiente virtual denominado
forchat
50
, ambiente em que ocorreu o seminário enfocado aqui para pesquisa. A gravação
das participações soma algumas centenas de páginas virtuais. Estes encontros no forchat
ocorriam semanalmente em horários acordados pelos participantes. A regra era de que os
encontros síncronos deveriam ocorrer uma vez por semana, como se fosse uma aula normal
presencial na sala da faculdade, embora o dia da semana e horário estivesse livre para
negociação entre os participantes do seminário. Os horários mudaram várias vezes,
ocorrendo encontros inclusive sábados e domingos.
Alguns alunos que participaram da disciplina já se conheciam através de outras
disciplinas e grupos de pesquisas, outros, principalmente os oriundos do MEAD, não se
conheciam, embora tivesse existido a oportunidade de encontro presencial em um trabalho
realizado com todos os participantes antes do início da disciplina. Sendo assim havia
estudantes de Salvador, Porto Alegre, Pelotas, Brasília e outras cidades do país. Cada
estudante participou de sua casa. O fórum de discussão, seminário virtual, era fechado, isso
quer dizer que cada estudante tinha uma senha para entrar no forchat, não sendo permitida a
entrada de pessoas não matriculadas na disciplina. Os participantes deste seminário (no
forchat) provinham de áreas de formação e atuação profissional diferentes, mas unidos em
torno de um objetivo comum que era o estudo de um autor e a realização de uma disciplina
curricular.
A partir da materialidade discursiva derivada deste seminário foi composto o
corpus discursivo sobre o qual incidiram as análises segundo os objetivos da pesquisa. Os
recortes eleitos contemplaram algumas intervenções dos participantes do seminário que
possibilitaram relações teóricas. Procuramos então identificar e analisar marcas lingüísticas,
nas formulações dos participantes, que indicassem a articulação da voz no processo de
escrita realizado no fórum de discussão via internet que carrega em si objetivos
pedagógicos.
50
O forchat foi idealizado por Margarete Axt e implementado por bolsistas do Projeto Comunidades Virtuais de
Aprendizagem (Provia): Tiago D. Sturmer, Fábio M.de Carvalho, Lucas Guimarães e Daniela P.Paiva, com a colaboração
de pós-graduandos. Atualmente o forchat ( www.lelic.ufrgs.br/for-chat/
) integra a plataforma AVENCCA – Ambientes
Virtuais para ENcontros de Sentido, Construções Conceituais e Aprendizagem -, também desenvolvida pelo grupo de
pesquisa do LELIC/UFRGS http://www.civitas.lelic.ufrgs.br/avencca/
).
126
A seguir procedemos a uma definição metodológica de como foi projetado o
forchat. Logo após enfocamos alguns estudos sobre outros fóruns de discussão na internet
com o objetivo de ampliar a compreensão sobre a natureza do corpus que estamos
analisando.
6.1 O FORCHAT
O forchat é um programa de computador que foi construído pelo Laboratório de
Estudos em Linguagem e Cognição (LELIC) do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O seu nome
51
se deve ao fato de
tecnicamente ser uma mistura entre um fórum de discussão e um chat de conversação.
Segundo Margaret Axt (Axt e Mutti, 2005) o forchat está calcado sobre um
conjunto de seis princípios
52
pensados a partir de um ponto de vista tecnológico e
metodológico, visando a um método distinto de ensino e aprendizagem.
1) “O princípio da simplicidade”. Este princípio se refere à busca de facilidades
operacionais para os participantes do fórum. Ele visa a diminuir a dificuldades de
acesso a uma conversação virtual.
51
No momento em que foi batizado o forchat eu estava presente junto ao grupo de pesquisadores. A partir da
pergunta de Margaret Axt “Como ele vai se chamar?” todos começaram a dar sugestões tipo fórum
pedagógico, fórum de conversação, chat educacional. E apareceu a questão “Mas é um fórum ou um chat?” o
que gerou mais uma chuva de idéias até chegarmos no forchat. Desta forma o batismo do forchat não me
parece fugir aos pricípios de seu funcionamento.
52
Esses princípios foram sistematizados pela primeira vez por Margaret Axt em palestra proferida via
teleconferência para workshop em Portugal, Lisboa, na Universidade Aberta, promovido pelo Centro de
Ciências em Educação e Psicologia, sob a coordenação da Dra. Alda Pereira, em janeiro de 2005. Após foram
reapresentados à luz da Análise do Discurso de origem francesa num trabalho em parceria com a Dra. Regina
Mutti, em setembro de 2005, em um encontro Internacional, em Paris, promovido pela UNESCO, sobre
tecnologias da linguagem.
127
2) “Princípio da agilidade”. Este princípio se refere à preocupação de manter o ritmo
mais acelerado das conversações presenciais e com isso minimizar os efeitos de
isolamento da educação a distância. O princípio da agilidade é o responsável pelo
fato do forchat ser pensado como uma página de fórum que imitasse a arquitetura
do chat, em que tanto mensagens para ler, quanto formulário para escrever,
aparecessem na mesma página.
3) “O princípio de imersão”. Este princípio preocupa-se com o ficar imerso no
contexto da discussão, manter-se no círculo da conversação. Ele é responvel pela
idéia de se manter o texto para ler e formulário para escrever integrados na mesma
página, valorizando a comunicação simultânea muitos-muitos.
4) “O princípio da liberdade”. Este princípio se refere à proposta metodológica da
liberdade na proposição de rumos para a conversa e para o debate. Isso quer dizer
que mesmo tendo uma forte tendência a um objetivo comum, as dispersões eram
aceitas.
5) “O princípio da alteridade”. Este princípio se refere à dinâmica de interação com o
outro, encontro com o heterogêneo, visando um processo de desestabilização
conceitual. Ele é responsável pelo convite à participação da comunidade de
aprendizagem de pessoas com formações teóricas diferenciadas, tanto no nível de
curso acadêmico como de filiação teórica.
6) “O princípio da desinstitucionalização de posições pré-instituídas”. Este princípio se
refere ao exercício de deslocamento de posições pré-instituídas e convencionais de
mestre/professor e de aluno.
O forchat é uma aposta na construção de uma comunidade virtual de aprendizagem
mediada por um suporte que se vale da língua escrita. Em sua ênfase pedagógica, visa “a
uma metodologia que privilegie uma ‘interação’ especial, favorecida na encenação de um
‘fórum’ de debates, um tipo de seminário virtual, em ambiente de conversação” (Axt e
128
Mutti, 2005). Metaforicamente podemos pensar no forchat como uma sala de aula na qual
ocorre um seminário cujo tema é um autor definido, porém as possibilidades de ruptura do
espaço e do tempo viabilizadas pela tecnologia digital de rede possibilitam uma forma de
conversação até então impraticável, qual seja, todos conversando no mesmo momento com
todos, cada qual a muitos quilômetros de distância e ainda em horários desconexos. Desta
forma, a posição pedagógica representada no forchat é de ruptura às formas estabilizadas de
constituição do pedagógico. Conforme Axt e Mutti (2005), “aposta-se na possibilidade de
dinamizar as formas de relação dos sujeitos com os saberes, de modo que professor e aluno
sejam parceiros na experiência de produzir o saber, na qual a tecnologia é essencial”.
Na busca de formação de uma comunidade virtual de aprendizagem não é o
professor quem dirige o rumo da discussão. “Nessa perspectiva, como mais um membro do
grupo, o professor se expõe a não ‘saber’ responder a tudo, mas a buscar saber, como os
demais” (Axt e Mutti, 2005). Essa relação de possibilidade de utilização da palavra de
forma igualitária é muito importante para a formação de uma comunidade de aprendizagem
que visa à construção de conhecimento e não somente o repasse de informações. O lugar
diferenciado do professor se mantém, pois ainda é ele quem avalia e quem possui
autoridade na comunidade. O que modifica é que todos podem utilizar o espaço para falar,
propor idéias, planos de trabalho, textos a serem lidos. A tecnologia permite ao aluno fazer
uso da palavra praticamente o tempo todo. Conforme Axt e Mutti (2005), a posição de
professor “desloca-se, podendo ser ocupada por qualquer membro do grupo que se
disponha a ‘ensinar’, em algum momento da discussão, sem desempenhar esse papel de
modo permanente”.
O forchat é fruto e objeto de pesquisas na área da educação. Ele carrega em si uma
proposta de produção de conhecimento, colocando-se contrário à utilização de softwares
prontos sem uma análise crítica das teorias e metodologias utilizadas na construção dos
mesmos. No entender de Axt e Mutti (2005), o forchat, representando uma pedagogia
peculiar, institui “uma posição enunciativa singular no discurso pedagógico” que possibilita
relações subjetivas importantes para o processo de produção do conhecimento e autoria.
129
6.2 ALGUNS ESTUDOS SOBRE FÓRUM DE DISCUSSÃO NA INTERNET
Como já dissemos o forchat se assemelha a dois dispositivos que encontramos na
internet, o fórum de discussão e o chat de conversação. No entanto, ele não se classifica
nem como um fórum de discussão e nem como um chat. Na disciplina que analisamos
acreditamos que a utilização do forchat, para efeitos da análise que nos interessa, está mais
caracterizada como um fórum de discussão
53
. Esta classificação em fórum de discussão
serve apenas para efeitos de uma melhor definição do corpus, para relacionarmos com
outras análises que estão à disposição para pesquisa.
As análises de fóruns de discussão são um campo novo no qual ocorre com
freqüência a utilização de categorias habituais da análise conversacional (Marcoccia, 2003,
2004; Chadernet, 2004; Celik e Mangenot, 2004) e análise discursiva (Münchow, 2004;
Colin e Mourlhon-Dallies, 2004). Existe uma especificidade neste tipo de corpus que a
análise conversacional ou a análise discursiva tentam elucidar de acordo com seus
pressupostos situados na lingüística aplicada. Nós não seguiremos exatamente este
caminho, mas consideramos que as análises aqui citadas são de grande importância para
justificação do corpus que estamos analisando. Assim como os autores aqui citados,
também, nos pautamos pelas marcas observáveis na língua, mesmo os nossos objetivos
sendo diferentes dos da lingüística.
Que tipo de corpus é um fórum de discussão? Segundo Marcoccia (2004, p.25),
“um fórum de discussão é uma correspondência arquivada automaticamente, um
documento digital dinâmico, produzido coletivamente de maneira interativa”. Marcoccia
(2003, 2004), analisou fóruns abertos disponíveis na rede internet; neste aspecto, o fórum
53
Porém no caso da utilização do forchat como foi descrita na dissertação de mestrado de Magale de
Camargo Machado (2006), cujo objetivo era a inclusão escolar e os participantes eram crianças de até 12
anos, o forchat, também com relação a uma análise comparativa, se assemelha mais a um chat de
conversação.
130
que analisamos é significativamente diferente, pois se trata de um fórum fechado e com
objetivos pedagógicos bem definidos. Porém acreditamos que os questionamentos e
análises de Marcoccia são muito pertinentes à nossa reflexão devido a várias características
que restam comuns, assim como são importantes também as diferenças entre um e outro
corpus.
Em um fórum de discussão virtual existem algumas condições especiais ligadas aos
dispositivos de comunicação mediada por redes de informática, como a comunicação
síncrona e assíncrona, as funcionalidades técnicas do copiar-colar, introduzir links, etc. De
uma maneira geral nós admitimos que um fórum de discussão pela internet é uma forma de
comunicação híbrida da escrita conversacional: o código utilizado é o escrito, mas as trocas
de mensagens entram em uma estrutura dialogal. O quadro participativo das trocas é muito
complexo. Toda opinião, todo argumento é submetido a uma apreciação coletiva. Todas as
mensagens podem ser, ao mesmo tempo, explicitamente endereçadas e legíveis por todos os
participantes. Mesmo se uma mensagem é endereçada explicitamente a um destinatário
direto, uma intervenção resta legível para todos. Assim os escritores perdem em parte o
controle do formato de recepção de suas mensagens. O dispositivo implica que todas as
mensagens sejam virtualmente endereçadas a todo conjunto de estudantes.
Certas mensagens explicitam certos aspectos do formato de recepção, utilizando um
“nós” inclusivo ou fórmulas como “bom dia a todos”. O locutor se endereça seguidamente
ao grupo, espera uma resposta que será de um outro locutor individual, mas também uma
resposta coletiva. Este endereçamento ao grupo é bem característico do forchat, como
podemos verificar nas formulações que se seguem (grifo nosso)
54
:
1) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 18:02:33 Mensagem:
Olá pessoal! Infelizmente não poderei estar no encontro sincrônico com vocês. Pensei
em deixar algumas questões que fiquei pensando e gostaria de dialogar com vocês.
54
As formulações destacadas para análise foram recopiadas literalmente.
131
2) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 20:49:16 Mensagem:
Não seria esta também uma outra forma de se pensar a construção dos sujeitos, assim
como a construção de sentido e autoria? O que acham disto?
3) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:14:00 Mensagem:
Alguém já leu ou assistiu a peça de teatro "Seis personagens em busca de uma autor"?
Ela é uma conseqüência direta da crença na relação eu-outro e não eu-isso.
4) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 20:52:09 Mensagem:
A meu ver, novamente aqui, na metodologia de pesquisa, ele propôe um trabalho de
articulação entre o que se repete (as leis) e o que sempre se modifica (a interpretação).
O que acham?
Como podemos verificar, a demanda de resposta é endereçada ao grupo como um
todo. Quando o locutor expressa “O que acham?” se referindo a uma posição sua, ele se
endereça a qualquer um que tenha condições de ler os significantes que ele endereça. O
endereçamento é feito então ao ambiente virtual e não a um sujeito específico. Qualquer
membro da comunidade pode lhe responder, assim como pode ocorrer de ninguém se
interessar por responder.
No forchat também vemos bem a passagem na qual uma questão endereçada a um
dos membros indiferenciados do grupo (não importa quem) torna-se uma questão de tal ou
tal, ou ao contrário, uma questão endereçada a um dos membros do grupo em particular
torna-se uma questão do grupo, uma questão coletiva. Essa complexa rede de
endereçamentos e recepções das enunciações é possível ser visualizada na seqüência de
formulações seguintes (os nomes foram substituídos por X1, X2, X3... Xtodos[nós], para
melhor podermos visualizar o movimento de endereçamento dos participantes no forchat,
(grifo nosso):
5) Usuário: X1 Data: 10/12/2003 Hora: 21:20:39 Mensagem:
Só precisamos atentar, X2, para o fato de que essa declaração constitui uma ironia, que,
segundo ele, é uma das características do discurso contemporâneo. Se não, caímos no
erro de achar que a fala de Bahk, como diz a X3, contraria o exercício da autoria.
132
6) Usuário: X4 Data: 10/12/2003 Hora: 21:21:18 Mensagem:
X5, sobre a tua colocação em relação as observações de X1 eu tenho observado
que esta muito presente tanto na proposição sobre dostoieviski como de bakhtin a
questão da alteridade e a construção do argumento a partir do outro ... não seria este o
ponto a ser discutido antes de se impor a análise e a produção dialógica de sentido?
7) Usuário: X1 Data: 10/12/2003 Hora: 21:22:46 Mensagem:
Pois é, X5. Penso assim também. Não é necessário apenas interpretar. É preciso ver na
interpretação um fundamento, algo que dê a ela substância. Se não, tudo não passa de
um grande achismo sem razão. E diálogo pressupõe não só aceitação da fala do outro,
mas também contraponto.
8) Usuário: X1 Data: 10/12/2003 Hora: 21:25:52 Mensagem:
Penso, X4,
que essas duas questões são inseparáveis na teoria bahktiniana. Reconhecer
a existência do outro é o ingrediente para a inserção deste como constitutivo do
argumento. E (Xtodos) precisamos manter em mente o fato de que Bakhtin fazia
sempre uma analogia profunda entre o mundo ficcional e o real, como se um fosse uma
"metáfora dialógica" do outro.
9) Usuário: X5
Data: 10/12/2003 Hora: 21:26:46 Mensagem:
X2! acho que (Xtodos) chegamos novamente em uma questão já várias vezes
discutida.... falamos em nosso próprio nome? ou temos que nos contentar com citações?
o que é o autor, em Bakhtin?
Neste caso podemos observar um efeito de colaboração enunciativa entre os
participantes. Várias mensagens são intervenções reativas às mensagens já postadas.
Observamos também processos de co-enunciação pelos quais um participante cita outro
membro do seminário. Cada um é co-responsável ou co-produtor do discurso coletivo. O
discurso produzido por um sujeito contribui para a construção de um discurso coletivo.
A complexidade da rede de interlocuções é grande, como vemos, X1 responde a X2
e na sua resposta cita uma fala de X3, então X4 entra no diálogo invocando X5 a participar
133
e citando em sua mensagem X1. Na próxima mensagem postada, X1 responde a X5, porém
X1 continua e posta outra mensagem invocando X4 e todos os participantes do seminário a
entrarem no diálogo. Quem responde logo em seguida não é X4, mas X5, invocando
diretamente X2 e também todos os outros participantes. Esta rede de endereçamentos é um
indício de que este seminário é uma comunidade de aprendizagem, como vamos discutir no
capítulo da análise.
Uma diferença com relação aos fóruns de discussão disponibilizados na internet e o
forchat é que normalmente os fóruns de discussão disponíveis em rede são um dispositivo
de comunicação mediada por computador que ocorre freqüentemente de forma assíncrona,
o que permite aos internautas trocar mensagens sobre um tema particular durante um
relativo longo período de tempo. Já o forchat, além de manter a comunicação assíncrona,
mantém também a comunicação síncrona. Outra diferença é que, segundo Marcoccia (2004,
26, tradução nossa) “numerosos trabalhos sublinham que as discussões em linha são
freqüentemente desorganizadas e confusas, por causa do desenvolvimento freqüente de
múltiplos fios de discussão e de conversas paralelas”. No caso do fórum que analisamos,
isso de fato ocorria muito pouco, pois os participantes mantinham um fio de discussão bem
definido tendo em vista que se tratava de um espaço pedagógico com objetivos bem
definidos. Digamos que existe em um fórum de discussão um estado de palavra aberta, uma
discussão que persiste durante um longo tempo sobre um mesmo tema. Sendo assim, o
espaço entre uma intervenção e uma reação a esta intervenção pode se estender por muito
tempo, tendo em vista que as escritas permanecem no espaço do fórum.
Outra questão é que os fóruns de discussão podem ser definidos como dispositivos
híbridos de comunicação interpessoal de massa, na medida em que eles permitem ao
mesmo tempo a troca interpessoal (A responde a B) e a comunicação de massa (A envia
uma mensagem legível potencialmente a um número ilimitado de internautas). No caso do
forchat o número era limitado, pois se tratava de uma disciplina curricular, mas a
possibilidade de enviar a um número ilimitado de internautas existe no programa. Segundo
Marcoccia (2004, p.27, tradução nossa), a assincronia tende a favorecer a dispersão
temática, enquanto a sincronia tende a manter o fio da discussão no mesmo tema.
134
Devido à manutenção do arquivo de mensagens, um fórum de discussão pode ser
considerado como uma interlocução que persiste durante um longo período de tempo. As
mensagens no forchat são classificadas por data, hora, nome eletrônico do emissor. As
mensagens postadas são armazenadas em seqüência temporal, embora exista a
possibilidade de postar uma mensagem entre uma seqüência de mensagens já registradas,
por exemplo, responder a uma intervenção logo após seu registro, independente da
seqüência temporal. De fato essa possibilidade, que no início do fórum foi utilizada por
alguns participantes, deixou de ser utilizada quando estes se deram conta de que suas
mensagens não seriam lidas se fossem incluídas entre uma seqüência de mensagens de um
tempo anterior ao movimento atual do fórum. O que ficou constatado é que normalmente os
participantes do fórum, mesmo respondendo a mensagens postadas anteriormente,
procuram fixar suas leituras nas mensagens postadas por último.
Um participante, ao consultar o fórum, tem duas possibilidades: ficar como um
simples leitor ou postar uma mensagem. Quatro modos de produção de mensagens são
propostas: o participante pode alimentar o fórum com uma nova mensagem, postar em
posição de iniciativa, abrindo um fio de discussão; ele pode também responder mensagens
postadas no fórum de forma reativa diretamente a seu interlocutor; ou abrir ao fórum; ou
aos dois ao mesmo tempo.
A organização fortemente seqüencial da leitura e da estruturação do fórum não
permite saber, para uma troca do tipo “A: questão; B: resposta; C: resposta”, se C é também
uma reação a B ou se podemos responder a uma intervenção inicial antes mesmo de ter lido
as outras reações a esta intervenção. Desta forma, o formato das interações sugere algumas
questões: Os participantes que intervêm, têm todos o conhecimento das intervenções das
quais eles participam? Os participantes têm o acesso às mesmas mensagens já postadas?
Existe uma unidade de interação? Porém nos questionamos se estas perguntas não caberiam
também no modelo de interação face a face de uma sala de aula normal e concluímos que,
neste aspecto, do ponto de vista pedagógico, não haveria diferença entre o modelo de
interações face a face e o modelo de interações via fórum de discussões na internet.
135
Segundo Marcoccia (2004, p.32, tradução nossa), “em um primeiro momento
podemos fazer uma primeira distinção entre os participantes do fórum que produzem as
mensagens e que são assim identificados e os que se contentam em ler as mensagens”. No
caso do forchat nós poderíamos dividir entre os que participam ativamente e
freqüentemente e os que participam menos, não existindo uma categoria na qual fosse
possível incluir os participantes que lêem, mas não postam mensagens. Supomos que o que
ocorria no forchat é que durante determinados períodos alguns postavam mais mensagens
que outros, e por momentos o participante que interagiu mais vezes ficava um longo
período somente lendo (ou ausente). Existem também os participantes mais ativos, que
animam o fórum colocando questões mais abertas ou polêmicas e outros que acompanham
de forma, digamos, mais passiva o andamento do fórum.
Com relação ao formato de produção das mensagens, Marcoccia (2004, 33, tradução
nossa) diz que:
Nos fóruns de discussão e na comunicação mediada por computador em
geral, o formato de produção da mensagem é sempre complexo. De fato, a
mediação técnica necessária para o envio de uma mensagem introduz uma
hierarquização possível da instância de produção das mensagens, ao
mesmo tempo técnica, social e humana. Os componentes desta instância
correspondem a diversas modalidades de produção da mensagem:
participação, transmissão, motivação e formatação.
Nos fóruns de discussão abertos na internet, quanto ao formato de recepção das
mensagens, assinalamos a dificuldade de selecionar um destinatário à mensagem postada.
Muitas mensagens são endereçadas a todos os participantes do fórum, embora de fato não
possamos saber quem vai ler estas mensagens. Muitas vezes o fórum é utilizado como uma
espécie de correio eletrônico entre alguns participantes: as mensagens são endereçadas a
participantes específicos e por vezes formam um diálogo entre dois com um tema bem
definido. Quando um participante produz uma mensagem reativa direta, o formato de
recepção é mais identificável. Porém, mesmo se uma mensagem é endereçada
136
explicitamente a um destinatário, ela resta legível por todos os participantes do fórum.
Quem emite uma mensagem não tem nenhuma idéia de quem poderá ler esta mensagem,
ele pode mais ou menos esperar que, ao menos, o destinatário direto, aquele a quem ele
endereçou, poderá ler a sua mensagem. Esta é uma característica da língua escrita. Na
escrita nunca sabemos até onde a nossa voz pode chegar. Tomamos aqui como escrita
qualquer forma que torne possível a repetição, mantendo o sistema da língua para realizar a
leitura.
Ainda existe, segundo Marcoccia (2004, p.35, tradução nossa), nos fóruns de
discussão, “a categoria do “eavesdropper” (aquele que espiona); é uma categoria um pouco
paradoxal: um destinatário que não é nem direto nem indireto, mas que é sempre
destinatário”. Isso constitui uma situação não habitual para a análise das conversações.
Patrick Chardenet (2004, p.58, tradução nossa) também defende que não podemos nos
basear em uma estruturação conversacional na forma de turno de fala, porque “não há
nunca o primado do dizer sobre o ouvir nas trocas síncronas durante as quais numerosos
interlocutores ‘falam’ ao mesmo tempo, a tecnologia se encarregando de distribuir as
intervenções”.
Segundo Colin e Mourlhon-Dalies (2004, p.113, tradução nossa), “os fóruns de
discussão na internet veiculam trocas originais com relação à conversação face a face e aos
escritos sobre suportes em papel”. No caso do forchat se formou um espaço de interlocução
complexo, no qual todas as trocas são colocadas à disposição de todo mundo sem o recurso
da entonação, de gestos ou mímicas disponíveis no espaço físico, sendo comparável, por
exemplo, a vinte pessoas em torno de uma mesa falando sobre o mesmo assunto mais ou
menos ao mesmo tempo. Devido a todas essas novas possibilidades de interação, se faz
necessária a busca de novas formas de análise além da análise conversacional.
Segundo Christelle Celik e François Mangenot (2004), em sua análise discursiva
enunciativa de uma comunicação pedagógica via fórum, os sistemas do tipo fórum são
atualmente um dos mais empregados na educação a distância, principalmente nos Estados
Unidos, onde seus trunfos são sublinhados por numerosos pesquisadores.
137
Nesse artigo sobre a comunicação pedagógica, Celik e Mangenot analisaram um
curso na internet de uma unidade de ensino de professores de francês, língua estrangeira
55
.
O quadro teórico deste estudo vem das aprendizagens colaborativas assistidas por
computador, domínio de pesquisa, segundo Celik e Mangenot (2004), bem estabelecido no
mundo anglo-saxão. Eles procederam a uma análise qualitativa das interações verbais. Sua
questão de pesquisa foi analisar as marcas enunciativas que podem caracterizar a
constituição de uma comunidade de aprendizagem. Podemos dizer que uma comunidade de
aprendizagem é metaforicamente uma sala de aula na qual todos trabalham em conjunto,
em uma interação do tipo todos com todos, visando à aprendizagem como um bem comum.
A partir disso, eles passaram a interrogar certas características comunicacionais desta nova
forma de interação.
Para Celik e Mangenot (2004, p.87, tradução nossa):
A comunicação bilateral com um professor, que tem lugar pela via postal
ou pela via eletrônica, permite um feedback individualizado, mas deixa o
estudante a distância no seu isolamento; este isolamento constitui uma das
causas dos numerosos abandonos que conhece o ensino a distância.
Somente os meios eletrônicos coletivos, como os chats e os fóruns,
permitem a constituição de uma comunidade de aprendizagem.
Eles afirmam que os sistemas do tipo fórum apresentam várias características
originais. Entre elas possui grande importância, dentro de uma perspectiva pedagógica, a
permanência e o caráter público das intervenções. Porém segundo Celik e Mangenot (2004,
78, tradução nossa) “a dimensão pública das trocas, condição sine qua non (no caso de
formação inteiramente a distância) para o estabelecimento de uma comunidade de
aprendizagem, pode igualmente constituir um freio à participação”. A partir desta questão
eles passaram a se interrogar sobre os estudantes que ficavam em silêncio ou preferiam
endereçar a palavra ao professor de maneira privada, por correio eletrônico, levantando a
55
O curso de francês, língua estrangeira, é um curso disponibilizado pelo estado francês para os estrangeiros
que desejam aprender a língua francesa.
138
hipótese de que o caráter público poderia constituir uma fonte de bloqueio à participação.
Eles notaram que certos estudantes não superavam o obstáculo da publicação, porém eles
se conectavam regularmente ao sistema e, paradoxalmente, estes estudantes mudos
aproveitaram significativamente as interações entre seus pares e o professor. Segundo Celik
e Mangenot (2004, p.78, tradução nossa) “estes estudantes estimavam ter plenamente
aproveitado o curso”.
