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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
A IMAGI-NAÇÃO COMO TEMPORALIDADE:
O PENSAMENTO DE EDUARDO PRADO E
SEUS OUTROS NA ELABORAÇÃO DA ONTOLOGIA
NACIONAL EM FINS DO SÉCULO XIX
CARLOS HENRIQUE ARMANI
DEZEMBRO, 2007
Tese apresentada como requisito
parcial e último para obtenção do título de
Doutor em História, linha de pesquisa
Sociedade, Ciência e Arte, sob orientação da
Profa. Dra. Ruth Maria Chittó Gauer e co-
orientação do Prof. Dr. Rui Cunha Martins.
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CARLOS HENRIQUE ARMANI
A IMAGI-NAÇÃO COMO TEMPORALIDADE:
O PENSAMENTO DE EDUARDO PRADO E
SEUS OUTROS NA ELABORAÇÃO DA ONTOLOGIA
NACIONAL EM FINS DO SÉCULO XIX
Tese apresentada como requisito parcial e
último para obtenção do título de Doutor em
História, linha de pesquisa Sociedade, Ciência e
Arte, sob orientação da Profa. Dra. Ruth Maria
Chittó Gauer (PUCRS) e co-orientação do Prof. Dr.
Rui Cunha Martins (Universidade de Coimbra).
Aprovada com grau 10,0 em 09 de janeiro de 2008, pela seguinte banca
examinadora:
Profa. Dra. Ruth Maria Chittó Gauer (orientadora - PUCRS)
Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza (PPG em Filosofia – PUCRS)
Prof. Dr. Temístocles Cezar (UFRGS)
Prof. Dr. Mozart Linhares da Silva (UNISC)
Profa. Dra. Elisabeth Cancelli (USP)
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Esta tese é dedicada a muitas pessoas que estão sempre
comigo e com as quais com-partilho a minha existência:
À minha amável e amada esposa, Flávia Alves Armani,
que esteve comigo em todos os momentos bons, ruins e não
classificáveis de construção da tese, o que implica o estar
lançado em nossas circunstâncias, algumas vezes pouco
favoráveis ao labor acadêmico. Flávia, sem o teu apoio e o teu
amor, eu não escreveria a minha (nossa) tese. Muito obrigado
por ser e estar sempre comigo!
Aos meus pais, Adelmo Armani e Renata Wagner
Armani, que sempre me estimularam a trilhar as veredas do
estudo.
Ao meu irmão, Renato Luis Armani, à minha cunhada
Nara Silva Armani e ao meu sobrinho-afilhado-amiguinho
Gabriel Silva Armani que, com seus quase dois aninhos, tem me
ensinado muito.
À memória de meus avós maternos (Emílio Wagner e
Irma Brune Wagner) e paternos (Alfredo Armani e Dorotéia
Armani), cujo aumento da distância de nossas com-vivências é
inversamente proporcional às lembranças boas que tenho delas.
Ao longo da elaboração final da tese, quando a Flávia e
eu estávamos em Coimbra, perdemos, no lado de cá do
Atlântico, uma das pessoas mais queridas e amáveis que pude
conhecer e que adotei como minha avó. Vó Noêmia, que sempre
soube muito, foi mãe e avó, ou Avohai. Mais do que uma
dedicatória, Vó Noêmia mereceria uma tese à parte. Como não
tenho tal competência para fazê-lo, deixo apenas o registro de
algumas palavras que possam expressar, mesmo que
precariamente e muito aquém do seu merecimento, minha
gratidão a ela, que tantas vezes rezou, falou, cantou e torceu
pela Flávia e por mim. Saudades...
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço ao CNPq, pela concessão da bolsa no Brasil, e à
CAPES, pela bolsa durante meu estágio de doutoramento realizado na
Universidade de Coimbra, em Portugal. Sem esse suporte material, essa tese
certamente seria inviabilizada;
À PUCRS e ao Programa de Pós-Graduação em História que sempre
disponibilizaram uma ótima estrutura para a realização do trabalho doutoral;
À secretária Carla Helena Carvalho, por toda a sua eficiência, generosidade
e amizade de longa data, e ao secretário Davi Estácio Diniz, pelas boas conversas
de corredores e bate-papos sobre o cotidiano existencial;
Ao amigo “português” Anselmo Alves Neetzow, que pude reencontrar em
Coimbra, no eterno retorno da atividade acadêmica, cujas conversas de todos os
tipos deixaram muitas saudades – palavra que aprendi a repetir depois de morar
em Coimbra;
Ao amigo marroquino Mohammed Nadir, cuja estada no Brasil foi um dos
momentos mais agradáveis que pude vivenciar ao longo do meu doutoramento;
À Secretaria do Instituto de História e Teoria das Idéias da Universidade de
Coimbra, pelo ótimo acolhimento no atendimento de minhas demandas;
Ao professor Rui Cunha Martins, meu co-orientador e amigo desde os
tempos do mestrado. Obrigado por todo o suporte oferecido em Coimbra e pela
orientação formal e informal, as quais muito aproveitei;
Ao professor Ricardo Timm de Souza, do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da PUCRS – minha segunda morada acadêmica – cujas aulas e
interlocuções foram providencias para a construção teórica da tese deste iniciante
em filosofia;
Aos professores Fernando Catroga e Alexandre Franco de Sá, que
gentilmente permitiram que eu assistisse aos seus cursos na Universidade de
Coimbra;
À professora e ex-colega Mara Rodrigues, pelos contatos finais que foram
extremamente importantes para a formação da banca de avaliação da tese;
A todos os meus alunos, ex-alunos, professores e ex-professores, que
sempre contribuíram, de um modo ou de outro, para que eu revisse, reescrevesse
e aperfeiçoasse, não sem certa resistência, o meu trabalho. Em especial, fica
minha gratidão ao Departamento de História da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM) e a todos os amigos que fiz durante meu trabalho de docência no
“coração do Rio Grande”, sobretudo às turmas que me homenagearam em suas
festas de formatura;
Ao amigo cinéfilo e cineasta Alexandre Maccari Ferreira, que tem sido um
grande amigo desde os tempos de meu trabalho em Santa Maria;
À colega de doutorado Ângela Flach, que gentilmente me emprestou os
exemplares das Coletâneas de Eduardo Prado, além de outros materiais
providenciais para a tese;
Ao professor Helder Gordim da Silveira, pela gentileza em emprestar
diversos livros, igualmente providenciais, para a elaboração da tese;
Ao Milton “negão” Monteiro, amigo desde os tempos de infância e,
certamente, para os tempos de velhice...
Ao meu grande amigo e interlocutor de todas as horas e de todas as
situações, professor Hugo Arend, cuja amizade pretendo estender para o resto de
minha vida;
Ao meu outro grande amigo, professor Mauro Gaglietti, que em momentos
muito difíceis de minha vida acadêmica, esteve lá – e aqui – para dar um grande
apoio, juntamente com sua esposa, Márcia Barbosa. Muito obrigado!
Misto de gratidão e dedicatória, serei eternamente agradecido à minha
amável, querida e sempre amiga, Ruth Maria Chittó Gauer. Muito mais do que a
orientadora desta tese, a Ruth é uma mãe. Querida Ruth: sem a presença da
turbulência epistemológica das tuas idéias em meus fundamentos de pensar a
história, eu estaria não no eterno retorno mítico da temporalidade nietzscheana,
mas na circularidade sempre redundante do burro de olaria. Obrigado pela
orientação e pela amizade!
5
“Quando falo de diferença real
estou a referir-me a algo que as palavras
jamais poderão exprimir, relativo, absoluto,
cheio, vazio, ser ainda, não ser já, que é
isso, senhor director, porque as palavras,
se o não sabe, movem-se muito, mudam
de um dia para o outro, são instáveis como
sombras” (José Saramago, Intermitências
da morte).
“Trastempo. Mais outras coisas
sobrevinham, mas por roda normal do
mundo, ninguém podia afiançar o
contrário” (Guimarães Rosa, Grande
sertão: veredas).
RESUMO
Investigamos a relação entre temporalidade e identidade nacional no
pensamento de Eduardo Prado e de alguns de seus principais interlocutores de
fins do século XIX, tomando como núcleo de problematização o Brasil e seus
exteriores constitutivos identitários, o que implica a mobilidade histórica não
somente do conceito de identidade nacional brasileira, mas de toda a ontologia
circunstancial que o constitui, tal como as idéias de Europa, de América Hispânica
e de América Inglesa. Propomos que a questão da temporalidade, quando
pensada na sua relação tensa com o conceito de nação, não era uma
exclusividade da Europa, mas dimensão fundamental do pensamento que se fez
ocidental, incluindo os intelectuais brasileiros como um todo.
ABSTRACT
We investigate the relation between temporality and national identity in the
thought of Eduardo Prado and some of his interlocutors in the end of the
nineteenth century, taking as a core issue Brazil and their idenditary constitutive
outsides which implies the historical mobility not just in relation to Brazilian national
identity but all circumstancial ontology that composes it, such as the ideas of
Europe, Hispanic America and English America. We propose that the temporality
question when thought in its tense relation to the concept of nation was not an
exclusiveness of Europe but a fundamental dimension of thought that constituted
itself as Western, including Brazilian intellectuals as a whole.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................ P.11- 27
CAPÍTULO 1 – EM BUSCA DO SER PERDIDO: OS INTELECTUAIS
BRASILEIROS E A QUESTÃO DA TEMPORALIDADE EM FINS DO SÉCULO
XIX .................................................................................................................... P. 28
1.1 – Preâmbulo ....................................................................................... P. 28 - 29
1.2 – O pensamento de Eduardo Prado e o esfacelamento do ser..... P. 30 - 36
1.3 – Modernidade e tempo .................................................................... P. 36 - 55
1.4 – A modernidade finissecular nas duas pontas do Ocidente........ P. 55 - 71
1.5 – Imagi-nação e representação ........................................................ P. 71 - 81
CAPÍTULO 2 – O BRASIL E A SUA PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO ONTOLÓGICA
EXTERIOR: A EUROPA................................................................................... P. 82
2.1 – Preâmbulo ....................................................................................... P. 82 - 85
2.2 – A idéia de Europa ........................................................................... P. 85 - 95
2.3 – A Inglaterra como sujeito nacional/imperial .............................. P. 96 - 121
2.4 – Portugal entre a mesmidade e a outridade do Brasil ............. P. 121 - 140
CAPÍTULO 3 – AINDA O EXTERIOR CONSTITUVO COMO HORIZONTE DE
SIGNIFICAÇÃO DA NAÇÃO: AS AMÉRICAS .............................................. P. 141
3.1 – Preâmbulo .................................................................................... P. 141- 143
3.2 – A idéia de América ..................................................................... P. 143 - 149
3.3 – O Ocidente ao sul do Equador: as Américas Hispânicas ...... P. 149 - 170
3.4 – A América Anglo-Saxônica: os Estados Unidos .................... P. 170 - 191
CAPÍTULO 4 – O BRASIL E A IDENTIDADE NACIONAL EM DE-CISÃO .. P. 192
4.1 – Preâmbulo ................................................................................... P. 192 - 194
4.2 – A vela de barco em retalhos: A República Brasileira como interior
transitivo da nação .............................................................................. P. 195 - 196
4.2.1 – O bacharelismo e o militarismo.................................................. P. 196 - 201
4.2.2 – O positivismo e o ateísmo ........................................................ P. 201 - 214
4.2.3 – O individualismo e a fragmentação ........................................... P. 214 - 221
4.3 – O interior constitutivo ou a civilização brasileira em seu ser.. P.221 - 222
4.3.1 – A ontologia política .................................................................... P. 222 - 231
4.3.2 – A ontologia religiosa .................................................................. P. 232 - 235
4.3.3 – A ontologia da miscigenação..................................................... P. 236 - 244
4.3.4 – A ontologia da natureza e da história.......................................... P.244 - 255
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................. P. 256 - 262
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................... P. 263 - 278
10
INTRODUÇÃO
“O senhor sabe o mais que é, de se
navegar sertão num rumo sem termo,
amanhecendo cada manhã num pouso diferente,
sem juízo de raiz? Não se tem onde se acostumar
os olhos, toda firmeza se dissolve” (Guimarães
Rosa, Grande sertão: veredas).
I
Como definir o ser? Essa foi a pergunta que Graça Aranha, em sua Estética
da vida, fez a si mesmo e a seus leitores. “Restrinjamos”, continuou o autor, “a
nossa impossibilidade a este axioma: o ser é o ser. É a substância com os
fenômenos e só nós o conhecemos pelos fenômenos”
1
. Ainda na mesma obra, o
autor de Canaã disse que “em cada povo há um traço característico que, embora
enigmático, é persistente, vem do passado e será o mesmo no futuro”
2
. Nessas
duas passagens, Aranha definiu a ontologia nacional, aquele traço que
perpassaria todos os tempos e se manteria intocável na identidade do povo. Por
outro lado, seu axioma tautológico, de que o ser era o ser, evocava o próprio ser
como enigma e impossibilidade. Perguntamos: articular temporalidade, ontologia e
nação não seria problematizar o ser nacional em seu fenômeno, o que evoca (e
provoca), na ontologia e na nação, suas dimensões temporais mais radicais? Eis o
problema que rege a presente tese.
Para sermos mais precisos: objetivamos investigar, a partir de um enfoque
centrado na história das idéias, o tema da temporalidade e sua relação com a
construção da ontologia nacional em finais do século XIX. Demarcamos como
campo privilegiado de exame o Brasil e o pensamento de um de seus intelectuais
mais combativos em termos de polêmicas intelectuais acerca da nação: Eduardo
Prado. Tendo em vista que a maior parte de sua produção intelectual não
1
ARANHA, Graça. A estética da vida. [1921]. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1969, p. 585.
2
ARANHA, op. cit., p. 619.
ultrapassou os primeiros anos do século XX (Prado nasceu em 1860 e morreu em
1901), o trabalho foi delimitado entre os anos 80 do século XIX e os primeiros
anos do século XX
3
.
Eduardo Prado foi membro de uma rica família de cafeicultores de São
Paulo e um dos principais intelectuais de fins do século XIX. Formou-se em Direito
na Faculdade de São Paulo e trabalhou como jornalista e historiador. Prado ainda
foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e sócio-correspondente
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Manteve sua vida dividida entre a
fazenda do Brejão, no interior de São Paulo, e Paris. Não produziu uma obra muita
extensa, em razão da morte de febre amarela que interrompeu a sua curta carreira
intelectual, aos 41 anos de idade. Em termos políticos, o escritor foi um dos
principais articuladores do Partido Monarquista em São Paulo, posição política da
qual ele jamais se desfez
4
. Como grande parte dos pensadores de fins do século
no Brasil, Eduardo Prado foi um polemista notável, sobretudo depois da queda do
regime monárquico, em 1889, quando sua posição enquanto um ontólogo da
nação se definiu de modo mais preciso
5
.
De maneira mais circunscrita, investigamos o pensamento de Eduardo
Prado e de uma pletora de intelectuais contemporâneos a ele, cujo pensamento
estava direta ou indiretamente relacionado com o tema da temporalidade e da
ontologia nacional. Tomamos esses intelectuais como interlocutores ou como
pensadores cujas obras tinham alguma relação com a produção intelectual do
3
Entendemos, com Hobsbawm, que o século XIX somente terminou historicamente depois de
iniciado o século XX em termos cronológicos, ou seja, a partir da Primeira Guerra Mundial, que
esfacelou a civilização ocidental do século XIX e os seus ideais cientificistas, burgueses, liberais e
eurocêntricos. Ver: HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p.15-
16. Demarcações rigorosamente cronológicas desse gênero não informam muita coisa. Elas
servem apenas para constituir alguns pressupostos primários de inteligibilidade em relação ao
período que investigamos, bem como para definir a maior parte dos documentos com os quais
trabalhamos.
4
Alguns aspectos biográficos aparecem ao longo da tese. Por ora, cabe citar três livros que trazem
muitas informações importantes acerca de Prado e do seu círculo de relações. São eles: LEVI,
Darrell. A família Prado São Paulo: Cultura 70, 1974; MOTTA-FILHO, Cândido. A vida de
Eduardo Prado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967; PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua
época. São Paulo: O Cetro Editora, [s.d].
5
A expressão ontólogo da nação, em nosso entendimento, exprime a relação do pensamento do
autor com o tema da temporalidade e da identidade nacional na sua tentativa de fixação de um
caráter definitivo, uno e total para o Brasil. Bem sabemos que os conceitos de ontologia e de ser a
ele atrelado são polissêmicos, cuja história, ao longo da filosofia, tem sido campo de longos e
intermináveis debates.
12
autor e que abordaram, do mesmo modo, o problema da identidade nacional
brasileira e sua articulação circunstancial e acontecimental com o ser. Os
principais são: Araripe Júnior, Joaquim Nabuco e Eça de Queiroz. Outros
intelectuais aparecem ao longo da tese, de acordo com a relação que seu
pensamento tinha com a produção intelectual de Prado. Alguns deles são Oliveira
Martins, Manoel Bomfim, Graça Aranha, Raul Pompéia, Affonso Celso, Rui
Barbosa, Machado de Assis, Afonso Arinos, Ramalho Ortigão, Frederic Jackson
Turner, Lord Acton, Carlos Bunge, José Enrique Rodó, Antero de Quental e
mesmo autores como Simmel, Bergson, Dilthey e Nietzsche. Esse colocar lado a
lado autores cujo pensamento tinha pontos em comum nos permite dar uma
dimensão mais concomitante ao seu pensamento, um ser-estar-no-mundo
compartilhado com os outros
6
. As reflexões de Eduardo Prado não eram isoladas
de seu estar lançado no mundo finissecular, a facticidade de seu estar sendo. Na
condição de historiador, não é possível furtarmo-nos de pensar, mesmo que
precariamente, de-finições da época na qual o autor viveu. Desse modo, além de
Eduardo Prado, os sujeitos-investigados na tese são alguns dos principais
intelectuais de finais de século XIX e, especialmente, as idéias pradianas em torno
do Brasil e dos seus exteriores constitutivos: a América Hispânica, a América
Anglo-Saxônica, a Europa e o próprio Brasil republicano como um outro do Brasil
7
.
A idéia de relacionar a exterioridade e a interioridade da identidade nacional
é apenas um primeiro critério metodológico de estruturação da tese, tendo em
vista que a exterioridade é o limite-mobilidade da transgressão
8
, exterioridade sem
a qual os regimes de historicidade do pensamento de Eduardo Prado se fariam
6
HEIDEGGER, Martin. Ser y tiempo. Ciudad de México: FCE, 1974, § 26, p. 135.
7
Sempre que usamos o adjetivo pradiano para qualificar e definir o pensamento de Eduardo
Prado, o fazemos apenas como modo de evitar o uso em demasia de seu nome.
8
DERRIDA, Jacques. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 19. A cumplicidade teórica
com Derrida não vai além da idéia de trabalharmos com a historicidade dos conceitos na sua
insuficiência. Em que pese a possível acusação de fazermos uma leitura conservadora do autor,
na medida em que não seguimos adiante sua proposta de desconstrução do logocentrismo
ocidental, resolvemos manter uma certa lealdade teórico-metodológica com o autor, apesar de que
nosso posicionamento teórico está mais de acordo com a ontologia hermenêutica na linha
heideggeriana e gadameriana. Além do mais, é notável a contribuição heideggeriana para a
desconstrução da metafísica ocidental, tarefa que Derrida levou adiante. Ver, a propósito: STEIN,
Ernildo. Diferença e metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2000, p.42-67.
13
apenas como internos ao próprio ser da nação em sua vontade de autenticidade e,
portanto, de exclusividade ontológica. Assim, quando falamos de exteriores
constitutivos, o que temos em vista é articular as diversas demarcações
identitárias da nação como realidades do suplemento e da diferença. Significa
dizer: articular o tema da identidade nacional com a problematização da
temporalidade no pensamento de Eduardo Prado e dos seus outros não somente
em termos empíricos, mas também teórico-metodológicos, por meio da
investigação daquilo que, para o historiador das idéias, em termos de presença, se
vela e se desvela: a linguagem
9
. Não estamos preconizando que no pensar, o ser
tenha acesso à linguagem e que a linguagem seja a casa do ser
10
. Talvez o seja,
se o ser for conjugado em sua transitividade, em seu sempre-estar-já-em-questão.
A temporalidade, portanto, é a precariedade do conceito, sua
impossibilidade de formar representações unívocas da nação – este ser-estar-aí e
ser-estar com outros que supostamente constitui o destino coletivo do povo
11
- o
que torna instáveis os conceitos que a definem como tal. Os exteriores/interiores
constitutivos (e transitivos) oferecem essa mobilidade ao pensamento da nação na
condição de um devir-espaço do tempo (espaçamento)
12
, na medida em que eles
colocam nas fronteiras de sua própria indecidibilidade o suplemento da nação.
Quer dizer, o conjunto de circunstâncias histórico-existenciais que tornam possível
a ontologia, e não o contrário, seu ser-estar-aí que é temporal não por estar na
história, mas porque ele existe historicamente por ser temporal no fundo de seu
ser
13
.
O segundo procedimento metodológico, implicado no primeiro, e que
aparece a partir do capítulo dois é a apresentação de um arranjo temporal em que
9
Falamos em presença do passado por meio da linguagem porque seria difícil para o historiador
das idéias pensar em outra maneira de presentificar o passado senão pela arqui-escrita e pelo
rastro que a linguagem confere para o pensamento. A propósito dessa discussão, ver:
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Presence achieved in language (with special attention given to the
presence of the past). History and Theory., n. 45, October 2006, p. 323.
10
HEIDEGGER, Martin. Lettre sur l'humanisme. Paris: Aubier, 1989, p. 26-27. Edição bilíngüe
em francês e alemão. Em francês: “Le langage est la Maison de l’Etre. No original, em alemão: “Die
Sprache ist das Haus des Seins”.
11
HEIDEGGER, Ser y tiempo…, op. cit., § 72, p. 415.
12
DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p. 39.
13
HEIDEGGER, op.cit., § 72, p. 407.
14
ruptura, permanência, reprodutibilidade e progresso são as principais imagens da
temporalidade articuladas, de modo tenso, no pensamento de Eduardo Prado,
enquanto imagens plurívocas da nação e de sua temporalidade constitutiva de-
finida aqui como devir-nação. Tais imagens faziam o devir do próprio tempo,
dessa espacialidade feita possibilidade conceitual em sua peregrinação ontológica
na de-finição do dis-curso da nação no pensamento de Eduardo Prado e de seus
interlocutores.
Entendemos que a temporalidade era premissa constitutiva fundamental do
pensamento de Eduardo Prado em relação à nação, premissa que se desenvolveu
sobretudo por meio da relação entre temporalidade e linguagem: pensamento que
se fez dis-curso e de-finição. Por um lado, a mobilidade do curso, de outro, a
conceitualidade do finito. Duas perspectivas que se encontram na realidade tensa
e instável da temporalidade manifesta na linguagem e naquele sinal que a
desestabiliza – o hífen. A imaginação feita imagi-nação foi esse dis-curso do
espaço-nação e do tempo-nação feito ser e devir da temporalidade, o que
provocava uma fissura na própria possibilidade de imaginar a nação, deixando-nos
o rastro do passado na sua alteridade/mesmidade como imagi-nação.
Por se tratar de um estudo em que pretendemos dar mais mobilidade aos
conceitos – em razão mesmo de sua imersão temporal –, demarcar o trabalho em
uma totalidade teórica e metodológica implica o risco da des-historicização do
pensamento – risco do qual não estamos imunes – o que traria prejuízos
consideráveis para problematizar as idéias na sua historicidade. Apresentamos um
princípio metodológico, uma orientação para a condução do trabalho, mas a sua
postulação não é a preconização de um discurso do método. Seguramente, esse
discurso não será encontrado nessa tese. Por outro lado, essa não-reivindicação
do método também tem suas implicações em uma discussão sobre metodologia,
no sentido do “como fazer”. Nessa direção, a idéia geral que nos orienta na tese
está vinculada ao que temos chamado, na tradição recente das ciências humanas,
15
como hermenêutica ou o esforço cognitivo de compreensão do passado na sua
alteridade/mesmidade
14
.
A idéia de compreensão e de interpretação não é uma maneira simples de
identificação da hermenêutica como contraposta à explicação da ciência moderna.
Elas são muito mais a maneira como a hermenêutica pretende questionar os seus
princípios de método. Ao chamar a atenção para a articulação entre sujeito e
objeto em uma mesma mobilidade histórica, como sugere Gadamer
15
, tentamos
escapar dos grilhões teóricos da ciência moderna, de seu cerne asmático, bem
como da sua lógica quantitativa, totalizante e identificante, cuja tradução no plano
da história das idéias não parece proporcionar resultados satisfatórios.
É nesse sentido que pensamos a proposta “metodológica” dessa tese. Não
há, portanto, a reivindicação do método. A interpretação do pensamento de
Eduardo Prado e dos seus interlocutores realizada é a forma de expressão
pensada como a mais próxima não da verdade ou da essência, mas das lógicas
de mobilidade e historicidade do pensamento na sua articulação entre
temporalidade e nação.
Em linguagem gadameriana, diríamos que a consciência histórica como
hermenêutica não escuta beatificamente a voz que lhe chega do passado, mas, ao
refletir sobre a mesma, “recoloca-a no contexto em que ela se originou, a fim de
ver o significado e o valor relativos que lhe são próprios”
16
. Esse “comportamento
reflexivo diante da tradição”, complementa Gadamer, “chama-se interpretação”
17
.
Do ponto de vista das teorias da representação enquanto sustentáculos de
uma ontologia da subjetividade (seja em termos sociais, seja na sua correlação
metafísica mais ampla)
18
, mantemos uma posição de problematização em que a
indecidibilidade e a historicidade das dicotomias, bem como a tentativa de
14
A exemplo da dialética outrora, o termo hermenêutica tem sido utilizado com uma certa
sistematicidade. Ao longo da tese, faremos um esforço em não tornar a hermenêutica um mero
conceito de ilustração para a realidade móvel da empiria e da finitude do conhecimento.
15
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método. Salamanca: Sigueme, 1984, p. 625.
16
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 2003 p. 18.
17
GADAMER, op.cit., p. 18-19.
18
Como se pode depreender, há uma crítica da idéia de representação. Isso não quer dizer que
proponhamos invalidar as teorias da representação na sua totalidade. No primeiro capítulo,
algumas questões sobre a representação são discutidas de modo mais sistemático.
16
constituição de uma ontologia através da evocação do co-estar Brasil resultaram
da turbulência e das inquietações pensadas no fim do século. Centros e margens,
interior e exterior, totalidade e desagregação
19
, mesmo e outro, ser e devir, fundo
e aparência, transitividade e constitutividade, exterioridade e interioridade
objetividade e subjetividade, transcendência e imanência, aquém e além e todos
os binarismos que passaram pela ontologia relacional de significação do ser
nacional em um mundo cuja principal orientação era algo incerto e obscuro eram
algumas dessas ambivalências da nação que evocavam a temporalidade em seu
sentido de evanescência da realidade.
Portanto, averiguamos a possibilidade do pensamento de Eduardo Prado
acerca da identidade nacional ser concebido a partir da questão da temporalidade,
em um contexto histórico cujo eixo principal de reflexão passava pelo
deslumbramento em relação à temporalidade como pôr-em-questão o ser.
Significa, outrossim, reconhecer uma certa dificuldade em representar, através da
linguagem mimética e conceitual, a experiência histórica de um final de século
profundamente inquieto, no Brasil, nas Américas e na Europa, cuja nostalgia da
segurança hipostasiada na concepção de uma realidade que se apresentava
como definitiva ou que pelo menos tinha tal pretensão – a ontologia da nação –
era o fundamento do pensamento de Eduardo Prado e da maior parte de seus
interlocutores. Ameaças à sua plenitude vinham dos outros do ser, tais como o
devir, a aparência, o nada, o dever ser, a fragmentação, o conflito, a alteridade,
possibilidades conceituais profundamente imbricadas entre si, que conduziam o
ontólogo Eduardo Prado a lembrar que o “espírito humano tem sede de certeza e
quer sempre um ponto de apoio firme e estável”
20
.
Com esta tese, perseguimos suprir três lacunas: duas de ordem mais
empírica, na medida em que o pensamento de Eduardo Prado enquanto vinculado
a uma ontologia nacional não foi interpretado seguindo a sistemática adotada
nesta tese, nem o problema da temporalidade foi suficientemente tematizado no
19
Tomamos essa expressão emprestada de: SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade e
desagregação: sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1996.
20
PRADO, Eduardo. Discurso. [1898]. In: Coletâneas. São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana,
1904, vol. 3, p. 118-119.
17
pensamento da intelectualidade desse período; de ordem epistemológica, posto
que, em linhas gerais, nos estudos históricos e sociológicos sobre a identidade
nacional no Brasil, as teorias que predominam, na sua maior parte, estão
atreladas à construção de representações do Brasil que determinados grupos
sociais produziram em seus embates intelectuais, as quais não levam em
consideração, em termos teórico-metodológicos, a relação do pensamento da
nação com a temporalidade, em um ambiente de grandes dúvidas que
demarcavam simultaneamente o pessimismo, a esperança, a decadência, o
otimismo e a realidade fértil em recomeços, fins e morte: do Ocidente, da
civilização, de Deus, do cristianismo e, sobretudo, das nações.
Nesse sentido, os outros de Eduardo Prado remetem-nos não somente
para os seus interlocutores e contemporâneos, mas para as próprias
ambivalências no interior de seu pensamento manifesto, a evocação da diferença
e da transgressão do espaçamento como impossibilidade que tinha a identidade
de se fechar sobre si mesma, sobre “o lado de dentro de sua própria
interioridade”
21
, em razão de sua insuficiência constitutiva enquanto linguagem
unívoca, pronta e definida para instaurar o ser da nação.
Centralizamos a tese em Eduardo Prado como sujeito-investigado porque
seu pensamento esteve profundamente imbricado com diversas questões cruciais
para o pensamento da própria identidade nacional no Brasil – tais como a tarefa
de pensar temas como a autonomia nacional, a abolição da escravidão, a chegada
maciça de imigrantes europeus, a transição da Monarquia para a República, o
imperialismo e o capitalismo de fins do século, o surto especulativo que se seguiu
em torno da economia, um conjunto de guerras que se estenderam do Sul ao
Nordeste do Brasil, epidemias de doenças como tuberculose, febre tifóide e febre
amarela que colocavam o autor frente a frente com a realidade da morte, bem
como um processo de aproximação mais significativo do Brasil em relação aos
Estados Unidos
22
. Tratava-se de um conjunto de problemas sociais, econômicos,
21
DERRIDA, op. cit., p. 118.
22
Não pretendemos abordar tal questão de modo realista no sentido criticado por Bergson, como
se essas questões supostamente fora do pensamento constituíssem o fundo real de uma
imaginação feita epifenômeno de uma também suposta materialidade. A abordagem que fazemos,
18
culturais e políticos que se atrelavam às chamadas crises valorativas, morais e
institucionais que permeavam muitos pensadores no Brasil, nas Américas e na
Europa
23
. Essas questões não poderiam deixar de estar na pauta das discussões
que os intelectuais brasileiros travaram em finais do século XIX, balizando
profundamente o seu pensamento acerca da própria idéia de nação como
comunidade imaginada
24
.
Ao evocarmos a idéia de comunidade imaginada, forjada por Benedict
Anderson, devemos reconhecer que a tese ora apresentada tem uma
cumplicidade teórica com o seu livro homônimo. Como sabemos, Anderson
sugeriu que a compreensão das raízes culturais da nação moderna passava pela
sua relação com os imaginários religiosos e, em especial, com o tema da morte. O
autor afirmou que as mundividências religiosas tradicionais, tais como o
nessa direção, é mais fenomenológica no sentido de interpretar aquilo que se manifesta no
pensamento de Eduardo Prado.
23
Compreendemos que não existe um grau zero da relação Europa-América a partir do qual
poderíamos pensar as Américas e o Brasil a partir da Europa, ou o contrário, mas uma situação
epocal em que tal dicotomia se tornou incerta precisamente em razão da articulação de idéias que
dificilmente podiam ser percebidas como tendo uma genealogia, um ponto de origem, fosse na
Europa, fosse nas Américas, fosse exclusivamente no Brasil.
24
Falar em comunidade imaginada remete-nos a Benedict Anderson. Apesar de sua teoria a
respeito da nação como comunidade imaginada ser bem conhecida, vale a pena citá-la nessa
introdução. De acordo com o autor, a nação “é imaginada porque até os membros da mais
pequena nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros
membros dessa mesma nação, mas ainda assim, na mente de cada um existe a imagem de sua
comunhão”. A afirmação de Anderson tem o mérito, entre outros, de apreender o movimento não-
empírico que compõe a idéia de identidade, bem como a relação dessa construção com a imagem,
ou melhor, com as imagens constituídas do “muitos como um” – a nação. Nessa direção, é
pertinente aceitar a idéia de uma comunidade imaginada que forma um sistema de representação
cultural do ser nacional. Contudo, isso poderia implicar uma certa a-historicização dessa
construção. Compreendemos a idéia de comunidade imaginada apenas como um esforço dos
intelectuais aqui investigados em criar uma idéia de nação, não como uma totalidade, mas como
uma idéia-limite. Devemos ter a devida cautela na utilização da expressão “comunidade
imaginada” na medida em que ela pressupõe um gênero de consciência nacional que se reporta a
um imaginário social. Nessa direção, por um lado, partimos da idéia de comunidade imaginada
proposta por Anderson. Não obstante, há um distanciamento de sua hipótese no que toca ao
alcance dessa imaginação –o que se poderia denominar a receptividade das idéias acerca da
nação – e de sua homogeneidade através da imaginação social que almeja abranger a totalidade
da receptividade das idéias. Por mais que as nacionalidades e os seus processos de construção
sejam formas culturais ou políticas singulares de vida “que uma sociedade inteira pode assumir”,
não há garantias de que haja essa totalidade social de apreensão do ser da nação. Ver:
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Lisboa: Ed. 70, 2005, p. 25; para uma crítica
da idéia de Anderson, ver: BALAKRISHNAN, Gopal. A imaginação nacional: In: BALAKRISHNAN,
Gopal (org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 211. O termo
comunidades imaginadas, ou comunidade, seja no singular, seja no plural, é usado ao longo da
tese apenas como sinônimo da idéia de nação na sua dimensão ontológica.
19
cristianismo, o budismo e o islamismo tinham uma preocupação com o homem no
cosmos e com a contingência da vida, o que implicava uma resposta imaginativa,
em termos ontológicos, para o “fardo avassalador do sofrimento humano – a
doença, a mutilação, o desgosto, o envelhecimento e a morte”
25
. Segundo o autor,
a nação deve ser pensada, para que possa ser compreendida, em termos de um
imaginário comum com as comunidades religiosas e, no caso ocidental, com a
Cristandade. Anderson deu um passo importante para pensar a nação em termos
de articulação com o tema da temporalidade. Morte, catástrofe, envelhecimento,
contingência, limite são conceitos que nos reportam ao tema do devir em sua
radicalidade.
A problemática que apresentamos na tese foi dividida em quatro capítulos.
No primeiro, articulamos o tema da temporalidade com o pensamento dos
intelectuais ocidentais desde a aurora de um modelo de modernidade que se
constituiu como triunfo da razão na condição de ser. Tentamos demonstrar que a
discussão oitocentista acerca do devir e de sua representação não era estranha à
intelectualidade brasileira. Distante de ser uma questão pensada somente no lado
oriental do Ocidente, o tema da temporalidade na condição de tempo humano
(finitude) estava indissociavelmente ligado ao problema da construção das
ontologias nacionais no pensamento de Eduardo Prado e dos intelectuais
brasileiros de fins do século. Aquém das dicotomias norte-sul, o problema da
temporalidade se tornou matéria intelectual de valor significativo no Ocidente. No
capítulo dois, investigamos as ontologias da nação exteriormente constitutivas ao
Brasil no pensamento de Prado, especialmente os sujeitos nacionais da Europa,
na condição de um conjunto de idéias que circulavam nos processos de
significação, constituindo-se e desconstituindo-se através da lógica da falta e do
transbordamento representacional. No terceiro capítulo, seguindo os mesmos
critérios metodológicos do capítulo dois, abordamos as idéias de América
construídas pelo autor, as quais se dividem em América Hispânica e Estados
Unidos. No capítulo quatro, o tema abordado é o Brasil como sujeito nacional e as
suas aporias enquanto modo de civilização e ser diante de uma mudança de
25
ANDERSON, op.cit., p. 32.
20
paradigma civilizacional: a passagem da Civilização Monárquica Brasileira para a
República. Apresentamos a idéia de que, ao chegarmos no que supostamente
seria o núcleo duro da identidade brasileira, o autor desenvolveu uma historicidade
do ser que não o reduziu a uma matriz ontológica em especial.
II
É conveniente ressaltar que não nos interessa fazer um estudo acerca das
identidades nacionais em função de uma suposta dissolução das fronteiras do
Estado-nação frente ao processo de globalização. Não pretendemos estabelecer
uma lealdade política com ou contra o Estado-nação, menos ainda a postulação
da constituição de “memórias subterrâneas” como contrapostas à memória
nacional, situação em que supostamente estaríamos “dando voz” aos “excluídos
da história”
26
. Não preconizamos narrativas “subterrâneas” que se contraponham
às narrativas nacionais, mas sim a problematização da própria ambigüidade do
pensamento identitário nacional, finitude não somente da ontologia da nação, mas
também da epistemologia que sustenta o trabalho de quem a interpreta.
Tais posturas, do ponto de vista teórico, nada mais são do que o reforço de
uma substancialização das memórias como elemento constituinte de qualquer
leitura legitimadora que se faça a respeito das identidades. Não se trata, portanto,
de buscarmos uma brasilidade que seria a essência do Brasil, ou uma
europeidade que seria o fundamento da Europa, ou uma norte-americanidade que
seria o ser dos Estados Unidos e assim por diante. O que propomos é interpretar a
construção do pensamento em torno dessas identidades, não importando se elas
têm ou não respaldo empírico no eu nacional profundo, se elas realmente existem,
se elas se encontram, materialmente, fora do pensamento e dos processos de
significação desenvolvidos pelos intelectuais. Para falarmos novamente com
Graça Aranha e usar a linguagem de fins do século XIX, diríamos que estamos no
26
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2,
n.3, p.3-15, 1989.
21
“pleno monismo”, que compreende a “inexistência de dois mundos separados, um
físico e material, outro moral ou imaterial”
27
.
Outro aspecto importante referido de um modo um tanto subjacente ao
longo dessa introdução é o entendimento de que o pensamento de Eduardo Prado
– que viveu um dos períodos temporalmente mais abertos em torno da
tematização da identidade nacional – deve ser inserido entre aqueles autores
identificados como intérpretes do Brasil e ontólogos da nação. Distante de uma
posição canônica ocupada por autores como Euclides da Cunha, Oliveira Lima,
Joaquim Nabuco, Oliveira Viana, Manuel Bomfim, Silvio Romero, Sérgio Buarque
de Holanda, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Florestan
Fernandes, Raimundo Faoro, entre outros, Eduardo Prado não deixou, em seus
libelos em prol da civilização brasileira e no seu pensamento de um modo global,
de fazer uma ontologia da nação e uma interpretação do Brasil. Se ele era
reacionário, europeísta, monarquista, anti-americano, ou mais anti-republicano,
com idéias supostamente defasadas, tais situações não interferem na proposta de
tese que desenvolvemos. O que nos parece imprescindível reconhecer é que o
autor, mesmo em seus escritos menos pretensiosos politicamente, como suas
anotações de viagem, até seus textos mais combativos, sempre procurou dar uma
interpretação das culturas em seu estar-lançado e pensar certas identidades
nacionais, sobretudo o Brasil como centro permanente de referência. No relato de
seu amigo Eça de Queiroz, eis o que o escritor português afirmou:
“[Eduardo Prado] fervorosamente procurou compreender e, através
dessa compreensão, amar todos os povos a que aportava – estudando em
cada um a virtude, ou a beleza, ou a energia própria, enternecido aqui pela
doçura rural, impressionado além pelo fragor industrial, igualmente
partidário do beduíno no seu deserto e do construtor de Glasgow nos seus
estaleiros”
28
.
Nesse sentido, a realização de um trabalho sobre o pensamento de
Eduardo Prado que o conceba como um intérprete do Brasil e um ontólogo da
nação pode, ao menos, reduzir esse abismo que ainda existe entre as suas obras
27
ARANHA, Graça. A civilização latina e a alma brasileira. [1903]. In: Obras..., op. cit., p. 826.
28
QUEIROZ, Eça de. Eduardo Prado. In: PRADO, Eduardo. Coletâneas. São Paulo: Escola
Tipográfica Salesiana, vol.1, 1904, p. XII.
22
e a sua identificação como um pensador que pensou, acima de tudo, a identidade
nacional do Brasil e as instabilidades, desagregações e mudanças de fin-de-siècle
no Brasil e, de um modo mais global, no (seu) mundo ocidental.
Sobre o Ocidente: tal palavra é usada como uma idéia-limite
29
. Dificilmente
algum autor brasileiro e latino-americano desse período se veria como parte
ausente do mundo ocidental. Estamos, com Said, razoavelmente seguros de que
o Ocidente não tinha (e não tem) estabilidade ontológica – a exemplo, igualmente,
do Oriente
30
.
Para um contemporâneo de Santo Agostinho, no século V da era cristã, a
expressão Ocidente significava o domínio da língua latina, oposto ao Oriente,
domínio da língua grega
31
. Durante grande parte da Idade Média, tal idéia
englobava o conjunto dos países europeus que reconheciam a autoridade do
Papa de Roma e cuja língua litúrgica e cultural era o latim
32
. A passagem da idéia
de Ocidente como Cristandade para Europa ocorreu em um longo período que se
estendeu do século XIV ao século XVI, quando tal conceito passou a ser definido
muito mais em termos de cultura e de política, unificado pela idéia de Europa
33
. O
Ocidente, como unidade cultural, política e lingüística, transpassou o Oceano e
chegou às Américas, não sem certo teor difusionista, mas que logo se colocou na
exterioridade/interioridade entre o Velho e o Novo. Como parte de uma longa
trajetória de colonização, as Américas enquanto latinas, herdaram, negociaram,
rearranjaram, negaram, afirmaram e mantiveram, através das suas instituições, o
perfil que os séculos XV, XVI e XVII traçaram em torno do Ocidente.
29
Afirmar amplo domínio do Ocidente em termos culturais seria um disparate, sobretudo porque,
como pensa Derrida, o pensamento ocidental é o pensamento cujo destino consiste simplesmente
em aumentar o seu domínio à medida que o Ocidente diminui o seu. Não podemos deixar de
sugerir que, ao fazermos referência a tal idéia, há toda uma carga política de seu significado
profundamente atrelada à vontade de expansão que animou alguns espíritos ocidentais ao longo
dos séculos XIX e XX. Ver: DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo:
Perspectiva, 2002, p. 13. Por outro lado, abrir mão de seu uso em razão de uma racionalidade
tropical ou luso-brasileira seria, em nosso entendimento, tomar como referência central de de-
finição da temporalidade e da nação a própria nação como ponto de partida e fundamento do ser,
posição com a qual não estamos de acordo.
30
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia. das
Letras, 2007, p. 13.
31
GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV: os Estados. São Paulo: Pioneira/ Ed.
da USP, 1981, p. 47-48.
32
GUENÉE, op. cit., p. 48.
33
Ibid., p. 49.
23
Eduardo Prado e praticamente a totalidade dos seus interlocutores
pretendiam manter essa ligação entre a idéia clássica de Ocidente – latino – e a
América do Sul como civilização neolatina, apesar de que Nabuco, em 1893,
tenha advertido: “a América há de ser civilizada ou não ser latina”
34
.
Tendo como premissa constitutiva a necessidade de um ponto firme e
estável nas disposições em torno da civilização brasileira como parte do Ocidente,
como Eduardo Prado assim a entendia, ele tentou definir o Brasil e aqueles
exteriores constitutivos de significação da nação, uma espécie de história do ser
de cada nação que tinha, por sua vez, a sua historicidade, uma dimensão da
própria ressignificação da nação em que Prado e seus outros viviam e sobre a
qual escreviam.
Diante do que foi exposto até aqui, entendemos que ainda permanece uma
questão: quando partimos de um tema, em certo sentido, comum a ambas as
pontas do Ocidente, incorremos em um critério universal de demarcação temática,
o que nos leva a perguntar se o Brasil seria um imperativo da alteridade que
demandaria sempre a reivindicação da especificidade para compreendê-lo, ou se
haveria uma alteridade da própria alteridade, não reduzida à identidade, que nos
convidaria a uma compreensão do Brasil fora dos cânones que o concebem
sempre dentro dos limites da própria diferença. Quando delimitamos o
pensamento de Eduardo Prado como ontólogo da nação, pensamos acima de
tudo nessa alteridade não canônica que nos possibilita pensar o Brasil e seus
intelectuais em um horizonte interpretativo mais amplo, no qual a própria idéia de
temporalidade se faz presente.
Nesse sentido, pensar o pensamento de Eduardo Prado e de intelectuais
brasileiros de fins do século XIX não implica simplesmente a afirmação de uma
alteridade que os isolaria, como se compreender o Brasil dependesse sempre de
uma exclusividade ontológica etnocêntrica, uma compreensão que se sustentaria
de acordo com a intensidade da afirmação de sua diferença, alteridade
substancializada que supostamente serviria de antídoto para as teorias
difusionistas e mesmo para a quebra dos monopólios universais de
34
NABUCO, Joaquim, Diários: 1873-1909. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2006 , p. 293.
24
conceitualização em relação à Europa e a todos os fardos que o Ocidente ostenta.
Se, por um lado, essa postura tem o mérito de contribuir para uma auto-afirmação
da autonomia da cultura intelectual brasileira, desdobrando-se nas suas diversas
especificidades regionais, por outro, não estamos tão seguros de que o Brasil
necessite dessa psicanálise multiculturalista para expulsar seus demônios,
reprimidos desde os tempos em que foi colônia.
Não há como negar que o Brasil foi, muitas vezes, simplesmente
interpretado como o locus de ressonância de modelos europeus, um receptáculo
passivo de idéias do estrangeiro. Não pretendemos, em nenhum momento,
retomar a discussão já um tanto desgastada dos lugares das idéias e do
desterramento em nossa própria terra, reducionismo que ainda encontra seus
adeptos em diversos estudos que primam pelas tradicionais definições
sedimentadas de espaço e tempo para pensar o pensamento.
Por que não reivindicar a historicidade do pensamento em uma situação
epocal em que a noção de temporalidade, sem sua tradicional correspondência
apriórica e absoluta com o espaço, seja a escala de interpretação da nação? Eis o
que intentamos realizar, ao afirmar que o topos do pensamento de Prado era
aquele cuja situação epocal exigia uma decisão, no seu tempo presente, em
relação não somente ao próprio presente, mas também ao passado e ao futuro da
nação, por meio de um pensamento que colocava, acima de tudo, o problema da
realização histórica do destino nacional.
Não seria de todo equivocado pensar que, ao fazermos tal articulação,
supomos uma universalidade de fundo que sustenta a problemática da tese: se é
correto afirmar que a questão da temporalidade era um problema de intelectuais
brasileiros – e de Eduardo Prado, em particular –, e de autores europeus do fim de
século, seria plausível, outrossim, afirmar que a tese se suporta em uma
problematização transcendente às escalas do Estado-nação brasileiro – e daí sua
universalidade – para se configurar em um problema-tempo, diríamos, ocidental.
Será que problematizar o pensamento de Eduardo Prado e dos intelectuais
brasileiros em relação a temas comuns em ambos os lados do Atlântico seria
25
pensar europamente o Brasil, como se fosse uma questão difusionista que
estivesse em jogo?
Somos uma “simbiose histórica” e um desdobramento do mesmo, mais do
que do outro, nessa diáspora da Europa na constituição do Novo Mundo
35
. Nesse
caso, entendemos que avocar uma certa universalização decorrente da oni-
abrangência do Ocidente não seria trair a alteridade que reivindicamos ao
estabelecer o Brasil como um dos campos privilegiados de estudo, mesmo porque
os sujeitos dessa alteridade/mesmidade não se restringem à diferença
sedimentada do Brasil exótico.
Que Eduardo Prado tenha sido um pensador delimitado espacial e
temporalmente, parece-nos indubitável. Não obstante, os temas que trabalhamos
em seu pensamento podem assumir a globalidade do pensamento humano, para
além de conceitos como Oriente e Ocidente. A temporalidade, em que pese a sua
história ocidental, não é sua especificidade
36
. Menos universal do que a
tematização da temporalidade, a nação, ao contrário do que comumente
pensamos, também tem a sua historicidade ligada a uma globalidade que se joga
para o Oriente e para o Ocidente
37
. Portanto, embora estejamos lançados na
finitude do conhecimento relativo ao pensamento de intelectuais brasileiros de fins
do século XIX, os temas abordados nessa interpretação têm uma história que
ultrapassa essa demarcação, o que justifica, em nosso entendimento, a sua
inscrição em certas universalidades que praticamente concebemos como
inevitáveis em uma tese que trata da relação entre temporalidade e nação.
35
CANCELLI, Elisabeth. A América do desejo: pesadelo, exotismo e sonho. História, São Paulo,
n.23 (1-2), 2004, p.114.
36
Alguns exemplos da relação entre pensamento e temporalidade para além do Ocidente podem
ser investigados em: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São
Paulo: Cosac Naify, 2002; BOUTANG, Pierre. O tempo: ensaio sobre a origem. Rio de Janeiro:
DIFEL, XX00; ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar; 1997.; REIS, José Carlos.
Tempo, história e evasão. Campinas: Papirus, 1994. Reis entende que a temporalidade como
não-ser que atravessa o ser da humanidade é causador de medo, angústia e dor e que a
experiência da temporalidade já foi descrita com as palavras mais duras que a linguagem humana
já produziu. Ver: REIS, op.cit., p. 142.
37
ANDERSON, Benedict. Western nationalism, Eastern nationalism. New Left Review, May-Jun,
2001, p. 32. Anderson sugere que o pensamento nacionalista não se desenvolveu de modo
difusionista, mas de maneira concomitante entre Ásia, Europa e América, tendo a América mesmo
se antecipando na construção da nação, incluindo países como o Brasil (p.34).
26
Para finalizar o início com aquele que diz que o real se dispõe é no meio da
travessia, onde se amanhece a cada manhã num pouso diferente sem juízo de
raiz, diríamos que essa tese é apenas mais um pouso sem repouso durante a
manhã, na travessia, na transição, no ocaso...
27
CAPÍTULO 1 – EM BUSCA DO SER PERDIDO: OS INTELECTUAIS
BRASILEIROS E A QUESTÃO DA TEMPORALIDADE EM FINS DE
SÉCULO XIX
1.1 – Preâmbulo
Entre 1913 e 1927, o escritor francês Marcel Proust publicou o seu
volumoso e denso livro denominado À la recherche du temps perdu – Em busca
do tempo perdido. O título que nomeia este capítulo tem uma inspiração em
Proust, por uma razão de fácil constatação: primeiramente, porque Proust viveu o
fim do século XIX e o início do século XX, passando por eventos traumáticos como
a Grande Guerra; em segundo lugar, a exemplo dos referenciais existenciais
perdidos que alguns intelectuais brasileiros percebiam em praticamente toda a
realidade, Proust também tratou de diversas patologias da memória, tema que
seria recorrente ao longo da trajetória contemporânea – virada do século XIX para
o século XX – do pensamento histórico, filosófico e literário em termos ocidentais.
Propomos, neste capítulo, fazer uma aproximação ao tema temporalidade e
identidade nacional e posicionar o pensamento de Eduardo Prado entre aqueles
intérpretes da nação que tiveram como qualidade fundamental de seu pensamento
consolidar uma ontologia nacional, o que implica, evidentemente, uma profunda
relação das suas idéias com o tema do devir. Desse modo, faz-se necessário
pensar a questão do tempo não somente em termos de Brasil, mas nas condições
de uma cosmovisão mais ampla, a qual implica os intelectuais ocidentais de um
modo global
1
.
1
José Carlos Reis investigou a relação entre tempo e identidade nacional em seus dois volumes
de As identidades do Brasil. Ver:
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil. Rio de Janeiro:
FGV, 2004, vol.1.
Trata-se de um dos autores contemporâneos mais preocupados em realizar uma
interpretação dos diversos intelectuais brasileiros ao longo da história intelectual e de sua relação
com a temporalidade histórica. O historiador analisou os intelectuais brasileiros e a construção das
diversas identidades elaboradas por eles sem fazer depreciações acerca de determinados
períodos históricos que seriam menos profícuos intelectualmente do que outros. O Brasil, nas suas
palavras, é conhecível não através de uma ou outra interpretação em particular e isolada, “mas
pelo conjunto delas, pelo confronto e diálogo entre as várias interpretações feitas em épocas
distintas”
(p. 13). Nas sucessivas interpretações dos intelectuais brasileiros, se perceberiam as
Além do mais, a temporalidade enquanto fluir permanente de todas as
palavras e coisas, que sequer permitia a sua compreensão por meio das
representações conceituais, como assim a definia Bergson no início do século
XX
2
, supunha, outrossim, uma certa turbulência, em termos epistemológicos, na
representação conceitual da própria realidade que se pretendia apreender. A partir
de então, o pensamento teria alguma validade, ainda seguindo o filósofo do devir
– como Bergson ficou conhecido – se em vez de tiranizar a realidade por meio dos
conceitos, fosse possível manejar “representações flexíveis, móveis, quase
fluídas, sempre prontas a se moldarem sobre as formas fugitivas da intuição”
3
.
Portanto, faz-se mister problematizar também, quando pensamos o tema da
temporalidade e sua relação com o pensamento, as aporias da representação no
fim de século XIX, questão que está diretamente ligada à imaginação que se faz
imagi-nação. Se a historicidade que reivindicamos na tese está articulada a uma
mobilidade que se faz possibilidade conceitual, tentar pensar representações
unívocas e conceitualmente uniformes acerca do pensamento de Eduardo Prado e
dos seus interlocutores seria apenas enfaixar as dimensões mais móveis da
própria realidade com a qual trabalhamos, em nome de categorias totalizantes
como sujeito, objeto, mundo, entre outras. Podemos afirmar que tais conceitos não
são abandonados nesta tese, mas apenas relativizados e posicionados de acordo
com sua própria situação em termos de de-finição da identidade nacional.
concepções diferenciadas do tempo histórico brasileiro que, em cada momento da história do
Brasil puderam ser formuladas, através da “reposição de alguns intérpretes do Brasil em sua
época, em sua data, com a sua problemática específica e com as suas específicas avaliações do
passado e projeção do futuro” (p. 13-14). Sua proposta foi pensar esses autores na sua própria
época, desvelando “uma verdade histórica do Brasil produzida ao longo do tempo, uma verdade
poliédrica, caleidoscópica” (p. 14). A representação aparece como conceito central em seu
trabalho, pois o que Reis almejou alcançar é uma “representação particular do tempo histórico
brasileiro” que cada um desses intérpretes elaborou como representação global do Brasil (p. 18).
Assim, o historiador chegou ao que seria a construção de uma “imagem temporal do Brasil”. Em
termos epistemológicos, Reis é sofisticado, o que torna sua posição teórica sedutora. Seguindo a
linhagem koselleckiana de pensar a especificidade da história através da problematização do
tempo, a relação entre passado e futuro construído em um determinado presente é o que definiria
esse tempo histórico do Brasil.
2
BERGSON, Henri. Introdução à metafísica. [1903]. In: Cartas, conferências e outros escritos.
São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 23 e 31.
3
BERGSON, op.cit., p. 25.
29
1.2 – O pensamento de Eduardo Prado e o esfacelamento do ser
O estabelecimento de uma relação entre o pensamento de Eduardo Prado
e a definição de uma ontologia nacional foi abordada por autores contemporâneos
de Eduardo Prado, a começar por José Veríssimo, que lançou em 1911, a sua
História da literatura brasileira. Nela, Eduardo Prado apareceu como um publicista
de talento, de boa linguagem e polemista vigoroso
4
. De acordo com Veríssimo, “a
sua obra é copiosa e foi toda feita em jornais e revistas, um pouco ao acaso das
circunstâncias e ocasiões”
5
. Em termos interpretativos, Veríssimo entendia que
Eduardo Prado, na literatura brasileira, tinha duas singularidades: “ser um dos
poucos senão o único homem rico e certamente o de mais valor que aqui se deu,
sequer como diletante, às letras e ser talvez em nossa literatura, o único escritor
reacionário”. “Refiro-me”, continuou Veríssimo, “a escritor e não a políticos que
ocasionalmente tenham escrito, nem a jornalistas, cuja obra efêmera não
considero aqui”
6
. Após fazer esses elogios a Eduardo Prado, Veríssimo
complementou:
“O brilho mundano da sua existência de moço rico e pródigo, as
suas longas viagens, a sua existência européia, o seu íntimo comércio com
homens de letras europeus, deram-lhe um prestígio que a sua só obra
literária, aliás documento de talento literário pouco vulgar, acaso não lhe
teria só por si dado”
7
.
Ao comparar Eduardo Prado aos jornalistas e aos políticos, Veríssimo não
tinha em mente somente diferenças profissionais, mas a permanência da obra,
afinal, o “escritor” deveria transcender, ao que nos indica o seu pensamento, a
efemeridade que demarcava a política e o jornalismo. Prado, um intelectual cujas
posses financeiras lhe permitiam viajar pelo mundo, viver seu diletantismo e
escrever com certa autonomia, era um intelectual cujo pensamento não se
circunscrevia à cena imediata da escrita, o que sugere a idéia de que ele tinha em
vista sustentar um projeto muito mais amplo em termos de atividade intelectual do
que meramente um ataque à República per se. Nesse sentido, o topos demarcado
4
VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Brasília: Ed. da UnB, 1998, p. 268.
5
VERÍSSIMO, op. cit., p. 268
6
Ibid., p. 269.
7
Ibid., p. 269.
30
por Veríssimo seria o de pensar Prado como um intérprete do Brasil, ou para
aproveitar a sua definição, escritor do Brasil que, por se vincular ao pensamento
duradouro e não provisório, tinha no horizonte de suas perspectivas, assim como
Veríssimo, o tempo, ou as pretensões de eternidade como “essência intemporal
do tempo”
8
.
O brasilianista Darrell Levi, em um estudo mais recente, fez uma
investigação sistemática da família Prado. Que Eduardo Prado tenha sido um dos
mais ricos cafeicultores do Brasil, e que ele foi também um empresário da
cafeicultura, juntamente com o seu irmão Antônio Prado, que enriqueceram em
grande parte graças às suas relações com o Império, além de serem proprietários
de escravos em um Brasil marcado pelo regime escravocrata, não é nada
assombroso. Levi afirma que o Segundo Império foi um período clássico para os
Prado, uma era de grande êxito político e econômico da família, que começou a
declinar no decorrer da Primeira República
9
.
A propósito de Levi, talvez tenha sido a sua pesquisa sobre A família Prado
o mais sistemático e bem documentado estudo não somente acerca daquela
família, mas também de Eduardo Prado. O seu livro teve o mérito de assinalar as
dificuldades que envolviam a demarcação do pensamento em nível de
homogeneidade. Algumas idéias apontadas por Levi merecem ser mencionadas
nesse espaço. Primeiramente, a idéia de que a família Prado, diferentemente da
família patriarcal brasileira do estilo Casa Grande & Senzala, fazia parte de uma
elite modernizante, o que abrangia uma relação ambígua entre o “ser cafeicultor”
com todas as suas implicações – e ao mesmo tempo, “ser cosmopolita”
10
. Nesse
sentido, haveria uma espécie de “problema” da família que perpassava intelectuais
como Prado, a saber: como progredir e, ao mesmo tempo, conservar as tradições
legítimas?
11
. As questões relativas ao tempo abordadas por Levi não pararam
nessa dificuldade entre a tradição e a modernidade da cultura brasileira. De
acordo com o brasilianista, Eduardo, mais do que qualquer outro Prado, “havia
8
BERGSON, op. cit., p. 35.
9
LEVI, Darrell. A família Prado. São Paulo: Cultura 70, 1974, p. 99-100, 185.
10
LEVI, op. cit., p. 130-131.
11
Ibid., p. 147.
31
visto as raízes morais, filosóficas e mesmo familiares de seu mundo sacudidas
pelo advento da República”
12
. Ele “viu minadas as fundações culturais do Brasil:
Deus, pátria e família estavam abandonados”
13
. Como afirmamos, Eduardo Prado
estava imerso em circunstâncias saturadas de instabilidade e desagregação
cultural no complexo ocidental.
A questão é que, se os grandes fundamentos do Brasil haviam sido
abandonados diante do já sendo e do porvir, o problema que se apresentava para
a nação e seus intérpretes era eminentemente temporal. Essa é uma das idéias
que Levi sugeriu, ao interpretar a obra de Eduardo Prado.
O dilaceramento das raízes morais, filosóficas e familiares e o abandono
das fundações culturais do Brasil, bem lembrados por Levi, ao se referir a Eduardo
Prado, são fortes indicativos de que seu pensamento esteve efetivamente
comprometido com uma reflexão histórico-filosófica acerca do problema identidade
nacional-temporalidade. Ao encontro do que Levi escreveu, vejamos o estudo de
José Lins do Rego.
Lins do Rego, em uma conferência proferida na década de 50, fez um
estudo histórico-filosófico-psicológico de Eduardo Prado
14
. Para ele, Prado foi, “no
seu tempo, o maior pensador político que possuíamos, o mais lúcido dos críticos
de nosso tempo”
15
. Em sua conferência, havia o entendimento de que o autor era
um pensador inquieto no mundo de fins do século XIX. A denúncia de diversas
ilusões – européias, brasileiras, americanas – faria parte de sua agenda
intelectual. Sua reação teria se direcionado para um período de desagregação da
família, das instituições, da política, da religião e da própria idéia de civilização
16
.
Como uma maneira de encontrar novo sentido para sua própria existência e para
o que era compreendido como cultura ocidental, Eduardo Prado teria dedicado
grande parte de seus esforços intelectuais e morais à Igreja Católica e, em
especial, aos estudos sobre os jesuítas e à Companhia de Jesus: “Eduardo Prado
12
LEVI, op.cit., p. 118.
13
Ibid., p. 295.
14
REGO, José Lins. A casa e o homem. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1954.
15
REGO, op.cit., p. 16.
16
Ibid., p. 19-24.
32
encontrou nos jesuítas a sua casa perdida pelo modernismo avassalador”
17
. Por
fim, além desse fundamento buscado na religião, o autor ainda teria encontrado,
para os males contemporâneos do Brasil e do Ocidente, a essência do brasileiro,
“o lastro humano da pátria”, no “homem simples que ele vira no fundo das grotas,
na beira dos caminhos, o pobre brasileiro desprotegido de tudo”
18
. Embora o texto
de Rego fosse laudatório em alguns momentos e um pouco preso à biografia de
Prado, em especial na relação que o autor tinha com sua mãe, podemos afirmar,
com certa segurança, que muitas intuições do escritor merecem aprofundamento
ao longo da tese, em especial a busca de determinados fundamentos ontológicos
como uma maneira encontrada pelo ontólogo da nação de lutar com e contra o
mundo cuja totalidade de valores se desmanchava em termos culturais, políticos,
econômicos e sobretudo morais, se é que faria algum sentido demarcar esses
campos como domínios distintos em seu pensamento. Essa é, em termos de
pensamento da nação, o que denominamos redescoberta da temporalidade: a
idéia de que nada do que havia se constituído, em termos culturais, permaneceria
sub specie aeternitates, e que aquilo que potencialmente viria a se configurar
como o ser era apenas a sua possibilidade de ser.
Não somente Lins do Rego assim se referiu à época de Prado, mas
também um de seus biógrafos, Sebastião Pagano, que via em Prado um baluarte
contra o século em que “tanta cultura tonteava de altura, fazia perder a direção, o
que fez ver tantos talentos apreciáveis... perdidos em relação ao que deveria ser
mais importante – a razão de ser de sua própria existência”
19
. As gerações “da
segunda metade do século passado foram muito infelizes e de espírito
desencontrado”
20
. Por fim, concluiu:
“Um século de laicismo, de dispersão filosófica, de anarquia
artística, teria que gerar mentalidades desconexas, desesperadas,
inconscientes do seu destino, incertas de sua razão de ser sobre a terra, e
o problema da dor e da morte se apresentava como realidade crudelíssima
que não poderia ser resolvido por uma ‘fantasia’ religiosa”
21
.
17
REGO, op.cit., p. 24.-25.
18
Ibid., p. 33-34.
19
PAGANO, Sebastião. Eduardo Prado e sua época. São Paulo: Cetro Editora, [s.d], p. 240-241.
20
PAGANO, op. cit., p. 241.
21
Ibid., p. 242.
33
Falar na dispersão, na anarquia, na morte, no desconexo, no desespero e
na incerteza do destino era o mesmo que mencionar aquelas fundações culturais
destruídas no Brasil. Tratava-se, no pensamento de Prado, de lembrar dos valores
culturais entendidos como fundamentais para a construção e manutenção de
qualquer civilização nesse contexto de dissipação. O próprio Eduardo Prado assim
afirmou, nos Fastos da ditadura militar no Brasil, que a República e o positivismo
que a sustentava teoricamente estavam esfacelando a civilização brasileira, ao
querer “destruir o passado, escravizando o presente, para dominar o futuro”
22
.
Para o intérprete, havia uma tripla obliteração: do passado, do presente e, o
que era pior, do futuro do Brasil como civilização. Reconhecer que tal incerteza se
lançava para o futuro era o mesmo que colocar em xeque a missão filosófica do
Brasil na história, de constituir, em termos de nação, a sua hegemonia no
Hemisfério Sul, bem como sua condição de ser autônomo, como qualquer nação
que merecesse essa distinção.
Fin-de-siècle, termo que apareceu na obra Degeneração, de Max Nordau,
resumia o “caráter comum de numerosas manifestações contemporâneas” e “a
disposição de espírito que elas revelam”
23
, no mundo moderno ocidental. Para
ele, o termo “atravessou voando os dois lados do mundo, e encontrou acolhimento
em todas as línguas cultas”
24
. Apesar de se referir ao século que terminava,
Nordau, atacando os supostos degenerados da cultura, entendia que fin-de-siècle
era uma palavra “frívola”, e que:
“Somente o cérebro de uma criança ou de algum selvagem poderia
conceber a grosseira idéia que o século é uma espécie de ser vivo nascido
da mesma maneira que o animal ou o homem, que percorre todas as fases
da existência, infância, mocidade, idade madura, depois envelhece e
deperece para morrer no fim do centésimo ano, depois de ter sofrido nos
últimos dez anos todas as enfermidades de sua deplorável senilidade”
25
.
22
PRADO, Eduardo [S., Frederico de]. Fastos da ditadura militar no Brasil. [1890]. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 18. Em algumas edições dos Fastos se mantém o nome de Prado, e não
o seu pseudônimo. No caso da edição de 2003, a autoria é de Frederico de S. Por se tratar de um
pseudônimo ocasional, sem maiores implicações para a interpretação do pensamento do autor,
optamos por não utilizá-lo. No caso da edição aparecer com o pseudônimo, ele será sempre
colocado em colchetes.
23
NORDAU, Max. Degeneração. Rio de Janeiro: Laemmert, 1896, p. 5.
24
NORDAU, op.cit., p. 5-6.
25
Ibid., p. 6.
34
Pensadores pessimistas eram, para Nordau, tais degenerados. A idéia de
conceber o fim do século como um período de morte e decadência era um
disparate para o autor que, através de sua obra como um todo, fez uma crítica
sistemática a Weltschmerz finissecular, na qual autores como Prado estavam, em
parte, inseridos.
Como Lins do Rego afirmou, “o século passou a ser para ele uma
profanação, o destruir dos grandes princípios, uma aceleração de marcha forçada
para a morte: um século suicida”
26
. A busca de uma fundamentação ontológica
nacional no seu pensamento estava articulada de modo substancial com a
turbulência do mundo intelectual finissecular, no qual, através de um conjunto de
intelectuais, na Europa e no Brasil, procurava-se simultaneamente novos
princípios-fundamentos que pudessem dar solidez ao pensamento através da
construção de imagens ontológicas da nação. Realidade do frente a frente com a
morte, as referências de Levi, Lins do Rego e Pagano manifestam a questão do
intelectual que se deparava com a evanescência e com a descontinuação dos
grandes valores até então consubstanciados em uma idéia de nação e mesmo de
civilização, luta pelo sentido que se definia pela agonia, por aquela relação de
combate sem fim, uma vez que o significado nunca se completava
27
. Tratava-se,
não tanto de uma cosmovisão, ou cosmogonia, ou ainda cosmologia, mas, nas
palavras de Lucia Helena – usadas em um contexto semelhante ao nosso – de
uma “cosmo-agonia”
28
.
Nesse sentido, para que possamos compreender melhor a problemática da
tese, é importante destinar algumas palavras para a questão da temporalidade
como uma qualidade vital do pensamento finissecular, não somente em
pensadores europeus tradicionais, tais como Nietzsche, Simmel, Bergson e
Dilthey – que contestaram as tradicionais balizas espacio-temporais desenvolvidas
até então e colocaram a tematização da vida em seu devir radical como horizonte
primeiro de suas reflexões – mas também autores mais próximos de Eduardo
26
REGO, op.cit. , p. 23.
27
HALL, Stuart. Da diáspora. Belo Horizonte/ Brasília: Ed. da UFMG/ Representação da UNESCO
no Brasil, 2003, p.
28
HELENA, Lucia. A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro/João Pessoa: Tempo
Brasileiro/ Secretaria da Educação e Cultura da Paraíba, 1984.
35
Prado em termos nacionais. Tornar a finissecularidade mais inteligível nos lança
para o problema moderno do tempo
1.3 – Modernidade e tempo
A “destruidora voracidade do tempo”
29
não era uma novidade no
pensamento da intelectualidade em termos ocidentais. Desde a Antigüidade, com
pensadores como Heráclito e Parmênides, tal problema havia sido colocado
através de questões como sua existência para além de uma esfera subjetiva e/ou
cosmológica, sua qualidade como número do movimento, ou mesmo realidade
móvel da eternidade imóvel, a sua direção para a corrosão de todos os seres ou
para a sua preservação, sua realidade apenas como aparência ou como ser, sua
reversibilidade ou sua irreversibilidade. Enfim, a tematização do ser e do devir
pode ser encontrada desde os períodos mais remotos da história do
pensamento
30
.
O pensamento ocidental, desde um dos seus nascimentos, na Grécia
31
, se
deparou com a diferença. Segundo Souza, em torno desse núcleo referencial é
que os grandes problemas clássicos da filosofia e do pensamento se articularam,
como as dicotomias particular versus universal, necessário versus contingente,
finito versus infinito, sensível versus racional, alma versus corpo, enfim, um série
infinita de dualidades opostas que remetem sempre ao mesmo problema anterior
que as gera: à questão da não-unidade e da diferença, que envolve um esforço de
sua extirpação, em um processo identificante que consiste justamente na tentativa
29
BODEI, Remo. A filosofia do século XX. Bauru: EDUSC, 2000, p. 14.
30
Ver,a propósito: ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários.
Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2005; COSTA, Alexandre. Thánatos: da
possibilidade de um conceito de morte a partir do logos heraclitiano. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1999; SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001;
REIS, José Carlos. Tempo, história e evasão. Campinas: Papirus, 1994.
31
É basicamente um lugar-comum situar os princípios do pensamento ocidental na Grécia, não
obstante os riscos e dificuldades de qualquer genealogia que estabeleçamos. Para um estudo
introdutório dessa questão, ver: ABRÃO, Bernadette Siqueira. História da filosofia. São Paulo:
Nova Cultural, 1999. Vernant, ao colocar na origem do pensamento grego sua relação com os
reinos do Oriente Próximo, relativiza nossa proposição. Por força da expressão e de uma certa
eliminação da diferença entre os gregos, mantemos a idéia da origem do pensamento ocidental na
Grécia. Ver, VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. São Paulo: DIFEL, 1972,
p. 5-14.
36
de retirar da diferença seu caráter de “diferente” enquanto tal
32
. Desse modo,
complementa Souza:
“Podemos considerar que a diferença é a questão propriamente
dita do pensar; é sua condição, como é o impedimento de sua
completação. A questão da diferença é a provocação a um processo de
compreensão do ‘todo’, ao mesmo tempo em que bloqueia, por sua
recorrência incômoda e indeclinável, qualquer invectiva de universalização
totalizante”
33
.
A convergência para a formação de uma teoria do ser e para o triunfo
quase que absoluto da identidade ao longo da trajetória do pensamento ocidental
tem uma de suas principais origens entre alguns filósofos pré-socráticos,
sobretudo Parmênides. A idéia de perenidade, de indivisibilidade, de
homogeneidade, do ser como algo idêntico-a-si-mesmo, que sequer nascia ou
morria, porque não estava sob o fluxo do devir, foi manifestada nesse fragmento
de seu pensamento:
Nunca foi nem será, pois agora é como um todo, um só, contínuo.
Pois que origem lhe poderás buscar? Como e donde cresceu? Não te
permitirei que digas ou que penses a partir do que não é: pois é indizível e
impensável o que não é; e que necessidade o teria levado a surgir mais
tarde, em vez de mais cedo, se viesse do nada? Assim, força é ou que seja
inteiramente, ou absolutamente nada. Nem a força da persuasão
consentirá que, junto do que é, algo possa surgir alguma vez do que não é.
Por isso a justiça jamais soltou as grilhetas para lhe permitir nascer ou
perecer, antes as segura firmemente. E a decisão acerca disto reside no
seguinte: é ou não é. Mas decidido está, de fato, como é necessário,
abandonar um dos caminhos por impensável e inexprimível (pois não é
caminho verdadeiro), mas que o outro é real e autêntico. E como poderia
ser no futuro o que é? Como poderia gerar-se? É que, se gerou, não é:
nem é, se alguma vez vier a ser no futuro. Assim se extingue a geração, e
a destruição é coisa inaudita”(grifos nossos)
34
.
A matriz eleática de pensamento – cuja afirmação do ser como ser, do isto
ou aquilo, do verbo substantivado é como fundamento de toda a realidade – teve
uma longa história no pensamento, passando por Parmênides, Platão, Descartes,
Kant, Ranke, Comte Hegel
35
, entre outros, encontrando uma crise de sentido
mais significativa no pensamento do século XIX, em especial depois dos anos 50.
