Download PDF
ads:
DA FIGURAÇÃO À TRANSFIGURAÇÃO DA FANTASIA NA
CONSTRUÇÃO DO CASO: AS FICÇÕES METAPSICOLÓGICAS
Luís Fernando Barnetche Barth
Tese apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Doutor
em Psicologia do Desenvolvimento, sob a orientação da
Professora Doutora Maria Nestrovsky Folberg
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Psicologia
Curso de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento
Porto Alegre, dezembro de 2006.
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
A psicanálise é uma prática delirante, mas é o que se tem
de melhor, atualmente, para suportar esta situação
incômoda de ser homem. Em todo caso, é o que Freud
encontrou de melhor.
Jacques Lacan
Na psicanálise tudo é falso, menos os exageros.
Adorno
ads:
3
Para Erwin e Alice,
meus pais
4
AGRADECIMENTOS
Cronologicamente, podemos dizer que um Doutorado implica, no nimo,
quatro anos da vida de um pesquisador. É preciso que se enfatize o termo mínimo
porque um pesquisador não nasce no doutorado e, até chegar a um programa de
pós-graduação, é necessária uma longa, árdua e prévia caminhada. Por isso, quero
deixar aqui gravados meus sinceros agradecimentos às pessoas que, direta ou
indiretamente, participaram desse meu percurso:
Aos professores do Curso de Pós-graduação em Psicologia do
Desenvolvimento da UFRGS, pela oportunidade a mim conferida;
Aos professores examinadores da banca, Dra. Marta Regina de Leão
D’Agord, Dra. Ana Cristina Costa de Figueiredo e Dr. Mario Fleig, pelas
inúmeras e precisas sugestões;
À Professora Doutora Rita de Cássia Sobreira Lopes, relatora desta Tese,
pelas orientações e sugestões;
À Margareth Bianchessi, pela competência e presteza;
À professora Elisabeth Koelln, pelas sugestões nas idiossincrasias da
língua alemã;
Aos colegas do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise e Educação
(NEPPE), como Publikum desta pesquisa;
Aos alunos da disciplina ‘Prática de Pesquisa em Psicologia I’, Julia
Langaro Becker, Vera Lúcia Inácio de Souza e Vítor Butkus de Aguiar,
pela oportunidade instigante de exercício na orientação de pesquisa;
À Regina, minha esposa, pelo amor e companheirismo incondicionais;
Ao Dr. Isac Nikos Iribarry Isdra, pela amizade e pela alteridade valiosas;
À Professora Doutora Tania Mara Sperb, por ter suportado minha
insegurança diante das incertezas das primeiras horas;
Ao Professor Doutor José Luiz Caon, por ter me introduzido na Pesquisa
Psicanalítica e por mostrar que, para sermos bons ensinantes, devemos ser,
antes e sempre, bons aprendentes;
E, em especial, meus sinceros agradecimentos a minha orientadora,
Professora Doutora Maria Nestrovsky Folberg, por ter me acolhido no
momento mais atribulado dessa trajetória e por ter conduzido a orientação
de maneira competente e desafiadora.
5
Índice
RESUMO..............................................................................................................07
ABSTRACT..........................................................................................................08
I – INTRODUÇÃO..............................................................................................09
1.1 Justificativa...................................................................................................09
1.2 O Estudo de Caso.........................................................................................16
1.3 A Construção do Caso..................................................................................23
1.4 A Construção em Freud................................................................................31
1.5 A Memória em Freud...................................................................................37
1.6 O Caso Clínico como Ficção........................................................................40
1.7 O dispositivo Traço do Caso........................................................................55
1.8 Da Figuração à Transfiguração da Fantasia na Construção.........................62
1.9 Delimitação do Problema de Pesquisa.........................................................72
1.9.1 Questões Metodológicas Específicas.....................................................73
1.9.2 Objetivos................................................................................................81
1.9.3 Expectativas de Trabalho.......................................................................82
II – ESTUDO: A Pesquisa de Freud e Lacan a partir de Schreber................83
2.1 Introdução....................................................................................................83
2.2 Método.........................................................................................................85
2.2.1 Participantes...........................................................................................85
2.2.2 Instrumentos..........................................................................................85
2.2.3 Procedimento para Coleta de Dados......................................................87
2.2.4 Procedimento para Análise dos Dados..................................................87
2.3 Resultados....................................................................................................91
2.3.1 “Memórias de um Doente dos Nervos”, de Daniel Paul Schreber........91
2.3.1.1 Da Cronologia...................................................................................91
2.3.1.2 Das Memórias...................................................................................94
6
2.3.2 “Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de
Paranóia (Dementia paranoides)”, de Sigmund Freud.................................109
2.3.2.1 Do Livro de Schreber......................................................................111
2.3.2.2 Da Interpretação Freudiana.............................................................113
2.3.2.3 Considerações Teóricas..................................................................117
2.3.3 “De uma Questão Preliminar a Todo Tratamento Possível da Psicose”,
de Lacan........................................................................................................121
2.4 Discussão dos Resultados Ensaio Metapsicológico: Da Loucura da
Ciência à Ciência da Loucura..............................................................................134
REFERÊNCIAS.................................................................................................159
7
RESUMO
O Estudo de Caso é um método comumente utilizado nas pesquisas psicológicas e
psiquiátricas. Freud, ao fundar a psicanálise, seguiu o mesmo modelo,
apresentando estudos de caso a partir de tratamentos psicanalíticos ou de
documentos escritos, embora ele oferecesse uma ligação íntima entre os sintomas
observados e a história do sofrimento dos pacientes. Desenvolvendo um tipo
específico de intervenção psicanalítica chamada ‘construção’, Fédida propõe a
‘Construção do Caso’, a qual esvinculada à supervisão do caso atendido. Ao
examinar aspectos como a memória em psicanálise, a ficção, o dispositivo ‘Traço
do Caso’, o autor desta Tese estuda o recolhimento dos dados pelo analista-
pesquisador e sua conseqüente transformação em caso metapsicológico a ser
publicado.
O estudo baseia-se na leitura das “Memórias de um Doente dos Nervos”, de
Daniel Paul Schreber, nas “Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico
de um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides)”, de Sigmund Freud, e nas
contribuições de Jacques Lacan em ‘De uma Questão Preliminar a Todo
Tratamento Possível da Psicose’. O autor propõe considerar a ‘Construção
Metapsicológica de Caso’ como um todo de escritura do caso em sua vertente
ficcional, o qual parte da figuração trazida pelo paciente em tratamento,
recebendo, do psicanalista, uma transfiguração que garanta a sua inteligibilidade.
Para o autor, o caso publicado é sempre do analista.
Palavras-chave: Estudo de caso, construção do caso, ficção, Presidente Schreber,
figuração e transfiguração da fantasia.
8
ABSTRACT
Case Study is a common method used in psychological and psychiatric research.
Freud, when creating Psychoanalysis, followed this model and presented case
studies from psychoanalytic treatments or written papers, but offering an close
connection between the observed symptoms and the history of the patients
sufferings. Developing an specific type of psychoanalytic intervention called
“construction”, Fédida proposes a “Case construction” that is related to a
supervision of the case under treatment. When analyzing in Psychoanalysis such
issues as memory, fiction, the “trait of the case” device, the author of this Thesis
studies the data collection by the analyst-researcher and its subsequent
transformation in a meta-psychological case to be published.
The study is based in readings of Daniel Paul Schreber’s “Memories of my
nervous illness”, in Sigmund Freud’s “Psycho-Analytic notes upon an
autobiographical account of a case of paranoia (Dementia paranoides)” and in
Jacques Lacan’s contributions in “A preliminary question about any possible
treatment of psychosis”. The author suggests the consideration of a “Meta-
psychological Case Construction” as a writing method for the case in its fictional
side, that departing from the figuration brought by the patient to the treatment,
receives a transfiguration of the fantasy from the psychoanalyst which guaranties
its intelligibility. For the author, the published case always belongs to the analyst.
Key words: Case study, case construction, fiction, President Schreber, figuration
and transfiguration of the fantasy.
9
I – INTRODUÇÃO
1.1 – Justificativa
(...) para além da oposição tradicional entre ciência e
literatura, fatos e ficção, realidade material e
transbordamentos da imaginação, Freud vai inventar uma
outra realidade, a realidade psíquica, essa “outra cena”, esse
mundo do lapso, dos sonhos, dos atos falhos, dos jogos de
palavras, dos móbiles escondidos dos gestos da vida cotidiana
e dos bastidores da consciência habitual.
(Flem, 1988)
Não é fácil estabelecer as influências que concorreram para que Sigmund
Freud (1856-1939) concebesse a psicanálise, uma vez que várias são as correntes
constantes do Zeitgeist (espírito da época) que contribuem na formação do Freud
pesquisador. Seu primeiro contato com a Academia de Ciência deu-se através de
um estudo de zoologia marinha, mais especificamente sobre a estrutura gonádica
das enguias. Logo depois, com as drogas, buscou estudar seu efeito sobre o
cérebro em profundidade.
A ciência que, aos poucos, Freud passou a tecer foi denominada por ele
como sendo uma ciência natural (Naturwissenschaft), sem entrar na querela dos
métodos (Methodenstreit) que culmina na distinção desenhada por Dilthey entre
‘ciências naturais’ e ‘ciências do espírito’, estas também chamadas de ‘ciências do
homem’ ou de ‘ciências morais’. Outra divisão da ciência estabelecida à época de
Freud, segundo Assoun (1983), foi proposta por Rickert, introdutor dos conceitos
de ‘ciências da cultura’ e ‘ciências da natureza’, e por Windelband, introdutor da
distinção entre ‘ciências nomotéticas’ e ‘ciências idiográficas’. O termo
‘nomotético’ designa o método científico que visa o estabelecimento de leis
gerais, enquanto o termo ‘idiográfico’ designa o método científico que trata dos
fatos singulares.
Assoun (1983) refere que a escolha freudiana em definir a psicanálise
como uma ciência natural, em detrimento de uma ciência do espírito
(Geisteswissenschaft), deu-se porque Freud desconhecia outra forma de ciência. A
cientificidade, para Freud, está fortemente calcada nos modelos físico-químicos de
10
sua época, de modo que ciência (Wissenschaft) e ciência natural
(Naturwissenschaft) são uma mesma e única coisa. Milner (1996) também esposa
a idéia de que Freud se esforçava em conformar a psicanálise à ciência normal
como testemunho da conquista do mundo moderno. Por outro lado, esse autor
destaca que o ‘sonho da monografia botânica’ mostra a renúncia de Freud à
monografia como forma de expressão da ciência normal e a conseqüente
preferência dada ao livro, por melhor representar a obra e a cultura. A
Traumdeutung é o testemunho dessa escolha.
Conforme Mezan (2002), Freud tem como objeto descrever uma região da
realidade: o inconsciente; e tal descrição deve manter uma neutralidade em
relação à natureza do processo estudado. A inclusão da psicanálise entre as
ciências do espírito comprometeria o estudo dessa realidade. Além disso, a
interpretação utilizada na prática psicanalítica consiste em uma explicação
(Erklärung) e nunca em um exercício de compreensão (Verstehen). A Erklärung
tem a dupla tarefa de explicitar o sentido e estabelecer a causa de determinada
produção psíquica. Diz ele:
Segundo Freud, a psicanálise é uma ciência da natureza porque seu
objeto é um fragmento da realidade (o inconsciente) e porque seu
método respeita as articulações do objeto. Com isso, se reproduzem
conceitos que o definem, hipóteses que o reduzem às suas causas e o
incluem em classes, e leis universais que regulam suas manifestações.
Em oposição a isso, as ciências do espírito praticam um método
compreensivo que sublinha o caráter único de cada formação
estudada, desvelando o sentido daquela formação e avaliando o seu
valor segundo uma escala axiológica preestabelecida. No interior
dessa oposição, a postura de Freud se esclarece sem dificuldade: o
objeto da teoria psicanalítica é o funcionamento psíquico do ser
humano, que pode ser descrito independentemente de suas
manifestações singulares nas pessoas “independentemente”, é claro,
por uma decisão metodológica que abstrai o significado individual
deste sonho ou deste sintoma, sem prejuízo da singularidade que
vigora na dimensão prática da terapia. Dito de outra forma, à teoria
interessam os processos psíquicos na sua dimensão supra-individual,
ao passo que à terapia interessa a maneira singular pela qual eles se
organizam e se manifestam em cada paciente [grifos do autor]
(Mezan, 2002, p. 484).
Se Freud a psicanálise como uma ciência empírica, percebe uma
distância entre sua contribuição e as demais disciplinas. Ao escrever o artigo “Das
Interesse an der Psychoanalysepara a revista italiana Scientia”, em 1913, ele
apresenta o interesse que a psicanálise pode ter para as demais áreas do saber
11
humano, caracterizando cada um desses sítios como sendo de uma ciência
especial (Spezialwissenschaft). O artigo fora escrito por encomenda, uma espécie
de texto programático do qual Freud não poderia declinar segundo comentário
feito a Pfister (Freud e Meng, 1998, p. 83).
Stein (1997) mostra os equívocos suscitados pela tradução para o inglês
e, deste, para o português do artigo de 1913. O uso do genitivo subjetivo no
título da tradução (“O Interesse Científico da Psicanálise” ao invés de O Interesse
na Psicanálise), o qual é evitado por Freud (1913/1974) no original alemão, torna-
o ambíguo e, por outro lado, passa a idéia da psicanálise como uma nova ciência a
triunfar sobre as demais. Stein acrescenta:
Freud, certamente, expõe no texto conquistas da psicanálise, mas não
reclama estatuto científico para elas por parte de outras ciências. O
que importa é mostrar o proveito que estas podem tirar da psicanálise
para as suas investigações. Há, portanto, uma contradição flagrante
entre título e texto, ou ao menos o que o título “traduzido” (traído)
mostra, não é a intenção primeira de todo o texto (p. 118).
Da reivindicação dos tradutores de Freud de um status científico para a
psicanálise, Stein (1997) retira as seguintes conclusões: em primeiro lugar, uma
tentativa de igualar o comportamento científico da psicanálise ao das demais
ciências (o que ela sequer necessita). Em segundo lugar, isso apontaria para uma
incompreensão do novo objeto que a psicanálise funda, na medida em que não
reivindica o aval dos outros campos científicos. A terceira conclusão é relativa à
insuportabilidade do saber ‘absolutamente outro’ que a psicanálise inaugura em
sua condição de Unheimlich (estranho). Na quarta, o autor vê, nos equívocos de
tradução, manobras de dissimulação, ou mesmo lapsos, que protegem as posturas
científicas ao requerer a gênese científica da psicanálise. E, por último, que, ainda
hoje, perplexidade entre as ciências e a psicanálise quanto ao lugar exato que
devem ocupar as suas relações.
Ao discorrer sobre a natureza do psíquico, em um texto publicado após
sua morte, Freud (1940/1975) lembra que, para o filósofo alemão Theodor Lipps,
o psíquico é inconsciente e que o inconsciente é o verdadeiro psíquico. Além
disso, acrescenta que o conceito de inconsciente foi manipulado de forma
distraída pela filosofia e que jamais foi acolhido pela psicologia. Embora a ciência
não tenha achado uso para o conceito de inconsciente, a psicanálise deu outra
abordagem a esse conceito. Assoun (1996) diz que (...) o ‘inconsciente’ deve ser
12
concebido radicalmente como objeto metapsicológico, como Grundbegriff
1
[grifos do autor] (p. 30).
As distinções expostas até o momento por mim são atuais e servem para
evidenciar as relações entre a psicanálise e a psicologia, pois, se ambas se ocupam
das mazelas humanas, o fazem de perspectivas diferentes, ou seja, dão ao
sofrimento humano um entendimento diferente. Birman (1994) acrescenta:
A metapsicologia não se identifica absolutamente com a psicologia, na
medida em que esta pretende realizar o estatuto da consciência e a
psicanálise se funda na pesquisa do inconsciente. Centrada no
inconsciente, a psicanálise pretende ultrapassar o registro da
consciência e se aproximar do funcionamento das pulsões. Vale dizer,
a psicanálise o é uma psicologia das faculdades do eu, baseada na
introspecção, mas pretende ser uma analítica do sujeito [grifo do
autor], centrada na palavra e na escuta, baseando-se para isso na
interlocução psicanalítica (p. 19).
Uma outra saída para a questão da cientificidade da psicanálise é a
esboçada por A. Figueiredo (2001) na apresentação do livro por ela organizado ao
comentar o texto freudiano “A questão de uma Weltanschauung”, de 1933.
Reiterando a afirmação de Freud de que a psicanálise, apesar de não criar uma
Weltanschauung, não está fora do campo da ciência, pois pode unir-se a ela
através da adesão a uma Weltanschauung, a pesquisadora entende que a
psicanálise não teria outro lugar fora desse campo. Baseada na letra de Freud,
Figueiredo assevera: “A psicanálise, para ser ciência, deve manter-se restrita a seu
trabalho de pesquisa e terapêutica, elaborando seus métodos como uma ciência
[grifo da autora]. Isto já é o bastante” (p. 9).
Atualmente, segundo Mezan (2002), a distinção entre ciências da natureza
e ciências humanas não pode mais ser dada da mesma forma como à época de
Freud, ou seja, definida entre universal e singular ou entre a explicação e a
compreensão dos fenômenos, na medida em que, no nosso meio acadêmico, ela
está colocada na diferença entre métodos experimental e não-experimental. Ainda
para o autor, no método experimental, a singularidade é irrelevante, enquanto nas
ciências humanas leva-se em conta a singularidade do objeto, na medida em que
se busca alcançar um âmbito supra-singular. O método clínico – por não ser
experimental situa a psicanálise ao lado das ciências humanas, abandonando-se
1
Conceito fundamental.
13
a designação de empírico na acepção de Freud, como sinônimo de uma
investigação da ciência da natureza.
Para aqueles que vêem a psicanálise como campo necessariamente distante
da academia, saliento que Freud, como homem de seu tempo, lançou mão de todo
o conhecimento disponível da época para a construção de seu corpus teórico,
buscando, quer nos laboratórios de fisiologia, quer na leitura das obras literárias
as quais sempre considerou imprescindíveis para a formação de analistas (O.
Mannoni, 1994) –, elementos para compor sua grande obra. Freud não foi um
grão-mestre de alguma seita secreta, capacitando seus asseclas através do ensino
esotérico (interno e preponderantemente oral) de suas descobertas, mas um
pesquisador que, ao transformar seus achados em ensaios, buscava, na alteridade,
considerações capazes de ratificar ou retificar suas idéias. A pesquisa freudiana é,
sem dúvida, transdisciplinar.
Ainda que as influências sofridas por Freud estejam sujeitas a reiteradas
revisões e mesmo que a inclusão, ou não, da psicanálise no campo científico
levante inacabáveis contendas, é inegável a importância da psicanálise bem como
do legado freudiano. Quanto às influências geradoras do movimento psicanalítico,
afirma L. Figueiredo (2000):
Cabe ressaltar o fato de que, em que pesem suas origens díspares e sua
comentada riqueza, a psicanálise nada tem de eclética as diversas
inspirações foram integradas a um conjunto original, o que torna
marcante o limiar entre sua história e sua pré-história, aonde as
diversas origens conservam sua independência e ainda são passíveis
de análises isoladas (p. 96).
Segundo Mezan (2002), toda criação científica dá-se pela apropriação e
diferenciação de algumas idéias em relação às postas em determinada época
sobre determinado objeto de estudo, rompendo com aquilo que podemos designar
como Doxa
2
. Assim, a história da psicanálise, para o autor, pode ser
compreendida a partir do que e com quem Freud aprendeu, da ruptura e da
transformação da ciência de sua época contra os próprios princípios científicos
vigentes.
2
“A Doxa é a opinião corrente, o sentido repetido, como que casualmente. É a Medusa:
ela petrifica os que a olham. Isso quer dizer que ela é evidente” (Barthes, 1977, p. 131).
14
Essa digressão teve o objetivo de situar esta Tese no campo científico, uma
vez que ela nasce em um Programa de Pós-graduação em Psicologia do
Desenvolvimento, o havendo a intenção de concorrer com as demais
metodologias. Todavia é preciso compreender as necessidades intrínsecas da
psicanálise, bem como a maneira peculiar de estudar seu objeto, não menos
peculiar.
Estar lado a lado com a ciência e mostrar-se como uma ciência é um
compromisso ético que a psicanálise não pode perder, na medida em que é a
disciplina que estuda o inconsciente. M. Mannoni (1982) vê, em Freud, um duplo
discurso: um que se pretende científico, outro que se abre aos mitos, por nos
lembrar que somos passíveis de nos deixarmos enganar pelo saber. A autora
conclui que tomar a teoria analítica por um saber dominado, sem erros, traria
danos à psicanálise, pois suplantaria a dimensão da verdade.
A forma clássica de apresentação dos achados psicanalíticos dá-se,
principalmente, através dos casos clínicos apresentados integralmente ou mesmo
de excertos de tratamentos, com a finalidade de mostrar determinados aspectos do
funcionamento psíquico e da técnica psicanalítica. Às vinhetas de casos, podemos
acrescentar as próprias experiências e os próprios sonhos de Freud, que sustentam
suas teorizações em uma época na qual não havia muitos recursos disponíveis,
porque o número de pacientes ainda era pequeno.
A casuística freudiana inicia-se bem antes de Freud redigir as primeiras
notas de seus casos clínicos. O. Mannoni (1994) comenta ligeiramente a carta
escrita por Freud a Martha Bernays, então sua noiva, em 16 de setembro de 1883,
contando sobre o suicídio de Nathan Weiss, um colega de hospital. O. Mannoni
afirma ser esse relato o primeiro estudo de caso de Freud.
Ao compararmos, por exemplo, essa carta com a carta escrita em primeiro
de agosto de 1919, destinada a Lou Andréas-Salomé, na qual relata o suicídio de
Tausk, o encontraremos a mesma emoção, nem o interesse em uma tentativa de
explicação mais longa. Apesar de Freud (Freud e Andréas-Salomé, 1975) estar
interessado, como refere à destinatária da correspondência, no tema da morte,
trabalhado num texto que viria à lume no ano seguinte
3
e de contar com um
3
Além do Princípio do Prazer.
15
arsenal teórico muito consistente para tentar um entendimento do caso, limita-se a
afirmar que Tausk lutava contra o fantasma paterno.
Ainda que ele estivesse longe de publicar os conceitos psicanalíticos
quando da troca de correspondência, durante seu período de noivado, a
narratividade será mantida nas futuras histórias clínicas. A carta de 16 de
setembro de 1883, longa e densa, busca um entendimento diante de um ato de
difícil compreensão. Freud (1882-1886/1988) descreve os fatos de seu
conhecimento no intuito de achar as razões para o suicídio de Weiss. A descrição
é rica em detalhes e foge aos termos comuns a uma carta de amor. Ele está imerso
em sentimentos e termina o seu relato extenuado.
Podemos encontrar, nessa época, um Freud (1883/1988) preocupado em
entender a alma humana de forma própria, pois não aceita as hipóteses levantadas
pelos colegas de hospital e pelos parentes do morto. O missivista noticia a Martha
que, ainda que as razões do suicídio de Weiss fossem desconhecidas, não havia
dúvidas de que estivessem ligadas ao seu casamento. Freud comenta com a noiva
as relações familiares do colega, dando ênfase ao aspecto negativo da figura
paterna de Weiss, como um homem vaidoso e autoritário, em contraste com a
imagem da mãe, boa e submissa. Discorre sobre a personalidade de Nathan Weiss
e de como ele era alvo de comentários no hospital onde trabalhavam. O esforço
para granjear uma boa posição profissional e a autoconfiança excessiva
imprimiam um tom de descoberta em tudo o que fazia, contrastando com as
decepções na vida amorosa.
Freud (1883/1988) também o se furta de comentar com sua amada as
dificuldades encontradas pelo colega para desposar a jovem que ele amava. A
noiva não parecia absolutamente decidida pelo matrimônio. E, diante das mútuas
acusações entre as famílias de Nathan Weiss e de sua viúva, Freud afirma,
categórico:
Disposto a esclarecer, o mundo levantou as mais cruéis acusações à
desgraçada esposa. Eu não acredito nisso. Creio que experienciar o
conhecimento de um duro fracasso, a raiva por uma paixão não
correspondida, a cólera de ter renunciado a sua carreira científica
inteira, toda sua fortuna pela infelicidade doméstica; talvez também o
dissabor de ter renunciado ao dote prometido, além disso, a
incapacidade de se colocar diante do mundo e confessar isso, tudo de
que gosta a desmedida futilidade do homem, a quem a inclinação para
pesadas aflições não faltava, foi levado ao desespero depois que uma
série de cenas lhe esclarecera sua situação. Ele morreu pelo excesso de
16
suas qualidades, por seu doentio e negativo amor-próprio, assim como
por suas exigências direcionadas para algo mais nobre
4
[a tradução é
minha] (p. 55).
Observamos como Freud (1883/1988) busca uma explicação refinadamente
psicológica, apelando para um entendimento que foge ao senso comum. Sua
entrada no campo psicanalítico dá-se pela tentativa de apresentar a Martha uma
explicação para um comportamento tão extremo e inquietante como o suicídio do
colega Nathan Weiss, na forma de um estudo de caso. Esse método é de uso
freqüente e consagrado também pela psicologia e pela psiquiatria. Convido os
leitores, então, a examinar, mais detidamente essa ferramenta científica.
1.2 – O Estudo de Caso
Mais do que uma escolha metodológica, o estudo de caso está diretamente
ligado ao objeto a ser estudado, que é o próprio caso em questão. Stake (1994)
refere que o estudo de caso é utilizado em diferentes práticas profissionais,
podendo receber, inclusive, outros nomes. Para o autor, essa designação tem o
objetivo de indicar que a ênfase dada é sobre a compreensão dos elementos de um
caso único, mais do que a generalização para além dele, a qual não é evitada, pela
simples razão de não poder ser realizada.
Nesse sentido, alguns casos podem ser vistos pelos determinantes
quantitativos, outros, pelos qualitativos ou pela mistura de ambos, dependendo do
aspecto a ser estudado. Um caso pode ser simples ou complexo, desde que tenha
um funcionamento específico, um sistema concebido por comportamento
padronizado no qual se destacam a consistência e a seqüencialidade.
Stake (1994) afirma que a definição ‘estudo de caso’ é ambígua, pois é
tanto o processo de aprendizado sobre determinado caso quanto o produto de
4
Die Welt hat die hässlichsten Anklagen gegen die unglückliche Frau zur Erklärung
bereit. Ich glauge nicht daran. Ich glaube, die Erkenntnis, einen schweren Misserfolg
erfahren zu haben, die Wut abgewiesener Leidenschaft, der Zorn, seine ganze
wissenschafliche Laufbahn, sein ganzes Vermögen gegen häusliches Unglück aufgegeben
zu haben, vielleicht auch der Ärger, dass er um die ihm versprochene Mitgift geprellt
worden, dazu die Unfähigkeit, vor die Welt hinzutreten und es zu bekennen, das alles mag
den masslos eiteln Mann, dem es an Neigung zu schweren Aufregungen nicht fehlte, nach
einer Reihe von Szenen, die ihm seine Lage klarlegten, zur Verzweiflung gebracht haben.
Er starb an der Summe seiner Eigenschaften, seiner krankhaft schlechten Selbstliebe, wie
an seinen auf Edleres gerichteten Anforderungen.
17
nosso aprendizado. Mais correto seria chamar esse produto de ‘registro de caso’,
embora o autor lembre que o termo ‘estudo de caso’ tenha sido amplamente
estabelecido. Para Allonnes (1989), muitas vezes também é chamado de
‘observação’, embora freqüentemente extrapole essa função, pois integra dados de
diferentes fontes, como fichas médicas, dados de anamnese, testemunhos, fatores
histórico-culturais e institucionais. Para o autor, o termo ‘observação’ enfatiza o
estudo do material coletado, enquanto ‘estudo de caso’ designa o trabalho de
análise e apresentação do material extraído de uma pessoa em determinada
situação pesquisada, ainda que a observação seja a sua mola mestra. Allonnes
parece não acreditar em um trabalho que além do estabelecido pela observação
do material coletado, no qual a observação figura como dispositivo privilegiado,
e, como mostrarei mais adiante, a psicanálise rompe com esse modelo.
Podemos observar diferentes tipos de estudos de caso. Stake (1994)
classifica-os em: intrínsecos, instrumentais e coletivos. No intrínseco, debruçamo-
nos sobre um caso específico, no intuito de conhecer melhor suas peculiaridades,
como, por exemplo, o realizado com determinada criança ou na clínica. O caso é
de interesse per se, não representando outros casos ou ilustrando algum traço ou
problema. O estudo de caso intrínseco não é indicado nem para a compreensão de
algum construto abstrato ou fenômeno genérico, nem para a construção de uma
teoria.
Já, o instrumental é aquele no qual o caso tem papel secundário, como
suporte, por exemplo, para a compreensão de um problema ou de uma teoria. O
objetivo do pesquisador é externo ao caso, o qual pode ser, ou o, considerado
típico de outros casos, o que não impede que seja estudado em profundidade.
Quando o interesse do pesquisador não está voltado para um caso em
particular, vários podem ser estudados em conjunto, recebendo a designação de
estudo de caso coletivo ou, ainda, de pesquisa qualitativa multilocalizada.
Geralmente, o estudo de caso coletivo visa a um determinado fenômeno, a uma
população ou a uma condição geral.
Stake (1994) entende que essa classificação tem um caráter mais heurístico
que funcional, pois nem sempre os casos se adaptam a essas categorias. Interesses
múltiplos e, às vezes, capazes de sofrer modificações podem tornar a romper a
linha divisória entre estudos de caso intrínseco e instrumental, por exemplo.
18
Outras categorias podem ainda ser identificadas. O estudo de caso de
ensino, que tem por objetivo a aprendizagem, tem seu foco na ilustração de um
ponto, uma categoria ou um aspecto importante para a instrução. A biografia
figura como um estudo de caso especial pelas estruturas cronológicas exigidas e
pela proteção à individualidade humana, e, a ela, podemos acrescentar alguns
tipos de documentários de televisão e a prática do direito (Stake, 1994).
Allonnes (1989) apresenta cinco variações para um estudo de caso, quais
sejam: em psiquiatria, psicopatologia, sociologia, psicologia clínica e na
psicanálise. Originalmente, o estudo de caso tem seu emprego na psiquiatria a
partir do que o psiquiatra observa e ouve do paciente. Aqui, o estudo apóia-se na
anamnese e prepara o diagnóstico. Em psicopatologia, o campo alarga-se e
diversifica-se em virtude do aspecto a ser abordado, que pode ser o sofrimento, a
angústia, os transtornos mentais e as doenças psicossomáticas. Em sociologia,
esses estudos debruçam-se sobre as histórias de vida, as trajetórias e situações.
Para a psicologia clínica, cabe o seu uso na extração da lógica interna singular de
uma história de vida. Nesse sentido, o estudo de caso sobrepuja a anamnese e o
diagnóstico, mas, ainda sim, permanece o aspecto clínico e psicopatológico. A
última das variações é relativa à psicanálise. O autor observa que os estudos de
caso magistrais freudianos, verdadeiras monografias psicanalíticas, foram
estabelecidos a partir dos tratamentos psicanalíticos Homem dos Lobos” e
“Homem dos Ratos” ou documentos escritos “O Presidente Schreber”. Ainda
assim, o estudo de caso em psicanálise guarda relação com o modelo psiquiátrico.
Para Allonnes, todos os casos citados acima não deixam de apresentar um caráter
de construção efetuada pelo pesquisador ou pelo praticante, realizada a partir dos
elementos coletados.
No estudo de caso, os pesquisadores visam identificar tanto o comum
quanto o particular do caso, mas, geralmente, chegam a um resultado único. Essa
singularidade estende-se à natureza do caso, aos seus antecedentes históricos, à
situação física, a outros contextos (econômico, político, legal), a outros casos e
aos informantes. Muitos pesquisadores buscam colher dados em todos esses
aspectos quando realizam um estudo de caso.
Para Newman e Benz (1998), os dados de um estudo de caso são
dependentes das estratégias utilizadas na coleta de informações. As técnicas mais
19
comuns são as entrevistas, as observações e o estudo de documentos e de registros
históricos.
Os pesquisadores que utilizam estudos de casos qualitativos se mostram
interessados em dimensões mais amplas do que os dos especialistas em
experimentos e dos testadores de hipóteses, as quais podem ser chamadas de
‘questões’. Essas questões visam organizar o estudo e nem sempre são utilizadas
na apresentação do caso a outras pessoas, porque não podemos confundir o
processo de observação com a apresentação de um caso. Para Newman e Benz
(1998), as questões iniciais de uma pesquisa são traduzidas em problemas mais
específicos e passíveis de serem investigados.
Normalmente, um estudo de caso é constituído de três etapas. A primeira
delas é relativa à reunião dos dados do caso. Em seguida, elabora-se um registro, a
partir do qual o pesquisador escreve a narrativa do caso. O registro e a narrativa
correspondem, respectivamente, à segunda e à terceira etapas (Newman e Benz,
1998).
Stake (1994) refere que muitos pesquisadores apostam no fato de o caso
poder contar sua própria história. Todavia o autor lembra que isso o é garantia
de que o mesmo contará tudo e da melhor maneira. Os estilos de apresentação de
um caso podem-se apresentar de formas realista, impressionista, confessional,
crítica, formal e literária, com o conteúdo evoluindo à medida que é escrito. Os
critérios de apresentação são decididos pelo pesquisador, o mesmo a decidir qual
é a própria história do caso e quais os elementos mais importantes, já que ‘contar
toda a história’ é impossível, porque esta não é apreensível.
Do pesquisador para o leitor, a apresentação do estudo de caso sofre uma
passagem perigosa para a pesquisa psicológica, em termos do conhecimento nele
envolvido, e os pesquisadores devem achar maneiras de proteger e validar essa
transferência de conhecimento, tanto para confirmar a observação quanto para
fazer a generalização. Stake (1994) ressalta o fato de que os pesquisadores de
estudos de caso acabam transmitindo alguns de seus próprios significados aos
aspectos estudados, em detrimento de outros.
Esse último ponto deve ser destacado, porque, sobre ele, recaem as mais
acirradas críticas. Como garantir a apropriação dos dados coletados durante a
observação, por exemplo, para uma forma final de apresentação do caso? Aqui,
destaco que os ‘próprios significados pessoais’, os quais parecem confirmar a
20
fragilidade desse método de investigação psicológica, são a condição sine qua non
para a efetivação de uma pesquisa psicanalítica, como veremos mais adiante.
Um último aspecto assinalado por Stake (1994) é quanto à ética. Na
medida em que o estudo de caso aborda os aspectos privados, um código de ética
estrito evita prejuízos à pessoa exposta, que a pesquisa se interessa por pontos
de vista e circunstâncias pessoais. Para o autor, embora os casos lidem com
assuntos de interesse público, o direito de saber, nem do público, nem dos
pesquisadores, que se sobreponha à garantia de privacidade.
As funções de um ‘estudo de caso’, na pena de Allonnes (1989), são:
informar e formar, relativas à descrição e à transcrição dos dados; ilustrar, pois é
incontestavelmente a melhor e provavelmente a mais rigorosa ferramenta de
ilustração; problematizar, estabelecendo uma relação de troca entre a teoria e o
material, evitando-se que aquela funcione de forma implícita por fazer referência
ao que não está dito; apoiar e convencer, na medida em que a questão não é
provar, mas convencer, mais por persuasão do que pela prova. Para o autor, trata-
se da imposição de um sentido ao qual nada no sujeito pode opor resistência.
Quanto à questão da generalização, o que sempre gera polêmica em se
tratando de um ‘estudo de caso’, Allonnes (1989) afirma que se pode aspirar a
uma forma limitada e controlada da mesma. Isto porque o ‘estudo de caso’ visa
extrair os processos e as variações de uma (ou mais) história singular a partir dos
elementos coletados, interessando, ou pela singularidade do caso, ou pelo estudo
dos seus procedimentos, ou, ainda, pelos modelos de funcionamento.
Vejamos, agora, um entendimento mais específico do estudo de caso para
a psicanálise. Um caso, segundo Nasio (2001), designa o interesse do analista
sobre um de seus pacientes. Essa acepção comum inclui o intercâmbio da
experiência com os demais colegas em supervisão ou em grupos de estudo, por
exemplo. Uma observação escrita do caso ganha o nome específico de ‘caso
clínico’.
Nasio (2001) lembra que a medicina também faz uso da designação ‘caso’,
quando faz o registro clínico de um sujeito portador de uma patologia e que é
representativo para essa doença. Freud (1893-1895/1974) ressalta que, embora os
casos clínicos escritos por ele possam ser julgados como psiquiátricos, eles
apresentam vantagens sobre estes por apresentarem uma ligação íntima entre os
sintomas observados e a história do sofrimento dos pacientes. Essa ligação,
21
segundo ele, está ausente nas demais histórias clínicas. Um exemplo disso é a
utilização de um caso clínico pela psiquiatria para a ilustração de uma alucinação,
sem que haja uma tentativa de estabelecer um sentido particular para a mesma no
indivíduo estudado. Então, diferentemente da psiquiatria e da psicologia, o caso
clínico psicanalítico exprime a singularidade do sujeito portador de um sofrimento
psíquico e da fala que ele dirige ao analista. Nasio define, assim, um caso clínico:
(...) definimos o caso como o relato de uma experiência singular,
escrito por um terapeuta para atestar seu encontro com um paciente e
respaldar um avanço teórico. Quer se trate do relato de uma sessão, do
desenrolar de uma análise ou da exposição da vida dos sintomas de
um analisando, um caso é sempre um texto escrito para ser lido e
discutido. Um texto que, através de seu estilo narrativo, põe em cena
uma situação clínica que ilustra uma elaboração teórica. É por essa
razão que podemos considerar o caso como passagem de uma
demonstração inteligível a uma mostra sensível, a imersão de uma
idéia no fluxo móvel de um fragmento de vida, e poderemos,
finalmente, concebê-lo como a pintura viva de um pensamento
abstrato [grifos meus] (p. 11-12).
A partir desta definição, Nasio (2001) destaca três funções de um caso
clínico. São elas: a didática, a metafórica e a heurística. Por função didática, o
autor compreende a capacidade de o caso transmitir uma teoria, despertando, no
leitor, a imaginação e a emoção. Assim, a psicanálise pode ser transmitida por
intermédio da disposição em imagens de determinada situação clínica. A
introdução no universo abstrato dos conceitos dá-se através da empatia do leitor.
Para Nasio (2001), o recurso da empatia favorece a catarse, através da qual
o espectador de uma tragédia, por exemplo, observa, desde o exterior, o que está
em seu interior, a partir das identificações imaginárias com os personagens. Na
apresentação de um caso clínico, o leitor também se identifica com o sofrimento
do paciente, aprendendo pelo mesmo princípio da homeopatia (Similia similibus
curantur), para o qual o semelhante se trata com o semelhante. A partir da
descrição da vida e dos sintomas de determinado paciente, o leitor identifica-se
com o caso. Depois, é pela generalização que o leitor poderá comparar o caso lido
com outras situações, descobrindo e elaborando um conceito que, até então, o
estava formulado.
A segunda função do caso clínico, a metafórica, surge da impossibilidade
de o pensamento ser capaz de apreender a verdade da experiência pelo concurso
do raciocínio formal. Assim, em muitos casos clínicos famosos, a observação
22
clínica e o conceito que ela evoca se ligam de tal forma que a observação substitui
o conceito, tornando-se uma metáfora dele. O ‘caso-metáfora’ adquire valor
emblemático a tal ponto de Nasio (2001) lembrar que Schreber, Dora e Hans são
arquétipos, respectivamente, da psicose, da histeria e da fobia.
A função heurística, segundo Nasio (2001), é a capacidade de “(...) o caso
ultrapassar seu papel de ilustração e de metáfora emblemática, tornando-se, em si
mesmo, gerador de conceitos” (p. 17). Isso se pela capacidade demonstrativa
de uma observação clínica de gerar novas hipóteses teóricas que alargam a teoria.
Um caso pode continuar a render novos conceitos, de que são exemplos os
conceitos de significante do Nome-do-Pai e de foraclusão retirados por Lacan do
caso Schreber, de Freud.
Das três funções de um caso clínico estabelecidas por Nasio (2001), a
didática parece-me problemática pela ênfase dada à empatia. Ainda que alguém
possa ser empático com a leitura de um caso clínico, esse recurso está longe de ser
preconizado pela psicanálise lacaniana esposada pelo próprio autor. Do contrário,
teríamos a possibilidade de lançar as bases do que eu chamaria de uma
‘psicanálise de auto-ajuda’. Acredito que a identificação empática não seja o
objetivo da psicanálise, nem mesmo como recurso para a sua transmissão, pois, ao
dar o mesmo princípio da homeopatia à aprendizagem de um caso clínico, o autor
restringe o nosso aprendizado, como psicanalistas, aos processos que também
podem ser encontrados em qualquer leitor. Então, como aprender aspectos de uma
estrutura diferente da nossa a partir da leitura de um caso clínico? E, mais, a
identificação empática garante por si só o aprendizado do que está em jogo em um
caso clínico? Essas perguntas parecem não encontrar respostas nas formulações
do autor.
O que leva um analista a escrever um caso a partir da seleção das histórias
ouvidas no consultório é, segundo Willemart (2005), a crença de que ele
descobriu algo de novo e de que, assim, pode contribuir para a reconstrução da
teoria. A clínica, para o autor, denuncia a ruptura do saber através de espaços
vazios no campo teórico, e são esses ‘restos’ que impelem o analista a escrever.
As expressões ‘estudo de caso’ e ‘caso clínico’ são de uso corrente para a
apresentação escrita das observações clínicas dos tratamentos psicológicos,
psiquiátricos e também psicanalíticos. Tendo em vista a singularidade do objeto
de estudo na psicanálise, opto pela expressão caso metapsicológico’. Todavia,
23
ainda é possível descrever uma concepção diversa e que recebe a designação de
‘construção do caso’, a qual desenvolverei a seguir.
1.3 – A Construção do Caso
A construção do caso, idealizada por Fédida (1989, 1991a, 1991b), é tema
recorrente nos trabalhos do autor e constitui um ponto de preocupação teórica.
Esboçada em seus artigos, oferece-se como ferramenta própria ao todo
psicanalítico de pesquisa, ao permitir o exame metapsicológico da dimensão
inconsciente posta em jogo em um tratamento psicanalítico. A construção do caso
é pensada pelo autor a partir do despertar clínico e crítico do infantil no processo
de análise. Fédida (1989) afirma que:
A construção está diretamente relacionada com o que, no tratamento,
tende a se repetir transferencialmente do infantil sob tal ou qual
modalidade da comunicação. E se é verdade que o analista apreende
rapidamente o infantil das modalidades de comunicação do paciente
na transferência, ainda não dispõe do inédito das palavras que lhe
permitiria a apresentação desta construção ao paciente. Tudo se
como se somente o tempo de um tratamento tornasse possível a
perlaboração desta primeira visão sobre o conteúdo da amnésia
infantil e como se o tratamento fosse justamente o “lugar” deste tempo
onde se recolocam em jogo ao se colocarem em jogo as modalidades
de comunicação inerentes ao esclarecimento das construções (p. 119-
120).
Relacionando a construção do caso ao tema da supervisão, Fédida (1991a)
discorre sobre algumas dificuldades observadas na apresentação de dados
expostos pelo analista a seu supervisor, na função de um terceiro. O autor trata o
encontro dos dois analistas de maneira a não dispensar o entendimento
metapsicológico envolvido, ou seja, utiliza-se de aspectos como memória,
pensamento e economia libidinal na forma concebida pela psicanálise.
Diferentemente do que se observa no estudo de caso psicológico,
trabalhado por mim no capítulo anterior, o analista encontra-se mergulhado no
caso que expõe, levando em consideração os seus próprios processos psíquicos na
concepção do caso a ser supervisionado. Assim, o relato trazido à lume na
supervisão não está menos afeito às leis inconscientes do que o próprio relato do
paciente; e Fédida (1991a) utiliza-se do mesmo rigor metapsicológico que anima a
prática analítica para o exame da memória do tratamento.
24
Nesse sentido, a memória evocada no relato das falas do paciente em sua
face empirista de objetivação enfatiza aspectos como a observação, a atenção
eletiva, a memorização e a síntese, os quais são elementos indispensáveis ao
modelo médico-psicológico de estudo de caso. A obrigação de tomar notas na
própria sessão, desaconselhada por Freud (1912/1975), ou depois dela, com a
finalidade de apreender o conteúdo verbal do paciente em sua dimensão
representativa da fala a ser relatada a um terceiro por ocasião da supervisão ou
controle –, obstrui o fluxo da linguagem em favor de um pensamento
retrospectivamente reflexivo.
A utilização do recurso de um gravador, como nos lembra A. Figueiredo,
Nobre e Vieira (2001), tem o efeito de intromissão de um terceiro, funcionando
como uma variável interveniente, a qual poderia comprometer o pacto
transferencial estabelecido entre paciente e analista. Não nos esqueçamos que a
transferência figura como a mola mestra de todo atendimento psicanalítico.
A atenção entendida como observação choca-se com a recomendação
freudiana de uma atenção eqüiflutuante em contrapartida à regra fundamental da
psicanálise para o paciente (regra da associação livre). Quanto a esse ponto, Freud
(1912/1975) expressa a seguinte regra:
Deve-se manter todas as suas influências conscientes afastadas de sua
capacidade de fixar a atenção e deixar-se completamente a sua
“memória inconsciente”, ou expresso de forma meramente técnica:
‘Escuta-se sem se preocupar em fixar qualquer coisa’
5
[a tradução é
minha] (p. 172).
A advertência freudiana fala em favor da capacidade de esquecimento,
uma vez que uma memória que tudo registra e nada esquece, segundo Fédida
(1991a), conforma-se com o modelo paranóico de comunicação interpessoal. Um
exemplo modelar encontra-se no Aufschreibesystem (sistema de transcrição)
concebido no delírio de Schreber. Nele, observamos como o registro de todas as
memórias impede o esquecimento e o conseqüente jogo significante. Em suas
memórias, Schreber (1903/1984) assevera:
(...) mantêm-se livros ou outras anotações nos quais há anos são
transcritos todos os meus pensamentos, todas as minhas expressões de
5
Man halte alle bewussten Einwirkungen von seiner Merkfähigkeit ferne und überlasse
sich völlig seinem “unbewussten Gedächtnisse”, oder rein technisch ausgedrückt: Man
höre zu und kümmere sich nicht darum, ob man sich etwas merke.
25
linguagem, todos os meus objetos de uso pessoal, todas as coisas que
possuo ou estão nas minhas proximidades, todas as pessoas com quem
me relaciono (p. 135)
Outra hipótese lançada pelo autor, a de um impressionismo subjetivo,
refere-se à recusa de reter os dados na memória em nome da “memória
inconsciente”, por ser esta alheia ao campo da análise. A rememoração em jogo
em uma análise o é propriamente uma atividade da memória, uma vez que o
infantil esfora do alcance da rememoração dos fatos ocorridos na infância. O
infantil de que trata uma análise é uma tentativa de constituição da memória de si
com a qual se evita o desaparecimento subjetivo.