No fórum de discussão analisado por Celik e Mangenot, a interação entre pares era
um objetivo que raramente acontecia. A grande maioria das mensagens era direcionada ao
professor. Em um questionário aplicado aos participantes do curso se constatou que eles se
correspondiam freqüentemente via correio eletrônico e que o conteúdo destas interações era
na maior parte relativo ao curso. Eles se perguntaram se era a presença do professor,
“sempre considerado como um olhar avaliador”, o motivo que inibia as interações entre
pares no fórum. Ou se as mensagens mais privadas pareciam menos ameaçadoras que as
acessíveis a todos. Então eles se dedicaram a analisar um período no qual as interações
entre pares aumentaram consideravelmente, de 8,7 % a 23,3 % . Celik e Mangenot (2004,
p.80, tradução nossa) destacaram a frase de uma estudante “Vocês não acham que desde
que há atividades lúdicas nos tornamos mais interativos?”. Eles explicam que a atividade
lúdica mencionada apareceu de modo relativamente imprevisto, quando uma estudante, no
lugar de fornecer um exercício lexical com sua solução, a apresentou como um jogo de
adivinhação destinado ao conjunto de participantes, “certos estudantes começaram a emitir
hipóteses enquanto outros comentavam o interesse ou a dificuldade da solução” (Celik e
Mangenot, 2004, p.80, tradução nossa). A partir do jogo, o endereçamento das mensagens
se modificou. Por exemplo, A emitia uma mensagem a B e quem respondia era C. Eles
constataram que as interações aumentaram quando os estudantes se tornaram professores,
eles mesmos, dos problemas lúdicos de práticas diversas, quer dizer, que no jogo de
adivinhação, todos poderiam ter algo interessante a dizer. O que primeiramente foi proposto
pela estudante era um jogo de adivinhação de uma palavra a partir de 10 contextos: pode-se
imaginar como isso se torna interessante na aprendizagem de um língua estrangeira. Eles
também levantam a hipótese dos alunos interagirem mais a partir do afastamento de um
olhar avaliador.
139
No forchat o professor participava raras vezes das interações. Normalmente ele
ficava fora, como um participante mudo, que muitas vezes não estava presente (on-line) e
mesmo os participantes de fato não sabiam se ele estava lá ou não. Havia uma monitora da
disciplina, mas que não se colocava no lugar de um saber superior, e sim como mais uma
aluna a aprender o tema. A professora também estava neste lugar de aprender em conjunto
com os alunos.
Acreditamos que uma possibilidade promissora para a pesquisa sobre a
aprendizagem colaborativa consiste em explorar certos ramos da lingüística, a fim de tirar
um quadro de análise melhor fundado teoricamente. Também para Celik e Mangenot (2004,
p.82, tradução nossa), as interações entre pares o são o único critério que permite
considerar que foi criada uma comunidade de aprendizagem, “as marcas de enunciação e
sua evolução no desenrolar do ano constituem um outro meio de constatar a constituição de
uma comunidade de aprendizagem”. Na busca de marcas de enunciação que apontassem
para a criação de uma comunidade de aprendizagem, eles encontraram várias
particularidades como: o endereçamento cada vez maior ao grupo todo e não somente a
uma pessoa; no inicio das atividades do fórum uma maior utilização do Eu e depois um
aumento considerável do Tu; o aparecimento gradativo do Nós, Vocês.
Outro termo da enunciação estudado por Celik e Mangenot (2004, p.84, tradução
nossa) foi a função fática da linguagem, pois: “ao mesmo tempo em que se desenvolve no
seio das mensagens uma grande presença de pronomes da segunda pessoa (singular ou
plural) constatamos que a função fática da linguagem tem igualmente uma tendência a se
afirmar”. Eles notaram que os termos de endereço como: “Bom dia”, “Caros colegas”, algo
mais formal, passava no decorrer do fórum para um “Salve”, “Oi”, mais informal,
marcando assim um “um relaxamento do código de polidez e uma grande familiaridade nas
relações do grupo” (Celik e Mangenot, 2004, p.84, tradução nossa). Desta forma vemos que
um estudo das marcas enunciativas presentes no corpus deixava então entrever o
sentimento de pertencimento a uma comunidade.
140
Com relação aos trabalhos presencias, na qualidade de trabalhos dirigidos em grupo,
uma comparação realizada por Celik e Mangenot (2004) refere que a permanência das
contribuições é uma característica importante nos fóruns e que alivia a perda de informação
inerente às discussões orais; em contrapartida, a interatividade menor que a falada constitui
um inconveniente em uma perspectiva de amarragem e de confrontação de idéias. Em um
trabalho dirigido em sala de aula não podemos obter uma participação geral dos estudantes,
a não ser pela técnica que consiste em dar a palavra a cada um fazendo uma série, o que é
extremamente custoso quanto ao tempo. Uma das dificuldades apontadas por Celik e
Mangenot, no caso dos meios eletrônicos coletivos, acontece quando o professor precisa
fazer uma correção, quando precisa fazer uma crítica, que inevitavelmente se torna pública.
A conclusão à qual Celik e Mangenot (2004, p.88, tradução nossa) chegaram é que a
comunicação em um fórum de discussão virtual,
(...) quando ela se situa em um quadro pedagógico bem definido, permite
ao mesmo tempo encontrar certas vantagens sócio-afetivas da
comunicação presencial, como a constituição de uma comunidade de
aprendizagem, e oferece também possibilidades cognitivas interessantes
de mutualização e aprofundamento da reflexão, ligadas à permanência e
ao caráter público do escrito.
A possibilidade de manter em uma mesma forma de interlocução vantagens da
língua escrita, como a permanência caracterizada pelo caráter assíncrono do seminário e
vantagens da interlocução síncrona que se assemelha à língua oral, fazem do forchat um
dispositivo pedagógico poderoso. No entanto, como já assinalamos, essas vantagens
dependem também de um quadro pedagógico bem definido. Dois fatores influenciam a
estrutura das interações: a funcionalidade do sistema utilizado (programa) e a maneira
como é encarado o acompanhamento pedagógico (metodologia de ensino). Acreditamos
que este conjunto refletiu no seminário virtual que analisamos, possibilitando a criação de
um corpus novo, diferente, tanto para a análise pedagógica como lingüística.
141
A análise do discurso relatado em um fórum de discussão na internet realizada por
Patrícia von Münchow (2004) foi de grande importância para o enfoque de nosso corpus,
por duas razões principais: uma, o fato de serem muito raras ainda as análises lingüísticas
de fóruns de discussão na internet
56
, outra por esta análise enfocar o discurso relatado, que
foi objeto de nossas análises e também condiz com nosso referencial teórico.
O discurso relatado é fruto das vozes marcadas no discurso como vozes de outros
presentes na composição da enunciação. Pode ser definido como uma operação
metadiscursiva de representação de um ato de enunciação por um outro ato de enunciação.
Um discurso que, no momento em que se faz, reenvia a um outro discurso.
Segundo a análise de Münchow (2004, p.96, tradução nossa), o discurso relatado é
uma “operação discursiva relativamente rara em um fórum de discussão”. Ela se refere às
formas marcadas, ela diz que as discussões se desenvolvem em torno de fontes utilizadas,
mas que não são nomeadas ou invocadas. Conforme Münchow (2004, p.97, tradução
nossa), em um fórum de discussões aberto “não é sempre bem visto mostrar as fontes onde
nos servimos”. De certa forma o que prevalece em um fórum aberto na internet é a
transmissão de informação sem assinalamento de origem. No fórum estudado por
Munchow (2004, p.103, tradução nossa), “(...) o fato de relatar um discurso outro é
freqüentemente criticado pelos outros participantes. Isso parece incitar os locutores a tomar
uma série de precauções desde que eles se engajem nesta operação discursiva”. Este fato
não acontecia no forchat.
Segundo Münchow (2004) o discurso relatado, nos casos por ela analisados,
pretende preencher um argumento de autoridade, ou seja, se apoiar sobre um discurso já
autorizado, pois ao trazer discursos já estabelecidos de locutores reconhecidos o locutor se
autoriza sobre o assunto tratado. Porém, como no próprio exemplo de Müchow, quando um
locutor traz um discurso relatado ele é freqüentemente solicitado a emitir sua própria
opinião, quer dizer, sem se “esconder” atrás de discursos de outros. Para ela a não aceitação
56
O fórum analisado por Patricia von Münchow foi o fr.soc.environnement .
142
do argumento de autoridade
57
reflete a não aceitação de uma autoridade superior àquela dos
participantes do fórum. Neste sentido o fórum deve ser um espaço livre no qual o que vale
são as discussões ali estabelecidas e não algo externo.
Uma questão interessante apontada por Münchow (2004, p.107, tradução nossa) é
que quando existe “um grande número de ocorrências de discurso relatado, o ato de relatar
é imediatamente criticado pelo próprio locutor que relata”. Porém se o discurso relatado
portar um julgamento depreciativo, então ele é aceito, quer dizer, se ele não tira a
autoridade dos participantes do fórum. Por exemplo, é legítimo relatar discursos na
mensagem inicial de um fio de discussão com o objetivo de iniciar um debate, mas não para
fechar um debate. Um argumento de autoridade pode ser utilizado legitimamente no fórum
para contrapor a pretensão de autoridade de outros participantes, pretensão ainda menos
aceitável que o fato de ceder responsabilidade enunciativa de seus propósitos a uma
personalidade exterior. Conforme Münchow (2004, p.109, tradução nossa), “os
participantes são considerados como tomando inteira responsabilidade de suas falas sem
invocar autoridades discursivas outras”. De fato tem-se não somente o direito de mostrar
sua subjetividade, tem-se mesmo a obrigação.
O que é interessante notar a partir destas interpretações do discurso relatado é o fato
de existir um certo número de regras discursivas cujo não obedecimento é sistematicamente
apontado. Segundo Münchow (2004), em um fórum aberto não se trata tanto de relatar
discursos, parece mais que se trata de participar de um jogo de conivência construído sobre
os enunciados de outros participantes, sobre o “interdiscurso Usenet” ou sobre discursos
exteriores ao fórum, mas aos quais os participantes se sentem chamados a tomar posição,
estando dada a temática geral do fórum.
Para Münchow (2004), em um fórum aberto, disponível ao público em geral na
internet, com leis de convivência determinadas e um assunto específico, existe a
57
O argumento de autoridade manifesta-se quando o locutor busca incluir na sua enunciação o discurso de
personalidades socialmente aceitas como detentoras de um saber reconhecido sobre o tema que está em
questão. No caso do discurso científico-acadêmico, no qual o pedagógico se apóia, esta estratégia é
freqüentemente utilizada. Por exemplo: se estamos falando de aprendizagem dizemos conforme Piaget..., ou
conforme Vigotski...
143
predominância do discurso relatado livre. Vale a pena ressaltar que somente conseguimos
indicar um discurso relatado livre pela via da interpretação. Seguindo um exemplo de
Münchow (2004): ao analisar uma mensagem postada em um fórum aberto sobre meio
ambiente, a frase: “Mesmo se isso continua a ser uma forte tendência de proibir de proibir”,
nós somente entenderemos que se trata de uma modalização autonímica de empréstimo via
interpretação, ou seja, que ela se origina do famoso slogan: “É proibido proibir” do
movimento de 1968. Seria o mesmo que dizer: “como eles disseram em 68”, “como já
dissemos”, porém, no caso do exemplo de Münchow, o enunciador de origem não é
definido.
O que Münchow (2004) mostra em sua análise é como os outros discursos são
inseridos na enunciação sem serem identificadas como outros discursos provenientes de
outras vozes; eles são incorporados de tal modo que o discurso do locutor parece
homogêneo. Segundo ela, as origens do discurso outro são escamoteadas e as citações mais
freqüentes são de elementos de mensagens anteriores. Münchow (2004, p.94, tradução
nossa) diz que “de fato, antes que discurso direto, parece se tratar, mais freqüentemente, no
fórum de discussão estudado, da organização de um discurso escrito em torno de falas
típicas do discurso oral”.
Ao contrário de um fórum de discussão aberto, em um fórum de discussão fechado,
com objetivos pedagógicos, tal qual o forchat, as formas de discurso relatado marcado são
muito freqüentes. Trata-se de um discurso no qual é necessário ao locutor citar as suas
fontes. No seminário analisado, em que se utilizou o forchat, o argumento de autoridade era
freqüentemente utilizado, porém o jogo de conivência não é afetado com isso. As regras
discursivas existem e o seu não cumprimento é sancionado pelo grupo. Também foi
possível constatar o sentimento de pertencimento à comunidade crescer ao longo do
semestre, a utilização da segundo pessoa aumentar gradativamente, assim como o imenso
uso de elementos fáticos iguais aos utilizados em conversas informais. No forchat
analisado, mesmo estando dentro de um discurso pedagógico bem definido, se manteve um
espaço livre no qual o que vale são as discussões ali estabelecidas, o que o assemelha aos
fóruns abertos encontrados na rede internet.
144
Ao analisar, no capítulo seguinte, as mensagens postadas no forchat tivemos como
objetivo interpretar marcas na escrita dentre as quais fosse possível indicar a presença da
voz na articulação dos discursos que compõem uma dada enunciação. Postulamos que o
sentido se constrói no encontro entre este resto de voz que articula o significante com a voz
do leitor-ouvinte. Acreditamos que o corpus escolhido é privilegiado para esse tipo de
análise, pois como se trata de diálogos nos quais existe uma mistura entre características da
língua oral e características da língua escrita, os elementos discursivos a serem analisados
se mostram mais evidentes do que num corpus onde existam somente características da
língua escrita ou somente características da língua oral. Além disso, o aspecto pedagógico
do forchat, tomando o pedagógico como uma articulação entre o particular e o coletivo,
possibilitou uma verdadeira rede de discursos, os quais, tencionando a construção
imaginária do Um no discurso do locutor-ouvinte, se mostram tanto no aspecto da imagem
da voz como no aspecto do “ouvir-se-falar” inerente a qualquer enunciação.
145
7 ANÁLISE: A VOZ NA ESCRITA
Crianças de cueiros
Oh, cidades do mar, vejo em vós vossos cidadãos, homens e mulheres,
com braços e pernas estreitamente atados em sólidos laços por pessoas
que não entenderão vossa linguagem, e só entre vós podereis desabafar,
por queixas lacrimejantes, lamentos e suspiros, vossas dores e vossos
pesares pela liberdade perdida. Pois aqueles que vos agrilhoam não
compreenderão vossa língua, tal como não os compreendereis. (Cadernos
de Leonardo da Vinci)
58
Analisar em cada texto as vozes que o constituíram é buscar identificar um resto de
vida no texto. Como vimos em capítulos anteriores, Bakhtin (2002) busca as vozes de
Dostoiévski ao analisar sua obra. Lacan (1998, 1988) busca a voz de Freud ao fazer uma re-
leitura de sua obra. As vozes são a vida do texto, porém as vozes que ali estão, na leitura de
Bakhtin e Lacan, não são mais as de Dostoiévski ou as de Freud e sim as de Bakhtin e
Lacan respectivamente. A voz em questão, aquela através da qual lemos, é sempre a nossa
própria voz, que ao ler-escutar os significantes lhes confere uma articulação que
conseqüentemente resultará na construção de uma imagem da voz que formulou o texto.
Lemos os significantes, na medida em que eles representam um sujeito.
Realizamos a escuta das vozes dos outros, que nos vêm na forma de significantes,
através da nossa própria voz. Porém, a voz não tem significado algum e por isso ela não
tem como ser interpretada, ela é irrepresentável. O que podemos analisar são as articulações
que a voz realiza quando passa ao caráter de significante. Através das marcas na língua
destas articulações nós podemos supor os rastros deixados pela voz. O locutor também faz
uma imagem da voz na enunciação ao representar a sua voz ou a voz outra no fio de seu
dizer.
58
Esta epígrafe é também a epígrafe do artigo de Lacan (1998, p.496) A instância da letra no inconsciente
ou a razão desde Freud. Trata-se do texto de Lacan que nos suscitou as interrogações que se desdobraram na
presente pesquisa.
146
Da voz que originou o texto nós somente encontramos as marcas que indicam a
articulação significante. As vozes indicadas no discurso relatado como vozes dos outros,
que contribuem na produção do discurso, são na verdade a imagem da voz daquele que o
locutor-ouvinte imagina ter originado determinado discurso. A imagem da voz não é o
mesmo que a voz. A imagem da voz é uma construção imaginária à qual o locutor-ouvinte
identifica as vozes dos outros e a sua própria voz. Retomando Bergounioux (2004), ela
pode ser tanto a voz ideal, quando é a imagem da própria voz, como o ideal de voz, quando
é a imagem das outras vozes, às quais o locutor-ouvinte se identifica e das quais se
diferencia.
Para o desenvolvimento da análise das mensagens no forchat partimos de uma
indicação de Nassif (2004, p.41, tradução nossa):
Toda escrita digna deste nome visa restabelecer a situação de voz, a fazer
ouvir o que está subjacente ao ato mesmo de escrever que consiste, por
assim dizer, a exceder a página, esburacando-a de toda sorte de signos,
que não são somente de pontuação, mas que visam a fazer ouvir o som
além das letras que são somente vistas.
O restabelecimento da situação de voz é a re-animação do significante via leitura.
Neste sentido toda escrita se endereça a uma voz. Através das formas da língua como o
entre parênteses, as reticências, o discurso relatado, a modalização autonímica, objetivamos
analisar marcas que indiquem a relação do locutor ouvinte com sua própria voz quando ele
se endereça a um outro onde ele supõe uma voz que possa reanimar os significantes que lhe
representam. Todas as marcas na língua escrita, relacionadas para análise, e que indicam o
ato de ouvir a própria voz, também são marcas que apontam em cada discurso à
disponibilidade de encaixe de um outro discurso. Isso nos leva a supor que a condição do
“ouvir-se-falar” é uma espécie de nó que amarra os diversos discursos escutados, tecendo
uma rede que tem como efeito o sujeito. Concordamos aqui com as teorias de Lacan (1998)
Benveniste (1995), Authier-Revuz (1995) no que diz respeito ao fato de que o sujeito pega
o trem da linguagem andando, ou seja, ele vem depois, como efeito.
147
Conforme vimos com a teoria de Bakhtin, a voz é sempre voz de um humano.
Assim o que procuramos mostrar é a impossibilidade de uma escrita sem voz, de uma
escrita que não seja produto da voz de um humano em busca de uma voz de outro humano.
Vozes que se cruzam, vozes que se contradizem, vozes que discutem, vozes que organizam
o sistema significante do Outro, vozes silenciosas. A voz é o que o discurso tem de mais
opaco, é o que fica por trás do sentido. Como nos apresenta Lacan (2001, p.449, tradução
nossa) na comentada frase de L’etourdit : “o que se diga resta esquecido atrás do que se
diz no que se ouve”.
7.1 O ENDEREÇO DA VOZ
A voz própria de cada um precisa de outras vozes endereçadas a ela para somente a
partir destas outras vozes, escutadas, poder se tornar uma voz, sem esse endereçamento a
voz não toma consistência. A nossa voz é resultado do que escutamos nas vozes que nos
são endereçadas. Toda voz é endereçada, mesmo que o endereço seja indefinido. Nós
escutamos não somente as vozes que nos são endereçadas. Escutamos vozes endereçadas a
outros e vozes endereçadas ao indefinido. O endereçamento é da ordem do imaginário. A
estrutura da voz se define, antes de qualquer coisa, pelo fato da voz ser endereçada a uma
outra voz. Uma voz, para ser percebida enquanto voz, carrega esse caráter de
endereçamento, mesmo que seja um endereçamento a si próprio ou a alguém indefinido.
Quando falamos endereçamos nossa voz a um ouvinte, assim como marcamos o endereço
daquele que fala.
No corpus analisado de mensagens escritas endereçadas no forchat, encontramos
várias mensagens que explicitam esse endereçamento da voz a um ouvinte que
necessariamente é portador de uma voz. As mensagens se apresentam na tela do
computador como significantes, quer dizer, representam um sujeito, que é portador de uma
voz. Porém o endereço que estas mensagens marcam, não é o endereço do sujeito Fulano de
148
Tal, mas o endereço de onde está a voz deste sujeito Fulano de Tal. Vejamos algumas
formulações:
10) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:00:22
Tem alguém por aqui ainda ou estou na solidão cibernética?
11) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:00:48
por favooooorrrr manifestem-se!
12) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:40:56.
Tem alguém aí?
Quando dizemos Tem alguém aí?” supomos que alguém dotado de voz pode
escutar e responder. É esta pergunta endereçada ao bebê nas suas mais variantes formas
como um simples “oi”, o que faz um sujeito vir a tomar seu lugar na linguagem. Essa
pergunta se repete ao longo da vida. E quando nós a fazemos, nós a escutamos: “Tem
alguém aí?”. Existem várias formas de fazermos esta pergunta, quando nos endereçamos a
um lugar onde supomos estar alguém que possa nos escutar, mesmo se este lugar esteja
vazio e a nossa voz retorne marcando o endereço daquele que enuncia. Pois não existe
forma de perguntar “Tem alguém aí?” sem já no mesmo momento dar a resposta, ou pelo
menos uma parte da resposta, pois quando falamos também escutamos nossa voz.
No caso da escrita existe uma espécie de eco, pois quando escrevemos também
lemos o “Tem alguém aí?”, estamos usando a nossa voz que repete a nós mesmos aquilo
que escrevemos, uma espécie de traço que carrega a nossa voz, um resto de “carne
espiritual”, como diz Derrida (2001). Esses pedaços de nosso corpo que retornam e que às
vezes nunca mais encontramos, que se transformam em palavras, frases, textos indicam um
endereço. O endereço da voz que, transformada em significante
59
, representa um sujeito.
59
Entendemos o significante, na sua relação com o sujeito, no sentido lacaniano: “Ora, o que é um
significante? (...) um significante é aquilo que representa um sujeito, para quem? – não para um outro sujeito,
mas para um outro significante. Para ilustrar esse axioma suponham que vocês descobrissem num deserto
uma pedra coberta de hieróglifos. Vocês não duvidam nem por um instante que tenha havido um sujeito por
trás para inscrevê-los. Mas acreditar que cada significante se dirige a vocês, é um erro – a prova está em que
vocês podem nada entender daquilo. Pelo contrário vocês os definem como significantes pelo fato de estarem
149
Esse pedaço que se desprende de nosso corpo não é o que somos, ele nos representa, mas
ele não tem como se representar a si mesmo. O pedaço do corpo falante destacado, que é a
voz na qualidade de significante, sempre representará aquilo que ele não é. Isso é uma
propriedade da linguagem e que caracteriza uma língua.
Existem algumas marcas na língua que procuram delimitar o endereço daquele que
fala, embora de fato o que estas marcas delimitam é o endereço de onde se encontra a voz.
São justamente os advérbios de tempo e lugar. Nestes casos fica ainda mais evidente, pelo
próprio esforço da língua, a tentativa de se construir uma referência mais precisa do lugar e
do tempo da enunciação. Então o endereço de fato não se trata do lugar real” onde aquele
que emite ou recebe a mensagem está, mas sim das vozes na relação entre uma mensagem e
outra mensagem, de um enunciado a outro, de um significante a outro. O “eu estou aqui
agora” da enunciação não define endereço algum, também não define aquele que fala. No
seminário virtual isso fica muito evidente com o “Tem alguém aí?” ou “Estou aqui, por
favor manifestem-se”. O endereço de que se trata é o endereço da voz, deste pedaço do
corpo falante que se desprendeu e que marca pela sua presença a separação entre o sujeito
da enunciação e o sujeito do enunciado. O “Eu, aqui e agora” da enunciação comporta a
função de criar uma roupagem, uma consistência, uma imagem para essa voz.
Tomemos um exemplo: O endereçamento da voz de um ator de teatro, a quem ele
endereça a sua voz? Ao outro ator no palco no caso de um diálogo? Ao público? A todos?
O endereçamento é a uma outra voz que possa ler, escutar a voz do ator. Porém não há uma
definição estanque, depois que a voz sai do corpo falante e se transforma em significante
não há mais controle de quem receberá este significante e o transformará de novo em voz.
O endereço de que se trata é sempre o endereço da voz, não é o ambiente, o papel, o
computador, o sujeito que leva o nome tal, o endereço é relativo ao lugar que a voz ocupa
no discurso no momento que ele se faz e refaz.
certos de que cada um desses significantes se reporta a cada um dos outros. (...) O Sujeito nasce no que, no
campo do Outro, surge o significante. Mas por este fato mesmo, isto – que antes não era nada senão sujeito
por vir – se coagula em significante. (...) Vocês compreendem igualmente que, se lhes falei do inconsciente
como do que se abre e se fecha, é que sua essência é de marcar esse tempo pelo qual, por nascer como
significante, o sujeito nasce dividido. O sujeito é esse surgimento que, justo antes, como sujeito, não era nada,
mas que, apenas aparecido, se coagula em significante” (LACAN, 1988, p.187).
150
A voz é endereçada a um lugar onde se faz a hipótese de existir uma voz que possa
ler os significantes da voz que se enuncia. Uma voz pode ser endereçada para ser lida pelos
universitários daqui a trezentos anos como é o caso de Finnegans Wake de James Joyce ou
uma peça de teatro de Shakespeare. Uma voz pode ser endereçada a milhões de vozes como
no caso da televisão, dos filmes, do rádio, etc. Uma carta endereçada a uma única pessoa
pode ser lida por várias ou por ninguém. Pode também ser respondida por várias pessoas ou
por ninguém. As mensagens analisadas no forchat são completamente compatíveis com
essas possibilidades de endereçamento da voz.
7.1.1 Os advérbios de tempo e espaço
Os advérbios de tempo e espaço consistem em algumas expressões que utilizamos
freqüentemente, tanto na língua oral como escrita. Implicam a possibilidade de
enunciarmos situando o eu em relação ao tu: “eu estou aqui agora”. Benveniste (1995) os
chamou de indicadores de subjetividade. Na lingüística são conhecidos comumente como
dêiticos e às vezes como embreantes. Do ponto de vista morfológico, “o advérbio é uma
palavra invariável e do ponto de vista sintático, ou relacional, o advérbio é uma palavra
periférica, isto é, ele funciona como satélite de um núcleo” (NEVES, 2000, p.233). Essa
função de satélite, de indicadores de um núcleo, nos servirá, justamente, para apontar a voz
tomada como ponto de organização na enunciação. Esses advérbios somente adquirem
significado em função da situação de enunciação. O “aqui” não significa fora da situação de
enunciação.
O corpus desta pesquisa está repleto de advérbios de tempo e espaço. A seguir
separamos algumas formulações para analisarmos esses advérbios na situação específica do
forchat (grifos nossos).
13) Usuário: Data: 19/09/2003 Hora: 10:40:35
151
C., estou por aqui. Que bom estares aqui. Tua presença me conforta. Acho que podes
nos ajudar também nos desabafos de quem tem elaboração de projetou de dissertação
pela frente. Não sei se me entende. Beijiinhos!!!
14) Usuário: C. Data: 10/12/2003 Hora: 21:08:45
Engraçado... nas primeiras vezes que entrei neste forchat, achei que havia uma certa
prática de escrever logo após as mensagens porque eu ficava esperando aqui em baixo,
e nada acontecia... eu concordo que é muito melhor assim...
Nestas duas formulações fica evidente que o aqui não se refere ao endereço real do
sujeito, mas ao endereço da voz transformada em significante. O endereço é o da voz no
ambiente virtual. Nas subclasses dos advérbios circunstanciais, o aqui encontra-se entre os
advérbios fóricos, isto é, “que remetem a algum outro elemento dentro ou fora do
enunciado” (NEVES, 2000, p.257). Os advérbios de lugar fóricos, como o aqui,referem-
se a circunstâncias, mas em si não exprimem uma indicação circunstancial substancial”.
Essa indicação tem de ser recuperada na situação. Complementa a autora:
Por definição semântica, esses advérbios indicam circunstância,
relacionando-se com o eixo falante/ouvinte. Trata-se de uma
circunstanciação ancorada no circuito de comunicação, referida aos
participantes do discurso ou a pontos de referência do texto, numa escala
de proximidade espacial. Assim, em princípio, AQUI indica lugar
próximo ao falante (primeira pessoa do discurso), indica lugar
próximo ao ouvinte (segunda pessoa do discurso) e indica lugar
distante do falante e do ouvinte (terceira pessoa do discurso).