32
SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de
Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 190-191.
33
SOUZA, op. cit., p. 191.
34
PARMÊNIDES. Da natureza. São Paulo: Ed. Loyola, 2002, frag. 7-8, p. 16.
35
Em Hegel, parece que o conflito entre temporalidade e conceito encontrou um dos seus
paroxismos. Embora Hegel tivesse a pretensão de superar a temporalidade por meio do conceito,
37
O que ocorria em fins do século XIX e início do século XX era uma espécie
de conflito que implicava uma “inexorável pressão” sobre as tendências de
“univocidade e fixação dos pensamentos e das coisas que eles capturam”
36
, a
preocupação permanente de pensadores em retomar (ou reprimir) a
predominância do devir sobre o que, até então, havia sido o triunfo do ser, pelo
menos desde que uma certa idéia de modernidade tomou conta dos principais
princípios de pensamento e ação sobre o mundo. Poderíamos afirmar que em
Parmênides se inaugurou uma identidade entre pensamento e ser, a sua des-
historicização por meio do conceito, que perpassou uma longa trajetória da história
do pensamento, traduzindo-se, ao longo da modernidade, em totalidades como
razão, filosofia, história e nação.
Em relação ao pensamento moderno, o problema-tempo teve na razão e
em outros esquemas identificantes, um projeto – ancorado no modelo
parmenideano – que tentou reprimir e extirpar aquilo que, em fins do século XIX,
retornaria com seu vigor no pensamento dos intelectuais ocidentais, entre eles, os
pensadores sub-equatorianos. Comecemos com uma citação do padre Antônio
Vieira.
Vieira, na História do futuro, apreendeu o novo espírito de seu tempo, a
revelação não somente da diferença entre os antigos e os modernos, distinção
que vinha sendo feita desde o Renascimento
37
, mas também a demarcação de
um entendimento de que os modernos estavam aprendendo mais e sabiam mais
do que os antigos. “Digo que”, afirmou Vieira, ”descobrimos hoje mais, porque
olhamos de mais alto; e que distinguimos melhor porque vemos mais perto; e que
trabalhamos menos porque achamos os impedimentos tirados”
38
.
Para o moderno Vieira (1608-1697), prender-se em tudo ao passado
significava querer atar os vivos aos mortos. Contrário àqueles que, no seu tempo,
o filósofo alemão percebeu o problema que permeava o pensamento moderno e ocidental. Ver:
KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 2002.
36
BODEI, op. cit., p. 15.
37
Segundo Baumer, os humanistas do Renascimento e os reformistas protestantes, na sua maior
parte, não pensavam em si próprios como modernos, exceto em oposição à Idade Média. Ver:
BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno: séculos XVII e XVIII. Lisboa: Ed. 70,
1990, p. 44.
38
VIEIRA, Antônio. História do futuro. Vol 1, p. 51. Biblioteca Virtual. Disponível em
<http://www.bibliotecavirtual.org.br>, Acesso em 10 de novembro de 2004.
38
faziam a apologia do antigo, o autor da História do futuro considerava pouco
eficazes as acusações do que se estranhava por novo
39
. Para o teólogo:
“Não é o tempo, senão a razão, a que dá o crédito e autoridade
aos escritores; nem se deve perguntar o quando, senão o como se
escreveram. A antigüidade das obras é um acidente extrínseco que nem
tira nem acrescenta validade, e só porque põe os autores delas mais longe
dos olhos da inveja, lhes granjeia a triste fortuna de serem mais venerados
ou melhor conhecidos depois da morte, que vivos. As trevas foram mais
antigas que o sol e os animais que o homem. O Testamento Velho não é
mais perfeito que o Novo, por ser mais antigo, nem o Novo perde a
perfeição e excelência que tem sobre o Velho, por ser mais novo. Que
cousa há hoje tão antiga, que não fosse nova em algum tempo?”
40
.
Essa passagem, merecedora de uma leitura mais profunda não somente
por expressar um dos espíritos modernos, mas também por tratar da sua
ambigüidade em relação ao antigo, não era apenas a asserção isolada de um
teólogo português que circulava pelo Brasil em meados do século XVII. Era a
afirmação de uma Weltanschauung, de uma visão cósmica sobre os novos tempos
vividos, os quais demarcavam não mais a autoridade do velho, o qual estava sob
o fluxo do devir, mas a autoridade de algo que pairava além do tempo, que não se
restringia nem ao velho, que um dia fora novo, nem ao próprio novo, que algum
dia seria velho: trata-se da razão. Como sugeria Vieira, era a razão que dava
autoridade e crédito aos escritores, não o tempo: a razão é.
Ora, o que poderia subjazer essa afirmação senão a necessidade de ver na
razão o ser, algo que esteve distante dos atribulados séculos XVI e XVII, séculos
em que se reorganizaram mundos dispersos pela violência das guerras religiosas,
pela novidade nos Novos Mundos, pelas invenções técnicas e pelas descobertas
científicas, quando caberia à razão a tarefa de reordená-los através da
representação, do re-apresentá-lo via predicados racionais que não estariam sub
specie temporis, a identidade entre pensamento e ser como mesmo? O êxito do
ser na modernidade se consubstanciou na totalidade e na identidade enquanto
representações ordenadas de um mundo caótico. A razão, o novo ser dos séculos
XVII e XVIII, subsumiu a diferença em prol de um princípio invariável de
39
VIEIRA, op. cit., p. 52.
40
Ibid., p. 52.
39
conhecimento das coisas. Desse modo, para eliminar aquilo que definia a própria
modernidade como devir, nada mais conveniente do que condicionar a realidade e
a validade do conhecimento à razão normativa. De acordo com Souza:
“A razão, como expressará a mentalidade moderna, tem de ser
uma só; pois o contrário seria compatível com a multiplicidade de sentidos,
e o sentido está dado, de uma vez para sempre, na expressão da
igualdade equacional, no verbo ser”
41
.
Um dos cientistas-filósofos mais conhecidos da modernidade, Isaac Newton
(1642-1727), estava obcecado, a exemplo de Vieira, pela exatidão, pelo mundo
verdadeiro do movimento de cada um dos corpos, de maneira a distingui-los dos
movimentos aparentes. Newton estava à procura de leis para todas as coisas,
para que seu sistema do mundo pudesse ser explicado à maneira dos
geômetras
42
. Ainda na esteira da expulsão da temporalidade no pensamento
moderno, Galileu Galilei (1564-1642) aprofundou os estudos que solaparam cada
vez mais o mundo fechado do universo clássico e medieval, via leis ancoradas na
matemática, edificada à linguagem da natureza, através da experimentação e da
observação sistemática, bem como da práxis enquanto indissociabilidade entre
ação e teoria. Talvez tenha sido Galileu o cientista-filósofo que postulou com maior
sistematicidade uma leitura da natureza em formas perenes e universais, ou em
termos de identidade, uma representação subjetiva (porque construída por um
sujeito) da natureza que se acreditava corresponder à realidade e à verdade. Nas
palavras de Koyré:
“Fazendo do que é matemático o fundo da realidade física, Galileu
é necessariamente levado a abandonar o mundo qualitativo e a relegar a
uma esfera subjetiva, ou relativa ao ser vivo, todas as qualidades sensíveis
de que são feitas o mundo aristotélico... Com Galileu e depois de Galileu
presenciamos uma ruptura entre o mundo percebido pelos sentidos e o
mundo real, ou seja, o mundo da ciência. Esse mundo real é a própria
geometria materializada, a geometria realizada”
43
.
41
SOUZA, op. cit., p. 195.
42
NEWTON, Isaac. Princípios matemáticos da filosofia natural. São Paulo: Abril cultural, 1983,
p. 12.
43
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001, p. 55.
40
Para o filósofo que acreditava ser a natureza algo que não se deleitava com
poesias
44
, parecia evidente que aquilo que não se enquadrasse em leis
matemáticas, apreendidas pelo próprio intelecto – leis que expressavam a
linguagem da natureza, em forma de caracteres matemáticos – não seria passível
de um estudo científico, logicamente configurado e empiricamente autenticado.
Ao dar continuidade ao conhecimento seguro das coisas, a perseguição de
um método universal estruturado na matemática foi preconizada por René
Descartes (1596-1650), um dos principais filósofos da modernidade, que estava
inserido naquele mundo que pretendia pensar as coisas sob tudo que fosse
perene e pudesse ser enquadrado em critérios universais de conhecimento. Em O
discurso do método, publicado em 1637, o elogio da igualdade diante de um
mundo percebido empiricamente como distinto foi afirmado a partir de um
conhecimento fortemente ancorado no penso, logo existo. Embora houvesse
outros autores não menos importantes do que Descartes para a compreensão do
espírito moderno, é conveniente determo-nos um pouco em seu pensamento. Na
primeira parte de seu Discurso, encontramos a seguinte afirmação:
“O poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é
propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente
igual em todos os homens; e, destarte, que a diversidade de nossas
opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros,
mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e
não considerarmos as mesmas coisas”
45
.
O autor expressou de modo significativo a dimensão de totalidade do
pensamento e a cumplicidade da razão com um mundo que pretendia solapar o
devir. É interessante perceber no seu pensamento o reconhecimento da diferença
que simplesmente servia para perceber no outro aquilo que o igualava ao mesmo:
a razão. Como sabemos, Descartes, ao longo de sua vida, viajou por toda a
Europa, onde percebeu a enorme variedade que marcava a cultura dos povos. “É
bom saber algo”, dizia o filósofo, “dos costumes de diversos povos, a fim de que
44
GALILEU GALILEI. O ensaiador. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 49.
45
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 29.
41
julguemos os nossos mais sãmente e não pensemos que tudo quanto é contra os
nossos modos é ridículo e contrário à razão”
46
.
Talvez seja possível pensar em um Descartes empírico não tão cartesiano
quanto aquele racionalista. Por ora, o que nos interessa em seu pensamento não
é o reconhecimento da diversidade, que não era percebida por ele somente nos
costumes diferentes de cada povo, mas também nas querelas intermináveis da
filosofia e do conhecimento, mas o seu contrário – a sua extirpação. Nesse
sentido, o autor do Discurso percebeu que as matemáticas, em razão da sua
certeza e da evidência de suas razões permitiria a constituição de um
conhecimento sólido e firme. Por isso, ao reconhecer a diferença, eis o que
afirmou o filósofo:
“É certo que, enquanto me limitava a considerar os costumes dos
outros homens, pouco encontrava que me satisfizesse, pois advertia neles
quase tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as
opiniões dos filósofos. De modo que o maior proveito que daí tirei foi que,
vendo uma porção de coisas que, embora nos pareçam muito
extravagantes e ridículas, não deixam de ser comumente acolhidas e
aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não crer demasiado
firmemente em nada do que me fora inculcado só pelo exemplo e pelo
costume: e assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros que podem
ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a
razão”
47
.
A sua satisfação somente era encontrada na elisão de uma diferença que,
em certos momentos, parecia beirar os limites do extravagante, algo que
obliterava o intelecto na sua capacidade de conhecer e que, portanto, deveria ser
eliminado em prol de uma instância subjetiva universal, encontrável mesmo entre
aqueles povos de “costumes extravagantes”. O devir cartesiano estava associado
ao movimento das coisas sensíveis, enquanto que o ser, acima de qualquer
dimensão temporal, pairava na razão, no cogito, ergo sum.
Os empiristas do século XVII também buscaram o ser em detrimento do
devir. Não obstante sua oposição aos racionalistas, os empiristas também se
esforçaram por atingir “a via certa da mente”, através da experiência, que partisse
de “fatos concretos” e não das idéias pré-concebidas. O filósofo Francis Bacon
(1561-1626), um dos expoentes mais célebres do empirismo, pensando as idéias
46
DESCARTES, op. cit., p. 31.
47
Ibid., p. 33.
42
a priori como ídolos que deveriam ser eliminados pela experimentação, também
almejou uma essência através da elaboração de um método que conduzisse à
verdade, e que partisse de fatos concretos particulares para as formas gerais
(indução), as quais constituiriam suas leis e suas causas
48
. Ao lado de Galileu,
Bacon foi um dos tantos intelectuais que tiveram papel significativo na construção
da ciência moderna, não somente por ter preconizado a experimentação como
princípio fundamental para conhecer o ser, mas também porque seu método
indutivo foi uma verdadeira intervenção sobre a natureza, uma maneira do homem
efetivamente despoetizá-la e assenhorear-se dela para melhor dominá-la, através
de mecanismos fornecidos pelo conhecimento (matemático) e pela aplicação do
método para chegar à verdade representacional das coisas, unidade que somente
seria possível através da razão e do sujeito cognoscente.
Vieira, Descartes, Newton, Galileu, Bacon, entre outros, procuraram os
melhores caminhos para atingir um conhecimento verdadeiro, livre das falsas
percepções e da ficção, em prol da clareza e da distinção, bem como de uma
linguagem que consubstanciasse o objeto e o conhecimento desse objeto,
convertendo o conhecimento em representação no seu sentido mais forte
ontologicamente, com-fundido com a própria realidade idêntica-a-si-mesma
49
. Tal
razão normativa foi o fundamento epistêmico da ciência moderna, essencial para
os esforços de expulsão da temporalidade de suas premissas e proposições
acerca da realidade como diferença.
Em resumo: as duas principais correntes de pensamento do século XVII,
vistas muitas vezes como opostas, foram fundamentais nesse processo de
homogeneização. Horkheimer e Adorno, na Dialética do esclarecimento,
expressaram essa unidade entre os dois movimentos na preconização do ser:
“O esclarecimento só reconhece como ser e acontecer o que se
deixa captar pela unidade. Seu ideal é o sistema do qual se pode deduzir
toda e cada coisa. Não é nisso que sua versão racionalista se distingue da
versão empirista. Embora as diferentes escolas interpretassem de maneira
diferente os axiomas, a estrutura da ciência unitária era sempre a mesma.
O postulado baconiano de una scientia universalis é, apesar de todo o
48
BACON, Francis. Novum Organun. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 27-28.
49
Sempre que a expressão com-fusão é usada (com o hífen), será para expressar a idéia de uma
fusão em comum, e não desordem, bagunça, imprecisão etc., como convencionalmente tal termo é
entendido na língua portuguesa.
43
pluralismo das áreas de pesquisa, tão hostil ao que não pode ser
vinculado, quanto a mathesis universalis de Leibniz à descontinuidade. A
multiplicidade de figuras se reduz à posição e à ordem, a história ao fato,
as coisas à matéria”
50
.
Parecia que o excesso de ser sobre o ser era um sintoma de sua
insuficiência dentro da própria modernidade, uma espécie de transbordamento
que levaria ao reconhecimento de sua precária auto-suficiência
51
. Nesse sentido,
o que torna tais idéias mais interessantes é que, ao inaugurarem ou darem um
forte impulso à modernidade, elas foram concomitantemente fulcrais para as
crises que futuramente, o humanismo e o pensamento ocidental sofreriam através
do niilismo
52
. Um escritor inglês, no século XVII, antecipou esse mar de ceticismo
onde tais idéias desembocariam em fins do século XIX. John Donne, em 1611,
assim se expressou em relação às teorias que desbancaram o ser do pensamento
clássico e medieval através da nova astronomia:
“A nova filosofia põe tudo em dúvida,
E elemento do fogo é logo extinto;
Perde-se o Sol e a Terra; e ninguém hoje
Saberá indicar onde encontrá-la.
Os homens confessam francamente que o mundo acabou,
Enquanto nos Planetas e no Firmamento
Procuram tantas coisas novas; e vêem que este
Dissolve-se mais uma vez em átomos.
Tudo está em pedaços, toda coerência termina;
Não há mais relações justas, nem nada é conforme
Príncipe, súdito, pai, filho são coisas esquecidas”
53
.
50
ADORNO, Theodor, HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar,
1986, p. 22.
51
Afirmar que a modernidade, na condição de cosmovisão, é algo simples de ser compreendido
não passa de retórica taxonômica. A modernidade, como podemos depreender da história do
pensamento, é profundamente marcada pela complexidade. Ver, a propósito: HABERMAS, Jürgen.
O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002 e GAUER, Ruth.
Cumplicidade entre idéias científicas, antropologia e história. Histórica, Porto Alegre, n.5, 2001.
52
Essa é uma das leituras que Nietzsche fez, ao afirmar que “desde Copérnico”, cuja teoria teve
como principal corolário filosófico o descentramento do homem, “o homem parece ter caído em um
plano inclinado – ele rola, cada vez mais veloz, para longe do centro – para onde? Rumo ao nada?
Ao lancinante sentimento de seu nada”. Ver: NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. [1887].
São Paulo: Cia das Letras, 1998, terceira dissertação, § 25, p. 142-143.
53
DONNE, John. Poems. Disponível em: <http://www.poemhunter.com.> Acesso em 12 de março
de.2006, p. 20-21. No original: “And new philosophy calls all in doubt, The element of fire is quite
put out, The sun is lost, and th’earth, and no man’s wit, Can well direct him where to look of it, And
freely men confess that this world spent, When in the planets and the firmament, They seek so
many new, they see that this, Is crumbled out again to his atomies. ‘Tis all in pieces, all coherence
gone, All just supply, and all relation, Prince, subject, father, son, are things forgot”.
44
Mas, em fins do século XVII, as novas teorias científicas e filosóficas
tornaram-se sedutoras. Os princípios de universalidade e o conhecimento da
natureza via razão, sem o apelo necessário à teologia, foram as formas
consideradas ideais para atingir um conhecimento seguro e perene. Não obstante,
ainda não se estava no século das Luzes, para que a razão e a sua
consubstanciação com o progresso se desenvolvessem de modo quase
inseparável, formando um novo arranjo identificante que balizaria tal modernidade
através das filosofias da história.
Os pensadores do século XVIII estavam impregnados de fé na unidade e na
imutabilidade da razão. Para eles, a razão era una e idêntica para todo o sujeito
pensante, para toda a nação, época e cultura. Se no século XVII, a razão foi
colocada cada vez mais como centro de convergência para a construção das
unidades, o século XVIII manteve e até aprofundou sua função unificadora. O
conhecimento de uma multiplicidade significava, nas palavras de Cassirer, colocar
os seus elementos em relação recíproca de tal maneira que, partindo de um ponto
determinado, a totalidade pudesse ser percorrida segundo uma regra constante e
geral, uma forma discursiva de redução do “complexo ao simples”, “da diversidade
aparente à identidade que a fundamenta”
54
. A partir daí, houve uma efetiva
mudança no campo da filosofia da história, que já vinha sendo operada na
cosmovisão ocidental ao longo do século XVII, a qual se traduzia em uma
concepção de história cada vez mais dissociada da teologia e da escatologia cristã
e agostiniana. Tal idéia, que estava ancorada na universalidade da razão, incluía
“as experiências históricas em uma única história com tendência a abraçar toda a
humanidade”, uma maneira de controlar o passado e projetar o futuro através da
crença de que a redenção da humanidade estava no porvir
55
.
Sem as grandes representações do processo histórico, dificilmente haveria
uma ontologia da nação fundada em uma idéia de processo universal pelo qual
todas as sociedades supostamente passariam. As filosofias da história, tomadas
como “especulação sobre o devir da humanidade considerado no seu conjunto
54
CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1984, p. 45.
55
CASSIRER, op. cit., p. 45.
45
para lhe apurar as leis”
56
, formavam o fulcro temporal sedimentado para a
constituição da nação moderna. Poderíamos afirmar, nesse sentido, que as
filosofias da história eram totalidades na sua consubstanciação de passado-
presente-futuro, que transcendiam o tempo por meio de um meta-sujeito que se
com-fundia com o ser: a nação é
57
.
Voltaire, com a obra chamada Filosofia da história, usou essa expressão
pela primeira vez
58
. Sua pretensão não era fazer uma história da nação que se
enquadrasse no movimento geral da história, mas sim uma obra em que a análise
das civilizações, como tal, preponderasse. Nesse sentido, o autor escreveu sobre
uma série de diferentes civilizações ao longo da história, passando pela
Antigüidade no Oriente e no Ocidente, bem como nas Américas e até mesmo nas
civilizações do Extremo-Oriente, como a Índia e a China
59
.
A filosofia da história como especulação acerca do devir total da
humanidade e esforço de apreensão racional da história e de sua inteligibilidade,
foi desenvolvido de maneira mais metódica, entre outros, por Kant, Vico, Herder,
Hegel, Comte, Marx e Ranke. Em todos esses casos, a história estava
subordinada às filosofias da história, ou à “História”, o que significa dizer que a
totalidade do devir subsumia a própria história, jogando-a para a identidade entre
pensamento e ser na história.
A começar por Vico (1668-1744) – que não teve grande repercussão entre
seus contemporâneos, ao questionar o cogito cartesiano e a dedução como
56
MARROU, Henri-Ireneé. Do conhecimento histórico. Lisboa: Áster, 1974, p. 9.
57
Paul Veyne afirma que as filosofias da história são um gênero morto, haja vista a carência de
validade epistemológica dos estudos que pretendem dar uma explicação global do processo
histórico. Não podemos deixar de reconhecer que a história é uma idéia-limite, e que a História,
com “H” maiúsculo, não pode ser escrita. Como afirma o autor, “as historiografias que se acreditam
totais, sem se darem conta, enganam o leitor sobre sua mercadoria”, e as filosofias da história
“são um nonsense que resulta da ilusão dogmática, ou melhor, seriam um nonsense se não
fossem, quase sempre, filosofias de uma ‘história de...’ dentre outras, a história nacional”. Veyne
tem razão ao afirmar a ausência de uma consistência nos trabalhos que pecam por excessiva
totalidade sem apresentar um quadro de evidências plausíveis. Por outro lado, compreendemos
que teorizar a respeito dessas filosofias, pensá-las também como frutos de seu tempo, como idéias
que se pretendiam legitimar, apresentando traços de uma determinada cosmovisão, é uma tarefa
em relação à qual o historiador não pode se furtar de investigar e que não deixa de ser, também,
uma idéia-limite. Ver: VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Ed. da Unb, 1998, p.
38-39.
58
BAUMER, op. cit., p. 265.
59
VOLTAIRE. Filosofía de la historia. Madrid: Tecnos, 1990.
46
método plausível – a filosofia da história estava relacionada à Providência. Para o
filósofo, apesar da variedade e da diversidade de costumes, a evolução dos povos
tinha uma uniformidade perfeita, a qual passava por três etapas, a saber, a etapa
dos deuses (as sociedades patriarcais), a etapa dos heróis (as sociedades
aristocratas) e a etapa dos homens (as sociedades da filosofia e das ciências). A
outra lei de sua filosofia da história residia no chamado ricorsi, ou seja, o retorno
regular da humanidade às suas origens, a qual seguiria a graça eterna da ordem
estabelecida pela Providência
60
.
Kant não desenvolveu um pensamento histórico tal como Vico. Ele entendia
que a história era um processo racional que se desenrolava num plano inteligível e
que tendia para uma meta que a razão moral poderia aprovar
61
. A história da
espécie humana em seu conjunto poderia ser considerada como a realização de
um plano secreto da Natureza para criar uma constituição política perfeita
62
.
Essas leis gerais da Natureza determinavam, para o autor, as ações humanas,
manifestações fenomênicas da liberdade da vontade. Tal intenção da Natureza
deveria fazer parte do esforço de reflexão do filósofo em relação ao “curso
contraditório das coisas humanas”, uma maneira de descobrir a priori na história
universal um “fio condutor”
63
. Kant entendia que a Natureza nada fazia
gratuitamente e “nem era pródiga no emprego dos meios para seus fins”
64
. O fato
de haver “dotado o homem de razão e, assim, da liberdade da vontade que nela
se funda”, era um sinal inequívoco de que havia essa intenção da Natureza na
história
65
. De acordo com Baumer, a filosofia da história kantiana pressupunha
que o homem era capaz de determinar um fim moral para si próprio na história e
depois realizá-lo através de suas ações
66
. Em um plano global, os filósofos da
60
DOSSE, François. A história. Bauru: EDUSC, 2004, p. 228-229.
61
WALSH, W. Introdução à filosofia da história. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p.120.
62
KANT, Immanuel. Filosofía de la historia. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica,
[1941], p. 57.
63
KANT, op. cit., p. 41.
64
Ibid., p. 44.
65
Ibid., p. 44.
66
BAUMER, op. cit., p. 269.
47
história do século XVIII tinham tendência para procurar o universal: as leis gerais
que uniam todos os povos, as fases através das quais todos tinham de passar
67
.
Nesse plano de fixação de um fim moral do homem para si, havia uma
sintonia com o pensamento nacionalista em gestação nesse período. A sua idéia
de que o homem poderia somente ser livre se ele obedecesse às leis da
moralidade que ele encontrava em si próprio, e não em uma entidade externa a
ele, como Deus, lançava como supremo bem a auto-determinação, o que colocava
o individual enquanto substância indivisível na condição de centro e soberania do
universo
68
.
Mas se em Kant havia uma filosofia da história e uma racionalização do
devir humano, ela não estava separada de uma razão moral a partir da qual o
homem poderia fixar um fim e realizá-lo na história, um princípio que envolvia a
autonomia como fundamento. Walsh entende que a proposta kantiana era o
estabelecimento, via realização da Natureza, de uma confederação de nações
com autoridade sobre todos os seus membros
69
. É possível perceber no filósofo
uma articulação do pensamento da nação com a filosofia da história. Apesar da
importância de Kant, Vico e Voltaire, foi somente no século XIX que as filosofias
da história como ontologias nacionais se desenvolveram de um modo mais
sistemático. Herder, Ranke, Comte, Hegel e, em certo sentido Marx, foram os
principais teóricos da filosofia especulativa da história no contexto intelectual
europeu
70
.
Herder estava atrelado ao movimento romântico europeu do século XIX.
Sua filosofia da história foi um dos casos mais típicos da conjunção entre
especulação global do processo histórico e afirmação da nação. Para o romântico
alemão, o iluminismo preconizava um racionalismo universalista que desprezava
67
BAUMER, op.cit., p. 284.
68
ÖZKIRIMLI, Umut. Theories of nationalism. New York: St. Claire, 2000, p. 16. O individual
usado acima é apenas uma expressão para destacar o primado da indivisibilidade ontológica, sem
qualquer relação com uma discussão conceitual acerca de sua relação conflituosa com a idéia de
sujeito.
69
WALSH, op. cit., p. 120.
70
Talvez fosse possível incluir na relação das filosofias da história o pensamento de Vieira e seu
anúncio do Quinto Império, tratado em sua História do futuro. Perceber em Portugal uma certa
filosofia da história com a construção teórica do Estado-nação já no século XVII é uma tarefa em
aberto, que merece aprofundamento teórico e empírico por parte dos historiadores e dos filósofos.
48
tudo o que era estranho. Em lugar de fazer consistir a história “no advento de uma
razão desencarnada e por toda a parte idêntica”, Herder via nela o jogo
contrastado de individualidades culturais, cada uma das quais constituindo uma
comunidade específica, “um povo, um Volk, onde a humanidade exprime cada vez
de modo insubstituível um aspecto de si mesma e de que o povo alemão é o
exemplo moderno”
71
.
Interessante notar que, se Kant havia colocado no campo da
autodeterminação do sujeito a base de sua filosofia da história, em Herder é
possível perceber esse sujeito auto-afirmado como sinônimo do Estado-nação.
Não que não pudesse haver essa mesma associação entre auto-determinação e
nação em Kant, mas no pensamento de Herder, tal relação era evidente. A nação
tornara-se o singular-coletivo. Apesar de Herder ver no Estado alemão um grande
exemplo da nação na modernidade, suas idéias estavam ancoradas na afirmação
de uma igualdade de direito entre as culturas, o que significa dizer que as culturas
eram vistas como outros tantos sujeitos, iguais apesar de sua diferença
72
.
Em Hegel, as dimensões especulativas da filosofia da história atingiriam
níveis significativos, ao fundar uma totalidade que não somente resolvia
dialeticamente a oposição entre subjetividade e objetividade, entre universal e
particular, mas também que unia a filosofia da história e a nação através do
progresso atingido
73
. O universal somente se realizaria no particular, que assim se
tornaria singularidade, cuja história nada mais seria do que a sucessão de
personagens e culturas (nacionais) que representariam uma ação universal na
história. O seu anseio pela totalidade não repousava na idéia do Estado-nação per
se, mas na sua tentativa de reconciliar todos os opostos em uma vasta síntese e
mostrar que essa síntese estava presente no Estado-nação moderno como o
apogeu de tudo o que o precedeu
74
. Desse modo, é possível apreender em seu
pensamento, além da idéia de um Estado-nação como singular-coletivo, a
consubstanciação desse Estado-nação com a “História”.
71
DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideología moderna.
Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 126.
72
DUMONT, op.cit., p. 127.
73
HEGEL, Georg W. F. Filosofia da história. Brasília: Ed. da UnB, 1995, p. 53.
74
DUMONT, op. cit., p. 117.
49
Se Hegel foi o filósofo do devir no século da história, ele também foi,
paradoxalmente, o filósofo em que a totalidade da filosofia da história se com-
fundiu com a totalidade do Estado-nação, formando uma unidade ontológica que
estava acima de qualquer dimensão histórica, sobretudo porque, juntamente com
essa substancialização da filosofia da história e do Estado-nação, havia um fim da
história, a plena realização do Espírito, que levaria a mobilidade ao seu
fechamento no ser e ao seu triunfo absoluto através do progresso. Essa
fundamentação da filosofia da história hegeliana fora da própria história demonstra
o quanto havia de ser no pensamento de Hegel.
Como sugere Lima Vaz, Hegel percebeu que não poderia pensar a história
erigindo em arché ou princípio o próprio fluir de seu curso empírico
75
. A
voracidade do tempo foi levada a sério pelo filósofo, que “pensou a história a partir
da história sem se perder na história”
76
. Se o grande modelo cosmológico dos
movimentos uniformes e eternos que davam regularidade e ordem na agitação
dos movimentos sublunares não era mais a referência fundamental para o
pensamento da história, impunha-se encontrar um sentido imanente à história,
mas transcendente à contingência espácio-temporal do curso histórico. Para Lima
Vaz, Hegel tentou articular esse sentido em tecido complexo de mediações no
qual deveriam estar presentes a estrutura formal e o vetor teleológico de todo o
pensamento dialético
77
. Hegel apreendeu a radicalidade da história e tentou
domesticá-la em uma totalidade que levaria ao fim da história e ao triunfo do saber
absoluto. Mas não era somente Hegel quem postulava uma filosofia da história no
sentido de apreensão do processo universal do movimento histórico.
Para que tenhamos uma idéia da força das filosofias históricas da nação no
século XIX, elas seduziram até historiadores que supostamente teriam expulsado
o sentido da história e que, portanto, se colocavam como rivais de Hegel, dos
hegelianos e dos metafísicos em geral, tais como o historiador Leopold Von Ranke
(1795-1886), que não buscava, ao menos explicitamente, um sentido da história
75
VAZ, Henrique de Lima. Por que ler Hegel hoje? In: BONI, Luis Alberto de (Org.). Finitude e
transcendência. Porto Alegre/Petrópolis: Edipucrs/Vozes, 1996, p. 234.
76
VAZ, op. cit., p. 234.
77
Ibid., p. 234.
50
nem formas de ver a história como uma totalidade compreendida pela razão de
modo a priori. A despeito de sua pretensão de apreender a visão de “determinado
momento, em sua realidade, em sua evolução específica”, o específico, para ele,
tinha uma conotação de totalidade. Eis o que disse o historiador:
“O específico encerra em si o geral. Todavia permanece sempre a
exigência de encarar o todo de um ponto de vista isento; aliás, é também o
que de algum modo buscamos; da diversidade das percepções isoladas irá
surgir natural e espontaneamente uma noção de unidade”
78
.
Seria possível afirmar que Ranke se propunha uma tarefa mais modesta do
que Hegel. Seu propósito era se ater aos “grandes acontecimentos, ao progresso
das relações externas entre os Estados”
79
, ao wie es eigentlich gewesen (como os
fatos realmente aconteceram). O autor preconizava uma filosofia da história,
aparentemente sem um fim, ao menos no plano das evidências, mas reconhecia
que havia princípios gerais e uma certa totalidade do processo histórico
80
. Nas
suas palavras:
“A história universal não apresenta apenas o espetáculo de
combates fortuitos, ataques recíprocos, Estados e povos que se sucedem,
como pode parecer à primeira vista. Nem consiste apenas na imposição
tantas vezes duvidosa de valores da cultura. O que vemos evoluir são
forças, espirituais em verdade, forças geradoras da vida, forças criadoras
e, em suma, a própria vida. São energias morais. Não podem ser definidas
por meio de abstrações, mas contempladas e captadas; podemos senti-las
e compreendê-las. Elas florescem, conquistam o mundo, se manifestam
em múltiplas expressões, entrechocam-se, defendem-se, subjugam-se
umas às outras, em seu agir e reagir, em seu viver, em seu decair ou em
seu ressurgir, ganhando crescente plenitude, valor mais alto, perspectivas
mais amplas. Aqui está o segredo da História Universal. Quando, pois,
uma força espiritual nos agredir, é mister enfrentá-la com forças espirituais.
À supremacia com que outra nação nos ameace, só nos cabe opor o
expandir-se de nossa própria nacionalidade. Não pense com isto em uma
nacionalidade arquitetada, quimérica, mas essencial, presente, que se
exprima no Estado”
81
.
78
RANKE, Leopold Von. As grandes potências. In: Ranke: história. São Paulo: Ática, 1979, p.
146.
79
RANKE, op. cit., p. 147.
80
O historiador não deixou de ensaiar uma idéia de apreensão global do processo histórico, ao
fazer referência a Heráclito, filósofo pré-socrático que considerava a guerra o pai de todas as
coisas, posto que do contraste das forças antagônicas, “nos grandes momentos de supremo perigo
– desgraça, revolução, salvamento –, nascem de maneira mais decisiva os novos progressos”. Ver:
RANKE, op. cit., p. 175.
81
Ibid., p. 179.
51
Nessa citação, relativamente extensa, Ranke apresentou, assim como
Herder e Hegel, o rosto do Estado-nação na sua filosofia da história. Sua História
Universal era a apreensão desse espírito, das “forças geradoras da vida”, da
expansão das forças nacionais e espirituais, de um espírito moral que se
apresentava no Estado-nação.
O historiador pensava que uma das contribuições dos acontecimentos de
seu tempo havia sido o despertar da consciência geral para a importância da força
moral e da nacionalidade para o Estado. “O que teria sido de nossos Estados”,
disse ele, “se não tivessem recebido nova vida e novo alento do princípio nacional
em que foram fundados? Ilude-se quem pense que é possível viver sem este
princípio”
82
.
No interior de sua filosofia especulativa da história, Ranke problematizou o
surgimento da nação na modernidade. Em seu pensamento, a atenção maior não
recaia para os sistemas políticos formais, mas para o que era considerado a sua
essência, que residia “no fato dos grandes Estados erguerem-se com as próprias
forças nas novas entidades nacionais que emergiam do cenário do grande teatro
do mundo”
83
.
Havia ainda outras filosofias da história que não fundamentavam o seu ideal
de progresso na nação, tais como o positivismo e o marxismo, ambos
pertencentes a um movimento intelectual mais amplo do século XIX que se
convencionou chamar neoiluminismo
84
.
Na filosofia da história positivista proposta por Comte sustentava-se uma
crença em fases da história universal. Para o filósofo, havia uma lei na história,
denominada lei dos três estados, que se sucediam na história até chegar ao
estado positivo – antes dele, haveria o estado teológico e o estado metafísico
como as fases respectivamente primária e intermediária da história. Comte estava
no centro de um movimento de pensamento que pretendia recompor a ordem na
Europa após um período revolucionário. Não obstante, o autor não parece ter se
preocupado com a nação. Suas idéias em torno das leis que regiam as
82
RANKE, op. cit., p. 177.
83
Ibid., p. 168.
84
Ver o capítulo O neoiluminismo. In: BAUMER, op. cit., vol.2.
52
sociedades não tinham como centro de interesse a nação, mas sim a humanidade.
Nas suas palavras, “a lei suprema dos progressos do espírito humano impulsiona
e domina tudo; para ela, os homens não são mais do que instrumentos”
85
. Seu
desejo de pôr ordem no movimento, de domesticar o devir, era uma concepção da
sociedade como um organismo que necessitava, ao mesmo tempo da diversidade
de seus órgãos e da unidade da vida e da energia.
Em Marx, o devir da humanidade era dividido em modos de produção, ou
seja, as maneiras como os seres humanos se relacionavam em termos de
produção na sua vida social. Os modelos criados pelo autor foram o modo de
produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno
86
, no seio dos quais teria
havido sempre uma revolução social que engendraria um outro modo de produção
até o capitalista (burguês moderno), cujo desenvolvimento das forças produtivas
teria criado as condições materiais para a solução da “última forma antagônica do
processo social de produção”, ou seja, das relações burguesas de produção
87
.
Com o surgimento do modo de produção comunista, a luta de classes (motor da
história humana) chegaria ao seu fim e, com ela, a história da humanidade, ou,
nas suas palavras, a “pré-história da sociedade humana”
88
.
Seu pensamento deve ser inserido nas grandes filosofias da história na
medida em que reconhecia na luta de classes um princípio fundamental do
movimento da história, além de apreender um tempo em que a escatologia
teológica tradicional dava lugar a uma escatologia judaico-cristã secularizada, na
qual o papel redentor do justo não seria mais realizado por Deus, mas pelo
proletariado. O filósofo também elaborou um esquema de explicação global do
processo histórico que se pretendia real, científico e, portanto, afastado das
concepções supostamente metafísicas de seus êmulos. Por outro lado, as suas
85
COMTE, Auguste. Opúsculos de filosofia social. [1819-1828]. Porto Alegre/São Paulo: Globo/
Ed. da USP, 1972, p. 31.
86
MARX, Karl. Para a crítica da economia política.[1857]. In: Manuscritos econômico-filosóficos
e outros escritos. São Paulo: Nova Cultural, 2vol., p. 30.
87
MARX, op. cit., p.30.
88
Ibid., p. 30.
53
referências à nação eram ambíguas, sem falar que Marx jamais colocou no centro
de sua filosofia, a nação como o grande motor da história
89
.
A busca do ser no mundo, os grandes sistemas filosóficos, as
uniformidades de método e de conceitos que colocaram o sujeito como
fundamento e centro plenamente consciente desse conhecimento, a disposição
para a universalidade e para o pensamento que se consolidou como filosofia da
história da civilização e da nação, foram os componentes centrais da
Weltanschauung nos séculos XVII, XVIII e mesmo no século XIX, os quais se
estenderam para além das ciências empírico-formais – as quais mantinham uma
cumplicidade maior com a perenidade –, balizando profundamente a cultura
filosófica, histórica e científica do Ocidente moderno.
Se, por um lado, as filosofias da história, a filosofia e o pensamento
cientificista esconjuravam a temporalidade, ela não estava, por outro, afastada do
pensamento da maior parte dos autores que viveram durante os séculos XVII,
XVIII e XIX. Basta, para isso, lembrarmos dos verbos mencionados por John
Donne, ao referir que a nova filosofia, no setecentos, estava destruindo tudo:
extinguir-se (put out), perder-se (lose), acabar (spend), dissolver-se (crumble out)
e terminar (go).
Não pretendemos, em nenhum momento, afirmar que a temporalidade ou o
devir não-domesticado estivesse ausente do pensamento ocidental e, em
especial, do pensamento moderno. Não se trata de uma criação ex nihilo dos fins
do século XIX e princípios do século XX. A questão que colocamos é que, mesmo
quando o ser se tornou devir, no século XIX, tal dimensão temporal encontrava a
sua síntese em conceitos mais amplos que subsumiam a diferença em nome do
mesmo: sociedade sem classes, espírito absoluto, sociedade positiva, entre
outros.
Não obstante, foi somente no fin-de-siècle que o problema do devir em sua
nudez, quando sua redução ao ser e ao conceito se tornou mais problemática e de
89
Não somente Marx e Engels tiveram problemas para compreender a nação enquanto fenômeno
histórico, mas o marxismo em geral, bem como Nietzsche, Freud e outros pensadores importantes.
Para uma leitura a respeito dos silêncios em relação à nação, ver: ÖZKIRIMLI, op. cit., p. 25-30;
ANDERSON, Benedict. Introdução. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.). Um mapa da questão
nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
54
intrincada consecução, que a temporalidade passou a ser, como sugere Baumer,
enigmática
90
. Talvez tenha sido essa a razão do questionamento de Martin
Heidegger, ao afirmar, em uma conferência pronunciada nos anos 50, que a
“questão da essência torna-se mais viva quando aquilo por cuja essência se
interroga, se obscurece e confunde, quando ao mesmo tempo a relação do
homem para o que é questionado se mostra vacilante e abalada”
91
. O que poderia
ser mais abalador do que a temporalidade sem seus predicados de ser? Não
estaríamos diante daquele devir explosivo que fragmentava todo o universo ou
que sequer permitia a sua formação
92
? Passemos para esses predicados da
modernidade em termos de temporalidade que estavam na agenda intelectual
finissecular.
1.4 – A modernidade finissecular
Se até os fins do século XIX havia predominado a concepção de uma razão
cujo tempo normativo, matematizado, quantificável, auto-suficiente e especulativo
pretendia exorcizar de si mesmo o devir que o acompanhava através de sua
domesticação por meio dos mais diversos instrumentos anamnésicos de retenção
do ser – problema, que, evidentemente, não desapareceu – as cosmovisões
finisseculares cada vez mais colocavam na ordem do dia o devir sem grandes
ornatos, a explosão de todas as grandes categorias que vigoravam como
fundamentos indissolúveis do pensamento. Bodei, ao escrever sobre os últimos
anos do século XIX, assim se manifesta:
“Nesse universo em perene movimento, a realidade redesenha-se
e reinterpreta-se continuamente; o conceito de ‘dados sensíveis’
rigidamente positivista desprende-se (o objeto visível complica-se em
manchas coloridas, dissolve-se em linhas e planos que não obedecem
mais aos cânones da velha geometria projetiva; as tonalidades musicais se
entrecruzam, os sons se esvaem ou os acordes tornam-se audazes,
principalmente dissonantes ou chocantes); também a linguagem e os
módulos de pensamento devem mudar, desmanchar-se, recompor-se em
níveis diversos e assimétricos, adquirir maior plasticidade e elasticidade,
90
BAUMER, op. cit., p. 40.
91
HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? In: Conferências e escritos filosóficos. São
Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 16.
92
BAUMER, op. cit., p. 39.
55
para manter sob controle estados de consciência e projetos de intervenção
sobre um mundo mutável que tem um alto coeficiente de obsolescência;
devem ir sempre além da capacidade média de recepção do grande
público, que distingue a reconstituição do momento inercial, a passividade
e a reificação que rapidamente se reproduz a cada novo avanço”
93
.
Do pensamento manifesto e formal em todas as áreas do saber, passando
pelas artes plásticas e pela música, a nota principal que parecia tocar os ouvidos
dos homens desse período era o devir. O movimento, a reinterpretação contínua
da realidade, os desprendimentos conceituais, a decomposição dos grandes
cânones, a plasticidade e a elasticidade: todas eram palavras que evocavam uma
realidade fecunda em termos de mudanças. Tratava-se, efetivamente, de um
século turbulento, cuja expressão fim-de-século havia sido criada, nas palavras de
Araripe Júnior, para que os críticos se furtassem “a explicações, que teriam de
abranger a parte caótica da literatura contemporânea”
94
.
As reflexões que relacionavam o pensamento, a teoria, a ciência e a
filosofia com o tempo não estavam limitadas às ciências humanas. No campo da
física, por exemplo, o princípio das teorias da entropia e dos sistemas dinâmicos
irreversíveis foram introduzidos na segunda metade do século XIX
95
, por físicos
como Ludwig Boltzmann, que entendia ser tal século o momento em que a vida
havia sido concebida como o resultado de um processo contínuo de evolução, em
que “o devir era posto no centro de nossa compreensão da natureza”
96
,
diferentemente da visão determinista e reversível de matriz newtoniana, em que
passado e futuro não tinham importância para o conhecimento e aplicação de uma
lei física
97
. Na química, com o surgimento de uma química não-lavoisieriana em
fins do século – que “contrariava o princípio da simplicidade e da estabilidade das
93
BODEI, op.cit., p. 22.
94
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. O sentimento trágico do século XIX. [1904]. In: Obra
crítica. Rio de Janeiro: MEC/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1970, vol. 5, p. 84.
95
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e leis da natureza. São Paulo: Ed. da
UNESP, 1996, p. 24-25.
96
PRIGOGINE, op. cit., p. 26.
97
Ibid., p. 19.
56
substâncias elementares”
98
– se demonstrava, nas palavras de Bachelard, a
complexidade e a dispersão do fenômeno científico
99
.
Havia uma mudança em relação ao pensamento científico clássico, no qual
o tempo implicava reversibilidade. A reversibilidade significava que qualquer
inversão dos acontecimentos e dos acontecimentos passados do sistema em um
dado fenômeno, em nada mudaria as equações que o descreveriam
100
. A
termodinâmica, na passagem para o século XX, alterou a idéia da inexistência do
tempo para a ciência, ao questionar que as diferenças entre passado, presente e
futuro não eram ilusões, mas fatores presentes em suas equações que
pretenderam, a partir de então, provar a existência do tempo através da
irreversibilidade dos fenômenos. No caso da energia cinética, ela poderia ser
integralmente convertida em energia térmica cujo fim seria a sua dissolução
101
.
Não que o movimento fosse ausente na ciência clássica, mas ele era uniforme. No
caso da termodinâmica, Piettre sugere que havia uma orientação para a morte e
para a desordem. Nesse sentido, o universo inteiro estaria condenado a um
resfriamento indiferenciado e a uma morte térmica
102
.
Evidenciamos, por meio dessas referências, que nem as ciências empírico-
formais foram poupadas da crença no devir. Se havia uma materialidade do
tempo, essa é uma questão que permanece em aberto. O que nos interessa mais,
para os fins da tese, é a relevância que a idéia de tempo assumiu na ciência de
fins do século, colocando em xeque o pressuposto da eternidade e da
imutabilidade das leis da mecânica clássica, a preocupação partilhada que esses
pensadores tiveram na reflexão acerca da temporalidade, essa reprimida que
acompanhou a tradição moderna do pensamento que se fez ocidental e que
retornou para ocupar um lugar central na mente de muitos homens finisseculares.
O fato de colocarmos lado a lado as ciências do espírito e as ciências da
natureza não quer dizer que estejamos postulando qualquer corolário
98
BACHELARD, Gaston. A filosofia do não. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978,
p. 41.
99
BACHELARD, op. cit., p. 41.
100
PIETTRE, Bernard. Filosofia e ciência do tempo. Bauru: EDUSC, 1997, p. 60.
101
PIETTRE, op.cit., p. 62.
102
Ibid., p.64.
57
epistemológico homogêneo entre elas, mas sim uma cosmovisão agônica (cosmo-
agonia) comum a ambas, que as colocava na realidade fluidificada da
temporalidade.
Nas décadas subseqüentes, o pensamento, tanto na Europa Ocidental
quanto nas Américas, manteve-se ocupado com a tematização do devir como
reflexão acerca da mudança, da morte, da decadência, da corrupção, da ruína, do
efêmero, da esperança, enfim, de toda a realidade que pudesse evocar a ausência
de certeza, exatidão e ser.
Simmel, em seu Problemas de filosofia da história, publicado em 1892,
questionou peremptoriamente as filosofias progressistas da história, ao relacioná-
las com um ideal final absoluto existente fora de toda historicidade. O autor
pensava que os homens, enquanto nadassem “na ruidosa corrente de vivências” e
adquirissem consciência dela de um modo imediato, não chegariam a “possuir em
realidade uma ‘imagem’”, pois esta sempre exigiria uma “unidade formal”,
excluindo o que não lhe pertencesse, ao se concentrar em si mesma
103
. No seu
pensamento, o conceito acabava por sacrificar a historicidade, ao fixar o
pensamento e deixar a fluidez da existência sedimentada em termos formais.
Nietzsche, a exemplo de Simmel, exultava a vida humana em seu devir.
Sua obra, assistemática por excelência, era um elogio às forças da mudança. Um
aforismo, escrito em 1882, deu o tom de seu pensamento: “toda coisa tem duas
faces, uma do passar, outra do devir”
104
. Essa sentença fala por si mesma:
passagem e devir como duas faces de uma coisa. A substância, a coisidade, o ser
em si eram disparates. Por muito tempo foi preciso, afirmou o filósofo, “que o que
há de mutável nas coisas não fosse visto nem sentido”
105
. Diante do medo da
realidade em fluxo, do ceticismo e do que pudesse se desvanecer, a lógica (razão)
103
SIMMEL, Georg. Problemas de filosofía de la historia. [1892]. Buenos Aires: Editorial Nova,
1950, p. 252.
104
NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para depois de amanhã. São Paulo: Martins Fontes, 2005,
p. 135, aforismo 147.
105
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. [1882]. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p. 139,
aforismo 111.
58
teria sido triunfante para perceber a igualdade em tudo, quando nada, na
realidade, era igual e semelhante
106
. Por fim:
“O mundo tornou-se novamente ‘infinito’ para nós: na medida em
que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas
interpretações. Mais uma vez nos acomete o grande tremor – mas quem
teria vontade de imediatamente divinizar de novo, à maneira antiga, esse
monstruoso mundo desconhecido? E passar a adorar o desconhecido
como ‘o ser desconhecido’? (grifos do autor)
107
.
O infinito, despido de seu peso metafísico e transcendente, era um dos
conceitos fundamentais do mundo transformado em devir. O monstruoso mundo
desconhecido, como Nietzsche o definiu, era a maneira como muitos intelectuais
notavam o fin-de-siècle. Não o infinito prometeico de Bacon, que não percebia
limites em relação à ação sobre a realidade, mas o infinito enquanto realidade
sempre aberta para a alteridade, para aquilo que escapava dos próprios limites da
razão normativa, no seu impulso de tudo dominar.
Ainda seria possível elencar outros pensadores, tais como Bergson,
conhecido como o filósofo do devir. Obras como Ensaios sobre os dados
imediatos da consciência (1889), Matéria e memória (1896) e Evolução criadora
(1907) tinham como ponto em comum a reflexão acerca do tempo enquanto um
enrolar-se contínuo do passado no presente, fluxo incessante ao qual Bergson
chamou duração. Tal conceito é encontrável em praticamente toda a sua obra
108
.
Em uma carta a William James, escrita em 1903, Bergson via a necessidade da
filosofia em “transcender os conceitos, a lógica simples, enfim, os procedimentos
de uma filosofia demasiado sistemática que postula a unidade do todo”
109
.
Falando com Simmel, Bergson pensava que romper com essa unidade era deixar
os conceitos fluírem em seu devir, como assim o autor se expressou em um texto
chamado Introdução à metafísica, publicado no mesmo ano da sua carta citada
acima. O movimento que progride, a multiplicidade de estados que se espalham, a
duração que se faz continuamente, tais eram algumas das palavras que
106
NIETZSCHE, op.cit., p.139, aforismo 111.
107
Ibid., p. 278, aforismo 374.
108
BERGSON, Henri. Essai sur les donnés immédiates de la conscience. [1889]. Paris:
Presses Universitaires de France, 1976, p. 56-104.
109
BERGSON, Henri. Carta a William James. [25 de março de 1903]. In: op.cit., p. 12.
59
apareciam com recorrência em seu texto
110
. Bergson via uma realidade sempre
em movimento, cujas representações conceituais estavam em atraso em relação
ao objeto representado – o devir –, pois “não há estado de alma, por mais simples
que seja, que não mude a cada instante”
111
. “Querer”, disse ele, “com os
conceitos, penetrar na natureza íntima das coisas é aplicar à mobilidade do real
um método feito para fornecer pontos de vista imóveis sobre ela”
112
.
Max Nordau, via (e combatia) o niilismo e a relativização crescentes no
pensamento. Nordau entendia que a maior doença do “nosso tempo é a
covardia”
113
:
“Não há a coragem precisa para cada um arvorar a sua bandeira,
assumir a responsabilidade do que julga ser verdade, harmonizar os atos
com as convicções. Todos pensam ser prudente e hábil a conformação aos
usos, a observação das exterioridades... Ninguém quer desagradar a quem
quer que seja, nem ferir qualquer preconceito, porque é necessário
respeitar as opiniões alheias
114
.
Mais do que coragem ou responsabilidade, os ânimos intelectuais
finisseculares pareciam carregar uma enorme dúvida acerca de toda a realidade,
cuja complexidade estimulava autores como Nordau a buscar a certeza e a
convicção onde outros pensadores não se animavam a procurá-las, não porque
fossem pusilânimes ou covardes, mas por razões que levavam o próprio Nordau a
buscar a certeza e a objetividade. O que parecia deixar o autor irritado era o
descompasso entre o desenvolvimento da sociedade e a sua inquietação: “apesar
do aumento de todas as condições do bem-estar, a humanidade está mais
descontente, mais inquieta, mais agitada do que nunca”
115
.
Em Portugal, onde Max Nordau foi lido e Eduardo Prado teve muitos
amigos, não foram poucos os intelectuais que se depararam com a mesma
realidade. Teixeira Bastos, contemporâneo de Prado, não era um pessimista em
relação ao futuro das nações, mas seu pensamento expressava essa inquietação
110
BERGSON, Henri. Introdução..., op.cit., p. 22-23.
111
Ibid., p. 31.
112
Ibid., p. 34.
113
NORDAU, Max. As mentiras convencionais de nossa civilização. [1883]. Lisboa: Empresa
do Almanaque Enciclopédico Ilustrado, 1908, p.VI.
114
NORDAU, op. cit., p. VI.
115
Ibid., p. 1.
60
com a civilização ocidental, ou seja, “todos os países da Europa e da América”
116
.
Nas suas palavras:
“Quanto mais avançamos para o século XX, tanto mais carregado
e mais tremendo se nos apresenta este fim do século. As nuvens sombrias
que se apresentam sobre nós e que ameaçam desfazer-se em formidando
temporal trazem a uns o susto, a inquietação, o terror, e a outros uma
esperança. É porque da crise, que lavra e se alastra por todos os países,
derruindo os fundamentos do regime contemporâneo, tem
necessariamente de sair uma sociedade nova”
117
.
Derruir fundamentos, novidade e crise eram palavras que apareciam em
quase todos os escritos desses autores. Em Bastos, como vemos, mais do que
decadência e morte, o fim evocava a esperança e a idéia em uma nova sociedade.
Por outro lado, destruir sem necessariamente construir algo novo era a idéia de
um dos personagens de A cidade e as serras, de Eça de Queiroz:
“Hoje, a única emoção, verdadeiramente fina, seria aniquilar a
Civilização. Nem a ciência, nem as artes, nem o dinheiro, nem o amor,
podiam já dar um gosto intenso às nossas almas saciadas. Todo o prazer
que se extraíra de criar estava esgotado. Só restava, agora, o divino
prazer de destruir
118
(grifos do autor).
Verbos como avançar, desfazer-se, lavrar, alastrar, derruir, destruir,
aniquilar e substantivos como susto, inquietação, terror e esperança eram
algumas das palavras que evocavam o arranjo temporal finissecular. Por um lado,
enfastiamento e cansaço do regime contemporâneo, por outro, esperança, a
exemplo de Bastos, em uma sociedade nova
119
.
Oliveira Martins percebia a realidade flutuante e desagregadora de seu
tempo, que marchava a uma “velocidade vertiginosa”
120
. Para ele: “em tempos
116
BASTOS, Teixeira. A crise: estudo sobre a situação política, financeira, econômica e moral
da nação portuguesa nas suas relações com a crise geral contemporânea. Porto: Casa
Editora M. Lugan, 1894, p. VII.
117
BASTOS, op. cit., p. 20IV.
118
QUEIROZ, Eça de. A cidade e as serras. [1901]. Lisboa: Livros do Brasil: 2006, p. 65. A edição
usada para essa citação é baseada na edição portuguesa de 1901. Contudo, Eça havia começado
a escrever A cidade e as serras em fevereiro de 1894, quando entregou o primeiro capítulo do livro
para seu editor. Ver a nota final da edição citada.
119
A literatura relativa a esses dois pólos temporais de projeção aparece nos extremos orientais do
Ocidente, tais como em pensadores como Leon Tolstoi, cuja obra A morte de Ivan Ilitch (1889),
tratava de um burocrata atingido por uma doença que o levou a refletir acerca de seu trágico fim,
bem como projetar seu futuro na esperança de uma cura, que veio a ser o próprio arrostar-se com
a morte. Ver: TOLSTOI, Leon. A morte de Ivan Ilitch. [1889]. Porto Alegre, L&PM, 2001.
120
MARTINS, Oliveira. A Inglaterra de hoje. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894, p. VI.
61
como os nossos, a vida real parece fantasmagórica: e compreende-se que a visão
do Niilismo endoideça tanta gente”
121
.
E o que dizer de intelectuais brasileiros? Seria o problema da temporalidade
exclusivo de uma matriz convencional do pensamento ocidental? Entendemos,
evidentemente, que não. A tematização da temporalidade e da finitude na sua
relação com a morte pode ser evidenciada entre os românticos, especialmente
entre aqueles concebidos como românticos tardios ou ultra-românticos, tal como
foi classificado, na história da literatura brasileira, Álvares de Azevedo. Na sua
Noite na taverna, de 1855, eis o que um de seus personagens afirmou: “a
imortalidade da alma!? Pobres doidos! E porque a alma é bela, por que não
concebeis que esse ideal posse tornar-se lodo e podridão, como as faces belas da
virgem morte, não podeis crer que ele morra?
122
Ou ainda, na esteira da idéia de
que os ideais, a exemplo do espírito, também morriam, eis o diálogo do
personagem Solfieri com um dos seus companheiros ébrios: “E não crês em mais
nada? Teu ceticismo derribou todas as estátuas do teu templo, mesmo a de
Deus?”
123
A resposta merece ser narrada aqui, na sua integralidade:
“Deus! Crer em Deus!?... Sim! Como o grito íntimo o revela nas
horas frias do medo, nas horas em que se tirita de susto e que a morte
parece roçar úmida por nós! Na jangada do náufrago, no cadafalso, no
deserto, sempre banhado do suor frio do terror é que vem a crença em
Deus! Crer nele como a utopia do bem absoluto, o sol da luz e do amor,
muito bem! Mas, se entendeis por ele os ídolos que os homens ergueram
banhados de sangue, e o fanatismo beija em sua inanimação de mármore
de há cinco mil anos... não creio nele!”
124
Demolir as estátuas do templo não seria derribar os fundamentos, incluindo
Deus, ou mesmo Deus como metáfora dos fundamentos? E a relação da idéia de
absoluto com o fim e com a morte, como se a angústia e o terror diante de tudo
que era finito pretendesse evocar um ser acima do ser, não seria navegar na
jangada do náufrago? Comparemos tal passagem da obra de Azevedo com o
famoso aforismo de Nietzsche, escrito em 1882, acerca da morte de Deus como a
121
MARTINS, op.cit., p. VII.
122
AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna. [1855]. Jaraguá do Sul: Avenida Gráfica e Editora,
2005, p. 12.
123
AZEVEDO, op. cit., p. 13.
124
Ibid., p. 13.
62
hipertrofia do desencantamento ou a afirmação de um mundo cujo pathos se
destituía da outra-mundanidade. O aforismo em que Nietzsche tratou dessa
questão é um tanto extenso, mas merecedor de uma citação:
“Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã
acendeu uma lanterna e correu ao mercado e pôs-se a gritar
incessantemente: ‘procuro Deus! Procuro Deus”’? – E como lá se
encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com
isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles.
Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo?
Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – Gritavam e riam
uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e
trespassou-os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus?’, gritou ele, ‘já lhes
direi! s o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas
como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem
nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a
terra de seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos
nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás,
para os lados, para a frente, em todas as direções? ... Não vagamos como
que através de um nada infinito? ... Não ouvimos o barulho dos coveiros a
enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os
deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! Nós o
matamos”
125
.
Nietzsche não era brasileiro e citá-lo aqui, logo depois de fazer a pergunta
acerca de como os intelectuais brasileiros trataram da questão da temporalidade
parece ser um caso de deslocação de parágrafo. O postulado que pretendemos
apresentar com essa breve comparação é de que autores brasileiros como
Álvares de Azevedo e outros, não estavam adstritos a temas meramente
nacionais, mas a assuntos que chegavam ao âmago do que se denominava, em
termos ocidentais, de fin-de-siècle – não obstante o escrito de Azevedo ser do
início da segunda metade do século. A morte de Deus era um conceito anterior a
Nietzsche, que evocava, nas palavras de Pereira, a falência do discurso idolátrico
que traduzia a cultura secularizada de preconização da autonomia do homem no
enfrentamento da realidade, sem necessidade de qualquer fundamento
transcendente, “movido pela convicção de que todo o real é finito”
126
.
Deus como um recurso para o medo da morte: Azevedo, em meados do
Oitocentos, falava em um ser calcado na tríade bem-luz-amor, mas sua crítica aos
ídolos e a Deus como sua principal metáfora era também uma maneira de “apagar
125
NIETZSCHE, A gaia..., op.cit., p. 147-148, aforismo 125.
126
PEREIRA, Miguel. Modernidade e tempo. Coimbra: Minerva, 1990, p. 123.
63
o horizonte” e levar o humano a cair para todos os lados, para a indeterminação
radical da abertura temporal. Adiantemos um pouco mais essa tematização, ainda
sustentando a literatura como exemplo.
Tomemos o caso de um dos escritores mais renomados do período, cuja
obra, escrita em 1881, teve como um de seus principais personagens a própria
temporalidade: Memórias póstumas de Brás Cubas. As passagens em que o
defunto-autor criado por Machado de Assis evocou a realidade da morte, do fim e
da corrosão de todas as coisas são incontáveis. Poderíamos citar o próprio Brás,
ou os personagens Marcela, Eugênia, Nhã-loló, Quincas Borba, Viegas, cujas
descrições machadianas não poupavam adjetivos da decadência, da morte, da
agonia. Contudo, fiquemos apenas com a narrativa da morte da mãe de Brás
Cubas:
“Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa,
fria, repisada, que me encheu de dor e estupefação. Era a primeira vez que
eu via morrer alguém. Conhecia a morte de oitiva; quando muito, tinha-a
visto petrificada no rosto de algum cadáver, que acompanhei ao cemitério,
ou trazia-lhe a idéia embrulhada nas amplificações de retórica dos
professores de coisas antigas... Mas esse duelo de ser e do não ser, a
morte em ação, dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou
filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a
pude encarar... Jamais o problema da vida e da morte me oprimira o
cérebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o abismo do
inexplicável”
127
.
A morte da mãe foi, para o personagem, “o exemplo da fragilidade das
coisas, das afeições, da família...”
128
. A morte evocava a dor despida dos sistemas
políticos e filosóficos convencionais, de maneira diferente do que outrora ocorrera,
sobretudo na cultura romântica, em que a morte era uma espécie de caminho para
a felicidade e beleza por si mesmas
129
. A morte, neste caso, não era redentora. A
fragilidade percebida pelo escritor não era circunscrita às dimensões biológicas,
mas existenciais do próprio humano. Ademais, não era somente a morte que
lançava os homens no fluxo da temporalidade, mas a própria vida, a julgar por
essa passagem:
127
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. [1881]. Jaraguá do Sul: Avenida
Gráfica e Editora, 2005, p. 58-59.
128
ASSIS, op. cit., p. 63.
129
ARIÈS, Philippe. Sobre a história da morte no Ocidente. Lisboa: Teorema, 1989, p. 44.
64
“Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de
restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a
vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um
caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da
vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até
a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”
130
.
O tempo, que “caleja a sensibilidade e oblitera a memória das coisas”
131
,
não era somente a cronologia, ou mesmo a sucessão em direção ao fim. Havia
mais, havia algo que passava sem que se pudesse fixar o seu significado de um
modo definitivo. Machado compreendia que a morte, longe de formar uma
totalidade, limitava o entendimento humano
132
. A errata pensante, como se referiu
ao homem, não significava que o pensamento estivesse derrotado, mas que sua
compreensão dependia das mais instáveis impressões e edições da vida, o que o
colocava em frente do inexplicável do próprio tempo, daquele monstruoso mundo
desconhecido do qual falava Nietzsche.
Ainda para nos fixarmos no mesmo autor, não era Quincas Borba – o
“náufrago da existência”
133
– um exemplo por excelência da patologia da memória
e, por corolário, do próprio tempo? Quais eram os herdeiros do sistema filosófico
denominado Humanitismo, criado pelo personagem Quincas Borba? De um lado,
um cão que ficou com o mesmo nome do filósofo, de modo que Borba fosse
lembrado quando o chamassem (a ele ou a seu cão?), e Rubião, um professor
que receberia toda a grande fortuna de Borba, com o dever de cuidar de seu
cachorro, de modo que Quincas Borba fosse sempre lembrado: “se eu morrer
antes, como presumo, sobreviverei no nome do meu bom cachorro... Porque a
imortalidade é o meu lote ou o meu dote, ou como melhor nome haja”
134
. Como
sabemos, além de Rubião perder todo o seu dinheiro, no desenlace trágico do
romance machadiano, ele acabou por enlouquecer, e o cão, por morrer logo
depois da interdição completa de seu tutor. Afinal, como disse o capitalista Palha,
ao falar com Rubião, antes de sua loucura: “Nossa casa pode cair... tudo pode
130
ASSIS, op. cit., p. 65.
131
Ibid., p. 164.
132
Ibid., p. 194.
133
ASSIS, Machado de. Quincas Borba. [1891]. Porto Alegre: Click Editora, 1997, p. 19.
134
ASSIS, Quincas..., op. cit., p. 20.
65
cair”
135
. Além do mais, em Quincas Borba, a indeterminação do personagem
central do livro – o filósofo ou o cão – colocava um problema na obra machadiana
que se repetiria em Dom Casmurro: a representação conceitual, traduzida, em
termos de temporalidade, na falência da identidade entre pensamento e ser.
De acordo com Vecchi, o problema epistemológico da representação está
relacionado com as aporias que o século XX proporcionou no tocante à mímese,
afinal, “nenhum século como o nosso destruiu tanto e tão inexoravelmente a
experiência e a sua possibilidade de ser dita ou escrita, em suma, de ser
representada”
136
. Nesse sentido, o problema do testemunho se coloca para o
historiador como um problema epistemológico importante a ser pensado,
porquanto a “lacuna da experiência” impede à testemunha de “poder testemunhar
tudo o que efetivamente se deu”
137
. Vecchi entende que o problema da
representação se colocava para os intelectuais brasileiros de fins do século XIX e
início do século XX. Dom Casmurro, para ele, não foi uma adaptação brasileira do
Otelo de Shakespeare, mas sim um problema de representação, pois o elemento
“decisivamente perturbante para o narrador/testemunha Bentinho não é a traição,
mas a evidência da impossibilidade de conhecer – e conseqüentemente
testemunhar – o passado”
138
. No início do texto de Machado de Assis, Bentinho
disse que seu “fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice
a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui”
139
.
Não seria a temporalidade manifesta na linguagem a situação-limite da
indeterminação do acontecer e do ser?
Mais dois exemplos: tanto em Os sertões, de Euclides da Cunha, quanto
em O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, a narrativa do massacre
dos sertanejos de Canudos e o testemunho da Revolta da Chibata
respectivamente apresentados pelos autores, são “projetos estéticos de
representação da barbárie que criam uma memória daqueles eventos pela ficção”
135
ASSIS, op.cit., p. 138.
136
VECCHI, Roberto. Barbárie e representação. In: PESAVENTO, Sandra (org.). Fronteiras do
milênio. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 2001, p. 74.
137
VECCHI, op. cit., p. 81.
138
Ibid., p. 77.
139
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. [1899].Jaraguá do Sul: Avenida Editora, 2005, p. 10.
66
no qual um massacre sucede ao outro, o que subverte a lógica da narrativa
linearmente representada
140
.
Diante do problema da representação, da lacuna da experiência e do
testemunho, a temporalidade como horizonte de sentido do pensamento permite ir
além (não em um sentido de superação) das representações subjetivantes e
perceber seus hiatos, suas dispersões, “os sujeitos de uma desubjetivação”
141
,
seus outros no mesmo, os processos de reprodução, de renovação, de articulação
das idéias que se fazem dis-curso.
Problemas de memória, velocidade, tempos simultaneamente sombrios e
esperançosos, enigmas entre o ser e o nada, o que estava acontecendo com a
humanidade? Se depender da resposta de Joaquim Nabuco, tratava-se do fato de
que a humanidade estava tornando-se irritável e suscetível em extremo, disse ele,
em 1900, e concluiu: “Sinal de que está envelhecendo, ou de que está velha, ou
détraquée (desequilibrada) dos nervos”
142
. Velha ou desequilibrada, o certo é que
os tempos eram de mudanças, ou pelo menos, que o século XIX havia sido de
grandes mudanças, tal como pensava Araripe Júnior, ao fazer um balanço, em
1904, sobre os 100 anos que passaram:
“Ao século XIX coube verdadeiramente a missão de recolher a
obra de exegese anterior e coordenar o gênio da modernidade. Século
tumultuoso, tudo nele apareceu. Todas as idéias se agitaram; todas as
insobriedades se impuseram. Nas ciências, audácias como nunca; na arte,
a clave inteira, desde o realismo fotográfico até a mais desenfreada e
etérea fantasia; não houve recanto que a curiosidade humana,
desalgemada das superstições, não esmerilhasse, não fizesse pretexto de
estudos ou de divagações”
143
.
A idéia de um período de síntese ou de condensação no qual as realidades
explodiam parecia ser comum. Araripe soube apreender bem esse espírito que
supostamente uniria o século XIX em nome de uma série diferentes de alteridades
que se colocavam frente ao ser, fosse para a criação de um novo mundo, fosse
para a decadência e fim do tempo presente.
140
VECCHI, op. cit., p. 87; DECCA, Edgar de. Quaresma: um relato do massacre republicano.
Anos 90, Porto Alegre, n.8, p.45-61, dez. 1977.
141
Ibid., p. 84.
142
NABUCO, Joaquim. Diários: 1873-1910. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2006, p. 411.
143
ARARIPE JÚNIOR, op. cit., p. 81.
67
Graça Aranha também esteve entre os intelectuais inquietos. Como poucos,
Aranha falava tanto a linguagem do ser quanto a linguagem do devir. Ao proferir
um discurso por ocasião da inauguração do Congresso Latino no Capitólio de
Roma, eis o que afirmou, na “hora sempre inquieta do presente”
144
: “Todos na
vida aspiram ao repouso e os povos que não podem parar, que não chegam a se
formar definitivamente, esses condenados ao contínuo movimento das marés
humanas sofrem um triste suplício”
145
.
O autor acreditava que a ontologia nacional, ou mais ainda, a ontologia
neolatina estava se definindo no caminho do ser – em linguagem hegeliana, a
plenitude de sua história –, por meio do “amor invencível e superior ao tempo e à
morte, amor integral e cósmico” que faria parte de um “renascimento da alma
latina nos países sul-americanos”
146
. Não obstante, o período ainda era de
incertezas e de necessidade em atravessar um “férvido período da nebulosa
originária para depois avançar e se afirmar como os herdeiros parciais da
latinidade imortal”
147
. A alma moderna, por excelência, era “feita de desilusões, de
pessimismo, de vacilações, de incertezas”
148
. Mais do que uma metáfora da
turbulência do fundamento, Aranha afirmou, ao discursar sobre as tribulações
políticas da América Latina, em uma conferência em Buenos Aires sobre a
literatura brasileira, que “vivemos num temporal, o horizonte está turvo e o próprio
solo ruge e treme”
149
. Parecia que Aranha, a exemplo de Hegel, percebia a
radicalidade da finitude, mas a tentava domesticar. O repouso perseguido pelo
escritor brasileiro, no qual a nação brasileira descansaria depois de sua plena
realização não história, foi uma permanente em seu pensamento.
Eduardo Prado não esteve imune às reflexões acerca do tempo, da morte,
da esperança, do devir, da aparência, do nada. Já em seus primeiros escritos,
quando estudante da Faculdade de Direito de São Paulo, escreveu um texto, Um
144
ARANHA, Graça. A civilização latina e a alma brasileira. [1903]. In: Obras completas. Rio de
Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969, p.828.
145
ARANHA, op. cit., p. 828.
146
Ibid., p. 828.
147
Ibid., p.828.
148
ARANHA, Graça. O farol maranhense. [1896]. In: op. cit., p. 798.
149
ARANHA, Graça. A literatura atual do Brasil. [1897]. In: op. cit., p. 807.
68
Necrológio, que em certo sentido, lembrava as passagens acima relacionadas de
Álvares de Azevedo e Machado de Assis:
“Nós hoje falecemos. Ao darmos esta notícia aos leitores, pedimos-
lhes desculpa por esta falta involuntária. Não diremos que o país se cobre
de luto, nem tampouco que nas fileiras da imprensa se abre um claro, que
dificilmente será preenchido. Nada disso. Morremos sem mais cerimônia.
Já na outra vida traçamos este artigo de fundo, que é mesmo o fundo da
sepultura. Faltaríamos, porém, à mais comezinha delicadeza para com a
memória dos ilustres finados, se não lhes traçássemos um sentido
necrológico... Nós curvamo-nos compungidos em frente do nosso túmulo,
e, se não estivéssemos metidos dentro dele, deporíamos um ósculo sobre
a lápide fria que cobre nossos restos. Viver! Escrever! Morrer! Talvez ser
tolo!”
150
.
Antes mesmo de ter uma preocupação central com o tema da identidade
nacional, Prado evocava a temporalidade, a racionalidade lívida que demarcava o
início e o fim da própria existência, a antecipação da realidade tumular ao escrever
o necrológio, o limite da lápide em relação ao ósculo da lembrança: o necrológio
apenas como um resíduo de memória diante do vir-a-ser, sem os seus predicados
de redenção e beleza cadavérica, tanto apreciado por alguns homens do
romantismo.