O autor toma o sonho como modelo paradigmático, quando, através da
transferência, o impronunciável do infantil insiste em se enunciar de forma
repetitiva no presente. Para Fédida (1991a), a construção é “(...) a teoria e a
memória do infantil em estado de linguagem, ou seja, em sua condição de
constituição metafórica à escuta do paciente” (p. 179). Assim, Fédida chega a
dizer que, em uma sessão, não há nada para ser relatado a ninguém, na medida em
que o relato transforma o tratamento em objeto de uma memória narrativa, na qual
sobressai o registro dos acontecimentos em detrimento das palavras. O recurso da
supervisão torna o analista mais disponível à construção, isto é, mais disponível às
teorizações retiradas da memória do infantil.
Em “A Construção do Caso”, Fédida (1991b) toma como ponto de partida
o trabalho de supervisão com uma analista, no qual demonstra como o relato de
um caso de análise se transforma em uma construção do caso. No princípio do
processo de supervisão, a analista supervisionada traz a história do caso em forma
de relato dos acontecimentos da vida do paciente reiteradamente repetidos por ele.
Aos poucos, novos dados vão surgindo nesse relato, e, ainda que as hipóteses
levantadas no trabalho de supervisão não permitam uma interpretação, por serem
da ordem de uma fantasia, o “enigma do caso” vai se constituindo a partir dos
pontos cegos da analista e de seu supervisor. Cabe salientar que o objetivo não é
reconstituir a história do caso, mas construir o lugar psíquico singular da memória
pessoal relativo à constituição de qualquer acontecimento a partir das
possibilidades da linguagem.
Aqui cabe uma advertência. O enigma citado por Fédida (1991b) pode
ser entendido enquanto enigma da vida psíquica do paciente estabelecido a partir
26
da escuta oferecida por um analista, ou seja, o caso não está dado, pronto, antes do
advento da relação transferencial. Destarte, o analista está implicado no caso
levado à supervisão; de outra forma, poderíamos equiparar erroneamente a função
do analista à de um detetive na busca do elemento faltante para a elucidação de
uma questão, o que prenderia a concepção de caso ao relato histórico dos
acontecimentos da vida do paciente, e a “peça faltante” independeria do processo
analítico. Dito de outro modo, o enigma do caso se apresenta como enigma no
tratamento analítico, o que vai de encontro à visão popular de que Freud explica
tudo e de que os analistas estão sempre analisando seus interlocutores.
Um aspecto trazido pelo autor refere-se à apresentação pública. Para
Fédida (1991b), não é a originalidade psicopatológica ou a singularidade da
história do paciente o que constitui o caso, levantando, como primeiro ponto, que
o mesmo é redigido para ser publicado. Outro aspecto está no fato de que, ainda
que todas as falas e associações pudessem ser transcritas em estilo magistral, não
trariam em suas informações o conhecimento que a psicanálise permite de um
caso. Assim, Fédida conclui que “(...) na psicanálise, o caso é uma teoria em
gérmen, uma capacidade de transformação metapsicológica (...). Em outros
termos, o caso é construído. Enquanto tal, ele o pode proceder de um relato.
Não existe história de caso!” [grifos do autor] (p. 230). Mais especificamente, o
caso é construído “(...) a partir de sua capacidade ficcional de produzir modelos
clinicamente deformáveis e transformáveis” [grifo do autor] (p. 234). A
figurabilidade do texto teórico, possibilitando a legibilidade da clínica, é o que o
caracteriza como metapsicológico.
Contudo, ainda que a formulação acima mostre sua face abstrata, não
devemos menosprezar a importância da narratividade na qual se insere o relato
psicanalítico de um caso e suas descrições de situações e sintomas. É através do
relato que podemos chegar à produção da linguagem do figurável, a qual tem
como material a tentativa de o paciente suspender a amnésia e a rememoração
impossível de sua história pessoal e o trabalho do analista a partir de seu próprio
recalque, a fim de possibilitar a construção dessa memória impossível.
Aos trabalhos de Fédida, cabe somar alguns artigos escritos sobre o tema
para a Pulsional Revista de Psicanálise, de número 140/141. Nesse número,
D’Agord (2000/2001) afirma que a construção permite ao psicanalista fazer
27
inferências a partir dos fragmentos de lembranças surgidos no processo de análise,
já que eles não têm um sentido em si mesmos. A autora acrescenta:
A construção teórica de Freud originou-se, sem dúvida, das ficções
que ele elaborou a partir da sua escuta dos pacientes em análise. E não
haveria outra forma senão a construção, na medida em que o objeto da
psicanálise, o inconsciente como sabemos não aparece ao
observador diretamente, mas pelo equívoco, pelo não-dito (p. 13).
Aqui, assim como nas palavras de Fédida (1991b) transcritas acima,
observamos o uso do termo ficção como ferramenta de trabalho do psicanalista-
pesquisador na elaboração da teoria. A autora inclusive afirma, nesse artigo, que a
metapsicologia é uma ficção de conceitos que es fundamentada na obra
freudiana, no texto “Construções em Análise” (Freud, 1937/1975), isto porque a
teoria psicanalítica é constantemente questionada pelo inesperado do cotidiano da
clínica, onde o caso clínico passa a ser o acontecimento da clínica enquanto
clínica da escuta. D’Agord (2000/2001) faz referência à expressão freudiana
“apresentação indireta” (Freud, 1906/1976), dispositivo este capaz de revelar o
necessário sobre o paciente. É através da ambigüidade do conteúdo de uma
expressão inocente que o analista pode encontrar um sentido oculto.
A autora busca, na obra de Cyssau (1999), três direções para a construção
do caso em psicanálise. A primeira função do caso destacada por Cyssau é quanto
ao esclarecimento da estrutura psicopatológica subjacente. Nesse sentido, a partir
de um caso, podem-se demonstrar hipóteses generalizáveis, na medida em que
elas respondam ao critério da universalidade. Como segunda função, tem-se a da
descoberta e da evolução teórica, na qual sobressai o caráter singular e, nesse
sentido, não generalizável. O terceiro aspecto é quanto à capacidade de o caso
servir como exemplo demonstrativo da concepção teórica posta em jogo.
A partir daí, D’Agord (2000/2001) traz como exemplo a construção de
caso retirada de um processo de aprendizagem. Embora eu não tenha a intenção
de discorrer sobre o exemplo dado, chama atenção dois aspectos da teoria
freudiana destacados pela autora como fundamentais para o entendimento do caso.
São eles, respectivamente, o conceito de rememoração e o de repetição. O
conceito de rememoração é trabalhado na carta 52 (ou 112) de Freud a Fliess e
será retomado por mim no capítulo 1.5, dedicado à memória em Freud.
Ligado ao conceito de repetição, D’Agord (2000/2001) salienta a
importância dada por Lacan ao conceito de Nachträglich (après-coup) na teoria
28
freudiana. Para o psicanalista francês, a Nachträglichkeit é relativa às condições
de temporalidade e causalidade da vida psíquica, ou seja, o sentido da impressão
dos traços mnêmicos adquire eficácia em um tempo posterior ao da sua
inscrição no aparelho psíquico. Levando essa formulação às últimas
conseqüências, temos que o fato clínico
6
historicamente posterior é que determina
o que é anterior – e não o contrário, como uma psicanálise ingênua faria pensar.
Em outro artigo da mesma revista, Caon (2000/2001) contrasta diferentes
perspectivas produzidas a respeito de o “Homem dos Lobos”, quais sejam, o texto
de autoria do próprio Serguéi Constantinovitch Pankejeff (Gardiner, 1983); os
trabalhos realizados por Muriel Gardiner (1983) e por Karin Obholzer (1993)
sobre o Homem dos Lobos”; e as construções metapsicológicas feitas por
Sigmund Freud (1918/1976) e Ruth Mack Brunswick (Gardiner, 1983).
Caon (2000/2001) compara o texto de Pankejeff (Gardiner, 1983) a um
auto-retrato, enquanto os trabalhos de Gardiner (1983) e Obholzer (1993) recebem
a denominação de retratos do Homem dos Lobos”. Para o autor, ambos, auto-
retrato e retratos se utilizam da técnica de recomposição, como se buscassem as
peças faltantes para completar uma suposta totalidade do quadro e,
conseqüentemente, de um sentido único. Essa técnica aproxima-se da empregada
pelos detetives criminalistas e da técnica utilizada na escritura das histórias
clínicas de psicólogos e psiquiatras.
Para a construção de caso, não uma peça faltante que deva ser revelada,
mas, nas palavras de Caon (2000/2001), “(...) o significante ou significantes da
falta constituinte do sujeito e da subjetividade que a ressignificam” (p. 24). Ao
discurso do analisante, o analista pesquisador iopor um texto metapsicológico
surgido nesse tempo diferido, num depois que torna o caso uma
Nachträglichkeit do tratamento. Tendo em vista a especificidade encontrada numa
construção de caso, também proponho chamá-la de construção metapsicológica de
caso.
Assim, o caso metapsicológico distancia-se da história biográfica do
paciente e de seu mundo vivido. Uma apresentação metapsicológica de um caso
6
“Fato clínico é uma manifestação pregnante de elementos significativos da realidade
psíquica do paciente a serem trabalhados e transformados pela interpretação” (Barth,
2003, p. 47).
29
também se distancia dos discursos médico e psicológico e das formas de
apresentação de seus achados clínicos. Caon (2000/2001) vai mais longe, ao
identificar o caso psicanalítico com uma “ficção, invenção e teorização
metapsicológica do pesquisador psicanalítico” (p. 27). Uma prova disso é que os
casos produzidos por Freud (1918/1976) e Brunswick (Gardiner, 1983) a partir do
tratamento de o “Homem dos Lobos” não são coincidentes, isto é, Brunswick não
se apóia nem no cotidiano de seu analisante, nem se mostra como um suplemento
ao texto freudiano.
Freud (1930/1974) afirma que, às vezes, a psicanálise se põe a serviço da
biografia, fornecendo informações que mostram ligações entre a obra e seu
criador, informações estas que podem ser acessadas através do método
psicanalítico. As relações entre a biografia e as construções também são
evidenciadas pelo autor em seu trabalho sobre Leonardo da Vinci:
O que quer que seja a verdade sobre a vida de Leonardo, não
podemos desistir da nossa tentativa psicanalítica de sondagem, até que
tenhamos executado uma outra tarefa. Devemos determinar, de modo
geral, os limites que estabelecem a eficácia da psicanálise na
biografia, assim, não interpretaremos como um fracasso cada
explicação não levada a cabo. Como material, estão à disposição da
investigação psicanalítica os dados da história de vida: de um lado, os
acontecimentos acidentais e as influências do meio e, de outro, os
relatos das reações do indivíduo. Apoiada em seus conhecimentos dos
mecanismos psíquicos, busca, então, sondar dinamicamente o ser do
indivíduo a partir de suas reações, descobrir suas primitivas forças
pulsionais anímicas, assim como suas ulteriores transformações e
desenvolvimentos. Se isso tiver bons resultados, o comportamento de
vida da personalidade é esclarecido através do curso de constituição e
destino, forças internas e poderes externos. Quando tal operação não
oferecer resultados seguros, como talvez seja o caso de Leonardo,
então, a culpa não esnos defeitos ou insuficiências do todo da
psicanálise, mas na incerteza e na quantidade de lacunas do material
sobre ele fornecido pela tradição. Quanto ao fracasso, apenas o autor
pode ser responsabilizado por ter obrigado a psicanálise a dar aí um
parecer a partir de material tão insuficiente [a tradução é minha]
(Freud, 1910/1975, pp 156-157).
7
7
Was immer aber die Wahrheit über Leonardos Leben sein mag, wir können von unserem
Versuche, sie psychoanalytisch zu ergründen, nicht eher ablassen, als bis eine andere
Aufgabe erledigt haben. Wir ssen ganz allgemein die Grenzen abstecken, welche der
Leistungsfähigkeit der Psychoanalyse in der Biographik gesetzt sind, damit uns nicht jede
unterbliebene Erklärung als Misserfolg ausgelegt werde. Der psychoanalytischen
Untersuchung stehen als Material die Daten der Lebensgeschichte zur Verfügung,
einerseits die Zufälligkeiten der Begebendheiten und Milieueinflüsse, anderseits die
30
Os relatos autobiográficos de tratamentos, como fez Serguéi
Constantinovitch Pankejeff, podem ser considerados como um contracaso
(Chiantaretto, 1999), e podemos incluir nessa categoria os trabalhos de Gardiner
(1983) e Obholzer (1993) sobre o “Homem dos Lobos”. Para Caon (2000/2001),
assim como não possibilidade de um paciente produzir seu próprio caso
metapsicológico de forma teoricamente válida, também os casos tomados nas
perspectivas jornalística ou psicológica não desenvolvem questões
metapsicológicas.
Dessa vez, na pena de Caon (2000/2001), vemos aparecer a dimensão
ficcional como característica da construção metapsicológica do caso. Nessa
mesma perspectiva, Hoppe (2000/2001) afirma ser a publicação da experiência de
um tratamento psicanalítico mais do que o compartir de um comunicado formal.
Em consonância com sua escuta, o psicanalista re-inscreve o drama do paciente a
partir do reconhecimento e da ressignificação da experiência inconsciente. O
papel do pesquisador no contexto de uma pesquisa psicanalítica é assim definido:
A adoção de um modelo narrativo cede lugar à construção do caso do
psicanalista, e a transmissão respeitará seu estilo que marca o lugar,
pessoal e teórico do investigador. O que temos observado em nosso
meio, são narrativas que partem de uma mesma realidade clínica, da
descrição de fatos e ou história do caso, à aparição da patologia, seu
desenvolvimento e resolução. No nosso entender, o modelo que retira
o analista da experiência clínica, colocando-o no lugar do espectador,
afasta-se da singularidade do caso psicanalítico (Hoppe, 2000/2001, p.
62).
Como último artigo da mesma revista, temos a contribuição de Moura e
Nikos (2000/2001). Os autores buscam estabelecer uma diferenciação entre as
berichteten Reaktionen des Individuums. Gestützt auf ihre Kenntnis der psychischen
Mechanismen sucht sie nun das Wesen des Individuums aus seinen Reaktionen dynamisch
zu ergründen, seine ursprünglichen seelischen Triebkräfte aufzudecken sowie deren
spätere Umwandlungen und Entwiclungen. Gelingt dies, so ist das Lebensverhalten der
Persönlichkeit durch das Zusammenwirken von Konstitution und Schicksal, inneren
Kräften und äusseren Mächten aufgeklärt. Wenn ein solches Unternehmen wie vielleicht
im Falle Leonardos, keine gesicherten Resultate ergibt, so liegt die Schuld nicht an der
fehlerhaften oder unzulänglichen Methodik der Psychoanalyse, sondern an der
Unsicherheit und Lückenhaftigkeit des Materials, welche die Überlieferung für diese
Person bestellt. Für das Missglücken ist also nur der Autor verantwortlich zu machen,
der die Psychoanalyse genötigt hat, auf so unzureichendes Material hin ein Gutachten
abzugeben.
31
técnicas de ‘estudo de caso’ e ‘construção de caso’, para sugerir as vantagens do
emprego da última nas pesquisas psicanalíticas, bem como a utilização do ensaio
metapsicológico, como gênero literário, para a apresentação dos achados de uma
pesquisa psicanalítica. Para eles, o caso construído pelo psicanalista deve ser
apresentado à apreciação pública a partir da construção de um ensaio
metapsicológico, o qual promova a abertura de sentidos em relação aos dados
pesquisados. Cabe lembrar ainda que esse ensaio é sempre uma peça inconclusa,
que mais sugere, possibilitando novas escutas e práticas no campo psicanalítico,
do que lança um sentido fechado a determinado tema. Quanto à confecção de um
ensaio metapsicológico, Moura e Nikos (2000/2001) afirmam:
Assim, podemos definir a construção do ensaio metapsicológico como
uma refundação da experiência de análise, mas que ocorre em uma
situação psicanalítica de pesquisa, onde o destino da transferência não
é a liquidação, mas a sua instrumentalização. nela, como na
experiência do divã, uma aprendizagem e o ensaio metapsicológico
realiza o registro que a torna póstuma; ou seja, o pesquisador
psicanalítico seu testemunho por escrito, o qual destina-se ao
terreno da metapsicologia, onde poderá servir de referência a outras
pesquisas e à gestão de novos problemas e hipóteses de pesquisa (p.
76).
Dois pontos, entretanto, devem ser mais bem esclarecidos para que eu
possa avançar em minha linha de raciocínio. Tratarei de retomar os conceitos de
construção e memória em Freud.
1.4 – A Construção em Freud
Se ao menos pudéssemos fazer os melhores entenderem que
todas as nossas constatações foram deduzidas da experiência
(...), mas o de experiências que se possam “tirar da manga”
ou fantasiando na escrivaninha.
(Carta de Freud a Pfister)
Podemos encontrar exemplos de construções em alguns casos clínicos de
Freud, especificamente, na análise de o “Homem dos Ratos” (Freud, 1909/1976),
na de o Homem dos Lobos” (1918/1976) e também na história clínica da jovem
homossexual (Freud, 1920/1976). Todavia é no artigo “Construções em Análise”
onde Freud (1937/1975) apresenta suas considerações sobre o tema.
32
No referido artigo, Freud (1937/1975) inicia sua exposição defendendo a
psicanálise da acusação de que a interpretação dada ao paciente está sempre
correta expressa no princípio “Cara, eu ganho; coroa, você perde”. É verdade
que o ‘sim’ e o ‘não’ dados pelo paciente como resposta a uma interpretação não
garantem, necessariamente, a natureza correta ou incorreta da mesma. A partir daí,
o autor explica rapidamente a técnica psicanalítica.
As inibições e os sintomas do paciente são formados em conseqüência da
repressão de experiências e dos impulsos afetivos a elas ligados e que foram
esquecidos. Os sonhos, ainda que de maneira distorcida, mostram os fragmentos
destas lembranças pela técnica da associação livre a partir de alusões feitas às
experiências reprimidas. A transferência é o dispositivo utilizado pela técnica
psicanalítica para favorecer o retorno dessas conexões.
Para o analista, não es em jogo a tarefa de recordar algo que foi
esquecido, uma vez que nada experimentou e nada reprimiu. Sua tarefa consiste
em completar o que foi esquecido, em construir, a partir de traços deixados pela
experiência. O trabalho de construção, ou reconstrução, assemelha-se, segundo
Freud (1937/1975), ao trabalho do arqueólogo. Ambos, psicanalista e arqueólogo,
encontram dificuldades em reconstruir, por meio da suplementação e da
combinação, os restos que sobreviveram, embora, no caso de uma análise, o
material a ser tratado não está destruído, mas ainda vivo. Outras diferenças ficam
por conta de que os objetos psíquicos são muito mais complexos e que o analista
possui um conhecimento insuficiente do que pode encontrar. Concluindo essa
analogia, Freud diz que, na arqueologia, a reconstrução é o objetivo e o final dos
esforços do escavador, enquanto, na psicanálise, a construção é apenas um
trabalho preliminar. O trabalho analítico dá-se pela comunicação de um fragmento
da construção, para que este aja no paciente; então, um novo fragmento é
comunicado.
Geralmente, a interpretação é tida como a mais importante intervenção em
um tratamento analítico, pois esteve presente, desde cedo, na obra freudiana. Por
outro lado, Freud (1937/1975) acredita ser a construção o dispositivo mais
adequado à técnica analítica: “Interpretação aplica-se ao que se faz com um
elemento isolado do material, uma associação, um ato falho ou coisas
semelhantes. Uma construção é quando se apresenta ao analisado um fragmento
33
de sua esquecida pré-história”
8
[a tradução é minha] (p. 398). Em relação às
construções em análise, M. Mannoni (1982) comenta que:
(...) estas construções, o analista as recebe a partir de sua
problemática pessoal. Freud compara esse trabalho ao de um
arqueólogo, precisando que, com essa intervenção, o analista lança
uma ponte entre si próprio e o paciente (p. 31).
O espírito científico de Freud não se contentaria em esclarecer o papel de
uma construção sem verificar as garantias de êxito logradas por uma construção
na prática analítica cotidiana. A comunicação de uma construção errada ao
paciente não chega a causar prejuízo. Nesse caso, o paciente não reage à
comunicação com um ‘sim’ ou com um ‘não’, permanecendo intocado pelo que
foi dito. O perigo reside no fato de o analista, através da sugestão, impor sua
própria crença ao paciente; o que es longe de ser adequado à técnica
psicanalítica.
Um ‘sim’ como resposta a uma construção o tem valor per se,
necessitando da confirmação indireta de outros elementos, isso quando o paciente
não trouxer novas lembranças que complementem ou ampliem a construção dada.
A prática mostra que, muitas vezes, a resposta afirmativa pode favorecer o
encobrimento da verdade. Um ‘não’ tem menor valor ainda, pois, muito
freqüentemente, é fruto da resistência despertada pelo tema contido na construção
ou por algum outro fator em jogo no tratamento analítico. Freud (1937/1975)
lembra que, na medida em que as construções são parciais, pode o analisante
responder com um ‘não’ justamente em função de a comunicação ser incompleta.
As elocuções do paciente fornecem poucas provas da correção, ou não, de
uma construção, cabendo às formas indiretas a confirmação da comunicação do
analista. Assim, as expressões do tipo “nunca pensei nisso antes” e suas variações
são formas indiretas de confirmação. Outra maneira de confirmação muito bem-
vinda é quando o paciente faz associação com algo de conteúdo semelhante ao da
construção feita pelo analista.
Embora possamos imaginar que toda construção deva redundar na
recordação da situação reprimida pelo paciente, nem sempre isso acontece. Uma
8
Deutung bezieht sich auf das, was man mit einem einzelnen Element des Materials,
einem Einfall, einer Fehlleistung u. dgl., vornimmt. Eine Konstruktion ist es aber, wenn
man dem Analysierten ein Stück seiner vergessenen Vorgeschichte (…) vorführt.
34
convicção segura da verdade da construção expressa pelo analisante tem o mesmo
efeito terapêutico de uma recordação. Em alguns casos, os pacientes referem
recordações muito tidas ultraclaras (überdeutlich) de pormenores
relacionados ao tema da construção, embora nada lembrem com relação ao evento
reprimido em si. Nesse caso, Freud (1937/1975) garante haver uma nova
conciliação na qual traços de memória que se tornariam conscientes foram
deslocados pela resistência para outros objetos de menor significação.
Em o “Esboço de Psicanálise”, Freud (1940/1975) retoma o tema da
construção sobre o aspecto da transferência de conhecimento entre analista e
paciente. Baseado nas formações do inconsciente, o analista faz suas construções
acerca do que ocorreu interna ou externamente e foi esquecido pelo paciente. Para
que o nosso conhecimento também passe a ser o conhecimento dele do analista
e do paciente, respectivamente, nas palavras de Freud –, é preciso esperar pelo
momento adequado, ou seja, quando o paciente tenha chegado suficientemente
perto da construção que só reste um passo a ser dado.
O que é interessante ressaltar no artigo acima é que Freud (1940/1975) faz
clara menção ao fato de os acontecimentos sujeitos à construção por parte do
analista serem tanto da ordem interna quanto da externa. Ao afirmar a
possibilidade da construção de um acontecimento interno, Freud destaca a
importância da vida psíquica na qualidade de realidade para o paciente. Ainda no
mesmo artigo, podemos encontrar o uso da construção como o verdadeiro método
da pesquisa psicanalítica, o que vale a pena ser destacado:
Toda ciência se baseia em observações e experiências a que se chegou
através do veículo de nosso aparelho psíquico. Mas visto que a nossa
[grifo do autor] ciência tem por assunto esse próprio aparelho, a
analogia acaba aqui. Efetuamos nossas observações através do mesmo
aparelho perceptivo, precisamente com o auxílio das rupturas na
seqüência de ocorrências psíquicas”: preenchemos o que é omitido
fazendo deduções plausíveis e traduzindo-as em material consciente.
Desta maneira construímos [grifo meu], por assim dizer, uma
seqüência de ocorrências conscientes que é complementar aos
processos psíquicos inconscientes. A relativa certeza de nossa ciência
psíquica baseia-se na força aglutinante dessas deduções. Quem quer
que se aprofunde em nosso trabalho descobrirá que nossa técnica tem
fundamentos para defender-se contra qualquer crítica (Freud,
1940/1975, p. 184).
Ainda que Freud (1940/1975) pense estar imune às críticas, elas sempre
foram numerosas e contundentes. Em se tratando dos casos clínicos freudianos,
35
podemos destacar o trabalho de Borch-Jacobsen (1995) sobre o caso Anna O
(Freud, 1893-1895/1974). Para o autor, as discrepâncias entre os dados de um
segundo relatório, escrito, em 1882, por Breuer médico responsável pelo
tratamento da jovem, que, na realidade, se chamava Bertha Pappenheim –, uma
observação escrita por Dr. Laupus um dos médicos do sanatório Bellevue, da
cidade suíça de Kreuzlingen e os elementos revelados a Ernest Jones e a Marie
Bonaparte indicam que esse tratamento foi bem diferente do publicado por seus
autores. Assim, Borch-Jacobsen enfatiza que, paradoxalmente, o tratamento
fundador da psicoterapia moderna uma bela história que fez a volta ao mundo
não passa de um mito e continua a ser citado, perpetuando-se no discurso
psicoterapêutico, idéia também esposada por Rillaer (1980). Os mitos, segundo
Borch-Jacobsen, são impermeáveis à história, pois seu modo de validação não tem
nada a ver com a crítica histórica. Eles não necessitam ser atestados por nenhum
documento ou nenhum testemunho, sendo apenas suficiente sua repetição,
replicação e reiterada citação. Esse mito, nesse contexto, mascara uma verdade
intencionalmente dissimulada.
Vários pontos são questionados por Borch-Jacobsen (1995). Dentre eles, o
autor destaca que é falsa a idéia de que Breuer tenha abandonado a paciente e
partido, às pressas, para Veneza com sua esposa, concebendo uma criança nessa
viagem; que a melhora de Bertha não teria vinculação com o tratamento
empreendido; que as explicações teóricas de Freud adquiridas com Charcot, na
Salpêtrière, foram projetadas sobre o caso de Breuer; que também é falsa a crença
de que Breuer tenha utilizado a hipnose com fins sedativos, pois, em casos desse
gênero, o tratamento padrão era a administração de injeções de morfina e cloral; e
que faltam dados que confirmem a pseudociese
9
da jovem paciente descrita por
Jones (1979). Sobre o último aspecto, o autor é muito enfático:
Construída a golpe de indícios, de rumores e mentiras, a pseudociese
não foi um fantasma de Bertha Pappenheim. Ela foi um fantasma de
Freud, uma pseudolembrança destinada a atenuar retrospectivamente o
estrondoso fracasso da talking cure original [grifos do próprio autor]
(Borch-Jacobsen, 1995, p. 55).
Borch-Jacobsen (1995) conclui o seu livro criticando o uso intencional da
Nachträglichkeit por Freud. A origem da psicoterapia moderna, calcada
9
Gravidez psicológica.
36
insistentemente sobre o poder curativo da narrativa e da lembrança, é a reescritura
tendenciosa de uma narrativa anterior que não fala em narrativas fictícias,
tomando a interpretação por realidade e a ficção por verdade. Assim, para o autor,
há uma falsa lembrança no coração do mito moderno da memória.
O caso Anna O também ganhou uma visão lacaniana na pena de Safouan
(1991), para quem a cura catártica não se tratou, realmente, nem de uma cura, nem
de uma catarse. Safouan enfatiza que Breuer, ocupando a posição de analista ao
acaso, não utilizou o material comunicado por sua paciente com o intuito de
operar uma reestruturação de suas relações. É inequívoca a importância do papel
da transferência na remissão temporária dos sintomas de Bertha Pappenheim e
também é correto afirmar que o desconhecimento de Breuer das vicissitudes da
posição de analista fez com que ele, apesar de e por manter a posição de dico,
tenha também sucumbido à contratransferência. A cura malograda de Bertha
Pappenheim deveu-se ao desconhecimento da dimensão do desejo do próprio
analista.
Quanto à questão específica da rememoração de situações passadas, as
quais fazem parte do chamado material de análise, Lacan (1998) afirma
explicitamente, no seu artigo “Função e Campo da Fala e da Linguagem em
Psicanálise”, que a ambigüidade da revelação do passado de uma paciente
histérica o é devida ao conteúdo vacilar entre o imaginário e o real, na medida
em que se situa em ambos, assim como não se trata de uma mentira. Essa
ambigüidade é própria do nascimento da verdade na fala, cuja realidade não é nem
verdadeira, nem falsa. Para o autor, a verdade está na fala presente. A verdade é,
então, atestada por essa fala na realidade atual, fundando-a em nome dessa
realidade. A partir daí, Lacan assim define a memória:
(...) o se trata para Freud, nem de memória biológica, nem de sua
mistificação intuicionista, nem da paramnésia
10
do sintoma, mas de
rememoração, isto é, de história, fazendo assentar unicamente sobre a
navalha das certezas da data a balança em que as conjeturas sobre o
passado fazem oscilar as promessas do futuro. Sejamos categóricos:
não se trata, na anamnese psicanalítica, de realidade, mas de verdade,
porque o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências
passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as
constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presentes (p.
257).
10
Estado em que o indivíduo relembra fatos jamais acontecidos.
37
Como confirmação disso, Lacan (1998) diz-se plenamente de acordo com
as construções de Freud no caso “Homem dos Lobos”. Embora Freud busque uma
objetivação quanto à cena primária, não deixa de considerar necessárias as
ressubjetivações do acontecimento para a explicação de seus efeitos. Essas
reestruturações operam-se nachträglich (a posteriori), decidindo o rumo do
sentido a ser dado ao acontecimento original. Ou seja, na visão de Lacan, Freud
elide o intervalo de tempo no qual o acontecimento permanece latente no sujeito.
Assim, conclui o autor que o que serve de fundamento ao novo método que
recebeu de Freud o nome de psicanálise é a assunção de sua história pelo próprio
sujeito no que ela se constitui pela fala endereçada ao outro. Quanto a esse
aspecto, A. Figueiredo e colaboradores (2001) ressaltam:
Esta construção deve conjugar não somente uma interpretação dos
dados da experiência, mas algo mais. Algo fornecido pelo analista que
permita incluir na elaboração do caso uma espécie de ponto fixo que
está no campo do vivido subjetivo do paciente e que, uma vez
incorporado em nossa teorização, permite que esta seja apropriada por
ele com inabalável certeza. A esta operação Freud denomina
‘construção’ e a seu efeito validante, ‘convicção’ (p. 16).
Na medida em que venho tratando de aspectos esquecidos da vida do
paciente, submetidos à construção, torna-se necessário o exame do conceito de
memória para a psicanálise.
1.5 – A Memória em Freud
Ao tratarmos do tema relativo às construções em análise, acabei tocando
em um aspecto não menos importante e que se refere à concepção de memória em
jogo nas formulações freudianas. É preciso esclarecer, desde já, que a memória
referida por Freud, e que tem lugar de destaque em sua teoria, também é
concebida de forma original. Garcia-Roza (1998) esclarece a questão:
(...) temos que nos precaver contra a idéia de que ele [Freud] elabora
uma teoria da memória entendida como memória-lembrança, memória
de acontecimentos passados, memória da consciência. Não se trata,
em Freud, de uma memória da qual possamos fornecer uma descrição
fenomenológica, não é a mesma memória tomada como objeto de
estudo da psicologia (p. 44).
38
Ainda segundo Garcia-Roza (1998), na concepção do aparato anímico
freudiano, a memória não é uma faculdade surgida a partir da formação desse
aparato, mas pré-condição para a sua formação. O psíquico em Freud já inclui a
memória, e esta é inconsciente, não havendo psíquico sem memória. O modelo
tomado por Freud (Masson, 1986) na carta 52 (ou 112), por exemplo, torna
memória e consciência processos não concomitantes. Sua tese em relação à
memória é assim esboçada:
Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso
mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de
estratificação: o material presente sob a forma de traços mnêmicos
fica sujeito, de tempos em tempo, a um rearranjo, de acordo com as
novas circunstâncias a uma retranscrição. Assim, o que de
essencialmente novo em minha teoria é a tese de que a memória não
se faz presente de uma vez, e sim ao longo de diversas vezes, e que
é registrada em vários tipos de indicações [grifos do autor] (p. 208).
No artigo “Uma Nota Sobre o ‘Bloco Mágico’”, Freud (1925/1976) inicia
sua exposição tratando de duas formas freqüentemente utilizadas como auxiliares
no registro de dados de memória. Na primeira delas, uma folha de papel em
branco é o recurso escolhido, a fim de que possamos preservar uma nota. Nesse
recurso, a desvantagem fica por conta do limite receptivo da superfície da folha de
papel. Outra forma de registro é o efetuado com giz em uma lousa. Nela, podemos
fazer registros por tempo indeterminado, já que a superfície, ao ser apagada,
renova sua capacidade receptiva, mas destrói os traços inscritos anteriormente.
Utilizando-se de uma analogia com um pequeno dispositivo disponível em
qualquer loja de brinquedos e chamado de bloco mágico, Freud (1925/1976)
concebe o sistema percepção-consciência, o qual mescla as vantagens dos
recursos da folha de papel e da lousa.
O sistema percepção-consciência freudiano é capaz de receber as
percepções sem reter nenhum traço permanente delas (Dauerspur) na qualidade
de uma superfície sempre pronta a captar outras novas, enquanto os traços
permanentes são mantidos em ‘sistemas de lembrança’ (Erinnerungssystemen) por
trás do sistema perceptual. Para Freud (1925/1976), a consciência surge no
sistema perceptual em lugar dos traços permanentes. A memória é a capacidade de
reproduzir, desde dentro do sistema, os registros feitos.
Para Garcia-Roza (1998), o aparelho de memória idealizado por Freud é
concebido também como um aparelho que articula representação e linguagem. A
39
memória que interessa a esse aparelho é a relativa ao traço (Spur) de uma
impressão (Eindruck), assim como devemos conceber a memória como sendo
relativa a um texto. Para o autor, freqüentemente Freud emprega os termos traço
(Spur) e impressão (Eindruck) alternadamente e de maneira não muito precisa.
A impressão (Eindruck), segundo Garcia-Roza (1998), não constitui por si
uma lembrança, por isso ela não pode ser conservada na memória, a não ser
como traço ou representação. Ao não se constituir uma lembrança, a impressão
não pode ser evocada, mas construída. Dessa forma, ainda para o autor, a
impressão não é da ordem do significante, porque não se liga a outras impressões,
podendo ser considerada apenas como um signo, como um sinal ou um índice.
Então, podemos dizer que os traços (Spuren) de memória, incapazes de serem
recuperados, mas passíveis de serem construídos, são elementos constituintes do
aparelho anímico.
Por outro lado, ainda para Garcia-Roza (1998), o traço (Spur), na teoria
freudiana, é traço de uma impressão. É através da inscrição dos traços que uma
impressão mantém seus efeitos. A formação do traço, a seu turno, depende da
intensidade da impressão e da repetição, fatores responsáveis pela memória e
esboçados na citação de Freud (Masson, 1986) da carta 52 (ou 112).
Além da impressão (Eindruck) e do traço (Spur), Freud liga a memória em
relação a algo que deve ser concebido como um texto na dimensão onírica. Nessa
mesma carta a Fliess, Freud (Masson, 1986) concebe o sonho como um texto feito
de imagens e estruturado enquanto linguagem. É verdade que as imagens oníricas
têm valor de signos que remetem a outros signos, mas não às coisas que as
imagens representam, pois um efeito de distorção produzido pela censura. O
sonho é, então, um texto enigmático remetido ao Outro pelo próprio sonhador,
mas não enquanto indivíduo, enquanto um ‘Eu’, mas como sujeito do
inconsciente, e que depende da ordem simbólica para ser decifrado.
Corroborando a idéia acima, Lacan (1988) diz, no seminário A Ética da
Psicanálise”, que o sistema percepção-consciência, utilizado na percepção e no
registro dos estímulos, não está no nível do Eu, pois esse sistema é responsável
por manter o investimento igual, uniforme e, tanto quanto possível, constante. Tal
sistema também é responsável por regular o funcionamento do pensamento, mas a
consciência pertence, como lembra o psicanalista francês, a um outro aparelho.
40
1.6 – O Caso Clínico como Ficção
A revisão do conceito de construção levou-me ao exame desse conceito ao
longo da obra de Freud, obrigando-me, também, ao estudo da memória para o
referido autor. Feita essa digressão necessária, retomo o aspecto da ficção
abordado na apresentação do conceito de ‘construção do caso’.
A utilização da ficção como ferramenta do psicanalista pode, a princípio,
causar um certo desconforto. De fato, esse parece ser um recurso clássico da
literatura, tanto que Costa (1998) menciona que a ficção não chega a ter
propriamente um estatuto de conceito na psicanálise. A autora também afirma que
isso não constitui um impedimento, na medida em que o fundamento conceitual
psicanalítico é distinto dos encontrados nas demais disciplinas. Assim, é o efeito
capaz de ser produzido que da o caráter de bem fundado a um conceito
psicanalítico, uma vez que, antes da formulação teórica, o psicanalista
testemunho de sua escuta.
A idéia de que um caso clínico seja uma ficção nasce do fato de que o
relato de um tratamento psicanalítico jamais consegue reproduzir o acontecimento
concreto, mas sua história reformulada, a partir de uma reconstituição fictícia.
Portanto, segundo Nasio (2001), o caso é o relato elaborado pelo terapeuta como
reconstrução da lembrança de uma experiência clínica. As leis que restringem a
apresentação do caso e a adaptação do mesmo a uma teoria somadas à recordação
submetida ao desejo do analista, como filtro da vivência, dão um caráter ficcional
a ele. O autor acrescenta:
(...) o caso clínico resulta sempre de uma distância inevitável entre o
real de que provém e o relato em que se materializa. De uma
experiência verdadeira, extraímos uma ficção, e, através dessa ficção,
induzimos efeitos reais no leitor. A partir do real, criamos a ficção, e
com a ficção, recriamos o real (p. 18).
Quanto às relações entre a ficção e o real, isto é, na ficção como maneira
de termos acesso ao real, podemos encontrar essa preocupação também em Costa
(1998). Para a autora, o psicanalista situa na ficção uma forma de transpor as
barreiras encontradas ao se referir ao inconsciente:
(...) na clínica vamos encontrar a ficção como responsável pela
construção das figuras do Outro. É o que vestimenta ao Outro, que
a partir de então não apresenta somente sua face de linguagem,
41
adquirindo a consistência de uma presença, a consistência de um
corpo. Mesmo quando este corpo é somente um recorte ficcional sobre
o real (p. 62).
Ainda, como quer Sousa (2000), o caso é uma ficção clínica, que resulta da
exposição de uma hipótese teórica ao mesmo tempo em que tem a capacidade de
revelar o seu autor. Sousa acredita que o caso clínico psicanalítico pode ser
considerado um novo gênero literário, residindo nesse aspecto a explicação para o
fato de muitos lerem os casos de Freud como se fossem romances. Aliás, Freud
(1893-1895/1974) já nos advertira para isso:
(...) ainda me surpreende que os históricos de casos que escrevo
pareçam contos e que, como se poderia dizer, eles se ressintam do ar
de seriedade da ciência. Devo consolar-me com a reflexão de que a
natureza do assunto é evidentemente a responsável por isso, antes do
que qualquer preferência minha (pp. 209-210).
Em relação a esse aspecto, devemos lembrar que Freud foi homenageado
com o prêmio Goethe
11
de literatura em 1930, embora o se sentisse merecedor,
como afirma em uma carta a Lou Andréas-Salomé (Freud e Andreas-Salomé,
1975, p. 247). As inúmeras citações da obra do grande escritor alemão e a
conseqüente utilização da literatura por Freud indicam que o pai da psicanálise
tinha um estilo próprio de escrever, isto é, um estilo entre a linguagem artificial
científica e a linguagem culta de sua época (conforme pronunciamento de P.
Souza, 2003, setembro). Por essa razão, Freud continua sendo um manancial rico
também para outras áreas, além da psicanálise. Todavia o estilo freudiano também
é alvo de críticas. Para Rillaer (1980), “(...) as histórias dos casos clínicos,
redigidas de maneira cativante pelo laureado com o prêmio Goethe de literatura,
são facilmente apresentadas como prova empírica [grifo do próprio autor] de sua
teoria” (p. 393).
Após afirmar seu caráter ficcional, Nasio (2001) discorre sobre o processo
de escritura de um caso clínico. Segundo ele, um analista necessita de duas
condições mínimas para transformar uma experiência singular em um documento
11
Freud foi o quarto ganhador do Prêmio, concedido anualmente a alguma personalidade
cuja obra pudesse ser dedicada à memória de Goethe por sua capacidade criadora. Um
poeta, um músico e dico missionário e um escritor filósofo antecederam Freud,
respectivamente, nessa honraria. O Prêmio deveria ser entregue em Frankfurt, na casa
onde Goethe nasceu, após discurso do agraciado, relatando sua relação com a obra do
escritor, mas o estado de saúde de Freud não permitiu a ele participar da cerimônia, sendo
o discurso preparado para a ocasião lido por sua filha Anna.
42
a ser compartido com os demais estudiosos e pesquisadores psicanalíticos. A
primeira refere-se à capacidade de o analista ser receptivo e de se surpreender, o
que, segundo Nasio, depende de uma sólida formação teórica. Para a segunda
condição, o autor entende ser necessário que o terapeuta estabeleça e guarde, no
pré-consciente, o que ele chama de ‘esquema da análise’.
‘Esquema da análise’ é, para Nasio (2001), um conjunto de hipóteses
tecidas pelo analista a respeito da problemática do paciente. O ‘esquema’ dá-se a
partir do entendimento dos conflitos pulsionais do analisante, o que redunda na
singularização da escuta pré-consciente, na qual o analista reconstrói as principais
fantasias subjacentes aos sintomas analisados. Será através do ‘esquema da
análise’, na qualidade de uma construção, que o analista poderá fantasiar o
inconsciente do paciente durante a escuta, antes da interpretação. Esse momento
fecundo é visto pelo autor como pregnante e capaz de impeli-lo a escrever um
caso clínico.
O significante pregnante é recorrente na obra de Nasio. No livro “O Olhar
em Psicanálise”, o autor afirma que o termo pregnância vem da teoria da forma
em fenomenologia ou das teorias das catástrofes, uma teoria matemático-físico-
algébrica. Nasio (1995) o toma nenhum dos sentidos anteriores, definindo uma
imagem como pregnante quando “(...) uma forma imaginária seja ela qual for
provoca o prazer de nos ajustarmos a ela e, acima de tudo, de nos reconhecermos
nela. Chamamos de pregnantes a todas as formas que adquirem sentido para o eu”
(p. 21), ressaltando-se que, em psicanálise, o sentido resume-se ao sentido sexual.
Aqui, reúnem-se dois aspectos: o ‘esquema da análise’ forjado pelo saber
consciente e a ‘fantasia imajada’ possível graças ao inconsciente do analista. Para
Nasio (2001), “(...) a fantasia imajada é a emergência, no analista, do recalcado do
paciente” (p. 19). Para concluir, o autor define o porquê da escritura de um caso
clínico:
Primeiro, por necessidade, a necessidade irresistível de escrever, para
temperar a intensidade de uma escuta que se transforma em olhar.
Depois, por desejo, o desejo de dar um testemunho da vivacidade de
nossa atividade analítica. E por último, também escrevemos levados
pela certeza de pertencer à comunidade psicanalítica, por sua vez
nascida da formalização de uma experiência primordial – a de Freud
e consolidada, há um século, pelos inúmeros escritos nascidos da
prática de várias gerações de psicanalistas (pp. 21-22).
43
Como último elemento, Nasio (2001) refere-se ao sigilo quanto à
identidade do paciente. Para ele, duas regras devem ser respeitadas: em primeiro
lugar, deve-se mascarar todos os dados que possam identificar o analisante e; em
segundo, de que o caso’ seja lido pelo paciente, o qual deverá consentir a sua
comunicação e publicação. O autor lembra ainda que tal recurso deve ser feito
após o término da análise, a fim de que não haja perturbações no curso do
tratamento.
A necessidade de modificar os dados para que a identidade do paciente
seja preservada também recebeu a atenção e a crítica de Freud (McGuire, 1993),
que, na carta de 30 de junho de 1909 a Jung (carta 149F), ao comentar o caso de o
“Homem dos Ratos”, se queixa de ter de modificar as grandes obras criadas pela
natureza, dificultando a tarefa de descrever uma análise. Um comentário similar
foi feito ao pastor Pfister, em uma carta um ano depois, datada de cinco de junho
de 1910:
Acho, portanto, que a análise sofre do mal hereditário da virtude.
Ela é a obra de um homem decente demais, que também se sabe
comprometido com a discrição. Acontece que estas questões
psicanalíticas somente são compreensíveis numa certa totalidade e
minuciosidade, assim como a própria análise anda quando o
paciente desce das abstrações substitutivas para os pequenos detalhes.
A discrição é, portanto, incompatível com uma boa configuração de
uma análise. A gente precisa tornar-se um mau sujeito, jogar-se fora,
abandonar, trair, comportar-se como o artista que compra tintas com o
dinheiro do orçamento doméstico da esposa, ou aquece o ambiente
para a modelo queimando os móveis da casa. Sem tal dose de
criminalidade, não produção correta (Freud e Meng, 1998, pp. 53-
54).
Nesse breve comentário, podemos entrever um aspecto relacionado à
própria técnica psicanalítica e que também foi alvo da especulação freudiana: a
atenção ao detalhe. Em 1913, Freud (1914/1975) escreve anonimamente para a
revista Imago o artigo O Moisés de Michelangelo”, assinando como ‘de***’,
embora já o tivesse planejado desde 1912. Segundo a breve introdução, Freud
visitou a estátua em setembro de 1901 no quarto dia de sua primeira visita a
Roma – tornando a visitá-la em outras ocasiões.
Em uma nota de rodapé associada ao título, os editores afirmam que
aceitaram a publicação do artigo, visto que o autor era pessoa conhecida do
círculo psicanalítico, cuja maneira de pensar se aproximava da metodologia da
44
psicanálise, embora tal trabalho não estivesse conforme as normas para a
publicação na Revista. A real autoria desse artigo só foi revelada em 1924.
De início, Freud (1914/1975) afirma, de forma anônima, não ser um
conhecedor de arte, embora fosse atraído por ela independentemente dos aspectos
formais e técnicos. Dentre as artes, o autor confessa dar maior atenção à literatura
e à escultura, exercendo menor influência sobre ele a pintura. Afora isso, a
música não exerceu maior influência sobre Freud.
Isto posto, Freud (1914/1975) declara não se permitir sentir sem que seu
lado racional explique o porquê dos sentimentos nele despertados. Assim, sua
tarefa diante da grande obra de Michelangelo é buscar transpor em palavras a
intenção do artista, supondo haver uma similitude entre a atitude emocional do
espectador e a força pulsional (Triebkraft) que concorre na criação artística. Ele
pergunta, então: “Mas por que a intenção do artista não pode ser descrita e
concebida em palavras como qualquer outro fato da vida anímica?”
12
[a tradução
é minha] (Freud, 1914/1975, p. 198). Para a concretização, e acreditando que
fosse a psicanálise a única capaz de dar conta da tarefa de transpor em palavras a
intenção do artista, Freud intenta uma interpretação (Deutung) da obra, ou seja, a
descoberta de seu significado e de seu conteúdo. Como exemplo, ele cita a
tragédia “Hamlet”, de Shakespeare, a qual parece ter seu efeito misterioso
revelado somente após as contribuições psicanalíticas sobre o Complexo de
Édipo.