(NEVES, 2000, p.258)
Em (13) “estou por aqui” se refere ao espaço virtual onde ocorre o seminário
indicando um lugar próximo ao enunciador, mas o outro advérbio, também em (13)
que
bom estares aqui” indica um lugar próximo ao ouvinte e próximo ao enunciador. Já em
(12) “tem alguém ai?”, indica um lugar próximo ao ouvinte, mas também é o lugar de onde
o interlocutor enuncia. Em (14) o “aqui em baixo” se refere ao espaço da página no
programa de computador. O “aqui” enunciado em (13) se refere ao espaço virtual da rede
de computadores e carrega a impressão de os interlocutores estarem e não estarem no
152
mesmo lugar ao mesmo tempo. O que proporciona esse duplo aqui que marca tanto o
endereço da voz do enunciador como da voz do interlocutor é o endereçamento de uma voz
a outra.
Neste exemplo fica evidente que o advérbio de lugar, neste caso, não se refere ao
lugar onde se encontra aquele que enuncia ou recebe a mensagem, mas ele aponta para o
lugar onde se encontra a voz daquele que enucia e a voz daquele que recebe a enunciação.
Trata-se do endereço da voz e não do endereço dos interlocutores. “Eu estou aqui” e “você
está aqui” quer dizer que “a minha voz está aqui” e “a tua voz está aqui”. O “Eu, aqui e
agora” veste a voz. O “estou por aqui” e “que bom estares aqui” não se refere a um espaço
ocupado pelos interlocutores, mas sim a um espaço ocupado pela voz dos interlocutores.
Voz que se desprendeu do corpo falante e que então como significante passa a compor um
espaço outro, diferenciado do espaço do corpo.
Quem está aqui é a voz. O que encontramos neste exemplo é a divisão do sujeito
postulada por Lacan (1998) e adotada por Authier-Revuz (1995). Na mensagem onde o
sujeito diz “estou por aqui” lá ele não está, o que temos é a sua voz transformada em
significantes que representam o sujeito, onde o sujeito está, como origem da voz, é sempre
um lugar outro o qual nos escapa. Digamos que a rede internet torna esta questão mais
visível pelo fato de lidarmos com um emaranhado de enunciados cuja origem espacial
realmente é uma incógnita. Sabemos que por trás de uma voz existe um sujeito, mas quem
é esse sujeito nós somente temos acesso via os significantes que lemos e que o representam.
Além do espaço, o tempo também é marcado pelo endereço da voz. Vejamos por
exemplo o advérbio agora. Os advérbios de tempo fóricos como o agora “indicam
circunstância, que é referida ao momento da enunciação, numa escala de proximidade
temporal” (NEVES, 2000, p.258). O advérbio agora, por não explicitar um momento
fisicamente delimitado, apresenta uma variação de abrangência que pode ser específica, um
curto período de tempo, ou abranger longos períodos, “não só do presente, mas também do
passado ou do futuro, desde que toque o momento da enunciação ou se aproxime dele”
(NEVES, 2000, p.259).
153
As formulações (15) e (16) nos apresentam o advérbio de tempo agora, o
enunciador buscando marcar uma pontualidade (grifos nossos).
15) Usuário: Data: 15/10/2003 Hora: 20:25:35
Pessoal preciso ir agora. Abraços,
16) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 20:53:40
L.? você tentou me ligar? agora?
Os advérbios fóricos definem uma posição absoluta, ao passo que os não fóricos
definem uma posição relativa. O agora é empregado quando o tempo em questão não é
cronológico, sem ligação com o calendário, podendo o agora ser respectivo a: “neste
momento; na época atual; neste período, prolongando-se para o período imediatamente
seguinte a este; nos últimos tempos” (NEVES, 2000, p.266). Tudo vai depender da roupa
que a voz precisa para organizar os significantes na enunciação. A voz ao se desprender do
corpo falante encontra na língua um conjunto de possibilidades extremamente farto de
fantasias. São frases, palavras, enfim a gramática está disponível para vestir a voz. Isso
possibilita ao corpo falante estar em vários lugares ao mesmo tempo.
Os advérbios de lugar e de tempo possuem uma relação de reciprocidade bem
evidente.
Lugar e tempo são categorias dêiticas, isto é, categorias que fazem
orientação por referência ao falante e ao aqui-agora, que constituem o
complexo modo-temporal que fixa o ponto de referência do evento de
fala. Lugar e tempo se implicam de tal forma que é fácil o trânsito de uma
para outra categoria. Assim é possível encontrar-se advérbio de lugar
indicando tempo e advérbio de tempo indicando lugar. (NEVES, 2000,
p.256)
154
O aqui e agora, de acordo com Neves (2000), são classificados como advérbios não
modificadores, porque não afetam o elemento sobre o qual incidem, ao contrário dos
modificadores, como: felizmente, obrigatoriamente, bastante, pouco. Eles são classificados
como advérbios circunstanciais, que “não operam sobre o valor de verdade da
oração”(NEVES, 2000, p.239). Devido a esta característica, eles permitem situar os
interlocutores em um mesmo campo espaço-temporal que possibilita a interlocução. Porém,
em uma análise mais detalhada, veremos que o que eles situam de fato é a voz dos
interlocutores e não os interlocutores. Voz que possibilita a separação inevitável entre o
sujeito da enunciação e do sujeito do enunciado.
O agora do ponto de vista filosófico é algo bastante complexo. O tempo para ser um
agora, reter-se em um agora deve afetar-se a si mesmo, quer dizer, deve, sem o recurso
empírico de uma pontualidade originária tornar o não-agora outro tempo como passado ou
futuro. A única forma que o ser humano possui de afetar-se a si mesmo sem algum recurso
externo, o que Derrida (2001) chama de auto-afeição pura, é a voz, o “ouvir-se-falar”.
Derrida (2001, p.95) diz que “tal processo é realmente uma auto-afeição pura, na qual o
mesmo só é o mesmo afetando-se do outro, tornando-se o outro do mesmo”. Esse
movimento de definição de um agora somente é possível a partir de uma impressão
originária não afetada por nada a não ser por ela mesma. Como o agora não pode ser
isolado como um instante ou uma pontualidade pura ele, ao ser criado, instaura um outro
agora. A questão do tempo, do agora que quando se instaura já não é mais, mas que
somente a partir dele podemos definir o passado e o futuro marca a presença da voz, única
possibilidade de auto-afeição pura. Como diz Derrida (2001, p.72), “apesar de toda
complexidade da sua estrutura, a temporalidade tem um centro inamovível, um olho ou um
núcleo vivo, e é a pontualidade do agora atual”, mas esse movimento de temporalização
não é empírico e é aqui que a voz, devido à possibilidade do “ouvir-se-falar”, toma sua
importância. Para Derrida (2001, p.94):
O “ponto-fonte”, a “impressão originária”, aquilo a partir do qual se
produz o movimento da temporalização já é auto-afeição pura. É primeiro
uma produção pura, pois a temporalidade nunca é predicado real de um
155
ente. A intuição do próprio tempo não pode ser empírica, é uma recepção
que não recebe nada. A novidade absoluta de cada agora não é, portanto,
gerada por nada.
O “Eu, aqui e agora” marca uma tentativa de pontualidade, de fixidez, que define
uma presença. Trata-se de um momento ideal e é o revestimento da voz. Estes termos se
referem à enunciação, mas se formos mais adiante veremos que o que eles marcam é o
endereço da voz e, para qualquer leitura ser realizada, será necessário o restabelecimento
desta roupagem da voz. O “eu, aqui e agora” na sua continuidade se refere ao pedaço do
corpo falante que se desprendeu, que vaga à espera de um encontro com outra voz, que
possibilite então lhe restabelecer em um corpo falante. São pedaços, restos de corpos
falantes que via escritura permanecem para além da vida do enunciador. Mas, além disso, a
possibilidade que temos de estar sempre no agora, que é relativo a outro agora, justamente
por não se deter em uma pontualidade absoluta é o “ouvir-se-falar”, algo que fazemos
constantemente, mesmo em silêncio, quando falamos com nós mesmos.
O endereço ao qual nos referimos quando enunciamos expressões desta ordem não é
o do corpo falante, mas o endereço da voz. Ela é o ponto zero da origem subjetiva. No
momento em que o falante escuta sua voz o endereço é unificado, quer dizer, ele se
endereça a si próprio, condição do agora. Quando a voz deixa o corpo falante para correr
como significante no mundo à espera de uma outra voz que a anime novamente, ela cria o
endereço, que é itinerante. O endereço é onde a voz está, como significante, o que não é
necessariamente o mesmo do corpo falante.
A unificação do endereço necessita da articulação da voz com o significante. Lacan
(2001b, tradução nossa) no seminário XV, lição de 20 de março de 1968, ao analisar a
lógica da relação entre a função do “todo”, do quantificador universal “todo”
60
, e o objeto
“a”, diz que: “Existe alguma coisa que funciona para que todo sujeito se acredite todo, para
que o sujeito se acredite todo sujeito, e além disso, sujeito de todo, de fato, mesmo no
60
Lacan (2001b) no seminário XV discute questões de lógica do tipo “Todo homem é mortal, portanto
Sócrates é mortal”.
156
direito de falar de todo”. Essa alguma coisa é o objeto “a” na sua relação com o
significante, que dizer, a voz enquanto implicada no “ouvir-se-falar”, inerente a qualquer
enunciação.
O endereçamento não é de um sujeito para outro sujeito. O endereçamento é de uma
voz para outra. O endereço é da voz à qual nos dirigimos e também o endereço que
marcamos ao enunciar. O sujeito é um efeito deste endereçamento. É por isso que podemos
dizer que o sujeito é um efeito da linguagem. O endereçamento vem antes do sujeito, ele é
o movimento da linguagem, ele é a razão da linguagem, se assim podemos dizer.
Na educação a distância um diferencial com relação à educação presencial é
justamente a dimensão do tempo e do espaço. Os limites temporais e espaciais são
completamente re-significados na internet. Outra questão que podemos levantar é que os
sujeitos envolvidos no seminário virtual necessitam criar um campo discursivo comum, um
canal, um espaço e tempo homogêneo aos participantes. De fato certos limites discursivos
se tornam necessários para o sujeito enunciar.
7.2 A VOZ LATENTE REPRESENTADA NA ESCRITA
O corpus que estamos analisando é proveniente de um discurso pedagógico, ou seja,
de um discurso que se faz sobre outros discursos. Seguindo este pressuposto, analisamos
algumas marcas na língua, figuras de acréscimo, buscando evidências da costura necessária
a um dado discurso para se fazer a partir de outros discursos, de outras vozes. No capítulo
sobre a construção do corpus já explicamos a necessidade de um corpus escrito para
podermos analisar marcas lingüísticas como o parêntese e as reticências. Em um corpus
falado seria impossível analisar estas duas marcas, assim como qualquer espécie de
pontuação. A escrita também possui uma relação muito próxima com o discurso interior. A
escrita implica a leitura daquele que escreve no momento em que escreve, o que nos faz
supor que a escrita carrega certas similaridades estruturais com o discurso interior. Essa
157
similaridade foi postulada por Vigotski (2001) quando este estudou a construção do
pensamento.
Nossa hipótese é que cada participante do forchat constrói seu discurso a partir de
acréscimos que faz a um discurso de base. Estes acréscimos não são uma simples adição, ao
contrário eles mostram toda uma complexidade na qual o sujeito está mergulhado em sua
relação com a linguagem. A complexidade das relações aumenta por um profundo trabalho
de pensamento, de medida, de invenção, por todas as intervenções sobre o texto que são
virtualmente possíveis.
De fato, como veremos, os acréscimos analisados, marcados tipograficamente,
denunciam a inclusão de um discurso outro ao processo de enunciação. Supomos que as
figuras de acréscimo aqui analisadas representam
uma voz que é proveniente de um outro
discurso. Assim como vimos na análise de Bakhtin (2002), onde as vozes dos personagens
de Dostoiévski dialogavam entre si na construção de sua enunciação ou no relato das vozes
ouvidas por Schreber (1984), que entravam sem pedir permissão alguma no seu
pensamento. Neste capítulo o texto a ser analisado não é a escrita de um romance, como em
Bakhtin (2002), ou uma autobiografia, como em Schreber (1984), mas uma espécie de fala-
escrita, oriunda de um fórum de discussões com objetivos pedagógicos. Visamos mostrar
através da análise algumas marcas na língua escrita que apontem para representação da voz
própria ou outra voz que interfira na construção da enunciação, sempre particular, de cada
sujeito. Como estamos falando de discursos, cabe aqui uma ressalva: a representação será
sempre a representação da representação.
Em um primeiro momento analisaremos as figuras de acréscimo que se apresentam
como elementos ou agenciamentos que, por um meio tipográfico ou por um modo de
distribuição sobre o espaço da página, aparecem como destacados em relação ao restante do
texto. A propriedade de fazer acréscimo pode ser um elemento característico e mesmo
definitivo de uma forma. Entre estas formas nós encontramos o parêntese, o entre
travessões, notas de baixo de página, bem como, no plano tipográfico espacial, gêneros de
acréscimo paratextuais como prefácio, apêndice. Mas também o são elementos, frases,
158
textos, que são constituídos em acréscimo por um trabalho específico da pontuação.
O que insiste, independente de qual seja o objeto e o tipo de aproximação, é a
complexificação, a heterogeneização, a fragilização ou a subversão da linha sintática ou
textual: nem lisa, una e contínua, nem simplesmente rompida, fragmentada, mas
conjugando ruptura e sutura, destacamento e encaixamento, autonomia e dependência,
contínuo e descontínuo, dentro e fora por um jogo contraditório de duas dinâmicas
enunciativas de integração e de separação. “O estatuto estrutural contraditório do acréscimo
na frase, ou no texto, se oferece a uma variedade de inscrições subjetivas e de
possibilidades estéticas” (Authier-Revuz e Marie-Cristine Lala, 2002, p.10-11, tradução
nossa).
O acréscimo, elemento paradoxal de um dentro fora, de um corpo estranho
costurado ao corpo de base, aparece como lugar privilegiado da alteridade. O acréscimo
aparece como forma material de resolução da tensão entre o particular e o social. A partir
de um questionamento sobre formas de acréscimo em língua e em discurso, vemos bem a
linearidade do enunciado se romper e se complexificar mais e mais. Acrescentar um
elemento em um conjunto pode ser uma escolha, mas esta escolha fica limitada por diversas
razões, como a gramática, a coerência do discurso, o vivido ou a memória discursiva, enfim
pelas possibilidades que a língua e o discurso viabilizam a quem fala.
O acréscimo como uma parte estrangeira ao próprio discurso é ao mesmo tempo
uma parte constitutiva do discurso. Seguindo esta perspectiva destacamos as duas figuras
de acréscimo de maior incidência no corpus analisado: o parêntese e as reticências. Foram
analisadas 880 mensagens que representam 9 encontros do seminário virtual. No conjunto
há 241 mensagens com uma ou mais ocorrências de reticências e 108 mensagens com uma
ou mais ocorrências de parêntese.
159
7.2.1 O parêntese
Os enunciados entre parênteses são marcas de alteridade no seio da própria voz,
marcas de desnivelamento. O acréscimo que veio interromper o fio do discurso, que pode
se apresentar como radicalmente outro, exibe muito freqüentemente uma heterogeneidade
em um espaço tipograficamente circunscrito. O processo de inserir a representação da outra
voz no fio do discurso mostra o locutor procurando construir uma homogeneidade na sua
enunciação. O parêntese, ao marcar tipograficamente a representação de uma voz outra no
seio da enunciação, mostra a heterogeneidade da composição do discurso do enunciador.
Vejamos as seguintes mensagens (grifos nossos):
17) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 20:52:09 Mensagem:
Sobre a questão da G., penso que entramos novamente na metodologia. Todorov diz que
Bakhtin anuncia a "crítica dialógica" e que isto tem repercussões na metodologia das
ciências humanas. Os níveis de pesquisa, como ele coloca (aos quais a G. se refere)
tratam do estabelecimento de fatos, de uma explicação por leis (o que é típico das
ciências exatas) e da atividade de interpretação.
18) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 21:35:28 Mensagem:
Como assim, S.? Não entendo como ele modificou os conceitos de Saussure. Para mim,
até agora, a crítica que ele faz a Saussure se limita a este autor ter "preferido" (e isso
não quer dizer que ele não tenha enxergado outras dimensões) trabalhar com a
linguagem enquanto "língua", ou seja, enquanto sistema e não com a "fala", que incluiria o
contexto.
19) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 20:54:39 Mensagem:
É isso mesmo. O falante só consegue aceitação (lembra-se da nossa fórmula discutida
na aula passada?) se houverem as condições necessárias no contexto social.
20) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 20:52:56 Mensagem:
Quando me "desespero" na leitura, recorro freqüentemente o outros livros. Assim, cheguei
a Diálogos com Bakhtin, e nessa hora, me sinto gratificada, pois percebo que mesmo
160
aqueles que aprofundaram seus estudos garantem que o importante é perceber a lógica
de seu pensamento, com as infinitas possibilidades que ele nos abre. Aliás, um dos
artigos é de uma pedagoga, que diz que, dependendo do mirante em que nos
colocarmos, teremos cada um, uma visão diferente. (aliás, a C. já me havia dito isso
com outras palavras) Assim, os da lingüística terão uma visão distinta dos demais, e
nunca os que são "de fora" poderão ter um olhar semelhante...
Em (17) nós temos em uma mesma enunciação a representação da voz de G. (aos
quais a G. se refere) e a representação da voz das ciências exatas (o que é típico das
ciências exatas). Em (18) aparece a representação da voz de Bakhtin, pois o “ele” se refere
a Bakhtin (e isso não quer dizer que ele não tenha enxergado outras dimensões). Em (19)
nós encontramos a representação do diálogo de vozes do locutor e do receptor em um
momento passado (lembra-se da nossa fórmula discutida na aula passada?). E em (20) nós
temos a representação da voz de C. (aliás, a C. já me havia dito isso com outras palavras).
Como podemos verificar, não se trata de outras vozes no momento da enunciação, o que
está destacado entre parênteses é também a representação da própria voz interior do locutor.
Voz que ele utiliza para compor sua enunciação. Essa sua voz é povoada, motivada, como
ele nos mostra, por outros discursos, os quais foram proferidos por outras vozes das quais
ele produz uma imagem.
Um acréscimo não é jamais sem risco. A coesão temática de uma seqüência na qual
os conjuntos parecem estrangeiros uns aos outros somente se obtém ao preço da
consideração de uma estranheza bem maior: aquela que manifesta a irrupção do
interdiscurso
61
na realização intradiscursiva considerada. São marcas na língua que
denunciam que aquele que enuncia lê-escuta as palavras que enuncia. Existem casos em
que a representação da outra voz emerge marcando claramente a multiplicidade de
discursos que estão em questão em uma única enunciação, como podemos ver em (grifo
nosso):
61
O interdicurso na relação com o intradiscurso é aqui considerado conforme postula Michel Pêcheux no
livro Semântica e Discurso, uma crítica a afirmação do óbvio. Campinas: Editora Unicamp, 1995. A
relação do “(...) isso fala, em outro lugar, antes e independentemente” com o desenvolvimento do discurso em
sua articulação com a língua.
161
21) Usuário: Data: 25/10/2003 Hora: 16:59:09 Mensagem:
Oi, S... Tenho lido outros livros que se referem a Bakhtin, como devo ter mencionado.
Gostei muito de algo que diz mais ou menos assim: Num mundo tão fragmentado, onde o
individualismo é reificado, o pensamento ocidental tem privilegiado a racionalidade que
permeia as Ciências Humanas (e não posso deixar de refletir , quando aqui se
"festeja" o centenário da morte de Júlio de Castilhos, um dos mais ardorosos
discípulos de A. Comte, o quanto sua mão de ferro deixou marcas que perdurarão
por muito tempo, certamente...) Assim, se percebemos o quanto a linguagem pode
ajudar a resgatar a dignidade humana, é imprescindível que a usemos como instrumento
de expressão da liberdade. Apenas ela pode dar forma e conteúdo à imaginação criadora.
22) Usuário: Data: 15/10/2003 Hora: 19:26:32 Mensagem:
Gostei do cap. 4. é interessante aquelas indagações todas sobre delimitar o objeto de
estudo e as decorrentes dificuldades advindas destas delimitações. Para chegar ‘a
importância do meio social há toda uma explicação sobre as alternativas que Bakh julga
inapropriadas. Em determinado momento ele fala que mesmo o som fisiológico é tão
único como a composição química individual do sangue de cada pessoa (embora a
ciência não seja capaz ainda de definir fórmulas individuais do sangue).
Tanto em (21) como em (22) a representação da outra voz é marcada por um tom
irônico e crítico. O outro discurso, que aqui se evidencia, marca o quanto a fala interior
passeia por caminhos distantes, mas que em algum momento se cruza com a via de acesso à
enunciação, a fala exterior. Interessante ressaltar que quando representamos vozes na
enunciação, não necessariamente representamos vozes de pessoas definidas, mas podemos
representar discursos, como: a voz da ciência, a voz do positivismo, a voz da religião, a voz
da crítica, pois como se trata de uma representação, da construção de uma imagem, visamos
sempre à construção de uma unidade. Isso não quer dizer que não existe uma voz que
sustente este discurso, mas que a unidade de tal discurso é dada por uma imagem. Não
podemos esquecer que todo discurso precisa de uma voz, não importa qual, que o reanime,
nem que seja a silenciosa voz da leitura.
O parêntese opera no curso do enunciado um destacamento de ordem tipográfica.
Podemos considerar o elemento destacado como pertencendo a um outro plano, como um
162
elemento estrangeiro. A representação da outra voz parece nitidamente ser resultado de um
diálogo interior que busca se expressar, como podemos ver em (grifo nosso):
23) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 20:56:00 Mensagem:
Oi, S.!!! Que bom que chegaste!!!! Estávamos mesmo precisando de alguém que nos
"iluminasse"! (juro, não é gozação) mas fala do que....
24) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 20:58:47 Mensagem:
Não sei, S.. Eu estou conseguindo, mas se não podes, posso te "traduzir"... (isso, pelo
menos)
25) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 21:04:56 Mensagem:
Concordo, S. Quanto aos motivos, seria interessante tentar analisar alguns casos. mas
fico pensando quantas vezes um autor coloca seu próprio "eu" num personagem. Isso,
muitas vezes talvez de forma inconsciente, pode alterar essas formas do discurso, não é
mesmo? (céus, tenho receio de dizer bobagem...)
Em (23), (24) e (25) a representação da outra voz aparece como que buscando
quebrar um pouco o tom de seriedade da interlocução. Aparece claramente uma
preocupação do locutor com a recepção da mensagem. Esta preocupação é movimentada
pelo diálogo interior. As formulações parentéticas, nestes casos, consistem numa censura
que o locutor faz de seu próprio discurso, seja porque quer assegurar uma interpretação
“correta” do mesmo (23), seja para atestar a dificuldade de um ponto adequado de
entendimento (24 e 25).
Os parênteses guardam qualquer coisa de exterior, eles vêm de um além do texto,
mesmo se eles são lidos entre as palavras de uma linha. Este “além” é justamente as vozes
que subsidiam a construção do discurso. O texto é fruto de um diálogo de várias vozes, mas
o que nós lemos ou escutamos são sempre significantes, já não são mais vozes. É
justamente neste sentido que precisamos construir a imagem das vozes que sustentam os
enunciados, porque as vozes mesmo não estão mais lá. A única voz que está lá, na
enunciação, como nós podemos verificar em todas as mensagens aqui destacadas, é a voz
163
do locutor, mas somente para o locutor, ela está lá. Nós apenas lemos, escutamos os
significantes e as imagens que ela pode gerar.
26) Usuário: Data: 19/10/2003 Hora: 20:53:53 Mensagem:
è porque Bakhtin não trata a língua como superestrutura que ele percebe a mudança
constante que ocorre na língua. Ele também vê essa mudança como ponto de luta das
legitimação da ideologia: o significado posto, cristalizado (ou não) diz da ideologia que o
significou.
O “(ou não)” que representa a outra voz, que vem interferir na enunciação, abre
espaço para uma diversidade de outros discursos, que podem ser contrários ao sentido
proposto na voz primeira do enunciador, mas também refere uma dúvida do locutor que ao
escutar sua voz no processo de escrita insere a representação de uma outra voz, a que
modaliza o seu dizer.
Um acréscimo também pode ser utilizado para melhorar a legibilidade e a clareza do
texto. Nas formulações que seguem podemos verificar que através do acréscimo o locutor-
ouvinte retoma o que enunciou e faz um acréscimo, uma costura onde ele representa uma
voz outra na enunciação. Uma voz que apesar de partir do mesmo locutor se diferencia,
rompendo a linearidade do discurso. Trata-se de uma voz que complementa, explica a voz
que a antecede. Podemos imaginar que o locutor ao ouvir sua voz necessita de uma segunda
voz (representada) para melhorar a recepção de sua mensagem. Como nas seguintes
mensagens (grifo nosso):
27) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 20:46:59 Mensagem:
Acho que o que a K. e a G. colocam, é também o que eu penso. O Bakhtin, do ponto de
vista da linguagem, propõe uma articulação entre o que se repete (da língua) e o que
sempre muda (contexto).
28) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 19:57:04 Mensagem:
Podemos pensar aí numa posição que podemos correlacionar ao terceiro? As produções
humanas, ou até mesmo a inovações desta (novas produções de sentido)?
164
29) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 20:06:13 Mensagem:
Bem, no contexto marxista, a noção de propriedade é totalmente diferente do que
entendemos hoje, no mundo capitalista, e creio que esse conceito "superestrutural" (já
que a propriedade maior é do Estado) contaminou o conceito de propriedade individual
(ou infra-estrutural).
30) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:50:16 Mensagem:
Acho que a questão dialógica não é só uma questão de argumento mas,
fundamentalmente, uma questão do outro... (o silencio do outro, o gesto do outro, a
resposta verbal do outro, ...)
31) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 20:32:50 Mensagem:
Bem, 4ª não posso,mas se os outros podem, tudo bem. Quanto á discussão, li e reli o
cap. 10. Para quem não é das letras, como eu (Ciências Biológicas, imaginem...) fica
bem difícil. Mas enfim, parece que consegui assimilar alguma coisa... Achei que deveria
ficar por ai, para ir "macerando"...
A representação desta outra voz que explica, que procura antecipar a recepção que o
outro interlocutor obterá de sua mensagem é uma espécie de ornamento, de encanto, que o
locutor acrescenta a sua enunciação. Obviamente se trata de uma imagem de sua voz, uma
vestimenta a mais, visando uma melhor recepção. Este movimento mostra que o locutor ao
escrever escuta sua voz e procura adequá-la ao outro. O acréscimo, neste caso, busca uma
unidade no discurso, um suporte a mais na recepção de sua mensagem.
A representação de uma voz outra no seio da enunciação pode ser marcada
tipograficamente como um acréscimo que parece correr em paralelo com a voz que
enuncia, como se o locutor ao ouvir sua voz dialogasse consigo mesmo e decidisse por
mostrar este dialogo ao outro interlocutor. Como vemos nas mensagens seguintes (grifo
nosso):
165
32) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 20:42:44 Mensagem:
E.: certamente as peculiaridades da língua nos dificultam a compreensão. Mas, insisto
que um dos maiores complicadores tem a ver certamente com a tradução. (isso dito por
quem tem conhecimento de causa...)
33) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 22:14:06 Mensagem:
Até, E. Nos da notícia da chegada de J. (fico pensando se ela já não vai nascer
falando...)
34) Usuário: Data: 09/11/2003 Hora: 17:34:25 Mensagem:
Pessoal, por motivos de força maior (vcs já devem ter lido isso antes em algum
lugar...)o poderei participar hj. Mas amanhã a tarde eu lerei com carinho as demais
contribuições! c., valeu pelas respostas, acho que tenho muito q pensar! Abraços a todos
e boa discussão! M.