Em 1896, 15 anos depois de Um necrológio, em um artigo intitulado
Respondemos, Prado afirmou, já articulando a questão do tempo com a identidade
nacional, que a geração “que aí vem com a rapidez do tempo e que nos impele
para o túmulo com todas as nossas dissensões, os nossos ódios e as nossas
faltas”, acharia “a Pátria em ruína e, amaldiçoando a nossa obra, terá como ideal o
restabelecimento da civilização brasileira”
151
. As nações, “assim como os
indivíduos”, tinham “o seu crescimento, a sua plenitude, o seu vigor e o gradual
deperecimento”
152
.
Colocar lado a lado o indivíduo e a nação era mais do que pensá-la em
termos de organismo social. Era aceitar que a nação, a exemplo do homem,
também morria. Mesmo em se tratando de um ente que poderia se perenizar em
seu ser por meio das gerações futuras e de suas lembranças passadas, a
150
PRADO, Eduardo, MAGALHÃES, Valentim. Um necrológio. [1881]. In: CASASANTA, Mário.
Eduardo Prado: trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1959, p. 13.
151
PRADO, Eduardo. Respondemos. [1896]. In: PRADO, Eduardo. Coletâneas. São Paulo: Escola
Tipográfica Salesiana, vol.1, 1904, p.129.
152
PRADO, O Dr. Barreto e a ciência. [1901]. Coletâneas..., op. cit., vol.4, p. 212.
69
experiência histórica passada e presente indicavam a ruína paulatina que
culminaria no finar.
Quer dizer, nesse ambiente carregado pelo conflito entre o ser e o não ser,
como assim o definiu Machado de Assis, Eduardo Prado esteve tanto entre os
pensadores assustados e aterrorizados quanto entre os esperançosos em relação
aos rumos do mundo civilizado ou entre aqueles que, embora não tão otimistas,
também glorificavam a força do devir, “neste século de tão pouca estabilidade nos
homens e nas instituições”, como Prado escreveu nos seus diários de 1886
153
.
Nessa atmosfera, o objetivo maior de Eduardo Prado como intérprete da nação
era lembrar a si mesmo e ao mundo de seus pares a participação do Brasil-nação
no eterno – a rocha ferruginosa e a terra arroxada, para usar suas metáforas
telúricas
154
– através da superação da contingência e da finitude, a ultrapassagem
da própria época imersa no ruído do devir.
Desfazer-se, derruir fundamentos, terror, esperança, avanço e sociedade
nova eram palavras de ação e de de-finição substantiva que evocavam a
temporalidade, em um momento cujo agora (presente) era o colocar-se diante da
decisão entre o passado e o futuro da nação. A posição pouco confortável de
Eduardo Prado em termos políticos e epocais fez dele um autor marcadamente
preocupado com a tensão entre as forças da permanência e da mudança ou, mais
uma vez, entre o ser e o não-ser como devir, ou ainda, para voltarmos a Araripe –
ao falar de Prado – “um espírito complicado, como todo o verdadeiro
intelectual”
155
.
Essa complicação tinha uma razão: a exemplo de muitos intelectuais
finisseculares, Eduardo Prado assumiu a discussão sobre a ontologia nacional, na
qual a tematização do ser e seus outros era decisiva. Leiamos essa passagem de
um discurso do intérprete da nação proferido no Instituto Histórico de São Paulo,
em 1898, a respeito do Brasil:
153
PRADO, Eduardo. Viagens pela América, Ásia e Oceania. [1882, 1886]. São Paulo: Escola
Tipográfica Salesiana, vol.1, 1902, p. 28.
154
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. [1893]. São Paulo: Brasiliense, 1961, p. 188.
155
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. In: Obra crítica. Rio de Janeiro: MEC/ Fundação Casa
de Rui Barbosa, 1970, vol. 4, p. 156.
70
“Seria um erro... acreditar que estas condições especiais de um
país novo tornam impossível nele o culto da tradição e o conhecimento
afetuoso do passado. Esta transformação contínua, esta instabilidade ao
mesmo tempo destruidora e criadora afeta, sem dúvida, a vida material e o
aspecto do cenário onde todos temos de representar nosso papel. Isto é
próprio do presente, porque... quem diz presente diz mudança e diz
incerteza. O patrimônio moral de um povo, porém, esse não está e não
pode estar sujeito a essas mudanças destruidoras: fica consolidado de
modo eterno e inabalável no seu passado intangível”
156
.
Dis-curso a respeito do Brasil, sem dúvida. Mas também de duas forças
primordiais de constituição do próprio pensamento que se fez ocidental. De um
lado, permanência, passado inatingível, patrimônio moral; de outro, incerteza,
criação, destruição, mudança. Distante de ser um pensamento meramente
receptivo, Eduardo Prado e parte dos seus interlocutores tematizaram, através da
ontologia da nação, o que entendemos como a ressignificação da temporalidade
em uma época que ainda depositava, em sua maior parte, a crença em realidades
que eram eternas, mesmo que estivessem temporalmente abertas em termos de
filosofia da história.
1.5 – Imagi-nação e representação
Antes de encerrarmos a tematização da temporalidade e da identidade
nacional, é mister colocar a questão da sua relação com o espaço e com a idéia
de representação conceitual. Perguntamos: faria algum sentido definir lugares de
onde Eduardo Prado falou? Quando propomos tal pergunta, não estaríamos
retornando a uma concepção do tempo como medida do movimento de acordo
com o deslocamento, como outrora assim o definiu Aristóteles
157
, se assim
procedêssemos? Seria pouco prudente pensarmos os tempos do pensamento e
da escrita apenas relacionando-os com a mobilidade de Eduardo Prado pelo
Brasil, pela América e pela Europa, como se a historicidade reivindicada na tese
dependesse desses deslocamentos espaciais para existir. Não se trata disso. A
historicidade que nos remete para a possibilidade conceitual e para a
156
PRADO, Eduardo. Discurso. In: Coletâneas, vol. 4…, op.cit., p. 126-127.
157
ARISTÓTELES. Física. Ciudad de México. Universidad Nacional Autónoma de México, 2001,
Livro IV, cap. 10-14.
71
indecidibilidade do entre-lugar pode ter uma relação com esse deslocamento, mas
não significa que sua dimensão temporal seja o correlato lógico, em termos de
tempo, do próprio espaço. Se assim o fosse, o problema da temporalidade não
seria evocado da maneira como o fazemos nessa tese, posto que ele não se
reduz a um suposto lugar do pensamento. Talvez esse tenha sido o equívoco da
maior parte dos autores que estudaram o pensamento de Eduardo Prado e dos
intérpretes do Brasil, na medida em que, através das ontologias sociais das idéias,
eles tentaram apreender o locus da fala para demarcar a posição desses autores
em termos de grupo, família, classe, partido, região e comunidade
158
.
Quando mencionamos o lugar como cena de produção do pensamento, o
que fazemos é demarcar espacialmente a temporalidade, um estado de abertura
ao mundo histórico e espacial porque temporal
159
. Não se trata, portanto, de um a
priori espacio-temporal, mas sim um “estado-sido-aí” que é fundamentalmente
estado de abertura do ser e estar no mundo: a evocação da historicidade radical
das circunstâncias, o conjunto de tudo aquilo que nos afeta e que afrontamos “em
nossa vida de cada instante”
160
. É somente nesse sentido que podemos falar,
aqui, em lugares. Portanto, ainda na esteira do pensamento heideggeriano, assim
como a temporalidade não significava o que entendemos convencionalmente por
tempo quando falamos de “espaço e de tempo”, também a espacialidade
constituía uma determinação fundamental deste sido-estado-aí enquanto unidade
158
É o caso de autores como Broca, Ortiz, Berriel, Azevedo, Leonzo, Saldanha, Moisés, Martins,
Skidmore. Ver: SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro. Rio de Janeiro: Paz &Terra, 1976; Brazil´s American Illusion: from D. Pedro II to the
coup of 1964. Luso-Brazilian review, vol. 23, n.2, p. 71-84, 1986; Eduardo Prado: conservative
nationalist critic of the early Brazilian Republic, 1889-1901. Luso-Brazilian Review, vol.12, n.2,
p.149-161, 1975. AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. Brasília/Rio de Janeiro: Ed. da
UnB/Ed. da UFRJ, 1996. BERRIEL, Carlos Eduardo.Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado.
Campinas: Papirus, 2000. BROCA, Brito. A vida literária no Brasil: 1900. Rio de Janeiro:
Academia Brasileira de Letras/José Olympio, 2005. LEONZO, Nanci. A historiografia brasileira anti-
republicana: a obra de Eduardo Prado. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo,
n. 27, 1987. MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, vol.2,
realismo e simbolismo, 2001. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São
Paulo: Brasiliense, 1984. SALDANHA, Nelson. História das idéias políticas no Brasil. Brasília:
Ed. do Senado, 2001. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. Vol. 4. São Paulo:
Cultrix, 1978.
159
HEIDEGGER, Ser y tiempo. Ciudad de México: FCE, 1974, p. 394.
160
ORTEGA Y GASSET, José. Historia como sistema y otros ensayos de filosofía. Madrid:
Alianza Editorial, 1981, p. 149.
72
extática e circunstancial do pensamento desses autores não como espaço pré-
determinado
161
, mas espacialidade que se fez, outrossim, como possibilidade.
Quais eram os lugares de onde Eduardo Prado falava? Eram os entre-
lugares de um pensamento ocidental e, no Ocidente ao Sul do Equador, do Brasil?
As preocupações de um cafeicultor com problemas econômicos que a suposta
mudança de regime poderia trazer? De um filósofo da história que via a missão do
Brasil na história se desfazer? A inquietação de um escritor polemista e católico
com um mundo cujo individualismo e cientificismo crescentes ameaçavam demolir
os alicerces de uma determinada tradição cultural? Enfim, nem um, nem outro,
mas todos, se levarmos em consideração a relação do pensamento pradiano com
a temporalidade, com o ser-estar-aí que constituía a sua realidade histórica. Sua
ligação com a representação histórica, ou com a pluralidade de imagens da nação,
tem a ver com esse cerne de imersão no estar-lançado em circunstâncias
históricas de agitações, devir-nação como movimento da representação histórica
nacional: a imagi-nação como temporalidade jogada na de-finição da comunidade,
o esforço de representação homogênea da nação.
Não obstante, o problema da representação conceitual retorna, se é que ele
se ausenta em algum momento. Quando evocamos a presença de uma ausência
e a noção de representação como possibilidade de preenchimento dessa relação
disjuntiva entre presente e passado, presentificamos, enquanto substância, essa
ausência. Ao preconizarmos um pensamento dis-cursivo da nação em Eduardo
Prado e no seu diálogo simultaneamente conflituoso e harmônico com seus
interlocutores, seria viável, do ponto de vista teórico, evocar a noção de
representação histórica para pensar a historicidade das suas idéias?
Como sugere Pitkin, a representação é um fenômeno humano,
profundamente formado “pelo que as pessoas pensam e dizem, por palavras
(grifos da autora)
162
. Conceito de origem latina, repraesentare significava tornar
161
HEIDEGGER, op. cit., § 70, p. 396.
162
PITKIN, Hanna. Representações: palavras, instituições e idéias. Lua Nova. São Paulo, n.67,
2006, p. 16.
73
presente ou manifesto, ou ainda, apresentar novamente objetos para a presença
de alguém
163
. No latim clássico, era reservado para objetos inanimados
164
.
Ao longo da modernidade, o conceito parece ter passado por algumas
mudanças, entre elas, a extensão do jogo entre presença e ausência ao domínio
humano. De acordo com Chartier a categoria representação não era estranha às
sociedades do Antigo Regime, época em que tal palavra tinha ao menos dois
sentidos: a representação como dando a ver uma coisa ausente, “o que supõe
uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado”, e
a representação como exibição pública de algo ou alguém
165
. No primeiro sentido,
para Chartier, a representação é um instrumento de um “conhecimento mediato
que faz ver um objeto ausente através de sua substituição por uma ‘imagem’
capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é” (grifos
nossos)
166
. A relação de representação, nas palavras do autor, entendida como
“relacionamento de uma imagem presente e de um objeto ausente, valendo
aquela por este, por lhe estar conforme, modela toda a teoria do signo que
comanda o pensamento clássico”, com a qual Chartier mantém uma certa
cumplicidade teórica
167
.
Para o autor, a representação permite articular três modalidades da relação
com o mundo social: o trabalho de classificação e de delimitação, “que produz as
configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é
contraditoriamente construída pelos diferentes grupos”
168
; as práticas que visam
fazer reconhecer uma identidade social, “exibir uma maneira própria de estar no
mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição”
169
; por fim, as
formas “institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns ‘representantes’
163
PIKTIN, op.cit., p. 17.
164
Ibid., p. 17.
165
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand, 1990
166
, CHARTIER, op. cit., p. 20.
167
Ibid., p. 21.
168
Ibid., p. 23.
169
Ibid., p. 23.
74
(instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e
perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade”(grifos nossos)
170
.
Para que haja uma compreensão dessas apropriações na sua historicidade,
o historiador sugere o rompimento com o conceito de sujeito universal e abstrato
“tal como o utiliza a fenomenologia”, a qual construiria a individualidade idêntica e
trans-historicamente através dos tempos
171
. Enfim, retomando, em parte, a
proposta de Schopenhauer, a “história cultural” pretende compreender “as
práticas, complexas, múltiplas, diferenciadas, que constroem o mundo como
representação”
172
.
Compreendemos que conceber o mundo como representação ou pensar a
representação totalizante apenas através dos agentes sociais, das classes e dos
grupos é uma visão da cultura intelectual ainda presa a uma certa sociologia do
conhecimento que substancializa o pensamento e historiciza os sujeitos dessas
representações
173
. Notemos que, das três modalidades de relação da
representação com o mundo social propostas inicialmente por Chartier, duas delas
têm uma profunda articulação com grupos e classes sociais.
170
CHARTIER, op.cit., p. 21.
171
Ibid., p. 25. E difícil saber à qual tradição fenomenológica Chartier faz referência, haja vista que
afirmar a des-historicidade da fenomenologia é um tanto arriscado, mesmo porque parte importante
do movimento filosófico pós-husserliano foi fortemente balizado pelas discussões acerca da
finitude. Basta citar Heidegger e Levinas como exemplos de filósofos influenciados pela
fenomenologia e que produziram grandes obras acerca do tempo, para nos darmos conta da
insuficiência dessa asserção. Sem entrarmos no mérito do próprio pensamento de Husserl,
sobretudo depois de um período tardio, em que o Lebenswelt tornou-se mais presente em seu
pensamento.
172
Ibid., p. 28. Embora o autor fale em nome da história cultural, a reflexão que ele faz acerca do
conceito de representação tem implicações na história das idéias, a qual não deixa de ser, em
certo sentido, uma história da cultura intelectual, embora ela não tenha as pretensões de totalidade
social implicadas na história cultural comumente entendida. Para uma leitura acerca dos pontos
em comum e das diferenças entre as duas disciplinas, ver: BAUMER, Franklin. Main currents of
Western thought. New Haven/London: Yale University Press, 1978; SKINNER, Quentin. On
intellectual history and the history of books. Contributions to the history of the concepts. Vol.1,
n.1, march 2005, p.29-36.
173
É o caso das seguintes obras: MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Zahar,
1972; GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Cia.
das Letras, 2001 (em especial, o capítulo 3: Representação: a palavra, a idéia, a coisa); BACZKO,
Bronislaw. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa. Imprensa Nacional- Casa da
moeda, vol. 5: Anthropos- homem, 1985; FEBVRE, Lucien. Olhares sobre a história. Porto: Asa
Edições, 1996; LÖWY, Michael. Ideologia e ciências sociais. São Paulo: Cortez, 1999, entre
outros.
75
Ao evocarmos o hífen no título da tese – um simples sinal que aqui significa
disjunção, disseminação, mobilidade, différance
174
–, não pretendemos apresentá-
lo apenas como um complemento. A produção do conhecimento histórico deve ser
balizada por expressões que nos remetam para a historicidade, para aquelas
dimensões de temporalidade que interpelem existencialmente o historiador
enquanto sujeito finito, como o sinal sugere ao estabelecer um corte na categoria
imaginação.
Ao fazer referência à idéia de imagem, pensamos, acima de tudo, na
mobilidade do pensamento, uma espessura de duração que faz dessas imagens
sempre a presença de uma ausência, a realidade sempre mais rica do que o
conceito, uma situação em que a própria identidade nacional “paira sempre de
forma incerta, tenebrosa, entre a sombra e substância”
175
.
A idéia de imaginação não é pensada como um repertório cômodo e
estático das constelações imaginárias
176
. Não se trata também de um discurso
das imagens ou uma tentativa de fazer uma fenomenologia do imaginário, mas
sim diálogo dessa possibilidade conceitual no campo das construções identitárias
nacionais, as quais não se reduzem às lógicas formais e às excessivas abstrações
de um pensamento racional supostamente distante das imaginações. Como
sugere Durand, “a postulação de um pensamento sem imagens concebe a
imagem como algo reduzido ao duplicado remanescente da sensação”, donde se
conclui que “tais imagens não acrescentam nada ao sentido das noções
abstratas”
177
.
A identidade é concebida como representação que, ao ser pensada como
imagem da nação, rasura sua representação no sentido de adequação do
conhecimento ao objeto representado, posto que o passado evocado para
construir a nação é, para tomarmos emprestada a metáfora heideggeriana, a
174
A différance é um neologismo criado pelo filósofo Jacques Derrida que pode, entre outras
possibilidades de significação, significar a instabilidade, a mobilidade e a historicidade da
linguagem. Ver: DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991. Em
especial, o capítulo A diferença.
175
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998, p. 82.
176
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes,
1997, p. 18.
177
DURAND, op. cit., p. 28.
76
clareira
178
. Clareira, nesse sentido, quer dizer não somente o aberto, o estar livre
para a claridade e a sombra, mas também “para a voz que reboa e para o eco que
se perde, para tudo que soa e ressoa e morre na distância”
179
. “A clareira é”, nas
palavras de Heidegger, “o aberto para tudo que se presenta e ausenta”
180
.
Clareira, suplemento e diferença que expressam aquele estar-lançado
como presença-fugidia da temporalidade no dis-curso da nação, o que pressupõe
a sua inscrição em um “contexto imaginário específico”
181
, incluindo no rol de seu
curso, aquilo que Durand denomina os “intertextos imaginários dos estilos de
época e dos mitos privilegiados” em tal contexto
182
.
O que significa pensar a identidade nacional em termos de temporalidade?
Podemos falar em identidade no sentido ontológico, em que toda a coisa é igual a
si mesma, ou lógico, em que A é igual a A, enfim, uma tendência da razão a
reduzir o ideal ao idêntico e sacrificar a multiplicidade à identidade com vistas à
sua subsunção.
Ao pensarmos a representação como ontologia social na história das idéias,
percebemos a sua insuficiência no fato de ela ir de encontro a uma razão
radicalmente histórica. Como sugere Abrão, a modernidade encontrou um mundo
disperso, múltiplo e relativo que deveria ser reordenado pela razão. O termo
representação indica, segundo a autora, “exatamente essa operação da razão:
reapresentar, tornar de novo presente”
183
. Não obstante, esse “tornar de novo
presente” a imagem unificada do mundo é também “destruir o que se apresenta
como disperso e desconexo”
184
. Nesse sentido, a representação nega e
ultrapassa a realidade visível e sensível, e produz “um outro mundo,
racionalmente compreensível porque reordenado pela própria razão”
185
. A
representação conceitual, nesse caso, é a qualidade do pensamento que assume
o lugar do fundamento para manifestar o ser.
178
HEIDEGGER, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: Escritos..., op.cit., 77.
179
HEIDEGGER, op. cit., p. 77.
180
Ibid., p. 77.
181
DURAND, Gilbert. Campos do imaginário. Lisboa: Inst. Piaget, 1996, p. 196.
182
Ibid., p. 196.
183
ABRÃO, Bernadette Siqueira. História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 186.
184
Ibid., p.186.
185
Ibid., p. 186.
77
Grupos sociais, nacionais, famílias, representantes de regiões e
instituições, de um modo geral, esforçam-se sobremaneira em criar imagens
unívocas daquilo que é representado – a classe, o grupo e a nação. Sem essa
convergência ontológica na construção das idéias, talvez poucos grupos
reivindicassem o monopólio dos universais sobre o real, tenha esse monopólio o
nome que tiver. Ele é fundamental para qualquer esforço de delimitação da
representação da sociedade e para o exercício de poder que as rege
186
.
A questão é que, no seio dessas representações que implicam o movimento
das idéias, há uma densidade monadológica saturada de tensões, para usarmos
uma expressão de Benjamin
187
, que se articula em identidade e diferença,
permanência e mudança, unidade e pluralidade, pares que evocam a
performatividade das idéias no seu interior, expressando-se seja através do
pensamento de um sujeito individual, seja por meio de sujeitos coletivos que
partilham idéias comuns a seus grupos, famílias, épocas e instituições, mas cujas
idéias se configuram em rasuras da representação total, dos objetivos únicos e
dos pensamentos de emancipação do sujeito racional, nacional e social. Impõe-se
a pensar que há certos jogos de linguagem cuja historicidade não fixa o
pensamento a um desses grupos em especial, nem faz do pensamento algo
produzido exclusivamente por um sujeito centrado e consciente de si mesmo.
Ao nos depararmos com um conjunto de escritores que demarcaram sua
atividade intelectual há mais de 100 anos, eles se tornam interlocutores do
historiador. Ser-aí que se converte em sido-aí
188
. Nessa condição, que tipo de
presença é construída quando o pensamento desses autores se apresenta como
rastro ou, para usar uma expressão da fenomenologia husserliana, como
intencionalidade de (nossa) consciência enquanto pensamento (correlacional) de
algo? Como ausência? Se assim o fosse, somente uma ausência, não poderíamos
186
Não fazemos uma análise das relações de poder nesta tese. Sabemos, como Russel, que o
poder é um dos conceitos fundamentais das ciências humanas e sociais. Há, evidentemente, uma
vasta bibliografia sobre o tema, que passa pelos filósofos da suspeita Marx, Nietzsche e Freud,
estendo-se, em suas formas mais contemporâneas, ao pensamento de Foucault. Para uma
introdução ao tema, ver: RUSSEL, Bertrand. O poder: uma análise social. Lisboa: Fragmentos,
1993.
187
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 231.
188
HEIDEGGER, Ser y tiempo..., op. cit., § 72-73, p. 407-409.
78
construir um certo conhecimento a respeito de seu pensamento. Por outro lado,
não há uma percepção de imediata universal do passado-mesmo nessas
condições?
Eduardo Prado e seus interlocutores – o passado evocado nessa tese –
não eram uma presença que se configurava como uma representação conceitual
destemporalizada, ou seja, um re-apresentar de algo que teria sido apresentado
antes da representação na sua totalidade. Se assim o fosse, o ser do passado
seria definido de antemão.
Françoise Dastur entende que não há cultura a não ser quando um certo
domínio do escoamento irreversível do tempo é assegurado, “o que implica o
emprego de um sem-número de técnicas destinadas a amenizar a ausência”
189
.
Não há dúvida de que Eduardo Prado articulou essas “técnicas” da memória para
dirimir a ausência. Do mesmo modo, talvez seja pertinente afirmar que o que
fazemos hic et nunc, nada mais é do que caminhar no mesmo sentido de
minimização dessa ausência ao demarcarmos o limite da identidade como rastro
de investigação no pensamento de alguns autores brasileiros de fim-de-século.
À interpretação decorrente desse esforço podemos nomear conhecimento
histórico, que somente se torna possível mediante uma relação em que jamais
possuímos esses intelectuais ou o seu pensamento – a não ser que queiramos
ecoar o o próprio passado enquanto mesmo em sua clareira. Os intelectuais e seu
pensamento não são objetos plenamente manipuláveis do historiador. Há um
horizonte inesgotável de significação que torna a sua presença algo que não é
simplesmente a presença de uma ausência, o que seria a simples-presença de um
passado tomado como totalidade ou como materialidade fetichizada de uma
realidade pretensamente pré-simbólica precedente à linguagem. A presença
demarcada como campo de investigação é uma presença timbrada pelo rastro, a
presença de uma ausência que se faz, sempre, em certo sentido, ausente e
obscura, um ente cujo ser está constantemente colocado em jogo. Nesse sentido,
o confronto com o passado enquanto tradição histórica é sempre, como pensa
189
DASTUR, Françoise. A morte: ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2004, p. 17.
79
Gadamer, um desafio crítico que tal tradição lança para o historiador
190
. Em
resumo: o passado como alteridade. Nos casos em que há uma primazia do ser
social apreendido via representação – a história social das idéias –
compreendemos que tal mote converte-se em uma perversidade lógica da
totalidade que rasura o outro enquanto outro e o subsume no mesmo – o passado
como identidade.
Ademais, ao chamarmos o tema da representação, também não temos em
vista uma disputa entre objetividade e subjetividade. Afirmar a história das idéias
em termos de objetividade e subjetividade, ou ainda individualidade e coletividade,
seria um modo de ontologizar o pensamento através da afirmação de uma
instância subjetiva auto-determinada, seja em sentido coletivo, seja em sentido
individual, o que implicaria, nos dois casos, um exercício de totalização em nome
de um sujeito representacional que subsumiria a performatividade, a historicidade
e a pluralidade dos conceitos em nome de uma filosofia da história comum.
É evidente que Eduardo Prado reivindicou para si o pertencimento a uma
comunidade imaginada e partilhou, com seus contemporâneos, com as suas
instituições, com o seu status, com a sua classe, com os seus grupos, tanto social
quanto nacional, diversas imagens coletivas, sem que tais pensamentos, contudo,
se fixassem ontologicamente a um desses segmentos sociais, o que formava não
tanto uma substância epocal, mas um repertório de idéias e valores que
implicavam uma articulação nem sempre lógica nem sistemática de pensamento.
Nas disposições em torno da civilização brasileira como parte do Ocidente,
como Eduardo Prado assim a entendia, ele tentou definir o Brasil e aqueles
exteriores constitutivos de significação da nação, tais como a Europa, as Américas
e o Brasil Republicano, uma espécie de história do ser de cada nação que tinha,
por sua vez, a sua historicidade, uma dimensão da própria redescoberta da
temporalidade em que Prado e seus outros viviam e sobre a qual escreviam.
Deslizar por esses lugares, sem se fixar, é uma das maneiras que
entendemos mais apropriadas para historicizar o seu pensamento como imersão
190
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 2003, p. 14.
80
na temporalidade, a qual nada mais é, em termos de escrita, do que aquilo que
Derrida nomeia de “movimento do jogo” permitido pela falta, pela ausência de
centro ou de origem, suplementariedade que não determina o centro nem esgota a
totalização, pois o signo que substitui o centro e ocupa o seu lugar na sua
ausência encontra-se como suplemento
191
. É para esses suplementos da nação
no pensamento de Eduardo Prado que nos direcionamos a seguir, a começar pela
exterioridade constitutiva mais velha: Europa.
191
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 215.
81
CAPÍTULO 2 – O BRASIL E A SUA PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO
ONTOLÓGICA EXTERIOR: A EUROPA
2.1 – Preâmbulo
No capítulo anterior apresentamos um primeiro enfrentamento à temática
da temporalidade no pensamento de Eduardo Prado e de um conjunto maior de
intelectuais na Europa e nas Américas. Poderíamos mapear, ao longo dessa
demarcação, um sentido de realidade voltado para a identidade, cuja estrutura
cognoscitiva serviu de base para a construção das ontologias nacionais, e a
ameaça do devir como uma qualidade que acompanhou essa elaboração. As
bases dessa ontologia se assentaram em um projeto mais amplo no qual a própria
idéia de universal, com suas prerrogativas de ser, uno, bom e belo, estavam
presentes, de modo a situar o pensamento da identidade em uma matriz
denominada, nas palavras de Ortega Y Gasset, eleática
1
. Trata-se do pensamento
da identidade, da ontologia, da representação, que busca uma “consistência fixa e
estática”, algo que o ente “já é, que já o integra e o constitui” e que tem os
caracteres de fixidez, da estabilidade e da atualidade: “um ser-sempre-o-mesmo”
2
.
A atividade de criar a nação não deixou de passar por essa matriz eleática.
Por outro lado, o que os intérpretes e criadores da nação fizeram dessas
ontologias, como eles as constituíram e as articularam, como as idéias foram
negociadas para se tornarem movimentos da representação e como elas se
configuraram em termos ontológicos é algo que não pode, a priori, ser convertido
em uma “ontologia eleática”
3
, ou seja, em um conjunto de representações da
nação que se esgota na sua substancialidade e na sua sedimentação.
1
ORTEGA Y GASSET, José. Historia como sistema y otros ensayos de filosofia. Madrid:
Alianza Editorial, 1981, p. 31-32.
2
ORTEGA Y GASSET, op. cit., p. 32. O adjetivo eleático diz respeito à matriz de pensamento que
surgiu na Grécia Antiga, na cidade de Eléia, e que primava por um pensamento de afirmação do
ser como sendo sempre o mesmo. Daí a referência feita por Ortega y Gasset ao “pensamento
eleático”, cujo representante mais conhecido, na história da filosofia, é Parmênides. Nesse sentido,
a evocação do pensamento de Parmênides no primeiro capítulo serviu para evidenciar tal corrente
de pensamento.
3
ORTEGA Y GASSET, op. cit., p. 32.
Nesse capítulo, analisamos um dos exteriores constitutivos da identidade
brasileira no pensamento de Eduardo Prado. Exteriores constitutivos que
significavam, no projeto de nação do autor, uma ontologia cujo ser se constituía
em vista das circunstâncias – quer dizer, uma ontologia circunstancial
4
. Trata-se
de uma construção do pensamento da identidade da nação a partir do “eu e
minhas circunstâncias” que evoca o próprio eu nacional e as condições de sua
constituição, seu ser-estar-aí em relação ao seu “si mesmo” e ao “seu outro”, a
sua posição como um processo de tradução e de transferência de sentido.
O sentido como algo a ser expresso é configurado a partir de um “tecido de
diferenças” na medida em que há uma “rede de remessas textuais a outros textos,
uma transformação textual na qual cada ‘termo’ pretendidamente simples é
marcado pelo rastro de um outro”
5
, o que corresponde a uma interioridade de
sentido trabalhada já pelo seu próprio exterior
6
. Por isso, optamos pela idéia de
exterioridade, tal como a elabora Derrida. Em nosso entendimento, tal
possibilidade conceitual deixa sempre em aberto o que se eterniza na linguagem:
o conceito.
No pensamento de Eduardo Prado havia uma filosofia da história do Brasil,
ou seja, uma tentativa de apreender globalmente o processo histórico e nele
posicionar o Brasil como sujeito nacional. Tal identidade, constituída pelas
sombras, sobras e faltas nas clareiras da linguagem, teve como seus principais
exteriores constitutivos a Europa e as Américas. Essas comunidades imaginadas
foram os principais demarcadores da identidade nacional do Brasil no seu
pensamento. Era a afirmação não somente de uma idéia de nação brasileira, mas
de todas aqueles conceitos-limites que estavam associados, de um modo ou de
outro, à identidade nacional do Brasil como seu suplemento.
A construção da ontologia nacional do Brasil, em Eduardo Prado, esteve
sempre permeada pelo jogo e pela negociação com essas outras comunidades,
uma forma de construir uma idéia de nação através de um circuito ontológico, na
4
ORTEGA Y GASSET, op.cit., p. 39.
5
DERRIDA, Jacques. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p.39-40.
6
DERRIDA, op. cit., p. 40.
83
medida em que a posição de cada uma dessas comunidades não era algo que
ocupava um início ou um fim no seu pensamento.
Eduardo Prado foi um dos principais intelectuais brasileiros de fins do
século XIX, cujo pensamento esteve profundamente imbricado com os destinos da
nação. É difícil dissociar seu pensamento do imediatismo e da velocidade dos
acontecimentos de fim de século. Suas publicações, em sua maioria, estiveram
atreladas a esse ritmo, como tratamos de apresentar preliminarmente no primeiro
capítulo. Grande parte daquilo que foi reunido sob o título Coletâneas, bem como
os Fastos da ditadura militar no Brasil, publicado sob o pseudônimo de Frederico
de S. na Revista de Portugal, foram artigos difundidos em periódicos, na sua
grande maioria, direcionados para um ataque contundente à República Brasileira.
A ilusão americana, esse sim um livro mais contínuo e sistemático, também foi
escrito em momento conturbado e instável no mundo intelectual brasileiro. Sua
linguagem, na maioria das vezes agressiva na denúncia das ilusões republicanas,
bacharelescas e positivistas, apresentava, por outro lado, um projeto de nação, a
tentativa de fixar uma unidade no porvir e obnubilar a transitividade do próprio ser.
O “primeiro” (se é que assim podemos denominá-lo) desses exteriores-
suplementos que demarcavam o eu da nação no pensamento do autor – e do qual
ocupamo-nos nesse capítulo – era a Europa. Colocamos a idéia de Europa em
primeiro plano pela importância que ela tinha, no pensamento de Eduardo Prado,
na significação/ressignificação da nação brasileira. Nas polêmicas intelectuais do
Brasil durante esse período, a Europa e alguns de seus principais sujeitos
nacionais eram ainda e, sobretudo, aqueles exteriores constitutivos que balizavam
e/ou que serviam como parâmetro para as discussões sobre a identidade
nacional
7
, ou seja, uma espécie de universal de onde todas as discussões
surgiam e para onde retornavam: uma circularidade que tinha como um dos seus
centros de referência o Velho Mundo.
O primeiro, portanto, não tem a primazia da superioridade conferida ao mais
velho em uma escala de tempo linear e cumulativa; não sustentamos hierarquias
7
Ver: VENTURA, Roberto. Estilo tropical. São Paulo: Cia. das Letras, 1991; ORTIZ, Renato.
Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1984.
84
fundadas em genealogias ao demarcar a Europa como primeiro dos exteriores
constitutivos do Brasil, afinal, “inícios e fins podem ser os mitos de sustentação
dos anos no meio do século”
8
. A Europa como primeira é apenas um mito de
sustentação da própria ontologia relacional da nação. Sua apresentação ao final
da tese ou em seu início não implicaria mudanças em relação aos objetivos
propostos.
No projeto de nação de Eduardo Prado, o que a Europa e seus principais
sujeitos nacionais significavam na sua articulação com a construção de uma
identidade nacional do Brasil?
9
Além do mais, questões subsidiárias surgem ao
colocarmos a questão Europa. Desde quando é possível falarmos de Europa e
quais são os seus sentidos? Quando falamos em Velho Mundo, a partir de que
momento e lugar esse mundo é velho? Qual novo mundo o demarca como velho?
Ao que tudo indica, o Velho Mundo nasceu sob o signo da promiscuidade,
algo demasiadamente impuro para uma racionalidade que, ao longo de séculos,
reivindicava o monopólio dos universais
10
. As perguntas são muito variadas e
esforçamo-nos nas seções seguintes para dar uma resposta a elas, de modo que
haja uma articulação entre esses suplementos de construção do cerne da nação.
2.2 – A idéia de Europa no pensamento de Eduardo Prado
Um primeiro aspecto suscitado ao evocar a idéia de Europa é saber desde
quando ela existe.
11
Talvez seja demasiado anacrônico falarmos em Europa e
8
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998, p. 19.
9
Algumas dessas questões foram trabalhadas de modo preliminar em: ARMANI, Carlos. Exterior
constitutivo e interior transitivo: os componentes identitários do Brasil e seus outros no pensamento
de Eduardo Prado. Revista de Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v.31, n.1, p. 167-180,
junho 2005.
10
PRATT, Mary Louise. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: VÉSCIO, luiz
Eugênio, SANTOS, Pedro Brum. Literatura & história: perspectivas e convergências. Bauru:
EDUSC, 1999, p. 44.
11
BURKE, Peter. Did Europe exist before 1700? History of European Ideas, vol. 1, 1980, p. 21-
29. Esse artigo é o primeiro de muitos outros que foram pesquisados através do Portal Capes.
Como os artigos disponibilizados pelo site são apresentados online tal como foram publicados
originariamente nas revistas, as citações desses textos não obedecem aos critérios de referências
bibliográficas para documentos retirados da internet, mas sim aos critérios de citações de revistas
convencionais impressas.
85
europeus antes dos séculos XVI e XVII, ou ainda, antes do século XVIII, pelo
menos como uma idéia de consciência de pertencimento
12
.
Não é tarefa das mais fáceis pensar uma certa unidade dis-cursiva que
conforme Europa. Qual seria sua demarcação? Seria um continente com fronteiras
definidas, um conjunto de nações?
É claro que Europa significa não um termo geográfico propriamente, mas
uma idéia, uma palavra que expressa – ou potencialmente pode expressar – um
senso de identidade de grupo, uma forma de consciência coletiva
13
, ou ainda a
Europa compreendida, como escreveu Husserl na década de 30 do século XX, no
sentido de uma unidade de vida, de ação, de criação de ordem espiritual,
“incluindo todos os objetivos, os interesses, as preocupações e os esforços, as
obras feitas com uma intenção, as instituições e as organizações”
14
. Tratava-se,
portanto, não somente de uma idéia de Europa, mas um “problema Europa” que
se colocava para o pensamento dos intelectuais enquanto mundividência que
pretendia ter um cariz totalizante.
Há uma história de tal conceito que nos compete evocar aqui. A começar
pelo mito, de onde se origina Europa, sua origem etimológica remonta, segundo
Ribeiro, à heroína Europa da mitologia grega, que foi transportada por Zeus até
Creta. Esse é o começo da viagem dessa ninfa raptada, cujos irmãos a procuram
numa incessante busca
15
. Ribeiro se questiona se essa vocação para a
mobilidade não seria a cristalização subconsciente de que Europa é um espaço
aberto, que traduz um absoluto imperativo da alteridade para a expressão
identidade, haja vista que no próprio mito e no nome da Europa se manifesta o
sentido de mobilidade e de indeterminação
16
. Europa, nesse sentido, não seria,
12
Quando falamos em consciência, é apenas no sentido da possibilidade de uma auto-reflexão
para fins de demarcação da identidade. Por ora, deixamos de lado a discussão filosófica e
psicanalítica que envolve a idéia de sujeito e sua intencionalidade a partir da auto-reflexão e da
liberdade como auto-fundação, que pressupõem uma discussão acerca da idéia de consciência.
13
BURKE, op. cit., p. 21. No original: ‘Europe is not only a neutral geographical term, but a word
expressing a sense of group identity, a form of collective consciousness…”. Todas as traduções do
francês, inglês e espanhol são de minha inteira responsabilidade.
14
HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade européia e a filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2002, p. 70.
15
RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. A idéia de Europa. Coimbra: Quarteto, 2003, p. 20.
16
RIBEIRO, op. cit., p. 20.
86
como as Américas e como o Brasil, um conceito oscilante? A incessante busca
dos irmãos de Europa não seria, também, a perseguição infinita da significação da
nação, a sua différance?
Em momentos anteriores ao século XVII, a unidade européia somente era
reivindicada em situações nas quais se exigia uma certa unidade contra um
inimigo: persas, bárbaros, muçulmanos, selvagens e não-cristãos em geral
17
.
Segundo Burke, por mais de dois mil anos, entre o século V a.C. até o século XV,
o termo foi pouco utilizado, além de não significar muito para muitas pessoas
18
.
Foi somente a partir do final do século XV que o conceito passou a ser usado com
maior seriedade pelos homens da Europa, sobretudo com o papa Pio II, que se
utilizou do adjetivo europeu para a demarcação de um pertencimento. O avanço
dos turcos, de acordo com o historiador, parece ter tornado os ocidentais mais
conscientes de sua identidade coletiva
19
. Se havia ou não um respaldo empírico
dessa consciência sugerida por Burke, essa é uma questão pendente. De
qualquer modo, a unidade, ou seja, o próprio conceito Europa como totalidade não
era evocado nos momentos em que a ameaça de desagregação se colocava
diante da horda de diferenças que a invadia?
Esse foi um primeiro contexto de utilização da idéia de Europa por alguns
homens europeus em um sentido mais sistemático, o que envolvia, como
podemos ver, uma condição de “ser invadido”, diferentemente de outra situação,
também ressaltada por Burke, que teria levado os europeus a uma maior
consciência de sua identidade como comunidade imaginada: a inversão dessa
relação, ou seja, a invasão dos europeus
20
. O problema da diferença persistia.
17
Ver: FONTANA, Josep. A Europa diante do espelho. Bauru: EDUSC, 2005.
18
BURKE, op. cit., p. 23. No original: “Thus, for nearly two thousand years, from the fifth century b.
C. to the fifteenth century a.D., the term ‘Europe’ was is sporadic use without carrying very much
weight, without meaning very much to many people”.
19
Ibid., p.23. No original: “From the later fifteenth century, however, it came to be taken more
seriously (…) The advance of the Turkish forces, like earlier attacks from the east, seems to have
made westerns more conscious of their collective identity”.
20
Ibid., p. 25. No original: “ if the first context in which people became aware of themselves as
Europeans was that of being invaded by others cultures, the second was that of invading others
cultures, in other words, discovery and exploration”.
87
Neste caso, não eram mais os turcos que constituíam o exterior do ser
europeu, mas os americanos e o Oriente
21
, através de um processo de exploração
e descobrimento por parte dos velhos continentais. Desse modo, a Europa foi
definida pelo contraste não somente ao Império Otomano, mas também em
relação à Índia, à China, ao Peru e ao Brasil
22
.
A partir dessas idéias, torna-se possível percebermos o quanto a expressão
Europa nasceu, também, sob o signo da identificação e da ontologia
circunstancial. Se houve um momento de recrudescimento da consciência
européia no século XVII, sobretudo em razão dos conflitos internos – que podem
ser definidos também, em certo sentido, como externos ao ser europeu, posto que
algo exógeno à sua essência – os turcos e a América foram fundamentais na
criação desse ser. Portanto, antes dos autores brasileiros tomarem a Europa como
um componente regulador do eu nacional, a própria Europa já havia se
contaminado pelo não-ser europeu. Demarcamos um problema na suposta pureza
ontológica da identidade entre pensamento e ser da Europa antes mesmo de
chegarmos ao pensamento de Eduardo Prado.
A idéia de Europa foi pensada por Eduardo Prado como um componente
regulador do eu nacional cujo significado não se sedimentou em uma ontologia
unívoca do ser europeu. Para dar seguimento a essa idéia, é importante
referenciar uma das obras mais conhecidas e mais difundidas do autor – razão
pela qual optamos por iniciar a interpretação de seu pensamento por ela – A ilusão
americana:
“Voltado para o sol que nasce, tendo, pela facilidade da viagem, os
seus centros populosos mais perto da Europa que da maioria dos outros
países americanos; separado deles pela diversidade da origem e da
língua; nem o Brasil físico, nem o Brasil moral formam um sistema com
aquelas nações”
23
.
Havia uma primeira demarcação não somente da Europa, mas de todos
aqueles que seriam, no seu pensamento, exteriores constitutivos do Brasil. Se, do
21
Como frisamos no primeiro capítulo, longe de haver qualquer estabilidade ontológica do conceito
de Ocidente, o mesmo vale para Oriente.
22
BURKE, op.cit., p. 25. No original: “Europe was defined by contrast not only to the Ottoman
Empire but also to India, China, Peru and Brazil”.
23
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. [1893]. São Paulo: Brasiliense, 1961, p. 10.
88
ponto de vista geográfico, a afirmação de que havia uma aproximação maior do
Brasil à Europa poderia ser refutada – quando comparada com as Américas – do
ponto de vista “moral”, ou da identidade nacional, esse jogo de
aproximação/distanciamento tornava-se mais problemático para uma demarcação
precisa: primeiro problema da totalidade conceitual. De qual distância o autor
estava falando quando se referia a uma diferença de origem e língua do Brasil em
relação às Américas, “com aquelas nações”? O que significava esse “mais perto
da Europa” e esses “outros” para o autor?
Eduardo Prado entendia que a Europa era um ponto de referência moral,
entre outros, para um Brasil que passava por um processo de republicanização.
Não entendemos esse processo como algo simplesmente político no sentido
imediatista do termo. O autor, assim como a maior parte de seus
contemporâneos, vinculou seus projetos políticos a uma ontologia da nação. Seria
possível dizer que tais dimensões eram inseparáveis. Como sugere de Decca:
“Os intérpretes do Brasil imbuíram-se de uma tarefa que eles
mesmos consideravam inadiável. Isto é, subordinar a ação política aos
imperativos ontológicos do ser nacional. Em outras palavras, segundo uma
tradição já muito brasileira, a ação política só seria eficaz se fossemos
capazes de responder inicialmente ‘quem somos’”
24
.
Em que pese essa associação da ação política à ontologia como uma
“tradição já muito brasileira”, o que demarca uma fixidez identitária em relação aos
próprios projetos de nação desenvolvidos pelos intelectuais brasileiros, existia,
evidentemente, uma articulação entre ação política e ontologia nacional no
pensamento de Prado. Não que tal ligação fosse uma especificidade brasileira.
Para autores preocupados em assegurar o ser da nação no “escoamento
irreversível do tempo”, a ação política não poderia ser senão ser, ou seja:
ontologia.
Para Eduardo Prado, a República e a Monarquia eram modos de ser da
nação, formas de confronto entre valores que colocavam em jogo nada menos do
que o Brasil e a sua herança civilizatória ocidental diante de um tempo de
mudanças e de incertezas. As denúncias perpetradas pelo autor contra as
24
DECCA, Edgar de. Ensaios de cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda. In: AXT, Gunter,
SCHÜLER, Fernando (org.). Intérpretes do Brasil. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2004, p. 217.
89
instituições mais imediatas a ele estavam – o que demarcava esse sentido mais
ontopolítico – sempre atreladas à ontologia do Brasil.
Seu pensamento era de significativa afeição pelo Velho Mundo. Parte
importante de seus escritos elogiavam a Europa e alguns de seus sujeitos
nacionais, como Inglaterra, Portugal e, em certas circunstâncias, França e
Espanha. Não seria plausível, contudo, pensar que o pensamento do autor fosse
uma espécie de servidão cognitiva ao Velho Mundo como reduto por excelência
da civilização. A Europa era um modelo, mas não algo a ser transposto de modo
acrítico para as instituições brasileiras. O autor entendia que a civilização
brasileira, durante a República, estava à beira de um abismo porque havia se
fundamentado em cópias, o que significava, ontologicamente, a sua aniquilação.
Acima de tudo, era o caráter nacional da nação que estava em decisão.
É difícil ser rigorosamente preciso, acompanhando o pensamento pradiano,
em pensar uma Europa como totalidade. Havia a Europa Ocidental (Inglaterra,
França, Portugal), que republicana ou monárquica, era um exemplo de liberdade,
ou ainda alguns pequenos estados “semibárbaros dos Bálcãs”
25
, onde a
civilização, tal como concebida por Prado, não existia, ou ainda a Itália, “país
ignorante e atrasado”
26
. Eram variadas as posições do autor em relação à Europa.
Por isso, se faz necessário precisarmos, na mobilidade do dis-curso, os sujeitos
da ação européia no seu pensamento e dos seus interlocutores.
Sua Europa era tanto um continente demarcado por fronteiras mais ou
menos naturais, dentro das quais estavam inseridas Alemanha, França, Itália,
Rússia, Áustria, Dinamarca e todos os países que fisicamente faziam parte do
Velho Continente, como também uma Europa mais delimitada ontologicamente,
com sujeitos nacionais que, autônomos, demarcavam, para retomarmos Husserl, a
unidade de ação, de criação espiritual e dos objetivos do próprio ser europeu, as
fronteiras da idéia de Europa que passavam pela definição das fronteiras internas
25
PRADO, Eduardo [S. Frederico de]. Fastos da ditadura militar no Brasil. [1890]. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 98.
26
PRADO, Eduardo. Viagens pela Sicília, Malta e Egito. [1886]. São Paulo: Escola Tipográfica
Salesiana, vol.2, 1902, p. 5.
90
da própria Europa, as fronteiras do Estado-nação
27
. Sem essa demarcação
interna seria pouco provável que pudéssemos de-finir os sujeitos nacionais
europeus no pensamento pradiano.
Por outro lado, ainda que houvesse essa notável admiração, o intérprete
da nação engrossou, em muitos momentos, as fileiras daqueles que viam uma
Europa decadente, como podemos depreender dessa assertiva:
“Hoje [1897], as nações da Europa não têm ideais no seu governo,
e toda a arte, toda a ciência dos estadistas limita-se ao adiamento
sucessivo da solução dos problemas. É um perpétuo desviar das
dificuldades no presente e um incessante acumular de catástrofes para o
futuro”
28
.
Ainda na mesma ordem contextual, dez anos depois, Joaquim Nabuco
escreveu sobre sua impressão geral da história:
“Eu quisera ler num quadro, digamos em uma conferência, a
impressão geral da História. Onde achá-lo? Eu falo do drama, da tragédia
humana, do que Prometeu chamou a sua obra, o novo destino do homem.
De saque em saque, de escravização em escravização, de destruição em
destruição... a história é uma carnificina sem-fim. Como a humanidade
caminha, progride entretanto por elas. Se tudo tivesse ficado na paz e na
ordem, nunca teria havido progresso”
29
.
Tais idéias, não sem certo teor profético, poderiam ser endossadas por
outros intelectuais de fin-de-siècle
30
ou, adiantando mais a profecia, para os
demais anos que marcariam a chamada crise da humanidade européia, sobre a
qual diversos autores escreveram, tais como Walter Benjamin, Edmund Husserl,
Sigmund Freud, Karl Kraus, Franz Kafka, Paul Valéry, entre outros.
Não obstante, Eduardo Prado enaltecia a Europa que, apesar de acumular
catástrofes para o futuro, era ainda uma espécie de “portadora da civilização”. Tal
posição um tanto ambígua – a mesma ambigüidade da catástrofe e do progresso
em Nabuco – se justifica por um fim de século profundamente turbulento, não
somente no Brasil, mas na Europa também. Como vimos, darwinismo social,
27
MARTINS, Rui Cunha. Das fronteiras da Europa às fronteiras da ideia de Europa. In: Ideias de
Europa: que fronteiras? Coimbra: Quarteto, 2004, p. 42.
28
PRADO, Eduardo. Antonio Candido. [1897]. In: Coletâneas. São Paulo: Escola Tipográfica
Salesiana, 1904, vol. 1, p. 272.
29
NABUCO, Joaquim. Diários: 1873-1910. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2006, p. 645-646.
30
Como tratamos de verificar no primeiro capítulo.
91
positivismo, liberalismo e diversas correntes de pensamento viam, em fins do
século XIX, um período de decadência, de morte, de promessas, de esperanças
que conviviam em uma atmosfera intelectual longe de ser plácida. O próprio termo
fin-de-siècle usado nessas linhas evocava esse clima de incerteza e insegurança
intelectuais. Baumer, em certo sentido, ressignificou a expressão cunhada por
Nordau. De acordo com o historiador, fin-de-siècle podia ser usada para um
pensamento que estava tomando forma no final do século e fazia parte de um
mundo em revolução, não só contra o positivismo, mas contra todos os padrões
dos valores e convenções, contra o racionalismo e o convencionalismo burguês
31
.
Muitos autores europeus escreveram de modo similar acerca da
decadência da Europa. O escritor português Antero de Quental, por exemplo, em
uma carta ao historiador Oliveira Martins, afirmou estar cansado, desgostoso e
sem ânimo para escrever, sobretudo porque via o atoleiro em que a Europa havia
se metido. Vale a pena citar a passagem dessa carta um tanto quanto cética:
“Não tenho que dizer, ou vontade e estímulo para dizer seja o que
for, e quisera até não pensar. Há mais de oito dias que nem abro um livro.
Noutro tempo desesperava-me, e o desespero, agora o reconheço, era um
alimento para o meu espírito: vivia disso. Mas agora, que já me não posso
desesperar, sinto um vácuo. Tenho até medo de me aborrecer, coisa que
dantes nunca me sucedia, mas que começo atualmente a achar possível.
Pois que mundo é este! E em que atoleiro caiu esta pobre Europa! Foi para
isso que combateram os heróis e padeceram os mártires e os sábios
vigilaram, para dar tudo neste rebanho de porcos, guardados por algumas
raposas tinhosas! Miseráveis raposas: pois ainda há uma certa consolação
em se ser devorado por tigres e até por lobos: mas o bicho fedorento,
manhoso e covarde causa nojo: e todavia é esse bicho que triunfa e
triunfará. Aqui tem, em poucas palavras, o desgosto que me rói e, como
disse, me entope. Que fazer a isto, e como viver no meio disto, ou, pelo
menos, com isto diante dos olhos?”
32
.
Eça de Queiroz não era menos pessimista. Nas suas Notas
contemporâneas, o autor português entendia que a situação da Europa era
“medonha”, e nada poderia suster o “incomparável desastre”. Esse fim de século,
afirmou o autor, “é um fim de mundo”
33
. “Se a este prolongado e triste brado”,
31
BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. Lisboa: Ed. 70, 1990, vol. 2, p. 132.
32
QUENTAL, Antero de. Carta a Oliveira Martins [25 de agosto de 1888]. In: QUENTAL, Antero de.
Cartas II (1881-1891). Lisboa: Ed. Comunicação, 1989, p. 897.
33
QUEIROZ, Eça de. A Europa. [1888]. In: QUEIROZ, Eça de. Notas contemporâneas. Lisboa:
Livraria Lello e Irmãos Editores, 1944, p. 181.
92
continuava o autor, “o homem que trabalha, quieto na sua morada, repara mais
atentamente na Europa – ela aparece-lhe como uma sala de hospital, onde
arquejam e se agitam nos seus catres ... os grandes enfermos da civilização”
34
.
Entre esses enfermos, praticamente a Europa na sua totalidade estava incluída:
França, Alemanha, Dinamarca, Rússia, Portugal, Itália, Espanha e Inglaterra, eram
parte dessa doença. A palavra que melhor descrevia tal estado era “excesso”. Em
uma carta a Eduardo Prado, datada de 1888, Eça de Queiroz afirmou que a
Europa tinha “três mil anos de excessos, três mil anos de ceias e de
revoluções!”
35
. O transbordamento e o excesso pareciam caracterizar o cansaço
diante de uma grande desordem e instabilidade existentes.
As duas cartas praticamente falavam por si mesmas. O teor que elas
evocavam não era uma particularidade desses escritores portugueses, embora em
Portugal a idéia de decadência estivesse na ordem do dia. Nietzsche,
contemporâneo desses autores, escreveu que os homens de fins do século
pertenciam a uma época cuja civilização corria o perigo de ser destruída pelos
meios da própria civilização
36
. Outros autores ainda, e Eduardo Prado era um
exemplo deles, sinalizaram para a decadência, como o escritor alemão Thomas
Mann que, em 1901, com sua obra Buddenbrook cujos personagens eram
membros de uma família burguesa européia decadente – apresentou uma
metáfora da própria crise pela qual a Europa passava
37
. Embora no Ocidente
demarcado por esses intelectuais, de um modo geral, as sociedades passassem
por um ambiente de euforia, “de que a civilização brasileira participou
vivamente”
38
, parte importante dos valores da sociedade racionalista do século
XIX, hipostasiados na idéia de civilização na sua totalidade, encontrou seus limites
em termos de realização, situação que favoreceu a difusão de uma literatura
demasiadamente questionadora.
34
QUEIROZ, op. cit., p. 181.
35
QUEIROZ, Eça de. Carta a Eduardo Prado. [1888]. In: QUEIROZ, Eça de. Cartas e outros
escritos. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”, [s.d].
36
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. [1878]. São Paulo: Cia. das Letras,
2000, aforismo 520, p. 272.
37
MANN, Thomas. Los Buddenbrook. [1901]. Barcelona: Edhasa, 1997.
38
BROCA, Brito. A vida literária no Brasil: 1900. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Letras/José Olympio, 2005, p. 35.
93
Alguns anos depois, a Primeira Guerra assinalaria o colapso da civilização
ocidental, que até aí, ainda exultaria e cantaria pelo mundo afora suas realizações
em nome do progresso. Essas passagens de Joaquim Nabuco, de Eduardo Prado,
de Antero de Quental e de Eça de Queiroz talvez pudessem antecipar a famosa
frase de Walter Benjamin, de que nunca houve um monumento de cultura
(civilização) que não fosse também um monumento de barbárie
39
.
Não obstante, ao falarmos em Europa no pensamento de Eduardo Prado,
não era somente o teor pessimista que grassava. Um primeiro modelo em termos
cronológicos evocado pelo autor era a Grécia de Péricles, admirada porque suas
leis supostamente não haviam sido copiadas de nenhuma outra sociedade. Em
um momento de republicanização civilizacional do Brasil e de denúncia da cópia
do modelo norte-americano, a não-imitação das instituições era um valor
incondicional. Nesse sentido, a Grécia clássica assumiu um prestígio quase
sagrado diante de modelos copiados. Eis as suas palavras:
“Péricles, no seu célebre discurso do cerâmico, disse: ‘dei-vós, ó
atenienses, uma constituição que não foi copiada da constituição de
nenhum outro povo. Não vos fiz a injúria de fazer, para vosso uso, leis
copiadas de outras nações’. Há muita grandeza na exclamação do gênio
grego. Há uma presciência de tudo quanto descobriu a ciência social
moderna que, afinal, se pode resumir nisto: as sociedades devem ser
regidas por leis saídas da sua raça, da sua história, do seu caráter, do seu
desenvolvimento natural”
40
.
A Grécia, berço da civilização ocidental, primava por instituições
supostamente atemporais para reger as sociedades. Diríamos, em uma linguagem
contemporânea, instituições puras que demarcariam a sua identidade nacional.
Ora, não poderia haver identidade nacional em um modelo copiado. De modo
algum a cópia se coadunaria com a idéia de leis intrínsecas da raça, da história do
caráter e do “desenvolvimento natural” da sociedade.
Por detrás dessa suposta imortalidade era, sobretudo, a tradição da
monarquia brasileira que estava em jogo. Falamos aqui, de exteriores constitutivos
do Brasil, daquelas sombras e sobras que constituíam o ser da nação, uma idéia
sempre presente nas circunstâncias que regulavam as diversas ontologias da
39
BENJAMIN, op.cit, p. 225.
40
PRADO, A ilusão..., op. cit., p. 44-45.
94
nação e que encontrava no Brasil o seu principal esforço de centralização. Por
outro lado, ao falarmos de exterior constitutivo em uma relação que articula as
diversas identidades, parece-nos plausível aceitar a idéia de que esse exterior era
algo que se efetivava também como interioridade
41
.
É importante salientar que tal alusão à Grécia não implicava, no
pensamento de Eduardo Prado, uma maneira, como sugere Broca, “inconsciente
de muitos intelectuais brasileiros reagirem contra a increpação de mestiçagem,
escamoteando as verdadeiras origens raciais, num país em que o cativeiro
estigmatizara a contribuição do sangue negro”
42
. O modelo grego usado pelo
escritor em nenhum momento serviu para encobrir a formação miscigenada da
nacionalidade brasileira; pelo contrário, tal miscibilidade foi sustentada pelo autor
como uma maneira de ressaltar a força da nacionalidade brasileira – e, portanto, a
sua originalidade –, em um meio muitas vezes concebido como hostil à formação
de uma nação. As comparações da arte indígena de Marajó com a arte grega da
Ática, efetivadas por Prado, indicam essa postura que, em nada, procurou ocultar
a contribuição indígena para a definição do Brasil
43
.
Feitos alguns excursos iniciais sobre o problema-Europa, investigamos dois
sujeitos nacionais que afirmavam a “unidade de ação e de objetivos da estrutura
espiritual Europa”
44
no pensamento pradiano: Inglaterra e Portugal. A importância
que esses dois exteriores constitutivos tinham nas trilhas de de-finição da nação
era indubitável. Sem eles, a Europa não poderia ser pensada enquanto tal no
pensamento de Prado.
41
Não devemos, porém, subestimar a referência à cultura helênica como algo isolado no
pensamento de Eduardo Prado, haja vista que no Brasil em fins do século XIX e início do século
XX, não era somente a França o grande ponto de referência cultural no mundo dos intelectuais,
mas também a Hélade. De acordo com Brito Broca, “a Grécia triunfou plenamente em nossas
letras até a guerra de 1914, pelo menos”. Ver: BROCA, op. cit., p. 153.
42
Ibid., p. 157.
43
“Na cerâmica dos vasos de Marajó há o aparecimento de uma arte pela qual o sentimento
estético daqueles desconhecidos oleiros se aproxima da pureza das formas e da harmonia das
linhas que os ceramistas da Ática consagram”. Ver: PRADO, Eduardo. Discurso. [1898]. In:
Coletâneas, vol. 3, op. cit., p. 134; PRADO, Eduardo. L’art. [1889]. In: Coletâneas... op.cit.
44
HUSSERL, op. cit., p. 70.
95
2.3 – A Inglaterra como sujeito nacional/imperial
Apesar da importância da Grécia em uma demarcação do ser europeu, um
dos seus principais sujeitos nacionais – que no seu agir autônomo dignificava o
nome da Europa e sua identidade cristalizada como civilização superior – era, no
pensamento de Eduardo Prado, indubitavelmente a Inglaterra enquanto nação
preeminente na difusão da civilização e do ser europeu pelo mundo afora.
Mas, por qual razão era a Inglaterra um modelo de civilização para o autor?
Por que ela se constituía em um dos principais, senão no principal pilar da
subjetividade nacional da Europa?
Primeiramente porque, a exemplo da Grécia de Péricles, suas instituições
não eram copiadas. Seu ser não se constituía como cópia, e copia mal-
reproduzida de qualquer outra nação. A ausência de imitação – macaquice, diria
Prado – e, portanto, o primado de uma substância intocada na sua tradição – a
pureza do ser nacional – era mais do que um valor para o autor, era, podemos
dizer, “a base do temperamento nacional”, como assim a entendia Joaquim
Nabuco
45
. Além dessa suposta originalidade, a Inglaterra – o império onde o “sol
nunca se punha” – se constituía como o maior domínio da Europa e ainda – não
devemos esquecer que tratamos de fins do século XIX – do Mundo. Tal condição
da Inglaterra era admirada pelo autor, que pensava o ser inglês em termos de
energia da raça anglo-saxônica, da sua condição supostamente natural para a
expansão – uma espécie de cultura prometeica de dominação e conquista do
Mundo
46
. Do ponto de vista “interno”, a Inglaterra, ao contrário da França e dos
Estados Unidos, não era uma “forma republicana burguesa”, que mais protegeria
os “abusos do capitalismo”
47
. E, não sem fazer uso de uma concepção teológica
da história, a Inglaterra era “temente a Deus”
48
. Esses quatro tópicos que se
interpenetram: 1) a originalidade e a suposta pureza; 2) a autonomia que permitia
à Inglaterra ser um império e ser “resolvida” internamente; 3) a força da raça; 4) a
45
NABUCO, Joaquim. Minha formação. [1895]. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 88.
46
Fazemos uso do mito de Prometeu apenas para nos referirmos à idéia de civilização, sem
maiores implicações com as possíveis interpretações do mito de Ésquilo.
47
PRADO, A ilusão..., op. cit., p. 134.
48
PRADO, Eduardo. Victoria R.I.[1897]. In: Coletâneas, vol. 1..., op. cit., p. 265.
96
dimensão teológica, eram fundamentais para a compreensão da admiração que
Eduardo Prado nutria pela Inglaterra.
Vejamos a questão da originalidade. Tema de longos e acalorados debates
no Brasil oitocentista, a originalidade não era um problema que envolvia somente
a Inglaterra. Por que a Inglaterra (e o Brasil monárquico) eram admirados pela sua
suposta originalidade? Essa é uma questão que nos remete para os meandros
das polêmicas de fins do século.
Autores célebres do pensamento brasileiro como Sílvio Romero, Tobias
Barreto, Joaquim Nabuco, Araripe Júnior, José Veríssimo, Oliveira Lima, Eduardo
Prado, entre outros, foram polemistas notáveis. A polêmica foi a forma como os
debates em torno da nação e de outros temas se constituíram. Nenhuma palavra
indica melhor as disputas intelectuais do período do que a palavra polêmica, em
um momento carregado de tensões no campo intelectual, denominado por Ventura
como uma época de escritores combativos, de polemistas irados e de bacharéis
em luta
49
.
Derivada do substantivo grego pólemos, que significa luta, combate,
conflito, tal expressão foi usada por filósofos consagrados do pensamento grego,
como Heráclito (540-480 a.C), que concebia a luta e o conflito como o pai de tudo
e de tudo o rei
50
. A idéia de que o pólemos era o pai de todas as coisas parece ter
perpassado o pensamento originário e chegado até os intelectuais finisseculares.
Mas a polêmica, como sugere Schüler ao comentar o aforismo de Heráclito, não
era uma devastação guerreira. O conflito criava e preservava e era o responsável
pela correlação das coisas
51
.
Assim entendemos as polêmicas desse período. Elas somente tinham
validade porque eram criadoras. Se houvesse efetivamente uma anulação nos
embates entre os polemistas, pouco seria aproveitado de seus escritos. Por mais
que tais polemistas fossem extremamente raivosos, a raiva e a ira de seus
escritos não deixavam de ser o reconhecimento do outro para quem e contra
quem eles escreviam. O que Eduardo Prado escreveu sobre a existência da
49
VENTURA, op. cit., p. 13.
50
SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 233.
51
SCHÜLER, op. cit., p. 233.
97
rivalidade em jornais, podemos afirmar acerca da polêmica: “é o adversário que
lhes dá o alimento e o elemento vital: a discussão”
52
. E por falar ainda em jornais,
não somente Prado, mas muitos dos autores acima arrolados encontraram na
imprensa a maneira por excelência respaldar seus escritos. Graça Aranha, em
1896, escreveu acerca dessa relação entre a imprensa e os escritores: o
pensamento humano, para ele, “é agora guardado e transportado pela imprensa,
que é a última expressão do domínio. O heroísmo não se encarna mais na figura
do homem-deus, do padre, do rei; a sua nova forma, a das idades últimas, é a
clâmide do escritor”
53
.
A originalidade era um dos principais temas das polêmicas, sobretudo nos
casos em que ela transcendia a nação, alcançando outras fronteiras entre nações
diferentes. Como sabemos, estava-se vivendo um certo recrudescimento do
nacionalismo, e nada mais importante para a autodeterminação de uma nação do
que a originalidade e a autenticidade, sobretudo em um contexto cujas
articulações conceituais envolviam várias escalas nacionais, como, além da
brasileira, a portuguesa, a hispano-americana, a anglo-americana, a inglesa e a
européia de uma maneira geral. Prado, ao viajar para o Egito, assim se manifestou
em relação ao Cairo:
“O primeiro aspecto do Cairo, na sua parte nova, nada tem de
particular. As casas lembram as casas novas da Itália; as ruas são largas,
plantadas de árvores; há chafarizes horrivelmente europeus, e o céu azul
apresenta-se estriado de longos fios de telefones que atravessam o ar.
Passada essa primeira má impressão, começa o olhar a descobrir quadros
encantadores de originalidade”
54
.
A julgarmos por essa passagem, a originalidade aparecia para o autor como
um valor fundamental das nações. No Egito, colônia européia, era decepcionante
verificar uma cultura milenar parecer mais com a Itália ou com a Inglaterra. Tal
originalidade, encontrada pelo autor ao circular na Cairo mais profunda – depois
52
PRADO, Eduardo. Viagens: América, Ásia e Oceania. [1882,1886]. São Paulo: Escola
Tipográfica Salesiana, 1902, p. 28.
53
ARANHA, Graça. O farol maranhense. [1896]. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1969, p. 799.
54
PRADO, Eduardo. Viagens a Sicília, Malta e Egito. [1886]. São Paulo: Escola tipográfica
Salesiana, 1902.
98
de passar a primeira má impressão – era percebida de modo mais nítido na
Inglaterra.
A Inglaterra era concebida como um país livre, o “mais poderoso e livre do
mundo”
55
. Seu humanitarismo cristão, as instituições de um modo geral: tudo
funcionava dentro de uma regularidade. Talvez tradição fosse a palavra mais
apropriada para o autor, sobretudo porque os ingleses hipoteticamente
respeitavam a sua história e as instituições que emanavam de seu ser. Tal
condição tem a ver com aquele núcleo da identidade cultural supostamente
atemporal e imutável, “ligando passado ao futuro e o presente numa linha
ininterrupta”, o cordão umbilical que “chamamos de tradição”
56
.
Eduardo Prado entendia que a independência da América Latina, inclusive,
estava atrelada moralmente à Inglaterra, pois teriam sido os ingleses os
responsáveis – através de uma osmose moral que evocava o pathos da origem –
pela realização da independência naquele subcontinente. Eis as palavras do autor:
“À Inglaterra principalmente, e não aos Estados Unidos, deve a América Latina a
sua independência”
57
. É claro que os Estados Unidos apareciam como um
componente modelador do eu nacional da própria Inglaterra e dos países sul-
americanos, e talvez o autor somente tenha se dirigido desse modo aos ingleses
porque os Estados Unidos reivindicassem a primazia da independência política
nas Américas. Contudo, ter o Império como modelo não significava copiá-lo, mas
sim ser envolvido por uma atmosfera de autonomia que implicaria a busca de seu
próprio ser para aquelas nações distanciadas de si mesmas – nesse sentido, a
Inglaterra, consubstanciada na sua tradição, era original. Crença relativamente
comum dos ideólogos do império inglês, para Prado, ao invés de querer ostentar
poder e dominar outras nações, a Inglaterra era uma espécie de guia universal
para o progresso de todas as nações
58
.
55
PRADO, A ilusão..., op. cit., p. 80.
56
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. da UFMG,
2003, p. 29.
57
PRADO, A ilusão…, op. cit., p. 14.
58
Não usamos a expressão ideólogos em sua conotação negativa. Ela serve aqui apenas para
expressar a idéia dos intelectuais que defendiam, em termos intelectuais, o Império Britânico, tal
como Lord Acton o fez.
99
Lord Acton, historiador inglês da segunda metade do século XIX, foi porta-
voz de uma geração que se regozijou com o sucesso do British Empire. Para o
autor, havia um problema na teoria moderna da nacionalidade, ao tornar
“teoricamente equivalentes o Estado e a nação”, que praticamente reduzia a “uma
condição subalterna todas as outras nacionalidades”
59
. Sua explicação residia no
seguinte: uma nação dominante, de uma “raça superior, em cujo poder estarão as
futuras perspectivas do Estado”, não poderia aceitar as nacionalidades
subjugadas em igualdade com “a nação dominante que constitui o Estado, porque,
nesse caso, o Estado deixaria de ser nacional, o que estaria em contradição com
o princípio de sua existência”
60
. Desse modo, conforme “o grau de humanidade e
civilização” desenvolvido por esse corpo dominante que reivindicava todos os
direitos da comunidade, as “raças inferiores” seriam exterminadas, reduzidas à
servidão, marginalizadas, ou colocadas em situação de dependência
61
. Essa
situação acarretaria um tipo de imperialismo desumano e, para estancar tal
possibilidade, deveria se considerar a finalidade da sociedade civil, que era, de
acordo com Acton, estabelecer a “liberdade para que os deveres morais [fossem]
cumpridos”, o que somente “Estados substancialmente mais perfeitos (...), como
os impérios britânico e austríaco” (grifos nossos), os quais supostamente
englobavam várias nacionalidades distintas, “sem oprimi-las”
62
, poderiam
efetivamente realizar.
É evidente a aproximação da visão pradiana em relação ao que Acton
pensava acerca da Inglaterra. Essa aglutinação à qual Acton chamou a atenção
acontecia porque os ingleses supostamente primavam por sua tradição. O poder e
a liberdade, suscitados por Prado ao se referir à Inglaterra, eram ecos da visão do
historiador inglês.
A propósito, para Eduardo Prado, o respeito ao passado e às tradições era
imprescindível para uma civilização não desaparecer. Para termos uma idéia da
importância que tal postura tinha para si, mesmo em se tratando de um caso de
59
ACTON, Lord. Nacionalidade. [1860]. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.). Um mapa da questão
nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 41.
60
ACTON, op. cit., p. 41.
61
Ibid., p. 41-42.
62
Ibid., p. 42.
100
país republicano – a França –, Prado pensava que havia civilização lá. Por quê?
Porque a França respeitava e tratava o passado dentro de um campo de
experiências onde ele não era concebido como algo a ser esquecido, ao contrário
do Brasil republicano que desmantelara o pretérito em nome do futuro e do
progresso: “A França republicana não desfigura seus monumentos, arrancando-
lhes os emblemas e os sinais dos antigos regimes monárquicos. Estes emblemas
pertencem à história...”
63
. Pertencer à história significava relação de perenidade
com a civilização, com todo o conjunto das experiências que teria se acumulado
ao longo do processo histórico da humanidade
64
. Era contra a morte como término
da nação que Prado evocava a história, o resíduo de memória que permitia ao
Brasil não se esquecer de si mesmo. Entrar para o espaço de pertencimento da
história era olvidar a temporalidade, tornar a nação imersa em uma carapaça
atemporal que lhe permitiria assegurar sua perenidade.
O segundo tópico, que não deixava de estar relacionado à originalidade, era
a autonomia consubstanciada na idéia de império. Em um artigo publicado na
Revista Moderna (editada em Paris) em 1897, intitulado Victoria R.I., Prado traçou
os contornos de seu grande elogio à Inglaterra. Ao tratar da rainha Vitória, e por
extensão, da era vitoriana, os elogios aos ingleses não foram poupados. De
acordo com o autor, “a história do povo que ela rege resume-se na palavra que é o
seu nome: Vitória”
65
. E continuou:
“Neste século, não teve a Inglaterra mais inimigos entre as nações.
A sua luta foi, não contra os povos, mas contra o mundo físico. Cumpria-
lhe domar as ondas do mar e ganhar as terras novas que, no globo todo,
tentavam a sua ambição. O seu destino foi o de vencer o espaço terrestre.
O oceano foi logo seu. Sobre eles soltou as legiões de seus navios, que a
ciência tornara rápidos, grandes e fortes”
66
.
Para o intérprete, toda a terra havia sido envolta pelo progresso da
Inglaterra, o que lhe permitiu, enquanto sujeito nacional, ou talvez mesmo um
63
PRADO, Fastos..., op. cit., p. 122.
64
Tomamos a expressão campo de experiência de Koselleck, que entende por tal conceito o
conjunto da experiência histórica do passado que poderia servir para as lições do presente e do
futuro. ver: KOSELLECK, Reinhardt. Futuro pasado: para una semántica de los tiempos
históricos. Barcelona: Paidós, 1993, sobretudo o capítulo 2, Historia: magistra vitae.