Essa outra obra a merecer a atenção do pai da psicanálise, a estátua de
Moisés, foi esculpida em mármore por Michelangelo. Ela se encontra em Roma,
na Igreja de São Pietro in Vincoli. Possivelmente feita entre os anos 1512 e 1516,
essa estátua constitui apenas um fragmento da tumba que seria erguida ao Papa
Júlio II e representa Moisés segurando as tábuas dos 10 mandamentos.
É nas dúvidas suscitadas pela figura de Moisés que Freud (1914/1975) julga
estar oculto tudo o que de essencial e importante para a compreensão dessa
obra de arte. A partir daí, Freud descreve a escultura desse Moisés com cabeça de
Pan. Para ele, aquilo que não foi compreendido deu margem a percepções e
interpretações inexatas, principalmente no tocante à posição do braço direito, que
12
Aber warum soll die Absicht des Künstlers nicht angebbar und in Worte zu fassen sein
wie irgendeine andere Tatsache des seelischen Lebens?
45
repousa sobre as tábuas da lei, assim como em relação à mão esquerda, que
prende a barba ao corpo. Mais indefinida ainda é a fisionomia de Moisés, a qual
sugere, dependendo do crítico de arte, tanto ira e dor quanto a grandeza do
espírito de Moisés ou mesmo a total falta de significado da figura.
Outro ponto é relativo a que aspecto da vida de Moisés Michelangelo teria
imortalizado nessa obra. Seria uma visão do caráter de líder religioso ou de
algum momento específico da sua trajetória? Muitos críticos apontam o momento
histórico da descida do Monte Sinai, após ter recebido de Deus as Tábuas da Lei.
Nesse caso, a estátua representaria o instante anterior ao que Moisés arremessa as
Tábuas ao chão, ante o fato de seu povo infiel adorar o Bezerro de Ouro. De
modo geral, a figura mostra Moisés pronto para se levantar e agir.
Freud (1914/1975) lembra que a estátua em questão deveria figurar entre
outras cinco igualmente representadas sentadas, como tipos diferentes de modelos
do caráter humano vita activa e vita contemplativa –, excluindo a intenção de
representação de um momento histórico particular. Um esboço posterior mostra
que Moisés deveria ser acompanhado de apenas mais três figuras. Destarte, a
estátua de Moisés figuraria ao lado da escultura de Paulo. Outro par a representar
a vita activa e a vita contemplativa, Lia e Raquel, acabou por ser executado de
e até hoje permanece inacabado.
A conclusão a que chega Freud (1914/1975), em consonância com um dos
autores por ele citado, é a de que Moisés representa um específico tipo de caráter,
qual seja, a de um apaixonado líder da humanidade diante da resistência
incompreensiva dos homens. Assim, a figura representa o conflito de emoções
dando vida também às próprias experiências internas de Michelangelo, bem como
da personalidade do Papa Júlio II. Freud busca compreender a báscula
representada pelo ardor interno e a aparente tranqüilidade externa da postura de
Moisés.
No segundo capítulo desse artigo, Freud (1914/1975) lembra a
importância de Ivan Lermolieff, um conhecedor de arte russo que revolucionou o
mundo da arte através de sua técnica inovadora de reconhecimento da
autenticidade de uma obra. Segundo esse conhecedor, que, na verdade, era um
médico italiano de nome Morelli, a distinção entre o original e as cópias deveria
ser buscada não no aspecto geral da obra de arte, mas nos detalhes de menor
importância, como, por exemplo, na representação das unhas e dos lóbulos da
46
orelha. Para Freud, a cnica desenvolvida por Lermolieff-Morelli guarda
semelhanças com a técnica psicanalítica. Quanto a esse método, Freud é muito
incisivo:
“Creio que este método é parente próximo da técnica da psicanálise
médica, a qual também está habituada a adivinhar o latente e o oculto
a partir dos traços [Zügen] menosprezados ou o considerados, do
resíduo – do lixo – da observação”
13
[a tradução é minha] (p. 207).
Utilizando-se do estudo dos detalhes da obra, Freud (1914/1975) debruça-
se sobre dois aspectos insuficientemente explicados pelos críticos de arte, quais
sejam, a postura da mão direita e a posição das Tábuas da Lei. Ele tece minucioso
comentário sobre a maneira estranha com que Moisés segura sua longa barba e
também conclui que as Tábuas da Lei, a despeito de serem objetos sacros, foram
concebidas de cabeça para baixo e ligeiramente apoiadas sobre uma quina. Então,
isso leva Freud a pensar que a figura idéia de continuidade de um movimento
executado anteriormente e o o instante anterior a um acesso de fúria. Assim,
Moisés teria dominado seu impulso, ao se lembrar da importância de sua missão.
A figura guarda a representação de três divisões de camadas distintas à medida
que a olhamos de cima para baixo: o rosto faz menção aos afetos que foram
dominados; no meio da figura, encontram-se os evidentes traços (Zeichen) do
movimento reprimido (unterdrückten Bewegung); e o pé ainda se mostra na
posição da ação pretendida. Por outro lado, a posição do braço esquerdo, a
repousar a mão suavemente, ao mesmo tempo em que acaricia delicadamente a
barba, não fora ainda explicada.
Segundo Freud (1914/1975), a mudança na concepção desse Moisés, o
qual mostra um homem a reter sua crise de ira, pode ser considerada uma
blasfêmia, a despeito do que é descrito nas Sagradas Escrituras, o que corrobora a
hipótese de que Michelangelo não tinha a intenção de retratar um momento
histórico específico, mas a de mostrar a capacidade de Moisés de se defender dos
círculos inferiores da própria paixão em função das exigências de sua missão.
As explicações para as modificações na representação da figura de Moisés
estariam, segundo alguns críticos lidos por Freud (1914/1975), no próprio caráter
13
Ich glaube, sein Verfahren ist mit der Technik der ärztlichen Psychoanalyse nahe
verwandt. Auch diese ist gewöhnt, aus geringgeschätzten oder nicht beachteten Zügen,
aus dem Abhub – dem ‘refuse – der Beobachtung, Geheimes und Verborgenes zu
erraten.
47
de líder do Papa Júlio II e no comportamento deste em relação a Michelangelo.
Para Freud, a escultura reflete um misto de censura ao pontífice, por sua tentativa
de realizar sozinho o que custaria o tempo de mais de uma vida e, por outro lado,
uma advertência a si próprio. Michelangelo e o Papa Júlio II eram homens de
grandes objetivos.
Por fim, Freud (1914/1975) encontra, em um trabalho de Lloyd, os
mesmos resultados a que chegou antes de ler sua pequena obra. Como ele, Freud
também acredita que a postura de Moisés pode ser explicada como
conseqüência de um ímpeto anterior, embora Lloyd não utilize o exame dos
pormenores dissonantes para a sua interpretação. Para Freud, Michelangelo foi ao
limite de sua possibilidade de expressão, considerando que seu intuito fosse o de
fazer adivinhar a violenta tempestade de excitação no decurso do retorno à
tranqüilidade.
Novamente, vemos a importância dada aos traços (Zügen) pelo método
psicanalítico. Seguir as possibilidades sugeridas por eles, como no bonito artigo
freudiano acima citado, é optar por um distanciamento em relação à metáfora que
faz uma aproximação da técnica psicanalítica com o trabalho arqueológico. Aqui,
cabe fazer uma distinção entre o ‘detalhe’ e o ‘fragmento’.
A própria escultura de Moisés figura como um fragmento da monumental
tumba de Júlio II. Na metáfora arqueológica freudiana, esse fragmento faz alusão
ao todo da peça ou a sua ruína, pois é, a partir dele, que se pode inferir,
respectivamente para a arqueologia e para a psicanálise, o complexo
arquitetônico e o complexo inconsciente. Todavia a utilização dos detalhes
dispensa a presença de todos os elementos ou mesmo a referência a uma idéia de
todo. Segundo o que proponho para esta Tese, a visibilidade do traço mostra-se
no detalhe. Dito de outra forma, o detalhe revela o traço.
Proponho analisar o todo da obra arquitetônica, incluindo-se as
esculturas planejadas e que nunca foram realizadas, em relação ao conjunto de
traços (Spuren) constituintes quando comparados à formação do aparelho
anímico. Destarte, esses traços estariam determinados, ainda que jamais
tenham sido conhecidos dados a ver –, permanecendo irrecuperáveis tais quais
os traços de uma impressão. Todavia será através do detalhe mais anódino que
teremos acesso a esse traço (Zug) capaz de ressignificar a obra. Esse traço, em
48
sua qualidade de Zug, que, ao contrário dos Spuren, guarda em si uma relação
significante com a obra.
Freud (1914/1975) parte do fragmento da tumba figurado por Moisés, mas
é no detalhe desse fragmento que o psicanalista apoiará suas especulações. Pode-
se dizer que o detalhe toma corpo e ganha status de totalidade em si.
Diferentemente do fragmento, o qual estará sempre em relação ao todo
irrecuperável, o detalhe dispensa o todo, ou melhor, destaca-se dele como
elemento dissonante, mas significante, prontamente oferecido às construções.
O. Mannoni (1994) afirma que o artigo “O Moisés de Michelangelo” se
trata de um auto-retrato muito sincero de Freud, na medida em que foi escrito de
forma anônima. O autor salienta que Freud se via na mesma posição de Moisés
figura que, aliás, o fascinava –, ao enfrentar as divergências de opinião e as
ameaças de dissidências no seio do movimento psicanalítico. As Tábuas da Lei,
nesse caso, simbolizam as difíceis decisões buscadas por Freud.
Para O. Mannoni (1994), Freud não se analisou perante essa escultura da
mesma forma como fez com a obra “Édipo Rei”, de Sófocles. O autor observa que
aquilo que foi revelado por Freud é da ordem da resistência, concluindo que a
crítica de arte, assim como a própria arte, pode servir às nossas resistências.
Quanto a esse artigo freudiano, observa-se que Freud fala em nome
próprio no ‘Postscript’. Pode-se dizer, então, que Freud (1914/1975) faz uma
alegoria, na qual ‘de***’-Freud descreve um fragmento Moisés, em relação à
tumba de Júlio II para destacar e interpretar os detalhes dissonantes da figura,
utilizando-se da técnica de Lermolieff-Morelli sobre o reconhecimento da
originalidade de uma obra de arte.
Desse mesmo trabalho freudiano, Willemart (2005) faz a seguinte crítica:
de que a função do artista o é a de expressar seu inconsciente como imaginou
Freud em relação a Michelangelo –, ainda que as obras de arte toquem em sua
vida psíquica. Para o autor, o inconsciente do artista é inacessível sem suas
próprias associações no divã, e, assim, não é possível descrever o inconsciente do
outro. Todavia teorizações e detecções de efeitos do inconsciente na obra são
possíveis.
Willemart (2005) compara o trabalho de criação artística com a associação
livre no divã. O projeto inicial é abandonado, se o artista se deixar levar durante o
processo de concepção de sua obra. Destarte, tal qual ocorre no processo analítico
49
a partir do discurso do analisante, no processo de criação artística um
remanejamento do inconsciente à revelia do artista.
O que Willemart (2005) parece negar é o sentido de construção trazido por
Freud (1914/1975). O próprio artigo freudiano faz referências às contribuições de
diversos autores que buscaram uma interpretação dessa escultura de
Michelangelo. Calcado nessas diferentes versões, Freud oferece a sua visão, a
qual, como mostrado por O. Mannoni (1994), não deixa de refletir um misto do
caráter de Moisés e de Freud.
Retomando a questão do sigilo anteriormente indicada, Freud (1905/1972)
já se preocupava com a possibilidade de os dados revelarem a identidade do
paciente. Essa foi a causa de ter esperado por cinco anos até a publicação de
“Fragmento da Análise de um Caso de Histeria”, conhecido como “caso Dora”,
retirado do tratamento da jovem Ida Bauer, realizado entre 14 de outubro e 31 de
dezembro de 1900 (Flem, 1988).
Nas Notas Preliminares” desse artigo, Freud (1905/1972) faz importantes
afirmações sobre a apresentação da história de um caso clínico. Em primeiro
lugar, ele se diz embaraçado com o fato de publicar o resultado de suas
investigações, sem que outros pesquisadores pudessem verificar a natureza
surpreendente de seus achados. Na seqüência, afirma ter sido acusado de não dar
informações sobre seus pacientes e, agora, encontra-se na iminência de ser
acusado por revelá-las em demasia.
Freud (1905/1972) assevera que a apresentação de seus casos clínicos é
um problema de difícil solução para ele próprio. Tais causas são, por um lado,
atribuídas à natureza técnica e, de outro, às próprias circunstâncias. Ressalta,
então, que as causas das perturbações histéricas devem ser buscadas na
particularidade da vida psicossexual dos pacientes, assim como os sintomas são a
expressão de desejos inconscientes, e que a apresentação completa da resolução
de um caso pode implicar a revelação dessas particularidades.
Os psicanalistas não podem esperar que os pacientes derrubem as
resistências que dificultam a revelação de determinados dados, segundo Freud
(1905/1972), se souberem que tais dados possam ter uma finalidade científica,
bem como se torna inútil pedir a autorização do paciente para a publicação de sua
história clínica. Para o autor, o psicanalista assume deveres também em relação à
ciência, além dos deveres para com o paciente. Freud vê, no compromisso com a
50
ciência e com todos aqueles que sofrem ou sofrerão de determinado mal, as razões
para a publicação do que averiguou sobre as causas e a estrutura da histeria.
Ressalta, outrossim, ter tomado todas as precauções para evitar qualquer dano a
sua paciente.
Além de ter modificado deliberadamente tudo o que pudesse identificar a
paciente em questão, como, por exemplo, os nomes das personagens envolvidas,
Freud (1905/1972) teve o cuidado de fazer publicar esse artigo em uma revista
científica, o que significa restringi-lo ao rculo dos estudiosos. No entanto, ele
entende que, caso a história clínica de Dora caia nas mãos de Ida Bauer, ela o
encontrará nada que o seja de seu conhecimento e, ainda, apenas ela poderá se
reconhecer nesse relato. Freud garante modificar qualquer elemento que permita a
leitura de uma história clínica como um roman à clef
14
, mas garante que as
questões sexuais sejam discutidas com total franqueza, chamando os órgãos e as
funções sexuais pelos nomes apropriados.
Freud (1905/1972) especifica as dificuldades técnicas encontradas na
elaboração do “caso Dora”. A primeira delas refere-se à dificuldade no registro
escrito do material, durante as sessões com vistas à publicação do caso clínico,
pois a tarefa, além de abalar a confiança do paciente e de dificultar o seu processo
de associação, torna-se difícil quando o analista atende de seis a oito pacientes por
dia. A história clínica foi escrita de memória, depois de terminado o tratamento e
com interesse na publicação.
No caso específico dessa história clínica, o tratamento não durou mais do
que três meses e se desenrolou em torno do trabalho com dois sonhos. As
alterações feitas por Freud (1905/1972) não são significativas e falam a favor de
um ordenamento com o intuito de melhor apresentar o caso. Quanto a esse
aspecto, creio que não se pode dispensar uma certa narratividade ou, se
preferirem, uma apresentação fenomenológica do desencadeamento da doença e
de seu tratamento. A questão da construção em relação à apresentação dos dados
também está presente nestas notas preliminares, sem que ele utilize essa
denominação:
14
Diz-se da obra literária cujas personagens e situações, tomadas à vida real, podem ser
identificadas (Ferreira, 1999).
51
Em face da imperfeição de meus resultados analíticos, não me restou
senão seguir o exemplo daqueles descobridores cuja boa fortuna é
trazer à luz do dia, após longo sepultamento, as inestimáveis embora
mutiladas relíquias da antiguidade. Restaurei o que faltava, valendo-
me dos melhores modelos obtidos por mim de outras análises; mas,
como um arqueólogo consciencioso, não deixei de mencionar em cada
caso o ponto onde terminam as partes autênticas e começa meu
trabalho de restauração (p. 10).
Além da analogia de seu trabalho com o de um arqueólogo, Freud
(1905/1972) comenta uma imperfeição de seu trabalho, ou seja, não reproduziu
todo o processo de interpretação a que as associações da paciente foram
submetidas, detendo-se apenas nos resultados desse processo. Também destaca
que não se deve ter expectativas de que todas as questões relativas à histeria sejam
respondidas com esse caso, pois não se pode esperar de um único caso mais do
que ele efetivamente pode oferecer.
Algum dos pontos tratados nessas notas preliminares são novamente e
melhor esclarecidos no artigo “Conselhos ao Médico no Tratamento
Psicanalítico”. Pare efeito desta Tese, abordarei aqueles que tiverem ligação
com o recolhimento de material clínico e com a apresentação científica dos
mesmos.
Como primeira recomendação, Freud (1912/1975) aconselha que o analista
não se preocupe em memorizar todos os dados trazidos pelo paciente, apoiando-se
na atenção uniformemente suspensa ou eqüiflutuante, a fim de não dar maior
ênfase sobre algum material em detrimento de outro. Muitas das coisas escutadas
em análise terão sentido em um momento ulterior, por isso não se deve
desprezar os dados aparentemente sem sentido.
A segunda recomendação fica por conta da impressão desfavorável no
paciente ao se tomar notas durante as sessões, as quais devem ser evitadas. Freud
(1912/1975) também lembra que tal expediente implica seleção do material, o que
deve ser evitado numa análise. Exceções a essa regra ficam por conta de datas,
texto de sonhos ou fatos literalmente dignos de nota para fins científicos. Mesmo
assim, o pai da psicanálise afirma guardar tais dados de memória, transcrevendo-
os somente à noite, após ter encerrado os atendimentos.
Ainda sobre a tomada de notas durante a sessão com o intuito de publicar
um caso, Freud (1912/1975) ressalta que relatórios minuciosos de análises são de
pouco valor, que a exatidão ostensiva, além de enfadonha para o leitor, não
52
substitui sua presença numa análise. Hoje, podemos acrescentar que a utilização
de outros meios de registro audiovisual o freqüentes nas pesquisas atuais
também não captaria os processos realmente em jogo em uma análise,
deslocando-se para a ordem escópica o que é da ordem da escuta significante.
Quanto a isso, basta que retomemos o parágrafo acima, para verificarmos que
Freud fala no registro do texto de um sonho, não de suas imagens.
Em seguida, Freud (1912/1975) afirma que pesquisa e tratamento são
coincidentes, mas até certo ponto, pois analisar com o intuito de publicar a
história clínica pode comprometer a escuta do analista em favor do lado
pesquisador. Os melhores casos, segundo o autor, são aqueles retirados de
tratamentos desenvolvidos sem a intenção de uma apresentação científica,
aconselhando os analistas a submeterem o material clínico obtido em um
tratamento a uma visão sintética somente depois de concluída a análise.
Quanto ao enlace entre a clínica e a pesquisa psicanalítica, A. Figueiredo e
colaboradores (2001) são enfáticos:
A proposta de Pesquisa Clínica em Psicanálise é a de construir um
saber que não seja apenas sobre a psicanálise em seus fundamentos
teóricos, e sim a partir da clínica psicanalítica, na medida em que esta
opera na instituição universitária e no campo da saúde mental. A
própria junção entre teoria e prática pode ser realizada no exercício
permanente da clínica, onde os pressupostos teóricos que a
fundamentam podem ser postos à prova [grifo dos autores] (p. 12).
Os mesmos autores chamam atenção para o fato de que, embora pesquisa e
clínica estejam ligadas, não uma garantia, a priori, de que as duas possam
ocorrer. O que a experiência mostra é que uma certa dissimetria entre os dois
aspectos, ou seja, pesquisa e clínica não coincidem de forma absoluta, o que
coloca o psicanalista-pesquisador em uma situação de tensão em sua escuta
analítica.
Destarte, ainda que a pesquisa psicanalítica universitária disponha, em
alguns casos, de um ambulatório ou de uma enfermaria, como previu Freud
(1919/1976) em “Sobre o Ensino da Psicanálise nas Universidades”, isso não
garante a realização de uma pesquisa psicanalítica. Entendo que a pesquisa
psicanalítica universitária é aquela que recebe a chancela da universidade,
independentemente do local onde se encontra a clínica do pesquisador. Isso quer
dizer que o apoio material à pesquisa pode ser buscado nos hospitais, nas clínicas
53
e nos ambulatórios públicos e, ainda, na clínica privada do psicanalista. O que está
em jogo é a apresentação dos achados de pesquisa através da estrutura
universitária.
Deixando essa digressão de lado, é interessante observar que, após toda a
teorização oferecida por Nasio, principalmente quanto à questão do caso
metapsicológico como ficção e do papel do inconsciente do analista na produção
da escritura de um caso metapsicológico, o autor mantém-se preso ao sigilo como
se, de fato, o relato de um caso pertencesse ao paciente como um elemento de sua
história de vida. Então, um caso clínico descrito por Nasio será mesmo uma
ficção?
Em seu livro “Metapsicologia Freudiana: Uma Introdução”, Assoun
(1996) dedica um capítulo inteiro ao problema da ficção em psicanálise. Ele situa,
primeiramente, a ficção no sentido de uma representação (Darstellung), ou seja,
como um saber sobre a coisa. Admitindo, de saída, que o conceito
metapsicológico é do gênero da ficção, pergunta-se sobre que gênero de
racionalidade seria esse. Como resposta, situa a ficção exatamente como produto
de um ficcionamento, qual seja, o Phantasieren metapsicológico. As modalidades
que exigem sua produção e os fins que a legitimam demarcam a especificidade da
ficção.
Ao buscar socorro no vocabulário de filosofia estabelecido por Lalande
(1999), Assoun (1996) depara-se com uma primeira definição. A ficção (...) não
é simplesmente o ‘não-verdadeiro’, semblante ou aparência, mas um constructo
portador de virtualidades de conhecimentos [grifos do autor]” (p. 57). Por
sabermos que determinada construção não corresponde à realidade, espera-se tirar
disso proveito pela estratégia epistêmica deliberada de uma indiferença
metodológica pela realidade objetiva, sem a qual o efeito desejado seria
impossível. Assim, a ficção é determinada, desde o seu conteúdo, por um certo
grau de incerteza, o qual permite considerá-la como tendo valor de verdade.
Para Assoun (1996), Freud busca se emancipar dos debates epistêmicos
formais pelas características singulares de seu objeto, fugindo tanto do
positivismo, que exige um conhecimento fundado na experiência, quanto do
pragmatismo, que busca a validação a partir dos efeitos produzidos. Sua postura
acaba por ser, ao mesmo tempo, pragmática e rigorosa.
54
A primeira e mais importante ficção metapsicológica é a concepção tópica
do aparelho psíquico como um instrumento composto de elementos (instâncias) e
sistemas dispostos numa espacialidade que seria a de um realismo funcional.
Freud não se detém na materialidade do aparelho psíquico, pois essa materialidade
é da ordem de uma representação ou, melhor dizendo, de uma representação
auxiliar (Hilfevorstellung). Para Assoun (1996), Freud rejeita a filosofia do Als
ob(como se) de Vaihinger, por tentar sustentar sua metáfora espacial, no caso do
aparelho psíquico, ainda que, provisoriamente, num substrato que a adesão ao Als
ob faz desaparecer, na medida em que ela é pensada para funcionar e ordenar.
No artigo “Construções em Análise”, Freud (1937/1975) reencontra-se
com a questão da ficção. O analista mostra-se ativo no processo de construção,
sendo possível considerar essa construção como uma forma adequada de ficção.
Adequada, porque esse trabalho é subordinado à lógica de seu objeto, o qual teria
um estatuto de realidade em sua origem. Assoun conclui seu capítulo afirmando
que:
Tudo se passa como se Freud reencontrasse, in fine, a questão mesma
que se colocava, na origem da psicanálise, quanto à “cena originária”:
“verdade” ou ficção investida de afeto” (“die mit Affekt besetze
Fiktion”)? A hesitação primitiva, todavia, encontrou aqui seu estatuto
de ambigüidade, de certa forma estrutural, do saber metapsicológico:
descoberta de que o próprio sujeito do sintoma é estruturado como um
“como se”, que nada mais é que sua realidade psíquica [grifos do
autor] (p.71).
Em seu trabalho intitulado “O Aturdito”, Lacan (2003) cria o conceito de
“fixão” (fixion) para dar conta do que, para além das ficções do mundo, seria o
impossível que fixa o real pela estrutura da linguagem. O trabalho psicanalítico
consiste, então, em buscar, no discurso, o Real posto em jogo, desfazendo-se dos
mitos e fantasmas freqüentemente utilizados. A fixão do Real é o que da as
possíveis modulações da ficção. Assim, o trabalho de análise partiria de uma
verdade dita ficcional em direção a um ponto de certeza, o qual também revelaria
a fixação do gozo, o sentido do gozo, na estrutura do paciente.
55
1.7 – O dispositivo Traço do Caso
Cada um desses elementos vale como a singularidade
de uma diferenciação que se conseguiu estabelecer; já
o disseram: “Deus está no detalhe”.
(Allouch, 1995)
O dispositivo ‘Traço do Caso’ foi desenvolvido por Dumézil (1989) a partir
desse significante um pouco enigmático e utilizado uma única vez por Lacan, mas
que pode ser encontrado na quarta capa da primeira edição da revista Scilicet de
número 1, de 1968. As demais edições não trouxeram mais o texto de
apresentação no qual Lacan justificava o princípio do texto não assinado pelos
seus respectivos autores naquela publicação. Tal princípio visava dar mais
segurança para evocar o aspecto pessoal na prática clínica e, especialmente, o
traço do caso. Diante da possibilidade de algum analisante ser reconhecido pelos
demais em algum caso exposto por seu respectivo analista, na revista, Lacan opta
por uma publicação na qual todos os textos sejam assinados em seu nome. Quanto
a isso, Lacan (1968/2003) diz, textualmente:
(...) refiro-me a nós, os psicanalistas –, para que nenhum tenha visto a
solução do problema permanente que suspende nossa pluma: o da
mínima alusão que nos ocorre fazer referência a um caso? Referência,
como se sabe, sempre passível de ser denunciadora, por não sustentar
um desvio o comum que não se apóie no traço mais particular. Ora,
o que cria obstáculo aqui não é tanto que o sujeito se reconheça no
texto, mas que outros o situem através do seu psicanalista (p. 290).
Melman (2006) sugere outra explicação para esse princípio. Para ele, o
objetivo da publicação de texto não assinado, bem ao estilo Bourbaki
15
, era de que
a autoria – de quem quer que fosse – estivesse excluída. Destarte, o sujeito não era
o autor e estava fora dessa lógica matemática para a qual o que lança as bases, o
que funda o sistema, é considerado um elemento externo a esse sistema.
Retomando, é preciso esclarecer que, tanto em francês quanto em alemão
(incluindo o inglês), termos distintos para ‘traço’, o que não ocorre na língua
luso-brasileira. O seminário organizado por Dumézil (1989) trata do traço, que,
15
A partir de 1939, um grupo fundado por ex-alunos da Escola Normal Superior publica
os “Elementos Matemáticos”, de acordo com uma ordem lógica e com terminologia
precisa, sob o pseudônimo de Nicolas Bourbaki.
56
em francês, se chama trait e, em alemão, Zug. É verdade que também
encontramos o verbete trace na língua francesa, assim como Strich e Spur em
alemão, os quais também são vertidos para o português como ‘traço’.
Para efeito desta Tese, tomo trait e Zug como traço, característica, sinal ou
marca. Nessa acepção, o traço é o representante de um objeto e pode ser
observado nos demais traços (traces); é estilo e ética e também é usado para
designar traço de personalidade ou caráter. Ele é o que uma vez deflagrado não
pode o acontecer. Por outro lado, tomo trace como traço, vestígio, pista ou
rastro. Nessa acepção, traço significa algo produzido no ambiente que denuncia a
presença anterior de alguém, e temos, na escritura, um bom exemplo dele. Nas
palavras de Lacan (1999):
Um traço é uma marca, não é um significante. A gente sente, no
entanto, que pode haver uma relação entre os dois, e, na verdade, o
que chamamos de material significante sempre participa um pouco do
caráter evanescente do traço. Essa até parece ser uma das condições de
existência do material significante. No entanto, não é um significante
(p. 355).
Lacan (1999) como exemplo a pegada de Sexta-feira encontrada por
Robinson Crusoé. Para o autor, ela não se trata de um significante. Todavia, se o
náufrago apagar essa pegada – esse traço –, estará introduzindo a dimensão
significante com esse ato de apagamento, por atestar uma presença passada. O
autor chama atenção para o fato de que, após o apagamento, o que resta é o
próprio lugar onde foi apagado, e é esse lugar que sustenta a transmissão.
Para Dumézil (1989), a polissemia da palavra ‘traço’, principalmente
quando associada ao termo ‘caso’, torna operatória essa montagem significante
por sua própria equivocidade. O autor vai mais longe, ao afirmar que o caso não é
o analisante, não é o tratamento, não é nem a observação, nem a anamnese, e nem
mesmo o analista. O caso é um pouco de cada uma dessas coisas.
Esta expressão, introduzida por Lacan (1968/2003), foi tomada por
Dumézil (1989) no sentido de propô-la como um dispositivo e como uma ficção
operatória, com o intuito de apoiar o curso da experiência e da reflexão teórica.
Quanto a sua face de dispositivo, ainda que receba a mesma designação dada ao
enquadre que delimita o espaço analítico ou o que é comumente chamado de
contrato, não tem a conotação de alguma obrigação. No funcionamento do
dispositivo ‘Traço do Caso’, o autor destaca duas particularidades: a primeira
57
delas é não consignar, aos participantes, um lugar determinado, particularmente,
em relação ao Sujeito suposto Saber; a segunda é permitir ao analista que fala de
um tratamento operar uma passagem do privado para o público, a qual acarreta
uma parcela de gozo.
O segundo elemento do funcionamento é como uma ficção operatória.
Essa ficção corresponde, para Dumézil (1989), a uma extensão simbólica”, ou
seja, a um procedimento que consiste em supor um fato ou uma situação diferente
da realidade pela dedução das conseqüências. Podemos ainda dizer que o ‘Traço
do Caso’ como ficção é uma convenção destinada a fazer existir um ser abstrato e
a permitir, dessa forma, um certo número de operações, assim como, por exemplo,
os números negativos e infinitos são ficções matemáticas. Também observamos o
uso desse recurso em áreas como o direito. Nela, a pessoa moral aparece como
ficção jurídica, facilitando o estabelecimento de princípios. Na psicanálise, a regra
fundamental também opera como uma ficção no tratamento.
É nessa perspectiva do ‘Traço do Caso’ que o analista realiza o
procedimento de expor certos momentos privilegiados de um tratamento,
colocando em jogo um deslocamento de sua própria posição enunciativa e
fazendo-as nesse espaço que possibilita aparecer isso que é capaz de fazer traço
com momentos relativos do tratamento. Ele também permite uma modificação
dessa posição enunciativa pelo levantamento de uma censura ou pelo
recalcamento de uma palavra ou de uma formação inconsciente. O ‘Traço do
Caso’ será isso que faz laço ou corte entre a história do sujeito e as estruturas em
causa no tratamento, funcionando como uma perspectivação desse laço e poderá
ser definido como qualquer coisa de temporariamente operatória entre o desejo do
paciente e o desejo do analista.
Se o controle se endereça aos analistas iniciantes ou aos analistas que
encontram dificuldades com pacientes em tratamento, explorando toda a dinâmica
de um tratamento em curso, bem como a análise do espaço transferencial, o
‘Traço do Caso’ corresponde melhor a um trabalho realizado a posteriori (après-
coup), através da relação entre diferentes momentos do tratamento ou entre vários
tratamentos, funcionando para além do tempo de controle (supervisão). O ‘Traço
do Caso’ será um dos meios de elaborar no après-coup desse tempo, no qual o
analista encontra a certeza de seu ato, a partir da elaboração de um saber
inconsciente.
58
A apresentação escrita de um caso metapsicológico corresponderia, assim,
à escritura do traço, permitindo sua circulação na comunidade de pesquisadores,
sem o risco de tornar pública a identidade do paciente. O traço também remete ao
conceito de traço unário, na medida em que ele é o ponto inicial de onde se produz
a incidência do significante no desenvolvimento.
Podemos encontrar um exemplo de emprego do dispositivo ‘Traço do
Caso’ no trabalho de um cartel organizado a partir da apresentação de pacientes
realizada por Marcel Czermak e Charles Melman no Hospital Henri-Rousselle.
Nesse trabalho, destaco o texto “O Traço de um Caso e a Irrupção da
Transferência”, redigido por Nusinovici (1994).
Nusinovici (1994) parte da premissa, em forma interrogativa, de que, se
um ‘Traço’ é o que faz a particularidade de um caso metapsicológico, o ‘Traço do
Caso’ poderia dar conta da singularidade e da estrutura na qual se inscreve. A
partir daí, o autor examina o caso de Olivier, extraído de uma apresentação de
pacientes comandada por Melman.
Olivier, segundo Nusinovici (1994), acabara de tentar suicídio com a
ingestão de uma grande quantidade de tranqüilizantes. Nada se destaca de sua
fala, descrevendo uma vida de isolamento, sem grandes emoções. O caso é
diagnosticado como sendo o de uma fobia. Em relação ao diagnóstico, Nusinovici
(1994) refere que Melman considera a neurose como a repetição de um cenário,
enquanto que a fobia, que se contrapõe àquela, é a repetição de um idêntico não
constituído em cenário.
Nusinovici (1994) descreve a vida de Olivier, destacando a viagem à Índia,
o contato com uma seita e a permanência na cidade comunitária dos discípulos,
bem como as falas e reações dele ao longo da entrevista. O autor ressalta aspectos
importantes da estrutura, os quais podem ser observados no paciente: o impasse, a
impossibilidade de se decidir e a ausência total de engajamento, uma vez que ele
não apresenta os clássicos sintomas fóbicos. Uma resposta reiterada destaca-se em
sua fala: o “não verdadeiramente” e o “verdadeiramente não”, o que sugere extrair
daí o ‘Traço do Caso’ em relação aos registros simbólico, imaginário e real.
O caso apresentado por Nusinovici (1994) é muito interessante e
esclarecedor quanto a outras formas de manifestação da fobia, isto é, aquelas
baseadas no diagnóstico realizado em transferência, independentemente da
constelação sintomática. Para tal, o autor utiliza-se da história de vida relatada
59
pelo paciente, assim como de elementos recolhidos da entrevista com Melman.
Embora não se atenha a uma descrição cronológica dos fatos, o recurso à
narratividade não é abandonado por Nusinovici (1994). Como extrair e apresentar
o ‘Traço do Caso’, sem que algo da vida do paciente seja relatado? Penso que a
utilização desse dispositivo o dispensa o relato, ainda que seja breve ou
superficial.
Os avanços na teoria psicanalítica podem ser apresentados de forma a
dispensar o uso de um caso metapsicológico. A questão que nos é colocada é
quanto à possibilidade de se apresentar um caso metapsicológico sem o recurso da
narratividade ou, dito de outra forma, sem levar em conta o relato histórico que o
paciente traz às consultas. Quando o objetivo do analista é a transmissão de
informações, o recurso à narrativa parece facilitar a compreensão dos aspectos
levantados, mostrando como se o naqueles que buscam, ante o sofrimento, o
auxílio da psicanálise. Posso dizer que a apresentação de um caso metapsicológico
da forma consagrada como clássica busca, na narratividade histórica – e não
necessariamente factual –, maiores elementos de convencimento.
Nesse momento, passo a desenvolver um elemento mencionado
anteriormente: o traço unário. Ao fazer referência a ele, o posso deixar de
estabelecer a sua relação com o conceito de identificação. A identificação é um
processo que ocorre no próprio aparelho psíquico, sendo inapreensível
diretamente por nossos sentidos, isto porque, diferentemente do que pode sugerir,
não é uma imitação psicológica. Freud (1933/1976) afirma, no capítulo A
Dissecção da Personalidade Psíquica” das “Novas Conferências Introdutórias
sobre Psicanálise”, publicadas em 1933, que a identificação é “(...) a ação de
assemelhar um ego [Eu] a outro ego [Eu], em conseqüência do que o primeiro ego
[Eu] se comporta como o segundo” (p. 82). Esse processo evidentemente é
inconsciente e dá-se entre o Eu e o objeto. Assim, quando alguém perde um objeto
ou deve se desfazer do mesmo, pode compensar-se com a identificação ao objeto,
de modo a restabelecê-lo novamente no seu Eu.
Freud (1921/1976) entende a identificação como “a mais remota expressão
do laço emocional com outra pessoa” (p. 133). Um primeiro tipo de laço é
possível antes mesmo de que uma escolha sexual objetal seja feita. Nele, a
identificação tem a função de moldar o próprio Eu de acordo com o aspecto do
modelo. Já, no segundo caso, há duas possibilidades de identificação. Na primeira,
60
geralmente observada na estruturação do sintoma neurótico a partir do Complexo
de Édipo, a identificação relaciona-se com o desejo hostil em relação a um dos
pais tal qual ocorre na formação dos sintomas histéricos por identificação ao
objeto hostilizado. Na segunda, ela aparece no lugar da escolha objetal, e a mesma
regride para a identificação a partir da identificação com o sintoma da pessoa
amada. Freud nos diz: “Deve também causar-nos estranheza que em ambos os
casos a identificação seja parcial e extremamente limitada, tomando emprestado
apenas um traço isolado [einziger Zug] da pessoa que é objeto dela” [grifo meu]
(p. 135). Num terceiro e último tipo, a identificação pode surgir a partir da
percepção de uma qualidade comum compartilhada com alguma pessoa que não é
objeto de pulsão sexual, apenas pela possibilidade de colocar-se na mesma
situação.
Para efeito desta Tese, utilizarei a compilação elaborada por Nasio (1992)
sobre a identificação do Eu com um aspecto parcial do objeto. Nela, o autor
enumera quatro aspectos parciais de objeto, isto é, um traço distintivo, uma
imagem global, uma imagem local e uma emoção.
Nasio (1992) propõe essa divisão arbitrária da teoria freudiana para melhor
aproximá-la da teoria lacaniana. Das quatro possibilidades de identificação parcial
com um aspecto do objeto, levarei em consideração apenas a com o traço do
objeto, que, na obra lacaniana, segundo Nasio, pode ser equiparada à identificação
simbólica do sujeito com um significante.
A identificação parcial com o traço do objeto a identificação regressiva
freudiana – é, para Nasio (1992), aquela relacionada com um aspecto parcial – um
traço saliente – do objeto amado, desejado e perdido. O Eu estabelece um vínculo
com o objeto e, ao desligar-se dele e voltar-se para si mesmo, regride,
decompondo-se nos traços simbólicos desse objeto que não mais existe. Daí por
diante, o Eu pode identificar-se com o mesmo traço num segundo ou mais objetos:
é a identificação com algum detalhe sempre reencontrado nas diversas ligações ao
longo da vida.
Como indicado acima, Nasio (1992) faz uma correspondência entre a
identificação parcial com o traço do objeto e a identificação simbólica do sujeito
com um significante. O autor define o sujeito inconsciente como sendo um traço
ausente de sua história, mas capaz de marcá-lo para sempre. Não devemos
confundir o conceito de sujeito com o indivíduo que produz um lapso, por
61
exemplo. Segundo Nasio, o sujeito do inconsciente tem função semelhante a uma
função matemática, estabelecendo uma correspondência entre eventos
significantes ordenados em uma série virtual. O elemento distintivo comum a cada
um desses acontecimentos significantes é o traço unário (einziger Zug).
Por traço unário, devemos entender, inicialmente, o conceito dado por
Freud (1921/1976) à identificação parcial a um traço de uma pessoa (na qualidade
de objeto amado) resultante da perda desse objeto investido, como indicada
acima. A partir de Freud, e apoiado na lingüística de Saussure, Lacan (1992)
estabelece o traço unário como um ponto de referência ao Outro na relação
narcísica.
Lacan (1992) parte da idéia de que esse traço (einziger Zug) necessita ser
pensado em sua utilização ulterior numa cadeia significante para ser considerado,
ele mesmo, um significante. De início, basta que o olhar do outro seja
interiorizado por um signo de assentimento, colocando esse traço unário, esse
termo simbólico primordial, à disposição do sujeito na continuação do jogo do
espelho como núcleo do Ideal do Eu.
Em um momento mais avançado de sua obra, Lacan (1985) redefine o
conceito de traço unário, como sendo o primeiro significante ao qual o sujeito
poder-se-á referir e que o marca tal qual uma tatuagem. Assim, o sujeito
distingue-se do signo em relação ao qual pode ser constituído enquanto sujeito.
Lacan diz que:
O traço unário não está no campo primeiro da identificação narcísica,
ao qual Freud relaciona a primeira forma de identificação – que, muito
curiosamente aliás, ele encarna numa sorte de função, de modelo
primitivo que toma o pai, anterior ao investimento libidinoso mesmo
sobre a mãe tempo mítico certamente. O traço unário, no que o
sujeito a ele se agarra, está no campo do desejo, o qual poderia de
qualquer modo constituir-se no reino do significante, no nível em que
relação do sujeito ao Outro. É o campo do Outro que determina a
função do traço unário, no que com ele se inaugura um tempo maior
da identificação na tópica então desenvolvida por Freud a saber, a
idealização, o ideal do eu. Desse significante primeiro, eu lhes mostrei
os traços no osso primitivo em que o caçador põe um entalhe e conta o
número de vezes que faz mosca (p. 242).
Novamente, utilizo-me das formalizações de Nasio (1992) a respeito das
categorias lacanianas da identificação. O traço unário, como afirmei acima,
aparece como elemento significativo quanto à identificação simbólica do sujeito
62
com um significante. Segundo o autor, pode-se usar o nome de traço pelo fato de
que ele marca cada instante repetido e, de unário, por ser Um que unifica e reúne
os diferentes significantes sucessivos. Assim, o sujeito do inconsciente passa a
ser, ele próprio, o traço que unifica o conjunto dos significantes.
Nasio (1992) destaca uma diferença entre as concepções freudiana e
lacaniana, ou seja, enquanto Freud situa o Eu no traço comum aos objetos amados
e perdidos, Lacan situa o sujeito em relação ao traço comum aos significantes. O
argumento lacaniano é lógico, extraindo, do conjunto formado, o traço que o
unifica. Então, para Nasio:
O sujeito do inconsciente é um sujeito a menos na vida de alguém, o
traço ausente, exterior a essa vida, e que no entanto a marca para
sempre. Por isso a singularidade de uma vida significante é dada por
uma marca que nos parece exterior. está o modo de que dispomos
para existir no inconsciente: existimos como uma marca que nos
singulariza e da qual, no entanto, estamos despojados (p. 115).
Como Nasio (1992) entende o traço unário na qualidade de um elemento
exterior à cadeia que ele ordena, situa o conceito também nos seguintes e
diferentes âmbitos teóricos: será chamado traço unário, quando for um conjunto
de significantes; ideal de eu, quando for um conjunto de imagens; e, falo, quando
for o conjunto dos diferentes modos que a sexualidade adota.
1.8 – Da Figuração à Transfiguração da Fantasia na Construção
Chama-me a atenção o fato de Freud (1937/1975) ter dado tanta ênfase à
construção, ainda que a interpretação fosse a prima-dona desde a “Interpretação
dos Sonhos” (1900). Se ele entendia a construção em um âmbito mais amplo e,
mesmo, mais profundo do que a interpretação – isso em uma época na qual grande
parte de sua pesquisa já estava desenvolvida –, pode fazer-nos concluir que,
justamente nesse ponto, encontrara apoio para o trabalho metapsicológico.
Uma análise pessoal dá conta da singularidade de um psicopatológico sem
a intenção para a singularização ficcional metapsicológica, porque a análise é
balizada pelo Sujeito suposto Saber. A pesquisa psicanalítica é dependente do
correlato da regra fundamental (Grundregel) da psicanálise, ou seja, da atenção
eqüiflutuante (gleichschwebende Aufmerksamkeit) como momento do reencontro
63
do infantil na fala do paciente. O momento da análise é o tempo de descoberta,
pelo analisante, do infantil na sua fala a partir da transferência, a qual deve ser
liquidada no final da análise. Na pesquisa psicanalítica, a operacionalização de
modelos explicativos do relançamento do infantil dessas falas.
Sugiro definir a operacionalização da transferência pelo psicanalista-
pesquisador como uma organização secundária a partir do que restou dessa
transferência, ou seja, do desejo do analista de transformar os dados clínicos
recolhidos pelo aspecto de questionamento que estes lhe fazem – em avanços da
teoria psicanalítica.
Destarte, a construção metapsicológica do caso passa a figurar como
método utilizado pelo psicanalista-pesquisador para a apresentação de seus
achados. O caso a ser publicado testemunha o desejo do analista, os atos
analíticos, sua capacidade técnica, a sua bagagem teórica e a tentativa de levantar
ou de aprofundar alguma questão metapsicológica. Nesse sentido estrito, o caso
pertence ao psicanalista e mostra como o mesmo se situa no campo e na
comunidade psicanalítica. Um caso metapsicológico escrito, preparado para a
publicação em meios científicos especializados, não acrescenta nada ao paciente
tratado e que, eventualmente, seja alvo de algum estudo, na medida em que, na
escritura desse tipo de caso, elementos de outros casos e mesmo toda a Erfahrung
(experiência) do psicanalista estão em jogo.
O processo de detecção de elementos capazes de interessar à
metapsicologia, corroborando ou fazendo avançar o arcabouço teórico, é a
figuração esboçada pelo paciente em transferência, cabendo ao analista a
transfiguração, a transformação em ficção daquilo que, no paciente, é da ordem do
fantasiar (Phantasieren). Todavia, antes de continuarmos, torna-se necessário
precisar esse termo.
Tomemos as observações feitas por Laplanche e Pontalis (1991) sobre o
verbete ‘fantasia’ ou ‘fantasma’. Para os autores, em primeiro lugar, o termo
alemão Phantasie designa a imaginação no sentido do mundo imaginário, de seus
conteúdos e da atividade criadora própria da imaginação. Em segundo lugar, os
termos ‘fantasma’ e ‘fantasmático’ acabam designando também algo que se opõe
à realidade. Nessa acepção, o Phantasieren pode ser tomado como uma produção
puramente ilusória. Todavia Freud o se deixa levar pela concepção que faz da
fantasia uma recordação deformada dos acontecimentos reais ou, ao contrário,
64
uma tentativa de mascarar a realidade da dinâmica pulsional. As fantasias típicas
encontradas nos processos de análise seriam as fantasias primárias verdadeiros
esquemas inconscientes transmitidas hereditariamente e que ultrapassam o
âmbito individual. Tais fantasias primárias soem organizar-se em torno dos
seguintes temas: observação do coito dos pais, sedução por um adulto e ameaça de
ser castrado.
O terceiro ponto destacado por Laplanche e Pontalis (1991) é o fato de o
termo ‘fantasia’ ter um emprego extenso na obra freudiana e em níveis diversos:
consciente, subliminar e inconsciente. Para eles, Freud usa o termo,
primeiramente, para designar os devaneios diurnos e conscientes. Às vezes, Freud
fala em fantasias inconscientes, sem defini-las metapsicologicamente. Já, no
trabalho de interpretação dos sonhos, o termo ‘fantasia’ aparece ligado ao desejo
inconsciente e como ponto de partida para a formação do próprio sonho. Assim,
no trabalho do sonho, ela liga-se tanto ao desejo inconsciente, quanto aos
materiais já deformados pela elaboração secundária.
Ainda quanto ao aspecto da extensão de sua utilização, Laplanche e
Pontalis (1991) vêem a fantasia como o ponto privilegiado de passagem entre os
diversos sistemas psíquicos nas suas faces de recalcamento e retorno do recalcado.