Em cada acréscimo, aqui demarcado pelos parênteses, podemos destacar a entrada
de uma outra voz. Uma voz que dialoga (vcs já devem ter lido isso antes em algum lugar...),
explica (novas produções de sentido), brinca (fico pensando se ela já não vai nascer
falando...), enfatiza (já que a propriedade maior é do Estado), relativiza (o silêncio do outro,
o gesto do outro, a resposta verbal do outro, ...). De fato, o que nós temos aqui nestas
figuras de acréscimo assim expostas são indícios do discurso interior do locutor em questão
tal qual vimos nos personagens de Dostoiévski exemplificados por Bakhtin (2002) ou na
autobiografia de Schreber (1984). Trata-se da própria voz do interlocutor, que ao ouvir-se-
falar, que ao ler-ouvir o que escreve, representa essa voz na tentativa de fazer uma unidade
de seu discurso. Porém, a única forma de fazer isso é lidando com palavras, discursos, que
não têm essa unidade, essa homogeneidade buscada na enunciação. A maneira que temos
de dar uma unidade ao discurso é via imaginário, é via representação da voz.
166
7.2.2 As reticências
As reticências assinalam um acréscimo virtual, uma possibilidade de acréscimo ao
texto que o leitor poderá imaginar, mas além disso, elas já são de fato um acréscimo, pois
elas quebram a linearidade do texto para darem lugar à representação de uma possível outra
voz. Ao mesmo tempo lugar de uma falta e lugar de um “dizer a mais”, as reticências
oscilam entre uma falta ou um excesso que afeta igualmente o sentido; de um lado, as
reticências presentificam um espaço vazio (uma lacuna) na qual a possibilidade semântica é
simplesmente sugerida, na qual a espera do sentido se encontra diferente; do outro, elas
assinalam a infinitude de um dizer a mais do qual não podemos mensurar o limite, pois o
plural do sentido assim evocado autoriza uma infinidade de possibilidades. Para além do
dizível e do indizível, o fato de acrescentar ou simplesmente assinalar um acréscimo
virtual, permite assinalar na escritura um efeito de suspensão. Elas são uma forma de
escrever o silêncio, de exprimir a falta de acabamento. As reticências, enquanto forma de
acréscimo e forma de acentuar um acréscimo, são uma espécie de representação da falta na
cadeia discursiva, elas são a figura da força do vazio.
As reticências são uma forma tipográfica de um impossível a dizer ou de preferência
uma forma de marcar esta impossibilidade do dizer. Elas são o impacto do branco, do
espaço, da abertura a outro discurso, silêncio na escritura e ao mesmo tempo excesso de
sentido. Porém, as reticências podem ser também uma abertura à entrada do outro
interlocutor no diálogo
62
, na construção de um discurso, como podemos ver em (grifo
nosso):
35)
Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 21:59:06 Mensagem:
62
As reticências foram analisadas por nós no artigo Era uma vez...Uma narrativa em co-autoria no espaço
virtual como uma forma gráfica de representar uma pausa, mas também como uma abertura a entrada do
outro no discurso daquele que enuncia. Texto publicado em 2001 nos Anais do XII Simpósio Barsileiro de
Informática na Educação que ocorreu em Vitória na Universidade Federal do Espírito Santo. O texto foi
escrito em conjunto com Margarete Axt, Carime Elias, Evandro Alves, Silvia Meireles e Daniela Paiva. Neste
texto analisamos a escrita coletiva de uma narrativa via rede de computadores. Cada participante escrevia
quando e como desejasse, construindo assim uma história que se transformava e tomava corpo no decorrer das
interações.
167
Pensando no teu exemplo, talvez sinalize para um desaparecimento da palavra "você",
ninguém pode saber, não é? isto não está dado a priori. E... quem sabe, também para
uma modificação no conceito de "você".... quem pode dizer?
36) Usuário: Data: 09/11/2003 Hora: 20:26:43 Mensagem:
Oi, gente! Oi, C.! Cheguei há pouco de Bagé e vim direto para aqui. Dei uma olhada só
por cima na tua tese, e fiquei louca para ler toda. Inclusive não pude deixar de fazer uma
(outra) associação entre Bak e Deleuze...Não pude deixar de pensar como o tema de Bak
está relacionado com as condições sociais.... e adorei quando Deleuze diz que a
unidade da língua é sobretudo política....bem, mas é só uma livre associação de
idéias...vamos à discussão de hoje...
37) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:28:52 Mensagem:
Ou seja, onde está o autor em Bakhtin? Volto a afirmar, e acho que Todorov também diz
isso, que no Marxismo, a grande preocupação do Bakhtin era com o social e, neste
sentido, não havia lugar para o " autor individual"....
38) Usuário: Data: 05/10/2003 Hora: 22:17:17 Mensagem:
Nesse sentido acho que teríamos que nos ater com mais cuidado ao que é super e infra-
estrutura, em especial a questão do do signo. me parece que em nenhum momento
Bakhtin desloca estrutura da linguagem do coletivo, que segundo o que compreendo,ao
mesmo tempo em que aponta para a importância das produções de sentido individuais
sobre essa estrutura. Não sei deu pra entender o que escrevi... ao longo da semana eu
coloco explicações e anexos que podem ajudar vc e outros leitores a decifrarem essa
bagunça de idéias-frases! DD, DI, retomada do discurso do outro......importante estas
duas mensagens
Em (35), “E... quem sabe” e “de ‘você’...quem pode dizer?”, e em (38), “Não sei
deu pra entender o que escrevi ...”, as reticências marcam um convite explícito à entrada do
outro interlocutor no diálogo. Em (36) este convite é mais implícito “Bak e Deleuze...”,
“ciências sociais...”. Já em (37) o locutor mostra claramente qual a sua opinião e o uso das
reticências é a sua espera à opinião do outro. As reticências são um convite a uma pausa na
leitura, pausa esta que pode representar a voz latente do locutor e/ou do leitor.
168
Como podemos verificar em (35), (36), (37) e (38), através das pausas na
enunciação, ao mesmo tempo em que o locutor abre um espaço com a figura das reticências
para o ouvir-se-falar (escrever) ele abre o mesmo espaço para a entrada do outro
interlocutor no diálogo. Neste momento falar consigo mesmo ou ouvir-se-falar é abrir-se
para a fala do outro, para a voz do outro também. O ouvir-se-falar não é um circuito
fechado, um retorno sobre si mesmo que encerra o sujeito em uma vida interior”, mas
além disso é a abertura de um espaço-tempo necessário que visa possibilitar, em um espaço
enunciativo, a entrada da voz do outro de tal forma que ela possa significar, produzir
sentidos, ou seja, possa ser ouvida na forma significante.
As reticências se inscrevem para marcar um lugar alternativamente vazio ou
ocupado, no qual a instância do discurso faz aparecer o eclipse do sentido. Estes estilhaços
trazem em si um prejuízo aos limites da frase e impulsionam simultaneamente a abertura
para além da frase. As combinações múltiplas que as reticências autorizam, operando uma
variedade de recortes no seio dos grupos de sentido, faz mexer os limites da frase para além
da frase, como podemos ver em (grifo nosso):
39) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:02:35 Mensagem:
Nâo exatamente, mas ao que o Todorov chama de diferentes bakhtins, que se
transformam, enquanto ele vai pensando a questão do autor.... o Bakhtin do Autor herói
tinha um conceito de autor, mas o Bakhtin do Marxismo, tem outro...
40) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 20:29:52 Mensagem:
Otávio Paz, em seu livro O arco e a lua, diz que "A palavra é o átomo da construção da
nossa realidade. O inominado é o que desconhecemos." Partindo daí, acho que a via é de
mão dupla: tanto constituímos como nos constituímos no fluxo da linguagem...
41) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 19:36:24 Mensagem:
Acho que devo peditr desculpas pela ausência na semana passada! Nâo deu mesmo para
ler e nem para participar dop for-chat. Estávamos (E. e eu) acabando um projeto que
deveria ser entregue na sexta e ainda faltavam muitas coisas a serem feitas. Espero que
isso não aconteça mais.... tenho a sensação de estar caindo de para-quedas aqui....
169
42) Usuário: s. Data: 22/10/2003 Hora: 19:46:42 Mensagem:
Com certeza dá, mas não sou muito boa em pinturas...(mais risos ainda)
Em (39), (40), (41) e (42) o locutor, ao empregar as reticências, não propõe, ele
mesmo, o fechamento do sentido da frase. No lugar de finalizar a frase com um ponto final
ele a deixa aberta com reticências. O sentido nestas frases não se apresenta como
homogêneo ou estanque, ele está em aberto. Esta abertura é um convite para que o outro
interlocutor responda a frase, lhe proporcione outros sentidos. Em (39) e (40) o locutor
atenua a sua demonstração de conhecimento através da utilização das reticências. Como
vimos no capítulo sobre a construção do corpus, nos fóruns de discussão na internet não são
bem vistas as demonstrações de autoridade ou de saberes fechados, sacramentados. Em (41)
e (42) o locutor procura com o uso das reticências um efeito de pedido de desculpas que
solicita perdão ou cumplicidade, o que é valorizado em uma comunidade de aprendizagem.
A leitura é um processo de construção de sentido e não apenas o deciframento de
um código. No caso das reticências isso fica marcado tipograficamente pela pausa inserida
na linearidade da frase. O sentido é construído no encontro de uma voz com os significantes
provenientes de outra voz. Lá onde o discurso encontra um buraco que ao mesmo tempo
quebra e continua a linearidade é também a possibilidade de não explorar totalmente um
caminho, de não esclarecer tudo da mesma maneira como podemos ver nas seguintes
mensagens (grifo nosso):
43) Usuário: Data: 09/11/2003 Hora: 20:36:39 Mensagem:
Se considerarmos tema e significação, parece que ficou claro a distinção entre ambos,
quando ele diz que a significação é reiterável e idêntica, como no caso de que horas são?
(ou ainda... que saco!!...) mas o tema, ah! Esse é irredutível à análise... E a academia
que me desculpe, mas achei o exemplo acima muito ilustrativo para exemplificar a
multiplicidade de instâncias históricas em que essa expressão teria os mais diferentes
elementos não verbais a serem considerados....
170
44) Usuário: Data: 05/10/2003 Hora: 22:17:17 Mensagem:
Olá pessoal!! Ma., ao ler tua colocação fiquei pensando nisso de subjetivo-objetivo. Vejo
que na leitura de bakhtin, não há subjetividade, mas sim, como ele mesmo chama na
Estética da Criação Verbal, há as individualizações, os estilos... Não estou lendo o
capitulo 3, mas mesmo ele tomando emprestado as idéias do velho barbudo ele as
transpassa para a linguagem e dá a elas uma interpretação a luz da filosofia da
linguagem.
Como vemos em (43), (44) as reticências também são uma forma de marcar a
impossibilidade de tudo dizer. Elas são uma forma de dizer que se poderia falar mais sobre
tal tema, que existem outras possibilidades além daquelas enunciadas, mas no momento o
locutor prefere apenas marcar esta possibilidade e assim convidar o leitor a também
depositar sua voz latente no ato de leitura das reticências. Esse recurso da pausa na
enunciação é bastante utilizado na língua oral para enfatizar uma idéia ou palavra, esse
mesmo efeito parace ser buscado também em (43) “mas o tema, ah! Esse é irredutível à
análise...E a academia que me desculpe”.
A característica das reticências de não dizer dizendo é similar à utilização de
palavras como “coisa”, “isso”, que são como que palavras coringas, servem para dizer tudo
e ao mesmo tempo não dizem nada. Freud, na construção de sua teoria do inconsciente,
soube fazer um bom uso destas palavras. Grosso modo, na fala nós temos as pausas e na
escrita as reticências, mas onde podemos colocar as reticências quando transcrevemos uma
fala, quando passamos um texto oral para a forma escrita? A fala está sempre repleta de
pausas, sejam longas ou curtas, mas quando uma pausa pode ser representada pelas
reticências? Estes buracos na fala, buracos na escrita nos quais o sentido escapa ao se fazer,
diz dos limites de cada discurso, das possibilidades de entrada do outro no discurso que se
realiza, da possibilidade de criação, continuação de uma certa linearidade discursiva que
não se fecha na individualidade de uma locução pontual.
Quando transcrevemos um texto que foi originado na forma oral para restabelecê-lo
171
na forma escrita, uma das dificuldades é a maneira de pontuarmos este texto
63
. Essa
dificuldade é extrema, pois a decisão de representarmos as pausas é uma incógnita que nem
mesmo o próprio falante, locutor do discurso, saberia mensurar. Podemos colocar pontos,
vírgulas, dois pontos, ponto e vírgula, interrogação, ponto de exclamação, reticências,
travessão, parêntese. Ninguém dúvida que a pontuação muda o sentido de um texto
64
. O
que é interessante nesta passagem do oral para o escrito é a necessidade que encontramos
de deixar espaços em aberto e, ao mesmo tempo, sentimos a necessidade de colocar alguns
limites. Porém em uma fala a escuta do outro interlocutor é necessariamente interpretativa
quando se trata da pontuação.
Nós podemos acrescentar aqui o que escreve Marie-Christine Lala (2002, p.193,
tradução nossa):
Sem dúvida, com o sinal de pontuação nos encontramos a meio caminho
entre a lógica do oral e a lógica do escrito. Entretanto o escrito encontra
bem aqui sua especificidade no que esta forma de acréscimo, que
representa as reticências, pode ser incluída como um meta-acréscimo
fixado no escrito e que por conseqüência faz jogar a reflexividade da
linguagem nas formas de língua e nas formas do discurso.
As frases com seus acréscimos têm este efeito paradoxal de uma amplificação, pelo
anterior, de acréscimos retrospectivos, que propõe uma interpretação da criação progressiva
de uma idéia. Como escreve France Vernier (2002, p.213, tradução nossa), “(...) o
acréscimo coloca a nu a instância enunciativa e sua atividade de fabricação: ele mostra a
“costura”, testemunha o arbitrário de toda fonte enunciativa, de sua não suficiência. Ele
63
Na psicanálise Jacques Lacan decidiu fazer a maior parte do seu ensino via fala, os seminários que temos
para ler são transcrições, uma de suas razões para tal foi manter esse caráter da pontuação. Quem vai pontuar
é quem escuta. Ele dizia que nos seus seminários ele falava como analisante. Uma das coisas que o analista
faz na sua clinica é pontuar a fala do analisante.
64
Gabriel Bergounioux (2005), no livro, Critiques par um linguiste de l’édition des séminaires de Lacan,
no qual realiza um trabalho exemplar de apontamentos de problemas de escrita nos seminários estabelecidos
por Jacques Alain Miller, discute significativamente esta questão de como transcrever as diversas pausas por
meio da pontuação.
172
acusa os limites do que ele transborda: gênero, tom, estilo, autoridade de qualquer espécie
que seja”. Representação de um movimento segundo, com relação à base, o acréscimo é
também o lugar de um desdobramento reflexivo da figura do enunciador. Atravessada por
acréscimos, a enunciação não se apresenta como monobloco, mas dividida pelo diálogo
desta auto-recepção, integrando significativamente as pretensões do leitor, receptor a vir.
Analisamos aqui duas figuras de acréscimo que no discurso evidenciam algumas
marcas da costura necessária ao discurso para se fazer. Como o corpus analisado se trata de
um diálogo escrito, vimos os limites da frase ficarem um tanto incertos, convidando assim
outras vozes a completar, fazer parte da criação do sentido. Os acréscimos analisados
(parênteses e reticências) parecem ser a representação de um diálogo do locutor consigo
mesmo. Isso é possível ser notado em cada exemplo retirado do corpus, nos quais o locutor
ao ouvir sua voz dialoga com ela. As figuras de acréscimo, neste caso, são uma auto-
representação da voz do enunciador ao mesmo tempo em que possibilitam a entrada de
outra voz que caracterizaria a interlocução. As reticências, como uma janela aberta ao
outro, são uma marca na língua que podemos considerar como imprescindível na
construção e manutenção de uma comunidade de aprendizagem tal qual é pretendida no
forchat.
7.3 A VOZ DO OUTRO REPRESENTADA NA ESCRITA
Buscando manifestações da voz do outro representada na enunciação, chegamos à
análise das formas do discurso relatado. Nesta análise interrogamos as formas da língua que
possibilitam a um dado discurso se constituir a partir de outros discursos, possibilitando
assim um processo de enunciação que acontece pela incorporação das palavras do outro,
explicitando que elas são do outro, a um determinado discurso enunciado. O que
procuramos mostrar na análise que segue são formas na língua que representam uma outra
voz no interior da enunciação. Trata-se de marcas que representam essa outra voz, mas que
não são essa outra voz. O que colabora na composição da enunciação é o discurso do outro,
173
as palavras do outro, mas não a voz do outro enquanto voz. As outras vozes somente são
incorporadas à enunciação na forma de significantes ou de representações da voz.
A representação da outra voz incorporada na enunciação pelo locutor visa, entre
outras coisas, manter o endereço de origem desta voz. As formas na língua que possibilitam
a manutenção deste endereço são o que conhecemos como discurso relatado ou , para tomar
um aspecto um pouco mais amplo, como Authier-Revuz (2004b) chama, Representações do
Discurso Outro
65
(RDO), a saber: o discurso direto, discurso indireto, modalização em
discurso segundo e modalização autonímica de empréstimo. Este aspecto da enunciação
que verificamos nos recortes discursivos destacados do seminário virtual em análise
também mostram que as palavras incorporadas nunca o o de modo passivo, e as formas
como elas aparecem no discurso fazem parte da constante construção do sentido que ocorre
na interação do um com o outro.
A nossa pretensão neste capítulo não é a de esgotar todas as formas de
Representação do Discurso Outro (RDO), conforme nos apresenta Authier-Revuz (2004b).
Antes disso, o nosso interesse reside em apontar para a existência destas formas e suas
possíveis implicações para o campo da aprendizagem, mais especificamente, em sua
aplicação ao seminário virtual analisado. A lógica que se desenvolve ao longo desta análise
parte de um pressuposto que organiza todos os outros conceitos, sejam eles relativos à
psicologia, educação ou lingüística. O pressuposto é de que o pensamento se realiza na
palavra. Conforme Vigotski (2001, p. 409), “a relação entre o pensamento e a palavra é,
antes de tudo, não uma coisa, mas um processo, é um movimento do pensamento à palavra
e da palavra ao pensamento [...] O pensamento não se exprime na palavra, mas nela se
realiza”. A questão que se apresenta a partir deste pressuposto é interrogar as formas da
língua que possibilitam a um dado discurso se constituir a partir de outros discursos,
possibilitando assim um processo de aprendizagem que acontece pela incorporação das
palavras do outro, explicitando que elas são do outro, a um determinado discurso
enunciado.
65
Em francês RDA (Représentation du Discours Autre).
174
Nesta análise buscamos identificar nas intervenções individuais dos participantes do
seminário virtual a emergência do discurso outro relatado. O importante é ficar claro que o
outro de que se trata é sempre o outro enquanto discurso e o um de que se trata é sempre o
um enquanto um discurso que se sustenta na ilusão de uma unidade mantida pelo locutor. O
outro discurso somente pode ganhar existência ao ser articulado a partir de uma voz
endereçada a uma outra voz.
Seguindo o trabalho de Vigotski (2001, p.408), no qual afirma que “em cada fase do
desenvolvimento, existe não só a sua estrutura peculiar de significado verbal mas também a
sua relação específica entre pensamento e linguagem, determinada por essa estrutura”, bem
como o de Bakhtin (2003, p.114) no qual diz que,
de fato, para a consciência individual [...] a palavra na linguagem é uma
palavra semi-estrangeira. [...] Até o momento no qual ela é apropriada.
Ela é sobre lábios estrangeiros, em contextos estrangeiros, a serviço de
intenções estrangeiras, e é lá que é preciso a tomar e a fazer ‘sua’. [...] A
linguagem populada e superpopulada de intenções estrangeiras não é um
meio neutro. Ela não se torna facilmente, livremente, a propriedade do
locutor,
destacamos que a constituição do um da enunciação acontece na interação com o outro,
possibilitada pela palavra. Neste sentido tentamos mostrar que a construção do discurso
interior derivada de uma prática pedagógica como um seminário virtual passará
necessariamente por estruturas lingüísticas. Este processo de submissão das palavras do
outro às intenções do locutor é um processo complexo que segue determinada lógica de
unificação do discurso e que obedece às leis da gramática. Poderemos observar nas análises
a seguir de mensagens postadas no forchat algumas formas de emergência do discurso
outro no um.
175
7.3.1 O Discurso Direto
No discurso direto nós temos a emergência de um discurso outro no um do discurso
caracterizado pela diferença marcada de um e outro discurso. A linearidade do segmento é
recortada exibindo uma heterogeneidade no plano enunciativo, semiótico e sintático. Nesta
forma do discurso, o outro discurso é mostrado explicitamente como vindo de outro lugar.
Authier-Revuz (2004b, tradução nossa) escreve que na zona do discurso direto “o um fala
do outro exibindo, localmente, como outro”. O outro neste caso está formalmente bem
demarcado, sendo trabalho do um enquanto discurso, principalmente, fazer o outro discurso
se mostrar.
O que podemos ressaltar nesta forma do discurso relatado, do ponto de vista da
aprendizagem, é a referência às palavras do outro e uma incorporação destas palavras ao
discurso, explicitando que o sentido destas está fortemente ligado a outro discurso
pronunciado por outro sujeito. Mesmo assim o locutor se apropria destas palavras para
compor um outro sentido, evidenciando, através do recorte na linearidade do segmento,
que esse sentido não é transparente, único e fechado. O discurso direto nos possibilita o
recurso de mostrar que as palavras são do outro e que o sentido delas está ligado a uma
determinada enunciação, mas que ao ser retomado em outra enunciação tem seu sentido
alterado em função das novas condições de produção do discurso. O locutor, mesmo ao se
apropriar das palavras do outro, ainda mantém uma distância frente ao sentido ligado a
estas palavras. No corpus analisado a forma do discurso direto foi amplamente utilizada.
Nas mensagens que seguem buscamos destacar algumas mensagens do forchat nas quais se
manifesta esta forma do discurso em que o locutor fala do outro discurso mostrando as
palavras como outro (grifo nosso):
45) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 18:06:41 Mensagem:
Podemos pensar sobre a metodológica constituída, por Bakhtin, na estruturação de sua
obra nos seguintes fragmentos, nas páginas 3 e 4: “Não se trata de impor-lhe
artificialmente uma unidade que nele não existiria...”; “A verdadeira noção central
da pesquisa estética não deve ser o material, mas a arquitetônica, ou a construção,
176
ou a estrutura da obra, entendida como um ponto de encontro e de interação entre
o material, forma e conteúdo?”
46) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:20:27 Mensagem:
Continuando... mas mais importante do que isso, é quando Bakhtin diz "cumpre dizer
tanto o relativismo como o dogmatismo excluem igualmente qualquer discussão,
qualquer diálogo autêntico, tornando-os seja inúteis (o relativismo), seja
impossíveis (o dogmatismo)" , página 19. Ou seja, muitas interpretações podem existir,
mas nem todas são possíveis. Quando adotamos
47) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 19:28:51 Mensagem:
M., cadê o povo? Agora estou a três horas de diferença de vcs. Do cap. 6 destaco na pg
125 "A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites,
o discurso interior". A enunciação põe para fora o discurso interior, que é construído em
face das relações com o outro.
48) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 19:35:27 Mensagem:
Enquanto aguardo resposta, gostaria de destacar um trecho da p.95: “Na realidade,
não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras,
coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A
palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou
viencial." Isso, para mim, tem o efeito de um redirecionador de olhar. Deixamos de ver a
palavra para ver além dela. As idéias de Bhktin, nesse sentido, incentivam a
"transverbalidade".
49) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 20:14:07 Mensagem:
Na página 117, ele diz "A atividade mental do sujeito constitui, damesma forma que
a expressão exterior, um território social. Em consequência,todo o itinerário que
leva da atividade mental (o conteúdo a exprimir) à sua objetivação externa (a "
enunciação") situa-se completamente me território social." O que acham?
50) Usuário: Data: 25/10/2003 Hora: 07:42:16 Mensagem:
Isso que você disse é lindo, E. : "fugir das falas monológicas e assumir o
conhecimento dialógico e a enunciação polifônica".
177
51) Usuário: Data: 25/10/2003 Hora: 07:55:45 Mensagem:
Quero aproveitar esse momento para registrar mais duas frases super importantes
para nossas discussões sobre esse tema da linguagem e da interação verbal: "A
palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia
sobre mim numa extremindade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A
palavra é o território comum do interlocutor e do locutor."p. 113 "A evolução
semântica na língua é sempre ligada à evolução do horizonte apreciativo de um
dado grupo social e aevolução doo horizonte apreciativo - no sentido da totalidade
de tudo que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo - é
inteiramente dominada pela expansão da infra-estrutura econômica".p. 135 Acabo
de ver que não eram duas, mas três, as frases que gostaria de destacar. Aí vai a terceira,
na p. 136: "A sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em
transformação. Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a
significação, alemento abstrato igual se mesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada
por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova
signifi~cação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias." Que
coisa linda,
52) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 19:46:02 Mensagem:
Com certeza. E não poderia ser diferente, porque ele diz "toda a comunicação verbal,
de qualquer tipo que seja".
53) Usuário: Data: 09/11/2003 Hora: 20:50:47 Mensagem:
A análise que ele faz dos parágrafos no cap.8 é genial: "réplicas de um diálogo
viciado no corpo de uma enunciação monológica" é demais. É como se
estivéssemos, a um só tempo, monolango e simulando a presença de um
interlocutor que guia nossas enunciações.”
54) Usuário: Data: 09/11/2003 Hora: 21:38:42 Mensagem:
A frase, que me pareceu mais interessante, foi: "O orgulho que esta posição
solitária implica apóia-se igualmente sobre o nós". Pensei aqui num cruzamento com
a teoria psicanalítica no sentido da divisão do eu, estando o eu relacionado a hipótese de
178
unidade, de uno, do individual. Um ponto de engano, de ilusão, a ilusão de unidade, de
ser todo, diretamente relacionado ao orgulho.
55) Usuário: Data: 15/10/2003 Hora: 19:42:30 Mensagem:
Na pg 95 há uma citação interessante sobre a carga ideológica das palavras: " A
palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou
vivencial.”
56) Usuário: Data: 15/10/2003 Hora: 20:17:05 Mensagem:
Voltando ao livro, na página 87 há uma citação muito interesante: "Assim é que o
fenômeno síncrono nada tem de comum com o diacrônico". Isso seria totalmente
verdadeiro, se o fenômeno diacrônico não fosse, por assim dizer, a incubadora do
síncrono.
Nas mensagens destacas, que apresentam citações de autores, a voz do locutor não é
a mesma voz de onde saiu o discurso outro que é introduzido na enunciação. O locutor
então representa através do discurso direto essa voz do outro. A opacidade da voz reflete no
sentido a ser construído de tal forma que resta bem demarcado na língua o encontro de duas
vozes não-coincidentes compondo uma mesma enunciação. A diferença de propriedade, se
assim podemos dizer, não se refere à palavra que não tem dono ou a língua que é social,
mas à voz. O elemento que diferencia o que é de um e de outro é a voz na articulação
significante. Na língua escrita ou falada esta diferenciação de vozes é marcada entre outras
formas pelo discurso direto, através do qual o locutor procura representar a outra voz que
utiliza em sua enunciação.
7.3.2 O Discurso Indireto
O discurso indireto manifesta-se quando a emergência do discurso outro no um do
discurso ocorre pela integração do outro ao um sintático e enunciativo. Segundo Authier-
Revuz (2004b, tradução nossa), “o um fala do outro reconduzindo ao um”. Nesta zona do
discurso o outro aparece como homogeneizado, mesclado ao um do discurso.
179
Neste caso a diferença que podemos apontar com relação ao discurso direto é
justamente a tentativa de unificação do sentido pela utilização das palavras do outro. As
palavras ainda são explicitadas como sendo do outro, porém a sua incorporação ao discurso
do enunciador ocorre como se o sentido nas duas enunciações, a do autor e a incorporada,
fosse similar. Podemos aqui verificar que o sentido de uma mesma frase, se utilizarmos a
forma do discurso direto ou indireto, não é o mesmo. Por exemplo: Pedro disse: “Eu vou
embora”; não é o mesmo que: Pedro disse que ia embora. O discurso indireto foi tão
utilizado como o discurso direto pelos participantes do forchat. Destacamos algumas
mensagens em que o locutor fala do outro o direcionando para compor o um da enunciação.