65
PRADO, Victoria..., op. cit., p. 250.
66
Ibid., p. 251-252.
101
sujeito hipertrofiado – um sujeito imperial – fundar novas nações prósperas e
mesmo novos impérios. A Inglaterra parecia personificar uma espécie de
comunidade imaginada pós-nacional, haja vista que sua extensão era
demasiadamente ampla para se configurar nos limites pouco flexíveis da nação.
Indubitavelmente, o autor se sentia atraído por essa dimensão imaginária imperial
do ser inglês, que também se configurava como algo original e sem precedentes
na história. A sobreposição da Inglaterra às ondas do mar, à totalidade do globo e
ao Oceano era indício do quanto a imagi-nação imperial, em estilo camoniano,
implicava o destino sem limites. A expansão dos ingleses teria fundado novas
nações, uma extensão de dominação que passava pela Austrália, pelo Canadá e
cruzava os oceanos em nome do progresso. Tudo isso era a base desse “colossal
império que hoje vemos”
67
.
Eduardo Prado, como Acton, notava na Inglaterra uma cultura cuja missão
era levar a civilização para o resto do mundo. Na sua luta contra as fronteiras
físicas, não estavam incluídos somente os mares e a terra, mas também o que
poderíamos denominar natureza, contraposta à cultura. Para o autor:
“Os heróis militares da Inglaterra fazem-se matar, sob todos os
climas do mundo, em luta contra todos os bárbaros, para terem ao peito a
Cruz de Victoria! Os seus exploradores batizam com esse nome, cuja
fortuna nunca empalideceu, os montes nunca transpostos, os rios
ignotos”
68
.
As mais antigas raças do globo, os mais “broncos selvagens”,
pronunciavam, todos, o nome da rainha inglesa, e os “fios imersos nos abismos,
poderosos nervos invisíveis do mundo inglês, levarão até Londres, cérebro desse
mundo, as vibrações dos entusiasmos longínquos”
69
. Nessa rede universal
construída pelos ingleses, havia um híbrido de selvagens, de rios, de clima, de
bárbaros, em suma, um conjunto de limites supostamente naturais que se
colocavam ou se colocariam como entraves ao avanço da civilização. Para o
autor, a prosperidade autonômica de cada parte do império inglês era também a
prosperidade dos centros populosos da Inglaterra, “cujo excedente de população é
67
PRADO, op. cit, p. 252.
68
Ibid., p. 252-253.
69
Ibid., p. 255.
102
transvasado para aquelas terras novas, onde é assombroso o crescimento da
população, graças à incomparável fecundidade da raça”
70
. A primazia da raça era
comum no pensamento dos intelectuais de fins do século XIX, a qual trazia
consigo um tema subjacente: a dicotomia civilização versus barbárie.
Dicotomia clássica no pensamento raciológico de fin-de-siècle, tal idéia não
era nova. Segundo Lévi-Strauss, tais expressões são comuns na civilização
ocidental, sendo provável que a “palavra bárbaro se refira etimologicamente à
confusão e à inarticulação do canto dos pássaros, oposta ao valor significante da
linguagem humana”
71
. O selvagem “o que vem da floresta”, por sua vez, evoca
também um gênero de vida animal, por oposição à cultura humana. Nos dois
casos, afirma Lévi-Strauss, “se recusa admitir o fato mesmo da diversidade
cultural; prefere-se rejeitar como fora da cultura, na natureza, tudo aquilo que não
se conforma à norma sob a qual se vive”
72
. Lévi-Strauss demonstra o quanto a
linguagem que fala em nome da dualidade natureza/cultura também pode se
fundamentar em uma mesma lógica de totalização que relega a diferença cultural
para a natureza.
Não devemos omitir, outrossim, nesse período, o sucesso de obras como o
Essai sur l’inégalité des races humaines, de Arthur de Gobineau, que davam
primazia para o elemento raciológico em relação a qualquer dimensão de
historicidade que pudesse mudar o destino das raças. Seus dois tomos eram um
elogio à predominância da raça na formação da civilização. No capítulo XVI da
primeira parte do Essai, Gobineau traçou os contornos do que seriam as três
grandes raças e a superioridade do branco e dos arianos
73
.
70
PRADO, op.cit., p. 261.
71
LÉVI-STRAUSS, Claude. Race et histoire. Paris: Folio essays, 1987, p. 20. No original: “Il est
probable que le mot barbare se réfère etymologiquement à la confusión et à l’inarticulation du chant
des oiseaux, opposées a la valeur significante du langage humain”.
72
LÉVI-STRAUSS, op. cit., p. 20. No original: “et sauvage, qui veut dire ‘de la forêt’, évoque aussi
un genre de vie animale, par opposition à la culture humaine. Dans les deux cas, on refuse
d’admettre le fait même de la diversité culturelle; on préfère rejeter hors de la culture, dans la
nature, tout ce qui ne se conforme pas à la norme sous laquelle on vit”.
73
Ver: GOBINEAU, Arthur de. Essai sur l’inégalité des races humaines(1853-1855), vol.1, p.
195-202. Disponível em:<
http://www.uqac.ca/Classiques_des_sciences_sociales>. Acesso em 15.
jan. 2005. No capítulo 4, em que a ontologia da miscigenação brasileira é trabalhada de modo mais
sistemático, o tema da desigualdade/igualdade em termos raciais é retomado.
103
Por mais vinculado que estivesse à história, o pensamento de Eduardo
Prado não deixou de ser profundamente imbricado pelas dimensões raciológicas
que fundamentaram o pensamento de fin-de-siècle. Isso quer dizer que o autor
entendia a expansão européia (inglesa) por continentes afora como uma luta da
cultura (a civilização britânica) contra a natureza – os “broncos selvagens”, o outro
do europeu ou, ainda, o outro que não o homem branco e ocidental.
Além de constituir um império e diminuir o espaço da natureza no mundo, a
“raça inglesa” em sua missão centrípeta, não havia constituído um império do
capital em nome do progresso por ele mesmo, circunscrito à “supremacia
material”. Contra aqueles que pensavam que na “terra onde foi inventada a
primeira locomotiva só se admitiria a ciência, porque a ciência é prática; mas
nunca a Poesia e nunca a Arte, porque não são práticas”, o autor respondeu
categoricamente: “não foi, porém, assim”
74
.
O que isso queria dizer? Será que outra expressão da superioridade
britânica residiria no espírito de contemplação, típico da poesia e da arte,
diferentemente da ciência que, ao acelerar o mundo, com a locomotiva, colocava
em risco a arte, a filosofia e a poesia – conquistas perenais da civilização? Era
contra a técnica que Prado escrevia, contra tudo aquilo que pudesse representar
uma ameaça ao passado, à tradição e aos valores ocidentais? A locomotiva podia
bem servir como uma alegoria do mundo acelerado em que se vivia, o “símbolo
popular da mobilização e transformação acelerada de todas as forças da vida, a
que se chama progresso ou simultaneidade do não simultâneo”
75
.
Tais predicados – a contemplação atrelada à técnica e à velocidade do
progresso – constituíam uma parte importante da ontologia inglesa no pensamento
do autor e daí, novamente, uma certa dose de originalidade, se comparada com o
que ele compreendia ser o capitalismo nos Estados Unidos e na França.
Entendemos que, no contexto de comprometimento com a “pressa vertiginosa de
nossa época rolante”
76
, na qual se diminuía paulatinamente o espírito de
74
PRADO, op. cit., p. 262.
75
PEREIRA, Miguel. Modernidade e tempo. Coimbra: Minerva, 1990, p. 27.
76
NIETZSCHE, Friedrich. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. [1870-1872]. Rio de
Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2005, p. 34.
104
contemplação, encontrar uma nação como a Inglaterra era uma maneira de
estancar a excessiva fragmentação, a crise dos valores e a aceleração em que os
intelectuais acreditavam viver.
Há um aspecto em relação à Inglaterra, contudo, que merece um
tratamento teórico mais significativo. Chamamos a atenção para a autonomia do
ser inglês como um predicado apreciado pelo autor na ontologia circunstancial de
elaboração da nação. Qualquer nação que quisesse reivindicar a si o status de
nação autônoma deveria ser pensada como auto-suficiente e capaz de
determinar-se a si própria, sem qualquer tipo de impedimento externo a essa
autodeterminação. E esse era o caso inglês. Como tratamos, aqui, da idéia de
sujeito no seu sentido constituído na modernidade, a exigência de uma reflexão
teórica é um imperativo epistemológico que se impõe.
O fato da Inglaterra ser autônoma significava, em primeiro lugar,
reconhecimento da ausência de limites e expansão da cultura sobre a natureza.
Basta lembrar de uma citação acima, em que Eduardo Prado afirmou não haver
mais limites para a conquista britânica, para percebermos o quanto tal postulado
estava presente na sua admiração em relação aos ingleses. Ora, tal visão nos
leva à reflexão acerca da subjetividade no seu sentido mais radical constituído na
modernidade.
Como sugere Renaut, o humanismo tem consistido em valorizar no homem
a dupla capacidade de estar consciente de si mesmo (a auto-reflexão) e de fundar
o seu próprio destino (a liberdade como auto-fundação), isto é, dois postulados
que definem a idéia clássica de subjetividade concebida como designando a
aptidão, onde se situaria a humanidade do homem, para ser autor consciente e
responsável dos seus pensamentos e dos seus atos, ou seja: o seu fundamento, o
seu subjectum
77
. O problema colocado pela subjetividade, neste caso, nos conduz
a uma questão importante em relação à Inglaterra, posto que esses seriam o
resultado de uma lógica de domínio e soberania absoluta sobre o real
78
. Quais
seriam os limites da Inglaterra?
77
RENAUT, Alain. A era do indivíduo: contributo para uma história da subjectividade. Lisboa:
Inst. Piaget, 1989, p. 17.
78
RENAUT, op. cit., p. 18.
105
Internamente, Eduardo Prado não percebia limites de qualquer ordem. A
questão proletária, que estava na ordem do dia do pensamento de vários
intelectuais durante esse período, era vista pelo autor como algo que havia sido
plenamente resolvido entre os anglo-saxões
79
. O autor acreditava que o problema
social do proletariado envolvia todo o mundo, sobretudo os Estados Unidos
“ateus” e a França republicana, mas eram nas nações monárquicas que o conflito
era menos significativo, sobretudo na Inglaterra
80
. A crise do capital, como assim a
definiu Joaquim Nabuco ao comentar, em 1877, uma greve de trabalhadores das
estradas de ferro nos Estados Unidos, era decorrência do progresso e da
democracia que facilitavam a obtenção de armamentos e tornavam perigoso o
próprio regime democrático na ameaça de suas tradições sociais
81
. Como Prado,
Nabuco também se assustava com a volubilidade do modelo americano.
Contudo, esses fatores ainda seriam insuficientes para demarcar o
sucesso do empreendimento inglês. Havia algo mais, que não deixava de ter
conotações teológicas no sentido estrito do termo, haja vista que Prado
preconizava uma certa filosofia teológica da história quando se referia à expansão
inglesa. O temor a Deus poderia ser a grande explicação para tal empresa ser tão
bem sucedida. Para o ontólogo da nação: “À grandeza dos reis da terra, que
passam, o inglês antepõe a grandeza do Eterno Rei, que não morre, e
recompensa com a prosperidade a Virtude dos povos que o temem”
82
.
A asserção acima parecia contrapor a própria possibilidade de pensarmos
em autonomia no pensamento pradiano, haja vista que, se houvesse intervenção
de Deus no processo histórico, o que teríamos seria uma possibilidade de
independência, posto que não seriam os homens – neste caso os ingleses –, que
dariam a lei a si próprios, e sim Deus. Portanto, não haveria autonomia, mas sim
heteronomia, através das leis dadas pela divindade e seguidas pelos homens que
79
Tal posicionamento do autor pode ser facilmente relativizado. Para isso, basta mencionar as
obras de Charles Dickens, sobretudo Hard Times, em que o problema “interno” da Inglaterra
mostrava-se sempre como algo, no mínimo, presente.
80
PRADO, A ilusão..., op. cit., p. 129.
81
NABUCO, Diários..., op.cit., p. 173.
82
PRADO, op. cit., p. 264.
106
a temiam
83
- daí a suposta retribuição divina à Inglaterra. Indubitavelmente, havia
aqui o velho problema dos historiadores cristãos tradicionais, que inseriam sua
escrita “na tensão entre o reconhecimento do papel onipresente de Deus e da
liberdade humana”
84
. Contudo, mais do que propriamente uma intervenção direta
na história, o deus cristão estava associado ao fundamento, à base que permitia
construir valores (cristãos) em um mundo cada vez mais descrente – voltamos à
desagregação dos valores ocidentais e à temporalidade no centro da reflexão de
Eduardo Prado para contaminar de ser a presença diante da ameaça do fim.
Ramalho Ortigão, amigo de Prado, em um escrito de 1899, disse que a
religião ainda era uma “inexaurível fonte de consolações individuais”, apesar de ter
deixado de ser o “laço dogmático” que prendia e identificava “todos os espíritos
num sentimento comum”
85
. Para Ortigão, ao regime teológico sucederam-se
sistemas filosóficos e conseqüentes sistemas políticos, “que uns depois dos outros
sem têm aluído na vacuidade, produzindo a geral indiferença entristecida, que é o
mal do nosso tempo”
86
. Tal alusão de Ortigão aos sistemas de pensamento de fins
do século explica bastante do pensamento de seu amigo brasileiro, afinal, Prado
ainda encontrava na teologia cristã o fundamento contra a “indiferença
entristecida” trazida pelo regime político republicano.
Eduardo Prado admirava a Inglaterra por ser uma espécie de rocha entre as
nuvens da angústia e da perda de sentido e de ser. É claro que havia uma tensão,
do ponto de vista da filosofia política, nesse embate interno ao seu pensamento,
entre o plano de soberania imanente, cujos propugnadores entendiam a afirmação
do ser como terreno imanente de conhecimento e de ação (a autonomia), e o
plano transcendente que impunha, a priori, uma autoridade e uma ordem
transcendente à própria história
87
. Em relação ao papel da Inglaterra na história,
seria possível afirmar que o autor estava entre a assunção de um plano imanente
83
Uma reflexão interessante acerca da confusão entre independência e autonomia encontra-se
em: RENAUT, Alain. O indivíduo: reflexão acerca da filosofia do sujeito. Rio de Janeiro: DIFEL,
2004.
84
DOSSE, François. A história. Bauru: EDUSC, 2004, p. 217.
85
ORTIGÃO, Ramalho. Folhas soltas (1865-1915). Lisboa: Clássica Editora, 1956, p. 250.
86
ORTIGÃO, op.cit., p. 250.
87
NEGRI, Antonio, HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.89 e 98.
107
de ação dos homens – o domínio sobre o real – e a dimensão transcendente, cujo
sujeito principal não era mais o homem, mas o deus cristão.
Joaquim Nabuco, um dos seus principais amigos, fez elogio similar à cultura
britânica. O abolicionista percebia a relação íntima dos ingleses com Deus: “O
que, entretanto, na Inglaterra alimenta, renova e purifica o patriotismo, é outra
espécie de responsabilidade: a do homem para com Deus”
88
. A força moral da
raça e do império, portanto, estaria associada a essa consubstanciação de
patriotismo e religião: “só quando o orgulho britânico e a consciência cristã
estremecem juntos e se unem em uma mesma causa, é que o sentimento inglês
desenvolve a sua energia máxima”
89
.
O reencantamento do mundo, talvez já uma alusão que Eduardo Prado
tenha feito ao fim do século XIX como um questionamento da modernidade e de
alguns de seus rumos
90
, foi salientado de modo bastante interessante por
Baumer, ao afirmar que alguns homens de fin-de-siècle se desesperavam e se
enfastiavam do mundo, o que os levou a encontrar, muitas vezes, uma via de
regresso à fé e ao desígnio, através do catolicismo romano e do nacionalismo
91
.
Eduardo Prado se manifestou a respeito desse ambiente de pessimismo
(basta pensar na crise de valores salientada por Antero de Quental algumas linhas
acima) que cada vez mais contagiava o mundo ocidental e a reação “religiosa” a
tal atmosfera intelectual. Para o autor, em todo o Ocidente havia um renascimento
religioso, posto que o materialismo não satisfazia mais as aspirações humanas, “e
a ciência tem se mostrado impotente para a resolução do problema moral e
social”
92
. Depois de quase um século de progressos materiais e incessantes, a
humanidade teria tido a “distinta intuição de que nada disso a fez feliz”, na medida
em que “a ciência não leva o homem à bondade, nem ao sacrifício pelos outros”
93
.
88
NABUCO, op. cit., p. 88.
89
Ibid., p. 89.
90
Como sabemos, foi Max Weber quem pensou a modernidade como um vasto processo de
desencantamento do mundo, com a perda de referenciais mágicos e encantados. Ver: WEBER,
Max. L’éthique protestante et l’esprit du capitalisme. Disponível em: <
http://classiques.uqac.ca/classiques/Weber/weber_max.html >. Acesso em 10 de junho de 2006, p.
68, 81.
91
BAUMER, op. cit., p. 133.
92
PRADO, Eduardo. A crítica republicana. [1896]. In: Coletâneas, vol.2., op. cit., p. 58.
93
PRADO, op. cit., p. 58-59.
108
Em uma crítica à modernidade e ao desencantamento do mundo
proporcionado por ela, o autor não hesitou em colocar no primeiro plano da
existência a religião e a faceta espiritual do homem. Nessa passagem, notamos
um apelo, não sem certo pendor escatológico, típico de um intelectual cujo
pensamento acerca da temporalidade era fortemente marcado pela cultura
judaico-cristã e por seu momento de decisão:
“A humanidade abandona o materialismo. O espiritualismo e a fé,
isto é, Deus e a religião, de novo se apossam do espírito e do coração
humano. O temeroso problema social, as revoltantes desigualdades da
sociedade moderna, em que o rico é tudo e o pobre é menos que nada,
impõem-se ao espírito e ao coração dos homens. E a ciência não resolve o
problema, nem dá remédio ao mal. O homem volta-se para a religião, que
lhe proporciona o consolo, a resignação e a esperança. Estamos assistindo
em nossos dias a esse grande movimento uníssono e universal da alma
humana, que se chama a reação religiosa. Este movimento já se nota na
política, já aparece no ensino europeu, já invadiu a Arte, já quase domina a
Literatura. É irresistível, incoercível, fatal e avassalador”
94
.
A revitalização religiosa era percebida em quase toda a Europa, e Prado
temia que tal movimento intelectual não chegasse até a República “ateísta”
implantada no Brasil. O teor de necessitarismo histórico em seu pensamento era
sintomático de seus anseios por uma nova ordem global não mais individualista,
imediatista e atéia. A perda de sentido do ser era uma preocupação fundamental
para o autor, que temia o afundamento do Brasil e dos valores morais em um
abismo do qual não mais se sairia
95
.
A Inglaterra, pela força da raça, pela sua história original (tradição) de
liberdade e autonomia, pela suas convicções teológicas, era um exemplo para
qualquer civilização. Como podemos inferir, os predicados raciológicos, a
originalidade, o império e o vigor teológico eram dimensões que se
consubstanciavam no ser perseguido por Eduardo Prado e seus interlocutores.
Podemos contrapor a essa Inglaterra, o Brasil laico, não-imperial e
republicano que, além de não temer a Deus, não primava por qualquer tradição.
94
PRADO, op.cit., p. 59-60.
95
Como sabemos, foi Heidegger, em Ser e tempo, quem chamou a atenção para o esquecimento
do ser no pensamento ocidental. Tal perda significa, aqui, a idéia de que os grandes valores da
cultura intelectual ocidental estavam em declínio, no pensamento de muitos intelectuais nos dois
lados do Atlântico. Ver: HEIDEGGER, Martin. Ser y tiempo. Ciudad de México: FCE, 1974.
109
Tratava-se, como o autor mesmo pensava, de uma república que, pelo fato de
manter um espírito laico, pouco poderia compartilhar das benesses perenes da
civilização ocidental, pelo menos daquela que representava o seu ápice.
Dentre as nações européias admiradas pelo autor, nenhuma se aproximava
tanto da Inglaterra. A originalidade, o deslumbramento imperial, o respeito às
tradições e a Deus, a força da raça, a autonomia – fatores que homologavam a
ontologia nacional inglesa – eram qualidades não somente apreciáveis, mas
inalcançáveis, que demarcavam o eu nacional inglês. Notável identificação com o
modelo britânico foi não somente reconhecido pelo próprio Prado, como também
por Moniz Barreto que, ao resenhar os Fastos da ditadura militar no Brasil ,
afirmou que o conjunto de opiniões e tendências coordenáveis no ideal político
pradiano era um “pouco inglês”
96
.
Rui Barbosa, no seu exílio, escreveu algumas linhas parecidas com tais
idéias acerca da Inglaterra, em suas Cartas de Inglaterra, reunidas e publicadas
em 1896. O autor pensava que a Inglaterra era “a grande árvore da liberdade no
mundo moderno”
97
. O autor das Cartas avançou no seu depoimento entusiasmado
dos ingleses: “A semente inglesa rebenta com as mesmas virtudes em todas as
regiões aradas por este povo, em todas vastas regiões do globo, por onde se
distribui a imensa família dos súditos d’el-rei Shakespeare”
98
. Vejamos essa
citação acerca do império britânico:
“Por que será que certas raças, depois de rasgarem na história um
horizonte de esperanças tão vasto quanto o dos impérios que ocuparam o
mundo, faltam a todas elas, atrofiando-se, sem futuro, nem importância
exterior, nos mesquinhos limites dos seus territórios, enquanto esse
pequeno núcleo humano, concentrado na velha Inglaterra, de dia em dia
mais se vai dilatando pelo orbe, que se dizia fadado a encher?”
99
.
É possível perceber que a fascinação imperial não era uma especificidade
do pensamento de Eduardo Prado. Rui Barbosa – que fora duramente criticado
por Frederico de S. nos Fastos – percebia a ausência de limites que
96
BARRETO, Moniz. Os fastos da ditadura militar no Brasil. Revista de Portugal. Porto, n.2, 1890,
p. 763.
97
BARBOSA, Rui. As bases da fé. In: Cartas de Inglaterra. [1896]. São Paulo: Livraria
Acadêmica/Saraiva Editores, 1929, p. 161.
98
BARBOSA, op. cit., p. 166.
99
Ibid., p. 168.
110
fundamentava a ação expansionista inglesa e, a exemplo de Joaquim Nabuco e
do seu êmulo, era um notável admirador da Inglaterra. Além do mais, para
antecipar um tópico que trabalhamos a seguir, é digno de notarmos a referência
implícita à nação atrofiada, sem futuro nem expectativas – possivelmente Portugal.
Araripe Júnior (1848-1911), outro intelectual de fins do século XIX e um dos
antípodas de Eduardo Prado (e, igualmente, de Rui Barbosa), não tinha a mesma
opinião. Araripe, escritor e crítico literário cearense, era um dos polemistas
notáveis que não sancionava as idéias de Eduardo Prado e dos monarquistas em
geral. Araripe Júnior, para quem Prado era “um parisiense nascido na terra dos
Andradas”
100
, teve pouco contato com o autor paulista. Nas suas próprias
palavras, assim se referiu a Prado, quatro anos depois de sua morte:
“Não cheguei a conhecer Eduardo Prado senão de vista. Li, porém,
todos os seus escritos; e começava a apreciá-lo justamente no momento
em que Frederico de S... se manifestou um dos intelectuais brasileiros
mais pessimistas que já se ostentaram em nosso meio, diante do advento
do ‘15 de Novembro’”
101
.
Araripe Júnior era pouco afeito à Inglaterra e a Portugal. A América, por sua
vez, ao “fundar novos deuses”, o que significava romper com o passado colonial,
não tinha mais razão para se submeter às nações européias. Não obstante, os
“pais”, os velhos deuses, “irritam-se na decrepitude das instituições que mantêm,
na aflição da irresolubidade dos problemas econômicos que os tortura, pregam a
violência e armam flibusteiros contra todas as nações incipientes”
102
. Para o autor,
os europeus renegavam seus descendentes porque não os podiam governar, e a
“política nefanda ordena aos seus sábios que inventem teorias de anátema contra
as raças inferiores”, sob o pretexto de degenerados, mestiços e, portanto,
condenados
103
. Araripe pensava que os governos europeus se colocavam na
mesma posição do povo hebreu de outrora, “cujos juízes amaldiçoavam,
100
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. A Doutrina de Monroe. [1909]. In: Obra crítica. Rio de
Janeiro: Casa Rui Barbosa/ Ministério da Educação e Cultura, 1963, vol.4, p. 307.
101
ARARIPE JÚNIOR. O livro do padre Severiano. [1905]. In: Obra crítica..., vol. 4, op. cit., p. 153.
102
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. O combate naval de 16 de abril. [1896].In: Obra crítica...,
vol. 3, op. cit., p. 86.
103
Ibid., p. 86.
111
mandando passar a fio de espada populações inteiras, porque os homens
coabitavam com mulheres impuras, mulheres de outra raça”
104
.
Ironicamente, o crítico literário afirmou que, fora do grupo jurídico das
nações européias, “guardas dos direitos da civilização, não há salvação possível.
Elas formam o povo sagrado”. “Na América, na Austrália”, seguiu o autor, “nos
países conhecidos pela denominação de coloniais, a escravidão ou a
depredação”
105
. Daí essa “louca tentativa” de restituir-se à força o “estigma dos
antigos deuses, a máscara do dinasta que os costumes democráticos da livre
América eliminaram do nosso rosto”
106
. De modo contundente, criativo, sarcástico
e mordaz, Araripe Júnior atacou a Europa e alguns dos seus principais sujeitos
nacionais, sobretudo Portugal e Inglaterra. Seus argumentos tinham endereço
certo: o “parisiense” e “as aspirações retrógradas dos pretensos monarquistas do
Brasil”
107
.
A Inglaterra era o principal sujeito, enquanto ser autônomo em suas ações,
da expansão colonial. Era uma “loucura de expansão” por parte dos europeus, que
deixavam para trás, de acordo com o crítico cearense, a máscara da antiga
diplomacia, alteando o estandarte dos direitos da civilização, precipitando-se sobre
povos fracos do mesmo modo “selvagem” dos bárbaros em relação ao Império
Romano. Quanto aos ingleses, eles estavam na dianteira dessa expansão do
direito predatório (grifos do autor), sinônimo de direito de expansão colonial em
nome da civilização, posto ultimamente em evidência pela Inglaterra e seus
turiferários”
108
.
Affonso Celso, monarquista a exemplo de Prado, também denunciou, no
supostamente ingênuo Porque me ufano de meu país, o colonialismo europeu.
Celso afirmou que a tendência dos estados foi sempre a de dilatarem as suas
fronteiras, ambição que fora outrora da Pérsia, da Macedônia, de Roma, de
Cartago e, no momento presente, “dos principais povos da Europa
104
ARARIPE JÚNIOR, op.cit., p. 86.
105
Ibid., p.86.
105
Ibid., p. 86.
106
Ibid., p.87.
107
Ibid., p. 87.
108
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Americanismo. [1896]. In: Obra crítica..., op. cit., p. 97.
112
contemporânea, na sua política de expansão colonial, que tantos atentados contra
o direito e tantos sacrifícios tem custado”
109
.
Se, para Eduardo Prado, a Inglaterra era autônoma, superior racional e
racialmente, original e zelosa pela sua tradição religiosa, para Araripe e mesmo
Celso, contrariamente, ela estava longe de ser um modelo. Contestando
vigorosamente os pressupostos de superioridade civilizatória para efeitos de
dominação e conquista, como o próprio Araripe assim o expressou, os ingleses
nada mais eram do que uma nação decadente (como Portugal) que pretendia
recuperar as suas posses, perdidas outrora aos americanos. Tratava-se, portanto,
podemos dizer, da morte de Deus em um sentido pós-colonial, posto que as
antigas divindades (valores europeus, sobretudo ingleses e portugueses) não
seriam mais cultuadas, ou seja, as novas sociedades criadas na América e no
Brasil em especial, seriam responsáveis pela criação de novos fundamentos, de
novos deuses (valores), sem o concurso da Europa: o Novo Mundo como causa
de si.
Eça de Queiroz, amigo e talvez o principal interlocutor de Eduardo Prado,
sintonizava muito mais com Araripe, ao se referir à Europa e à Inglaterra, não
obstante suas reservas em relação aos Estados Unidos e ao americanismo. Para
o autor, as crises na Europa, como vimos acima, se acumulavam cada vez mais, e
a mais intensa e extensa delas era a crise da indústria, “nascida da necessidade
que a prolífica e atulhada Inglaterra tem de vender o que fabrica, para comprar o
que come”, uma “necessidade implacável que a força a procurar mercados por
toda a terra” e a arranjar “povos vassalos para obter novos fregueses”
110
. Tal
crise, porém, não se circunscrevia à indústria: era também uma crise agrícola e
uma crise moral, “inquietadora degeneração de costumes”
111
.
Mas, a polêmica que envolvia Eduardo Prado e Araripe Júnior e que tinha
Eça de Queiroz como uma referência em favor do pensamento do segundo seria
um fator de distanciamento tão significativo assim entre os dois escritores
109
CELSO, Affonso. Porque me ufano de meu país. [1900]. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura,
2001, p. 39.
110
QUEIROZ, Notas..., op. cit., p. 182.
111
Ibid., p. 182-183.
113
brasileiros, tal como aparece nessas linhas? Poderíamos apreender o outro no
mesmo, ou, para usar os nomes desse pólemos, não seria possível perceber um
certo Araripe Júnior em Eduardo Prado? Qual era a extensão de sua admiração
em relação à Inglaterra? Não seria a Inglaterra, mesmo temerosa a Deus,
portadora de uma autonomia incapaz de impor limites a si mesma no que tangia à
extensão de sua dominação – e daí a qualidade ameaçadora do devir de seu
próprio ser?
Paradoxalmente, havia no pensamento de Eduardo Prado uma presença
ambígua do império. Os anglo-saxônicos representavam grandeza e, ao mesmo
tempo, se constituíam em uma ameaça para o Brasil. Como era possível tal
contra-senso? Seria a Inglaterra efetivamente um modelo a ser seguido pelo
Brasil? A seguir, aventamos algumas das razões pelas quais o autor temia a
expansão inglesa.
Não seria um anacronismo sustentar a idéia de que havia uma denúncia
efetivada pelos intelectuais – brasileiros e europeus – da expansão européia
levada a efeito, em especial, pelos britânicos. Os pequenos excertos do
pensamento de Araripe Júnior apresentados são testemunhos dessa leitura crítica
que alguns intelectuais brasileiros faziam ao expansionismo europeu. Se foi para
sustentar o americanismo enquanto cosmovisão que Araripe pronunciou essas
palavras, importa-nos menos. Era o exterior constitutivo Europa e os seus
significados possíveis colocados no pólemos que estavam em jogo nesse
momento.
Indispensável se faz voltarmos para a relação ambivalente de Prado em
relação à filosofia da história. Se, na sua oscilação entre uma filosofia imanente da
história – que reconhecia o potencial autônomo da Inglaterra – e uma filosofia
transcendente da história – que admitia a intervenção divina no processo histórico
– a primeira tivesse primazia, Deus estaria subordinado ao princípio do “dar a lei a
si mesmo” e, portanto, seria limitado pela própria soberania ontológica da
Inglaterra; por outro lado, se a primazia divina fosse afirmada, não haveria
autonomia, mas sim uma determinação transcendental em relação à sua
114
soberania sobre o real, o que implicaria subordinação a um plano de
transcendência.
Eduardo Prado não deu uma resposta clara a respeito dessa dicotomia que
se apresentava na definição da subjetividade inglesa. Por outro lado, o fato de
afirmar simultaneamente a autonomia e o temor a Deus como fatores que definiam
a ontologia inglesa, parece tê-lo levado ao reconhecimento de que havia,
efetivamente uma ameaça, e que essa ameaça não era necessariamente uma
vontade divina, mas uma intimidação derivada de um plano de poder imanente, ou
seja, da própria autonomia subjetiva nacional, que poderia se sintetizar na
seguinte questão: em que sentido haveria um prenúncio de dominação inglesa no
Brasil?
Nada mais conveniente, para respondê-la, do que deixar Eduardo Prado
falar. Eis uma outra visão acerca da Inglaterra, essa muito mais temerosa de uma
possível conquista inglesa em terras tropicais:
“A influência inglesa, há três ou quatro anos, apoderou-se do
território dos Piráras e infliltra-se rapidamente num dos mais ricos e
saudáveis pedaços do território brasileiro, isto é, nas terras altas do Rio
Branco. Podemos considerar perdida aquela região. E por quê? Porque os
ingleses têm os seus missionários que, caminhando do Norte para o Sul,
têm vindo conquistando (sic) para o cristianismo, o que equivale, no caso,
a dizer, para a Inglaterra, os silvícolas daquela parte do Brasil. A República
Brasileira, filha do positivismo, suprimiu o serviço da catequese dos índios.
Isto equivale a dizer que abandonamos um meio de influência, de
alargamento e de defesa do nosso território, meio de que os nossos
adversários, mais inteligentes do que os republicanos brasileiros, estão
usando largamente contra o Brasil”
112
.
Contraposta à visão do autor apresentada algumas linhas acima, a
Inglaterra aparecia muito mais vinculada, juntamente com seus anseios teológicos,
ao expansionismo. Não era a comunidade imaginada da Cristandade que
motivava esses escritos
113
. Não havia, agora, uma solidariedade com a Europa ou
uma identidade monárquica entre Brasil e Inglaterra. A demarcação dis-cursiva do
território estava definida: era a nação o centro que tinha primazia sobre o ser
112
PRADO, Eduardo. A crítica..., op.cit., p. 54-55.
113
O conceito é de Anderson. Antes propriamente de haver uma comunidade imaginada em
termos nacionais, Anderson sugere a existência da Cristandade, em termos ocidentais, como uma
comunidade imaginada. Ver: ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Lisboa: Ed. 70,
p. 31-57.
115
cristão. Se os ingleses temiam ou não a Deus, o que importava era que eles se
expandiam em seu nome, abarcando o próprio território brasileiro, em nome não
de Deus, mas da rainha Vitória! Eduardo Prado falou como um nacionalista,
distante daquele apelo ao império como uma entidade superior que simplesmente
se imporia por um critério de civilização hipoteticamente superior a todas as
outras. A propósito, a sua sutileza ao afirmar que os ingleses eram “mais
inteligentes” do que os “republicanos brasileiros”, parecia sugerir, nas entrelinhas,
uma complementação do tipo mas não mais inteligentes do que o brasileiro. Era
apenas um predicado do Brasil inferior à Inglaterra, mas não o ser Brasil.
Evidentemente, presenciamos nessas linhas um ataque ao “positivismo
ateu”, a exemplo do que muitos outros intelectuais desse período faziam. Fica
claro, em seu texto, o receio da associação entre religião e expansionismo inglês,
sobretudo porque havia um temor das prerrogativas decorrentes de sua raça. A
conquista britânica não o era para o cristianismo, mas sim para a Inglaterra. Além
do mais, Eduardo Prado, ao mencionar a República Brasileira, em nenhum
momento se referiu a ela enquanto um sujeito com o qual se identificava. Não
obstante, ao falar do Brasil, o autor não hesitou em usar a primeira pessoa do
plural – o “nós” – da comunidade para sedimentar o próprio território da nação em
seu pensamento, bem como as fronteiras morais a partir das quais ele falava.
Parece que todos aqueles apanágios positivos do ser inglês desapareciam frente
ao caráter de dominação sobre o real que a Inglaterra praticava. A imanência da
autonomia subjetiva suspendia o ser em nome de um devir expansivo da
Englishness. A dilatação do império britânico em terras brasileiras arruinaria os
fundamentos do Brasil.
A suspeita do autor em relação a um possível processo de dominação
absoluta da raça anglo-saxônica se hipertrofiou em uma outra situação, que já
antecipa a questão do outro em termos de antiamericanismo: se, por ventura,
houvesse um acordo entre Estados Unidos e Inglaterra para a expansão, o que
aconteceria?
Essa foi uma das questões que Eduardo Prado se colocou ao comentar um
artigo do escritor norte-americano Sidney Sherwood. Preocupado com os escritos
116
de Sherwood, que entendia ser uma aliança entre Estados Unidos e Inglaterra a
forma mais racional de conduzir a política exterior ianque, o autor não poupou os
recursos de seus postulados nacionalistas para defender a nação dos trópicos
enquanto civilização. Para o autor, tanto os ingleses quanto os norte-americanos
mantinham uma convicção inabalável de que eram raças superiores: “como os
ingleses, os americanos acreditam que o destino da raça que fala inglês... é a
dominação universal”, os “novos romanos”, ou seja, a “raça que fala inglês”
114
. Se,
para um escritor como Sherwood, a aliança entre Inglaterra e Estados Unidos era
uma garantia de paz universal, bem como a supressão da selvageria que ainda
afrontava a civilização em diferentes países, para Eduardo Prado, tal acordo
somente diminuiria, usando uma linguagem lévi-straussiana, a natureza
(diferença) pela expansão da cultura anglo-saxônica através da supressão dessa
natureza em nome do progresso, da civilização, e de tudo aquilo que
representasse o ser europeu. Isso queria dizer que, na medida em que os anglo-
saxônicos avançassem, o seu progresso seria diretamente proporcional ao
desaparecimento de seus outros, de tudo aquilo que, por ser diferente, era
concebido como natural, bárbaro e selvagem – como o Brasil republicano cada
vez mais se distanciava da civilização, não é de todo incoerente pensar que o
Brasil (republicano) pudesse ser subsumido ontologicamente pela “raça que fala
inglês”.
Antes de escrever essas linhas, quando Prado estava menos comprometido
com a monarquia e com a “ameaça republicana”, seus comentários em relação
aos ingleses, em especial à “baixa burguesia inglesa” não eram dos mais
simpáticos:
“Essa classe é uma execrável variedade da espécie humana. Na
Inglaterra, ela pode, por seu trabalho, ser causa poderosa do
enriquecimento nacional; pode, por suas virtudes pouco amáveis, manter a
liberdade pública e o conjunto de ficções e compromissos vulgarmente
chamado – a pureza do sistema representativo... Pode manter tudo isto e,
em viagem, o colarinho de papel, mas será sempre pura e simplesmente
odiosa”
115
.
114
PRADO, Eduardo. A aliança anglo-americana. [1896]. In: Coletâneas, op. cit...., vol. 2, p. 161-
163.
115
PRADO, Viagens... [1886] , op. cit., p. 91.
117
O inglês vulgar, para o autor, vivia saturado de preconceitos, de orgulho e
de egoísmo, e considerava um abuso “não lhe ser dado sempre o primeiro e o
melhor lugar” em um trem
116
. Uma “demora num caminho de ferro”, continuou
Prado, “um atraso num vapor, cousas que o resto dos homens considera apenas
contrariedades, tomam aos olhos desse inglês as proporções de atendados
horríveis, desde que incomodem Mr. Jones ou Mr. Brown”
117
.
A Inglaterra enquanto suplemento do Brasil carregava uma dupla imagem
deslizante, relacionada com sua autonomia e com a força da sua raça, portanto,
com sua vontade de dominação, que era tanto o colossal império da Rainha
Vitória, como a consubstanciação das formas de dominação colonial que
subjugavam nações e “raças menos poderosas”. Os mesmos postulados que
serviam para engrandecê-la eram usados para censurá-la. Nesse momento, não
era o suposto colonizado a imagem da ambigüidade. Antes dele, pairava na
lacuna da significação o próprio sujeito nacional e representacional da colonização
– a vontade de representação que se pervertia diante de sua imersão temporal.
O duplo movimento de admirar a Inglaterra e incriminar sua expansão era
uma tentativa de estar no cerne da moral, ou seja, no centro da obediência aos
costumes, à tradição e, por que não, ao Brasil, como matriz de sedimentação do
ser. A Inglaterra era uma alteridade/mesmidade do Brasil de D. Pedro II. Admirá-la
e denunciá-la era uma maneira, entre outras, de retornar ao Brasil antes da
República, um retorno ao passado através de uma realidade presente que fazia
aparecer, tornar presente a ausência de um passado recente violentamente
solapado. A lógica da falta, da impossibilidade de auto-suficiência e auto-
referência conceitual era o que inscrevia essa dupla identidade em um
pensamento disjuntivo da nação, cujo ser-mesmo era ser-outro.
O Brasil que emergia dessa construção identitária era permeado
simultaneamente por uma ontologia negativa, que dizia o que o Brasil não era,
bem como por uma dupla ontologia normativa, que dizia o que o Brasil deveria ser
e o que ele não deveria ser. E o Brasil não era, em primeiro lugar, homogêneo,
116
PRADO, op.cit., p. 91-92.
117
Ibid., p. 92.
118
autônomo, tradicional e original, nem temia a Deus e nem primava por um plano
de dominação universal. Misto de ser, devir, admiração, medo e desprezo,
Eduardo Prado absorvia tanto a idéia da nação vitoriana como modelo a ser
seguido, como da nação imperialista que pretendia britanizar o mundo em nome
da civilização. Em ambos os casos, a Inglaterra enquanto possibilidade de
conceitualidade era um exterior constitutivo que dizia o que era o Brasil
republicano e o que deveria ser o Brasil monárquico. A Inglaterra, nesse sentido,
estava associada a uma perspectiva de tempo futuro que permitiria ao Brasil se
reencontrar consigo mesmo, “tornar-se o que ele é”, um devir futuro que indicava a
necessidade de retornar ao ser para continuar a ser, ou, para usar as palavras de
Prado: “sejamos nós mesmos, sejamos o que somos, e só assim seremos alguma
coisa”
118
.
O autor sustentou uma profunda unidade entre o passado – o que era – e o
futuro de um presente que já não o era, mas que deveria ser – o continuar sendo.
Ainda em relação à temporalidade inscrita no seu pensamento, a idéia de que os
ingleses mantinham a sua tradição, bem como o temor a Deus, parecia ser um
modo de solapar os “valores” republicanos presenteístas, ou seja, uma denúncia
do desrespeito que os republicanos brasileiros alimentavam em relação ao
passado, haja vista que não havia um precedente histórico no Brasil para a
República se auto-afirmar, o que unicamente poderia acontecer com a negação
desse mesmo passado. Tal atitude intelectual somente contribuiria para a
afirmação de um presente (instantâneo) sem qualquer campo de experiências
nem horizonte de expectativas, como se o rompimento dessa relação fosse
efetivamente possível para construir novos valores.
A Inglaterra pressupunha o tempo do cuidado, que envolvia o próprio futuro
do Brasil ameaçado, bem como a idéia de retorno ao pretérito para construir o
futuro, o que presumia nova ruptura com aquilo que havia se estabelecido em
termos de ordem moral, social e política nos trópicos. Ou seja, havia, do ponto de
vista da temporalidade inscrita no pensamento de Eduardo Prado, as idéias de
retorno, linearidade, ruptura e perenidade. Retorno à monarquia, para eternizá-la
118
PRADO, A ilusão..., op. cit., p. 172.
119
no futuro concebido como progresso linear, bem como a ruptura com a República
(nascida decadente) para restabelecer o elo permanente entre presente, passado
e futuro. Dessa maneira, o exterior constitutivo não envolvia somente uma
temporalidade no seu jogo de articulação com o Brasil enquanto sujeito nacional,
mas uma temporalidade interna a este, conformada pelo seu próprio exterior. O
cisma produzido no conceito homogêneo da nação desestabilizou qualquer
possibilidade de encontrar o conceito. Parece que Eduardo Prado, ao não se
limitar aos pressupostos teóricos dos quais dispunha, caminhou naquela errância
empírica em busca do ser que se fazia apenas como o ente nação.
Para falarmos em fundamento em uma sociedade que cada vez mais se
metamorfoseava, Prado entendia que havia a necessidade de retomar a fé e a
religiosidade em uma nação enfraquecida pelo regime republicano, que sequer
conseguia manter a sua própria unidade. Tratava-se de uma retomada da fé que
era muito mais uma maneira de evitar a dominação e a fragmentação, do que
propriamente exercer um poder sobre outras nações
119
. A raça brasileira não era
tão forte como o era a raça anglo-saxônica. Não que tal condição determinasse ao
Brasil a sua inferioridade, posto que o autor não entendia a predominância da raça
sobre a história como um imperativo; significava, muito mais, a força atrelada à
predisposição para a dominação
120
. Afirmar que essa dominação fosse sinônimo
de superioridade da civilização anglo-saxônica seria exagerado, mesmo porque,
como vimos, o autor manteve uma posição demasiadamente ambígua no que
tocava a esse ponto. Sua ênfase em relação à suposta superioridade racial
britânica não servia para denegrir a imagem do Brasil, mas, pelo contrário, para
119
Embora a importância da tematização da religião no sentido da irredutibilidade de sua
manifestação a outras esferas – tais como a fé humanista e/ou secular, ou ideais de beleza e
verdade – seja inquestionável, tal conceito é usado apenas, como uma “compulsão moderna em
explicar todas as coisas em categorias naturalistas”, como Baumer assim define, criticamente, o
pensamento que reduz o fenômeno religioso a aspectos que lhe são imanentes. Neste caso, em
especial, tal compulsão torna-se inevitável, em razão mesmo da visão utilitária que Prado
desenvolveu, em algumas circunstâncias, acerca do catolicismo jesuíta. Ver: BAUMER, Franklin.
Religion and the rise of skepticism. New York: Harcourt, Brace e World, 1960, p. 28-29.
120
Tratamos sempre de indecidibilidades. Raça é um dos conceitos mais circunstanciais
apresentados nessa tese. A superioridade, no caso dessa comparação, parecia estar vinculada ao
aspecto colonialista da Inglaterra. No capítulo quatro, voltamos à análise dessa questão no tema
Ontologia da miscigenação.
120
preservá-la de sua própria destruição diante da ameaça de dominação universal
anglo-saxônica.
Evidentemente, estava subjacente a essa discussão em pauta a
significação da identidade nacional do Brasil em seu rastro, para voltarmos a
Derrida, no devir-espaço do tempo e no devir-tempo do espaço
121
. Não havia uma
unidade da nação, cristalizada em uma pureza nacional. Por mais que os
intelectuais brasileiros como Eduardo Prado buscassem essa unidade, ela era
algo que sempre escapava da totalidade representacional, o tenebroso entre a
sombra e substância
122
. Sombra-substância: essa era a posição/condição do
exterior constitutivo Inglaterra na construção da identidade nacional no
pensamento pradiano, transgressões e rasuras que se colocavam como limites em
movimento
123
.
Mas não era somente a Inglaterra entre os sujeitos nacionais europeus que
ocupava uma posição substancial na ontologia circunstancial da identidade
brasileira. Nessa direção, poderíamos falar da Espanha, sujeito nacional que
estava no horizonte das reflexões pradianas e que também demarcava o ser
europeu
124
. Por outro lado, mais do que ela, faz-se mister colocar novamente o
problema do mesmo-outro no seu pensamento em relação a outra comunidade
imaginada que, por racionalidades diversas, estava mais próxima do Brasil: trata-
se de Portugal.
2.4 – Portugal como igualdade e diferença do Brasil
Eduardo Prado, na sua longa estada em Paris, teve uma forte relação de
amizade com o escritor português Eça de Queiroz. Dessa amizade, cujas reuniões
na sua maioria ocorriam na capital francesa, onde ambos residiram durante
grande parte de suas vidas, várias questões relativas a Portugal e Brasil foram
tratadas pelos autores.
121
DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p.39.
122
BHABHA, op. cit., p. 82.
123
DERRIDA, Posições..., op. cit., p. 21.
124
Investigamos o exterior constitutivo Espanha no capítulo 3, na sessão O Ocidente ao sul do
Equador: as Américas Hispânicas.
121
Em um estudo biográfico de Eduardo Prado, Motta Filho afirma que Eça de
Queiroz era um crítico da vida portuguesa e um homem apegado ao passado
monárquico, “criador e conservador da unidade lusitana”
125
. Em Eduardo Prado,
continua o autor, “nascido em um país mais amante do futuro do que do passado,
estava um inimigo da República e um amigo da Igreja”
126
. Em que pese a
observação de Motta Filho em relação ao Brasil, plausível talvez no que diz
respeito ao país, mas não ao autor, o certo é que ambos os escritores
mantiveram, desde os fins dos anos 80 até 1900 (data da morte de Eça) uma
afeição que foi além da estima intelectual e individual, estendendo-se até à
admiração recíproca das suas respectivas famílias.
Eça de Queiroz, juntamente com Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Antero
de Quental e outros, fazia parte da “geração de 70” em Portugal, um conjunto de
intelectuais que percebiam a decadência pela qual Portugal enquanto nação como
destino imperial passava
127
. Para entender as conversas travadas, muito mais do
que polêmicas, entre ele e Prado, é importante mergulharmos novamente em
alguns dos temas precípuos tratados pelos intelectuais de fin-de-siècle.
A idéia de decadência, comum em toda a Europa, como ressaltamos
anteriormente, era uma constante em Portugal. Pelo menos, desde a segunda
metade do século XIX essa questão era colocada por autores portugueses.
Almeida Garret, em 1849, deu a tônica dessa visão:
“Hoje nos achamos entre um passado impassível..., entre um
futuro tremendo, porque é obscuro, insondável e de nenhum modo
preparado, e com um presente tão absurdo, tão desconexo, tão
incongruente, tão quimérico, tão ridículo, enfim, que se a perspectiva não
viesse, como vem, tão cheia de lágrimas, seria para rir e tripudiar de gosto,
ver como vivemos, como nos tributamos, como nos administramos, como
somos enfim, um Povo, uma Nação, um Reino!”
128
.
125
MOTTA FILHO, Cândido. A vida de Eduardo Prado. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1967, p. 37.
126
MOTTA FILHO, op.cit., p. 37.
127
O termo “Geração de 70” é usado em aspas porque entendemos que conceitos de filiação
intelectual e seus derivados, como “influência”, tendem a atrapalhar mais do que auxiliar na
compreensão da história das idéias. Apenas o repetimos por força da expressão e para poupar a
repetição dos nomes daqueles autores citados.
128
GARRET, Almeida apud MARTINS, Oliveira. Portugal contemporâneo. [1881]. Lisboa:
Guimarães & Cia. Editores, vol.2, 1979, p. 208.
122
A trilogia do ser nacional em Garret, “um povo, uma nação, um reino”, era
uma necessidade a ser (re)construída em um futuro extremamente incerto e
inseguro. Tanta “glória de Portugal” exigia um “padrão eterno”
129
. Nas palavras do
poeta:
“À memória as lembranças do passado,
Magoadas com as idéias do presente,
De envolta com receios do futuro;
E acaso de esperança verdejava
Leve folha dos ventos assoprada.”
130
Lembranças do passado carregadas por mágoas presentes (melancolia e
decadência) e insegurança futura: a tríade temporal pensada por Garret
expressava com propriedade a condição portuguesa a partir da segunda metade
do século
131
. Portugal vivia um luto pela diminuição cada vez maior de seu império
havia pelo menos dois séculos – lembremos da alusão subjacente que Rui
Barbosa, linhas atrás, fez à ex-metrópole. Não foram poucos os autores
portugueses que lastimaram essa perda, e a idéia de uma continuação do império
ou a dissolução desse sonho era um debate premente entre os pensadores.
A história de Portugal, durante esse período, era uma história concebida
como degenerada, e a interrogação acerca da sua continuidade era uma
preocupação dos intelectuais. Oliveira Martins, na terceira edição de seu Portugal
contemporâneo, lançada em 1894, colocou a seguinte questão:
129
GARRET, Almeida. Camões. Porto: Chardron [1959], p. 81.
130
GARRET, op cit., p. 61.
131
Ver: LEVINGER, Matthew, LYTLE, Paula. Myth and mobilisation: the triadic structure of
nationalist rhetoric. Nations and Nationalism, vol. 7, n. 2, p. 175-194, Apr. 2001. Levinger e Lytle
pensam a retórica nacionalista a partir de uma estrutura triádica que concebe formas híbridas na
construção do tempo da nação. É o que os autores chamam de “imagens idealizadas das
condições do passado e do futuro da nação, juntamente com um presente degradado” (Idealised
images of the nation’s past and future conditions with a degraded present, p. 177). Segundo os
autores, a estrutura triádica da retórica nacionalista pressupõe um passado glorioso, onde a nação
original outrora existiu como uma comunidade harmônica, unificada e pura; um presente
decadente, onde uma série de eventos traumáticos solapa a integridade da comunidade nacional
– ocasionado por perda de território, perda de pureza racial e lingüística, divisão política interna e
declínio moral; um futuro utópico no qual, através da ação coletiva, a nação reservará as condições
que causaram sua degradação presente e recuperará sua essência harmoniosa original (virtually
all rhetoric of national mobilisation contains three juxtaposed elements: 1. The glorious past. The
original nation once existed as a pure, unified and harmonious community. 2. The degraded
present. The shattering of this corporate unity through some agency or traumatic series of events
undermined the integrity of the national community. A key dimension of this rhetoric is the
identification of the sources of the nation’s decay. 3. The utopian future. Through collective action,
the nation will reserve the conditions that have caused its present degradation and recover its
original harmonious essence, p.178).
123
“Parece-me ter chegado ao terceiro momento em que, no decurso
de dois séculos e meio, a Nação Portuguesa se encontra perante uma
interrogação vital. Há ou não há recursos bastantes, intelectuais, morais,
sobretudo econômicos, para subsistir como povo autônomo, dentro das
estreitas fronteiras portuguesas?”
132
.
O autor, que não amealhou críticas à história de Portugal, lançou um
desafio aos seus contemporâneos: “ora, eu desafio quem quer que seja a provar-
me o nosso progresso intelectual e moral. Eu vejo – não vêem todos? – uma
decadência no caráter e uma desnacionalização na cultura”
133
.
Portugal passava, na época desses autores, por um processo de
“reaportuguesamento”, ou pelo menos, um desejo ou uma pulsão vital de fazê-lo.
Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins teriam vivido esse processo
em que ser português era ser-para-o-outro. Nem sequer tratava-se mais de pensar
a sobrevivência de Portugal como império, mas sim de Portugal como uma
pequena nação da Península Ibérica. Para uma nação que havia criado para si a
idéia de uma grandeza de poucos limites, com-fundida com a própria modernidade
européia, pensar seu destino estritamente demarcado àquelas fronteiras era
encarar o luto pela perda do império, e não recalcá-lo como uma maneira de ainda
tornar grande o que somente fazia parte de um passado remoto
134
.
Tais intelectuais problematizaram a decadência portuguesa e as formas de
fazer Portugal renascer
135
. Para um país cujo passado havia sido imperial, a perda
desse império atravessava o ser português, demarcado, nas palavras de Eduardo
Prado, pela “saudade, pelo amor e pela tristeza”
136
. Se a Inglaterra era um sujeito
nacional hipertrofiado, Portugal era apenas uma sombra de império, um sujeito
nacional atrofiado diante de seus próprios limites internos, alimentado apenas pela
132
MARTINS, op. cit., p. 10.
133
Ibid., p. 20.
134
Sugerimos, para uma investigação histórico-filosófica do tema da morte e da representação da
perda: AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006;
JARCZYK, Gwendoline. L’experience de la mort. In: BONI. Luis Alberto de (Org.). Finitude e
transcendência. Petrópolis/Porto Alegre: Vozes/EDIPUCRS, 1996.
135
TORGAL, Luis Reis. Sob o signo da “reconstrução nacional”. In: TORGAL, Luis Reis,
CATROGA, Fernando, MENDES, José Amado. História da história em Portugal: séculos XIX e
XX. Lisboa: Temas e Debates, 1998, p. 250.
136
PRADO, Eduardo. Livros novos. [1897].In: PRADO, Coletâneas, vol. 1..., op.cit., p. 293.
124
sua memória passada em um presente ferido pela decadência e em um futuro
incerto em razão da dor pela lacuna das expectativas.
Essa visão perpassou as fronteiras lusitanas. Desde a segunda metade do
século XIX, Portugal era, em certo sentido, para Eduardo Prado, um país que não
tinha mais a ação por destino, “porque se entendia que a ação tinha acabado com
a era da grandeza nacional”
137
. Poderíamos dizer, para lembrar de uma expressão
usada por Sérgio Buarque de Holanda em outro contexto, que os portugueses
eram desterrados em sua própria terra
138
. O esquecimento do ser nacional
permitia a desnacionalização do povo, o que fazia com que escritores como
Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental – e, antes
deles, Almeida Garret – olhassem para Portugal como um país estranho
139
.
Eça de Queiroz deu a tônica dessa condição. Em um artigo um tanto quanto
pessimista, possivelmente lido por seu principal amigo e interlocutor em Paris, Eça
afirmou que Portugal era um país “traduzido do francês em vernáculo”
140
. “É
evidente”, afirmou, “que há quarenta anos (...) Portugal está curvado sobre a
carteira de escola, bem aplicado, com a ponta da língua de fora, fazendo a sua
civilização, como um laborioso tema”
141
. E qual era o modelo? A França. Nessa
missiva, o autor se defendeu da acusação de ser tachado de afrancesado, crítica
que lhe era impingida por alguns periódicos portugueses. “Tenho sido acusado
com azedume”, afirmou o escritor, “nos periódicos (...) de ser estrangeirado,
afrancesado, e de concorrer, pela pena e pelo exemplo, para desaportuguesar
Portugal
142
(grifos do autor).
Eça entendia que sua obra havia sido um tanto afrancesada, não por uma
razão intencional de sua parte, mas como a “melancólica” obra de uma nação que
se desnacionalizava. Desde a mais tenra idade, Eça respirava a França: “em torno
de mim, só havia a França”
143
. Em todas as áreas do conhecimento, o autor
lamentava que somente havia se deparado com a cultura francesa: literatura de
137
PRADO, Eduardo. Eça de Queiroz. In: PRADO, Coletâneas, op. cit., vol.1, p. 303-304.
138
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 31.
139
PRADO, Eça..., op. cit., p. 312.
140
QUEIROZ, Eça de. O “francesismo”. In: QUEIROZ, Cartas e outros escritos..., op. cit., p. 322.
141
QUEIROZ, op. cit., p. 323.
142
Ibid., p. 323.
143
Ibid., p. 323.
125
cordel, direito natural, direito internacional, matemática, cirurgia, zoologia, teologia,
botânica, química, “tudo francês!”. A denúncia de Eça foi uma maneira de tornar
Portugal “consciente de si mesmo”
144
. O período era um renascimento do
nacionalismo e tal atmosfera teria contribuído para esse reaportuguesamento de
Portugal.
A Inglaterra teria sucedido Portugal nos mares e na grandeza imperial, o
que feria, para usarmos uma linguagem psicanalítica, o narcisismo do ser
português. Somente restava a Portugal olhar-se a si mesmo como tal. Portugal
enquanto império era apenas um rastro, a hipertrofia de uma nostalgia que
somente encontrava precedentes em um passado remoto. Tratava-se de uma
terra que não habitava mais os mares. Nas palavras de Eduardo Lourenço,
Portugal “tornou-se pequeno demais para seus sonhos”
145
.
Mas, no que corresponde ao pensamento do intelectual de que nos
ocupamos principalmente, era a idéia de império apenas um rastro e a lembrança
de um passado distante? Se os ingleses definiam a sua identidade através da
expansão, para Portugal o efeito era oposto. Para aqueles intelectuais
portugueses, tratava-se da ontologia da nação calcada na nostalgia de um
passado imperial que explicitava a atrofia e a decadência do próprio império.
A leitura de uma visão cética da identidade nacional portuguesa em
Eduardo Prado é parcialmente válida. O autor efetivamente reconhecia que
Portugal havia passado por uma decadência, se comparado consigo mesmo e
com a Inglaterra. Os restos do império se encontravam apenas em algumas
colônias da África, onde os portugueses ainda tentavam salvar o que havia
sobrado dos tempos de Camões
146
.
Seria possível, outrossim, notar uma inflexão no pensamento pradiano em
relação à terra de Garret. Em época de “autonomia de cada povo”
147
, a tarefa de
olhar-se a si mesmo como mesmo e não como outro era um imperativo categórico
144
QUEIROZ, op.cit., p. 323.
145
LOURENÇO, Eduardo. A nau de Ícaro seguido de imagem e miragem da lusofonia. Lisboa:
Gradiva, 1999, p. 160.
146
PRADO, Eça..., op. cit., p. 318-319.
147
Ibid., p. 323.
126
para os intelectuais. Tal atitude teria sido tomada pelos portugueses, sobretudo
através de Eça de Queiroz, de Oliveira Martins e outros tantos.
Portugal, nesse sentido, não era visto por Prado como uma nação que não
deveria ser admirada, sobretudo porque se tratava de uma comunidade imaginada
que ainda primava pela sua tradição, além de ser estritamente religiosa. Essas já
seriam razões suficientes para o escritor brasileiro nutrir uma afeição pelo “torrão
lusitano”. Além do mais, a situação de Portugal não deixava de ter certas relações
com o Brasil. Em ambos os casos havia a idéia de uma perda de sentido do ser
nacional, bem como uma crença de que o passado era mais rico e mais digno do
que o presente. Se Portugal estava, através de Eça de Queiroz e de seus amigos,
se reaportuguesando, tratava-se do Brasil se reabrasileirar: tornar-se o que ele era
para continuar sendo. Nas duas situações a espera otimista estava
indissociavelmente ligada ao tempo do retorno e da perenidade da tradição.
Novamente deparamo-nos com aquela performatividade que constituía a
temporalidade da nação através da ruptura, da perenidade, da linearidade e da
reprodutibilidade. Retornar ao passado (um passado que não deixara de ser
absolutamente português) para construir um futuro de progresso (com a cultura
luso-brasileira) era perenizar duplamente Portugal e Brasil, bem como definir uma
ruptura: de Portugal com seu passado recente e do Brasil com seu presente.
Em que pesem todas as alusões à decadência salientadas pela “geração de
70e por Eduardo Prado, a idéia de ser nacional português sustentada pelo autor
estava um pouco dissonante dos ares pessimistas que circulavam pela Península.
Havia o reconhecimento da situação portuguesa como algo dramático. A tríade
ontológica de Portugal – saudade, amor e tristeza – remetia para a nostalgia e
para a rememoração de uma ausência que se fazia presente apenas como ruína.
Mas falar de Portugal não era apenas falar dessa tríade.
Eduardo Prado entendia que em Portugal houvera aquele combate contra a
imitação do estrangeiro, tarefa iniciada antes de Eça, de Ortigão e de Martins,
através do historiador Alexandre Herculano na “reconstrução monumental de
Portugal antigo”, paralelamente realizada na “poesia e no teatro pelo gênio de
127
Garret”
148
. Não obstante, havia mais nessa reconstrução nacional. Perguntamos:
o que poderia haver de perene em Portugal, a glória de Portugal que exigia o
padrão eterno almejado por Garret, que atravessasse sua história e fosse uma
constante do seu caráter nacional, portanto, da sua identidade?
Primeiramente, a raça portuguesa. Não a raça em um sentido estritamente
biológico, mas a raça enquanto qualidade moral perene do ser português. Tal
como sugere Pereira, o sucesso histórico de uma raça dependia, para esses
autores, “essencialmente da sua capacidade criadora, dos seus dotes psico-
morais que se revelam sobretudo no contato com outras raças”
149
. Como sugeria
Bomfim, a noção de raça “baseia-se não só nos traços anatômicos como nos
caracteres psicológicos”
150
. Portanto, a raça era pensada não em uma identidade
estritamente biológica, mas como predominantemente histórica e não circunscrita
a si mesma
151
.
Para Eduardo Prado, os portugueses – e o Brasil era o maior exemplo –
eram uma “raça conquistadora”
152
, que havia passado por naufrágios, por desafios
que a própria natureza colocava. Nessa passagem duplamente exultante do ser
nacional – do Brasil e de Portugal – eis o que afirmou Prado:
“Quem conhece a nossa história sabe que este fato, de enorme
alcance na história da civilização do mundo, o da aclimatação da raça
branca nos trópicos, não se deu no Brasil sem lutas, se dificuldades, que
seriam insuperáveis, e que a raça imigrante nunca venceria, se fosse uma
raça agrilhoada e entorpecida”
153
.
148
PRADO, op. cit., p. 317.
149
PEREIRA, Ana Leonor. Raças e história: imagens nas décadas finais de Oitocentos. Revista de
História das Idéias. Coimbra, vol. 14, 1992, p. 351. Aqui, há um certo conflito em relação à
concepção de raça. A possibilidade de mudanças raciais através da história e, por outro lado, sua
permanência e imutabilidade em razão de sua dimensão física eram pontos que estavam em
desacordo para aqueles intelectuais que postulavam tal conceito para explicar os rumos dos povos
e das civilizações.
150
BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. [1905]. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005,
p. 174.
151
A miscibilidade da raça portuguesa teria efeitos significativos na construção étnica da identidade
nacional do Brasil, como investigamos no capítulo quatro.
152
PRADO, Eduardo. Discurso no Instituto Histórico de São Paulo. [1898].In: Coletâneas, vol.3…,
op. cit., p. 136.
153
PRADO, Eduardo. O Dr. Barreto e a ciência. [1901]. In: PRADO, Coletâneas, vol.4..., op. cit. p.
174.
128
Longe de ser um povo pusilânime, ou agrilhoado e entorpecido, os
portugueses eram dotados daquele mesmo espírito desbravador que marcava a
identidade imperial da Inglaterra. Ainda mais: havia uma diferença substancial
entre os anglo-saxões e os ibéricos, precisamente entre Inglaterra e Portugal.
Abordar o sucesso de Portugal na sua colonização sem antecipar uma
referência ao Brasil seria uma tarefa demasiadamente difícil. Onde entrava o
mesmo e o outro no pensamento de Prado, nessa articulação entre exterior e
interior constitutivo da nação? Quais eram os limites que demarcavam o ser
nessas mobilidades transgressivas dos limites representacionais da nação?
A sobrelevação do devir – o pathos de eternidade – em Portugal foi a forma
como os lusitanos exerceram o processo de colonização. Ora, se aqui residia um
elemento de perpetuidade da contribuição portuguesa na civilização ocidental, ou
seja, a forma como foi realizada a colonização, o que poderia ser permanente para
a glória do ser nacional português se não o principal resultado dessa colonização?
Dessa maneira, o que era eterno na história portuguesa era nada menos do que o
Brasil. Eis a conformação de um dis-curso de exaltação do ser nacional no qual o
exterior constitutivo do Brasil era duplamente o seu outro e o seu mesmo
154
.
O autor via em Portugal uma nação amiga, capaz de esquecer dissabores
passados para manter as relações de amizade com o Brasil
155
. O tempo de
promessa através do esquecimento para a construção de um futuro de novas
relações sem o trauma da independência do Brasil não parecia, contudo, estar
plenamente garantido. Em ambos os lados do Atlântico, as formas como a filiação
entre Brasil e Portugal foram reelaboradas depois do processo de independência
brasileira foram consideráveis
156
.
Tomando o Brasil como modelo, Eduardo Prado via Portugal como uma
nação criadora de nações, diferente daqueles sujeitos nacionais que exerciam seu
domínio sobre o mundo, escravizando-o. Portugal, pelo contrário, não criava
154
Essa questão foi trabalhada de modo introdutório em: ARMANI, Carlos. Imagi-nação e
identidades. In: Anais do V Congresso Internacional de Estudos Ibero-Americanos. Porto
Alegre: PUCRS Virtual, 2003, p. 9.
155
PRADO, Eduardo. Diplomacia. [1896]. In: PRADO, Coletâneas, vol.2..., op. cit., p. 251.
156
Ver, a esse respeito, o estudo de Serpa: SERPA, Élio. Portugal no Brasil: a escrita dos irmãos
desavindos. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 20, n.39, p. 81-114, 2000.
129
“vastas feitorias” em forma de países, mas nações
157
. Tais idéias acerca da
identidade nacional tinham dois endereços certos: o Brasil, como uma maneira
narcísica de auto-glorificação da nação, uma poética do espaço tropical, para
falarmos a linguagem bachelardiana, e a Inglaterra, como uma forma de denunciar
suas práticas de dominação exercidas nas colônias, “ação mais ou menos
violenta, para a qual a nossa hipocrisia achou esse eufemismo do verbo
colonizar”
158
.
Ao mencionar Portugal e Inglaterra como dois sujeitos nacionais, é
importante compararmos suas formas de colonização para percebermos o quanto
a glorificação de Portugal era, também, o engrandecimento do Brasil e um
afastamento do modelo britânico. Não, evidentemente, do Brasil republicano, que
zombava do país irmão, mas de um Brasil efetivo muitas vezes com-fundido com o
Brasil monárquico.
Eduardo Prado não estava muito à vontade com os desdobramentos da
colonização européia. Se havia, em seu pensamento, uma exaltação da Inglaterra
enquanto domínio imperial, havia simultaneamente uma delação dessas práticas
levadas a efeito não somente pela nação vitoriana, mas pela Europa como sujeito
da ação política internacional. A própria dicotomia civilização/selvageria foi
colocada novamente em relevo, dessa vez para ressaltar as ações
demasiadamente violentas da civilização:
“A história nos ensina, e isso é uma coisa que muito deve diminuir
o orgulho da nossa superioridade em relação ao selvagem, que uma razão
civilizada, em contato com uma raça bárbara e inferior, revela singulares e
inesperados instintos de ferocidade”
159
.
Esses “singulares instintos de ferocidade” que a civilização promovia não
eram uma forma de glorificar a colonização; pelo contrário, havia um forte apelo
crítico contra algumas das principais colônias européias, ao deixar os instintos que
a civilização desenvolvia de lado ou acima de seu aspecto racional
160
.
157
PRADO, Diplomacia..., op. cit., p. 69.
158
PRADO, Eduardo. Conferência. [1896]. In: PRADO, Coletâneas, vol.4..., op.cit., p. 67.
159
PRADO, op. cit., p. 61.
160
Mais tarde, nos anos 30, Freud e alguns psicanalistas dedicaram uma atenção especial ao que
eles consideravam o abandono da razão em tempos de pulsão de morte e de grandes desilusões.
130
Nesse sentido, não era somente a Inglaterra a responsável pela difusão do
ser europeu pelo mundo. Notemos que ainda estamos tratando de sujeitos
nacionais deslizantes no seu ser. Desse modo, cabe a pergunta: quais eram esses
sujeitos nacionais cujas ações pelo mundo manifestavam aqueles instintos de
ferocidade da própria civilização?
O autor, na sua exaltação de Portugal (e, em certo sentido, da Espanha
161
),
entendia haver atrocidades maiores no tempo presente do que no século XVI,
quando os portugueses e os espanhóis constituíram seus impérios
162
. Pior é que,
diferentemente do século XVI, agora havia as “razões científicas” que poderiam
diminuir a “responsabilidade e a culpa dos criminosos”
163
. Haveria uma
enfermidade mental que explicaria, portanto, os “crimes praticados pelos
civilizados contra os selvagens”
164
. Para Prado:
“O que é certo, porém, é que sempre se tem falado nesse pretenso
estado mórbido, todas as vezes que, ao voltar da África, alguma expedição
[quer] liquidar, na imprensa européia, a verdade sobre os crimes das
expedições africanas dos “Stanley, dos Peteis e dos Segonzaes”
165
.
Os três nomes citados foram escolhidos pelo próprio autor para indicar que
“ingleses, alemães e franceses, filhos das três principais potências civilizadas da
Europa de hoje, têm sido réus de crimes iguais àqueles que nos horrorizam na
história da conquista da América”
166
. Aqui, os europeus peninsulares eram
colocados em pé de igualdade com ingleses, alemães e franceses. Nesse espaço
de denúncia das práticas de conquista perpetradas pela Europa Ocidental em sua
totalidade, parecia que Portugal não estava excluído. Isso quer dizer que, apesar
de Portugal estar no cerne do modelo civilizacional europeu – ou talvez em razão
disso –, ele havia cometido também atos de brutalidade e selvageria no seu
processo de conquista. Não obstante, poderíamos dizer que tal predicado
Ver: FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1991; ALEXANDER,
Franz. Our age of unreason. New York: Lippincott Company, 1942.
161
Como a idéia de Espanha ocupou um espaço menor nas obras de Eduardo Prado, ela é
investigada no capítulo seguinte, quando tratamos de investigar a idéia de América Hispânica no
pensamento do autor.
162
PRADO, op.cit., p. 61.
163
Ibid., p. 61.
164
Ibid., p.61.
165
Ibid., p. 61-62.
166
Ibid., p. 62.
131
português era apenas um hiato na imagi-nação do autor, atenuado porque, ao
contrário daquelas nações, Portugal era católico.
Além da admiração pela raça portuguesa, Eduardo Prado chamava a
atenção para o fato de que Portugal – e Espanha também – eram católicos. A
superioridade de Portugal residia, portanto, na crença católica que, diferentemente
da protestante, postulava a salvação pelas obras, e não simplesmente pela fé:
“vimos que os protestantes do século de Lutero tinham a convicção de que as
boas obras praticadas nessa vida de nada serviam para a felicidade da outra”
167
.
Se a doutrina da justificação pela fé sustentava o credo protestante, esse mesmo
credo não poderia ser útil para um processo de colonização ser bem-sucedido, na
medida em que, nas convicções do autor, a obra era fundamental para que o
processo de expansão ocorresse tal como prescrevia o “método católico”
168
.
O que significava esse método católico? Havia, para o intérprete, três
métodos de colonizar: O primeiro deles consistia na destruição dos primeiros
ocupadores do solo, método empregado por espanhóis (no século XVI), norte-
americanos e ingleses – notemos a exclusão de Portugal desse primeiro princípio
de ação e a inclusão de sua irmã peninsular, a Espanha; um segundo, fundado no
método mercantil, “onde o europeu engana pelo dolo e pela astúcia, desmoraliza
pelos seus costumes, envenena pelo álcool ou pelo ópio, contamina e mata, pelas
suas doenças, as populações nativas”
169
, cujos representantes eram Inglaterra e,
sobretudo, Holanda.
O terceiro método – e aqui entrava o papel de Portugal (e mesmo, de modo
menos preciso, da Espanha) como nação fundadora de nações – era o método
católico, tendo o Brasil e a América Latina como seus principais exemplos. O que
implicava tal método, sobretudo comparado com os dois primeiros? Como
Portugal, enquanto sujeito nacional aparecia nesse método de colonização?