Metapsicologicamente falando, Freud (1905/1972) oferece uma definição mais
completa em uma nota de rodapé acrescentada, em 1920, ao texto “Três Ensaios
sobre a Teoria da Sexualidade”. Nela, lemos que:
As fantasias do período puberal têm como ponto de partida as
pesquisas sexuais infantis que foram abandonadas na infância. Sem
dúvida, também, estão presentes igualmente antes do fim do período
de latência. Podem persistir no todo ou em grande parte
inconscientemente, e, por este motivo, freqüentemente é impossível
fixar com exatidão sua data. São de grande importância na origem de
muitos sintomas, já que constituem precisamente estágios preliminares
desses sintomas e assim estabelecem as formas pelas quais os
componentes libidinais reprimidos encontram satisfação. Da mesma
forma, são os protótipos das fantasias noturnas que se tornam
conscientes como sonhos. Os sonhos muitas vezes nada mais são do
que revivescências de fantasias puberais desta espécie sob a influência
e com relação a alguns estímulos deixados da vida de vigília do dia
anterior (os ‘restos diurnos’) (pp. 232-233).
Laplanche e Pontalis (1991) salientam que não uma distinção entre
fantasia consciente e inconsciente quanto à natureza. O que fala em favor desse
ponto de vista são, por exemplo, as fantasias conscientes dos perversos, os
65
temores delirantes dos paranóicos, as fantasias inconscientes dos histéricos,
ligadas aos seus sintomas, nos quais encontramos os mesmos conteúdos e as
mesmas estruturas nos seguintes pólos, opostos: no consciente e no inconsciente;
na atuação e na representação; e no que é percebido em si mesmo e no que é
projetado sobre o outro. Mais do que apenas uma temática para determinado
indivíduo, a fantasia deve ser entendida, segundo os autores, como (...) o
conjunto da vida do indivíduo que se revela modelado, estruturado por aquilo que
se poderia chamar, para sublinhar o seu caráter estruturante, uma fantasmática
[grifo dos autores]” (p. 232).
O último ponto recolhido da obra freudiana pelos autores acima é a ligação
da fantasia com o desejo. Dessa relação, podem-se destacar: (a) as fantasias são
encenações organizadas, mesmo que se enunciem em uma frase, capazes de
uma dramatização de forma visual; (b) o indivíduo que fantasia está presente nas
cenas, ainda que se trate de uma cena primária e mesmo que pareça excluído; (c) o
cerne da representação é uma seqüência da qual o próprio indivíduo faz parte,
com possibilidade de troca de papéis e de mudanças sintáticas pela frase que
enuncia a fantasia; e (d) articulada ao desejo, a fantasia dá ensejo aos processos de
defesa pela interdição a esse desejo.
Em suas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”, mais
especificamente na conferência XXIII, intitulada “Os Caminhos da Formação dos
Sintomas”, Freud (1915-1917/1976) aborda o tema da fixação da libido nas
experiências infantis, as quais acarretam a formação dos sintomas. Ele assevera
que, na maioria dos casos, as cenas da infância construídas ou recordadas em
análise não são verdadeiras e até representam o oposto da verdade histórica.
A questão não está, para Freud (1915-1917/1976), no fato de a psicanálise
ser desacreditada por lidar com lembranças que sejam um misto de verdade e
falsificação, pois as meras lembranças infantis isoladas, das quais as pessoas têm
absoluta consciência, também estão sujeitas a adulterações ou a combinações com
a verdade. Para ele, tudo reside em darmos valores diferentes para a realidade e
para a fantasia. Assim, no trabalho com o paciente em análise, o terapeuta o
deve fazer distinção entre o material ligado a eventos reais da infância e os
imaginários, pois estes também possuem certa realidade, e conclui que: “As
fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e
gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade
66
psíquica é a realidade decisiva [grifos do próprio autor] (p. 430). Avançando
nesse aspecto, Freud (1924/1976) também afirma que(...) tanto na neurose
quanto na psicose interessa a questão não apenas relativa a uma perda da
realidade, mas também a um substituto para a realidade [grifos do autor] (p.
234).
Ainda com relação à questão da realidade, Freud (1914/2004) diz, de
forma mais precisa, que o afastamento do mundo exterior não se apenas no
modo de o paciente psicótico agir com o mundo; a desistência da relação com a
realidade também pode ser observada, dependendo do grau da enfermidade, em
pacientes histéricos e compulsivos. O autor acrescenta:
No entanto, a análise mostra que de modo algum o neurótico
suspendeu seu vínculo erótico com as pessoas e as coisas. Ele ainda
conserva as pessoas e as coisas na fantasia. Isso significa que, por um
lado, substituiu os objetos reais por objetos imaginários de sua
lembrança ou mesclou ambos (...). Com o parafrênico é diferente.
Este parece ter realmente retirado sua libido das pessoas e das coisas
do mundo exterior, sem tê-las substituído por outras na fantasia.
Quando essa substituição ocorre nas parafrenias, parece tratar-se de
algo secundário e fazer parte de uma tentativa de cura que busca
reconduzir a libido de volta ao objeto (Freud, 1914/2004, p. 98).
16
A partir daí, podemos dizer que a ficção surge como um recurso utilizado
pelos analistas e, seguramente, está presente desde Freud, apresentando-se como
concurso necessário e talvez o único disponível capaz de revelar aspectos do
objeto de estudo da psicanálise. M. Mannoni (1982) comenta: “O que importa ao
analista não é o que se passa ‘na’ cabeça de seu paciente, mas o que surge ‘entre’
ele e o seu paciente. É o andamento de um espaço (para a fantasia) que autoriza a
passagem da palavra de um lugar para outro” (p. 16).
M. Mannoni (1982) acredita que Freud introduz, na relação transferencial
com seu paciente, um mito, com o intuito de fazer operar efeitos de inversão
dialética no paciente, relativos às transformações sofridas pelo discurso entre o
sujeito consciente e o inconsciente. Para a autora, fica claro que o objetivo de uma
análise não é o de munir o paciente de um entendimento consciente sobre o seu
sofrimento. Isso é o que define na nota de rodapé de número 55:
16
Essa tentativa de cura da qual Freud nos fala pode ser observada no caso do Presidente
Schreber, a ser trabalhado mais adiante.
67
O que terá um valor significante não é tanto uma explicação ao nível
de significado, mas uma verbalização dos significantes maiores,
girando em torno do Édipo e da castração. O que se mostra também
operante é a simbolização de uma situação que para o paciente se
tornou imobilizada e por vezes sem vocábulo para nomear a hiância.
O que está em jogo, numa análise, é reconhecer a função assumida
pelo sujeito na ordem simbólica.
Tomemos dois exemplos de construção comentados por Roudinesco
(2000). O primeiro deles, a clássica construção da cena primária de o “Homem
dos Lobos” (Freud, 1918/1976), na qual Freud, apoiando-se em um sonho de seu
paciente Serguéi Constantinovitch Pankejeff, descreve como este teria assistido ao
coito dos pais (coito a tergo) quando contava 18 meses de idade. Tendo em vista
que, na Rússia, os filhos o dormem com seus pais, Pankejeff declarou que a
cena nunca teria acontecido. O paciente, submetido a vários tratamentos em
função de uma intensa angústia, considerou a análise o primeiro e único
tratamento, e que a cena primária construída por Freud ganhou um intenso valor
de verdade. Quanto a isso, Bergès e Balbo (2001) são enfáticos, ao afirmarem que
“(...) a construção é considerada no âmbito de uma teoria que se inventa e que es
de tal modo fora de tudo o que se sabe que ela tem mais valor que o levantamento
de uma amnésia infantil” (p. 87).
Ainda em relação às construções freudianas no caso de o “Homem dos
Lobos”, Melman (2006) comenta que a interpretação freudiana e a lacaniana não
são coincidentes. Segundo o autor, as interpretações de Freud ofereciam ao
paciente uma explicação causalista, ou, por exemplo, ele indicava quem poderia
ser algum personagem em um sonho relatado. Por outro lado, a interpretação
lacaniana, menos freqüente, oferecia apenas um deslocamento da pontuação, sem
acrescentar algum elemento novo que não viesse do próprio paciente. Algumas
posteriores queixas feitas por Serguéi Constantinovitch Pankejeff à cnica
freudiana jamais teriam lugar com interpretações ao estilo lacaniano.
O segundo exemplo, trazido por Roudinesco (2000), vem da análise da
princesa Marie Bonaparte com Freud. Essa psicanalista das primeiras horas relata
um sonho no qual se via em seu berço, de onde assistia a cenas de coito. A
interpretação dada por Freud foi a de que ela não apenas ouvira os ruídos do
intercurso amoroso o que sói acontecer às crianças que dormem com os pais –,
mas o teria assistido em plena luz do dia. Marie Bonaparte refutou a cena
68
construída, pois nunca tivera mãe. Como Freud se mantivesse impassível e
aludindo à figura da babá, a analisante buscou provas experimentais.
Questionando insistentemente um meio-irmão de seu pai, que cuidava dos cavalos
de sua família na infância, este acabou por confessar um romance com a babá. De
fato, Marie Bonaparte havia assistido, em plena luz do dia, a cenas de felação,
coito e cunilígua em frente a seu berço.
Com esses fragmentos de análise, Roudinesco (2000) aponta a diferença
entre saber e verdade. A cena construída para Pankejeff, cena imaginária, permitiu
que ele pudesse significar a sua história, enunciando a verdade da estrutura do
sujeito e colocando-o frente a frente com o seu desejo. Pela análise, o paciente
descobre o recalque da cena primária e da diferença sexual. A autora chega a
afirmar que “(...) essa cena [inventada ou não] extrai sua força significante do fato
de ser construída” (p. 93).
Defendendo-se de possíveis críticas, Roudinesco (2000) declara que, no
cientificismo, o intelecto deve coincidir com a coisa, e o conhecimento, com a
verdade. A experimentação, nessa acepção, é a única prova da verdade subjetiva,
por não perceber as diferenças entre as ciências da natureza e as ciências do
homem. Vejamos como Freud lidou com essa questão.
Em 21 de setembro de 1897, Freud (Masson, 1986) escreve a célebre carta
69, Carta do Equinócio, na qual explica o porquê de sua renúncia à teoria da
sedução. Ele diz não acreditar mais em sua Neurótica, a ponto de, ao final da
carta, sentenciar: Rebeca, tire o vestido; você não é mais noiva nenhuma” (p.
267), dando quatro razões para sua descrença. Segundo Caon (2000/2001), Freud
não se refere à teoria das neuroses, mas a sua própria neurose, visto que a palavra
‘neurótica’ pode ser compreendida como um termo neutro plural. Nesse sentido,
sua Neurótica levou-o a acreditar que haveria um pai perverso na origem das
neuroses.
Quanto aos motivos dessa virada, Freud (Masson, 1986) aponta: em
primeiro lugar, o desapontamento em levar uma única análise a uma conclusão
real, a debandada de pacientes que julgava estar seguro de compreender, a falta de
êxitos absolutos e a possibilidade de explicar os sucessos parciais de outras
maneiras; em segundo, o fato de que todos os pais, incluindo o seu, tinham que ser
apontados como pervertidos, e, nesse caso, a incidência de perversão teria que ser
necessariamente mais freqüente que a histeria dela resultante, visto surgir da
69
acumulação de eventos e do enfraquecimento da defesa; em terceiro lugar, pela
descoberta comprovada de não haver indicações de realidade no inconsciente, não
permitindo a distinção entre verdade e imaginação (ficção) investida de afeto,
mantendo-se, assim, os pais como tema da fantasia sexual; por último, de que, nas
psicoses, as lembranças inconscientes não vêm à tona, não se revelando o segredo
das experiências infantis, nem no mais confuso delírio. Freud conclui que, se o
inconsciente jamais supera a resistência da consciência, também o inconsciente
não pode ser completamente dominado pela consciência.
Ao observar que muitas histéricas se sentiam vítimas de abusos sexuais,
embora não tivessem sido agredidas sexualmente pelo pai ou por outro homem, e,
mesmo quando isso havia ocorrido, o fato não explicava a eclosão de uma neurose
histérica, Freud acaba percebendo a importância da fantasia. Não, as histéricas
não mentiam, ao se sentirem vítimas de uma tentativa de sedução. Quanto a isso,
Roudinesco (2000) afirma:
Freud então substituiu a teoria da sedução pela da fantasia e, num
mesmo movimento, resolveu o enigma das causas sexuais: elas eram
fantasísticas, mesmo quando existia um trauma real, uma vez que o
real da fantasia não é da mesma natureza da realidade material (p. 73).
Com essa virada, a teoria freudiana passa a entender a sexualidade em sua
dimensão pulsional e fantasística, colocando a sexualidade não genital e o
inconsciente como bases da experiência subjetiva. Isso não quer dizer que um
abuso real o possa causar danos à vida de uma pessoa, da mesma forma que a
violência moral e psicológica pode ter um efeito tão intenso quanto o de um abuso
sexual.
A regra fundamental da psicanálise desfaz as possibilidades de que o
paciente simplesmente relate os acontecimentos cotidianos e de sua vida passada.
Freud (1940/1075) é taxativo ao afirmar, em o “Esboço de Psicanálise”, que o
analisante deve dizer não somente o que ele sabe e esconde das outras pessoas,
mas o que ele não sabe. Ao dizer tudo o que vem à mente coisas desagradáveis,
sem importância ou mesmo absurdas –, ele estará disponibilizando uma massa de
material sujeita à influência do inconsciente, ampliando o conhecimento do
analista a respeito do seu material inconsciente reprimido.
Conforme A. Figueiredo e colaboradores (2001), “(...) o caso se apresenta
como o produto do que se extrai das intervenções do analista na condução do
70
tratamento, e do que é decantado de seu relato” (p. 20). Diferentemente do caso
clínico, a história do paciente concerne ao relato clínico com a conseqüente
apresentação das cenas vividas pelo analisante, na qual se dá ênfase aos detalhes e
aos conteúdos factuais.
A fala do paciente permite o fantasiar, que, em relação aos aspectos
inconscientes, proponho ser equiparado a uma figuração. Para avançarmos,
convém buscar apoio no dicionário. Segundo Ferreira (1999), nove acepções
para o verbete ‘figurar’. As cinco primeiras listadas pelo autor são consoantes
com o que ora exponho: (a) traçar a figura, a imagem de; (b) significar por meio
de alegoria, figura, símbolo, etc.; simbolizar; (c) significar, representar, lembrar;
(d) ter a forma ou figura de; e (e) representar na imaginação; imaginar, conceber,
fantasiar, supor.
A figuração não é tema alheio à psicanálise. Freud (1900/1972) dedica um
capítulo da Traumdeutung a essa questão. O dito capítulo, o VI, é intitulado
“Considerações de Representabilidade” na edição standard brasileira, mas pode
ser mais bem traduzido por “A Consideração à Figurabilidade”. Nele, Freud
destaca o papel das palavras na formação onírica devido à polissemia das mesmas.
Não os sonhos como as neuroses, segundo o autor, utilizam essas vantagens
com a finalidade de condensação e deslocamento, disfarçando e distorcendo a
expressão. Assim, os pensamentos, no sonho, são capazes de ser representados em
imagens visuais. Uma nota de rodapé refere o emprego de ‘pontes verbais’
(Wortbrücken) na solução de sintomas neuróticos. Mas há ainda uma terceira
possibilidade destacada por Freud:
(...) a saber, considerações de representabilidade no material psíquico
peculiar de que os sonhos se utilizam na sua maior parte, vale dizer,
representabilidade em imagens visuais. Dos vários pensamentos
subsidiários ligados aos pensamentos oníricos essenciais, serão
preferidos aqueles que admitam representação visual; e a elaboração
do sonho o foge ao esforço de remodelar pensamentos inadaptáveis
numa nova forma verbal mesmo numa menos usual contanto que
esse processo facilite a representação e assim alivie a pressão
psicológica causada pelo pensamento constrangido [grifos do autor]
(p. 366).
No capítulo da Traumdeutung dedicado à regressão, Freud (1900/1972)
afirma a condição reguladora do trabalho onírico como tendo origem na regressão.
A partir disso, o autor entende que um sonho pode ser descrito como um
71
substituto para uma cena infantil, porém, modificada em função da transferência
da cena infantil para uma situação presente. Essa cena o pode ressurgir,
segundo Freud, a não ser pelo recurso dos sonhos.
De um modo geral, os sentidos expostos acima dão a idéia de uma
representação, que já é um distanciamento necessário da coisa. O Phantasieren é
dar uma imagem ao que não a tem, entendendo-se aqui como imagem também os
recursos lingüísticos utilizados nessa tarefa.
O paciente figura suas questões psíquicas a partir do fantasiar,
necessitando de uma alteridade para dar entendimento a sua fala, à concepção de
seu sofrimento, uma vez que esta aparece como uma imagem distorcida. Ao
psicanalista, cabe um movimento a partir da figuração do paciente, no sentido de
uma correção dessa distorção vista pela óptica da metapsicologia. Claro está que
esse trabalho não deve ser entendido como uma intervenção ‘ortopédica’ do
psicanalista como alguém que detém, de antemão, a chave para o entendimento
correto –, mas como parte do trabalho de elucidação das questões trazidas pelo
paciente e confiadas ao analista na qualidade de Sujeito suposto Saber.
Assim, proponho que este trabalho possa ser concebido como uma
transfiguração operada pela construção em análise. Novamente, Ferreira (1999)
nos socorre com quatro acepções diferentes para o verbete ‘transfigurar’. Então,
temos: (a) mudar a figura, feição ou caráter de; transformar; (b) dar uma idéia
falsa de; alterar; (c) converter, mudar, transformar; e (d) mudar de figura,
transformar-se, transfazer-se.
Se tomarmos a figura esboçada pelo paciente como uma distorção da
própria organização psíquica, a transformação e a alteração desta em uma nova
figura impõe-se como tarefa do psicanalista. A transfiguração buscada na
construção é a correção, pela óptica da metapsicologia, da fantasia (Phantasieren)
do paciente. Na medida em que, nem sempre, o psicanalista utiliza o recurso da
construção nos tratamentos por ele empreendidos, proponho circunscrever essa
construção ao âmbito da apresentação de um caso metapsicológico à comunidade
psicanalítica. Nesse sentido, entendo a construção metapsicológica como a
transfiguração do material recolhido no tratamento psicanalítico com o intuito de
apresentar avanços metapsicológicos. A escritura de um caso clínico tem por
objetivo transmitir à comunidade científica os achados psicanalíticos por
72
intermédio de imagens transfigurações capazes de facilitar a apreensão do
universo abstrato dos conceitos metapsicológicos.
1.9 – Delimitação do Problema de Pesquisa
Ao longo deste capítulo, mostrei a importância da identificação do
material a ser trabalhado com o paciente em psicanálise e a conseqüente
apresentação do material recolhido em forma de um caso clínico pelo psicanalista
a partir do atendimento realizado. Também é verdade que casos
metapsicológicos escritos independentemente de um tratamento psicanalítico
anterior. Em ambos os casos, no entanto, a apropriação dos dados extraídos do
material clínico ou examinados como um material clínico na qualidade de um
caso metapsicológico redigido para a divulgação – mostram-se passíveis de
investigação.
Assim sendo, o problema de pesquisa suscitado ao longo da revisão pode
ser circunscrito à seguinte questão:
como se a apropriação dos dados recolhidos pelo psicanalista para
a escritura do caso a ser apresentado publicamente?
Dessa primeira questão, podemos desdobrar o problema desta Tese nessas
outras três:
quais os dados relevantes para a escritura de um caso
metapsicológico?
o que é construído em um caso metapsicológico?
qual o papel da ficção na escritura de um caso metapsicológico?
73
1.9.1 – Questões Metodológicas Específicas
Na ciência, primeiro é preciso decompor, depois reunir.
(Carta de Freud a Pfister)
Diferentemente das demais linhas de pesquisa, a psicanálise não conta com
a observação do fenômeno da mesma forma que as ciências empíricas. Isso, por si
só, traz o questionamento sobre a validade e a cientificidade dos dados, e uma das
freqüentes críticas à psicanálise refere-se ao fato de ela não apresentar os mesmos
dispositivos de controle encontrados nas demais pesquisas. Quanto a isso, Corvo
(1999) oferece uma ilustração:
Acusar a psicanálise de carecer da precisão e exatidão de uma
metodologia científica implica uma confusão entre o método e o
fenômeno do qual ela se ocupa, sendo tão injusto, para não dizer
absurdo, como sugerir que a cirurgia é muito sangrenta, nadar é muito
úmido ou a proctologia é muito suja (1999, p. 437).
A afirmação de que a pesquisa psicanalítica carece de rigor não é
verdadeira, que o rigor dessa pesquisa não esdado pelos aspectos de controle
da pesquisa, como acontece nas investigações qualitativas e quantitativas. Assim,
não podemos confundir rigor com controle, pois, ainda que, em uma pesquisa
psicanalítica, não haja dispositivos de controle como nos demais processos
investigativos, o podemos acusá-la de falta de rigor. Tal rigor se refere à
extrema preocupação do pesquisador psicanalítico em se deixar levar pelo campo
do inconsciente, por aquilo que marca sua posição subjetiva.
A realidade psíquica, objeto de estudo da psicanálise, não pode ser
definida a partir de distinções feitas entre dados objetivos e subjetivos, entre o que
seria realidade (verdade) e o que seria fantasia (mentira) ou, mesmo, entre mundos
externo e interno. Quanto a esse ponto, A. Figueiredo e colaboradores (2001)
afirmam:
Se não podemos mais operar sobre duas realidades distintas, objetiva
versus subjetiva, logo, temos que considerar que no modus operandi
da clínica psicanalítica o sujeito que observa (epistêmico) não é
exterior ao sujeito observado (empírico). Ou ainda, o sujeito
‘observado’ é quem inclui o ‘observador’ em ‘uma de suas séries
psíquicas’, pela via da transferência. Os instrumentos diagnósticos e
74
de tratamento, desde o início, estarão marcados por esta concepção
[grifos dos autores] (p. 13).
Nessa perspectiva, Freud obtém seus achados, pela via da transferência, a
partir das duas regras fundamentais da psicanálise associação livre e atenção
eqüiflutuante –, as quais demonstram o rigor da pesquisa psicanalítica na escuta
dos significantes do sujeito que fala. A associação livre é o método de trabalho do
próprio analisante – a parte que lhe cabe no seu processo de tratamento –,
enquanto a atenção eqüiflutuante corresponde ao método de trabalho do analista.
Mais do que uma posição exigida pela técnica, o método psicanalítico é
cingido pela ética, como veremos a seguir. Em seu trabalho, no qual aborda o
tema da morte na perspectiva psicanalítica para além da acepção organicista da
morte do corpo –, Vilanova (2001) mostra como o trabalho médico é orientado
por um tratamento universal que é o mesmo para qualquer paciente. Em
contrapartida, diz a autora: A psicanálise se ocupa do impossível articulado na
linguagem, com seus limites à possibilidade de significação, limite à revelação de
uma verdade universal” (p. 46). Os limites impostos pela fala apontam a
impossibilidade de uma significação última. Assim, ela complementa: “A
psicanálise se ocupa do impossível de suportar a partir das formas que ele ocupa
no dizer. Ouvir o sujeito é recusar a satisfação que pode ser alcançada na
compreensão. Trata-se exatamente de restituir aos ditos do paciente sua parte de
enigma” (p. 47), indicando que, mais do que o método psicanalítico, é a ética que
sustenta a prática clínica.
A autora questiona a possibilidade de conduzir o homem ao prazer e à
felicidade. Se o Real, como impossível, é o que se apresenta na análise, o
psicanalista não deve recuar diante dele, tampouco deve procurar suprimi-lo. Dito
de outra forma por Birman (1994) “(...) a psicanálise é inseparável de uma prática
de transformação do sujeito, de um ato que tenha uma incidência radical em sua
economia pulsional” (p.19).
Assim, convido os leitores a terem em mente as questões relativas à
cientificidade da psicanálise discutidas, à guisa de apresentação, na justificativa
desta Tese, na medida em que a pesquisa psicanalítica o pode estar
desvinculada do objeto que pretende estudar. É evidente que essa exigência se
aplica a qualquer investigação, mas, em se tratando de uma pesquisa psicanalítica,
não devemos esquecer que o objeto sobre o qual nos debruçamos é a
75
metapsicologia. É comum ouvirmos que as formações inconscientes são o objeto
da psicanálise, e isso, grosso modo, permanece válido, assim também como a
concepção lacaniana enfatiza o objeto a como o alvo de sua investigação. Sugiro,
no entanto, que se designe a metapsicologia como o objeto da psicanálise por seu
aspecto mais abrangente, haja vista que o próprio inconsciente figura como um
conceito metapsicológico e que à metapsicologia poderemos acrescer as
contribuições de outros psicanalistas, como o de objeto a definido por Lacan.
A pesquisa psicanalítica tem no paciente o arquimodelo do pesquisador.
Esse pesquisador deve, antes de tudo, ter realizado a pesquisa de sua vida como
paciente e, enquanto pesquisador, encontrará na clínica o húmus de suas
investigações. Esposando essa idéia, Freud (1909/1976) chega a chamar o
pequeno Hans de jovem investigador, como segue: “(...) nosso jovem investigador
simplesmente chegou um pouco cedo à descoberta de que todo o conhecimento é
um monte de retalhos, e que cada passo à frente deixa atrás um resíduo não
resolvido” (p. 107).
Todavia o encontro dos pesquisadores em atividade de Laboratório de
Psicanálise não cumpre função de ensino e formação psicanalítica, mas possibilita
a refundação de suas experiências a partir da instrumentalização da transferência
ao texto metapsicológico produzido (Caon, 1996; Iribarry, 2003). Dito de outro
modo por A. Figueiredo e colaboradores (2001): “(...) nosso método deverá ser
capaz de recolher, do trabalho do analista-pesquisador, os efeitos da pesquisa, ou
seja, a incidência da aplicação do método à própria ação do analista no
tratamento” (pp. 16-17).
Quanto ao método da pesquisa psicanalítica, não encontramos um único
artigo freudiano que a explicite, de forma sistemática e aprofundada, de acordo
com o preconizado pela ciência normal; essas questões relativas ao método
acabam ocupando as preocupações de Freud ao longo de sua obra magistral. Ao
que tudo indica, ele teria evitado apresentar o tema de forma programática, como
confirma uma carta enviada a Pfister em 20 de janeiro de 1911, na qual se lê:
“Talvez a sua repetida pergunta pela metodologia tenha tido parte da culpa na
minha hesitação, pois obviamente não gosto de ouvi-la. Uma parte está pronta
um ano e meio, mas o todo ainda o está maduro, e seu autor está cansado” (p.
64).
76
Assim, podemos nos remeter a uma passagem de “À Guisa de Introdução
ao Narcisismo”, na qual Freud (1914/2004) afirma o seguinte:
É verdade que noções como a de uma libido do Eu, energia pulsional
do Eu e outras o são nem claramente apreensíveis, nem
suficientemente ricas de conteúdo; assim, uma teoria especulativa a
respeito das relações em questão teria sobretudo por meta formular
conceitos rigorosamente delimitados que lhes servissem de
fundamento. Todavia, acredito ser essa a diferença entre uma teoria
especulativa e uma ciência construída sobre a interpretação de dados
empíricos. Esta última não invejará da especulação o privilégio de
uma fundamentação impecável e logicamente inatacável. Ao
contrário, a ciência se dará por satisfeita com idéias básicas, nebulosas
e ainda difíceis de visualizar, sempre, porém, com a esperança de mais
adiante, no decorrer de seu desenvolvimento, vir a apreender tais
idéias com mais clareza, mostrando-se ainda disposta a eventualmente
trocá-las por outras. Afinal, o fundamento da ciência não são essas
idéias, mas sim a observação pura sobre a qual tudo repousa. Elas não
são a base, mas o topo do edifício, e podem, sem prejuízo, ser
substituídas e removidas (p. 100).
Ainda que possa parecer exaustivo o recurso da citação, não posso deixar
de apontar, na obra freudiana, momentos nos quais Freud explicita a questão do
método de sua pesquisa. Assim, tomo, a seguir, um trecho de “Pulsões e Destinos
da Pulsão”:
O verdadeiro início da atividade científica consiste muito mais na
descrição de fenômenos que são em seguida agrupados, ordenados e
correlacionados entre si. Além disso, é inevitável que, ao descrever
o material, apliquemos sobre ele algumas idéias abstratas obtidas não
a partir das novas experiências, mas também oriundas de outras
fontes. Tais idéias iniciais os futuros conceitos básicos da ciência
se tornam ainda mais indispensáveis quando mais tarde se trabalha
sobre os dados observados. No princípio, as idéias devem conter certo
grau de indefinição, e ainda não é possível pensar em uma delimitação
clara de seu conteúdo. (...) Em rigor, essas idéias iniciais possuem o
caráter de convenções. Entretanto, é preciso que não tenham sido
escolhidas arbitrariamente, e sim determinadas pelas relações
significativas que mantêm com o material empírico. (...) Entretanto, o
progresso do conhecimento não suporta que tais definições sejam
rígidas, e como ilustra de modo admirável o exemplo da física, mesmo
os “conceitos básicos” que já foram fixados em definições também
sofrem uma constante modificação de conteúdo (Freud, 1915/2004, p.
145).
Esse modelo oferecido conscientemente por Freud parece ser a conclusão
de etapas anteriores menos organizadas, mostrando como vão sendo agregados
novos conhecimentos ao edifício teórico da psicanálise. A portentosa obra
77
freudiana, por si só, nos a idéia de que Freud procura registrar todas as suas
idéias no mesmo movimento em que nasce nele a dimensão clínica. Então, sugiro
como etapa inicial desse processo, considerações provisórias redigidas à maneira
de um diário de campo, o qual será apresentado com maior profundidade no item
destinado aos instrumentos da pesquisa.
A produção de uma pesquisa psicanalítica nasce do interjogo entre o
trabalho solitário do pesquisador e a crítica ou o crivo encontrado nos
interlocutores durante esse processo investigativo. Quanto ao primeiro aspecto,
temos a referência à expressão inglesa splendid isolation na carta de sete de maio
de 1900, de Freud a Fliess (Masson, 1986). O trabalho solitário do pesquisador é,
então, o primeiro momento de sua investigação.
Esse momento, no entanto, não é de puro isolamento. Afastando-se do que
comumente conhecemos por solipsismo, recebeu da pena de Carnap (1929) a
denominação de solipsismo metodológico. Schlick (1936/1980) chamou atenção
para o fato de a denominação de Carnap ser passível de causar equívocos. Para
ele, o solipsismo metodológico não é uma espécie de solipsismo, mas um método
para construir conceitos.
Nesse tipo singular de solipsismo o metodológico –, o psicanalista conta
com um outro na qualidade de alteridade ao seu trabalho investigativo (Caon,
1994). Esse foi o modelo utilizado por Freud ao tomar Fliess por seu interlocutor
privilegiado por um Publikum. Como atesta a carta de 19 de setembro de 1901,
uma das últimas desse intenso relacionamento, Freud lamenta a perda de sua
‘única platéia’, na medida em que escrevia de maneira franca, expondo suas idéias
sem o recurso do encobrimento de falhas ou sem o medo de que seu pensamento
não fosse acolhido pelo amigo. Segundo Caon (1996): Publikum é a audiência
seleta, benfazeja, benevolente, crítica e nada indulgente, aquela que tem acesso ao
texto antes de ele ser publicado e abandonado” (p. 64).
A importância de um espaço privilegiado de apresentação e interlocução
pode ser apoiada nos comentários de Freud (1977/1892) sobre as conferências de
Charcot. Freud diz textualmente que:
O encanto peculiar dessas conferências reside no fato de que elas, na
sua maior parte, foram inteiramente improvisadas. O professor não
conhece os pacientes que lhe são apresentados para exame, ou os
conhece apenas superficialmente. É obrigado a conduzir-se diante de
seu auditório tal como habitualmente o faz em sua clínica
78
particular, exceto quanto ao detalhe de que ele pensa em voz alta e
permite que os ouvintes participem do rumo de suas conjecturas e
investigações (pp. 191-192).
Para efeitos desta investigação, considerarei como Publikum os encontros e
trocas com a orientadora desta Tese, as apresentações e discussões com o seu
grupo de doutorandos nos encontros das terças-feiras e com todo o grupo de
pesquisadores e alunos do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise e
Educação (NEPPE). Os encontros e as trocas com os professores e colegas deste
Programa de Pós-graduação, a banca de qualificação deste projeto e o contato com
os demais profissionais e estudiosos da psicanálise também serão considerados
como público intermediário.
Quando o pesquisador psicanalítico encerra sua pesquisa, no sentido de
que seus achados sejam oferecidos à publicação (Veröffentlichung), o público
deixa de ser uma platéia particular e interativa e passa a ser anônimo, um grande
público (die Öffentlichkeit). Esse grande público, por outro lado, não participa
do processo de pesquisa.
A experiência da pesquisa psicanalítica não se refere a um conhecimento
sobre um determinado objeto que eclipsa, pela metodologia empregada, a
qualidade de sujeito do próprio investigador. Todavia não preponderância do
psiquismo, anulando o objeto de estudo. A experiência própria de uma pesquisa
psicanalítica é uma experiência (Erfahrung) balizada pelo solipsismo
metodológico e pela alteridade, dando lugar a um saber e instaurando uma
aprendizagem. Segundo Caon (1994), a “(...) Erfahrung ou a experiência
incorporada como aprendizado e conhecimento corresponde ao segundo momento
da pesquisa metapsicológica, isto é, a sua fase mais crítica” (p. 162), que faz
contraponto com o primeiro momento acrítico e especulativo encontrado no
solipsismo.
O último dispositivo metodológico a ser relacionado é quanto à forma de
apresentação dos achados da pesquisa psicanalítica. vimos que essa pesquisa
psicanalítica de uma questão do pesquisador (solipsismo metodológico)
trabalhada na relação privilegiada deste com um público seleto (Publikum),
através da qual ele expõe os dados preliminares de uma experiência singular
(Erfahrung), que, ao ser abandonada, encontrará, na publicação
(Veröffentlichung), o seu destino final. Portanto, como forma de discussão dos
79
dados de uma pesquisa psicanalítica, temos a construção metapsicológica do caso
e o ensaio metapsicológico. Quanto à apresentação do caso, vejamos o que
afirmam A. Figueiredo e colaboradores (2001):
O pesquisador, ao apresentar o caso a partir de seu recorte, traz o
modo como desenvolve sua narrativa, e as questões levantadas
referem-se tanto às produções de fala e ões do paciente quanto às
intervenções e o manejo do próprio analista, sua escolha por esta ou
aquela modalidade de intervenção. Com isso, temos informações
certamente menos objetivas, porém, mais precisas quanto à implicação
do analista em seu trabalho, e quanto à necessidade de prestar contas
de seus atos e refletir sobre a condução do caso (p. 19).
A construção metapsicológica do caso foi suficientemente trabalhada no
capítulo dedicado à construção do caso. Willemart (2005) também esposa a idéia
de estender o significante ‘construção’ para a escritura do caso e, como mostra o
último artigo de D’Agord (2005), a construção do caso também tem sido
considerada método privilegiado de apresentação, pelos alunos, da experiência de
estágio acadêmico em psicopatologia.
Os achados desta Tese, mais especificamente no capítulo destinado à
discussão dos dados, não serão apresentados na forma de construção
metapsicológica do caso, mas como ensaio metapsicológico. Conforme
afirmado no capítulo relativo à construção do caso (Moura e Nikos, 2000/2001), o
ensaio metapsicológico é uma refundação da experiência de análise na situação
psicanalítica de pesquisa destinada a servir de uma nova referência no campo da
metapsicologia.
O ensaio é uma obra literária escrita em prosa, visando à interpretação ou à
análise de determinado assunto. Todavia não tem o objetivo de ser um trabalho
acabado, faltando-lhe a formalidade de um tratado, por exemplo. Ele parte de uma
idéia já formada, de conceitos que já estão implicitamente concretizados na língua
na qual é escrito. A partir dos significados conhecidos, o ensaio faz com que os
mesmos avancem, reordenando-os. Destarte, ele ajuda na relação da linguagem
com os conceitos, refletindo sobre o uso inconsciente destes. Todavia essa forma
de expressão literária não busca as definições fixas e estritas, pois não tem o
intuito de eliminar o potencial inquietante e perigoso do significado dos conceitos.
O ensaio rompe com a regra cartesiana de pensar de forma ordenada desde o
objeto mais simples de conhecer até o mais complexo. O ensaio sói iniciar pelo
80
mais complexo e menos familiar, que é no complexo que reside o interesse do
investigador (Adorno, 1965).
Partindo da definição de ensaio, enfatizo que o ensaio metapsicológico não
se propõe a ser um texto fechado e completo, mas tem como objetivo transmitir os
achados psicanalíticos por intermédio de imagens capazes de facilitar a apreensão
do universo abstrato dos conceitos. Assim, o estudo proposto por esta Tese será
apresentado em forma de um ensaio metapsicológico.
Como foi afirmado anteriormente, o ensaio gênero literário figura
como a forma de apresentação de uma pesquisa psicanalítica, ou seja, como
recurso discursivo na forma de texto. Todavia é preciso ainda avançar quanto às
possibilidades discursivas no sentido de sua capacidade argumentativa, o que
também poderia ser definido como a capacidade de estabelecer uma protréptica.
Para Milner (1996), a protréptica é “(...) o procedimento discursivo que tem por
função arrancar o sujeito da doxa a fim de voltá-lo para a theoria [grifos do
autor] (p.18), o que não deixa de ser o objetivo da academia.
A transformação do discurso em obra estruturada deve, segundo Ricoeur
(1988), poder manter a característica fundamental do discurso, qual seja, a de se
organizar a partir de frases que expressem a idéia de alguma coisa para um outro.
O discurso transformado em texto constitui uma forma de distanciamento entre o
autor e o real. O autor passa a ser, então, “o artesão em obra de linguagem”
(Ricoeur, 1988, p. 52).
Ricoeur (1988) reforça a idéia de que, com relação a determinado evento
lingüístico, a tentativa de compreensão deve recair sobre a sua significação, na
medida em que o próprio evento é fugidio. Para o filósofo, quando a língua se
articula como discurso, a partir daí, ela se ultrapassa enquanto sistema e se realiza
como evento. O discurso, ao buscar a compreensão, será ele mesmo ultrapassado
enquanto evento pela significação, pois essa ultrapassagem é constitutiva do
discurso enquanto tal. Ricoeur conclui dizendo que: “(...) se a linguagem é um
meinen
17
, uma visada significante, é precisamente em virtude dessa ultrapassagem
do evento na significação” [grifo do autor] (p. 47).
Quanto ao conceito de discurso, podemos dizer com White (1994), que é a
forma de composição verbal que se situa entre a demonstração lógica e a pura
17
Em alemão: pensar, achar, julgar, considerar, ser de opinião.
81
ficção. Ele pode ser definido como o gênero pelo qual, preferencialmente, os
‘tropos’, figuras de linguagem, podem ser expressas. Nesse gênero, observamos
mudanças em relação ao uso literal da linguagem, criando figuras de linguagem
ou pensamento. Portanto deve-se entender esse recurso não como um desvio a um
determinado sentido, mas como geração de mais sentidos. O emprego de ‘tropos’,
segundo White, é a alma do discurso, recurso sem o qual ele não consegue
alcançar seu objetivo.
Para não ser acusado de recorrer a um expediente sem o devido rigor, tomo
aqui o exemplo trazido por White (1994). Nele, o autor mostra que, na lógica, o
próprio modelo do silogismo revela clara evidência do emprego de ‘tropos’. Da
premissa maior (“Todos os homens são mortais”) para a premissa menor
(“Sócrates é um homem”), , em si, um movimento tropológico de giro do
universal para o particular. Para White, todo silogismo contém um elemento que
decide pelo movimento do plano das proposições universais para o das afirmações
singulares.
Com isso, quero afirmar que o uso da linguagem figurativa serve para dar
coerência ao texto e que todo recurso é válido na argumentação das idéias, ainda
que pareça ferir a pretensa objetividade científica. As figuras de linguagem
‘tropos’ são dispositivos utilizados na busca de significação e, com isso,
acarretam a ultrapassagem do próprio discurso em direção ao Real por ele
revelado.
1.9.2 – Objetivos
Como objetivo geral desta Tese, tenho a investigação da apropriação feita
pelo psicanalista dos dados clínicos recolhidos para a escritura de um caso
metapsicológico
Como objetivos específicos, tenho os seguintes:
a) investigar quais são os dados utilizados na escritura de um caso
metapsicológico;
b) examinar o papel da construção para a escritura de um caso
metapsicológico; e
c) examinar o papel da ficção na escritura de um caso metapsicológico.
82
1.9.3 – Expectativas de Trabalho
Na medida em que o caso metapsicológico é ferramenta largamente
utilizada como forma de expor os avanços teóricos psicanalíticos, inclusive no
âmbito da pesquisa psicanalítica universitária, tive como expectativa para esta
Tese lançar luzes sobre a confecção de um caso metapsicológico. Da mesma
forma, esperei poder esclarecer o papel da construção e da ficção na escritura de
um caso metapsicológico.
Esta Tese está composta de um estudo intitulado A Pesquisa de Freud e
Lacan a partir da obra de Schreber”, como veremos a seguir, no qual se inclui um
ensaio metapsicológico como forma de discussão dos dados.
83
II – ESTUDO
A Pesquisa de Freud e Lacan a partir de Schreber
2.1 – Introdução
Na introdução desta Tese, foram trabalhados vários aspectos relativos ao
caso clínico e, de forma mais detalhada, a sua aplicação na psicanálise. Uma
questão que chama a atenção é a concernente ao aproveitamento dos dados
coletados na escritura de um caso metapsicológico e ela figura como o ponto
principal desta investigação.
Ressalto o fato de que os três objetivos destacados no capítulo anterior
estão, de certa forma, imbricados, sendo que cada um acaba por ser investigado ao
se investigar o outro. De qualquer maneira, é a investigação dos dados utilizados
na escritura de um caso metapsicológico o objetivo principal da presente Tese,
seguido do interesse em torno do papel da construção e da ficção na escritura de
um caso metapsicológico.
Na introdução desta Tese, também mostrei como a construção ganhou
força desde sua utilização no tratamento psicanalítico, a ser considerada uma
ferramenta a jogar papel decisivo na escritura do caso metapsicológico. Da mesma
forma, a ficção não está ausente nas teorizações metapsicológicas e na
apresentação dos casos psicanalíticos. Assim, o presente estudo visa investigar
tanto o papel da construção na escritura de um caso metapsicológico, quanto a
utilização de elementos ficcionais. Para tal, escolhi um trabalho teórico baseado
nos dados oferecidos pelo Presidente Schreber através de suas memórias
(Schreber, 1903/1984), bem como o trabalho redigido por Freud (1911/1969) e
Lacan (1959/1998) a partir delas.
Talvez cause estranheza a utilização de um livro de memórias no lugar de
evoluções clínicas redigidas por um psicanalista e de um escritor ao invés de um
paciente, na medida em que se espera que o foco recaia sobre os dados a serem
aproveitados em um caso metapsicológico; além disso, sequer Schreber foi um
caso clínico de Freud.
84
Em primeiro lugar, devo confirmar o fato de que Schreber não constitui
um caso clínico tal qual o concebemos, isto é, de um caso redigido a partir de um
tratamento empreendido. Entretanto, o deixou de influenciar a prática clínica
pelas contribuições teóricas estabelecidas por Freud (1911/1969), o que pode ser
corroborado pelas freqüentes referências da comunidade psicanalítica ao caso
Schreber.
Em segundo lugar, a obra de Schreber (1903/1984), ainda que tenha sido
publicada, não chega a ser uma obra literária na forma como se costuma conceber.
Muito provavelmente, o livro Denkwürdigkeiten chegou aos leitores alemães
pelo inusitado de seu conteúdo e por tratar de pessoa ilustre, filho de alguém não
menos ilustre e de reconhecida importância nos meios educacionais. Basta que se
leia a obra de Schreber para constatar que se trata de um fiel relatório de toda a
sua constelação delirante. Como mostrarei ao longo do estudo, Schreber
reivindica um lugar como cientista ou colaborador da ciência, mas não como um
literato.
A decisão em tomar as “Memórias” como instrumento deste estudo reside
no fato de ser um material psicopatológico oferecido diretamente pelo paciente
(psiquiátrico), sem o inevitável crivo que é a pena do psicanalista quando do
registro das sessões. Dessa forma, podemos verificar o uso que Freud (1911/1969)
faz do texto schreberiano e quais elementos ele alça à condição de dados.
Destarte, também poderemos investigar as contribuições de Lacan (1959/1998)
para a questão da psicose, a partir de sua leitura de Schreber (1903/1984) e de
Freud.
Os registros das sessões realizados pelo próprio Freud (1911/1969) talvez
sejam efeito importante e inevitável de um trabalho de construção. Na medida
em que espero também verificar o aspecto da construção na escritura de um caso
metapsicológico, a utilização da obra de Schreber (1903/1984) na criação do
Presidente Schreber por Freud e sua conseqüente utilização por Lacan
(1959/1998) parece-me adequada.
85
2.2 – Método
Nesse momento, convido os leitores a terem em mente os critérios
definidos no capítulo anterior para uma pesquisa psicanalítica. Aqui, serão
apresentadas apenas as singularidades dessa investigação.
2.2.1 – Participantes
Conforme dito anteriormente, o primeiro e principal participante de uma
pesquisa psicanalítica é o psicanalista-pesquisador, uma vez que sua subjetividade
não pode ser subtraída do processo de pesquisa, fomentando suas especulações e
fazendo-o advir como um autor. Um dos desdobramentos de uma pesquisa
psicanalítica, conforme Iribarry (2003), é revelar um autor.
Para efeitos desta Tese, como se trata de um estudo teórico, o há
participante além do próprio analista pesquisador.
2.2.2 – Instrumentos
Como primeiro instrumento de meu estudo, temos o diário de campo. As
notas registradas no diário de campo, sempre que adequadas, serviram de dados
para as reflexões desta Tese. Como modelo para o diário de campo, temos um
exemplo de como Freud fazia seus apontamentos para considerações futuras,
ainda que estas notas curtas e desconexas estivessem longe da forma definitiva, o
que pode ser observado no trabalho “Achados, Idéias, Problemas”, publicado,
postumamente, em 1941. Em duas páginas, vemos o que hoje pode ser
considerado um diário de campo.
Outra técnica utilizada por Freud é escrever tudo o que pensa sobre
determinado tema antes mesmo de consultar a literatura. É ele quem nos fala de
sua própria técnica em uma carta a Fliess:
De modo algum penso nessa versão como final. Primeiro, quero
colocar minhas próprias idéias em ordem, depois estudar
detalhadamente, e então fazer inserções ou revisões onde isso for
recomendado por minhas leituras. Não posso fazer a leitura antes de
haver concluído o que eu mesmo tenho a dizer, e sei compor os
detalhes no processo de escrever (Masson, 1986, p. 306).