Vejamos as seguintes formulações (grifo nosso):
57) Data: 09/11/2003 Hora: 20:36:39 Mensagem:
Se considerarmos tema e significação, parece que ficou claro a distinção entre ambos,
quando ele diz que a significação é reiterável e idêntica, como no caso de que horas
são?
58) Data: 15/10/2003 Hora: 19:26:32 Mensagem:
Para chegar ‘a importância do meio social há toda uma explicação sobre as alternativas
que Bakh julga inapropriadas. Em determinado momento ele fala que mesmo o som
fisiológico é tão único como a composição química individual do sangue de cada
pessoa.
59) Usuário: Data: 19/09/2003 Hora: 10:51:24 Mensagem:
Parece-me que o tema é o sentido do signo. Quando Bak diz que o tema possui
sempre um indice de valor social (ideologia), isso não seria característica do signo?
60) Usuário: Data: 19/09/2003 Hora: 11:49:31 Mensagem:
Estava aqui pensando em um exemplo para que possa ficar mais claro esta diferença.
Quando em algum evento, pessoas soltam pombos, isso significa que querem paz, certo?
portanto o pombo é um signo ideológico. Há um consenso que este pássaro simboliza a
paz,por isso todos compreendem a mensagem. Bak diz que o signo ideológico tem
vida na medida em que ele se realiza no psiquismo (pag. 64). cont.
180
61) Usuário: Data: 19/09/2003 Hora: 11:56:22 Mensagem:
Talvez com esse exemplo da paz pudéssemos entender porque Bakhtin diz que o
signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. O que é, afinal, a paz?
62) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 19:41:43 Mensagem:
Bom, quanto ao capítulo 5, que a Sheila está citando, no qual ele faz várias cticas ao
objetivismo abstrato, ou seja, ao estruturalismo, só agora eu entendi que ele está
criticando toda a vertente das teorias da informação (que tranalham com locutor, receptor,
e uma mesagem que é transmitida como " sinal". O que ele diz, a meu ver, é que a
mensagem transmitida é muito mais do que um " sinal", é um signo ideológico.
Deste modo, inscreve a dimensão da lingaugem nas teorias da comunicação (mais
amplas que as da informação).
63) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 19:59:48 Mensagem:
M., tb me centrei no capítulo 6. Fiquei pensando sobre a forma que Bakhtin aborda a
consciência. Ele diz que fora de sua objetivação, de sua realização num material
determinado, a consciência é uma ficção. O que acham?
64) Usuário: Data: 09/11/2003 Hora: 21:23:14 Mensagem:
Um ponto que achei interessante é quando Bak fala que tudo o que pode ser
ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior. Ela dá ênfase
ao discurso interior quando diz que aquele que apreende a enunciação de outrem não é
um ser mudo, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores.
No caso do discurso indireto existe uma tentativa de incorporação da voz do outro à
voz do enunciador, porém esta incorporação não ocorre, o que ocorre é a incorporação do
discurso, das palavras do outro. A voz que o locutor-ouvinte encontra para compor a sua
enunciação já não é mais uma voz pura, se assim podemos dizer, ela é a voz vestida pela
palavra, marcada pelo significante. A possibilidade que o locutor-ouvinte dispõe é a
representação da outra voz. No discurso indireto essa representação procura ser mais
disfarçada. As formas que dispomos para disfarçar e ao mesmo tempo mostrar a influência
181
da voz do outro no dizer podem ser diversas, como as formas de modalização do dizer do
outro, o jogo com o tempo verbal, etc.
7.3.3 A Modalização em Discurso Segundo
Esta zona que podemos chamar Modalização do Dizer como Discurso Segundo
(MDS) ou se desejarmos, modalização pelo discurso outro se refere ao campo da
modalidade. Trata-se da modalização de um discurso pelo reenvio a um discurso outro.
Conforme Authier-Revuz (2004b, tradução nossa), “o um fala após o outro; é a zona
dobrada da modalização do dizer pelo discurso outro, no qual o outro não é mais aquilo do
que falamos mas o que interfere no dizer, o que o altera, intervindo como fonte, seja de
suas predicações, seja de suas maneiras de dizer”.
Neste caso existe a incorporação da palavra do outro, porém o sentido é colocado
em suspenso, deixando claro que um outro discurso está interferindo na construção do
discurso do locutor. Então, as palavras que ele utiliza, mesmo sendo as mesmas do outro
discurso, podem trazer sentidos diferentes. Esta forma de Representação do Discurso Outro
não teve a mesma incidência no forchat que o discurso direto ou discurso indireto, embora
seu emprego também tenha sido significativo. Como podemos verificar em algumas
mensagens destacadas do corpus, nas quais o locutor fala após o outro discurso (grifo
nosso):
65) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 20:43:26 Mensagem:
Acho que com este Prefácio podemos, entre tantas outras coisas, situar o Marxismo e
Filosofia da Linguagem dentro da obra do Bakhtin. Segundo Todorov, em um período,
sociológico, que veio da fase fenomenológica.
66) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:07:01 Mensagem:
A questão do autor em Bakhtin, segundo Todorov, pode ser vista através do que a
Simone colocou anteriormente, na minha opinião. No início, Balhtin via a relação
182
autor/personagem como eu-isso. Quando criticava Dostoievski. Depois, quando ~foi
influenciado pelo seu próprio sujeito de pesquisa, percebeu que o que Dostoievski fazia
era colocar essa relação em termos de eu-outro. O que acham?
67) Usuário: Data: 19/09/2003 Hora: 11:17:13 Mensagem:
Acho que o tema, por exemplo, sendo o contexto, sempre muda. A significação fica do
lado do que não varia tanto. Sua relação com o signo é exatamente está, porque o
signo, conforme Bakhtin, " resulta de um consenso entre indivíduos socialmente
organizados no decorrer do processo de interação" (p.44).
68) Usuário: Data: 04/10/2003 Hora: 11:13:28 Mensagem:
Neste sentido, para Bakhtin, dentro de uma leitura marxista, a palavra seria o
elemento objetivo, enquanto o signo o elemento subjetivo, sendo esta relação de
imbricação mediatizada pela ideologia, a qual é fundamentalmente definida pelo contexto
do real em que esta se insere. Bem acho que de inicio era isto, as outras colocações o
faço no decorrer das manifestações ...
69) Usuário: gleice Data: 22/10/2003 Hora: 19:32:50 Mensagem:
Como se existisse liberdade...segundo o autor não há liberdade nem interior.
70) Usuário: carime Data: 19/09/2003 Hora: 11:29:10 Mensagem:
E daí a relação que se poderia fazer entre significação e sentido dicionarizável,
conforme disseste antes, E., porque o que está no dicionário é o que determinada
comunidade já aceitou como consenso (mas que não diz tudo sobre a palavra que está
sempre mudando de " sentido"?)
A modalização em discurso segundo mostra bem, mesmo ao tentar negar, a fronteira
entre uma voz e outra voz. O que aparece na enunciação é não a outra voz, mas a
representação da outra voz quando as palavras do outro são incorporadas ao um da
enunciação. Nesta forma do discurso relatado a interferência da outra voz é evidenciada
pelo discurso do locutor que através de um modo do dizer acentua o encontro da sua voz
com a representação da voz do outro. Na modalização do discurso segundo podemos
verificar que a palavra e a língua são substâncias diferentes da voz. A língua, a palavra,
183
pode ser incorporada pelo locutor, mas a voz resta como propriedade de um corpo falante
único, ela não pode ser incorporada pelo outro. A voz pode carregar a língua, a palavra, o
discurso de um lado para o outro do planeta, mas ela não se confunde com sua carga. A voz
é mesmo o que organiza as palavras em discursos, o que sustenta a vida de uma língua, mas
a voz de um locutor não pode ser absorvida por outro assim como o são as palavras e os
discursos.
A voz é o elemento, a corda, que faz o laço social, porém ela é também um
elemento de diferenciação, singularização. A voz de cada um não se perde na mistura de
vozes do social, ela se mantém como única diante das outras vozes. Uma voz nunca é igual
a outra voz, nunca se transforma em outra voz, ela é como uma impressão digital do
locutor.
As formas de Representação do Discurso Outro analisadas nas mensagens postadas
no forchat evidenciam a complexidade das interlocuções realizadas, como vimos nas
formulações na forma do discurso indireto: “Bakhtin disse que X”; do discurso direto:
“Bakhtin disse: ‘X’”; da modalização em discurso segundo: “Segundo Bakhtin, X” e como
veremos na modalização autonímica de empréstimo: “‘X’, como teria dito Bakhtin”.
Através destas formas podemos ver como o locutor constrói a representação da outra voz a
partir do discurso por ela articulado. A rede de interações no forchat, marcada pelo
metadiscurso, seja através de dizeres sobre o discurso de Bakhtin, dos leitores de Bakhtin,
dos colegas participantes do forchat ou sobre o próprio discurso do locutor, mostram que o
corpus analisado se trata de uma comunidade. Mais ainda, que se trata de uma comunidade
de aprendizagem, pois o foco das interações é o estudo de uma teoria dentro de objetivos
pedagógicos bem demarcados. A aprendizagem toma consistência a partir da escuta dos
significantes que as vozes dos outros (autores, professores, colegas, etc), endereçadas a uma
outra voz, fazem circular no social. Na medida em que o acento da voz dos outros se torna
mais forte na enunciação, vemos também a singularidade desta enunciação se fortificar.
184
7.4 A VOZ PRÓPRIA REPRESENTADA NA ESCRITA
7.4.1 A Modalização Autonímica de Empréstimo
A modalização autonímica na configuração das não-coincidências do dizer é uma
evidência, mostrada na língua, da interferência do ouvir-se-falar, da voz, no próprio ato de
enunciação. Na análise que segue procuraremos mostrar com base nas quatro não-
coincidências do dizer postuladas por Authier-Revuz (1995) - não coincidência das
palavras e das coisas, das palavras consigo mesmas, dos interlocutores e do discurso
consigo mesmo – a indicação de uma voz que joga na produção do sentido, uma voz que se
faz ouvir no momento em que, causando a divisão do sujeito em enunciado e enunciação,
serve de sustento da auto-representação do dizer, sustento corporal que é vestido, se assim
podemos dizer, pelas palavras. Nas não-coincidências do dizer as palavras vestem a voz na
busca de uma unidade, mesmo que imaginária, entre enunciado e enunciação. Porém, como
já vimos, é a própria voz a causa desta separação entre o um e o não-um. O irrepresentável
da enunciação é a voz como elemento do discurso.
A voz é a condição primeira da autonímia. As representações do dizer que estão em
jogo na modalização autonímica na sua relação com as não-coincidências do dizer, sugerem
a voz como irrepresentável. A teoria das não-coincidências do dizer não se refere
diretamente à voz, porém acreditamos que o que se refere ao irrepresentável nesta teoria diz
respeito ao objeto voz. Para Authier-Revuz (1995, p.269, tradução nossa), “nenhuma
‘representação’ pelo discurso de sua não-coincidência fundamental, de sua heterogeneidade
‘constitutiva’ é possível”, assim como é impossível (Authier-Revuz, 1995, p.269, tradução
nossa) “para o enunciador, desde o interior de seu discurso, tomar o que do exterior
determina e constitui este interior mesmo”. O que não é representado, o que é mais opaco
no ato de enunciação é a voz, que marca a diferença, a separação entre enunciado e
enunciação. A partir desta separação, entre enunciado e enunciação, causa do sujeito
dividido, a voz se apresenta como o motor da não-coincidência. Sem a voz, sem o locutor
185
ouvir-se-falar, as não-coincidências do dizer não teriam lugar, quer dizer, a imagem da
enunciação não se formaria.
A modalização autonímica, por um lado, é o ato enunciativo específico de comentar
seu próprio dizer e, de outro lado, a escolha das palavras, significado e significante, pelos
quais este ato se completa. O locutor-ouvinte, ao ouvir sua própria voz, constrói uma
imagem de sua enunciação, a qual, para se formar, inclui as imagens que jogam na
construção do sentido: a imagem do interlocutor a quem se endereça a enunciação, a
imagem dos discursos outros que compõem a sua enunciação, a imagem das palavras e a
imagem da nomeação das coisas.
O sentido se produz na não-coincidência e não na coincidência. É justamente na
tentativa de fazer Um, um imaginário, que o sentido se produz. É porque essa unidade não
existe que o sentido é produzido, para fazer unidade, sendo assim ele denuncia a
heterogeneidade. Na homogeneidade não haveria razão de construção do sentido. Como
afirma Authier-Revuz (1995, p.176, tradução nossa), “a heterogeneidade na enunciação não
é um limite, mas uma condição da significação”. É na medida em que o sujeito não
coincide a ele mesmo que ele pode falar consigo mesmo, na coincidência este ato seria
totalmente sem propósito.
Nas não-coincidências, o que está em jogo o tempo todo é a relação entre o
simbólico, o imaginário e o real. A voz no que ela tem de irrepresentável diz do real; no que
tem de consistente, de fazer um, diz do imaginário e no que tem de possibilidade de
repetição, diz do simbólico.O sentido não pré-existe a sua formulação, ele se produz na
relação entre dois locutores irredutíveis um ao outro e na materialidade não transparente
das palavras enunciadas. Segundo Authier-Revuz (1995, p.175, tradução nossa):
Visando o Um de um sentido transmitido, quer dizer, em definitivo,
partilhado no sentido de colocado em comum, através de ajustamentos ao
outro, simplesmente diferente, e requerendo de um que ele “se coloque no
lugar” do outro. A atividade de co-enunciação se inscreve de fato em um
afastamento, uma falta a comunicar (...) que não pode cobrir, afastamento
186
no qual se produz um sentido partilhado, no sentido de dividido, de não-
coincidente.
No caso do discurso interior, então, deveríamos ter dois interlocutores em ação para
que o sentido fosse produzido? Neste ponto é interessante retomar a teoria psicanalítica do
sujeito dividido. Como bem sabemos, dividido não quer dizer cortado ao meio ou
fragmentado, mas que o sujeito em si é a divisão que a linguagem proporciona ao tocar o
mundo. De fato isso quer dizer que o sujeito não se encontra nem somente na enunciação e
nem somente no enunciado, mas na impossibilidade da enunciação e do enunciado serem a
mesma coisa, fazerem Um. Os significantes que encontramos no enunciado, que
representam o sujeito que os pronunciou, não são o sujeito.
A enunciação se sustenta sobre um imaginário que visa unificar aquilo que escapa
no momento da fala, as palavras e o sujeito. Através dos significantes, estendemos o tempo
para além do momento vivido, mas na verdade, para o sujeito, nunca resta mais do que o
momento vivido na sua constante atualidade. Então, a enunciação que marca esse
momento, o presente, e joga com a linguagem para o passado ou futuro, não tem como ser
capturada, pois o seu acontecimento é também a sua transformação em enunciado, o seu
desaparecimento. O sujeito é então o efeito deste movimento da linguagem.
Como se trata de um processo complexo de construção do sentido, realizado
sempre em função de um outro que não é simétrico, quer dizer, que ocupa outro lugar.
Como não existe a transmissão de pensamento – forma na qual um sentido passaria
diretamente ao outro interlocutor sem a necessidade de um meio material que encarne uma
língua – precisamos utilizar uma língua para construir um sentido, uma língua que precisa
de uma materialidade para se concretizar, o que inevitavelmente a torna opaca, ao contrário
de uma pretensa transparência. Essa materialidade da língua, possibilidade do significante
poder ocupar o traço, o som, a imagem, quem a fornece é a voz. Justamente por causa desta
opacidade a língua é repleta de ambigüidades e desencontros, possibilidade sempre viva de
novos sentidos.
187
O locutor, ao ouvir sua voz, retorna sobre o seu dito e enuncia esse retorno que visa
à produção de um imaginário da enunciação. Na medida em que o locutor escuta a própria
voz faz uma imagem, uma representação de como a sua voz será recebida pela voz do
outro, como ela poderá interferir na voz do outro e antecipa a sua interferência na voz do
outro através do seu dizer. O conjunto de formas referentes à modalização autonímica são
como emergências sobre a forma de representações locais que dão ao enunciador um
processo permanente de auto-recepção, um dialogismo reflexivo.
A não-coincidência do dizer representada no dizer é uma denegação da não-
coincidência constitutiva inerente a todo dizer. Então, quando analisamos as não-
coincidências representadas, únicas acessíveis ao pesquisador, nas mensagens postadas no
forchat, estamos necessariamente em referência às não-coincidências constitutivas,
inacessíveis diretamente ao pesquisador. Com relação à análise da voz na escrita nós
estamos frente à mesma dificuldade, a voz enquanto constitutiva do dizer não é acessível à
análise direta, o que podemos analisar nas mensagens postadas no forchat são as
representações da voz, imagens da voz produzidas no dizer.
7.4.2 A Não-Coincidência Interlocutiva
A não-coincidência interlocutiva é entendida como constitutiva da enunciação por
evidenciar a impossibilidade de simetria entre dois sujeitos e se refere ao fato de o discurso
ser endereçado a um outro enunciador. Ela remete à concepção de o sentido ser construído
no processo discursivo, e não transmitido de um sujeito que o detém para outro. A não-
coincidência interlocutiva diz da impossibilidade de uma comunicação perfeita, ou como
poderíamos questionar, a transmissão de pensamentos, uma forma de comunicação
imediata, sem interferências.
Uma pessoa, ao se relacionar com os outros, o faz de modo diferente a cada
interação dialógica de que participa. Podemos tirar exemplos bem simples de nossa vida
188
cotidiana. Quando uma criança fala somente com a mãe, ela fala de um jeito, quando fala
somente com o pai ela fala de outro, mas quando fala com os dois será de outra forma.
Quando ela fala com alguém desconhecido será de outra forma e quando ela fala com uma
amiga será de outra forma ainda. Nós mesmos, se prestarmos atenção na nossa fala,
veremos que ela se diferencia de acordo com as pessoas com quem falamos, os lugares de
onde falamos (posição social, familiar etc.), o meio pelo qual falamos (telefone,TV, rádio,
jornal, etc). Esta é uma forma simples de prestarmos atenção ao fato de que o nosso
discurso é composto, pelo menos em parte, da interação com o outro, que depende deste
outro para se constituir.
A não-coincidência interlocutiva, enquanto representação do dizer, reflete as
interações nas quais o que está em jogo são as representações que o enunciador faz de si e
do interlocutor no próprio ato enunciativo. Porém como diz Authier-Revuz (1995, p.174,
tradução nossa) a representação que o enunciador faz de seu interlocutor é “representação
das representações dele e por conseqüência antecipação do que ele supõe que será o calculo
interpretativo do outro”.
A função na enunciação das formas de auto-representação do dizer, fazendo jogar a
relação de um enunciador a outro-interlocutor, são representações do fato de que o dizer é
endereçado (ao outro e a si próprio) e, por isso mesmo, tocado de uma não-coincidência, de
um afastamento inerente. É assim que pode jogar no enunciador a imagem que ele faz de
seu interlocutor e a representação que ele lhe empresta. Trata-se de aproximações e
divergências, marcadas no jogo de palavras como ambigüidade e/ou adequação do outro ao
qual nos aproximamos. O enunciador, ao representar a sua enunciação como atravessada
por aquele a quem ele se endereça, reflete na e pela materialidade de suas palavras a sua
não-coincidência com o outro. Podemos retomar aqui o fato de que o sentido não pré-existe
a sua formulação, mas ele se produz na materialidade, não transparente, das palavras
enunciadas entre dois interlocutores irredutíveis um ao outro.
189
De fato, o locutor e o ouvinte entram em partes iguais na enunciação. Como já
vimos anteriormente, todo emissor é receptor e todo receptor é emissor.
Conforme Authier-
Revuz (1995, p.164, tradução nossa):
Dizer que o receptor é, no mesmo momento, emissor, é além da
concepção redutora do diálogo como alternância da voz (...) tomar a obra
em todo o dizer, tanto escrito quanto oral, do dialogismo como
interferência de vozes, o receptor atravessando, afetando, condicionando
mesmo a fala do emissor (...)
No corpus analisado encontramos alguns exemplos de representação da não-
coincidência interlocutiva, assim como ela foi postulada por Authier-Revuz. Dentre as
quatro formas de não-coincidências do dizer que encontramos no corpus analisado ela é,
juntamente com a não-coincidência entre as palavras e as coisas, a menos freqüente.
Supomos, antes de realizar a análise, que ela seria uma das mais freqüentes devido ao fato
de o corpus analisado ser o resultado de um diálogo de vários participantes discutindo
livremente a teoria de um determinado autor. Nesse sentido poder-se-ia se supor que a
representação da não-coincidência entre um interlocutor e outro ficaria mais evidente, mas
no corpus analisado não foi o caso. Mesmo assim destacamos alguns exemplos que
refletem essa forma de representar o dizer, visando constituir um conjunto de afloramentos
locais da voz de que o locutor-ouvinte faz uso.
Nas formulações que se seguem (grifo nosso) podemos visualizar exemplos de
representações de não-coincidências interlocutivas nas quais o locutor busca prevenir a
recusa de co-enunciação de uma maneira de dizer. Uma das formas de o locutor prevenir a
recusa pelo outro de uma de suas palavras é a de instaurar, explicitamente, para esta
palavra, uma enunciação conjunta “de uma só voz”, tipo como: nós dizemos, aceitamos,
chamamos, etc.
190
71) Usuário: Data: 09/11/2003 Hora: 21:17:42 Mensagem:
Concordo com você, G., principalmente quando sabemos que Bakhtin adora a
"problematização renovada", como referencia na p.142.
72) Usuário: Data: 09/11/2003 Hora: 17:34:25 Mensagem:
Pessoal, por motivos de força maior (vcs já devem ter lido isso antes em algum
lugar...)o poderei participar hj. Mas amanhã a tarde eu lerei com carinho as demais
contribuições! C., valeu pelas respostas, acho que tenho muito q pensar! Abraços a todos
e boa discussão! M.
Nas formulações (71) e (72), o locutor busca produzir uma instrução de boa
interpretação ao mesmo tempo em que puxa o interlocutor para se associar ao sentido que
ele propõe “quando sabemos”, “vocês já devem ter lido”. A enunciação é duplicada por
uma instrução interpretativa endereçada ao outro, para anular, reduzir o afastamento
suscetível de se produzir na transmissão entre o que o enunciador quer dizer e o que o
interlocutor pode compreender. Uma outra forma da não-coincidência interlocutiva do dizer
que joga com o elemento pessoal além do “nós”, que pretende uma enunciação conjunta, é
a utilização da segunda pessoa (você, tu, vocês), demarcando o afastamento inerente entre
um interlocutor e outro, como podemos verificar nas seguintes formulações:
73) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:31:14 Mensagem:
P. ! Não entendi muito o que tu queres dizer com " impor a análise e a produção
dialógica de sentido"? Podes explicar melhor?
74) Usuário: Data: 19/09/2003 Hora: 11:37:28 Mensagem:
Eu acho que é mais ou menos por ai, E., como tu disseste, o significado do signo é
consenso em uma comunidade (se o signo fosse só isso, seria sempre reprodução do
mesmo. É por isso que quando tu dizes " casa", eu sei do que estás falando. Só que a
palavra " casa" em contexto diferentes, extrapola um certo núcleo duro (significado ou
significação)e, por isso tu dizes que "o sentido não cabe neste contexto" - eu diria
que ele não cabe nesta significação. Porque é exatamente o contexto que faz mudar.
191
75) Usuário: Data: 09/11/2003 Hora: 20:51:51 Mensagem:
Vocês entenderam que era "monologando", não é, pessoal?
Os exemplos destacados em (73), (74) e (75) de representação da não-coincidência
interlocutiva mostram que a imagem que o locutor faz do seu dizer é afetada pela imagem
que o locutor faz do receptor de sua mensagem, aquele a quem ele se endereça. Como
vimos anteriormente, a não-coincidência interlocutiva tem um lado constitutivo e
irrepresentável, neste sentido o que aparece como não-coincidência interlocutiva mostrada
é a denegação desta não-coincidência.
A não-coincidência interlocutiva nos mostra que uma voz quando endereçada a
outra voz, que obviamente não lhe é coincidente, constrói através do retorno sobre o dizer
uma imagem unificadora do dizer que se realiza, ao mesmo tempo em que marca a
materialidade da língua onde as duas vozes (emissor e receptor) devem articular os
significantes e assim constituir sentidos unificadores a partir da não-coincidência do dizer
inevitável entre dois interlocutores.
7.4.3 A Não-Coincidência do Discurso Consigo Mesmo
A não-coincidência do discurso consigo mesmo é entendida como constitutiva por
referir que o discurso é um produto no meio de outros discursos. Authier-Revuz busca
referência no dialogismo bakhtiniano, o qual postula que um discurso se constitui sempre a
partir de outros discursos, não existindo a possibilidade de um discurso que surgisse do
nada. Conforme Authier-Revuz (1995, p.265, tradução nossa), “em Bakhtin a enunciação é
descrita como um processo não terminável pelo enunciador da apropriação das palavras que
restam, carregadas de outros discursos no ‘meio’ nos quais ele não pode evitar de as tomar,
semi-estrangeiras”. Nesta forma de não-coincidência do dizer, Authier-Revuz retoma
também o conceito de interdiscurso de Pêcheux (1995), tendo em vista que isso fala, em
outro lugar, antes e independentemente, o que nos coloca diante dodito constitutivo de
192
qualquer discurso. Também fica evidenciada aqui a dificuldade, ou mesmo, impossibilidade
de estabelecer fronteiras bem definidas entre um discurso e outro.
A não-coincidência do discurso consigo mesmo difere do que vimos anteriormente
com relação ao discurso relatado sobre a presença de outros discursos na constituição do
Um da enunciação. Aqui o que está em jogo é a representação que o enunciador faz do
discurso outro através das formas meta-enunciativas. Segundo escreve Authier-Revuz
(1995, p.462, tradução nossa, grifo da autora) estes
(...) encontros convocados sobre modos diversos de criticas ou de acordo
se manifestam, não somente no que o discurso DITO de outros discursos,
através das formas explicitas do discurso relatado (direto mencionando as
palavras dos outros ou indireto reformulando o conteúdo do dizer outro),
mas nas palavras mesmas utilizadas
pelo discurso que se representa como
dizendo (nomeando) com as palavras de outros discursos, desenhando
assim nele mesmo, no plano da nominação, uma geografia de pontos
sensíveis, de diferenciação, risco na construção teórica e marcas de
posicionamento do discurso.
Na representação da não-coincidência do discurso consigo mesmo, no ato de
enunciação, o enunciador representa nas palavras que ele diz, no discurso que ele mantém,
o jogo de um discurso outro. Conforme Authier-Revuz (1995, p.235, tradução nossa) a não-
coincidência do discurso consigo mesmo “manifesta o encontro pelo enunciador, nas
palavras de seu discurso, de palavras vindas de outro lugar”. Na não-coincidência
interlocutiva nós encontramos a representação do outro interlocutor; na não-coincidência do
discurso com ele mesmo encontramos a representação do outro discurso no ato de
enunciação realizado pelo locutor-ouvinte. O outro da não-coincidência do discurso com
ele mesmo é suscetível de tomar todos os valores no campo definido negativamente como
aquele dos discursos distintos do discurso que se faz no eu-aqui-agora.
No corpus analisado a representação da não-coincidência do discurso consigo
mesmo é bem mais freqüente do que a representação da não-coincidência entre
interlocutores. Podemos levantar a hipótese de que essa maior ocorrência se deve ao fato de
193
o corpus analisado se tratar de um discurso pedagógico no qual uma teoria, um discurso
outro, além daquele que se faz no momento da enunciação, é debatido, questionado. O
discurso pedagógico se caracteriza, conforme Mutti (2000) por ser um discurso sobre outro
discurso e a representação que o locutor-ouvinte faz da não-coincidência do discurso
consigo mesmo reflete que a aprendizagem passa por esse processo de incorporação das
palavras dos outros no ato enunciativo.
Seguem alguns exemplos retirados do forchat nos quais a caracterização da não-
coincidência passa por determinar que as palavras utilizadas vêm de um outro discurso
proferido por uma voz singular que pode ser referida, nomeada, enfim que é possível na
enunciação realizar uma imagem deste outro discurso. Desta forma ocorre o reenvio de uma
maneira de dizer a um nome próprio, a uma imagem do enunciador desta maneira de dizer.