Para o escritor, todos aqueles que estudavam a história da colonização
sabiam que os espanhóis, e mais ainda os portugueses, foram “os europeus que
167
PRADO, op.cit., p. 63.
168
Ibid., p. 70.
169
Ibid., p. 68.
132
mais e melhor” se aliaram “às diferentes raças que eles têm encontrado pela terra,
na sua missão de descobridores e povoadores do mundo”
170
.
A miscibilidade empregada pelos portugueses não ocorria no caso dos
ingleses e dos holandeses nas regiões equatoriais, que mandavam seus filhos
desde cedo estudar na Europa, como uma forma de não fenecer “como flores, na
estufa mortal de um clima abrasador”
171
. Como uma raça desse tipo poderia
florescer nas regiões tropicais e equatoriais, “hoje ocupadas na América pela
fusão do sangue ibérico com o sangue índio e africano”
172
?
Contra aqueles que acreditavam ser a colonização ibérica na América um
fracasso – idéia combatida contundentemente na sua obra mais conhecida, A
ilusão americana –, e que uma suposta colonização holandesa seria melhor
sucedida, Eduardo Prado afirmou que se os holandeses viessem a ser senhores
do Brasil, “esta terra seria uma vasta feitoria, organizada com método, com ordem,
com energia, talvez, mas seria uma colônia em que uns poucos brancos seriam
tiranos de milhões de índios e de negros”
173
. Com a colonização portuguesa e
católica, continuou o autor, “viemos a ser, com todas as nossas fraquezas, com
todas as nossas reais ou pretensas desvantagens étnicas, viemos a ser nós
mesmos, isto é, uma nação e um povo!”
174
.
Essa diferença era substancial para Prado, que fazia efetivamente o elogio
da colonização do Brasil. Se essa colonização implicava um matricídio do Brasil
em relação a Portugal, esse mesmo “crime” contra a nação seria obra de Portugal.
Onde começava o Brasil e terminava Portugal no pensamento do autor? Enfim,
como delimitar, precisamente, as fronteiras conceituais entre exterior e interior,
entre colonizador e colonizado, entre inclusão e exclusão da nação nesse caso?
Mesmo na idéia de decadência portuguesa havia uma proximidade ao
Brasil. No caso da autodeterminação nacional, a colonização portuguesa somente
teria contribuído para a construção de nações. Nesse sentido, o destino imperial
português consistiria tanto no reconhecimento de seus limites – ou seja, a
170
PRADO, op.cit., p. 70.
171
Ibid., p. 71.
172
Ibid., p. 70.
173
Ibid., p. 69.
174
Ibid., p. 70.
133
decadência – como na criação de nações. Na verdade, tais dimensões do ser
nacional português estavam profundamente imbricadas. Por quê?
Havia uma questão crucial acerca da idéia de colonização católica. É
importante não subestimar tal diferença entre católicos e protestantes no
pensamento de Eduardo Prado, entre a idéia da justificação pelas obras, e a idéia
de justificação pela fé na colonização do Novo Mundo, posto que o fato do ser
português ter seus limites – o que implicava a decadência – somente ocorria
porque a sua imposição não era o triunfo inesgotável da subjetividade, como
acontecia com a mania de conquista britânica e a construção de uma identidade
imperial que suprimia as fronteiras e potencialmente dissolveria a civilização, mas
a determinação de impedimentos que implicava a construção de novas
subjetividades, ou seja, de novas nações. Somente a fé não constituiria uma
nação, que dependia de uma razão prática como a obra. Neste caso, a dimensão
da obra em termos culturais tinha uma importância significativa, posto que ela
demandava, no ser cristão português, a idéia de sacrifício e de heroísmo: Portugal
era decadente porque sacrificara a si mesmo na sua obra heróica de colonização
do Novo Mundo. Poderia haver dimensão mais cristã do que o sacrifício e o
heroísmo, o martírio do auto-sacrifício para que surgisse uma nova nação? Em
nenhum momento a relação ruptura-perenidade se estabeleceu de modo tão
unívoco em termos de demarcação da ontologia da nação quanto nesse caso.
A idéia de uma autodoação – que, de resto, tinha a sua história vinculada
ao pensamento do historiador Alexandre Herculano
175
– do sacrifício de si mesmo
foi notável em uma passagem da polêmica que Prado travou com o médico
positivista Pereira Barreto:
“Não nos podemos comparar com o que a raça anglo-saxônica tem
criado nos trópicos, porque só Portugal e só a Espanha conseguiram criar
neles nacionalidades, esforço gigantesco, desproporcionado às suas
forças, feito admirável, no qual gastaram o melhor do seu sangue, num
esforço parturiente de uma gloriosa maternidade fenomenal que, para
sempre, esgotou e anemizou aquelas duas criadoras de povos”
176
.
175
CATROGA, Fernando. Alexandre Herculano e o historicismo romântico. In: TORGAL, Luis Reis,
CATROGA, Fernando, MENDES, Amado. História da história em Portugal nos séculos XIX e
XX. Lisboa: Temas & Debates, 1998, p. 94.
176
PRADO, O Dr. Barreto..., op.cit, p. 170.
134
Concluiu o autor: “nos trópicos, a raça anglo-saxônica tem formado colônias
de exploração mercantil, mas não nações”
177
.
Essa seria a condição permanente de Portugal na história: um império
fundador de nações. Portanto, a grandeza de Portugal se estendia para as suas
criações como mãe – já que Prado usou metáforas maternas, como o “esforço
parturiente” e a “gloriosa maternidade fenomenal” para expressar a relação de
afeto entre Portugal e Brasil
178
. A idéia de decadência era, nessas condições,
relativizada, posto que a decadência antes doação, sacrifício, santificação e
heroísmo, do que propriamente o enfraquecimento de uma raça. A ruptura que se
estabelecia com Portugal permitia a criação da nação, a fenda que exultava a
mãe, o finito que gerava o eterno, a morte que dava vida, o colonizador que
gerava nações, mantendo assim – mesmo com o corte sacrificante, sangue gasto,
para usar a metáfora do autor – uma relação de continuidade que se perpetuou no
filho cuja independência nacional se efetivou graças ao esgotamento da mãe.
Eça de Queiroz escreveu sobre Eduardo Prado em um texto que se
encontra tanto nas Coletâneas quanto nas Notas contemporâneas de Eça. Nas
palavras do escritor português: “também o culto do passado se revela, em
Eduardo Prado, pelo seu carinho quase filial ao velho torrão lusitano”
179
. Eça ia
mais longe, afirmando que poucos portugueses “amarão Portugal com um amor
tão inteligente e crítico”
180
. O autor brasileiro seria um otimista em relação a
Portugal, “não de um otimismo indulgente e bonacheirão”, mas de um “otimismo
raciocinado, deduzido da História
181
. Eça parecia entender bem essa duplicidade
da exaltação de Portugal no dis-curso de seu amigo. Ao manter a relação filial
Portugal-Brasil – era em Portugal que Prado encontrava “os moldes ancestrais do
177
PRADO, op.cit., p. 171.
178
Há, indubitavelmente, uma questão interessante aqui. Como sabemos, no Brasil de fins do
século XIX, havia uma predominância do gênero masculino nas produções intelectuais. Não
obstante, Eduardo Prado fez uso de metáforas que remetiam para o feminino. O papel (de auto-
doação) de Portugal não era o de pai de nações, mas de mãe. Rego sugere inclusive que haveria
uma relação edipiana entre Prado e sua mãe, que se tornou uma espécie de matriarca na
sociedade patriarcal brasileira. Ver: REGO, op.cit.
179
QUEIROZ, Eça de. Eduardo Prado. [1898]. In: Notas..., op.cit., p. 478-479.
180
Ibid., p. 479-480
181
Ibid., p. 479-480.
135
seu Brasil”
182
– mantinha-se, também, uma afeição de Portugal que era “o
complemento natural do seu amor pelo Brasil”
183
.
Se nas idéias pradianas acerca da Inglaterra havia uma rasura na
representação do ser britânico, algo que oscilava entre a admiração e o temor, o
desejo e a repulsa, o ser e o devir, na imagi-nação de Portugal tal configuração
identitária tornou-se ainda mais complexa pela presença de uma construção que
envolvia diversos eus nacionais sem se esgotar em um sistema de representações
unívoco, que deslizava por meio das idéias que tinham mobilidade e historicidade
próprias no interior das representações. No caso português, era não somente a
alteridade Brasil/Portugal enquanto colonizador e colonizado que se apresentava,
mas também, a relação colonizador subalterno/colonizador soberano entre
Portugal e Inglaterra. Nessas circunstâncias, a dicotomia civilização versus
selvageria cedeu lugar a outra, entre colonizador e colonizado, na relação entre
Portugal e Brasil, Portugal e Inglaterra, Brasil e Inglaterra e Portugal-Brasil-
Inglaterra, o que formava uma articulação e um deslocamento entre esses pólos
contraditórios e conciliadores no próprio cerne da identidade da nação no
pensamento de Eduardo Prado. Tratava-se de uma abertura contextual como
temporalidade, a qualidade circunstancial dos conceitos da nação.
Vivia-se em um período denso em termos de sistemas de representação
conceituais, o que dificultava, se não impossibilitava, pensar a formação de um
pensamento identitário homogêneo, que pudesse ser efetivamente a re-
apresentação como simples presença da nação. Significa dizer que a construção
de um pensamento que se dava na sombra e na substância, não pode ser
concebido como uma totalidade e como o triunfo da identidade. Os conceitos
tornam-se demasiadamente flexíveis, móveis e frouxos, e se deslocam
constantemente de seu eixo de significação. Trata-se, muito mais, não de
representações da nação construídas por grupos sociais nos seus embates e
confrontos, mas uma mobilidade que se constitui no próprio processo de
significação da identidade e da diferença. Por mais vinculadas que as polêmicas
182
QUEIROZ, op.cit., p. 480.
183
Ibid., p. 480.
136
de fin-de-siècle estivessem a uma suposta historicidade do social, o social, no seu
sentido estrito, não era suficiente para demarcar a historicidade das próprias
idéias nesse não-repouso da temporalidade que rompia com a identidade.
Não afirmamos, nessas frases, que estejamos assumindo uma postura de
autonomia da linguagem a fim de buscar sua matriz ontológica. Reconhecemos
que as idéias em torno da nação elaboradas por Prado, Nabuco, Eça, Araripe,
entre outros, tinham um enraizamento social que não era dicotômico em relação à
linguagem. Não obstante, afirmar que o pensamento dos intelectuais brasileiros
daquele período seguia rigorosamente tal raiz seria o mesmo que postular um
condicionamento social demasiadamente substancialista de pouco proveito em um
trabalho que reivindica a historicidade das idéias. A ossatura teórica dessa tese
não é a monótona uniformidade que aparece na identidade, mas sim, para
retomarmos Heidegger, a dimensão relacional dessa identidade ou, ainda
parafraseando o filósofo, a pergunta pelo ser que se converte em enigma
184
.
Por fim, uma palavra sobre a questão do pós-colonial na cultura luso-
brasileira e sua relação com o pensamento da identidade e da temporalidade em
Eduardo Prado e, portanto, com o que até o presente momento apresentamos
nesta tese.
O sociólogo Boaventura de Sousa Santos sugere uma plasticidade nos
estudos pós-coloniais das nações de língua portuguesa, ao levar em consideração
sua dimensão movediça em relação às dicotomias que conformam os estudos da
nação e o colonialismo, tais como natureza e cultura, civilização e selvageria,
colonizador e colonizado. Enfim, uma série de dicotomias e binarismos conceituais
que são solapados e/ou deslocados de seus eixos de significação.
De acordo com o autor, o pós-colonialismo deve ser entendido em dois
sentidos principais: como um período histórico que sucede a independência das
colônias e como um conjunto de práticas e discursos que desconstroem a
narrativa colonial tal como escrita pelo colonizador, e tentam deslocá-la pelas
184
HEIDEGGER, Martin. Identidade e diferença. In: Conferências e escritos filosóficos. São
Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 179.
137
narrativas escritas do ponto de vista do colonizado
185
. Para o autor, tal binarismo
ou mesmo o seu rompimento é insuficiente para apreender a especificidade da
condição pós-colonial nos países de língua portuguesa, onde a chamada cultura
de fronteira é aquela que predomina nas suas relações. Basta citar o caso do
Brasil e de Portugal, onde a relação colonizador-colonizado foi invertida em
algumas ocasiões, como na transferência da Corte Portuguesa para o Brasil e,
portanto, da metrópole para a colônia quando da invasão napoleônica em Portugal
em 1808
186
.
A questão que surge, diante da idéia sedutora de uma hermenêutica
diatópica proposta por Santos é que, no caso das comunidades imaginadas
envolvidas no processo de construção da identidade nacional de que tratamos,
eram várias as modalidades de significação que se articulavam para produzir as
imagens cindidas da nação. Era o caso, por exemplo, do pensamento de Eduardo
Prado e de seus interlocutores, não somente da relação Brasil-Portugal, mas da
relação Brasil-Inglaterra, Portugal-Inglaterra, Portugal-Brasil-Inglaterra, bem como
América Hispânica e América do Norte na circunstância de significação que
envolvia essas comunidades. Entendemos, portanto, que as lógicas de
constituição das identidades nacionais no Brasil de fins do século esbarravam em
outras diferenças que não se sedimentavam naquelas demarcadas pelas culturas
de língua portuguesa.
Nesse sentido, muito mais do que uma hermenêutica diatópica, sugerimos
uma hermenêutica heterotópica
187
, que demarca sua posição na cadeia de
significação sem se esgotar, em nenhum momento, em qualquer dialética que
supostamente a leve a um estágio superior. Trata-se, tal como pensado pelo
185
SANTOS, Boaventura de Sousa. Between Prospero and Caliban. Luso-Brazilian Review.
Madison, n. 39, v.2, 2002, p. 13. No original: “Postcolonialism must be understood in two main
senses. The first one concerns a historical period that succeeds the independence of the colonies.
The second one is a set of (mainly performative) practices and discourses that deconstruct the
colonial narrative as written by the colonizer, and try to replace it by narratives written from the point
of view of the colonized”.
186
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-
modernidade. São Paulo: Cortez, 1996.
187
Segundo Martins, a idéia de heterotopia envolve a compreensão do outro no mesmo, uma
espécie de reinvenção do novo no próprio local. Ver: MARTINS, Rui Cunha. O paradoxo da
demarcação emancipatória: a fronteira na era da sua reprodutibilidade icónica. Revista Crítica de
Ciências Sociais, Coimbra, n.59, p. 37-63, fev. 2001.
138
próprio Santos (ao se referir à diatopia) de uma zona fronteiriça onde ocorrem
constantemente “negociações de sentido” e “jogos de polissemia”
188
. Mas tal zona
não se exaure em uma contradição entre a diferenciação da cultura do território
nacional face ao exterior e a promoção da homogeneidade cultural no interior do
território nacional
189
. Homogeneidade e diferenciação acontecem
simultaneamente nas fronteiras externas e internas da nação em suas
polissêmicas e distintas, mas nem sempre claras identidades.
A lógica da errância empírica sugere uma heterotopia, um deslocamento
constante do conceito e da representação que rasurava a própria plausibilidade de
pensá-la como totalidade e essência daquilo que era ausente. A hermenêutica
heterotópica tem a ver com aquela temporalidade da negociação/tradução da qual
fala Bhabha, em que cada posição é sempre um processo de tradução e de
transferência de sentido
190
.
A proposta de uma temporalidade disruptiva enquanto heterotopia desafia,
como sugere Bhabha, “nossa noção de identidade histórica da cultura como força
homogeneizante, unificadora, autenticada pelo passado originário mantido vivo na
tradição nacional do povo”
191
. A hermenêutica diatópica, tal como preconizada por
Santos, ao querer demarcar um espaço privilegiado para os países de língua
portuguesa – como se a diatopia enquanto relação radical de identidade/diferença
fosse uma especificidade desses países, posição com a qual não estamos de
acordo – padece de um fundo de etnocentrismo, senão de lusocentrismo.
De uma certa maneira, Santos parece ainda estar preso a um paradigma
que insiste em manter a relação filial entre Portugal e os países de língua
portuguesa como um modo de sustentar uma grandeza cultural formada
uniformemente e sem precedentes em outros circuitos culturais para se contrapor
aos processos de globalização da cultura na contemporaneidade. Ora, se o que
questionamos em Santos é esse encastelamento no contexto lusófono, cabe
188
SANTOS, Pela mão..., op. cit., p. 135.
189
Ibid., p. 151.
190
BHABHA, op. cit., p. 52-53.
191
Ibid., p. 53.
139
justificar uma temporalidade contextual mais expansiva, em que sua proposta
diatópica se torna, no mínimo, insuficiente.
Portanto, compreendemos que chegamos em um estágio da tese que o
outro do outro/mesmo do Brasil transborda conceitualmente nas suas
exterioridades constitutivas. As Américas, nesse sentido, tornaram-se outras
ontologias que se articulavam às idéias de identidade nacional construídas por
Eduardo Prado em suas representações circunstanciais do ser da nação. É para
essas identidades e diferenças da nação e para os processos de construção de
seus significados que nos direcionamos no próximo capítulo.
140
CAPÍTULO 3 - AINDA O EXTERIOR CONSTITUVO COMO
HORIZONTE DE SIGNIFICAÇÃO DA NAÇÃO: AS AMÉRICAS
3.1 – Preâmbulo
No capítulo anterior investigamos aqueles exteriores constitutivos da nação
que faziam parte do Velho Mundo, ou seja, daquele conjunto de comunidades
imaginadas que ocupavam ontologicamente as fronteiras da Europa, fronteiras
supostamente menos móveis diante do novo que se apresentava no outro lado do
Atlântico. Tais fronteiras não estavam circunscritas a uma dimensão física apenas;
eram, muito mais, fronteiras que demarcavam a ação dos sujeitos nacionais
europeus e, nesse sentido, fronteiras que criavam a própria autonomia (ou não)
das nações. Em resumo: fronteiras enquanto metáforas
1
, nas quais o limite era um
dispositivo dis-cursivo de inclusão e exclusão do outro da nação.
Nesse capítulo, examinamos o que é mais um outro do Brasil no pólemos
constitutivo de sua identidade e de sua diferença: as Américas. Trata-se de
investigar, na ontologia circunstancial da nação, as idéias de América Hispânica e
de América Inglesa construídas por Eduardo Prado e seus interlocutores.
A exemplo do que ocorre com a Europa em termos de demarcação das
fronteiras conceituais, o mesmo acontece em relação às Américas: a tensão entre
a universalidade do conceito e a diferença. De quais “Américas” estamos falando,
quando está em questão o pensamento dos intelectuais de fins do século?
América Portuguesa, América Ibérica, América Anglo-Saxônica, América
Hispânica, América Latina, América do Sul, América Central, América do Norte?
Se a pluralidade de significados da Europa era a realidade do espaço aberto que
se traduzia em um imperativo da alteridade para a expressão identidade
2
, essa
mesma realidade não poderia ser recusada quando se tratava das Américas.
Talvez estejamos frente a um exterior constitutivo ainda mais movediço do que
aquele referido anteriormente.
1
Ver: MARTINS, Rui Cunha. O paradoxo da demarcação emancipatória: a fronteira na era de sua
reprodutibilidade icônica.Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra, n.59, p. 37-63, fev. 2001.
2
Fizemos essa citação no capítulo anterior: ver o capítulo 2, página 109.
Joaquim Nabuco, ao fazer a comparação entre essas constitutividades da
nação, disse que “nós”, os brasileiros, “pertencemos à América pelo sedimento
novo, flutuante do nosso espírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas”
3
. A
julgar pelo escritor brasileiro, os predicados mais móveis da identidade se
encontravam no lado de cá do Atlântico, onde a realidade do novo era um
imperativo da própria identificação nacional.
Elaborar uma divisão acerca das Américas no pensamento de Eduardo
Prado exige uma postura metodológica similar àquela utilizada no capítulo
anterior, não somente pela importância que as Américas tinham em seu
pensamento, mas também pela necessidade de mapearmos sua fissão em duas
Américas: a América Anglo-Saxônica e a América Hispânica. Nos dois casos, o
que podemos inferir a priori é que havia a definição de duas subjetividades que
traçavam a temporalidade das Américas em seu pensamento. Trata-se de
investigar, por um lado, as idéias sobre os Estados Unidos na condição de
consubstanciação da América Inglesa e, por outro, dos diversos sujeitos nacionais
deslizantes que configuravam a América Hispânica, ambos diferentes da América
que falava português, ou seja, do Brasil.
A exigência de um capítulo sobre as Américas se impõe também porque
durante o período investigado na tese, cada vez mais se realizavam discussões
acerca da parte da América na civilização, para usarmos a expressão de uma
conferência proferida por Joaquim Nabuco em 1909
4
. Se até os anos 70 e 80 do
século XIX a discussão em torno da identidade nacional no Brasil era
predominantemente relacionada com a Europa, mais especificamente com
Portugal, Inglaterra e França, a virada do século demarcou um momento de
turbulência em que a circunscrição fronteiriça àquelas escalas identitárias tornou-
se insuficiente para dar conta do problema da identidade nacional que se passou a
pensar no Brasil. Além da Europa, as Américas, tanto Latina quanto Anglo-
Saxônica, estavam na agenda dos debates dos intelectuais que tinham em mente
estabelecer uma ontologia da nação.
3
NABUCO, Joaquim. Minha formação. [1895]. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 39.
4
NABUCO, Joaquim. A parte da America na civilização. [1909]. In: Pensamentos soltos, Camões
e assuntos americanos. São Paulo: Instituto Nacional do Livro, 1949, p. 1949.
142
O capítulo foi dividido em três partes: na primeira, apresentamos algumas
idéias de América como uma possibilidade conceitual; na segunda parte,
investigamos as idéias de América Hispânica desenvolvidas por Eduardo Prado.
Além dele, outros intelectuais importantes para a definição da Hispano-América
são relacionados, como José Enrique Rodó e Carlos Bunge; a parte final desse
capítulo é voltada para o esforço de compreensão das idéias de América Anglo-
Saxônica em Eduardo Prado, em especial seu pensamento a respeito dos Estados
Unidos enquanto sujeito da British America. Como um alter do pensamento do
autor, apresentamos igualmente algumas idéias do historiador norte-americano
Frederic Jackson Turner, que escreveu um dos seus principais artigos – The
significance of the frontier in the American history – em 1893, curiosamente no
mesmo ano em que Prado lançou A ilusão americana, que bem poderia ser um
escrito de ataque ao pensamento de Turner.
3.2 – A idéia de América
Quando o médico e historiador Manoel Bomfim escreveu, em 1903,
América Latina: males de origem, ele dedicou seu trabalho ao estado onde havia
nascido: Sergipe. Tal dedicatória não causaria surpresa para o leitor se ela não
fosse complementada pelo seguinte predicado: “ao pedaço de terra americana em
que nasci”
5
. Manoel Bomfim foi um dos primeiros autores a sistematizar a idéia de
que o Brasil deveria ser compreendido não isoladamente, mas em relação com a
América Latina em sua totalidade.
Esse critério de identificação do Brasil com a América Latina estava
atrelado não somente a uma necessidade de limitação identitária entre América e
Europa, mas também em relação às duas Américas. O pensamento de Bomfim
expressava, entre outros dos seus contemporâneos, uma compreensão dos
problemas nos trópicos a partir de uma perspectiva cuja esfera de demarcação
fronteiriça era a América Latina como horizonte de interpretação da própria
identidade. A construção de uma identidade latino-americana não era uma
5
BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. [1905]. São Paulo: Topbooks, 2005, p. 7.
143
novidade entre os hispano-americanos, que já contavam com autores como josé
Martí e Sarmiento para definir essa totalidade representacional que significava a
Hispano-América
6
.
Falar nas Américas é evocar o Novo Mundo, aquele mesmo que serviu para
demarcar a Europa como Velha e que, durante longo período, esteve entre as
grandes utopias e ilusões dos homens europeus
7
. Afinal, como sugeria o próprio
Eduardo Prado, depois da descoberta da América, “ficou o gênero humano
sabendo que, ao oeste da Europa, além do Oceano tenebroso, havia outro
mundo”
8
. Não somente havia outro mundo, como esse outro invadiria as
discussões dicotômicas sobre civilização (ou cultura) e natureza pelos próximos
três séculos.
Dicotomia que acompanhou pensadores nos dois lados do Atlântico desde
o descobrimento da América pelos europeus, o Velho e o Novo eram partes de
uma “mentalidade esquematizante e apaixonada, abstrata e polêmica, ora contra o
Velho, ora contra o Novo Mundo”
9
. Buffon, Kant, Montesquieu, Hume, Humboldt,
Goethe, De Pauw, Hegel e muitos outros estiveram no meio dessa disputa que ora
denegria a condição da América, ora a exaltava como um continente promissor.
Buffon, no século XVIII, foi um dos principais difamadores do novo
continente. Ele entendia que a América era débil e imatura, o “Ocidente ainda
informe”, de uma natureza hostil cujas forças virgens não foram vencidas nem
submetidas em seu benefício
10
. Significava dizer que a natureza americana era
débil porque o homem não a havia dominado, pela razão de ser “inerte no amor e
assemelhado aos animais de sangue frio, mais próximo da natureza aquática e
putrefata do Continente”
11
. Buffon considerava o continente americano imaturo, e
o homem “afeto a deficiências que, sem obstruir-lhe a adaptação ao ambiente,
6
CARVALHO, Eugenio. Idéias e identidade na América: quatro visões. Disponivel em:<
http://www.ifch.unicamp.br/anphiac/anais/encontro3/ensaio7>, Acesso em 05 de outubro de 2006.
7
CANCELLI, Elisabeth. A América do desejo: pesadelo, exotismo e sonho. História. São Paulo,
n.23, (1-2), 2004, p.111-112.
8
PRADO, Eduardo. O catolicismo, a Companhia de Jesus e a colonização do Novo Mundo. [1896].
In: Coletâneas. São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, vol. 4, 1906, p. 14.
9
GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Cia. das
Letras, 1996, p.17.
10
GERBI, op. cit., p. 20-21.
11
Ibid., p. 23.
144
tornam infinitamente difícil que ele adapte o ambiente a si, domine-o e modifique-
o”
12
. Nesse sentido, a América nada mais era do que a natureza como tal, ou seja,
na dicotomia natureza (o não-humano) versus cultura (o humano)
13
, a
predominância da primeira em detrimento da segunda.
Um século depois, Hegel retomou essa mesma idéia no seu grande sistema
filosófico. Sua história universal foi dividida em quatro mundos, a saber, o mundo
oriental, o mundo grego, o mundo romano e o mundo germânico. O princípio da
evolução envolvia uma determinação interior, que encontrava a sua existência real
no espírito (o sentido ou a razão), tendo a história universal como o seu palco,
propriedade e campo de sua realização
14
.
Para Hegel, a história representava a marcha gradual da evolução (o
avanço do mais imperfeito, que já teria um germe de perfeição, para o mais
perfeito) e do princípio cujo conteúdo era a consciência da liberdade. A história
universal era o progresso da consciência do espírito no tocante à sua liberdade e
à realização efetiva de tal consciência
15
. Nesse progresso, que era gradativo,
havia uma série de determinações mais amplas de liberdade, sendo que cada um
dos níveis era diverso do outro, tendo o seu princípio definido e característico,
princípio que era, na história, a determinação do espírito particular de um povo
16
.
De acordo com o filósofo:
“É nela [na história] que se expressam concretamente todas as
facetas da consciência e do querer, da realidade total desse povo. É na
história que uma nação encontra o cunho comum de sua religião, de sua
constituição política, de sua moralidade objetiva, de seu sistema jurídico,
de seus costumes e também de sua ciência, arte e habilidade técnica.
Essas particularidades devem ser estudadas segundo esse caráter geral
do princípio próprio de um povo e vice-versa: no fato que a história
apresenta em detalhe, deve ser descoberto aquele princípio comum
característico”
17
.
A relação dialética de interpenetração do particular e do universal foi
apresentada de modo evidente nessa passagem de sua Filosofia. Pertencendo à
12
GERBI, op.cit., p. 38.
13
Ver, a propósito dessa dicotomia tradicional na antropologia: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A
inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 486-489.
14
HEGEL, Georg W. F. Filosofia da história. Brasília: Ed. da UnB, 1995, p. 53.
15
HEGEL, op. cit., p. 60.
16
Ibid., p. 60.
17
Ibid., p. 60-61.
145
história universal (o universal), uma nação, ou, nas próprias palavras do filósofo, o
“espírito do povo” (o particular) saberia qual era a sua obra e refletiria sobre si
mesmo. Tal reflexão seria imprescindível para os povos (nações), na medida em
que Hegel elevava a um nível histórico-mundial somente a nação que tivesse feito
essa auto-reflexão. Novamente, as suas palavras evidenciavam a nação que se
realizava na história:
“Um povo é moral, virtuoso e forte quando protege a sua obra da
violência externa durante o trabalho de dar existência objetiva aos seus
propósitos. Anula-se a contradição entre o seu ser potencial subjetivo –
sua meta e vida interior – e o que ele realmente é. Ele alcançou a realidade
plena, tem a si mesmo presente nela. Mas, uma vez que isso tenha sido
alcançado, essa atividade demonstrada pelo espírito de um povo não mais
se faz necessária. A nação ainda pode conquistar muito, na guerra ou na
paz, interna ou externamente, mas é como se a sua própria alma viva e
substancial não estivesse mais em atividade. O interesse supremo e
essencial desapareceu de sua vida, pois só existe interesse onde há
oposição. A nação vive como o indivíduo que passa da maturidade para a
velhice, rejubilando-se por ser exatamente aquilo que queria e foi capaz de
alcançar”
18
.
Qual era o lugar da América na filosofia da história hegeliana, ou seja, qual
era o nível de moralidade, virtuosidade, força e realidade plena que os americanos
haviam atingido em sua história?
Para decepção do filósofo, a América era antes um fato natural que
pertencia à filosofia da natureza do que à história
19
. Hegel postulava uma anti-
história rigidamente demarcada em detrimento da dialética supostamente
dinâmica por ele preconizada. O descompasso entre natureza e cultura impedia
que a América pudesse alcançar, pelo menos em um curto espaço de tempo, a
realidade plena em que a contradição entre o ser potencial subjetivo e seu “ser
realmente” pudesse ser superada dialeticamente.
Tanto em Buffon quanto em Hegel nada mais ocorreu do que uma
reafirmação da natureza da América, ou seja, de seu grau zero diante da realidade
total de cada povo, e portanto, a sua imaturidade e a sua debilidade, no processo
de evolução e de desenvolvimento histórico universal. Nos dois casos, era a
Europa a matriz e o referencial (superior) de toda a comparação. Não havia,
18
HEGEL, op. cit., p. 61.
19
GERBI, op. cit., p. 319.
146
naquelas situações, o que Pratt, ao se referir às relações entre Europa e América,
chama de “zona de contato”, que são espaços sociais “onde culturas díspares se
encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra”
20
. A visão desses autores
era de que nas Américas não havia qualquer tipo de desenvolvimento civilizacional
tal qual aquele que a Europa havia conhecido como a síntese moderna
hipostasiada no Estado-nação.
Não obstante, o Novo Mundo enquanto continente de experanças também
fazia parte do pensamento de alguns intelectuais. Para não falarmos de autores
que fizeram uma espécie de poética do espaço tropical brasileiro, como foi o caso
de Ambrósio Fernandes Brandão no seu Diálogos das grandezas do Brasil
21
, a
América foi elogiada nos relatos de outros viajantes, dos quais um dos mais
conhecidos foi o de Alexander von Humboldt.
Se a América efetivamente fez parte do imaginário utópico e maravilhoso,
tal realidade imaginária teve em Humboldt um de seus principais articuladores.
Humboldt foi um viajante alemão que esteve na América Central e na América do
Sul em princípios do século XIX. Diferentemente de Buffon e dos depreciadores da
América, poderíamos dizer que para Humboldt, “o futuro pertencia à América”
22
.
Na articulação das imaginações, Humboldt permaneceu, como sugere Pratt,
o “interlocutor mais influente”
23
, cujo pensamento foi importante durante o período
revolucionário das independências na América Latina
24
. De acordo com a autora,
Humboldt “reinventou a América do Sul antes de tudo como natureza (...) em
movimento, impulsionada por forças vitais em grande parte invisíveis para o olho
humano”
25
. Podemos, com certa segurança, afirmar que houve uma conexão
entre a imaginação quase que imperial da natureza e o romantismo, na medida
20
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru:
EDUSC, 1999, p. 27.
21
BRANDÃO, Ambrósio. Diálogos das grandezas do Brasil. disponível em: <
http://www.bibvirt.futuro.usp.br/index.php/content/view/full/1132 >. Acesso em 27 de novembro de
2007.
22
GERBI, op. cit., p. 111.
23
PRATT, op.cit., p. 197.
24
Ibid., p. 197-198.
25
Ibid., p. 212.
147
em que o romantismo, ao moldar o discurso sobre a América, também foi moldado
por ela
26
.
Do ponto de vista civilizacional, ou racial, como era mais conhecido o
tratamento da cultura durante o século XIX, o viajante alemão manteve uma
postura de igualdade entre as raças, como o fizeram muitos românticos alemães,
entre eles Herder. Gerbi sugere que Humboldt reafirmou sua convicção “sobre a
substancial identidade natural de todos os homens, de alto a baixo, em toda a
escala da civilização”
27
.
Em um dos seus escritos mais conhecidos, o Ensaio político sobre o reino
da Nova Espanha, Humboldt fez um elogio da igualdade na diferença e da
diferença na igualdade, na linha herderiana, ao concluir dessa forma seu Ensaio:
Estes são os principais resultados para os quais eu fui conduzido.
Possa esse trabalho iniciado na capital da Nova Espanha ser de utilidade
para aqueles chamados a observar a prosperidade pública! E que ele
possa impressioná-los de uma maneira especial para esta verdade: que a
prosperidade dos [homens] brancos está intimamente relacionada com
aquela das raças cor-de-cobre e que pode não haver prosperidade durável
para as duas Américas até que esta raça desafortunada, humilhada, mas
não degradada por longa opressão, possa participar de todas as vantagens
resultantes do progresso da civilização e do melhoramento da ordem
social”
28
.
Por que não pensar ainda em Almeida Garret, que pensava as “duas
porções” do globo intimamente ligadas por interesses comuns, por vínculos de
sangue, linguagem, religião e de tudo que prendia “os homens e as nações e que,
26
PRATT, op. cit., p. 238. A visão de Pratt acerca das zonas de contato é muito importante para
desconstruir as teorias difusionistas acerca das idéias entre os dois lados do Atlântico. Como
propõe a autora, “os ocidentais estão acostumados a pensar que os projetos românticos de
liberdade, individualismo e liberalismo emanaram da Europa para a periferia colonial, mas estão
menos acostumados a considerar as emanações das zonas de contato para a Europa”. Ver:
PRATT, op. cit., p. 239.
27
GERBI, op. cit., p. 313.
28
HUMBOLDT, Alexander von. Political essay on the kingdom of New Spain. [1811]. New York:
Alfred A. Knopf inc., 1972, p. 240. No original: “Such are the principal results to which I have been
led. May this labor begun in the capital of New Spain be of utility to those called to watch over
public prosperity! And may it in an special manner impress upon them this important truth, that the
prosperity of the whites is intimately connected with that of the copper-colored race, and that there
can be no durable prosperity for the two Americas till this unfortunate race, humiliated but not
degraded by long oppression, shall participate in all the advantages resulting from the progress of
civilization and the improvement of social order!”
148
sendo fisicamente as mais separadas por sua situação geográfica, são de todas
as quatro as que moralmente mais unidas estão”
29
.
Humboldt, Buffon, Hegel, Garret, entre outros, foram alguns dos
pensadores que travaram polêmicas a respeito do Novo Mundo e do seu papel na
civilização. O seu pensamento, não obstante, era apenas um dos marcos da
discussão daquele suplemento novo do próprio ser civilizacional, e que não se
esgotou no continente das “camadas estratificadas”.
3.3 – O Ocidente ao Sul do Equador: as Américas Hispânicas
No calor dos acontecimentos que levaram o Brasil à derrocada da
Monarquia, Eduardo Prado escreveu que “há dez dias o cabo submarino tem
transmitido da América do Sul para a Europa” notícias surpreendentes “que
chamaram para aquela parte do mundo a atenção de todos, mesmo dos que, em
tempo ordinário, jamais pensam no que vai pelo Ocidente, ao sul do Equador”
30
.
De fato. As atenções para a queda da última Monarquia latino-americana,
se não atingia toda a Europa, certamente chegava até ao seu lado ocidental, em
especial Paris, onde Prado residia quando escreveu os Fastos. O autor pensava a
América como a parte sul do Ocidente, não somente em termos geográficos, mas
culturais. O Ocidente ao sul do Equador era o conjunto das nações herdeiras da
colonização ibérica, cujas principais heranças deixadas teriam sido as línguas
neolatinas, algumas instituições e sobretudo, a religião católica. Crucial para a
demarcação da idéia de Ocidente e da sua utilização ao longo da tese é a
compreensão que os autores interpretados tinham acerca do papel do Brasil e das
Américas na civilização. Como pensava Araripe Júnior:
“Esse frêmito de subjetivismo nacional não tardará em converter-se
num aumento de força coletiva, e então não será surpresa para nós a
glorificação estética deste grupo de nações, que parece destinado a
29
GARRET, Almeida. Portugal na balança da Europa: do que tem sido e do que ora lhe
convém ser na nova ordem de coisas do mundo civilizado. [1826]. Lisboa: Livraria Moderna,
1904, p. 46-47.
30
PRADO, Eduardo [S, Frederico de]. Fastos da ditadura militar no Brasil. [1890]. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 1.
149
reproduzir em outros moldes a civilização que nos legaram as raças
educadas no verbo latino”
31
.
Araripe pensava que o Ocidente passava não por decadência nem pelo
crepúsculo dos povos, mas por um “frêmito que percorre o universo” e que
demarcava a “entrada triunfal de uma nova fase da civilização”
32
. Entre outros,
seu pensamento sugeria a exigência de conceber tal período como um momento
crucial de definição dos marcos civilizacionais do Ocidente, no qual as Américas
estavam como que na disputa em torno da primazia ontológica ou do monopólio
universal de definição do que era a própria civilização. Alguns anos depois, o
poeta francês Paul Valéry escreveu acerca de sua visão otimista em relação às
Américas:
“Não é impossível que nossa velha e riquíssima cultura se
degrade ao último ponto em alguns anos. Venho então à América. Todas
as vezes que meu pensamento se faz mais escuro e que me desespero da
Europa, eu não reencontro qualquer esperança senão em pensar no Novo
Continente. A Europa enviou às duas Américas suas mensagens, as
criações comunicáveis de seu espírito, o que ela descobriu de mais
positivo... É uma verdadeira ‘seleção natural’ que se operou e que extraiu
do espírito europeu seus produtos de valor universal, ao passo que o que
ela contém de mais convencional ou de mais histórico ficou no Velho
Mundo”
33
.
Poderíamos ver na reflexão de Valéry uma reedição do que Nabuco
escrevera em Minha formação, de que a América era a dimensão flutuante do
espírito e a Europa a sua sedimentação. Graça Aranha, do mesmo modo, afirmou
que “tudo nos liga, a nós brasileiros, ao gênio romano. O vaso onde se cozinha a
nossa nacionalidade foi fundido na forma latina, e quem nos impele é a força
motora desse gênio do Ocidente europeu, perpetuamente criador”
34
.
31
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. O Brasil intelectual. [1900]. In: Obra crítica de Araripe
Júnior. Rio de Janeiro: Casa Rui Barbosa/ Ministério da Educação e Cultura, 1963, vol. 3, p. 499.
32
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. O americanismo. [1896]. In: op.cit., p. 95.
33
VALÉRY, Paul. Regards sur le monde actuel et autres essais. Paris: Galimard, 2002, p. 99-
100. No original: “Toutes les fois que ma pensée se fait trop noire, et que je désespere de l’Éurope,
je ne retrouve quelque espoir qu’en pensant au Nouveau Continent. L’Europe a envoyé dans les
deux Amériques ses messages, les créations communicables de son esprit, ce qu’lle a découvert
de plus positif... C’est une véritable ‘sélection naturelle’ qui s’est opérée et qui a extrait de l’esprit
européen ses produits de valeur universelle, tandis que ce qu’il contient de trop conventionnel ou
de trop historique demeurait dans le Vieux Monde”.
34
ARANHA, Graça. A civilização latina e a alma brasileira. [1903]. In: Obras completas. Rio de
Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969, p. 827.
150
A América, na condição de uma parte nobre e alada do espírito, como
escreveu o ensaísta uruguaio José Enrique Rodó em 1900, era um horizonte de
promessas para a humanidade, que renovava de “geração em geração sua ativa
esperança e sua ansiosa fé em um ideal”
35
. Mais ainda: Manuel Bomfim, em seu
América Latina: males de origem, comparou a América com o restante da
civilização em uma linguagem não muito otimista. Para o escritor, os “povos sul-
americanos se apresentam, hoje, num estado que mal lhes dá o direito a ser
considerados povos civilizados”
36
. As nações latino-americanas, como partícipes
diretamente da “civilização ocidental, pertencendo a ela, relacionados diretamente,
intimamente a todos os outros povos cultos, e sendo ao mesmo tempo dos mais
atrasados, e, por conseguinte, “dos mais fracos”, eram “forçosamente infelizes”
37
.
Rodó, Araripe, Bomfim e Aranha eram desses intelectuais que tinham
como centro de suas reflexões pensar o lugar da América Latina na civilização
ocidental. Negligenciar tal limite conceitual seria não levar em consideração o
aspecto importante de que, antes de qualquer discussão difusionista a respeito da
dicotomia lado de lá versus lado de cá, havia interesse geral desses autores em
compreender o Brasil e a América em termos civilizacionais, o que implicava uma
relação, no mínimo de comparação, como no pensamento de Nabuco apresentado
no início deste capítulo, e de Garret algumas linhas acima, entre as Américas e a
Europa na definição do Ocidente.
Na disputa do Novo Mundo estava em jogo, entre outras coisas, a de-
finição não somente da civilização ocidental, mas de seu futuro, o que envolvia
uma adesão ao pensamento da mobilidade que se fazia dis-curso. Saber se a ele
pertenceria ou não a América e se a América era ou seria efetivamente a herdeira
da Europa, eram algumas das questões a serem desbravadas pelos polemistas.
Eduardo Prado, evidentemente, não se furtou de pensar essas questões e sua
inscrição na de-finição do que seria a civilização, de modo geral, e a civilização
brasileira, em particular.
35
RODÓ, José Enrique. Ariel. [1900]. In: Antologia del pensamiento político, social y
económico de América Latina. Madrid: Ediciones de Cultura Hispánica, 1991, p. 31-32.
36
BOMFIM, op.cit., p. 53.
37
Ibid., p. 53.
151
Ao falarmos de América Hispânica enquanto parte do Ocidente no
pensamento de Eduardo Prado, a primeira idéia que talvez apareça em mente é a
dicotomia entre os dois quinhões da América Ibérica, a saber, entre o Brasil e o
restante da América Latina como dois referenciais distintos do Ocidente ao Sul do
Equador. Essa bifurcação exige que enfoquemos um outro exterior constitutivo até
então silenciado ou poucas vezes mencionado: a Espanha. Nesse sentido, faz-se
necessário definir de modo mais preciso o adjetivo que compõe aquela expressão
América Hispânica. Nada mais conveniente do que começarmos essa
apresentação pela idéia de Espanha que Eduardo Prado elaborou.
Do ponto de vista da estrutura da tese, a referência à Espanha como um
exterior constitutivo do Brasil deveria fazer parte do capítulo anterior. Não
obstante, a Espanha não foi pensada por Eduardo Prado de modo sistemático e
recorrente como sujeito do ser europeu, como ele o fez em relação à Inglaterra e a
Portugal. Além disso, apresentar a Espanha na América é uma maneira de
tornarmos menos dicotômico o que aparece como exterior constitutivo do Brasil,
porquanto traçar o perfil da América Espanhola sem recorrer ao ser hispânico
seria tarefa de difícil consecução. Passemos à idéia de Espanha elaborada por
Prado.
A Espanha era, juntamente com o reino de Camões, parte daquele espírito
de doação, de auto-sacrifício e do “esforço parturiante” que havia criado nações
na América. Somente a “fusão do sangue ibérico” com “o sangue índio e africano”
poderia fazer florescer uma raça nas regiões equatoriais e tropicais
38
, diferente
dos holandeses e dos ingleses, cujos filhos murchariam e feneceriam nos
trópicos
39
. Tal miscibilidade, que seria tão cara a autores como Gilberto Freyre,
seria a responsável pela criação das nações na América Latina.
Quando Espanha e Portugal colonizaram o Mundo que para eles e para os
demais europeus era novo, a bandeira do catolicismo e das cruzadas ainda era
conduzida pelos porta-estandartes de ambos os reinos. Na situação de singular-
coletivos, Portugal e Espanha representavam gloriosamente um “inolvidável papel
38
PRADO, O catolicismo..., op.cit, p. 71. Citado também no capítulo 2, na página 174.
39
Ibid., 72.
152
no mundo, papel superior a suas forças”, ao criarem “na carta do globo esta
imensa constelação de nações da América Latina”
40
. Constelação que levou as
nações ibéricas a “fatalmente, entraram no seu declínio”
41
.
Na sua índole católica, Espanha não era vista pelo autor como uma nação
cujo respeito devesse ser vilipendiado; pelo contrário, tal condição era um
imperativo para a terra de Inácio de Loyola, que tanto havia feito pela humanidade
contra a “Renascença pagã”
42
. Como sugeria Prado, a perda de um império
marítimo e colonial e a passagem dos espanhóis de potência de primeira ordem
para um plano inferior não deveria ser motivo de condenação de sua religião
43
.
A Espanha tinha sido um baluarte da fé. Em tempos de insegurança,
guerras, fragmentação, sobretudo religiosa, ocasionada pela Reforma Protestante,
o que mais perturbava “as almas daquele tempo” não era somente o interesse
material que os levava para as “batalhas das armas e das idéias”, fosse nos
campos, fosse nas universidades e nos centros intelectuais, mas sim “o problema
da alma humana na sua vida futura”
44
. A solução para esse problema da “corrente
pagã da Renascença” se daria através dos “rochedos hispânicos, onde devia
brotar o castelo de Loyola, a fonte da renovação religiosa do século”
45
.
A admiração de Eduardo Prado por Loyola e pela Espanha moderna e
renascentista residia não somente no seu esforço cruzado contra o “paganismo”,
mas também na sua perenidade, a rocha diante da corrente de mar cada vez mais
voraz. Era a duração de mais de trezentos anos, de uma instituição que chegava
até o momento presente, “decurso de tempo em que nasceram e morreram tantas
coisas, tantos governos, tantas dinastias, tantas doutrinas e tantos ideais”
46
, que
chamava a atenção de Prado de modo mais significativo. Permanência diante de
uma seqüência de vidas e mortes era a estabilidade almejada pelo autor, o
mesmo repouso que ele não encontrava nos regimes políticos e na sociedade
onde vivia. A realidade do catolicismo inaciano se apresentava como definitiva,
40
PRADO, O Dr. Barreto..., op.cit. , p. 212.
41
Ibid., p. 212.
42
PRADO, O catolicismo..., op. cit, p. 13.
43
PRADO, O Dr. Barreto..., op. cit., p. 212-213.
44
PRADO, O catolicismo..., op. cit., p. 15.
45
Ibid., p. 20.
46
Ibid., p. 27.
153
dada de uma vez por todas para todos os tempos, qualidade do tempo que era
não uma primazia ontológica da Espanha, mas do ser cristão católico (universal)
que ela encarnava.
Se a Renascença contra a qual o renascimento religioso proporcionado por
Loyola era pagã, a contemporaneidade era individualista e atéia, o que contribuía
para enfraquecer todos os laços de solidariedade mantidos pelas instituições
católicas até então. O imperativo categórico católico da obediência estava sendo
abandonado: “esta palavra obediência é uma palavra antipática à anarquia do
nosso tempo, em que há em todos nós o frenesi de mandar”
47
. A obediência era
requerida nas Repúblicas, nesse espaço onde grassava o individualismo tirânico.
Como os espanhóis no século XVI, era um imperativo para os brasileiros e latino-
americanos enfrentarem a República, com a força moral maciça do catolicismo.
A Espanha permitia uma cumplicidade com a eternidade no pensamento
pradiano, a memória onipresente da rocha como verdade independente dos
mortais. A metáfora da rocha é elucidativa aqui. O que ela poderia ser senão ser?
A rocha é o que é e está ali. Todas as mudanças que nela pudessem se operar
seriam, durante séculos e séculos, combinações regradas de sua consistência
fundamental, dada de uma vez para sempre
48
. Essa quietude e fixidez eram
fundamentais para Eduardo Prado, sobretudo ao evocar uma instituição religiosa
ancorada em crenças profundamente atreladas ao triunfo sobre a morte – o
cristianismo
49
.
Não era infundada a comparação da Companhia e do seu fervor católico
com os diversos regimes políticos, dinastias e idéias que se sucederam nesses
quatrocentos anos entre o século XVI e o século XX. A história religiosa da
Espanha era a fonte de perenidade diante do devir. Segundo Prado, somente as
“obras insensatas” eram feitas “de repente”. As “criações dos sábios”, ou seja,
instituições como a Companhia de Jesus, eram “amadurecidas e longamente
47
PRADO, op.cit., p. 57.
48
ORTEGA Y GASSET, José. Historia como sistema y otros ensayos de filosofía. Madrid:
Revista de Occidente, 1981, p. 26.
49
DASTUR, Françoise. A morte: ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002, p. 25.
154
preparadas”
50
. Nas suas palavras: “o tempo não respeita senão as coisas feitas
com o seu concurso”
51
. A sabedoria do tempo era a cumulatividade de toda a
experiência como fonte do ser, o tempo instituído pela Companhia que fazia toda a
incerteza do hoje e do amanhã se subordinar à tradição e à promessa. Tratava-se
de uma noção com seus princípios sustentados não no cristianismo, mas em
Aristóteles que, em sua Ética a Nicômaco, afirmou que a sabedoria prática, aquela
que pressupunha a ação e a relação com os homens, se efetivaria com a
experiência, que era dada pelo tempo
52
.
Para o autor, que seguia uma certa filosofia teológica da história – não por
se relacionar com Deus apenas, mas também por colocar a relação da
temporalidade com a eternidade
53
– somente uma loucura suficientemente grande
poderia remover as atrocidades e as futilidades que o século renascentista havia
cometido. E tal loucura era encontrada na Espanha católica, a “loucura peninsular”
que poderia ser vista ao longo da sua história, desde as lutas de Viriato, passando
por Cid e pela expansão marítima “alastrada pelo mar infinito nas descobertas
dos mundos desconhecidos, nas conquistas dos reinos longínquos, na
evangelização dos bárbaros e dos selvagens”
54
.
A Companhia de Jesus seria fruto dessa loucura epocal que a Espanha, na
condição de “nação católica”, expressava. Isso quer dizer que a Espanha
enquanto particular, expressava o universal “espírito de solidariedade próprio à
humanidade e que se pode chamar o instinto de associação”
55
. O catolicismo
espanhol apenas realizaria historicamente essa constituição ontológica do homem.
Contra os males presentes da fragmentação e do individualismo, apresentava-se o
instinto de associação, o estar juntos e todos os predicados supostamente
solidários que daí emanavam na condição de unidade cristã.
Ordens religiosas como a Companhia eram, no pensamento do intérprete,
um produto natural e espontâneo da religião, encontradas tanto no budismo como
50
PRADO, O catolicismo...,op.cit., p.34.
51
Ibid., p. 34.
52
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, livro 6,
p. 347.
53
HEIDEGGER, Martin. El concepto de tiempo. Madrid: Trotta, 1999, p.24.
54
PRADO, O catolicismo…, op. cit., p. 29.
55
Ibid., p. 50.
155
entre os muçulmanos
56
. No catolicismo porém, “elas representam um papel moral
que nunca desempenharam noutras religiões”, a constituição de “verdadeiras
associações de seguro da salvação das almas”
57
.
O mundo de Prado, suficientemente secularizado
58
, sobretudo diante dos
regimes republicanos, era um mundo de “prazeres e de perigo”, onde a prática da
virtude era um imperativo para estancar a demolição dos valores e reconstituir,
aristotelicamente falando, a justiça do tempo por meio da experiência. As ordens
religiosas e a Companhia de Jesus eram o seu melhor exemplo, “a vanguarda da
Igreja” e, “se pudéssemos comparar as cousas da religião às da política, diríamos
que elas são o partido exaltado do Catolicismo”
59
. A Espanha cumpria sua missão
na história. Sua verdade exemplar era a afirmação do ser católico como garantia
para o eterno, contra as ondas devastadoras do paganismo.
Exposta tal idéia acerca da Espanha no pensamento de Eduardo Prado e
daquela que era considerada a sua principal instituição, isso significava que as
comunidades imaginadas na América Hispânica eram, tal como o Brasil, nações?
Que elas haviam se desenvolvido de maneira semelhante à civilização brasileira
do Império, “a civilização do século XIX”? Essa é uma questão crucial para a
compreensão do pensamento pradiano em relação a esse outro exterior
constitutivo do Brasil. Se Espanha e Portugal haviam se assemelhado em termos
de colonização e de criação de instituições perenes através do catolicismo, em
quê o Brasil se diferenciava daquelas nações hispano-americanas como um todo?
Era somente a língua um fator de distinção do mesmo-outro nessa relação, já que
o catolicismo era um artefato cultural comum tanto às Américas portuguesa e
hispânica, quanto aos seus colonizadores peninsulares?
Como corolário lógico, seria correto pensar as nações hispano-americanas
como herdeiras da colonização espanhola, o que significa afirmar que suas
instituições eram portadoras dos mesmos predicados de sua ex-metrópole. Isso,
56
PRADO, op.cit., p. 50.
57
Ibid., p. 50.
58
Não investigamos o tema da secularização no Ocidente. Para uma história conceitual a respeito
da secularização, ver: CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Coimbra: Almedina, 2006.
59
PRADO, op.cit., p. 51.
156
seguramente, aproximaria seu ser nacional ao Brasil, porquanto haveria entre eles
uma identidade colonial e pós-colonial.
Escritos de Prado sobre o conflito entre Espanha e Estados Unidos pela
posse e independência de Cuba em 1898 eram indicativos de que a Espanha,
“pobre mas inabalável”
60
, havia deixado marcas permanentes na história latino-
americana, o que reforçava a identidade peninsular
61
. Um desses traços seria a
relação racial em Cuba, onde sob “o tão vilipendiado jugo espanhol, não há ódios
de raças e, em pé de igualdade, negros e brancos entram no mesmo teatro e na
mesma igreja”
62
.
Diferentemente dos Estados Unidos, principal objeto dessa comparação,
não havia em Cuba “desprezo pela gente de cor”, ao contrário da “grande
República, sob o domínio da religião cristã e da liberdade”
63
, onde os negros eram
esmagadoramente desprezados pelos brancos. Se os Estados Unidos eram
efetivamente livres, o negro lá deveria ser tratado, de acordo com o autor, “com
muito mais humanidade do que na malfadada e mal governada colônia dos cruéis
espanhóis”
64
.
A comparação entre Cuba e Estados Unidos e, de modo subjacente, entre a
colonização espanhola e a colonização britânica, indica que Prado pensava a
América Latina, pelo menos nos seus aspectos raciais, semelhantemente ao
Brasil, situação que já havia aparecido algumas linhas acima, quando tratamos de
investigar aquela idéia de um amálgama entre as raças americanas como
diferencial de sua identidade. No caso apresentado, tratava-se da afirmação de
uma hibridização responsável pela criação da civilização nos trópicos; aqui, a
questão girava em torno não do domínio da raça sobre uma natureza inóspita e
hostil, o que fazia o sul-americano sobrepor-se virilmente à natureza, mas da sua
pacificidade e da possibilidade de seu convívio de modo pacífico diante das
60
PRADO, Eduardo. A Espanha. [1898]. In: Coletâneas, vol. 1..., op.cit., p. 384.
61
Capelato sugere que a independência de Cuba foi uma razão de aproximação entre os
intelectuais hispanoamericanos e os espanhóis de fins do século. Ver: CAPELATO, Maria Helena.
A data símbolo de 1898: o impacto da independência de Cuba na Espanha e Hispanoamerica.
História. São Paulo, n.22(2), p.35-58, 2003.
62
PRADO, A Espanha..., op.cit., p. 376.
63
Ibid., p. 377.
64
Ibid., p.377.
157
diferenças raciais. Como investigamos no próximo capítulo, tanto a idéia da
pacificidade do brasileiro quanto sua hibridização foram fatores pensados por
muitos intelectuais como permanentes em relação ao ser brasileiro.
Retomemos a idéia do esforço parturiante. A Espanha havia se sacrificado,
e, a exemplo de Portugal, criado nações. Diferentemente do espírito americano,
de violência e ódio, o espírito latino, “mais ou menos deturpado através dos
séculos e dos amálgamas diversos do iberismo”, era um “espírito jurídico” que
“conserva sempre um certo respeito pela vida humana e pela liberdade”
65
.
Se o respeito à vida humana e à liberdade eram predicados comuns na
América Ibérica, talvez pudéssemos afirmar a identidade absoluta entre Brasil e
América Hispânica. Não haveria, nesse sentido, um exterior constitutivo, mas
apenas um exterior mínimo, manifesto na superfície da língua falada e na divisão
física e geográfica. Perderíamos a essência do Brasil? Sim, se a identidade se
fechasse aqui e, através da identidade entre os dois seres, pensássemos em
termos de uma igualdade cuja relação apenas serviria para legitimar a igualdade
do mesmo entre os dois. Não obstante, ao examinarmos o pensamento do autor
de modo menos identitário, as relações de simetria entre a América Latina e o
Brasil não podem ser generalizadas. A tensão entre identidade e alteridade, que
marcou suas idéias em relação à Europa, também estava presente na definição do
exterior constitutivo latino-americano.
Quando Eduardo Prado traçou seus escritos sobre a América Espanhola,
ele não o fez de modo a prestigiá-la na sua totalidade, tal como fizera no caso
cubano e no caso da sua ancestral ibérica quando escreveu sobre a Companhia
de Jesus e sobre a Guerra de Cuba, como acima enfatizamos. Para usar uma
expressão do pensamento mítico
66
, apresentava-se uma relação temporal de
corte, de ruptura que demarcava o sacro e o profano do ser latino-americano.
Em primeiro lugar, a razão pela qual podemos pensar essa diferença residia
na crença do autor de que o Brasil era superior às demais nações latino-
65
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. [1893]. São Paulo: Brasiliense, 1961, p. 175.
66
De acordo com Eliade, o pensamento mítico opera através da recusa da irreversibilidade do
tempo, por meio do ritual, que anula o tempo profano, cronológico, e recupera o tempo sagrado do
mito. Ver: ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Ed. 70, 1988, p. 120.
158
americanas, “aquela terra que, na América, é a mais bela, a maior da raça
latina”
67
.
A pergunta que colocamos é: se as nações latino-americanas preconizavam
o respeito à liberdade e à vida humana, se elas eram católicas, herdeiras daquela
tradição de “loucura” que levou os espanhóis a criarem as mais diversas
instituições, se elas ainda eram, na sua índole, pacíficas e fortes, por que o Brasil
haveria de ser a civilização mais bela e a maior da raça latina na América? Ele o
seria apenas por uma sentença dogmática nacionalista?
Não seria plausível descartar de modo absoluto a idéia de uma proposição
dogmática nessas circunstâncias. Não obstante, tal explicação é insuficiente para
compreendermos o fenômeno da nação pensado pelo autor, ainda mais em se
tratando de um pensamento nacionalista cuja universalidade reivindicava os
predicados da beleza, do bem, do ser e do uno.
Algumas das razões que supostamente levaram Prado a se posicionar
favoravelmente ao Brasil monárquico e contrário à América Hispânica republicana
era a própria sombra do Brasil republicano. A identidade entre as repúblicas
atemorizava o autor, que via ameaçada a identidade ibérica originária do Brasil e
da América Latina. Além disso, outro fator que teria sido importante era a
passagem do Brasil colonial para uma monarquia e não para uma república, como
havia acontecido com todas as nações hispânicas da América. Esse diferencial
era uma condição da superioridade da civilização brasileira, personificada,
sobretudo, na figura mítica de Dom Pedro II.
As nações hispânicas da América, na sua maioria, eram, a exemplo da
República recém instalada no Brasil, Repúblicas mal-sucedidas política, cultural e
economicamente. Desde o seu rompimento com o domínio colonial, tais nações
eram as Repúblicas militares, dos pronunciamientos que sequer davam qualquer
durabilidade política para o subcontinente. Portanto, a exemplo do Brasil
republicano, todas as nações da América Hispânica eram reféns de uma
instituição exterior a elas. Se liberdade e respeito à vida eram qualidades
precípuas da Hispano-América, seria evidente que a tradição republicana,
67
PRADO, Fastos..., op.cit., p. XX.
159
difundida nas Américas pelos Estados Unidos, exótica, não faria parte do seu
ser
68
.
Almeida Garret, contemporâneo dos processos revolucionários na América
Latina, escreveu sobre elas, em 1826, o seguinte: “a embriaguez das facções, a
discórdia civil, a infrene demagogia devastam esses países, que se não libertaram
da tirania... senão para sofrer mais cruéis tiranos”
69
. Inventariar escritos políticos
críticos às revoluções latino-americanas não seria uma tarefa difícil. Tomemos
mais um, de Tocqueville:
“Estranha perceber as novas nações sul-americanas agitarem-se,
há um quarto de século, em meio a revoluções que recomeçam a cada
instante e, a cada dia, espera-se vê-las voltar ao que se chama o estado
natural. Mas quem pode afirmar que essas revoluções não sejam
atualmente o estado mais natural dos espanhóis da América do Sul?
Nesses países, a sociedade debate-se no fundo de um abismo, do qual
seus próprios esforços não são capazes de fazê-la sair”
70
.
O pensamento de Garret e de Tocqueville contribui para que possamos
pensar o que Eduardo Prado questionava ao se referir à América Hispânica. Sair
de uma tirania para outra tirania, do modelo colonial dependente para a ainda
dependente República era ontologizar a tirania, convertê-la em uma qualidade
permanente daquelas nações ou converter em ser o nada, o abismo no qual se
debatia e do qual não se saia, para retomarmos as palavras de Tocqueville.
O exterior constitutivo, esse outro componente nacional que não se
coadunaria com a tradição brasileira (e também com a tradição latino-americana)
era, em grande medida, não simplesmente a forma republicana per se, mas a
violência, a mundanização, a escravidão nacional, os macaquismos
constitucionais (cópias), a arbitrariedade, a crise política, as coisas militares “à
espanhola”, o desequilíbrio, a instabilidade, a ruína e a corrupção mais do que a
geração, enfim, qualidades que estavam relacionadas à forma republicana,
especialmente em duas circunstâncias de colapso: no caso hispano-americano e
no Brasil pós-1889. Nabuco, em 1891, afirmou que os americanos estavam
condenados à mais terrível das instabilidades, e “é isso o que explica o fato de
68
CANCELLI, op. cit., p. 117-120.
69
GARRET, op.cit., p. 47.
70
TOCQUEVILLE, Aléxis de. A democracia na América. [1835]. In: Os pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1979, p. 234.
160
tantos sul-americanos preferirem viver na Europa”
71
. Ou ainda, que o Brasil estava
no “redemoinho republicano da América... um cadáver girando no sorvedouro da
anarquia”
72
.
Prado entendia que as nações latino-americanas haviam se corrompido
quando se tornaram republicanas. Estabelecia-se um hiato temporal que
demarcava o início de uma escravização coletiva, nacional, quando a América
Hispânica havia se tornado independente, ou seja, republicana, haja vista que
essas nações não adotaram a forma monárquica quando se separaram de sua
metrópole. A sua situação pós-colonial nada mais seria do que uma relação de
continuidade com uma tradição alheia aos valores ibéricos. Em termos de
suspensão do devir, a temporalidade do ser da nação dava-se simultaneamente
no hiato e na continuidade. Hiato como rompimento com a matriz colonial
(escrava) e o prosseguimento de um tempo de subordinação. O resultado final era
o mesmo: dependência e ausência de autonomia nacional.
A América Hispânica, nesse intervalo, era uma espécie de não-ser. Seu
passado, por mais que fosse ibérico, diferia do Brasil por ter sido colonizado na
sua totalidade até se tornar república. Quando deixou de ser colônia, se tornou
república. A Monarquia, que era a matriz da civilização no pensamento de
Eduardo Prado poderia ser um horizonte de expectativas para a América
Hispânica, mas não era a sua realidade, nem passada, nem presente. De modo
algum esse hiato poderia ser modelo para o Brasil a não ser na condição de tornar
também o Brasil legatário daquela tradição ibérica de catolicismo, realidade que
não era encontrada em quaisquer países herdeiros da colonização espanhola. O
Brasil se tornaria, se continuasse monárquico e católico, exemplar não somente
para si mesmo, mas também para o mundo civilizado. A América Hispânica
poderia ser uma espécie de história a priori, uma profecia para o futuro sem
qualquer experiência no passado, tal como ocorria com o Brasil no presente
73
.
71
NABUCO, Minha formação..., op.cit., p. 39.
72
NABUCO, Joaquim. Diários: 1873-1909. Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 2006, p. 292.
73
Como sabemos, a idéia de uma história a priori foi pensada por Kant, no século XVIII, ao
problematizar, no Conflito das faculdades, a idéia de progresso. Ver: KANT, Immanuel. O conflito
das faculdades. Lisboa: Ed. 70, 1993, p. 95-112.
161
Nesse sentido, Eduardo Prado divergia da concepção sustentada pelo seu
compatriota e contemporâneo Manoel Bomfim, que atribuía o problema do
subdesenvolvimento da América Latina ao parasitismo das metrópoles, ou seja, a
responsabilidade do atraso não às Repúblicas, mas às metrópoles – Espanha e
Portugal –, que colonizaram a América Latina. Não que Bomfim fosse um
positivista, defensor da República. A exemplo de Prado, o autor via na República
positivista uma cópia mal-elaborada dos Estados Unidos. Sua América Latina:
males de origem atacava para todos os lados, por meio de uma crítica à
aproximação do Brasil em relação aos Estados Unidos, bem como à relação
passada do Brasil com a Europa
74
.
Para Prado, o México era deprimente e opressor contra a Guatemala, que
por sua vez mantinha guerras contra El Salvador, inimigo da Nicarágua. A história
recente de todas essas nações era um “rio de sangue”, um “contínuo morticínio”
75
,
cuja cadeia de ódios e rancores se estendia à totalidade das Repúblicas sul-
americanas, posto que para o autor, havia um ódio mortal entre Colômbia e
Venezuela, Peru, Equador, Chile, Argentina e Uruguai. Não havia harmonia entre
tais nações: “a comunidade de origem, a raça, a língua, a religião idênticas não
são suficientes garantias da conservação da harmonia”
76
. Como uma maneira de
exemplificar tal fragmentação, Prado pensava no caso do Chile e do Peru:
“Não há no mundo dois povos que tenham ódio recíproco tão
profundo como os chilenos e os peruanos, e ambos descendem de
espanhóis, falam a mesma língua, tem a mesma religião. A unidade
certamente desaparecerá”
77
.
A unidade à qual Eduardo Prado se referia não era delimitada somente
àquelas nações, mas sobretudo ao Brasil que se republicanizava e que estava
ameaçado de se decompor. Havia não somente uma história recente, mas
conhecida dos brasileiros, que apontava para aquele caminho. O que o exemplo
republicano das nações coirmãs ibéricas indicava nada mais era de que seu
passado (recente) deveria ser o horizonte de expectativas do Brasil, não
expectativas e esperanças no sentido de imitar o seu modelo; muito pelo contrário,
74
BOMFIM, op.cit.
75
PRADO, A ilusão..., op.cit., , p. 8-9.
76
Ibid., p. 5.
77
Ibid., p.5.
162
de tomar o seu passado como o padrão daquilo que o Brasil deveria evitar, um
gênero de imperativo ontológico-moral às avessas: o não-dever-ser. Ou, para
inverter a lógica temporal, a necessidade de ver no presente republicano da
América apenas a experiência mal-sucedida em termos civilizacionais que
apontava não para o futuro, mas para o passado. Ser republicano, para o autor,
nesse sentido, era não-ser progressista, mas reacionário, porquanto o modelo de
inspiração presente não era o Brasil monárquico – com o qual ele pretendia
manter uma continuidade – mas um conjunto de modelos anteriores, que faziam
parte do ser hispânico da América e que era encontrado na subordinação nacional
à metrópole. Em termos de capitalização para apólices eternas, o que essas
nações tinham a ver com a Espanha de Loyola?
Nos Fastos da ditadura militar no Brasil, a idéia de uma inversão temporal
ficou evidente nessa passagem, em que o escritor comparou o Brasil ao Paraguai:
“Infeliz Paraguai! Bem vingado estás tu neste momento vendo que
o Brasil, teu orgulhoso vencedor de outrora, é hoje o imitador do que tu
foste há trinta anos! Os brasileiros, que tanto desprezavam os costumes
semibárbaros da política paraguaia, têm hoje em casa o que tanta
compaixão lhes inspirava na casa dos seus inimigos”
78
.
Ainda no mesmo livro, eis o que disse o autor: “ainda não volvemos a dizer
os Brasis... mas talvez a força das coisas traga em breve o antiquado termo ao
uso da linguagem corrente”
79
. “Isso sucederá”, concluiu o autor, “se dentro de
alguns anos, a palavra – Brasil –, por fatalidade histórica, deixar de ser a
expressão da integridade de uma nação, para ter o valor de uma designação
geográfica”
80
. A ameaça da integridade era a mais forte manifestação desse ser
hispânico na América Latina, posto que, no seu entendimento, não havia qualquer
nação em tal subcontinente que fosse homogênea; pelo contrário, as bases que
formavam a nacionalidade, tais como unidade de língua, raça e cultura eram
inexistentes nesse contexto, ao menos quando comparadas com o Brasil.
Carlos Bunge, escritor argentino contemporâneo a Prado e a Bomfim,
pensava que uma das heranças mais funestas da Espanha para os latino-
78
PRADO, Fastos..., op.cit., p.36.
79
Ibid., p. 9.
80
Ibid., p.9.
163
americanos havia sido a arrogância, que tendia a fazer de cada indivíduo uma
autoridade individual
81
. Escreveu o autor: “e onde cada um quer ser autoridade
não podem ser muito acatadas as autoridades sociais... Em sua essência, a
arrogância ibérica é um sentimento anárquico, um individualismo impertinente e
dissolvente”
82
. O temor de uma fragmentação da nação não era um sentimento
isolado de escritores brasileiros. Bunge entendia que a fragmentação era uma
qualidade da arrogância, o principal traço do caráter nacional hispânico e do qual
os hispano-americanos deveriam se livrar, através daquilo que Bunge denominava
de “terapêutica social”
83
.
O individualismo impertinente e arrogante que Bunge via na cultura
hispânica era
84
, para Eduardo Prado, a causa do descompasso entre a palavra e
a coisa, entre a res publica e as Repúblicas implantadas na América Latina, onde
havia ocorrido a usurpação de uma “atribuição legislativa que nos países
civilizados pertence somente ao povo”
85
. Nas suas palavras:
“A linguagem e a precisão científica não se amoldam, nem aos
caprichos dos reis, nem aos desejos dos demais governantes. O governo
absoluto exercido por oito indivíduos [Prado referia-se ao Brasil] não é a
República, cujo significado é o governo de todos. Alcunhem esta
organização de República quanto quiserem; a palavra não corresponderá
de modo algum à realidade. Este governo absoluto, que não foi eleito pela
Nação, tem nome na ciência desde o tempo de Aristóteles, e esse nome é:
tirania”
86
.
Rio de sangue, depressão, individualismo, indiferença, opressão, guerras,
morticínio, ódio recíproco: por que não pensar aqui a questão do sentido no
pensamento de Eduardo Prado? Não era sentido de totalidade que estava
faltando, o problema que Durkheim, no mesmo período, chamava de anomie: a
ausência de uma consciência comum para conduzir os povos?
No seu estudo clássico sobre o suicídio, publicado em 1897, Durkheim
afirmou que a anomia era a falta, em certos pontos da sociedade, de “forças
81
BUNGE, Carlos. Nuestra América. [1903]. Madrid: Espasa-Calpe, 1926, p. 72.
82
BUNGE, op. cit., p. 72.
83
Ibid., p. 72.
84
Para uma análise do pensamento sobre América Latina entre os intelectuais na Argentina, ver:
ALTAMIRANO, Carlos. A América Latina no espelho argentino. In: NOVAES, Adauto. (org.). Oito
visões da América Latina. São Paulo: Ed. SENAC, 2006.
85
PRADO, Fastos..., op. cit., p. 104.
86
Ibid., p. 104.
164
coletivas”, ou seja, de “grupos constituídos para regulamentar a vida social”
87
. O
état de désagrégation do mundo ocidental era uma das preocupações centrais do
sociólogo francês, que associou à anomia o problema do egoísmo
contemporâneo, “esse estado em que o eu individual se afirma como excesso
frente ao eu social e às expensas desse último”
88
.
A fragmentação e as diferenças irreconciliáveis representavam, para
Eduardo Prado, a perda de valores que até então vigoravam na civilização. A
América Latina era o precedente histórico da diferença em relação à Monarquia
que se convertera em identidade republicana, ou seja, alteridade que se reduziu à
identidade. A republicanização do Brasil o convertia em mesmidade e o empurrava
para a perda de um referencial ontológico em relação aos outros americanos
latinos. A República consubstanciava essa crise de valores. Caminhar em sua
direção era a vereda para o abismo.
A América Hispânica, em especial republicana, era um exterior constitutivo
do Brasil que se colocava como um imperativo de negação no pensamento do
autor. O que não era a civilização brasileira? Categoricamente, ela não era, nem
deveria ser, a América Espanhola. Seu ser era inalcançável porque era uma
aporia: quando a América Hispânica era monárquica, ela era dependente e
colonial, porque a monarquia não era uma instituição sua. Quando ela se tornou
“independente”, deixou de ser monarquia para se converter em república.
Vejamos a seguinte passagem, das viagens de 1882, em que Prado
percebeu um problema ontológico na vulnerabilidade dos presidentes das
Repúblicas na América do Sul: “imaginem um presidente que não pode ser
conjugado nem no passado, nem no presente, nem no futuro: não é, não foi, nem
87
DURKHEIM, Émile. L´suicide: étude de sociologie. [1897]. 3Vol., vol. 3, p. 75. Disponível em:
<
http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html>. Acesso em
23 de outubro de 2006. No original: “L'anomie vient, en effet, de ce que, sur certains points de la
société, il y a manque de forces collectives, c'est-à-dire de groupes constitués pour réglementer la
vie sociale”.
88
DURKHEIM, op.cit., vol. 2, p. 69. No original: on convient d'appeler égoïsme cet état où le moi
individuel s'affirme avec excès en face du moi social et aux dépens de ce dernier...”.
165
será presidente, e, sem embargo, o é”
89
. Tal era o tipo de aporia do ser: como
definir a propriedade do ser no próprio tempo, se a sua fixação não era possível?
Um dos modelos republicanos que causava mais ojeriza ao autor era o
Peru, uma nação cujos líderes supostamente viviam de golpes que derrubavam as
instituições e criavam governos artificiais. “Era desse tipo o exército peruano;
exército de pronunciamientos, de plumas e galões, que vivia a salvar todos os dias
a pátria, de aclamar generalíssimos, a encher-se de marechais e generais”
90
. E
arrematava: “o exército brasileiro não será porém, um novo exército do Peru; ele
há de renovar as tradições gloriosas do seu passado”
91
.
Ora, além da ameaça da dispersão do Brasil, o que o intérprete percebia
era um aumento significativo da crise institucional, o que significa dizer uma crise
de representatividade política nas nações da América Hispânica. Tal critério de
definição da nação era repudiado pelo autor, pois seria inconcebível haver uma
nação sem representação. A ditadura, no Peru, na Bolívia, no Brasil, na Argentina
e em toda a parte, era “o enfraquecimento nacional, porque é o regime em que o
poder pode tudo e em que o cidadão nada vale”
92
. Ainda de acordo com o seu
pensamento, “a certeza de que nada é impossível a quem tem o mando é a noção
mais deprimente e corruptora que um povo pode aprender. Não há caráter
nacional capaz de resistir à ação dissolvente desta idéia”
93
. Significava também
dizer que a República era “coisa que na América do Sul quer sempre dizer o
confisco de todas as liberdades”
94
, a arrogância espanhola sugerida por Bunge,
que deveria ser extirpada da Hispanoamérica. Ainda mais: “nunca vimos sinal de
liberdade em nenhum dos desorganizados acampamentos militares que, na
América Espanhola, tem a alcunha de Repúblicas livres”
95
.
A Espanha, cujo esforço havia contribuído para a criação de nações,
também havia decaído, a exemplo de suas ex-colônias, na barbárie dos
89
PRADO, Eduardo. Viagens: América, Ásia e Oceania. [1882,1886]. São Paulo: Escola
Tipográfica Salesiana, 1902, p. 124.
90
PRADO, Fastos..., op.cit., p. 31.
91
Ibid., p. 31.
92
Ibid., p.40
93
Ibid., p.40.
94
PRADO, Eduardo. O banquete monarquista. [1895]. In: Coletâneas, Vol. 2... op.cit., p.8.
95
PRADO, Eduardo. A crítica republicana. [1895]. In: Coletâneas…, vol.2..., op. cit., p. 49.
166
pronunciamientos republicanos do século XIX. Em 1874, o general Pavia, capitão-
geral de Madri, havia dissolvido as cortes federais, atingindo assim “a uma
situação ditatorial que é o máximo dos sonhos mais caros a todo o espanhol”
96
.
Como uma espécie de difusão da América Hispânica para a Espanha, formando
uma totalidade constitutiva do outro da nação, a Espanha havia caído na “era
dolorosa das revoltas militares”, a “desgraça de um generoso país que só o
militarismo político tem conservado excluído do número das grandes potências
européias”
97
. Neste caso, havia uma inversão do ser hispânico, como se da
América se difundisse a República para a Europa.
Nesse sentido, o autor estava muito próximo da vertente do pensamento
político liberal moderno. Como sabemos, a modernidade desenvolveu, sobretudo
nos séculos XV, XVI e XVII, as bases teóricas do que seria conhecido no futuro
como as democracias representativas. Tais teorias estavam na base do que
Eduardo Prado entendia ser a bárbara crise institucional latino-americana que
invadia os portões da civilização brasileira.
A idéia de Estado, como constituinte da representação dos indivíduos em
sociedade seria a base de legitimidade institucional preconizada por Prado no
pensamento político da nação. Embora Prado tivesse em mente a preservação da
nação brasileira, sem dúvida que havia também um problema de legitimidade da
nação por meio do Estado cujo poder havia sido desviado da soberania, ou seja,
do povo. Para além de uma dicotomia entre Estado e nação no pensamento
pradiano, a nação era pensada em acordo ao que Mauss, em 1920, escreveria
acerca da nação:
“Nós entendemos por nação uma sociedade materialmente e
moralmente integrada a um poder central estável, permanente, a fronteiras
determinadas, à relativa unidade moral, mental, e cultural dos habitantes
que aderem conscientemente ao Estado e às suas leis”
98
.
96
PRADO, Fastos..., op.cit., p.73.
97
Ibid., p. 74.
98
MAUSS, Marcel. La nation. Disponível em:
http://classiques.uqac.ca/classiques/mauss_marcel/oeuvres_3/oeuvres_3_14/la_nation.html, p. 15.
No original: “Nous entendos par nation une societé matériallement et moralement integrée, à
pouvoir central stable, permanent, à frontières determinées, à relative unité morale, mentale et
culturelle des habitants qui adhèrent consciemment à l´Etat et à ses lois”.
167
No pensamento de Mauss, como no de Prado, a idéia de Estado enquanto
um poder central com fronteiras determinadas, estável em termos de leis, era
parte da nação, ao menos de uma nação soberana e auto-determinada.
Como afirma Franco de Sá, o Estado moderno assenta-se no princípio da
representação no sentido de tornar visível e presentificar um ser invisível através
de um ser publicamente presente, a representação que consiste em uma relação
indissolúvel entre ausência e presença: “aquilo que é representado é apresentado,
ou seja, é tornado presente; mas nesta sua presença, ele é tornado presente
enquanto ausente”
99
. O que é representado, portanto, não se torna presente
através de si mesmo, mas apenas por meio da presença e na própria presença do
representante que o presentifica. A idéia de Estado, do ponto de vista da
ontologia, surge ancorada em uma tradição que pressupõe a simples-presença da
representação, a totalidade abarcada pelo ser e pelo sujeito. Tal idéia, do mesmo
modo que outras a ela relacionadas, como povo e nação, aparecem em uma
sociedade representada que se constitui como sujeito político e toma consciência
de si enquanto tal, o que tende à sua auto-representação ontológica
100
. Na esteira
dessa lógica, Franco de Sá sugere que a representação e a identidade constituem
princípios sempre presentes em qualquer forma de Estado
101
.
A concepção pradiana de Estado se inseriu em uma esfera metafísica de
compreensão explicitada através da relação entre Estado, nação e sujeito. A
representatividade decorrente dessa relação não tinha outro caminho senão o
reforço da própria representação do soberano como representante daquilo que era
presente-ausente, ou seja, no caso de que tratamos aqui, a idéia de nação
brasileira e o Estado como um dos seus componentes de auto-afirmação. A crise
maior que tanto o Brasil republicano quanto as demais nações da América Latina
enfrentavam era uma crise de legitimidade, porque não havia qualquer critério de
representação entre governo e povo. O povo estava ausente na identidade política
da República. Se havia um destino manifesto do Brasil, de garantir o “futuro latino
99
SÁ, Alexandre Franco de. Metamorfose do poder. Coimbra: Ariadne, 2004, p. 25.
100
SÁ, op. cit., p. 29.
101
Ibid., p. 36.
168
da América” através da prática “da mais ampla liberdade social e política”
102
, não
seria através das instituições republicanas que ele iria fazê-lo.
Se, como vimos anteriormente, o rosto da nação brasileira estava voltado
para o “sol que nasce” e estava mais próximo da Europa do que da “maioria dos
outros países americanos”, era evidente para Eduardo Prado que tanto a América
Hispânica bem como as demais nações da América, não formavam uma
identidade nacional ou continental com o Brasil.
Uma questão até certo ponto positiva era o fato de que o autor e alguns dos
seus interlocutores, como Araripe Júnior e Manoel Bomfim, não preconizavam o
predomínio das teorias raciológicas para refletir sobre o problema da América do
Sul. Se a República era um processo histórico, não-natural, não eram o meio nem
a raça os responsáveis pela crise que assolava a América Latina, incluindo aí o
Brasil. Garantir o futuro latino da América em termos de horizonte de expectativas
era pensar o tempo futuro como aberto, cujas garantias não seriam dadas por
razões naturais como clima e raça.
Para Araripe, Bomfim e Prado, nem raça e nem meio eram fatores
preponderantes para a definição de uma civilização superior. No capítulo anterior,
compreendemos, no pensamento pradiano, que o reconhecimento de uma
ambigüidade na definição da superioridade britânica deixava margem para uma
ontologia dissidente das grandes sustentações raciológicas, climatológicas e
geográficas dos trópicos, que “nem sempre eram tropicais”
103
. A hibridização racial
entre europeus, negros e índios na América teria feito a força cultural do
americano frente à natureza. Nem a pureza racial, nem o meio eram garantias de
superioridade. O meio, pelo contrário, era inóspito, e a raça, hibridizada, era
apenas um dos fatores de enfrentamento (vitorioso) sobre o meio. A exemplo do
que faria Manuel Bomfim posteriormente, Prado não concebia o problema do
Brasil e das nações do Sul a partir das teorias raciológicas, ontologicamente em
voga na Europa e nas Américas: “a tão falada indolência meridional não passa de
102
PRADO, A aliança anglo-americana. [1896]. In: Coletâneas, vol.2…, op.cit., p. 172.
103
PRADO, Eduardo. Fragmento a propósito da viagem através dos sertões da Bahia e Minas. In:
Coletâneas, vol. 3..., op.cit., p. 173.
169
um lugar comum. A inaptidão do homem dos climas quentes para o trabalho é
uma exageração convertida em preconceito entre os homens do norte”
104
.
O que garantiria a liberdade nas Américas e no Brasil seria, acima de tudo,
a representatividade entre povo e governo, a unidade cultural, o poder central
estável e garantidor das leis, enfim, instituições políticas, culturais e econômicas
que permitiriam promover e/ou manter a dignidade nacional e a autonomia: o
autodeterminar-se enquanto sujeito histórico da civilização.
Mas a discussão sobre a autodeterminação nacional estava relacionada
com um outro exterior nacional cuja força de significação ameaçava as fronteiras
de de-finição da nação brasileira, de modo cada vez mais sistemático e que exigia
de intelectuais como Prado uma ação. Tal comunidade nacional era a América
Anglo-Saxônica: os Estados Unidos.
3.4 - A América Anglo-Saxônica: os Estados Unidos
Os Estados Unidos, no tempo de Eduardo Prado, tornaram-se, juntamente
com a Inglaterra, a principal nação da cena dis-cursiva geopolítica e econômica, o
que estimulou as polêmicas relativas ao caráter nacional brasileiro, dessa vez
marcadamente relacionadas com a idéia do que era o ser norte-americano e qual
seu papel na civilização ocidental.
A discussão acerca do desempenho dos Estados Unidos na civilização
estava na pauta permanente dos intelectuais em fins do século. Se a nação do
Norte seria partícipe ativa no Ocidente; se ela tenderia à dominação universal ou
apenas à proteção da democracia nas Américas; se sua cultura poderia alcançar,
algum dia, a civilização européia em termos de perenidade; se o seu povo era
pacífico ou violento, livre ou escravo, moralmente superior ou inferior, eram alguns
dos principais tópicos das polêmicas travadas por aqueles intelectuais que
percebiam a necessidade crescente de pensar o caráter nacional dos Estados
Unidos, para que se pudesse refletir também acerca do próprio Brasil como ser
moral autônomo.
104
PRADO, Viagens..., op. cit., p. 66.
170
Nesse sentido, talvez o principal exterior constitutivo da nação, presente de
modo permanente no pensamento de Eduardo Prado, fosse os Estados Unidos.
Seu pensamento ficou mais conhecido entre os intérpretes do Brasil como o
intelectual anti-americanista por excelência, cujo livro mais conhecido, A ilusão
americana, era um libelo agressivo contra os Estados Unidos. A idéia de escrever
sobre essa ilusão não era isolada no Brasil. Em dezembro de 1893, Joaquim
Nabuco, ao comentar o livro, disse: “A ilusão americana, o livro de Eduardo Prado,
que eu tantas vezes lhe disse que ia escrever, o que será? O meu era antes – a
perda de um continente: expus-lhe que desejava que alguém o fizesse”
105
.
Se Nabuco foi uma espécie de inspiração para Prado, ou se ambos tiveram
a idéia de atacar o americanismo simultaneamente, importa-nos menos. A
principal denúncia apresentada por Prado em A ilusão era de que a
autodeterminação nacional das nações da América Latina estava ameaçada pelo
primo loiro do Norte, que pretendia fazer da América um “espaço vital” de sua
geopolítica, sob o eufemismo de fraternidade americana, sustentada pela Doutrina
Monroe. Significava para esses escritores, como pensava Nabuco em 1893, a
perda de um continente.
Basicamente, a Doutrina Monroe, uma mensagem lida pelo presidente
norte-americano James Monroe ao Congresso estadunidense em dezembro de
1823, consistia na idéia de que a América era dos americanos e que qualquer
ameaça à soberania das jovens nações do Novo Mundo por parte dos europeus
seria uma ameaça contra os Estados Unidos. Na sua declaração, aparecia o
seguinte:
“Nos continentes americanos, na condição livre e independente
que adquiriram e conservam, não podem mais ser considerados, doravante, como
suscetíveis de colonização por nenhuma potência européia… Devemos considerar,
no entanto, como perigosa para a nossa paz e segurança qualquer tentativa da sua
parte, para estender seu sistema a qualquer parcela deste hemisfério. Não temos
interferido, nem interferiremos em assuntos das atuais colônias ou dependências
de nenhuma das potências européias. Mas, quanto aos governos que proclamaram
e têm mantido sua independência que reconhecemos, depois de séria reflexão e
por motivos justos, não poderíamos considerar senão como manifestação de
sentimentos hostis contra os Estados Unidos qualquer intervenção de alguma
105
NABUCO, Diários..., op.cit., p. 346.
171
potência européia com o propósito de oprimi-los ou de contrariar, de qualquer
modo, os seus destinos
106
.
O que estava em jogo quando os intelectuais contestavam a doutrina era a
questão da soberania, afinal, se as nações da América tivessem de recorrer ao
poder norte-americano para manter a sua independência, tal atitude seria uma
amostra de que não havia qualquer autonomia por parte delas e que a
dependência apenas havia se deslocado para o lado ocidental do Atlântico. 70
anos depois Monroe ainda era atual, fosse para enaltecê-lo, fosse para vilipendiá-
lo.
No Brasil e na América Latina, não era somente Eduardo Prado quem
percebia a ameaça monroísta. José Enrique Rodó, em Ariel, atacou a postura
expansionista do caráter norte-americano, “essa encarnação do verbo utilitário”
107
. Rodó afirmou que se imitava aquele “em cuja superioridade ou em cujo
prestígio se acredita”
108
. E criticava: “é assim que a visão de uma América
deslatinizada pela própria vontade, sem a extorsão da conquista, e regenerada
logo à imagem e semelhança do arquétipo do Norte, flutua já sobre os sonhos de
muitos sinceros interessados em nosso porvir”
109
.
Manoel Bomfim se posicionou de modo assaz crítico aos Estados Unidos,
mas através de uma postura intelectual diferente de Eduardo Prado. Bomfim,
crítico não somente da Monarquia, mas também da República, afirmou que a
proteção dos Estados Unidos já feria a autonomia nacional e que uma nação, para
ser considerada como tal, teria de ter a capacidade de se autogerir em qualquer
106
The Monroe Doutrine. In: MARTIN, Jean-Pierre, ROYOT, Daniel. Histoire et civilisation des
Étas-Unis: textes et documents commentés du XVII siècle à nos fours. Paris: Editions Fernand
Nathan, 1980, p. 99. No original: “American continents, by the free and independent condition
which they have assumed and maintain, are henceforth not to be considered as subjects for future
colonization by any European powers… We should consider any attempt on their part to extend
their system to any portion of this hemisphere as dangerous to our peace and safety. With the
existing colonies or dependencies of any European power we have not interfered and shall not
interfere. But with the government who have declared their independence and maintained it, and
whose independence we have on great consideration and on just principles, acknowledged, we
could not view any interposition for the purpose of oppressing them, or controlling in any other
manner their destiny.
107
RODÓ, op.cit, em especial o capítulo 6.
108
Ibid.
109
Ibid.
172
situação belicosa com quaisquer que fossem as outras nações em conflito, sem
qualquer demanda de proteção externa. Nas suas palavras:
“Acabaremos perdendo a nossa soberania e qualidade de povos
livres. A soberania de um povo está anulada do momento em que ele se
tem de acolher à proteção do outro. Defendendo-nos, a América do Norte
irá, fatalmente, absorvendo-nos”
110
.
É possível sugerir que havia um clima de opinião durante esse período
acerca do tema autonomia da nação. Graça Aranha, em Canaã, pôs nas vozes de
alguns dos seus personagens, o “debate diário da vida brasileira”, de “ser ou não
ser uma nação”
111
. “Os senhores falam em independência”, disse Paulo Maciel, o
Juiz Municipal, a Itapecuru, seu colega de trabalho, quando visitavam Canaã para
uma inspeção, “mas eu não a vejo. O Brasil é e tem sido sempre colônia. O nosso
regime não é livre: somos um povo protegido”
112
. Depois de discursar acerca da
falta de independência financeira, do ouro extraviado por Portugal, da fortuna
pública hipotecada e das rendas das alfândegas nas mãos dos ingleses,
perguntou: “é ou não o regime colonial com o nome disfarçado de nação livre?”
113
.
Quanto aos Estados Unidos, Maciel afirmou: “temos sobre o continente projetada
a sombra dos Estados Unidos. Isto reconheço; mas um dia, fatigados de impedir
que outros se apossem de nós, eles nos comerão, como fizeram a Cuba”
114
.
Joaquim Nabuco manteve uma disposição até certo sentido simpática aos
Estados Unidos, sobretudo depois de ocupar o cargo de embaixador em
Washington, sem deixar de exaltar a civilização européia ou mesmo de fazer
algumas objeções aos Estados Unidos
115
. Entre os simpatizantes da América
Inglesa estavam, além de Nabuco pós-1900, Araripe Júnior e o escritor carioca
Raul Pompéia.
110
BOMFIM, op. cit., p. 49.
111
ARANHA, Graça. Canaã. [1901]. Rio de Janeiro: Ediouro, [1985?], p. 87.
112
ARANHA, op.cit., p. 85.
113
Ibid., p.85.
114
Ibid., p.86.
115
Se, em 1893, Nabuco foi uma inspiração para Prado escrever A ilusão americana, a partir de
1904 até 1909, o pensamento de Nabuco mudou sensivelmente em prol de uma visão pragmática
em favor da República Brasileira e dos Estados Unidos, apesar de que, em circunstâncias
episódicas, o autor fazia críticas à República do norte. Ver, a propósito, os seus diários, já citados.
173
Araripe Júnior, antípoda de Prado, era um dos principais defensores da
doutrina: “Diz-se que a doutrina aludida é a boca de Gerionte, pela qual a América
do Norte há de engolir as nações da América do Sul”
116
. O autor, de fato, não
temia qualquer tipo de ameaça. Para ele, os Estados Unidos não encontrariam
utilidade na conquista territorial do Brasil e dos paises latino-americanos
117
.
Araripe entendia que os Estados Unidos, imersos em uma nova crença política,
não seriam imperialistas, tal como o foram Inglaterra e Alemanha. Com o ingresso
do século XX havia surgido um critério novo para as nações, contra o qual era
escusado qualquer esforço opositivo
118
. Nas suas palavras:
“Não se trata mais de ambições prepotentes, nem dessas
mesquinhas leis de equilíbrio europeu... Amanhã, o que se debaterá é o
equilíbrio dos continentes: a transformação do direito internacional, de
mediterrânico em transoceânico: o estabelecimento de princípios que
sirvam de base `a nova jornada que o mundo vai empreender sob os
auspícios de uma intercorrência industrial, de que os gregos e os romanos
não houveram sequer o pressentimento: enfim, a conquista democrática do
universo”
119
.
E a nação mais aparelhada para a efetivação de uma democracia mundial,
para o autor, eram os Estados Unidos. A recepção do americanismo no Brasil era,
para o escritor cearense, positiva, “do ponto de vista da nacionalidade”
120
. Contra
elas bradaram os elementos coloniais, retrógrados, da mascateria, ainda
profundamente ligadas aos sindicatos protegidos pelo leopardo britânico”
121
.
“Será tudo isto ilusão, como pretendia Eduardo Prado?”, perguntou
Araripe
122
. Com algum rancor, disse: “ilusão ou obstinação, ou quem sabe
diletantismo, foi o dele, escrevendo em ódio à República o seu detestável livro”
123
.
Evidentemente, Eduardo Prado não poderia responder a essa crítica,
porquanto ela foi feita um ano depois de sua morte. A ilusão americana talvez
pudesse ser uma resposta póstuma do autor. Para ele não havia sombra nem
116
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Comentários à constituição federal do Brasil. [1902-
1903]. In: Obra crítica, Vol. 4..., op.cit., p. 50-51.
117
Ibid., p. 50.
118
Ibid., p. 51.
119
Ibid., p. 51.
120
ARARIPE JÚNIOR, Americanismo..., op.cit. p. 96.
121
Ibid. p. 96.
122
Ibid., p.52.
123
Ibid., p. 52.
174
sobra para dúvidas acerca do expansionismo norte-americano. Era certo, para o
escritor paulista, de que a “bandeira estrelada é bastante grande para estender a
sua sombra gloriosa de um oceano a outro”
124
. A América para os americanos
nada mais era do que a obliteração da autonomia nacional, a diluição, por meio
das instituições emanadas da raça saxônica, daqueles valores que constituíam a
civilização política do Brasil. Democracia mundial seria um eufemismo para a
expansão sem fronteiras levada a cabo pelos Estados Unidos. E sem autonomia
nacional, não haveria nação: “haverá coisa menos digna do que um cidadão
desejar que a sua pátria não tenha a livre disposição de seus destinos?”
125
. Para
Prado, do “colosso do norte”, nada se poderia esperar, porquanto eles não
demonstravam “benevolência alguma para conosco ou para com qualquer
República latino-americana”
126
, além de ser moralmente uma influência
“perniciosa” sobre o Brasil
127
.
Mas seria prudente reduzir a visão pradiana dos Estados Unidos a essa
indelével imagem expansionista? A exemplo dos outros exteriores constitutivos,
esse não seria suscetível de sofrer mais os efeitos da transitividade do verbo ser
do que a substancialidade de sua conjugação no presente – é? Esse jogo tenso
do ser no limite da temporalidade?
Para compreendermos um pouco mais o papel que os Estados Unidos
desempenhavam na ontologia da nação no pensamento de Prado, convém
direcionarmo-nos para algumas idéias acerca do que o autor entendia ser a sua
história, onde seria possível verificar seu caráter nacional.
Havia pelo menos duas visões que não se excluíam completamente, mas
que se alternavam de modo tenso no pensamento de Eduardo Prado quando se
tratava de pensar a norte-americanidade
128
. Uma delas atribuía o problema do
violento expansionismo norte-americano e a sua inevitável decadência ao seu
124
PRADO, A ilusão..., op.cit., p. 51.
125
Ibid., p. 21.
126
Ibid., p. 185.
127
Ibid., p. 186.
128
Usamos a expressão norte-americano como sinônimo dos Estados Unidos, ciente de que a
América do Norte não se limita àquela nação. Apenas usamos essa expressão para tornar menos
repetitiva a expressão Estados Unidos e América Inglesa (que, por sua vez, não se restringe
também aos Estados Unidos, porquanto grande parte do Canadá é constituinte da América que
fala inglês e da América que fala francês).
175
governo e poupava o povo americano; a outra, pelo contrário, criava uma cadeia
identitária comum entre governo e sociedade civil na de-finição do caráter
nacional. Ainda como um desdobramento da primeira visão, havia uma ruptura
entre determinados governos, de modo que nem todos os governos americanos
eram concebidos como decadentes, mas apenas os mais recentes. Os pais
fundadores teriam sido abnegados e moralmente puros
129
.
Novamente, a construção de uma imagem nacional esbarrava na própria
diferença interna que demarcava o ser da nação. De um lado, a comunidade
identitária entre política e violência, bifurcada entre o passado de abnegação e o
presente decadente; de outro, a ausência de preocupação em determinar espacial
e temporalmente o ser, cujos atributos de estabilidade se estendiam à totalidade
da norte-americanidade na condição de uma nação essencialmente violenta e de
pouca afeição à vida do outro.
Vejamos, primeiramente, a idéia da identidade política americana. O autor,
em algumas ocasiões, reconheceu a força moral norte-americana. Nos Fastos, ao
condenar a reprodução brasileira da federação de “Estados Unidos do Brasil”, o
escritor afirmou que a República de 1889 poderia se chamar o quanto quisesse
de “Estados Unidos”, mas que somente os “Estados Unidos da América do Norte”
corresponderiam, na história, “sempre à idéia de liberdade, de dignidade e de
força moral”
130
, um país onde “a lei impera, onde se respira liberdade, onde o
povo governa”
131
.
Essas palavras poderiam surpreender autores acostumados a ver em Prado
o grande anti-americanista da Primeira República. E tal elogio não parava por aí.
Em um artigo publicado na Revista de Portugal, mas que não fez parte dos
Fastos, Prado traçou vários elogios à nação do Norte. No texto chamado Práticas
e teorias da ditadura republicana no Brasil o escritor falava que nos Estados
Unidos havia um “povo livre, no exercício dos seus direitos, cônscio da sua
129
PRADO, Ilusão..., op.cit., p. 83.
130
PRADO, Fastos..., op.cit., p. 15.
131
Ibid., p. 60.
176
liberdade
132
. O elogio estendia-se através de uma comparação entre Deodoro da
Fonseca, marechal proclamador da República Brasileira e de Washington. Este
último teria o “nome puríssimo”, cuja obra jamais poderia ser objeto de
comparação, como o haviam feito alguns republicanos brasileiros, contra os quais
Prado escrevia. Seria dizer que havia, na visão pradiana, um ambiente de pureza
dos Founding Fathers e dos primeiros presidentes norte-americanos, sobretudo de
Washington, “cuja vida política é inflexível como uma linha reta”
133
. “Esta retidão”,
complementou o autor, “ninguém a pode achar na existência pública do snr.
Deodoro”
134
.
Diferentemente do que ocorria no Brasil republicano em seu déficit de
representação entre governo e nação, o povo do tempo das colônias norte-
americanas “revoltou-se, passou pelos sacrifícios de uma guerra cruel, porque,
não tendo representantes no parlamento inglês, contestava a este o direito de lhe
lançar impostos”
135
. E a República Brasileira? Esta teria destruído “o princípio que
foi a glória e é o fundamento da República Norte-Americana”
136
.
Eis a justificativa apresentada pelo autor acerca da diferença entre Brasil e
Estados Unidos: “é que entre elas medeia mais do que um século, mais do que a
distância que vai de Boston ao Rio de Janeiro. Divide-as o imenso abismo que
separa um Washington de um Deodoro da Fonseca”
137
. E, para não se restringir
somente aos seus escritos de 1890, em A ilusão americana, Prado ainda reforçou
a idéia de que havia uma pureza nos primórdios da civilização anglo-americana:
“No último quartel do século passado, homens extraordinários, da
velha estirpe saxônia, revigorada pelo puritanismo e alguns deles
bafejados pelo filosofismo, surgiram nas treze colônias inglesas da
América do Norte. Resolveram constituir em nação independente a sua
pátria, e não lhe entrou nunca pela mente fazer proselitismo de
independência ou de forma republicana na América. Nem isso era próprio
de sua raça”
138
.
132
PRADO, Eduardo [S, Frederico de]. Práticas e teorias da ditadura republicana. Revista de
Portugal. Porto, Edições, 1890, p. 82.
133
PRADO, Práticas e teorias…, op. cit., p. 82.
134
Ibid., p. 87.
135
Ibid., p. 141.
136
Ibid., p. 141.
137
Ibid., p. 141.
138
PRADO, A ilusão..., op. cit.,p. 12.
177
Não obstante esse passado, para Eduardo Prado havia uma cessação
paulatina “do sopro heróico dos tempos da independência e da grandeza
intelectual dos estados americanos”
139
. O tempo dos federalistas, de Washington,
de Hamilton, de Clay, de Webster era diferente: “os pais da pátria americana, os
fundadores da constituição, viveram em um período histórico de pureza moral, em
tempos de patriotismo e abnegação”
140
. A República norte-americana “não teve a
sua infância corroída pela corrupção”, afirmou o autor, e “todos os vícios contra os
quais lutam hoje os patriotas, as faltas que lhe apontam os pensadores, são vícios
de hoje, faltas atuais, que se não podem justificar no exemplo dos
antepassados”
141
. Nas suas palavras:
“Não é uma simples banalidade a velha proposição de
Montesquieu de que as Repúblicas precisam ter como fundamento a
virtude. Esse foi o fundamento da República norte-americana. Será inviável
e uma fonte perene de males, qualquer outra República que não tiver o seu
berço banhado na atmosfera da virtude cívica. As sociedades políticas e as
formas de governo precisam de nascer puras para ter a vida longa e
próspera... Nunca se viu uma República nascer disforme para a vida da
violência, do crime, da discórdia, da corrupção e do erro para daí se
adiantar até à virtude, à paz, à verdade... A podridão é própria dos túmulos
e não dos berços”
142
.
Faltas e vícios atuais que abriam um novo precedente histórico sem
referências no pretérito. Se a corrupção, o crime e todos os males cometidos em
nome de uma República nova eram identificados com as “instituições novas”,
como afirmavam certos republicanos, para Prado, isso não passaria de um
falseamento da “verdade histórica”, e que o nascer das Repúblicas, “se não for
rodeado do perfume da abnegação, se não fumegarem em roda do seu berço o
incenso puro... do sacrifício e do patriotismo, não promete e não dará nunca no
futuro senão crimes e desgraças”
143
.
O berço da criação nacional estadunidense não era marcado pela
impureza. No caso da República Brasileira repetidamente comparada com a sua
congênere norte-americana, sua razão de ser era a morte, “a podridão própria dos
túmulos” que faria o ser Brasil apenas se desviar de seu berço supostamente
139
PRADO, A ilusão..., op.cit., p. 82.
140
Ibid., p. 83.
141
Ibid., p. 84.
142
Ibid., p. 83-84.
143
Ibid., p. 84.
178
puro, ou seja, o seu passado monárquico, quando o Brasil teria surgido como
nação independente e autônoma. Estranha manifestação apologética à República
para um pensador monarquista como Prado. A questão é que a forma republicana
parecia seduzir e, ao mesmo tempo, causar repulsa no autor. Como uma condição
de reforço ontológico dos fundamentos, Prado reconhecia uma superioridade dos
Estados Unidos, hipostasiada na articulação entre raça e meio, diferença que
colocava o seu Brasil em uma esfera inferior em termos ontoraciais:
“Os Estados Unidos são o país mais rico do mundo; rico pelas
opulências naturais, pela sua enorme extensão, pela fertilidade do solo,
pelos seus portos, suas baías, seus lagos, seus grandes rios navegáveis,
suas minas incomparáveis. Povoado um solo destes pela raça saxônia,
como poderia deixar este país de ser uma nação forte e poderosa? O solo
mais rico do mundo, habitado pela raça mais enérgica da espécie humana
– eis o que são os Estados Unidos. Aquele país é grande, mas não é por
causa do seu governo. Ao amor-próprio de outras nações pobres ou, por
outra, menos ricas em vantagens naturais do que os Estados Unidos e
habitadas por indivíduos de raças menos enérgicas – repugna o confessar
esta inferioridade”
144
.
Prado, ao se referir às Repúblicas e aos Estados Unidos em particular, não
reconhecia uma condição de nascimento do pior para o melhor; pelo contrário,
sua visão pressupunha a idéia de decadência. Se houvesse uma República
decadente, ela poderia ser tanto um desdobramento para o fim como também o
ser impuro e podre de um nascimento bastardo. Os Estados Unidos estavam na
primeira situação, enquanto a República Brasileira no segundo. A pureza,
outrossim, não significava perenidade, mas garantia de longevidade e
prosperidade. Quer dizer, se havia um fundamento da República Americana, ele
teria relação com o seu início, aquele mesmo princípio de virtude cívica que
condicionava a pureza e a vida longa e próspera das nações.
Esse predicados, por outro lado, não implicavam eternidade. Se havia a
distinção entre a podridão do berço – a República Brasileira – e o nascimento
limpo – os Estados Unidos –, o túmulo, por outro lado, parecia indicar que a
corrupção era o destino de tudo aquilo que não era perene. Se a podridão fosse
própria dos túmulos, não poderia a decadência presente dos Estados Unidos
significar sua aproximação à morte e, portanto, ao túmulo? Prado falava em uma
144
PRADO, op. cit., p. 170.
179
durabilidade dos governos puros, “vida longa e próspera”, mas não afirmava que
elas eram perenes e irredutíveis ao devir. Não era a “rapidez do tempo” que
impelia as gerações futuras para o “túmulo”
145
?
Nessas metáforas do fim ressoavam as vozes do devir. Tudo passava:
monarquias, impérios, repúblicas. Não havia mais perenidade, por mais que
houvesse uma exigência moral de sua parte em sustentá-la.
É possível inscrever, a partir dessas alusões, que Eduardo Prado
estabelecia um hiato temporal, uma ruptura, entre a fundação pura e patriótica dos
Estados Unidos e sua imersão contemporânea no império da finança e da
violência, apesar de que este ainda mantinha a origem racial bem como as
benesses geográficas de seu espaço como dimensões estáveis de sua realidade.
Não podemos deixar de salientar que a diferença entre o Brasil e as demais
Repúblicas residia sobretudo na sua monarquidade, o seu ser monárquico.
Desviar dessa rota foi o que fez da República Brasileira a mancha profana da
pureza natal do Brasil. Seria difícil não citar o Brasil aqui, mesmo que estejamos
tratando de um outro exterior constitutivo.
Quanto aos Estados Unidos, seu passado de glória era uma experiência
distinta daquela em que viviam seus contemporâneos. Se havia essa diferença
entre presente e passado, não se poderia atribuir ser ao seu caráter nacional,
porquanto ele seria suscetível a mudanças. O presente decadente também
poderia representar o fim, ou ao menos aquela imagem depreciativa que o autor
alimentava ao falar das Repúblicas. Portanto, não somente o problema da repulsa
e da atração se colocava na impossibilidade de uma de-finição pradiana última do
caráter nacional americano, mas também uma tensão entre o seu ser e o seu
devir. O ser, nesse sentido, se deslocaria para o expansionismo, a fonte
permanente da nação do Norte, ou ele seria, a exemplo de outros dos seus
atributos, uma dimensão apenas mutável?
Para seguir na discussão acerca do ser norte-americano e da tensão
temporal na definição da nação no pensamento de Prado, tomemos os
argumentos do autor que se tornaram mais conhecidos na tradição historiográfica
145
PRADO, Eduardo. Respondemos. [1896]. In: Coletâneas, vol. 2…, op.cit., p. 129.
180
brasileira e norte-americana e que lhe imputaram o título de anti-americanista por
excelência na Primeira República
146
.
Ao falar da relação dos Estados Unidos com a América Latina, a palavra de
Prado era uma só: ilusão. Ilusão dos países sul-americanos que se deixavam levar
pelo pan-americanismo, alguns dos quais eram tratados como colônias, incapazes
de “ser uma nação, como uma protegida e tutelada dos Estados Unidos”
147
. Seus
governos tinham não somente má fé, mas um “desprezo profundo” pela
“soberania, pela dignidade e pelos direitos das nações latinas da América”
148
. E
assim arrematou:
“Quer-nos apresentar o governo americano aos brasileiros como o
grande amigo das nações deste continente, como o seu protetor nato e, no
furor disso demonstrar, há jornais brasileiros, de tão atrofiado patriotismo,
que chegam a colocar o Brasil como que debaixo do protetorado
americano, fazendo do Rio de Janeiro o vassalo e de Washington o
suserano. É contra essa falsa idéia, contra esse esquecimento do
pundonor nacional, que queremos reagir, relembrando aos nossos
compatriotas o que tem sido a política americana”
149
.
A metáfora da suserania e da vassalagem era usada pelo autor já há algum
tempo para evidenciar a relação profundamente assimétrica e, para reforçar a
metáfora, estamental, entre Estados Unidos e América Latina, incluindo
evidentemente, no rol desses países, o Brasil
150
. Como poderia “a águia
americana consentir que à sombra das suas asas poderosas, continuasse uma
parte do livre solo americano debaixo do jugo espanhol?”
151
, perguntava o autor,
ao falar sobre a América Hispânica.
A política internacional dos Estados Unidos, próxima senão de uma
democracia mundial, como o queria Araripe Júnior, era, tal como sua ex-
metrópole, expansionista. O aumento do poder territorial norte-americano e a
destruição teriam atingido povos civilizados fora da predominância latina e anglo-
146
Ver,a respeito: SKIDMORE, Thomas. Eduardo Prado: conservative nationalist critic of the early
Brazilian Republic, 1889-1901. Luso-Brazilian Review, vol.12, n.2, p.149-161, 1975.
147
PRADO, Eduardo. Mais uma ilusão desfeita. [1896]. In: Coletâneas, vol. 2…, op.cit., p. 407-408.
148
PRADO, A ilusão..., op.cit., p. 55.
149
Ibid., p. 66.
150
Tal referência apareceu nos Fastos, quando Prado falou sobre os acordos econômicos entre os
dois sub-continentes, os quais não poderiam dar outro resultado “senão estabelecer, para sempre,
a suserania econômica e comercial dos Estados Unidos sobre toda a América”. Ver: PRADO,
Fastos..., op. cit., p. 60.
151
PRADO, A ilusão..., op.cit., p. 68.
181
saxônica. Era o caso do Havaí, no qual Prado entendia haver, antes da
“usurpação americana”, uma “raça que tem a brandura de índole própria dos
polinésios” cujo “grau de civilização lhe permitiu constituir um governo regular”
152
.
Tal conquista havia sido “uma clamorosa iniqüidade, este abuso de força” que não
encontrava justificativa senão na “egoística” política internacional
estadunidense
153
. O que Araripe chamava “a conquista democrática do universo”
não seria mais do que, para Prado, a expansão corrosiva que os Estados Unidos
levavam a cabo, em uma ânsia de dominação mais enérgica do que aquela
empregada pelos ingleses na África.
Em 1893, no mesmo ano da publicação de A ilusão americana, o historiador
Frederic Jackson Turner lançou a hipótese, por meio de um artigo publicado na
American Historical Review, de que o caráter nacional norte-americano deveria ser
compreendido a partir da idéia de um povo em constante expansão. O trabalho de
Turner – The significance of the frontier in American history – foi precursor na
definição de um dos perfis mais sedutores acerca da identidade nacional norte-
americana: a idéia de que seu caráter nacional estava profundamente relacionado
com a expansão para o Oeste e com a fronteira como uma realidade constante de
sua extensão e de sua mobilidade
154
.
A história americana teria sido, acima de tudo, a história da colonização do
Grande Oeste. Nas palavras de Turner, a existência de uma área de terra livre e o
avanço da povoação americana para o Oeste explicavam o desenvolvimento
americano, cujas peculiaridades consistiam no fato de que as necessidades de
fronteira compeliam-no a adaptar-se às mudanças decorrentes da constante
expansão, tais como aquelas mudanças que ocorriam ao “atravessar um
continente”, na “vitória da selvageria”. Em todos os povos seria possível encontrar
o desenvolvimento, embora, para o historiador, “na maior parte das nações, o
desenvolvimento ocorreu em uma área limitada”
155
, diferentemente do caso norte-
152
PRADO, A ilusão…, op.cit., p. 114.
153
Ibid, p. 114.
154
TURNER, Frederic Jackson. The significance of the frontier in American history. [1893].
Madison, Wisconsin: Silver Buckle Press, 1984.
155
TURNER, op. cit., p. 1. No original: “in the case of most nations, the development has occurred
in a limited area… But in the case of United States we have a different phenomenon”.
182
americano, onde haveria um contínuo avanço sobre as linhas de fronteira, nas
quais o desenvolvimento da sociedade era continuamente um começo repetido:
“Esse renascimento perene, esta fluidez da vida americana, essa expansão para o
Oeste com suas novas oportunidades, seu contínuo contato com a simplicidade da
sociedade primitiva, fornecem as forças dominantes do caráter americano”
156
.
A fronteira, como “linha mais rápida e efetiva de americanização”, era uma
maneira de criar cultura sobre selvageria, cujo resultado era não a “Velha Europa”,
mas um “novo produto que é americano”
157
. Quer dizer que, para o historiador, o
crescimento do nacionalismo e a evolução das instituições políticas americanas
eram dependentes do avanço da fronteira, cujo último lastro histórico seria o
“republicanismo nacional de Monroe” e a “democracia de Andrew Jackson”
158
. A
fronteira ainda fornecia um novo campo de oportunidade, fundamental para a
democracia, na medida em que se convertia em um “portão de escape da
escravidão do passado”
159
. Anos antes de Turner, Tocqueville havia percebido, na
sociedade americana, o mesmo fluxo incessante: “creio... que reina em tal tipo de
sociedade um movimento eterno e que ninguém conhece o repouso”
160
.
Não sabemos se Prado leu Turner, ou sequer se ouviu falar do historiador
norte-americano, ou mesmo o contrário. Não obstante, um conjunto de de-finições
da fronteira apresentado por Turner pode ser um indicativo razoável da
preocupação que Prado alimentava em relação aos Estados Unidos, tais como a
excessiva mobilidade, a indiferença para com a tradição e um espaço de contínua
ampliação do próprio território, qualidades depreciativas que apontavam para uma
indiferença em relação ao passado e à história. Os Estados Unidos poderiam
sugerir o que a Inglaterra era no presente – ou seja, um império – cujas fronteiras
se definiriam de modo menos preciso, mas não menos operativo, ainda mais por
156
TURNER, op.cit., p. 2. No original: “This perennial rebirth, this fluidity of American life, this
expansion westward with a new opportunities, its continuous touch with the simplicity of primitive
society, furnish the forces dominating American character”.
157
Ibid.,p. 3. No original: “little by little he transforms wilderness, but the outcome is not the old
Europe... the fact is, that here is a new product that is American”.
158
Ibid., p. 20. No original: “It was nationalizing tendency of the West that transformed the
democracy of Jefferson into the national republicanism of Monroe and the democracy of Andrew
Jackson”.
159
Ibid., p. 26. No original: “A gate of escape from the bondage of the past”.
160
TOCQUEVILLE, op. cit., p. 298.
183
se tratar de uma idéia de expansão ilimitada levada a efeito pelos seus principais
líderes.
A questão é que, se a fronteira não apresentava estabilidade externa, o
mesmo parecia acontecer em termos internos. Para Eduardo Prado, os Estados
Unidos estavam longe de ser plenamente resolvidos. Além do extermínio indígena,
dos chineses imigrantes e dos negros
161
, o problema trabalhista era
marcadamente conflituoso, tudo porque diferentemente da Europa e do Brasil, nos
Estados Unidos não se preservava mais a tradição, essa memória do passado
feita substância para reproduzir os valores da própria nação, nem se cuidava
suficientemente do trabalhador. A indústria havia estagnado devido ao excesso de
produção e da incapacidade que o governo norte-americano tinha para exportar
seus produtos
162
.
“Há quinze anos os americanos diziam que no seu país não havia
questão social, que os tumultos operários, as lutas e as crises provenientes
das dificuldades do proletariado eram males das velhas sociedades
européias, que na livre América havia espaço, luz e comida para todos os
pobres, sob o regime do trabalho”
163
.
Para o escritor, tal questão, porém, era considerada mais terrível e
ameaçadora do que na Europa, na medida em que o proletariado americano tinha
uma organização contra a sociedade que na Europa não existia
164
. O velho
continente, na sua paz armada, perceberia a hostilidade dos vizinhos, o que daria
uma “consciência de que é necessária a união para garantir a existência da
própria pátria”
165
. Nos Estados Unidos, por outro lado, a gravidade da questão
social era única no seu entendimento, porque a força de trabalho que imigrava
para lá era estrangeira, “estando ainda na primeira fase da existência do
imigrante, fase intermédia, na qual tendo-se desprendido da pátria antiga ainda
não adotou a pátria nova”
166
.
Nabuco, que tem sido elencado como um dos interlocutores de Prado,
desprezava os proletários nos Estados Unidos. Em 1877, mais de dez anos antes
161
PRADO, A Ilusão..., op.cit., p. 120-122.
162
Ibid., p. 127.
163
Ibid., p. 128.
164
Ibid., p.128.
165
Ibid., p. 128.
166
Ibid., p. 128.
184
da abolição da escravatura no Brasil, eis o que disse o abolicionista, ao viajar
pelos Estados Unidos e presenciar algumas ações de trabalhadores grevistas
naquele país: “Inimigo como sou da escravidão, eu encontro mais dignidade no
escravo do que nessa espécie de homem livre, que principia por se libertar dos
melhores sentimentos humanos”
167
.
Por mais que a pobreza fosse um problema permanente, “tão antigo quanto
o mundo”
168
, havia soluções, mesmo que momentâneas, para sua resolução. Uma
delas seria o cristianismo, que “acalmou as revoltas da miséria humana quando
exacerbada pela pobreza, prometendo o céu e a felicidade futura e fazendo do
próprio sofrimento um título à ventura eterna”
169
.
Além da ausência de pátria, o entre-lugar das pátrias do qual falava Prado
gerava uma desenraizamento e desprendimento no imigrante, a ausência daquele
elo fundamental para garantir a unidade – ou o ser – da nação. Seria uma espécie
de mais-valia da desagregação, interstício que marcava a indecidibilidade do
caráter do imigrante e da própria nação que o acolhia.
Ademais, o espírito moderno tinha sido bem-sucedido na supressão da
escravidão, mas deixou, ao mesmo tempo, “de falar no céu”
170
. Diferentemente,
as Monarquias européias tinham essa preocupação social, os “incentivos morais”
do qual os trabalhadores estavam libertos na América
171
.
Com a problematização dos Estados Unidos como República voltamos à
tematização da busca de uma estabilidade, de um fundamento que pudesse servir
como forma de pensar o próprio Brasil. O suplemento republicano, dentro e fora
do Brasil, estava fadado se não a se destruir absolutamente, ao menos a ser
transitório, afinal, “na República tudo é transitório”
172
. Para retomar a metáfora
tumular, a podridão também poderia ser própria do efêmero, do transitório e de
todas aquelas modalidades de instituição social que não tinham qualquer
enraizamento. Os Estados Unidos pareciam ser esse caso.
167
NABUCO, Diários..., op.cit., p. 175.
168
PRADO, op.cit., p. 129.
169
Ibid, p. 129.
170
Ibid., p. 129.
171
Ibid., p.130.
172
Ibid., p.130.
185
Uma questão que sobra, porém, é: se o próprio governo estadunidense era,
na sua maior parte o responsável pelas mazelas nacionais e internacionais
cometidas pelos norte-americanos, em que medida a totalidade do ser norte-
americano estaria apreendida nessa de-finição de sua postura política? Não eram
os Estados Unidos uma “raça estranha, sem raízes nem antecedentes históricos
entre nós”
173
? Se apenas uma parte do ser norte-americano estava relacionada
com a decadência, com a morte e com o fim, o que dizer da totalidade dos
Estados Unidos, o ser da nação em termos totais, de modo que pudéssemos
precisar o eu e o outro nesse dis-curso? Expansionismo, violência, brutalidade,
desrespeito eram apenas predicados dos governos norte-americanos decadentes,
ou eles se estendiam ao ser da nação?
Com as considerações iniciais acerca dos pais fundadores, bem como a
referência constante às forças políticas governamentais – em que pese a
representatividade política da República americana –, talvez fosse anômalo
falarmos em um ser nacional na sua totalidade, quando o autor tratou de pensar
os Estados Unidos. Não obstante, na própria obra A ilusão americana, tão
carregada dessas ambivalências entre repulsa e atratividade, o ser americano do
norte era hostilizado pelo escritor. Vejamos algumas dessas situações em que era
não apenas a ação governamental, mas a determinação nacional dos Estados
Unidos o imperativo de ação e o componente metafísico do ser.
Eduardo Prado refutou a idéia de que houvesse uma superioridade norte-
americana em relação ao Brasil – e aqui não somente à República, mas uma
diferenciação substancial, em que estariam envolvidos os próprios eus nacionais
em seu âmago – ao atribuir aos Estados Unidos certas qualidades negativas,
como a violência física.
Se em um determinado momento os males dos Estados Unidos estavam
subordinados a uma República desvirtuada de seus princípios puritanos, em outro,
o autor assumiu a República como a essência do ser norte-americano,
homologada nas propriedades da violência. Prado escreveu sobre a maneira
173
PRADO, Eduardo. A crítica republicana..., op.cit., p. 56.
186
como Brasil e Estados Unidos lidaram com a escravidão, comparação que serviu
para o autor de-limitar as fronteiras entre as duas nações. Eis suas palavras:
“Cada forma de governo tem a sua tendência, e tem o seu modo
peculiar de resolver os sucessivos problemas da história nacional.
Tomemos, por exemplo, os Estados Unidos e o Brasil, ambos em frente do
mesmo problema: a abolição da escravatura. Tiveram os Estados Unidos a
sua solução genuinamente republicana e norte-americana, isto é, a
solução pela violência, pela força, pelo grande fragor da guerra fratricida.
Teve o Brasil uma solução genuinamente brasileira e monárquica, a
solução que todos vimos, solução que excedeu os sonhos dos mais
otimistas humanitários. Porventura deveremos envergonhar-nos da
solução que soubemos e pudemos dar ao problema e sentir o não termos
imitado os Estados Unidos também nesse ponto?”
174
.
Parecia estar vingada a atribuição de uma suposta superioridade dos
Estados Unidos, como se aquele reconhecimento da superioridade voltasse
canalizado para uma outra esfera, que constituiria efetivamente o ser nacional
ianque, estabelecendo uma fronteira intransponível entre o “eles” do “nós”. Afinal,
a solução para a escravidão nos Estados Unidos era uma solução genuinamente
republicana e norte-americana, contraposta à solução genuinamente brasileira e
monárquica. O autor ainda reforçou a idéia de uma essência norte-americana
consubstanciada na violência ao narrar a história de uma pequena colônia anglo-
americana estabelecida no Brasil após a Guerra de Secessão nos Estados Unidos
que, aproveitando-se da escravidão ainda vigente nos trópicos, havia excedido
“em ferocidade aos mais rudes e perversos atormentadores de escravos”
175
.
Os Estados Unidos seriam um exemplo desmoralizador para o mundo,
dado o seu apego à escravidão:
“Enquanto no Brasil não houve escravocratas que tivessem o
cinismo de querer legitimar a iníqua instituição, nos Estados Unidos, onde
os senhores de escravos foram muito mais cruéis que no Brasil,
publicaram-se livros, sermões, com a apologia científica e até religiosa da
escravidão, e chegou o momento em que metade do país julgou que, para
conservar e estender a escravidão, valia a pena sacrificar a própria pátria
americana. O escravismo sobrepujou o patriotismo. E rompeu a guerra civil
mais terrível e mais sangrenta de que reza a história”
176
.
174
PRADO, A ilusão..., op. cit., p. 131-132.
175
Ibid., p. 174.
176
Ibid., p. 32.
187
Nessas linhas de comparação, Prado reconhecia a violência do escravismo
no Brasil. Em que pese esse vazamento do interior constitutivo Brasil, Os
exemplos da violência norte-americana eram múltiplos e mais graves, como no
México, na Guatemala, no Peru, no Panamá, onde os americanos “exerciam
diariamente a sua brutalidade contra os pobres habitantes, desgraçados south
Americans destinados a sucumbir ao contato do ianque”
177
.
E não era somente na América Latina que se encontravam as vítimas do
ser americano: “os pobres chineses são linchados nos Estados Unidos sem
nenhuma forma de processo, sendo até às vezes queimados vivos”
178
. Ainda
referindo-se aos Estados Unidos, o ontólogo da nação afirmou que a civilização
não era mensurada pelo aperfeiçoamento material, mas sim pelos seus níveis de
elevação moral. Eduardo Prado entendia que o “verdadeiro termômetro da
civilização de um povo é o respeito que ele tem pela vida humana e pela
liberdade. Ora, os americanos têm pouco respeito pela vida humana. Não
respeitam a vida de outrem e nem a própria”
179
. O autor ainda acrescentou:
“A vida de outrem é cousa de pouca consideração nos Estados
Unidos. Os tribunais regulares matam juridicamente com freqüência, os
assassinatos criminosos são vulgaríssimos, e os linchamentos crescem em
número todos os dias. Tudo isto são formas acentuadas de desprezo pela
vida humana”
180
.
Convém determo-nos um pouco mais nessa citação. Havia pelo menos
quatro premissas e uma conclusão decorrente delas: 1) a vida do outro como
cousa de pouca consideração; 2) a regularidade das mortes juridicamente
endossadas; 3) a vulgaridade dos assassinatos criminosos e, por fim, 4) o
crescimento dos linchamentos. Como conclusão, para Prado, os Estados Unidos,
desprezavam a vida humana. Sugere-se desses enunciados predicativos que as
fronteiras entre a justiça e o crime eram tão tênues que a violência que levava à
morte era comum no meio popular, no sistema judiciário e na totalidade do povo.
Se as instituições norte-americanas tinham tradição em sua própria raça, seria
177
PRADO, op.cit., p. 70.
178
Ibid., p. 122.
179
Ibid., p. 173.
180
Ibid., p. 173-174.
188
evidente, para o autor, que as instituições públicas emanariam da totalidade do ser
nacional.
Tocqueville, em seu clássico A democracia na América, escrito nos anos 30
do século XIX, também deixou seu registro acerca da violência na sociedade
norte-americana, em especial nos estados do sudoeste, onde “os cidadãos fazem
quase sempre justiça pelas próprias mãos, e os assassinatos se multiplicam
incessantemente”
181
. O autor, simultaneamente seduzido e preocupado com
alguns rumos da democracia norte-americana, não deixou de manter uma postura
crítica ao ver na “extrema liberdade reinante”, o pouco de garantia encontrado
contra a tirania
182
.
Já em 1886, na sua viagem para Nova Iorque, Prado não foi muito afetuoso
em relação aos norte-americanos, ao falar de um modo geral acerca do seu
comportamento: “decididamente, não há crianças mais intoleráveis do que as
americanas... Nos americanos começa cedo a má-educação e, uma vez
crescidos, não desmentem o que foram em pequenos”
183
. O que poderia
evidenciar maior estabilidade do que a realidade dada de uma vez por todas, a
identidade da infância à fase adulta como metonímia da própria identidade
nacional?
O que se apresentava para Prado em termos de exterior constitutivo da
nação brasileira era a mais pura forma de violência, o desprezo pela vida humana
na sua totalidade: “o espírito americano é um espírito de violência”
184
. Havia,
inclusive, como uma forma de salientar a desumanidade norte-americana, ou a
sua predominância natural em relação à cultura, uma espécie de periodização
natureza-cultura estabelecida por Prado, que evocava os Estados Unidos na fase
primordial de desenvolvimento:
“O período de desbravamento da terra, da derrubada das matas,
do estabelecimento das primeiras culturas é, no interior e nas localidades
novas, a idade do capanga; o escrivão, o promotor, o juiz, que vêm depois,
expelem e eliminam o capanga. É a lei que substitui a violência. O espírito
181
TOCQUEVILLE, op.cit., p. 233
182
Ibid., p. 240.
183
PRADO, Viagens..., op.cit., p. 190.
184
PRADO, A ilusão..., op.cit., p. 175.
189
americano, infundido nas populações, é antes favorável ao capanga do
que à gente do foro”
185
.
O americano era o “estrangeiro cujo prestígio é sempre grande”, o
“homem de cabelo louro e de olhos azuis sempre acatado pelos nossos negróides,
influindo em favor da violência, nobilitando-a pela sua prepotência”
186
. Por fim:
“O americano, mesclado com as camadas inferiores da população
rural, não é um fator de progresso. Ele age sobre o meio e o meio reage
sobre ele, havendo uma comunicação recíproca de defeitos que afoga as
qualidades de ambos. Uma ou outra enxada aperfeiçoada que o americano
traz, algum canivete de molas engenhoso, que ele introduz na ferramenta
nacional, não são benefícios que compensem os males que ele nos faz”
187
.
A miscibilidade do americano com o homem rural era uma inversão da
própria idéia de civilização. No Brasil, o desenvolvimento havia sido decorrente
das somas das forças raciais do branco com o índio e, até certo ponto com o
negro, que se sobrepuseram virilmente à natureza. Norte-americanizar tal mescla
seria caminhar para a decadência, a despeito de qualquer tecnologia implantada
pelos americanos em terras tropicais. O resultado seria sempre, para o escritor,
pernicioso.
Nenhum dos outros exteriores constitutivos da nação tinha essa reputação:
o império sem limites da Inglaterra, a Espanha de Loyola até o seu declínio, o
Portugal decadente, mas construtor de nações e mesmo as nações sul-
americanas que ainda prezavam pela vida humana estavam, para usar a
cronologia do autor, na idade do foro – a despeito de seus governos militares. Em
termos de ser, o que os Estados Unidos poderiam acrescentar à identidade
nacional a não ser a forma expansiva do devir-violência e prolongar a idade do
capanga?
República pura, pais fundadores abnegados politicamente... Tudo havia
sido corroído pela passagem do tempo, pela própria corrosão da realidade norte-
americana onde não havia ideais e o tempo voava
188
. A espera futura era mais
angústia do fim do que propriamente otimismo do progresso. Podemos aventar
que havia, na nação do norte, quatro ritmos temporais que demarcavam a nação:
185
PRADO, op.cit., p. 175.
186
Ibid., p. 175.
187
Ibid., p. 175.
188
NABUCO, Diários..., op.cit., p. 168.
190
a ruptura entre passado e presente na definição dos pais fundadores, a repetição
e, portanto, a perenidade da violência regular, o progresso que os levava a serem
a grande nação da América, e a inevitável decadência decorrente do seu
expansionismo. Longe de se definir como uma presença estável, os Estados
Unidos eram a presentificação da desagregação e da fragmentação nacionais,
individualismo que poderia criar “guerras individuais como as da Idade Média”
189
.
Desse modo, perguntamos: onde estava a superioridade americana,
afirmada pelo próprio intérprete em outro momento? Prado reconhecia uma força
material significativa dos Estados Unidos, talvez insuperável, mas não era esse
seu padrão civilizacional, a estabilidade ontológica apreciada por ele. Para o
escritor, o espírito americano era um espírito de violência; o espírito latino,
transmitido aos brasileiros, era, como já vimos, um espírito jurídico bacharelesco,
mas que conservava sempre o respeito pela vida humana e pela liberdade.
Se o espírito brasileiro era marcadamente pacifista e zeloso da tradição,
diferente da violência norte-americana e republicana, chegaríamos ao que poderia
ser o núcleo duro, o cerne da ontologia relacional de de-finição da nação no
pensamento pradiano: sua substância, seu interior constitutivo, o Brasil efetivo que
pairava além de toda a ameaça terminal. Mas, em se tratando de um dis-curso,
era a pacificidade o cerne do Brasil, sua brasilidade? É para a interpretação desta
modalidade ontológica da temporalidade que nos encaminhamos a seguir, com
toda a transitividade constitutiva da nação.
189
PRADO, op.cit., p.140.
191
CAPÍTULO 4: O BRASIL E A IDENTIDADE NACIONAL EM DE-
CISÃO
4.1 – Preâmbulo
Quando o pensamento sobre a nação se desenvolveu de modo mais
sistemático, nos séculos XVIII e sobretudo XIX, havia uma configuração intelectual
que o modelava, sobretudo a idéia de que a nação estava ancorada e repousava
em uma tradição imemorial, era idênticas a si mesma, eterna, auto-determinada e
auto-compreensiva. Heinrich von Treitschke, historiador nacionalista alemão, de
meados do século XIX, entendia que o patriotismo genuíno era a consciência de
cooperação com o corpo político, o enraizamento nas realizações ancestrais
comuns e a sua transmissão aos descendentes da nação
1
. Varnhagen,
contemporâneo de Treitschke, pensava de modo similar, ao se referir ao Brasil e
ao “povo-nação brasileiro” como uma substância que existia havia séculos
2
.
Do mesmo modo, em 1839, em um dos discursos inaugurais do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, a relação da ontologia nacional com a
temporalidade foi apresentada de modo claro pelo primeiro secretário perpétuo do
Instituto, Januário da Cunha Barbosa. Nas suas palavras, o principal objetivo da
associação era “eternizar pela história os fatos memoráveis da pátria, salvando-os
da voragem dos tempos”
3
. Tal relação aparecia de forma recorrente em seu texto,
por meio de expressões como “salvar da obscuridade a memória”, “os prejuízos do
tempo”, “rasgos históricos que, dispersos, escapam à voragem do tempo”
4
,
1
TREITSCHKE, Heinrich von apud ÖZKIRIMLI, Umut. Theories of nationalism. New York: St.
Martin’s Press, 2000, p. 23.
2
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Ensaio histórico sobre as letras no Brasil. disponível em:
<
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01361686455682402190802/index.htm.
>Acesso em 05 de fevereiro de 2006. A respeito do pensamento de Varnhagen, ver: CEZAR,
Temístocles. O poeta e o historiador. Southey e Varnhagen e a experiência historiográfica no Brasil
do século XIX. História. São Leopoldo, 11(3), p. 306-312, 2007.
3
BARBOSA, Januário da Cunha. Discurso. [1839]. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
do Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, Tomo 1, 1908, p. 9.
4
BARBOSA, op. cit., p. 10-13.
salientando a ameaça do devir em relação ao projeto que o Instituto havia
proposto: “o corpo da história geral brasileira”
5
.
Treitschke, Varnhagen e Barbosa exprimiram algumas características do
pensamento nacionalista
6
: a idéia de comunidade, bem como de enraizamento e a
transmissão de um legado da memória que consubstanciava passado-presente-
futuro indicavam uma ontologia da nação. Homogeneização, unidade, substância,
identidade e a-historicidade caminhavam na mesma direção. Esses autores, na
medida em que tinham como pretensão “salvar” memórias, não estavam
subtraídos do pensamento acerca do tempo que acompanhou parte importante do
pensamento que se fez moderno ocidental.
Quando o pensamento da nação se desenvolveu sistematicamente, a um
modelo de ontologia ocidental estava assentado. Sua qualidade precípua se
firmava em uma teoria do ser enquanto fundamento metafísico de toda a realidade
e na idéia de um ser idêntico-a-si-mesmo para além das diferenças temporais,
espaciais e aparentes.
Entendemos que sem esse projeto, profundamente ancorado em um
movimento de identidade que acompanhou o pensamento ocidental desde os
tempos mais remotos
7
, não haveria a possibilidade de construção das identidades,
em especial, das identidades nacionais. É claro que, como estamos tentando
demonstrar pontualmente, a ontologização das identidades – se é que há qualquer
identidade sem ontologia – não poderia deixar de se relacionar de maneira tensa
com a temporalidade. Somente pode existir identidade se há um rastro de
convergência, um referencial de lembrança que se sedimenta frente à corrosão do
devir.
Nesse sentido, quando Eduardo Prado falou sobre a civilização brasileira e
os rumos da história que ameaçavam a sua existência, havia, em seu
pensamento, uma idéia de filosofia da história como totalidade. É nessa totalidade
5
BARBOSA, op.cit., p. 16.
6
Usamos a expressão nacionalista não somente no sentido adjetivo, mas também substantivo, na
medida em que tal expressão define qualquer forma de cultura de adesão a um certo sentimento
comum de pertencimento em nível nacional, independentemente de sua escala no nível
sentimental.
7
SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade e desagregação: sobre as fronteiras do pensamento e
suas alternativas. Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 17.
193
da nação que Prado situou o Brasil, as Américas, a Europa, seus sujeitos
nacionais e todos aqueles problemas políticos, culturais, econômicos e morais que
ele investigou em torno da ameaça do fim e da desagregação, mas também da
esperança em uma nova sociedade cujo ser tinha precedentes no passado.
Prado concentrou grande parte de seus esforços intelectuais para pensar
esse problema, o que significa dizer que era a existência nacional do Brasil, a sua
civilização no tempo, o resíduo de cultura que se sobrepunha ao devir o que
estava em decisão, ou seja, uma temporalidade que implicava rapidez e opção,
mas também de-cisão, dada a real possibilidade da desconstituição ontológica do
Brasil – a sua cisão.
É para essas escolhas e indeterminações em torno do Brasil que
direcionamos esse capítulo final. Como foi possível perceber, ao longo da tese, ele
já havia sido, de certo modo, prenunciado, na medida em que o ser do Brasil era
algo que estava em decisão já quando falávamos em Europa e em América. As
fronteiras entre o exterior e o interior, entre o ser e o devir, entre o transitivo e o
constitutivo estavam todas inter-relacionadas a esse ser-nação que o autor
pretendia sustentar: o Brasil.
O capítulo foi dividido em duas partes: na primeira, enfocamos o Brasil
efêmero no pensamento de Prado, aquele Brasil que supostamente, seria apenas
um momento do Brasil efetivo, o que inevitavelmente implica uma certa repetição
predicativa do que o autor pensava em relação às Américas Hispânicas, com o
agravante de que se tratava, agora, do Brasil, portanto, de uma conversão do
exterior em interior – se é que faria algum sentido definir a República como interior
ao ser brasileiro pensado por Prado. A interioridade da nação na sua efemeridade
tinha como qualidades principais o bacharelismo, o positivismo, o militarismo, o
ateísmo e o individualismo; na segunda parte, chegamos à constitutividade interior
do Brasil, historicidade de seu próprio ser, o repouso do tempo que mantinha em
seu interior o seu ser.
194
4.2 – A vela de barco em retalhos: a República Brasileira como interior
transitivo da nação
Platão, em seu diálogo intitulado Parmênides, fez um estudo acerca do ser
e do não-ser, a partir dos poemas de seu antecessor pré-socrático, que inspirou o
nome do diálogo. Sua obsessão era pensar o movimento de totalidade que
reduzia a diferença ao mesmo. O uno e idêntico formavam um único caráter, uma
unidade presente como um todo nas múltiplas coisas, tal como “estender uma vela
de barco sobre muitos homens”
8
. Tal metáfora expressava a idéia de identidade
na condição de algo que anulava a diferença dentro de um todo ou a convertia em
unidade, algo sempre presente em todas as coisas como sua realidade
constitutiva.
A civilização brasileira concebida por Eduardo Prado seria parte de uma
unidade que teria atingido o seu sucesso civilizacional ao longo de 65 anos,
interrompidos pelo não-ser republicano. A vela de barco em retalhos nada mais
seria do que essa tradição feita em pedaços pela ascensão da República. No que
efetivamente consistia esse timbre do não-ser, em termos de Brasil? Quais eram
as principais qualidades da República Brasileira que ameaçavam derruir todos os
fundamentos da nação?
Em 1889, havia sido cometido no Brasil, o mesmo “grande erro” em que os
hispano-americanos tinham caído no primeiro quarto do século, “quando
artificialmente se quis impor ao Brasil a fórmula norte-americana”
9
. A perda da
liberdade foi “a conseqüência imediata, fatal, da desgraçada idéia”, a tomada de
parte em uma fastidiosa e desalentadora tarefa em que há 90 anos viviam os
hispano-americanos, “a longa, vã, tormentosa, sangrenta e já degradante e inútil
tentativa, quase secular, de querer implantar na América Latina as instituições de
uma raça estranha”
10
. Essas foram as palavras que Prado reproduziu em sua obra
A ilusão americana, de modo sistemático. Que a republicanização do Brasil havia
8
PLATÃO. Parménides. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 60-61.
9
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. [1893]. São Paulo: Brasiliense, 1961, p. 46.
10
PRADO, op. cit., p. 46.
195
trazido decadência para as instituições, disso não havia dúvida, a julgar pelo que
Prado escreveu.
O conjunto da República, a exemplo de suas co-irmãs americanas,
significava no ser do Brasil apenas o momento transitório de uma passagem que
deveria ser esquecida e eliminada da memória da nação, para o restabelecimento
do futuro – como esperança – feito em pedaços.
Bacharelismo, militarismo, positivismo, ateísmo, anarquismo, individualismo
e fragmentação foram palavras que apareceram ao longo da tese como razões
que levaram o escritor a contestar radicalmente a idéia de República como um
todo, sempre tendo em vista o particular Brasil. Inevitavelmente, esses conceitos
reaparecem aqui. O que se impõe investigar, a partir de agora, é como essas
qualidades republicanas apareciam na demarcação ontológica do Brasil e como
elas se relacionavam com o que o intérprete entendia ser o Brasil efetivo – o
núcleo duro de sua identidade.
4.2.1 – O bacharelismo e militarismo
Primeiramente, a questão do bacharelismo. O que era o bacharel? Talvez
dois conceitos pudessem resumir um pouco sua conceptualização: a cultura
livresca e a falta de observação da realidade.
Manoel Bomfim entendia que o parasitismo dispensava o indivíduo de
progredir, imobilizando-o e tornando-o incompatível para o progresso porque lhe
anulava a faculdade de observação e o subtraia à influência de transformar
constantemente as coisas
11
. Os dirigentes das nações, em toda a América e no
Brasil, não eram observadores, pois em vez de se reportarem “às necessidades
reais da nação, nelas inspirar-se, vivem fora dos fatos, não sabem vê-los...
raciocinam a grandes alturas... e perdem de vista as condições em que os fatos se
passam”
12
. Por fim, assim concluiu o autor:
11
BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. [1905]. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005,
p. 186.
12
BOMFIM, op. cit., p. 187.
196
“É noção que ainda não entrou no animo das gentes letradas deste
continente – que é possível aprender fora dos livros. Para esta classe,
como para todo o mundo, aqui, a ciência se reduz à leitura; as
competências medem-se pelas bibliotecas, traduzem-se por discursos, e
afirmam-se pela erudição”
13
.
Eça de Queiroz, sempre mordaz em suas apreciações literárias, percebeu,
a exemplo de Bomfim, o bacharelismo brasileiro. Na avaliação do bacharel, pouco
o pensamento de Eça destoava daquele preconizado pelo escritor sergipano. Em
uma carta dirigida a Eduardo Prado, Eça procurava falar de um Brasil autêntico
que havia se esfacelado e do qual somente havia sobrado doutores. “Bem cedo”,
disse Eça, “do Brasil, do generoso e velho Brasil, nada restou: nem sequer
brasileiros, porque só havia doutores – o que são entidades diferentes”
14
.
Para o escritor português, a nação inteira havia se doutorado: “do norte ao
sul, no Brasil, não há, não encontrei senão doutores!”
15
. E seguia:
“Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de
funções! Doutores, com uma espada, comandando soldados; doutores,
com uma carteira, fundando bancos; doutores, com uma sonda,
capitaneando navios; doutores, com um apito, dirigindo a polícia; doutores,
com uma lira, soltando carmes; doutores, com um prumo, construindo
edifícios; doutores, com balanças, ministrando drogas; doutores, sem coisa
alguma, governando o Estado! Todos doutores... Uma tão
desproporcionada legião de doutores envolve todo o Brasil numa
atmosfera de doutorice”
16
.
A extensão de doutores pelo Brasil era um indício do quanto, para esses
escritores, o bacharel havia suplantado a nacionalidade brasileira. Para dar lugar
ao quê? A doutorice era o desatender as realidades, “tudo conceber a priori e
querer organizar e reger o mundo pelas regras dos compêndios!”
17
. Em uma
palavra: o hiato entre a palavra e a coisa.
Crítico contumaz dos bacharéis, sobretudo daqueles de espada, não havia
no pensamento de Eduardo Prado diferença em termos de idéias se comparadas
àquelas sustentadas por Bomfim e por seu amigo Eça de Queiroz.
13
BOMFIM, op.cit., p. 189.
14
QUEIROZ, Eça. Carta a Eduardo Prado. [1888]. In: Eça de Queiroz/Júlio Pomar. São Caetano
do Sul: Atelier Editorial, 1996, p. 20.
15
QUEIROZ, op. cit., p. 21.
16
Ibid., p. 21.
17
Ibid., p.22.
197
Foram os Fastos da ditadura militar no Brasil que inauguraram, de modo
mais sistemático, a crítica que o autor fez ao bacharelismo. Desde então, tal crítica
tornou-se uma constante de seu pensamento contra a República Brasileira.
Contudo, antes dos Fastos, Prado deu o toque das suas convicções acerca dos
bacharéis. Para ele, o bacharel era um desclassificado, “quase sempre verboso,
sabendo mais ou menos algumas regras abstratas, ignorando o resto, pobre, sem
educação e de má saúde”
18
. De um modo geral, na classe dos políticos era
percebida com mais intensidade a presença dos bacharéis, profissão que
significava apenas “a arte de ganhar eleições e de obter empregos”
19
. Nesse
sentido, ele era o sinônimo do político sem representação, daquele que falava em
nome do povo sem que fosse escolhido pelo povo para ser o seu representante
20
.
Diferentemente do homem público do Império, em que a importância política e a
simples notoriedade “não eram obtidas facilmente”
21
– o que importava uma
extensão de duração pouco conhecida dos bacharéis, nos tempos republicanos –
o homem público era aquele que, atrás de reconhecimento imediato, pouca
atenção dava para o concurso do tempo na condição de durabilidade. Como
assinalou Nabuco em uma ocasião, os modismos da ciência e do saber, com seus
sistemas vazios, levavam a uma “erudição in vacuo
22
.
O problema da cultura bacharelesca era acima de tudo, sua aparência e
seu desprendimento da realidade. Ora, entre os diversos outros do ser, não era a
aparência uma das ameaças à perpetuação do ser brasileiro no pensamento
pradiano? Vejamos, por exemplo, o que Eduardo Prado escreveu acerca da
formação intelectual nos tempos da Companhia de Jesus e como ela era feita em
seu presente: “naquele tempo, não se aprendia a prazo fixo, como em nossos
dias, em que são precisos e marcados por lei tantos anos e tantos meses para se
fazer um médico, tantos outros para se fazer um jurisconsulto”
23
. “Estudava-se
18
PRADO, Eduardo. Destinos políticos do Brasil. Revista de Portugal, Porto, Vol.1, 1889, p. 471.
19
PRADO, op. cit., p. 471.
20
Ibid., p.475-476.
21
PRADO, Eduardo. Moreira de Barros. [1896]. Coletâneas. São Paulo: Escola Tipográfica
Salesiana, 1904, vol.. 2, p. 282.
22
NABUCO, Joaquim. Diários (1873-1910). Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2006, p. 348.
23
PRADO, Conferência. In: Coletâneas, vol.4…, op.cit., p. 38.
198
nas universidades”, continuou o autor, “e enquanto havia vontade, estudava-se
indefinidamente”
24
.
Nostálgico de um tempo extensivo perdido, Prado via no bacharel o
exemplo da formação intelectual decadente. Nesse sentido, República e
bacharelismo se encontravam na mesma senda temporal da transitoriedade, onde
a aparência se consubstanciava com o nada e com o devir. A organização política
republicana era artificial, se comparada ao “verdadeiro fundo do brasileiro”
25
.
Havia, entre eles – tanto republicanos quanto bacharéis – o que Prado
sarcasticamente denominou agoramania
26
, o desejo intenso de se manifestar em
praças públicas e falar de qualquer assunto que pudesse ter uma implicação no
Brasil. Qualquer acontecimento desgraçado serviria de furor para o exibicionismo,
ou seja, para a aparência
27
.
Curioso notar que não eram somente os detratores da República que
repudiavam o bacharelismo. O médico positivista Luis Pereira Barreto falava, em
1874, portanto, mais de 15 anos antes da publicação dos Fastos, de dois males do
Brasil: um deles, a Igreja Católica; o outro, a Academia. Para ele, o “organismo
social brasileiro, já enfermo”, tinha diplomas acadêmicos em demasia, “que nada
representam a não ser uma vaidade sem limites e estreitíssimos títulos à
confiança pública”
28
, e concluía: “já estamos fartos de diplomas, e o que
precisamos hoje, é menos ouropel na frase e mais positividade de método na
doutrina”
29
.
Entre os militares, havia, do mesmo modo, os bacharéis discursadores,
“filosofantes do positivismo”, que se abacharelaram, nas palavras de Prado, pelo
próprio Imperador Dom Pedro II. A ocupação do Imperador com as ciências “não
fez senão abacharelar o oficial do exército”
30
. Nas suas palavras:
24
PRADO, op.cit., p. 38.
25
PRADO, Eduardo [S., Frederico de]. Fastos da ditadura militar no Brasil. [1890]. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 18.
26
PRADO, op. cit., p. 18.
27
Ibid., p. 18.
28
BARRETO, Luis Pereira. As três filosofias. [1874]. In: Obras filosóficas de Luis Pereira
Barreto. São Paulo: Grijalbo, 1967, vol. 1, p. 133.
29
BARRETO, op. cit., p. 133.
30
PRADO, op. cit., p. 26.
199
“O resultado seria outro se o governo olhasse para as escolas do
exército, se mantivesse na Europa constantes missões militares, se
promovesse o bem-estar, a boa educação, o conforto... Ao sair da escola,
o jovem oficial nada disso encontrava, nem recebia do governo nada que
concorresse a completar-lhe a educação... Daí a razão de muitas aptidões
se desviarem da carreira das armas, daí o falseamento do espírito militar.
Muitos oficiais brasileiros são apenas bacharéis de espada”
31
.
O fato de abacharelar o Exército implicava uma preocupação maior desses
homens com os seus títulos – na sua maior parte conquistados de modo imediato
– do que em relação às suas patentes militares. Novamente, era o imediatismo da
aparência que Prado denunciava.
Os bacharéis de espada, como ele se referiu aos militaristas, também
estavam no rol do não-ser do Brasil. No caso dos militares e dos bacharéis, a idéia
era uma só: esterilidade e falta de substância, ou, nas suas palavras, “sob a
espada virgem, um livro em branco”
32
.
O militarismo, tal como se desenvolvera na América Latina e no Brasil já foi
analisado no capítulo anterior, mas isso não implica que não possamos tecer
algumas palavras acerca de suas especificidades no Brasil. Para o escritor, o que
vinha a ser o militarismo? O militarismo político, aquele que grassava no Brasil,
era um “indício do atraso da civilização”. Mas por qual razão?
Porque ele era o desenvolvimento contrário dos meios de defesa externa
de um país, a constituição “de um exército nacional, estranho à política e
destinado a garantir diante das agressões exteriores e internas a existência, os
interesses e a dignidade da pátria”
33
. Prado definia o militarismo político como
arbitrário, despótico, agitado e destruidor
34
. No caso brasileiro, o exército, em vez
de guarnecer as fronteiras da nação, simplesmente a fechava para garantir o que
se entendia como a ordem. O militarismo era ruinoso e, se não tivesse por fim
defender a pátria contra o estrangeiro, ele somente visaria à “conservação de uma
tirania proveitosa”, o mais desmoralizador dos regimes
35
. Uma civilização poderia
31
PRADO, Fastos..., op.cit., p. 26.
32
Ibid., p. 108.
33
PRADO, Eduardo [S. Frederico de]. Práticas e teorias da ditadura republicana no Brasil. Revista
de Portugal, Porto, vol.2, 1890, p. 92.
34
PRADO, Fastos..., op.cit., p. 32.
35
Ibid., p. 32.
200
admitir a soberania popular, mas não a soberania dos exércitos e das armadas
36
.
O esquecimento do direito era a força como lei, e a “espada pode escravizar um
povo, não fará, porém, do erro verdade, nem da injustiça o direito”
37
.
Em 1911, a crítica ao bacharelismo, em especial ao bacharel militar, foi
narrada de maneira cáustica por Lima Barreto, no seu trágico Triste fim de
Policarpo Quaresma. Dois casos são exemplares em seu romance: o general
Albernaz, cujos hábitos “eram de um bom chefe de seção e a sua inteligência não
era muito diferente dos seus hábitos. Nada entendia de guerras, de estratégia, de
tática ou de história militar”
38
; Caldas, o contra-almirante, não era diferente de seu
colega de armas: “na Marinha, por pouco que não fazia pendant com Albernaz no
Exército. Nunca embarcara, a não ser na Guerra do Paraguai, mas assim mesmo
por muito pouco tempo”
39
.
Tratava-se, novamente, de um vazio na representação, a substituição de
um fundamento jurídico pelo nada da força, afinal, onde estava a representação
que o Exército Brasileiro deveria cumprir? O militarismo se aproximava muito do
bacharelismo na transitividade da nação, pois ambos eram aparências, ou
pequenos rastros que manchariam momentaneamente o caráter nacional do
Brasil. A exemplo das coisas que sucumbiam com o tempo, o militarismo era
imprevisível: traição, perfídia, defecção, entre outros predicados pejorativos, eram
marcas do ser militarismo à espanhola
40
.
4.2.2 – O positivismo e o ateísmo
Os militares, bem como os bacharéis eram simpatizantes de uma das
correntes filosóficas que mais ojeriza havia causado no pensamento de Prado:
tratava-se do positivismo. Não tanto do positivismo comteano, muitas vezes
elogiado por Prado na sua forma conservadora, mas o positivismo pensado e
praticado no Brasil, sobretudo nos seus embates contra a fé católica, o que
36
PRADO, Práticas e teorias..., op.cit., p. 101.
37
PRADO, Fastos..., op. cit., p. 36, 133.
38
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. [1911]. Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 34.
39
BARRETO, op.cit., p. 58.
40
PRADO, Fastos...,op.cit., p.73.
201
implicava a sua íntima relação com o ateísmo. Pereira Barreto, já citado, foi um
dos principais polemistas contra Prado. Na defesa de sua ortodoxia positiva, ele
fazia severas críticas ao catolicismo, ao que Prado respondia afirmando que casos
de intolerância religiosa eram aqueles praticados no Brasil contra os padres, o que
destoava, nas palavras do próprio autor, do positivismo de Comte
41
.
Era do entendimento de Eduardo Prado que o positivismo preconizava uma
vida de utilidade, de domínio sobre si próprio, de devoção ao dever, a concórdia e
a paz, entre outros atributos de ordem e estabilidade
42
. Tais predicados
corroboravam o que o escritor paulista recomendava em termos axiológicos,
apesar de não ser um positivista. Cumpre notar que palavras de respeito,
altruísmo, solidariedade e amor à humanidade se encontravam nos textos de
Pereira Barreto, o que significa que ortodoxos como Barreto também
preconizavam qualidades que estavam longe do que Prado entendia ser a
República Brasileira na sua perseguição aos católicos
43
.
Para muitos escritores, o positivismo responsável pela implantação da
República estava distante daquelas nobres qualidades do positivismo teórico. A
crítica ao positivismo, em fins do século, pode ser evidenciada em um contexto
mais amplo. De acordo com Baumer, a reação contra o culto da ciência, contra a
imagem do mundo projetada por ela e contra a sua pretensão em chamar a si todo
o conhecimento eram algumas das principais motivações de intelectuais na
Europa de fim-do-século, apesar de que no Velho Mundo, a exemplo do Brasil,
eram ainda o positivismo e o cientificismo as cosmovisões predominantes
44
.
No Brasil, do mesmo modo, a ciência positiva penetrava os diversos ramos
do saber. E com essa inserção, não poderia deixar de haver, outrossim, um
questionamento de seus predicados, entre os quais, a idéia de que seu valor
residia sobretudo, na pureza em relação às suas intenções. Machado de Assis,
em seu conto O alienista, publicado em 1881, fez essa crítica radical da ciência
nua que se aconselhava seguir. Como sabemos, a obra relatou a trajetória
41
PRADO, Eduardo. O Dr. Barreto e a ciência. [1901]. In: Coletâneas…, vol. 4, op.cit., p.221.
42
PRADO, op. cit., p. 231.
43
Ver, a respeito, o já citado As três filosofias, de Pereira Barreto.
44
BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno. Lisboa: Ed. 70, 1990, vol. 2, p. 134.
202
intelectual de um médico psiquiatra que, depois de uma desilusão fisiológica –
dado o descompasso entre os dotes fisiológicos da esposa e sua incapacidade de
gerar filhos – resolveu devotar sua vida ao estudo dos casos de loucura para
encontrar o remédio universal – a exemplo do emplasto de Brás Cubas, para curar
a melancólica humanidade –, tomando como núcleo de seu trabalho a cidade de
Itaguaí
45
. Simão Bacamarte, o médico, praticamente internou toda a cidade em
um hospício, chamado Casa Verde, que havia sido criado exclusivamente para o
tratamento dos doentes, a fim de observá-los, diagnosticá-los, classificá-los e, a
partir dos experimentos cientificamente confirmados, eliminar a loucura. No final
do conto, o próprio médico lá se internou, por “convicção científica”, de modo a
tornar visível para toda a cidade o seu desinteresse: “exemplo de convicção
científica e abnegação humana”
46
. De maneira irônica, Machado afirmou, “Era
difícil imaginar mais racional sistema terapêutico”
47
.
Talvez nenhum trabalho dedicado à crítica da ciência positiva tenha sido tão
contundente quanto o texto machadiano, razão pela qual optamos por apresentá-
lo brevemente nessas linhas. A relação entre a preconização de uma ciência
neutra e o poder, a classificação científica que, antes de resolver os problemas
humanos, simplesmente os hipertrofiava, as fronteiras tênues entre convicção
científica, racionalidade e loucura, entre outros, foram tópicos que o escritor
ressaltou com muita perspicácia em seu texto.
Para entendermos um pouco mais a crítica machadiana ao positivismo,
convém apresentar algumas das idéias norteadoras de Auguste Comte a respeito
da reforma positiva da sociedade. A necessidade de “confiar aos cientistas os
trabalhos teóricos preliminares, reconhecidos indispensáveis para reorganizar a
sociedade”
48
, achava-se, para Comte, fundamentada em quatro considerações
distintas, que podem ser relacionadas desse modo: primeiramente, porque os
cientistas, “por seu gênero de capacidade e de cultura intelectual”, eram “os
45
ASSIS, Machado de. O alienista e outras histórias. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 17.
46
ASSIS, op. cit., p. 55.
47
Ibid., p. 55-56.
48
COMTE, Auguste. Opúsculos de filosofia social. [1819-1828]. Porto Alegre/São Paulo: Ed.
Globo/ EDUSP, 1972, p. 81.
203
únicos competentes para executarem esses trabalhos”
49
. O segundo motivo
residia no fato de que era a natureza das coisas que assim o exigia, em razão de
eles “constituírem o poder espiritual do sistema a organizar”
50
. E somente eles, os
cientistas, possuíam a “autoridade moral necessária para determinar a adoção da
nova doutrina orgânica”, quando esta estivesse formada
51
. A quarta e última
razão, tipicamente eurocêntrica, dizia o seguinte: “de todas as forças sociais
existentes, a dos cientistas é a única européia”
52
.
Eduardo Prado, do mesmo modo que Machado de Assis, soube questionar
a manifestação positivista no Brasil. Além de tecer críticas contundentes contra a
excessiva predominância da ciência em toda a sociedade, o autor manteve-se
cético em relação à separação entre a Igreja e o Estado proclamada pelos
comtistas. Exemplo desse tipo era a Igreja Positivista que havia se firmado nos
trópicos com foros de oficialidade, cuja ação era extremamente “intolerante,
dominadora e exclusiva”
53
. Se a República calcada nos moldes do positivismo que
havia se implantado no Brasil tinha na constituição a separação da Igreja em
relação ao Estado, na prática política a teoria era outra. De acordo com o autor, os
positivistas religiosos tinham diversas prerrogativas, entre as quais sancionar as
atitudes do governo, através da autoridade na definição de interpretações legais e
religiosas. O pior, ainda para o autor, era a sua intolerância, “própria das religiões
novas quando se tornam oficiais”
54
.
A religião civil assustava o autor, que via, simultaneamente, o poder da
Igreja Católica diminuir no Brasil. Tratava-se de uma situação não muito nova, que
tinha seu precedente no século XVIII, na Reforma que o Marquês do Pombal
levara a efeito na elaboração da modernidade ilustrada portuguesa. Bem sabemos
que Pombal, no seu esforço de esclarecimento da sociedade portuguesa,
expulsou os jesuítas tanto da metrópole quanto da colônia. O marques não era um
homem isolado em seu tempo. Em livros como o Compêndio Histórico – elaborado
49
COMTE, op.cit., p. 81.
50
Ibid., p. 81.
51
Ibid., p. 81.
52
Ibid., p. 81.
53
PRADO, Fastos..., op. cit., p. 17.
54
Ibid., p. 17.
204
para dar bases à reforma que seria realizada – apareciam críticas severas aos
jesuítas e às suas práticas educacionais
55
.
O pensamento científico que circunscreveu o projeto da Reforma tinha uma
função de idealização dos objetos do conhecimento que deveriam ser construídos.
A experiência originada pela proposta de reforma projetava-se em uma série de
acontecimentos previstos em tempos e lugares diferentes, por meio da
preconização de uma teoria coerente que subjazia ao plano de “secularizar a
sociedade e construir um novo país
56
.
Autores que serviram como base para a reforma, como Luis António
Verney, foram críticos do método jesuítico de ensino, embora Verney não fosse
um ateu nem recusasse a validade das Escrituras Sagradas
57
. Reformar o ensino
em Portugal, passando pela gramática, pela lógica, pela história e por todas as
áreas do conhecimento, tomando como fundamento a articulação das certezas
matemáticas com a experiência era o objetivo principal de Verney.
O ataque pradiano ao despotismo ilustrado português foi significativo, não
somente pela sua crença religiosa, mas sobretudo pela sua visão estratégica de
geopolítica associada às missões religiosas:
“Com a expulsão dos jesuítas, no século passado, a civilização
recuou centenas de léguas dos centros do continente africano e do Brasil.
As prósperas povoações do Paraná e do Rio Grande caíram em ruínas; os
índios volveram à vida selvagem; as aldeias do Amazonas despovoaram-
se e, até hoje, reinam a solidão e o deserto onde havia já a sociabilidade
humana. Em nossos dias, a bandeira de Inglaterra, da Alemanha, da
Bélgica ou da França tremulam em África sobre as ruínas de edificações
religiosas, num solo que seria português, se não tivessem sido largadas ao
abandono e votadas ao esquecimento aquelas terras onde, pelos
missionários, dominava Portugal”
58
.
55
GAUER, Ruth. A reforma pombalina e a modernidade portuguesa. Porto Alegre: EDIPUCRS,
1996, p. 65.
56
GAUER, Ruth, ARMANI, Carlos. Modernidade e fluxo: a lógica das reformas universitárias
de 1772. (Texto inédito). Porto Alegre, nov.2007, p. 9.
57
VERNEY, Luis António. O verdadeiro método de estudar. [1746]. Porto: Tipografia de
Domingos Barreira, [s.d]. Quanto à implicação religiosa de seu método, basta ler a passagem em
que Verney falava sobre a importância de localizar a Palestina em razão da Terra Santa, quando
se tratasse de estudar a história geral. Ver: VERNEY, op.cit., p. 207.
58
PRADO, Eduardo. O catolicismo, a Companhia de Jesus, e a colonização do Novo Mundo.
[1896]. In: Coletâneas… vol. 4, op. cit., p. 94-95.
205
Estrategicamente, a expulsão dos jesuítas teria sido desastrosa para os
interesses militares de Portugal e, por extensão, do Brasil, na medida em que
áreas consideradas de risco, tais como o Amazonas e o Rio Grande do Sul,
haviam sido deixadas de lado na política colonizadora de Portugal. A ausência dos
religiosos, a julgar pelo escrito acima, implicava um retorno dos índios à
selvageria, o que poderia ter efeitos negativos na construção da nacionalidade
miscigenada do Brasil que tantos autores salvaguardavam.
Mas Prado atacou o “filosofismo do século XVIII” em aspectos mais
transcendentais. Em um texto intitulado O Natal de Voltaire, ele afirmou que no
período de ceticismo do século XVIII, os homens eram crentes e devotos: a crença
firme de que o cristianismo estava acabado
59
. Tratava-se para o escritor, de um
engano. Morto estava Voltaire, cujos ossos esfarelados que voltaram para a
“poeira pardacenta e para o mofo secular do caixão arrombado”
60
, no mesmo dia
do Natal, evocavam as cinzas diante do renascimento, supostamente eterno, de
Jesus
61
.
Eduardo Prado percebia na “República atéia” um movimento que vinha
desde o século anterior, no qual não havia espaço para Deus nem para a
pregação e doutrinação católicas. Quantos Voltaires, que apenas se tornariam
cinzas frente a um ser maior que se apresentava para os homens na forma de
doutrinas e rituais católicos não havia na República?
O ateísmo, como uma conseqüência do regime vigente, seria fundamental
para a desorganização do Brasil. A comparação com os Estados Unidos, onde
não havia, tal como na Inglaterra, “o temor a Deus”, era uma das referências
negativas de Prado. O receio de que o Brasil perdesse parcela importante de sua
nacionalidade era presente, na medida em que o ateísmo tinha respaldo político
em praticamente todas as Repúblicas. O ateísmo implicava, acima de tudo, perda
de fundamentos, a perda de Deus como fundamento. Se nos foi permitido aventar
que desde Álvares de Azevedo e Nietzsche, Deus estava morto, havia aqueles
que, sob qualquer hipótese – como Prado – não aceitavam tal idéia. No caso do
59
PRADO, O Natal de Voltaire. [1898]. In: Coletâneas, vol. 1…, op.cit, p. , p. 353.
60
PRADO, op.cit., p. 365.
61
Ibid., p. 365.
206
Brasil, o republicano “horripila-se fanaticamente com a menção ao nome de
Deus”
62
.
Mais do que um ataque ao positivismo, o intérprete percebia que o
crescimento do agnosticismo e do ateísmo levava a uma crise que não satisfazia
os espíritos que, cada vez mais, buscavam seus fundamentos não na ciência, mas
na religião
63
. E a República, antes de qualquer reforma, era vista como uma união
indissolúvel com o ateísmo
64
.
Ramalho Ortigão, intelectual português amigo de Prado, entendia que a
religião ainda desempenhava um papel importante para os indivíduos em relação
à sociedade. Por outro lado, ela “deixou de ser o laço dogmático que outrora
prendia e identificava todos os espíritos num sentimento comum”
65
. E assim
concluiu: “Ao regime teológico sucederam-se sistemas filosóficos e conseqüentes
sistemas políticos, que uns depois dos outros se têm aluído na vacuidade,
produzindo a geral indiferença entristecida, que é o mal do nosso tempo”
66
. Graça
Aranha, em Canaã, afirmou, por meio de seu personagem Milkau, que “o espírito
religioso é irredutível. Para destruí-lo é preciso que o homem explique o Universo
e a vida”
67
. Milkau, o imigrante sereno e plácido rebatia as idéias mais destrutivas
de seu compatriota Lentz, que pensava haver um tempo em que “o homem há de
enterrar com os antepassados os cultos que eles nos legaram”, incluindo a
religião
68
. Milkau ia adiante em sua crítica a Lentz, afirmando que não somente a
religião continuaria a existir, mas todo o conhecimento, poderíamos dizer,
transcendental e metafísico. Nas suas palavras:
“A marcha da ciência no nosso espírito é como a nossa na planície
do deserto: o horizonte foge sempre, é inatingível à medida que
caminhamos. Além, além, há sempre o desconhecido. E o culto que o
idealiza, e o culto, seja do for, de um deus ou de uma abstração, como a
que diviniza a sociedade humana, é inseparável do homem. Ele é a
expressão da nossa emoção imorredoura, do nosso eterno pasmo no
62
PRADO, Eduardo. A crítica republicana. [1895]. In: Coletâneas..., op.cit., vol.2, p. 51.
63
PRADO, Crítica..., op.cit., p.58.
64
PRADO, Eduardo. Ao Estado de São Paulo. [1896]. In: Coletâneas..., op.cit., vol.2, p. 81.
65
ORTIGÃO,Ramalho. Carlos Lobo D’Avila. [1899]. In: Folhas soltas (1865-1915). Lisboa:
Clássica Editora, 1956, p.250.
66
ORTIGÃO, op. cit., p. 250.
67
ARANHA, Graça. Canaã. [1901]. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d], p. 60.
68
ARANHA, op.cit., p. 60.
207
Universo ou a exaltação do nosso amor, e é sempre uma força salutar,
divina”
69
.
Tocqueville, 60 anos antes, afirmara que a religião tinha “perdido o império
das almas”. “Tombou assim”, disse ele, “o marco mais visível que separava o bem
do mal; tudo parece duvidoso e incerto no mundo moral”
70
.
A lista dos autores assustados com tais problemas de indiferença religiosa
poderia ser estendida. Na outra ponta do Ocidente, Tolstoi falava sobre a
escravidão moderna, em grande medida decorrente da falta de fé: “não posso
evitar que os homens que se crêem capazes mentalmente, vejam no ensino
evangélico uma doutrina passada de moda”
71
. Dostoievski, em um de seus
romances mais conhecidos, O idiota, colocava como uma das principais
qualidades do seu personagem principal – o príncipe Míchkin – a ética fortemente
cristã de compreensão, compaixão e amor gratuito pelo outro
72
.
Para continuarmos com as palavras de Pereira Barreto como o principal
antípoda positivista de Eduardo Prado, na sua obra As três filosofias, o médico-
escritor afirmava que o maior ideal da humanidade era a ciência, o “mais puro e o
mais alto para iluminar a humanidade”, a qual seria fundamental para a
“eliminação do monoteísmo católico que já excedeu os limites do seu papel, que
tem sobrevivido à sua irreparável ruína”
73
. E seguiu:
“Resta-lhe o supremo consolo de extinguir-se no meio dos mais
exuberantes sintomas de auspiciosa regeneração e vitalidade; resta-lhe a
incomparável satisfação de ver que foi no seu próprio seio que se elaborou
essa vasta e inquebrantável revolta, que devia, matando-o, salvar a
humanidade”
74
.
Barreto não falou, em sua dialética da extinção da Igreja, quais eram as
obras que ela havia deixado para os positivistas. O mais provável é que se tratava
daqueles valores humanos nobres acima arrolados e que deveriam ser levados
adiante não mais pelo clero católico, mas sim pelos homens “mais preparados”
69
ARANHA, op.cit., p. 60.
70
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. [1830]. In: Os pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1979, p. 247.
71
TOLSTOI, Leon. Esclavitud moderna. Buenos Aires: Editorial Tor, [s.d], p. 9.
72
DOSTOIEVSKI, Fiodor. O idiota. [1868]. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2003.
73
BARRETO, op. cit., p. 140.
74
Ibid., p. 140.
208
para o exercício de tal tarefa em seu suposto amor à humanidade, ou seja,
positivistas como o próprio Barreto.
Apesar de reconhecer o papel desenvolvido historicamente pela Igreja, a
mesma história seria responsável pela sua extirpação, juntamente com a
Academia:
“A Igreja e a academia, tais são, por toda a parte, as duas grandes
cúmplices, que estão bem resolvidas a instruir-nos – embrutecendo-nos. É
o ensino, emanado destas duas corporações, que constitui a verdadeira
fonte de corrupção dos nossos costumes sociais”
75
.
Nabuco, em sua fase mais republicana, em 1904, parecia falar com os
positivistas, ao sugerir que a religião, “como todas as formas do pensamento
humano, não apanha senão um raio de inteligência, essa luz está em tudo
misturado a uma imensa escória de infantilidade”
76
. Por fim, sinalizou: “essas são
as limitações da Religião: a pobreza imaginativa na representação do Infinito e a
resistência ao livre progresso da ciência”
77
. Egotismo, tolstoísmo e neocatolicismo,
entre outros, eram algumas das nuanças do “misticismo moderno, com seus
respectivos credos de destruição da carne e purificação da idéia
78
, tendências
reacionárias que se relacionavam entre si “por um vago anseio religioso, uma
necessidade de volver às formas arcaicas de todos os tempos”
79
.
O problema da temporalidade da decadência e da corrupção não era uma
exclusividade axiológica dos monarquistas em período de implantação do regime
republicano. A questão é que, se os positivistas buscavam a estabilidade, “a mais
inflexível tendência para as noções fixas, para os conhecimentos científicos”
80
, o
certo é que, para Eduardo Prado, bem como para Ortigão, a instabilidade da
nação decorrente do positivismo e do cientificismo se estendia para todas as
camadas da realidade: sociais, políticas e culturais. Vejamos, por exemplo, a
questão sanitária.
75
BARRETO, op.cit., p. 133.
76
NABUCO, op.cit., p.538.
77
Ibid., p. 539.
78
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Machado de Assis. [1895]. In: Obra crítica. Rio de
Janeiro: Casa Rui Barbosa/ Ministério da Educação e Cultura, 1963, vol. III, p. 9.
79
ARARIPE JÚNIOR, op.cit., p. 9.
80
BARRETO, op.cit., p.133.
209
As febres e doenças infecto-contagiosas haviam se tornado, para Eduardo
Prado, não um problema de natureza biológica do brasileiro, mas sim o resultado
de uma administração que não tinha no povo seu principal foco de interesse.
Havia, nos seus textos, diversos relatos de epidemias de febres que grassavam
no Brasil, levando à morte milhares de pessoas, sem que houvesse uma ação
efetiva do governo relativa à saúde pública. O autor chegou a apelar para a
sociedade civil, de modo que fosse possível reverter o quadro negativo
ocasionado pelas doenças
81
. A situação adversa criada pelas epidemias foi
narrada da seguinte maneira:
“Causa dó o aspecto de algumas cidades flageladas: percorrem-se
ruas, quarteirões inteiros de casas fechadas e no semblante do raro
transeunte está pintado esse estado de indiferentismo a que chega a alma
humana batida, uma após a outra, das rajadas da adversidade. É que o
habitante dessas cidades, que nelas ainda vive, já viu saírem para a
viagem de onde se não volta muitos dos seus, assistiu à ruína do seu
pequeno comércio, ou da sua industriazinha (sic), porque, parco de
recursos, teve de contemplar todos os horrores da tormenta, sem ao
menos poder fugir”
82
.
Não há dúvida de que Prado, ao falar das epidemias e da necessidade de
ação do governo e da sociedade civil contra ela, se posicionava como um típico
cafeicultor, que tinha como preocupação fundamental a atração de imigrantes para
trabalhar na colheita de café, os quais, devido ao surto de epidemias,
possivelmente deixariam de vir se somar aos demais imigrantes nos cafezais,
especialmente em São Paulo, onde a família Prado possuía grandes extensões de
terras cultivadas para o seu plantio. O próprio autor deixava claro seu
posicionamento nesse sentido
83
. A questão é que, nos textos apresentados por
ele, como naquele acima descrito, sua reflexão sobre a doença e a morte
causadas pela epidemia transcendiam seu posicionamento social enquanto
cafeicultor. O flagelo das febres que acometia o povo em São Paulo era apenas
parte de uma totalidade maior, cujo corpo estava enfermo, por ocasião do regime
político ali instalado.
81
PRADO, Eduardo. Qual o recurso? [1896]. Coletâneas, vol. 2..., op.cit., p. 132-133.
82
PRADO, Eduardo. A epidemia. [1896]. Coletâneas, vol. 2..., op.cit., p.188-189.
83
Leiamos, por exemplo, essa passagem: “o governo podia introduzir mais imigrantes e assim
baratear o salário. Não devia consentir na elevação das tarifas das estradas de ferro, que tanto
encarecem o transporte do café”. Ver: PRADO, Eduardo. A baixa do café. [1896]. Coletâneas,
vol.2..., op.cit., p. 244.
210
Esse “inimigo invisível”
84
, como o autor chamava às epidemias de febre
amarela e de outras febres, era a dimensão sanitária do caos republicano: “para
esse imenso mal que se avizinha não se descobre o remédio. A administração
pública não sabe, não quer, ou não pode vencê-lo”
85
. O povo, “que tem assistido
inerte ao confisco de todos os seus direitos, de todas as suas garantias, de todas
as suas liberdades”
86
, não tinha condições de agir contra tal inimigo. Em uma
palavra, o escritor paulista percebia a decadência na sociedade:
“Observa-se, na fisionomia moral da sociedade, nestes tempos
calamitosos, um sintoma característico das épocas de decadência: os
nobres sentimentos abandonam a alma dos homens, onde são
substituídos pelo amor dos prazeres, do luxo e pelo seu consectário – o
egoísmo”
87
.
Diante dessa situação, onde residiria o ser? Se o governo, as autoridades
políticas, o foro e a polícia – representantes da racionalidade administrativa –
“cuidam todos de abrigar-se em lugar seguro”, não haveria sujeitos que
pudessem assumir a tarefa do cuidado, ou para usarmos um conceito cristão, a
salvação daqueles enfermos?
Nesse espaço, entrava a Igreja que, segundo o autor, não havia, em
qualquer momento, fugido das pestes
88
. Tais “soldados do Evangelho” não abriam
mão de seu dever, mesmo que a morte os encontrasse, enquanto que os
“apóstolos do livre pensamento, os que substituíram Deus pela razão, ficam de
longe a salvo e em lugar seguro, vencendo pingues ordenados, ou recebendo
ruidosas ovações pagas pelo Tesouro Nacional”
89
.
Mesmo em uma situação cujo desenvolvimento parecia pressupor uma
neutralidade ou uma ausência de características políticas, Prado não deixou de
salientar que nem a razão, nem a ciência eram capazes de lidar com aquele limite
que colocava a população no frente a frente com a doença e a morte. Portanto,
diferentemente do que havia sido concebido em termos de modernidade ocidental,
o universal permanente não era a razão nem a ciência, mas a Igreja e os soldados
84
PRADO, Epidemia..., op.cit., p. 191.
85
Ibid., p. 191.
86
Ibid., p.192.
87
Ibid., p. 192.
88
Ibid., p.193.
89
Ibid., p.193.
211
do Evangelho, para retomarmos a metáfora militar tão fortemente associada ao
seu pensamento religioso, entes dos quais emanava o ser.
Para tornar a situação do positivismo e da República ainda mais turbulenta,
Prado via o agricultor e o produtor brasileiro “sujeito aos azares do jogo dos
outros”
90
. O que ele queria dizer com isso? Tratava-se de um problema que havia
abalado a República e que encontrava seu responsável na economia
contemporânea, ou seja, no capitalismo. Apesar de ser um empresário do café,
Prado assustava-se com a mobilidade e com as implicações sociais do
capitalismo. Nas suas palavras:
“É essa a iníqua e a péssima organização comercial, ainda
dominante neste século e que os pensadores condenam, ideando contra
elas medidas que os governos, hoje todos submissos aos interesses do
capitalismo, ainda não tiveram a coragem de aplicar”
91
.
O capitalismo financeiro, novidade do século XIX, era concebido como uma
redução do capital à abstração, para usarmos as palavras do historiador português
Oliveira Martins
92
. Era muito provável que o surto especulativo que marcou não
somente o Brasil, mas parcela importante do Ocidente, trouxesse aos espíritos
finisseculares um excedente de incerteza que se somaria àquele já existente entre
parte da intelectualidade. Leiamos Martins:
“Reduzir o capital a uma verdadeira abstração, pulverizando-o, eis
aí a última e genial invenção... Não se prevê bem que invenções novas
podem já acudir à imaginação dos homens, no sentido de atingir
experimentalmente a definição exata dada, desde o tempo de Platão, às
riquezas. Realizou-se a doutrina: o dinheiro é uma abstração, é o signo
apenas sobre que se exerce a dança das paixões excitadas pela cobiça”
93
.
Martins pensava que o capitalismo era uma poderosa sociedade com os
pés de barro, cujo delírio do jogo e da especulação “traduz inconscientemente o
medo do futuro, e exprime com clareza o receio do presente”
94
. Nesse sentido, a
vida reduzida a um exercício em que era estranha toda e qualquer “idéia de dever,
90
PRADO, A baixa do café..., op.cit., p. 240.
91
Ibid., p. 240.
92
MARTINS, Oliveira. A Inglaterra de hoje. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894, p.
222.
93
MARTINS, op.cit., p. 222.
94
Ibid., p. 212, 217.
212
de ordem, de justiça e de moral”
95
, não era apenas a marca do capitalismo na
Inglaterra, como notou o historiador, mas uma tendência totalizante, que havia
tornado o jogo e a especulação uma regra, estendendo o problema da moral não a
um regime político exclusivamente, mas ao regime de organização sócio-
econômica
96
.
As palavras de Martins e de Prado evocavam o mesmo problema: a falta de
controle sobre uma realidade que, para eles, se tornava cada vez mais universal,
atingindo não somente as principais sociedades capitalistas como os Estados
Unidos e a Inglaterra, mas também as suas respectivas nações. A volubilidade
derivada de especulações, dos jogos e os anonimatos tornavam ainda mais
preocupante a realidade para esses escritores, acostumados ao timbre da
visibilidade que a Monarquia lhes proporcionava. Prado, ao se referir à República,
afirmou que a sua impessoalidade a tornava irresponsável, ao contrário da
Monarquia, “uma firma solidária” que “na gestão dos negócios e dos dinheiros
públicos... arrisca a sua própria existência”
97
. A República, a exemplo do
capitalismo financeiro descrito por Martins, “é uma companhia anônima de
responsabilidade limitada”
98
. Tocqueville, ao comparar a Monarquia com a
democracia americana, assegurou que a primeira levava certa vantagem em
relação à segunda, pois o “interesse particular de uma família estando, nesse
caso, contínua e estreitamente ligado ao interesse do Estado, não se passa um só
momento em que ele se encontre abandonado a si mesmo”
99
. O autor francês,
apesar de ser simpático ao regime liberal norte-americano, temia o frêmito
individualista, anarquista e impessoal que impregnava aquele país.
O crepúsculo da moral, da responsabilidade e da justiça nada mais seria do
que essa pulverização dos valores concebidos senão como imutáveis, ao menos
como fundamentais para a sustentação axiológica de qualquer sociedade.
95
MARTINS, op.cit., p. 216.
96
Ibid., p.215-216.
97
PRADO, A ilusão..., op.cit., p. 131.
98
Ibid., p.131.
99
TOCQUEVILLE, op. cit., p. 208.
213
Tratava-se do mesmo mundo onde Marx e Engels viram, alguns anos antes, todas
as coisas sólidas se desmancharem no ar
100
.
4.2.3 – O individualismo e a fragmentação
O quadro do interior transitivo República não estaria completo se não
chamássemos a atenção para uma das principais qualidades negativas do regime
republicano elaboradas por Eduardo Prado que, nas palavras de Gilberto Freyre,
foi um dos “profetas da deterioração social do Brasil em conseqüência da
República Federativa”
101
.
No texto Destinos políticos do Brasil, escrito antes da queda da Monarquia,
Prado colocava a questão da unidade nacional. No seu tempo presente, um dos
temas atualíssimos era relativo a dois pontos: o Brasil continuaria unido ou, pelo
contrário, se implantaria a República que traria a fragmentação nacional?
102
O
individualismo, mais do que uma teoria do egoísmo, que estava presente também
na forma republicana tal como pensada por Prado, era sinônimo de desagregação,
de indiferença e de fragmentação da nação. Em uma palavra muitas vezes usada
por ele: anarquia. Dizia ele: “sopra por todo o país um vento de insubordinação, de
desordem e de anarquia, que tem penetrado o seu organismo inteiro... Por toda a
parte a indisciplina e a inversão das normas”
103
.
Essa an-arquia, a ausência de fundamentos, para retomarmos o sentido
grego da palavra arché era intrínseca à República, esse “espelho partido em
pedaços”
104
, e a idéia republicana “é a forma mais aparente das tendências que
chamaremos destrutivas, ou antes, é a idéia que, por necessidade do momento,
resume em si todas as idéias de destruição”
105
.
100
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. [1847]. Rio de Janeiro: Paz & Terra,
1998, p. 14.
101
FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000, p. 178.
102
PRADO, Destinos políticos..., op.cit., p. 467.
103
PRADO, Eduardo. A anarquia governamental. [1897]. Coletâneas. São Paulo: Tipografia
Salesiana, 1904, vol. 3, p. 7.
104
PRADO, Fastos..., op.cit., p. 2.
105
PRADO, Destinos políticos..., op.cit., p. 468.
214
Ramalho Ortigão, que viu os males do Brasil na persistência da escravidão,
desenvolveu uma teoria assaz polêmica – duramente criticada por Raul Pompéia –
acerca da anarquia no Brasil. Para ele, a nação inteira estava contaminada por
uma “lesão grave”, a escravatura, “de onde procedeu todas as irregularidades do
Brasil”
106
. A idéia de servidão e dever havia se deteriorado com o regime
escravocrata, na medida em que ninguém queria ser comparado ao escravo.
Problemas sociais, econômicos e culturais tais como o “abastardamento do
trabalho”, a “constituição de uma ociosidade organizada”, a “decomposição da
disciplina” e a “desonra do respeito”
107
, eram os males que levavam o Brasil à
ausência de fundamentos:
“Viciada pelo servilismo, a liberdade no Brasil dissolveu o
sentimento de hierarquia, base de toda a organização de um Estado...Em
todo o agregado humano, de país ou de classe, nacional, civil, eclesiástico,
industrial ou militar, o regime que não é hierárquico é anárquico”
108
.
As imagens da República, para Ortigão, não eram muito negativas. Os
males que ele atribuía ao Brasil eram independentes de governos. Nem a
Monarquia, nem a República eram responsáveis pelo individualismo contra-moral
desenvolvido durante e depois da escravidão. Talvez tenha sido por essa razão
que Pompéia fora tão mordaz ao texto de Ortigão que, longe de ser um quadro,
era apenas uma “moldura de fantasia”
109
.
Por se tratar de algo que não era responsabilidade nem da Monarquia, nem
da República, Ortigão não poderia estar falando da identidade nacional brasileira,
acima de qualquer regime político? Parece que foi assim entendida por Pompéia a
mensagem do seu colega de letras. Para o autor de O ateneu, a história exigia
profunda meditação para a compreensão do “dificílimo enredo dos seus elementos
morais, através do tempo e da etnografia”
110
, postura que estava longe daquela
adotada por Ortigão. Ainda mais: para Pompéia, o Brasil “tem sido julgado mal por
106
ORTIGÃO, Ramalho. O quadro social da revolução brasileira. Revista de Portugal. Porto, vol.
1, 1889, p. 80.
107
ORTIGÃO, op.cit., p. 90.
108
Ibid., p.87.
109
POMPÉIA, Raul. O quadro social do Sr. Ramalho Ortigão. In: Obras: escritos políticos. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, vol.5, 1982, p. 277.
110
POMPÉIA, op. cit., p. 277.
215
certo número de escritores, parece que em razão de que esses críticos deixaram-
se levar pela má impressão das exterioridades”
111
.
Má impressão que não se restringia somente ao escritor português. Havia
outro autor, questionado no mesmo texto, que era um dos antípodas de Pompéia,
“um jovem escritor nacional, residente em Paris” que teria tentado fazer uma
análise da “inferioridade cômica de seus compatriotas em matéria de
civilização”
112
. Tratava-se de Eduardo Prado, que havia escrito Os destinos
políticos do Brasil na mesma revista onde fora publicado o artigo de Ortigão.
Raul Pompéia não estava enganado em criticá-lo, tal como fizera em
relação a Ortigão. As idéias deste último encontravam-se ao que Prado havia
escrito acerca da situação brasileira, com o diferencial de que o escritor
monarquista, acima de tudo, mas não só, atribuía o estado de desorganização à
República, e não à totalidade da nação: “esta palavra obediência é uma palavra
antipática à anarquia do nosso tempo”
113
. Suas idéias acerca do papel da
República na história brasileira eram as piores possíveis. Além do bacharelismo
raso, do militarismo arbitrário e sem representação popular – que tornara as
liberdades individuais um artigo exótico –, da fragmentação que levava ao
individualismo e à indiferença, do positivismo cientificista que tentava eliminar a
religião católica em nome de uma ciência supostamente neutra em seus
postulados axiológicos, a República era a encarnação da antítese da civilização,
ou seja, a barbárie.
A exemplo dos tribunais regulares norte-americanos que matavam com
freqüência
114
, a República Brasileira havia desbancado de seus fundamentos o
direito e a lei do foro, para dar vazão à força do capanga. Ora, o que poderia haver
em uma sociedade cujas leis não teriam validade, ou, se a tivessem, apenas de
acordo com a interpretação do militar do momento? Tudo encaminhava a situação
para um apartar-se do tempo como constitutivo daquilo que pudesse fornecer
solidez. Prado pensava em certeza e estabilidade. O que a República poderia
111
POMPÉIA, op.cit., p. 281.
112
Ibid., p. 275.
113
PRADO, O catolicismo..., op. cit., p. 57.
114
Ver capítulo 3, em especial a seção 2.
216
oferecer nesse sentido? Praticamente, a única certeza era a de seu fim, a
exemplo do que havia ocorrido com outras sociedades. “Tudo passa”, afirmou
Prado, “e, se os impérios caem, as Repúblicas também desaparecem”
115
.
A República havia tornado naturais, por meio de suas autoridades, o
assassinato e o roubo, de modo que o fato de “não ser o cidadão morto, ou
roubado, é já cousa considerada magnanimidade sublime por parte do poder
público”
116
. O governo, para o autor, convivia com “assassinos confessos”, a quem
cumulava de cargos de confiança
117
. Usando metáforas fisiológicas, Prado via na
República um organismo mal nascido e inviável, que tinha “todos os caracteres
dos seres inferiores”
118
. Nas repúblicas, incluindo o Brasil, havia um medo
recíproco das pessoas, bem como “a incerteza que todos têm de tudo”, o que
criava “um estado social que a palavra anarquia mal pode pintar”
119
.
Com a República Brasileira, vivia-se no tempo do “entorpecimento da fibra
nacional”, o que implicava a “morte do patriotismo”
120
. Envolvida em um mar de
crimes, sobretudo por meio dos assassinatos políticos, a tendência geral, nas
palavras de Prado, foi o aumento da indiferença
121
. Além da corrupção, no sentido
mais forte do termo, a ditadura, como o escritor chamava a República, era
permeada pela indisciplina, pela violência e pelo servilismo
122
.
A República, sempre atrelada a metáforas de morte e de fim, não poderia
ser, para o escritor, algo que efetivamente constituísse o Brasil. Perpassava por
ela um Brasil verdadeiro, algumas vezes com-fundido com a Monarquia, outras
vezes deslocado para outras cadeias que configurariam o ser da nação. De
qualquer modo, mesmo que a República fosse jovem, sua jovialidade era doentia,
“a decrepitude em rosto de criança”
123
. A República havia nascido enferma e
nessa mesma condição viveu, “para desgosto dos pais, desespero dos médicos e
115
PRADO, Eduardo. Respondemos. [1896]. In: Coletâneas..., op.cit., vol.2 p. 129.
116
PRADO, Eduardo. O banquete monarquista. [1895]. In: Coletâneas…, op. cit., vol.2, p. 9.
117
PRADO, Eduardo. A República e a liberdade de imprensa. [1895]. In: Coletâneas..., op. cit.,
vol.2, p. 86.
118
PRADO, Eduardo. Uma lição de Aristóteles. [1895]. In: Coletâneas ..., op. cit., vol.2, p. 107.
119
PRADO, Eduardo. Agouros e presságios. [1896]. In: Coletâneas… op.cit., vol.2, p. 280.
120
PRADO, Eduardo. Uma questão de método. [1896]. Coletâneas..., op.cit., vol.2, p. 310.
121
PRADO, op. cit., p. 311.
122
PRADO, Práticas e teorias..., op. cit., p.112.
123
PRADO, Eduardo. Patologia..., op. cit., p. 317.
217
trabalho de todos”
124
. Prado, otimista em relação a um futuro que determinaria o
fim da ditadura, pensava que tal regime político ainda estava no berço, cuja forma
era a de um esquife
125
. O autor, para se referir à República Brasileira, lançou mão
de muitas metáforas médicas ou biológicas, a exemplo de seu contemporâneo
Manoel Bomfim
126
.
Portanto, na atmosfera do bacharelismo, do militarismo político, do
positivismo ateu e do individualismo fragmentário, para Prado, o que o brasileiro
poderia esperar da República, a não ser a sua morte?
Em 1903, na sessão de posse de Afonso Arinos para a cadeira que havia
sido de Eduardo Prado, na Academia Brasileira de Letras, Olavo Bilac proferiu um
discurso em resposta a Arinos que atingia também o pensamento pradiano. Após
fazer uma série de elogios ao escritor dos Fastos, afirmando que ele havia sido
“mal-compreendido em suas opiniões, mal julgado em seus atos e absolutamente
desconhecido no seu papel encantador de fino homem de letras”
127
, Bilac disse
que “o escritor d’A ilusão americana exagerou bastante os perigos do que ele
chamava e do que vós mesmo chamais a nossa ‘desnacionalização’”
128
. “Viu ele”,
disse o escritor “o anúncio temeroso de um naufrágio nacional. Susto vão e vão
temor”
129
. Bilac, que seria um dos principais articuladores da chamada Liga de
Defesa Nacional, instituição nacionalista que se desenvolveria sistematicamente
ao longo dos anos 20 no Brasil, entendia que:
“A nacionalidade cria raízes tão fundas e tão fortes, que o seu
extermínio só pode ser feito com o extermínio da própria terra. A terra tem
encantos e proveitos que seduzem, e esses encantos e proveitos fazem
mais do que nossas as nossas teorias”
130
.
124
PRADO, Patologia..., op. cit., p. 317.
125
Ibid., p. 317.
126
A utilização dessas metáforas, já em voga no século XIX, teria continuidade ao longo do século
XX. Ver, a respeito: GAGLIETTI, Mauro. Dyonélio Machado e Raul Pilla: médicos na política.
Porto Alegre: EDIPUCRS/IEL, 2007.
127
BILAC, Olavo. Resposta do Sr.Olavo Bilac. [1903]. Revista da Academia Brasileira de Letras.
Rio de Janeiro, n.2, Ano 1, 1910, p. 512.
128
BILAC, op. cit., p. 514.
129
Ibid., p. 514-515.
130
Ibid., p. 517.
218
A linguagem apologética do ser nacional teve uma continuidade em Gilberto
Freyre, que fez a mesma leitura de Bilac em relação a Prado. Nesse particular,
Freyre afirmou:
“Faltou o exato conhecimento do conjunto brasileiro de seu tempo,
como unidade já definida de cultura ou vivência nacional capaz de resistir
aos conflitos entre interesses regionais e estaduais... O ‘coração íntimo’
dos brasileiros da época que se seguiu à proclamação da República, se
examinado de perto por um Prado ou um Eça, haveria de mostrar-lhe que
existia entre a gente do Brasil, do Norte ao Sul do País, uma unidade
nacional já tão forte, quanto às crenças, aos costumes, aos sentimentos,
aos jogos, aos brinquedos dessa mesma gente, quase toda ela de
formação patriarcal, católica e ibérica nas predominâncias dos seus
característicos, que não seria com a simples e superficial mudança de
regime político, que aquele conjunto de valores e de constantes de repente
se desmancharia”
131
.
O temor pradiano da desunião não significava falta de crença ou ausência
de busca de uma representatividade da unidade nacional, tal como Freyre e Bilac
assim o sugeriram, mas a compreensão de um presente em permanente estado
de metamorfose, o esfacelar de entidades que, até então, havia sido parte dos
alicerces da sociedade brasileira, a saber, o catolicismo, a Monarquia e todo o
aparato civilizacional daí decorrente
132
. As convicções de Eduardo Prado acerca
do ser da nação que perpassavam o regime monárquico propriamente dito, e que
seriam permanentes no Brasil, a despeito do fim do regime dinástico, eram,
efetivamente, um problema em termos ontológicos no Brasil desse período. Mas
não residiria aí justamente a riqueza desse pensamento profundamente inquieto
com relação ao seu tempo?
O conjunto desses atributos – bacharelismo, militarismo, positivismo,
ateísmo, individualismo – que eram apenas um hiato na verdadeira nacionalidade
brasileira teria como resultado o caminhar do Brasil para o abismo, caso não
houvesse uma reação futura imediata que pudesse suspender o futuro em
decomposição do berço-esquife. O autor pensava, em termos de temporalidade,
em futuros concorrentes: aquele cujo tempo apenas levaria à ruína, e outro futuro
131
FREYRE , op.cit., p.179-180.
132
Curiosamente, em 1901, ano de sua morte, Eduardo Prado pareceu ter abandonado o temor de
uma dominação estrangeira no Brasil, idéia que havia marcado o seu pensamento desde a
elaboração de A ilusão americana: “é também preciso que percamos a ridícula mania de pensar
que ingleses, franceses, alemães, americanos e talvez, turcos, andem querendo conquistar-nos”.
Ver: PRADO, O Dr. Barreto..., op. cit., p.272.
219
para além do futuro que deixava margem para a esperança, se não na
restauração do regime monárquico, ao menos na diminuição da incerteza em
relação ao fim.
Nesse sentido, qual era a imagem do Brasil, no pensamento pradiano?
Tratava-se de um autor pessimista, que não via mais expectativas no futuro do
Brasil, dada a consumação da Monarquia, ou seria possível verificar,
pontualmente, certas idéias que articulavam à sua ontologia o futuro em termos de
esperança?
Parcialmente, Prado era pessimista porque via, efetivamente, uma
expectativa futura imediata de demolição da República, como se antes das
esperanças positivas de futuro, tivesse de haver um futuro que desconstituísse a
obra dos republicanos e reinstalasse a civilização política no Brasil, como fora
durante mais de 60 anos, com o Segundo Reinado. Por outro lado, Prado, que via
guerras civis no futuro do Brasil – caso o país se mantivesse republicano –
pensava que o “desmoronamento geral” era inevitável e que, “diante das ruínas
amontoadas”, seria necessário “remover o entulho para, depois, reedificar a
casa”
133
. E continuou: “era preciso suprimir a República”, disse ele, “para
reconstruir a nação”
134
. Ou, em termos de tempo, eliminar o futuro (decadente)
para construir o futuro (próspero). Ruptura com o presente implicava um futuro de
progresso contra a decadência do futuro. Tal futuro de esperança, contudo, não
era algo sem qualquer tipo de precedente, o que implicava a cumulatividade da
experiência feita tradição, a retomada de um tempo que não mais existia, mas que
tomaria o lugar do não-ser republicano.
Ao longo de sua trajetória intelectual, Prado nunca deixou de tentar fixar a
ontologia da nação. Até o presente momento, mantivemos a tentativa de sua de-
finição, a partir do dis-curso pradiano, em torno dos seus exteriores constitutivos,
aquelas possibilidades conceituais que cercavam a própria idéia de nação no
pensamento do autor. Posteriormente, chegamos não ao exterior, mas ao que
supostamente seria o interior da nação, embora não constitutivo como os outros
133
PRADO, Eduardo. A ruína financeira da República. [1895]. In: Coletâneas, vol. 2..., op.cit., p. 48.
134
PRADO, op. cit., p. 48.
220
do ser que perpassavam as suas idéias, mas o transitivo, aquilo que deveria ser
apenas a passagem breve do presente para o passado em nome de um futuro
que, a princípio, recuperaria o passado anterior da nação e anterior ao presente
que se tornaria passado para ser lembrado apenas como uma dimensão movediça
e fugaz do Brasil verdadeiro.
Mas qual era o Brasil verdadeiro? Desde os exteriores constitutivos
europeus, passando pelas Américas até chegarmos ao Brasil transitivo, havia
simultaneamente, no pensamento de Eduardo Prado, a idéia de um grau zero da
realidade brasileira, anterior a qualquer alteridade em relação ao ser – tais como
a aparência, a fragmentação, o devir, o dever ser, entre outros? Se o autor
efetivamente conseguiu consolidar uma idéia de ser da nação, ou se ela era
apenas a face sedimentada do devir, uma história do ser que tinha, por sua vez, a
sua historicidade constitutiva não na fixação epocal, mas na própria
temporalidade, essa é uma questão tratada na seção a seguir. Para falarmos com
Bergson, trata-se de instalar-se em uma imobilidade onde se encontra um apoio
para a prática e recompor a mobilidade com a imobilidade, afinal, “os conceitos
variados nos quais se dissolve uma variação são, pois, outras tantas visões
estáveis da instabilidade do real”
135
.
4.3 - O interior constitutivo ou a civilização brasileira em seu ser
Nem exterior, nem transitiva. Estas deveriam ser as qualidades precípuas
da nação. Identidade em relação a si mesma significava uma trajetória unívoca da
história do Brasil, o que implicava a tradição (passado) convertida em dimensões
eternamente constitutivas. A julgar pelo que escrevemos até este momento, que
tipo de ontologia seria possível apresentar, ao mapearmos as proposições e
premissas que tinham como predicados as idéias de estabilidade, perenidade e
totalidade no pensamento de Prado? Seria uma ontologia política? Ou a ontologia
institucional-religiosa proporcionada pelos Jesuítas e pela Companhia de Jesus?
135
BERGSON, Henri. Introdução à metafísica. [1903]. In: Cartas, conferências e outros escritos.
São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 32-33.
221
Ou uma ontologia da fusão racial que definia o brasileiro miscigenado como um
dos exemplos de superioridade da civilização brasileira na história? Ou ainda uma
ontologia da natureza, à guisa de Bilac? Ou, por fim, uma ontologia da própria
história, que a consubstanciava com a idéia de tradição permanente de um povo e
mesmo para um ser acima das relações, substancial e não transitivo? Podemos
dizer, novamente, que nenhuma delas, porque todas elas.
Havia uma história do ser no pensamento de Prado que parecia radicalizar,
em termos de possibilidades conceituais, aquela dimensão de incerteza,
imprevisibilidade e inconstância que apresentamos ao longo da tese, fosse na
exterioridade/constitutividade da nação, fosse nas articulações temporais diversas
entre o permanente, a ruptura, a reprodutibilidade e a linearidade tanto do
progresso quanto da decadência. Nesse sentido, a própria dificuldade de formar
conceitos unívocos acerca dos exteriores constitutivos do Brasil, bem como de de-
fini-lo, em certo momento, como transitivo e – ainda quando se trata do ser – de
colocá-lo em uma qualidade de representação movediça do próprio conceito, são
sintomáticas de um período que vivia a questão da temporalidade como uma de
suas qualidades mais presentes em termos de pensamento acerca da nação –
imagi-nação.
É para esse mapeamento da própria história do ser no pensamento
pradiano que direcionamo-nos a seguir, a começar pelo que supostamente seria a
ontologia política do Brasil em relação à história-devir.
4.3.1 – A ontologia política
Para um escritor que se definiu como monarquista quando da implantação
da República Brasileira, não seria uma tarefa das mais difíceis perceber que o
núcleo da estabilidade nacional reivindicado se encontrasse em um momento
anterior, ou seja, no regime monárquico e nas suas principais qualidades jurídicas
e políticas. Seguindo os rastros do pensamento de Eduardo Prado, quais eram
essas qualidades?
222
A Monarquia Brasileira, inaugurada em 1822 com a independência do Brasil
teria sido, em primeiro lugar, o regime político responsável pela eliminação da
dependência colonial, o que implicava a idéia de criação da própria nação a partir
de suas instituições. Tratava-se, portanto, para o autor, de uma tradição liberal
consolidada há mais de 60 anos. Valores como liberdade individual, autonomia e
representatividade eram, no seu pensamento, típicos do regime monárquico. Não
foi outra a razão que o levou a pensar que a República, ao estabelecer o hiato
entre as instituições governamentais e o povo, teria destruído “a civilização política
do país”, de maneira que “o direito de fazer leis não pertence mais à nação”
136
.
Durante 60 anos a nação teria gozado da liberdade: “As instituições liberais,
a segurança individual, a liberdade de pensamento, a paz, a tranqüilidade”, eram
as qualidades predominantes do Brasil até 1889
137
. A Monarquia liberal de Dom
Pedro II teria sido a “única República, no sentido nobre e elevado dessa palavra,
que existia na América do Sul”
138
. Idéias que faziam parte do repertório de
monarquistas brasileiros, o mesmo pensava o Visconde de Ouro Preto, quando
escreveu, no prefácio da edição de 1902 dos Fastos que a “sedição militar” havia
derrubado o Império e aniquilado a ordem, a prosperidade, as liberdades e o
crédito do Brasil
139
. A palavra liberdade era recorrente: direitos individuais
intangíveis, liberdade de pensamento, de voto e de reunião, inviolabilidade do
domicílio, entre outros, eram direitos imprescritíveis
140
. Mais do que um
pensamento típico do século XIX, o liberalismo pradiano evocava aquela
representação jusnatunalista que apostava na existência de uma lei imutável de
justiça para todos os homens, que existia mesmo antes das leis ou convenções
humanas, e podia ser descoberta pela razão
141
.
Mas a representatividade da Monarquia não era restrita somente à
liberdade. Mesmo no período de flerte com a República, Joaquim Nabuco
136
PRADO, Fastos..., op. cit., p. 11 e 19.
137
Ibid., p. 19.
138
PRADO, Práticas e teorias..., op. cit., p. 107.
139
OURO PRETO, Visconde de. Prefácio. [1896]. In: PRADO, Eduardo. Fastos da ditadura
militar no Brasil. São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1902.
140
PRADO, O catolicismo..., op.cit., p. 45.
141
BAUMER, op. cit., p. 248.
223
reconhecia, como ex-monarquista – se é que ele deixou de sê-lo – as
prerrogativas do regime monárquico:
“Durante todo o seu reinado [de Dom Pedro II], a liberdade de
imprensa não foi uma só vez atacada. O seu principal cliente era sempre a
oposição, e ela bem o sabia; fazia questão que cada erro se fizesse
público e discutido contra os seus ministros; acreditava na rotação dos
partidos políticos, e assegurou-a. O seu paço conservava-se aberto para o
povo. Qualquer pessoa podia falar-lhe”
142
.
Como temos apresentado ao longo da tese, Prado via a necessidade do
Brasil sustentar-se nos moldes de uma tradição criada no interior de sua própria
história, o que significava a idéia da autonomia nacional, o reger-se por “leis
saídas de sua própria raça”
143
.
Seria tal idéia a afirmação de uma cultura política criada ex nihilo, como se,
a partir de 1822 houvesse um Brasil novo, absolutamente diferente da Colônia?
Afirmar, por outro lado, que se o Brasil se regesse por suas próprias leis, ou seja,
pelo conjunto de razões normativas que o tornavam único, não seria sacrificar a
independência à colônia, na medida em que a única tradição do Brasil, em termos
político-institucionais fornecidos até então eram provenientes da metrópole?
Tomemos, novamente, as palavras de Prado acerca dessa questão:
“O Brasil...obedeceu à grande lei de que as nações devem
reformar-se dentro de si mesmas, como todos os organismos vivos, com a
sua própria substância, depois de já estarem lentamente assimilados e
incorporados à sua vida os elementos exteriores que ela naturalmente tiver
absorvido. No Brasil, tivemos a independência, fato lógico do
desenvolvimento da sociedade colonial; a Monarquia mantida foi o respeito
da tradição e a conservação do país na sua índole histórica que ninguém
pode mudar. O constitucionalismo e o sistema parlamentar adotados
foram, até certo ponto, uma revivescência do passado, uma reprodução
das cortes lusitanas, e coisa que muito se harmonizava com a organização
quase espontânea, mas sempre representativa, e mais poderosa do que
julga, dos governos municipais e locais da colônia... As idéias liberais do
século, consagradas nas instituições coevas da independência, acharam
uma base histórica em que se firmaram. E isto deu ao Brasil setenta anos
de liberdade”
144
(grifos meus).
Ao lermos essa citação, torna-se evidentemente difícil separar as diversas
tendências ontologizantes do pensamento de Prado, como estamos fazendo
142
NABUCO, Joaquim. O espírito de nacionalidade na história do Brasil. [1908]. In: Discursos e
conferências nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Benjamin Aguila Editor, 1911, p. 130.
143
PRADO, A ilusão..., op.cit., p. 45.
144
Ibid., p. 45-46.
224
nesse capítulo para efeitos de redução analítica. Apesar ou em razão de que tal
citação é explorada em tópicos posteriores, cabe, nesse momento, restringirmo-
nos somente às suas dimensões ligadas à questão da permanência entre o
passado e o futuro das leis – o que já implica a sua tradição.
Lei e tradição, no pensamento pradiano, estavam interligadas de maneira
substancial. A grande lei que teria permitido ao Brasil ser liberal e
autodeterminado depois de sua independência era a incorporação de uma outra
tradição – a portuguesa – que seria, por sua vez, representativa do povo, além
das idéias liberais típicas do século XIX. Parece um contra-senso – e talvez o seja
– afirmar a constituição de uma tradição e conservação representativas em uma
nação cujo passado era colonial. Não o seria, contudo, na relação entre Brasil e
Portugal. Voltamos à relação mesmo-outro que foi tematizada no capítulo dois.
Romper com a linearidade da lei feita tradição ou da tradição das cortes lusitanas
feita lei, era o mesmo que desviar o Brasil de seu rumo civilizacional em termos
políticos.
Nessa medida, afirmar a diferença nacional do Brasil era reafirmar sua
identidade com Portugal. A pergunta se repete: onde estava o mesmo e onde
estava o outro nessas circunstâncias? Quais eram os limites possíveis de
demarcação da identidade nacional brasileira, se a lógica de autodeterminação
que a sustentava estava indissociavelmente ligada ao passado colonial? Uma
resposta possível, mas especulativa, era de que as fronteiras entre metrópole e
colônia, no caso brasileiro e português, eram, no tempo da independência, mal
definidas. Prado não deu uma resposta clara sobre essa questão, mas o fato da
Família Real e toda a Corte Portuguesa ter se transferido para o Brasil em 1808,
por ocasião da invasão napoleônica em Portugal, já seria um indício de que
parecia haver não somente uma com-fusão entre metrópole e colônia, mas talvez
mesmo a sua inversão.
Eis o primeiro problema da relação entre tradição política e nação. Não
obstante, ele não pára por aí. Não seria a sustentação de um pensamento liberal
aplicado à Monarquia outra contradição, não somente por se manter fiel à tradição
monárquica portuguesa pré-pombalina, mas também porque o regime escravista
225
no Brasil somente chegou ao seu fim em 1888, um pouco antes da proclamação
da República?
Essa talvez tenha sido uma das discussões mais extensas sobre a relação
entre tradição e modernidade no Brasil. De um lado, a modernidade liberal; de
outro, a tradição de uma oligarquia escravista. Idéias fora do lugar ou
desterramento em nossa própria terra seriam sintomas dessa lógica supostamente
descompassada entre tradição e modernidade. Como sugere Silva, importa
pensar a cultura política e jurídica brasileira como resultado de um processo mais
afeito à dinâmica da hybris, cuja idéia de movimento era nuclear, do que fruto da
contradição entre ideação e realidade
145
. Portanto, mais do que querer pensar o
Brasil em moldes pré-estabelecidos, torna-se conveniente e necessário pensá-lo
em uma lógica própria. Seria plausível, nesse caso, pensar que a relação
identidade-diferença tinha seu corolário temporal na díade tradição-modernidade?
Raul Pompéia via na Monarquia brasileira apenas o “disfarce” da lógica
colonial
146
. Evidentemente que Eduardo Prado não pensava do mesmo modo.
Para ele, o fato da abolição da escravidão ter ocorrido durante a Monarquia nada
mais era do que aquela lógica natural de autodeterminação que o Brasil buscava
para si ao longo de sua história. A propósito da escravidão, além dela ter sido
abolida ainda em tempos do Segundo Reinado, havia outra qualidade que,
supostamente, era inerente ao povo brasileiro – a pacificidade: “porque o único
país monárquico da América foi também o único país que pacificamente extinguiu
a escravidão”
147
. A Monarquia, antes de ser a mantenedora de uma tradição
colonial, foi a libertadora (moderna) desse regime, o que fazia dela uma instituição
mais moderna do que a República que, ao contrário, a partir de 1889, havia
estendido, com o “fim da liberdade”, a escravidão a toda a nação e não
exclusivamente a uma parte dela: “no Brasil não há senão escravos”, disse Prado,
145
SILVA, Mozart Linhares da. Reflexões acerca da formação da cultura jurídica moderna
brasileira: a questão do método. In: Anais do VI Encontro Regional de História – ANPUH. Passo
Fundo: Ed. da UPF, 2002, p. 2. O mesmo autor sugere que o Brasil misturou liberalismo e
escravismo, o que de maneira alguma representou uma contradição e sim uma “miscigenação” do
pensamento liberal. Ver: SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 91.
146
POMPÉIA, Raul. Em nome de Tiradentes. [1893]. In: Obras..., op.cit., p. 301.
147
PRADO, A ilusão..., op.cit., p. 133.
226
em janeiro de 1890
148
. Além disso, a Monarquia seria, diferentemente da
República, representativa, o que queria dizer que a presentificação da totalidade
do povo se fazia presente na Corte Imperial. Vimos como autores relativamente
desprendidos da Monarquia mantinham essa visão um tanto representativa do
Império – tais como Joaquim Nabuco.
É possível perceber a idéia de pacificidade não somente nos momentos em
que o autor a relacionou com o Império, mas também com a totalidade da nação.
A idéia da pacificidade – e não passividade –
149
, mito criacionista que teve sua
articulação construída desde, pelo menos, a formação da assembléia constituinte
brasileira de 1823
150
, era uma das pedras de toque do pensamento de Eduardo
Prado. Para ele, como para muitos dos seus contemporâneos, um dos cernes do
brasileiro e do Império era a pacificidade, a aversão às armas que tanto havia
contribuído para que a própria República se tornasse vitoriosa, dada a ausência
de resistência do povo diante da mudança de regime político: “o divórcio do
Imperador das coisas militares... foi o que salvou a civilização brasileira, mas foi o
que perdeu a Monarquia”
151
.
Tal condição implicava uma ação na história que deveria ser sempre
valorizada, a saber, a necessidade de uma liderança que pudesse, tal como o
imperador Dom Pedro II, personificar a moderação em todos os conflitos
internacionais, o que daria ao Brasil, em termos geopolíticos, a hegemonia sobre o
hemisfério sul, objetivo ao qual Prado sempre se manteve fiel. A questão é que a
partir da República, a Argentina e o Chile haviam se tornado ameaças maiores
para a soberania nacional brasileira, se levado em consideração o temor do autor
relativo ao ideal federativo que conduziria o Brasil à fragmentação nacional
152
.
Em termos de política exterior, a idéia da pacificidade seria uma vantagem
geopolítica da qual o Segundo Reinado havia desfrutado. Nas palavras de Prado,
148
PRADO, Fastos..., op.cit., p. 19.
149
GAUER, A construção..., op.cit., p. 256. Ver também: GAUER, Ruth. O Reino da estupidez e o
reino da razão. Rio de Janeiro: Lumens Júris, 2006.
150
GAUER, op.cit., p.256.
151
PRADO, Fastos..., op.cit., p. 6.
152
Em Fastos da ditadura militar no Brasil, tal idéia era recorrente. Além disso, Prado escreveu
artigos específicos sobre essa questão. Ver, por exemplo: PRADO, Eduardo. O perigo argentino.
[1896]. In: Coletâneas…, op.cit., vol.2, p. 175-187.
227
o Brasil jamais se deixou ameaçar, em termos de soberania nacional, por
quaisquer de seus vizinhos sul-americanos, e as guerras das quais a nação
participou ocorreram somente por questões defensivas. Prado questionava qual
era a influência da Monarquia brasileira “nesse longo drama sangrento que é a
história política da América Latina?”
153
. “Nesse capítulo”, continuou o autor, “que é
dos mais lutuosos da história universal, o Brasil monárquico só figura para honra e
gloria sua, representando a paz, a liberdade e a civilização”
154
. Durante o período
de guerras do Império, “as guerras da Monarquia brasileira não foram guerras
dinásticas; foram guerras nacionais feitas em defesa dos interesses e da
dignidade do país”
155
.
A primeira das guerras, no reinado de Pedro I, teria começado pela
Argentina, que pretendia invadir o território brasileiro. Depois, entre 1851-1852, o
Brasil teria se armado para libertar o Rio da Prata dos domínios dos ditadores
Rosas e Oribe. Contra o Uruguai em 1864 e 1865 e posteriormente, entre 1864 e
1870, a guerra contra a ditadura de Solano Lopez, no Paraguai – o qual teria
capturado um paquete brasileiro e ainda invadido, sem declaração de guerra, a
província do Mato Grosso –
156
, nada mais seriam do que a manifestação bélica de
defesa da soberania nacional e, mais além, dos princípios supostamente liberais
da Monarquia brasileira contra os ditadores republicanos.
Não pretendemos discutir a veracidade ou não dessa questão, porquanto
não é o melhor critério de adequação da linguagem à coisa que nos importa reter
nessa tese e muito menos fazer uma história militar do Brasil.
A idéia da pacificidade alcançou ampla difusão no pensamento brasileiro, a
ponto de levar o historiador Sérgio Buarque de Holanda a afirmar que a imagem
do Brasil que pairava na consciência coletiva dos brasileiros era a de um país
bondoso, ordeiro, avesso às guerras. “A idéia que de preferência formamos para
nosso prestígio no estrangeiro é a de um gigante cheio de bonomia superior para
153
PRADO, Práticas e teorias..., op.cit., p. 105.
154
PRADO, op. cit., p. 105; PRADO, A ilusão..., op. cit., p. 31.
155
PRADO, Práticas e teorias..., op.cit., p. 106.
156
Ibid., p. 106.
228
com todas as nações do mundo” dizia o historiador
157
. Buarque de Holanda via a
noção de pacificidade como uma ligação espiritual ao passado do Brasil Imperial.
Segundo o autor:
“O Segundo Reinado antecipou, tanto quanto lhe foi possível, tal
idéia, e sua política entre os países platinos dirigiu-se insistentemente
nesse rumo. Queria impor-se apenas pela grandeza da imagem que criara
de si, e só recorreu à guerra para se fazer respeitar, não por ambição de
conquista. Se lhe sobrava, por vezes, certo espírito combativo, faltava-lhe
espírito militar”
158
.
O Brasil não teria sido militarista durante o Império; pelo contrário. Não nos
esqueçamos que, para Eduardo Prado, o militarismo na América Latina era o
equivalente político da fragmentação e da ação bélica, não para a defesa do
território contra inimigos externos, mas sim contra os seus próprios patrícios. Dom
Pedro II, ao contrário, era uma espécie de consubstanciação dos ideais de política
e cultura, ou do cultivo do intelecto como ilustração para o desenvolvimento da
política. Sua índole supostamente pacífica seria uma identidade com o povo que,
a exemplo de seu representante máximo, também seria avesso às coisas
militares. Por essa razão, para o intérprete, haveria sempre uma disjunção entre
os interesses do povo e o regime republicano.
O povo assistia bestificado à implantação da República. Tal idéia, que
Prado tomou de empréstimo a Aristides Lobo, não significava que o brasileiro era
um povo pusilânime in totum. O que supostamente haveria por parte do brasileiro
seria uma aversão às armas que teria implicado o esquecimento do seu dever de
resistir e de reagir diante de algumas injustiças nacionais
159
. Prado questionava as
idéias dos republicanos que diziam que o militarismo brasileiro não era idêntico e
nem o seria aos demais militarismos sul-americanos, porque, contrariamente aos
seus vizinhos latinos, o militarismo jamais dominaria definitivamente o Brasil e
porque o Brasil era um povo sem predileção pelas armas, ao que Prado rebateu:
“É verdade. Mas esse desamor do brasileiro pela profissão militar é
justamente o que constitui a sua inferioridade e faz dele um homem
desarmado por hábito e incapaz de se armar para reagir; é o que o põe na
157
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Brasília: Ed. da UNB, 1963, p. 171.
158
HOLANDA, op. cit., p. 171.
159
PRADO, Fastos..., op.cit., p. 115.
229
desgraçada posição de nunca poder defender-se contra a força armada
esquecida dos seus deveres”
160
.
Em que pese o questionamento pradiano a um dos supostos cernes do
Brasil – ao relacionar a pacificidade com a passividade de maneira crítica – essa
parece ter sido a principal idéia que o autor manteve na afirmação de sua
ontologia política, cujas leis eram a consubstanciação da liberdade, da igualdade e
da paz, existentes durante toda a vigência do Império: “Sem armas e tranqüilo, o
brasileiro vivia à sombra das leis”
161
. Viver à sombra das leis significava não a
escuridão da margem, mas o repouso da sombra frente ao sol ardente – uma
metáfora tipicamente tropical.
Questionando o cerne da função e, portanto da representação do Exército,
Prado perguntou se o povo nada poderia fazer quando “parte do Exército resolveu
servir-se, contra a liberdade, das armas da Nação para a defesa da honra nacional
e das livres instituições juradas”
162
. Usar do poder delegado pelo povo para agir
contra ele seria um ato de traição, além de deslocar a sua função fundamental,
que era de proteção da própria nação em termos de fronteiras nacionais. Para
fortalecer a idéia da pacificidade do brasileiro, o autor entendia que “um povo todo
entregue ao trabalho da paz não pode reagir contra a força armada”
163
. Nesse
sentido, se o representado era idêntico ao representante, não havia qualquer tipo
de problema em termos de ausência do povo na coisa pública, o que fazia, como
foi dito, do Império do Brasil a verdadeira República.
A questão é que a Monarquia havia chegado ao seu fim em 1889. Prado
disse, em uma ocasião, que o “tempo parece mais longo ao aflito”
164
, e que os
republicanos não poderiam impedir, “nem por um decreto, um fato de ordem
astronômica, isto é, a fatalidade de vir um dia depois do outro”
165
. Mais do que
querer provar a existência do tempo em termos astronômicos, Prado falava em
termos metafóricos. Significava dizer que a República, a exemplo de tudo, estava
160
PRADO, Fastos..., op.cit., p. 115.
161
Ibid., p. 98.
162
Ibid., p. 98.
163
Ibid., p. 98.
164
Ibid., p.33.
165
Ibid., p.33.
230
sob o ritmo do fluxo temporal, o que poderia implicar também sua relativização.
Perguntamos: não seria possível pensar que o autor também percebeu tal
relatividade na Monarquia?
Talvez o escritor nunca tenha deixado de ser monarquista. Não obstante,
em determinados momentos a relação da ontologia nacional foi deslocada para
outra dimensão que transcendia o ser do Brasil, embora estivesse também
articulado a ele, mas não em um sentido de exclusividade ontológica. Afinal, como
sustentar a Monarquia depois de seu esfacelamento? Se o povo era monarquista,
por qual razão ele não faria uma nova revolução de restauração do regime
destituído? Primeiramente, porque sua índole pacifista não o permitiria, diria
Prado. Mas não teria sido essa uma razão insuficiente para o autor entender o que
se passava efetivamente com o Brasil?
Com o passar dos anos, tornava-se cada vez mais difícil manter a
convicção em uma estabilidade do regime monárquico, ou a crença em sua
eficácia ontológica, se ele havia desmoronado. Como apresentamos
anteriormente, Prado reconhecia a força da mudança diante do regime
monárquico, afinal tudo passava e mesmo os impérios caiam. O autor
demonstrava um forte sentido de historicidade, ao questionar inclusive, que era
uma “fraqueza perdoável essa de querer viver sempre”
166
. Para ele, a
“humanidade não pára”, e se “há uma escola, hoje há pouco respeitada na ciência
política, que fez da República o ideal dos governos, quem nos diz que o futuro
achará outra fórmula mais adiantada?”
167
. Ou ainda, antecipando palavras que
apareceriam nos escritos de seu sobrinho-neto Caio Prado Junior, “quem nos diz
que a nossa sociedade burguesa de hoje não desaparecerá, para dar lugar a outra
baseada no socialismo?”
168
. Nessa ânsia de historicização e relativização, o autor
atirava contra toda idéia de absoluto em relação à política, o que deixava a sua
ontologia relativa ao regime monárquico um tanto debilitada. Enfraquecimento que
levou o ontólogo da nação a buscar em outra entidade o fundamento da nação: o
catolicismo e a Companhia de Jesus.
166
PRADO, Eduardo. A justiça da República. [1896]. In: Coletâneas..., op.cit., vol. 2, p. 55.
167
PRADO, A justiça..., op.cit., p. 56.
168
Ibid., p. 56.
231
4.3.2 – A ontologia religiosa
Importante recapitular que, no segundo capítulo, interpretamos o elogio de
Prado à Inglaterra em razão de seu “temor a Deus”. No capítulo sobre as
Américas, igualmente, abordamos o tema da religião ao investigar o exterior
constitutivo Espanha e a Companhia de Jesus. Desse modo, a referência à
ontologia religiosa aqui não é uma novidade completa. Não obstante, é o momento
de determo-nos um pouco mais no pensamento religioso de Eduardo Prado e
como ele se articulou com sua idéia de nação.
Se lidos os escritos do jovem Eduardo Prado, nas suas viagens pelo
mundo, pouco encontramos ali de uma cultura religiosa propriamente dita, ou seja,
um pensamento que se afirmava com idéias sobre Deus, ou mesmo sobre
instituições religiosas como tais. Foi depois de um momento pontual em sua
trajetória intelectual que Prado se tornou um católico fervoroso, que incidiu na sua
identificação com a Companhia de Jesus e com as instituições católicas, para não
usar um termo mais amplo como cristianismo.
Apresentamos, anteriormente, a crítica pradiana a um dos principais
mentores do iluminismo francês, Voltaire, por meio de uma relação que o autor fez
entre o ser e o devir. Diante do desvanecimento da realidade que levava Voltaire
aos restos e ao pó, havia a realidade perene e eterna e, por que não, imortal do
cristianismo e daquele que seria a superação da própria finitude: Jesus.
Ainda neste capítulo, ao analisarmos a República, tentamos demonstrar
como Eduardo Prado, ao descrever as epidemias que assolavam São Paulo e
parte do Brasil, realçava o papel dos religiosos em seu enfrentamento contra o
inimigo invisível, ao contrário do governo republicano que não faria de sua posição
uma prática de luta contra a morte, tal como os soldados do Evangelho.
Nos dois casos, havia uma ontologia religiosa que transcendia a idéia de
Monarquia, mesmo porque nos textos citados, Prado sequer mencionava o nome
do regime tanto admirado por ele. Ontologia religiosa não somente na afirmação
metafísica do ser que superou a morte por meio da ressurreição, mas também
imanente, através da obra realizada pelos homens religiosos de ação. A práxis
232
cristã convergia para a superação da contingência, o que fazia do cristianismo
católico um ser ainda maior do que a própria nação.
O padre Severiano de Rezende, contemporâneo de Prado, escreveu um
livro apologético ao autor e ao catolicismo, um misto de tratado de esconjuro
contra o espiritismo, o protestantismo e o positivismo e de estudo acerca das
idéias de seu biografado. Rezende via em Prado o autor necessário para a
reorganização da pátria, que a compreendia como ninguém e sabia, por meio do
intelecto, combater todos os males de sua “época miseranda”
169
. Para Rezende, o
catolicismo era a solução para todas as mazelas do homem e o ingrediente
indispensável para a “higienização das massas, que purifica, reconforta, regenera,
vivifica – e desinfeta”
170
.
Eduardo Prado não afirmou categoricamente que a Monarquia havia
morrido, mas, por mais que o autor tenha lutado pelo seu restabelecimento,
aquele fundamento encontrado anteriormente nela estava se desfazendo. Logo
depois da República ser proclamada, o escritor pareceu delimitar tal temor: as
instituições monárquicas solapadas (paz, liberdade, segurança) que “distinguiam
tão nobremente” o Brasil, “parecerão então resultados fictícios e transitórios de
uma organização política artificial, superior ao verdadeiro fundo de civilização dos
brasileiros”
171
.
Seria o caso, talvez, de pensarmos que o autor não estava tão seguro do
papel da Monarquia na civilização brasileira. Se Dom Pedro II havia salvo a
civilização brasileira com o sacrifício da Monarquia, isso significava que o Brasil
era maior do que a Monarquia. Se havia a possibilidade de questioná-la como uma
organização política artificial – o que contrariava o que próprio autor afirmava ao
longo dos Fastos –, não poderia ser a Monarquia o alicerce da nação. Não
haveria, em suas qualidades, aquele pathos eternalista que proporcionaria ao
brasileiro (e a ele) o prazer e a segurança da imutabilidade, nem o fundamento
169
REZENDE, José Severiano de. Eduardo Prado: páginas de crítica e polêmica. São Paulo: N.
Falcone & c., [1901?], p.8. A data de publicação do livro de Rezende é incerta. O mais provável é
que tenha sido escrito nos meses imediatamente subseqüentes ao falecimento de Prado, em
agosto de 1901.
170
REZENDE, op. cit., p. 76.
171
PRADO, Fastos..., op.cit., p. 18.
233
que permitiria ir ao fundo para que o ser tivesse lugar. O fundo parecia ser, já nos
primeiros escritos pradianos acerca da Monarquia, o “vazio do não-lugar”
172
.
Ao acompanhar o pensamento de Prado, percebemos que nessa ontologia
havia um forte apelo institucional. Se, no século XVIII, “a maior vitória do
filosofismo foi a destruição dos jesuítas, fato de maior gravidade para o Brasil”
173
,
caberia, no momento presente, revigorar tais instituições. Se havia um segredo de
duração e uma “loucura” transcendental da Companhia de Jesus que perpassava
séculos, por que não colocá-la ao lado ou mesmo acima da Monarquia como
fundamento metafísico do Brasil?
O catolicismo não era responsável pela decadência latina, como pensava
Pereira Barreto. Pelo contrário; primeiramente, porque segundo Prado, o
sobrenatural não era decadente nas nações mais ricas do mundo, tais como na
Inglaterra e nos Estados Unidos
174
.
Embora Prado falasse da salvação da humanidade por Deus, dos crentes
que, pela fé, tinham esperança no futuro, e dos tempos de preocupação com o
mistério e com o invisível – realidades que evocavam o transcendente em seu
sentido mais metafísico
175
–, é importante não perdermos de vista seu senso
prático ligado à religião. Para ele, a fé no cristianismo poderia “dar aos indivíduos
a elevação moral indispensável para que a civilização, pela liberdade e pela
tolerância, possa ser entre nós uma verdade”
176
.
Ainda em tempos de preocupação com a ameaça anglo-americana,
Eduardo Prado apostava na recuperação do cristianismo para os povos latinos, o
que garantiria “a existência de nossas pátrias”
177
. Apesar de que a religião católica
sempre tenha sido atrelada à idéia de Monarquia do autor, parecia que havia,
efetivamente, um deslocamento gravitacional para a religião, que passava a ser
uma das principais, se não a principal mantenedora e revitalizadora da nação.
172
AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte. Belo Horizonte, Ed. da UFMG, 2006, p. 12.
173
PRADO, Eduardo. Discurso no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. [1898]. In:
Coletâneas, op. cit., vol.3, p. 141.
174
PRADO, Dr. Barreto..., op. cit., p. 217. É possível verificar que havia uma dissonância no interior
do pensamento pradiano acerca da visão dos Estados Unidos em termos religiosos, ora pendendo
para o ateísmo, ora para a religiosidade.
175
PRADO, Epidemia..., op.cit., p. 193, PRADO, Agouros..., op. cit., p. 279.
176
PRADO, Eduardo. A aliança anglo-americana. [1896]. In: Coletâneas, vol. 2, op.cit., p. 173.
177
PRADO, op.cit., p. 173.
234
Os jesuítas, em especial, não eram elogiados e reconhecidos somente por
Prado. Affonso Celso os elogiou ao dizer que durante os 210 anos que os jesuítas
estiveram no Brasil colonial, eles praticaram grandes feitos e apresentaram figuras
imortais
178
. Os jesuítas eram, para o autor, “o elemento moral da primitiva
sociedade brasileira, cujos costumes buscavam elevar, não transigindo com os
potentados”
179
. Mesmo Araripe Júnior, que denunciava o neocatolicismo em voga,
disse em seu escrito sobre o tricentenário da morte de José de Anchieta, que ele,
“tanto quanto cabe na esfera humana, realizou, fisiológica e psicologicamente, o
tipo do anjo, do Serafim descrito pelos hagiólogos do misticismo”
180
. Apesar de
sua descrição ser positiva, sem pretensões transcendentais, ao longo do texto,
Araripe elogiou a literatura produzida por Anchieta, bem como sua atuação como
educador no Brasil, em especial para refutar as críticas de que o catequista não
usava de meios brandos na educação dos índios – seria antes um carrasco – e
que sua obra não tinha nenhum mérito literário. O que deixava Araripe perplexo
era a utilização panfletista do Apóstolo do Brasil pelo “Dr. Eduardo Prado e pelos
jesuítas de Itu”, para dar azo à monarquia e para “dar pasto ao seu diletantismo
finissecular”
181
.
A despeito da importância que Eduardo Prado dava para a religião, em
especial para a instituição dos jesuítas em relação à história brasileira, seria ela,
por si mesma, uma condição suficiente de sustentação da nação enquanto
ontologia? Ou poderia haver uma importância maior da religião na formação da
nação brasileira que estaria subjacente, em termos utilitários, ao que
apresentamos até aqui? Tais perguntas nos remetem para uma outra ontologia
que havia no pensamento pradiano, essa sim, muito mais amalgamada com as
demais ontologias do que a ontologia política ancorada na Monarquia: a
miscigenação.
178
CELSO, Affonso. Por que me ufano do meu país. [1900]. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura,
2001 op.cit., p. 167.
179
Ibid., p. 175.
180
ARARIPE JÚNIOR, Tristão Alencar de. Anchieta. [1897]. In: Obra crítica..., op.cit., p. 239.
181
ARARIPE JÚNIOR, op.cit., p. 240.
235
4.3.3 – A ontologia da miscigenação
A ontologia da miscigenação ou da fusão racial foi preconizada por Prado
como fator de superioridade civilizacional do brasileiro, não porque o autor fosse
um nacionalista ressentido quando comparava o Brasil com outras nações, mas
porque a fusão racial teria permitido ao brasileiro triunfar sobre uma natureza
inóspita e pouco convidativa para a criação de uma civilização. Idéia não muito
comum em seu tempo que, ainda na esteira dos determinismos de ordem
geográfica, pouco espaço dava para a ação do sujeito na história.
Holandeses, ingleses e norte-americanos não haviam edificado nada
durável no Brasil
182
. Tratava-se de desinteresse, ou de uma patologia social e
nacional dessas nações?
Ao escrever sobre a arte em um artigo publicado em Paris em 1889, Prado
via na unidade política do país (Monarquia) e no “desenvolvimento da variedade
de seus elementos”, a ocasião de mostrar também nas artes a potência de sua
vida e de seu gênio
183
. Mais do que o cultivo do intelecto, o que estava em jogo no
seu pensamento em relação à variedade dos elementos formadores do Brasil era
o seu lugar preponderante na civilização ocidental.
Depois de derrotada a Monarquia, Prado ainda continuou apostando na
miscigenação como fator de sobreposição do brasileiro sobre a natureza que, ao
contrário de ser pródiga, colocava-se, para o homem brasileiro, como desafio. Nas
suas palavras:
“É esta a pátria nossa amada que, há mais de 330 anos, a nossa
raça, lutando contra os homens e contra os elementos, conseguiu fundar.
Encontramos dificuldades e obstáculos de que a nossa energia triunfou.
Nessa zona tropical, que se dizia inabitável, levantamos a nossa tenda e,
sob o céu dessa terra nova, cresceu e multiplicou-se a nossa raça com a
força e a fecundidade das plantas vivas que deitam raízes fundas e
estendem longe a verdura das suas frondes. Temos vivido do trabalho,
regando com o suor de todos os dias uma terra que só pela violência do
labor frutifica e nos alimenta. A tez branca que a nossa raça trouxe da
Europa aqui se tem dourado ao fogo de um sol sempre ardente. Temos
tomado às feras os largos pedaços de terra, rasgando o véu sombrio da
floresta hostil: e onde dominavam as febres da terra inculta, há hoje a
verde salubridade das lavouras. Entram pelos nossos portos os navios que
182
PRADO, Eduardo. L’art. [1889]. In: Coletâneas, op.cit., vol.1, p. 12.
183
PRADO, L’art..., op. cit., p.126.
236
nos trazem os habitantes de outras terras que conosco vêm trabalhar; e
nos caminhos de ferro que fizemos, circulam em nosso solo a vida e a
força. E tudo isso fizemos sendo um povo brando e sociável, que nunca
atormentou nem suplicou os fracos, deu liberdade aos cativos, amou a paz
e soube repelir pela força a agressão dos fortes”
184
.
Citação um pouco extensa, sua validade para efeitos de evidência serviria
para quase todas as ontologias apresentadas nesse capítulo: politicamente, o
Brasil não era agressivo em relação às demais nações, mas brando e sociável,
cujo amor identificava-se com a paz e com a hospitalidade
185
; em termos naturais,
circulavam no solo brasileiro a vida e a força e, por vitória da cultura sobre a
floresta hostil e a terra inculta, grassava a salubridade das lavouras;
historicamente, a natureza, a raça, a vida e a tecnologia se emaranhavam em uma
tradição consolidada há mais de 300 anos. Mas, o que nos importa reter nessa
passagem é, em primeiro lugar, a idéia de que a natureza brasileira era hostil e,
em segundo, a idéia de que somente uma raça forte e viril conseguiria sobrepujá-
la. Tomando como foco de investigação o tema dos pares natureza e cultura, tão
caro ao pensamento antropológico, não era o brasileiro sinônimo de vitória sobre a
natureza? E a cultura não seria medida pelo maior distanciamento sobre a
natureza?
Para compreendermos um pouco mais o pensamento de Prado acerca do
tema da miscigenação e do triunfo sobre a natureza, cabe assinalar a obra de
outro autor, contemporâneo, monarquista e amigo de Prado: Affonso Celso.
Em 1900, Celso publicou um livro didático que seria muito conhecido ao
longo da história intelectual do Brasil: Por que me ufano de meu país. Do início ao
fim do livro, Celso elogiou o Brasil em sua totalidade: pacificidade,
heterogeneidade, natureza opulente, abundante e promissora. O autor
apresentava uma série de razões que deveriam levar os brasileiros a se ufanarem
de seu país e a afirmar que ser brasileiro não era condição de inferioridade, mas
de “distinção e vantagem”
186
. No total, os motivos da superioridade do Brasil eram
onze: a grandeza territorial, a sua beleza, a sua riqueza, a variedade e a
184
PRADO, Eduardo. A nossa pátria. [1900?]. In: Eduardo Prado: Trechos escolhidos por Mario
Casasanta. São Paulo: Livraria Agir, 1959.
185
O conceito de hospitalidade foi usado por Celso. Ver: CELSO, op.cit., p. 95.
186
CELSO, op.cit., p.30.
237
amenidade de seu clima, a ausência de calamidades, a excelência dos elementos
que entraram na formação do tipo nacional, os nobres predicados do caráter
nacional, a ausência de humilhações, seu procedimento cavalheiroso e digno para
com os outros povos, as suas glórias e, por fim, a sua história
187
.
A obra de Celso pode ser lida como uma das mais importantes para a
compreensão do que muitos intelectuais nacionalistas pensavam acerca do Brasil.
Sua condição sintética e didática consubstanciava algumas idéias que
demarcavam a busca da ontologia da nação. Catástrofes naturais (e morais) não
existiam no Brasil. Terremotos, ciclones, inundações, fomes, pestes prolongadas e
vulcões eram realidades naturais de outros países, mas não do Brasil
188
. Sua
imensa riqueza era tão significativa que ele poderia produzir “tudo quanto
reclamarem as necessidades físicas ao homem...Oferecendo ao homem
condições de vida sem igual, a natureza brasileira em nada lhe é hostil ou
áspera”
189
.
Eduardo Prado se posicionava favoravelmente a muitas das idéias que o
seu amigo sustentava a respeito do caráter nacional do brasileiro, mas não nos
casos do otimismo naturalista, como podemos comparar nas duas perspectivas
apresentadas. Em uma das supostas vantagens, diríamos onto-naturalista do
Brasil, Prado não estava de acordo com a idéia de que o clima brasileiro era um
clima ameno, e que seu território era carregado de opulências naturais que não
hostilizavam o homem, tal como pensava Celso. Se o “subsolo, solo, ares, selvas,
águas, está tudo no Brasil cheio de vida, e vida é riqueza”
190
, conforme escrevia o
autor ufanista, para Eduardo Prado havia razões suficientes para afirmar que,
longe do Brasil ter uma flora abundante e clima propício à riqueza e ao
desenvolvimento, era muito mais um desafio que se colocava para o homem.
Não se tratava, outrossim, de uma luta amena, fraca, pusilânime, mas
violenta. A julgar pela perspectiva pradiana apresentada acima, para a raça
triunfar, era necessária energia, força, suor, trabalho, perseverança, mas sem a
187
CELSO, op.cit., p.11-14.
188
Ibid., p. 91-92.
189
Ibid., p. 15.
190
Ibid., p. 15.
238
violência da luta contra outros povos que tanto atormentava as civilizações.
Parafraseando o poeta romântico Gonçalves Dias, citado por Celso, os céus
brasileiros poderiam ter mais estrelas, suas várzeas mais flores, seus bosques
mais vida e sua vida, mais amores, mas todos esses superlativos dependiam de
uma determinação cultural, e não de uma natureza dada de antemão para o seu
cultivo sem quaisquer adversidades, como se qualquer raça que ali habitasse,
também fosse vitoriosa. Para Eduardo Prado, não era esse o caso.
Mas e a questão da miscigenação? Que houvesse o triunfo dos brasileiros
sobre a natureza, tal idéia parecia evidente. Apesar de Prado ter falado sobre a
tez branca trazida da Europa que havia se dourado com o sol sempre ardente das
terras brasileiras, em nada aquela afirmação parecia tocar no tema da
miscigenação racial. Quem era o brasileiro? Quem era e como ocorreu esse
processo de superação bem-sucedida do homem sobre a natureza selvagem?
Não poderia a tez branca que se dourara no Brasil ser uma metáfora da
miscigenação, ou, pelo contrário, a idéia reproduzida do triunfo e, portanto, do
fardo do homem branco no Ocidente?
Em 1889, pouco antes da proclamação da República, Prado definia o
brasileiro em uma tríade: “o brasileiro tem a sensibilidade da raça africana, a
paciência do índio temperando a força do português”
191
. Pouco comum durante o
regime escravista, o reconhecimento da contribuição do negro para a formação do
caráter nacional do Brasil era apenas uma exceção por parte dos intelectuais. Não
podemos dizer que Eduardo Prado tenha sido um militante de tal causa. Celso,
cuja obra principal reservava um capítulo para a análise reticente da contribuição
dos negros para a formação do Brasil, também se manteve ambíguo
192
. Embora
Prado tivesse inserido o negro na identidade raciológica brasileira, não era, para
ele, a fusão racial que formara o mulato nem o Cafuzo a responsável pela criação
do Brasil.
Não que o autor não reconhecesse a humanidade do negro, mas a sua
referência ocorria somente nos casos em que o autor falava da contribuição que a
191
PRADO, Destinos políticos..., op. cit., p. 488.
192
CELSO, op.cit., p. 103.
239
Monarquia havia dado para o fim do sofrimento dos cativos, e nas situações em
que o intérprete problematizou os Estados Unidos e seu regime escravista, que
diferenciava o Brasil em termos humanitários, haja vista que não havia, em terras
norte-americanas, liberdade e direito de cidadania efetivos. Na América do Norte,
os negros o haviam conquistado apenas formalmente. Dificuldades de exercer sua
liberdade, seu direito de voto, o negro era tratado com suma desigualdade
naquela nação
193
. E o “negro suspeito de criminoso é caçado como um animal
feroz, matado a tiro e, se é agarrado vivo, se não é enforcado, depois de grandes
torturas, é queimado vivo, a fogo lento, nas praças mais públicas”
194
.
Não havia, no Brasil, situações semelhantes que pudessem servir para
humanizar o negro por meio de sua punição? Prado falava no inferno da
escravidão no Brasil, do qual a Monarquia havia tirado milhões de pessoas, mas a
dificuldade que encontramos é que o autor manteve um silêncio a respeito do
tratamento que o escravo recebia nos trópicos. A memória da escravidão aparecia
apenas para falar do momento presente da abolição, como uma maneira de
estabelecer uma ruptura com os vestígios coloniais do próprio Império. Seria
aquele esquecimento do qual falava Renan, em 1882, acerca da nação como
plebiscito de todos os dias, que conferiria à nação o consentimento e o desejo
claramente expresso de continuar a vida em comum
195
.
Com exceção daquela primeira passagem acerca da tríade negro-índio-
branco (português) na formação do brasileiro, e mais algumas passagens pouco
significativas, não havia no pensamento pradiano, a idéia de que a formação do
ser brasileiro passasse pelos negros. Cabe, novamente, a pergunta: quem era o
brasileiro, responsável pela elevação do Brasil em civilização, o cerne racial
permanente da civilização brasileira?
193
PRADO, Eduardo. A Espanha. [1898]. In: Coletâneas, op. cit., vol.3, p. 378.
194
PRADO, op. cit., p. 378.
195
RENAN, Ernst. Qu'est-ce qu'une nation?. [1882]. Disponível em <
http://www.bmlisieux.com/archives/nation01.htm.> Acesso em 16 fev. 2006, p. 16. No original: “Une
nation est donc une grande solidarité, constituiée par le sentiment des sacrifices qu’on a faits et de
ceux qu’on est disposé à faire encore. Elle suppose un passé; elle se resume pourtant dans le
présent par un fait tangible: le consentement, le decir clairement exprimé de continuer le vie
commune. L’existence d’une nation est un plébiscite de tous les jours, comme l’existence de
l’individu est une affirmation perpétuelle de vie.
240
Novamente, deslizamos para uma tríade, um pouco diferente daquela que o
escritor deixou registrada em 1889, e que evocava a presença religiosa na
formação do brasileiro: tratava-se do branco português, do índio e da sua síntese,
do elemento que permitiria a união daquelas duas raças, a saber, os jesuítas. A
importância que o autor atribuía aos religiosos na compreensão do caráter racial e
nacional do brasileiro se dava não somente por uma questão transcendental de
salvação de almas, mas de de-finição do ser do Brasil em termos raciais. A fusão
racial decorrente desse amálgama foi, para Eduardo Prado, o caboclo.“E o
caboclo é”, nas suas palavras, “homem que todos devemos admirar pela sua força
e porque... ele que é o Brasil, o Brasil real, bem diferente do cosmopolitismo
artificial em que vivemos nós, os habitantes dessa grande cidade. Foi ele quem
fez o Brasil”
196
. Seu discurso não parou por aí. Nesse texto, resultado de uma
conferência realizada em São Paulo em 1896, por ocasião do tricentenário do
Padre Anchieta, Prado fez o tríplice elogio do homem português, do índio e dos
jesuítas:
“Foi o filho do português e do índio, o homem chamado
desprezivelmente mameluco, que descobriu este grande país, e este
enorme fator histórico não teria aparecido se a catequese, a redução, o
aldeiamento, isto é, a domesticação do índio não tivesse sido feita pelos
jesuítas”
197
A essência do brasileiro se encontrava na miscigenação, e não no ideal de
pureza ou de branqueamento que aparecia em parte da literatura brasileira,
americana e européia durante o período
198
. A descoberta da qual falava Prado,
para se constituir em uma dimensão ontológica do Brasil, não poderia se
circunscrever ao litoral, parte demasiadamente superficial do território brasileiro,
mas em um Brasil profundo, o “Brasil real” do qual falou. Mesmo Machado de
Assis, em Instinto de nacionalidade, afirmou que os costumes do interior eram os
que conservavam melhor a tradição nacional
199
.
196
PRADO, O catolicismo..., op. cit., p. 74.
197
Ibid., p. 75.
198
Ver: SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro. Rio de Janeiro: Paz &Terra, 1976.
199
ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. [1873]. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999,
p. 20.
241
Prado pensava que o contato imediato “com a gente do mar, forasteiros e
aventureiros, era corruptor e fatal”
200
. E a raça colonizadora européia não podia
medrar, “ao começo de sua imigração tropical, na costa, onde o clima lhe é
decididamente desfavorável”
201
. Para ele, “a aclimatação definitiva da planta
humana européia não era possível num país tórrido, sem o enxerto na planta
indígena”
202
. Portanto, antes mesmo de qualquer método mais eficaz de
colonização desenvolvido no século XIX – época de impérios – os jesuítas teriam
sido os precursores do sincretismo racial que permitiria ao Brasil ser o Brasil.
A comparação ou a referência a um dos maiores clássicos da literatura
brasileira do período torna-se importante nesse contexto. Os sertões, de Euclides
da Cunha, publicado em 1903, foi um dos livros que melhor contribuiu para o
conhecimento de um outro Brasil diferente daquele litorâneo e festivo do qual tanto
falava Affonso Celso. Ao relatar a Guerra de Canudos, ocorrida no interior da
Bahia em 1893-1897, Euclides tratou de tematizar o interior de um Brasil formado
pelos jagunços, mestiços que tinham seus antecendentes colaterais entre os
paulistas e que formavam uma raça forte
203
. A comparação ontológica entre o
litoral (aparência e atrofia) e o sertão (ser e desenvolvimento) dava vantagem para
o segundo:
“Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do
litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal
constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno
desenvolvimento - nos sertões a integridade orgânica do mestiço desponta
inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de evolver,
diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos, porque é
a sólida base física do desenvolvimento moral ulterior”
204
.
Retornemos à comparação de Prado com Affonso Celso. Apesar de que
Celso tenha escrito que o clima brasileiro era caluniado por aqueles que não o
conheciam ou que o queriam deprimir, e que a miscigenação era um fator de
progresso
205
– talvez uma asserção válida para Buffon e Hegel –, Prado (e
200
PRADO, op.cit., p. 79.
201
Ibid., p. 79.
202
Ibid., p. 79.
203
CUNHA, Euclides da. CUNHA, Euclides da. Os sertões. [1902]. São Paulo: Martin Claret, 2002,
p. 113.
204
CUNHA, op. cit., p. 39.
205
Ibid., p. 17.
242
Euclides) não era um depreciador do Brasil, nem por questionar a sua pobreza,
menos ainda pela miscigenação. O fato do autor paulista questionar a eficácia do
solo e do clima brasileiros não estava relacionada à inferioridade destes, mas sim
à superioridade do homem – o caboclo – que o havia domesticado. Quais
poderiam ser as qualidades culturais – no sentido de intervenção sobre a natureza
– de um povo que tivesse todas as condições climáticas favoráveis para o seu
desenvolvimento e não o fizesse? Prado parecia indicar que, quanto mais
obstáculos naturais se colocassem para o homem, mais força haveria na cultura
(em suas palavras, raça) criada na ação sobre essa natureza. Desprezar a
natureza brasileira, ao dizer que nem tudo nos trópicos era tropical, era o mesmo
que exaltar a civilização brasileira em seu ser e torná-la mais forte do que a
virilidade natural que a desafiava constantemente.
Contra a idéia de um determinismo e de um otimismo naturalista, de acordo
com o autor, somente um povo forte poderia sobreviver e prosperar diante da
realidade natural do gênero brasileiro. No seu pensamento, o brasileiro vencera a
natureza, o que deixava Prado distante do pensamento determinista finissecular,
bem como de pensadores otimistas – e pessimistas – pela natureza abundante e
pelas supostas condições climáticas oferecidas pelo Brasil.
Havia uma questão que passava por essa de-finição do brasileiro que
importa referir aqui: a questão do regionalismo. Prado, embora residente em Paris
durante parte significativa de sua vida, não deixou de apreciar o Brasil e, no Brasil,
o estado de São Paulo. O caboclo do qual falava Prado não era o mestiço do Rio
Grande do Sul ou do Norte ou de qualquer outra região do Brasil, mas sim o
paulista.
Depois de citar Oliveira Martins, que homologava sua opinião acerca dos
paulistas, eis o que disse Prado: “realmente, minhas senhoras e meus senhores,
como sabeis, o Brasil foi feito pelos paulistas
206
. Sem eles, a língua portuguesa
206
Embora saibamos que o estudo das correntes regionalistas de pensamento seja de importância
fundamental, não investigamos os rumos do pensamento regionalista de fins do século XIX, se é
que ele estava desenvolvido durante esse período. No caso de Prado, já havia algumas qualidades
de seu pensamento que poderiam implicar uma certa idéia de regionalismo, embora o autor não a
tenha desenvolvido. Seria o caso de pensar escritos futuros, tais como o de seu sobrinho Paulo
243
seria falada apenas numa estreita faixa de território paralelo ao Atlântico”
207
. Foi o
paulista, ainda em suas palavras, quem “na América do Sul, alargou os domínios
de Portugal, demarcando e batizando o Brasil do futuro”
208
. Atravessando a
América do Amazonas até o Rio da Prata, o “mameluco paulista” praticamente
havia demarcado sua posição em todo o Brasil, às custas de muitas lutas,
inclusive contra os jesuítas
209
.
Apesar do brasileiro poder ser associado ao imigrante italiano ou alemão,
não era no meio dessas qualidades raciais que Prado via a sua ontologia. Para
ele, a personificação do brasileiro aparecia em João Mangaba, um caboclo que
trabalhava no interior de São Paulo e que constituía, na sua relação simples com a
realidade do campo, o grau zero da realidade, perdido em razão da turbulência de
valores que havia devastado regimes políticos, sociedades e idéias.
Ao determinar a essência do brasileiro no homem miscigenado do interior
paulista, havia no pensamento de Eduardo Prado uma articulação maior que
supunha a dimensão natural do próprio brasileiro, tornando-o não dependente da
terra, o que seria uma contradição com aquilo que o autor afirmava acerca do
domínio do brasileiro sobre a natureza. Prado, ao usar diversas metáforas da
natureza para falar da miscigenação, não fazia mais do que ressaltar seu potencial
ontológico de solidez e imutabilidade. A natureza brasileira acabou por se
constituir também em parte do seu ser.
4.3.4 – A ontologia da natureza e da história
Como uma indecidibilidade conceitual da rasura que, quando aparece,
desaparece
210
, o ser nutrido pelas instituições cristãs, pela política e pela
miscigenação eram insuficientes para preencher o fundamento do Brasil ou
mesmo o fundamento per se. Foi esse um dos fatores que levou Prado a se
Prado, Retrato do Brasil (1930), ou Vida e morte do bandeirante (1929), de José de Alcântara
Machado.
207
PRADO, op. cit., p.87.
208
Ibid., p. 88.
209
Ibid., p. 90.
210
DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p. 36.
244
ancorar em uma ontologia não somente racial, mas natural acerca do brasileiro.
Natureza que não somente era história, mas história que se naturalizava. A
sedimentação da história, no impulso do ontólogo Eduardo Prado em fixar o ser,
aparecia, em seu pensamento, muitas vezes hibridizada com a própria história.
Apesar da dificuldade oferecida pelas terras brasileiras à implantação da
civilização nos trópicos, podemos evidenciar, no seu pensamento, uma ontologia
da natureza. Prado lançou mão de diversas possibilidades de manter esse
fundamento, entre elas, uma espécie de poética da estabilidade telúrica e
oceânica. Significava, portanto, um elogio àquilo que Bachelard nomeia de
“arquétipos da imaginação poética”, tais como a terra, a água, o ar e o fogo
211
. No
caso de Eduardo Prado, o elogio era feito sobretudo aos dois primeiros arquétipos.
Cabe determo-nos um pouco mais na idéia de natureza brasileira que o autor
sustentou.
Dar lugar ao ser não era apenas uma qualidade das ontologias humanas,
ou seja, da política, da religião e da miscigenação, mas também da própria
natureza. Em termos de tempo, a natureza continha ainda mais ser e grandeza do
que qualquer outro ser relacionado por Eduardo Prado para positivar
ontologicamente a nação brasileira, em que pese a naturalização da miscigenação
no caboclo. Falar da imensidão do Brasil, de suas grandezas, não era uma
novidade. O que Prado parece ter relatado com mais sistematicidade foi,
sobretudo, os dotes onto-naturais do interior de São Paulo, onde o principal
predicado do ser não era a grandeza do Brasil, mas o repouso de seu interior
profundo, comparado com o litoral superficial, tema que já aparecia na literatura
brasileira – lembremos de Machado de Assis e de Euclides da Cunha.
A idéia de uma identidade nacional associada à grandeza territorial
aparecia em A ilusão americana, na tentativa esforçada de Prado distanciar não
somente em termos morais o Brasil das demais nações da América, mas também
fisicamente: “são propriamente suas e independentes as raízes profundas e as
bases eternas do maciço brasileiro”
212
. A raiz, se seguirmos as sugestões de
211
Ver, em especial, a introdução de: BACHELARD, Gaston. Poética do espaço. In: Os
pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
212
PRADO, A ilusão..., op.cit., p. 10.
245
Bachelard, podem implicar tanto o “verdadeiramente sólido sobre a terra”, como a
idéia do seu valor dinâmico: o brotamento
213
.
O onto-naturalismo pradiano não se mantinha fundamentado apenas em
uma ontologia telúrica. A água, ou melhor, o Oceano e os mares formavam uma
totalidade com o povo e com a terra, na medida em que o autor considerava as
águas brasileiras “sagradas, crescidas dos nossos rios, que embalaram o berço da
nossa nacionalidade e tingiram-se do sangue dos nosso heróis”
214
. A relação
ontológica do autor com o arquétipo água, para continuarmos com uma linguagem
bachelardiana, era evidente. Ao comentar a excessiva publicidade da morte do
músico brasileiro Carlos Gomes, Prado falou que a “morte, afinal de contas, é uma
coisa séria”, constituindo-se na “grande humilhação do vivo”
215
. Por fim, escreveu,
sobre Gomes, o seguinte: “acha-se aquela grandeza extinta diante de uma
grandeza que não morre – a do Oceano, na liberdade dos seus ventos, no infinito
do seu azul, no balouço eterno das suas vagas”
216
.
Mas não era somente no Oceano que a água transmitia, para Prado, os
fundamentos do repouso e da eternidade do tempo. E aqui, voltamos para sua
ontologia telúrica, manifesta em uma carta na qual Prado reclamava de uma febre
“de que só a chuva sedativa e calmante do Brejão me tem curado nesses últimos
dias”
217
.
O conjunto dessas de-finições acerca da ontologia natural no pensamento
de Prado não estava, em sua totalidade, vinculado ao seu pensamento nacional.
Quando ele falou do Oceano, por exemplo, não havia uma relação, mesmo
indireta, com o Brasil – a não ser que possamos pensar o próprio Oceano como
um grande limite que o homem ibérico e sobretudo português sobrepujou em sua
colonização da América. Essa é a hipótese de Durand, ao afirmar que o Homo
novus português do século XVI, portador de todos os valores do Renascimento,
tais como a curiosidade exploradora, científica, o humanismo, dirigia-se sempre
213
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1990,
p. 226-228.
214
PRADO, Eduardo. A honra nacional. [1896]. In: Coletâneas, op. cit., vol. 2, p. 304.
215
PRADO, Eduardo. Odisséia póstuma [1896]. In: Coletâneas, op. cit., vol. 2, p. 340.
216
PRADO, Odisséia..., op. cit., p. 342.
217
PRADO, Eduardo. Cartas. [janeiro, 1899].In: Eduardo Prado: trechos escolhidos..., op. cit., p.
115.
246
para o largo do Oceano ou da alma, vocação do impossível e do “desejo
oceânico”
218
.
Não seria a busca dos fundamentos naturais uma maneira de tornar ainda
mais forte o que o autor considerava a necessidade do imóvel e do descanso em
um período em que “a vida do homem moderno” era “ativada cada vez mais pela
intensidade do viver e pela rapidez da locomoção”
219
, o que trazia para o
organismo “um dispêndio nervoso muito superior ao homem antigo”
220
? Se havia o
problema da própria temporalidade em sua nudez, o devir que alcançava o
passado, o presente e o futuro, não haveria a pretensão de, como uma
compensação, buscar uma espécie de abundância ontológica na natureza e na
história?
Quando Prado escreveu acerca da tradição e da importância do passado
não somente para o brasileiro, mas para o ser humano, era da história que ele
estava falando. O enfrentamento com o tema da temporalidade tinha na história a
sua radicalidade, talvez porque fosse ela, na sua historicidade, que permitiria a
suspensão do próprio tempo feito evento fugidio e circunstancial.
O que poderia ser a ontologia da história se não a sua conversão em
tradição, ou ainda, a transformação de uma realidade metafísica para além de
toda a dimensão relacional da ontologia? Um ser acima do ser que faria da
história, a exemplo dos antigos, não somente a mestra da vida, mas a grande
juíza dos fatos, uma espécie de hipertrofia ontológica da idéia de justiça que se
colocaria acima de qualquer contingência. Mas por qual razão seria ela histórica,
se eram esses os predicados mais estáveis do pensamento do autor? Exatamente
por essa razão. A história – ou o passado – era , para Eduardo Prado, fonte
permanente de repouso, de fuga, de substancialização da própria memória.
Na carta citada algumas linhas acima, datada de 6 de janeiro de 1899,
Eduardo Prado afirmou que estava dedicando-se ao estudo da teologia e, em
especial, ao jansenismo
221
. “Não imagina”, disse o autor, “como fazem bem ao
218
DURAND, Gilbert. Campos do imaginário. Lisboa: Inst. Piaget, 1998, p. 198-199.
219
PRADO, A baixa do café..., op. cit., p. 237.
220
Ibid., p. 237.
221
PRADO, Cartas..., op. cit., p.115.
247
espírito essas digressões para tão longe do meio habitual”
222
. Escritor diletante e
rico que viajou pelo mundo, Prado comparava as suas viagens com as viagens
que “todos podemos fazer sem as maçadas dos hotéis e dos caminhos de ferro...
abre-se um livro e muda a gente de século, tornando-se contemporâneo de quem
se quer ser, ao menos por algumas horas”
223
.
Assustado com o tempo presente vivido, Eduardo Prado reconhecia
diversas cadeias do ser, para usarmos uma expressão de Lovejoy
224
, que
manifestariam as suas fugas da temporalidade vivida em seu cerne corrosivo.
Prado parecia sentir o tempo passar, não somente fenomenológica e
astronomicamente, mas existencialmente, cuja sucessão dos dias era a metáfora
astronômica para explicar a condição da incerteza em relação ao que poderia ser
perene e o que seria o próprio devir.
Fugir para o passado tem a ver com aquela lógica de evasão da qual fala
Reis e que está profundamente relacionada com a temporalidade, a vivência da
experiência concreta da temporalidade como algo intolerável, com a ameaça do
não-ser e do devir como nadificação de toda a realidade
225
.
O autor esteve imbricado nas diversas polêmicas de sua época, o que fez
dele um homem que viveu o seu tempo. Contudo, tais situações não eram
contraditórias em seu pensamento: “certamente, o homem deve viver no seu
tempo, mas a tendência para a contemplação do passado é um dom nobilíssimo
de sua alma”
226
.
A conversão da história em uma grande ontologia para além de todo o ser
não era uma novidade do pensamento dos intelectuais de fins do século XIX. Ela
poderia ser encontrada em grande parte do pensamento ocidental, sobretudo
entre aqueles que viam nela o repertório cômodo de exemplos imutáveis para as
gerações presentes e futuras.
Segundo Koselleck, o espaço de experiências nos conduz a uma idéia da
história na condição de um receptáculo de múltiplas experiências distantes,
222
PRADO, op.cit., p. 115.
223
Ibid., p. 115.
224
LOVEJOY, Arthur. A grande cadeia do ser. São Paulo: Palíndromo, 2005.
225
REIS, José Carlos. Tempo, história e evasão. Campinas: Papirus, 1994, p. 142.
226
PRADO, Discurso..., op. cit., p. 122.
248
passíveis de serem apropriadas, posto que úteis como meios demonstrativos
repetíveis em doutrinas morais, jurídicas ou políticas
227
. Essa história,
denominada magistra vitae – mestra da vida – era, segundo Koselleck, ao mesmo
tempo garantia e sintoma para a continuidade que ligava o passado ao futuro.
No pensamento de Prado, por meio do presente como dilatação do passado
e como antecipação do futuro, as idéias fixas de justiça, dignidade, liberdade,
natureza humana, tolerância, respeito, entre outras, foram colocadas no céu da
história, de modo que fossem intocadas em sua tradição feita realidade perene.
Outrossim, tal relação, por pretender ser a mais estável e menos relacional de
todas, era, justamente por isso, a mais sedimentada diante da realidade da
mudança.
Conceitos como natureza humana, justiça, história, leis, entre outros,
apareciam correlacionados a uma ordem ontológica perene e independente de
regimes políticos, de nações e mesmo de culturas. Contra a ameaça do diferente
e do relativo, o autor via uma natureza humana sempre idêntica em todas as
sociedades. Aos citar passagens de A política, de Aristóteles, Prado percebia na
sua crítica à tirania – usada por ele para refutar o regime republicano brasileiro –
a prova da “eterna juventude de Aristóteles”, afirmando que “o que foi verdade na
Grécia é verdade no Brasil”
228
. Por fim, disse: “nada é novo. Tudo já foi visto e...
previsto. A natureza humana é sempre a mesma”
229
. Idéia que se repetiu em
outro texto: “cada um tem a natureza que lhe é própria. Não é possível a ninguém
forçar a sua índole”
230
.
A autoridade do passado vinha de uma fonte inquestionável. O campo de
experiência evocado era a tradição de uma filosofia política milenar, que trazia
consigo as marcas das raízes profundas do ser. Não era por uma razão menor
que o autor sugeria que os “os povos representantes de grandes civilizações são
povos veneradores dos antepassados e respeitadores do seu uso”
231
.
227
KOSELLECK, Reinhart. Futuro pasado: para una semántica de los tiempos históricos.
Barcelona: Paidos, 1993, p. 42-43.
228
PRADO, Eduardo. Uma lição de Aristóteles. [1895]. In: Coletâneas, op. cit., vol.2, p. 112.
229
PRADO, op. cit., p. 102.
230
PRADO, Uma questão de método..., op.cit., p. 308.
231
PRADO, Discurso..., op. cit., p. 117.
249
O pretérito era o locus privilegiado de elevação e de enobrecimento, tal
como um culto. Ao contrário do presente, cujos interessados somente o faziam por
“interesse”, quem “trata do passado é desinteressado, e só o desinteresse
enobrece, eleva a dignidade e as aspirações dos homens”
232
.
Em seu tempo, ninguém mais morria na casa onde havia nascido, tal como
lamentava o autor, ao falar do regime legal e econômico da “moderna organização
da vida”, que levava à criação permanente de novas cidades. Seria um erro,
porém, contestava Prado, acreditar “que estas condições especiais de país novo
tornam impossível nele o culto da tradição e o conhecimento afetuoso do
passado”
233
. E continuou: “esta transformação contínua, esta instabilidade ao
mesmo tempo destruidora e criadora, afeta, sem dúvida, a vida material e o
aspecto do cenário onde todos temos de representar o nosso papel”
234
.
Por mais que houvesse incerteza e mudança no presente, nesse presente
marcado pelo signo da destruição, mas também da criação – o aspecto positivo e
renovador do devir –, “o patrimônio moral de um povo, porém, esse não está e não
pode estar sujeito a essas mudanças destruidoras: fica consolidado de modo
eterno e inabalável no seu passado intangível”
235
.
Prado, ao fazer essa meditação acerca da temporalidade em suas
qualidades pretéritas, presentes e futuras, pensava no pessimismo de seu tempo
e na maneira como os intelectuais deveriam lidar com ele. O passado, embora
representasse certas abstrações universais como tradição, justiça e veneração,
não estava dissociado do passado da nação. O autor via até em autores
pessimistas como Schopenhauer, “que bastante mal tem causado pelo erro moral
de suas conclusões”, que o conhecimento da História – com o “h” maiúsculo – era
imprescindível para que o homem saísse de sua animalidade
236
. Tratava-se,
portanto, não somente de uma transição natureza-cultura, mas do conhecimento
de si mesma enquanto nação autônoma que se colocava, o que importava em
provar o “quão interessante, quão bela, quão grande, quão relacionada com a
232
PRADO, op.cit., p. 122.
233
Ibid., p. 126.
234
Ibid., p. 126.
235
Ibid., p.127.
236
Ibid., p. 127.
250
história geral da humanidade é a História do Brasil, e quão digna é de ser
estudada e amada, mesmo por aqueles que não são brasileiros”
237
. Por fim, o
aforismo socrático aplicado às nações: “aos povos, mais do que aos indivíduos,
obriga o preceito da antiga sabedoria: – conhece-te a ti próprio!”
238
.
Voltamos para o outro lado da tematização da temporalidade, pelo lado de
sua historicidade recalcada. No primeiro capítulo, ao chamarmos a atenção para a
percepção que Eduardo Prado e diversos pensadores ocidentais tinham acerca do
tempo, falamos sobretudo da apreensão que tais autores faziam, ao problematizar
o passado, o presente e o futuro como duelo entre o ser e o não-ser. Quando
chegamos ao que supostamente se concretizava como as ontologias da nação em
sua constitutividade, o caminho para se encontrar a temporalidade era o inverso
daquele que a arrostava. Trata-se de fugas e temores que a realidade, na sua
radicalidade de evanescência, tinha para os escritores finisseculares, o seu “não-
ser que atravessa o ser da humanidade”, e que lhe causa angústia, medo e dor
239
.
Ainda uma palavra sobre a história e sua relação com a ontologia: a
questão da justiça. A história tinha um passado de identificações com a idéia de
justiça. Com-fundida muitas vezes com a própria justiça, não seria de todo
exagerado afirmar que juntamente com a ampulheta, poderíamos colocar, em
determinados contextos intelectuais, a balança como símbolo da história.
Essa era a situação de Eduardo Prado, ao evocar a história como sinônimo
de justiça em seu sentido mais lato. Afinal, para ele, a “história é feita de
reparações salutares e de tardias justiças”
240
. Idéias desse gênero apareciam em
seu pensamento com certa recorrência: “acima dos homens, acima dos interesses
da nova geração, pairam as idéias de justiça e de liberdade”
241
; “as lições da
história são úteis, ou nos venham do passado, ou se desenrolem, ante nossos
olhos no presente”
242
; “o que era lícito ontem e hoje, há de ser lícito sempre”
243
.
Para encerrar essa cadeia de citações, eis uma última que agrega as diversas
237
PRADO, op.cit., p. 143.
238
Ibid., p. 144.
239
REIS, op.cit., p.142.
240
PRADO, O catolicismo..., op. cit., p. 98.
241
PRADO, Respondemos..., op. cit., p. 128.
242
PRADO, Fastos..., op.cit., p. 40.
243
Ibid., p. 65.
251
ontologias da nação no pensamento de Prado. Em 1890, logo depois da
implantação da República, ainda na aurora de sua esperança na reconstituição da
Monarquia, eis o que Prado afirmou:
“As violências, os crimes e os erros da Ditadura brasileira não
deixarão de si outra memória senão a de uma fase de provações para o
país. Será como uma tempestade que faz dos caminhos uns rios de lama,
transforma os campos em charcos, curva até ao chão as altas árvores,
macula de lodo as flores, turva as fontes e os lagos. O Sol acaba porém
raiando afinal e ressuscitando a natureza. Faça a Ditadura o que quiser:
polua as consciências, destrua o direito, envileça os corações. A sua obra
impura há de ser destruída, e até sobre os nomes dos culpados a
generosidade dos pósteros estenderá um véu e, esquecendo-os, lhes dará
quase um perdão. A justiça, sol imperecível, há de aparecer e dominar”
244
.
Expomos essa passagem em razão de sua mistura entre natureza e história
na alegoria da tempestade, que deixaria a terra movediça e suja, impossibilitando
o trânsito para o progresso do caminho. Situação provisória do Brasil, de modo
que, no futuro, o véu da esperança e da justiça calcada nas imagens da calmaria,
das altas árvores que se curvariam até o chão – mas que, notemos, não seriam
arrancadas e separadas de suas raízes – e do sol como luz depois da
tempestade, deixam margem para escrever a indecidibilidade do ser entre a
natureza e a história. A propósito, quando o intérprete escreveu sobre a natureza
que ressuscitaria com o sol, ele estava falando da natureza natural, ou da história
do Brasil pós-republicano?
Na conclusão de A ilusão americana, Prado apresentou um dos momentos
que mais combinaram esses binarismos em torno do dis-curso da nação. Embora
seja uma passagem relativamente longa, vamos citá-la integralmente, não
somente pelos arroubos poéticos do autor, mas por arranjar de modo criativo as
ontologias que estamos apresentando:
“No recanto do solo brasileiro, de onde escrevemos essas linhas,
os meses de setembro e de outubro deste ano de 1893, não se distinguem
em cousa alguma dos de outros anos. Estas semanas são as da primeira
carpa das roças e do plantio do milho. Quanta filosofia inconsciente e
prática, quanta sabedoria inata neste povo! E quanto sentimos que a
civilização destruísse em nossa alma a serenidade desta gente! Clama alto
em nosso espírito a voz da experiência fria e implacável e, pessimista, ela
nos diz: a colonização ibérica da América foi um insucesso, foi uma
desgraça para a civilização do nosso planeta. Não chegam a ser nações os
agrupamentos em que gânglios de populações mestiças, oriundas de todas
244
PRADO, Práticas e teorias..., op. cit., p. 111-112.
252
as inferioridades humanas, querem por força fingir de povos... O amálgama
artificial chamado Brasil está desfeito, apesar de duas ou três geracões
terem chegado a viver e morrer na ilusão do artifício, que agora vai findar.
Vemos, porém, o bloco imenso de uma rocha ferruginosa, ora decomposta,
e que forma uma montanha de terra arroxada, como que embebida do
sangue, ainda fresco, de hecatombes recentes. Aquela terra já existia há
milhares de anos, antes de existir tudo quanto hoje existe e faz ruído. Ela
existia antes do tempo em que o exército de César era contra a armada de
Pompeu. Existirá, ainda, quando, de outros ambiciosos, não restarem nem
os nomes pouco ilustres”
245
.
O repouso telúrico do solo, amálgama entre a nação e a terra, evocava o
ser, do mesmo modo que a indistinção dos anos que se passavam. E o povo do
interior, cuja filosofia inconsciente era inversamente oposta à do bacharel, tinha na
sua sabedoria, a profundidade do Brasil profundo. Não de um Brasil bárbaro,
porquanto supostamente intocado pela civilização. Não era esta a civilização à
qual o autor se referia, mas àquela que Eça de Queiroz tipificou em seu romance
A cidade e as serras, a civilização dos excessos, da decadência, do progresso
feito por meio da destruição e de tudo que significava, em uma palavra, morte. O
homem do interior era, mais do que civilizado, o homem cujo ser estava intocado
pelo devir.
Alter ego do ser e do Brasil efetivo, Prado questionava aqueles intelectuais
pessimistas que vilipendiavam os miscigenados Brasil e América Ibérica, com
todas as suas implicações na “civilização do nosso planeta”. Contra eles, o
ontólogo da nação afirmou, entre o que existia e o que “existirá”, o presente
permanente da rocha ferruginosa e da terra arrochada que estava e era desde
sempre o mesmo. Nem qualquer ruído provocado pelas mudanças, pela
insegurança e pelo devir modificariam esta natureza do ser. Se o ser existia antes
de qualquer história, ele existiria posteriormente a ela, mesmo depois que o vir-a-
ser levasse consigo a memória daqueles que desnacionalizavam o Brasil.
Falar sobre as comparações que o autor fez com a natureza e com a
história implica um retorno à sua tematização em termos ontológicos. Torna-se
difícil, em determinados momentos da interpretação do pensamento de Eduardo
Prado, separarmos em termos procedimentais tais ontologias. É o caso da
passagem acima. Ao fazer as comparações com as tempestades naturais, cujos
245
PRADO, A ilusão..., op.cit., p.187-188.
253
rios de lama, campos charcos, lodo das flores, turvação dos lagos e das fontes,
implicavam o desenraizamento, a mobilidade do fundamento, Prado estava se
referindo a uma situação presente de desagregação do Brasil – o que linhas atrás
denominamos de interior transitivo, ou para usar a sua fraseologia cristã, período
de provação –, o qual ainda teria, na esperança do futuro imediato, a justiça clara
e iluminada do sol que apareceria depois da tempestade. Mais do que qualquer
outra realidade, a comparação da justiça com o sol chamava, em seu
pensamento, a idéia de ser.
Havia uma história do ser no pensamento de Eduardo Prado que colocava,
outrossim, a questão do cerne duro de sua identidade em decisão, no sentido de
de-finição. O fato do autor buscar em diversas categorias ontológicas o cerne do
Brasil e, muitas vezes, de toda a realidade, nada mais era do que sinal de sua
inquietação em relação à impossibilidade mesma de des-historicizar o ser, a
finitude como modo de destacar a historicidade
246
. Parecia, efetivamente, que se
havia um esquecimento do ser, era porque ele se fazia apenas como
temporalidade. Em termos de imagi-nação, ou dis-curso da nação, o pensamento
de Eduardo Prado evocava aqueles ritmos temporais interiores à constitutividade
da nação, mas que tinham, no caso do Brasil, algumas especificidades se
comparadas com as representações móveis que o autor desenvolveu acerca da
civilização brasileira.
As idéias de decadência e de pessimismo, por um lado, e de otimismo,
experiência e esperança, por outro, articulavam-se à linearidade, à ruptura, à
permanência e à reprodutibilidade. O presente, decadente em sua forma
republicana, tinha as marcas do bacharelismo, do ateísmo, do positivismo e da
fragmentação. Misto de eternidade no instante podre do nascimento e linearidade
para o fim, a natimortalidade da República era, em qualquer circunstância,
corrosão e dissolução.
No pensamento de Prado, essas qualidades do Brasil deveriam ser
eliminadas em um tempo futuro imediato, como horizonte de esperança em razão
246
STEIN, Ernildo. Melancolia: ensaios sobre a finitude no pensamento ocidental. Porto
Alegre: Ed. Movimento, 1976, p. 19.
254
da decadência e do rebento natimorto. Havia, para efeitos de apreensão do ser,
um esforço de retornar ao futuro do Brasil, ou continuar sendo o que ele era –
monárquico – para ser. O gerúndio do ser era sua condição para tornar-se
substantivo.
A ruptura estava associada tanto ao restabelecimento dos predicados
morais do Brasil, perdidos pelo não-ser da República, como com o rompimento do
modelo passado que teria levado o Brasil a seu declínio presente. A
reprodutibilidade aparecia não somente na idéia de que a República repetia os
modelos decadentes da América Hispânica, mas a reprodução como re-
nascimento do passado civilizacional monárquico, o que implicava os ideais de re-
vigoração otimista da experiência passada.
As ontologias do Brasil eram a sua permanência, os eixos de sedimentação
do ser, as trilhas limpas das coivaras – para usarmos uma linguagem cabocla –
que deixariam o ser manifestar-se. Ser que, ao não se circunscrever a uma
ontologia em particular, tinha a sua historicidade ligada à posição de cada uma
dessas ontologias no pensamento pradiano. Mesmo as ontologias supostamente
permanentes dependiam das circunstâncias e das relações para que elas
pudessem ser.
Não queremos dizer que, ao historicizarmos as ontologias política, natural,
racial, religiosa e histórica, chegássemos a uma redução ao absurdo, fosse para
encontrar a essência, fosse para pulverizá-la. Trata-se, simplesmente, de colocar
na mobilidade do curso do pensamento, o dis-curso, as diversas elaborações
identitárias nacionais e suas aporias no pensamento de Eduardo Prado.
Essas questões foram tratadas ao longo da tese por meio de diversas
concepções supostamente exteriores ao Brasil, de maneira que, quando
chegássemos ao cerne do ser do Brasil, pudéssemos evocá-lo sem incorrer na
temporalidade que o sustentava. Tentativa, diríamos, mal-sucedida. Apesar de
que imagens do repouso fossem evocadas no ser natural da nação, na
miscigenação e na religião, elas tinham uma mobilidade no pensamento de Prado
que nos deixa margem para pensar o discurso como dis-curso.
255
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Existe é homem humano.Travessia” (Guimarães
Rosa, Grande sertão: veredas).
Chegamos ao final do meio da travessia. Talvez não haja expressão mais
dis-cursiva para o pensamento e para a realidade que ele pretende domesticar
senão a do homem humano.Travessia. Pois, para continuar falando com
Guimarães Rosa, o real não está na saída nem na chegada: “ele se dispõe para a
gente é no meio da travessia”
1
. É possível que os homens sejam mesmo ponte e
não fim, como fala o profeta e poeta Zaratustra. De qualquer modo, essas
considerações finais que ora seguem o seu per-curso são apenas parte dessa
realidade, sem qualquer pathos de transcendência para além da curva da estrada.
Podemos dizer, de modo muito breve, que a tese apresentada tratou de um
autor – Eduardo Prado – e de dois conceitos – ontologia nacional e temporalidade.
Brevidade que trai a realidade apresentada, na medida em que Eduardo Prado,
mais do que um autor, foi a possibilidade conceitual de seu estar lançado nas suas
circunstâncias – que não eram somente dele –, cuja autoria se articulava com as
dimensões de afirmação-firmação ontológica da nação e da temporalidade,
conceitos que se fizeram, outrossim, autores. Não se trata de achatar o sujeito
Eduardo Prado em estruturas sufocantes que o des-historicizam. Se assim o
fosse, não pensaríamos em uma tese cujo objetivo principal foi o de interpretar o
pensamento de um autor. Pensamento que não se fez sozinho, evidentemente.
Podemos novamente dizer que a realidade epocal apresentada na tese foi a
preconização da intersubjetividade, por meio de interlocuções com Araripe Júnior,
Pereira Barreto, Manoel Bomfim, Machado de Assis, Carlos Bunge, Joaquim
Nabuco, Graça Aranha, Raul Pompéia, Afonso Arinos, Olavo Bilac, Eça de
Queiroz, Ramalho Ortigão, Teixeira Bastos, José Enrique Rodó, Frederick Jackson
Turner, Nietzsche, Simmel. Bergson. Seguramente, essa lista de autores poderia
ser dilatada. Sem eles, não haveria ontologia da nação nem temporalidade.
1
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 64.
O pensamento da identidade nacional desenvolvido por Eduardo Prado e
seus outros foi um pensamento que teve como preocupação permanente a
relação da nação com a temporalidade. Nas suas reflexões sobre a nação, o seu
ser e seu não-ser apareceram de diversos modos: morte, devir, esperança, fim,
renovação, decadência, ruptura, dispersão, dissolução, angústia, progresso,
repetição.
Qual era a grande cadeia do ser que formava a ontologia nacional no
pensamento de Eduardo Prado? A representação como presença da ausência
provoca o pensar o passado como um sido-aí que se constitui pelo rastro e pela
ruína, cuja latência e visibilidade se fazem por meio de uma linguagem rasurada,
móvel, peregrina e agônica. Afinal, como representar a realidade da nação, da
temporalidade, ou da nação imersa na temporalidade?
Quando interpretamos o pensamento de Eduardo Prado e daqueles autores
que, de um modo ou de outro, partilharam algumas idéias epocais em comum com
ele – fosse para criticá-lo, fosse para reforçar suas asserções – apresentamos
representações de representações, realidade que se formou enquanto tal na
condição da presença-ausente: a representação de uma falta, a ausência feita
presente através do rastro arquivístico como esforço de memória para construção
de um conhecimento histórico. A historicidade como temporalidade, como estar-
lançado no mundo da finitude permeou o ato de conhecer tanto de Eduardo Prado
quanto de seus interlocutores, translocutores e intérpretes.
O que poderia estar presente, no problema da representação, senão a
relação do humano com a temporalidade? Não apenas em sentido de cessação
de todo o existir e de ser-para-a-morte – a agonia do devir que tudo transforma,
ameaçando de destruição (e de desaparecimento) a nação, a cultura, a civilização,
o passado feito tradição, a religião, o ser, o dever – mas também de constante
criação e recriação daqueles valores. É claro que todos esses entes estavam
imbricados em uma grande cadeia relacional que teria como ser tudo que pudesse
ser concebido como permanente, perene, ou em uma palavra, i-mortal porque não
colocado na historicidade, no próprio horizonte de constituição do ser enquanto
temporalidade.
257
A dificuldade de Eduardo Prado construir uma representação homogênea
da nação, de perceber nos exteriores constitutivos e no próprio interior transitivo a
ameaça ao ser do Brasil nada mais foi do que um arrostar o tempo enquanto
alteridade que se colocava para toda a realidade concebida por ele como ser, ou
seja, o Ocidente e suas instituições, sobretudo o Brasil. Não seria nesse caso, o
Brasil, bem como seus exteriores e suplementos, as imagens da própria alteridade
– a imagi-nação – no pensamento pradiano?
Parafraseando Heidegger e Ortega Y Gasset, entendemos que todo o
horizonte de constituição do ser da nação em Eduardo Prado se manifestou
através da temporalidade, da relação de seu pensamento com as circunstâncias,
com o sido-estado-aí de sua própria atividade intelectual imersa em uma época
que (re)descobria a radicalidade do próprio tempo, no Brasil, nas Américas e na
Europa. Eis a topologia das falas, espaçamento que era temporalidade. Espaço e
tempo definidos não aprioricamente, à maneira kantiana, como condições de toda
a experiência, mas espaço de realização da experiência radical da história como
temporalidade e da temporalidade como história.
Ao evocar o problema da temporalidade e da nação no pensamento dos
intelectuais de fins do século XIX, outra questão que está presente na maneira
como o trabalho foi conduzido é a fronteira entre uma dicotomia já enfatizada em
outro momento, talvez porque ela seja a própria tese, a saber: a universalidade e a
particularidade. Nesse sentido, será possível descrever o mundo de fins do século
XIX, o mundo de Eduardo Prado, a partir do sertão, para retomarmos a metáfora
de Guimarães Rosa? Talvez, se o sertão for do tamanho do mundo
2
.
Tobias Barreto escreveu, antes de 1889
3
, um texto introdutório sobre o
estudo da história, no qual afirmou que a expressão história universal e história da
humanidade eram disparate, pois, para ser universal e humana, ela deveria ser a
história do universo e da humanidade
4
. Concordamos com ele. Nossa
universalidade é apenas uma comodidade da linguagem, que pretende apenas ser
2
ROSA, op. cit., p.73.
3
Ano de sua morte. O texto foi publicado postumamente, em 1891.
4
BARRETO, Tobias. Estudos alemães. Rio de Janeiro/Aracajú: Record/Secretaria de Cultura e
Meio Ambiente, 1991, p.221.
258
uma história entre outras possíveis, que tem as qualidades do conceito e da sua
irredutibilidade à realidade representada ou, para voltarmos às velhas palavras, do
ser e do devir no dis-curso.
Alguns hiatos foram encontrados ao longo da construção da tese, os quais
demandariam uma nova problematização e uma nova tese. O primeiro deles
sugere que, pelo fato do pensamento de Eduardo Prado estar lançado em
circunstâncias históricas que entendemos como fundamentalmente articuladas à
relação entre a temporalidade e a identidade nacional, Prado não poderia ser
tomado como um intelectual isolado em seu tempo. Por isso, colocamos lado a
lado do escritor uma série de outros autores cujas idéias estiveram relacionadas
aos mesmos problemas que Prado tratou. Mas foram apenas intelectuais que
apareceram de modo secundário, sem maiores implicações de aprofundamento do
seu pensamento na tese. Alargar o tema da relação entre temporalidade e
identidade nacional no pensamento da intelectualidade brasileira de fins do século
XIX é um caminho a seguir, seguramente cheio de espinhos, coivaras e
armadilhas que trans-correm o sertão do pensamento desses intelectuais.
Intelectuais como Araripe Júnior, Joaquim Nabuco, Graça Aranha, Affonso Celso,
Raul Pompéia, Euclides da Cunha, Tobias Barreto e Manoel Bomfim poderiam ser
tomados como os sujeitos-investigados desta tese. A sua problematização da
nação passava por questões similares àquelas que interpretamos aqui.
A importância da ampliação desses estudos e dos intelectuais neles
englobados também pode vir a contribuir para a construção de uma outra memória
do pensamento nacional de fins do século XIX, diferente do que Freyre escreveu a
respeito:
“A ignorância dos brasileiros do fim do Segundo Reinado e dos
primeiros decênios da República, acerca de si próprios e dos demais povos
tropicais e mestiços, se desenvolvera em quase psicose
caracteristicamente nacional em sua configuração cultural; e que apenas
se atenuara um pouco com os estudos realizados (...) por Silvio Romero,
Couto de Magalhães, José Veríssimo (...) Eduardo Prado...”
5
A asserção de Freyre merece, no mínimo, ser reconsiderada, senão mesmo
refutada de modo mais peremptório. O autor pareceu ratificar aquela visão
5
FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000, p. 810.
259
egocêntrica (ou cronocêntrica) sobre a história intelectual do Brasil de que até os
anos 20 do século XX teria havido somente uma espécie de “pré-história”
intelectual, a qual se desenvolveria posteriormente, com o próprio Freyre e outros.
Fazer tábula rasa ou estimar a contribuição dos intelectuais brasileiros
finisseculares de modo subsidiário não é, em nosso entendimento, uma postura
intelectual plausível de ser sustentada.
O mesmo vale para os escritores argentinos e uruguaios, vistos apenas de
passagem nesta tese. Carlos Bunge e José Enrique Rodó são apenas dois
exemplos de uma pletora de autores que bem podem ser inter-relacionados,
comparados (ou não) em um estudo acerca da relação entre temporalidade e
identidade nacional em contexto latino-americano.
Também ainda se está por realizar uma investigação dos principais leitores
de Eduardo Prado, em especial da sua colaboração para a construção do
sentimento anti-americanista no Brasil. Na opinião de Gilberto Freyre, Eduardo
Prado teria contribuído muito para que “se desenvolvesse em numerosos
brasileiros do mil e novecentos antipatia ao ‘gigante louro’ do continente”
6
. Seria
possível inscrever nessa relação de brasileiros, Lima Barreto, que parecia ser
leitor sistemático de A ilusão americana. Em 1919, numa crônica intitulada São
capazes de tudo..., Lima Barreto denunciou a visão dos brasileiros em relação aos
Estados Unidos, e falou sobre Prado:
“Eduardo Prado escreveu documentadamente a Ilusão americana.
Floriano aprendeu-lhe a primeira edição, visando ‘interpor-se entre o
escritor e o seu escasso público’. Não foi ele que se interpôs. Foi a tolice
nacional, a falta de visão de todos nós, a incapacidade de fazermos um
julgamento por nós mesmos e a necessidade de irmos buscá-los nos
nossos grandes jornais sem sinceridade e independência. Se lêssemos os
autores corajosos, sinceros e honestos, veríamos bem que os processos
políticos dos Estados Unidos são os mais ignóbeis possíveis; que eles têm
por todos nós um desprezo rancoroso e humilhante; que quando falam em
liberdade, em paz e outras cousas bonitas, é porque premeditam alguma
ladroeira ou opressão”
7
.
6
FREYRE, op.cit., p. 172.
7
BARRETO, Lima. São capazes de tudo.... [1919]. In: Lima Barreto: toda crônica. Rio de
Janeiro: Agir, 2004, vol.1, p. 448.
260
O antiamericanismo de Lima Barreto, bem como suas leituras do autor de A
ilusão americana, são indicativos do que podemos ainda realizar acerca do
pensamento de Eduardo Prado em termos de uma história da recepção de seu
pensamento. Recepção que implica, evidentemente, ressignificações e traduções
das suas idéias.
Essa relação de lacunas nos convida a pensar que a conceitualização
elaborada ao longo da tese como dis-curso da nação é insuficiente para apreender
um fenômeno tão complexo quanto o pensamento de Eduardo Prado enquanto
ontólogo da nação e, de maneira mais larga, o pensamento ocidental finissecular.
Seu apresar seria um pesar, um tornar obeso o próprio conceito em nome da uma
racionalidade supostamente maior – qualquer que pudesse ser o seu nome:
civilização, Ocidente, humanidade, progresso, nação, razão, entre outras. Se não
conseguimos chegar ao ser, a não ser talvez como temporalidade, se não
abarcamos a totalidade como Platão o fez com sua vela de barco, se nosso
conhecimento é fragmentário e dependente de uma série de mediações que
escapam de nosso ser-senhor-de-si-mesmo, não há porque frustrarmo-nos se
nosso acesso à realidade é sempre móvel e fugidio, sobretudo se formos
simpáticos ao dito de Ortega Y Gasset, de que o ser do mundo não é matéria,
nem alma, nem coisa alguma determinada, mas sim uma perspectiva
8
. Significa
dizer apenas, reverberando as vozes de um pensador originário, que observamos
porção minúscula da vida no de-curso da existência, e que nós, errantes,
conhecemos somente o que “à inteligência mortal é dado saber”
9
. Sabermo-nos
mortais, ser-no-mundo e estar-lançado é afirmar a diferença sobre a identidade, a
mobilidade sobre o estático, o devir sobre o ser, enfim: o tempo como vida da
morte
10
.
Eduardo Prado e seus outros se esforçaram em pensar o Brasil trans-
histórico, legitimado através da realidade ela mesma. Apesar de que seu
8
ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Madrid: Alianza Editorial, 2005, p. 24.
9
EMPÉDOCLES. Poemas. Porto Alegre (Texto inédito), 2006, fragmento 1. Trata-se de uma
tradução livre dos poemas oferecida pelo filósofo Donaldo Schüler. Na coleção Os Pensadores, no
volume Os pré-socráticos, o mesmo fragmento pode ser encontrado. Ver: EMPÉDOCLES. In: Os
pré-socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1999, fragmentos, VII, 122, p.173.
10
ROSA, op.cit., p. 587.
261
pensamento poderia ser mais um capítulo na história do logos, o mesmo logos
fundacional dessas ontologias de glorificação do ser europeu, do ser nacional ou
de qualquer outro ser nutrido às custas de uma sedimentação da própria história,
ele também foi a sua diferença. Não por razão de uma esquizofrenia diletante de
moço rico e viajado, mas talvez porque a realidade intelectual e conceitual que se
oferecia a ele(s) não deixasse outras escolhas senão a do ser como ser
circunstancial.
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