86
Como instrumentos para esse primeiro estudo, utilizei-me de três registros
escritos. O primeiro deles refere-se à autobiografia na qual o Presidente Schreber
relata a história de sua própria doença. A paranóia de Daniel Paul Schreber foi
imortalizada no livro “Memórias de um Doente dos Nervos”, em 1903. Foi
escolhida a publicação brasileira com a tradução da psicanalista Marilene Carone,
conforme a bibliografia abaixo:
Schreber, D. P. (1984). Memórias de um doente dos nervos. (Marilene Carone,
Trad.). Rio de Janeiro: Graal. (Originalmente publicado em 1903)
O segundo registro escrito a ser trabalhado será o artigo escrito por Freud a
partir da leitura das ‘Memórias’ de Schreber. Como base, foi escolhida a versão
Standard Brasileira, como segue abaixo:
Freud, S. (1969). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso
de paranóia (Dementia Paranoides). Em J. Salomão (Org.)., Edição
brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 13-108). Rio
de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1911)
A versão brasileira foi cotejada com o texto original alemão constante da
Studienausgabe, como segue:
Freud, S. (1973). Psychoanalytische Bemerkungen über einen autobiographisch
beschriebenen Fall von Paranoia (Dementia paranoides). Em Sigmund Freud
Studienausgabe. (Vol. 7, pp. 133-203). Frankfurt am Main: S. Fischer
Verlag. (Originalmente publicado em 1911)
Como terceiro texto, temos o seguinte artigo de Lacan (1998) dedicado à
psicose e no qual trabalha, mais exaustivamente, o caso Schreber:
Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose. (Vera Ribeiro, Trad.). Em Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1959)
87
É verdade que o caso do Presidente Schreber (Freud, 1911/1969) foi alvo
de diversos comentários de Lacan, embora o trabalho acima mencionado tenha
sido concebido, de forma mais sistematizada, como texto a ser publicado, o que
não é o caso dos seminários por ele ministrados. Um texto com a finalidade de
publicação, ao contrário das contribuições esparsas ao longo da obra lacaniana,
facilita o estudo proposto nesta Tese.
Tendo em vista que o caso do Presidente Schreber foi alvo de inúmeros
trabalhos por outros autores, algumas dessas contribuições também foram citadas,
para uma melhor contextualização e compreensão do drama vivido e descrito por
Daniel Paul Schreber (1903/1984), servindo de subsídio a este estudo.
2.2.3 – Procedimento para Coleta de Dados
O procedimento de coleta dos dados deve ser entendido como a
transformação dos dados recolhidos em um registro escrito. Assim, as
considerações feitas durante o processo de pesquisa foram transformadas em texto
e disponibilizadas no diário de campo, para serem utilizadas na confecção de um
ensaio metapsicológico. Para efeitos deste estudo, realizei, primeiramente, um
relato da leitura da obra “Memórias de um Doente dos Nervos”, de Daniel Paul
Schreber (1903/1984) seguido do relato do trabalho elaborado por Freud
(1911/1969) sobre a autobiografia de Schreber intitulado “Notas psicanalíticas
sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides)” e
do trabalho de Lacan (1959/1998) intitulado “De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose”, o qual retoma as memórias de Schreber e o artigo
freudiano citado.
2.2.4 – Procedimento para a Análise dos Dados
Para efeitos desta Tese, o estudo proposto recaiu sobre o exame dos dados
considerados como o conjunto dos materiais escritos e apresentados em forma de
texto, conforme descrição dos itens anteriores.
Para a análise dos dados, tomei desde ferramentas psicanalíticas mais
abrangentes a aquelas mais especificamente lacanianas. Iniciando com uma
abordagem mais ampla, Mezan (1988) afirma que analisar um texto significa um
88
trabalho de desmontagem do mesmo, no qual as resistências devem ser
consideradas bem como as perguntas as quais visa responder e que não são
necessariamente explicitadas, reconstruindo o processo de pensamento do autor.
A leitura que instaura um diálogo de parte a parte e que podemos encontrar em
uma análise literária não caracteriza, segundo o autor, uma leitura psicanalítica. O
diálogo pressupõe a presença de um outro e de suas idéias, e deve-se evitar o
‘contato imediato’ e a ‘ignorância lírica’. No contato imediato, Mezan crê que o
texto desvenda sua mensagem sem esforço por parte do leitor, enquanto, na
ignorância lírica, o leitor sobrepõe suas idéias às do texto, sem verificar tal
possibilidade. Nessas pseudoleituras, ou o leitor desaparece, ou desaparece o
autor.
É a partir desse primeiro contato dialógico com o texto que surge a
possibilidade de uma abordagem propriamente psicanalítica. Para essa tarefa,
Mezan (1988) ressalta a importância de se prestar (...) atenção ao detalhe
dissonante, à frase fora de lugar, às imagens empregadas, ao ponto no qual reluz
uma tensão entre os argumentos, uma reviravolta defensiva, uma ambigüidade
ligeira no uso dos termos e dos conceitos” (pp. 180-181).
O trabalho que se define a partir de então não é da ordem de uma
psicanálise do autor, mas o estudo da relação do autor com suas idéias e os meios
que encontrou para expressá-las. Por essa via, procurei fazer perguntas ao texto,
suscitadas por minha leitura, como efeito de ressonância.
Em se tratando de uma pesquisa psicanalítica em sua vertente lacaniana, a
análise dos textos supracitados obedeceram a critérios específicos, bem como a
ferramentas consoantes com o objeto de estudo. O trabalho do psicanalista a partir
de textos ganhou relevo com os trabalhos escritos sobre determinados escritores e
suas obras literárias. Quanto a esse aspecto, Chemama (1987) chama atenção para
o fato de os psicanalistas tenderem a interpretar a produção do escritor da mesma
forma que fazem com o sintoma neurótico, cedendo “(...) demais à ilusão usual da
interpretação: aquela que atribui ao hermeneuta o estranho poder de descobrir o
sentido que o autor não poderia perceber e que sua obra, todavia, encobriria” (p.
3), não sendo essa a perspectiva inaugurada por Freud.
Nessa tentativa de interpretação do texto, denota-se a clara concepção de
um discurso desdobrado em um sentido exterior, manifesto, dito e no qual se
esconde a significação; e em um sentido interior, essencial e que sustenta a
89
unidade de sentido a ser desvendada. Assim, com o auxílio da topologia,
especialmente da figura topológica da banda de Moebius, podemos romper com a
clássica oposição entre interior e exterior e, conseqüentemente, com a idéia de um
discurso aparente, manifesto e consciente de um lado e de um discurso interior,
latente e inconsciente. A atenção do analista volta-se, então, para o que, embora
estando suficientemente à mostra, não é percebido.
Não se trata, portanto, da transposição de um campo a outro de um saber
pronto, visto que o escritor, assim como o analista e o analisante, é muito
permeável aos significantes que vêm do Outro, os quais, na qualidade de
significantes enigmáticos, retornam, na obra escrita, como uma verdadeira
tentativa de resposta por parte do escritor. Nessa perspectiva, um lapso, um jeito
estranho de empregar uma palavra ou um equívoco ganham novos valores por
fazerem a função de corte no discurso. As formações do inconsciente constituem
enigmas, obstáculos do discurso. Chemama (1987) conclui seu artigo assim:
O analista toma o sujeito pela palavra. Digamos então que ele possa
tomar o texto ao pé da letra. Ele não irá buscar um sentido – profundo,
essencial, único. Mas ele ficará atento ao próprio funcionamento da
escrita. A interpretação, se conservarmos este termo, não será uma
metalinguagem relacionando o discurso do escritor a um saber já
constituído. Ela será corte, escansão operada sobre os traços da
própria escritura, que permite fazer sobressair aquilo que ali já se
encontra (p. 6).
O ato de escandir refere-se, segundo o dicionário Ferreira (1999), à
pronúncia destacada das sílabas de um verso ou de uma palavra. para a
psicanálise lacaniana, a escansão é uma intervenção analítica que visa pontuar
certas seqüências de enunciados proferidos pelo paciente, destacando algo que lhe
escapa em seu dizer, revelando a dimensão de desconhecimento do qual ele é
sujeito. Mais especificamente, a escansão o revela nenhum sentido e nem
explica algo, mas oportuniza o encontro do sujeito com a verdade de seu desejo
(Dor, 1996). Encontramos no seminário “Mais, ainda”, de Lacan (1985), a
seguinte definição, aliás, muito precisa:
Se alguma coisa que possa nos introduzir à dimensão da escrita
como tal, é nos apercebermos de que o significado não tem nada a ver
com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se
ouve de significante. O significado não é aquilo que se ouve. O que se
ouve é significante. O significado é efeito do significante (p. 47).
90
Então, transpondo as vicissitudes da escuta para o processo de leitura,
podemos realizar uma “leitura-escuta” do texto. Devemos o termo “leitura-escuta”
a Souza (1988):
Mas o saber ler é necessário sob vários pontos de vista para a escuta.
Primeiramente, pela particularidade da escuta analítica, que de forma
alguma se trata do puro efeito sensorial de ouvir; trata-se efetivamente
de leitura-escuta. Pois se, por um lado, a escuta pode situar-se num
material sonoro, a leitura, diferentemente, dá-se a partir de um texto,
de uma escrita, de uma escritura. E se o material sonoro é dado no
dito, sob forma de palavras, de enunciados, a enunciação é uma leitura
que busca encontrar o suporte mesmo do falar na relação analítica. Por
isso a metáfora da leitura, pois é lendo na escuta que podemos sacar
um pouco de um equívoco, de uma suspensão; ou seja, aquilo que
desvela a própria enunciação (p. 115).
A escuta analítica refere-se a um ponto de emergência do Real, na medida
em que não podemos dizer que se escute qualquer coisa. Mais especificamente, o
psicanalista escuta a partir de uma leitura imposta pelo equívoco. Souza (1988)
afirma que, através da leitura de uma palavra, escutamos a ressonância equívoca
que ela pode evocar. Para tornar mais preciso esse ponto, esclareço que, no artigo
“O Aturdito”, Lacan (1972/2003) propõe três diferentes tipos de equívocos
significantes, os quais podem sustentar uma escansão. São eles: o por homofonia,
o gramatical e o lógico.
Baseado na especificidade da linguagem para a psicanálise lacaniana,
Caon (1996) propõe como dispositivo de análise dos dados de uma pesquisa
psicanalítica a “escuta dirigida pelo olhar” e a “leitura dirigida pela escuta”. Diz o
autor:
(...) um profissional da escuta psicanalítica, em situação psicanalítica
de pesquisa, serve-se de uma leitura dirigida pela escuta, tanto na
identificação de significantes escandidos pelo escritor como na
escansão de significantes que a legibilidade do texto permite. Um
trabalho de leitura dirigida pela escuta psicanalítica caracteriza um
trabalho de laboratório de psicanálise e, especialmente, um
laboratório do texto psicanalítico [grifos do próprio autor] (Caon,
1996, p. 68).
Assim, o trabalho do pesquisador psicanalítico é oferecer uma leitura
psicanalítica dos dados coletados. Os dados não se diferenciam dos das demais
pesquisas em psicologia clínica, isto é, estas também são baseadas em entrevistas
com pacientes, por exemplo. Todavia, devemos garantir à pesquisa psicanalítica
91
ferramentas para a análise dos dados que não sejam alheias à prática psicanalítica.
Assim, a explicação (Erklärung) buscada a partir do trabalho com o significante
evocado no texto escrito que, no caso desta Tese, são os livros de Schreber
(1903/1984), Freud (1911/1969) e Lacan (1998) serviu de dados para a
confecção de um ensaio metapsicológico.
2.3 – Resultados
Nos três próximos subtítulos, apresento considerações sobre a obra
“Memórias de um Doente dos Nervos”, de Daniel Paul Schreber (1903/1984),
sobre o texto freudiano “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de
um caso de paranóia (Dementia Paranoides)” (Freud, 1911/1969), escrito a partir
daquela, e sobre o trabalho “De uma Questão Preliminar a Todo Tratamento
Possível da Psicose”, escrito por Lacan (1959/1998), no qual propõe avanços a
partir do estudo do caso Schreber, realizado por Freud. Ressalto que, para a
respectiva análise dos dados deste estudo intitulado “A Pesquisa Freudiana a
partir de Schreber”, servi-me também de elementos das obras acima enumeradas,
que não figuram aqui, por se tratarem de resumos. Além disso, outro recurso
utilizado foi a consulta a materiais de apoio a essa tarefa, de que são exemplos
outros trabalhos dedicados ao ‘caso Schreber’.
2.3.1 – “Memórias de um Doente dos Nervos”, de Daniel Paul Schreber
Para fins desta Tese, utilizei a tradução para o português preparada por
Marilene Carone, psicanalista falecida, do livro de Schreber (1903/1984).
Ofereço, a seguir, alguns dados cronológicos, para uma melhor compreensão da
vida e do sofrimento de Schreber, assim como um breve resumo de sua obra.
2.3.1.1 – Da Cronologia
Aqui, apresento a cronologia do Presidente Schreber (Schreber,
1903/1984), encontrada nas páginas 21 a 23 de sua obra. A indicação de três
diferentes ocorrências de sua doença segue o modelo oferecido pelo editor inglês
92
da Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, à
guisa de orientação ao leitor. Também estão incluídas algumas informações
trazidas pelo Dr. Franz Baumeyer, o qual teve acesso aos registros clínicos
originais de Schreber (Freud, 1911/1969, pp. 15-21)
1842 Nasce em Leipzig, a 25 de julho, Daniel Paul Schreber. Filho do médico
ortopedista Daniel Gottlieb
18
Moritz Schreber (1808-1861) e de Louise Henrietta
Pauline Haase (1815-1907).
1858 O pai de Schreber sofre grave acidente com uma barra de ferro que cai
sobre sua cabeça, resultando em comprometimento cerebral irreversível.
1861 – Em novembro, o pai de Schreber, em Leipzig, falece aos 53 anos de idade,
de obstrução intestinal. Na ocasião, era famoso na Alemanha e no exterior por
seus livros sobre pedagogia, ginástica e higiene. Nos últimos anos de vida,
apresenta quadro obsessivo grave com impulsos homicidas.
1877 – A 8 de maio, o irmão mais velho – Daniel Gustav – suicida-se, aos 38 anos
de idade, logo após ser nomeado conselheiro de tribunal (Gerichtsrat).
1878 Schreber casa-se com Ottlin Sabine Behr (1857-1912). Quinze anos mais
moça que ele, diabética e de temperamento infantil, ela deu pouco apoio ao
marido em sua doença. Sabine, que sofreu seis abortos espontâneos, não gerou
filhos. Por ocasião de seu casamento, Schreber foi acometido de um episódio
hipocondríaco, mas sem internação.
Primeira Doença
1884 É nomeado vice-presidente do Tribunal Regional de Chemnitz. A 28 de
outubro, é derrotado nas eleições parlamentares pelo Partido Nacional Liberal. A
8 de dezembro, é internado, por seis meses, na clínica para doenças nervosas da
Universidade de Leipzig, sob a direção do professor Paul Emil Flechsig, uma
18
Segundo Freud (1911/1969), o nome correto é Gottlob.
93
autoridade em neurologia e psiquiatria da época. É diagnosticada uma
hipocondria.
1885 Tem alta hospitalar em junho. Schreber e a esposa fazem longa viagem de
convalescença até o final do mesmo ano.
1886 Schreber retoma suas atividades profissionais, agora em Leipzig, no cargo
de juiz-presidente do Tribunal Regional.
1888 – Recebe a honraria oficial “Cruz do Cavaleiro de Primeira Classe”.
1889 – Nomeado Presidente do Tribunal de Freiberg, para onde se transfere.
1891-1892 Eleito membro do Colegiado Distrital de Freiberg por dois anos
consecutivos.
Segunda Doença
1893 – Em junho, recebe a visita do ministro da Justiça, que anuncia sua iminente
nomeação ao cargo de Senatpräsident (juiz presidente da Corte de Apelação) da
cidade de Dresden, para onde se transfere. Toma posse do cargo a de outubro.
A 10 de novembro, viaja para Leipzig para uma nova consulta com o professor
Flechsig, em função de angústia e insônia. A 21 de novembro, é internado
novamente na clínica da Universidade de Leipzig, onde fica por seis meses.
1894 É posto sob curatela provisória, por motivo de doença mental. De 14 a 28
de junho, permanece no hospital de Lindenhof (“a cozinha do diabo”, nas
“Memórias”), dirigido pelo Dr. Pierson. A 29 de junho, entrada no sanatório
Sonnenstein, com o diagnóstico de dementia paranoides, permanecendo até 1902.
1899 Em outubro, denuncia como irregular sua curatela provisória. Inicia
processo para recuperação de sua capacidade civil.
1900 De fevereiro a setembro, redige os 22 capítulos de suas Memórias. Em
março, uma sentença é desfavorável à suspensão da curatela, que é declarada
94
definitiva. Schreber interpõe recurso e apela da sentença. De junho desse ano até
outubro de 1901, redige a primeira série de suplementos de suas Memórias.
1902 – A 14 de julho, recupera a capacidade civil plena. No final do ano, redige a
segunda série de suplementos e a introdução. Recebe alta hospitalar em dezembro.
1903 – Redige a carta aberta ao professor Flechsig. O casal Schreber passa a viver
em Dresden e adota uma menina de 13 anos de idade. As Memórias de um
Doente dos Nervossão publicadas em Leipzig com cortes e supressão de um
capítulo.
Terceira Doença
1907 – Em maio, morre a mãe de Schreber, aos 92 anos de idade. A 14 de
novembro, sua esposa sofre um derrame cerebral. A 27 de novembro, é internado
no sanatório de Dösen, próximo a Leipzig.
1911 – Schreber morre aos 69 anos, no dia 14 de abril, no sanatório de Dösen.
2.3.1.2 – Das Memórias
No prólogo de seu livro “Memórias de um Doente dos Nervos”, Schreber
(1903/1984) afirma ter começado a escrevê-lo sem pensar em sua publicação. A
idéia, no entanto, surgiu ao longo desse processo. Por se tratar de suas memórias e
de o ter sido escrito, a princípio, para uma publicação, o autor percebe que as
considerações a algumas pessoas registradas no livro comprometem sua
publicação. É talvez por essa razão que o capítulo III não tenha chegado a ser
impresso e jamais tenha sido localizado. Nele, Schreber fizera observações sobre
seu padecimento e sobre os membros de sua família, com o intuito de oferecer
esse material ao desenvolvimento da ciência e da religião, como atesta esta
passagem:
Creio que poderia ser valioso para a ciência e para o conhecimento de
verdades religiosas possibilitar, ainda durante a minha vida, quaisquer
observações da parte de profissionais sobre meu corpo e meu destino
95
pessoal. Diante desta ponderação, deve calar-se qualquer escrúpulo
pessoal (p. 25).
Em seguida, o autor esclarece como compôs sua obra: as
Denkwürdigkeiten” – organizadas em 22 capítulos – foram escritas de fevereiro a
setembro de 1900; a primeira série de suplementos (I -VII), de outubro de 1900 a
junho de 1901; a segunda série de suplementos, no final de 1902. Seguem
considerações do próprio Schreber (1903/1984) a respeito de sua saúde mental, de
sua capacidade civil e de alguns aspectos da obra, encerrando o prólogo.
Para uma melhor compreensão do todo da obra, passo à apresentação de
sua organização. O livro “Memórias” esdividido da seguinte forma: Prólogo;
Carta aberta ao Sr. Conselheiro Prof. Dr. Flechsig; Introdução; I. Deus e
imortalidade; II. Uma crise dos reinos de Deus? Assassinato de alma; III. (Não foi
impresso); IV. Experiências pessoais durante a primeira doença nervosa e início
da segunda; V. Continuação. Língua dos nervos (vozes interiores). Coação a
pensar. Emasculação
19
, em certas condições postulado da Ordem do Mundo; VI.
Experiências pessoais Continuação. Visões. “Visionários”; VII. Experiências
pessoais Continuação. Manifestações mórbidas estranhas. Visões; VIII.
Experiências pessoais durante a estada no sanatório do Dr. Pierson. “Almas
provadas”; IX. Transferência para o Sonnenstein. Mudanças na relação com os
raios. Sistema de transcrições; X. Experiências pessoais no Sonnenstein.
“Distúrbios” como fenômenos concomitantes ao contato com os raios.
“Moldagem do estado de ânimo”; XI. Danos à integridade física através de
milagres; XII. Conteúdo da conversa das vozes. Concepção das almas”. Língua
das almas. Continuação das experiências pessoais; XIII. Volúpia de alma como
fator de atração. Fenômenos resultantes; XIV. “Almas provadas”: seu destino.
Experiências pessoais Continuação; XV. Brincadeiras com os homens e com os
milagres. Gritos de socorro. Pássaros falantes; XVI. Coação a pensar. Suas
manifestações e fenômenos correlatos. XVII. Continuação do anterior.
“Desenhar” no sentido da língua das almas; XVIII. Deus e os processos da
criação; geração espontânea; ssaros miraculados. “Direção do olhar”. Sistema
19
Conforme indicado por Lacan (1959/1998), a Verweiblichung (transformação em
mulher) e a Entmannung não são processos equivalentes na obra de Schreber, e
Entmannung tem o sentido preciso de eviração e não de emasculação. Sempre que
possível, usarei o termo eviração.
96
de exame; XIX. Continuação do anterior. Onipotência divina e livre-arbítrio
humano; XX. Concepção egocêntrica dos raios com relação à minha pessoa.
Configuração ulterior das relações pessoais; XXI. Beatitude e volúpia em suas
relações recíprocas. Conseqüências destas relações no comportamento pessoal; e
XXII. Considerações finais. Perspectivas futuras.
Seguem, ao corpo principal do livro, duas séries de suplementos. A
primeira delas está dividida em: I. Sobre milagres; II. Sobre a relação entre a
inteligência divina e a humana; III. Sobre a brincadeira com os homens; IV. Sobre
as alucinações; V. Sobre a natureza de Deus; VI. Considerações sobre o futuro
Diversos; e VII. Sobre a cremação.
A segunda série não apresenta títulos. Um apêndice intitulado Em que
condições uma pessoa considerada doente mental pode ser mantida reclusa em um
sanatório contra sua vontade manifesta” foi colocado ao final de sua obra. Ele foi
escrito no início de 1900, quando Schreber vivia em isolamento. Dois pós-escritos
concluem o apêndice.
No livro de Schreber, podemos ainda encontrar um anexo dividido da
seguinte maneira: (a) Laudo médico-legal; (b) Laudo médico distrital; (c)
Fundamentação do recurso: I. Sobre o corpo de delito da sentença impugnada, II.
Sobre a fundamentação da sentença; (d) Laudo pericial do Conselheiro Dr.
Weber; e (e) Sentença da Corte de Apelação de Dresden, de 14 de julho de 1902.
Além disso, um glossário e uma bibliografia organizados pela tradutora encerram
o livro.
Uma vez apresentada a obra, retomo nosso caminho. Logo depois do
prólogo, Schreber (1903/1984) apresenta uma carta aberta ao Dr. Flechsig. Nela,
diz enviar um exemplar para o referido médico, esperando, de sua parte, um
exame indulgente do livro. O autor adianta-se em pedir desculpas por citar o nome
do profissional, mas acredita que isso seja imprescindível para o avanço do
conhecimento no campo religioso. Assegura que a utilização do nome de Flechsig
não visa a qualquer objetivo escuso e que não guarda rancor de ninguém.
Adverte Schreber (1903/1984) que Flechsig ainda desempenha papel
importante em uma série de circunstâncias de sua vida, embora não tenham mais
nenhuma relação pessoal. O autor acredita que, expondo as certezas que adquiriu
a respeito de suas experiências, na medida em que as mesmas forem reconhecidas
97
pelo médico, tais experiências poderiam atuar de maneira mais frutífera sobre a
humanidade.
Schreber (1903/1984) vê-se objeto dos experimentos científicos de
Flechsig e compreende que aquilo que o médico chama de alucinações são, em
sua organização delirante, a influência do sistema nervoso de Flechsig sobre o
seu. A seguir, explica que parte dos nervos de Flechsig saiu do corpo do dico,
subindo ao céu como “alma provada” e que seria esta e não o Dr. Flechsig a
ter influências negativas sobre o corpo de Schreber.
Schreber (1903/1984) espera ver confirmado o conteúdo de seu delírio nas
recordações que o professor Flechsig porventura guarde em sua memória, na
qualidade de uma alteridade para seus achados científicos, e conclui, dizendo:
“Desta forma, a seqüência global da minha exposição ganharia credibilidade
diante do mundo todo e seria imediatamente considerada como um problema
científico sério a ser aprofundado por todos os meios possíveis” [grifos do próprio
autor] (p. 29).
A seguir, Schreber (1903/1984) destaca três pontos a serem observados
por Flechsig: No primeiro, pede que o médico considere se, durante sua
permanência em sua clínica, houve algum tipo de relação hipnótica com a qual
pudesse influenciar, à distância, seu sistema nervoso. No segundo, pergunta se
Flechsig, nessa ocasião, testemunhou a comunicação com vozes de origem
sobrenatural. Como terceiro e último ponto, o paciente roga ao seu médico
considerar a possibilidade de ter recebido, especialmente em sonhos, visões que
versavam sobre: onipotência divina, livre-arbítrio humano, eviração, perda de
beatitude, seus parentes e amigos, incluindo os do próprio Flechsig e, em especial,
de Daniel Fürchtegott Flechsig.
Schreber (1903/1984) assina essa carta como Presidente da Corte de
Apelação, em afastamento, isso sem antes declarar:
Ao apelar para seu interesse científico, permito-me confiar em que o
senhor terá a plena coragem da verdade, mesmo que isto significasse
admitir alguma pequenez, o que não poderia implicar sério prejuízo à
sua reputação e dignidade aos olhos de qualquer pessoa sensata (p.
30).
Na introdução de seu livro, Schreber (1903/1984) afirma que o objetivo
almejado com a publicação de “Memórias” é fornecer às pessoas de seu círculo de
relações inclusive com aquelas que vier a privar, visto estar internado uma
98
compreensão de suas concepções religiosas e uma exposição do conhecimento das
coisas supra-sensíveis que lhe foram reveladas, embora seu objetivo inicial tenha
sido o de orientar sua esposa quanto as suas experiências pessoais e religiosas, o
que explicaria o uso de explicações circunstanciadas e germanização de palavras
estrangeiras, visto sua mulher não ser uma leitora culta.
Schreber (1903/1984) afirma que o objeto de sua obra ultrapassa a
capacidade de entendimento humano pela limitação encontrada na linguagem para
a sua exata expressão. Destarte, ele o consegue compor um conhecimento
completo a priori, até porque também está preso aos limites do conhecimento
humano. Todavia, tem certeza absoluta de que as revelações divinas das quais é o
meio de revelação à humanidade deixam-no mais próximo da verdade do que aos
demais mortais.
O autor adverte o leitor de que é apenas por imagens aproximadas que ele
pode buscar uma compreensão das coisas relativas à fé, apresentando, ao mesmo
tempo, o seu método investigativo. Para quem não teve contato com o texto
schreberiano, posso adiantar que ele se alça ao posto de um verdadeiro cientista.
Schreber não azo a dúvidas em suas descobertas, o que é, em si, uma das
características da psicose.
Um dos primeiros pontos de difícil compreensão para o homem comum é
o conceito de ‘eternidade’. Schreber (1903/1984) entende que a existência de algo
sempiterno, sem uma causa anterior, cria dificuldades para ser imaginado. No
entanto, a eternidade pertence aos atributos divinos. A pergunta que se coloca,
então, e que, segundo Schreber, permanecerá sem resposta, é sobre a origem de
Deus. No mesmo impasse, encontra-se o conceito de criação divina. Quanto a
este, não conseguimos conceber a origem de uma nova matéria se não a partir da
ação transformadora de outras já existentes. Contudo, diz ele “(...) a criação divina
é uma criação a partir do nada” (p. 32).
Os dogmas cristãos da teologia ortodoxa são aceitos por Schreber
(1903/1984). Todavia, o fato de Jesus Cristo ser filho de Deus, por exemplo,
causa-lhe espécie, pois não se pode dizer que Deus seja provido de órgãos sexuais
e que tenha copulado com uma virgem de cujo ventre nasceu Jesus. Aqui saliento
a dificuldade de o paciente psicótico conseguir lidar com o aspecto metafórico
desses axiomas religiosos.
99
Esses elementos o azo às concepções delirantes de Schreber, pois, em
uma nota de rodapé, esclarece:
Por outro lado, baseado em minha própria experiência estou em
condições de dar uma explicação melhor sobre os alguns dogmas
cristãos: de que modo tais coisas se tornaram possíveis por meio de
milagres divinos. Algo análogo à concepção de Jesus Cristo por uma
virgem imaculada isto é, por uma virgem que nunca teve relações
com um homem – aconteceu no meu próprio corpo. em duas
ocasiões diferentes (isto quando ainda estava no sanatório de Flechsig)
eu possuí órgãos genitais femininos (embora desenvolvidos de modo
incompleto) e senti no meu corpo movimentos que correspondem aos
primeiros sinais de vida do embrião humano. Por milagre divino
foram lançados no meu corpo os nervos de Deus correspondentes ao
sêmen masculino, produzindo-se assim uma fecundação (Schreber,
1903/1984, p. 33).
É pela descrição de Deus que Schreber (1903/1984) inicia seu prolífero
trabalho. Para ele, os nervos são a alma do homem. Deus é apenas nervos, mas
não os tem em mero limitado como o homem. As relações entre Deus e os
homens dão-se através dos raios, embora, conforme a ‘Ordem do Mundo’,
ocorram após a morte. Nesse sentido, a purificação dos nervos joga um papel
fundamental na proximidade com ‘Sua Majestade Fidelíssima’ (designação dada a
Deus). Quanto mais puros, mais esbranquiçados são os nervos dos homens, mas
isso raramente ocorre sem uma prévia purificação. Uma condição para a
purificação das almas é a aprendizagem da língua falada por Deus – língua
fundamental –, uma espécie de alemão arcaico, vigoroso e cheio de eufemismos.
Assim, por exemplo, alimento tem o sentido de veneno; profano, de sagrado. A
purificação ganha a designação de ‘prova’, e as almas não purificadas, segundo o
mesmo princípio do eufemismo, o chamadas de ‘almas provadas’. As almas
totalmente purificadas sobem ao céu, atingindo a beatitude, que consiste num
gozo ininterrupto da contemplação “(...) daquele que é e que será”, ou seja, Deus.
No segundo capítulo, Schreber (1903/1984) descreve o ‘assassinato de
alma’, isto é, o assenhoreamento da alma de outra pessoa, com vistas a prolongar
a vida ou à obtenção de alguma vantagem, o que pode ser encontrado na literatura,
à guisa de exemplo, nos personagens Fausto, de Goethe, Manfred, de Lord Byron,
e Freischütz, de Weber. Esse assassinato de alma ocorrido entre as famílias
Flechsig e Schreber, e originado pelo ciúme entre as almas que deixaram este
mundo, é a causa da eclosão de uma crise nos reinos de Deus.
100
Schreber (1903/1984) cita, além do nome do professor Paul Theodor
Flechsig, Abraham Fürchtegott Flechsig e Daniel Fürchtegott Flechsig
personagens criados em seu delírio. Ressalto para o fato de Schreber ter
encontrado, no seu próprio nome (Daniel Paul Schreber), no nome de seu pai
(Daniel Gottlieb Moritz Schreber) e no do Dr. Flechsig (Paul Emil Flechsig), o
húmus para o estabelecimento dos personagens acima citados.
No final do segundo capítulo, Schreber (1903/1984) fala da perda
momentânea da beatitude, a qual só poderá ser restaurada depois de milhares de
anos, ou seja, depois de uma eternidade. Essa idéia, de algo a ser realizado num
tempo infinito, será retomada por Freud e Lacan.
Caso não tivesse sido suprimido, o terceiro capítulo fundamentaria os dois
capítulos precedentes com informações sobre os membros da família Schreber.
Cabe ressaltar que o manuscrito desse capítulo jamais foi localizado.
O quarto capítulo é dedicado à explanação das vivências de Schreber a
respeito de sua doença e das internações. O autor afirma ter estado doente por
duas vezes. Na primeira, por ocasião da derrota nas eleições parlamentares de
1884, mostrando-se plenamente curado ao final de 1885. Na segunda, pela
sobrecarga de trabalho como Presidente da Corte de Apelação de Dresden,
iniciada em 1893 e que perdura à época em que escreve as “Memórias”. Em
ambas as crises, passa a maior parte do período na clínica psiquiátrica da
Universidade de Leipzig, a qual é dirigida pelo Dr. Flechsig. Ao dar entrada na
clínica, Schreber desconhecia o antagonismo existente entre sua família e a
família do Dr. Flechsig.
Nesse capítulo, Schreber (1903/1984) relata um dado importante que
precedera a segunda crise. Trata-se de sonhos nos quais caíra novamente doente e
de uma sensação estranha ao acordar certa manhã. Essa sensação, perturbadora e
inusitada, está ligada à “(...) idéia de que de ser, no fundo, verdadeiramente
bom ser uma mulher sucumbindo ao coito”
20
[a tradução é minha] (Freud,
1911/1973, p. 142). Outro ponto importante deu-se com o agravamento de sua
crise durante a internação, coincidindo com a viagem de quatro dias de sua esposa
20
Segundo Ferreira (1999), [do latim succumbere, ‘estar deitado embaixo’, ‘cair
debaixo’] V.t.i. Cair sobre o peso de; não resistir, ceder; ceder aos esforços de outrem.
Die Vorstellung, dass es doch eigentlich recht schön sein müsse, ein Weib zu sein, das
dem Beischlaf unterliege.
101
a Berlim. Schreber lembra ter cerca de meia dúzia de poluções numa única noite,
as quais, embora não admita claramente, suponho serem conseqüência de atos
masturbatórios. Quanto do regresso da esposa, ele passou a percebê-la não mais
como um ser vivo, mas como um tipo de ‘ser feito às pressas’, expressão que
designa seres produzidos por milagres e de vida fugaz no delírio schreberiano.
O quinto capítulo é dedicado ao exame do uso da ‘língua dos nervos’. Em
uma inversão própria da doença da qual padece, Schreber tem seus movimentos,
bem como o pensamento, comandados desde o exterior. Várias almas aparecem
em sua cabeça na qualidade de ‘vozes’, ainda que nenhuma saiba da presença das
demais. O escritor examina também o problema da eviração e transformação em
mulher como tendência inerente à ‘Ordem do Mundo’. A conservação da espécie
depende de um único homem, o qual deve ser emasculado para poder gerar filhos.
Schreber descreve minuciosamente todo o processo de transformação dos órgãos
sexuais masculinos externos em órgãos sexuais femininos internos, além da
modificação da estrutura óssea da bacia. Nesse ponto, ele utiliza todo o
conhecimento de biologia de que dispõe para dar azo a seu delírio.
Schreber (1903/1984) fala de um mal-entendido fundamental a atravessar-
lhe a existência. Este é relativo ao fato de Deus o o conhece verdadeiramente
como homem vivo, por este se relacionar apenas com cadáveres; daí, a ligação
entre Deus e Flechsig. Na medida em que sua doença parece incurável e seu
nervosismo afeta a Deus, ele passa a ser perigoso, e uma conspiração é
orquestrada contra ele. Ela consiste em sua transformação em mulher, na entrega
de sua alma a um homem, e seu corpo, então feminino, entregue ao mesmo
homem para ser abusado sexualmente e, posteriormente, para ser abandonado
como o corpo de uma prostituta, destruindo-se também seu discernimento
tornando-o imbecil. Importante citar que essa conspiração contrária à ‘Ordem do
Mundo’, ou seja, para a satisfação sexual de um ser humano, não alcança êxito.
Schreber define ordem do mundo como “(...) a relação legítima que subiste entre
Deus e a criação por Ele chamada à vida, dada como algo em si, através da
essência e das qualidades de Deus [grifos do autor] (p. 81, nota 35).
No capítulo seis, Schreber (1903/1984) descreve fisicamente o sanatório,
oferecendo uma planta baixa do prédio e de sua localização. A seguir, explica a
existência de ‘homúnculos’ figuras minúsculas de forma humana que acabavam
vivendo uma breve existência em sua cabeça para desaparecer completamente.
102
Nessa época, Schreber passa a se chamar de ‘o vidente’ na língua das almas, por
sua capacidade de ver espíritos e de estabelecer relações com eles e com as almas
defuntas.
No capítulo seguinte, Schreber (1903/1984) relata que, durante os feriados
de Páscoa, o Dr. Flechsig saíra de viagem e que ele tivera visões de que o médico
se suicidara com um tiro. Outras visões mostram Flechsig se autodenominar
‘Deus Flechsig’ diante de sua própria esposa, embora ela o considere louco por
dizer isso. Schreber chega a questionar se esses fenômenos se tratariam realmente
de visões, contudo observa haver método nelas, o qual lhe permite conhecer as
intenções que tinham a seu respeito. Também é nesse período que ele lembra de
ter em seu corpo a alma, e talvez a alma inteira, do Dr. Flechsig, que fora lançada
em seu ventre. Mais tarde, essa alma sai de seu corpo pela boca, deixando a
impressão de mau cheiro e de mau gosto, por tratar-se de uma alma impura. Outro
dado importante é a distinção observada nos ‘raios’ que determinam o
aparecimento e a eliminação das doenças. Tais ‘raios’ se dividem em ‘nocivos’ e
‘benéficos’ ou ‘puros’. Os primeiros são carregados de venenos, e, os segundos,
desfazem os danos causados pelos ‘nocivos’.
Ainda nesse capítulo, Schreber (1903/1984) descreve o que chamou de “a
maldita brincadeira com os homens”. Ela consiste na intervenção no mecanismo
da humanidade através dos milagres divinos. A citação a seguir parece mostrar
uma relação entre essa maldita brincadeira com os homens” e o provável
fracasso no estabelecimento do transitivismo:
(...) sinto cada palavra dita a mim ou nas proximidades, cada passo
humano que ouço, cada apito do trem de ferro, cada disparo de
morteiros que é dado provavelmente por barcos a vapor em viagens de
recreação, etc., ao mesmo tempo como uma pancada dada na minha
cabeça, que provoca nela a sensação mais ou menos dolorosa, mais
dolorosa se Deus se retirou para uma distância maior, menos dolorosa
se ele permanece mais próximo (p. 101).
As ‘almas provadas’ são o tema do capítulo oito. Nesse período da
internação, a relação com os ‘raios’ traz-lhe toda a sorte de temores, acentuando,
sobretudo, a fantasia de ser emasculado, abusado sexualmente e largado como
uma prostituta. É também nessa época que Schreber é transferido para a clínica de
Lindenhof, dirigida pelo Dr. Pierson, a qual ganha das vozes a denominação
‘cozinha do diabo’. acontecem os milagres mais absurdos, ou seja, sem
103
objetivos duradouros e também designados de ‘brincadeiras vazias’. Nova planta
baixa da clínica é desenhada pelo doente.
O paciente afirma não se ter ocupado com quaisquer atividades religiosas
em sua estada na ‘cozinha do diabo’. Entretido com a conversação das vozes,
Schreber observa as coisas prodigiosas que acontecem ao seu redor. As almas
com as quais mantivera contato na clínica do Dr. Flechsig se fazem presentes
também no novo hospital. Um grupo de almas menos simpatizantes aparece e,
dentre elas, o paciente destaca a figura de Daniel Fürchtegott
21
Flechsig.
O nono capítulo é iniciado pelo relato da transferência de Schreber para o
sanatório da província de Sonnenstein, em Pirna, dirigido pelo Dr. Guido Weber.
O paciente lembra das visitas de sua esposa e de que, numa delas, tivera a
impressão de que ela já não estivesse entre os vivos. Nesse sentido, ela poderia ser
um ‘ser feito às pressas’, ad hoc, para a ocasião das visitas. Lembra também de
ele ser chamado de ‘Miss Schreber’, o que na Alemanha daquele tempo indica
uma mulher solteira de reputação duvidosa.
Às vezes, também é chamado de ‘puta’ (Luder) pelas vozes, e isso, na
língua fundamental, indica a força do poder de Deus antes do aniquilamento de
alguém. Na mesma época, percebe importantes mudanças ocorridas com o sol.
Um sol menor é avistado, e, pela primeira vez, aparecem o que chamou de ‘reinos
posteriores de Deus’, no mesmo momento em que os ‘reinos anteriores de Deus’
são extintos. A essas percepções, acrescenta, ainda no capítulo 10, o fenômeno
milagroso da ‘maldita modelagem do estado de ânimo’. Através desse concurso,
seu estado de ânimo é modificado por meio de milagres, no sentido de fazer com
que pareça uma pessoa leviana, com o intuito de ser abandonado.
No décimo primeiro capítulo de suas “Memórias”, Schreber (1903/1984)
relata que, nos primeiros anos de sua estada em Sonnenstein, os milagres são tão
ameaçadores que ele passa a temer por sua vida. Sensações de modificação do
corpo são percebidas por ele, principalmente no sentido da adequação de seu
corpo a um corpo feminino. A impressão de lhe faltar órgãos internos também é
freqüente, como segue:
21
Podemos traduzir esse nome por ‘Deus terrível’. Todavia, o nome Fürchtegott não é um
nome fictício, pois Freud (1873-1890/1972, p. 18) compara sua noiva a uma personagem
de um poema do autor alemão Christian Fürchtegott Gellert (1715-1769).
104
Quanto aos demais órgãos internos, quero recordar ainda apenas o
esôfago e os intestinos, que muitas vezes foram dilacerados ou
desapareceram, a laringe, que mais de uma vez degluti junto com o
alimento, e finalmente o cordão espermático, no qual algumas vezes
se operavam milagres bastante dolorosos, principalmente com o
objetivo de reprimir a sensação de volúpia que surgia no meu corpo
[grifos do próprio autor] (Schreber, 1903/1984, p. 157).
As vozes passam a chamar Schreber de ‘príncipe dos infernos’, como
consta no capítulo 12, embora uma parte delas confira esse mesmo título a
Flechsig. Schreber (1903/1984) realiza também uma crítica a seu pai, ao afirmar
que os médicos não estão bem informados quanto à posição adotada por homens e
mulheres ao dormir – exatamente a mesma posição assumida na cópula. As vozes
revelam-lhe esse aspecto, o qual o figura no livro “Ginástica Médica de Salão”,
escrito por seu pai, assim como as diferenças entre homens e mulheres quanto à
excitação sexual. Parece que as prescrições pedagógico-ortopédicas do Dr. Daniel
Paul Moritz Schreber forneceram rico material para as concepções delirantes
schreberianas.
No décimo-terceiro capítulo, Schreber (1903/1984) relata a intensificação
do aparecimento de sinais feminis em seu corpo, o que coincide com a evolução
prometida. Ainda que não seja de sua vontade pessoal, a ‘Ordem do Mundo’ exige
sua eviração e transformação em mulher, a fim de ser fecundado por raios divinos
e de fazer nascer novos homens.
Como está descrito no capítulo 14, a partir de 1897, Schreber passa a
organizar um diário, com o intuito de recolher as primeiras impressões para serem
usadas como base das futuras “Memórias”. O pequeno caderno marrom recebe o
título de “Minha Vida”.
algo de podre no reino da Dinamarca é a citação extraída de Hamlet
por Schreber (1903/1984) e que designa, no capítulo 15, as dificuldades nas
relações entre Deus e a humanidade. O paciente também fala nos ‘pássaros
miraculados’, portadores de nervos avulsos de almas beatificadas e capazes de
serem reconhecidos pela familiaridade do timbre de voz. Tais pássaros o
compreendem o significado das palavras que proferem, falando através de frases
decoradas. Assim, como não captam os sentidos das palavras, os ‘pássaros
miraculados’ confundem palavras, como, por exemplo, “Santiago” e “Cartago” ou
105
“Abendrot” e “Atemnot”.
22
Schreber atribui, de brincadeira, nome de moças a
esses pássaros, dado que suas curiosidade e tendência à volúpia podem ser
comparadas às das moças.
O cimo-sexto e o décimo-sétimo títulos são dedicados ao exame da
relação das proposições às vezes, proferidas pela metade –, das perguntas e das
partículas interrogativas com o processo de pensamento. Schreber destaca o efeito
de coação a pensar, o qual lesa o direito natural do homem de um repouso na
atividade do pensamento.
A fala interrompida recebe o nome de ‘sistema do não-falar-até-o-fim’.
Para exemplificar, ele lista seis fragmentos de locuções anteriormente expressas
de forma completa. São eles: (a) “Agora eu vou me”; (b) “Você deve de fato”; (c)
“Nisto eu quero”; (d) “Mas agora ele deveria”; (e) Mas isto era realmente”; e (f)
“Falta-nos agora”. A continuação de cada uma delas era, antigamente,
pronunciada. Schreber mostra como tais locuções deveriam ser enunciadas: (a)
Agora eu vou me render ao fato de que sou burro; (b) Você deve de fato ser
representado como renegador de Deus, dedicado a excessos de volúpia, etc.; (c)
Nisto eu quero pensar primeiro; (d) Mas agora ele deveria estar cozido, o assado
de porco; (e) Mas isto era realmente demais para a concepção das almas; e (f)
Falta-nos agora o pensamento principal, isto é, nós, os raios, não temos
pensamentos (p. 210).
Outro dado desse capítulo refere-se à defesa organizada pelo paciente ante
o retardamento das vozes ouvidas uma verdadeira escansão –, provocando uma
impaciência nervosa. Schreber (1903/1984) livros ou jornais, ou toca piano.
Outro subterfúgio empregado por ele é a recitação de poesias decoradas, de longos
trechos dos dramas de Schiller e Goethe, de árias de óperas, de poemas satíricos
de Max e Moritz e de fábulas de Spekter. Aqui, não posso deixar de ressaltar a
ligação entre os personagens cômicos Max e Moritz, do humorista alemão
Wilhelm Busch (1832-1908) –, algo como o gordo e o magro de nossas infâncias
– com o nome de seu pai (Daniel Gottlieb Moritz Schreber).
A vontade criadora de Deus é demonstrada pelas palavras bíblicas “Faça-
se a luz” e “A luz se fez”, proferidas por Deus. Assim, Schreber (1903/1984)
inicia o décimo-oitavo capítulo, dedicado a Deus e aos processos da criação. O
22
Crepúsculo e dispnéia.
106
paciente acredita na superioridade do homem, o qual foi feito à semelhança de
Deus e que, depois de sua morte, é novamente transformado em Deus. Todas as
elucubrações schreberianas visam, em última instância, dar um tratamento
científico às concepções cosmogônicas.
Com relação aos animais inferiores, a crença de Schreber na geração
espontânea sem progênie –, mas o da maneira corrente nas ciências naturais,
senão como o surgimento de um ser vivo organizado a partir da combinação de
substâncias inorgânicas e criado por milagres devidos a sua presença. O olhar de
Schreber dirige-se a esses novos seres criados como efeito do milagre da
‘orientação do olhar’. Segundo esse milagre, os raios preferem ver o que lhes
agrada, isto é, os seres femininos capazes de excitar sua sensação voluptuosa.
No capítulo 19, Schreber (1903/1984) reitera a idéia da existência de uma
geração espontânea. Todavia esta se mostra contrária à ‘Ordem do Mundo’
estado de normalidade e legalidade do mundo – e corresponde, em última análise,
a uma criação por milagres divinos.
A assertiva schreberiana “tudo o que acontece se refere a mim” é o mote
para o desenvolvimento do vigésimo capítulo. Desculpa-se, frente ao leitor, por
saber que se perceber o centro dos acontecimentos é sentimento que sói
acompanhar os doentes mentais. Em seu caso, no entanto, é resultado do processo
por ele vivido, como mostra a seguir:
Desde que Deus entrou em uma conexão nervosa exclusiva comigo,
eu me tornei para Deus, num certo sentido, o homem, ou o único
homem em torno do qual tudo gira, ao qual tudo deve se referir e que
por isso, também do seu próprio ponto de vista, tem que referir a si
mesmo todas as coisas (Schreber, 1903/1894, p. 247).