Essa é uma característica do corpus analisado, bem provavelmente devido ao fato de o tema
dos diálogos analisados ser a teoria de um autor determinado, à qual, tendencialmente, os
participantes desta disciplina realizada no forchat se filiam.
Vejamos as representações de não-coincidência do discurso consigo mesmo
retiradas das mensagens postadas no forchat (grifo nosso):
76) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 20:52:09 Mensagem:
Sobre a questão da G., penso que entramos novamente na metodologia. Todorov diz
que Bakhtin anuncia a " crítica dialógica" e que isto tem repercussões na metodologia
das ciências humanas.
77) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:28:52 Mensagem:
Ou seja, onde está o autor em Bakhtin? Volto a afirmar, e acho que Todorov também diz
isso, que no Marxismo, a grande preocupação do Bakhtin era com o social e, neste
sentido, não havia lugar para o " autor individual"....
194
78) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 21:02:35 Mensagem:
Nâo exatamente, mas ao que o Todorov chama de diferentes bakhtins, que se
transformam, enquanto ele vai pensando a questão do autor.... o Bakhtin do Autor herói
tinha um conceito de autor, mas o Bakhtin do Marxismo, tem outro...
79) Usuário: Data: 09/11/2003 Hora: 21:54:07 Mensagem:
Acho que dá para pensar um ponto da complexidade de se pensar que o meu discurso é
o discurso do outro. ( Numa linguagem mais Lacaniana seria Outro, com o maiúsculo,
demarcando aí o cruzamento da cultura...)
80) Usuário: Data: 09/11/2003 Hora: 21:38:42 Mensagem:
Neste ponto é que me encontro falando comigo mesmo, e ao falar comigo mesmo já diz
do quanto um "pensamento não existe fora de uma orientação ou de uma inscrição
social, usando uma linguagem mais próxima a Bakhtin. Não sei se viajei demais.....
81) Usuário: Data: 19/09/2003 Hora: 11:50:57 Mensagem:
Parece-me que neste livro o Bakhtin propôe que se crie uma psicologia social
(objetiva, como ele diz), que não se fundamente na fisiologia nem na biologia, mas na
sociologia. O que tu achas?
82) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 21:42:48 Mensagem:
O exemplo mais comum é a ironia: dizer discursivamente uma coisa, mas
entonativamente outra completamente diferente. Ele chama isso de fenômeno
extralingüístico. Credo, ficou cheia de ecos, essa intervenção! Mas acho que não podeia
ser de outro modo, a não ser que encompridasse...
Nas formulações acima encontramos o discurso que se realiza em se filiando
fortemente a outro discurso “Todorov diz que”, “Todorov também diz”,
o que Todorov
chama”,
Numa linguagem mais Lacaniana”, “usando uma linguagem mais próxima a
Bakhtin”, “ele chama isso”. O dizer ao realizar este movimento de retorno sobre o dizer,
retorno forçado a partir de um dizer que vindo de outro discurso intervém: "crítica
dialógica"; "autor individual"; “diferentes bakhtins”;
Outro, com o maiúsculo”; “fenômeno
extralingüístico”. Esta intervenção do discurso outro no discurso é marcada pela
195
modalização autonímica na qual o locutor, ao retornar sobre o seu dizer, busca construir
uma imagem homogênea do dizer.
Nas mensagens se desenham múltiplas figuras de apoio tomadas pelo discurso no
seu exterior que podem refletir marcas de solidariedade teórica como em (79), de aliança
(80), de afinidade (82), testemunho de pertencimento (77), reconhecimento (81), inscrição
em uma filiação (76).
Em todas estas formulações existe uma forte referência à teoria
estudada no forchat, condizente ao discurso acadêmico-pedagógico em questão.
Mas
também é possível destacar outras formas de representação da não-coincidência do discurso
consigo mesmo, afloramentos locais do não-um não ligados diretamente ao discurso
acadêmico-pedagógico, como no caso dos exemplos anteriores, mas que também
denunciam esse retorno que a voz proporciona, compondo a imagem do discurso do
locutor-ouvinte. Por exemplo (grifo nosso) :
83) Usuário: Data: 15/10/2003 Hora: 21:14:29 Mensagem:
Bem, pessoal, meus dedos já começaram a pesar no teclado, e isso significa que minhas
idéias estão querendo descansar. Sou bem melhor de madrugada do que de noitinha.
Segundo o meu acupunturista, isso se deve à minha natureza "kapha", de acordo
com a medicina ayurvédica, que prefere o início do dia e se desenergiza ao final do
período. Mas eu só fiquei sabendo desse diagnóstico depois de aceitar esse horário, e
agora a minha natureza "kapha" vai ter de agüentar pelo menos duas horas de
participação efetiva.
84) Usuário: Data: 15/10/2003 Hora: 19:59:23 Mensagem:
Ma., hoje eu estava revendo uns filmes antigos do Elvis, e teu ícone me lembrou muito o
visual do "rei" em Carrossel de Emoções. É como se diz por aí: Elvis is alive.
85) Usuário: Data: 15/10/2003 Hora: 20:09:23 Mensagem:
Diacrônico: através do tempo: sincrônico: no mesmo tempo. Nossa "aula síncrona"
também vem daí, do conceito de tempo, que, em grego, quer dizer "tempo". Nossa, por
um momento me senti o próprio pai da família grega de "Casamento Grego". Vocês já
viram esse filme? Como dizem as minhas filhas, é massa!
196
Nas mensagens (83), (84) e (85) fica evidente que não se trata do discurso
acadêmico tal qual apresentamos nos exemplos anteriores, podendo mais figurar como uma
“conversa de corredores”. O que é interessante ressaltar é que a representação da imagem
do discurso outro aqui não ocorre tanto no nível de uma filiação ao outro discurso, mas em
uma formulação que pode adquirir um caráter até mesmo cômico. Ao invés do testemunho
de uma filiação encontramos aqui uma espécie de deslize, de livre associação a outros
discursos, comum em conversas cotidianas. Este tipo de “conversa”, embora possa ser
classificada como extracurricular, é muito importante na composição do que podemos
chamar de comunidade de aprendizagem, pois reflete a interação entre os discursos e a
relação de proximidade entre os participantes do forchat.
7.4.4 A Não-Coincidência Entre as Palavras e as Coisas
A não-coincidência entre as palavras e as coisas refere que a coisa que a linguagem
representa e a própria linguagem são unidades diferentes. A coisa “cadeira” e a palavra
“cadeira” são elementos não-coincidentes. A representação da não-coincidência entre as
palavras e as coisas diz do afastamento encontrado na nominação. Um discurso se
representa como marcado de não-um enquanto ele fala de alguma coisa, que por definição
não é ele próprio. O que está em causa nesta forma da não-coincidência é a nominação das
coisas pelas palavras. Para Authier-Revuz (1995, p.507, tradução nossa), “o que está em
jogo, no coração da operação de nominação associando palavras e coisas, é o encontro da
não-coincidência fundamental de duas ordens heterogêneas: aquela da ngua e aquela do
real”. O que o locutor encontra no seu caminho não são outros discursos ou outro
interlocutor, como no caso das não-coincidências apresentadas anteriormente, ele encontra
o real da língua, a materialidade da forma da língua se interpõe.
O que está em jogo na não-coincidência das palavras com as coisas é de um lado a
língua em sua materialidade de sistema
66
e de outro a língua como não dependente da
66 Conforme Authier-Revuz (1995, p.511, tradução nossa) : “O ato fundador da lingüística, que cumpre
Saussure, é de arrancar o signo da dependência frente a frente do referente [ . . .] o signo, que ‘não une uma
197
ordem das coisas. Como refere Authier-Revuz (1995, p.510, tradução nossa), “entrando ao
mesmo tempo no mundo e na linguagem (...) ou no mundo pela linguagem (...) o sujeito
falante experimenta sobre o modo da evidência, o caráter absoluto, não contingente da
ligação que une as coisas e as palavras – seu nome – o que as designa”. A representação da
não-coincidência entre as palavras e as coisas constitui o quadro de estudo das formas
meta-enunciativas de representação por um enunciador do ato de nominação.
Na abordagem da não-coincidência entre as palavras e as coisas, assim como na
não-coincidência das palavras com elas mesmas, Authier-Revuz retoma o conceito de real
da língua, Alíngua, em francês “Lalangue”, neologismo criado por Lacan (1985) e
desenvolvido por Jean Claude Milner (1987) no livro O amor da língua. De acordo com
Milner (1987, p.12), “esta língua, que dizemos usualmente materna, podemos sempre
abordá-la por um lado que a impeça de fazer número com outras línguas, de juntar-se a
elas, de ser a elas comparada”. A língua materna carrega o próprio da língua, o real da
língua. Conforme o autor:
A alíngua é, pois, uma língua entre outras, enquanto que, ao se colocar,
ela impede por incomensurabilidade a construção de uma classe de
línguas que a inclui; sua figuração mais direta é a língua materna, da qual
basta um pouco de observação para admitir que em qualquer hipótese é
preciso uma torção bem forte para alinhá-la no lote comum. (...) Alíngua
é, em toda língua, o registro que a consagra ao equívoco. (MILNER,
1987, p.15)
O que alíngua nos aponta é a dimensão da heterogeneidade, do não-idêntico; por
este rio navega a homofonia, homossemia, homografia, enfim o equívoco, o ato falho, o
chiste e a pluralidade de sentidos, justamente, o que uma língua tem para ser uma língua
dentre outras línguas. Mas ela é, também, a possibilidade de que o real, enquanto o que não
cessa de não se escrever, possa fazer parte da língua. Se o significante toca o real, isso
acontece pela insistência da alíngua. O real da estrutura formal da língua é definido como
coisa e um nome’ mas um significado a um significante, se define exclusivamente na sua relação aos outros
signos”. Sendo esta a relação que possibilita a língua como sistema de diferenças.
198
não sendo redutível a um código de sinais. Não é a língua simplesmente que é questão, mas
seu uso, nos atos de enunciação como uma espécie de contato entre o mundo real e a
língua, não menos real. A língua, ao mesmo tempo independente das coisas e exterior ao
sujeito, impõe-se no ato enunciativo de nominação. Conforme Authier-Revuz (1995, p.522,
tradução nossa):
As palavras não são nomes-espelhos de coisas pré-estruturadas, a
nominação participa de uma construção da realidade, de uma
representação de experiências passadas ao filtro de classes conceituais
definidas pelas palavras: toda nominação (tomando o termo no sentido
mais geral, que não o restringe ao domínio do substantivo) passa por
colocar em relação as propriedades que o enunciador reconhece de x e as
propriedades contidas na definição da palavra X, desembocando no
julgamento de pertencimento/não pertencimento de x à classe de X.
A não-coincidência entre as palavras e as coisas é diferente das outras não-
coincidências nas quais temos a denegação do outro (discurso, interlocutor, sentido), nela
nós temos o encontro de duas ordens heterogêneas: a língua e o real, ou seja, trata-se da
nominação das coisas pelas palavras. No corpus analisado, a não-coincidência entre as
palavras e as coisas é, das quatro não-coincidências postuladas por Authier-Revuz, a menos
presente. Talvez isso se deva ao fato de se tratar de um discurso pedagógico no qual os
participantes do semirio virtual debatiam uma teoria que eles procuravam aprender.
Supomos que o mais importante era referir discursos que pudessem sustentar a teoria que os
participantes estavam estudando e não a tentativa de nomear de alguma outra forma esta
teoria que era o objeto de estudo, ou talvez de constituir outro objeto de estudo. Dentro dos
moldes acadêmicos esta não-coincidência, como já apontou Authier-Revuz (1995), não é de
fato muito comum. É interessante sublinhar que, talvez por isso, os poucos exemplos
encontrados não estão ligados a desenvolvimentos teóricos, mas as relações pessoais entre
os participantes. Vejamos os exemplos nas mensagens seguintes (grifo nosso):
199
86) Usuário: Data: 10/12/2003 Hora: 20:38:55 Mensagem:
Desculpem ir falando assim desse jeito intempestivo, meninas, ainda mais de um assunto
que não tem correlação direta com o tema de hoje, mas precisei desabafar. Meu "caminho
intelectual" estava bloqueado por um "incômodo afetivo", por assim dizer.
87) Usuário: Data: 15/10/2003 Hora: 20:34:15 Mensagem:
Ei, Ma., estamos, por assim dizer "enfim sós"?
Tanto em (86) como em (87) nós encontramos uma dificuldade do locutor de poder
homogeneizar a palavra com a coisa que ele queria nomear. A partir desta não-coincidência
entre as palavras e as coisas ele constrói uma imagem do dizer relativa à nominação. A não-
coincidência entre as palavras e as coisas, talvez, teria maior incidência se os participantes
do forchat tivessem como objetivo, por exemplo, adequar a teoria de Bakhtin a alguns
experimentos vividos em sala de aula ou a alguma outra teoria como é o caso do exemplo
na mensagem a seguir (grifo nosso).
88) Usuário: Data: 01/10/2003 Hora: 19:38:46 Mensagem:
Não tenho ainda um projeto formatado, estou tateando. Além dos textos de Bakhtin (que
pretendo começar a 'dissecar' aqui com vcs, tenho passado os olhos por algo de
Maturana e outros autores que me parecem complementar as possibilidades de uma
investigação num contexto que não é escolar, propriamente dito. Como é o contexto
sobre o qual teu olhar está focando?
Em (88) quando o locutor-ouvinte diz “contexto que não é escolar, propriamente
dito”, ele tenta nomear algo que lhe escapa. Ele não consegue fazer coincidir a palavra com
a coisa a nomear e por isso ele compõe uma imagem de não-coicidência do dizer entre as
palavras e as coisas. A não-coincidência entre as palavras e as coisas é diferente das outras
não-coincidências, na não-coincidência entre interlocutores o irrepresentável é a voz do
outro, do interlocutor; na não-coincidência do discurso consigo mesmo, o irrepresentável é
a voz animadora do outro discurso, na não-coincidência das palavras consigo mesma o
irrepresentável é a voz que pela sua opacidade possibilita o outro sentido; na não-
coincidência entre as palavras e as coisas o irrepresentável é a voz do próprio locutor que
200
ao nomear precisa recalcar a sua voz. Talvez essa não-coincidência seja a mais próxima da
divisão do sujeito, efeito da linguagem, justamente pela impossibilidade de nomear a si
próprio.
7.4.5 A Não-Coincidência das Palavras a Elas Mesmas
A não-coincidência das palavras a elas mesmas, enquanto constitutiva, diz da
possibilidade da língua, na sua materialidade lingüística, estar sujeita a equívocos. A
representação no dizer da não-coincidência das palavras a elas mesmas se refere ao excesso
de sentido a que toda palavra está sujeita, como testemunham as glosas meta-enunciativas,
na representação em que o receptor comentador de seu próprio dizer faz na sua enunciação
do que é para ele a gama de possibilidades a que uma língua está sujeita, seja pela
polissemia, homonímia, equívoco. O estudo que versa sobre o representado do jogo do
sentido nas palavras é colocado em causa pelo desdobramento reflexivo da modalização
autonímica. Como diz Authier-Revuz (1995, p.717, tradução nossa):
A enunciação não aparece ali como um ‘querer dizer’ claramente unívoco
se realizando impecavelmente em um
sentido que não afetaria ‘seus
outros’ do jogo polissêmico-homonímico, puramente e simplesmente
‘ausente’ da enunciação. É o encontro no seu dizer de outros sentidos, de
outras palavras, que não ‘dormindo’, vêm ‘perturbando’ o Um que
representa o enunciador através de modos diversos, que seja de rejeito ou
de acolhimento. E esta presença no dizer de um real que excede a
sucessividade linear das unidades da língua associando um significante a
um significado, e nas quais as glosas testemunham, não o caráter acidental
das glosas que lhe conferem, mas aquele, permanente, afetando
constitutivamente o dizer, de uma não-coincidência a si, inscrita na não-
coincidência da Alíngua a língua.
A não-coincidência das palavras a elas mesmas diz do fato da enunciação ser
atravessada por outros sentidos. A língua interpondo sua forma, sua materialidade enquanto
um sistema de diferenças. Esta representação da não-coincidência do dizer afeta não
201
somente a nominação, no sentido da falta de uma palavra que pudesse dizer completamente
uma coisa, como no caso da não-coincidência entre as palavras e as coisas, mas enquanto o
equívoco que lhe é constituinte, possibilidade constante do jogo de sentidos. Ela segue aqui
o mesmo caminho das outras não-coincidências representadas. Imagens reflexivas na
economia enunciativa. Sendo uma enunciação concebida como fundamental, não ocasional
nem intencional, um jogo permanente de palavras, respondendo ao imaginário do controle
intencional do sentido pelos enunciadores. Para Authier-Revuz (1995, p.720, tradução
nossa), esta não-coincidência se refere não somente à intraduzibilidade de uma língua a
outra, ou aos chistes, ao jogo intencional das palavras, mas ao “deslize constante ‘do
significado sobre o significante’, pois é em toda palavra que seu espelhamento interno
coloca o estritamente singular”. Esse deslize constante é o que faz a não-coincidência das
palavras a elas próprias ser a mais próxima do trabalho psicanalítico
67
de escuta das
palavras do outro enquanto elas dizem sempre um sentido a mais e, o que seria similar, um
a menos.
Esta não-coincidência do dizer sustenta que não existe uma unidade na relação
significante-significado, enquanto fixado por uma visada intencional de univocidade. Como
diz Authier-Revuz (1995, p.728, tradução nossa): “O enunciador não tem acesso ao
embaixo de suas palavras (...) com relação ao qual ele não saberia, do seu dizer se fazendo
nele e dele encontrar alguma posição de exterioridade real”. Neste momento o imaginário é
convocado para fazer a figura de uma unidade, protegendo o enunciador e suas palavras da
vertigem de um solo que se mexe, que não é fixo. A representação da não-coincidência das
palavras com elas mesmas é uma operação de redução da plurivocidade potencial das
unidades da língua.
A figura pela qual o enunciador, reflexivamente, dobra o dizer de uma unidade, de
uma explicitação em uma só voz do sentido desta unidade no seu dizer, constitui, em si,
uma ruptura do seu sentido pelo próprio encontro com a materialidade da língua na sua
67 Authier-Revuz (1995) refere que tanto em Barthes como em Lacan encontramos a afirmação do não-um
do sentido na enunciação, no qual a realização reflexiva das palavras mesmas que o enunciam é crucialmente
posto como uma condição para que ela não reste ‘letra morta’. O equívoco é o espírito da língua.
202
opacidade e no caso da autonímia, a evidência de uma impossibilidade de sinonímia. O
enunciador, ao perceber a diversidade de sentidos a que uma determinada palavra está
sujeita busca proteger o sentido da sua enunciação, fixando, imobilizando o movimento
potencial do sentido. De fato, se trata da denegação da pluralidade de sentidos inerente a
cada palavra, o que revela um modo de dizer dividido, no qual o locutor-ouvinte modaliza o
dizer, dizendo e não dizendo ao mesmo tempo. O sentido se inscreve então na instabilidade,
no próprio equívoco do dizer, denunciando assim a plurivocidade que corre dentro de cada
palavra e ainda o encontro bem demarcado na modalização autonímica da voz do locutor-
ouvinte com estas outras vozes representadas. Então temos a imagem de um dizer
recortado, perturbado, reforçado, por outras vozes, na qual joga de maneira imprescindível
a voz do próprio enunciador.
No corpus analisado a representação da não-coincidência das palavras com elas
próprias foi significativamente a que mais apareceu no diálogo entre os participantes do
forchat. O elevado número desta não-coincidência do dizer em comparação com as outras
três postuladas por Authier-Revuz (1995) nos chamou a atenção e procuramos então
pesquisar o porque desta maior incidência da não-coincidência das palavras com elas
próprias no fórum virtual que analisamos. Chegamos a conclusão que a especificidade do
corpus analisado, devido ao fato de ser uma combinação entre a língua oral e a língua
escrita, provavelmente contribuiu para a maior freqüência da representação da não-
coincidência das palavras com elas próprias. Segundo Authier-Revuz (1995, p.787,
tradução nossa, grifo da autora):
Se toda forma de modalização autonímica pode ser considerada como
restabelecida de uma auto-recepção integrada à enunciação, convém notar
que, relativamente aos parâmetros de não-um colocados em jogo nas
glosas, é no quadro da representação do não-um do sentido, que a
dimensão da auto-recepção recebe mais claramente a figura de uma
recepção como tempo-segundo
, de escuta-leitura do X emitido antes -
tempo segundo no qual se descobre um outro sentido que aquele que
estava intencionalmente previsto.
203
O caráter de escrita possibilita ao locutor-ouvinte uma possibilidade mais
demarcada para ouvir sua própria voz, como no ato de leitura, ao mesmo tempo que este
locutor-ouvinte dispõe de um tempo outro para correção de seu dizer na escrita. Para
Authier-Revuz (1995, p.788, tradução nossa):
Fazendo aparecer uma afinidade entre a não-coincidência do ‘excesso de
sentido’ e a materialização do desdobramento meta-enunciativo em
disjunção sobre a cadeia de dois tempos sucessivos da enunciação, uma
emissão, depois uma recepção, na qual o enunciador-receptor vai além do
que havia previsto o enunciador-emissor, acrescentamos esta constatação:
no conjunto de formas recursivas da modalização autonímica, onde se
observam múltiplas combinações de tipos de não-coincidências, parece
que, de maneira muito especifica, o campo das não-coincidências das
palavras a elas mesmas, atravessadas por um outro sentido ou uma outra
palavra, se empresta a vontade às formas de recursividade ‘homogêneas’
internas ao campo – como se uma primeira colocação em jogo do não-um
do sentido disporia o enunciador a encontrar rapidamente os sentidos-a-
mais suscetíveis de surgir, imediatamente, nas palavras mesmas, dizendo
o não-um.
Vejamos alguns exemplos encontrados que ilustram o aparecimento da
representação da não-coincidência das palavras com elas próprias no corpus analisado. A
representação desta não-coincidência do dizer nas mensagens analisadas revela a
necessidade que o locutor-ouvinte tem de ouvir sua voz para construir o sentido. Somos
levados a pensar que esta questão se torna mais evidente nas formas de interlocução a
distância que misturam a língua escrita e a língua oral devido, justamente, a questão
temporal possibilitada pelo afastamento do sujeito da enunciação do sujeito do enunciado.
Vejamos os exemplos nas mensagens seguintes (grifo nosso):
89) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 20:25:55 Mensagem:
Na página 114, ele coloca que "a expressão exterior, prolonga e esclarece a orientação
tomada pelo discurso interior e as entoações que ele contém". Será que Bak não está
falando aí de uma espécie superficialidade (enquanto superfície) em que desliza a
existência humana,ou ainda, em que se consolida o deslize, o movimento humano pela
linguagem.
204
O locutor em (89) procura conter o excesso de sentido que a palavra
“superficialidade” contém, ele ao escutar sua voz, retoma o seu dizer visando proteger esse
dizer, proteger a recepção de suas palavras. Ele diz X enquanto Y. Ao realizar este
movimento ele mostra que X pode ser Y, Z, H, etc. e inclusive X. A não-coincidência entre
as palavras e as coisas é a não-coincidência que diz respeito ao excesso de sentido presente
em qualquer palavra. É a própria propriedade da língua enquanto uma língua o que está em
questão, onde cada palavra pode carregar sempre outros sentidos, o que joga com a
ambigüidade e o equívoco que já discutimos quando abordamos o texto de Benveniste
(1995) A comunicação animal e a linguagem humana.
90) Usuário: Data: 22/10/2003 Hora: 20:06:13 Mensagem:
Bem, no contexto marxista, a noção de propriedade é totalmente diferente do que
entendemos hoje, no mundo capitalista, e creio que esse conceito "superestrutural" (já
que a propriedade maior é do Estado) contaminou o conceito de propriedade
individual (ou infra-estrutural).
91) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 20:52:56 Mensagem:
Quando me "desespero" na leitura, recorro freqüentemente o outros livros. Assim, cheguei
a Diálogos com Bakhtin, e nessa hora, me sinto gratificada, pois percebo que mesmo
aqueles que aprofundaram seus estudos garantem que o importante é perceber a lógica
de seu pensamento, com as infinitas possibilidades que ele nos abre. Aliás, um dos
artigos é de uma pedagoga, que diz que, dependendo do mirante em que nos
colocarmos, teremos cada um, uma visão diferente. (aliás, a C. já me havia dito isso
com outras palavras) Assim, os da lingüística terão uma visão distinta dos demais, e
nunca os que são "de fora" poderão ter um olhar semelhante...
Em (90) o locutor procura fixar o sentido de “propriedade individual” através de um
retorno sobre o dizer no qual ele troca este conceito por “infra-estrutural” recorrendo ao
quadro teórico marxista, ou seja, para os dois conjuntos de palavras diferentes existe um
sentido, essa é a imagem que o locutor procura passar ao modalizar o seu dizer. Seria como
dizer X pode ser Y ou Z. Em (91) o que é mostrado com a não-coincidência do dizer é
também que o mesmo sentido pode ser expresso através de palavras diferentes. O que está
205
em questão aqui é o fato de que a leitura e a escrita são duas coisas diferentes, ou seja, que
o sentido que lemos nas palavras escritas depende da voz própria de cada leitor. Se o
sentido depende da articulação da voz, que em si é irrepresentável, inevitavelmente,
estamos jogados na possibilidade do equívoco. Isso é o que nos mostra esta não-
coincidência das palavras a elas mesmas. A palavra X não coincide com a palavra Y, nem
mesmo a tautologia resolve esta questão como podemos verificar na frase: “O pai é o pai”.
92) Usuário: Data: 15/10/2003 Hora: 19:58:25 Mensagem:
Olá M., quando vira disciplina fica mais formal mesmo,mas mais animado e produtivo
com as contribuições dos colegas:-) (...) Quis dizer com mais gente, mais idéias
efervecendo!!
Em (92) o locutor diz X, e ao escutar a sua voz, retoma e diz Y. Segundo sua leitura
o sentido de suas palavras ficou aquém ou além do que gostaria de ter dito. A representação
de uma não-coincidência do dizer, neste caso, é efetivamente uma tentativa de
homogeneizar, de fixar, um sentido. Desta forma o que acaba ficando evidente é que o
sentido não está colado às palavras.
93) Usuário: Data: 19/09/2003 Hora: 11:57:25 Mensagem:
É verdade! quando digo "todos" me refiro ao meu contexto social.
Em (93) o locutor-ouvinte retoma o “todos” para fixar o sentido em “meu contexto
social”. É o mesmo que dizer X no sentido de Y. Desta forma ele procura reflexivamente
melhorar a recepção de sua mensagem, explicando o sentido que ele deseja ligar à palavra
“todos”.
94) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 22:06:16 Mensagem:
É isso C. Acho que a palavra "sentido" realmente não cabe nesta colocação. O
conceito ou a significação talvez.
Em (94) o locutor-ouvinte nega o dito e o retoma. X não no sentido de Y, talvez no
sentido de Z ou K. O que é interessante sublinhar aqui é a pluralidade de sentidos a que
206
cada palavra está suscetível. Isso de fato é a vida na língua, é o “espírito da língua”
conforme Authier-Revuz (1995, p.773). Este “espírito da língua” nesta tese nós vinculamos
à voz, pois é ela quem faz a leitura dos significantes e é também a voz ao retornar ao seu
lugar de partida que reflexivamente retoma o dizer, evidenciando que as palavras não
coincidem com elas mesmas, que elas têm uma materialidade, uma opacidade, que as joga
em um real tão irrepresentável quanto aquele onde se encontra a voz.
95) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 20:33:54 Mensagem:
É G., depois de páginas e páginas de massacre com detalhes sobre discurso indireto
livre, no final, o Bakhtin parece dar uma luzinha novamente. Digo massacre porque,
pelo menos para mim, foi desgastante tentar entender e só conseguir o mínimo
possível...
Em (95) também encontramos o mesmo esquema, digo X, no sentido de Y. O
locutor utiliza duas formas “massacre” e “desgastante” para proteger o seu dizer, estabilizar
um sentido na sua enunciação. Isso somente é possível, essa reflexividade, este retorno
sobre o dizer porque o locutor é ouvinte de sua voz. Voz que lhe retorna e que por ele é
percebida não como voz “fenômeno”, mas como significante, por isso ele faz o acréscimo
“pelo menos para mim, foi desgastante”, porque é o significante que ele lê, escuta, e não
apenas a voz, digamos assim, enquanto pura diferença.
96) Usuário: Data: 15/10/2003 Hora: 21:20:20 Mensagem:
Será que é por aí? Não tenho a última palavra, pois nosso funcionamento é meio
"anárquico", eu acho, no sentido mais puro e benéfico desse conceito: decisões pelo
grupo como um todo, tendo todos igual valor. Uma espécie de távola redonda da Grécia.
Nesta mensagem o locutor ao utilizar o termo “anárquico” se vê obrigado a fazer
uma “limpeza” de outros sentidos possíveis deste termo. Isso o faz delimitar o sentido
“puro e benéfico” excluindo assim o sentido impuro e maléfico.
207
97) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 21:35:28 Mensagem:
Como assim, S.? Não entendo como ele mofificou os conceitos de Saussure. Para mim,
até agora, a crítica que ele faz a Saussure se limita a este autor ter "preferido" (e isso
não quer dizer que ele não tenha enxergado outras dimensões) trabalhar com a
linguagem enquanto "língua", ou seja, enquanto sistema e não com a "fala", que incluiria o
contexto.
Em (97) o locutor joga com a pluralidade de sentidos de uma palavra; ele diz X e
isso não quer dizer Y. Desta forma ele também protege a recepção de sua mensagem
deixando ao receptor outras possibilidades de sentido.
98) Usuário: Data: 23/11/2003 Hora: 20:38:27 Mensagem:
Tudo bem quanto a combinar durante a semana. Também tive muita dificuldade nesse
livro. Estou ansiosa por discutir o que os estudiosos de Bakhtin dizem (ou melhor,
interpretam) de seu pensamento. E, por favor, o que é consecutio temporum?
As marcas da voz que encontramos nas formas de modalização autonímica de
empréstimo nos são particularmente importantes por evidenciar o momento em que a
linearidade do discurso é quebrada por uma voz que escuta, lê aquilo que ela enuncia no
momento que enuncia. Trata-se de uma voz que reflete sobre o seu dito, sobre o fato de
dizer, e o que se apresenta é que esta voz não é coincidente com o que a língua expressa.
Por exemplo, a voz que diz: “(ou melhor, interpretam)” na formulação (98), após ter dito
“os estudiosos de Bakhtin dizem”, faz uma retomada do fato de ter dito “dizem”, ela escuta
isso e após tenta corrigir, dizendo “interpretam”.
A modalização autonímica de empréstimo como uma forma de auto-representação
do dizer que joga com a reflexividade da linguagem é uma forma da língua através da qual
podemos supor a presença da voz na articulação significante tanto no ato de enunciar como
de ler ou ouvir. As formas de não-coincidência do dizer postuladas por Authier-Revuz nos
fornecem subsídios para relacionarmos o ouvir-se-falar, necessário para realização de
qualquer retomada do dizer no momento em que se realiza, a voz que é endereçada a
alguém, esse também, portador de voz. Digamos que a modalização autonímica de
208
empréstimo é uma zona limite entre o exterior de uma palavra vinda de outro discurso e o
interior de uma voz que, retornando sobre si mesma, possibilita a construção de um
imaginário que sustenta a ilusão de uma homogeneidade do dizer.
O retorno sobre si mesmo da voz, que a teoria das não-coincidências do dizer nos
esclarece, é a possibilidade da construção do discurso interior. Esse retorno é também o nó,
a fronteira, que costura e afasta, o que é do um e o que é do não-um do dizer. Em outros
termos, nós temos aqui evidenciado, neste estudo sobre as não-coincidências do dizer, a
tensão entre o particular e o coletivo e é neste sentido que estas formas do dizer dizem das
relações entre língua, sujeito e voz. Relações que são a base de constituição do social. É por
essa razão que a partir das análises aqui realizadas podemos dizer que o forchat é uma
comunidade de aprendizagem em que formas de interação complexas estão em jogo.
7.5 AS OPERAÇÕES DA VOZ
O trabalho da voz é a articulação significante no ato de enunciar (ceder lugar entre
sons ou traços à estrutura significante da língua) e no ato de leitura (escuta dos significantes
através de uma operação da própria voz). O significante somente adquire o estatus de
significante quando uma voz lhe confere vida. É a voz o que liga um significante a outro. O
efeito dessa operação é o sujeito, segundo a psicanálise lacaniana, sujeito dividido entre
enunciado e enunciação. As palavras que fazem a amarragem do social, somente o podem
fazer quando pronunciadas por uma voz, quer dizer, quando elas forem ouvidas, quando o
significante, que não é do mesmo tecido da voz, for lido por uma voz.
Ao longo desta pesquisa procuramos analisar marcas da incidência da voz na língua
escrita. No universo da educação a distância este tópico nos parece de imprescindível
abordagem. No caso deste trabalho, a voz na escrita é uma crítica às suposições de que a
máquina e as novas tecnologias dispensam o contato humano. O humano necessita do
contato com outro humano para se tornar humano, para ser e estar em uma comunidade de
209
aprendizagem, em uma aprendizagem de comunidade. As operações da voz são o que
proporciona o contato do humano com outro humano.
A partir dos estudos realizados nesta pesquisa destacamos cinco operações da voz que
colaboram na construção de uma comunidade de aprendizagem. São elas:
1) Separação. Esta operação se refere à voz enquanto causa da divisão do sujeito tal
qual é defendida pela psicanálise lacaniana. A voz opera de tal forma que marca
uma diferenciação, um afastamento, uma fronteira entre exterior e interior no que se
refere ao sujeito e à língua.
2) Repetição. Esta operação é derivada da operação de separação. A voz, ao ceder
lugar aos significantes, pode ser reproduzida, repetida em diversos materiais, desde
que seja possível o apontamento de uma diferença inicial que possibilite fazer um
sistema.
3) Reflexividade. A voz é o que garante o poder de reflexividade na língua. É o ouvir-
se-falar e também o discurso interior.
4) Endereçamento. É a operação que possibilita ao homem se endereçar a outro
homem utilizando uma língua e assim marcar um endereço (da voz) daquele que
enuncia.
5) Leitura. É a operação de dar vida aos significantes produzidos pelo outro ou por si
próprio. É o que mantém uma língua viva.
Ao analisarmos as mensagens postadas no forchat, segundo os objetivos desta tese,
fomos levados a distinguir duas formas de marcação da voz na escrita: uma diz respeito à
localização de um elemento que, na linearidade do dizer, aponte para um traço referente à
articulação significante operada pela voz, o que ocorre quando a palavra se apresenta na sua
opacidade e quando a linearidade do dizer se quebra; e outra, que diz respeito à
representação da imagem da voz operada na enunciação. Essa segunda forma de marcação
se refere às formas de Representação do Discurso Outro (RDO) no discurso. Para nós trata-
se das imagens que a representação da voz assume no discurso. O que aparece da voz como
sua identificação no discurso é sempre a representação da imagem da voz e jamais a voz em
si que é, por definição, irrepresentável. Para Authier-Revuz (2004b, tradução nossa) a
210
heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade representada “são radicalmente
heterogêneas ! Uma toma seu relevo da representação e da intencionalidade, a outra é
estritamente irrepresentável para o sujeito falante de quem ela determina o dizer (...)”, é a
esse caráter do irrepresentável que Authier-Revuz se refere que ligamos o conceito de voz.
A identificação da fonte exterior ao significante é sempre imaginária. Trata-se da
identificação da imagem da voz que pronunciou em outro lugar o fragmento X exterior à
linearidade de sua enunciação. A localização do fragmento X também passa pelo
imaginário, não da fonte exterior deste fragmento, mas da própria fonte de onde jorram suas
palavras e dentre as quais algumas lhe vêm como exteriores. Então a representação da voz
do outro ou a representação da própria voz acontece sempre a partir de um filtro do
imaginário.
Seguindo a teoria de Authier-Revuz (1997, tradução nossa):
É a principio a oposição – e a articulação – entre dois planos de
enunciação: aquele de suas não coincidências constitutivas nas quais ela
se produz e que, condição mesma de sua produção, lhe são
irrepresentáveis, e aquele da imagem que ela desenha nela mesma por
suas não-coincidências representadas, emergência, passada pelo filtro do
imaginário do enunciador, da primeira.
O primeiro plano, das não-coincidências constitutivas, diz respeito a um impossível,
algo que escapa sempre, que o enunciador não tem acesso. Em outras palavras é a operação
através da qual a voz cede lugar à articulação significante. O segundo plano, das não-
coincidências representadas, diz respeito à construção, à imagem que o enunciador faz
daquilo que ele não consegue fixar, mas que movimenta sua enunciação, que é a voz
endereçada ao outro, o limite do um e do não-um, ou se desejarmos, o humano enquanto ser
social. Essa imagem somente entra na articulação da enunciação se ela for representada.
Então a Representação do Discurso Outro, da voz do outro, e da própria voz é sempre a
representação da imagem de algo que escapa, enfim é a representação de uma imagem. Em
211
última análise, essa imagem, devido ao discurso que a sustenta, é uma representação
também, quer dizer, estamos diante da representação da representação.
A unidade de uma enunciação, seja ela conferida ao próprio enunciador ou ao
interlocutor acontece no plano imaginário, representando algo que escapa ao tentarmos
fazer o Um do dizer. A simetria, a coincidência entre os interlocutores, entre as palavras,
entre o discurso, enfim entre as palavras e as coisas, somente é possível a partir de um filtro
do imaginário. É esse filtro do imaginário o que ameniza a tensão entre o um do enunciador
e o social, do qual ele faz parte, mas se distingue. A fronteira entre interior e exterior no
plano discursivo reflete a tensão constante que movimenta toda e qualquer enunciação, ou
seja, o endereçamento ao outro.
O que buscamos nas mensagens postadas no forchat foram traços, marcas na língua
que indicassem a afetação pela voz da articulação significante presente na enunciação
escrita. Procurando estas marcas passamos pela análise da figura do entre parênteses, que
interpretamos como a inclusão no discurso de uma representação da imagem da própria
voz, fala interior, o que caracteriza a heterogeneidade do sujeito com relação a ele mesmo.
Também analisamos a figura das reticências, que interpretamos como um traço localizável
da operação de articulação dos significantes no ato de enunciação. Através da pausa, do
silêncio, o locutor-ouvinte cadencia o som no momento em que retorna ao dizer, na sua
linearidade, para a escuta da sua voz. Esse momento de pausa é em um só instante a queda
da voz ao ceder espaço ao significante e abertura à leitura-escuta à voz do outro a quem o
locutor se endereça. É o próprio momento de amarração do discurso com o discurso do
outro, aquele a quem a voz se endereça.
No discurso relatado nós encontramos a representação da voz do outro a partir das
palavras que são ouvidas como palavras do outro. Entre as palavras que o locutor toma
como declaradamente pertencentes a outro discurso e as palavras que o locutor toma como
suas podemos supor vários degraus de diferenciação, mesmo sabendo que em última
instância nenhuma palavra é unicamente do locutor. Por exemplo, o locutor pode dizer:
“conforme ele
disse”, “conforme você disse”, “conforme nós dissemos” ou “conforme eu
212
digo”. Estes exemplos são formas do metadiscurso se fazer, ou seja do discurso sobre o
discurso. Segundo Authier-Revuz (1997), nós temos, nestes casos, a Representação de um
Discurso Outro (RDO). O Discurso Direto, Discurso Indireto, Modalização em Discurso
Segundo e Modalização Autonímica de empréstimo são formas de Representação do
Discurso Outro, mas a Modalização autonímica de empréstimo carrega uma diferença, que
é o retorno reflexivo que proporciona a auto-representação do dizer a partir da
representação do dizer do outro. Todos são uma especificação da alteridade do discurso
outro. Todos são formas do metadiscurso.
Não é quando o enunciador se dá conta da linguagem dos outros que aparece a
modalização autonímica, mas quando ele se dá conta do outro que atravessa a sua
linguagem, outro – tomado no sentido geral – no qual encontramos, entre outros, a
linguagem dos outros. A modalização autonímica não é, em si, uma forma de RDO. Ela
somente pode ser considerada como pertencente ao conjunto das formas de RDO enquanto
modalização autonímica de empréstimo, as quais Authier-Revuz classificou como não-
coincidências do dizer.
Na modalização autonímica de empréstimo nós encontramos além da marca da
Representação do Discurso Outro, a marca de uma auto-representação do dizer. Nela,
encontramos a marca do retorno reflexivo sobre o dizer, ou seja, o ouvir-se-falar, a
representação da voz do outro através das palavras que são percebidas como palavras do
outro e a representação da própria voz do locutor-ouvinte através da modalização do dizer.
Trata-se de uma forma muito geral de auto-representação opacificante do dizer, ela é
suscetível de se inscrever no campo da alteridade discursiva e de constituir um modo
específico desta alteridade. Este nó, descoberto por Authier-Revuz, nos proporciona o
estudo do ponto limite que sustenta a rede significante. Esse limite diz respeito ao que é do
um e do não-um em matéria de língua, sujeito e voz. Esse limite, esse nó, é a própria base
de constituição do social, da vida em conjunto dos humanos. A educação depende da
relação entre os significantes com a voz que possibilita a leitura destes significantes. Sem
este movimento o social desaparece. Sem as palavras que vêm do outro, sustentadas pela
voz de cada sujeito, e sem a voz que ao se endereçar ao outro, lê o Outro, ao mesmo tempo,
213
que amarra os homens uns aos outros, nada podemos fazer no sentido da construção de uma
comunidade.
Podemos dizer, após a análise das formas de Representação do Discurso Outro e de
Modalização Autonímica de empréstimo, que a voz é sempre uma questão de fronteira,
ruptura e costura. Conforme Authier-Revuz (1997, tradução nossa), há duas questões de
fronteira pertinentes à modalização autonímica de empréstimo, a primeira é que:
(…) as formas de empréstimo da Modalização Autonímica desenham, no
discurso, localizando os pontos de presença do outro, uma fronteira onde
o traço, entre exterior e interior, merece ser seguido atentamente. Um
grande número de parâmetros parece pertinentes na aproximação destas
fronteiras, quer dizer imagens, fornecidas pelos discursos, da presença,
nelas mesmas, de exteriores discursivos.
A segunda questão de fronteira que aparece na articulação das duas
heterogeneidades, representada e constitutiva, é totalmente de outra natureza. Digamos que
ela é relativa ao real da heterogeneidade constitutiva do dizer, este que é atravessado,
impregnado, de parte a parte por uma alteridade não localizável. No conjunto de formas de
RDO se desenha um traço de fronteira, aquele do lugar, circunscrito, que ele reconhece ao
outro discurso, exterior, assegurando por lá mesmo os contornos de um dizer de si.
Segundo Authier-Revuz (2004b, tradução nossa) :
A relação interior/exterior, assim desenhada no discurso, aparece como o
modo próprio – extraordinariamente diverso segundo os discursos –
segundo o qual cada discurso efetua sua negociação obrigatória com o
fato da heterogeneidade constitutiva: a irrepresentabilidade desapossante
desta, responde ao trabalho da colocação em cena, necessária a todo dizer,
de uma relação – largamente imaginária – com a alteridade discursiva. E
esta composição do discurso – uma imagem de si desenhada na sua
relação diferencial com o outro – aparece, se a ligarmos de maneira mais
precisa à materialidade das formas pelas quais ela se faz, como uma
“preciosa” entrada nos textos e na discursividade.
214
A questão interior/exterior do discurso joga o tempo todo dentro do próprio
discurso, joga na diferenciação entre voz e significante. É o limite entre o um e o não-um. A
impossibilidade de uma definição exata do que é interior ou exterior é o que caracteriza a
relação língua, voz e sujeito. Retomando, a voz ao ser endereçada causa a divisão do sujeito
em sujeito da enunciação e sujeito do enunciado. Essa mesma voz que causa a separação
retorna ao lugar de onde partiu, mas ela somente pode ser percebida pelo sujeito na sua
condição significante, ou seja, na relação com uma língua que é sempre social e por isso
dependente de outras vozes. Porém estes significantes através dos quais percebemos o
mundo não poderão ser lidos, escutados se uma voz não os articular. Como vemos, através
das operações da voz, o que está em questão é o homem enquanto ser social, habitando na
linguagem, fruto da constante tensão entre o um e o não-um.
215
8 A VOZ DO LEITOR
Eu escrevo triste no meu quarto tranqüilo, sozinho como sempre estive,
sozinho como sempre estarei. Eu me pergunto se minha voz, que se
parece com tão poucas coisas, não encarna a substância de milhares de
outras vozes, a fome de se dizer que provam milhares de vidas, a
paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino
cotidiano, ao sonho inútil, a esperança sem vestígios. (Fernando Pessoa, O
livro da intranqüilidade)
A voz que deu origem a este texto, agora cede lugar à voz do leitor. Um texto chega
ao seu objetivo quando depois de algum tempo e, talvez, distante alguns quilômetros de
onde partiu, retoma sua forma de voz. Concluir com a voz do leitor é o fim, em todos os
sentidos desta palavra. O leitor-ouvinte não somente lê, mas ouve ao ler. Ouve a sua voz.
Voz que ao ler o texto restabelece a vida às palavras nele contidas. Palavras vindas de
outros discursos. Palavras que não possuem um proprietário definitivo. Palavras que
carregam uma despedida.
Os pontos no texto onde podemos supor a voz do locutor-ouvinte são os lugares nos
quais a palavra se apresenta opaca, resistindo à articulação significante, porém esta
resistência acaba evidenciando o caráter significante e não o apagando. Devido a esta
opacidade da voz o que nos restou analisar foram as imagens da voz no discurso. Nós
analisamos a representação da voz através de algumas formas da língua que podem ser
destacadas na enunciação escrita no seminário virtual. Estas formas foram: a figura das
reticências e do entre parênteses para destacar a representação da voz latente na escrita; as
formas da Representação do Discurso Outro (formas do discurso relatado e modalização
autonímica de empréstimo) para destacar a representação da voz do outro na escrita; e as
formas da modalização autonímica de empréstimo, tal qual esta foi teorizada por Authier-
Revuz como não-coincidências do dizer, para destacar a representação da voz própria na
escrita. Além disso, analisamos os advérbios de tempo e lugar “aqui e agora”, buscando
evidenciar uma marca na língua que mostrasse o endereço e o endereçamento da voz no
fórum analisado.
216
Os pontos do texto onde podemos supor a outra voz interferindo na enunciação não
são de fato uma outra voz, que em toda enunciação é sempre única, mas a representação da
imagem de outra voz. As palavras podem ser povoadas por várias vozes, no sentido de que
cada palavra possui uma vida de palavra, uma história na qual passou por vários contextos,
várias bocas. Assim uma palavra não tem um sentido único, sendo mais uma espécie de
conjunto de sentidos. Esse é o lado significante da palavra. Porém, quando uma palavra é
enunciada, ela é enunciada por uma única voz, mesmo que outras vozes tenham construído
a história desta palavra, que ainda ressoem nesta palavra, em uma pluralidade de sentidos
possíveis, quando esta palavra é enunciada, ela é por uma única voz. Este é o limite. A voz
deverá ceder lugar ao significante. E depois, o significante, deverá esperar uma outra voz
que lhe anime novamente, seja através da leitura ou da escuta. Toda palavra está à espera de
uma voz que lhe retorne à vida. Mesmo que seja por poucos segundos. Os significantes
ficam, a voz sempre retorna ao lugar de onde partiu.
A consistência e a resistência da língua no coração do dizer é o reflexo da
impossibilidade da voz ocupar o mesmo lugar que o significante no discurso. Embora isso
não queira dizer que um não dependa do outro. Se prestarmos atenção, veremos que as
operações da voz por nós destacadas: separação, repetição, reflexividade, endereçamento e
leitura são todos casos limites entre o que é da voz e o que é do significante. As operações
refletem a complexa relação de dependência entre a voz e o significante. O efeito, o
resultado desta relação é o sujeito.
A voz é irrepresentável enquanto constitutiva do discurso. Essa voz constitutiva, na
sua opacidade, é a condição da diferença. Na escrita a voz que está em jogo é a voz do
leitor, as outras vozes que aparecem são representações da imagem da outra voz. Para
construir o sentido nós não escutamos a voz do outro, escutamos os significantes que são
lidos pela voz própria de cada sujeito; embora seja evidente que os significantes que lemos
foram articulados pela voz de um sujeito, que não necessariamente se endereçava a nós,
mas que, sem dúvida, se endereçava a alguém dotado de voz. Essa característica do
endereçamento, conforme nossa análise, é um dos elementos mais visíveis no forchat,
217
caracterizando o corpus analisado como uma comunidade de aprendizagem, um lugar de
encontro de vozes.
A voz que escutamos nos chega como significantes. Mesmo a nossa própria voz nos
vem como significantes, mas apenas em alguns raros momentos nós podemos supor a sua
presença. Estes raros momentos ocorrem quando nos deparamos com a materialidade da
língua, quando percebemos as palavras como opacas. Quando a língua se apresenta em sua
consistência e resistência ao dizer. Freud, no início do século XX, apontava estes momentos
de materialidade da língua através dos atos falhos
68
, dos chistes. Atualmente a teoria das
não-coincidências do dizer de Authier-Revuz nos mostra uma outra forma de também supor
a voz na língua através do estudo da modalização autonímica que revela ao mesmo tempo
a materialidade da língua, a reflexividade do dizer através do ouvir-se-falar e da auto-
representação da enunciação, que é em si a criação de um imaginário que sustenta a ilusão
do Um do dizer.
Uma pergunta permaneceu durante a análise das mensagens postadas no forchat: O
que acontece ao dizer nestes pontos onde, parado pelo “outro” de uma palavra, de um
significante, ele se retorna sobre si mesmo? Quando as palavras que vêm do outro impõem
seu corpo, sua materialidade, elas são sustentadas por uma voz que não é do mesmo tecido,
digamos assim, da própria palavra enquanto signo, significante e significado. A análise da
diversidade de formas do discurso relatado, onde o objeto representado pelo dizer é um
outro dizer e dos retornos reflexivos da modalização autonímica, pertencentes à zona
específica da auto-representação do dizer que se realiza, colaborou para chegarmos à
conclusão sobre a importância da voz no retorno do dizer sobre si mesmo, no
endereçamento e leitura do dizer, e especialmente na relação entre o particular e o social. A
ruptura e costura entre o significante que vem do Outro e a voz que vai para o Outro são os
trabalhos da voz que procuramos evidenciar nas análises realizadas.
68
Authier-Revuz (2004a, tradução nossa) associa o termo “acontecimento enunciativo”, o qual Irene Fenóglio
utiliza para caracterizar o ato falho, ao retorno reflexivo sobre o dizer “não para confundir os dois
fenômenos”, mas para pensá-los como um efeito do outro discurso sobre o um da enunciação. Ela diz que “lá
onde, no lapso, o enunciador produz uma palavra no lugar daquela que ele gostaria de dizer, deixa,
eventualmente, no depois desta subversão, a reconhecer – mas também a recusar categoricamente – como sua,
esta voz do outro dele mesmo”.
218
O enunciador responde a alguma coisa que ele encontra em um ponto de seu dizer,
alguma coisa que altera o seu dizer. No ponto do dizer como afetado pelo “outro”,
responde, no plano do fio sintático, a alteração que ali inscreve um comentário meta-
enunciativo que suspende o curso do dizer, criando, por assim dizer, um segundo tempo no
qual o locutor ouve sua voz e, passando pelo imaginário, cria uma representação do seu
dizer. Trata-se de uma reflexividade circunscrita no espaço do dizer. Este retorno reflexivo,
amarrando a construção meta-enunciativa heterogênea a um elemento da cadeia de base
oferece segundo Auhtier-Revuz (2004a, tradução nossa),
uma configuração sintático-semântica caracterizável como “ruptura-
ligação”, no plano enunciativo, estes pontos apresentam uma “alteração”
do dizer, que, parado em uma de suas palavras por um heterogêneo que se
impõe a ele, e sobre o qual, lá mesmo, se abre nele próprio a falha do
não-um, o retorno reflexivo opacificante responde a esta falha pela
‘retomada’ meta-enunciativa, desde a sustentação imaginária sobre o
dizer.
Trata-se de espécies de “costuras aparentes” na superfície do dizer, mostrando a
falha pela retomada, designando o outro, o afastamento, no gesto que reassegura o um de
um controle enunciativo imaginário. Retornos opacificantes que, tomando o dizer de uma
palavra por objeto, revelam o afastamento interlocutivo, o discurso carregado de já dito, a
falha da nominação, o excesso do equívoco. Para Authier-Revuz (2004a, tradução nossa,
grifo da autora) se trata:
da negociação, através da qual todo dizer deve passar, com as não-
coincidências fundamentais da enunciação – abrindo o discurso sobre sua
exterioridade interdiscursiva interna, a nominação sobre sua perda
relativamente à coisa, a cadeia sobre o excesso de sua « significância », a
comunicação sobre a distância intersubjetiva – nas quais, longe da fixidex
do signo, se faz o sentido, mas onde ele poderia, dispersado, se desfazer
na cama meta-enunciativa – reassegurando desde seu ilusório sustento
reflexivo, o imaginário do UM do dizer nos pontos de afloramento do
NÃO-UM.
219
Em cada mensagem postada no forchat estão em jogo as operações da voz por nós
destacadas: Separação, marcando a diferença entre o sujeito da enunciação e o sujeito do
enunciado; Repetição, materialidade que proporciona que a mensagem seja escrita;
Reflexividade, o ouvir-se-falar ou ouvir-se-escrever que proporciona a enunciação um dizer
sobre o dizer; Endereçamento da mensagem a alguém também dotado de voz ; Leitura, que
é a articulação realizada pela voz dos significantes encadeados em um sistema.
O estudo sobre a voz na escrita se revelou um importante meio de estudarmos o
discurso interior, o que, a nossos olhos, poderá trazer valiosas colaborações às pesquisas
sobre a construção do pensamento. Neste sentido estamos de acordo com a declaração de
Authier-Revuz (2006, tradução nossa), quando ela fala de uma das formas que a escrita
assume para ela:
Nada é mais estrangeiro a minha prática que o processo habitualmente
evocado pelos colegas lingüistas : fase de reflexão, sem escrever, seguida,
quando eles « sabem o que vão dizer », da fase terminal e quase
automática onde eles « se colocam em frente a seu computador ou sua
mesa », para redigir. A esta « escrita », percebida como transcrição de um
« todo feito », ou mais gravemente (e fantasmaticamente) como tradução
em palavras de um pensamento, responde, para mim, a experiência
inversa, do caminho de palavras – materialmente escritas – através das
quais toma forma o que eu posso pensar.
A psicologia, passando por Piaget (1987a, 1987b), Vigotski (1989), Luria (1986)
tem procurado as bases da construção do pensamento visando uma aplicação efetiva na
educação. Nós adotamos o termo comunidade de aprendizagem para enfatizar o que ficou
evidente em todas a análises que realizamos, que o discurso interior, o ouvir-se-falar, são
processos onde o outro, seja ele outro interlocutor, sentido, discurso ou o outro de si
mesmo, está implicado de tal forma que sem ele não existe pensamento. O discurso interior
não é somente a introjeção do social ou uma parte do processo de desenvolvimento do
sujeito autônomo, ele é o ponto de tensão, o nó que amarra o particular de cada sujeito ao
social. Neste sentido o discurso interior tem uma parte que é consciente, mas não é a
consciência, pois em grande parte ele é inconsciente. Basta seguirmos as análises das
220
formas de RDO para entendermos que o processo de aprendizagem não é de todo
consciente. Que aquele que fala sabe muito pouco do que diz, de onde diz, para quem diz e
menos ainda do por que diz. Porém existe algo mais que também não sabemos ou
esquecemos e que organiza todos estes porquês. Que é justamente o com o que se fala. Esse
algo é a voz. Ela é a causa da divisão do sujeito, enfim a possibilidade de construção do
social. Se o sujeito não se divide não há o social. Esta divisão em enunciado e enunciação, à
qual desde saída estamos jogados, é a possibilidade de endereçamento ao outro. É óbvio
que sem endereçamento não existe comunidade, mas, além disso, o endereçamento precisa
ser lido, ouvido, como um endereçamento e, novamente, quem fará este trabalho será a voz.
A educação é um processo necessário, no qual a cultura, o social, o Outro, em um
sentido mais amplo, mantém sua existência através da singularidade de cada sujeito. O
processo de aprendizagem ocorre através da fala ou de registros de imagens, sons, traços,
enfim de matéria. Porém esta matéria não é nada se a voz ali não estiver presente. A voz
gravada na escrita, qualquer tipo de escrita, precisa encontrar-se com outra voz, aquela
daquele que lê. Neste sentido esta tese procurou evidenciar que as novas tecnologias
aplicadas na educação a distância, como o próprio forchat, são apenas mais uma forma do
humano se relacionar com o outro humano. Que o importante não é a máquina, o programa,
mas os homens, as vozes que procuram construir e manter a comunidade. As tecnologias
podem muito bem facilitar este relacionamento. Esta é a nossa aposta. Como dissemos
antes, aprendizagem de comunidade, ou seja, o que aprendemos é a comunidade que nos
prende nesta tensão necessária entre o que cada um enuncia com sua voz e o que
aprendemos a partir das outras vozes. De fato, entendemos o forchat analisado como uma
comunidade de aprendizagem, que através do uso da tecnologia deixa evidente o contato do
humano com o humano.
As diferentes formas de dizer o dizer do outro, marcas na língua que muitas vezes
passam despercebidas, como espécie de barulhos, pausas, partes pouco importantes na
interlocução como as reticências, o parêntese, as formas de Representação do Discurso
Outro, entre as quais o discurso relatado e a modalização autonímica de empréstimo são
evidências representadas na língua da complexa relação entre o sujeito e a comunidade da
221
qual ele faz parte. Relação que é a base de sustentação do homem enquanto ser social. A
educação eticamente deve ter esse propósito: a sustentação do homem enquanto ser social,
fadado ao convívio com outros homens, onde a alteridade é um traço constitutivo. A forma
que a educação assume no seio da comunidade é o resultado das relações de alteridade
constituinte desta comunidade.
222
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PETERS, Otto. A educação a distância em transição: tendências e desafios. Trad. Leila
Ferreira de Souza Mendes. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2003.
PIAGET, Jean. O Nascimento da inteligência na criança. Trad. Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: Ed. Guanabara, 1987a. 4ª ed.
PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. Trad. Maria Alice D’Amorim e Paulo Sérgio
Lima Silva. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1987b.
REY-DEBOVE, Josette. Réflexions en forme de postface. In: AUTHIER-REVUZ, J.;
DOURY, M.; REBOUL-TOURÉ, S. (Org.). Parler des mots – Le fait autonymique en
discours. Paris: Ed. Presses de la Sorbonne Nouvelle. 2003. P.67-96.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral, São Paulo: Editora Cultrix, 1995.
20ªed.
SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Tradução e organização
de Marilene Carone. Rio de Janeiro: Ed. Graal. 1984.
TEIXEIRA, Marlene. Análise de discurso e psicanálise: elementos para uma
abordagem do sentido no discurso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
VERNIER, France. La stratégie des ajouts dans Les Miserables de Victor Hugo. In:
AUTHIER-REVUZ J.; LALA, M.C. (Org). Figures d'ajout - phrase, texte, écriture
Paris: Ed. Presses de la Sorbonne Nouvelle, 2002.
229
VIGOTSKI, Lev Semenovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo:
Ed. Martins Fontes, 2001.
VIGOTSKI, Lev Semenovich. A formação social da mente. São Paulo: Ed. Martins
Fontes, 1989.
230
ANEXO A – Mensagens postadas no Forchat em 10/12/2003.
Encontro síncrono com algumas intervenções assíncronas ocorrido no dia
10/12/2003 do seminário virtual pertencente à disciplina do mestrado a distância do
Programa de Pós-Graduação em Educação da universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Este encontro foi incluído como anexo simplesmente a título de exemplo. O critério de
escolha foi aleatório. Os nomes dos participantes são fictícios.
Usuário: Virginia
Data: 10/12/2003
Hora: 18:02:33
Mensagem:
Olá pessoal! Infelizmente não poderei estar no encontro sincrônico com
vocês. Pensei em deixar algumas questões que fiquei pensando e gostaria de
dialogar com vocês.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Virginia
Data: 10/12/2003
Hora: 18:09:02
Mensagem:
Entre tantas outras!
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Virginia
Data: 10/12/2003
Hora: 18:05:14
Mensagem:
Ao reler esta introdução percebo a importância de lermos sobre a biografia
do autor para podermos avançar no diálogo com, sobre... a sua obra.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
231
Usuário: Virginia
Data: 10/12/2003
Hora: 18:06:41
Mensagem:
Podemos pensar sobre a metodológica constituída, por Bakhtin, na
estruturação de sua obra nos seguintes fragmentos, nas páginas 3 e 4:
Não se trata de impor-lhe artificialmente uma unidade que nele não
existiria...” ; “ A verdadeira noção central da pesquisa estética
não deve ser o material, mas a arquitetônica, ou a construção, ou a
estrutura da obra, entendida como um ponto de encontro e de interação entre
o material, forma e conteúdo?”
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Virginia
Data: 10/12/2003
Hora: 18:07:36
Mensagem:
Uma outra questão que me parece ficar muito presente é a diferenciação e
até mesmo como uma de suas referências, a estética romântica. E aí fiquei
pensando, ou fazendo uma relação da criação estética com a produção de uma
imagem, ou da(s) imagem(s)com relação ao que encontramos no final da p. 6 e
início da p.7 e quando ele
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Virginia
Data: 10/12/2003
Hora: 18:08:35
Mensagem:
Volto em outro momento para participar da discussão. Um abraço a todos e um
bom encontro!
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
232
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:13:19
Mensagem:
Oi! Tem alguém aí?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Lya
Data: 10/12/2003
Hora: 20:16:02
Mensagem:
Oi B, tem sim.Lya
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Lya
Data: 10/12/2003
Hora: 20:18:31
Mensagem:
Queria mesmo falar com vc. Estou querendo uma ajuda para possa me
aprofundar nos questionamentos deste estudo. Os últimos capítulos Filosofia
da linguagem me deixaram baratinada e preciso de uma consistência. Acho que
grupo está muito grande e talvez cause dispersão(é assim que se escreve?)
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:26:52
Mensagem:
Lya! Eu penso que, para quem nâo vai trabalhar especificamente com
questôes da linguistica, os útlimos capítulos do Marxismo não sâo tão
importantes, no sentido de ter muitos detalhes sobre os tipos de discursos,
relações. Depois, nos Gêneros do Discurso, o Bakhtin vai retomar estas
questôes por um outro viés que, naminha opinião, são mais acessíveis para
quem trabalha na área da Educação.
233
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Lya
Data: 10/12/2003
Hora: 20:34:11
Mensagem:
Mas Clarice, para entender a evolução do pensamento de Bakhtin não
facilitaria a compreensão destes capítulos? Porque qdo chegamos na atitude
respondente não teríamos que entender essa rela~ção discurso indireto
livre?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Lya
Data: 10/12/2003
Hora: 20:21:54
Mensagem:
Refletindo sobre a leitura de hoje faço o seguinte comentário: O prefácio
do livro Estética da Criação Verbal apresenta Bakhtin como uma figura de
múltiplas facetas. Um pensante em constante movimento dialético. Acredito
que Bakhtin se desvelou em vários Bakhtins , observando o seu cotidiano, os
diálogos de cada época e foi dando sentido a sua linguagem. Acho que é por
isso que faz grandes críticas aos formalistas por esses não colocarem o
cotidiano na linguagem, porque para eles "o essencial não está na relação
da obra com as outras entidades - o mundo, o autor, ou os leitores, mas na
relação de seus próprios elementos constitutivos entre si". É
impressionante como essa tendência ainda sobrevive. Lembro muito bem na 4ª
minha professora gostava muito de poesias e sempre lia em voz alta para
toda turma. Os alunos, alguns faziam boas poesias pq sabiam utilizar os
versos, eu não consegui perceber o que seria de fato verso, me cegava. A
professora repetia as regras do poema para mim e a mais alguns e no entanto
ficou em segundo plano a questão do pensamento de dentro para fora, aquele
sentimento que surge e aflora em poesia. Adorava quando ela recitava, pois
dentro de mim sentia minha alma cantar, mas quando tinha que escrever era
um terror. É claro que não saía nada de dentro de mim pq não me vi ali,
presente. Vi apenas formas desconhecidas do meu contexto.Lya
234
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:29:54
Mensagem:
Lya, acho que é isso mesmo. Colocar a linguagem na vida, um dos objetivos
de Bakhtin. Por isso ele fala em tonalidades, coloridos, entoações,
mudanças constantes...
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Marguerite
Data: 10/12/2003
Hora: 20:22:23
Mensagem:
Boa tarde meninas:-)Que bom vê-las aqui.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:23:17
Mensagem:
Oi Lya e Marguerite!
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Lya
Data: 10/12/2003
Hora: 20:28:45
Mensagem:
Oi Marguerite. Joyce deve está curtindo sua Júlia. Puxa ela deve está
delirando de alegria.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
235
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:30:52
Mensagem:
Alguém sabe alguma notícia da Joyce e da Poe???
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Marguerite
Data: 10/12/2003
Hora: 20:33:32
Mensagem:
Viem , outra meadense da Bahia, disse que estava tudo bem com as duas, ia
visitá´-las no hospital inclusive.Joyce estava radiante.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:35:19
Mensagem:
Que bom! Quando soberes mais notícias, avisa...
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:35:36
Mensagem:
Quer dizer, souberes...
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 20:31:55
236
Mensagem:
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Marguerite
Data: 10/12/2003
Hora: 20:31:59
Mensagem:
Lendo o prefácio lá pela pg 18 tem um comentário que me lembrar do que
Margarete nos falava: não temos objeto de pesquisa, mas sujeitos de
pesquisa.Combina tudo com o trecho "reduzir o outro (..) a um objeto é
ignorar-lhe a característica principal: a saber, que é justamente um
sujeito, ou seja, alguém que fala(..)
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:33:25
Mensagem:
Oi Simone! Estamos tentando esquentar os motores!!!
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 20:34:43
Mensagem:
Oi, pessoal! Entrei atrasada, não foi? Mas estava estudando história com
uma das minhas filhas. Ela tem prova amanhã, de recuperação, porque um
determinado professor conseguiu fazer várias turmas de adolescentezinhos de
12 anos odiarem a matéria. Pode? Hoje em dia, não há nada mais importante
do que compreender a trajetória da humanidade e ver uma das minhas queridas
deixando de gostar disso está sendo muito difícil. Será que ainda consigoa
reverter o quadro?
237
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 20:36:43
Mensagem:
Pois é, Marguerite, acho que é esse o papel principal do professor: fazer o
aluno reconhecer que é sujeito e que tem voz, e que essa voz merece e
precisa ser ouvida, para que o planeta ganhe algo que só ele pode
oferecer.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 20:38:55
Mensagem:
Desculpem ir falando assim desse jeito intempestivo, meninas, ainda mais de
um assunto que não tem correlação direta com o tema de hoje, mas precisei
desabafar. Meu "caminho intelectual" estava bloqueado por um "incômodo
afetivo", por assim dizer.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 20:39:37
Mensagem:
Vamos esquentando então, Clarice! O que você propõe.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:39:48
Mensagem:
hola, que tal?
238
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Lya
Data: 10/12/2003
Hora: 20:41:35
Mensagem:
Meu amor vc chegou?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Lya
Data: 10/12/2003
Hora: 20:40:30
Mensagem:
E por falar em Por isso ele fala em tonalidades, coloridos, entoações,
mudanças constantes... elas ocorrem quando não separa o "subjetivo do
objetivo, do singular com o universal, da vontade com a coerção, da forma
com o conteúdo"
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:40:42
Mensagem:
Oi Pessoa!
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Marguerite
Data: 10/12/2003
Hora: 20:41:37
Mensagem:
Penso que poderíamos ver o trabalho do crítico a que ele se refere como o
nosso: 1º recolher os dados, reconstituir o contexto histórico;
239
explicação por leis sociológicas, psicológicas, etc e por último viria a
parte mais importante: a interpretação como diálogo. E mais adiante se fala
que "o sentido é a liberdade e a interpretação é o seu exercício."
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:46:59
Mensagem:
Acho que o que a Lya e a Marguerite colocam, é também o que eu penso. O
Bakhtin, do ponto de vista da linguagem, propôe uma articulação entre o que
se repete (da língua) e o que sempre muda (contexto).
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:41:38
Mensagem:
como estas Clarice?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:43:44
Mensagem:
Bem, e tu?Estás aqui na Faculdade?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:51:13
Mensagem:
240
Não, estou em casa! pq?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:42:08
Mensagem:
oi Marguerite, tudo bem!
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 20:48:53
Mensagem:
Oi, Pessoa! Há quanto tempo!
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 20:42:27
Mensagem:
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:43:26
Mensagem:
Acho que com este Prefácio podemos, entre tantas outras coisas, situar o
Marxismo e Filosofia da Linguagem dentro da obra do Bakhtin. Segundo
Todorov, em um período, sociológico, que veio da fase fenomenológica.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
241
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:44:59
Mensagem:
O primeiro texto do Estética, O Autor e o Herói, então, é de uma fase
anterior ao Marxismo.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 20:51:53
Mensagem:
É isso mesmo, Clarice. Esse primeiro texto, inclusive, é inacabado, como
muitos de Bahktin.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Lya
Data: 10/12/2003
Hora: 20:46:05
Mensagem:
Mauro como foi sua defesa?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:50:15
Mensagem:
Vou defender no dia 16 de janeiro de 2004. Minha banca será a Margarete Axt
e a Liane Tarouco.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
242
Usuário: Lya
Data: 10/12/2003
Hora: 20:54:45
Mensagem:
Foi adiado?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:57:17
Mensagem:
Sim, em funçào da disponibilidade da banca e que ainda faltavam umas coisas
nom meu projeto
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 20:53:05
Mensagem:
IH! Tá pertinho, hein? Bom trabalho até lá!
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:54:24
Mensagem:
Valeu Simone ... fazia tempo que não nos falavamos!
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Marguerite
Data: 10/12/2003
Hora: 20:52:50
Mensagem:
243
Teu projeto é sobre o quê Pessoa?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:55:03
Mensagem:
Sociedade da informação, novas tecnologias e sua aplicaçào em ambientes
educacionais
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 20:46:50
Mensagem:
É mesmo, Marguerite. Sempre que se fazem separações os efeitos não são bons.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:49:16
Mensagem:
Uma questão que estava pensando hoje a tarde quando lia Bruno Latour e sua
analise do binomio sociedade/tecnologia me deixou com a pula atrás da
orelha: É o seguinte, Latour parte da teoria da ação/ator e neste sentido
os indivíduos atribuem a outrens os papéis que estas devem exercer, o que
implica em se convencer o outro a esse exercício. O problema é: apesar de
em nenhum momento Latour se referir a uma interpretação marxista, ele no
seu processo de análise faz uso de construções dialógicas que estão
condicionadas as condições objetivas de sua produção. Não seria esta também
uma outra forma de se pensar a construção dos sujeitos, assim como a
construção de sentido e autoria? O que acham disto?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
244
Usuário: Lya
Data: 10/12/2003
Hora: 21:03:35
Mensagem:
Claro que essa teoria continua presente em nossa prática,principalmente na
prática do prfessor que tenta seguir uma teoria sem sentido,
descontextualizada, sendo ainda hoje um grande obstáculo para a construção
de sentido e autoria. O que falta aí é justamente uma reflexão marxista.
Diga-me a referência desse livro, por favor.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:51:25
Mensagem:
Clarice, Não, estou em casa! pq?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:54:13
Mensagem:
Por nada, ué!!! Função fática da linguagem (hehehe)
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:57:42
Mensagem:
hehheee
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
245
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:52:09
Mensagem:
Sobre a questão da Marguerite,penso que entramos novamente na metodologia.
Todorov diz que Bakhtin anuncia a " crítica dialógica" e que isto tem
repercussões na metodologia das ciências humanas. Os níveis de pesquisa,
como ele coloca (aos quais a Marguerite se refere) tratam do estabelecimento de
fatos, de uma explicação por leis (o que é típico das ciências exatas) e da
atividade de interpretação. A meu ver, novamente aqui, na metodologia de
pesquisa, ele propôe um trabalho de articulação entreo que se repete (as
leis) e o que sempre se modifica (a interpretação). O que acham?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Marguerite
Data: 10/12/2003
Hora: 20:58:55
Mensagem:
Acho que é por ai mesmo Clarice.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 20:56:27
Mensagem:
Essa sua síntese foi muito esclarecedora. Colocou bem o que se quer
analisar. E quando fazemos a interpretação das leis (exegese), o que
acontece? O diálogo do permanente com o mutável?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:00:45
Mensagem:
246
Pois é...eu penso que Bakhtin também trata disso no marxismo e diz que o
diálogo do permanente com o mutável acaba, ainda que de maneira mais
demorada, como é o caso da língua, por transformar o próprio imutável. Nâo
lembro qual a página!!!
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 20:53:40
Mensagem:
Lya? você tentou me ligar? agora?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 20:54:58
Mensagem:
E quanto à questâo do autor? o que acharaam?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:00:06
Mensagem:
Achei muito importante ele referência ao fato de que as relações entre o
autor e a personagem se estruturem como eu-tu e não mais eu-isso. Afinal,
há personagens com uma carga de verdade tão forte que chegam a impressionar
mais que os sujeitos reais.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
247
Hora: 20:59:22
Mensagem:
DESCULPE, Clarice. Mas a que autor te refere? ao bakhtin?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:02:35
Mensagem:
Nâo exatamente, mas ao que o Todorov chama de diferentes bakhtins, que se
transformam, enquanto ele vai pensando a questão do autor.... o Bakhtin do
Autor herói tinha um conceito de autor, mas o Bakhtin do Marxismo, tem
outro....
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:00:22
Mensagem:
Tem alguém por aqui ainda ou estou na solidão cibernética?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:02:26
Mensagem:
Sua solidão não é tão só quanto a sua cibernética, Pessoa. Eu, pelo menos,
ainda estou aqui, mas realmente me senti incomodada com o silêncio.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:04:36
248
Mensagem:
Simone... também dei uns pitacos na tua fala, mas está acima... acho que
esta forma de escrever não está dando certo... começarei a colocar as
mensagens por~´ultimo...
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:00:48
Mensagem:
por favooooorrrr manifestem-se!
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:03:05
Mensagem:
Pessoa. Respondi acima...
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Marguerite
Data: 10/12/2003
Hora: 21:05:54
Mensagem:
Pessoa, esse silêncio é responsivo, viu?:-) Estava olhando o texto outra
vez...
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:01:28
Mensagem:
249
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:04:12
Mensagem:
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:07:01
Mensagem:
A questão do autor em Bakhtin, segundo Todorov, pode ser vista através do
que a Simone colocou anteriormente, na minha opinião. No início, Balhtin
via a relação autor/personagem como eu-isso. Quando criticava Dostoievski.
Depois, quando ~foi influenciado pelo seu próprio sujeito de pesquisa,
percebeu que o que Dostoievski fazia era colocar essa relação em termos de
eu-outro. O que acham?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:19:11
Mensagem:
eu observo que tem muito presente tanbto na proposição sobre dostoieviski
como de bakhtin a questào da alteridade e a construçào do argumento a
partir do outro ... não?
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:07:11
250
Mensagem:
Concordo, Clarice. É sempre mais fácil acessar a última mensagem do que
rastrar nossas falas nas páginas anteriores.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:08:45
Mensagem:
Engraçado... nas primeiras vezes que entrei neste forchat, achei que havia
uma certa prática de escrever logo após as mensagens porque eu ficava
esperando aqui em baixo, e nada acontecia... eu concordo que é muito melhor
assim...
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:10:47
Mensagem:
Eu vi sua intervenção, Clarice. Concordo, mas também não me lembro da
página.
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Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:12:23
Mensagem:
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:12:32
251
Mensagem:
Achei muito lindo, na última página, quando Todorov fala que o preceito de
Bakhtin é que "o sentido é a liberdade e a interpretaçâo é o seu exercício"
(p.20)
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Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:14:00
Mensagem:
Alguém já leu ou assistiu a peça de teatro "Seis personagens em busca de
uma autor"? Ela é uma conseqüência direta da crença na relação e-outro e
não eu-isso.
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:14:52
Mensagem:
Eu não conheço, Simone. De quem é?
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Usuário: Marguerite
Data: 10/12/2003
Hora: 21:15:30
Mensagem:
Na pg 8 a referência à mudança que se operou está bem colocada. Achei
interessante mais à frente o trecho que fala ser impossível assumir uma
verdade absoluta e que devemos nos contentar em citar ao invés de falar em
nosso próprio nome.
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Usuário: Simone
252
Data: 10/12/2003
Hora: 21:16:42
Mensagem:
Você tem razão, Clarice. Discuti isso uma vez , numa turma de letras, e os
resultados foram extraordinários. Deu cada texto de síntese que parecia
coisa de outro mundo!
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Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:18:40
Mensagem:
É do Luigi Pirandello, Clarice. Um texto incrível!
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:20:27
Mensagem:
Continuando... mas mais importante do que isso, é quando Bakhtin diz "
cumpre dizer tanto o relativismo como o dogmatismo excluem igualmente
qualquer discussão, qualquer diálogo autêntico, tornando-os seja inúteis (o
relativismo), seja impossíveis (o dogmatismo)" , página 19. Ou seja, muitas
interpretações podem existir, mas nem todas são possíveis. Quando adotamos
uma postura de que qualquer um pode dizer o que quiser sobre qualquer
assunto, tendo sempre razão, isto torna o diálogo impossível. Assim como os
dogmas, as leis, as grande s verdades generalizadas.... Se existe apriori
uma grande verdade, o que discutir? Não é maravilhoso!!!
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Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:20:39
Mensagem:
253
Só precisamos atentar, Marguerite, para o fato de que essa declaração constitui
uma ironia, que, segundo ele, é uma das características do discurso
contemporâneo. Se não, caímos no erro de achar que a fala de Bahk, como diz
a Salomé, contraria o exercício da autoria.
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Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:21:18
Mensagem:
Clarice, sobre a tua colocação em relação as observações de Simone eu tenho
observado que esta muito presente tanto na proposição sobre dostoieviski
como de bakhtin a questão da alteridade e a construção do argumento a
partir do outro ... não seria este o ponto a ser discutido antes de se
impor a análise e a produção dialógica de sentido?
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:30:06
Mensagem:
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Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:22:46
Mensagem:
Pois é, Clarice. Penso assim também. Não é necessário apenas interpretar. É
preciso ver na interpretação um fundamento, algo que dê a ela substância.
Se não, tudo não passa de um grande achismo sem razão. E diálogo pressupõe
não só aceitação da fala do outro, mas também contraponto.
-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=
254
Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:25:52
Mensagem:
Penso, Pessoa, que essas duas questões são inseparáveis na teoria
bahktiniana. Reconhecer a existência do outro é o ingrtediente para a
inserção deste como constitutivo do argumento. E precisamos manter em mente
o fato de que Bakhtin fazia sempre uma analogia profunda entre o mundo
ficcional e o real, como se um fosse uma "metáfora dialógica" do outro.
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:26:46
Mensagem:
Marguerite!acho que chegamos novamente em um questão já várias vezes
discutida.... falamos em nosso próprio nome? ou temos que nos contentarcom
citações? o que é o autor, em Bakhtin?
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Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:27:01
Mensagem:
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Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:28:29
Mensagem:
255
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:28:52
Mensagem:
Ou seja, onde está o autor em Bakhtin? Volto a afirmar, e acho que Todorov
também diz isso, que no Marxismo, a grande preocupação do Bakhtin era com o
social e, neste sentido, não havia lugar para o " autor individual"....
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:34:12
Mensagem:
Então, onde ele se coloca em Bakhtin? Eu penso que, telvez, ele esteja nos
coloridos, nas entoações, no extraverbal... o que acham?
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Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:30:07
Mensagem:
Caros amigos, sinto muito, mas vou precisr sair. Comecei a sentir sinais de
febre, devido a uma infecção de garganta, e meu corpo só tá pedindo cama.
Depois entro pra resgatar o que rolou depois da minha saída, ok?
Desculpem-me por hoje.
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Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:31:11
Mensagem:
256
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:31:14
Mensagem:
Pessoa! Nâo entendi muito o que tu queres dizer com " impor a análise e a
produção dialógica de sentido"? Podes explicar melhor?
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Usuário: Simone
Data: 10/12/2003
Hora: 21:36:12
Mensagem:
de discutirmos a questào da alteridade antes de entramos na discussào da
construçào dialógica de sentido. Ou seja, de como se percebe o outro antes
de falarmos no argumento do outro.
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:32:47
Mensagem:
Simone e pessoal. Conversei com a Margarete esta semana e reorganizamos o
cronograma. Mando umamensagem com as novas orientações logo que terminar o
forchat. Por enquanto, vou adiantando que, para o próximo encontro, vamos
ler "Os gêneros do Discurso", tá?
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Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:33:37
Mensagem:
257
sim Simone, Mas considerar o outro na construção do argumento nos remete
invetavelmente a questào da alteridade!
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:34:41
Mensagem:
Simone! Espero que fiques boa logo!!!
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Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:36:38
Mensagem:
E os encontros ... ficam na quarta?
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:39:21
Mensagem:
Sim, Pessoa! Das 20:00 ás 22:OO.
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:40:56
Mensagem:
Tem alguém aí?
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258
Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:43:40
Mensagem:
beleza
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Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:43:59
Mensagem:
Estou aqui Clarice e vc?
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:47:24
Mensagem:
Também... acho que só sobramos nós...
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:48:44
Mensagem:
Pessoa, não sei como separar estas duas questões... não me parece
possível... tens alguma sugestão?
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Usuário: Clarice
259
Data: 10/12/2003
Hora: 21:50:16
Mensagem:
Acho que a questão dialógica não é só uma questão de argumento mas,
fundamentalmente, uma questão do outro.... (o silencio do outro, o gesto do
outro, a resposta verbal do outro, ...)
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Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:52:36
Mensagem:
Por isso mesmo, acredito ser necessário que entendamos o outro e sua
construção antes de ir para o seu argumento manifesto.
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Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:50:56
Mensagem:
Podiamo ler todorov mesmo ... ou Marc Augé? que falam da alteridade e da
cionstrução do outro. para depois discutir o argumento de bakhtin ... uma
vez que isso nos daria o suporte para a compreensào do mecanismo de sua
produçào. o qua acha?
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:53:05
Mensagem:
Na verdade, acho que temos muitopouco tempo agora, daí a reorganização do
cronograma... Não conheço o Marc Augé. Mas o Todorov tem um livro sobre
Bakhtin. Nem lembrava disso... no entanto, o tempo...
260
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Usuário: Clarice
Data: 10/12/2003
Hora: 21:51:44
Mensagem:
Pessoa, acho que já vou indo para casa. A Faced fecha as 10:00 horas. um
beijo Clarice
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Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:52:57
Mensagem:
Beijo, Pessoa
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Usuário: Pessoa
Data: 10/12/2003
Hora: 21:57:16
Mensagem:
mas podemos fazer uma leitua orientada ou uma outra cadeira no semestre que
vem se naum der tempo ... eu sou parceiro para tocar contigo essa idéia ...
o que acha ... a gente segmenta agora e continua depois ...
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Usuário: Salomé
Data: 11/12/2003
Hora: 17:13:21
Mensagem:
Oi, gente! Como tinha avisado, ainda não posso participar às 4ªs feiras.
Então, li o que discutiram e troquei meu ícone para enviar umas flores
para vocês nesse fim de ano!!! Depois farei ao menos uma contribuição
assíncrona; hoje estou sem meu material. Aliás, estou com meus alunos, no
261
lab. do colégio, aproveitando um raro momento em que trabalham por conta
própria, sem solicitar-me incansavelmente...
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