No penúltimo capítulo, Schreber (1903/1984) dedica-se a contraditar as
idéias expressas em sua interdição pelo Real Tribunal de Primeira Instância de
Dresden, baseando-se, para esse fim, nas informações recolhidas em uma
entrevista com o Dr. Weber. Nela, o paciente busca, na falta de conhecimentos
científicos, a possibilidade de confirmação de suas teorias pessoais. Desse
capítulo, destaco dois tópicos listados pelo paciente, os quais revelam sua forte
inclinação para a investigação científica dos fenômenos vividos por ele e sobre os
quais nutre forte desejo de conhecimento:
1. se a teoria científica dos nervos reconhece a existência de nervos
(nervos da volúpia, ou nervos sensitivos, segundo uma expressão que
107
recentemente ouvi da boca do senhor conselheiro Dr. Weber, ou
qualquer que seja sua definição científica), cuja função específica
consiste em serem portadores da sensação de volúpia;
2. se é correto afirmar, como eu faço, que tais nervos da volúpia, na
mulher, se encontram no corpo todo, e no homem, só nas partes
sexuais e suas imediações, e se eu, portanto, deste modo repeti um
fato reconhecido pela teoria científica dos nervos, ou afirmei algo
incorreto, de algo com o atual estado desta ciência.
Ficaria extremamente grato por uma forma de explicação que viesse,
por escrito, ou por meio do empréstimo de uma obra científica sobre a
teoria dos nervos, da qual eu mesmo pudesse extrair os excertos
necessários [grifos do autor] (Schreber, 1903/1984, p. 258).
Uma entrevista concedida pelo Dr. Weber em 26 de março de 1900 não
aplacou as dúvidas científicas do paciente. Embora o médico tenha contraditado
as hipóteses do funcionamento do sistema nervoso, Schreber afirma ser certo que,
subjetivamente, seus órgãos em especial as mamas se apresentam como nas
mulheres. Ao passar a mão sobre sua pele, o autor diz sentir a sensação de volúpia
feminina, principalmente em seu peito. Ainda que o estado da ciência não consiga
reconhecer aquilo que fora revelado para o paciente, Schreber acredita que a
observação pode aplacar essa dúvida: “Nos momentos de aproximação, meu peito
a impressão de ter seios bastante desenvolvidos; este fenômeno pode ser visto
com os próprios olhos por qualquer um que queira me observar” [grifo do autor]
(p. 261).
O capítulo 22 é dedicado às considerações finais e às perspectivas futuras.
Schreber (1903/1984) traz como primeira questão o fato de ser ou não mortal,
visto ter sofrido inúmeras transformações e lesões nos órgãos vitais nos sete
anos anteriores, bem como as conseqüências produzidas no mundo e nas relações
com Deus no caso de morrer. As esperanças de Schreber expressam-se da seguinte
forma:
Assim, acredito o me equivocar quando suponho que no final ainda
serei recompensado com uma palma da vitória muito especial. Em que
consistirá, o ouso prevê-lo de um modo específico. Apenas como
possibilidades que entram aqui em consideração, cito uma
emasculação [eviração] a ser ainda completada, fazendo com que por
meio da fecundação divina nasça do meu ventre uma descendência, ou
ainda outra conseqüência: ao meu nome se ligará uma fama que não
foi concedida nem a homens com dotes intelectuais
incomparavelmente maiores que os meus (Schreber, 1903/1984, pp.
271-272).
108
Schreber (1903/1984) encerra seu livro com a certeza na vitória da
verdade. Acredita, também, que a divulgação de suas idéias religiosas ligadas ao
desenvolvimento de seu destino pessoal de causar uma reviravolta nunca vista
nas concepções religiosas da humanidade.
A primeira série de suplementos, escrita de outubro de 1900 a junho de
1901, é dedicada a temas específicos. No primeiro capítulo, ele examina o tema
dos milagres, principalmente em experiência cotidianas ligadas à alimentação. No
segundo capítulo, afirma ser a inteligência divina ao menos igual à soma de todas
as inteligências humanas que existiram. Isso se pelo fato de Deus acolher
todos os nervos humanos após a morte, concurso que permite também a Deus
adquirir conhecimento relativo à vida intelectual humana, à linguagem humana,
etc. Schreber retoma o tema da ‘brincadeira com os homens’ no capítulo três.
Nele, refere a importância de sua presença na manifestação da vida das outras
pessoas.
O tema das alucinações é referido no quarto capítulo. A partir da citação
da definição de alucinação de Kraepelin, ele estabelece uma diferença em relação
ao seu caso, descrevendo os fenômenos experimentados como resultantes da
influência dos raios sobre seu corpo, cuja origem é sobrenatural, diferentemente
de uma concepção materialista ou racionalista.
O capítulo cinco é dedicado ao exame da representação espacial de Deus e
da relação deste com o sol. Schreber (1903/1984) aborda diferentes assuntos no
sexto capítulo da primeira série de suplementos. Destaco, dentre eles, o exame da
voluptuosidade e a crença de que fenômenos extraordinários poderão ser
observados em seu leito de morte:
Também não considero excluída a possibilidade de que no meu leito
de enfermo ou de morte se observem alguns fenômenos
extraordinários e por isso desejo que seja permitido o acesso a
cientistas de vários domínios do saber, que na ocasião poderão extrair
conclusões importantes sobre a verdade de minhas idéias religiosas (p.
310).
O paciente retoma também as considerações à pessoa do Dr. Flechsig,
afirmando estar isento de animosidade pessoal. Para Schreber (1903/1984), os
fenômenos ligados a Flechsig referem-se a sua alma, a qual deve ser distinguida
do homem vivo. A cremação é o tema de interesse do capítulo sete, visto que, para
o paciente, a alma conta com um substrato material os nervos –, que joga papel
109
importante no processo de beatitude. O autor mostra-se em dúvida quanto ao
processo de cremação permitir, ou não, uma beatitude futura.
Na segunda série de suplementos, Schreber (1903/1984) afirma o ter
muito mais a acrescentar e oferece uma visão atualizada de sua situação. Ele
reitera que o objetivo da publicação de suas “Memórias” é de se oferecer como
objeto de uma observação científica. Caso isso não aconteça, espera que o seu
cadáver possa, algum dia, servir de prova material dos fenômenos por ele vividos,
como segue:
Depois de tudo isto não me resta mais nada senão oferecer minha
pessoa ao julgamento dos especialistas, como objeto de observação
científica. Este convite é o principal objetivo que persigo com a
publicação do meu trabalho. Na pior das hipóteses, resta-me esperar
que um dia, com a dissecção do meu cadáver, possam ser constatadas
peculiaridades comprobatórias no meu sistema nervoso, dado que sua
constatação em corpos vivos, conforme o que me foi dito, se
acompanharia de dificuldades extraordinárias ou se revelaria
completamente impossível [grifos do autor] (p. 326).
No apêndice de seu livro, encontramos um ensaio escrito por Schreber
(1903/1984) no início de 1900, época em que se encontrava internado no
sanatório de Sonnenstein. Esse pequeno trabalho intitulado “Em que Condições
uma Pessoa Considerada Doente Mental Pode ser Mantida Reclusa em um
Sanatório Contra sua Vontade Manifesta”, bem como dois pós-escritos a ele
anexados, mostram, apesar de escritos sem o auxílio da literatura especializada da
época, uma grande lucidez quanto às questões legais envolvidas na internação dos
doentes mentais. Nessa época, Schreber luta por recuperar sua capacidade civil
plena e mostra, através de seu escrito, a inadequação do confinamento contra a
vontade dos pacientes que não representam perigo real para si e para os demais.
2.3.2 – “Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de
Paranóia (Dementia Paranoides)”, de Sigmund Freud
Segundo a nota de abertura do editor inglês encontrada na edição standard
brasileira das obras completas de Sigmund Freud ainda que o livro de Schreber
tenha sido editado em 1903, com conseqüentes debates em círculos psicanalíticos
–, Freud só tem sua atenção atraída para ele na metade de 1910. Em sua viagem à
Sicília, em setembro do mesmo ano, Freud discute o tema da paranóia com
110
Ferenczi. De volta a Viena, inicia o artigo que fora dado por concluído nas cartas
a Abraham e Ferenczi, ambas datadas de 16 de dezembro. Tudo indica que o
artigo tenha sido publicado no verão de 1911 e que o ‘Pós-escrito’, lido no
Terceiro Congresso Psicanalítico Internacional, em 22 de setembro de 1911, em
Weimar, só no início de 1912.
Nessa mesma nota, podemos encontrar uma boa indicação de como Freud
desenvolve teoricamente o problema da paranóia até as suas contribuições
posteriores ao artigo sobre o Presidente Schreber. O editor inglês também oferece
um quadro cronológico dos principais acontecimentos da vida de Schreber,
dividindo-o segundo a irrupção das três crises de sua doença. A nota é concluída
com indicações sobre o problema da tradução, devido ao uso específico da
linguagem por Schreber.
O artigo de Freud (1911/1969) está dividido da seguinte forma:
Introdução, Capítulo I História Clínica; Capítulo II Tentativas de
Interpretação; Capítulo III Sobre o Mecanismo da Paranóia; e, finalmente, o
Pós-escrito, publicado pela primeira vez em 1912.
Na introdução, Freud (1911/1969) faz comentários a respeito da
dificuldade do tratamento de pacientes paranóicos, afirmando que a investigação
psicanalítica da paranóia se torna possível a partir dos relatos oferecidos pelos
próprios pacientes. Nesses relatos, ainda que de forma distorcida, eles revelam o
que os neuróticos soem manter em segredo. Tendo em vista o fato de os
paranóicos não superarem suas resistências internas e de dizerem apenas o que
bem entendem, um relatório escrito ou uma história clínica impressa podem tomar
o lugar das informações trazidas diretamente pelo paciente.
Freud (1911/1969) admite não ter informações atuais sobre Schreber, o
qual morre poucos meses antes da publicação da história clínica escrita por Freud.
Porém, em virtude de ele ser um homem preocupado com o desenvolvimento da
ciência e de não ter escrúpulos em revelar sua condição mais íntima em benefício
do que considera ser um avanço no campo científico e religioso, Schreber pensa
não estar ferindo quaisquer suscetibilidades pessoais, principalmente em relação
ao Dr. Flechsig. Outrossim, sugere aos seus leitores que leiam, pelo menos uma
vez, as “Denkwürdigkeiten”, de Schreber (1903/1984).
111
2.3.2.1 – Do Livro de Schreber
No início do capítulo dedicado à história clínica de Schreber (Capítulo I),
Freud (1911/1969) afirma que nem a descrição da doença oferecida pelo próprio
Schreber, nem os relatórios médicos que se encontram no final das “Memórias”
são elementos suficientes para entendermos sua história anterior e os pormenores
pessoais. Freud não sabe sequer a idade do paciente quando de sua primeira
doença, que uma nota de rodapé fixa em 42 anos. Segundo consta em nota de
rodapé (p. 65), a idade do paciente e mais alguns dados que não constam no livro
consultado foram trazidos a Freud graças à informação prestada por um de seus
parentes e pelo Dr. Stegmann, de Dresden, ainda que assevere o ter utilizado
senão o material constante do texto real das “Denkwürdigkeiten”.
Freud (1911/1969) retoma aspectos importantes no adoecimento de
Schreber. A vida familiar com sua esposa, cheia de honrarias, mas frustrada na
esperança de terem filhos. A idéia de ser mulher durante o coito, surgida ao
despertar, também figura em destaque.
Segue a descrição de elementos recolhidos durante a segunda enfermidade,
baseada nos relatórios médicos anexos ao livro de Schreber. Freud (1911/1969)
assinala o fato de o paciente sentir-se perseguido e prejudicado por certas pessoas,
destacando-se, dentre elas, o Dr. Flechsig, a quem chamava de ‘assassino de
alma’. O sistema delirante de Schreber pode ser resumido na crença de que ele
tinha a missão de redimir o mundo e de restituir-lhe o estado de beatitude,
transformando-se, primeiramente, de homem em mulher. Isso não corresponde a
uma vontade pessoal do paciente, mas a um dever baseado na ‘Ordem do Mundo’
(estado de normalidade do mundo, cingido por leis e limites que regulam a relação
de Deus com o mundo criado e com a humanidade).
Nesse ponto, Freud (1911/1969) apresenta um argumento distinto do
encontrado nos relatórios médicos. Para ele, a idéia de eviração constitui o delírio
primário de Schreber, relacionando-se apenas secundariamente com o papel de
redentor. A transformação em mulher teria como objetivo abusos sexuais de que
seria alvo e não altos desígnios. Por este artifício, um delírio sexual de
perseguição foi posteriormente transformado em delírio religioso de grandeza.
Uma confirmação da idéia de que a fantasia de eviração seja de natureza primária
repousa no fato de Schreber pensar como seria bom ser uma mulher no ato da
112
cópula, ainda no período de incubação da doença. Freud (1911/1973) diz
textualmente que:
A transformação em mulher fora o punctum saliens, o primeiro
gérmen da formação do delírio; ela [a transformação em mulher]
mostrou também ser a única parte cuja produção sobreviveu e a única
parte que soube impor seu lugar no efetivo compromisso de
convalescimento
23
[em latim no original] [a tradução é minha] (p.
149).
Em seguida, Freud (1911/1969) passa a examinar o sistema teológico-
psicológico delirante de Schreber, o qual mistura o banal com o brilhante, o
original com o que foi tomado de empréstimo. O primeiro conceito analisado é o
de ‘alma’. A alma está contida nos nervos do corpo. Os homens são compostos
por corpos e por uma quantidade finita de nervos, porém, Deus é composto
unicamente por infinitos nervos. A estrutura de Deus é complexa: composto pelos
vestíbulos do u, domínios anteriores e posteriores de Deus. Apesar de ele ser
uma unidade, o ‘Deus inferior’ e o ‘Deus superior’ devem ser considerados como
seres separados, cada um dos quais com egoísmos e instintos de autopreservação
particulares e com comportamentos diferentes em relação a Schreber.
Dependendo da ‘Ordem do Mundo’ (ou da Ordem das Coisas), a
existência de Deus pode correr perigo. Um exemplo disso é o estado de intensa
excitação dos nervos de alguns homens vivos, capaz de, retroativamente, exercer
uma influência da qual ‘Sua Majestade Fidelíssima’ não se pode livrar. Freud
(1911/1969) chama atenção para o tom amargo de Schreber ao longo de sua obra,
pois, como está acostumado à comunicação com os mortos, Deus não compreende
os homens vivos.
Essa má compreensão dos homens vivos leva Deus a tornar-se o instigador
da conspiração contra Schreber, tomando-o por idiota e submetendo-o a severas
provocações. Um exemplo disso encontra-se no ato da defecação. Schreber ,
nesse processo, algo mais do que uma função fisiológica, na medida em que ela
passou a ser a ocorrência de um milagre. Para o leitor que ainda não conhece a
terminologia schreberiana, é preciso esclarecer que milagre é um acontecimento
23
Die Verwandlung in ein Weib war das punctum saliens, der erste Keim der
Wahnbildung gewesen; sie erwies sich auch als das einzige Stück, welches die
Herstellung überdauerte, und als das einzige, das im wirklichen Handeln des Genesenen
seinen Platz zu behaupten wusste.
113
que contradiz as leis da natureza e que é agenciado por Deus ou por seus
representantes. Esses milagres, seguindo a característica de eufemismo da língua
fundamental (Grundsprache), são ações nocivas e intencionais contra Schreber,
mantidas através dos raios divinos.
É importante salientar que Schreber não usa o termo defecar, mas ‘cagar’;
embora não chegue a escrever a palavra por inteiro, indicando-a apenas com a
primeira letra. A alteração de termos eruditos por chulos é uma característica
comum nos delírios psicóticos.
Outro elemento importante no sistema delirante schreberiano é a questão
da ‘beatitude’. Freud (1911/1969) salienta que o paciente a define como um
estado de fruição ininterrupta da contemplação de Deus, o que não considera nada
muito original. Todavia, Schreber percebe uma distinção entre o estado de
beatitude feminino e o masculino. O estado de beatitude masculino é superior ao
feminino e parece estar vinculado a uma sensação de voluptuosidade. Aliás, o
cultivo da voluptuosidade é o que marca a relação entre Schreber e Deus, na
medida em que este a exige.
O estado de beatitude, para Freud, deriva da condensação dos principais
significados da palavra alemã selig’, isto é, ‘falecido’ e ‘sensualmente feliz’.
Assim, o psicanalista vê, na voluptuosidade, um segundo elemento de importância
além da figura de Deus. A descrença e o ascetismo sexual lugar à devoção a
Deus e à voluptuosidade, ambas com características peculiares. Assim, Schreber
assume uma atitude feminina para com Deus, como se fosse sua esposa.
2.3.2.2 – Da Interpretação Freudiana
Na verdade, nosso único interesse é o significado
e a origem dessa idéia patológica.
(Freud)
Em sua tentativa de interpretação, Freud (1911/1969) duas
possibilidades para uma compreensão do sistema delirante de Schreber: a
primeira, refere-se às próprias declarações delirantes do paciente e; a segunda, às
causas ativadoras de sua doença. O alto nível intelectual do paciente possibilita
que o estudo de Freud tome como base a própria comunicação de Schreber.
114
Assim, também acaba por seguir a técnica psicanalítica habitual, uma vez que o
próprio paciente oferece a chave para essa tarefa. Freud diz:
(...) suprimir a configuração negativa, conforme se está habituado a
fazer na técnica psicanalítica, tomar o exemplo pela própria coisa, a
citação ou glosa pela fonte original; e encontra-se de posse da
tradução do modo de expressar paranóico em normal procurada
24
[a tradução é minha] (1911/1973, p. 162).
Para oferecer uma ilustração desse procedimento, Freud (1911/1969)
examina o conceito schreberiano de ‘pássaros miraculados’ ou ‘pássaros falantes’.
Esses pássaros, assim como afirmei anteriormente, são produzidos por milagres e
compõem-se de restos de almas beatificadas. Proferem frases decoradas sem
entenderem seu significado, mas param de falar assim que ouvem uma palavra
que rime com as suas. O psicanalista vê, na descrição dos pássaros miraculados,
uma referência às moças. Estas são, amiúde, comparadas a gansos, acusadas de
terem ‘miolos de passarinho’ e de dizerem apenas frases decoradas, além de
confundirem palavras estrangeiras que soam de modo semelhante. É por isso que,
segundo Freud, o paciente acaba por dar nomes de moças a grande número desses
pássaros.
Freud (1911/1969) também se refere ao capítulo censurado do livro, mais
exatamente o terceiro, no qual Schreber prometia trazer à lume acontecimentos
ocorridos com outros membros de sua família, o que provavelmente facilitaria o
entendimento de sua doença. Todavia, Freud avança nas relações entre Schreber e
o Dr. Flechsig, buscando uma correlação entre o trabalho do sonho (Traumarbeit)
e o trabalho de formação do delírio (Wahnbildungsarbeit).
25
Dessa forma, a
pessoa a quem o delírio atribui poder e influência é idêntica a alguém que
desempenhou importante papel na vida emocional do paciente, no período
anterior a sua doença. a intensidade da emoção é projetada como que vindo do
exterior, enquanto sua qualidade é transformada no oposto.
24
(...) die negative Einkleidung wegzulassen, wie man es in der psychoanalytischen
Technik zu tun gewohnt ist, das Beispeil für das Eigentliche, das Zitat oder die
Bestätigung für die Quelle zu nehmen, und befindet sich im Besitze der gesuchten
Übersetzung aus der paranoischen Ausdrucksweise ins Normale.
25
A edição Standard brasileira usa a nomenclatura ‘elaboração onírica’ e formação
delirante’. Preferi, no entanto, os termos ‘trabalho do sonho’ e trabalho de formação do
delírio’, por mostrarem melhor as semelhanças ressaltadas por Freud.
115
A causa do adoecimento é, para Freud (1911/1969), uma manifestação de
libido homossexual. A explicação está na comunicação dos sonhos de que sua
doença havia retornado seguida imediatamente da impressão de que seria bom ser
uma mulher durante a cópula. Reunindo ambos os temas, pode-se dizer que, ao
mesmo tempo em que rememorava sua doença, uma recordação do médico fora
despertada em sua mente e que a atitude feminina que viria a assumir no seu
delírio já era dirigida desde então ao médico, Dr. Flechsig. Os sintomas são,
então, o resultado da luta contra a moção libidinal.
Outro ponto ressaltado por Freud (1911/1969) é quanto ao número
excessivo de poluções de Schreber durante uma única noite. O pesquisador
acredita serem acompanhadas de fantasias homossexuais que permaneceram
inconscientes, pois, sem um acompanhamento mental, o poderiam ocorrer.
Suponho, por outro lado, que essas poluções sejam conseqüência da masturbação,
visto Schreber se ressentir de ser acusado de se masturbar.
Os sentimentos do paciente para com seu médico podem ser devidos,
segundo Freud (1911/1969), a um processo de transferência, segundo o qual um
investimento emocional é transposto de uma pessoa que exerceu importância para
o paciente ao médico, que, na realidade, era-lhe indiferente. Freud acredita na
importância das figuras de um irmão e do pai e encontra, nas indicações das
Denkwürdigkeiten”, a confirmação de que ambos, o pai e um irmão do paciente,
já estivessem mortos por ocasião do desencadeamento de sua segunda crise.
Esquematicamente falando, a pessoa-alvo de um investimento libidinal
torna-se o perseguidor, e a essência da fantasia de desejo torna-se essência de
perseguição. Freud (1911/1969) acredita que outros delírios de perseguição
guardem a mesma relação. Todavia, é o desenvolvimento ulterior do caso do
‘Presidente Schreber’ que o distingue dos demais. O pesquisador vê, na
substituição de Flechsig por Deus, a primeira dessas modificações, e, em seguida,
as sensações voluptuosas tornam-se de acordo com a ‘Ordem do Mundo’, a partir
da eviração. Essas transformações representam a solução do conflito de forças:
enquanto o Eu do paciente encontra satisfação na megalomania, sua fantasia de
desejo cresce e se torna aceitável.
Freud (1911/1969) investiga também o papel de Deus na fantasia de
Schreber. A transformação do Dr. Flechsig em Deus e a ênfase dada a sua figura
no sistema delirante schreberiano leva-o a asseverar que Deus significa o
116
reaparecimento de outra figura de importância na vida do paciente e que ela, para
o investigador, pode ser a pessoa de seu pai. Aliás, Freud também comenta a
presença de um irmão mais velho nessa organização delirante, sem saber que o
irmão já falecido e indicado por Schreber em suas “Memórias” era, realmente, três
anos mais velho que ele.
Ao desenvolver aspectos relativos à figura paterna, Freud (1911/1969)
afirma a importância do pai de Schreber, o qual era dico, e que tinha como
nome Daniel Gottlob Moritz Schreber. Uma nota de rodapé esclarece que em
todas as edições alemãs o nome Gottlob é incorretamente grafado Gottlieb
26
.
Segundo consta, o pai de Schreber foi o fundador de um tipo de ginástica
calistênica (exercícios para a beleza e para a tonicidade sica) na Alemanha, a
qual visava à educação harmoniosa dos jovens e à elevação dos padrões de saúde,
exercendo grande influência em seu tempo, a ponto de ver sua memória eternizada
nas Associações Schreber, na circulação de um periódico médico (Ärztliche
Zimmergymnastik) e na publicação de livros sobre pedagogia, ginástica e higiene.
A grandiosidade da figura do pai de Schreber possibilita-o figurá-lo como
Deus. Freud (1911/1969) lembra que os deuses da antiguidade tinham uma
relação mais próxima com os homens e que muitos dos imperadores romanos
mortos eram transformados em deuses. O fato de o pai do paciente ter sido um
eminente médico pode explicar dois aspectos de seu sistema delirante:
primeiramente, Deus é visto por Schreber como aquele que compreende os
mortos, assim como um médico sabe lidar com os cadáveres e, em segundo lugar,
que muitas curas médicas são vistas como verdadeiros milagres por seus
pacientes.
Freud (1911/1969) ainda desenvolve o conflito de Schreber com a
masturbação, o papel do sol em seu delírio e, para isso, utiliza-se da literatura e
de outros casos metapsicológicos seus e, também, a questão de Schreber não ter
tido filhos. Quanto a esse aspecto, sabemos que sua mulher, Ottlin Sabine Behr,
sofreu seis abortos espontâneos (dado desconhecido por Freud). A partir daí, a
26
Na cronologia apresentada no livro de Schreber (1903/1984), também encontramos
Gottlieb, que significa Amadeus, enquanto que Gottlob pode ser traduzido pela expressão
“Deus louvado!”.
117
eviração e a cópula com Deus o a saída para engendrar a continuidade do nome
Schreber.
2.3.2.3 – Considerações Teóricas
No terceiro capítulo de seu trabalho, Freud (1911/1969) desenvolve
aspectos relacionados à forma assumida pelos sintomas, pois, até então, nenhum
mecanismo específico da paranóia foi revelado que não esteja também nas
neuroses. Para Freud, a relação do paciente com as fantasias de desejo
homossexual guarda uma íntima conexão com esse tipo de enfermidade. Essa
idéia, também corroborada pelos estudos de Jung e Ferenczi, indica o fracasso na
luta contra a fantasia inconsciente homossexual.
As pesquisas psicanalíticas levam o pesquisador a considerar o estágio do
desenvolvimento libidinal situado entre o auto-erotismo e o amor objetal,
chamado de narcisismo. Nele, as pulsões sexuais que até então investiram as
atividades auto-eróticas passam a buscar um objeto amoroso, mas, em princípio, o
próprio corpo desempenha esse papel. A partir daí, é que se abre a possibilidade
de que outra pessoa seja investida como objeto sexual. Essa fase eqüidistante
entre o auto-erotismo e o amor objetal é indispensável. Todavia, algumas pessoas
podem demorar-se nela por um período longo e até levar, para estágios ulteriores
de seu desenvolvimento, algumas de suas características.
Se há um investimento nos órgãos sexuais do próprio sujeito tomado como
seu objeto libidinal na fase narcísica, na posterior passagem para um outro objeto
externo deve haver a escolha de um objeto com órgãos sexuais semelhantes, uma
escolha homossexual, e daí para uma escolha heterossexual. Essa é a linha de
desenvolvimento pensada por Freud (1911/1969). Porém, há pessoas que se detêm
no período de escolha de objeto com órgãos sexuais semelhantes, tornando-se
homossexuais. Ainda que o indivíduo alcance o estádio de escolha heterossexual,
as tendências homossexuais não são totalmente descartadas, mas desviadas de seu
objetivo sexual e aplicadas a outras situações, como, por exemplo, na manutenção
dos laços sociais e na amizade.
Freud (1911/1969) conclui que o cerne da conflitiva dos homens que
desenvolvem paranóia é uma fantasia de desejo homossexual de amar um homem
e que o cerne dessa conflitiva pode ser representado pela proposição eu (um
118
homem) o amo (um homem)’. Dessa proposição, o pesquisador retira as seguintes
contradições: (a) nos delírios de perseguição, a proposição é alterada para ‘eu não
o amo – eu o odeio’ e, conseqüentemente, para ‘eu o odeio ele me odeia
(persegue)’, sendo o perseguidor alguém que outrora fora muito amado. A
proposição contradiz o predicado; (b) na erotomania, o ‘eu não o amo’
transforma-se em ‘eu a amo’. A proposição contradiz o objeto; (c) nos delírios de
ciúme, são diferentes para os homens e para as mulheres, mas ambas contradizem
o sujeito. Nos delírios alcoólicos masculinos de ciúmes, a proposição ‘não sou eu
quem ama o homem’ transforma-se em ela o ama’, e, nos delírios femininos de
ciúme, o ‘não sou eu quem ama as mulheres’, analogamente, para ele as ama’; e
(d) uma última contradição ainda é possível aquela que rejeita a proposição
como um todo. Nesse caso, o não amo de modo algum não amo ninguém
parece ser o equivalente psicológico da proposição ‘eu amo a mim mesmo’,
contradição encontrada na megalomania.
Um processo a jogar papel importante na paranóia é a projeção. Freud
(1911/1969) conceitua o mecanismo de projeção como uma percepção interna
suprimida, cujo conteúdo é deformado e que ingressa na consciência sob a forma
de percepção externa. Porém, Freud destaca que a projeção não pode ser
considerada patognomônica, uma vez que não desempenha o mesmo papel em
todos as formas de paranóia e que também pode estar presente em outras
condições psicológicas. Assim, Freud diz adiar a investigação da projeção para
outra ocasião, e uma nota de rodapé (p. 90) indica nunca ter sido levado a termo.
Outro ponto trabalhado por Freud (1911/1969) é o relativo ao
recalcamento. O psicanalista divide o processo de repressão em três fases, quais
sejam, a fixação, o recalcamento
27
propriamente dito e o retorno do recalcado. A
fixação é a precursora e condição necessária ao recalcamento, onde componentes
pulsionais se mantêm em um estádio mais primitivo do desenvolvimento. O
recalcamento é um processo ativo caracterizado pela soma de forças da repulsa
exercida pelo sistema consciente e da atração exercida pelo inconsciente. O
retorno do recalcado é, a seu turno, o fracasso do recalcamento, implicando uma
regressão do desenvolvimento libidinal ao ponto de fixação.
27
Na edição standard brasileira encontramos, erroneamente, Verdängung por repressão.
119
Freud (1911/1969) também utiliza o recurso da literatura para corroborar
sua interpretação. É na parte I, cena 4, de Fausto
28
, que o pesquisador apóia a idéia
de que a formação delirante o é o produto patológico, mas uma tentativa de
restabelecimento, um processo de reconstrução. Nessa perspectiva, a escatologia
schreberiana corresponde à projeção de sua catástrofe interna, na medida em que o
fim de seu mundo subjetivo é conseqüência da retirada do investimento libidinal
das pessoas e do próprio ambiente. Freud (1911/1973) conclui seu ponto de vista
sobre a projeção na paranóia desta forma:
O que a nós se faz notar ruidosamente é o processo de cura que anula
o recalcamento e reconduz a libido novamente para as pessoas às
quais ela abandonou. Na paranóia, ele [o processo de cura] consuma-
se pela via da projeção. Não foi correto dizer que a sensação interna
reprimida é projetada para o exterior; nós entendemos, pelo contrário,
que o que foi internamente suprimido retorna do exterior
29
[a tradução
é minha] (p. 193-194).
Outras considerações são oferecidas na última parte do capítulo III
“Sobre o Mecanismo da Paranóia”. A primeira questão abordada é relativa ao
papel do mecanismo de desligamento da libido. Freud (1911/1969) acredita que,
na vida cotidiana, estamos sempre a nos desligar de objetos e pessoas sem
adoecermos. Como exemplo disso, o psicanalista busca novamente o apoio da
literatura e observa que Fausto, ao se libertar do mundo, não desenvolve nenhuma
paranóia ou neurose, mas apenas mostra uma exata estrutura da mente. Assim, o
desligamento da libido o pode ser considerado como fator patogênico na
paranóia. Por outro lado, a libido liberada vincula-se ao eu, fazendo um retorno ao
estádio do narcisismo. Freud conclui (...) que os paranóicos trouxeram consigo
28
Desgraça! Desgraça! .........................................
Tu o destruíste. Mais poderoso
O belo mundo, Para o filho dos homens,
Com punho poderoso! Mais esplêndido,
Em ruínas foi derrubado, Constrói-o novamente,
Pelo golpe de um semideus despedaçado! Em teu próprio seio constrói-o de novo!
29
Was sich uns lärmend bemerkbar macht, das ist der Heilungsvorgang, der die
Verdrängung rückgängig macht und die Libido wieder zu den von ihr verlassenen
Personen zurückführt. Er vollzieht sich bei der Paranoia auf dem Wege der Projektion.
Es war nicht richtig zu sagen, die innerlich unterdrückte Empfindung werde nach aussen
projiziert; wir sehen vielmehr ein, dass das innerlich Aufgehobene von aussen
wiederkerht.
120
uma fixação no narcisismo, e asseveramos que o montante do retrocesso da
homossexualidade sublimada para o narcisismo indica o montante de regressão
característico da paranóia”
30
[grifos do autor] [a tradução é minha] (p. 195).
Outro aspecto observado por Freud (1911/1969) é a possibilidade de que o
desligamento da libido possa se dar tanto de maneira parcial quanto geral. No caso
do Presidente Schreber, o pesquisador avalia retrospectivamente, através das
engenhosas construções delirantes, a intensidade do desligamento geral da libido.
A relação alterada que o paranóico estabelece com o mundo pode ser explicada
pela perda de seu interesse libidinal; e isso se dá por levar em consideração
qualquer alteração em seu ambiente, estimulando-o a criar teorias explicativas.
Concluindo suas idéias, Freud (1911/1969) situa a paranóia entre outras
formações patológicas já conhecidas. Ele acredita que ela deva ser mantida como
um quadro clínico independente, ainda que, neste quadro, possamos encontrar
características da esquizofrenia.
Quanto ao estudo freudiano da paranóia, uma indicação clara do autor
de que sua teoria foi desenvolvida antes de tomar conhecimento do conteúdo das
Denkwürdigkeiten”, de Schreber. Assim, Freud (1911/1969) espera que o futuro
decida se há mais delírio em sua teoria ou se mais verdade no delírio de
Schreber, mostrando que ambos se dedicam a um reconhecimento no campo
científico.
No pós-escrito, destinado a ser apresentado no Terceiro Congresso
Psicanalítico Internacional, em 1911, Freud (1911/1969) admite ter utilizado um
mínimo de interpretação sobre o historial clínico do Presidente Schreber,
acreditando que o leitor mais afeito à teoria psicanalítica pode extrair mais
conclusões do que as oferecidas por ele. Freud encerra esse pós-escrito com
algumas contribuições baseadas em estudos posteriores acerca do papel
desempenhado pelo sol no sistema delirante schreberiano.
30
(...) dass die Paranoischen eine Fixierung im Narzissmus mitgebracht haben, und
sprechen wir aus, dass der Rückschritt von der sublimierten Homosexualität bis zum
Narzissmus den Betrag der für die Paranoia charakteristischen Regression angibt.
121
2.3.3 – “De uma Questão Preliminar a Todo Tratamento Possível da Psicose”,
de Lacan
No artigo “De uma Questão Preliminar a todo Tratamento Possível da
Psicose”, Lacan (1959/1998) reporta-se aos aspectos do seminário por ele
proferido nos dois primeiros trimestres do ano letivo de 1955-56, dedicado à
questão da psicose. Esse trabalho de pouco mais de 50 páginas é denso, como
costumam ser os escritos de Lacan, e divide-se em cinco partes assim
denominadas: (a) Rumo a Freud; (b) Depois de Freud; (c) Com Freud; (d) Do
Lado de Schreber; e, (d) Pós-escrito. Ofereço, neste momento, um breve resumo
das principais idéias trabalhadas por Lacan.
De início, o autor afirma que o tema das psicoses, antes de Freud, está
ligado a um debate teórico psicológico. Isto posto, a teoria do conhecimento, em
sua versão mais abstrata, parece não dar conta dos efeitos subjetivos,
principalmente quanto à percepção da realidade. Se uma alucinação é um
perceptum
31
sem objeto, tais teorias exigem do percipiens
32
a justificativa de tal
perceptum. Para Lacan (1959/1998), resta saber se o perceptum tem em si um
sentido unívoco no percipiens.
Ainda que a relação do sujeito com a sua própria fala o impeça de falar
sem se ouvir, também é verdade que ele não pode se escutar sem se dividir. Sabe-
se que a alucinação verbal é acompanhada do esboço dos movimentos fonatórios e
que o sensorium
33
é indiferente na produção de uma cadeia significante. Daí,
Lacan (1959/1998) retira as seguintes conclusões sobre essa cadeia: a primeira é
31
Segundo Abbagnano (2003), “(...) é a experiência pessoal de um objeto, a maneira
como um objeto se mostra ao sujeito” (pp. 756-757). Para Lalande (1999), é o “(...) objeto
da percepção, sem referência a uma realidade, a uma coisa em si à qual corresponderia
este percepto. Equivale à expressão alemã empirische Anschauung, quando se entende
por Anschauung não a faculdade ou o ato de perceber, mas a própria ‘representação’ que
resulta deste ato” (p. 805).
32
Segundo Lalande (1999), percipiente equivale ao ser que percebe, ao sujeito.
33
De forma geral, para Lalande (1999), corresponde ao óro central, o qual reúne as
sensações provenientes dos diversos sentidos, a fim de garantir, ao sujeito, a
representação de um objeto.
122
que ela se impõe ao sujeito em uma dimensão de voz; a segunda é que ela assume
uma realidade, observável na experiência, suportada por sua atribuição subjetiva;
e, a terceira, é que sua estrutura coloca o percipiens como equívoco.
Na prática, observa-se a intenção de rejeição do discurso, presentificada
pela alucinação da seguinte maneira: uma palavra é emitida no lugar em que o
objeto indizível é rechaçado no real. Esse processo desliga a alucinação da
intenção do sujeito, porque a alucinação surge no lugar daquilo que o tem
nome.
Lacan (1959/1998) reitera a idéia de que as Denkwürdigkeiten”, de
Schreber, em uma visão estreita, podem ser consideradas como uma introdução à
fenomenologia da psicose, cabendo a ele uma análise estrutural cujo alvo é a
relação entre o significante e o sujeito.
Uma primeira distinção é demarcada por Lacan (1959/1998), qual seja,
entre os fenômenos de código e os fenômenos de mensagem. Os primeiros podem
ser observados nas vozes que utilizam a Grundsprache (língua fundamental)
alemão arcaico e rico em eufemismos –, constituindo um neocódigo. Como
fenômenos de mensagem, observamos ser o próprio significante o objeto da
comunicação em detrimento do seu significado, recebendo dos lingüistas a
designação de mensagens autônimas.
Lacan (1959/1998) observa que ‘nosso paciente’ maneira com que ele
chega a se referir a Schreber apresenta seu texto alucinatório de forma peculiar,
isto é, momentos nos quais as frases são interrompidas nos termos índices,
designados por shifters, os quais indicam a posição do sujeito a partir de sua
própria mensagem, deixando suprimida a parte propriamente léxica da frase. Isso
leva a uma situação paradoxal, ou seja, ao estabelecimento de um código
organizado por mensagens sobre o próprio código e à redução da mensagem no
código àquilo que a indica no próprio código.
Na segunda parte desse trabalho, intitulada “Depois de Freud”, Lacan
(1959/1998) comenta que muitos psicanalistas restringem o problema da psicose à
noção de perda da realidade. O autor chama atenção para o fato de Freud indicar
que o mais importante não está na perda da realidade, mas no expediente utilizado
para a sua substituição, na medida em que é do interior que o paciente retira os
elementos de acordo com suas necessidades. A crítica também se estende ao
mecanismo de projeção reduzido a sua fórmula gramatical, largamente utilizada
123
para a explicação do delírio schreberiano. Para Lacan, Freud aponta ser o
mecanismo de projeção insuficiente para dar conta do caso, trazendo novos
elementos sutis em relação ao recalque, os quais poderiam ser mais bem
explorados pelos psicanalistas.
Lacan (1959/1998) também se dedica a uma crítica ao trabalho de Ida
Macalpine sobre o caso Schreber, da qual destaco, em primeiro lugar, que a autora
soube criticar o chavão da repressão de uma pulsão homossexual como
determinante da psicose paranóica. A homossexualidade não explica a paranóia,
mas se mantém como um sintoma ligado ao seu processo. Em segundo lugar,
Lacan refere que Macalpine evita os entendimentos que façam referência ao
Édipo, afastando-se das indicações freudianas, e lançando mão de uma fantasia de
procriação, a qual faria parte da estrutura da hipocondria. Para Lacan, tal fantasia
não é exclusiva de determinada estrutura psíquica, assim como a incerteza em
relação ao próprio sexo, presente na psicose, também é traço comum na histeria.
Na terceira parte de seu artigo, Lacan (1959/1998) apresenta uma
simplificação do esquema L, conforme modelo representado abaixo, para, mais
adiante, desenvolver o esquema R, de realidade.
ESQUEMA L
34
Do conhecido esquema L, apresentado acima, ele diz que:
(...) significa que o estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende
do que se desenrola no Outro A. O que nele se desenrola articula-se
como um discurso (o inconsciente é o discurso do Outro), do qual
Freud procurou inicialmente definir a sintaxe relativa aos fragmentos
34
Retirado da Homepage www.pradodeoliveira.com/br/outro.html em 14/08/2006.
124
que nos chegam em momentos privilegiados, sonhos, lapsos, chistes
(Lacan, 1998, p. 555)
Esse esquema mostra como o sujeito se encontra implicado e articulado em
forma de discurso, estando presente nos quatro termos do esquema. A existência
do sujeito mostra-se em S, seus objetos estão em a, seu Eu – o que de sua forma é
refletido em seus objetos está em a’, e A representa o lugar de onde o sujeito
pode formular a questão de sua existência, ou seja, “Que sou eu nisso?”
Para Lacan (1959/1998), nós, analistas, damos testemunho da força da
pergunta pela existência feita pelos pacientes em sua dimensão relativa ao seu
sexo e a sua contingência no ser. O sujeito depara-se com tensões, suspensões e
fantasias próprias geradas por essa pergunta, sendo que a mesma se articula no
Outro por elementos do discurso particular. As figuras observadas nesse discurso
apresentam fixidez de sintomas, os quais são legíveis e passíveis de dissolução
por decifração.
Freud, segundo Lacan (1959/1998), não se deixa enganar quando constata
que a questão relativa ao Outro inconsciente não encontra resposta naquilo que
Lacan chama de práticas divinatórias, das quais Jung se faz representante. As
técnicas que promovem as criações imaginárias, as quais têm, nos devaneios e nos
desenhos, exemplos bem conhecidos, localizam-se sobre o eixo a a’. Isso quer
dizer que tais recursos caem na rede da miragem narcísica que os sustenta pelos
efeitos de sedução e de captura. Freud, a seu turno, teria rejeitado tais práticas
divinatórias, porque elas não levavam em conta a função diretiva de uma
articulação significante.
O questionamento do sujeito em sua existência depende da articulação do
significante no Outro. Lacan (1959/1998) propõe, então, o esquema R, para dar
conta da realidade em psicanálise, isto é, de uma realidade feita de significantes
que determinam o lugar do sujeito, como exposto a seguir:
125
ESQUEMA R
35
Percebe-se, inicialmente, que o trajeto Saa’A é o mesmo encontrado no
esquema L já dado anteriormente. Esse trajeto mostra a relação simbólica do
sujeito (S) e do Outro (A) duplicada na relação imaginária do eu (a’) com seus
objetos (a), dando o eixo básico para o esquema R.
O esquema R é composto de dois triângulos ou ternários, tendo o campo
da realidade entre eles. Os dois ternários foram concebidos para representar o
campo imaginário, iϕm, e o campo simbólico, IPM.
Ο ternário imaginário é composto pelos seguintes termos: o i, como
imagem unificadora do estádio do espelho; o ϕ, como a identificação do sujeito
com a imagem fálica, como falo imaginário; e o m, como o Eu, como corpo
fragmentado da criança. Os vértices i e m figuram como os dois termos
imaginários da relação narcísica, isto é, o Eu e a imagem especular.
O ternário simbólico indica como o sujeito se sustenta no campo da
realidade sob o significante do falo. Esse triângulo é dado pelos seguintes
elementos: o M representa o significante do primeiro Outro real, o objeto
primordial materno. É na medida em que a mãe também se oferece como o
primeiro pequeno outro, como semelhante, para a criança, que o a aparece sob o
M. O I, como ideal do eu e o P como a posição em A (grande outro) do
significante do Nome-do-Pai. Podemos dizer que o significante do Nome-do-Pai
35
Retirado da Homepage www6.ufrgs.br/psicopatologia/esquema%20r%20i_carol.doc
em 14/08/2006.
126
está fora do conjunto da rede significante, de modo a tornar esse conjunto
consistente.
O campo da realidade situa-se entre o quadrilátero miMI, circunscrevendo-
o. O perceptum (o objeto), por sua vez, está condicionado a esse campo prenhe de
significantes e orientado na direção do simbólico. Lacan (1959/1998) situa entre
os elementos i e M espaço relativo ao a as extremidades de vários segmentos
(Si, Sa, SM), os quais representam as várias possibilidades das figuras imaginárias
das relações de agressão erótica. Já entre m e I – espaço relativo ao a’ –,
encontram-se as extremidades dos segmentos que apontam para as identificações
do Eu, desde sua Urbild especular, sua arquiimagem, aa identificação paterna
do ideal do eu. No vértice I, situa-se a criança na condição de desejada.
O esquema R definido acima permite um único corte a ser efetuado nos
dois vetores mi e MI, isolando do campo uma banda de Moebius. Tal corte revela
dois elementos heterogêneos da estrutura da superfície inteira, quais sejam, os
elementos do algoritmo da fantasia ($ <> a). O $ surge onde a banda recobre o
campo R da realidade, e o a corresponde aos campos I e S. Portanto, o campo da
realidade é suportado pelo sujeito em sua condição de sujeito originalmente
recalcado. Todavia, o campo da realidade se sustenta pelo estabelecimento de
seu enquadre a partir da extração do objeto a, na mesma medida em que a intrusão
do campo I (imaginário) no campo R (realidade) se dê em conseqüência do
narcisismo.
Como último ponto da terceira parte desse artigo, Lacan (1959/1998)
desenvolve o tema do falocentrismo. Para ele, o falocentrismo é a conseqüência
da intrusão do significante em nosso psiquismo, o que independe de uma suposta
harmonia do psiquismo com a natureza que ele exprime. A função imaginária do
falo é, desde Freud, o elemento principal do processo simbólico deflagrado pelo
questionamento do sexo pelo complexo de castração tanto para os homens quanto
para as mulheres.
Enfatizando a dimensão simbólica, Lacan (1959/1998) mostra, a partir do
exemplo trazido por Jones de uma tribo australiana, que (...) “a atribuição da
procriação ao pai só pode ser efeito de um significante puro, de um
reconhecimento, não do pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar
como o Nome-do-Pai” (p. 562); isso a partir da possibilidade de que a atribuição
da paternidade seja dada ao encontro da mulher com o espírito de alguma fonte ou
127
pedra, dependendo do que o contexto simbólico exigir. Isto posto, o significante
do pai leva-nos a reconhecer a força do pai simbólico, na qualidade de pai morto,
o qual nos liga à vida e à lei.
A partir desse momento, Lacan (1959/1998) desenvolve o capítulo que
chamou de “Do Lado de Schreber”. Toda a teorização anterior serviu de base para
o desenvolvimento, pelo autor, da subjetividade do delírio schreberiano.
Como primeiro passo, Lacan (1959/1998) relembra a fórmula da metáfora
ou da substituição significante trabalhada no seminário daquele ano e apresentada
a seguir. Nessa fórmula, ele mostra que a significação do falo deve ser evocada no
imaginário do sujeito a partir da metáfora paterna. Os S representam significantes,
enquanto o x é a significação desconhecida. o s é o significado induzido pela
metáfora e dependente da substituição de S’ por S na cadeia significante.
S . $’ S I
$’ x s
Tomando essa fórmula como modelo, Lacan (1959/1998) aplica-o à
metáfora do Nome-do-Pai. Essa metáfora tem como conseqüência colocar esse
Nome como substituto do lugar originalmente simbolizado pela ausência da mãe,
como pode ser demonstrado a seguir:
Nome-do-Pai . Desejo da Mãe Nome-do-Pai A
Desejo da Mãe Significado para o sujeito Falo
A presença subjetiva do significante do Nome-do-Pai é absolutamente
compatível com a ausência do pai real. Todavia, a ausência desse significante
passa a dirigir o interesse de Lacan (1959/1998).
Primeiramente, Lacan (1959/1998) afirma que a presença do significante
no Outro se apresenta normalmente ao sujeito em estado recalcado (verdrängt) e,
através do automatismo de repetição (Widerholungszwang), a presença do
significante é representada insistentemente pelo significado. no fenômeno da
psicose, o autor destaca o termo freudiano Verwerfung, para designar uma função
inconsciente diversa do recalcado.
128
Para Lacan (1959/1998), a Verwerfung, que receberá de sua pena o nome
de foraclusão, indica a ausência do que Freud chamou de Bejahung, isto é, de
juízo de atribuição. A Bejahung figura como o elemento necessário anterior à
aplicação da Verneinung (denegação), a qual pode ser entendida como juízo de
existência. Para o autor, a experiência analítica mostra que a Verneinung revela o
próprio significante que ela anula. Todavia, a Bejahung primordial refere-se ao
significante que pode ser encontrado na obre freudiana com o nome de signo
(Zeichen), como termo de uma percepção original.
A Verwerfung, então, é a foraclusão do significante. Destarte, quando o
significante Nome-do-Pai é invocado, sua resposta no Outro corresponde a um
furo, sem efeito metafórico, provocando um furo correspondente no lugar da
significação fálica. A expressão “assassinato de almas” (Seelenmords) empregada
por Schreber é, segundo Lacan (1959/1998), um exemplo desse efeito de dano no
sujeito desvendado apenas parcialmente pelo Presidente Schreber.
Lacan (1959/1998) lamenta o fato de o livro de Schreber ter sido
censurado, principalmente no tocante à retirada do terceiro capítulo, mas sem que
com isso tenha deixado de se revelar um documento da mais elevada
credibilidade. A obra schreberiana confunde-se com o próprio delírio, oferecendo
uma excelente oportunidade de estudo da estrutura psicótica. Schreber esforça-se
em expressar o seu processo psíquico, ainda que devesse declinar da intenção de
revelar fatos ligados a nome de pessoas ainda vivas à época. Apesar disso, Freud,
segundo Lacan, parece conseguir retirar todas as conseqüências de obras como
“Fausto”, “Freischütz”, e, principalmente, de “Manfred”, de Byron, de onde supõe
que Schreber tenha retirado o nome Ariman. A essência dessa obra está na morte
do herói, protagonista de uma relação incestuosa com a irmã
36
, devido a uma
maldição lançada sobre ele.
A dimensão inconsciente pode ser reconhecida em Schreber pelo fato de o
delírio estar organizado em torno do poder de criação das palavras. Assim,
Schreber faz uma existência nascer do nada, independentemente de qualquer
experiência com o real da matéria, amparado pelos recursos estilísticos de um
alemão culto e anacrônico. O pensamento é sentido como intrusão, como
36
Freud (1911/1969) utiliza a palavra Geschwisterinzest, que significa incesto entre
irmãos, o que não exclui, segundo Santner (1997) um incesto homossexual.
129
independente de sua própria mente, por se basear na percepção, por parte dele, de
pensamentos nunca antes imaginados.
Lacan (1959/1998) enumera alguns fenômenos da fantasmagoria delirante
schreberiana, quais sejam, o milagre do urro (Brüllenwunder) um grito
arrancado de seu peito e que o surpreende –, o grito de socorro (‘Hülfe’ rufen)
emitido pelos ‘nervos de Deus’ –, a eclosão de manifestações percebidas como
fruto de sua própria criação e o aparecimento de criações miraculosas. Sobre esses
fenômenos, Lacan diz:
Porventura esses últimos meteoros do delírio não aparecem como o
vestígio de um rastro, ou como um efeito de franja, mostrando os dois
tempos em que o significante que foi morto no sujeito faz brotar de
sua noite, primeiro, um clarão de significação na superfície do real, e
depois faz o real iluminar-se com uma fulgurância projetada das
profundezas de seu substrato de nada? (p. 567).
O delírio schreberiano deve ser considerado, segundo Lacan (1959/1998),
em uma solidariedade simbólica expressa na realidade por um fenômeno tripartite:
o Criador, a Criatura e o Criado. O psicanalista lembra que o Criado é quem cria
subjetivamente o Criador. Então, é nessa perspectiva que devemos pensar a figura
de Deus nesse delírio, que se nos apresenta, nas descrições de Schreber, “Único
em sua Multiplicidade, Múltiplo em sua Unidade” (Lacan, 1998, p. 567,) o que é
rapidamente constatável pelos desdobramentos da deidade numa hierarquia de
reinos descritos nas “Denkwürdigkeiten”.
Dado não menos importante é o fato de Deus estar foracluído de qualquer
troca com os seres vivos, pois, além de ser refratário à experiência, não consegue
compreender os seres humanos, sendo-lhe vedado o contato com a interioridade
dos mesmos: Deus só apreende o ser vivo pelo seu exterior, através de um sistema
de notas (Aufschreibesystem) no qual ficam registrados os atos e os pensamentos.
Esse sistema faz lembrar a Lacan (1959/1998) a crença religiosa infantil de notas
tomadas pelos anjos da guarda.
Retomando o esquema R, Lacan trata de transpor a posição do sujeito para
o ternário constituído pelas letras I, P e M, as quais significam, respectivamente, o
ideal do eu, o significante Nome-do-Pai e o objeto primordial materno. Dessa
transposição, diz o autor:
Então nos parece realmente que, se o Criado I assume ali o lugar em P
deixado vago pela lei, o lugar do Criador designa-se por esse liegen
lassen [deixar largado], esse abandono fundamental em que parece
130
desnudar-se, pela foraclusão do Pai, a ausência que permitiu construir-
se na primordial simbolização o M da Mãe (Lacan, 1959/1998, p.
570).
Depreende-se, então, no caso da paranóia, que o esquema R dado
anteriormente seja alterado a partir do furo aberto pela foraclusão do Nome-do-
Pai; furo este em torno do qual vemos faltar o suporte da cadeia significante para
o sujeito lugar onde, justamente, o sujeito procura se reconstruir. Daí, um novo
esquema surge na pena de Lacan (1959/1998), recebendo o nome de esquema I,
como apresentarei mais adiante.
A tentativa de reconstrução do sujeito pode ser observada no delírio
schreberiano precisamente onde figura, como ponto central, a eviração
(Entmannung) a qual não pode ser tomada como equivalente à Verweiblichung
(transformação em mulher), pela própria estrutura subjetiva que sustenta a
produção delirante. A transformação em mulher é, para Schreber, a conseqüência
inevitável de se tomar pelo falo e não pela foraclusão do pênis. Assim, por não
poder ser o falo que falta à mãe, tornar-se a mulher que falta aos homens
apresenta-se-lhe como a solução possível para o seu conflito. Tal aspecto pode ser
observado na impressão de Schreber, relativa à fase prodrômica da segunda crise
de sua doença, de que “(...) deveria ser realmente bom ser mulher se submetendo
ao coito”. Todavia, a transformação em mulher é, para Lacan (1959/1998), uma
solução prematura, na medida em que os homens não conseguem responder ao
seu apelo por serem, tanto quanto ele, desprovidos de falo; fato retratado pela
expressão “imagens de homens feitos às pressas”.
A relação da paranóia com a homossexualidade manifesta no delírio de
Schreber carece de maior esclarecimento, uma vez que não se expressa pela
eleição homossexual de objeto. Lacan (1959/1998) destaca a prática
transexualista, próxima da perversão, e trabalhada por diversos autores,
caracterizada, no caso de Schreber, como uma prática solitária cuja satisfação ele
chega a confessar. Tal satisfação está em portar colares femininos e olhar, diante
do espelho, seu peito nu, deleitando-se com a percepção de seios bem
desenvolvidos, os quais acredita que qualquer um poderia observar. Ao concluir
sua transformação em mulher, Schreber estará apto a acolher o germe embrionário
131
da nova humanidade, através de uma operação espiritual cujo frêmito já
pressentira durante o estranhamento hipnopômpico
37
.
Engendrar uma nova humanidade a partir das próprias entranhas é um ato
de redenção, o qual visa a tais criaturas por nascer, já que a humanidade padece da
decadência da volúpia que a une a Schreber. Destarte, Schreber encarna em si
mesmo a tarefa do casal designado para repovoar a terra, agora, inabitada. Freud
(1911/1969) percebe, nesta afirmativa, uma realização assintótica de desejo.
A partir desse ponto, Lacan (1959/1998) partir da criatura, calcadas em
sua imagem, duas ramificações diferentes de uma mesma linha, quais sejam, a do
gozo narcísico e a da identificação ideal. Essa linha margeia um segundo abismo,
o furo instalado pelo “assassinato de alma” e representado pela morte.
Essas considerações finalizam o esboço do esquema I, o qual representa o
esquema R modificado segundo a estrutura de um sujeito ao rmino de seu
processo psicótico, onde percebemos as alterações das funções identificadas pelas
letras apresentadas e trabalhadas anteriormente. O esquema I mostra o desenho de
duas hipérboles que apresentam também uma dupla assíntota
38
ao longo de uma
das retas diretrizes. Essa dupla assíntota seguindo a indicação do termo
freudiano – une o eu delirante de Schreber ao outro divino.
ESQUEMA I
39
37
Relativo ao momento de despertar.
38
Segundo Ferreira (1999), reta tangente a uma curva cuja tangência tende para o infinito.
39
Retirado da Homepage www6.ufrgs.br/psicopatologia/esquema%20r%20i_carol.doc
em 14/08/2006.
132
Lacan (1959/1998) afirma que o esquema I apresentado acima resume a
fecunda investigação de Freud sobre o tema da psicose, para a qual contou apenas
com o apoio de um documento escrito. A única organicidade envolvida nesse
processo é, para Lacan, a que motiva a estrutura da significação.
O esquema I mostra os transtornos schreberianos de crepúsculo do mundo
como conseqüência da indução significante sobre o imaginário, a qual acaba por
exigir novos efeitos significantes. As alterações do paciente, atestadas pelas
lembranças evocadas nas suas Denkwürdigkeiten”, bem como pelos atestados
médicos, apontam a tentativa de restabelecimento de uma nova ordem por parte
do sujeito, coincidindo com as diferentes etapas de dissolução imaginária, das
quais as sucessões simbólicas dos reinos anteriores e posteriores de Deus são um
bom exemplo.
Embora o esquema I apresente inegável alteração, Lacan (1959/1998)
afirma que podemos reconhecer nele o trajeto Saa’A, espinha dorsal apresentada
no esquema L simplificado e presente também no esquema R. Tal trajeto mostra,
no exame do caso Schreber, a importância dada à relação com o outro, na
qualidade de seu semelhante em detrimento da relação fora-do-eixo com o Outro,
comumente designada pela psiquiatria clínica como delírio parcial.
Ao concluir esse capítulo, Lacan (1959/1998) assevera que o drama da
loucura está situado na relação do homem com o significante e que o perigo de
delirarmos com o paciente não nos deve intimidar, assim como não intimidou a
Freud. E termina dizendo que “(...) o ser no homem não apenas não pode ser
compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se não trouxesse em
si a loucura como limite de sua liberdade” (p. 581).
Na quinta e última parte desse artigo, intitulada “Pós-escrito”, Lacan
(1959/1998) lembra que, em seu ensino, chama de Outro o lugar da memória, o
mesmo lugar que recebera o nome de inconsciente por Freud. À indestrutibilidade
de certos desejos ligados a esse lugar, Lacan responde com a elaboração da cadeia
significante inaugurada pela simbolização primordial manifestada pelo
automatismo de repetição que tem o jogo do Fort-Da como modelo de sua origem
e determinada por ligações lógicas. Para o autor, a metáfora e a metonímia são
efeitos significantes através dos quais o ser do ente se exerce.
133
Por outro lado, a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro é o
fracasso do registro da metáfora paterna, e esse acidente dá a psicose sua condição
especial e a separa estruturalmente da neurose. Destarte, o desencadeamento de
uma psicose é dado pela invocação do Nome-do-Pai foracluído (verworfen) em
oposição simbólica ao sujeito no lugar do Outro. A conseqüência da falta do
Nome-do-Pai nesse lugar acarreta uma série de remanejamentos do significante,
justamente pelo furo aberto no do significado. A metáfora delirante é, a seu turno,
a estabilização do significante e significado, ainda que esse caminho indique um
verdadeiro desastre do imaginário.
Na psicose, a chamada pelo Nome-do-Pai em um lugar onde nunca esteve
se dá, para Lacan (1959/1998), através de um pai real, não necessariamente o pai
do sujeito, o qual recebe, da pena do psicanalista, o nome de Um-pai. Este Um-pai
surge justamente no lugar que antes não foi possível chamá-lo, situado na posição
terceira à relação imaginária a-a’. Essa relação pode ser lida como estabelecida
entre o eu e o objeto ou entre o ideal e a realidade, jogando o sujeito no campo
erotizado da agressividade definido pela relação imaginária. O início da psicose
sempre é marcado por essa face de drama, fonte de inspiração para a literatura e
imortalizada, segundo Lacan, na figura do marido para a parturiente, na figura do
confessor para a pecadora ou na do pai do rapaz para a jovem enamorada.
A carência paterna atestada pelos teóricos desde a idéia de um pai
aterrador até o seu oposto, um pai passivo, acrescida das imagos maternas
frustradora ou saciadora apontam para a rivalidade dos pais no imaginário do
paciente psicótico, sem deixar de marcar algo relativo à relação ternária edipiana.
Lacan (1959/1998) insiste para o fato de a importância dada pela mãe às palavras
do pai a sua autoridade é que reserva ao Nome-do-Pai um lugar na promoção
da lei. Diferentemente do atestado até então pelos demais teóricos, a questão o
está dada pelos dados factuais de convivência do casal. A foraclusão (Verwerfung)
primordial é o ponto a partir do qual o psicótico passa a urdir o seu delírio.
134
2.4 – Discussão dos Resultados
Ensaio Metapsicológico: “Da Loucura como Ciência à Ciência da Loucura”
A diferença entre a verdade e a ficção é que a ficção
faz mais sentido.
(Mark Twain)
Ao iniciar, proponho o desafio de questionar se as “Memórias” de Daniel
Paul Schreber (1903/1984) teriam chegado aos nossos dias e ao nosso
conhecimento se não fosse por sua estreita ligação com a psicanálise e, em
especial, com as formulações dadas por Sigmund Freud (1911/1969). Sempre que
nos remetemos a Daniel Paul Schreber, usamos antes a denominação Presidente
Schreber, tal qual ficou consagrado pela psicanálise. Se isso por si já não fosse
suficiente para responder à pergunta inicial, posso afirmar, com Santner (1997),
que o texto freudiano estabelecido a partir da leitura das Denkwürdigkeiten
schreberianas es irremediavelmente vinculado à obra de Schreber pela força
interpretativa emprestada por Freud. Destarte, sempre que nós tratamos do tema
“Schreber”, estamos travando um diálogo com Freud e com o caso
metapsicológico por ele elaborado.
Outra possibilidade de resposta à questão inicial está na qualidade do
próprio texto escrito por Schreber (1903/1984); não no sentido de ser um texto
bem ou mal escrito, mas, precisamente, quanto a sua finalidade intrínseca. A obra
“Memórias de um Doente dos Nervos” pode ser considerada um clássico, embora
não vamos encontrar a prosa historicamente bem descrita de um memorialista
ou a ficção bem concebida de um romancista. Não, definitivamente, Schreber não
escreve suas memórias visando à honraria de um prêmio Goethe, o qual foi
conferido a Freud, mas, antes, como o testemunho escrito de seu padecimento.
Aqui, é importante destacar que tomamos esse texto por um texto clássico pelo
fato de Freud (1911/1969) tê-lo alçado a tal condição.
A quem interessaria ler uma expressão tão viva do adoecimento mental de
um ser humano que não fosse alguém preocupado pela área dos transtornos
135
mentais e psíquicos? O. Mannoni (1994) comenta, em sua biografia de Freud,
que: “As qualidades intelectuais e morais de Schreber, sua memória, sua lucidez,
sua sinceridade absoluta fazem de seu livro o mais perfeito relato de que
dispomos de uma paranóia” (p. 146).
Em um ensaio intitulado “Schreber als Schreiber”
40
, O. Mannoni (1973)
afirma não podermos rejeitar as Denkwürdigkeitenpor terem sido escritas por
um louco, uma vez que a literatura conhece outros casos como esse. Todavia, esse
gênero de escrita, assim como as narrativas de viagens, não constitui gênero
literário. O interesse suscitado pela obra recai sobre as ricas descrições do autor,
terreno fértil para as teorias de psiquiatras e psicanalistas sobre a psicose
paranóica.
O que se destaca na obra de Schreber é justamente a descrição minuciosa e
corajosa de sua realidade em detrimento da transformação dessa realidade em
experiência literária ou poética. Nesse sentido, vale repetir os objetivos do autor
expressos no início de seu livro e já citados anteriormente:
Creio que seria valioso para a ciência e para o conhecimento de
verdades religiosas possibilitar, ainda durante minha vida, quaisquer
observações da parte de profissionais sobre meu corpo e meu destino
pessoal. Diante desta ponderação, deve calar-se qualquer escrúpulo de
ordem pessoal. (Schreber, 1903/1984, p. 25)
Na segunda série de suplementos colocada ao final de sua obra, Schreber
(1903/1984) reitera seus objetivos, conforme também apresentei anteriormente:
Depois de tudo isto não me resta mais nada senão oferecer minha
pessoa ao julgamento dos especialistas, como objeto de observação
científica. Este convite é o principal objetivo que persigo com a
publicação do meu trabalho. Na pior das hipóteses, resta-me esperar
que um dia com a dissecção do meu cadáver, possam ser constatadas
peculiaridades comprobatórias no meu sistema nervoso, dado que sua
constatação em corpos vivos, conforme o que me foi dito, se
acompanharia de dificuldades extraordinárias ou se revelaria
completamente impossível [grifos do autor] (p. 326).
As duas citações anteriores, chamam atenção para a forte intenção do autor
para com a ciência, o que ratifica a idéia de que não se encontra em as
“Memórias” objetivo literário, senão de maneira fortuita. Melman (2006) destaca,
com propriedade, que, ao iniciar o capítulo XIII, Schreber descreve um mundo
40
Schreber como escritor.
136
reconciliado. O mês de novembro de 1895 marca uma mudança na forma de
prever o futuro e mostra-se como um capítulo importante da história de vida de
Schreber. Ele diz: “Lembro-me ainda claramente desse momento; coincidiu com
uma série de belos dias do fim de outono, quando em todas as manhãs havia densa
névoa sobre o Elba” (Schreber, 1903/1984, p. 175).
Registrada nesse período, encontramos uma mudança subjetiva que se
desenrola no sentido de o texto ganhar ares romanescos, diferindo da descrição
pesada, mas sempre precisa, de seu processo de adoecimento. Com razão,
Melman (2006) afirma o seguinte:
(...) na trama fechada do texto schreberiano em que cada significante é
um signo das implicações sempre temíveis, densa e rigorosa como
uma exposição matemática, essa invocação à natureza é, com efeito,
literalmente a única frase que pode parecer gratuita, não falando, e,
entretanto, rica de um sentido encontrado. Após o período do sol, uma
magnífica paisagem emerge do nevoeiro, e isso o quer dizer nada
mais, nem a ninguém. Pensamos poder considerar aqui, guiados pela
análise de Lacan sobre o tema de a paz da noite” (Seminário sobre o
caso Schreber, 8 de fevereiro de 1956), o retorno de um possível jogo
metafórico em uma cadeia inconsciente, abrindo, com a harmonia do
sujeito em seu mundo, a ambigüidade do lugar onde ele é falado e
significado (p. 323).
Logo em seguida, Schreber (1903/1984) sua explicação para essa
mudança sentida. Segundo ele, os sinais de feminização sinais estes que
somente eram percebidos pelo paciente mostravam-se ao mesmo tempo em que
revelavam para ele sua finalidade nesse processo. A eclosão dos supostos
atributos feminis produz um momento de parada, de relaxamento das condições
delirantes mais opressoras. É a partir desse momento, no qual o paciente consegue
melhor suportar as exigências da vida, que surge, ainda que num lampejo deveras
fugaz, a capacidade de se entregar à metáfora.
Destarte, posso afirmar que essa passagem das Denkwürdigkeiten
anteriormente citada é o único trecho no qual percebemos o peso da pena do
escritor Schreber sobre a pena do cientista Schreber. Isso corrobora minha idéia de
que os estritos objetivos de sua obra, aliados à condição psíquica do paciente, não
favorecem possíveis arroubos literários. Schreber escreve suas memória com o
único intuito de oferecê-las à ciência, colocando-se como a experiência viva dos
desígnios de Deus.
137
À guisa de comparação, trago um exemplo consagrado da literatura. Em
seu livro intitulado “Orlando” sua obra mais famosa –, Virginia Woolf
(1928/1978) retrata a biografia fantástica de um nobre inglês chamado Orlando e
nascido no século XVI que se transforma em mulher e vive a os anos 20 do
século passado. Nesse livro, o tema da transformação em mulher, tão caro a
Schreber, é assim caracterizado:
(...) e com isso Orlando despertou. Espreguiçou-se. Levantou-se.
Ficou de pé, completamente despido na nossa frente, enquanto as
trombetas rugiam: “Verdade! Verdade! Verdade!” E o podemos
deixar de confessar: era mulher.
O som das trombetas esmoreceu e Orlando continuou despido.
Nenhuma criatura humana, desde que o mundo é mundo, foi mais
arrebatadora. Sua forma reunia, ao mesmo tempo, a força do homem e
a graça da mulher (...). Orlando mirou-se de alto a baixo num grande
espelho, sem mostrar nenhum sinal de perturbação, e dirigiu-se
provavelmente para o quarto de banho (pp. 76-77).
Utilizando-se da mudança de sexo de seu personagem principal, Woolf
(1928/1978) trata de traçar um panorama da Inglaterra quanto às questões
relativas aos costumes da época. Ainda que seja de conhecimento geral que sua
delicada saúde psíquica a tenha levado ao suicídio, Orlando o é colocado no
papel por representar a própria vida da escritora. Orlando ‘nasce’ da verve literária
de Woolf, mas os dois jamais se confundem.
Retomando o curso depois dessa rápida digressão, destaco a intenção de
Schreber (1903/1984) expressa no recurso por ele impetrado, o qual assina ‘Dr.
Schreber, presidente da Corte de Apelação, em afastamento’. Ele declara: “A
certeza do meu conhecimento de Deus e a absoluta segurança de estar em contato
direto com Deus e com milagres divinos se ergue altíssima, muito acima de toda e
qualquer ciência humana” [grifos do autor] (p. 369). Contudo confessa não querer
ser tomado por pretensioso, na medida em que a revelação da verdadeira natureza
das coisas divinas de forma superior a qualquer outro ser humano deu-se nele em
conseqüência de um milagroso encadeamento de circunstâncias.
O processo de compreensão dos fenômenos supranaturais, afirma Schreber
(1903/1984), foi acompanhado da perda da alegria de viver. Todavia, ao
compreender o teor de tais fenômenos, os mesmos passaram a ser o ponto central
de sua vida, e a serenidade de espírito passou a estar relacionada à revelação de
138
Deus em quase todos os instantes através de seus milagres e em sua língua.
Tendo em vista esses aspectos, ele está seguro em afirmar:
(...) isto explica também o valor incomparavelmente elevado que dou
à publicação das minhas Memórias. Pois se por meio delas eu
conseguir o apenas despertar consideráveis dúvidas nos outros, mas
também me for dado lançar uma luz por detrás do escuro véu que
oculta o Além dos olhos dos homens, então o meu trabalho pode
fazer parte das obras mais interessantes que foram escritas desde
que o mundo existe (p. 370).
Santner (1997) argumenta que, em última análise, é à teologia e à filosofia
que Schreber oferece suas “Memórias”, ainda que deseje ter seu corpo examinado
por cientistas. Eu, por outro lado, afirmo que a alma de Daniel Paul Schreber
alma verdadeiramente atormentada é a alma de um cientista, com a
singularidade de que, nele, cientista e experimento habitam o mesmo corpo e se
relacionam de forma interdependente. Ao lermos atentamente o que Schreber
(1903/1984) assevera no final da segunda série de suplementos de sua obra, isto é,
que, na pior das hipóteses, a dissecção de seu cadáver de elucidar o que ele
revelara com tamanha riqueza de detalhes, chama atenção o fato de ele chegar a
admitir que, no fim, a ciência é que possa sobreviver a sua concepção
escatológica.
A ciência, para Schreber (1903/1984) deve ser entendida como o
conhecimento instituído, o qual congregaria os campos da neurologia, da religião
e da filosofia. Sua obra, embora ressalte a limitação das formas de conhecimento
humano, expressa o voto de que a cosmogonia por ele revelada tenha um
tratamento científico e encontre, no seu corpo, as provas empíricas dessa
revelação.
Assim como Freud (1911/1969) fala de uma realização de desejo
postergada ad infinitum, assintoticamente realizada, também é verdade que
Schreber (1903/1984), antes de oferecer seu cadáver à dissecção futura, fala de
um relógio carrilhão inutilizado pelo efeito dos milagres. o mais uma
contagem cronológica do tempo, pois, “na pior das hipóteses” (p. 326), ou seja, se
o Götterdämmerung
41
como caracteriza o seu fim do mundo não se realizar,
41
Schreber utiliza-se do tema da ópera “Crepúsculo dos Deuses” de Richard Wagner
(1813-1883) –, a qual faz parte da tetralogia do Anel dos Nibelungos” por aproximar-
139
haverá sempre o recurso da ciência no exame de seu sistema nervoso. É como se,
no fundo, suspeitasse de suas previsões.
Lacan (1966/2003) conclui sua “Apresentação das ‘Memórias de um
Doente dos Nervos’” apontando para a importância do vínculo estabelecido entre
o paciente e o clínico, no qual o clínico é dado responder desde este lugar de
objeto, que, no caso Schreber, é o de uma espécie de erotomania mortificante.
Para Lacan, a fotografia do Dr. Flechsig diante da imagem de um rebro
encontrada na abertura da versão inglesa das “Memórias” mostra perfeitamente o
sentido dado ao Sujeito suposto Saber nessa transferência. Daí, Lacan conclui que
tudo o que está em jogo nesse magnífico caso ainda que a ascese mística e a
abertura às vivências do paciente possam nos ofuscar é tão-somente a lógica
introduzida pelo tratamento.
A figura do Dr. Flechsig aparece em destaque ao longo das “Memórias”.
Aliás, sua obra mostra o supremo esforço de integrar elementos de suas
experiências vividas em um todo coeso. É como se uma força centrípeta juntasse
os elementos mais anódinos a outros de maior importância, de modo que nenhum
deles fosse excluído de um grande sistema integrador. Nessa via, vemos, aqui e
ali, brotarem expressões e personagens retiradas da literatura.
Nessa tentativa de integração de diversos elementos ao seu sistema
delirante e a primazia dada à figura de Flechsig, destaco uma pequena nota de
Santner, segundo a qual Johann Andreas Rodig, um sapateiro de Leipzig, também
lutou no mesmo tribunal onde Schreber exercera a atividade de juiz, contra uma
sentença de interdição. Em um panfleto publicado pelo paciente, ele agradece ao
Herr Professor Flechsig e ao Herr Dr. Teuscher, por tratarem de seus nervos e
por garantirem o seu juízo (Santner, 1997, p. 198, nota 27). Possivelmente, esse
fato ajudou Schreber a moldar expectativas favoráveis em relação a Flechsig.
Santner afirma que Flechsig, como perito forense, era mais sensível aos interesses
dos pacientes do que a maioria de seus colegas. Por isso, a decisão de transferir
Schreber para o manicômio público de Sonnenstein teria sido sentida, segundo o
autor, como uma traição.
se do tema do livro Apocalipse, da Bíblia. Consta, em Santner (1997), que Heinrich Behr,
sogro de Schreber, foi um cantor lírico e produtor de obras de Wagner.
140
Além de isso tudo reforçar a importância do Dr. Flechsig – eminente
neurologista –, podemos verificar a utilização do nome do outro médico em seu
delírio. Schreber (1903/1984) fala de um Dr. Täuscher, médico-assistente do
professor Flechsig. Acontece que Täuscher significa, literalmente, ‘enganador’ e,
por outro lado, é homófono a Teuscher. Também é oportuno lembrar a
importância dada ao Dr. Flechsig no seio da família Schreber. Consta que a
esposa de Schreber manteve, por muitos anos, junto a sua mesa de trabalho, uma
fotografia do Dr. Flechsig por gratidão pela recuperação de seu marido.
Quanto ao Dr. Flechsig, deve-se a ele a descoberta da mielinização, em
1872, a partir da dissecção do cérebro de um menino de cinco semanas chamado
Martin Luther, transformando essa descoberta na base de sua metodologia de
pesquisa e de seu sistema neuroanatômico, estendendo-se também as suas
concepções psiquiátricas. Flechsig foi o fundador do método ontogenético de
análise da estrutura interna do sistema nervoso central, mostrando à ciência a
importância da mielinização no desenvolvimento do sistema nervoso e sua
importância na maturação de vários sistemas neurais.
Nome reconhecido no mundo da neurologia, Flechsig não passou incólume
à observação do jovem Freud. Além disso, segundo Santner (1997), os textos
neurológicos de Freud contêm muitas referências ao trabalho de Flechsig, o que
também se pode verificar no obituário que escreveu em homenagem a Charcot:
Quando emergiram as duas grandes inovações as experiências de
estimulação de Hitzig-Fritsch e as descobertas de Flechsig sobre o
desenvolvimento da medula espinhal – que anunciaram uma nova
época no nosso conhecimento da ‘localização das doenças nervosas’,
as lições de Charcot sobre esse assunto desempenharam o mais
importante papel na aproximação das novas teorias com o trabalho
clínico, tornando-as frutíferas para este (Freud, 1893/1976, p. 25).
Voltando um pouco mais no tempo, encontramos uma referência a Flechsig
em uma carta enviada por Freud (1873-1890/1972) a sua noiva Martha e datada
de quatro de novembro de 1885, onde comenta o reencontro com o amigo médico
russo L. O. Dark Schewitsch, o qual chegou a traduzir um artigo de Freud para
uma revista russa e com o qual escreveria, em co-autoria, um artigo em 1886. Ao
relatar a forma como conheceu Schewitsch e as atividades desenvolvidas no
laboratório de Meynert, Freud diz: “(...) aborrecido com Meynert, partiu para
Leipzig com meu rival Flechsig” [grifo meu] (p. 162). É como rival que Freud se
141
refere a Flechsig, colega de especialidade. Na época em que essa carta é trocada,
Schreber e sua esposa estão em viagem de convalescença, após estar internado por
seis meses na clínica para doenças nervosas da Universidade de Leipzig, a qual
tem Flechsig como diretor.
Dark Schewitsch, que também aparece grafado como Darkschewitsch, pode
ser o neurologista judeu mencionado por Schreber (1903/1984) em seu delírio
como tendo um nome similar ao de um padre beneditino judeu batizado, que
objetivava eslavizar a Alemanha e lançar as bases da dominação dos judeus
através dele. Esse padre, cujo nome soava algo como ‘Starkiewicz’, liderou os
240 beneditinos que pereceram em sua cabeça.
Um dado importante surge aqui, pois o editor inglês de Freud (1911/1969)
refere-se a essa primeira internação como fazendo parte do que chamou ‘primeira
doença’. Todavia, em 1878, por ocasião de seu casamento com Ottlin Sabine
Behr (1857-1912), Schreber sofreu um episódio de hipocondria sem necessitar
hospitalização, o qual, seguramente, está ligado à posterior eclosão de sua
paranóia.
A partir das referências a Flechsig encontradas na obra de Freud, posso
afirmar que a leitura feita por Freud das Denkwürdigkeiten de Schreber marca
também um reencontro de Freud com Flechsig, acarretando o que entendo ser
uma certa disputa entre a tentativa de cura oferecida pela concepção neurológica
da paranóia e a oferecida pela explicação psicanalítica. Ainda que a obra de
Schreber fosse publicada em 1903, com a conseqüente discussão nos meios
psiquiátricos da época, o tema da paranóia voltou a interessar Freud em 1910,
quando de sua viagem com Ferenczi à Sicília. Antes disso, o “Rascunho H”,
anexado a uma carta a Fliess em 24 de janeiro de 1895 (Masson, 1986), trata do
mesmo tema, ainda que fosse uma etapa inicial de suas pesquisas.
O caso Schreber, ao que tudo indica, começou a ser pensado durante essa
viagem. Em 24 de setembro de 1910, ainda em Roma, pouco antes de partir de
viagem de volta ao lar, Freud (McGuire, 1993) escrevera a primeira parte de uma
carta a Jung (carta 212F) contando sobre a viagem e fazendo alguns comentários
sobre Ferenczi, seu companheiro de viagem. Segundo Freud, Ferenczi mostrara-se
infantil, passivo e receptivo demais, como uma mulher, a ponto de Freud afirmar
que sua homossexualidade não ia longe o bastante para aceitá-lo dessa forma.
Logo em seguida, no mesmo parágrafo, Freud muda de assunto e assevera:
142
“Diferentes noções científicas que eu trouxera comigo combinaram-se para dar
forma a um texto sobre paranóia que pede ainda uma conclusão, mas que significa
um grande avanço para explicar o mecanismo da escolha da neurose” (p. 367).
Freud (Falzeder, 1994) não deixa de expor seus sentimentos para o próprio
Ferenczi em uma carta (169F) datada de dois de outubro de 1910, onde menciona
o aspecto infantil do jovem. Ferenczi também prepara uma longa carta a Freud
(170Fer), sem que tivesse recebido a que continha as impressões de Freud, ao que
tudo indica, porque a data é de três de outubro de 1910. Nela, ele esclarece as
impressões desagradáveis despertadas durante essa viagem, as quais estavam
ligadas à falta de reciprocidade na relação com o pai da psicanálise, na busca de
um entendimento psicanalítico. Comenta ter-se dado conta da resistência contra
seus próprios componentes homossexuais, o que promoveu um proveito pessoal e
científico, e afirma compreender a dificuldade de Freud em se mostrar sem
reservas após o que chamou de ‘caso Fliess’. Ainda na mesma correspondência,
Ferenczi faz um importante comentário:
O Sr. me disse certa vez que a ΨΑ seria somente uma ciência de fatos,
de indicadores, que não deveriam ser traduzidos para o plano
interpretativo, pois este último seria paranóico. Segundo esta
concepção, não haveria uma visão de mundo ψα, nem uma ética ψα,
nem normas de conduta ψα. Eu também não conheço outra regra ética
além da ética da razão pura. Mas a ampliação e expansão da razão a
regiões até então inconscientes tem uma influência muito
significativa, também para o não-paranóico, sobre a visão de mundo e
o modo de agir (Falzeder, 1994, p. 278-279).
Ferenczi (Falzeder, 1994) afirma não querer reformar a sociedade, porque
não é paranóico, mas espera que seja estabelecida uma relação mais desinibida
entre dois homens de orientação psicanalítica, na qual tanto os pensamentos
quanto a fala tivessem livre expressão. Todavia, espera que o processo de
aproximação inicie por Freud, pois, como afirma: “Infelizmente eu não posso
começar: o Sr. é que deve! O Sr. é a ΨΑ em pessoa!” (p. 279).
Quero destacar a resposta dada a esta carta de Ferenczi. Freud (Falzeder,
1994, carta 171F) defende-se, dizendo não ser o super-homem (Übermensch)
psicanalítico construído e que não superara a contratransferência 15 anos antes,
Ferenczi analisara-se com Freud durante três semanas. O inventor da psicanálise
assevera então:
143
Não o Sr. percebeu que eu não mais possuo necessidade daquela
abertura total da personalidade, mas também compreendeu, retomando
corretamente à causa dessa situação. Portanto, por que o Sr. teimou
nisso? Desde o caso Fliess, durante a superação do qual o Sr.
justamente me viu ocupado, essa necessidade exauriu-se em mim.
Uma parte de investimento homossexual foi retirada e empregada na
ampliação de meu próprio Eu. Tive sucesso onde o paranóico fracassa
[grifo meu] (Falzeder, 1994, p. 281)
Freud (Falzeder, 1994) traz ainda alguns argumentos sobre o
comportamento desagradável de seu companheiro de viagem, para, ao final da
mesma carta, fazer referência ao caso Schreber:
Certamente o escrevi que trabalhei no caso Schreber, encontrando a
confirmação para o núcleo de nossas suposições sobre a paranóia e
que aproveitei todas as oportunidades para fazer sérias interpretações.
Agora pedi a Stegman que descubra detalhes pessoais do velho
Schreber. Está dependendo desses relatórios o que irei dizer
publicamente sobre o assunto.
O que o Sr. acha de o velho Dr. Schreber ter feito “milagres” como
médico, mas que, de resto, era um tirano em casa, “urrava” com o
filho, e o compreendia tão pouco quanto o deus inferior”
compreendia o nosso paranóico? Aceitam-se de bom grado
contribuições para a interpretação do caso Schreber (pp. 281-282).
Aqui, o tema ‘Schreber’ já se mostra em franco processo de elaboração, no
qual se destaca a tentativa de integração do material delirante do paciente à luz de
uma concepção teórica propriamente psicanatica. Todavia, Freud (Falzeder,
1994) assume aguardar por informações factuais de Stegmann
42
sobre o pai do
Presidente Schreber. Ainda que afirme não se ter utilizado de nenhum dado além
dos oferecidos pelo próprio texto das Denkwürdigkeiten”, com exceção da idade
de Schreber à época de sua doença, como Freud (1911/1969) chega a afirmar (p.
65, n. 1), é provável que outros dados viessem a compor o seu ensaio, como
sugerido por ele mesmo em uma carta à Princesa Marie Bonaparte (conforme p.
18, n. 1).
Nessas trocas de correspondências, o que chama atenção é a Stimmung que
paira sobre essas relações, concorrendo no aparecimento do trabalho freudiano
sobre o Presidente Schreber. Destaco como elementos em jogo: as dificuldades na
relação Freud-Ferenczi, à sombra do que fora a relação Freud-Fliess, os aspectos
42
Arnold Georg Stegmann, psiquiatra de Dresden (cidade de Schreber), tornou-se sócio-
fundador da Sociedade de Berlim.
144
homossexuais presentes nessas relações, o espectro da paranóia a rondar essas
relações, a relação da paranóia com a ciência e, ainda, a ligação de um antigo rival
(Flechsig) com o relato do tratamento malogrado de Schreber.
Ainda encontramos nas cartas trocadas entre Freud e Ferenczi (Falzeder,
1994) confidências que localizam o problema da paranóia no seio da comunidade
psicanalítica. Em 16 de dezembro de 1910 (carta 188F), Freud escreve ao jovem
colega, dizendo: “Atualmente, superei o caso Fliess, sobre o qual o Sr. estava tão
curioso. Adler é um pequeno Fliess redivivo, igualmente paranóico. Steckel, como
seu apêndice, no mínimo tem o nome de Wilhelm” (p. 301).
A relação entre o caso Schreber e o seu ex-amigo Fliess é ratificada
quando da conclusão de seu trabalho. Freud (McGuire, 1993) escreve a Jung dois
dias mais tarde (carta 225F, de 18/12/1910), dizendo ter concluído ‘seu’ Schreber
e que lhe falta um prefácio como complemento. O autor não se sente
totalmente satisfeito com seu produto e afirma ter lutado, ao escrevê-lo, com
complexos ligados a Fliess, os quais o perturbavam.
Destarte, o caso que Freud apresenta sob a designação caso Schreber ou,
mesmo ‘meu’ Schreber, como se sabe, não partiu do tratamento psicanalítico de
um paciente, mas da leitura das “Memórias” produzidas por ele. Não foram as
dificuldades do processo de cura de um paciente que levaram Freud a teorizar
sobre o tema da paranóia. Ao contrário, Freud parte da problemática que envolve
o tema da paranóia, indo buscar o apoio em uma história clínica. Na tessitura do
arcabouço teórico da paranóia, principalmente no que se refere aos componentes
homossexuais, Freud apóia suas elaborações em suas próprias vivências. É nessa
perspectiva que ele vai buscar, no livro de Schreber, elementos para suas intuições
teóricas. Quando conclui a tradução de um artigo de Putnam, escreve a Jung
dizendo (carta 214F, de 01/10/1910):
Esse trabalho interrompeu meu estudo de Schreber, que agora devo
retomar. Na Sicília eu não passei da metade do livro, mas o mistério já
ficava claro. A redução ao complexo nuclear é fácil. (...) Para a
felicidade da psiquiatria esse pai era também médico. Comprova-se
pois, mais uma vez, o que notamos em tantos casos paranoides
quando estive em Zurique, a saber, a impossibilidade de evitar a
recatexia das próprias inclinações homossexuais em que os paranóicos
se encontram. Com isso o caso se enquadra em nossa teoria.
Vejo que o senhor anda a encarar o trabalho como eu, deixando o
caminho óbvio para seguir sua própria intuição. Este é, a meu ver, o
procedimento mais correto; para nosso grande espanto, todas as voltas
145
que damos revelam-se mais tarde absolutamente lógicas (McGuire,
1993, pp. 371-372).
A correspondência freudiana pode ser comparada, sem dúvida nenhuma, a
um diário de campo. Nela, encontramos, através da elaboração dada a diversos
temas, o gérmen de suas teorias. Freud lança uma hipótese, a qual busca contrastar
com os exemplos clínicos de que dispõe e, no caso de Schreber, vai buscar uma
história clínica que possa servir de pano de fundo, de contextualização de suas
intuições teóricas. Na mesma carta a Jung (carta 214F, de 01/10/1910) citada
anteriormente, Freud (McGuire, 1993) complementa:
Durante a viagem fiz algum progresso nessa teoria, o qual pretendo
agora pôr à prova contra o histórico clínico de Schreber e várias outras
publicações sobre a paranóia. Comparada às intenções originais, a
coisa está porém tão incompleta que não sei quando a poderei publicar
nem que extensão virei a dar-lhe. É provável que se converta num
estudo sobre Schreber e muita gente de achar que eu extraí toda a
teoria do livro (p. 371).
Sabe-se que o problema da paranóia inquietava Freud algum tempo; e
estivera presente em sua relação com Fliess. Por isso, não me furtarei a mais uma
referência as suas cartas. Em 1908, em uma carta datada de 18 de fevereiro (carta
70F), Freud afirma a Jung:
Meu ex-amigo Fliess desenvolveu uma paranóia horrível depois de se
livrar da afeição por mim, que era sem dúvida considerável. Devo esta
idéia a ele, i. e., ao comportamento dele. O desajuste das sublimações
na paranóia entra no mesmo contexto. Não são poucas, ao todo, as
idéias incipientes e incompletas que tenho para lhe expor (McGuire,
1993, p. 153).
Sabemos, através dos dados que a história nos legou, que, além de Daniel
Paul Schreber, também Fliess e Ferenczi sucumbiram à paranóia. De fato, na
origem da psicanálise, encontramos a luta de Freud para impor suas idéias e
manter sua orientação diante das teorias desviantes que tentavam conceber uma
“ciência sexual” paranóica a partir de um discurso científico. Fliess é um exemplo
patente disso, com a elaboração de sua teoria, a qual poderia perfeitamente se
integrar ao livro de Schreber, e que concebia ciclos periódicos de descarga por
vias normal ou substitutiva de um fluxo. Tendo como marco a regulação do
mundo pela menstruação, Fliess desloca para o nariz ele que era
rinolaringologista – o órgão privilegiado para dar vazão a essa descarga.
146
André (1987) mostra com propriedade como Fliess transforma seu nome
em uma lei universal. Em alemão, o verbo fliessen tem o sentido de fluir e das
fliessquer dizer “isso flui” ou, simplesmente, “flui”, na medida que, na língua
alemã, ao contrário de na portuguesa, não existe a possibilidade de uma oração
sem sujeito. Freud consegue desvencilhar-se da sedução da teoria científico-
paranóica do Dr. “Flui”, ainda que não consiga impedir as influências deste no
seio do movimento psicanalítico. Karl Abraham, por exemplo, sucumbe à
tentação e entrega-se a um tratamento com Fliess alguns meses antes de falecer,
vítima de tuberculose. Todavia, Abraham acreditava que sua doença confirmava
as idéias fliessianas de periodicidade.
Outro a sucumbir à paranóia foi Ferenczi. Segundo Jones (1979), a saúde
mental de Ferenczi mostrava-se conturbada no início de 1930 e se agravaria a
sua morte, em 1933, mas uma conversa com Freud naquele ano pareceu ter
apaziguado as divergências ocultadas durante anos, principalmente quanto às
queixas de Ferenczi sobre a unilateralidade nas relações dele com Freud. Aquele a
quem Freud muitas vezes chamara de filho nutria divergências teóricas
inconfessas. Nas palavras de Jones:
A última carta de Ferenczi, escrita da cama em 4 de maio, eram umas
poucas linhas para assinalar o aniversário de Freud. A perturbação
mental vinha fazendo progressos rápidos nos últimos meses. Relatava
ele como uma sua paciente americana, a quem costumava devotar
quatro ou cinco horas diárias, o havia analisado e dessa maneira o
pusera curado de todas as suas afecções. Através do Atlântico vinham
mensagens da paciente a ele Ferenczi fora sempre um firme crente
na telepatia. Em seguida enumerava as decepções acerca da suposta
hostilidade revelada por Freud. Já no fim de sua vida, ocorreram
violentos ataques paranóicos e mesmo homicidas, a que se seguiu a
morte repentina, a 24 de maio (pp. 728-729).
Como indiquei, a construção teórica do edifício psicanalítico e o
conseqüente convívio dos psicanalistas com seus pares no seio da nova
comunidade que formaram revelam um entrelaçamento de relações transferenciais
e contratranferenciais nem sempre devidamente trabalhadas. A correspondência
de Freud mostra como os elementos ligados ao entendimento da paranóia
necessitaram, antes de mais nada, ser compreendidos no âmago das relações
estabelecidas com seus colegas e discípulos, na qualidade de alteridades para a
construção de sua psicanálise. Freud resistiu à sedução paranóica, arrancando-a de
suas relações principalmente no que diz respeito à figura e à importância de
147
Fliess em sua vida –, para transformá-la em teoria. Destarte, Freud rejeita a
concepção paranóica da psicanálise ao conceber a teoria psicanalítica da paranóia.
Nesse sentido, posso afirmar que, se Freud tem êxito onde os paranóicos
fracassam, isso se deve menos à capacidade de reinvestimento das pulsões
homossexuais do que ao fato de ter concebido uma teoria científica da paranóia,
ou seja, uma teoria da paranóia dentro de um discurso científico sem se deixar cair
na armadilha das concepções paranóicas da ciência. Saliento que a paranóia de
Schreber sua teoria, sua cosmogonia não foi absorvida ainda que oferecida à
ciência. Compreende-se, então, por que Freud (1911/1969) conclui seu ensaio
afirmando que o futuro há de mostrar se há mais delírio do que gostaria de admitir
em sua teoria ou mais verdade no delírio de Schreber.
A importância do caso Schreber é capital por mostrar esse momento de
articulação teórica. Ao redigir o seu ensaio “Notas Psicanalíticas Sobre um Relato
Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia paranoides)”, Freud
(1911/1969) resolve sua relação transferencial com Fliess, oferecendo uma teoria
científica da paranóia. Por outro lado, a neurologia de Flechsig, com quem Freud
rivalizara, também se mostrava inadequada ou insuficiente no tratamento do
Presidente Schreber, como as “Memórias” tornaram patente.
Destarte, os elementos em jogo na concepção do caso Schreber de Freud
(1911/1969) e basta lembrar que ele se referira ao caso como sendo o ‘meu’
Schreber
43
não são completamente conscientes para ele ao escrever. As
transferências em jogo, verdadeiro pano de fundo da obra produzida, podem ser
tomadas como o contexto sobre o qual Freud tece sua teoria. Nesse sentido, cabe
ressaltar, além das dificuldades no relacionamento com Ferenczi comentadas, a
proximidade com Jung e a consideração a algumas de suas idéias o que fica
patente no pós-escrito, sem falar na ainda presente influência de Fliess, como
mostrarei mais adiante.
É importante lembrar que Freud (1969/1914), ao explicar a dinâmica da
transferência em Recordar, Repetir e Elaborar”, usa a palavra Zwischenreich
(reino intermediário) para descrever a condição artificial existente entre a doença
e a vida real do paciente deflagrada pela transferência. É nesse campo
43
Lacan também se refere a Schreber como “nosso paciente” (ver Lacan, 1959/1998, p.
545).
148
diferenciado que o paciente oferece seu sofrimento à escuta psicanalítica e,
somente aí, as interpretações e construções feitas pelo analista ganham sentido. O
Zwischenreich passa a ser o palco onde a fala trazida pelo paciente fala esta
oferecida ao Outro – poderá revelar a outra cena.
Freud (1900/1972) tomou emprestado de Fechner a expressão ‘uma outra
cena’ (ein anderer Schaupaltz), a qual indica que, em se tratando da formação
onírica, a cena que aparece nos sonhos é sempre diferente da cena da vigília. A
concepção de que o que está em jogo na análise é da ordem de uma outra cena
aponta, com precisão, para a dimensão inconsciente, para o seu funcionamento. O
discurso do paciente, então, remete sempre a outra coisa, e, através do discurso,
ele vai figurando em palavras a sua fantasia, a qual tem sentido em
transferência, onde pode ser interpretada ou construída e, posteriormente,
elaborada. É por isso que a reprodução das falas em uma análise freqüentemente
suscita o estranhamento, a sensação de algo fora de lugar e até mesmo pode
provocar o riso naqueles que desconhecem o seu processo. A nomeação de um
espaço específico, um intervalo, um contexto ou qualquer outra maneira de
designarmos o Zwischenreich freudiano é extremamente precisa. Só então, o
psicanalista dará azo as suas conjeturas metapsicológicas, transfigurando, isto é,
construindo, uma ficção capaz de representar os elementos teóricos em jogo.
O Presidente Schreber oferece a Freud (1911/1969) a possibilidade de uma
investigação a partir de um texto escrito. No seu livro “Memórias de um Doente
dos Nervos”, encontramos a sistematização do delírio schreberiano acrescida do
apêndice, onde podemos ler um ensaio de Schreber intitulado “Em que Condições
uma Pessoa Considerada Doente Mental Pode ser Mantida Reclusa em um
Sanatório Contra sua Vontade Manifesta”, escrito no início de 1900, com o intuito
de ter assegurada sua plena condição civil. Não indícios de que essa peça
jurídica seja, ela mesma, uma apresentação delirante. Como anexos, aparecem: (a)
o laudo médico-legal redigido pelo Dr. Weber em nove de dezembro de 1899; (b)
o laudo dico distrital, de 28 de novembro de 1900, também redigido pelo Dr.
Weber; (c) a fundamentação do recurso, escrita por Schreber em 23 de julho de
1901; (d) o laudo pericial do Conselheiro Dr. Weber, em cinco de abril de 1902; e
(e) a sentença da Corte de Apelação de Dresden, de 14 de julho de 1902.
Freud (1911/1969) acredita encontrar no texto schreberiano um campo
aberto à investigação pela falta de segredo o contrário do que se espera em uma
149
estrutura neurótica –, ainda que o material sofra uma certa distorção. Assim, ele
não chega a conhecer pessoalmente o paciente, o qual morre pouco depois da
publicação do ensaio freudiano. Isso quer dizer que Freud não se preocupou em
demasia com os dados factuais, mesmo que haja indicação de que recebera
informações do Dr. Stegmann sobre a família Schreber. Um dado cronológico
tomado da história clínica do paciente é utilizado por Freud para questionar a
assertiva de Schreber de que sua doença tenha sido causada pelo excesso de
trabalho.
Na medida em que Freud (1911/1969) se baseia no material apresentado
pelo próprio doente e busca, através do recurso da narratividade, oferecer um
modelo explicativo crível para a paranóia, os dados da história do paciente devem
ser examinados de maneira crítica. Dessa forma, Freud consegue estabelecer um
outro entendimento em relação tanto à teoria pessoal de Schreber quanto à teoria
psiquiátrica vigente à época. Freud apresenta, então, uma terceira posição em
relação àquelas duas, marcando a interpretação psicanalítica como diferente.
Freud (1911/1969) atém-se, sim, aos dados da história clínica e à descrição
pormenorizada dos delírios schreberianos através dos pareceres psiquiátricos
redigidos pelo Dr. Weber, mas para afirmar que o interesse da psiquiatria não vai
além de determinar a presença do delírio e sua influência na vida do paciente. Já,
para a psicanálise, o interesse recai sobre os motivos de uma tal transformação,
aprofundando-se nas particularidades ou nos pormenores do delírio e na história
de seu desenvolvimento. Freud mostra interesse nos aspectos desprezados pela
psiquiatria clássica, valendo-se da singularidade em jogo, o que nos faz pensar na
atenção dada aos detalhes dissonantes das Memórias”. O que aparece como algo
inusitado não é o delírio de ser o redentor do mundo, mas o delírio de eviração.
Ainda quanto à importância dada aos detalhes, Freud (1911/1969) diz, em
uma nota de rodapé, que não é raro encontrar, na descrição schreberiana, uma nota
incidental sobre algum aspecto da teoria delirante que aponta para a sua gênese e,
dessa forma, indica o seu significado. Como são muitos os elementos em jogo na
análise psicanalítica, Freud também acaba por utilizar notas de rodapé explicativas
para a melhor compreensão do sistema delirante e notas que fazem alusão a outros
aspectos.
A notas de rodapé, principalmente quando não se trata de trazer alguma
informação adicional explicativa, como data, tradução e esclarecimento, acabam
150
por estabelecer uma interpretação interpolada. Fica claro que o uso desse
expediente, normalmente evitado na escritura científica, tem aqui o seu lugar por
mostrar como o discurso ocorre em diferentes níveis, formando uma peça única,
mas aberta a distintas vias de trabalho. É comum que o exame de algum
significante, de alguma singularidade aparentemente anódina figure em uma nota
de rodapé, o que rapidamente nos faz pensar nos elementos que caem do discurso
principal para baixo da barra que separa o texto da nota de rodapé. Essa forma de
apresentação das idéias mostra, de maneira espacial, as possibilidades de
desdobramento significante, e, com freqüência, encontramos, nas notas,
importantes elementos para as pesquisas psicanalíticas.
É verdade que Schreber se utiliza do recurso da nota de rodapé de forma
exaustiva. Todavia, sua tentativa é a de tornar o texto uma peça mais uniforme, na
qual tudo esteja explicado e inter-relacionado. As notas de Schreber, quando não
explicativas, fazem a ligação entre duas passagens diferentes, integrando-as.
Dessa forma, servem como by pass entre elementos a fim de que nada lhe escape.
Ainda assim, como Freud (1911/1969) afirmou com muita prioridade, as notas de
rodapé são terrenos férteis para a pesquisa psicanalítica.
Usando o recurso da citação, Freud (1911/1969) localiza o ponto nodal do
sistema delirante de Schreber no delírio de eviração. Aliás, o único a persistir
mesmo após se ter restabelecido. Outro ponto observado é quanto ao método
encontrado em sua loucura. Freud examina com cuidado os conceitos
schreberianos de nervos, beatitude – que poderia ser mais bem traduzido por bem-
aventurança –, hierarquia divina e atributos de Deus, e faz a crítica ao fato de o
relatório médico fazer-nos pensar que se trata de uma forma comum de fantasia de
redentor. Destarte, Freud conclui que, apenas num estágio posterior de sua
formação delirante, Schreber revela a importância de sua relação com Deus para o
resto da humanidade e sua identificação com Jesus Cristo.
O cuidadoso exame do texto faz Freud (1911/1969) relacionar o conceito
do estado de beatitude a uma condensação dos significados da palavra alemã
selig. Nela, encontramos a acepção de alguém falecido, como na expressão ‘meu
falecido pai’, e a de uma sensação de felicidade sensual, como na acepção
151
encontrada no verso ‘Ah, ser teu até a eternidade, como eu seria feliz
44
’ [a
tradução é minha] da ópera Don Giovanni. Essa ligação leva o psicanalista a
avaliar a atitude do paciente em relação a sua vida sexual e a encontrar seu
transtorno psíquico.
Schreber não contradiz a teoria psicanalítica. Em seu caso, Freud
(1911/1969) também encontra o papel preponderante da sexualidade,
principalmente em sua atitude feminina para com Deus, a relação singular que
estabelece com Ele. O tratamento que Schreber a esse tema, segundo Freud, é
exaustivo; e cita várias passagens que corroboram sua afirmativa. Isso leva o
psicanalista a estabelecer que o delírio de se transformar em mulher é a realização
de seu estranhamento hipnopômpico.
No capítulo dedicado a uma tentativa de interpretação, Freud (1911/1969)
deixa claro como pretende abordar o texto de Schreber. Há duas vias para o
trabalho: na primeira, seguem-se as declarações delirantes do paciente e, na
segunda, as causas que fizeram irromper a doença. Freud entende poder realizar
sua tarefa dentro da primeira orientação, devido ao alto nível intelectual do
paciente. O próprio paciente acaba por indicar a chave para a interpretação, ao
oferecer, mesmo que de maneira aparentemente fortuita, um exemplo, um
comentário ou uma citação, ou quando ele busca negar alguma associação.
Destarte, a técnica psicanalítica habitual pode ser aplicada, ou seja, suprimir a
forma negativa da frase, tomar o exemplo pela própria coisa e a citação ou o
comentário pela fonte original.
Tendo em vista essa técnica interpretativa, Freud (1911/1969) oferece
como ilustração o entendimento dado aos ‘pássaros miraculados’ do delírio
schreberiano. O autor liga algumas críticas que costumam ser feitas às moças,
como o fato de serem comparadas a gansos, de terem ‘miolos de passarinho’, de
usarem frases aprendidas de cor e da facilidade com que confundem palavras
estrangeiras de sons parecidos. Como o paciente acaba dando nome de moças a
grande parte das ‘almas-pássaros’, em função de que sua curiosidade e
voluptuosidade fazem-no compará-las às menininhas, Freud a confirmação
de sua interpretação.
44
Já, dein zu sein auf ewig, wie selig werd’ ich sein.
152
Advertindo o leitor neófito para o que está por vir, Freud (1911/1969)
afirma que os limites precisos para a fidedignidade dos resultados estão
prejudicados e são dependentes de outros experimentos e de maior conhecimento
do assunto pelo fato de grande parte do material ter sido suprimida. A censura ao
terceiro capítulo das Denkwürdigkeiten”, onde Schreber descrevera pessoas e
situações familiares, obstrui uma visão mais clara do caso e certamente suprime
elementos fundamentais.
Marcando sempre diferença em relação aos relatórios psiquiátricos, Freud
(1911/1969) busca elementos desprezados nas demais abordagens. A importância
do Dr. Flechsig no delírio de Schreber é trabalhada por Freud. Ao examinar a
duplicação ou os desdobramentos de Deus, o autor conclui que no sistema
delirante estudado Deus representa o pai de Schreber enquanto Flechsig
representa o irmão. Aqui, Freud antecipa-se às informações que,
posteriormente, confirmariam que o irmão falecido se tratava como havia
previsto – de um irmão mais velho.
Quero destacar que Freud (1911/1969) tomou o cuidado de fazer
referência às páginas da obra original de Schreber. Dessa forma, podemos
verificar que o texto proposto é composto de citações ora do início do livro, ora do
fim ou de seu meio. A força da argumentação freudiana está no aspecto de
construção de idéias realizadas através da ligação de diferentes passagens,
pinçando, daqui e dali, elementos que colaborem para o modelo explicativo que
quer oferecer, pois não nos esqueçamos que ele busca o caso Schreber para
expressar teorias anteriormente concebidas.
Outro aspecto observado é quanto às referências a outros autores. Assim,
vemos Freud (1911/1969) propor uma pequena variação no conceito de ‘protesto
masculino’ de Adler e utilizar-se de sugestões de Jung, de Ferenczi ou ainda
recorrer aos ciclos fliessianos na idéia de um climatério masculino, dando
respaldo a sua argumentação. Quanto às soluções explicativas, o autor chega
mesmo a desculpar-se pela monotonia das soluções dadas pela psicanálise.
Todavia, é por esse caminho que ele atinge o terreno familiar do complexo
paterno na produção do delírio em questão.
O eloqüente delírio de Schreber, contudo, o explica a forma assumida
pelos sintomas. Dessa feita, Freud oferece uma teoria para dar conta do problema
153
da paranóia, destacando a clara presença do fracasso de uma defesa contra o
desejo homossexual, o qual é o cerne da conflitiva desse transtorno.
Nesse momento, Freud (1911/1969) introduz o conceito de narcisismo
como sendo um estádio do desenvolvimento da libido entre o auto-erotismo e o
amor objetal. A demora nesse estádio acarreta que suas características sejam
levadas para os estádios posteriores. Assim, uma escolha objetal homossexual
precede uma escolha heterossexual. Todavia as tendências homossexuais passam
a integrar as pulsões sociais, contribuindo como fator erótico na amizade, na
camaradagem, no espírito de grupo e no amor à humanidade.
Se o ponto nodal do conflito paranóico masculino é a fantasia de desejo
homossexual de amar um homem, Freud (1911/1969) propõe verdadeiras
fórmulas gramaticais. Aqui, reside uma clara tentativa do que chamo de
transfiguração da fantasia delirante do paciente a partir dos traços (Zügen)
recolhidos e presentes nas paranóias em geral. Essas construções formais são
resumidas nas seguintes assertivas: ‘eu (um homem) o amo (um homem). Então,
essa máxima é desdobrada conforme o tipo de delírio em jogo. No delírio de
perseguição, temos como resposta à formulação primeira: ‘eu não o amo eu o
odeio’. A partícula ‘eu o odeiotransforma-se em ele me odeia (persegue)’. Por
fim, temos a idéia logicamente apresentada: ‘eu não o amo eu o odeio, porque
ELE ME PERSEGUE’.
O mesmo processo é utilizado por Freud (1911/1969) para explicar o
delírio na erotomania, o delírio de ciúme (em alcoólicos e em mulheres) e, por
fim, na megalomania. Freud monta, em cada um dos casos citados, uma
construção formal, na qual podemos observar as transformações do investimento
libidinal sendo aplicáveis a todos esses casos.
O texto freudiano propõe mais elementos para explicar a paranóia. A
projeção é o conceito utilizado para dar conta da formação de sintomas na
paranóia, ainda que possa ser encontrada em outros transtornos psíquicos.
Todavia, Freud (1911/1969) deixa o tema da projeção para uma investigação
futura, que nunca foi concluída.
Destarte, é sobre o conceito de recalcamento que Freud (1911/1969) se
debruça. Ele evidencia três fases do recalcamento, a saber: na primeira, acontece
uma fixação – precursora de todo recalcamento. Nela, uma determinada pulsão ou
componente pulsional é deixado para trás, num estádio infantil. Na segunda fase,
154
o recalcamento propriamente dito, e, na terceira, acontece a irrupção, com o
conseqüente retorno do recalcado.
Utilizando-se da projeção, Freud (1911/1969) afirma que a concepção
escatológica schreberiana é a projeção da catástrofe internamente sentida pela
retirada do investimento libidinal das pessoas e do mundo externo, voltando-se
para ele próprio. Isso explica a expressão ‘homens feitos às pressas’ utilizada pelo
paciente. A partir daí, o paranóico reconstrói esse mundo destruído, e o delírio,
sempre entendido como um produto patológico, é a tentativa de restabelecimento,
é o próprio processo de reconstrução. Esse dado tem a função de um traço (Zug)
distintivo da estrutura paranóica revelado pela escansão significante dos detalhes
do delírio de Schreber.
Ao dar uma nova explicação para a formação delirante, Freud (1911/1969)
marca uma diferença em relação ao entendimento psiquiátrico, cumprindo com
seu objetivo esboçado no início de seu artigo. Ao final, ele, que não teve receio de
aceitar o desafio de Schreber de uma investigação científica da loucura, espera ter
triunfado sobre o delírio. Esse ponto mostra que, se Freud teme ser acusado de
conceber uma teoria delirante, é porque suas explicações não deixam de se dar no
terreno da ficção, ainda que sejam ficções metapsicológicas. Para tornar
inteligível o phantasieren do paciente, Freud oferece uma ficção metapsicológica.
O caso do Presidente Schreber (Freud, 1911/1969) mostra, claramente, a
dimensão de uma transfiguração proposta por Freud a partir da leitura das
“Denkwürdigkeitenschreberianas. A figuração produzida por Schreber revela-se,
descrita de uma maneira o vívida e tão alheia às defesas que tanto nos
concernem, um campo verdadeiramente fértil para o trabalho do analista. É
preciso lembrar que a obra de Schreber não tem a intenção de oferecer aos leitores
momentos de satisfação literária, ao contrário, é um texto denso, o qual
testemunho de um padecimento oferecido ao entendimento científico. O estatuto
de verdade estará mais evidente, quanto mais ‘neuroticamente’ estruturado for um
discurso.
Por discurso neuroticamente estruturado, entenda-se o discurso que o se
ofereça como Todo discurso, ou seja, um discurso da certeza, sem falha, sem
lugar para o jogo significante. A cosmologia schreberiana é um exemplo de um
discurso que conta de todas as possibilidades, e a ausência de furo remete à
155
falta da operação da metáfora paterna em Schreber, como teoriza Lacan
(1959/1998).
O momento em que Lacan (1959/1998) se debruça sobre as Memórias”
de Schreber é, seguramente, diverso do de Freud. O tema da paranóia ocupara
Lacan em sua tese de doutorado, e ele conta com formulações teóricas bastante
próprias. Há, também, no campo, a preponderante influência kleiniana, cuja
conseqüência, para Lacan, é a de um desvirtuamento do pensamento freudiano.
Com o objetivo de fazer uma releitura de Freud, Lacan (1959/1998) não só
retifica determinados postulados freudianos, como oferece novos aportes teóricos
ao campo psicanalítico. Um exemplo de correção é relativo à homossexualidade.
Para Lacan, a homossexualidade não é determinante na paranóia, mas um sintoma
articulado ao seu processo. Esse simples aspecto faz adernar o modelo explicativo
freudiano da paranóia. Todavia Lacan também oferece uma melhor direção para o
aspecto de recalcamento na psicose. A partir de uma atenta leitura do original
alemão, Lacan detecta um traço (Zug) próprio à estrutura psicótica no termo
Verwerfung, alçando-o a um conceito basilar da psicanálise e traduzindo-o por
foraclusão. A atenção dada aos significantes em jogo no texto freudiano aponta
para a maneira lacaniana de interpretação.
Outro aspecto é que o seu “De uma Questão Preliminar a Todo Tratamento
Possível da Psicose” é uma espécie de resumo do seu seminário sobre as psicoses.
Isso quer dizer que é dependente das teorizações já consolidadas pelo estudo de
Lacan até aquele momento. Esse estudo pressupõe a leitura tanto de Schreber
quanto de Freud. Diferentemente de Freud (1911/1969), Lacan não oferece uma
leitura exaustiva de Schreber. Ele não apresenta um caso metapsicológico
narrativo, como Freud. Todavia seu estudo é mais pontual, porque é obrigado a
levar em conta os aspectos que não ficaram suficientemente resolvidos por Freud.
Talvez possamos dizer que Lacan não está imbuído da idéia de apresentar um
‘caso clínico’ oferecido por Freud –, mas de tirar, do caso, todas as
conseqüências clínicas possíveis.
Nesse sentido, vemos, em Lacan (1959/1998), um trabalho rigoroso, mas
nem sempre fácil de ser seguido, onde a transfiguração dos elementos recolhidos
do delírio schreberiano, somado às indicações de Freud, ganham a forma de
esquemas. Lacan, ao longo de seu ensaio, vai construindo esquemas, nos quais ele
apresenta, à maneira de um esboço as relações e funções destacadas com fins
156
operatórios. Em última instância, esses esquemas são ficções capazes de transmitir
aspectos estruturais, sem o concurso do imaginário e buscando emanciparem-se
das palavras de seu autor. Nesse aspecto, os esquemas, os matemas, as figuras
topológicas e os nós oferecem imagens teóricas que facilitam a transmissão do
saber psicanalítico.
Allouch (1995) refere que a leitura dos clássicos casos freudianos
‘Presidente Schreber’ e ‘Pequeno Hans’ realizada por Lacan pode ser mais
rigorosa e precisa ao valorizar o testemunho indireto, o qual daria o tom a uma
possível clínica do escrito. O modelo de um testemunho indireto foi retirado da
“Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” (Lacan,
1967/2003) onde vemos a nomeação de novos ‘analistas de escola’(AE) título
que recebiam na ocasião depender do testemunho dos analistas nomeados como
‘passadores’. Allouch acredita que podemos encontrar todo o peso dado por
Lacan ao testemunho indireto alçado à qualidade de um dispositivo.
O testemunho indireto, parece encaixar-se bem ao testemunho feito a partir
das leituras e estudos. Lacan uma excelente oportunidade de verificarmos a
força do testemunho indireto em relação aos estudos de Freud, por exemplo.
Inclusive, Allouch (1995) afirma que solidariedade entre o testemunho indireto
e a tomada do caso como caso. É interessante que o autor acabe utilizando a
expressão ‘caso como caso’, a qual coincide com o título dado por mim a um dos
estudos constate do projeto de Tese e abandonado, segundo orientação da banca,
para a versão final. Ainda assim, esta Tese não deixa de examinar o caso do
Presidente Schreber como um caso.
Ao sustentar a idéia de que o caso metapsicológico é sempre do analista, e,
aqui, devemos entender o caso metapsicológico como aquele a ser publicado e
oferecido à comunidade psicanalítica, eu enfatizo, ao contrário do que preconiza
Allouch (1995), o aspecto de testemunho direto dado pelo analista de sua prática
clínica. O caso metapsicológico é o testemunho da clínica.
Sabendo que, em psicanálise, jamais buscamos ratificar os dados
fornecidos pelo paciente, a construção metapsicológica de caso será testemunho
direto dado pelo psicanalista de seu posicionamento teórico no campo
psicanalítico. Em relação ao paciente tratado cujo caso foi transformado em caso
metapsicológico, ele não deve servir de fiador do testemunho que seu analista
realiza. Que o paciente o seu testemunho do que foi seu tratamento enquanto
157
paciente, isso não implica tornar mais ou menos verdadeiro a construção
metapsicológica de caso, uma vez que o próprio paciente não pode dar conta da
dimensão metapsicológica em jogo em sua análise.
Retomando o ponto principal desta Tese, quero destacar que, ao falar, o
paciente produz imagens calcadas nos traços (Spuren) deixados como marcas das
impressões em seu aparelho psíquico, as quais são constituintes e inacessíveis. Os
detalhes anódinos, por outro lado, são capazes de revelar o traço privilegiado
(Zug), ressignificando a fantasia do paciente, por guardar relação significante com
os demais elementos.
Se acompanharmos a indicação dada por Freud na carta a Fliess de 10 de
março de 1898 (Masson, 1986) quanto à fase pré-histórica da vida da criança
mais especificamente entre um e três anos de idade –, a fantasia é produzida por
aquilo que é ouvido nessa fase, ao contrário dos sonhos, que o formados pelo
que é visto no mesmo período. A partir daí, fica mais claro que, quando dou à
fantasia um lugar privilegiado nesta Tese, não é por seu aspecto de imagem, mas
por sua condição significante.
Então, posso afirmar que o Phantasieren é o negativo da ficção
metapsicológica, posto que essa é uma tarefa consciente e pré-consciente dando
relevo à fantasia inconsciente. É nisso que a ficção ganha seu sentido para a
psicanálise. A fantasia, ainda que a tomarmos em sua aparência imagética, não é
traduzível, tanto quanto o sonho, para a psicanálise. Ambos, sonho e fantasia,
devem ser tomados como Bilderschrift (escritura em imagens), nas quais a leitura
psicanalítica não se deve apoiar no Bildwert (valor de imagem), mas no seu valor
significante.
Ao darmos preferência a uma tradução do material recolhido de uma
análise ou de um sonho modelo, nós estaremos fixando um sentido em detrimento
dos demais, trabalho esse que é absolutamente imaginário. O trabalho explicativo
do sonho, a Deutung, que rege a Traumdeutung, por exemplo, indica apenas uma
possibilidade do sentido acentuando o jogo significante, revelando sua força na
estrutura. Por outro lado, a psicanálise trabalha com cada detalhe em sua
diferenciação singular em correspondência aos elementos vizinhos, em uma
leitura literal regida pela letra. Allouch (1995) nomeia essa forma de leitura como
transliteração, uma operação que transfere o que se escreve para outra maneira de
se escrever. Essa leitura literal é ler com o escrito, o que pode ser designado como
158
deciframento, já que escrever o escrito é cifrá-lo. Isso esclarece a diferença entre o
que seria uma tradução de um sonho e a indicação de um sentido outro.
Assim, essa operação implica o desfazimento de uma produção imagética
de uma figuração oferecida pelo paciente à escuta analítica. Todavia, se o
psicanalista estiver imbuído de oferecer à comunidade psicanalítica um caso
metapsicológico, seu trabalho será o de uma construção ficcional na qual os
elementos em jogo ganharão uma nova imagem transfigurada em palavras,
uma imagem teórica. Isso, se admitirmos, de saída, que falar e escrever é conceber
imagens, ainda que contra a nossa vontade consciente. Essa imagem pode ser
apresentada pelas máximas teóricas retiradas de um caso ou de esquemas, como
os concebidos por Freud, ou pela apresentação de um grafo, um matema, uma
figura topológica ou um nó, como propôs, magistralmente, Lacan em seu ensino.
A transfiguração, quer numa apresentação mais descritiva e imaginária
como a freudiana, quer numa apresentação mais próxima das fórmulas algébricas
como a preconizada por Lacan, extrai dos traços (Zügen) o que eles revelam de
uma estrutura, na tentativa de transmitir o saber psicanalítico aproximando a
psicanálise da ciência.
Os achados teóricos levantados pelo psicanalista-pesquisador não
necessitam, necessariamente, do recurso de um caso para a sua apresentação.
Todavia, a história clínica ainda mostra sua importância, quando se quer fazer
ligações entre o padecimento de um paciente e os elementos em jogo. Destarte, o
que se constrói é um caso metapsicológico, o qual terá efeitos sobre o fazer
clínico na comunidade psicanalítica, ainda que esse caso seja preparado a partir de
um material escrito e de maior apelo imaginário, como no caso Schreber, de
Freud. Por isso, a ficção joga papel decisivo para a demonstração dos aspectos
metapsicológicos estudados, ainda que, quanto mais simbólica for sua
apresentação transfigurada (matemas, esquemas, grafos), maior a chance de uma
adequada transmissão do saber psicanalítico.
Concluindo, proponho definir o caso metapsicológico como pertencendo
ao psicanalista, no que o caso Schreber é um exemplo modelar, exatamente pelo
fato de um tratamento não poder estar vinculado diretamente ao exercício e ao
aperfeiçoamento teóricos a partir do sofrimento de um paciente e pelo fato de as
elaborações metapsicológicas não visarem, diretamente, à melhora do paciente em
atendimento, posto que são produtos elaborados no só-depois dos tratamentos.
159
REFERÊNCIAS
Abbagnano, N. (2003). Dicionário de Filosofia (Ivone Castilho Benedetti, Trad.).
São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1971)
Adorno, T. (1965). Der Essay als Form. Frankfurt: Suhrkamp.
Allonnes, C. R. (1989) La démarche clinique en sciences humaines: documents et
méthodes. Paris: Bordas.
Allouch, J. (1995) Letra a letra: transcrever, traduzir, transliterar. (Dulce Duque
Estrada, Trad.). Rio de Janeiro: Companhia de Freud. (Originalmente
publicado em 1994)
André, S. (1987). O que quer uma mulher? (Dulce Duque Estrada, Trad.). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar editor. (Originalmente publicado em 1986)
Assoun, P.-L. (1983). Introdução à epistemologia freudiana (H. Japiassu, Trad.).
Rio de Janeiro: Imago (Originalmente publicado em 1993)
Assoun, P.-L. (1996). Metapsicologia freudiana: uma introdução (Dulce D.
Estrada, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1993)
Barth, L. F. B. (2003). As relações entre o estádio do espelho e o transtorno
específico do desenvolvimento da função motora em crianças: uma
construção metapsicológica de caso. Dissertação de Mestrado não-publicada,
Curso de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Barthes, R. (1977). Roland Barthes por Roland Barthes (Leyla Perrone-Moisés,
Trad.). São Paulo: Cultrix. (Originalmente publicado em 1975)
Benz, J. N. e Newman, J. (1998). Research methodology: qualitative
quantitative. Southern: Illinois University Press.
160
Bergès, J. e Balbo, G. (2001). A atualidade das teorias sexuais infantis. (F. F.
Settineri, Trad.). Porto Alegre: CMC Editora.
Birman, J. (1994). Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor.
Borch-Jacobsen, M. (1995). Souvenirs d’Anna O.: une mystification centenàire.
France: Aubier.
Caon, J. L. (1994). O Pesquisador psicanalítico e a situação psicanalítica de
pesquisa. Psicologia: Reflexão e Crítica, 7, (2), 145-174.
Caon, J. L. (1996). Psicanálise <> Metapsicologia. Em Slavutsky e cols. (Org.).,
História, clínica e perspectiva dos cem anos de psicanálise. Porto Alegre:
Artes Médicas.
Caon, J. L. (2000/2001). Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica de
Serguéi Constantinovitch Pankejeff, o “Homem dos Lobos”. Pulsional:
revista de psicanálise, 140/141, 22-44.
Carnap, R. (1929). Der logische Aufbau der Welt. Berlin: Höfmann.
Chemama, R. (1987). O demônio da interpretação (Eliana A. N. do Vale, Trad.).
Jornal Che Vuoi? 1, 3-6.
Chiantaretto, J.-F. (1999). Cas et contre-cas. Em P. Fédida e F. Villa (Orgs.)., Le
cas en controverse. Paris: PUF.
Corvo, R. E. L. (1999). Uma visão epistemológica do inconsciente (Olga C.
Rouco, Trad.). Revista de psicanálise da sociedade psicanalítica de Porto
Alegre, 6, 3.
Costa, A. M. M. da. (1998). A ficção de si mesmo: interpretação e ato em
psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
161
Cyssau, C. (1999). Fonctions théoriques du cas clinique. Em Fédida, P e F. Villa
(Orgs.)., Le cas en controverse. (pp. 59-82) Paris: PUF.
D’Agord, M. R. de L. (2005). Um método para estudo e construção do caso em
psicopatologia. Ágora: estudos em teoria psicanalítica, 8, (1),107-122.
D’Agord, M. (2000/2001). Uma construção de caso na aprendizagem. Pulsional:
revista de psicanálise, 140/141, 12-21.
Dor, J. (1996). Clínica psicanalítica (Maria L. Homem, Trad.). Porto Alegre:
Artes Médicas. (Originalmente publicado em 1994)
Dumézil, C. (Org.).(1989). Le trait du cas: le psycanalyste à la trace. France:
Point Hors Ligne.
Falzeder, E., Brabant, E. & Giampieri, P. (1994). Sigmund Freud & Sándor
Ferenczi: correspondência (1908-1911) (Vol. 1). (Claudia Cavalcanti e
Suzana K. Lages, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.
Fédida, P. (1989). Modalidades da comunicação na transferência e momentos
críticos da contratransferência (Cláudia Berliner, Trad.). Em P. Fédida
(Org.)., Comunicação e representação. (pp. 91-123). São Paulo: Escuta.
(Originalmente publicado em 1986)
Fédida, P. (1991a). A construção. Introdução a uma questão da memória na
supervisão. (Martha Gambini, Trad.). Em Nome, figura e memória. A
linguagem na situação psicanalítica. (pp. 171-181). São Paulo: Escuta.
(Originalmente publicado em 1991)
Fédida, P. (1991b). A construção do caso. (M. Gambini e C. Berliner, Trad.). Em
Nome, figura e memória. A linguagem na situação psicanalítica. (pp. 215-
236). São Paulo: Escuta. (Originalmente publicado em 1991)
162
Ferreira, A. B. de H. (1999). Novo Aurélio século XXI: o dicionário da ngua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Figueiredo, L. C. (2000). Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis, RJ:
Vozes.
Figueiredo, A. C. (Org.). (2001). Psicanálise: pesquisa e clínica. Rio de Janeiro:
IPUB/CUCA.
Figueiredo, A. C., Nobre, A e Vieira, M. A. (2001). Pesquisa clínica em
psicanálise: a elaboração de um método. Em A. C. Figueiredo (Org.),
Psicanálise: pesquisa e clínica. (pp. 11-23). Rio de Janeiro: IPUB/CUCA.
Flem, L. (1988). A vida cotidiana de Freud e seus pacientes (Antonio C. Viana,
Trad.). Porto Alegre: L&PM. (Originalmente publicado em 1986)
Freud, E. L. e Meng, H. (Org.). (1998). Cartas entre Freud e Pfister (1909-1939):
um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. (Karin H. K. Wondracek e
Ditmar Junge, Trad.). Viçosa: Ultimato. (Originalmente publicado em 1963)
Freud, S. (1969). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso
de paranóia (Dementia Paranoides). Em J. Salomão (Org.)., Edição brasileira
das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 13-108). Rio de Janeiro:
Imago. (Originalmente publicado em 1911)
Freud, S. (1969). Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a
técnica da psicanálise II). Em J. Salomão (Org.)., Edição brasileira das obras
completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 191-203). Rio de Janeiro: Imago.
(Originalmente publicado em 1914)
Freud, S. (1972). A interpretação de sonhos. Em J. Salomão (Org.)., Edição
standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vols. 4 e 5). Rio
de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1900)
163
Freud, S. (1972). Fragmento da análise de um caso de histeria. Em J. Salomão
(Org.)., Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud
(Vol. 7, pp. 1-119). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em
1905)
Freud, S. (1972). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Em J. Salomão
(Org.)., Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud
(Vol. 7, pp. 123-250). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em
1905)
Freud, S. (1972). Epistolário I (1873-1890). (Joaquin Merino Perez, Trad.).
Barcelona: Plaza & Janés Editores. (Originalmente publicada em 1960)
Freud, S. (1973). Psychoanalytische Bemerkungen über einen autobiographisch
beschriebenen Fall von Paranoia (Dementia paranoides). Em Sigmund Freud
Studienausgabe (Vol. 7, pp. 133-203). Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag.
(Originalmente publicado em 1911)
Freud, S. (1974). Estudos sobre a histeria. Em J. Salomão (Org.)., Edição
standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 2, pp. 13-
367). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em partes, entre 1893
e 1895)
Freud, S. (1974). O interesse científico da psicanálise. Em J. Salomão (Org.).,
Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 13,
pp. 195-226). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1913)
Freud, S (1974). Discurso pronunciado na casa de Goethe em Frankfurt. Em J.
Salomão (Org.)., Edição standard brasileira das obras completas de
Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 241-246). Rio de Janeiro: Imago.
(Originalmente publicado em 1930)
164
Freud, S. (1975). Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci. Em Sigmund
Freud Studienausgabe (Vol. 10, pp. 87-159). Frankfurt am Main: S. Fischer
Verlag. (Originalmente publicado em 1910)
Freud, S. (1975). Rätschläge für den Artz bei der psychoanalytischen
Behandlung. Em Sigmund Freud Studienausgabe (Vol. Suplementar, pp.
170-180). Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag. (Originalmente publicado
em 1912)
Freud, S. (1975). Der Moses des Michelangelo. Em Sigmund Freud
Studienausgabe (Vol. 10, pp. 195-222). Frankfurt am Main: S. Fischer
Verlag. (Originalmente publicado em 1914)
Freud, S. (1975). Konstruktionen in der Analyse. Em Sigmund Freud
Studienausgabe (Vol. Suplementar, pp. 393-406). Frankfurt am Main: S.
Fischer Verlag. (Originalmente publicado em 1937)
Freud, S. (1975). Algumas lições elementares de psicanálise. Em J. Salomão
(Org.)., Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud
(Vol. 23, pp. 313-321). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em
1940)
Freud, S. (1975). Esboço de psicanálise. Em J. Salomão (Org.)., Edição standard
brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 23, pp. 165-237).
Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1940)
Freud, S. (1976). Charcot. Em J. Salomão (Org.)., Edição standard brasileira das
obras completas de Sigmund Freud (Vol. 3, pp. 19-34). Rio de Janeiro:
Imago. (Originalmente publicado em 1893)
Freud, S. (1976). A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos.
Em J. Salomão (Org.)., Edição standard brasileira das obras completas de
Sigmund Freud (Vol. 9, pp. 99-115). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente
publicado em 1906)
165
Freud, S. (1976). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. Em J.
Salomão (Org.)., Edição standard brasileira das obras completas de
Sigmund Freud (Vol. 10, pp. 13-154). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente
publicado em 1909)
Freud, S. (1976). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. Em J. Salomão
(Org.)., Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud
(Vol. 10, pp. 155-317). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em
1909)
Freud, S. (1976). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Em J. Salomão
(Org.)., Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud
(Vols. 15 e 16). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em partes
entre 1915 e 1917)
Freud, S. (1976). História de uma neurose infantil. Em J. Salomão (Org.)., Edição
standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 17, pp. 11-
153). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1918)
Freud, S. (1976). Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. Em J. Salomão
(Org.)., Edição standard brasileira das obras de Sigmund Freud (Vol. 17,
pp. 215-220). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1919)
Freud, S. (1976). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher.
Em J. Salomão (Org.)., Edição standard brasileira das obras completas de
Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 181-212). Rio de Janeiro: Imago.
(Originalmente publicado em 1920)
Freud, S. (1976). Psicologia de grupo e análise do ego. Em J. Salomão (Org.).,
Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol 18,
pp. 87-179). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1921)
166
Freud, S. (1976). A perda da realidade na neurose e na psicose. Em J. Salomão
(Org.)., Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud
(Vol. 19, pp. 227-234). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em
1924)
Freud, S. (1976). Uma nota sobre o “Bloco Mágico”. Em J. Salomão (Org.).,
Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 19,
pp. 283-290). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1925)
Freud, S. (1976). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Em J.
Salomão (Org.)., Edição standard brasileira das obras completas de
Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 11-220). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente
publicado em 1933)
Freud, Sigmund (1977). Prefácio e notas de rodapé à tradução de Leçons du
Mardi, de Charcot. Em J. Salomão (Org.)., Edição standard brasileira das
obras completas de Sigmund Freud (Vol. 1, pp. 191-195). Rio de Janeiro:
Imago (Originalmente publicado em 1892)
Freud, S. (1988). Sigmund Freud Brautbriefe: Briefe an Martha Bernays aus den
Jahren 1882 bis 1886. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag.
(Originalmente escritas entre 1882-1886)
Freud, S. (2004). À guisa de introdução ao narcisismo. Em L. A. Hanns (Org.).,
Obras psicológicas de Sigmund Freud (Vol. 1, pp. 95-131). Rio de Janeiro:
Imago. (Originalmente publicado em 1914)
Freud. S. (2004). Pulsões e destinos da pulsão. Em L. A. Hanns (Org.)., Obras
psicológicas de Sigmund Freud (Vol. 1, pp. 133-173). Rio de Janeiro: Imago.
(Originalmente publicado em 1915)
Freud, S e Andreas-Salomé, L. (1975). Correspondência completa. Rio de
Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1966)
167
Garcia-Roza, L. A. (1998). Introdução à metapsicologia freudiana. Vol 2. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Gardiner, M. (1983). El Hombre de los Lobos por el Hombre de los Lobos.
Buenos Aires: Nueva Visión.
Hoppe, M. W. (2000/2001). Do modelo narrativo à escritura do fato clínico: o
drama do paciente e o caso do analista. Pulsional: revista de psicanálise,
140/141, 56-62.
Iribarry, I. N. (2003). O que é pesquisa psicanalítica? Ágora: estudos em teoria
psicanalítica, 6 (1), 115-138.
Jones, E. (1979). Vida e obra de Sigmund Freud. (Marco Aurélio de Moura
Mattos, Trad.). Rio de Janeiro: Editora Guanabara. (Originalmente publicado
em 1961)
Lacan, J. (1985). Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (M. D. Magno,
Trad.). Em J.-A. Miller (Org.)., O seminário (livro 11). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1964)
Lacan, J. (1985). Mais, ainda. (M. D. Magno, Trad.). Em J.-A. Miller (Org.)., O
seminário. (livro 20). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Originalmente
publicado em 1975)
Lacan, J. (1988). A ética da psicanálise. Em J.-A. Miller (Org.)., O seminário
(livro 7). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Lacan, J. (1992). A transferência. (Dulce Duque Estrada, Trad.). Em J.-A. Miller
(Org.)., O seminário (livro 8). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
(Originalmente publicado em 1991)
168
Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. (Vera
Ribeiro, Trad.). Em Escritos (pp. 238-324). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor. (Originalmente publicado em 1956)
Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose. (Vera Ribeiro, Trad.). Em Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1959)
Lacan, J. (1999). As formações do inconsciente. (Vera Ribeiro, Trad.). Em J.- A.
Miller (Org.), O seminário (livro 5). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
(Originalmente publicado em 1998)
Lacan, J. (2003). Apresentação das memórias de um doente dos nervos. (Vera
Ribeiro, Trad.). Em Outros escritos (pp. 219-223). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1966)
Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da
escola. (Vera Ribeiro, Trad.). Em Outros escritos (pp. 248-264). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1967)
Lacan, J. (2003). Introdução de Scilicet no título da revista da Escola Freudiana de
Paris. (Vera Ribeiro, Trad.). Em Outros escritos (pp. 288-298). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1968)
Lacan, J. (2003). O aturdito. (Vera Ribeiro, Trad.). Em Outros escritos (pp. 448-
500). Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1972)
Lalande, A. (1999). Vocabulário técnico e crítico da filosofia (Fátima S. Correa,
Maria E. V. Aguiar, José E. Torres, Maria G. de Souza, Trad). São Paulo:
Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1926)
Laplanche, J. e Pontalis, J.-B. (1991). Vocabulário de psicanálise (Pedro Tramen,
Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1967)
169
Mannoni, M. (1982). A teoria como ficção: Freud, Grodeck, Winnicott, Lacan.
(R. C. de Lacerda e W. Dutra, Trad.). Rio de Janeiro: Campus.
(Originalmente publicado em 1979)
Mannoni, O. (1973). Chaves para o imaginário. (Lígia Maria Pondé Vassallo,
Trad.). Petrópolis: Vozes.
Mannoni, O. (1994). Freud: uma biografia ilustrada. (M. L. X. de A. Borges,
Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em
1968)
Masson, J. M. (Org.). (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud
para Wilhelm Fliess – 1887-1904 (Vera Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro:
Imago.
McGuire, W. (Org.). (1993). A correspondência completa de Sigmund Freud e
Carl G. Jung. (Leonardo Fróes e Eudoro A. M. de Souza, Trad.). Rio de
Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1974)
Melman, C. (2006) Retorno a Schreber. (Conceição B. Fleig, Trad.). Porto
Alegre, CMC. (Originalmente publicado em 1999)
Mezan, Renato (1988). Pode-se ensinar psicanaliticamente a psicanálise? Em A
vingança da esfinge: ensaios de psicanálise. (pp. 168-183). São Paulo:
Brasiliense.
Mezan, Renato (2002). Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das
Letras.
Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia (Procópio Abreu,
Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em
1995)
170
Moura, A e Nikos, I. (2000/2001). Estudo de caso, construção de caso e ensaio
metapsicológico: da clínica psicanalítica à pesquisa psicanalítica. Pulsional:
revista de psicanálise, 140/141, 69-76.
Nasio, J.-D. (1992). Os 7 conceitos cruciais da psicanálise. (Vera Ribeiro, Trad.).
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1988)
Nasio, J.-D. (1995). O olhar em psicanálise. (Vera Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1992)
Nasio, J.-D. (2001). O que é um caso? Em J.-D. Nasio (Org.)., Os grandes casos
de psicose (pp. 9-32). (Vera Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor. (Originalmente escrito em 2000)
Newman, I e Benz, C. R. (1998). Qualitative-quantitative research methodology:
exploring the interactive continuum. Carbondale: Southern Illinois University
Press.
Nusinovici, V. (1994). O traço de um caso e a irrupção da transferência. Em C.
Melman, C. Lacôt & R. Chemama (Orgs.), A fobia (pp. 170-179). Rio de
Janeiro: Revinter.
Obholzer, K. (1993). Conversas com o homem dos lobos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar.
Ricoeur, P. (1988). Interpretação e ideologias (Hilton Japiassu, Trad.). Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora.
Rillaer, J. V. (1980). Les illusions de la psychanalyse. Liège: Pierre Mardaga
Editeur.
Roudinesco, E. (2000). Por que a psicanálise? (Vera Ribeiro, Trad.). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1999)
171
Safouan, M. (1991). A transferência e o desejo do analista (Leda M. F.
Bernardino, Trad.). Campinas, SP: Papirus. (Originalmente publicado em
1988)
Santner, E. L. (1997). A Alemanha de Schreber: uma história secreta da
modernidade. (Vera Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Schreber, D. P. (1984). Memórias de um doente dos nervos. (Marilene Carone,
Trad.). Rio de Janeiro: Graal. (Originalmente publicado em 1903)
Schlick, M. (1980). Sentido e Verificação (Luiz J. Baraúna, Trad.). Em Os
pensadores. São Paulo: Abril Cultural. (Originalmente publicado em 1936)
Sousa, E. L. A. de (2000). (A vida entre parênteses) O caso clínico como ficção.
Psicologia Clínica, 12, (1), 11-19.
Souza, A. M. de (1988). Transferência e interpretação: ensaio clínico lacaniano.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Souza, P. C. (2003, setembro). Aproximações entre Freud e Machado de Assis.
Trabalho apresentado no XI Congresso da Associação Latino-americana de
Estudos Germanísticos (ALEG), São Paulo, Brasil.
Stake, R. E. (1994). Handbook of qualitative research. Londres: Sage.
Stein, E. (1997). Anamnese: a filosofia e o retorno do reprimido. Porto Alegre:
EDIPUCRS.
Vilanova, A. (2001). Clínica e transmissão: o que a morte pode nos ensinar disso?
Em Psicanálise: pesquisa e clínica (pp. 25-55). Rio de Janeiro: Edições
IPUC/CUCA.
172
White, H. (1994). Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura (Alípio
C. de F. Neto, Trad.). São Paulo: Edusp Editora da Universidade de São
Paulo. (Originalmente publicado em 1978)
Willemart, P. (2005). Crítica genética e psicanálise. São Paulo: Perspectiva.
Woolf, V. (1978). Orlando. (Cecília Meireles, Trad.). Rio de Janeiro: Nova
Fronteira. (Originalmente publicado em 1928)
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo