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UNESP- Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
FAAC - Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
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Uma análise culturológica sobre as representações
do torcedor de futebol na mídia esportiva impressa
Bauru-SP
Dezembro/2005
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Uma análise culturológica sobre as representações
do torcedor de futebol na mídia esportiva impressa
Dissertação de mestrado apresentada ao Pro-
grama de Pós-Graduação em Comunicação -
área de concentração em Comunicação Midiá-
tica da FAAC Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação da Universidade Estadu-
al Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, pelo alu-
no David Cintra Sobrinho, sob orientação do
Professor Doutor Cláudio Bertolli Filho, como
requisito para a obtenção do título de Mestre
em Comunicação.
Bauru-SP
Dezembro/2005
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Ficha catalográfica elaborada por
DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO
UNESP - Bauru
Cintra Sobrinho, David
Alma do espetáculo ou público pagante? Uma aná-
lise culturológica sobre as representações do torcedor de
futebol na mídia esportiva impressa / David Cintra So-
brinho. - - Bauru : [s.n.], 2005.
234 f.
Orientador: Cláudio Bertolli Filho.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulis-
ta. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação,
2005.
1. Futebol - torcedores. 2. Jornalismo esportivo. 3. Tor-
cida - futebol. 4. Comunicação midiática. I – Universi-
dade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes
e Comunicação. II - Título.
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David Cintra Sobrinho
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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Pau-
lista “Júlio de Mesquita Filho” e submetida à banca examinadora como exigên-
cia parcial à obtenção do título de Mestre em Comunicação.
Banca examinadora:
Presidente: Prof. Dr. Cláudio Bertolli Filho
Titular 1: Profª Drª Rosana de Lima Soares
Titular 2: Prof. Dr. Ricardo Alexino Ferreira
Bauru, 19 de dezembro de 2005
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A presente dissertação apresenta uma análise com bases em teorias culturalistas
sobre as representações do torcedor de futebol na mídia esportiva impressa. Di-
vidido em quatro capítulos, o texto inicialmente reflete sobre questões teóricas e
metodológicas acerca da mídia e sua importância enquanto espaço de construção
de significados e identificações. Busca-se um diálogo entre conceitos de duas
correntes distintas de análise da comunicação: a Teoria Crítica e os Estudos Cul-
turais. Ainda no campo conceitual abordam-se parâmetros lingüísticos como
referência para análises de fenômenos midiáticos e a idéia de jogo. Apresenta-se
ainda as origens do futebol no mundo e no Brasil. A partir destes pressupostos
busca-se compreender quem são os torcedores enquanto sujeitos sociais, simbo-
licamente construídos. Acrescenta-se uma trajetória histórica sobre os modos de
torcer e as relações conflituosas entre torcedores e mídia. Para finalizar, são a-
presentadas impressões de torcedores de futebol, que possuem em comum o fato
de serem também leitores de uma mesma publicação - especificamente, a edito-
ria de esportes do Jornal da Cidadee que, por suas posturas, podem ser consi-
derados sujeitos representativos do campo receptivo. Após o percurso analítico,
nota-se que o torcedor é elemento-chave do universo futebolístico, porém, nem
sempre é assim percebido na mídia impressa, em que aparece como sujeito pas-
sivo, sem voz ativa, apesar de sua importância para a construção do fenômeno
futebol-espetáculo. Identifica-se assim uma lacuna no jornalismo esportivo im-
presso, em que se desconsidera a voz dos torcedores na configuração do futebol
enquanto espetáculo e para quem, em última análise, o jornalista escreve.
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This work presents an analysis, based on culturalist theories, about the represen-
tations of the football spectators in the sports press. Divided in four chapters, the
text initially reflects on theoretical and methods questions, concerning the media
and its relevance while a space for expression. It claims for a dialogue between
concepts of two distinct theories: the Critical Theory and the Cultural Studies.
Still in the conceptual field, linguistics parameters are presented as a way of
analisys for media phenomenon. It presents too the origins of the football game
in the world and in Brazil. Based on these studies, it tries to understand the foot-
ball spectators while authentic social citizens, symbolically build. It adds a his-
torical trajectory about football assistance and how it got so many alterations
along the time. The conflituous relations between spectators and media is
aborded too. To complete, impressions of spectators, readers of a same news and
representative persons of the reception are presented. After this analytical way,
spectators appears as representative persons of the football´s universe, but, are
printed in the media as passive persons, without active voice, although its strong
representation in the football while a spectacle. So, its suggests that there is a
gap in the sports press: it doesn´t give a voice to the football spectators, key per-
sons for the actual football configuration and, at last, for whom the journalists
writes.
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NTRODUÇÃO
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APÍTULO
1
Questões conceituais e metodológicas ..........................................
Comunicação e [é] cultura ............................................................
Os Estudos Culturais ....................................................................
Identidades e representações culturais ..........................................
O poder do simbólico ...................................................................
Mídia [o importante é vender] ......................................................
Mídia esportiva [o importante é aparecer] ....................................
Linguagem, cultura e futebol ........................................................
C
APÍTULO
2
O futebol .......................................................................................
Esporte – jogo, competição e espetáculo ......................................
A(s) história(s) do futebol .............................................................
O futebol brasileiro .......................................................................
O futebol e o jornalismo ...............................................................
C
APÍTULO
3
O torcedor de futebol ....................................................................
Da assistance às torcidas organizadas .........................................
Torcida e violência .......................................................................
Torcida vs. Imprensa ....................................................................
C
APÍTULO
4
Representações do torcedor na mídia impressa .............................
Mídia local e regional ....................................................................
Do Progresso de Bahuru ao Jornal da Cidade .............................
O esporte no JC ..............................................................................
Conteúdo e discursos da editoria de esportes do JC ...................
Análise dos discursos da editoria de esportes do JC ..................
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ONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES
............................
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IBLIOGRAFIA
...............................................................................
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Apesar do grande desenvolvimento e ampliação dos meios eletrônicos
de comunicação, que têm a seu favor a instantaneidade da informação, o forte
apelo da imagem e a anulação das distâncias, o jornal impresso se mantém como
um dos principais suportes para a informação neste início de século XXI e desde
o século XIX. Sua sobrevivência está ligada a fatores como o apelo local e a po-
tencialidade de realizar análises mais aprofundadas dos acontecimentos, além do
envolvimento e fidelidade do leitor. No entanto, por envolver interesses econô-
micos e ideológicos das empresas e dos agentes “construtores” da notícia (pau-
teiros, repórteres e editores), bem como dos leitores-consumidores e daqueles
sobre quem e para quem se “fala”, os processos que envolvem o jornalismo são
marcados por tensões. São muitas as dúvidas e conflitos que subjazem ao fenô-
meno, pertencente à esfera midiática e complexo por natureza. Entretanto, tais
“ruídos”, nem sempre podem ser notados na superfície dos textos, exigem leitu-
ras mais apuradas para serem detectados.
O objetivo desta dissertação é interpretar um desses conflitos, previa-
mente detectado na prática profissional do autor, e que envolve a mídia esporti-
va impressa e os torcedores de futebol. Partindo da premissa de que a torcida é o
elemento que vida a uma partida de futebol, que sem o show das arquibanca-
das e dos gritos de incentivo ou desaprovação das multidões, esse jogo não pas-
saria de uma atividade física sem maiores conseqüências extra-esporte”, obser-
vou-se que, principalmente, nas reportagens específicas sobre os jogos de fute-
bol e nas páginas dos jornais, a torcida não é assim representada. Com freqüên-
cia, os torcedores aparecem apenas como plano de fundo das fotografias e nas
fichas técnicas das partidas, como o público pagante e não como personagem
ativo da ação.
Enquanto técnicos jogadores e personalidades públicas são constante-
mente chamados a dar suas opiniões sobre vários aspectos das disputas, os tor-
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cedores de futebol o têm reproduzidas suas vozes na maioria das reportagens,
quase sempre, focadas apenas no jogo em si. A exceção fica por conta dos casos
de violência, que sempre colocam os torcedores em destaque nas páginas dos
periódicos. A violência, inegavelmente, existe e é condenável. A mídia tem o
dever não só de mostrá-la como também colaborar para que deixe de acontecer
1
.
No entanto, também um lado “positivo” (sem conotação com o termo cientí-
fico positivismo) do torcedor, que a imprensa pouco explora, como, por exem-
plo, a festa em torno dos grandes jogos” e o estímulo dado aos jogadores, moti-
vando-os a buscar as vitórias. Raramente no jornalismo esportivo os torcedores
são consultados sobre as performances atléticas ou sobre o modo como os clubes
são conduzidos. A voz das arquibancadas não está estampada nos jornais.
Resumidamente, o percurso para efetivar o debate sobre tal estranha-
mento foi iniciado com o enquadramento do fenômeno em um campo teórico e
conceitual, através do qual, a Comunicação é vista como fenômeno cultural e,
como tal, seus processos interessam especialmente aos Estudos Culturais. Ainda
no campo teórico, já aceitando o futebol também como fenômeno midiático, são
apresentadas reflexões sobre a influência da linguagem nas relações entre a mí-
dia e o esporte. A seguir, foi realizado um estudo sobre o futebol, que revela
como uma prática de características lúdicas foi incorporando, através de sua his-
toricidade, elementos característicos de cada época e meio social em que se pro-
cessava, transformando-se até tornar-se, primeiro, um esporte regulamentado e
oficializado, depois, espetáculo e fenômeno sociocultural. Ainda como parte do
segundo capítulo, resgata-se aspectos históricos do futebol no Brasil, com o in-
tuito de demonstrar a especificidade da modalidade no país, ou seja, o que a di-
1
A violência no futebol é tema já debatido em trabalhos acadêmicos, se não numerosos, substanciais, como se
verá mais adiante, nos quais as investigações demonstraram que, para uma parcela significativa dos torcedores, a
mídia contribui, ainda que subliminarmente, para alimentar a violência no esporte. Mesmo que não seja reconhe-
cida como a causadora dos distúrbios, a imprensa, ao acentuar a rivalidade entre as equipes ou supervalorizar a
importância de uma partida - por exemplo, classificando-a como de “vida ou morte” -, estimularia o potencial de
torcedores, supostamente, predispostos a comportamentos violentos.
13
ferencia em relação a outros países. Depois, são feitas considerações sobre as
relações entre imprensa e futebol.
O terceiro capítulo é mais específico ao tema proposto, dedicado aos
torcedores de futebol, no qual procura-se saber um pouco mais sobre quem são
esses sujeitos na dimensão cultural. Para tal, foi realizado um estudo bibliográfi-
co, entrevistas e uma análise de conteúdo da editoria de esportes de um veículo
de comunicação impresso. A escolha da publicação foi baseada em critérios qua-
litativos, por isso, não se apresenta aqui uma “enxurrada” de dados estatísticos, a
partir dos quais poderiam ser feitas generalizações “incontestes”. A publicação é
o Jornal da Cidade, que, pelo menos à época da realização de maior parte do
presente trabalho, tratava-se do único jornal impresso e um dos órgãos de im-
prensa mais representativos da mídia na cidade de Bauru, local dessa pesquisa
2
.
Pesou ainda na opção, o fato de o jornal reproduzir material de quatro agências
de notícias: Folha (atualmente Folhapress), Lancepress!, Estado e Reuters, o
que permite analisar também as representações sobre o torcedor de futebol nos
discursos de órgãos de imprensa de circulação nacional. Além disso, este estudo
se propõe a abordar aspectos da recepção no processo midiático, portanto, ne-
cessita investigar sujeitos que participam desse espaço, ou seja, de receptores.
Com a pretensão de avaliar aspectos da recepção no processo midiáti-
co, tomou-se depoimentos de sujeitos representativos do universo dos torcedores
de futebol. Isso não implica que as opiniões defendidas pelos entrevistados em
seus depoimentos seja a de todos, ou de maiorias e minorias, entretanto, pelo
modo intenso como esses sujeitos negociam com o esporte e a mídia, são repre-
sentativos das relações colocadas em questão. Os critérios usados para escolha
dos entrevistados são: a) ser torcedor de futebol e b) leitor da publicação em
questão.
Quatro desses personagens são “torcedores comuns”, enquanto três
pertencem a torcidas organizadas. Foram eles: Arialdo Madruga Krupa, 28 anos,
2
Desde novembro de 2005, circula também, em Bauru, o diário Bom Dia.
14
porteiro; Erasmo Diniz, 58 anos, aposentado; Mário Sérgio Palharin, 32 anos,
bancário; André Paulo da Silva Mantovani, 31 anos, advogado; Sinuhe Daniel
Preto, 43 anos, professor; José Roberto Pavanello Silva, 51 anos, auxiliar admi-
nistrativo e Givanildo da Silva, 27 anos, auxiliar administrativo. No decorrer do
texto, esses personagens serão identificados pelo nome em destaque neste pará-
grafo
3
.
No quarto capítulo, é feita uma análise mais detalhada da editoria de
esportes da publicação, com foco nos discursos e na percepção dos leitores-
torcedores entrevistados sobre o jornal em questão. Adota-se o método proposto
por Norman Fairclough, descrito no capítulo 1.
Assim, as considerações apresentadas, os resultados observados, não
podem ser vistos de modo generalizado. Não se pretende dizer, a partir de ob-
servações em um único veículo, que “a mídia esportiva é assim” ou ainda que os
torcedores de futebol sejam contra ou a favor de qualquer coisa, o que, certa-
mente, teria validade questionável. O que se busca mostrar é como aparecem,
num veículo representativo de uma comunidade relativamente numerosa (Bau-
ru), além de poder abordar problemas mais gerais da comunicação e das relações
sociais, uma vez que os conflitos estão nos discursos de ambos os lados. Para
fechar o texto são apresentadas algumas considerações finais e recomendações.
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O interesse dessa temática se baseia no fato de a mídia esportiva ter
grande participação no cotidiano dos meios de comunicação. Em muitos casos, a
presença de algum tipo de veículo de comunicação em massa determina a exis-
tência ou não da atividade esportiva, por exemplo, quando o próprio suporte mi-
diático é o promotor do evento. Nos veículos impressos, além de periódicos es-
3
Entre os entrevistados poderia ter sido incluída uma ou mais mulheres, entretanto, não foi possível encontrar
uma representante, o que deixa uma lacuna. Aliás, a questão de gênero no futebol não aparece no presente traba-
lho por se considerar que é de importância tal que merece ser apreciada separadamente em um outro estudo.
15
pecializados, praticamente todos os jornais têm sua editoria de esportes e, histo-
ricamente, desde pelo menos a metade do século XIX, dedicam espaços genero-
sos para os eventos esportivos em suas páginas.
De outro lado, o esporte é reconhecidamente um fator de inclusão so-
cial, além de ter relações com alguns aspectos de saúde pública e influências na
educação, portanto, trata-se de um fenômeno importante para a compreensão da
atual sociedade brasileira. Existem outras práticas que colocam o esporte na di-
mensão cultural como a chamada “geração saúde”, um segmento gigantesco
da população que lota academias e pratica os mais variados esportes, ou ainda os
chamados esportes radicais, que atraem milhares de praticantes –, porém, ne-
nhuma delas com tanta representatividade quanto o futebol. A própria mobiliza-
ção da mídia em torno de acontecimentos esportivos (a maioria futebolísticos) é
outro indicativo da importância cultural do fenômeno.
O que faz a mídia se interessar tanto pelo assunto certamente não são
apenas os aspectos estéticos do jogo, que outros esportes apresentam tais ele-
mentos, muitas vezes mais atraentes. Os meios de comunicação investem no fu-
tebol devido à repercussão das reportagens, devido à audiência atingida, ao
grande número de exemplares vendidos quando acontecem fatos extraordinários
ligados ao assunto. E o responsável por tal resposta positiva são os torcedores de
futebol.
No entanto, em que pese essa importância sociocultural, o assunto “es-
porte” ainda não foi suficientemente explorado nos meios acadêmicos. Mais es-
pecificamente, nos cursos de Comunicação é uma temática tratada como uma
espécie de patinho feio” do Jornalismo. A maioria dos trabalhos científicos so-
bre o futebol foi produzida em cursos de Educação Física e Ciências Sociais.
Assim, no plano acadêmico, este estudo pretende contribuir com reflexões teóri-
cas desenvolvidas a partir de uma temática mais presente no cotidiano e que a-
inda tem muito a oferecer para o entendimento da identidade cultural do povo
brasileiro. O objetivo teórico desta dissertação é apontar caminhos para se pen-
16
sar fenômenos e não resultados definitivos ou conclusões sobre eles. É provável
que sejam levantadas aqui mais questões a serem investigadas do que apresenta-
das constatações.
O desenvolvimento deste projeto é ainda uma oportunidade de apro-
ximar estudos acadêmicos e prática profissional, uma vez que se pretende suge-
rir procedimentos para a elaboração de reportagens sobre eventos futebolísticos
ou rotinas que possam inserir o torcedor do futebol nas páginas dos jornais não
mais como mero coadjuvante ou público pagante, mas como a verdadeira alma
do espetáculo.
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A pesquisa bibliográfica para a realização deste trabalho começa na
busca por conceitos científicos adequados ao tema. Para isso, foram utilizadas
obras como Teorias da Comunicação de Massa, de Melvin De Fleur e Sandra
Ball-Rokeach (1993); Teorias da comunicação: conceitos, escolas e tendências,
organizada por Antonio Holfeldt (2001); História das teorias da comunicação,
de Armand e Michèle Mattelart (2000), e, especialmente, Pesquisa em comuni-
cação, de Maria Immacolata Vassalo de Lopes (2001), que foram essenciais pa-
ra indicar “o caminho a seguir” em meio ao verdadeiro manancial teórico do
campo da Comunicação.
Foram consultadas ainda outras obras que debatem conceitos teóricos
dos processos comunicacionais, como Antropológica do espelho, de Muniz So-
dré (2002) e Por uma outra comunicação, organizada por Denis de Moraes
(2003), ou ainda os artigos Comunicação: uma abordagem plural, de Laan
Mendes de Barros (2002), e O conceito de indústria cultural e a comunicação
na sociedade contemporânea, de Cláudio Novaes Pinto Coelho (2002). Também
foram importantes para o desenvolvimento dessas reflexões teóricas os trabalhos
de Jesús Martín-Barbero (2001), Stuart Hall (2000 e 2003), Richard Hoggart
17
(1973), Nestor Garcia Canclini (2001) e Raymond Williams (2000), além de
textos de Silas de Paula (1998), Olga Guedes (1998) e outros citados no desen-
volvimento do capítulo e na bibliografia. O estudo dessas obras aponta para a
centralidade da cultura nas análises que buscam interpretar os fenômenos soci-
ais. Ainda no campo teórico, as obras de Norman Fairclough (1996 e 1997) a-
pontam para a importância de se observar o papel da linguagem nos processos
comunicacionais.
Na análise estrutural do fenômeno futebol e suas ligações com a mídia,
apresentam-se estudos embasados inicialmente pelo clássico Homo ludens, de
Johan Huizinga (1990), que coloca o jogo como um dos pilares da organização
social, anterior à própria Cultura. O autor, nos primeiros anos do século XX,
apontava para a dissociação do esporte ao sagrado, o que o faria perder parte de
sua essência lúdica. A transformação das práticas esportivas, que desde a Anti-
güidade se ligavam às festas e rituais sagrados, em atividades regulamentadas,
também domina parte da dissertação de mestrado apresentada por Fernando An-
tonio Cardoso Garrido (1999) ao PPGEF da UGF, denominado Tendências da
cultura esportiva no Rio de Janeiro: uma análise da mídia e das práticas de es-
portes.
A seguir procura-se resgatar o desenvolvimento histórico do futebol no
mundo e no Brasil, com base nos textos de Gerhardt (1979), Costa (2005), Con-
tador (2003), Turtelli (2002), Cunha (2005), Mazzoni (1950), Melo (2000), Neto
(2000) e outros. A partir desses textos, mostra-se como o ser humano sempre
teve entre suas práticas jogos com objetos esféricos, que foram se transformando
e sendo adaptados até surgir o futebol. Ainda nesse segundo capítulo apresen-
tam-se reflexões sobre as relações do futebol com a mídia, bem como sobre a
linguagem jornalística especializada, explorando alguns aspectos abordados nas
obras de Garrido (op. cit.) e Coelho (2003).
Ainda que pudesse receber mais atenção por sua importância no coti-
diano nacional, o torcedor é tema de teses e dissertações de diversas áreas das
18
Ciências Humanas, o que possibilitou o levantamento de uma bibliografia subs-
tancial sobre o assunto. Especificamente na Comunicação, identificou-se O tor-
cedor de futebol e o espetáculo da arquibancada: características da participa-
ção de torcedores brasileiros em jogos de futebol, dissertação de mestrado em
Ciências da Comunicação apresentada na ECA-USP por Manuel Gustavo Man-
rique Gianoli (1996). No texto, o autor traça um panorâmico histórico do fute-
bol, bem como apresenta uma pesquisa realizada entre torcedores paulistas. A
concepção de três tipos de torcedores: comuns, tietes e organizados é uma con-
tribuição substancial para se entender o “universo das arquibancadas”. O autor
apresenta ainda dados interessantes sobre as torcidas organizadas Mancha Ver-
de, Gaviões da Fiel e Tricolor Independente.
Tua imensa torcida é bem feliz...: da relação do torcedor com o clube,
de Sílvio Ricardo da Silva, tese de doutorado defendida em 2001, na Faculdade
de Educação Física da Unicamp, é um estudo consistente em que se busca a
compreensão do processo de construção da relação do torcedor com o Clube de
Regatas Vasco da Gama, do Rio de Janeiro. Silva cita uma pesquisa qual, in-
felizmente, não foi possível ter acesso) e que seria a pioneira na temática, deno-
minada Os Gaviões da Fiel e a águia do capitalismo, de autoria de Benedito
Tadeu César, uma dissertação de mestrado defendida em 1982 pela Unicamp
(IFLCH/Antropologia Social). Silva resume assim esse trabalho:
Através de acompanhamento intensivo de seus integrantes [tor-
cedores da torcida organizada Gaviões da Fiel, do Sport Club
Corinthians Paulista] e de suas atividades, aquele autor procurou
traçar um perfil histórico dessa torcida, pesquisando também
sua dinâmica interna, suas relações com o exterior, suas condi-
cionantes, suas ramificações, suas interferências, suas influên-
cias e os condicionamentos pelos quais passava. (p.9)
Em Futebol e sociedade: as manifestações da torcida, tese de doutora-
do em Educação Física de autoria de Heloísa Helena Baldy dos Reis, pela Uni-
camp (1998), a autora analisa o comportamento da torcida da Sociedade Espor-
19
tiva Palmeiras durante o Campeonato Brasileiro de Futebol de 1996. O estudo
de Reis tem como base teórica a obra A busca da excitação de Elias & Dunning
(1992), autores que se debruçaram sobre a violência das torcidas de futebol. En-
tre outros pontos em comum com a abordagem proposta na presente dissertação,
Reis assume o futebol como fenômeno integrado a aspectos socioculturais da
sociedade e não como prática de lazer ou atlética autônoma, desligada dos de-
mais processos sociais.
A tese de doutorado em Lingüística de Sandra Regina Turtelli, Estudo
da linguagem de um evento esportivo numa abordagem sócio-léxico-
computacional, defendida na FFLCH da USP, em 2002, apresenta um estudo
comparativo sobre a linguagem empregada em quatro textos veiculados ao vivo
no rádio e na televisão sobre um mesmo evento esportivo. O trabalho contém
ainda informações importantes de cunho histórico e sociológico sobre o futebol,
além do entendimento da linguagem como um fenômeno que extrapola o campo
lingüístico: “Da mesma maneira que o uso da linguagem permeia a vida social,
os elementos da vida social fazem parte da forma como a linguagem é utilizada”
(p. 23), refere-se a autora. Essencialmente, por influência desse trabalho, toma-
se na presente dissertação a posição de que analisar aspectos da linguagem e,
portanto, dos discursos, é fundamental para o entendimento dos fenômenos mi-
diáticos.
Ainda na área de Educação Física, Ana Beatriz Correia de Oliveira
(2000), em Representações da Torcida Raça Rubro-Negra sobre o ídolo do fu-
tebol, dissertação de mestrado apresentada ao PPGEF da UGF, apresenta um
estudo sobre a construção do ídolo no futebol. O estudo é feito entre torcedores
do Flamengo, time carioca de maior torcida no país. A importância do trabalho
está na abordagem sociológica da autora que busca na Teoria das Representa-
ções Sociais vincular o comportamento dos torcedores em relação aos ídolos
(jogadores cultuados por eles) com sistema de valores, noções e práticas sociais.
20
As torcidas organizadas cariocas são o tema da dissertação de mestra-
do de Rosana da Câmara Teixeira, Os perigos da paixão: filosofia e prática das
torcidas jovens cariocas, apresentada ao PPGSA da UFRJ (1998). O trabalho é
de cunho antropológico e apresenta entrevistas com torcedores de diferentes
clubes do Rio de Janeiro, na busca pelos motivos que os fizeram adotar um clu-
be de coração e pelo qual são capazes de morrer, bem como investigar as causas
mais profundas da violência neste grupo social. Importante nesse trabalho é a
constatação de que a imprensa em geral não é bem vista pelos torcedores, que a
consideram “manipuladora da realidade”.
Em outros trabalhos de origem acadêmica, porém, editados comerci-
almente, o torcedor de futebol aparece em grande número de publicações que
tratam sobre a violência dos estádios, como o livro-reportagem Entre os Vânda-
los: a multidão e a sedução da violência, de Bill Buford (1992), jornalista que
conviveu com os hooligans ingleses durante quase quatro anos para tentar en-
tender a lógica da violência praticada por tais torcedores. A questão da violência
das torcidas de futebol também incomodou o sociólogo Jean Baudrillard. Em
seu A transparência do mal, ensaios sobre os fenômenos extremos (1990), ele
dedica um capítulo ao episódio ocorrido no estádio de Heysel, em Bruxelas, no
ano de 1985, quando centenas de torcedores foram pisoteados, ocasionando de-
zenas de mortes.
Ainda que não trate especificamente do assunto torcedor de futebol,
Janet Lever aborda o tema em A loucura do futebol: esporte e integração social
no Brasil (1983), obra que traz um “olhar estrangeiro” (a autora é norte-
americana) sobre o fenômeno do futebol no Brasil e foi originada de uma disser-
tação de mestrado pela Universidade de Chicago. a obra Football: a socio-
logy of the global game, de Richard Giulianotti (1999), é de relevante interesse
para o tema proposto, não apenas por apresentar o futebol no mundo sob o pris-
ma da sociologia inglesa contemporânea, como também por analisar as diferen-
ças e semelhanças entre as spectators culture (cultura dos espectadores) de tor-
21
cedores latinos e europeus. Além disso, essa obra mostra como academicamente
o tema futebol e torcedor de futebol é analisado de maneira mais aprofundada na
Inglaterra, país berço do futebol moderno.
Artigos e ensaios que abordam o tema também foram pesquisados,
como Das “charangas” às torcidas virtuais: a comunidade, os meios de comu-
nicação e o futebol, de José Rocco Júnior, artigo apresentado durante o XXVII
Congresso da Intercom – 2004 e que aborda a “evolução” das torcidas organiza-
das desde as “charangas” criadas na década de 1930 até às comunidades virtuais
de torcedores contemporâneas na Internet.
A compreensão do sujeito em questão neste trabalho, ou seja, do tor-
cedor de futebol como um fenômeno atual dos grandes centros urbanos está ba-
seada na obra O tempo das tribos, de Michel Maffesoli (2002), que não trata di-
retamente do tema, mas faz uma análise em que o torcedor de futebol pode ser
enquadrado como sujeito específico das sociedades urbanas contemporâneas. A
bibliografia sobre o tema futebol” é extensa, porém, poucos autores se preocu-
param especificamente com o torcedor em seus trabalhos, o que justifica a perti-
nência desta dissertação.
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A comunicação moderna não pode ser conceituada
como externa ao campo das estruturas e práticas so-
ciais porque é, cada vez mais, internamente constitu-
tiva delas. Hoje as instituições e relações comunica-
tivas definem e constroem o social; elas ajudam a
construir o político; elas medeiam as relações eco-
nômicas produtivas; elas se tornaram “uma força
material” nos sistemas industriais; elas definem a
própria tecnologia; elas dominam o cultural.
(Hall, in Lima, 2001)
Ser torcedor de futebol no Brasil, “ter um time”, é um traço integrante da
identidade do sujeito. No país, raramente, a pergunta “para que time você tor-
ce?” fica sem resposta e, quase sempre, a réplica pode dizer muito sobre a per-
sonalidade do sujeito. Grande parte dessa atração se deve ao fato de os times
brasileiros constantemente conseguirem superar os rivais, mas a intervenção da
mídia também contribui para esse processo. É através dos meios de comunica-
ção que os feitos atléticos ganham maior projeção para movimentar comunida-
des inteiras, sejam elas locais ou mundiais. Em torno desse envolvimento da so-
ciedade instalou-se um mercado de números gigantescos, quase sempre com al-
garismos na casa do milhão. A partir do envolvimento da mídia, o futebol teve
ampliada suas características de fato sócio-cultural e passou a ser, também, um
grande negócio, como aponta o jornalista Ignácio de Ramonet em seu artigo O
poder midiático.
O esporte hoje interessa aos grandes grupos de comunicação a-
mericanos e europeus ou a um grupo como Murdoch
4
(...), o
qual, por exemplo, pretendia comprar o time de futebol mais cé-
lebre do mundo, o Manchester United. Um time de futebol não
tem, hoje, o interesse esportivo: é muito menos uma prova espor-
tiva que se desenrola em uma cancha do que um espetáculo que
se difunde pela televisão. Um time de futebol não tem a ver, ou
tem cada dia menos, com o esporte e cada vez mais com o espe-
táculo. Daí as importantes somas em dinheiro pagas aos atores
4
Referência ao empresário Rupert Murdoch, proprietário da News Corporation, uma megaempresa que controla
centenas de veículos de comunicação.
25
dessas equipes, como aos atores deste ou daquele filme ou tele-
novela. (in: Moraes, 2003, p. 246)
Na raiz desse processo estão os torcedores ou as pessoas que se interes-
sam pelo futebol, não só as que se fazem presentes no estádio na hora da disputa
e que, juntamente com os atletas, protagonizam o espetáculo de uma partida de
futebol; mas também aquelas que acompanham à distância jogos e campeonatos
e consomem os produtos oferecidos pela indústria midiática. Esta, por sua vez,
criou mecanismos para conquistar os torcedores, ao disponibilizar informações
detalhadas sobre os jogadores, os bastidores dos jogos ou as estatísticas dos
campeonatos. No rádio, os locutores empregam discursos que se poderiam dizer
emotivos, nos quais buscam tons e ritmos, muitas vezes, frenéticos
5
, são discur-
sos trabalhados na área de confluência entre o descritivo e o interpretativo. A
televisão tenta criar a sensação de que pode mostrar tudo de uma partida de fu-
tebol, com imagens tomadas de diversos ângulos, repetições dos lances mais
importantes das partidas. Na tela, predominam os discursos descritivos.
No jornalismo impresso, que conta com a atualidade, mas não com a ins-
tantaneidade da informação, busca-se atrair o blico através de interpretações,
tanto do que acontece no espaço da disputa esportiva em si, como também fora
dela. Entretanto, no plano lingüístico, os jornalistas de esportes não se limitam a
usar discursos interpretativos e trabalham também com linguagens explicativas e
descritivas. Além de textos, recursos como imagens fotográficas, tabelas de
classificação e gráficos estatísticos, são utilizados pelo impresso para tentar a-
proximar-se dos ideais de objetividade jornalística. Por outro lado, no rádio e na
tevê, a linguagem utilizada não permite reflexões mais longas por parte dos jor-
nalistas. Assim, o impresso tem a seu favor a possibilidade de realizar análises
mais aprofundadas dos fatos, ainda que nem sempre o faça, além de poder ex-
plorar dados estatísticos e outros fatores, como as relações socioculturais, as his-
5
Há também no rádio brasileiro diversos programas dedicados ao futebol em que são utilizados outros discursos,
como aqueles que promovem debates ao vivo, os humorísticos e os informativos, entretanto, refere-se aqui às
transmissões de jogos ao vivo.
26
tórias de vida e aspectos comportamentais dos personagens envolvidos nos a-
contecimentos.
Apesar de a televisão ser hoje a mídia que se relaciona de modo mais a-
centuado com o futebol e que mais o influencia, o impresso participa da constru-
ção do fenômeno futebol-espetáculo desde que o mesmo foi desencadeado, tanto
que as principais fontes de pesquisa histórica sobre a criação e o desenvolvimen-
to da modalidade estão em antigas edições do gênero, uma vez que, em seus
primórdios, não houve preocupação por parte da maioria dos clubes em registrar
os primeiros jogos
6
. Em resumo, os principais fatores que sustentam o futebol
como o “esporte número um” do Brasil, além da competitividade de seus joga-
dores e da paixão dos brasileiros pela referida prática, são os aspectos simbóli-
cos do futebol e as relações da modalidade com a mídia.
Enquanto tais relações se mantêm restritas aos aspectos técnicos do jogo
e envolvem personagens que atuam diretamente na ação, como atletas, treinado-
res e dirigentes, não muitos questionamentos a serem feitos, que o jorna-
lismo esportivo criou rotinas profissionais eficazes para levar ao público uma
grande quantidade de informações (embora, nem sempre com qualidade). Entre-
tanto, quando o foco da questão é direcionado às relações da mídia com a paixão
traduzida e representada pela imagem do torcedor de futebol as questões a
serem colocadas se multiplicam. Considerado como sustentáculo do fenômeno,
alma do espetáculo, o torcedor de futebol é assim representado na imprensa?
Quais as influências de um sobre o outro, como cada um atua na construção do
sentido das informações publicadas? Quais tipos de relações seriam criadas a
partir dessa interação? A imprensa dedica espaços significativos ao futebol, as-
sim, quanto desse espaço ela oferece ao torcedor? É suficiente? A imprensa
voz” a esse torcedor? E este, por sua vez, consegue se ver nas páginas dos jor-
nais? Como avalia a imprensa?
6
O dio, a partir da década de 1930, também teve participação importante na formação do futebol-espetáculo,
ao criar a cultura oral do futebol, o que proporciona ao público “assistir” aos jogos sem ver imagens.
27
Para efetivar essa investigação, propõe-se nesse primeiro capítulo um
percurso teórico que estabelece a Comunicação como ciência de bases essenci-
almente culturais, solidificadas em perspectivas antropológicas e sociológicas,
com as quais estabelece um diálogo conceitual na busca por explicações e inter-
pretações sobre o Homem e as coisas que ele faz e pensa. Tais requisitos são
preenchidos pelos Estudos Culturais, corrente teórica que propõe análises dos
fenômenos comunicacionais a partir dos espaços da recepção, vistos como de
negociações e de trocas, impregnados de múltiplas influências mediadoras e nos
quais se constroem os sentidos. Espaço que em relação ao futebol é representa-
do, principalmente, pelo torcedor de futebol. Além disso, esporte e mídia são
categorias que estão vinculadas através dos conceitos de identidade cultural e
poder simbólico, pontos também valorizados pelos Estudos Culturais.
Num segundo momento, ainda no campo teórico, são abordados os
temas mídia e esporte com a intenção de demonstrar como os dois fenômenos,
embora com espaços próprios de atuação, mantêm uma relação de simbiose re-
presentada no jornalismo esportivo. Espera-se contribuir com a idéia de que o
esporte moderno está inserido no campo das relações midiáticas, embora os e-
xercícios físicos e as competições atléticas tenham raízes históricas anteriores às
influências dos meios de comunicação de massa. O esporte de que se fala neste
trabalho não é a atividade física, mas sim o fenômeno sócio-cultural.
Para finalizar o capítulo, apresentam-se reflexões sobre a importância
da linguagem na construção do fenômeno futebol na mídia. Assim, nesta primei-
ra parte, estão os principais e mais gerais conceitos teóricos que sustentarão a
análise pela qual se pretende elaborar sugestões no sentido de ampliar o papel do
torcedor nas coberturas esportivas (mais especificamente, futebolísticas), bem
como fornecer aos profissionais do jornalismo esportivo subsídios para refleti-
rem sobre o papel do torcedor de futebol no processo de construção do futebol
enquanto espetáculo.
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A influência dos fenômenos comunicacionais no modus vivendi do Ho-
mem se deve em grande parte ao atual estágio técnico dos meios de comunica-
ção de massa, que permite a ampliação exponencial do fluxo de informação e da
área de atuação dos veículos. A troca de informações instantâneas entre quais-
quer pontos do globo é uma condição inédita na história da Humanidade. A in-
formação, dos mais diversos modos, está onipresente no cotidiano do Homem
contemporâneo e exerce sua influência em escolhas simples como as roupas a
vestir, os alimentos a ingerir e também em decisões mais complexas como na
escolha de profissões. Mas isso não implica dizer que a sociedade contemporâ-
nea seja fruto desses fenômenos, pelo contrário, eles nada mais são do que parte
de um processo histórico e social, traduzido pelo nome de Modernidade
7
.
Assim, torna-se essencial conhecer os marcos teóricos e metodológicos
da ciência que estuda os fenômenos midiáticos
8
, um campo de estudos plural por
natureza. Segundo os Mattelart (1999), os primeiros estudos específicos e siste-
matizados sobre a problemática da comunicação situam-se no século XIX, o que
coincide com o surgimento das teorias positivistas que deram origem ao que se
conhece hoje como Ciências Humanas, bem como com a expansão tecnológica
dos aparatos midiáticos. A partir de então surgiram diversas teorias e métodos
de análise, muitas vezes conflitantes em decorrência da variação do foco dos
estudos, que, em alguns momentos, se direciona às mensagens e conteúdos, em
outros, aos veículos e processos transmissores ou ainda às relações sociais que
permeiam todo o fenômeno. Os conceitos de todas essas correntes formam um
7
A título de esclarecimento, “Modernidade” é vista neste texto como um sistema social emergido na Europa a
partir do século XVII e que ainda influencia decisivamente o modo de viver da maior parte das sociedades, bem
como é determinante nas aspirações individuais do Homem contemporâneo. A respeito da questão da s-
modernidade assume-se aqui a posição proposta por Anthony Giddens (1991), de que vivemos antes um período
no qual as conseqüências da Modernidade ainda não foram totalmente absorvidas e compreendidas do que uma
“nova era”, em que um sistema social substitui a outro.
8
Entre os muitos trabalhos possíveis de serem citados sobre tal campo, bem como sobre a história das ciências
da Comunicação, estão os de Melvin De Fleur e Sandra Ball-Rookeach (1993), Armand e Michèle Mattelart
(1999) e Antonio Holfeldt (2001).
29
corpus ainda a ser ordenado, se é que seja possível conferir unidade a um campo
de estudo tão vasto.
Os estudos da Comunicação Social pedem uma abordagem plu-
ral tanto no campo das disciplinas, como no confronto de idéias.
No primeiro caso torna-se possível o tratamento de diferentes
dimensões do objeto de estudo; ora a comunicação é tomada en-
quanto fenômeno social, político e cultural, levando a atenção do
pesquisador ao entorno espacial e temporal no qual ela ocorre;
ora é trabalhada em sua natureza sígnica, tendo o foco da inves-
tigação na economia interna do processo comunicacional. No ca-
so do confronto de idéias, da opção pela dialética, o rico é que a
pesquisa ganha abertura para o seu desenvolvimento de maneira
cada vez mais ampla e dinâmica. Ela se abre a outras explicações
permitindo o exame sempre renovado de um objeto de estudo
que se renova continuamente. (Barros, 2002, p. 11)
As teorias que relacionam Comunicação e Cultura, por sua vez, consti-
tuem-se de correntes que, apesar de basearem seus estudos em aspectos das re-
lações humanas e de produzirem pesquisas essencialmente qualitativas ou inter-
pretativas, também possuem divergências, não assumem paradigma único. Esse
campo aparentemente ilimitado faz surgir conflitos conceituais, como, por e-
xemplo, proposições contrastantes da Teoria Crítica e dos Estudos Culturais, ou
ainda destes ante às muitas subcorrentes territorializadas como as chamadas
escolas britânica, francesa, norte-americana, latina, portuguesa, canadense, etc.
Além disso, os estudos culturológicos sobre a comunicação envolvem conceitos
emprestados de outros ramos como Sociologia ou Antropologia, também plurais
por natureza.
A realidade é que a cultura está na mídia, pois o que é transmitido
pelos meios de comunicação é cultura. Sob pena de se cair num
outro extremo, contudo, deve-se ressaltar que, se tanto as culturas
alternativas quanto hegemônicas são veiculadas pelos meios, es-
tão também fora deles. Embora a comunicação midiática a cada
momento envolva mais e mais as possibilidades de troca de senti-
do, ela não é única. Ou seja, a produção de sentido não é viabili-
zada pelas indústrias culturais, envolvendo ainda - e necessari-
amente - as mediações. (Brittos, 2003)
30
Nessa abordagem, amplia-se a produção dos sentidos, vistos na Teoria Crí-
tica como processo concentrado nas “indústrias culturais”, para o espaço da re-
cepção. Apesar desse enfraquecimento de um dos pilares da Escola de Frank-
furt, a percepção da influência dos mesmos nos processos de recepção não pode
ser desconsiderada. Sodré (2002) observa que pairam sobre as análises mais a-
tuais acerca das relações entre os fenômenos comunicacionais e a sociedade
uma grande influência do pensamento de Theodor Adorno e Max Horkheimer.
O próprio Stuart Hall, nome central e um dos “mentores” dos Estudos Culturais,
admite que as análises sobre a comunicação, levadas a efeito pela Escola de
Birmingham, sofreram grande influência da Teoria Crítica. Ambas têm em co-
mum, entre outros pontos, as raízes marxistas, ainda que façam releituras das
mesmas.
Apesar de os frankfurtianos basearem seus questionamentos a partir da
idéia de que a massa é acrítica e manipulável, eles não deixam de reconhecer a
possibilidade de resistência das audiências, embora o tenham feito de maneira
tímida, sem a veemência dos Estudos Culturais. Na Dialética do esclarecimento
(1985, p.135), Adorno e Horkheimer, afirmam que “tornou-se cada vez mais
difícil persuadir as pessoas a colaborar. O progresso da estultificação não pode
ficar atrás do simultâneo progresso da inteligência”. Ou seja, a massa não é tola,
as estratégias de convencimento da Indústria Cultural podem fracassar ante a
uma reação negativa ou indiferente do público. Naquela mesma obra, os autores
lembram ainda que algumas mediações poderiam amenizar as graves conse-
qüências da massificação imposta pela Indústria Cultural.
Na Teoria Crítica, a passividade da massa é basicamente ideológica,
normativa, não se trata de incapacidade em decodificar, reconhecer ou interpre-
tar as mensagens. Isso implicaria, entre outras coisas, que a massa estaria alie-
nada do processo de construção de sentido nos fenômenos comunicativos, o que
não corresponde à realidade, conforme seria demonstrado mais tarde pelos Estu-
dos Culturais ou pela “virada cultural”, como prefere Stuart Hall (1997). Nessa
31
“atualização”, não se exclui fatores como produção, meio, mensagem (lingua-
gem) e efeito, bem como aspectos sociais, políticos e econômicos. Mas a junção
desses conceitos é possível tendo como pano de fundo a Cultura e atuando
como fatores de mediação na construção do sentido no espaço da recepção.
Nos Estudos Culturais, as audiências, as multidões, não são acríticas, não
constituem uma massa homogênea e anônima. Entretanto, é preciso reconhecer
que esses receptores, ainda que ativos, estão sujeitos às influências de estratégias
comerciais e publicitárias, bem como à sua própria formação social
9
, que lhe
impregna de (pré) conceitos ideológicos (políticos ou religiosos, por exemplo).
Ou seja, os meios de comunicação dão voz a diferentes discursos, transformam-
se em um espaço onde atuam sujeitos com as mais variadas intenções e motiva-
ções. Ressalte-se também que o espaço de relações criado pelos meios de comu-
nicação sofre influências de cunhos histórico, político e econômico. As pessoas
usam e são usadas pelos meios de comunicação. A aceitação desse contraponto
teria levado a um redirecionamento dos estudos de cunho culturológico.
(...) parece que o pêndulo alcançou o ponto mais próximo possí-
vel da audiência e do prazer. Talvez seja o momento de se retor-
nar a uma postura de leitura mais politizada da mídia, do seu pa-
pel de ‘agenda-setter’ ideológica e de indústria capitalista chave
neste mundo internacionalmente corporatizado. (Turner, in: Pau-
la, 1998).
As megacorporações midiáticas estão entre as mais lucrativas do mer-
cado global, conseqüentemente, os meios de comunicação contemporâneos não
podem ser observados sob um olhar inocente. Ainda que estejam sujeitos às rea-
ções do público, que sejam elaborados com um mínimo de conotação política, os
produtos da indústria midiática atuam sobre o imaginário popular e influenciam
nas opiniões (e decisões) políticas dos indivíduos. O que, de certa forma, trata-se
de uma breve incursão, ou retorno, a conceitos da Teoria Crítica, segundo a
9
Conseqüentemente a Educação passa a ter papel de grande relevância nos processos receptivos, que é fun-
damental na formação do leitor, ouvinte ou telespectador. Entretanto, o foco da análise está centrado nos modos
como os
32
qual, a Indústria Cultural, por seus poderes de apropriação, resignificação e per-
suasão, capta as manifestações da massa e “em todos os seus ramos fazem-se,
mais ou menos, num segundo plano, produtos adaptados ao consumo das massas
e que em grande medida determinam esse consumo.” (Adorno, in: Cohn, 1975,
p. 287).
A produção da Indústria Cultural é feita para a e não pela massa, com
vistas a estimular o consumo, passando mesmo a determiná-lo. Por outro lado,
excluir a produção da massa, faz perder de vista aspectos como a possibilidade
de resistência e as manipulações feitas pelos consumidores do que lhes é ofere-
cido pelo mercado de bens culturais, que por mais eficiente que queira ser, não
consegue realmente prever a reação a seus produtos, que pode ir desde a indife-
rença até a aceitação. De certa maneira, a Indústria Cultural adapta seus produ-
tos aos consumidores e procura suprir-lhes algumas necessidades, portanto, tra-
balha em função desses sujeitos, mas, para a Teoria Crítica esse não é um fator
determinante, está sujeito a uma relação de poder classista, ideológica.
Nos Estudos Culturais, a recepção é vista como espaço de construção
de significado, portanto, os “consumidores” da informação tamm a elaboram e
não estão submissos aos poderes da esfera política e econômica. Assim, as pro-
duções midiáticas são processos culturais.
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A corrente teórica conhecida por Estudos Culturais tem como marco
de fundação” o Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, na Universidade
de Birmingham, em 1964, sob influência dos trabalhos de Raymond Williams,
Richard Hoggart e Edward P. Thompson
10
, e colaborou para o desencadeamento
do que Stuart Hall (1997) chama “um novo campo interdisciplinar de estudo or-
10
Stuart Hall (1997) coloca ainda na base dos Estudos Culturais os trabalhos dos franceses Lévy-Strauss e Ro-
land Barthes. O primeiro ligado à antropologia e o segundo, à Semiótica.
33
ganizado em torno da cultura como o conceito central”. Ainda segundo Hall, a
matriz intelectual dos Estudos Culturais faz aproximações seletivas com diver-
sas linhas de teorização e análise, nas ciências humanas e sociais.
Sem entrar em detalhes, para se obter uma idéia dos diferentes
discursos teóricos em que os estudos culturais se apoiaram, seria
necessário referir, inter alia, às tradições de análise textual (vi-
sual e verbal), à crítica literária, à história da arte e aos estudos
de gênero, à história social, bem como à lingüística e às teorias
da linguagem, na área das humanidades. Nas ciências sociais,
aos aspectos mais interacionistas e culturalistas da sociologia
tradicional, aos estudos dos desvios e à antropologia; à teoria crí-
tica (por exemplo, à semiótica francesa e aos teóricos pós-
estruturalistas; Foucault; a “Escola de Frankfurt”; os autores e
autoras feministas e à psicanálise); aos estudos do cinema, da
mídia e das comunicações, aos estudos da cultura popular. Tam-
bém foram importantes as formas não-reducionistas do marxis-
mo (especialmente as ligadas à obra de Antonio Gramsci e a es-
cola estruturalista francesa liderada por Althusser), e a preocupa-
ção destas com questões de poder, ideologia e hegemonia cultu-
ral. (Hall, 1997, p.13)
Nesse sentido, os Estudos Culturais propõem acrescentar ao marxismo
a necessidade de se considerar as dinâmicas culturais como integrantes de todos
os níveis sócio-econômicos, de pensar os espaços da recepção como fonte na
construção de significados, de ter os sujeitos constituintes não mais submetidos
unicamente ao poder econômico de uma classe dominante.
A obra de Richard Hoggart, Os usos da cultura (no original, em in-
glês, The uses of literacy), foi pioneira em algumas propostas, como estudar a
influência dos meios de comunicação de massa entre trabalhadores da periferia
de Londres e entendê-la como espaço de aprendizagem e exercício de senso crí-
tico. De certa maneira, Hoggart inova ao entender as práticas cotidianas também
como práticas culturais, até então vistas apenas de um ponto de vista “elitista”,
ou seja, a vida ordinária, os pequenos atos de cidadãos anônimos não eram con-
siderados “cultura”. A obra de Hoggart traz à tona ainda uma importante contri-
34
buição para as análises do impacto social dos meios de comunicação ao ressaltar
a possibilidade da resistência por parte dos receptores ou consumidores. Seu ob-
jetivo é ver nas práticas cotidianas “qual é a influência desta imprensa [popular]
sobre as atitudes e em que medida elas são capazes de resistir a tal influência”
(1970, p. 44). Dessa forma, ainda que não tenham uma formação acadêmica ou
familiaridade com a literatura clássica, os indivíduos podem sim realizar leituras
críticas das produções da indústria cultural. Isso implica dizer que as massas não
apenas “consomeminformação, mas fazem uso dela, criam fatos cultu-
rais a partir dos textos que lhes são oferecidos pelas indústrias culturais. E essas
produções são tão representativas quanto a chamada “arte erudita” ou “superi-
or”. Assim, nos processos comunicacionais há antes relações de cunho sociocul-
tural entre os agentes produtores e receptores do que um embate ideológico ou
uma relação de dominação.
Maffesoli (2002), por sua vez, constrói a idéia de “nebulosa afetual”,
em que a massa como o espaço onde os seres humanos estabelecem relações
“tácteis” e no qual “a gente se cruza, se toca, se roça, interações se estabelecem,
cristalizações se operam e grupos se formam” (102). A massa, onde se cristali-
zam as agregações de toda ordem, tênues, efêmeras, de contornos indefinidos”, é
um contraponto do social, que para ele privilegia os indivíduos e suas associa-
ções contratuais e racionais” (p. 101-102). Dessa forma, a massa torna-se um
processo em si, sobrepõe-se aos meios de comunicação e passa a usufruir deles.
Em conseqüência, pode-se dizer que a massa é constituidora dos meios e não o
contrário, ainda que num momento inicial possa parecer influenciada pelas mais
diversas estratégias de sedução e convencimento elaboradas pelos agentes pro-
dutores. A comunicação torna-se então estruturante da realidade e não acessória
a ela, a mídia para Maffesoli se molda a essa realidade, ao ser apropriada pela
massa e transformada em espaço próprio de expressão, de identificação cultural.
Sob tal ponto de vista invertem-se alguns papéis, que a massa é que passa a
determinar a produção da Indústria Cultural.
35
Num primeiro momento a ampliação e a multiplicação dos meios
de comunicação de massa puderam provocar a desintegração da
cultura burguesa, fundamentada na universalidade e na valoriza-
ção de alguns objetos e atitudes privilegiadas. Podemos, entre-
tanto, perguntar-nos se o prosseguimento desta ampliação e a
banalização induzida por ela, não conduz esses mesmos meios de
comunicação de massa para mais perto da vida comum. (p. 39)
Thompson (1995) alerta para o problema do termo “comunicação de
massa”, já que, ao evocá-lo, pode produzir-se a “imagem de uma vasta audiência
de muitos milhares, até milhões de indivíduos” (p.30). Para ele, o que importa
na conceituação dos meios de comunicação de massa é que eles disponibilizam
suas produções para uma grande pluralidade de indivíduos, no entanto, pode não
atingi-los, o que ainda assim não deve tirar-lhe as características de “massivo”.
Outro problema, ainda segundo Thompson, é que o termo pode sugerir que “os
destinatários dos produtos da mídia se compõem de um vasto mar de passivos e
indiferenciados indivíduos” (p.30). Embora não cite diretamente, Thompson re-
fere-se claramente à Teoria Crítica, principalmente às idéias de Adorno e Hor-
kheimer. Apesar de reconhecer méritos nessa linha de pensamento, ele argumen-
ta que a massa não tem nada de passiva.
Devemos abandonar a idéia de que os destinatários dos produtos
da mídia são espectadores passivos cujos sentidos foram perma-
nentemente embotados pela contínua recepção de mensagens si-
milares. Devemos também descartar a suposição de que a recep-
ção em si mesma seja um processo sem problemas, acrítico, e
que os produtos são absorvidos pelos indivíduos como uma es-
ponja absorve água. Suposições deste tipo m muito pouco a ver
com o verdadeiro caráter das atividades de recepção e com as
maneiras complexas pelas quais os produtos da mídia são rece-
bidos pelos indivíduos, interpretados por eles e incorporados em
suas vidas. (Thompson, 1995, p. 31)
Dentro de uma outra corrente dos Estudos Culturais os estudos lati-
no-americanos sobre a comunicação a massa é vista de forma bastante seme-
36
lhante, como apropriadora dos meios de comunicação de massa para transformá-
lo em espaço de expressão própria. Os meios passam a ser da, e não de, massa.
Alguns autores latino-americanos, nos quais me incluo, m tra-
balhado no estudo e reconhecimento cultural destas modalidades
diversas de comunicação, mas m feito pouco pela valorização
teórica destes circuitos populares como foros onde se desenvol-
vem redes de intercâmbio de informação e aprendizagem da ci-
dadania em relação ao consumo dos meios de comunicação de
massa contemporâneos, para além das idealizações fáceis do po-
pulismo político e comunicacional”. (Canclini, 1999, p. 49)
As “modalidades diversas de comunicação” a que o autor se refere é
uma espécie de circuito paralelo, “informal”, no qual as culturas populares ga-
nharam grande impulso a partir da segunda metade do século XX, sob influência
da expansão da comunicação de massa
11
. Por outro lado, Canclini aponta que os
meios eletrônicos que “fizeram irromper as massas populares na esfera pública
foram deslocando o desempenho da cidadania em direção às práticas de consu-
mo” (p. 50). Configura-se assim uma situação que faz da massa, “cidadãos-
consumidores”, o que implica no reconhecimento da força dos meios de comu-
nicação de massa como instrumento de poder político, um canal capaz de pro-
porcionar a participação e informar o indivíduo sobre decisões e fatos ocorridos
na esfera-pública.
Apropriados pelas massas, os meios possibilitam maior participação
dos cidadãos na vida pública e contribuem para a constituição do novo cenário
sócio-cultural que irrompe neste início de século XXI. O exercício da cidadania
ganha uma dimensão jamais presenciada anteriormente e deixa de ser uma ex-
clusividade de agentes como partidos políticos ou sindicatos, tão formais e buro-
cráticos quanto o próprio Estado, responsável pela alienação do sujeito da esfera
das decisões públicas. Desiludido com os entraves burocráticos do Estado e de
seus agentes, o público recorre aos veículos de comunicação para conseguir o
11
Note-se, entretanto, que as manifestações da cultura popular são anteriores aos meios de comunicação de mas-
sa.
37
que as instituições cidadãs não conseguem lhe proporcionar imediatamente: ser-
viços, justiça, reparações ou simples atenção. Não se trata, porém, segundo Can-
clini, de uma mera substituição de instituições no exercício do poder, mas de um
reordenamento da vida urbana, que passa a ser direcionada para o consumo. E
consumo implica em ganhos financeiros, o que subordina as produções das in-
dústrias culturais a critérios empresariais que visam quase exclusivamente o lu-
cro. Tal postura contém ecos da Teoria Crítica, ainda que Canclini trabalhe com
conceitos contraditórios a essa corrente e, comparativamente, seja bastante oti-
mista quanto ao papel dos meios.
Portanto, aos Estudos Culturais interessam os usos que se faz das pro-
duções culturais, sejam elas “de massa”, “eruditas”, “tradicionais” ou “popula-
res”. Isso, em termos contemporâneos, significa estudar a música popular, os
desenhos animados, os jogos de futebol, as telenovelas, as práticas cotidianas de
lazer, as formas de expressão como street dance, o grafite e as pixações de mu-
ros, etc.
Ao considerar a recepção também como parte da produção das men-
sagens, os Estudos Culturais passam a exigir uma nova atitude dos pesquisado-
res da Comunicação. É preciso sair de uma posição crítica em relação às páginas
de esportes dos jornais ou a programas de televisão do apresentador Ratinho,
para uma postura analítica, de interpretação e compreensão do significado des-
sas produções para o público. A aceitação da centralidade da cultura no desenro-
lar dos processos sociais é certamente um dos principais pilares dos Estudos
Culturais e também um dos seus pontos mais questionados.
Contra essa postura, pode-se questionar: afinal, não nada fora da
cultura? Tudo é cultura? Se assim é, então onde começa e onde termina a cultu-
ra? O próprio Stuart Hall dá uma resposta.
Naturalmente, esta afirmação em relação à centralidade da cultura
não significa como seus críticos por vezes têm alegado que
não nada senão a “cultura” que tudo é “cultura” e que a
38
“cultura” é tudo; ou, parafraseando a observação agora considera-
da infame do filósofo desconstrucionista francês Jacques Derrida,
“Não nada fora do texto”; ou, como imputam a Foucault, “Não
nada além do discurso”. Se fosse isso o que está sendo argu-
mentado, seria certa e corretamente motivo para crítica por-
que, neste caso, teríamos simplesmente substituído o materialis-
mo ou o socialismo econômico, que outrora ameaçavam dominar
estas questões nas ciências sociais, por um idealismo cultural
isto é, substituído uma forma de argumento reducionista por ou-
tra. O que aqui se argumenta, de fato, não é que “tudo é cultura”,
mas que toda prática social depende e tem relação com o signifi-
cado: conseqüentemente, que a cultura é uma das condições cons-
titutivas de existência dessa prática, que toda prática social tem
uma dimensão cultural. Não que não haja nada além do discurso,
mas que toda prática social tem o seu caráter discursivo. (Hall,
1997)
Entre os processos a serem analisados por uma investigação norteada
por pressupostos dos Estudos Culturais, estão a identidade, a representação, a
produção, o consumo e a regulação. Os dois primeiros serão discutidos de ma-
neira mais aprofundada no próximo item, entretanto, é pertinente uma breve dis-
cussão prévia sobre cada um desses conceitos. A identidade, segundo Wood-
ward (in: Silva, 2002, p.9) é relacional, ou seja, depende de algo fora dela para
existir, é construída pela diferença entre os sujeitos. Assim, não uma identi-
dade fixa, imutável. O que há, são processos de identificação, portanto, a identi-
dade está em permanente construção.
Diferentes contextos sociais fazem com que nos envolvamos em
diferentes significados sociais. Consideremos as diferentes “iden-
tidades” envolvidas em diferentes ocasiões, tais como participar
de uma entrevista de emprego ou de uma reunião de pais na esco-
la, ir a uma festa ou a um jogo de futebol, ou ir a um centro co-
mercial. Em todas essas situações, podemos nos sentir, literalmen-
te, como sendo a mesma pessoa, mas nós somos, na verdade, dife-
rentemente posicionados pelas diferentes expectativas e restrições
sociais envolvidas em cada uma dessas diferentes situações, re-
presentando-nos, diante dos outros, de forma diferente em cada
um desses contextos. (Woodward, in: Silva, 2002, p. 30)
39
Ou seja, os processos de identificação estão relacionado à maneira co-
mo os sujeitos se posicionam e são posicionados ante aos diversos campos
sociais
12
em que atuam. A necessidade de assumir diversas identidades ou repre-
sentar papéis diferentes é uma das fontes de conflito no mundo contemporâneo,
pois muitas vezes aquilo que se exige do indivíduo numa determinada situação
interfere com as exigências de outra. Outra fonte de tensão dos processos de i-
dentificação são as expectativas ante as normas sociais. Para Woodward, esses
“desajustes” entre identificações distintas seriam os responsáveis para o que
muitos denominam “crises de identidade”.
Os processos de identificação são simbólicos, por isso, estão associa-
dos a sistemas de representação, conceito que também pode assumir uma multi-
plicidade de significados, dependendo do posicionamento teórico do pesquisa-
dor. No caso dos Estudos Culturais, a representação é sempre externa, não é uma
representação mental ou interior. Trata-se do posicionamento dos sujeitos ante
aos campos sociais não através de uma interioridade psicológica, mas através de
uma dimensão significante, de registros simbólicos que o identifiquem, são re-
presentações visíveis. Para exemplificar, dentro do tema central desta disserta-
ção, pode-se pensar o torcedor de futebol. Ele se posiciona ante à sociedade co-
mo simpatizante de um determinado time através de representações, como, por
exemplo, usar as cores do uniforme do clube em peças de vestuário e também
nos discursos. A linguagem é, também, um instrumento para a realização dos
processos de identificação e representação.
A representação o é simplesmente um meio transparente de ex-
pressão de algum suposto referente. Em vez disso, a representação
é, como qualquer sistema de significação, uma forma de atribui-
ção de sentido. Como tal, a representação é um sistema lingüístico
e cultural: arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado às rela-
ções de poder. (Silva, 2002, p. 91)
12
Woodward toma o conceito de “campos sociais” de Bourdieu, para se referir aos espaços de atuação do sujeito
como a família, os círculos de amizade, as instituições educacionais, o trabalho, partidos políticos, etc.
40
Pode-se questionar que o posicionamento do sujeito ante aos campos so-
ciais sejam escolhas pessoais, psicológicas. No entanto, como nota Hall (1997),
“são ocasionadas por um conjunto especial de circunstâncias, sentimentos, histó-
rias e experiências únicas e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais.
Nossas identidades são, em resumo, formadas culturalmente”. Ou seja, deve-se
pensar a identificação como construções realizadas no interior dos processos de
representação, conseqüentemente, através da cultura.
Outro conceito fundamental nos Estudos Culturais, bastante explorado
por Hall em suas obras, é o de regulação, processos que podem se referir a polí-
ticas governamentais ou a quaisquer outras formas de “pressão” que “exercem
um poder determinante de controle, de modelagem sobre a cultura” (Hall, 1997),
como a política, a economia, o Estado, o mercado, a Igreja, etc. A própria cultu-
ra é um fator de regulação, segundo Hall (idem): “a cultura, por sua vez, nos go-
verna, ‘regula’ nossas condutas, ações sociais e práticas e, assim, a maneira co-
mo agimos no âmbito das instituições e na sociedade mais ampla”. Conseqüen-
temente, lembra Hall (ibidem), “aqueles que precisam ou desejam influenciar o
que ocorre no mundo ou o modo como as coisas são feitas necessitarão - a gros-
so modo - de alguma forma ter a ‘cultura’ em suas mãos, para moldá-la e regulá-
la de algum modo ou em certo grau”. Por isso, a questão do poder é também per-
tinente para se entender os processos culturais. Entretanto, as relações de poder
não são vistas nos Estudos Culturais, necessariamente, como conflituosas, mas
como arranjos de poder discursivo ou simbólico.
As regulações através da cultura podem ser exercidas de três formas di-
ferentes. Ela é normativa quando conduzida por um conjunto de normas, valores
e conhecimentos culturais, que se não fossem traduzidos em conceitos, valores,
normas, regras e convenções comuns a todos, para regulamentar as práticas so-
ciais, as sociedades entrariam em colapso.
41
O que a regulação normativa faz é dar uma forma, direção e pro-
pósito à conduta e à prática humanas; guiar nossas ações físicas
conforme certos propósitos, fins e intenções; tornar nossas ações
inteligíveis para os outros, previsíveis, regulares; criar um mundo
ordenado no qual cada ação está inscrita nos significados e va-
lores de uma cultura comum a todos. (Hall, 1997)
Os sistemas classificatórios são uma outra maneira de regulação das
condutas sociais. São eles que definem, em relação ao comportamento dos sujei-
tos, o que é sagrado ou profano, o que é aceitável ou condenável, o que é esteti-
camente belo ou feio, o que é semelhante ou diferente. É através desses sistemas
que as pessoas escolhem as roupas que vestirão, os recursos lingüísticos de seus
discursos, os hábitos alimentares, etc.
A terceira forma de regulação citada por Hall é a “produção” ou
“constituição” de novos sujeitos, por meio de uma “mudança cultural”, porém,
não por imposição, pela força ou pelo constrangimento, mas através de estraté-
gias que levem os sujeitos a regularem a si mesmos. Isso acontece, por exemplo,
quando profissionais sentem necessidade de se aperfeiçoarem para poder conti-
nuar no mercado de trabalho. São mudanças comportamentais às quais os sujei-
tos aderem, muitas vezes sem perceber, para se adequarem a um novo paradig-
ma. No entanto, é nos processos de identificação e representação que estão os
conceitos que mais atendem às indagações sobre os fenômenos que esta disser-
tação pretende dissecar. Esse é o tema do próximo item.
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Identidade e poder simbólico são conceitos com os quais o torcedor de
futebol e a mídia esportiva estão em estreita associação. A simpatia de um indi-
víduo por um determinado time é uma escolha pessoal, porém, o caminho que
essa pessoa ipercorrer até que se defina por um ou outro time sofrerá muitas
interferências, que podem ir desde a tradição familiar (existem famílias de co-
42
rintianos, flamenguistas, palmeirenses, vascaínos, etc.) até a vinculação do sujei-
to a aspectos como nacionalidade, raça e religião, passando pelo sentimento de
pertencimento a grupos geográfica e/ou socialmente determinados. Esses pro-
cessos de identificação entre um sujeito e um time de futebol são determinados
por ações simbólicas, efetuadas tanto pelos grupos fundadores e administradores
dos clubes, como (e principalmente) pela mídia. Ao assumir-se como torcedor
de um determinado time de futebol, o indivíduo procura não demonstrar uma
preferência, mas também achar um grupo de referência, marcar uma posição pe-
rante o outro, quer ser reconhecido ou diferenciado de determinados setores da
sociedade.
O futebol é um esporte que tem grande potencial para abrigar esses
processos de identificação porque a maioria dos clubes foi criada como repre-
sentante de algum grupo social. As escolhas dos torcedores sofrem influência
direta da mídia: se esta retrata um clube como o “time do povo”, os indivíduos
que simpatizam com as classes mais humildes (ainda que a elas não pertençam)
terão então facilitada essa identificação com aquela agremiação. Em boa parte
dos casos a mídia amplia e projeta imagens e traços que os próprios clubes fa-
zem questão de assumir
13
, são agremiações que adotaram uma identidade a re-
presentar. No Brasil, os primeiros jogos de football association
14
foram promo-
vidos ou envolveram em sua maioria indivíduos das comunidades inglesas insta-
ladas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Com a multiplicação das equipes, os
jogos de futebol tornaram-se palco para representações não só de classes sociais,
como de grupos comunitários e entidades coletivas como clubes, colégios e as-
sociações diversas. Rapidamente as diferenças entre os grupos, fontes de confli-
tos e antagonismos, foram levadas para os campos de futebol, dentro e fora dele.
A socióloga norte-americana Janet Lever (1983) realizou importante estudo so-
13
O Palmeiras, fundado e administrado por representantes da colônia italiana paulistana é um exemplo, assim
como o Vasco em relação à colônia portuguesa no Rio de Janeiro.
14
Denominação original surgida na Inglaterra no século XIX para distinguir a nova prática esportiva surgida nos
colégios de classes aristocráticas o football que era praticado nas ruas desde a idade média, como se verá no item
História do futebol.
43
bre aspectos sociais do futebol brasileiro e uma de suas conclusões é que o
mesmo “integra pelo conflito”. O futebol é um espaço de identificação, portanto,
de diferenciação e antagonismos.
O aumento da popularidade do futebol e, conseqüentemente, do núme-
ro de torcedores, acirrou as rivalidades entre equipes. Incompatibilidades anteri-
ores à existência dos times passaram a ser levadas a campo, onde o “combate”
se de modo menos rude que nos conflitos bélicos, ainda que a violência não
esteja ausente, pelo contrário. Dentro de campo, a violência é controlada por um
conjunto de regras obedecido em quase sua totalidade e, quando isso não ocorre,
os violadores do código recebem punições. O problema é quando as hostilidades
chegam às últimas conseqüências e geram agressões físicas muitas mortes
foram registradas em conflitos entre torcedores e a violência foge ao controle,
com verdadeiras batalhas a sucederem-se. Pode-se dizer que as torcidas de fute-
bol vivem em de guerra (no terceiro capítulo a violência entre torcidas apare-
ce mais detalhadamente).
Giulianotti (1999) lembra que os antagonismos no futebol acontecem
em vários níveis: jogadores, times, clubes e países. No primeiro estão os atletas
que dentro do campo enfrentam seus oponentes imediatos (atacantes contra za-
gueiros, por exemplo). No segundo, surge a rivalidade entre equipes, ainda den-
tro das quatro linhas limítrofes da prática. A partir do terceiro nível, quando sur-
gem as oposições entre clubes, como representantes de regiões geográficas e
grupos sociais, os processos de identificações culturais assumem papel determi-
nante, pois são rivalidades determinadas por “profundas divisões históricas e
culturais” (p.10). Como exemplo, o autor cita alguns clubes e suas respectivas
representações. Primeiramente, as rivalidades entre clubes de uma mesma
cidade: em Londres, Arsenal e Tottenham competem pela supremacia na região
norte da cidade, enquanto West Ham e Millwall disputam a hegemonia entre as
classes trabalhadoras da zona leste; na Itália, a rivalidade entre Roma e Lazio
reflete as diferenças culturais entre os moradores da Cidade Eterna” e os da zo-
44
na rural nos arredores daquela capital; na Espanha, em Sevilha, o Real Betis tem
a simpatia do braço esquerdo das classes trabalhadoras, enquanto o Sevilha atrai
os mais tradicionalistas. No Brasil, as rivalidades entre equipes da mesma cidade
são muitas e em todas é possível notar a mesma “divisão histórica e cultural”.
Quando apenas um time nas cidades, a rivalidade passa a ser entre clubes de
comunidades vizinhas, como acontece entre Feyenord e Ajax, na Holanda, clu-
bes que representam, respectivamente, as cidades de Rotterdam e Amsterdam.
No Brasil, também são muitos os exemplos, como entre Noroeste (Bauru) e XV
de Novembro (Jaú).
No entanto, os mais representativos antagonismos do futebol estão re-
lacionados às classes sociais. Para Giulianotti, a América do Sul é a região em
que tais rivalidades são mais claras. No Rio de Janeiro, o Flamengo é o time dos
pobres, enquanto o Fluminense representa a aristocracia; em São Paulo, o Corin-
thians atrai muitos simpatizantes nas classes “economicamente mais baixas”,
enquanto o São Paulo é o time favorito das elites econômicas; em Belo Horizon-
te, o Cruzeiro é o time dos ricos e o Atlético o dos pobres; em Lima, a rivalidade
entre Alianza e Universitário opõe não ricos e pobres, mas também negros e
brancos; em La Plata, Argentina, o Estudiantes é o time rico, enquanto o Gimna-
sia y Esgrima é o pobre.
Alguns outros fatores podem determinar a rivalidade entre clubes e is-
so depende também da diferenças culturais de cada região. Em Israel, a divisão é
política: o Hapoel é o clube da esquerda, patrocinado pelo Partido Trabalhista e
seus torcedores adotaram a insígnia da foice e do martelo em suas faixas e ban-
deiras, enquanto o Maccabi é o clube preferido da direita nacionalista e seus
simpatizantes usam como símbolo principal a estrela de David. Em Buenos Ai-
res, uma rivalidade étnica entre Boca Juniors, criado por descendentes de ita-
lianos e o River Plate, originário nas colônias inglesa e espanhola. Na Escócia, a
oposição entre Celtic e Rangers é por questões religiosas, sendo o primeiro re-
presentante dos católicos e o segundo dos protestantes.
45
Em seu paradoxo de integração pelo conflito, o futebol faz todos esses
antagonismos locais e regionais serem (parcialmente) esquecidos nas competi-
ções internacionais entre seleções, que colocam então em campo rivalidades en-
tre nações, que também não têm origem exclusivamente na disputa esportiva. Na
Europa, Alemanha e Holanda levam a campo rusgas que podem ter origem na
ocupação do território batavo pelos nazistas durante a Segunda Guerra. Na regi-
ão dos Bálcãs, as divergências políticas certamente influenciam o clima de riva-
lidade registrado nos jogos entre Grécia e Turquia, Bulgária e Romênia ou Iu-
goslávia e Croácia. Em função de tais antipatias, muitos conflitos são registrados
quando os selecionados desses países se enfrentam, entretanto, as hostilidades
quase sempre se resumem aos campos de jogo e aos arredores dos estádios.
Muitos pesquisadores do assunto associam o futebol à guerra, especi-
almente nas disputas internacionais. Nesse sentido, a expressão “a pátria de chu-
teiras”, cunhada por Nelson Rodrigues soa como um chamamento à batalha.
Fernández (1974, p.62 e 63) o nota em relação ao vocabulário empregado pela
mídia esportiva, que constantemente classifica o jogador como se fizesse refe-
rência a um soldado e as partidas de futebol como verdadeiras batalhas; os téc-
nicos montam estratégias para derrotar o inimigo; os chutes a gol são tiros des-
feridos pelos atacantes; vitórias por larga vantagem são chamadas massacres; os
zagueiros dão combate; os vencedores são heróis, etc. Lever (1983), por sua vez,
nota essa correlação futebol-guerra ao ver o futebol como espaço privilegiado da
exacerbação de sentimentos nacionalistas e resume seu raciocínio com uma de-
claração do jogador Alan Ball, em relação à sua participação na Copa do Mundo
de 1966: Eu não sentia que estava jogando pela Inglaterra, sentia que era a In-
glaterra... Podia sentir a força dos torcedores por trás de mim. Venço por eles;
eles são parte de mim” (p.53).
O futebol serviu de pretexto para uma batalha real”, uma guerra
verdadeira, com mortos e feridos. A chamada “Guerra do Futebol” entre Hondu-
ras e El Salvador aconteceu em 1969 e teve como estopim a disputa por uma
46
vaga na Copa do Mundo de Futebol de 1970, ocorrida num momento de extrema
tensão política na fronteira entre as duas nações. O saldo final do conflito com-
putou cerca de seis mil mortos e doze mil feridos. Não se pode afirmar com cer-
teza absoluta que as hostilidades ocorreram apenas em função de um jogo de
futebol, que havia toda uma situação anterior que leva a crer ser o conflito i-
nevitável, porém, os registros dos acontecimentos apontam para o agravamento
da situação a partir do embate esportivo. Em A Arte da Reportagem, obra orga-
nizada por Igor Fuser (1996), o enredo desse incrível episódio aparece mais de-
talhado (p. 423 a 442). Trata-se de um exemplo de como a fronteira entre o es-
portivo e o social é tênue, bem como da grande responsabilidade dos meios de
comunicação perante a opinião pública, já que os jornais de ambos os lados tive-
ram participação como incitadores das hostilidades.
Assim, o conceito de identidade cultural se torna crucial para a com-
preensão do futebol e especialmente do fenômeno torcedor de futebol. A recí-
proca também é verdadeira, basta pensar sobre os exemplos anteriores e pode-se
ter uma noção do que é identidade ou identificação cultural. Para Denis Cuche
(1990), a idéia de identidade está estreitamente ligada à de cultura, entretanto,
embora muito próximas, uma e outra não podem ser confundidas.
Em última instância, a cultura pode existir sem consciência de
identidade, ao passo que as estratégias de identidade podem ma-
nipular e até modificar uma cultura que o terá então quase na-
da em comum com o que ela era anteriormente. A cultura depen-
de em grande parte de processos inconscientes. A identidade re-
mete a uma norma de vinculação, necessariamente consciente,
baseada em oposições simbólicas.
(p.176)
Cuche lembra que existe mais de uma maneira de se pensar a identi-
dade cultural, de acordo com a noção de cultura que for adotada. Se a cultura for
pensada como uma “segunda natureza”, hereditária, a identidade estaria estrei-
tamente vinculada ao grupo social de origem do indivíduo, fundamentada nas
“raízes” do sujeito, e “o marcaria de maneira quase indelével” (p.178). Assim,
47
no tempo, o vínculo do indivíduo estaria ligado ao passado, com a história dos
seus, enquanto no espaço essa ligação se daria com os lugares onde nasceu e
cresceu. “A identidade repousa então em um sentimento de fazer parte de certa
forma inato”. (p.179).
numa abordagem culturalista, abandona-se a ênfase à herança bio-
lógica em favor da herança cultural, “ligada à socialização do indivíduo no inte-
rior de seu grupo cultural” (p.179). Para ele, o resultado das duas abordagens
não difere, pois, em ambas o indivíduo interioriza modelos que lhe são impostos
e o processo de identificação é anterior a ele, está ligado a uma cultura particu-
lar. Assim, numa e noutra concepção, uma análise do grupo de origem do indi-
víduo poderia revelar muito sobre sua identidade.
São concepções a que Cuche chama objetivistas, criticadas pelos que
defendem uma concepção subjetivista de identidade, que a manipulada pelo
indivíduo. A principal oposição entre as duas correntes é que uma considera o
fenômeno da identidade como estático, ou pelo menos muito estável, enquanto a
outra o tem como variável. Entretanto, Cuche observa que “o ponto de vista sub-
jetivista levado ao extremo leva à redução da identidade a uma questão de esco-
lha individual arbitrária” (p.181). Mas essa bipolaridade é ainda insuficiente
para entender as várias possibilidades do processo de identificação. Cuche apon-
ta Frederik Barth (1969) como um dos primeiros a superar as contradições obje-
tivismo/subjetivismo.
Para Barth, deve-se entender o fenômeno da identidade através
da ordem das relações entre os grupos sociais. Para ele, a identi-
dade é um modo de categorização utilizado pelos grupos para
organizar suas trocas. (...) para definir a identidade de um grupo,
o importante não é inventariar seus traços distintivos, mas locali-
zar aqueles que são utilizados pelos membros do grupo para a-
firmar e manter uma distinção cultural. (p.182)
Por conseqüência, Barth não vê os indivíduos pertencentes a um grupo
social definitivamente determinados por essa vinculação etno-cultural, que a
48
identidade estaria em constante (re)construção. “Não identidade em si, nem
mesmo unicamente para si. A identidade existe sempre em relação a uma outra.
Ou seja, identidade e alteridade são ligadas e estão em uma relação dialética”
(p.183). O processo de identificação, para Cuche, ocorre no campo de negocia-
ção “entre uma auto-identidade definida por si mesmo e uma hetero-identidade
ou exo-identidade definida pelos outros” (p.184). O que implica dizer que a i-
magem que o indivíduo faz de si não é a mesma que outros lhe atribuirão. As-
sim, a identidade não é definitiva e nem absoluta, mas mutável e relativa, cons-
truída a partir de estratégias dos atores sociais.
Cuche alerta ainda para os riscos de se confundir os processos de i-
dentificação com classificação ou rotulação dos sujeitos em grupos sociais, e-
conômicos, étnicos e racialmente distinguidos. Confusão que freqüentemente
gera preconceitos e conflitos, que tende a generalizações, do tipo “o árabe é
assim...” ou “os africanos são assim...”. Cuche defende uma noção de identidade
multidimensional em oposição à monoidentidade incentivada pelos Estados-
Nações modernos, que a despeito de, nos casos de países democráticos como
França e EUA, admitirem em seu seio um certo pluralismo cultural, tendem a
uma rigidez em matéria de identidade e distinguem cada vez mais o que é nacio-
nal ou não.
Stuart Hall, por sua vez, defende a idéia de que as identidades moder-
nas são fragmentadas, o indivíduo não se reconhece ante a tantos papéis que
precisa assumir. A exposição de milhares de papéis que o indivíduo gostaria de
representar, através de um aparato midiático que alcança todos os quadrantes do
globo, multiplica os processos de identificação. À perda do sentido de si” Hall
denomina “deslocamento” ou “descentração” do sujeito, situação que passa a
constituir o que poderia ser chamado de “uma crise de identidade”.
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as
sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmen-
tando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia,
49
raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido só-
lidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações
estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a
idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. (Hall,
1997)
Hall, tendo como referência marcos teóricos da Sociologia, distingue
diferentes noções de identidade a partir das concepções de sujeito possíveis de
serem construídas em três momentos diferentes da História. No Iluminismo, é
“totalmente centrado, unificado, dotado de capacidades de razão, de consciência
e de ação. (...) o centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa” (Hall,
1997); na Modernidade, não é mais visto como autônomo e sim “formado na
relação com outras pessoas importantes para ele’, que mediavam para o sujeito
os valores, sentidos e símbolos - a cultura - dos mundos que ele/ela habitava”
(idem). Assim, a identidade é formada da interação entre o sujeito (“eu”) e a so-
ciedade. Na pós-modernidade, a conceituação do sujeito o coloca sem uma iden-
tidade fixa, ou seja, a identidade é fragmentada e plural, algumas vezes contra-
ditórias ou não-resolvidas. (...) torna-se uma ‘celebração móvel
: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos represen-
tados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (ibidem). Tais
sistemas culturais estão solidificados nos signos, portanto no simbólico, e criam
um espaço de negociação entre os mais diversos sujeitos e instâncias sociais. A
mídia não apenas se faz presente nesse espaço como assume papel central no
processo.
Por sua vez, Canclini (2001) vê a identidade em estreita relação com o
conceito de nacionalidade e associa diretamente a construção das identidades
contemporâneas com as ações da mídia. Para ele, num primeiro momento, os
processos de identificações se davam através de dispositivos como livros escola-
res, museus, rituais cívicos e discursos políticos. Ao que poderiam ser acrescen-
tadas as narrativas populares, a tradição oral, as cantigas, enfim, o que original-
50
mente se conceituava como folclore
15
. Na primeira metade do século XX, sur-
gem o rádio e o cinema, que deram contribuição para a expansão dos relatos de
novas identidades e sentido de cidadania nas sociedades nacionais. O rádio e o
cinema contribuíram para que grupos sociais antes afastados e desconectados se
reconhecessem e, de certa maneira, se integrassem, ainda que através das dife-
renças. Propunham novas maneiras de se lidar com problemas, bem como mos-
travam realidades antes desconhecidas.
Na segunda metade do século XX, primeiro com a televisão e na
transição para o século XXI com novas tecnologias de comunicação eletrônica, a
expansão midiática ampliou o processo. Canclini reconhece então uma multipli-
cidade, ou pluralidade, da identidade, sutilmente diferente da fragmentação de-
fendida por Stuart Hall.
Nesta perspectiva, as nações se convertem em cenários multide-
terminados, onde diversos sistemas culturais se interpenetram e
se cruzam. Só uma ciência social – para a qual se tornem visíveis
a heterogeneidade, a coexistência de vários códigos simbólicos
num mesmo grupo e até em um sujeito, bem como os emprés-
timos e transações interculturais será capaz de dizer algo signi-
ficativo sobre os processos identificadores nesta época de globa-
lização. Hoje a identidade, mesmo em amplos setores populares,
é poliglota, multiétnica, migrante, feita com elementos mescla-
dos de várias culturas. (p. 166)
Além disso, a questão da identidade requerida e a atribuída, con-
ceitos próximos do que Cuche, apoiado em Bourdieu e dentro de um paradigma
marxista, classifica como “auto-identidade”, definida por si mesma, e “hetero ou
exo-identidade”, definida pelos outros, sendo que a primeira é, normalmente,
generalizadora, fruto e fonte de preconceitos sociais. “Em uma situação de do-
minação caracterizada, a hetero-identidade se traduz pela estigmatização dos
grupos minoritários” (p.184). O próprio Cuche cita um exemplo esclarecedor:
15
Atualmente o termo perdeu sua significação original de “saber do povo”, cunhada por William John Thoms,
em 1846. O termo Folclore sofreu uma distorção nos dias de hoje e diz respeito mais ao bizarro, ao curioso, aos
exotismos do que ao saber popular.
51
... na América Latina, no fim do século XIX e no começo do sé-
culo XX, os imigrantes sírio-libaneses, em geral cristãos, que
fugiam do Império Otomano, foram chamados (e continuam a
sê-lo) de Turcos, porque chegavam com um passaporte turco, ao
passo que eles não desejavam justamente se reconhecer como
turcos. O mesmo aconteceu com os Judeus orientais que emigra-
ram para a América Latina na mesma época. (p. 184)
Ainda segundo Cuche, a hetero-identidade leva freqüentemente a um
processo de identificação “negativa”, que acontece em duas mãos, que, para
ele, a auto-identidade é um processo de “interiorização de uma imagem de si
mesmos construídas pelos outros” (idem), de modo que a negatividade da iden-
tidade atribuída pelos grupos majoritários muitas vezes é assimilada pelas mino-
rias como uma diferença negativa, da qual se envergonham. Mas os processos de
auto-identificação não podem ser generalizados como negativos, que os gru-
pos dominantes ou majoritários também atribuem traços identificatórios que,
obviamente, não são negativos. Um exemplo são os chamados wasps (White an-
glo-saxon protestants), grupos dominantes dos Estados Unidos.
Assim, para Cuche, nas lutas sociais o que está em jogo é a identidade,
a afirmação de si mesmo, porém, o poder de identificação” dependerá da posi-
ção dos grupos nas relações de dominação. Citando Bourdieu (1980), o autor
argumenta que somente os que dispõem de autoridade legítima, ou seja, de au-
toridade conferida pelo poder, podem impor suas próprias definições de si mes-
mos e dos outros” (p.186). Por outro lado, os processos de identificações não se
resumem à esfera ideológica, têm caráter multidimensional e dinâmico, são
construções socioculturais. A auto-identidade de um grupo pode não ser reco-
nhecida por outros, assim como a hetero-identidade que lhe é imposta pode não
ser aceita.
Sob quaisquer dessas perspectivas de análise dos processos de identi-
ficação cultural, nas sociedades contemporâneas, está claro que o futebol integra
o mosaico que compõe a identidade individual. No Brasil, especificamente, tor-
52
cer por um time chega a ser uma necessidade. Portanto, identidade também é um
conceito que está bastante associado à idéia de representação, que, conforme
França (2004) situa-se nas fronteiras da Sociologia, Psicologia e Semiótica, ain-
da que cada um desses ramos científicos tenha sua definição específica para o
termo representações. Nas Ciências Sociais, são definidas “como categorias de
pensamento, de ação e de sentimento que expressam a realidade, explicam-na,
justificando-a ou questionando-a” (p.14). França frisa, porém, que a partir da
obra de Émile Durkheim surge o conceito de “representações coletivas”, que diz
respeito “aos significados, às imagens, ao quadro de sentidos construídos e parti-
lhados por uma sociedade” (p.14).
Na psicologia, originalmente o estudo das representações está ligado
aos processos cognitivos e à atividade simbólica, portanto, individual. Mas a
psicologia social busca ampliar essa conceituação, ao ligar os processos de re-
presentações com as diferenças sociais e pensar não em representações coleti-
vas, mas sociais. França cita S. Moscovici, para quem as representações sociais
circulam, se entrecruzam e se cristalizam pela “substância simbólica”, pelos sig-
nos, assim, adentra-se no campo da semiótica. Esta terceira ciência associa as
representações às imagens mentais (subjetiva), mas reconhece sua existência
pública (processos intersubjetivos), assim, estão próximas do conceito de signo,
são imagens construídas ou aceitas pelos indivíduos para identificá-lo (diferen-
ciá-lo) publicamente, processo que passa a depender das mediações. Para Fran-
ça, é exatamente na intercessão entre os conceitos de representações e media-
ções que a Comunicação deve centrar seus esforços para entender os fenômenos
que analisa (midiáticos).
Na Comunicação, o conceito de mediações ganhou muita força com o
crescimento dos Estudos Culturais, principalmente a partir do texto Enco-
ding/decoding de Stuart Hall, publicado na década de 1970 (no Brasil apenas em
2003!) e do livro De los medios a las mediaciones de Jesús Martín-Barbero, do
final dos anos de 1980. Para Hall, os momentos da emissão e da recepção (codi-
53
ficação/decodificação), embora relacionados, são distintos, assim o espaço da
recepção é dotado de relativa autonomia e especificidade, tem uma lógica pró-
pria. Martín-Barbero desloca o eixo das análises comunicacionais, antes centra-
das nas produções midiáticas, para o campo da recepção e para a vida cotidiana,
de modo que em ambos os trabalhos reforça-se a idéia da inserção da comunica-
ção na cultura, que cria um campo de relações entre os sujeitos envolvidos no
processo que, por sua vez, sofre influências de outras forças sociais, processo
que se situa no campo do simbólico e abriga embates permanentes entre as di-
versas modalidades do poder.
O
O
p
p
o
o
d
d
e
e
r
r
d
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o
s
s
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b
b
ó
ó
l
l
i
i
c
c
o
o
As relações de poder influenciam intensamente os processos comuni-
cacionais, daí o interesse em compreendê-las para a análise dos fenômenos mi-
diáticos. Quando se faz referência ao poder na Comunicação, o primeiro concei-
to que surge é o de mídia como quarto poder, que influencia e, para alguns
pensadores controla os demais poderes políticos do sistema democrático (Le-
gislativo, Executivo e Judiciário). No entanto, essas são apenas algumas das va-
riadas formas de poder, termo que recebe diversas conceituações, que é tema
recorrente nas ciências que buscam o entendimento do Homem na dimensão das
relações sociais desde as mais remotas épocas. O poder, no presente texto, é a-
ceito como a capacidade de indivíduos, grupos ou instituições intervirem no cur-
so dos acontecimentos ou mesmo causá-los em benefício próprio ou de causas
que defendem, e pode ser exercido de várias maneiras, determinadas por contex-
tos sócio-culturais, portanto, não há um poder, mas relações de poder,.
O sociólogo John B. Thompson (1995) distingue quatro formas de po-
der: econômica, política, coercitiva e simbólica, que se associam em diversas
instâncias. Sempre que houver a concentração de uma dessas forças, estará ca-
racterizada a relação de poder, cada uma sustentada por modos de relacionamen-
54
to particulares, mas interdependentes. O poder simbólico, diretamente ligado ao
tema da presente dissertação, é oriundo da atividade de produção, transmissão e
recepção de significados, relações que são fontes de poder porque estão em con-
dições de igualdade com as atividades produtivas (econômicas), coordenadoras
dos indivíduos (política) e coercitivas.
Uma das características mais importantes das relações de poder é que
elas são cumulativas, ou seja, quanto mais poder detém o indivíduo ou o grupo,
maiores serão as possibilidades de aumentá-lo. Por exemplo, o detentor de gran-
des valores econômicos pode usar seu capital financeiro para pressionar os mei-
os políticos a beneficiá-lo e assim ampliar não apenas seu patrimônio material,
como passa a deter também a possibilidade de influenciar no curso dos aconte-
cimentos políticos. Além disso, à medida que as diversas formas de poder ex-
pandem seu campo de ação, tanto no sentido geográfico como social, inversa-
mente, elas se concentram nas mãos de cada vez menos detentores do poder.
Os meios de comunicação de massa são algumas das ferramentas mais
eficientes na legitimação de tais processos, pois atuam como se fossem porta-
vozes da sociedade e influenciam de maneira significativa a formação das opini-
ões. Não se pode deixar de lado também a força de agenda-setter da mídia, que
determina em grande parte os assuntos a serem discutidos ou esquecidos, o
que é mais perigoso politicamente – pela sociedade.
A informação torna-se então elemento central nas relações de poder
simbólico, descrito por Pierre Bourdieu (2002) como algo “quase mágico, que
permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força, (física ou econômi-
ca)” (p.14), porém, invisível, “só pode ser exercido com a cumplicidade daque-
les que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (p.
8). O sociólogo francês reconhece ainda que é um tipo de poder que pode e-
xistir em uma relação entre os que o exercem e os que lhe estão sujeitos, troca
que recebe influências de outras formas de poder como o político, o econômico
e o coercitivo. Além do mais, qualquer que seja a forma de poder, é mediada por
55
instituições tais como a Igreja, escolas, universidades, meios de comunicação de
massa, etc.
Bourdieu classifica os instrumentos que proporcionam poder simbóli-
co como bens”, por darem vantagem a um sujeito sobre outro, de modo que
passa a ter valor substancial para a manutenção dessa dominação. O acúmulo e
concentração desses bens representaria, assim, um “capital simbólico”, equiva-
lente aos valores financeiros para o exercício do poder econômico ou da força e
das armas para a imposição do poder coercitivo. No entanto, os símbolos nem
sempre são materializáveis como o dinheiro ou as propriedades privadas; como
a força física ou um arsenal bélico. E nem sempre são perceptíveis aos sentidos
como tato, olfato, visão ou audição, não estão sujeitos a leis biológicas, quími-
cas, físicas ou matemáticas, ainda que, para ser exercido, o poder simbólico in-
corpore, submeta-se e utilize os sentidos e as leis da natureza. Muitos bens tidos
como “culturais” e que fazem parte do universo midiático como livros, revistas e
jornais, são também materiais, portanto, estão na esfera econômica, o que torna
o poder simbólico parcialmente dependente do capital financeiro.
A capacidade de fazer existir em estado explícito, de publicar, de
tornar blico, quer dizer, objetivado, visível, dizível, e até
mesmo oficial, aquilo que, por não ter acedido à existência obje-
tiva e coletiva, permanecia em estado de experiência individual
ou serial, mal-estar, ansiedade, expectação, inquietação, repre-
senta um considerável poder social. (Bourdieu, 142)
No campo político, o bem cultural terá valor se o sujeito que o de-
tém estiver também investido da devida autoridade, que, certamente, não deriva
exclusivamente das palavras, dos discursos, mas também de relações sociais de
cunho histórico e econômico. Trata-se, por exemplo, da diferença entre o que
diz um cidadão comum e um primeiro-ministro. Um (o político investido no
cargo) tem poderes reconhecidamente maiores para alterar o curso dos aconte-
cimentos que o outro.
56
Bourdieu observa ainda que os processos que originam as relações de
poder simbólico funcionam como integrantes das estruturas sociais e, de acordo
com a tradição marxista, servem como instrumentos de dominação das classes
que detêm os aparatos de produção simbólica. “(...) a cultura que une (interme-
diário de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distin-
ção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como
subculturas) a definirem-se pela sua distância em relação à cultura dominante”
(p.11).
De outro lado, ainda segundo Bourdieu, tais sistemas simbólicos
podem ser usados como instrumentos de dominação a partir da preexistência de
uma relação de poder de uma classe sobre outra, de modo que a dominação seria
anterior à utilização dos sistemas simbólicos, o que os caracteriza como estrutu-
rados para manter a relação de poder, que conta com outros fatores em sua es-
trutura de dominação como forças coercitivas, políticas e econômicas. Ou seja, o
que permite às palavras (um sistema simbólico) constituírem-se em poder sim-
bólico é a crença em sua legitimidade, bem como na daquele que as pronuncia.
“Crença cuja produção não é da competência das palavras”. O simbólico, em
conjunto a outros “capitais” como o financeiro, o bélico e o político passa a sus-
tentar estruturas de poder mais complexas e gerais. Assim, as palavras, pronun-
ciadas ou escritas sem a autoridade do sujeito, não têm poder por elas mesmas;
se não lhe forem atribuídos significados, o que só pode ser feito através de ações
simbólicas, não podem alterar o rumo dos acontecimentos.
Tal posicionamento mostra que a mídia não pode ser considerada um
poder em si, uma vez que a capacidade (econômica) de “fazer existirem em es-
tado explícito” suas produções está concentrada nas mãos de minorias que de-
terminam seus conteúdos. Além disso, é necessário considerar o que pode acon-
tecer na esfera da recepção. A mídia torna públicos eventos dependentes das es-
feras da produção e da recepção, é manipulada, sofre censura externa e auto-
censura. O que faz uma classe sobrepor-se sobre outra, definitivamente, não é a
57
ação da mídia, mas todo um processo histórico, político, social e econômico. A
mídia não passaria então de um instrumento ou um campo de expansão do po-
der, influente o bastante para ser confundido com ele próprio. Sem dúvida, o
poder simbólico inclui em seu capital o uso dos meios de comunicação como
difusores de sua ideologia, como instrumento para justificar suas ações e outros
fins legitimadores de sua dominação, porém, não são os meios em si que lhe dão
tal supremacia. Ou seja, a mídia serve às relações de poder simbólico.
Mesmo sob a perspectiva da Teoria Crítica, os meios de comunicação
são mais um instrumento para exercício do poder do que um poder em si, que
funciona como sustentáculo e disseminador da ideologia das classes dominantes,
que controlam os meios de produção da informação. Assim, é possível afirmar
que a mídia integra as relações de poder simbólico; pode, sim, mudar o rumo de
alguns acontecimentos, mas para tal deve estar associada a alguma outra força
social. Para os que sustentam a idéia de mídia como quarto poder, um contra-
ponto a esse raciocínio poderia ser o fato de que, na verdade, nenhum poder age
por si, toda relação de poder envolve mais de uma força social, inclusive a dos
meios de comunicação de massa. Entretanto, não é apenas essa necessidade de
agir em conjunto com outras forças que faz da mídia instrumento de e o um
poder em si; é sua fragilidade, sua submissão perante influências econômicas,
políticas e coercitivas.
Em relação ao futebol, essa ambigüidade da mídia de poder influenci-
ar e ao mesmo tempo estar submetida a diversas modalidades de controle pode
ser notada tanto na superfície do fenômeno, quanto em seus aspectos menos apa-
rentes. Atletas e agentes dos espetáculos esportivos utilizam-se cada vez mais
dos meios de comunicação para promoverem suas ações e ampliar seus ganhos
financeiros e simbólicos (como a fama). Para isso, são utilizadas técnicas de
marketing, bem como estratégias mais “agressivas” (força econômica e pressões
políticas, por exemplo), que influenciam, e muito, o noticiário esportivo. Os veí-
culos de comunicação, por sua vez, apostam na divulgação, promoção e organi-
58
zação de espetáculos esportivos para atrair mais leitores, ouvintes ou telespecta-
dores. Entretanto, para isso necessitam ter um relacionamento minimamente a-
migável com as estruturas de poder do esporte compostas por federações e as-
sociações diversas – e também com clubes e atletas mais destacados.
A mídia se submete ainda ao que muitos jornalistas chamam de dita-
dura da audiência”, que nada mais é do que trabalhar com esquemas que têm
retorno garantido. Ou seja, deve-se “fazer o que o público quer”. O problema é:
o que o público quer? Para as empresas a resposta está nos índices de audiência
e de vendagem. Se o que é oferecido ao público (sempre visto como consumi-
dor) é aceito, então deve continuar sendo oferecido, até que os mesmos índices
indiquem o contrário. É uma ferramenta de avaliação quantitativa, portanto, bas-
tante relativa. Por exemplo: uma partida de final de Copa do Mundo terá índices
elevadíssimos de audiência muito mais pela importância que as pessoas dão ao
evento do que devido ao modo como os meios de comunicação tratam o assunto.
De qualquer maneira, o público, o torcedor não pode ser mais visto
como agente passivo desse processo, que se não receber aquilo que realmente
espera, tanto por parte dos atletas, como por parte da mídia, pode simplesmente
ignorar o fenômeno e torná-lo vazio, que sem blico, sem consumidor, o es-
petáculo estará condenado ao fracasso. As relações de poder entre mídia e fute-
bol estão no campo simbólico e por isso assumem suas características, ou seja,
estão em constante movimento. Em determinadas situações os meios de comu-
nicação se sobrepõem, em outras, são submetidos, o que mostra mais uma vez
sua condição de instrumento de poder.
Tais considerações são necessárias para situar o futebol como fenô-
meno integrante destes processos sócio-culturais, portanto, capaz de revelar
muito sobre as sociedades em que ocorre. Não se trata de uma simples prática
esportiva, mas de um fenômeno de massa e popular ao mesmo tempo; controla-
do em certos aspectos pela Indústria Cultural, mas também independente e es-
pontâneo em outros; entretanto, sua principal característica na atualidade é ter se
59
transformado em um fenômeno de comunicação de massa. Sem apoio do aparato
midiático, é difícil pensar que uma partida de futebol pudesse ser assistida por
muitas pessoas, o interesse pelo jogo se resumiria àquelas presentes durante a
prática. Como espaços de integração e conflito, mídia e futebol, ao se relaciona-
rem, potencializam tais características. Assim, nos próximos itens apresentam-se
considerações sobre as relações geradas pelo diálogo entre esses dois campos.
Para isso optou-se por uma análise que busca inicialmente conceituar o termo
mídia e contextualizá-lo em relação à temática desta dissertação. Na seqüência,
discute-se as relações entre mídia e esporte.
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Ao quebrar barreiras espaço-temporais, a disseminação da informação
via veículos midiáticos acarretou mudanças fundamentais nas relações sociais
16
.
Para Thompson (1995, p.106) os fenômenos midiáticos são de suma importância
na construção simbólica da Modernidade, já que a mídia está diretamente envol-
vida na construção do mundo social, “ao levar informações para indivíduos situ-
ados nos mais distantes contextos”. Assim, os meios de comunicação não
modelam e influenciam o curso dos acontecimentos, como criam fatos que pode-
riam não ter existido em sua ausência.
O processo de agigantamento do campo de atuação da mídia tornou as
fronteiras entres as noções de comunicação, mídia e jornalismo ainda mais tê-
nues, entretanto, uma não pode ser confundida com a outra. A primeira, mais
geral, inclui as outras duas, porém, pode se referir a aspectos tão diversos como
uma troca de olhares ou a interligação de países por cabos de telefonia. A se-
gunda engloba a terceira, porém, também faz referência ao mundo da publicida-
16
A grandiosidade e a influência deste processo podem ser medidas pelo conceito de quarto bios defendido por
Muniz Sodré (2002, p. 25), para quem, além dos três gêneros de existência (bios) propostos por Platão em sua
Ética a Nicômacos, sejam: o theoretikos (vida contemplativa), o politikos (vida política) e o apolaustikos (vida
prazerosa, do corpo), a partir do gigantesco avanço tecnológico das vias de comunicação, surgiu o bios midiáti-
co, onde predomina (muito pouco aristotelicamente) a esfera dos negócios, com uma qualificação cultural pró-
pria (a ‘tecnocultura’)”.
60
de e do marketing. O terceiro termo é o mais específico, diz respeito às informa-
ções e interpretações de fatos cotidianos; tem como matéria-prima a notícia, a
novidade. Mas o desenvolvimento das tecnologias de informação não apenas
ampliou o alcance do espectro de disseminação da informação como acarretou
mudanças profundas no modo de se fazer jornalismo. Se no início do século XX
uma notícia poderia levar até meses para chegar a seu destino, cem anos depois,
o “11 de Setembro” foi visto por milhões de pessoas ao redor do globo no exato
instante em que ocorreu. Ainda assim, por um longo período seguinte ao ataque
terrorista, o principal assunto dos jornais no mundo inteiro continuou sendo o
referido atentado.
Isso demonstra que os textos jornalísticos, dentro do contexto tecnoló-
gico da atualidade, estão muito além da notícia, são mais do que meros relatos
ou descrições dos acontecimentos: tornaram-se ampliações dos mesmos. Os jor-
nalistas hoje necessitam proporcionar condições ao leitor para compreender me-
lhor os fatos, correlacioná-los com outros e com seu próprio cotidiano, não basta
apenas informar o acontecido. Ainda que se advogue a causa da objetividade, os
textos jornalísticos são de caráter interpretativo, estão presos à subjetividade de
seu construtor. Por isso, não resistem a análises que tentem provar o contrário,
como demonstrado principalmente por estudos da linguagem. Apenas para
citar um exemplo, Kerbrat-Orecchioni (1980) as produções discursivas como
não análogas à realidade, ou seja, não a reproduzem fielmente, uma vez que fa-
zem recortes a partir de universos referenciais particulares, impõem uma visão
individualizada do mundo, organizando-o por abstrações generalizantes a partir
de eixos semânticos “parcialmente arbitrários”. Isso porque podemos descre-
ver a natureza segundo linhas traçadas por nossa língua, por conseqüência, não é
possível atingir a imparcialidade absoluta. Esse posicionamento é muito próxi-
mo ao de Geertz (1989), que os relatos antropológicos como ficções (no sen-
tido de fictio como construção da realidade e não invenção).
61
Ainda segundo o raciocínio de Kerbrat-Orecchioni, não é possível
construir discursos totalmente objetivos ou subjetivos, mas discursos com maior
ou menor grau de objetividade e subjetividade. Como exemplo, pode-se colocar
o discurso científico como bastante próximo da objetividade total, e o poético,
da subjetividade. A mídia, ao contrário, não tem um discurso próprio, é um es-
paço em que são utilizadas as mais diversas modalidades discursivas. Na grade
de programação de um canal de televisão podem ser encontrados informativos
jornalísticos, programas de auditório, infantis, filmes, reality shows, etc., além
das mensagens publicitárias. Cada uma dessas modalidades se utiliza de discur-
sos próprios que podem ser objetivos, subjetivos, persuasivos, informativos, o-
pinativos ou simplesmente com intenção de divertir. Fundamentalmente, os dis-
cursos midiáticos buscam convencer as audiências a consumir produtos e servi-
ços e também a acatar posicionamentos e opiniões. No primeiro caso, os discur-
sos empregados são basicamente diretos, muito próximos da objetividade, em-
bora a publicidade cada vez mais utilize mensagens subliminares. Entretanto, o
objetivo é bastante claro: compre. No segundo caso, as estratégias de convenci-
mento nem sempre aparecem de modo tão claro às audiências, muitas vezes, se
dá através da omissão de informações.
Se não obtiveram êxito em suas tentativas de manipulação das massas,
os meios de comunicação de grande alcance conseguiram criar o que se chama
de público consumidor (de informação), a que os próprios produtores conside-
ram “cativo”, que esse passa a ter o veículo como principal fonte de informa-
ção, portanto, de referência. Porém, trata-se de um consumidor ativo por que faz
uso do que lhe é oferecido, inclusive, quando ignora o que lhe é posto. Mas, a-
cima de tudo, esse público, ou massa, por mais heterogêneo que possa ser cultu-
ral, econômica ou socialmente tem algo em comum: a disposição para o consu-
mo. É nisso que as empresas de comunicação apostam, e ganham, ao oferecerem
as informações que orientarão as preferências das massas.
62
As inovações tecnológicas dos meios de comunicação promoveram
outras mudanças substanciais no modo de se fazer jornalismo, alteraram até
mesmo a linguagem do jornalismo. Para Ignácio Ramonet (in Moraes, 2002, p.
243 a 252), uma das conseqüências da “revolução” digital é a fusão do texto,
imagem e som a partir do que megaempresas de comunicação passaram a fundir
também os conceitos de publicidade, jornalismo e cultura de massas. Assim,
não existiriam mais as fronteiras entre esses conceitos ou discursos. Tal consta-
tação está cristalizada no jornalismo esportivo, um dos produtos mais caracterís-
ticos da indústria cultural e certamente um dos gêneros jornalísticos mais afeta-
dos pela linguagem da publicidade e das ações de marketing.
(...) hoje a informação é considerada essencialmente uma merca-
doria, não é um discurso que tenha a vocação ética de educar o
cidadão ou de informar, no bom sentido da palavra, o cidadão,
pois tem essencialmente e, antes de mais nada, uma perspectiva
comercial. Compra-se e vende-se informação com o objetivo de
obter lucros. Esta é uma lei importante, de modo que a informa-
ção não se move em função das regras da informação (...) mas
em função das exigências do comércio, que fazem do ganho, ou
do interesse, o imperativo supremo. (Ramonet, in Moraes, 2003,
p. 247)
No entanto, a informação não se trata de um bem materializável em
linhas de produção ou coletado na natureza. Além disso, a informação está em
toda parte e assume formas variadas. No jornalismo ela se transveste em notícia,
mais um termo de muitos significados, porém, nenhum deles definitivo e todos
bastante complexos se analisados profundamente. Apenas no Novo dicionário
da língua portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (s/d, p. 979), a-
parecem quinze designações diferentes para a palavra notícia: “informação, noti-
ficação, acontecimento, observação, apontamento, nota, escrito ou exposição
sucinta de um assunto qualquer, novidade, nova, lembrança, memória, nota his-
tórica, constituir-se novidade ou destacar-se em um noticiário (ser notícia)”.
Numa rápida reflexão sobre qualquer um desses termos descobre-se logo porque
63
são possíveis tantas significações serem atribuídas a uma palavra: todas são
insuficientes. A notícia é fundamentalmente informação, mas não pode ser con-
siderada apenas como tal, trata-se também de uma construção sócio-cultural.
Ademais, numa suposta sobreposição entre os termos do dicionário
Aurélio, surgem relações conflitantes como em “acontecimento/escrito”, em que
a notícia toma o lugar do já ocorrido para se tornar o relatado, informado, notifi-
cado, observado, apontado, etc. Nada problemático, não fossem alguns detalhes
como o fato de que cada sujeito que presencie um fato e depois o relate, o faz de
acordo com uma visão particular, mesmo sob influência de fatores reguladores e
mediadores, aos quais o sujeito procura adequar sua linguagem e suas mensa-
gens. Ou seja, os portadores da notícia sempre proporcionarão uma visão parti-
cular sobre determinados eventos e isso não pode ser tomado como o fato em si.
Ou ainda, “novidade/memória”, em que se coloca de um lado a notícia como
algo que o era conhecido, um fato supostamente novo e que passa a ser com-
partilhado, e, de outro, algo que era conhecido, que estava na memória, a-
penas relembrado. Uma outra sobreposição conflitante é observa-
ção/notificação”, que contrapõe o ato de ver, presenciar ao de dar conheci-
mento a outrem de alguma coisa, que se tratam de ações completamente distin-
tas.
Toda essa complexidade se origina no fato de a notícia ser uma cons-
trução simbólica do mundo, inserida, portanto, na esfera da Cultura. Sendo as-
sim, potencialmente pode acarretar alterações nas relações sociais, desde as inte-
rações simbólicas entre o sujeito e suas atividades privadas (no sentido de rotina
pessoal) até situações de conflito entre países. É através de noticiários, de “saber
o que está se passando no mundo”, que muitas pessoas orientam suas ações. A
reação dos receptores a notícias divulgadas em veículos de grande alcance pode
gerar verdadeiros estados de comoção pública, bem como servir de pretexto para
processos de revolta, etc. Por outro lado, podem também ser recebidas com indi-
ferença.
64
Em resumo, a mídia pode ser considerada como um espaço de intera-
ções simbólicas atualmente marcado por avanços tecnológicos que transforma-
ram a informação em elemento essencial para as relações humanas, de tal forma
que tornam-se determinantes de comportamentos, metas e preferências individu-
ais. É com base no que a mídia lhe oferece que o indivíduo fará suas escolhas,
assim, a informação adquire valor de bem”, no sentido de mercadoria, torna-se
a matéria-prima da Indústria Cultural. Mas o espaço midiático não é puro, pois
se relaciona com todas as instâncias sócio-culturais e, conseqüentemente, influ-
encia e é influenciado pelas diversas mediações. Trata-se de um processo no
qual todos os sujeitos, desde os produtores aos receptores da informação, são
manipuladores em dados momentos e manipulados em outros. O jornalismo es-
portivo nasce e se desenvolve no espaço midiático, assim, adquire muitas dessas
características, como se verá nos próximos itens.
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Desde os seus primórdios o esporte sempre se dividiu em duas verten-
tes. De um lado, pode ser visto como um conjunto de práticas com finalidade de
aperfeiçoamento físico, atrelado assim a fatores de higiene e saúde; de outro é
percebido como competição, seja entre indivíduos, entre grupos, do homem con-
tra ele mesmo ou contra o tempo, distâncias, barreiras físicas, etc. Atualmente, a
estas definições deve-se acrescentar uma terceira, essencial para entender os fe-
nômenos esportivos, como espetáculos oferecidos via aparato midiático. O es-
porte tem evoluído paralelamente ao desenvolvimento dos meios de comunica-
ção de massa e recebido muitas influências destes, apesar de também usufruir da
capacidade da mídia em atrair algo que tornou-se essencial para sua prática: o
público (exceto no caso citado nas segunda e terceira linhas deste parágrafo).
O esporte adquiriu a configuração dos dias atuais principalmente em
função do desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação. Inicialmente,
como assunto recorrente na imprensa no início do século XX, depois com as
65
transmissões radiofônicas de eventos esportivos
17
. A popularidade que tais
transmissões adquiriram, colaboraram muito para o desenvolvimento do próprio
rádio ante as dificuldades técnicas que tinham de ser superadas e a concorrência
entre as emissoras. Mais tarde, com a televisão, os esportes ganharam o impulso
decisivo para adquirir a característica de mega-espetáculo e fonte de lucros. Isso
ocorreu com tanta força que, se nos primórdios dos Jogos Olímpicos da Era Mo-
derna
18
, Pierre de Coubertin criou o lema “o importante não é vencer, mas com-
petir”, passados pouco mais de cem anos pode-se dizer que importante não é
vencer, nem competir, mas aparecer na mídia.
Um dos principais objetivos no esporte contemporâneo é proporcionar
espetáculos que chamem a atenção da imprensa, que atraiam grandes públicos,
presentes tanto nas “arenas” onde se dão as competições, quanto nos índices de
audiência e de vendagem de exemplares e espaço publicitário. A performance
atlética, ainda que esteja no núcleo dos acontecimentos, chega a ficar em segun-
do plano conforme o modelo de cobertura jornalística adotado pelos veículos
midiáticos envolvidos na divulgação do espetáculo. Os meios de comunicação
que se utilizam de imagens, principalmente, tendem a transformar competições
em grandiosos shows. Aspectos não relacionados diretamente à ação dos compe-
tidores podem se tornar, de forma premeditada ou não, o tema central da cober-
tura jornalística. A mídia abre grandes espaços para as performances atléticas
mais brilhantes, mas nem sempre basta o esforço dos atletas para que a imprensa
noticie um fato esportivo. Entre outros fatores, a popularidade da modalidade
praticada pode ser determinante para que um acontecimento seja ou não noticia-
do.
Assim, uma grande façanha de um iatista (como Robert Scheidt, oito
vezes campeão mundial) pode ser ignorada, enquanto um treino corriqueiro de
17
Segundo Garrido (1999), a primeira transmissão de um evento esportivo ao vivo no rádio brasileiro ocorreu
em 1931, quando a Rádio Sociedade Educativa Paulista transmitiu a partida de futebol entre as seleções paulista
e paranaense.
18
A primeira edição do atual ciclo olímpico foi realizada em 1896, em Atenas.
66
uma grande equipe de futebol, beisebol ou basquetebol pode merecer ampla co-
bertura. O sucesso de um evento esportivo, nos dias de hoje, depende, antes de
tudo, de campanhas publicitárias bem planejadas e executadas. O fator eficiência
atlética também tem sua parte, mas isoladamente não garante o sucesso dos e-
ventos. Para os atletas atingirem plenamente seus objetivos, precisam além de
bons treinadores, de uma boa assessoria de imprensa ou de uma estratégia de
marketing bem planejada.
Outra intervenção da imprensa no mundo dos esportes pode não ser
tão clara à primeira vista, mais uma vez por ter ligação com as nuanças do dis-
curso: a transformação do realmente acontecido no que foi mostrado e ou notici-
ado (o esporte da mídia). Ou seja, o fato esportivo assume outras significações
tão logo é apropriado pela mídia, de modo que o que chega ao destinatário é
uma interpretação, com a qual ele pode estar de acordo ou não, mas sua opinião
ou a visão que terá será baseada não no realmente acontecido, mas no que lhe foi
mostrado, ou no que ele leu. Por isso não é incomum haver divergências entre a
experiência de assistir a qualquer tipo de competição esportiva ao vivo, de pre-
senciá-la no local dos acontecimentos (interação face a face), e a de, no dia se-
guinte, ler as reportagens nos jornais ou assistir nos noticiosos sobre esporte i-
magens selecionadas do mesmo evento presenciado. O sujeito participante desse
evento terá opiniões diferentes daquelas explícitas ou implícitas no discurso mi-
diático, teassistido ou participado diretamente da ação a partir de um ângulo
totalmente diverso daquele possível de ser notado e mostrado pelos meios de
comunicação.
Num exemplo prático, podem-se tomar os lances polêmicos de uma
partida de futebol em que as decisões do árbitro são aparentemente acertadas, ou
não, para os sujeitos presentes durante a ação, mas que no dia seguinte, após ser
visto e revisto (o lance gerador da polêmica) nos programas de televisão ou nas
análises escritas dos jornalistas, o mesmo sujeito tende a mudar de opinião. E
isso não é novidade alguma em termos de jornalismo esportivo. Em uma crônica
67
publicada pelo extinto diário Última Hora, em 20 de junho de 1962, sobre a Co-
pa do Mundo realizada naquele ano, no Chile, Paulo Francis observou o seguin-
te:
Os espíqueres de rádio, sem exceção, falsificaram o que estava
acontecendo em campo, observação facilmente verificável gra-
ças ao vídeo-tape. Tinham (sic) um mero de pessoas situadas
junto a cada gol, que se limitava a concordar com o espíquer
principal: “Exato fulano, foi exatamente assim como você disse,
numa gentileza da firma, etc”. (Arquivo em Imagens, mero 2,
Série Última Hora, p.77)
Atualmente, com o largo uso da imagem e a possibilidade das trans-
missões ao vivo, tornou-se bem mais difícil “falsificar” os acontecimentos es-
portivos, como faziam os “espíqueres” do rádio em décadas passadas. No entan-
to, ainda não se pode dizer que o que foi transmitido pelas televisões tenha refle-
tido todo o acontecido. A transmissão pode ser tendenciosa ou não. Basta pensar
em um jogo, de qualquer modalidade, que envolva dois ou mais países na dispu-
ta. Em cada um dos países a transmissão proporcionará diferentes imagens e,
conseqüentemente, suscitará sensações diversas sobre o mesmo evento. As re-
transmissoras de cada país envolvido privilegiarão ângulos que mostrem mais os
atletas conterrâneos. As polêmicas serão mostradas, ou omitidas, de acordo com
o interesse de cada um dos órgãos de imprensa presentes.
Na mídia impressa, a cobertura tendenciosa de eventos esportivos é
ainda mais facilitada e evidente. Não são apenas sentimentos nacionalistas, pai-
xões clubísticas e regionalismos que influenciam o jornalismo esportivo. Os in-
teresses pessoais dos jornalistas e/ou das empresas envolvidas no todo do pro-
cesso também trabalham para que as notícias sobre eventos esportivos nem
sempre sejam confiáveis ou que reflitam o realmente ocorrido. O resultado é que
o noticiário esportivo atual no Brasil tem se mostrado superficial, inconseqüente
até, com meras coberturas sobre resultados ou aspectos irrelevantes como a vida
pessoal dos atletas, ou a apresentação de estatísticas curiosas sem o acompa-
68
nhamento de interpretações a respeito dos números “descobertos”. As justifica-
tivas para isso são muitas e variam desde a rotina de trabalho do jornalista, cada
vez mais burocratizada e sujeita às amarras dos manuais de redação, até a já ve-
lha desculpa de que é “isso o que o leitor quer, nada de politizar onde não há po-
lítica”.
São cada vez mais raras análises estruturais sobre a situação do espor-
te no país, reportagens investigativas ou matérias sobre as relações entre esporte
e saúde, enfim, poucas são as pautas que exploram explicitamente aspectos so-
cioculturais do esporte, enquanto diariamente o público é bombardeado por um
sem número de estatísticas (quase sempre desacompanhadas de interpretações) e
badalações em torno de astros” das mais variadas modalidades. Para tentar en-
tender um pouco mais sobre como esse processo se desenrola é preciso pensar
um pouco sobre o próprio jornalismo e a mídia atual.
A influência da mídia no esporte, principalmente o rádio e a televisão,
é tão forte que tem até mudado regras de algumas modalidades. Um dos exem-
plos é o voleibol, que para se tornar um esporte mais “atraente”, na verdade,
mais adequado para transmissões esportivas, teve suas regras bastante modifica-
das, com vistas a diminuir o tempo das partidas, antes consideradas muito lon-
gas. No futebol, a implantação da morte súbita
19
é outro exemplo. No basquete,
regras como a limitação do tempo de posse de bola (primeiro para 30 segundos e
hoje em 24 segundos) e o arremesso de três pontos foram criadas para tornar o
jogo mais excitante para o público, especialmente as audiências televisivas. Da-
tas e horários de jogos, em toda e qualquer modalidade, são marcados com vis-
tas a favorecer transmissões ao vivo e se encaixar nas grades (programação) das
televisões. Diversos campeonatos e competições são criados anualmente com
19
A “morte súbita” é um dispositivo de desempate em partidas decisivas. Normalmente, em jogos decisivos que
terminam empatados após o tempo regulamentar (90 minutos) disputa-se uma prorrogação de 30 minutos. Por
“sugestão” de grandes grupos da mídia, criou-se o dispositivo de este tempo extra terminar quando uma das
equipes conseguir marcar um gol. Quando persiste o empate, o jogo é decidido em cobranças alternadas de tiros
livres diretos (pênaltis). O dispositivo da morte súbita, tenta evitar o prolongamento “desnecessário” de algumas
decisões. O tempo na TV é primordial, e muito caro. Porém, atualmente a Fifa tende a revogar o dispositivo, por
motivos competitivos.
69
vistas única e exclusivamente a serem veiculados na mídia e expor patrocinado-
res. Assim, muitos campeonatos existem como eventos midiáticos para dar su-
porte a atletas e equipes. A própria Olimpíada é hoje um dos maiores aconteci-
mentos midiáticos do planeta, calcula-se que a cerimônia de abertura dos Jogos
Olímpicos de Los Angeles, em 1984, tenha sido assistida por 2,5 bilhões de pes-
soas em todo o mundo (na época, mais de 50% da população mundial).
A “construção” de ídolos no esporte é outra grande arma da mídia,
tanto para vender os espetáculos, como para chamar a atenção das audiências
para que assistam determinadas competições. A mídia precisa dos ídolos para
tornar o espetáculo mais atraente, assim, atletas que realizam performances aci-
ma da média passam a ocupar grandes espaços. Exemplos não faltam em todas
as modalidades. Os ídolos do esporte ainda auxiliam empresas que os contratam
e vinculam seus produtos à imagem de vencedores. Surge então o patrocinador,
figura vital da qual o esporte contemporâneo é dependente. Em decorrência de
que, pode-se dizer que não esporte sem espetáculo, não espetáculo sem
mídia, sem patrocinador, sem dinheiro.
No jornalismo esportivo as questões mercadológicas afloram e diluem
as fronteiras, por natureza evanescentes, entre notícia e propaganda. A notícia
esportiva está muito próxima à publicidade, que na maioria das vezes promo-
ve espetáculos ou a imagem de determinados atletas ou agremiações. Poucas
vezes o jornalismo esportivo se aventura no campo da investigação. É verdade
que existem exemplos históricos de que quando o fez colheu resultados expres-
sivos, como na série de reportagens publicadas pela revista Placar, nos anos de
1970, que denunciou um esquema de armação de resultados para a Loteria Es-
portiva, que fraudava milhares de apostadores. No entanto, esse tipo de matéria
no jornalismo esportivo é exceção.
Além disso, a profissionalização dos esportistas contribui para uma
presença cada vez maior do marketing esportivo nas páginas de jornais e revistas
e também nos meios eletrônicos. Por isso, não são incomuns matérias exaltando
70
feitos ou tratando de curiosidades a respeito de atletas ou associações, muitas
sem qualquer valor informativo, ou seja, nada acrescentam para os destinatários
da mensagem. Um grande exemplo é o acompanhamento do dia-a-dia de clubes
de futebol no Brasil. Mesmo que não aconteça absolutamente nada de novo em
relação ao time, os grandes jornais reservam espaços diários para comentários
sobre o cotidiano de clubes e atletas, ainda que tenha de ser dito que nada acon-
teceu, que está tudo “tranqüilo” ou que não houve atividades. É uma espécie de
anti-notícia, assim, também poderia ser chamado anti-jornalismo, anti” no sen-
tido de contrariedade, não de anterioridade.
Essa influência, que poderia ser chamada de mercadológica, sobre o
jornalismo esportivo nem sempre é notada na superfície do discurso. Está, na
maioria das vezes, fora dele, no que não é dito, nas pautas factuais, na crítica
não proferida ou na imagem omitida. Cientes da força da mídia, clubes e atletas
armam estratégias de relacionamento com jornalistas, que chegam mesmo a ser-
vir de assessores de imprensa indiretos. Para Dante Panzeri (1967) esse tipo de
jornalismo, que considera extremamente prejudicial à sociedade, tem origem em
um certo desprezo das ciências sociais pelo desporto. Para o autor, há uma “bar-
reira absurdamente instalada entre a concepção de homem-social e a de homem-
desportista” (p.25) e os maiores culpados por tal barreira seriam os próprios in-
telectuais, que apesar de permitirem ao Homem conhecer melhor o Homem,
cometem uma grave omissão ao descartarem o esporte e o esportista como fe-
nômenos etnográficos tão certos e vigentes em suas riquezas como qualquer dos
personagens que desfilam pela literatura filosófica e sociológica. Segundo Pan-
zeri, filósofos e sociólogos sempre relegaram o esporte e o desportista ao plano
das coisas feitas simplesmente para “jogar” – no sentido infantil, de importância
secundária – que acontecem ao largo das apaixonadas discussões que os maiores
mantêm enquanto “as crianças brincam”.
A pouca freqüência de estudos filosóficos e sociológicos a respeito do
esporte, e particularmente o futebol, é uma contradição que as competições
71
esportivas absorvem a atenção passageira ou permanente de uma porcentagem
da população mundial como dificilmente outra atividade humana o faz. Em con-
seqüência dessa lacuna, o homem comum permanece em um estado de ignorân-
cia a respeito do futebol, deslocado em sua própria paixão, o que gera situações
como a fanatização das massas, barbárie e angústia em torno do esporte. Ou se-
ja, o homem comum não teria idéia do “porquê” se joga futebol. Situações fre-
qüentemente atribuídas ao caráter passional do futebol, o que para o autor não se
justifica, afinal, não é passional o amor? E, no entanto, oferece muito menos
questionamentos. Panzeri conclui que a barbárie e o desagradável do futebol se
originam no fato de que o público ainda não sabe para quê e o porquê se joga
futebol, por isso, é levado a crer que em uma partida de futebol joga o país ou a
pátria e não apenas onze atletas. Panzeri responsabiliza a “crônica esportiva” por
isso. Para ele, tanto a prática como a paixão pelo futebol não têm nada de peri-
gosas ou insanas, ao contrário, são satisfatórias e saudáveis.
Assim, para as massas que se interessam pelo futebol o melhor seria é
que fossem informadas a respeito do que é e por que se pratica o futebol pela
Ciência e não pelo jornalismo esportivo, muito mais interessado em fazer negó-
cios rentáveis do que em realmente informar. A mídia esportiva (Panzeri não usa
o termo mídia, mas jornalismo) não fala realmente de esporte, de jogo como
concebido por Huizinga, quando esconde o número de vítimas em um acidente
num estádio de futebol, “para não prejudicar o espetáculo”. Assim, o que os jor-
nalistas esportivos fazem gira em torno do “jogo-negócio”, jamais em torno do
jogo-esporte.
No entanto, é bom lembrar que após a publicação do trabalho de Pan-
zeri, sociólogos e filósofos publicaram inúmeros trabalhos sobre o esporte, sobre
o porquê de se jogar futebol e, ao contrário do que pensou o autor argentino, isso
não diminuiu o fanatismo que leva à “insanidade” e à barbárie” no esporte. Na
Inglaterra, a partir dos anos de 1970, principalmente com o crescimento do fe-
nômeno hooligans, foram publicados muitos e profundos estudos sociológicos
72
sobre o futebol, o que não pôde evitar o crescimento da violência entre torcedo-
res por toda a Europa especialmente nos últimos 20 anos. Obviamente que a
maioria dos torcedores e simpatizantes do futebol não têm acesso material e
intelectual – a tais obras.
Esse pessimismo em relação ao jornalismo esportivo es bastante
presente na literatura sobre o assunto. Franklin Goldgrub (1990) faz uma “análi-
se das análises” da crônica esportiva e detecta inúmeras falhas. Para ele, a mídia
esportiva brasileira é parcial por natureza, principalmente por assumir um “curi-
oso” partidarismo pelos clubes de futebol considerados grandes” (ou que agre-
gam torcidas numerosas).
Basta que o denominado “pequeno” ganhe ou empate um desses
confrontos, onde se espera que cumpra seu papel de eterno per-
dedor, para que os comentários veiculem impropérios sobre o
absurdo do acontecimento. Tem-se a impressão de que o argu-
mento principal extrai sua força de raízes sobretudo econômicas.
A indignação do observador parece derivar da diferença entre as
respectivas folhas de pagamento. Ele não pode conceber que um
atleta profissional regiamente pago seja derrotado por quem ga-
nha menos (...) o cronista esqueceu-se totalmente de sua tarefa
para transformar-se numa espécie de acionista identificado com
os interesses da federação ou das instituições clubísticas. Seu
comentário constitui uma espécie de lamento financeiro e parece
deslocado na seção de esportes; de fato, se encaixaria melhor nas
páginas dedicadas à economia, como uma reportagem sobre em-
presas falidas ou sobre a queda da produção agrícola em virtude
de praga ou estiagem” (p.67).
Para exemplificar, Goldgrub cita uma manchete da Folha de São Pau-
lo, datada de 8 de maio de 1989: Corinthians vexame e perde por 3 a 1. A
reportagem trata da derrota do clube mais popular do estado de São Paulo para
um considerado pequeno - no caso, o Santo André -, considerada como “vergo-
nhosa”. Segundo Goldgrub a causa dessa parcialidade é que a imprensa esporti-
va faz uma análise “resultadista” do futebol, não leva em conta o desempenho
dos jogadores em campo, mas apenas o resultado. Para ele, a função do comen-
73
tário esportivo não é justificar um resultado, como normalmente ocorre, “mas
constituir uma reflexão sobre o próprio fenômeno futebolístico”, entretanto, para
isso “não significa que deva ser pesado como um texto filosófico” (p.70)
Goldgrub nota, porém, que o jornal Folha de São Paulo mudou um
pouco essa situação, quando passou a publicar os números estatísticos dos jogos,
como quantidade de faltas cometidas, erros de passes, chutes a gol, etc. No en-
tanto, critica o fato de não se extrair conclusões a respeito, apenas são apresen-
tados os dados e o leitor que os interprete por si; nos textos, o “resultadismo”
permanece. O autor comenta ainda a tendência dos jornalistas esportivos atribuí-
rem gols e derrotas sofridas muito mais a alguma falha do que ao mérito do
marcador ou vencedor. Isso se deve ao fato de o cronista não conseguir se sepa-
rar do papel de torcedor, que acaba exercendo ao presenciar o espetáculo, ainda
que, em teoria, profissionalmente.
A imprensa, falada e escrita, não escapa a contaminação dessa
lógica. Quando se trata de jogos protagonizados pela seleção na-
cional, a contraditória exigência de muitos gols a favor e nenhum
contra empolga a todos por igual, torcedores e cronistas. Não se
percebe que num bom jogo de futebol, entre equipes bem arma-
das, as chances costumam ocorrer dos dois lados. (p. 72)
Também Betti (1997) vê negativamente a atuação da mídia em relação
ao futebol. Em um estudo sobre a violência no futebol (mais direcionado para o
jogo dentro de campo), o autor lembra que alguns estudos sociológicos sobre os
comportamentos desviantes no futebol (violência, doping, suborno, etc.) têm
suas raízes na massificação e na comercialização do esporte. E a responsabilida-
de por tal massificação está relacionada com o papel exercido pela mídia espor-
tiva.
O desenvolvimento das funções políticas e econômicas do espor-
te é intensificado pela reportagem esportiva. É por meio da po-
pularidade dos astros esportivos, da constante recepção de in-
formações sobre o esporte, e da combinação do sucesso com a
imagem do produto que o esporte torna-se interessante para a in-
74
dústria. Por todos estes motivos, a expressão “esporte espetácu-
lo” parece ser a mais apropriada para designar a forma assumida
pelo esporte na nossa sociedade. (p.30)
O autor lembra, com subsídios da Teoria Crítica, que a mídia é res-
ponsável pela formação de uma nova hierarquia de valores, que passa a determi-
nar em grande medida a atitude do consumidor e com forte efeito na prática do
esporte. Os atos de violência no futebol, em geral, são condenados pela impren-
sa esportiva, porém, mostrados a exaustão. Especificamente em relação ao jogo
dentro do campo, algumas análises e comentários admitem a violência (existem
as faltas “necessárias”) como algo pertencente ao jogo, admite-se a violência
entre os jogadores, esta, porém, é controlada por um árbitro que procura manter
os competidores dentro dos limites estabelecidos pelas regras. É a presença da
justiça na teatralização da sociedade durante o jogo. Fora do campo, a rivalida-
de entre as equipes é anunciada como o grande atrativo dos confrontos. Estabe-
lece-se assim um círculo vicioso entre a violência (dentro e fora do campo de
jogo) e a mídia, que atua como realimentadora e amplificadora dos comporta-
mentos dos jogadores e dos espectadores. “A mídia não causa a violência, mas a
reproduz, de uma maneira distorcida, e a amplifica”. (p. 141)
Mas um contraponto para tais observações, pois não se pode impu-
tar à mídia a responsabilidade pela violência no futebol, esta tem raízes em mui-
tos outros aspectos da sociedade. As tensões levadas a campo e às arquibancadas
dos estádios nem sempre têm origem apenas na rivalidade entre duas equipes. O
que faz torcedores de times diferentes se odiarem é o antagonismo das represen-
tações culturais que seus times carregam, não é o modo como um e outro jogam,
pois isso é variável. A mídia amplia essas representações com o intuito de atrair
leitores, ouvintes e telespectadores, mas não pode ser responsabilizada por um
ódio preexistente. As interpretações do público sobre o que a mídia veicula não
estão realmente sob controle dos jornalistas. Ao contrário do que se pressupõe, a
repetição exaustiva de jogadas violentas pela televisão, bem como as críticas a
75
esse tipo de jogo em todos os gêneros de jornalismo esportivo, podem servir pa-
ra atenuá-las, não incentivá-las. Isso porque os envolvidos expõem-se publica-
mente como transgressores e isso, em termos profissionais, é considerado como
uma conduta desabonadora para suas carreiras. Aparecer e se manter nos notici-
ários esportivos como profissionais competentes é hoje tão importante para a
carreira de jogador profissional de futebol quanto ter um preparo físico adequa-
do e competência para o jogo. Observe-se, porém, que tal raciocínio não pode se
estender em relação à violência entre torcedores, fenômeno bastante distinto da
violência no jogo, entre atletas, e que será debatido no terceiro capítulo.
Ao atrair multidões aos estádios, a prática esportiva desperta o interes-
se não só dos fãs dos jogadores ou do clube, torna-se também alvo da mídia, que
amplia o fenômeno, o faz chegar aos mais distantes lugares e passa a obter lu-
cros com a exploração (como descoberta e não abuso) diária do assunto. E, de
acordo com os conceitos teóricos debatidos neste capítulo, na base de tais pro-
cessos estão os torcedores de futebol, não apenas porque é para eles que os atle-
tas jogam, ou porque a mídia esportiva depende dos fãs para atingir vários de
seus objetivos, principalmente financeiros, mas porque é no ato de torcer que
está o espaço de recepção no futebol. É a partir da intervenção do torcedor no
jogo que o mesmo ganha ares de espetáculo para desencadear uma corrente de
relações sociais que o transforma, citando Janet Lever (1983, p.121), de “ele-
mento relativamente menor da cultura” em uma “instituição social ampla”. No
entanto, as relações entre mídia e esporte são bastante conflituosas em alguns
pontos, e de cumplicidade em outros, uma vez que compartilham um espaço
controlado por ações simbólicas, representativas de aspectos culturais dos indi-
víduos e grupos envolvidos. E é na linguagem, nos discursos, que se pode com-
provar tais conflitos.
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Segundo Fuchs (1985), a preocupação com aspectos da linguagem teve
origem no século V a.C., entretanto, é Aristóteles, no século IV a.C., que ela-
bora os elementos essenciais da Retórica, a primeira ciência a se ocupar basica-
mente de elementos lingüísticos. Apesar de estar em desuso, a retórica de Aris-
tóteles tem ainda seus ecos, principalmente no discurso jurídico. Mas não só.
Segundo observações de Fuchs, a retórica inspira trabalhos contemporâneos so-
bre a linguagem em áreas como as teorias da literatura (a estilística, a neo-
retórica, a semiologia poética, etc., buscam conceitos teóricos na retórica); ou as
teorias do discurso, que retomam sob as perspectivas sociolingüísticas e ideoló-
gico-políticas os conceitos aristotélicos de papel, lugar e imagem; também as
teorias da argumentação, que tal e qual a retórica, fundamentam-se nos meca-
nismos de persuasão através do discurso, principalmente as correntes lógico-
lingüística e pragmático-lingüística; finalmente, na prática, em que se aplicam
recursos retóricos em técnicas de expressão, como nos resumos, nas disserta-
ções, etc.
Apesar desta origem longínqua no tempo, a Análise do Discurso co-
meçou a ser desenvolvida apenas na segunda metade do século XX. Mariani
(1999) cita a obra de Michel Pêcheux como fundadora dessa ciência. Entre as
propostas de Pêcheux, a autora destaca a intenção de “abrir uma fissura teórica
nos campos das ciências sociais [bem como] propor uma disciplina que pudesse
romper com a concepção tradicional de linguagem” (p.107). Essa concepção
tradicional pode ser traduzida pelo estudo da linguagem como um sistema fe-
chado, limitada a mero instrumento de comunicação, despossuído de exteriori-
dade. Para Fairclough (1997, p.55), até mesmo nas análises baseadas em Pê-
cheux, o tratamento do texto seria insatisfatório, por serem “homogeneizados
antes da análise pela maneira como o corpus é constituído”. Uma outra proble-
mática é que, com esse posicionamento, os textos tendem a ser considerados
77
como produtos acabados e deixa-se de lado as influências das relações interpes-
soais de produção e recepção textual.
Entretanto, Fairclough aponta trabalhos de uma “segunda geração da
análise de discurso na tradição de Pêcheux”, representada por autores como Ba-
khtin, Kristeva e Courtine, que alterou profundamente a abordagem, ao aceitar o
discurso como prática heterogênea, reconhecendo influências de conceitos como
dialogismo e intertextualidade. Os discursos passam a ser vistos como “proces-
sos em constante reestruturação” (idem, p.56). Assim, a partir de trabalhos inspi-
rados em Pêcheux, as análises lingüísticas passam a ser divididas em duas gran-
des correntes ou abordagens. De um lado, trabalhos que buscam dar continuida-
de e são complementares à abordagem sociocultural de Pêcheux e, de outro, os
trabalhos mais “tradicionais” ou “não-críticos”, que buscam recursos para suas
interpretações na língua em si e não nos seus usos, que tomam por base, princi-
palmente, as obras de Saussure e Benveniste. A análise crítica de Fairclough
(1996) tenta sintetizar as duas correntes.
Acredito que análise da prática discursiva deva envolver uma
combinação do que se poderia denominar ‘microanálise’ e ma-
croanálise’. A primeira é o tipo de análise em que os analistas da
conversação se distinguem: a explicação do modo preciso como
os participantes produzem e interpretam textos com base nos re-
cursos dos membros. Mas isso deve ser complementado com a
macroanálise para que se conheça a natureza dos recursos dos
membros (como também das ordens de discurso) a que se recorre
para produzir e interpretar os textos e se isso procede de maneira
normativa ou criativa. (...) é a natureza da prática social que de-
termina os macroprocessos da prática discursiva e são os micro-
processos que moldam o texto.” (Fairclough, 1996, p. 115)
Fairclough defende que a linguagem da mídia deve ser analisada não
apenas em seu conteúdo formal, fechada no enunciado, pois a análise crítica do
discurso deve considerar a natureza sociocultural da mídia, bem como suas con-
dições de produção e recepção. Afinal, a língua, elemento essencial da comuni-
cação e da cultura, é indissociável da sociedade. Esta percepção não é exclusiva
78
daqueles que se dedicam à analise discursiva. Stuart Hall também viu nos estu-
dos da linguagem uma grande possibilidade para a compreensão das mudanças
sociais e da própria sociedade. Em A centralidade da cultura (1997), Hall faz a
seguinte colocação:
Fundamentalmente, a virada cultural’ iniciou com uma revolu-
ção de atitudes em relação à linguagem. A linguagem sempre
foi assunto de interesse de especialistas, entre eles, estudiosos
da literatura e lingüistas. Entretanto, a preocupação com a lin-
guagem que temos em mente aqui refere-se a algo mais amplo
um interesse na linguagem como um termo geral para as práti-
cas de representação, sendo dada à linguagem uma posição pri-
vilegiada na construção e circulação do significado.”
Em trabalho anterior a Hall, du Gay (1994) colocava a linguagem
como constitutiva dos fatos, não como meramente descritiva deles.
(...) uma inversão da relação que tradicionalmente tem se pensa-
do que exista entre as palavras que usamos para descrever as
coisas e as próprias coisas. A suposição usual do senso comum é
a de que os objetos existem “objetivamente”, como tal, “no
mundo” e, assim, seriam anteriores às descrições que deles fa-
zemos. Em outras palavras, parece normal presumirmos que as
“moléculas” e os “genes” precedam e sejam independentes dos
seus modelos científicos; ou que a “sociedade” exista indepen-
dentemente das descrições sociológicas que dela se fazem. O
que estes exemplos salientam é o modo como a linguagem é
presumivelmente subordinada e está a serviço do mundo do “fa-
to”. Entretanto, nos últimos anos, a relação entre a linguagem e
os objetos descritos por ela tem sido radicalmente revista. A lin-
guagem passou a ter um papel mais importante. Teóricos de di-
versos campos filosofia, literatura, feminismo, antropologia
cultural, sociologia têm declarado que a linguagem constitui
os fatos e não apenas os relata.
O que Du Gay quer dizer é que sem uma construção da linguagem so-
bre qualquer coisa, sem que essa “coisa” ou fato tenha uma denominação ou seja
descrita por palavras, efetivamente não podemos conhecê-la, apesar de sua exis-
79
tência material ou objetiva não depender desse processo. Uma das definições do
termo cultura, proposta por Hall (1997) pode esclarecer melhor esse raciocínio.
(...) a cultura não é nada mais do que a soma de diferentes siste-
mas de classificação e diferentes formações discursivas aos quais
a língua recorre a fim de dar significado às coisas. O próprio ter-
mo “discurso” refere-se a uma série de afirmações, em qualquer
domínio, que fornece uma linguagem para se poder falar sobre um
assunto e uma forma de produzir um tipo particular de conheci-
mento. O termo refere-se tanto à produção de conhecimento atra-
vés da linguagem e da representação, quanto ao modo como o co-
nhecimento é institucionalizado, modelando práticas sociais e
pondo novas práticas em funcionamento. Dizer, portanto, que
uma pedra é apenas uma pedra num determinado esquema discur-
sivo ou classificatório não é negar que a mesma tenha existência
material, mas é dizer que seu significado é resultante não de sua
essência natural, mas de seu caráter discursivo.
Dentro dessa perspectiva, os discursos seriam constitutivos dos fatos,
conceito muito importante para qualquer análise sobre fenômenos comunicacio-
nais, que contrasta com a assertiva de que os meios de comunicação são me-
diadores dos acontecimentos, são veículos informativos, uma espécie de “ponte”
entre o fato e as audiências. A notícia, como construção narrativa, relata o fato,
mas não o reproduz (mesmo as imagens de tevê, são filtradas” pelas lentes das
câmeras, por isso, o espetáculo que um torcedor de futebol presente no estádio
é muito diferente daquilo que o telespectador assiste em sua casa). Por conse-
qüência, os meios veiculam não os fatos, mas uma versão dos mesmos. Não dei-
xam de funcionar como mediadores, porém, não poderiam mais ser vistos
como uma “ponte” entre os acontecimentos e os receptores, e sim entre a versão
de um determinado produtor da informação e o público.
Uma visão crítica dos discursos deve também colocar o receptor como
co-autor desses discursos. As condições em que os mesmos são decodificados
ou interpretados interferem em seus significados. A formação do leitor, seu his-
tórico de vida, sua posição social, suas preferências pessoais influenciam na sig-
nificação que dará aos textos que lê, e ouve. Por exemplo, uma crítica feita a
80
um determinado jogador pode parecer justa ou injusta, importante ou absoluta-
mente desnecessária, dependendo de quem a lê.
(...) a mídia ao reportar um acontecimento, reproduz as informa-
ções a ele inerentes, mas também produz sentidos, porque a mídia
se caracteriza como lugar de construção simbólica dos aconteci-
mentos.
Como cada mídia agenda seus temas de forma própria, cada uma
delas vai ler o fato, interpretar e produzir sentidos de acordo com
suas estratégias. Dessa forma, um único fato, um evento esporti-
vo, por exemplo, passa a ser um acontecimento múltiplo e cada
mídia, de acordo com seu público, vai mobilizar as estratégias pa-
ra garantir audiência.
Segundo Helal (1998), “a mídia ‘constrói’ fatos, ‘cria’ histórias,
‘fabrica’ mitos e ídolos, porém, tudo isso é realizado, de certa
forma, em ‘comum acordo’ com o público que assiste”. (Turtelli,
p.43)
É preciso notar também a diferenciação entre textos e discursos. Todo
texto possui marcas de um discurso, no entanto, o texto em si não encerra todos
os discursos do enunciador. Isso implica numa situação contraditória, pois se os
textos não representam os discursos, então não seria possível uma análise com-
pleta do discurso através do estudo de um texto. Na verdade, os textos são ape-
nas fragmentos dos discursos de seus enunciadores. É exatamente isso que as
teorias “sociológicas” da Análise do Discurso acentuam. É preciso conhecer to-
do o processo de produção e recepção do texto, não basta olharmos suas marcas
internas. Estas, oferecem pistas e esclarecimentos essenciais, mas não podem ser
tomadas como a visão total dos discursos. Em relação aos textos jornalísticos,
esse problema se acentua, já que o processo de comunicação envolve muito mais
do que uma codificação e decodificação do texto, seja impresso televisado ou
radiofônico.
A proposta de Fairclough passa exatamente por essa fusão entre uma
análise do texto em si, de suas marcas internas, e das condições de produção e
recepção do mesmo. Para ele, não podemos descartar os métodos tradicionais de
análise, centrados exclusivamente no texto, que é através destas metodologias
81
que se consegue pôr em prática a AD. No entanto, segundo Fairclough, a fusão
desses dois métodos de análise não teria sido bem sucedida ainda, principalmen-
te devido ao isolamento dos estudos lingüísticos das demais ciências sociais,
que, por sua vez, demonstrariam pouco interesse pela linguagem.
Nesse ponto, os Estudos Culturais, ou a “virada cultural” apregoada
por Stuart Hall, surgem para preencher o vazio denunciado por Fairclough, que
reconhece, entretanto, o esmaecimento cada vez maior das fronteiras entre as
ciências sociais e cita como exemplo de tentativas de realizar uma síntese entre
o hermetismo da lingüística tradicional e o alargamento de campo da análise so-
cial da linguagem, trabalhos de um grupo de lingüistas britânicos na década de
1970, capitaneados por Roger Fowler, que buscaram uma combinação de análise
textual sistêmica com teorias de ideologia, e do próprio grupo de Pêcheux.
Ambas as tentativas apresentam um desequilíbrio entre os ele-
mentos sociais e os lingüísticos da ntese, embora tenham pon-
tos negativos e positivos complementares: nos primeiros [britâ-
nicos], a análise lingüística e o tratamento de textos lingüísticos
estão bem desenvolvidos, mas pouca teoria social, e os con-
ceitos de ideologia e poder são usados com pouca discussão ou
explicação, enquanto no trabalho de Pêcheux a teoria social é
mais sofisticada, mas a análise lingüística é tratada em termos
semânticos muito estreitos. (Fairclough, 1996, p.20)
Fairclough critica o fato de ambos os grupos terem também considera-
do os textos como produtos acabados e dado pouca atenção aos processos de
interpretação textual (recepção). Para tentar preencher este vazio, Fairclough
sugere procedimentos para se colocar em prática a análise crítica do discurso
que tanto reclama. O próprio autor alerta que não se deve adotar procedimentos
fixos para análises de discursos, que cada um tem sua própria abordagem e
cada projeto, objetivos específicos, além da visão pessoal de cada analista acerca
do que seja exatamente os discursos.
Duas concepções estão no centro do que se discute aqui: linguagem e
cultura. A noção de linguagem, tomada da análise crítica de Norman Fairclough
82
(1997), a compreende como prática social, situada no campo da ação e mantém
uma relação dialética com outras facetas do social. “What I mean by a dialetical
relationship is that it is socially shaped, but is also socially shaping - or socially
constitutive. Critical discourse analysis explores the tension between these two
side of language use” (p.55). A linguagem assim entendida passa a ter influên-
cia direta nos processos de identificação, nas relações sociais e no sistema de
significação (que inclui conhecimentos e crenças), entrelaçando-se com a cultu-
ra, concebida aqui à moda dos Estudos Culturais, conforme citado anteriormen-
te.
A cultura assume assim posição central em contextos mais amplos,
passa a nortear a busca pelo entendimento. É um processo de conhecer o conhe-
cimento, estudar os estudos, interpretar as interpretações, constituído em seu
núcleo por práticas discursivas, significativas, comunicativas, etc., realizadas
através dos muitos modos de utilização das linguagens. Tal qual a sociolingüís-
tica, os Estudos Culturais trazem a linguagem e os discursos para a dimensão do
social, do significado, e, no mundo dos signos, tudo é significado e significante.
Os discursos constituem e são constituídos pelo social, portanto, os fatos socio-
culturais transformam-se também em fenômenos discursivos. Do que deriva a
necessidade de estabelecer as relações entre cultura e linguagem, conseqüente-
mente, com a sociedade e o próprio homem.
A “virada cultural” está intimamente ligada a esta nova atitude em
relação à linguagem, pois a cultura não é nada mais do que a so-
ma de diferentes sistemas de classificação e diferentes formações
discursivas aos quais a língua recorre a fim de dar significado às
coisas. O próprio termo “discurso” refere-se a uma série de afir-
mações, em qualquer domínio, que fornece uma linguagem para
se poder falar sobre um assunto e uma forma de produzir um tipo
particular de conhecimento. O termo refere-se tanto à produção de
conhecimento através da linguagem e da representação, quanto ao
modo como o conhecimento é institucionalizado, modelando prá-
ticas sociais e pondo novas práticas em funcionamento. (Stuart
Hall, 1997)
83
Assim, os discursos da mídia esportiva, no campo teórico, situam-se na
fronteira entre os fenômenos lingüísticos e as práticas sociais. O que não implica
esquecer tratarem-se também de produções individuais. Em geral, os discursos
midiáticos buscam de maneira quase obsessiva mais objetividade, o que tem fei-
to muitos textos aproximarem-se de um outro gênero de discurso: os relatos. No
entanto, os jornalistas esportivos não abrem mão da subjetividade em seus dis-
cursos, por mais que tentem escondê-la ou que a neguem. É justamente este em-
prego da linguagem, até certo ponto poético ou artístico, uma das marcas mais
relevantes da identidade da mídia esportiva. O grande exemplo dessa vocação
poética são as transmissões radiofônicas de eventos esportivos ao vivo. No Bra-
sil, particularmente, os narradores de futebol contribuíram, e muito, para a mas-
sificação do futebol com seus gritos de gol estilizados e a paixão com que trans-
mitem os jogos. na segunda metade do século XX, o fenômeno das
transmissões televisivas traz o narrador esportivo como uma espécie de mestre
de cerimônias virtual”.
No jornalismo impresso esse estilo narrativo está presente nas crônicas
esportivas, que atualmente são publicadas na forma de “colunas”. No fundo, to-
do jornalista esportivo é um colunista, que ao optar por trabalhar com esse
gênero jornalístico passa a construir textos de acordo com as características de
seu público, passional por natureza. E, difícil negar, o jornalista esportivo é tam-
bém um torcedor de futebol, muitas vezes, bastante apaixonado.
Escrever sobre eventos esportivos é tornar-se participante deles, não
mais como mero espectador, como ocorre no momento de sua realização, mas
como um verdadeiro juiz (no sentido daquele que faz julgamentos), que posteri-
ormente irá reconstruir tais eventos em suas narrativas. É, portanto, uma maneira
de um espectador privilegiado tornar pública a maneira como um determina-
do evento. Assim, por mais objetividade que tente transparecer nos textos relati-
vos às competições, ao eliminar marcadores lingüísticos que demonstrem subje-
84
tividade, ou seja, ao buscar incessantemente pela anulação do sujeito no texto,
chegando a discursos pré-moldados, o jornalista esportivo emite concepções
particulares sobre os eventos (antes ou depois de realizados). Assim, as perfor-
mances dos atletas podem ser consideradas eficientes ou não; um gol pode ser
duvidoso ou não, etc. Tudo dependerá da visão que o jornalista teve do fato e o
modo como irá narrá-lo.
Então, a objetividade é inatingível em se tratando de esportes? Como
em qualquer gênero jornalístico, pode-se, no máximo, conseguir aproximações
com a objetividade, mas jamais o discurso estará livre de aspectos subjetivos em
sua construção. No jornalismo esportivo, a frieza de uma informação objetiva
chega mesmo a ser incômoda ou indesejável. Isso pode ser exemplificado por
matérias relativas a conquistas de títulos internacionais, tanto em esportes cole-
tivos como nos individuais, geralmente carregadas de grandes doses de patrio-
tismo. Raramente o jornalista esportivo consegue se afastar de uma visão pas-
sional quando se trata de material envolvendo seu país de origem.
O jornalista esportivo, por mais impessoalidade que tente transmitir na
construção de seus textos, não escapa das armadilhas da linguagem e acaba de-
nunciando aspectos relativos às identidades do sujeito elaborador do discurso.
Por mais ausente que esteja no corpus do texto, ele ainda é o detentor do discur-
so, é ele quem manipula os dados. Um exemplo prático pode deixar tudo mais
claro. Geralmente um bom lead para um texto que conte a história de uma parti-
da de futebol, deve conter minimamente as seguintes informações: quem jogou
contra quem, o resultado do jogo, quando e onde se realizou o evento e as con-
seqüências imediatas do resultado. Assim para noticiar um empate entre dois
grandes times (x e y), o jornalista poderia usar uma espécie de fórmula: x e y
(quem) empataram em 0 a 0 (resultado) ontem à noite no estádio do Pacaembu
em São Paulo (quando e onde). O resultado tira as chances de classificação das
duas equipes (conseqüência). De fato, basta verificar rapidamente as reporta-
gens que tratam de partidas de futebol realizadas, para reconhecer estes marca-
85
dores lingüísticos. Mas o jornalista não se furta de colocar a sua opinião, de
mostrar o modo como ele viu o jogo. Os trechos abaixo, leads de matérias veicu-
ladas pelo Jornal da Cidade, são exemplares:
1. “O Fluminense foi ao ataque, meteu cinco bolas na trave, mas
perdeu para o Atlético Mineiro por 1 a 0, ontem em Édson Passos,
gol de Lúcio Flávio, e complicou mais ainda sua situação”.
Texto da agência Lancepress. (29/10/2003, p. 12)
2. “No sufoco, na persistência com dois gols marcados no final do
jogo. Assim o São Caetano se reabilitou dentro do Brasileiro ao
vencer o Paraná, por 2 a 0, ontem à tarde, no estádio Anacleto
Campanella. O herói da tarde foi o atacante Warley que entrou no
segundo tempo e marcou os gols da vitória”.
Texto da Agência Estado (29/10/2003, p.12)
3.“O Noroeste não jogou bem e chegou a ser pressionado pelo Pa-
raguaçuense, que vem sendo ‘saco de pancada’ na Copa Estado de
São Paulo. Mas venceu o jogo de ontem à tarde, em Paraguaçu Pau-
lista, por 1 a 0, mantendo as chances de vaga para a próxima fase
da competição”.
(06/10/2003)
Os três textos têm em comum os elementos essenciais para o lead cita-
dos anteriormente, conforme o quadro abaixo:
Texto 1 Texto 2 Texto 3
Quem
Resultado
Quando
Onde
Conseqüências
Fluminense x Atlético-MG
0 x 1
Ontem
Édson Passos
(Fluminense) complicou
ainda mais sua situação
São Caetano x Paraná
2 x 0
Ontem à tarde
Est. Anacleto Campanella
(São Caetano) se reabili-
tou.
Paraguaçuense x Noroeste
0 x 1
Ontem à tarde
Paraguaçu Paulista
(Noroeste) mantém chan-
ces de obter vaga na pró-
xima fase da competição.
Por outro lado, guardam marcas que deixam claro algumas preferên-
cias do enunciador oculto, no caso, os jornalistas. Em todos eles, o tema central
não é o jogo em si, mas a atuação das equipes (Fluminense, São Caetano e No-
roeste), demonstrando uma certa preferência do narrador, salientada no item
“conseqüências”, que tece comentários apenas em relação às referidas equipes.
No texto 1, por exemplo, ficaram claras as conseqüências em relação a um dos
times, mas e para o outro, o que acarretaria? No texto 2, o jornalista emite um
julgamento sobre o evento, enquanto em 3, o julgamento recai não sobre o jogo,
86
mas sobre um dos clubes. Em 1 e 2, é como se os adversários das equipes “elei-
tas” não estivessem presentes. Em 3, esta presença é motivo de chacota. Ações
potencialmente pessoais, possíveis de serem realizadas apenas pelo manipulador
do texto, que mesmo não aparecendo, deixa marcas claras de suas escolhas, im-
prime ao texto características pessoais.
No entanto, o paradoxo é que, no jornalismo esportivo, esse procedi-
mento, que em política, por exemplo, seria antiético, não é prejudicial, ao con-
trário, pode ser até desejável. E, como exemplo, estão eventos como os Jogos
Olímpicos e os campeonatos mundiais de diversas modalidades, que mobilizam
milhões de pessoas em busca do “prazer” proporcionado pelo espetáculo, da es-
tranha sensação de também fazer parte do jogo, mesmo sem jogá-lo. É com este
aspecto que o jornalismo esportivo passou a trabalhar e a ganhar seu público e
construir sua identidade. É neste campo da exacerbação, da explosão de senti-
mentos que o jornalista busca as expressões e constrói um discurso que não pode
deixar de receber as marcas emotivas e das preferências de sua fonte.
Muitas vezes, as escolhas não aparecem numa primeira leitura, ou nu-
ma leitura superficial do texto, mas estão claras quando dirigimos um olhar mais
atento à questão como nos exemplos do quadro 1. Esta opacidade do texto já foi
bastante explorada por Pierre Bordieu e assim sintetizada por Norman Fairclou-
gh (1997), em tom quase de denúncia:
our social practice in general and our use of language in par-
ticular are bound up with causes and effects which we may not be
at all aware under normal conditions (...) Specifically, connec-
tions between the use of language and the exercise of power are
often not clear to people. (p.54)
Ou seja, há no texto muito mais do que podemos ver em sua superfície.
Em se tratando de competições esportivas estas relações podem ser vistas como
inofensivas, mas uma análise que considere aspectos socioculturais não pode
fugir do conceito de que o jornalismo esportivo está inserido numa estrutura
87
maior, não está dissociado de todo o meio midiático, ao contrário. Ainda que
carregado de mais subjetividade, o jornalismo esportivo não está livre das mes-
mas influências que agem sobre os demais gêneros de discurso jornalístico, co-
mo a linha editorial do veículo ou as condições de produção da notícia no ambi-
ente da prática profissional. Muitos dos problemas da mídia esportiva são corre-
latos aos de outros gêneros jornalísticos.
Uma questão bastante discutida em termos da linguagem empregada
pelos jornalistas esportivos é quanto à violência, não a do esporte em si, mas dos
termos empregados, como chamar uma determinada partida de “batalha” ou
“duelo de vida ou morte”. A vitória é saudada como atos heróicos e a derrota,
humilhação. Quatro dos sete entrevistados desta pesquisa, sendo três ligados a
torcidas organizadas, concordam que o vocabulário bélico da imprensa de algu-
ma maneira contribui para a violência, predispondo os torcedores a participarem
das “batalhas”.
“Acho que essa instigação da rivalidade acaba sendo desnecessá-
ria, porque traz um efeito negativo para os torcedores. Acho que
contribui com a violência. A gente torce para brincar mesmo, para
brincar com o amigo que torce para o outro time, mas, infelizmen-
te tem gente que leva para o outro lado, parte para a ignorância,
para a violência. Acho que a mídia contribui um pouco para isso,
não explicitamente, mas implicitamente.” (André Paulo da Silva
Mantovani, em entrevista)
O entendimento da questão central abordada neste trabalho - as repre-
sentações culturais do torcedor de futebol no jornalismo esportivo -, de acordo
com as proposições teórico-metodológicas apresentadas, deve passar inicialmen-
te por um estudo bibliográfico sobre as origens do fenômeno futebol, seu desen-
volvimento e importância para a história sociocultural do Homem. Pois assim,
será mais fácil compreender como essa prática esportiva consegue despertar sen-
timentos tão fortes nos torcedores de futebol. Ainda no mesmo capítulo será de-
batida a presença do jornalismo esportivo no “universo do futebol”.
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O futebol é hoje o esporte que mais atrai espectadores no mundo; es-
tima-se que a final da Copa do Mundo de 2002, entre Brasil e Alemanha, tenha
sido assistida por mais de dois bilhões de pessoas. Neste capítulo, pretende-se
facilitar a compreensão de como o futebol deixou de ser um simples jogo ou di-
versão e se tornou um dos maiores fenômenos de massa da atualidade. Além de
ocupar milhares de páginas na mídia impressa, bem como tempo significativo no
rádio e na televisão e incontáveis megabytes na rede mundial de computadores,
o futebol é assunto constante nas conversas cotidianas de parcela significativa da
população de muitos países. No Brasil, a presença do futebol no cotidiano pode
ser notada até mesmo na língua falada, recheada de expressões extraídas desse
jogo, como por exemplo, “dar bola”, usada para expressar interesse amoroso ou
sobre um assunto qualquer; enganar alguém, em qualquer situação, é o mesmo
que “driblar” ou “dar um chapéu
20
”, ao contrário, quem engana ou faz algo de-
sagradável, pisa na bola”; ser excluído de algo é ficar “fora da jogada”; depois
de um acontecimento trágico, é comum o uso da expressão “bola pra frente”,
como consolo; desistir de alguma coisa pode ser expresso por tirar o time de
campo”; a aposentadoria é o “pendurar as chuteiras”; algo que promete dar certo
“vai dar jogo”; etc.
Busca-se aqui apresentar subsídios que possibilitem uma maior com-
preensão de como o futebol atingiu a condição de principal esporte coletivo pra-
ticado atualmente no mundo. Inicialmente, conceitua-se o termo esporte em re-
lação à sociedade contemporânea, a seguir, resgata-se, através de pesquisa bibli-
ográfica, a história do futebol no mundo e no Brasil. Tal como o anterior, este é
um capítulo dissertativo, em que não se pretende apresentar nenhuma grande
descoberta, mas busca diferenciar-se da maioria dos textos a respeito do assunto
por assentar-se em conceitos culturológicos, busca-se dados que possam de-
20
Neste caso “chapéu” se refere a um drible em que um jogador passa a bola por cima do outro e a pega do outro
lado, que exige muita habilidade e é considerado humilhante a quem o sofre.
90
monstrar o desenvolvimento do fenômeno além da sua esfera de produção ou de
seu espaço específico, como um fato social inserido historicamente na constru-
ção da cultura do Homem contemporâneo.
Primeiramente, é necessário considerar uma distinção entre dois tipos
de futebol: o informal e o profissional ou oficial, que pode ainda ser chamado de
futebol-espetáculo. No primeiro caso, refere-se ao futebol praticado por milhões
de crianças e adultos ao redor do planeta com o objetivo único de se divertirem,
em que não se obedece às regras institucionalizadas, mas àquelas acordadas en-
tre os participantes que podem ser em número bastante variável no Brasil é
chamado de pelada ou futebol de rua; no segundo, está o futebol em que equipes
(amadoras ou profissionais) se enfrentam sob um conjunto de regras pré-
estabelecidas pelas entidades reguladoras do esporte. Apesar de serem formas
distintas, é importante observar que uma depende da outra, que sem o futebol
informal, o oficial perderia sua maior fonte de “matéria prima” (jogadores), en-
quanto o informal se ressentiria da falta de uma referência.
Para Giulianotti (1999), os principais fatores para a popularidade do
futebol são a relativa simplicidade das regras, equipamentos e técnica para se
praticar o jogo de modo informal. Ou seja, embora tenha um conjunto de regras
oficiais mais complexas (muitas desconhecidas pelo grande público), o futebol
pode ser jogado obedecendo-se a princípios básicos simples, como o uso dos pés
para controlar a bola e o vencedor ser aquele que marcar mais gols. Por todo o
planeta, joga-se futebol nos mais variados espaços e com um equipamento mí-
nimo: basta uma bola, que pode ser feita de qualquer material (no Brasil, a “bola
de meia” é bastante popular entre crianças pobres, confeccionada com uma meia
velha cheia de papel). Além disso, pode ser jogado com eficácia por indivíduos
de qualquer porte físico, ao contrário, por exemplo, do basquete e do vôlei, em
que os jogadores mais altos levam nítida vantagem. Se tiver boa habilidade, um
jogador de futebol franzino pode ser superior a outro mais forte. Tais caracterís-
91
ticas certamente influenciam para que o futebol seja bastante popular entre as
classes mais pobres.
Embora tais brincadeiras sejam importantes para que o indivíduo ad-
quira simpatia pelo jogo, elas não passam de arremedos do fenômeno a que se
refere este texto, que consegue mobilizar em torno de um único episódio – como
a final de uma Copa do Mundo mais da metade da população do planeta. Esse
é um outro futebol, o oficial, que pode ser também denominado futebol-
espetáculo, um espaço que abriga relações socioculturais bem mais complexas e
que atrai ainda mais simpatizantes que o futebol informal. Para estar envolvido
no mundo do futebol-espetáculo não é necessário praticá-lo, pois a mídia conse-
gue levá-lo a toda parte. Não há dúvida de que existem torcedores de futebol que
jamais foram a um estádio, ou que mal sabem chutar uma bola, entretanto, po-
dem mostrar tanto entendimento do jogo quanto qualquer expert. Para isso con-
tam com o auxílio de análises de especialistas, dados estatísticos e históricos que
lhes são oferecidos diariamente pelos veículos midiáticos.
Se não muitas dificuldades em apontar os motivos que mais influ-
enciam para que o futebol informal seja tão popular, o mesmo não se pode dizer
em relação ao futebol espetáculo. Entre outras motivações, pode-se dizer que o
futebol atrai e fascina porque é um jogo carregado de emoções; porque opõe i-
dentidades geográficas e culturais; porque reproduz estruturas sociais conflitan-
tes, etc. Para Fernández (1974), o futebol é catártico, funciona como terapia pa-
ra as massas, na qual estão incluídos indivíduos das camadas populares, intelec-
tuais e homens de negócio, que se deixam dominar pela excitação provocada
pelo jogo, bem como os jogadores, embora muito se critique o fato de que no
futebol moderno os atletas estariam mais interessados no dinheiro do que na dis-
puta em si. Entretanto, durante os jogos de futebol uma entrega dos atletas
que muitas vezes levam a atitudes extremas em conseqüência do descontrole
emocional provocado pela “refrega”. Fernández lembra que o termo grego ka-
tharsis foi empregado por Aristóteles em sua Poética para designar o efeito libe-
92
rador da tragédia, gênero literário que alivia emoções “desagradáveis” no espec-
tador, como temor e piedade. Ainda segundo a autora, o termo foi retomado pela
psicanálise para definir o método que leva à exteriorização das emoções recal-
cadas por meio de palavras, atos ou sentimentos” (p.39). Posicionamento que
associa o futebol a fatores psíquicos e que justifica afirmações do tipo “o futebol
funciona como válvula de escape”. Como a maioria da população brasileira vive
sobre pressão de condições socioeconômicas desfavoráveis, o futebol rapida-
mente tornou-se popular. No entanto, o futebol é também bastante popular na
Suécia, país de condições socioeconômicas opostas às brasileiras.
Atribuir a popularidade do futebol ao fato de no jogo oporem-se gru-
pos socioculturais antagônicos, e na possibilidade de grupos socialmente discri-
minados poderem superar o dominante, também é atraente, mas pouco sustentá-
vel, que diversas outras modalidades esportivas também acumulam tais carac-
terísticas, mas nem por isso conseguem chamar tanto a atenção, como acontece
com o handebol e o voleibol. A própria questão da emoção do jogo de futebol é
questionável, pois muitas pessoas – especialmente as mulheres – não vêem emo-
ção alguma no jogo de futebol, pelo contrário, acham-no entediante.
Uma outra ressalva a ser feita é que o futebol não é tão popular em al-
guns países, que têm no basquete, hóquei, voleibol, beisebol e críquete os prin-
cipais esportes. Nos Estados Unidos, onde o futebol é chamado soccer, o bas-
quete, o beisebol, o hóquei e o futebol americano são mais populares. O beisebol
também supera o futebol em número de adeptos em Cuba, no Japão e na Vene-
zuela. Indianos e paquistaneses preferem o críquete. Mas nenhuma dessas moda-
lidades consegue se aproximar dos números que o futebol alcança em escala
mundial. Nenhuma delas tem uma organização centralizada e unicidade de re-
gras, além de serem praticadas profissionalmente em um mero bastante limi-
tado de países, ao passo que o futebol profissional existe em boa parte das 205
nações filiadas à Fifa, órgão que centraliza a organização da modalidade.
93
Na verdade, todas essas e muitas outras explicações para a populari-
dade do futebol têm sua parcela de verdade, mas contestáveis se pensadas isola-
damente. O futebol atrai e fascina por essas e outras razões em conjunto, há uma
junção de elementos que o transforma em um fenômeno único entre todas as
modalidades esportivas. Além disso, é impossível pensar o futebol sem a inter-
venção da mídia, que usa sua capacidade de agenda-setter para colocar o futebol
na pauta das conversas, bem como para promover os espetáculos. A mídia, por
si, não pode incutir a paixão pelo jogo no indivíduo, mas pode lhe chamar a a-
tenção para tais atividades, com as quais não teria contato sem ver televisão, ou-
vir rádio ou ler jornais. Para entender o processo que levou o futebol à condição
de espetáculo midiático é necessário um resgate de sua trajetória histórica, bem
como de seu significado enquanto “esporte”.
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O termo esporte é constantemente relacionado ao lazer, se visto como
um conjunto de atividades físicas praticadas de maneira individual ou coletiva
com fins de aperfeiçoamento corporal e mental e, principalmente, para manter o
indivíduo ocupado em seu tempo livre. Pode ser visto também como pertencente
a algumas das áreas da saúde, se entendido como um conjunto de exercícios fí-
sicos realizados com finalidades curativas ou corretivas de problemas corporais
e mentais como nas caminhadas ou exercícios praticados em academias de gi-
nástica –, aconselhados por médicos para melhorar a circulação sangüínea, pos-
tura, etc. Na língua portuguesa, o termo esporte pode distinguir ainda um tipo de
vestimenta, oposta à chamada roupa social, ou pode ser uma referência às práti-
cas realizadas sem fins lucrativos, por exemplo, quando o sujeito pinta quadros
“por esporte”, ou seja, não o faz para vendê-los, apenas por gosto pessoal, para
“passar o tempo”.
94
Mas atualmente, esporte refere-se à competição ou às disputas do ho-
mem contra ele mesmo (só ou em grupo), o tempo ou obstáculos (naturais ou
não) pelo simples prazer de superar marcas. Diz respeito às diversas modalida-
des de competição, como futebol, tênis, voleibol, basquete, rugby, beisebol, etc.
A mídia se orienta por essa idéia de esporte como competição, como jogo, por-
tanto, é esse o significado que o termo assume neste texto. Mais precisamente,
refere-se ao que Bourdieu (1983, p. 137) classifica como o “sistema de institui-
ções e de agentes diretamente ou indiretamente ligados à existência de práticas e
de consumos esportivos”. Definição que supera a idéia de esporte como ativida-
des físicas, de maior interesse para estudos do campo da Educação Física.
Turtelli (2002) cita artigo de R. C. Grinvald, que divide o esporte em
três segmentos: no primeiro estaria o esporte educativo, praticado nas escolas, e
o recreativo, como prática de lazer e diversão; no segundo, encontra-se o esporte
competição, em que predomina o componente agonístico e “é praticado de ma-
neira sistemática e organizado através de federações e clubes”; finalmente, o ter-
ceiro é o esporte competição-espetáculo, em que unem-se ao componente ago-
nístico fatores econômicos, políticos e sociais. Para a autora, o esporte moderno
se encaixa no terceiro segmento, o que também é aceito no presente texto.
Esporte e competição são termos que desde o século XIX têm sido as-
sociados e cada vez mais entendidos como sinônimos. Entre os principais fatores
que contribuem para essa fusão de significados está a fundamentação de ambos
na noção de jogo. Este, de acordo com a Antropologia, é um dos três pilares da
coesão e da organização social (os demais são o sagrado e a festa). E, o esporte
tem, ou teve em algum momento, relações sólidas com esse tripé, como se verá
ao longo deste texto. Huizinga (2000) defende o jogo como atividade lúdica por
excelência, que antecede a própria cultura e, como exemplo, cita as brincadeiras
de filhotes de cães, que para ele seriam uma das formas mais simples do jogo
entre animais. O autor, entretanto, não aceita uma completa distinção entre jogo
e competição, que para ele todo o tipo de competição é passível de ser incluí-
95
do na categoria de jogo, ainda que boa parte das competições tenha adquirido
seriedade extrema na história da evolução humana. E, se a competição, tal como
o jogo, “é desprovida de objetivo”, ou seja, a ação começa e termina em si mes-
ma sem resultar em qualquer contribuição para o processo vital do grupo, e,
conseqüentemente, interessa apenas para os que participam da ação, seja como
jogadores, competidores ou espectadores, presume-se que seja também despro-
vida de seriedade. O filósofo resume assim a noção de jogo:
(...) o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de
certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras li-
vremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um
fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de ale-
gria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida quotidiana’. (p. 33)
Huizinga lembra que normalmente o jogo acontece de maneira parale-
la à vida corrente, é uma atividade não habitual, muitas vezes imprevista, mas
assim mesmo absorve completamente os jogadores e eventuais testemunhas
(platéias, assistências). Embora esteja presente no cotidiano, o jogo ao ser encer-
rado não traz maiores conseqüências para a sociedade, por isso, se enquadra na
categoria das coisas não-sérias, essencialmente lúdicas. Assim, a seriedade de
grande parte das competições contemporâneas como o futebol as exclui da
categoria jogo. Entretanto, o jogo pode ser bastante sério, inclusive com a
possibilidade de colocar a vida em risco, por outro lado, algo o-sério pode não
se tratar de um jogo. O esporte moderno, de alta competitividade,
principalmente a partir do século XIX, baseia-se pela organização de grandes
espetáculos que movimentam quantias gigantescas de dinheiro em todas as
partes do mundo, por isso, perdeu a essência dica, tornou-se um grande
negócio, não tem nada de brincadeira para os atletas e indivíduos envolvidos na
organização. O próprio Huizinga, que escreveu sua obra no início do século
passado, já o notara.
Desde o último quartel do século XIX que os jogos, sob a forma de
esportes, vêm sendo tomados cada vez mais a sério. As regras se tor-
nam cada vez mais rigorosas e complexas, são estabelecidos recordes
de altura, de velocidade ou de resistência superiores a tudo quanto an-
96
tes foi conseguido (...) Ora, esta sistematização e regulamentação cada
vez maior do esporte, implica a perda de uma parte das características
lúdicas mais puras. Isto se manifesta nitidamente na distinção oficial
entre amadores e profissionais (ou cavalheiros e jogadores” como
foi hábito dizer), que implica uma separação entre aqueles para quem
o jogo não é jogo e os outros (...) O espírito do profissional não é
mais o espírito lúdico, pois lhe falta a espontaneidade, a despreocupa-
ção. (p. 219)
Para Huizinga, esses fatores afastariam o esporte moderno de seu con-
ceito de jogo também porque perde-se a ligação espiritual e as conotações
religiosas originais do jogo e das primeiras competições esportivas da
Antigüidade. O esporte torna-se dessacralizado, uma atividade profana e fora do
conceito de cultura adotado por ele, pois perde também a espontaneidade e suas
ligações orgânicas com a estrutura da sociedade. O excesso de seriedade do
esporte moderno teria eliminado o elemento lúdico de tais práticas. É possível
notar uma certa nostalgia no ponto de vista do filósofo, que tem seus estudos
bastante ligados à Idade dia, o que faz de suas convicções contraditórias a
boa parte dos conceitos atuais que vêem no esporte, ou nos espetáculos
esportivos modernos, a apoteose do elemento lúdico de nossa civilização.
Nesse ponto, Pierre Bourdieu (1983) trabalha numa linha bastante se-
melhante à de Huizinga. Para o sociólogo, desde que as práticas esportivas pas-
saram a ser regulamentadas, disciplinadas, normatizadas e tuteladas por associa-
ções afastou-se definitivamente da idéia de jogo. Bourdieu, inclusive, afirma ser
um erro considerar os jogos das sociedades pré-capitalistas como práticas pré-
esportivas.
Esta comparação [jogos das sociedades pré-capitalistas com esporte
moderno] tem fundamento quando, indo exatamente na direção in-
versa da busca das origens, tem como objetivo (...) apreender a especi-
ficidade da prática propriamente esportiva ou, mais precisamente, de
determinar como alguns exercícios físicos pré-existentes passaram a
receber um significado e uma função radicalmente novos tão radi-
calmente novos como os casos de simples invenções, como o vôlei ou
o basquete tornando-se esportes definidos em seus objetos de dispu-
tas, suas regras do jogo e, ao mesmo tempo, na qualidade social dos
participantes, praticantes ou espectadores, pela lógica específica do
“campo esportivo”. (p. 138)
97
Assim, o esporte moderno pensado a partir de seu significado seria um
fenômeno exclusivo da sociedade industrial ou capitalista, enquanto a prática
esportiva em si, a atividade física tem origens remotas. Segundo Bourdieu, nos
casos do futebol e do rúgbi (esportes que compartilham das mesmas raízes histó-
ricas), a transformação de atividade física pura e simples em processos sociais
amplos e complexos teve origem entre os séculos XVII e XVIII na Inglaterra, o
que se confirma pela história do futebol apresentada mais adiante neste texto.
Parece indiscutível que a passagem do jogo ao esporte propriamente
dito tenha se realizado nas grandes escolas reservadas à “elites” da
sociedade burguesas, nas public schools inglesas, onde os filhos das
famílias da aristocracia ou da grande burguesia retomaram alguns jo-
gos populares, isto é, vulgares, impondo-lhes uma mudança de signi-
ficado e de função muito parecida àquela que o campo da música eru-
dita impôs às danças populares, bourrées, gavotas e sarabandas, para
fazê-las assumir formas eruditas como a suíte. (p.139)
Essa distinção entre as atividades físicas pré-capitalistas e os proces-
sos esportivos contemporâneos, entretanto, não representa uma ruptura isolada,
própria e exclusiva do campo esportivo, uma vez que este faz parte do universo
sociocultural do Homem, nem tampouco “apaga” o passado e dissocia as origens
dos esportes modernos daquelas práticas. O que Bourdieu e Huizinga defendem
é que o esporte de nossos dias se diferencia das práticas que lhe deram origem
exatamente por ter deixado de lado os aspectos lúdicos (em Huizinga) e ter as-
sumido um fim em si mesmo, dissociado de ocasiões sociais ordinárias, como
festas agrárias e festivais sagrados (em Bourdieu), ou seja, deixa de ser um jogo
para se tornar atividade lucrativa ou espetáculo à venda.
Os Jogos Olímpicos na Grécia Antiga seriam o exemplo documentado
mais longínquo do que hoje conhecemos como competições esportivas, ainda
que muito distante dos espetáculos atuais, pois tinham uma função religiosa.
Mas as disputas atléticas são anteriores aos Jogos Olímpicos gregos, afinal, estes
também têm uma história que remonta aos tempos lendários. Fontes literárias e
98
iconográficas comprovam que no Egito e na Mesopotâmia, milênios antes dos
Jogos Gregos, eram realizadas atividades atléticas. No Egito antigo praticava-
se luta, combate com varas, boxe, acrobatismo (semelhante em muitos aspectos
à ginástica olímpica), vela, jogos com bola e eventos eqüestres. Alguns textos
egípcios referem-se à importância de atividades físicas na preparação do Faraó e
de membros da corte, o que sugere que os eventos atléticos eram restritos às
classes altas. Na própria Grécia pré-clássica existem registros de atividades si-
cas anteriores aos Jogos Olímpicos. Afrescos indicam que nobres minuanos de
Creta (2.100 a 1.100 a.C.) praticavam a ginástica, boxe, luta e acrobacias, além
de competições de salto sobre o touro. Os miocenos (1.600 a 1.100 a.C.) teriam
adotado essas práticas, às quais acrescentaram as corridas de bigas e competi-
ções de pista. Em todos esses casos existiam fortes componentes religiosos.
Os esportes modernos, associados a práticas de lazer e com regras pa-
ra as competições, tiveram origem apenas na sociedade européia, especialmente
a inglesa, dos séculos XVIII e XIX, segundo atesta também trabalho apresenta-
do por Garrido (1999). Na Inglaterra do século XVIII, a Revolução Industrial
estabelecera a distinção entre classes e passara a exigir uma regularidade na
conduta dos indivíduos, especialmente nas chamadas camadas mais “altas” da
sociedade. Nessa época, muitos dos jogos praticados por toda a Europa eram
bastante violentos. Como as classes altas inglesas começavam a adotar um com-
portamento de busca por uma regularidade na conduta individual e a adquirir
novos hábitos sensíveis a qualquer forma de violência, passou-se a estabelecer
“restrições civilizadoras” a determinados jogos para que pudessem ser pratica-
dos sem ferir tais parâmetros distintivos.
O Estado impunha um desenvolvimento social em conjunto com edu-
cadores, moralistas, policiais e médicos. Através de um controle social
mais rigoroso sobre a população, esclarecia os perigos que ameaça-
vam a vida coletiva. (...) Desse modo, as atividades esportivas devem
ter representado uma resposta de transformação para a formação de
um homem de hábitos civilizados, com formação moral e um corpo
fortalecido e saudável, ou seja, práticas desenvolvidas como fatores de
99
higiene e saúde. O esporte, um hábito social de lazer distintivo das
classes altas, passava a significar uma atividade geradora de autocon-
trole a ser alcançada através de suas regras escritas, que coibiam ou
limitavam a violência entre os praticantes do confronto. (Garrido,
1999, p. 20)
Ainda segundo Garrido, na Alemanha dos séculos XVIII e XIX se de-
senvolveram outros elementos que compõem os esportes contemporâneos. A fim
de atender interesses nacionalistas, à preparação militar, à reabilitação de enfer-
mos e à saúde física de toda a população, desenvolveram-se naquele país exercí-
cios físicos sistematizados (ginástica) com a utilização de equipamentos, empre-
go de estatísticas e prescrição de treinamentos. Logo surgiriam os chamados
grêmios (clubes) e competições de ginástica entre regiões. O grande objetivo era
a integração nacional da Alemanha.
A partir dessas situações que logo se estenderiam a outros países eu-
ropeus e à América, padronizaram-se distâncias, tempos e espaços de acordo
com cada modalidade, bem como foram criadas regras e aperfeiçoados equipa-
mentos para as diversas práticas atléticas que surgiam e se consolidavam, como
o futebol, o boxe, o remo, o atletismo, o beisebol, o rugby, etc. Com a integração
mundial pelos meios de transportes e de comunicação, o esporte aos poucos as-
sumiu as características atuais de um dos fenômenos de maior magnitude no
planeta, com eventos que envolvem milhões de pessoas e cifras astronômicas.
Um grande e decisivo marco para a consolidação do esporte moderno
foi o ressurgimento dos Jogos Olímpicos no final do século XIX, graças ao tra-
balho do barão francês Pierre de Coubertin. A primeira Olimpíada da Era Mo-
derna foi disputada em Atenas em 1896 por 285 atletas, representantes de 13
países. Consta que a abertura do evento foi presenciada por cerca de 80 mil pes-
soas. Foram disputadas as seguintes modalidades: atletismo, ciclismo, esgrima,
ginástica olímpica, levantamento de pesos, luta greco-romana, natação, tênis e
tiro. São números bastante modestos se comparados aos Jogos de 2004, coinci-
dentemente, também disputados na Grécia, onde praticamente todas as nações
100
do mundo se fizeram representadas por cerca de dez mil atletas. Mas o que dis-
tingue o esporte moderno é sua característica de espetáculo, que movimenta e-
normes quantias de dinheiro diariamente, sua constituição em um nicho de mer-
cado, processo iniciado paralelamente à industrialização e ao desenvolvimento
do capitalismo, mas que ganhou impulso principalmente a partir das interven-
ções da mídia, como já visto no primeiro capítulo.
Assim, embora tenha raízes na Antigüidade, o esporte é um fenômeno
contemporâneo sem paralelos em outras épocas. As competições esportivas an-
cestrais integravam um sistema de rituais religiosos, situavam-se no campo do
sagrado. Na Idade Média, estavam associadas às festas e festivais populares, às
datas comemorativas. Na Modernidade, depois de serem devidamente apropria-
das pelas elites européias que lhes deram regras nos colégios e associações, as
práticas esportivas foram reapropriadas pelas classes populares que tanto passa-
ram a praticá-las normativamente como também a dar sustentação aos espetácu-
los esportivos, que m no futebol sua melhor tradução. Esse é o tema do próxi-
mo item, que busca, através de pesquisas bibliográficas sobre a história do fute-
bol, demonstrar inicialmente como esse esporte se faz presente em variados
momentos e lugares da história do Homem e posteriormente na constituição da
cultura brasileira
.
101
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Reprodução de quadro retratando o tsu-chu, praticado na China, e,
provavelmente, a forma mais antiga de “futebol”. (Disponível em
http://www.fifa.com, acesso em 18/05/2004)
O futebol como é praticado hoje é uma modalidade esportiva criada e
regulamentada na segunda metade do século XIX na Europa, entretanto, suas
raízes remontam a diversos jogos em que se usavam bolas ou objetos esféricos
desde a Antigüidade. A atração do homem por jogos é primitiva, anterior à cul-
tura”, como sentencia Huizinga, e sempre esteve acompanhada da utilização de
objetos esféricos. O antropólogo suíço Joham Jacob Bachofen, que ficou mais
famoso por sua “teoria do matriarcado”, descobriu nas paredes de cavernas da
região de Kerven na Nova Guiné desenhos rupestres datados da pré-história que
retratam figuras humanas correndo atrás de um objeto de aspecto arredondado.
A cena chama a atenção por ser o primeiro registro de uma atividade física hu-
mana. Estudos posteriores sobre estes desenhos, encomendados pela Universi-
dade de Munique, concluíram que se tratava sim de uma atividade lúdica. Outros
achados arqueológicos permitem afirmar que há mais de trinta séculos um jogo
de bola, praticado com o pé, era conhecido no Egito, na Babilônia e entre povos
asiáticos. É quase certo que tal prática tinha caráter religioso, na qual a bola
simbolizaria o Sol (Egito), a Lua (Babilônia) ou ainda maus espíritos que os jo-
vens afugentavam com chutes em uma bexiga de boi inflada de ar (Ásia).
102
Os escritores Lao-tse e Yang-tse fazem referência a um jogo de bola,
que teria sido praticado em território chinês por volta do século V a.C., durante a
dinastia Hsia (ou Hia) e que se tornou bastante popular durante a dinastia Han
entre os séculos II e III a.C. Esse jogo, cuja invenção muitos autores atribuem ao
próprio Yang-tse, chamava-se tsu-chu ou ts'uh kúh, expressão que significa
“golpear a bola com o pé”, e fazia parte do treinamento militar da guarda do im-
perador Huang-ti. O jogo tinha regras simples: dois grupos de oito soldados dis-
putavam uma bola feita de couro, recheada com pêlos de crinas de cavalos, las-
cas de madeira e fibras de vegetais e tinham de passá-la sobre um fio de seda
esticado entre duas estacas. Outra semelhança dessa prática com o futebol con-
temporâneo é o fato de que era realizada dentro de uma área demarcada por um
quadrado de 14 metros de cada lado. No entanto, o tsu-chu teria características
próprias, como não ser permitido que a bola tocasse o solo e ser praticado tam-
bém com o uso das mãos.
No site oficial da Fifa - Federação Internacional de Futebol
21
, entidade
que regulamenta e organiza o futebol mundial, a história do futebol, escrita por
Wilfried Gerhardt (1979), apresenta uma versão do tsu-chu na qual a bola tinha
de ser passada “com o por uma pequena rede, com uma abertura de 30 a 40
centímetros, fixada em varas de bambu”. Esse mesmo autor afirma que existiria
ainda uma outra versão do tsu-chu, “segundo a qual os jogadores eram obstruí-
dos no caminho de suas metas e podiam jogar a bola com os pés, peito, barriga e
ombros mas não com as mãos tendo que salvar os ataques de um oponente”.
O que demonstra que as táticas de ataque e defesa do futebol moderno não são
novas.
Sem datas precisas (“500 a 600 anos mais tarde”, segundo Gerhardt)
registra-se no Japão um jogo semelhante ao tsu-chu, denominado kemari, ex-
pressão que significa “chutar (ke) a bola (mari)”, e que ainda hoje é praticado.
Embora inspirado no jogo dos chineses, o kemari possui algumas características
21
http://www.fifa.com/es/history/history/0,1283,1,00.html
103
próprias e está ainda mais distante da competição, que não conta pontos e seu
objetivo se restringe a apurar a técnica de dominar a bola com os pés. O kemari
era um dos passatempos favoritos da realeza e registros de que os imperado-
res En-ji e Ten-ji o praticavam regularmente.
Turtelli (2002, p. 10), aponta o
kemari como um jogo praticado no Japão “há aproximadamente 1.400 anos”,
que lembra aspectos do futebol moderno e o futevôlei praticado atualmente em
praias brasileiras.
[o kemari] era jogado com uma bola de couro de veado, cheia de ser-
ragem, com aproximadamente 25 cm de diâmetro. Era muito popular
durante os séculos X a XVI e hoje ainda existem jogadores de kemari,
que jogam especialmente durante as festividades da primavera. O jogo
contava com oito participantes, duas equipes de quatro jogadores cada
uma. Os jogadores formavam um círculo, a bola era lançada, e o obje-
tivo era chutar a bola tantas vezes quanto possível sem deixá-la cair no
chão. O campo de jogo era delimitado por quatro árvores, cada uma
em um canto do quadrado.
Costa (2005) fornece dados mais detalhados sobre o kemari, com al-
gumas divergências. Segundo o autor, esse jogo era praticado “apenas” como
entretenimento, no qual os participantes se portavam com bastante delicadeza e
interrompiam a partida inúmeras vezes para se desculpar e confraternizar. Costa
afirma que no kemari os japoneses “usavam as mãos, os pés e uma bola de couro
de 22 cm de diâmetro, cheia de detritos orgânicos”. O campo seria uma área
quadrada com 20m de cada lado e nos cantos havia árvores que simbolizavam os
valores da cultura japonesa da época.
No canto Noroeste havia um pinheiro que representava a virtude. No
canto Nordeste, uma cerejeira representava a amizade. No canto Su-
doeste, uma amendoeira representava a fraternidade. No canto Sudes-
te, um salgueiro representava a cortesia. A existência dessas árvores
marca o clima de camaradagem que imperava no campo de jogo.
Segundo Costa, com o passar do tempo o kemari perdeu o sentido e-
ducativo e o aspecto cortês, assumindo um caráter lucrativo, já que passou a mo-
tivar apostas e “ao terminar o jogo, os perdedores provocavam distúrbios”. Por-
104
tanto, se havia apostadores, havia platéia e, por conseqüência, torcedores. O
mesmo autor conta que em muitos casos, o capitão da equipe perdedora era açoi-
tado publicamente por seus próprios companheiros e eventualmente também pe-
los espectadores que tinham perdido dinheiro nas apostas. Outro pioneirismo do
kemari, de acordo com Costa, foi a realização de jogos internacionais entre e-
quipes da China e do Japão.
Com datação da mesma época, embora menos documentadas (Ge-
rhardt sequer as cita no site da Fifa), algumas descobertas arqueológicas atestam
que civilizações americanas pré-colombianas praticavam jogos com bolas seme-
lhantes ao futebol. No Haiti, os nativos jogavam com uma bola feita de borracha
extraída das árvores. Consta na Encyclopaedia Britannica (1987) que relatos
do abade Prévost, no século XVIII, afirmam que os astecas praticavam um
jogo chamado tlatchtli, semelhante à péla dos europeus”. Alguns historiadores
acreditam que os sul-americanos tenham sido pioneiros na confecção de bolas
de resina com finalidades lúdicas e recreativas. registros de que índios da
Patagônia praticavam o tchoekah, um jogo semelhante ao hóquei, no qual utili-
zava-se um pedaço de madeira para impulsionar a bola. No Chile, os índios pra-
ticavam um jogo com bola chamado pilimatum. Os nativos da América do Norte
jogavam o pasuckquakkohowog, expressão que pode ser traduzida por eles se
reúnem para jogar futebol”, segundo afirma Giulianotti (1999, p. 1). Por sua vez,
Cunha (2005) fornece as seguintes informações sobre jogos com bola na Améri-
ca pré-colombiana:
Outros achados arqueológicos atestam que em vários pontos da Amé-
rica pré-colombiana, à mesma época que os chineses e japoneses se
entregavam ao seu futebol, os nativos também se dedicavam aos jogos
de bola. O historiador espanhol Herrera y Tordesillas menciona "uma
bola de borracha extraída das árvores", que os índios jogavam no Hai-
ti, quando chegou Cristóvão Colombo. Acredita o historiador Jean
Le Floc'hmoan que tenham sido os sul-americanos os primeiros a fa-
bricar bolas de resina com fins lucrativos. Embora cronistas mencio-
nem "meninos maias e astecas, impulsionando com os pés, esferas de
látex", todos esses jogos eram, basicamente disputados com as mãos,
105
guardando, portanto, pouca semelhança com esportes que, como os do
Oriente, são considerados precursores do futebol.
No entanto, é bom lembrar que em alguns dos jogos do Oriente e da
Europa antiga também era permitido o uso das mãos e nem por isso deixam de
ser reconhecidos como precursores do futebol moderno. Mesmo que por moti-
vos geográficos os jogos com bola dos povos americanos mais antigos não pos-
sam ser incluídos nas raízes do desenvolvimento do futebol moderno, é certo
que estes povos os praticavam, o que confirma a atração que as atividades lúdi-
cas com o uso de algum objeto esférico exercem sobre o homem de qualquer
época ou civilização.
Os estudos sobre as origens do futebol acusam o surgimento, na Gré-
cia clássica, de um jogo chamado epyschiros, epyskiros ou epislcyros, que inte-
gravam um conjunto maior de jogos com bola denominados sphairomachia.
Consta que em um destes jogos, do qual não se sabe o nome, utilizava-se um
bastão com a ponta curva para conduzir uma bola do tamanho de um punho e
que é reconhecido como precursor do hóquei, num curioso paralelo entre as civi-
lizações helênica e patagônica pré-colombiana. Apesar de populares, tais espor-
tes não foram incluídos em nenhuma das Olimpíadas realizadas durante 12 sécu-
los na Grécia antiga, mas são poucas as informações sobre as regras do epyschi-
ros. Turtelli (2002, p.10) o descreve como “praticado no século I a.C., com uma
bola cheia de areia, por 12 jogadores de cada lado, no qual usava-se tanto os pés
e as mãos e uma linha de meta tinha de ser ultrapassada”. Segundo a autora, Jú-
lio Pólux faz referências ao jogo, que teria como objetivo levar a bola além de
uma linha de meta localizada no fundo de cada lado do campo. Unzelte
(2002) situa esse jogo no ano de 776 a.C. e o descreve como integrante da “edu-
cação atlética da juventude helênica, consistindo em disputar, com os pés, uma
bexiga de boi cheia de ar, com quinze jogadores de cada lado”.
Os romanos “importarame adaptaram a seu modo de vida muitos as-
pectos da cultura grega e os esportes não ficaram alheios a este processo. Cunha
106
(2005) relata que os gregos criaram ainda outro jogo, bastante semelhante ao
epyschiro, ao qual deram o nome de harpaston, que os romanos, séculos depois,
modificariam para criar o harpastum, que se visto hoje pareceria uma estranha
mistura de handebol, futebol e rugby. Era jogado por duas equipes com um nú-
mero variado de integrantes, inicialmente, com uma bexiga de boi cheia de ar,
depois, os romanos criariam um outro tipo de bola, cheia de areia com objetivo
de aumentar o esforço feito pelos jogadores-soldados, que ainda usavam mano-
plas (peças de armadura que recobriam as mãos) nas partidas, as quais eram uti-
lizadas também para penalizar os jogadores quando fosse necessário. O harpas-
tum era largamente praticado nos acampamentos militares romanos e há indícios
de que até mesmo Júlio César o teria jogado. O esporte dos romanos aparece
assim descrito pela Encyclopaedia Britannica (1987):
O campo era retangular, com uma linha divisória em duas linhas de
meta, devendo as duas equipes disputar a bola, com o intuito de atingi-
rem a linha de meta adversária, denominada locus stantium. Essa linha
era protegida por jogadores com funções defensivas, como os goleiros
e zagueiros de hoje. Na região do campo denominada area pilae pra-
tervolantis et superiectae, atuavam os jogadores mais ofensivos e ve-
lozes. Existiam jogadores que permaneciam sobre a linha divisória do
campo, a medicurrens, e que jogavam para os dois lados, ora passando
a bola para um time, ora para outro.
Gerhardt cita o epyschiros como um jogo do qual se sabe relativa-
mente pouco”, mas o reconhece como precursor do harpastum romano. É nesse
relato que surge a primeira referência a torcedores. Apesar de notar as muitas
semelhanças entre o harpastum e o futebol moderno, o autor não crê que aquele
seja seu precursor.
Los romanos tenían un balón más chico y dos equipos jugaban en un
terreno rectangular, limitado con líneas de marcación y dividido con
una línea mediana. La pelota tenia que ser lanzada detrás de la línea
de marcación del adversario. Se hacían pases, se eludía, los miem-
bros de un equipo tenían ya diferentes tareas tácticas y el público los
incitaba, con gritos, en sus rendimientos y resultados. Este deporte
fue muy popular entre los anos 700 y 800.
(
Gerhardt, 1979)
107
Máximo e Porto (1968) também notaram muitas semelhanças entre o
harpastum e o futebol moderno.
Sabe-se, por exemplo, que havia jogadores mais lentos, quase parados,
que ocupavam defensivamente a zona de campo situada perto da li-
nha-de-meta, denominada locus stantium: eram os zagueiros da época.
Outros atuavam mais à frente, com funções nitidamente ofensivas, jo-
gando na area pilae praetervolantis et superiectae: seriam os atacan-
tes. Um terceiro tipo de jogador, o medicurrens, ficava sobre a linha
divisória do campo. Poderia ser um protótipo dos nossos meias de li-
gação, já que tinha por objetivo fazer uma espécie de ponte entre a de-
fesa e o ataque. Só que era uma espécie de homem neutro, jogando pe-
los dois times. (p.11)
Por tais descrições é possível associar o harpastum ao futebol moder-
no, mas também ao rugby, modalidade bastante popular na Inglaterra e muito
pouco praticada no Brasil. O fato é que o harpastum é considerado o primeiro
jogo de equipes com um esquema tático definido para se alcançar a vitória e, por
isso, ao contrário da versão da Fifa, é considerado por alguns autores como pre-
cursor do futebol. Segundo Fernández (1974), é provável, mas não foi provado,
que foram os legionários de Júlio César que o levaram às Ilhas Britânicas, onde
séculos depois se transformaria no football. Não é novidade que os romanos se
apropriavam de costumes dos povos conquistados, bem como levavam - muitas
vezes impunham - seus próprios costumes a estes povos. Assim, o harpastum,
nascido a partir do epyskiros, foi levado a outras regiões. Na Gália (França), re-
gião de forte presença romana, surgiu um jogo, provavelmente derivado do har-
pastum, chamado soule, praticado por pessoas de todas as classes - nobreza, cle-
ro e povo - com uma bexiga de porco cheia de ar. Cunha (s/d) afirma que os ro-
manos levaram a outros povos os seus jogos de bola.
É muito provável que tenham sido eles (romanos) os introdutores do
futebol na Gália e depois na Bretanha, sendo que, quanto a esta últi-
ma, os historiadores divergem: uns acreditam que tenha sido de fato os
romanos, durante os quatro séculos de domínio que se seguiram à
primeira expedição de Júlio César, no ano 43 d.C., que deram a co-
nhecer aos bretões as regras do harpastum; outros afirmam que os ro-
manos, ao chegarem à Bretanha, encontraram um futebol nativo,
de origem meio lendária, meio cívica.
108
O “futebol nativo” a que se refere o autor recebe diferentes nomes.
Em alguns textos aparece como ludus pilae, em outros, hurling e ainda shroveti-
de(te) football. Tal modalidade era bastante popular entre a população celta na
Idade Média e ainda hoje é praticada na cidade de Cornwell e em algumas loca-
lidades da Irlanda. Segundo Fernández (1974, p.19), o documento mais antigo
relacionado a esse jogo inglês é o livro Descriptio Nobilissimae Civilitatis Lon-
dinae, de William Fitzstephen, escrito em 1175. Neste, o autor descreve um jogo
disputado durante as Shrovetite, quando os habitantes de várias cidades inglesas
punham-se a chutar uma bola de couro pelas ruas, comemorando a expulsão dos
dinamarqueses no período de domínio anglo-saxão
.
Cunha (2005), por sua vez,
apresenta relato um pouco mais detalhado sobre este “quase futebol” inglês.
Durante toda a Idade Média, e por muitos séculos depois, realizou-se
na cidade de Ashbourne, Inglaterra, um jogo de bola que pode ser
considerado o mais importante precursor do futebol moderno. Tal jogo
era disputado anualmente, nas Shrove Tuesdays (espécie de terças-
feiras gordas), entre os habitantes da cidade: um número ilimitado de
participantes, às vezes de 400 a 500 de cada lado, corria atrás de uma
bola de couro fabricada pelo sapateiro local, com o objetivo de alcan-
çá-la, dominá-la e finalmente levá-la até a meta adversária, no caso as
portas norte e sul da cidade, uma para cada equipe. As origens do jogo
de Ashbourne - mais tarde praticado em outros pontos do condado de
Derbyshire também são discutidas, um cronista da época, afirma que
se tratava de uma comemoração anual da vitória dos bretões sobre os
romanos, numa partida de harpastum, efetuada no ano de 217.
Reprodução de quadro retratando o futebol
praticado em locais abertos na Inglaterra,
durante a Idade Média. (Disponível em
http://www.fifa.com, acesso em 18/05/2004)
109
Duarte (1993) fala superficialmente de “um episódio histórico de 1.000
jogadores, 500 de cada lado, querendo levar a bola até as portas da cidade de
Chester!” (p.2). No site da Fifa, que denomina essa prática como Shrovetide
Football”, Gerhardt afirma que era realizada nas cidades de Ashbourne e Derby-
shire e a situa na categoria de “futebol massivo”, ou seja, sem limitação de joga-
dores ou regras estritas, baseado num antigo manual de Workington, na Inglater-
ra, segundo o qual “todo estaba permitido para llevar el balón a la meta contra-
ria, con excepción de asesinato y el homicidio”. O autor fala também sobre a
origem controversa deste ancestral do futebol moderno.
Según se cree, este juego tine origen anglosajón. Sobre su primera
aparición existen varias leyendas. Se cuenta en Kingston-on-Thames y
también en Chester que 1 primera vez se jugó con la cabeza cortada
de un monarca danés derrotado, el que había sido hostigado por las
calles en una marcha triunfal. En Derby, se busca e origen aún más
atrás: en una fiesta de regocijo después de una victoria sobre lo ro-
manos en el siglo III.
Fernández (1974, p.19) afirma que, conforme a tradição, a primeira
bola usada nesse tipo de jogo foi a cabeça de um bandido danês (povo que ante-
cedeu os atuais dinamarqueses). Versão um pouco diferente é apresentada por
Costa (2005):
O futebol, tal como o conhecemos hoje, foi inventado em países que
pertenciam ao império britânico (o nome do esporte vem do inglês
"football", literalmente pé e bola). As primeiras notícias deste esporte
estão resumidas em uma lenda dramática. Conta-se que no início do
século XI houve uma tentativa de desembarque de Vikings nas costas
inglesas, perto de Kingston-on-Thames. Os habitantes do local derro-
taram os invasores, capturaram seu chefe e o decapitaram. Sua cabeça
então teria sido usada como bola em um jogo. A partida terminou
quando a cabeça ficou totalmente desintegrada.
Embora a maioria dos historiadores e estudiosos das origens do fute-
bol apresente datas diferentes é certo que a violência com que era praticado pe-
los bretões (que acontecia mais fora do que dentro da disputa em si, o que indica
a presença de espectadores ou torcedores) acabou por determinar sua proibição.
110
Segundo a Encyclopaedia Britannica (1987) o rei Eduardo II foi quem primeiro
proibiu a disputa das partidas, em 1314, mas antes seu pai, Eduardo I, “também
temia pela violência do jogo e que seus soldados aderissem a essa atividade e se
descuidassem dos afazeres da profissão”, isso porque a Inglaterra estava em
guerra com a Escócia, iniciada em 1297, e os soldados deviam ocupar seu tempo
com atividades mais úteis para o conflito como arco e flecha e lutas corporais.
Eduardo III, em 1389, não manteve a proibição, como a estendeu a outros
jogos. Na Escócia, em 1423, Jaime I proibiu que qualquer homem jogasse fute-
bol, com pena de multa. As restrições reais foram reforçadas nos reinados de
Henrique VIII, Eduardo VI e Isabel I. No entanto, nenhuma obteve êxito total, já
que o jogo continuou a ser praticado clandestinamente, inclusive em mosteiros,
apesar de ser condenado pela Igreja, obviamente em uma versão menos violenta
e sem a presença de público, o que diminuía a violência. Conclui-se assim que a
proibição acabou servindo para que o futebol primitivo da região que hoje forma
o Reino Unido começasse a ganhar alguns dos contornos atuais, ou seja, algu-
mas regras começaram a ser estabelecidas para que a disputa se tornasse mais
equilibrada, proibindo o uso da força excessiva na disputa pela bola.
Enquanto o football era proibido em solo anglo-saxão, na mesma épo-
ca, na França, o soule ou choule, menos violento, era largamente praticado e di-
fundido, tanto entre os homens do povo, como entre os nobres (Henrique II e o
poeta Pierre de Ronsard seriam apenas alguns exemplos). Alguns historiadores,
como Paulo Várzea (1967), apontam que o jogo criado entre os legionários ro-
manos deu origem, na Idade Média, não ao soule, mas também a uma outra
modalidade na Itália, denominada gioco del calcio, ou simplesmente calcio
22
,
palavra que pode ser traduzida por chute ou coice. Essas variantes do harpas-
tum, embora menos violentas que a versão inglesa, tinham tamm uma origem
belicista e eram disputadas com bastante ferocidade, por isso, também foram
22
Ainda hoje na Itália o futebol é chamado de calcio. A entidade que regula o futebol naquele país é a Federação
Italiana de Calcio e, por isso, muitos consideram este jogo como a verdadeira origem do futebol moderno.
111
proibidas em algumas localidades. Mas, tal como o football, continuaram a ser
praticadas clandestinamente, devido ao fascínio e a popularidade que haviam
atingido. O calcio difundiu-se bastante entre a nobreza, tornando-se um esporte
típico da aristocracia entre os séculos XIV e XVII. Suas regras foram fixadas
por Giovanni Bardi, em 1580, baseadas em relatos sobre um jogo realizado em
Florença, no dia 17 de fevereiro de 1529. Tal jogo realizou-se para resolver uma
antiga rixa entre duas facções políticas locais e acabou entrando para a história
23
.
O calcio daquela época era praticado em praças por duas equipes compostas de
27 elementos cada. Costa (2005) descreve mais detalhadamente:
Inicialmente, o “Cálcio” consistia em um entretenimento entre dois
grupos de tamanho variável. Os grupos podiam ter 20, 30 ou 40 joga-
dores cada um, dependendo do espaço disponível para a realização do
jogo. Após serem fixadas as regras, em 1580, as equipes normais ti-
nham 27 jogadores com a seguinte distribuição: 15 atacantes alinha-
dos em forma de flecha, cinco jogadores de meio de campo, quatro na
linha de ataque e três na defesa. O jogo havia sido adaptado para as
grandes praças de Florença, das quais a maior era a de Santa Croce,
com 137 m de comprimento por 50 m de largura. Os encontros eram
dirigidos por seis árbitros que ficavam em uma tribuna lateral. Apesar
da organização das equipes, quando o jogo começava os jogadores en-
travam em luta pela bola, a qual podia ser chutada ou agarrada com as
mãos, mas nunca arremessada com elas. A partida geralmente se
transformava em uma verdadeira batalha, pois os regulamentos permi-
tiam chutes, empurrões e socos.
Com indireta e involuntária influência de sua proibição, aos poucos o
futebol foi “domesticado” em terras anglo-saxônicas. Já nos séculos XVI e XVII
as proibições afrouxaram e são registradas modalidades esportivas com bola ca-
da vez mais semelhantes ao futebol moderno e menos violentas, ainda que com
um alto grau de danos materiais e perdas de vidas. Pesquisas indicam que naque-
les culos os italianos levaram o calcio a outros países europeus, com regras
rígidas para coibir atos de maior violência.
no século XVII, sob o reinado de Jaime I, a proibição do futebol
praticamente era ignorada e alguns nobres passaram a se interessar mais pelo
23
Até hoje, em Florença, no dia 24 de junho, nas festividades do dia de São João, padroeiro da cidade, é feita
uma reconstituição desse jogo.
112
jogo. Cunha (2005) registra alguns fatos durante o século XVII que marcaram
um período de abertura para o futebol em solo inglês, como um convite feito ao
o visconde de Dorchester por John Chamberlain “para assistir a um jogo em Flo-
rença”; ou a organização de um jogo-exibição, em 1613, pelo vigário de Wiltshi-
re em virtude de uma visita real; ou ainda a introdução do futebol em dois colé-
gios de Cambridge, o St. John’s e o Trinity, em 1620. Entretanto, na versão da
história do futebol da Fifa, os séculos XVI e XVII são citados como um perío-
do em que o futebol pouco se desenvolveu” e durante o qual, na Inglaterra, o
jogo continuou sendo rude e pouco elegante”. Entretanto, cita que nesse perío-
do o pedagogo Richard Mulcaster, que dirigiu “os renomados colégios de Mer-
chant Taylor’s e de St. Paul’s” identificou valores positivos na prática do futebol
como sua influência para uma boa saúde e ganho de força. Esse reconhecimento
se contrapunha ao principal argumento dos opositores do futebol na época, que
via a prática como causadora de tumultos e danos materiais. Tais argumentos se
justificavam por ocorrências como a registrada em 1608 em Manchester, onde
uma nova proibição foi proferida com a explicação de que o futebol causava
muitas quebras de vidros de janelas.
Segundo Gerhardt, outro fato que contribuiu para uma repressão ofici-
al contra o futebol em algumas regiões da Inglaterra foi a expansão do Purita-
nismo embora Oliver Cromwell, um dos mentores do movimento tenha sido
“um robusto jogador de futebol na juventude” –, que declarava guerra às diver-
sões “libertinas”, às quais eram encabeçadas pelo futebol, considerado perturba-
dor do descanso dominical (na mesma época e por razões semelhantes o teatro
foi reprimido na Inglaterra). Curiosamente, ainda hoje, a maioria dos jogos de
futebol na Inglaterra é realizada aos sábados.
O fato é que entre os séculos XVI e XVII o futebol passou por um pe-
ríodo de transição na Inglaterra, que de um lado o ameaçou de extinção, mas de
outro, deu-lhe algumas das características que perduram até hoje, como a neces-
sidade de coibir a violência, com a adoção de juízes e a penalização de jogadas
113
desleais, a limitação do números de jogadores e a demarcação de uma área de
jogo (campo). É bom lembrar, entretanto, que tais fatos referem-se ao futebol
inglês, que tanto o soule, na França, como o calcio, na Itália, adotavam al-
gumas destas regras. Mas a principal transformação por que passou o futebol
inglês naquele período foi sua transposição das praças e locais abertos para den-
tro dos colégios, onde começou a ser regulamentado até originar o futebol como
é conhecido atualmente.
A introdução do futebol nos colégios ingleses no século XIX se deve a
Thomas Arnold (1795-1842), diretor do Colégio de Rugby e educador responsá-
vel pela reformulação de todo o sistema educacional da ilha, que passou reco-
nhecer a importância da prática esportiva na educação dos jovens. E o futebol
não foi esquecido por ele, tendo sido um dos primeiros esportes introduzidos de
maneira oficial nas escolas públicas inglesas. Entretanto, em cada colégio tinha
regras particulares, embora semelhantes, e elaboradas de acordo com as tradi-
ções de cada instituição bem como com o terreno, assim, o espaço disponível
para prática determinava o número de jogadores em cada time, além de influen-
ciar na forma de jogar. Nos colégios com espaços menores (Charterhouse,
Westmister, Eton, Harrow, Winchester e Shreewsbury), exigia-se mais habilida-
de e proibia-se o uso das mãos, enquanto naqueles com campos maiores e mais
jogadores (Cheltenham e Rugby), se privilegiava o uso da força e permitia-se
jogar com as mãos.
Permitir ou não o uso das mãos foi uma das primeiras discussões so-
bre as regras do novo” esporte que começava a tomarforma. Até 1823, a maio-
ria dos colégios permitia o uso das mãos apenas para reter a bola alta e colocá-la
no chão. Segundo Cunha (2005) naquele ano, um lance inusitado ocorrido du-
rante uma partida no Colégio de Rugby, teria marcado definitivamente a divisão
entre um modo e outro (com ou sem o uso das mãos) de se jogar futebol. O fato
foi protagonizado por William Webb Ellis, ao desrespeitar as regras e pegar a
bola com as mãos e carregá-la até a linha do gol. Em 1846, o Colégio de Rugby
114
institui as regras que permitiam carregar a bola com as mãos, bem como o uso
da força física e métodos violentos como pisotear o adversário para impedir sua
evolução em campo.
Em 1848, Cambridge instituiu suas regras, com a proibição do uso das
mãos e restrições a atos de violência. A partir da metade daquele século, quando
os jogos intercolegiais se tobrnaram mais comuns e com a maioria a favor de
Cambridge, a divisão se tornou mais profunda e logo se consolidou. Em 1857,
Sheffield instituiu regras com teor parecido às de Cambridge. O futebol de
Rugby ficava cada vez mais isolado.
Ainda que adotassem regras semelhantes, cada colégio, principalmen-
te em função do espaço, adotava dimensões de campo e número de jogadores
diferentes. O número de 11 jogadores, instituído em Cambridge onde as turmas
possuíam dez alunos e um bedel, foi o que mais se adaptou e permanece até ho-
je. Também as bolas tinham tamanhos, pesos e formatos diferentes (alguns lo-
cais usavam a bola oval, adotada em Rugby). Mas não era só nos tios dos co-
légios que a prática do futebol se disseminava, o jogo então era praticado por
quase todo o Reino Unido e logo começaram a surgir clubes e a serem realiza-
dos alguns campeonatos. Em 1862 foi fundado o Notts County, reconhecido ho-
je como o time de futebol mais antigo do mundo ainda em atividade (atualmente
disputa a quarta divisão do Campeonato Inglês). Em 26 de outubro de 1863 foi
criada a The Football Association, após uma reunião entre representantes de
clubes e dirigentes de escolas em Londres, na Freemason´s Tavern, situada na
Great Queen Street (Duarte, 1993, p.7).
Gerhardt fala não em um, mas em uma série de encontros a partir de
26 de outubro de 1863. Tais reuniões culminaram no dia 8 de dezembro daquele
ano com a separação definitiva do futebol e do rugby. Os defensores das regras
de Rugby retiraram-se da reunião. No querían participar en un juego donde no
estaba permitido hacer la zancadilla o patear las canillas de los adversarios o
llevar el balón con la mano”. Naquela mesma noite foi aprovado o conjunto de
115
regras, num total de 13 itens, que deram origem ao futebol como é conhecido e
praticado atualmente. Duarte (1993) fala em 14 regras e que mesmo aprovadas
não foram adotadas imediatamente.
No dia 8 de dezembro de 1863, a Football Association tornava oficiais
essas 14 regras, fazendo-as publicar para conhecimento de todos. A-
pesar disso, em Sheffield e outras regiões, ainda se jogava com regras
antigas. Apenas a 13 de maio de 1866 é que, por ocasião de um jogo
entre a Football Association (Londres e arredores) e a Associação de
Sheffield, conseguiu-se, realmente, a unificação das regras: O tama-
nho do campo teria 120 jardas por 80, a bola seria a número 5 e o jogo
duraria 1 hora e 30 minutos. Graças a isso, em 1877, existiam as
regras da Football Association em toda a Inglaterra e em muitos paí-
ses do mundo. (p.4)
Após a unificação das regras e da fundação da Football Association o
futebol não mais parou de se expandir no Reino Unido e no mundo todo. Em
1871 foi disputada a primeira edição da Copa da Inglaterra, reconhecida atual-
mente como a mais antiga competição futebolística do mundo. No ano seguinte,
no dia 30 de novembro, em Glasgow, Inglaterra e Escócia disputam uma partida
considerada como o primeiro jogo entre seleções nacionais, apesar de Gerhardt
(1979) afirmar que os escoceses ainda não tinham uma associação de futebol e,
portanto, não podiam formar uma seleção, sendo assim representados nesta pelo
Queen´s Park FC, o time mais antigo daquele país ainda em atividade, embora
permaneça amador, recusando-se até hoje a aderir ao profissionalismo. Esse jo-
go terminou com o placar de zero a zero e teria sido assistido por cerca de três
mil e quinhentos torcedores.
A partir da década de 1870 o futebol começou a sair dos muros dos
colégios e passou a ser ensinado às classes trabalhadoras durante o processo de
industrialização inglesa, por clérigos, homens de negócios e diretores de fábri-
cas. Para os religiosos, o futebol – antes visto como “propagador da violência” –
passou a ser utilizado como meio de combate à delinqüência nas áreas mais po-
bres. Entre os trabalhadores, o jogo se tornou a principal diversão quando passa-
ram a ter as tardes de sábado livres (os líderes religiosos puritanos ainda conde-
116
navam as diversões aos domingos) e logo se tornou uma válvula de escape re-
creativa para as massas urbanas” (Lever, 1983). A popularização do futebol nas
áreas urbanas e entre os trabalhadores também influenciou a maneira como o
jogo era praticado, uma vez que boa parte dos trabalhadores não tinham o mes-
mo preparo atlético que os filhos dos aristocratas nos colégios, que não ti-
nham tempo livre suficiente para treinar. Assim, a habilidade, o controle da bola
e passes precisos passaram a ser a marca registrada dos times formados por tra-
balhadores, que logo conseguiriam superar a forma de jogar dos times colegiais,
centradas unicamente na força física.
O conflito entre o “futebol dos trabalhadores” e o das elites não demo-
raria a surgir. Os jogos nas áreas industriais atraíam milhares de espectadores e
os clubes começaram a cobrar ingressos, conseqüentemente podiam pagar seus
jogadores, o que foi considerado uma afronta aos princípios e tradições amado-
rísticas do esporte pela aristocrática Football Association, que ameaçou afastar
os clubes que pagavam seus jogadores de suas competições. Estes, por sua vez,
ameaçaram uma retirada em massa e a criação de sua própria competição.Em
1885, foi firmado um acordo e o profissionalismo dos jogadores permitido, en-
tretanto, os clubes não poderiam ser geridos como empresas e nem ter fins lucra-
tivos. Apesar do acordo instaurou-se uma divisão entre os clubes do sul, que
permaneceram fiéis ao amadorismo, e os do norte (aos quais se juntaram clubes
das regiões industriais), que buscavam expandir o profissionalismo. Em 1888, os
profissionais criam a Liga Inglesa - que incluiria um clube sulista depois de
cinco anos de existência -, entidade que organiza até hoje os campeonatos na-
quele país e tornou-se modelo de organização (e centralização) administrativa
para os esportes em geral.
Con el incremento del fútbol organizado y el ya sorprendente alto
número de espectadores, se presentaron los inevitables problemas con
los cuales tuvieron que enfrentarse los otros países mucho más tarde:
por ejemplo, el asunto del profesionalismo. La primera referencia al
respecto data del año 1879, cuando un pequeño club de Lancashire,
117
Darwen, alcanzó dos veces un empate sensacional contra el imbatible
Old Etonians, antes de que los famosos aficionados londinenses pudi-
eran asegurarse la victoria. Dos jugadores del equipo de Darwen, los
escoceses John Love y Fergus Suter, parecen haber sido los primeros
en haber recibido dinero por su arte futbolística. Estos casos se mul-
tiplicaron y ya en 1885, la F.A. estuvo obligada a legalizar oficial-
mente el profesionalismo. Esto fue cuatro anos antes de que se funda-
ran las primeras asociaciones nacionales fuera del sector británico,
la de Holanda y la de Dinamarca. (Gerhardt, 1979)
A essa altura, nos quatro países que compõem o Reino Unido (Ingla-
terra, Escócia, Irlanda e País de Gales) o futebol estava largamente difundido.
A associação escocesa de futebol foi fundada em 1873, a galesa em 1875 e a ir-
landesa em 1880. Em 1883, essas quatro associações fundaram a The Internati-
onal Football Association Board, entidade que até hoje regulamenta o futebol
mundial em cooperação com a Fifa Fédération Internationale de Football As-
sociation, fundada em 21 de maio de 1904, após iniciativa do holandês Anton
Wilhelm Hirschmann. Apesar da origem inglesa do futebol, o primeiro presiden-
te da Fifa foi o francês Robert Guérin, eleito por membros dos sete países fun-
dadores da hoje poderosa entidade internacional: França, Bélgica, Espanha, Suí-
ça, Países Baixos, Dinamarca e Suécia. Apenas no ano seguinte é que Inglaterra,
Alemanha, Áustria, Itália e Hungria se tornariam afiliadas. A Fifa nasceu da ne-
cessidade de solucionar problemas surgidos com a expansão do futebol pelo
continente, bem como pela multiplicação exponencial de praticantes. Um desses
primeiros problemas, surgido e parcialmente solucionado antes mesmo do apa-
recimento da entidade, foi a questão da profissionalização.
O “surpreendente alto número de espectadores” serviu como motiva-
ção para que o futebol integrasse o projeto imperialista inglês de disseminação
da cultura britânica como forma de dominação, por isso, logo passou a ser ex-
portado”. Além disso, pensado como um esporte de elite, chamou a atenção das
classes altas de outras nações européias, o que facilitou a rápida disseminação da
modalidade não pelo Velho Continente, como pelo mundo todo. Depois das
associações britânicas, holandesas e dinamarquesas, surgiram as duas primeiras
118
entidades não-européias. Em 1891, é fundada a Associação de Futebol da Nova
Zelândia e, dois anos depois, AFA Associação de Futebol Argentina. A seguir
surgem entidades no Chile, Suíça e Bélgica (1895), Itália (1898), Alemanha e
Uruguai (1900), Hungria (1901), Noruega (1902), Suécia (1904), Espanha
(1905), Paraguai (1906) e Finlândia (1907).
Oito anos após sua fundação, a Fifa agregava 21 associações. Em
1930 é disputada a primeira Copa do Mundo de Futebol com participação de
selecionados de 13 dos 41 países afiliados à Fifa. As primeiras tentativas de rea-
lizar um campeonato mundial de futebol no início do século XX foram frustra-
das em virtude das turbulências políticas vividas pelos europeus, que culminari-
am na Primeira Grande Guerra. No entanto, o futebol fez parte das Olimpíadas
de 1924 e 1928, quando os uruguaios superaram as seleções européias e deram
início a uma rivalidade que perdura até hoje entre os continentes. A primeira
Copa do Mundo foi realizada no Uruguai e vencida pelos anfitriões. A essa altu-
ra o futebol era um dos esportes mais populares do planeta. Na metade do sé-
culo XX, em 1950, 73 nações estavam representadas na Fifa. Atualmente, a en-
tidade mundial conta com 205 afiliadas, que representam mais de 300.000 (tre-
zentos mil) clubes, dois terços deles na Europa. A entidade calcula que atual-
mente 20 milhões de jogadores atuam nos campeonatos organizados por seus
afiliados.
Desses afiliados, um em especial se destacou e mesmo não tendo sido
o berço da modalidade passou a ser conhecido como o “país do futebol”: o Bra-
sil, onde o futebol faz parte da vida social de grande parcela dos indivíduos des-
de quando nascem; é costume generalizado entre os brasileiros presentearem os
meninos com bolas de futebol (e as meninas com bonecas, o que confere uma
característica machista ao jogo), bem como vesti-los com as cores de suas equi-
pes preferidas durante toda a infância. Para muitos pais brasileiros, é uma verda-
deira tragédia que seu filho não venha a gostar de futebol ou que passe a torcer
por um time rival ao preferido da família. Certamente em países onde o futebol é
119
muito popular - como na Argentina, Inglaterra, Itália e Espanha - não deve ser
diferente. A importância desse esporte para os brasileiros pode ser resumida pela
pergunta: é possível entender o Brasil sem pensar em futebol? Todo brasileiro
sabe que não.
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A história do futebol brasileiro está amplamente documentada e não é
o objetivo deste trabalho reproduzi-la. Assim, neste item foram compilados fatos
históricos que podem contribuir para uma compreensão da introdução do futebol
no Brasil a partir de um ponto de vista culturológico que, embora não deva se
prender aos registros históricos oficiais, não deve ignorá-los. Isso porque eles
indicam muitos dos aspectos socioculturais da evolução do fenômeno, como o
fato de o esporte mais popular do Brasil, que por muito tempo conviveu com a
pecha de “ópio do povo” e hoje é reconhecido como uma das poucas possibili-
dades de lazer dos pobres, foi criado no seio das elites, entre os ricos.
A foto ao lado é considerada a mais
antiga sobre o futebol brasileiro,
tirada na Chácara Dulley, no bairro
do Bom Retiro, em São Paulo. (in:
Duarte, 1993, p. 5)
Por outro lado, podem ser constatadas algumas lacunas na historiografia do
futebol, principalmente em relação à participação de segmentos não pertencentes
às elites em sua difusão. A maioria dos historiadores atribui ao paulistano filho
de ingleses Charles Miller a responsabilidade pela introdução do futebol no Bra-
sil, em 1894. Esta espécie de versão oficial aceita praticamente sem questiona-
120
mentos, afirma que Miller, depois de completar seus estudos na Banister Court
School, em Southampton, Inglaterra, onde aprendeu a jogar e gostar do fute-
bol
24
, retornou ao Brasil e trouxe em sua bagagem duas bolas, calções, chuteiras,
camisas, bomba de encher a bola e agulha, com a firme intenção de continuar a
praticar o esporte pelo qual se apaixonara em solo brasileiro, ao lado de ingleses
e descendentes. Entretanto, indícios de que em outras regiões do país e do
estado de São Paulo o futebol foi introduzido antes de Miller ou sem qualquer
ligação com esse personagem.
Shirts (in Meihy e Witter, p. 87 a 99, 1982) critica bastante a postura
conformista e elitista dos historiadores do futebol, uma vez que são muitas as
evidências de que o esporte era praticado no Brasil antes do advento Miller,
que teria sido mais um incentivador e nisso teve muitos méritos do que pro-
priamente um pioneiro. Shirts cita Gilberto Freyre e estudos antropológicos que
atestam a prática de jogos com bola entre os índios brasileiros. No entanto, é
bom notar, como relatado anteriormente na história geral do futebol, que nem
sempre os jogos ancestrais praticados com uso de bolas fossem já o futebol. Cer-
tamente, o tsu-chu, o kemari e outros jogos praticados por diversas civilizações
americanas pré-colombianas (inclusive no Brasil) são precursores do futebol
moderno, mas não se pode afirmar que estes povos antigos jogavam futebol. A
prática daqueles outros jogos formou a base para que o futebol se desenvolvesse,
seja no Velho ou no Novo Mundo.
As críticas do artigo de Shirts são endereçadas principalmente a auto-
res como José Roberto Borsari, Thomaz Mazzoni, Adriano Neiva, Mário Filho e
tantos outros que aceitam o que ele denomina “tese Müller”, que determina 1894
como ano do nascimento do futebol brasileiro. Shirts lembra que estes mesmos
autores apontam uma série de acontecimentos que atestam a anterioridade do
futebol em relação a Miller, para a seguir ignorá-los em favor de uma postura
24
Segundo Duarte (1993, p.2), Miller chegou a jogar pela seleção do condado de Hampshire numa partida contra
os amadores do Corinthians de Londres, clube que faria uma excursão no Brasil em 1910 e daria origem ao no-
me de um dos times mais populares do país, o Sport Club Corinthians Paulista.
121
elitista e assumidamente oficialista. Isso é bastante claro em Mazzoni (1950) que
abre sua história do futebol brasileiro citando o trabalho de Paulo Várzea, que
em 4 de maio de 1942 escreveu na Gazeta Esportiva (extinto diário paulistano
dedicado exclusivamente ao esporte e que atualmente sobrevive como site na
Internet):
O futebol teria sido exibido na Argentina e no Brasil por volta de
1864, por marinheiros dos barcos mercantes e de guerra estrangeiros,
particularmente ingleses. Na Argentina, porém, sua verdadeira prática
pelos nacionais data de 1865, entre os sócios do Buenos Aires Cricket
Club, sendo que n Uruguai apareceu por volta de 1880, entre os mari-
nheiros, ali por Punta Carreta. Mas passou a ser divulgado entre os
orientais e argentinos depois que se divulgou nas escolas, por Iniciati-
va de Watson Hutton, na Argentina, e Henry Castle, no Uruguai”.
(Mazzoni, 1950, p. 17)
Mazzoni registra também que os marujos britânicos jogaram partidas
de futebol “nos capinzais desertos do litoral norte e sul do país, nos tempos co-
loniais, do fim do Império e da Guerra do Paraguai” (p.17). Assim, à moda dos
romanos que levaram a prática do harpastum a outras regiões e deram continui-
dade ao processo de desenvolvimento do futebol, os marinheiros ingleses leva-
ram a muitos países o costume de se jogar futebol e desencadearam a mundiali-
zação da prática.
Ainda segundo Mazzoni, pelo menos duas jornadas futebolísticas dos
marinheiros britânicos ficaram registradas, ambas no Rio de Janeiro. Uma delas
teria sido “realizada com fúria, em 1874, na Praia do Glória e outra efetuada em
1878, por tripulantes do ‘Criméia’, num capinzal existente entre as ruas Paissan-
du e Roso, em frente à residência da Princesa Isabel” (p.17). Um pouco mais
adiante, Mazzoni fala de indícios de “que, entre 1875 e 76, anglo-brasileiros,
empregados nas companhias de navegação inglesas, bancos, docas, cabos sub-
marinos, City e Leopoldina Railway fizeram a prática do futebol naquele campo
do Paissandu, animados por um tal Mr. John.” (p. 17)
Ao não perceber uma possível ligação dos fatos é que Mazzoni abre
brechas para as críticas de Shirts, pois ainda que não se possa comprovar por
122
documentação oficial, é evidente que para a prática futebolística são necessários
alguns requisitos que a impedem de ser realizada em qualquer local e por pesso-
as que não tenham um mínimo de preparo, como conhecimento de regras, ainda
que sejam as mais simples (como ser proibido o uso das mãos e a necessidade de
passar a bola por uma meta pré-marcada, ou goal). De modo que o capinzal que
serviu aos anglo-brasileiros entre 1875 e 76, e também aos marinheiros do
“Criméia” em 1878, poderia ser na verdade um verdadeiro campo de futebol u-
sado regularmente e o “tal Mr. John” tem as características de um técnico, ins-
trutor ou juiz (portanto, conhecedor do futebol) e não animador.
Mazzoni relata ainda que, em 1882, um inglês chamado mister Hugh,
teria organizado jogos entre funcionários brasileiros e ingleses da o Paulo
Railway, em Jundiaí, e que no mesmo ano em que Charles Miller teria introdu-
zido o esporte no Brasil, um padre espanhol o teria feito em Petrópolis, onde,
em 1882, o futebol seria jogado regularmente num colégio da região. Outra
citação de Mazzoni, fala que contemporâneos de 1872-73 relatam o seguinte:
“(...) as primeiras práticas do futebol de São Paulo procedem de Colé-
gio S. Luiz, de Itu (hoje o prédio é um quartel do Exército), em cujo
recreio um sacerdote do corpo docente o teria introduzido batendo o
balão de encontro ao muro do colégio, à maneira dos estudantes de
Eton, tradicional colégio britânico, onde, na falta de um campo apro-
priado, os acadêmicos se compraziam em bater a bola de encontro ao
paredão da escola”. (p.17)
Escapa mais uma vez a Mazzoni a anterioridade do futebol em relação
a Miller, quando cita que o clube esportivo, “terrestre e ao ar livre”, mais antigo
do Brasil foi fundado em 1875 pelos srs. H. L. Wheatley, A. Mac Milan, C. D.
Simons, Amaral, Robinson e Cox”, segundo o autor estes teriam “tentado ali a
prática do futebol entre 1891 e 93”. O local? Nos terrenos existentes para os
lados do palácio Guanabara, junto à rua Paissandu, onde mais tarde se fixou a-
quele clube, recebendo posteriormente a denominação de Paissandu Cricket
123
Club” (p. 21). Coincidentemente, no mesmo local onde havia indícios de que
entre 1875 e 76 se jogara futebol, como já citado.
Também Melo (in Rodrigues, 2000. p.17-28) tece críticas à tese de
que Charles Miller tenha sido o responsável pela chegada do futebol ao Brasil.
Primeiramente, Melo estranha o fato de que “um homem trouxesse uma bola, e
poucos anos mais tarde, grande parte da população brasileira praticasse o es-
porte”. Sem deixar de reconhecer que Miller foi o maior responsável pela com-
pleta organização do futebol no país, Melo afirma que o futebol chegou ao Bra-
sil através de colégios dirigidos por padres jesuítas, como o São Luiz, de Itu
(SP), e Anchieta, de Nova Friburgo (RJ). Tese que ganhou mais credibilidade
com a publicação do historiador José Moraes dos Santos Neto, que em seu Visão
do Jogo - Primórdios do futebol no Brasil (2004) detalha mais o futebol pratica-
do no colégio de Itu. O estudo de Neto foi elaborado a partir de documentos ob-
tidos nos acervos do Colégio São Luís, Mosteiro de Itaici, Arquivo do Estado de
São Paulo e entrevistas com descendentes diretos daqueles que seriam os pionei-
ros do futebol no Brasil.
Segundo Neto, o então deputado Rui Barbosa teria sido um dos res-
ponsáveis indiretos pela introdução do futebol no país, quando, em 1882, aten-
dendo solicitação de Dom Pedro II, apresentou à Câmara do Império parecer
sobre a Reforma do Ensino Primário e das Instituições Complementares de Ins-
trução Pública. Havia grande preocupação das autoridades imperiais em melho-
rar o sistema educacional no país, que à época apresentava índices de analfabe-
tismo superiores a 80% da população. Entre as recomendações de Rui Barbosa
em relação à educação física estava a introdução de exercícios ao ar livre. Como
a maioria das instituições de ensino brasileiras mantinha relações com colégios
europeus, especialmente britânicos, enviaram representantes ao Velho Continen-
te em busca de soluções para os problemas apontados. Estava dado o primeiro
passo para a importação da prática esportiva que se tornaria a mais popular no
país e no mundo.
124
Entre os colégios que seguiram por esse caminho estava o São Luís,
que abrigava entre seus alunos boa parte dos filhos da elite paulista. De volta da
excursão à França, Alemanha e Inglaterra, um dos integrantes da missão, o pa-
dre José Mantero, que se tornaria reitor da Instituição ituana, trouxe em sua ba-
gagem duas bolas e a disposição de ensinar aos alunos do São Luís o “empol-
gante e saudável” jogo. Essas bolas consistiam em maras de ar sob um envol-
tório de couro, chamado de capotão, que mais tarde, devido ao uso intenso fo-
ram substituídas por bexigas de boi. Entretanto, Neto observa que até 1887, pa-
dres e alunos jogavam juntos, mas não praticavam o chamado football associati-
on, que pressupõe a formação de dois times e a existência de um conjunto de
regras, apenas realizavam um “bate-bola na parede” como “parte de uma estra-
tégia gradual de apresentação do esporte aos alunos”. O passo seguinte foi intro-
duzir pequenas marcas em paredes opostas do pátio, à guisa de servirem como
traves, e dividir a turma em dois times, camisas verdes de um lado e camisas
vermelhas de outro. Mas o mais importante é que os alunos, ao deixarem o colé-
gio, levaram o gosto pelo esporte e o teriam espalhado por outras cidades e esta-
dos brasileiros, preparando terreno para sua popularização, reforçada pela inten-
sificação da imigração e, principalmente, pela expansão das ferrovias.
A despeito do pioneirismo de marinheiros ingleses e padres jesuítas, o
grande impulso para a expansão do futebol no Brasil foi mesmo dado por Char-
les Miller, que em seu regresso encontrou na capital paulista apenas um clube
dedicado às práticas esportivas: o São Paulo Athletic Club, fundado por ingleses
e que se dedicava quase exclusivamente ao críquete. É do próprio Miller o se-
guinte relato, citado por Mazzoni (p.18): “Realizamos o primeiro ensaio em ter-
ras brasileiras, no ano de 1895, e precisamente na Várzea do Carmo, nas proxi-
midades da rua do Gasometro e Santa Rosa. Para isso reuni um grupo de ingle-
ses da Companhia do Gás, London Bank e S.P.R
25
”. Entretanto, ainda segundo o
25
São Paulo Railway Company.
125
relato autobiográfico de Miller, não foi esta a primeira partida regulamentar que
ajudou a promover.
Logo que nos sentimos mais traquejados e que o numero de pratican-
tes do jogo havia crescido, convoquei a turma para o primeiro cotejo
regulamentar, denominando os quadros um, de “The Team of the
Gaz”, o que era integrado por empregados daquela Companhia, e o
outro de “The S. P. Railway Team”, formado de funcionários desta
ferrovia. Foi isso a 14 ou 15 de abril de 1895. Ao chegar ao campo, a
primeira tarefa que realizamos foi enxotar do mesmo os animais da C.
Viação Paulista, que ali pastavam. Logo iniciávamos nosso jogo, que
transcorreu interessante, sendo que alguns companheiros Jogaram
mesmo de calças, por falta de uniforme adequado. Venceram os da S.
P. Railway, por 4 a 2, entre os quais eu formava, e que eram, na sua
maior parte, sócios do S. P. Athletic. Quando deixamos o campo já es-
tava assumido o compromisso de promovermos um segundo jogo,
sendo que a exclamação geral foi esta: “Que ótimo esporte, que jogui-
nho bom”. Outras partidas realizamos, mas na Chácara Dulley, on-
de finalmente acabamos incorporando o futebol ao clube S. P. A., que
foi o primeiro campeão brasileiro desse esporte. (Mazzoni, 1950,
p.19-20)
O fato é que a partir da metade da década de 1890, começam a se mul-
tiplicar registros de partidas de futebol e fundação de clubes que abrigavam sua
prática. Segundo Mazzoni, o primeiro deles, “brasileiro e para brasileiros”, dedi-
cado exclusivamente ao futebol foi a Associação Atlética Mackenzie College de
São Paulo, oficialmente fundada em 18 de agosto de 1898. No entanto, é certo
que o futebol era jogado naquele colégio desde os primeiros anos da década
de 1890. Além do São Paulo Athletic (que alinhava apenas jogadores ingleses
ou descendentes) e do Mackenzie (que admitia apenas alunos do colégio), na-
quela década foi fundado um terceiro time paulistano, pelo alemão Hans Nobi-
ling, que em sua terra natal atuara pelo E. C. Germania, da cidade de Hamburgo.
Este reunia comerciários amigos de Nobiling e treinava no terreno da Chácara
Dulley (o S. P. A. se transferira para um novo campo na Rua da Consolação).
Logo seriam disputados jogos entre estas três equipes. Em 1899, surge o Sport
Club Internacional fundado por amigos do Nobiling, que não concordando com
o nome do novo clube decidem fundar o Sport Club Germânia, que seria rebati-
126
zado como Esporte Clube Pinheiros, após a Segunda Guerra Mundial. Em 1900
foi fundado o Clube Atlético Paulistano, exclusivamente por brasileiros.
Esses cinco clubes pioneiros seriam os protagonistas do primeiro
Campeonato Paulista de Futebol, que terminou com São Paulo Athletic e Paulis-
tano empatados em número de pontos, o que ocasionaria um jogo desempate,
disputado em 26 de outubro de 1902. Essa partida foi realizada no campo do Ve-
lódromo Paulistano, que ficava na rua da Consolação entre as antigas ruas Flo-
risbela (hoje, Nestor Pestana), Martinho Prado e Olinda, e teria sido assistida por
cerca de 4.000 (quatro mil) pessoas, um público espantoso para a época. Mazzo-
ni (1950) reproduz trechos da descrição da partida publicada pelo jornal O Esta-
do de S. Paulo no dia seguinte à disputa, um dos primeiros textos jornalísticos a
respeito de um jogo de futebol no Brasil
26
.
O snr. Egydio de Souza Aranha sinal para o inicio da luta. João da
Costa Marquez, forward do Paulistano, é logo vítima dum desastre,
destroncando o braço. Coube ao Paulistano dar o 1.º Kik, porém com
tal infelicidade, que resultou um Córner. Após conquistada a bola pe-
los Ingleses que conduzem-na até a Linha de 11 Yards, é daí shootada
por Rubião. Boyers, do Athletico, consegue levá-la além da linha de
11 Yards, donde passa-a a Charles Müller, que com bello shoot, marca
o primeiro goal para o Athletico.
A luta torna-se, então, renhida de lado a lado. Após o 1.º goal é a bola
atirada fora do campo por um do Paulistano, cabendo à Biddel atirá-la
para dentro. Biddel, com grande perícia, entrega-a a Motandon, que
por sua vez passa-a à Charles Muller que, em extraordinario shoot ras-
teiro, marca o 2.º goal para o seu clube. Logo após momentos, é dado
o sinal de half time.
Depois dum pequeno descanço dá-se inicio ao 2.º tempo, com ataque
mais desenvolvido e forte do Paulistano. A bola volta para perto do
goal do Paulistano, donde é muitas vezes shootada pelos Inglezes e
rebatida por Jorge Miranda Filho.
Os forwards do Paulistano, em belos passes, levam-na até a linha de
11 Jards, donde é passada para Álvaro Rocha que, com magistral sho-
ot marca o 1. º goal para o seu clube.
Logo em seguida o referee signal de terminado o jogo, com a vitó-
ria do Athletico, cabendo-lhe a Taça de 1902. Após o jogo foi esta so-
lenemente entregue aos vencedores. Em brinde aos jogadores, é servi-
do champagne na Taça, onde todos beberam, e a bola que serviu du-
rante o match, foi banhada também no Champagne.
26
Reproduz-se fielmente o texto publicado por Mazzoni.
127
Do team Inglez que em geral jogou magistralmente bem, salientamos:
Jeffery, Charles Müller, os irmãos Alberto e George Kenworthy, He-
yeok Wulckerer e Boyers. Os rapazes do Paulistano jogaram optima-
mente e salientamos: Olavo de Barros, A. Rocha, Ibanez Salles, Rena-
to G. Rubião, Thiers e Jorge Miranda Filho.
Eis os quadros: São Paulo Athletic W. Jeffery, G. Kenworthy e A.
Kenworthy; Biddel, Wucherer e Heyeock; Boyers, Brough, C. Muller,
Motandon e Blacklock. Club Athletico Paulistano J. Miranda Filho
(Tutú), Thiers e G. Rubião; E. Baros, Olavo e Renato; B. Cerqueira, J.
Marques, A. Rocha, Ibanez e O. Márquez. (p. 31-32)
Interessante notar que há nesse texto diversos elementos que ainda ho-
je fazem parte da linguagem dos jornais esportivos em relação à descrição de
jogos de futebol, como detalhamento de lances importantes e decisivos da parti-
da, destaque dos melhores jogadores em campo e a inserção no final da narrativa
da escalação dos times, com a indicação dos atletas que entraram no transcorrer
do jogo entre parênteses logo à frente do substituído. Os estrangeirismos e o a-
portuguesamento das palavras inglesas marcariam definitivamente a linguagem
do jornalismo esportivo e do próprio futebol, como foi amplamente estudado
por diversos pesquisadores, entre eles Fernández (1974, p. 74-80).
Apesar de ter atingido maior desenvolvimento e popularidade na capi-
tal paulista, o futebol no final do século XIX e início do XX já se propagava por
outras cidades do estado bandeirante e unidades federativas. Mazzoni registra
três clubes no Rio de Janeiro, em 1900, um em Niterói e dois no então Distrito
Federal, mas observa que apenas dois deles estariam “verdadeiramente aptos à
prática do jogo” (p. 24), estes seriam o Rio Cricket, sediado em Icaraí, e o outro
“constituído de elementos nacionais, que o denominavam de Fluminense ‘Te-
am’” (p. 24). O terceiro clube Mazzoni não cita o nome. Pode ser o Bangu Atlé-
tico Clube, que o elitista historiador “esquece” em sua obra.
A história do Bangu, o primeiro clube fundado por operários no país, é
mais um confronto à “tese Miller”, conforme os trechos abaixo, extraídos do site
oficial do clube:
128
Oficialmente, o Bangu Atlético Clube foi fundado em 17 de abril de 1904, porém, ativi-
dades esportivas em geral e futebol em particular eram práticas conhecidas no
bairro desde o século XIX. (...) Na capital da República, Rio de Janeiro, também se co-
meçou a jogar futebol no século passado, obra dos ingleses importados pelas fábricas de
tecidos e pelos setores de ferrovias e energia elétrica. Em Bangu, os primeiros técnicos
têxteis britânicos chegaram no ano de 1891, dois anos depois do início da construção do
prédio da Fábrica e dois anos antes de sua inauguração. Era um número reduzido, que não
iria ficar permanentemente em Bangu, vieram apenas para a instalação das primeiras má-
quinas. O segundo grupo chegou no final do ano de 1892, vindos de Manchester e Sou-
thampton, onde haviam fábricas têxteis nos moldes da que viria a existir em Bangu. (...)
Segundo consta, foram esses ingleses que introduziram as atividades esportivas no bairro.
Os ingleses utilizavam uma forma de organizar o trabalho nas fábricas que é muito co-
mum até os dias de hoje: trabalhava-se seis dias por semana e havia folga no domingo.
Cada imigrante utilizava esta folga como desejava. Os italianos realizavam festas com
cantorias após o almoço, os portugueses cultivavam a religião e os ingleses voltavam-se
para os esportes.
No ano de 1893 foram contratados quatro técnicos da firma inglesa Plat Brothers and Co.
de Southampton, eram eles: Thomas Hellowell, Andrew Procter, William French e Tho-
mas Donohoe, este último escocês. (...) Desses quatro técnicos, todos com passagens pelo
Southampton Football Club, o que mais amava o esporte era Thomas Donohoe. O escocês
que logo cedo descobriu uma oportunidade de trabalho na Inglaterra e que tinha quase 2
metros de altura era um sportman nato. Depois de estar bem assentado em sua residência
e conhecer melhor os outros trabalhadores da Fábrica, Donohoe descobriu que não se pra-
ticavam esportes por aqui. (...) Football era algo desconhecido para os brasileiros. Os téc-
nicos ingleses mais antigos o conheciam, porém nunca o haviam praticado em terras tro-
picais. Foi neste momento que o Sr. Donohoe se deu conta do engano que cometera. A-
chou desnecessário trazer uma bola de futebol para o Brasil, pois acreditava que o esporte
era popular por aqui. Na viagem de navio, Donohoe dizia que iria jogar com os estu-
dantes das escolas superiores de Bangu e que logo ao chegar iria se associar a um clube
local. (...) Para decepção de Donohoe, não havia football em Bangu e muito menos esco-
las superiores ou clubes.
(...) Mas a frustração inicial de Donohoe teria um fim. Ainda no ano de 1893, o Sr. Henry
Bennet iria à Inglaterra adquirir peças de reposição, máquinas e outros equipamentos in-
dustriais. Era a chance que Thomas pedira para fazer uma encomenda especial ao impor-
tador. Precisava de uma bola urgentemente, com agulha para enchê-la e um livro de re-
gras para ensinar aos brasileiros. Feita a encomenda, Donohoe esperou longos meses até o
regresso do Sr. Bennet. Neste tempo a empolgação de Thomas crescera enormemente.
Conversava com os outros ingleses, convidava os amigos para participarem do primeiro
jogo assim que a bola chegasse. Quando o Sr. Bennet regressou de viagem, uma notícia
partiu o coração de Donohoe: o amigo esquecera a encomenda no quarto do hotel onde fi-
cara hospedado em Londres. (...) Porém, no ano seguinte, 1894, Thomas Donohoe tanto
insistiu com os grandes diretores da Fábrica, que estes permitiram sua ida à trabalho para
a compra de material na Inglaterra. O tesoureiro da Companhia, o Sr. Manoel Moreira da
Fonseca, certamente pensou que Donohoe estava morrendo de saudades de sua terra e
liberou o técnico do serviço por três meses, além de pagar todas as suas despesas de via-
gem. De volta à Inglaterra, Donohoe visitou amigos, contou da sua vida no Brasil, buscou
as encomendas da Fábrica, e obviamente pôde finalmente comprar a sua pelota de couro,
com o dinheiro que sobrara da verba dada pelo Sr. Fonseca.
Todo o equipamento industrial da Fábrica vinha em enormes caixas de madeira. Dentro
de uma dessas, o Sr. Donohoe colocou bem camuflado um pacote contendo uma bola de
couro novinha, uma bomba para enchê-la e alguns pares de chuteiras. Ao regressar, em
abril de 1894, foi abrir a caixa, retirar a encomenda e dar o pontapé inicial para o de-
senvolvimento do esporte em Bangu.
O intrépido futebolista falou de sua nova aquisição e marcou para o próximo dia de folga
uma partida entre todos os técnicos ingleses que trabalhavam na Fábrica. Distribuiu al-
129
gumas chuteiras para os amigos mais próximos e mostrou a sua preciosidade, que estava
guardada na cristaleira de sua casa. A bola, sem dúvida a primeira existente no Brasil, era
um verdadeiro troféu, que ele teve que suar muito para conquistar.
No domingo pela manhã, era possível ver o Sr. Donohoe arrumando uma área livre (o
que era fácil de encontrar nas proximidades da Fábrica), de preferência bem nivelada (is-
so era um pouco mais difícil) e fincando quatro estacas, duas de cada lado da várzea,
formando assim as traves. Quem passasse pelo local naquela manhã poderia imaginar que
o escocês estivesse tentando construir alguma coisa. À tarde, porém, devem ter pensado
que todos os técnicos enlouqueceram. Donohoe chamou de casa em casa todos os seus
companheiros dos tempos de Southampton e por volta das três horas da tarde, um grupo
reduzido, composto de aproximadamente dez homens apareceu nas proximidades do ter-
reno para estrearem a bola nova e matarem a saudade do tão salutar jogo que eles haviam
deixado para trás na Inglaterra.
Cada time jogou com apenas 5 players, mas foi o suficiente para garantirem a diversão.
Com o tempo, um maior número de pessoas se interessariam e neste momento poderia ser
realizada uma partida com dois elevens. Mas para Donohoe isso pouco importava, o fato
principal é que ele havia matado as suas saudades do football e conseguido realizar a sua
primeira partida. Não houve preocupação com o uniforme, com as anotações dos gols
marcados, com a cronometragem eo pouco se pensou em anotar o nome dos jogadores,
o importante era matar a fome de bola. Por esta falta de dados palpáveis é que se prefere
creditar a Charles Miller a introdução do futebol no Brasil em outubro de 1894 e a reali-
zação da primeira partida, em abril de 1895, um ano após o jogo do Sr. Donohoe.
(...) Charles Miller, paulista nascido no bairro do Brás em 1874, que foi estudar na Ingla-
terra, na Banister Court School, de Southampton, provavelmente jogou com Thomas Do-
nohoe por lá, é hoje considerado, erroneamente, o introdutor do futebol no Brasil. As jus-
tificativas para o mérito ter ido para Miller e não para Donohoe acabam sendo óbvias: era
mais interessante que o homem que trouxe o futebol para o Brasil fosse um brasileiro do
que um escocês. Além disso, Miller realizou suas partidas no centro de São Paulo, à vista
de todos. Enquanto que Donohoe disputou seus matches no distante Bangu, que ficava a
duas horas de trem do Centro do Rio, fazendo com que apenas os moradores do local to-
massem conhecimento do seu pioneirismo.
Nem mesmo no Rio de Janeiro, a paternidade de Donohoe é reconhecida. Concede-se a
honra de trazer a primeira bola para o Estado ao suíço Oscar Cox, no ano de 1897, três
anos depois do verdadeiro pioneiro.
No longínquo 1897, enquanto o Sr. Oscar Cox desfilava do bairro das Laranjeiras ao Cen-
tro exibindo sua bola, em Bangu a paixão pelo jogo era tanta que mais duas outras ha-
viam sido trazidas da Inglaterra, em mais uma encomenda do Sr. Donohoe. Foi neste ano
também que o incansável escocês juntou um punhado de companheiros do Reino Unido,
para pedirem a ajuda da Fábrica na fundação de um clube, nos moldes dos existentes em
seu país. Foram vetados pelo Secretário da Companhia, o Sr. Eduardo Gomes Ferreira,
que se declarou inimigo de qualquer espécie de jogo, principalmente o football.
As idéias voltadas a atividades atléticas eram, na época, confundidas com jogos de azar.
Pensavam que o futebol iria viciar os funcionários da Fábrica e que traria problemas para
a administração. Além disso, quem quisesse lazer que procurasse a Sociedade Musical
Progresso de Bangu e a Banda de Música dos Operários da Fábrica, que organizavam
seus bailes constantemente. Por todos estes motivos, a idéia de fundação de um clube foi
recusada. imaginou se os funcionários resolvessem faltar ao trabalho para ficarem no
clube chutando uma bola?
Poderíamos ter sido o primeiro clube fundado no país que teria o futebol como esporte
principal. Atravessamos para o século XX, e a paixão pelos esportes aumentava, princi-
palmente entre os brasileiros. Além de assistirem as disputas dos ingleses, os brasileiros
viam a alegria do novo gênero. Se antes os nacionais pouco sabiam do futebol, agora já se
entusiasmavam em assistir os matches, e inclusive participar deles. Jogava-se nos grandes
terrenos existentes em Bangu, nos enormes espaços que o recente desenvolvimento ainda
não havia ocupado. Bangu era portanto o primeiro lugar no Brasil que aceitou esta mistu-
130
ra no futebol. Como não havia ingleses suficientes para montar dois times, os operários
da Fábrica acabaram sendo enturmados pelos técnicos para a realização de partidas deste
sport.
Por volta de 1901, os praticantes dos esportes ganharam um espaço exclusivo para dispu-
tarem suas partidas. Por determinação conjunta do Srs. Manoel Antônio da Costa Pereira
e João Ferrer ficou decidido que a Companhia Progresso Industrial do Brasil cederia uma
área localizada bem ao lado direito das salas de trabalho então existentes para a constru-
ção de um campo provisório. Este field situado dentro da Fábrica Bangu existiu até 1905,
sendo disputadas muitas partidas com bastante audiência.
Em 1903, o Sr. Thomas Donohoe, como prêmio por completar dez anos de sua chegada
ao Brasil para trabalhar como técnico da fábrica, ganhou da Companhia uma viagem a
passeio para a Inglaterra com direito de levar sua família. Em dezembro deste ano, retor-
nando da viagem, Seu Danau, como era chamado pelos operários da Fábrica, trouxe
mais duas bolas de football.
Conta a história que após desembarcar na Praça Mauá, o Sr. Donohoe seguiu aa Estra-
da de Ferro com sua família e todas as bagagens numa carroça, e da Estação da Praça da
República tomou o trem para Bangu. Causou surpresa aos viajantes quando retirou da
bolsa aquele pedaço de couro, com costuras expostas nos gomos, e com a ajuda de uma
bomba de ar, encheu a bexiga dentro do vagão, começando a quicá-la. Duas horas depois,
desceu com a pelota em baixo do braço, como não podia deixar de ser. Esta é a história
original do nascimento do futebol no Brasil e de seu mais ferrenho incentivador. (Fonte:
Departamento de Patrimônio Histórico do Bangu Atlético Clube, disponível em
<http://www.bangu.net/v04/clube/historia_02.php>)
Apesar do pioneirismo, o Bangu Atlético Clube seria fundado oficial-
mente apenas em 1904, dois anos depois do Fluminense Futebol Clube, reco-
nhecido como o time mais antigo do Rio de Janeiro e também como o mais legí-
timo representante da elite carioca, o que contribui para que a maioria dos histo-
riadores do futebol brasileiro o reconheça a saga do senhor Donohoe. Mas os
historiadores do Bangu também advogam em causa própria. outros indicati-
vos de que o futebol chegou por aqui em contextos mais amplos do que trazido
por um ou outro personagem.
Segundo Melo (2000, p.19), além do citado colégio São Luís, de I-
tu, outras instituições de ensino adotaram a prática do futebol antes de Miller e
mesmo Donohoe importarem bolas, chuteiras e uniformes. Também o Colégio
Anchieta, em Nova Friburgo (RJ), logo após sua fundação em 1886, valorizava
os exercícios físicos entre os alunos e incluía o futebol entre eles. O autor cita
ainda o seguinte item do regulamento de 1892 do Colégio Pedro II, renomeado
Ginásio Nacional, após a Proclamação da República:
131
O diretor e o vice-diretor do Ginásio procurarão desenvolver em seus
alunos o gosto pelos exercícios de tiro ao alvo, de besta, tiro e flecha,
exercícios ginásticos livres, saltos, jogo de volante, etc. (...) São per-
mitidos como jogos escolares: a barra, a amarela, o futebol, a peteca,
o jogo de bola, o cricket, o lawn-tennis, o chroché, corridas, saltos e
outros, que a juízo do diretor, concorram para desenvolver a força e a
destreza dos alunos, sem pôr em risco sua saúde. (Melo, 2000, p. 19)
Um outro fator que contribuiu para a popularização do futebol foi a
expansão da ferrovia. Conforme os trilhos iam adentrando o interior do país, nú-
cleos habitacionais iam surgindo e os costumes urbanos os acompanhavam. A
quantidade de clubes surgidos em virtude da expansão ferroviária é enorme,
muitos inclusive receberam nomes associados ao fenômeno, como o E. C. Noro-
este , de Bauru, e a A. A. Ferroviária, de Araraquara. Não havia muitos fun-
cionários de origem inglesa nas companhias que conheciam o futebol, como
outros brasileiros que tiveram contato com o esporte nas capitais. Assim, ferro-
via e futebol caminharam de mãos dadas como fatores de integração, enquanto
um ligava fisicamente regiões, outro promovia a integração cultural entre as po-
pulações. As companhias de navegação também se encaixam nesse raciocínio,
levando o futebol às cidades portuárias, como Belém, no Pará, onde em 1906
foi criada a Pará Football League. A capital paraense abrigava na transição do
século XIX para o XX diversas filiais de companhias inglesas, o que pode sus-
tentar a tese de que o futebol foi introduzido pela mesma via de diversas ou-
tras localidades. Além disso, naquela época a integração nacional era bastante
precária e os paraenses devem ter demorado muito tempo para ouvir falar de
Charles Miller, Alfred Cox ou Thomas Donohoe.
Embora possam ser consideradas como “berço do desenvolvimento do
futebol”, não é nas capitais paulista e carioca que estão os clubes mais antigos
em atividade no Brasil. Um é o gaúcho Sport Club Rio Grande, fundado em 14
de julho de 1900, e o outro, a Associação Atlética Ponte Preta, de Campinas, a
11 de agosto daquele mesmo ano. Apesar das datas, é certo que esses clubes não
foram fundados primeiro para depois se jogar o futebol. Em Campinas haveria a
132
prática do futebol desde 1897, no antigo Colégio Culto à Ciência e também no
bairro da Ponte Preta, onde “a maioria das vezes o futebol era praticado com bo-
la feita de pano e, de quando em quando, para gáudio dos neofutebolistas, apare-
cia uma bola de camara de ar, adquirida com o produto de coleta entre os mo-
ços” (Mazzoni, 1950, p. 25), fato que indica não serem os praticantes membros
da elite, pois se assim o fossem, certamente mandariam importar bolas mais a-
propriadas. Já o Rio Grande, a exemplo dos primeiros clubes paulistas, tinha em
seus quadros apenas alemães e descendentes e consta que a ata de sua fundação
foi redigida em língua germânica. Ainda em 1900 registra-se a fundação do
Sport Club Savoia (atual Clube Atlético Votorantim), na cidade de Sorocaba e
sobre o qual quase não há informações.
Na primeira década do século XX, os clubes de futebol se multiplica-
ram por todo o país. Em São Paulo, o campeonato paulista era realizado regu-
larmente a cada ano com novos times. No Rio Grande do Sul, em 1903 já existi-
am pelo menos seis clubes dedicados exclusivamente ao futebol. Aliás, neste
estado o desenvolvimento do futebol tem uma história à parte e pouco citada
pelos historiadores tradicionais do futebol nacional, uma vez que nas regiões
fronteiriças com o Uruguai e a Argentina países em que o futebol chegou e se
disseminou mais cedo que no Brasil o esporte se popularizou muito rapida-
mente e alheio ao que se passava no restante do país. Na Bahia, em 1905, é rea-
lizado um campeonato estadual com quatro times, apesar de haver naquele
estado pelo menos 11 equipes jogando regularmente, o que indica uma anterio-
ridade na introdução do futebol também na região nordeste sem qualquer ligação
com os “pioneiros” paulistas e cariocas.
Também no início do século são fundadas as primeiras entidades diri-
gentes, sendo a Liga Paulista de Futebol a primeira, em 1901. Depois, em 1905,
nascem a Liga Metropolitana de Football, no Rio de Janeiro, e a Liga de Futebol
da Bahia. Logo os jogos entre paulistas e cariocas se tornaram comuns e, em
1903, no campo da Pólvora, em Salvador (BA), é disputada a primeira partida
133
internacional em solo brasileiro, entre um combinado baiano e um time formado
por oficiais norte-americanos embarcados em um navio que fazia escala no por-
to da capital baiana. A partida foi vencida pelos brasileiros por 2 a 0, no dia 30
de agosto de 1900, com gols marcados por Artur Morais e Tarquínio.
Em relação à seleção brasileira de futebol, até 1913 não houve um ti-
me nacional propriamente dito, apenas combinados paulistas ou cariocas que
representavam o país em jogos amistosos geralmente contra times em excursão
pela América do Sul. Assim, uma seleção paulista representou o Brasil em um
amistoso contra a África do Sul, em 31 de julho de 1906, disputado no campo do
Velódromo em São Paulo e vencido pelos visitantes por 6 a 0. Dois anos mais
tarde, em 9 de julho, no estádio das Laranjeiras, pertencente ao Fluminense FC,
um combinado carioca foi derrotado por um argentino pelo placar de 3 a 2. A
primeira seleção brasileira oficial a entrar em campo era na verdade um combi-
nado paulista e carioca que disputou um amistoso contra o Exeter City da Ingla-
terra, em 21 de julho de 1914, no estádio das Laranjeiras. A equipe brasileira
venceu por 2 a 0. Neste mesmo ano o selecionado nacional disputou sua primei-
ra partida fora das fronteiras, contra a Argentina, em Buenos Aires, onde foi der-
rotada por 3 a 0, porém, na mesma excursão ganhou seu primeiro título interna-
cional: a Copa Roca, em jogo único contra um selecionado argentino dissidente
da AFA Associación de Futból Argentino. Mas o primeiro título de um sele-
cionado brasileiro viria a ser conquistado em 29 de maio de 1919, quando o
país sagrou-se campeão sul-americano com uma vitória por 1 a 0 diante do Uru-
guai, no Rio de Janeiro.
Além da questão elitista, também o racismo foi um elemento marcante
nos primórdios do futebol brasileiro. Numa sociedade em que o negro era aber-
tamente segregado, os primeiros jogadores afro-descendentes puderam atuar
oficialmente após cerca de quinze anos da introdução do futebol no país. Até
1918, os negros eram oficialmente proibidos de jogar pela Federação Brasileira
de Sports, precursora da atual CBF Confederação Brasileira de Futebol. No
134
entanto, isso não significa que não jogassem, apenas não podiam disputar com-
petições oficiais ou serem convocados para seleções brasileiras. Curiosamente, o
Brasil ganhou seu primeiro título internacional em 1919, quando passou a contar
com atletas negros e o gol da conquista foi anotado por Arthur Friedenreich, jo-
gador que tinha o sobrenome do pai teuto-brasileiro e a cor da pele da mãe ne-
gra
27
.
No século XIX, quando o futebol começou a ser implantado no Brasil,
os divertimentos públicos no país eram restritos às festas religiosas e cívicas;
espetáculos teatrais, de dança e canto eram exclusivos da aristocracia. A influ-
ência estrangeira na convivência social era bastante acentuada e logo hábitos
europeus começaram a transpor o Atlântico, entre eles as práticas esportivas que
então começavam a ganhar importância no Velho Mundo não apenas como ati-
vidade de lazer, mas também de educação e higiene pessoal. Assim, o esporte
organizado teria surgido no Brasil como elemento importado e restrito às classes
mais altas. É bom lembrar que a sociedade brasileira, antes da proclamação da
República, era dividida verticalmente em três estratos sociais. No topo estavam
os brancos ricos, fazendeiros, pessoas com alguma ligação com a corte imperial
e empresários (geralmente europeus) do comércio e da incipiente indústria. A
classe intermediária era composta por empregados, burocratas subalternos e pe-
quenos comerciantes. Na base, os escravos e mestiços pobres. Após a Proclama-
ção da República e da Abolição este quadro se alterou um pouco, principalmente
pela chegada de milhares de imigrantes para trabalhar nas lavouras em substitui-
ção à massa escrava, engrossando a classe intermediária, enquanto os negros
libertos foram colocados à margem da sociedade constituindo uma nova classe
junto com mestiços: a dos miseráveis. No topo, quase nada mudou, a não ser
pelo incremento do poder de fazendeiros.
27
Apesar da discriminação oficial, Friedenreich começou sua carreira em 1914, no elitista Germânia, de São
Paulo, o que demonstra que a discriminação era mais classista que propriamente racista. Ou seja, se o indivíduo
pertencesse a uma família rica, era aceito, embora com restrições, mesmo que tivesse a pele escura.
135
Assim, não é de se admirar que o futebol quando começou a ser joga-
do por aqui ficasse restrito aos círculos mais aristocráticos, entretanto, nos cen-
tros urbanos, graças à imigração e a exemplo do que acontecera na Europa, de-
pois dos primeiros passos espalhou-se como fogo por todo o país, geralmente
envolvendo jovens das classes altas.
O futebol brasileiro popularizou-se durante os seus anos formativos
porque complementava a expansiva disposição urbana. De região a
região, forneceu-se uma linguagem de experiências comuns a uma po-
pulação cada vez mais móvel, carente de símbolos nacionais. O come-
ço do século vinte foi, para o Brasil, uma época de estímulos culturais
e intelectuais acelerados, tipificada pelo que se denominou de “fenô-
meno dos congressos”, reuniões entre as elites para trocar informações
a todos os níveis, desde municipalidades intra-estaduais até o contato
internacional. O futebol encaixou-se neste quadro. Aos torcedores, o-
ferecia-se a fidelidade do grupo, escape emocional, e um conhecimen-
to técnico que se poderia dominar sem escola ou linguagem distinta.
(Levine, 1982, p.26)
Embora a maioria dos historiadores ignore sistematicamente, o fenô-
meno não passou despercebido nas classes mais baixas, que logo começariam a
praticar a modalidade com mais habilidade, repetindo o que se passara na Ingla-
terra, quando os operários começaram a formar seus times e superar as equipes
formadas nos colégios aristocráticos. Ainda que as elites não aprovassem, o fu-
tebol não demorou a ser “apropriado” pela ralé, que passou a produzir os melho-
res jogadores. Já na década de 1920, os clubes viviam um dilema: de um lado os
sócios e incentivadores cobravam resultados, de outro não aceitavam mulatos,
negros e mesmo brancos pertencentes às classes baixas, entretanto, os melhores
jogadores eram exatamente oriundos desses estratos sociais. O grande golpe na
elitização do futebol aconteceu em 1923, quando o Clube de Regatas Vasco da
Gama, com sete anos de existência e nenhuma conquista resolveu recrutar a-
tletas da zona norte e colocou em campo um time com um negro, dois mulatos e
oito brancos analfabetos. Com isso, ganhou o Campeonato do Rio de Janeiro
duas vezes seguidas, o que obrigou os demais times a aderirem a uma política
136
mais liberalizada em relação à classe e raça dos jogadores. Contudo, segundo
Mário Rodrigues Filho, em seu O negro no futebol brasileiro, de 1947, os diri-
gentes vascaínos diziam abertamente que “entre um preto e um branco, os dois
jogando a mesma coisa, o Vasco fica com o branco. O preto é para a necessida-
de, para ajudar o Vasco a vencer”.
Antes disso, porém, alguns clubes mais populares, criados por operá-
rios ou pequenos comerciantes já faziam sucesso, como o Bangu (primeiro clube
brasileiro a escalar um negro) e a Ponte Preta, já citados anteriormente, ou o Co-
rinthians, criado em São Paulo, em 1910. Em Porto Alegre, em 1909, o Sport
Club Internacional foi criado por dois pequenos comerciantes rejeitados pelos
elitistas clubes locais, por serem migrantes paulistas “pouco conhecidos”, pas-
sando a agregar em suas fileiras operários e demais barrados. É na história do
Internacional
28
, que surge mais dados que permitem inferir a existência de capí-
tulos ainda não devidamente registrados e pouco documentados da história do
futebol como esporte praticado também pelas classes menos privilegiadas: “a
partir da década de 20, o Inter abriria a sua sede e daria lugar no seu time aos
jogadores que pertenciam às muitas ligas que organizavam competições entre
clubes representativos de negros (a famosa Liga da Canela Preta, por exemplo),
de funcionários públicos, de funcionários do comércio e de estivadores”.
O futebol como fenômeno capaz de refletir aspectos socioculturais das
comunidades que o praticam não deixou escapar o racismo da sociedade brasi-
leira, mas também registra episódios em que os brasileiros foram discriminados
em outros países. Em 6 de outubro de 1920, o selecionado nacional disputou
uma partida amistosa contra a Argentina em que a intolerância racial dos adver-
sários ficou patente. Em protesto contra um jornal argentino que publicara um
desenho da seleção brasileira em que os jogadores foram caracterizados como
macacos, alguns atletas se recusaram a entrar em campo e a partida foi iniciada
com a equipe brasileira integrada por apenas sete jogadores brasileiros e com-
28
Disponível em < http://www.internacional.com.br/>, acesso em 26 de março de 2005
137
pletada com quatro jogadores argentinos. O público local presente ao jogo pro-
testou contra os reforços argentinos no time brasileiro e o jogo acabou sendo
iniciado com apenas sete jogadores de cada lado.
Outro indicativo de que o futebol, em seus primeiros anos e ainda
que majoritariamente praticado pelas elites, também estava nas classes popu-
lares é do próprio Mazzoni (1950, p. 39):
No entanto, em São Paulo, em outubro de 1903, já existiam vários
clubes de arrabaldes, ou seja, os chamados “varzeanos”, publicando o
“Fanfulla” no dia 4 de outubro daquele ano uma notícia onde se lia:
“Hoje haverá matchs no campo da Parada do trem da Cantareira, entre
os times da A. A. Cruzeiro Paulista e A. A. Santos Dumont, e no cam-
po diocesano entre os times do S. C. Silvio de Almeida e S. C. Guara-
ni.” (p. 39)
Mazzoni se mostra mais uma vez um historiador competente no levan-
tamento de dados, mas escapa-lhe o fato de que em 1903 não havia profissiona-
lismo, assim, tanto o São Paulo Athletic de Charles Miller, como os desconheci-
dos clubes citados pela Fanfulla, eram na verdade “varzeanos”, termo que, já em
1950, época da publicação de sua obra, distinguia times não-profissionais. O
jornal Fanfulla foi um dos pioneiros na cobertura esportiva, tratava-se de perió-
dico dedicado à colônia italiana em São Paulo e, por isso, não era lido pelas eli-
tes
29
. Segundo Coelho (2003, p. 8) o jornal trazia relatos de página inteira num
tempo em que esse esporte [o futebol] ainda não cativava multidões”. Em 1880
o futebol era bastante desenvolvido na Itália, onde os colégios de jesuítas
permitiam sua prática, o que faz supor que imigrantes daquele país possam ter
trazido conhecimentos e o gosto pelo esporte.
Esses e outros dados, que certamente poderiam ter sido levantados
numa pesquisa específica sobre a prática do futebol fora dos círculos aristocráti-
cos no Brasil do final do século XIX e início do XX, indicam que há ainda as-
pectos históricos do futebol a serem explorados. Certamente, assim como na Eu-
29
Uma curiosidade sobre este jornal é que foi a partir de um anúncio nele publicado que surgiu o Palestra Itália,
time que depois mudaria de nome para Sociedade Esportiva Palmeiras, um dos principais clubes brasileiros da
atualidade
138
ropa, o futebol em seus primórdios foi mais praticado pelos filhos das elites bra-
sileiras, entretanto, assumiu as dimensões de fenômeno sociocultural mais am-
plo através de sua popularização entre todas as classes sociais, para o quê, fato-
res como a possibilidade de ser praticado sem a necessidade de muitos equipa-
mentos (basta uma bola, ou algo parecido, feita de qualquer material) muito con-
tribuiu. A atuação da imprensa também foi decisiva nesse processo, como se
verá no próximo item.
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Calculem os senhores que quando efetuamos o primeiro jogo
interestadual solicitei dos jornais de então que dessem curso
à notícia do prélio realizado. Pois a resposta do “O Estado
de São Paulo”, “A Platéia” e “Diário Popular” foi uma só:
“Não nos interessa semelhante assunto”.
(Charles Miller, in: MAZZONI, 1950, p. 19)
Apesar das afirmações da epígrafe acima, é difícil imaginar que a im-
prensa brasileira não tenha tido interesse pelo futebol em sua fase de implanta-
ção. A primeira partida entre paulistas e cariocas foi realizada em 1901 e o jor-
nal O Estado de São Paulo já mantinha uma seção denominada Sport, que desde
1900 divulgava informações sobre jogos de futebol na capital paulista. Além das
atas de fundação de clubes, é nos jornais que se encontram a maior parte dos da-
dos para a compilação de uma história do futebol. No entanto, ainda não uma
historiografia específica e completa da imprensa esportiva brasileira
30
, apenas
referências nos muitos trabalhos sobre o futebol ou sobre a imprensa brasileira.
Sabe-se que mesmo antes de o futebol ter aportado no Brasil, a im-
prensa nacional demonstrava interesse por notícias relacionadas às práticas es-
portivas. Segundo Garrido (1999), as primeiras notícias desse tipo foram publi-
cadas já nos meados do século XIX sobre corridas de cavalo e remo, embora tais
30
Trabalho neste sentido está sendo desenvolvido pela professora Vera Regina Toledo Carmargo, pesquisadora
do LABJOR/UNICAMP e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Mídia Esportiva da INTERCOM - Socieda-
de Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.
139
inserções fossem esporádicas. Até mesmo alguns periódicos especializados cir-
cularam pelo Rio de Janeiro como O Atleta (1856), O Sportman e o O Sport
(1887). Já na última década do século, jornais como O Estado de S. Paulo, O
Paiz, Correio da Manhã e Jornal do Brasil mantinham seções especializadas e
passaram a publicar notícias sobre esporte com maior freqüência. Se não de-
monstravam interesse especial pelo futebol, esses jornais não o ignoravam. A
edição de 10 de junho de 1902 de O Estado de São Paulo descrevia em detalhes
uma partida de futebol entre os times do Sport Club Internacional e do São Pau-
lo Athletic Club.
“SPORT
Sétimo match
Campeonato de 1902
Como hontem havíamos prometido, damos abaixo algumas peripécias
de interessante match realizado ante-hontem entre os clubs Sport Club
Internacional e S. Paulo Athletic Club.
Seriam 3’ horas da tarde, mais ou menos, quando o referee, sr. Lamont
deu o signal de começar o jogo. Ao São Paulo Athletic coube dar o
primeiro pontapé na bola, o que fez com bastante calma e com bons
passes, conseguindo assim ficar bem próximo do goal do Internacio-
nal, mas não poude marcar o goal por ter o goal-keeper rebatido muito
bem o schoot, que atirou a bola para o centro do campo. Os forwards
do Athletic-Club, conquistando novamente a bola, conseguiram, de-
pois de uma grande resistência, atravessar as linhas de forwards, half-
backs e full-backs do Internacional, e um admirável schoot marcou o
primeiro goal para o São Paulo Athletic. (...)
Pelo referee é dado o signal de terminado o tempo, obtendo o São
Paulo Athletic Club a esplêndida vitória de três goals a 0. O jogo do
Athletic é incontestavelmente bom nos admiráveis passes e na sua
firmeza dos schoots contra o goal. Quanto ao jogo do Internacional é
também bom no jogo de passes, porém lhe falta o schoot contra o
goal, único defeito que encontramos no seu jogo.
Do Internacional os que mais se salientaram foram: os srs. Jorge Mes-
quita, que mais uma vez vem confirmar seu vasto conhecimento e fir-
meza neste jogo, Duarte Azevedo, Geraldo Toledo, A. Costa e W.
Holland. Do team do Athletic os que jogaram bem foram: os srs. C.
Miller, Boyes, Unwuin e Jeffery. O sr. Lamont, como referee agradou
uns e descontentou a outros, parecendo porém, que suas decisões não
foram justas, foram sinceras”. (ARQUIVO EM IMAGENS, s/d, p.28-
29)
140
Sete dias depois, o mesmo jornal publicava um quadro estatístico do
Campeonato Paulista daquele ano o primeiro da história – em que aparecem o
número de vitórias e derrotas de cada equipe, bem como a quantidade de gols
marcados e sofridos e os pontos obtidos, exatamente como se faz hoje. Os textos
sobre jogos de futebol não sofreram grandes mudanças ao longo do século que
se passou, apesar de se ter perdido a ingenuidade, ainda se descrevem os jogos
lance a lance e são tecidos comentários sobre as atuações individuais dos atletas.
Algumas mudanças podem ser notadas, como o aportuguesamento dos termos -
do exemplo acima, é possível citar schoot, back e goal, que se tornaram chute,
beque e gol, respectivamente -, com os estrangeirismos sendo substituídos até
não mais serem empregados, ou ainda a inserção de entrevistas e opiniões de
atletas e treinadores sobre as partidas.
Com o aumento do número de times e a realização de campeonatos
com maior regularidade, os jornais passaram também a dar mais espaço ao tema,
entretanto, pelo menos até a metade da cada de 1920, o futebol não teria sido
manchete de primeira página em nenhum jornal brasileiro. Publicações dedica-
das aos esportes também eram esporádicas e quando surgiam não duravam por
muito tempo. É interessante notar que apesar da enorme popularidade, na im-
prensa brasileira são poucos os exemplos de sucesso de publicações dedicadas
exclusivamente ao tema que, salvo exceções, tiveram vida efêmera. Os casos
excepcionais são os jornais A Gazeta Esportiva e o Jornal dos Sports e a revista
Placar. o primeiro começou a circular em 1924 na cidade de São Paulo como
encarte de A Gazeta e deixou de ser publicado em 1999, o segundo, iniciou
sua história em 1931 no Rio de Janeiro e com breves períodos de paralisação
sobrevive até hoje. A revista Placar, lançada em 1970, circulou regularmente até
a Copa do Mundo de 1990, depois passou a ser editada em números especiais e
temáticos, apenas para manter viva a marca de força reconhecida, porém, defici-
tária, segundo a Editora Abril. Em 1995, a Placar com alterações de formato e
foco adotou o slogan “futebol, sexo e rock’n’roll”, que se mostraria um fra-
141
casso voltou ser publicada semanalmente durante cerca de três anos, quando
novamente passou a ter periodicidade indefinida (em 2001 voltou a ser semanal
e, em 2002, retomou a periodicidade irregular). São muitas as publicações espe-
cializadas em esportes ou especificamente em futebol lançadas e que deixaram
de circular no Brasil nos últimos cem anos e, como citado, trata-se de uma
história ainda a ser relatada. Atualmente, o diário Lance! é a publicação mais
importante do país nesse segmento e tem demonstrado vitalidade.
Mas a importância do jornalismo para a expansão do futebol não pode
ser resumida à quantidade de textos e à divulgação dos jogos e campeonatos,
além disso, pesa o fato de que a maioria da população do país no início do sécu-
lo era analfabeta. Especialmente a partir da metade da década de 1910, quando a
seleção brasileira de futebol começou a disputar competições internacionais e os
clubes a arrebanhar cada vez mais seguidores, a opinião da imprensa começou a
influenciar nas decisões dos dirigentes esportivos. A convocação de jogadores
para defender o país começou a passar pelo crivo da análise de jornalistas, bem
como as atuações dos times nos campeonatos. A participação da imprensa em
episódios como a aceitação de negros nos times e no selecionado nacional foi
decisiva, assim como a pressão a favor da profissionalização, exercida no início
da década de 1930 (o futebol profissional foi oficialmente instituído no Brasil
em 1933).
Por outro lado, o jornalismo especializado em futebol sempre foi alvo
de acusações de parcialidade e acriticidade em suas coberturas. Coelho (2003)
lembra que durante a “crise do profissionalismo”, que provocou uma cisão entre
os clubes, até então aparentemente unidos, entre os que admitiam e os que se
negavam a pagar jogadores, “os jornais cariocas acompanharam tudo como pu-
deram. Com pouco espaço e dando mais destaque ao que acontecia dentro de
campo do que à briga política entre todos os times” (p. 16). Os repórteres que
cobrem futebol costumam evitar questões administrativas e problemas políticos
de bastidores e privilegiam coberturas burocráticas e limitadas às disputas dentro
142
de campo. Apesar disso, quando o jornalismo esportivo se aventurou em repor-
tagens investigativas os resultados foram animadores, como a histórica série de
reportagens publicadas pela revista Placar, que ao denunciar a existência de um
esquema de corrupção que envolvia jogadores, técnicos e dirigentes na manipu-
lação de resultados de partidas incluídas na Loteria Esportiva. A reportagem
principal ganhou diversos prêmios e também alcançou as manchetes de editorias
políticas e criminais.
Existem outros exemplos e casos de reportagens investigativas bem
sucedidas realizadas por jornalistas ligados ao futebol, entretanto, essa não é a
linha editorial predominante do gênero, o que, em parte, faz o jornalismo espor-
tivo ser considerado como uma espécie de “patinho feio” das redações e seja
comparado a gêneros “menores” como o colunismo social. A partir da década de
1990 esse panorama tem sido alterado, ainda que lentamente, devido à profusão
de escândalos protagonizados pelos administradores do futebol brasileiro. Além
disso, jornais como a Folha de S. Paulo que antes desprezavam o futebol, passa-
ram a dar mais espaço para os aspectos políticos da modalidade esportiva mais
popular do país, o que obrigou outros diários a acompanharem-na.
A justificativa para o distanciamento dos bastidores do futebol é que
tal tipo de matéria não agradaria o público, entretanto, não há, pelo menos am-
plamente divulgada, qualquer pesquisa que confirme tal suposição. Uma das e-
dições mais vendidas da revista Placar foi justamente a que denunciou a máfia
da Loteria Esportiva. Uma “justificativa” mais plausível são as relações dos re-
pórteres com clubes e jogadores. Os dirigentes esportivos costumam “queimar”
jornalistas que trabalham numa linha mais politizada
31
e orientam “seus” atletas
a não darem entrevistas para eles, além de o repassarem informações conside-
radas importantes para as coberturas futebolísticas, como possíveis contratações
de jogadores ou horários e locais dos treinamentos. Assim, em troca da “tranqüi-
31
O jornalista Juca Kfouri, ex-diretor da Placar é muito conhecido por atuar nessa linha e, por isso, proibido de
entrar em muitos clubes, além de ter sofrido diversos processos.
143
lidade” para trabalhar, os repórteres futebolísticos evitam reportagens de cunho
politizado. E, como visto, a influência dessas relações acaba transparecendo
nos discursos das coberturas futebolísticas.
Em se tratando de competições esportivas, essas relações podem ser
vistas como inofensivas, mas uma análise que considere aspectos socioculturais
não pode fugir do conceito de que o jornalismo esportivo está inserido numa es-
trutura maior, não está dissociado de todo o meio midiático, ao contrário. Ainda
que carregado de maior subjetividade, o jornalismo esportivo não está livre das
mesmas influências que agem sobre os demais gêneros de discurso jornalístico,
como a linha editorial do veículo ou as condições de produção da notícia no am-
biente da prática profissional. Muitos dos problemas da mídia esportiva são cor-
relatos aos de outros gêneros jornalísticos, não se pode dizer que as demais se-
ções dos jornais pratiquem um jornalismo isento e objetivo. Os repórteres de
política, economia, entretenimento e polícia também mantêm relações muitas
vezes consideradas promíscuas” com suas fontes, ao omitirem informações re-
levantes que possam afetar a imagem pública das personalidades e entidades en-
volvidas.
Resumidamente, pode-se dizer que o futebol tem raízes em práticas
lúdicas milenares verificadas em diversas partes do mundo, com o advento da
Modernidade e da Industrialização e, tal qual a própria sociedade, incorporou as
transformações sociais instituídas por esses fenômenos mais amplos e ganhou
dimensões socioculturais. A partir de intervenções da mídia impressa teve sua
popularidade aumentada e chegou à condição de espetáculo. Entretanto, esse
processo não se sustentaria sem a participação do torcedor de futebol, tema do
terceiro capítulo deste trabalho.
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Torcedores aguardam, sob chuva, no Rio de Janeiro, o retorno da Seleção Brasileira que disputou a Copa do
Mundo em 1938, na Itália (in: Duarte, 1993)
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Para Nelson Rodrigues, o torcedor é o homem que ama
um clube e este amor significa entregar-se, viver, num jo-
go, seu destino, do qual, nunca escapa. Mario Filho, por
sua vez, compara o amor pelo clube ao amor por uma mu-
lher, para toda a vida, ou até que Deus separe, concluindo
que o primeiro é mais duradouro que o segundo. Pode-se
deixar de amar uma mulher, mas não a um clube. Traí-lo,
nem mesmo em pensamento.
[Teixeira, 1998, p.115
]
Para entender o torcedor futebol, primeiramente, é necessário esclare-
cer que existem, na verdade, muitas categorias de torcedores. Para Dante Panzeri
(1967) não é possível ver um jogo de futebol de uma única maneira, os juízos
acerca desse esporte e, conseqüentemente, os modos de torcer se dividem
entre os que vêem e os que sentem, ou entre os que “vão ver jogar” e aqueles que
“vão ver ganhar”. Os primeiros apenas apreciam (ou não) o espetáculo e, prova-
146
velmente, nutrem alguma simpatia, ainda que momentânea, por uma das equipes.
No entanto, este tipo de espectador não classificaria a si mesmo como um “tor-
cedor de futebol”, diria ser apenas simpatizante e, tão logo o espetáculo termine,
é capaz de esquecer a vitória ou a derrota que acabou de presenciar. Qualquer
análise que este tipo de torcedor fizesse a respeito do futebol se resumiria a ter
apreciado ou não o espetáculo oferecido, o que não o impediria de ter aplaudido
ou desaprovado com alguma intensidade detalhes do jogo.
Turtelli (2002, p.21), ao citar a divisão dos torcedores em três catego-
rias feitas por A. R. Salvo, apresenta uma delas próxima aos “que vão ver jogar”:
as dos espectadores “que gostam de futebol e que vão aos estádios para assistir a
uma partida que, de antemão, promete ser um bom espetáculo”, ou seja, não cos-
tumam se envolver emocionalmente com o time além do contexto dos jogos en-
quanto eles se desenrolam e, tão logo ele acabe, o sujeito passa a ter outras preo-
cupações e o futebol pouco, ou nada, influencia no seu cotidiano. O futebol, para
eles, é visto como um passatempo, uma atividade de lazer. Ainda que possam
sentir alguma tristeza ou euforia quanto ao resultado das partidas, são sentimen-
tos passageiros.
Na segunda categoria apontada por Panzeri, a dos que vão ao estádio
“ver ganhar”, está mais próxima do significado do termo torcer e dos sujeitos
desta pesquisa. No Brasil, genericamente, são conhecidos por fanáticos. A eles
não importa a qualidade do espetáculo, mas sim o resultado. O time para que
torcem pode jogar muito mal, porém, se ganhar, basta. Do contrário, sofrerão,
poderão ficar muitos dias amargurados em conseqüência da derrota. Na verdade,
em suas mentes, não é a equipe que perdeu, mas eles mesmos. Panzeri os classi-
fica como “doentes”, uma vez que sofrem.
... son enfermos, aún no recrutados como tales dentro de los ser-
vicios médicos y farmacêuticos. Unos peligrosos, otros mansos,
pero enfermos al fin, puesto que sufren. Y hai que conveir que
quien deja sulantar su personalidad más frecuente por outra que
147
se regula según la suerte de una divisa deportiva, es um enfermo,
puesto que no es um individuo equilibrado, ni controlado. (p.36)
“O Mario Filho falava uma coisa muito bonita sobre o torcedor,
tem naquele livro A pátria de chuteiras, do Nelson Rodrigues,
que o torcedor quer que o jogador o represente, que o jogador se-
ja ele. O torcedor não inocenta o jogador, não o absolve, ele não
pode errar, é um irmão que não pode errar, um amigo que não
pode trair. Não pode falhar. É uma pessoa amada que não pode
dar um passo em falso, porque isso trará problemas. Então o tor-
cedor deposita toda a confiança no jogador, por isso tamanha
frustração. O que você deixa de lado por isso, são muitas coisas,
como, por exemplo, família, grana (hoje em dia, principalmente),
amizades, compromissos ... Eu trocava aula minha, eu não ia dar
aula para ver o Palmeiras ... Teve diretor que descobriu e me fa-
lava: ‘fala que você foi ver o Palmeiras, não fica doente, não ma-
ta alguém, fala que quer ir’. Então com isso fui de moto para
São Paulo, de caminhão da Folha [de São Paulo, jornal diário da
capital], de trem. Acho que o torcedor fanático sofre muito.
Quando o time dele ganha, não fez mais do que a obrigação e
quando perde ele se torna um alvo impiedoso... (Sinuhe)
Panzeri lembra que, provavelmente, o futebol perderia grande parte de
sua motivação e popularidade se não tivesse o suporte desses “doentes”, pois são
eles que, ao levarem para o campo de disputa suas incontroladas paixões, angús-
tias e alegrias, atuam sobre o ânimo dos jogadores. O autor lembra que, assim
como o toureiro ante a uma praça vazia, o jogador não se sente em clima compe-
titivo diante de arquibancadas despovoadas e silenciosas. Deprimem-se, tal qual
os atores de teatro e os artistas de circo sem uma platéia a aplaudi-los ou mesmo
a vaiá-los e xingá-los.
No entanto, as considerações de Panzeri foram baseadas no contexto
do futebol argentino das décadas de 1950 e 60. Na transposição de sua análise é
preciso lembrar das diferenças culturais entre os universos de torcedores brasilei-
ros e argentinos, bem como as transformações históricas e sociais dos últimos 40
anos, que influenciaram o futebol em todos os aspectos, desde o modo como é
praticado até o os modos de torcer.
148
Desse modo, no contexto da sociedade brasileira contemporânea, os
fanáticos podem ser divididos em dois tipos: os comuns e os organizados. Am-
bos têm como motivação a paixão ou o amor pelo clube, porém, tais sentimentos
se tornam apenas um pano de fundo para diferentes modos de expressão e com-
portamentos. Em Turtelli (2002, p.21), os “comuns” são aqueles que se
autoproclamam torcedores de um time, envolvem-se de um modo mais
aprofundado com o futebol do que os “que vão ver jogar”. Geralmente, são
bastante interessados pelo que acontece no campo e acompanham os fatos
relativos à vida do clube também fora dos gramados, muitos podem ser até
sócios, porém, não se envolvem diretamente nas questões administrativas da
agremiação. Também não costumam assistir a todos os jogos no estádio e,
raramente, acompanham os times quando estes atuam em localidades distantes.
Os sentimentos desses torcedores estão vinculados exclusivamente ao clube.
Uma outra diferença do torcedor comum em relação ao organizado é
que ele pode torcer ou acompanhado, isso não faz diferença, o importante é
ver seu time jogar. o fanático que se associa a um grupo específico sen-
tido em ir ao estádio junto com os demais componentes da torcida, para ele, pode
ser mais, ou tão, importante estar ao lado dos seus do que presenciar a partida em
si.
O torcedor fanático - tanto o comum como o organizado - tem o fute-
bol como prioridade em sua vida: é capaz de deixar de lado outros compromissos
para ver seu time jogar, pode matar e morrer pelas cores de seu clube, enfim, tem
o comportamento determinado em função do futebol. A vitória ou a derrota de
sua equipe de preferência é que determinará seu humor. Não são raras notícias de
torcedores mortos por enfartos sofridos devido às emoções experimentadas du-
rante uma partida de futebol. Por outro lado, são eles também os responsáveis
por atos de violência que hoje estereotipam os fanáticos, principalmente os liga-
dos às torcidas organizadas, como “vândalos”.
149
Não que atos hostis não existissem antes, pelo contrário, o clima de
tensão entre torcedores de dois times diferentes é patente em qualquer jogo des-
de os primórdios do futebol, considerado em si, um esporte violento. A diferença
é que, até o advento das torcidas organizadas, as brigas se davam exclusivamente
em torno do jogo, depois do aparecimento delas, a causa maior dos conflitos pas-
sa a ser os torcedores adversários. Tanto que são registrados diversos confrontos
entre torcedores ocorridos longe dos estádios e antes dos jogos.
Atualmente, as desavenças entre os torcedores não têm origem unica-
mente em função do resultado de um jogo, como ocorria antes. Existem rixas
intermináveis entre as muitas facções
32
, que criam um clima de hostilidade per-
manente entre os torcedores rivais. As organizadas, em determinadas situações,
usam os jogos apenas para “marcar” o dia em que se confrontarão, assim, pouco
lhes interessa o resultado da disputa em campo, brigarão de qualquer forma. E-
xemplo é que cada organizada tem uma rivalidade maior com uma outra torcida
específica. Muitas vezes, concorrência até mesmo entre facções da torcida de
um mesmo time, como no Rio de Janeiro, onde as torcidas Flajovem e a Raça
Rubro-Negra, ambas do C. R. Flamengo, são inimigas, conforme registrado por
Teixeira (1998), que, em sua pesquisa, incluiu declarações de torcedores que a-
firmaram aceitar ter amizade com torcidas de outros Estados, porém, com cario-
cas não, inclusive as do próprio clube. Um dos entrevistados declara o seguinte:
“Graças a Deus, somos nós e nós. Somos nós e Deus” (155).
Os torcedores pertencentes às torcidas organizadas, que Turtelli
(op.cit.) distingue dos demais por apresentarem particularidades culturais, podem
ser considerados como sujeitos de uma “subcultura” dentro do universo do fute-
bol ou “um grupo cultural claramente identificável”. Para Turtelli, através dessa
categoria de torcedores resgata-se o conceito de jogo de Huizinga, visto como
uma prática ritualizada e vinculada ao sagrado.
32
O termo é empregado pelos próprios torcedores e deriva do latim factione e, segundo o Dicionário Aurélio
(s/d), pode se referir tanto a um “bando sedicioso” como a um partido político ou a uma parte divergente ou dis-
sidente do mesmo.
150
A participação do torcedor de torcida organizada, e apenas a
desse torcedor, permite o jogo voltar a ser jogo no sentido de a-
tividade lúdica, cm vínculos com uma comunidade que o assume
mediante rituais, que tem a emotividade do religioso no sentido
profundo de devoção e oferenda de si mesmo. Dessa maneira,
esse torcedor, na sua forma de participação numa partida de fu-
tebol, produzindo uma ligação mágica com o evento, é capaz de
restituir-lhe durante uma hora e meia, o sentido arcaico de jogo.
(Turtelli, 2002, p. 22)
Em resumo: o espectador quer ver o futebol, o torcedor comum quer
ver ganhar e o torcedor engajado quer ser visto” (Turtelli, op.cit., p. 23). Além
dessas distinções, é possível ainda assinalar muitas outras categorias de torcedo-
res, como o “eventual”, que aparece quando seu time disputa o título de al-
guma competição ou que torce pela seleção do país durante a Copa do Mundo.
Entre os organizados, aqueles que “torcem pela torcida”, ou seja, se identifi-
cam muito mais com a torcida organizada do que com o clube em si, embora
também sejam apaixonados pelas cores do time. Um pouco mais difícil de ser
identificado, porém não tão raro, há o “torcedor do contra”, que não tem um time
de preferência, mas sim um que odeia. Nem sempre o alvo de tal aversão é o
clube, mas seus torcedores. Como exemplo, não é raro encontrar entre os paulis-
tas “anti-corintianos” e, entre os cariocas, “anti-flamenguistas”.
A própria freqüência aos estádios, o domínio de informações de
bastidores. O consumo de mercadorias associadas à imagem do
clube e o comportamento durante os jogos, são apenas alguns dos
tantos critérios alencados para classificar e hierarquizar as diferen-
tes intensidades e formas de expressão do pertencimento clubísti-
co. Não há, portanto, um “tipo ideal” de torcedor que possa ser
generalizado. Ou melhor, forjar esse tipo ideal” seria desconside-
rar a diversidade característica do universo futebolístico. (Damo,
1998, p. 65)
Apesar desses muitos modos de torcer e das várias maneiras como ca-
da um se liga a um clube, o sentimento que move todas essas pessoas é um : a
paixão. Por isso, não se trata de um fenômeno classificável como racional. Di-
151
versas situações podem comprovar isso, entre elas, a violência gratuita de simpa-
tizantes de um time contra os de outro, afinal, o que poderia haver de racional
em agredir e aassassinar alguém que não se conhece pelo simples fato de essa
pessoa gostar de um clube rival? Ou as múltiplas crenças em objetos mágicos e
peças de roupas que, se usados durante um jogo, podem influenciar no resultado
do mesmo, como exemplificado no depoimento de um dos entrevistados para
este trabalho.
“Num Palmeiras e Grêmio, em 1996, pela Copa do Brasil - o
Palmeiras tinha vencido o primeiro jogo, por 3 a 1, no Parque An-
tártica e foi jogar lá em Porto Alegre ... O Palmeiras fez 1 a 0, mas
o Grêmio virou para 2 a 1 ainda no primeiro tempo e se fizesse
mais um gol o jogo ia para os pênaltis. E eu estava na casa da mi-
nha sogra, em Birigui, e me lembrei que estava sem a “cueca da
sorte”, essa cueca tinha sido lavada porque eu tinha jogado bola.
Então eu fiz passar a cueca com o ferro bem quente para secar e
coloquei a cueca. No segundo tempo, curiosamente, o Jardel fez o
terceiro gol para o Grêmio e o juiz anulou. Eu acreditei naquele
momento que a minha cueca anulou o gol. Depois o Palmeiras
fez a final com o Cruzeiro em casa e perdeu. Mas a participação
que você tem é coisa assim: “eu não fui, por isso que perdeu, se eu
estivesse lá não perdia, porque eu nunca perdi para o Corinthians”.
“Não vou não porque nunca ganhei do São Paulo”. Esses tabus
são muito alimentados pelo torcedor”.
(Sinuhe)
Acreditar que seu time conseguiu o resultado que necessitava por ter
colocado uma peça de roupa, apesar de estar a mais de mil quilômetros do local
da disputa não parece ser algo racional. Talvez por estar tão próximo do campo
passional, a presença do sobrenatural acompanha o futebol e não está apenas na
torcida. Não é incomum encontrar imagens de santos ou trabalhos” de Umban-
da nos vestiários da maioria dos clubes. Para Fernández (1974, p. 52-59) uma
“lógica fetichista” no futebol que inclusive pode ser notada na linguagem da mí-
dia esportiva, que recorre constantemente à dicotomia sorte ou azar para expli-
car o inexplicável”, como derrotas de times tecnicamente melhores para outros
piores ( a autora cita mais de cem manchetes e frases com as palavras sorte ou
152
azar publicadas entre os meses de setembro e outubro de 1972 em jornais cario-
cas).
No Brasil, o futebolista Mário Jorge Lobo Zagallo encarna essa misti-
ficação do esporte como poucos e, certamente, existem centenas de episódios em
que buscou no sobrenatural um jeito para vencer. Coincidência ou não, ele parti-
cipou como jogador das conquistas do título de campeão nas copas do mundo de
1958 e 1962, como técnico em 1970 e também integrou as comissões técnicas
brasileiras campeãs mundiais em 1994 e 2002. Sua crença na sorte que o número
13 lhe dá é conhecida por todos os futebolistas brasileiros.
Lever (1983, p.134) também não deixou de notar esse lado místico do
futebol brasileiro e cita episódios como uma final do campeonato amazonense
em que os torcedores do Nacional, uma noite antes da partida decisiva, deixaram
“uma galinha, 12 velas pretas, uma garrafa de cachaça, uma espada, uma cruz e
pequenos pedaços de papel com os nomes dos jogadores no portão da concentra-
ção da equipe”.
A intensidade que pode atingir a paixão de um torcedor por seu clube
também está traduzida em diversos suicídios cometidos em nome de vitórias ou
derrotas, bem como mortes devido a ataques cardíacos. Matar, matar-se ou mor-
rer pelo clube de futebol é algo sempre possível quando se trata de torcedores
fanáticos ou doentes e, principalmente, dos organizados.
Depois que o Flamengo perdeu o campeonato estadual de 1969,
um torcedor pulou do alto de um edifício gritando “Viva o Fla-
mengo”. Um jornalista que cobria a Copa do Mundo de 1958,
realizada na Suécia, afirma ter testemunhado o suicídio de um
torcedor brasileiro, de “pura alegria”, quando seu país conquis-
tou a Taça Jules Rimet pela primeira vez. É claro que os brasilei-
ros não são os únicos torcedores que se matam por seus times.
Na Copa do Mundo de 1966, um alemão ocidental se matou com
um tiro, quando seu aparelho de televisão quebrou, durante a
partida final entre seu país e a Inglaterra. Os americanos também
não escapam a essas bizarras tragédias. o caso muito conhe-
cido do habitante de Denver que escreveu um bilhete de suicida,
dizendo: “Sou um torcedor do Broncos desde a sua fundação e
153
não posso mais suportar tantas derrotas”, matando-se em seguida
com um tiro. (Lever, 1983, p.134-135)
Ainda que se deva considerar que há uma certa dose de fatores psico-
lógicos que levam indivíduos a atitudes tão extremas, pode-se dizer que entre as
principais condições para que tais processos se dêem está a representatividade
simbólica dos times de futebol. Nessas associações e representações que se dão
no espaço de atuação e influência das agremiações, há o que Maffesoli (2002)
chama de “nebulosa afetual”, ou seja, uma rede de solidariedade e simpatia entre
indivíduos, mesmo momentânea, que os faz sentirem-se como iguais, apesar das
muitas diferenças, formando uma espécie de “tribo”. Esta “rede solidária” pode
ser notada em praticamente todos os grupos sociais, como entre simpatizantes de
um estilo musical, grupos religiosos ou “categorias” de trabalhadores e, princi-
palmente, entre vizinhos. Os indivíduos tendem a se projetar no grupo, fazem
dessa associação uma motivação para viver.
Nas sociedades urbanas contemporâneas, o sujeito tende a ser autosufi-
ciente em relação à sua sobrevivência: para que se alimente, basta que a um
estabelecimento comercial e adquira algum produto sem a necessidade de ter
maiores contatos com outros indivíduos, pois pode adquirir alimentos por telefo-
ne ou via computador. Não por acaso, nas metrópoles, uma tendência ao indi-
vidualismo. No entanto, como animal social que é, o homem não consegue dei-
xar de associar-se a seus semelhantes, seja por vínculos racionais ou emocionais,
por necessidade por afinidade. O que une os sujeitos das diversas “tribos urba-
nas” está no campo sentimental, por isso, ainda segundo Maffesoli, a composi-
ção dos cenários urbanos cada vez mais se afasta de uma racionalidade social e
caminha para uma sociabilidade emocional, determinada por variantes empáti-
cas, conseqüentemente, culturais. O torcedor de futebol, sem dúvida, é um dos
componentes desse cenário tribalista de Maffesoli, cuja hipótese encontra para-
lelo nos depoimentos dos entrevistados para a presente pesquisa, quando pergun-
tados sobre o que os motiva a serem torcedores:
154
“É o sofrimento. Eu acho que são as dificuldades, vai quem gosta
mesmo, vai se apegando cada vez mais, a gente fica muitas vezes
imaginando, se ganhasse milhões na megasena, com certeza ia fa-
zer alguma coisa pelo clube, eu sou um deles, eu ajudaria. Porque
o clube me deu muita coisa, muita alegria ... foi dentro do futebol
que eu adquiri meus laços de amizade, foi dentro do futebol que
eu consegui minhas amizades, ser respeitado, foi o clube, foi o fu-
tebol que fez isso, se eu tivesse condições eu retribuiria mais. (...)
você nos jogos a dificuldade ... seu coração a mil ali .... Que
necessidade você tem de ir ao campo ver 22 caras correndo atrás
da bola, suando, e você passando aquele sufoco? Para quê? É uma
pergunta difícil. A troco de quê? É inexplicável isso aí.” (Pavanel-
lo)
Em uma pesquisa realizada com 200 torcedores na cidade do Rio de
Janeiro, Lever (1983, p.149), apontou a família como fator de influência mais
freqüente na escolha dos times e cita dois exemplos significativos: “Um torcedor
disse: -Fui criado com a bandeira do Flamengo. Eu a conheci antes da bandeira
do Brasil. E outro informou: -Eu estava torcendo com minha família pelo
Flamengo antes de começar a falar”. No entanto, a pesquisa apontou que essa
escolha também se por muitos outros fatores, que Lever (idem, p.150) identi-
fica como tradição (“Sou português e, por isso, não poderia deixar de ser Vas-
co”. Ou: “Sou preto e, por isso, tenho de ser Flamengo. É a tradição”. Também:
“Sou Fluminense porque todos os seus jogadores e torcedores têm classe”); por
estereótipos (“Não sou preto e o moro numa favela. Assim, não poderia torcer
pelo Flamengo”) ou por razões pessoais (“Meu time venceu o primeiro jogo a
que assisti”. Ou: “Meu time venceu o campeonato no primeiro ano em que co-
mecei realmente a me interessar pelo futebol profissional”). Os vínculos familia-
res também aparecem nos trabalhos de Teixeira (1998), Oliveira (2000), Gianoli
(1996) e Damo (1998). Entre os entrevistados para o presente estudo ecos
dessa motivação estabelecida no ambiente familiar.
155
“Eu não tive pai e meu cunhado que me ajudou a me criar, por ser
palmeirense, da época da Academia
33
(anos 70) ele influenciou
muito, tanto que eu estava entre o Santos e o Palmeiras, por causa
de um irmão que era santista e o meu cunhado, ele me deu uma
camisa do Luís Pereira
34
, isso foi nos idos de 1970, 71 ... e eu
me motivei muito com isso. que eu me apeguei de um modo
que até em terapia não conseguiram me explicar ainda. Terapeuta
chegou a falar para mim se eu sou o Palmeiras, se eu via no
Palmeiras o pai que eu não tive. Então, o Palmeiras perder, para
mim, era uma coisa muito complicada. Hoje que eu dou aula, eu
tenho que me controlar para não brigar. Mas o Palmeiras perder,
para mim, é o Sinuhe que perdeu. Eu me identifiquei demais, de
uma hora para outra ... Você vai ao campo de futebol, você se a-
pega mais, porque você faz parte do espetáculo. Ilusoriamente,
você acha que muda um resultado.” (Sinuhe)
“Ah, eu sempre gostei. A família tem um pouquinho de influência
também porque meus pais são corintianos. Mas eu comecei... tive
vontade de ir um dia para o estádio e, a partir do momento que eu
fui, me apaixonei mais ainda. Porque não larguei mão, sem-
pre que eu tiver oportunidade eu vou, hoje em dia mais ainda.
Quando não tem, arrumo um jeito de ir, às vezes falta alguma coi-
sa, peço alguma folga do serviço, dou um jeito de ir. E agora, ain-
da mais como presidente da torcida organizada - a gente tem uma
obrigação de estar em todos os jogos ... a faixa tem que estar pre-
sente - a gente faz um esforço pra ir e quando não dá, a gente
manda um representante.” (Givanildo)
Nesse segundo depoimento, além do vínculo familiar, o torcedor a-
crescenta como fator que o fez se apaixonar” pelo clube a presença do estádio.
Para ele, ir ao jogo é ainda uma obrigação”, responsabilidades assumidas,
como a presença da faixa da torcida. O primeiro torcedor citado, Sinuhe, de ma-
neira mais intensa nas duas últimas frases de sua fala, também comenta sobre a
importância de ter ido ao estádio para sua “formação” como torcedor. Para am-
bos, ir ao jogo pela primeira vez funcionou como ponto de partida para suas vi-
das de torcedores engajados, que, como integrantes de torcidas organizadas sen-
tem-se parte do espetáculo e também da história não-oficial do futebol. É no es-
33
Referência à equipe do Palmeiras que atuou na primeira metade da década de 1970. O hepíteto foi criado pela
maneira como aquela equipe jogava: era uma “aula de futebol”. Essa é uma outra particularidade lingüística do
futebol, usada para reconhecer times que marcaram época, com o Expresso da Vitória (Vasco dos anos 1930),
Laranja Mecânica (seleção holandesa da Copa do Mundo de 1974), etc.
34
Ex-jogador de defesa que atuou por muitos anos no Palmeiras.
156
tádio que o torcedor atinge o auge de seu papel, torna-se o “12
o
jogador” do ti-
me, uma figura de linguagem que define a participação da torcida no jogo.
consenso de que os gritos saídos das arquibancadas podem mudar o rumo de
uma partida.
“Eu vi, aqui em Bauru. O Botafogo [de Ribeirão Preto] estava ga-
nhando do Noroeste de 3 a 0 e o Noroeste virou para 5 a 4, com o
apoio da torcida, porque a torcida ‘curtiu’ o momento. Os próprios
jogadores falam que sem o torcedor ... A torcida do Corinthians é
considerada a mais fanática, porque cada jogo para eles é como se
fosse uma decisão. A gente tem que dar a mão à palmatória, os ca-
ras ganham jogos. Aqui [em Bauru] é totalmente diferente, mas já
vi jogos que o torcedor sentiu o momento e o estádio todo levou o
time. O jogador é o artista, mas o torcedor também...” (Pavanello)
“A torcida pode mudar o resultado de um jogo, a torcida pode ga-
nhar um jogo, como pode .... Ela tem essa força. Pode dar ânimo
pra um jogador que às vezes está desanimado. Grita o nome do
jogador. Às vezes o jogador está ruim, está vendo que ele está ru-
im, está todo mundo vendo, a imprensa, a tevê, todo mundo vendo
que o jogador está mal dentro do campo. a torcida começa a
gritar o nome dele, ele se sente renovado, vem uma força de
dentro, vem das arquibancadas, a gente leva pro jogador. Com
certeza isso muda o resultado do jogo”. (Givanildo)
A experiência de presenciar grandes disputas e, principalmente, gran-
des vitórias de seus times é decisiva também para que o indivíduo escolha o clu-
be de sua preferência. Segundo Damo (1998), essa crença do torcedor de que
pode interferir no andamento do jogo, mesmo à distância, estaria mais dissemi-
nada no futebol do que em outras modalidades. Entre as causas mais prováveis
de tal comportamento estaria o fato de o torcedor se projetar na imagem de seus
ídolos, ele “joga junto com o time”. É comum torcedores “chutarema bola, de
maneira imaginária, na arquibancada ou até mesmo quando assistem jogos pela
televisão. Isso os transforma em “observadores participantes”.
As torcidas organizadas têm tanta consciência de que também fazem
parte do espetáculo que, assim como os times, treinam para os jogos, preparam-
se, ensaiam sua participação com cânticos e coreografias. Não é incomum atletas
157
e representantes dos times, antes de jogos importantes, pedirem nas reportagens
o apoio da torcida. Durante as próprias partidas, alguns jogadores, geralmente
aqueles mais “identificados” com os clubes, costumam fazer gestos conclaman-
do o público a incentivá-los. Essa relação, porém, tem o outro lado, que são as
chamadas “cobranças” pelas derrotas e atuações. Os aplausos, muitas vezes,
transformam-se em vaias, por isso, a relação de jogadores e clubes com os torce-
dores é sempre conflituosa quando uma equipe não realiza performances tecni-
camente satisfatórias. De manifestações intensas de apoio mútuo a relações de
ódio profundo: é assim que caminham as trocas culturais entre os diversos gru-
pos sociais criados ou representados no “mundo do futebol”.
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Torcedores brasileiros no
Maracanã, na década de 1950.
(in: Duarte, 1993)
Numa análise de cunho culturológico é necessário conhecer aspectos his-
tóricos dos fenômenos, com o intuito de projetá-los no espaço-tempo das socie-
dades em que se dão e poder compreender um pouco mais da contraditória lógica
do comportamento dos mesmos. Assim, apresenta-se aqui uma breve trajetória
do torcedor de futebol brasileiro, a partir da qual pode-se notar como as trans-
158
formações da sociedade se refletiram também nos modos de se torcer por um
time.
No Brasil, o futebol começou a ser praticado de modo organizado entre
jovens pertencentes às elites a partir de 1894 e os primeiros torcedores eram, na
verdade, em sua maioria, damas, que compunham a maior parte da então chama-
da assistance. Apenas nos primeiros anos do século XX, com a fundação de e-
quipes como a Ponte Preta (Campinas), o Bangu (Rio de Janeiro) ou Corinthians
(São Paulo) é que as classes “populares” passaram a ser representadas, apesar de
haver muitas evidências de que o futebol era praticado pelo “povão” nos campos
de várzea das grandes cidades (conforme visto no capítulo 2 deste trabalho).
Mazzoni registra como primeira partida a ter torcedores em solo nacional, um
jogo entre um “time avulso
35
”, recrutado pelo alemão Hans Nobiling e o São
Paulo Athletic, de Charles Miller.
(...) No mês seguinte [maio], dia 3, voltamos a empatar com o
Mackenzie, 1 a 1, tendo os pontos sido conquistados por Shaw e
Robboton. Animados com este resultado, desafiamos os ingle-
ses, contra os quais jogamos a 29 de junho de 1899, na Consola-
ção, na presença da primeira assistência que compareceu a um
campo de futebol: 60 pessoas.” (in: Mazzoni, 1950, p. 22)
Porém, segundo relato do próprio Charles Miller, as primeiras partidas
organizadas por ele, despertavam interesse, se não de torcedores” no sentido
que o termo assume atualmente, pelo menos de curiosos. [Desde 1888] Na
Chácara Dulley, foram realizados diversos outros prélios, todos assistidos com
grande interesse.” (in: Mazzoni, 1950, p. 18). O semanário Times of Brazil pu-
blicou, segundo Mazzoni, uma crônica dedicada a Miller em que se descreve o
“espírito” que dominava os campos e as arquibancadas nos primeiros tempos do
futebol brasileiro.
35
Clube que mais tarde se transformaria no E.C. Germania, atual E.C. Pinheiros.
159
Juvenil entusiasmo, cordial amadorismo e são espírito desporti-
vo prevaleciam ao tempo integrando as várias equipes unica-
mente elementos da elite social. E, quando tudo o que de mais
seleto havia na Paulicéia acorria ao “Velodromo”, aos domin-
gos, invariavelmente, para assistir à memoráveis pugnas que em
seus gramados travavam os nossos valorosos futebolistas, conta-
va Charles Miller com o unânime apoio dos espectadores e,
“fan” de cada aficionado, incontidos eram os aplausos a coroa-
rem os seus sucessivos “dribles” e brilhantes feitos. (Mazzoni,
1950, p. 18)
Entre os fechados clubes da época, como o Germânia, o São Paulo At-
hletic, o Paulistano, o Mackenzie e o Internacional, em São Paulo, ou Rio Cric-
ket e Fluminense, no Rio, a rivalidade estava restrita aos atletas “dentro das qua-
tro linhas”. Entretanto, a popularidade do esporte aumentava e também o número
de pessoas nos campos. Com isso, o fenômeno das torcidas começou a tomar
corpo e já a partir da segunda metade da primeira década do século XX a disputa
extrapolou os limites do campo.
Apesar de passível de variações, uma divisão da história do futebol em
quatro grandes fases, elaborada por Robert Levine, conforme cita Damo (1998,
p.42), tem pontos coincidentes com a trajetória histórica dos modos de torcer no
Brasil: a primeira entre 1894 e 1904, “em que o futebol se manteve restrito aos
clubes urbanos pertencentes a estrangeiros e à elite local”; a segunda, entre 1905
e 1933, fase amadora, marcada por grandes passos de divulgação e pressão
crescente para melhorar o nível do jogo através de subsídios para os jogadores”;
a terceira, de 1933 a 1950, “período inicial do profissionalismo”; e a quarta, de
1950 até hoje, marcada pelo reconhecimento internacional, comercialização so-
fisticada e “maturidade” do futebol como “recurso nacional incontestável”.
Na primeira fase, que poderia também ser denominada de fase de im-
plantação, o futebol era um esporte elitizado, praticado entre cavalheiros ligados
a uma mesma classe social. Mesmo com as discriminações contra jogadores que
não pertencessem ao mesmo círculo social da maioria dos integrantes dos clubes,
as rivalidades se resumiam aos períodos das pelejas (os “90 minutos”), após as
160
quais, geralmente, ocorriam confraternizações entre os atletas. A julgar pelos
relatos históricos, a assistência também se comportava dessa maneira.
É na segunda fase, a da afirmação, quando começam a surgir times re-
presentantes de outras classes sociais, bem como dissidências de outras agremia-
ções, que aparecem as primeiras rivalidades. Em São Paulo, em 1910, surge o
Sport Club Corinthians Paulista
36
, que se firma desde o início como o “time do
proletariado e do subproletariado urbano (inclusive uma grande maioria de ne-
gros)” (Damo 1998, p. 44). Rapidamente, o Corinthians conquista grande núme-
ro de torcedores, ansiosos por ver seus representantes derrotarem o estrangeiro e
o rico arrogante. Em 1914, surge o Palestra Italia, atual Sociedade Esportiva
Palmeiras
37
, que, como representante da colônia italiana na capital paulista, se
torna o time de maior torcida na época. Não demorou mais que um ano para que
as duas equipes se tornassem rivais em campo e fora dele, dando origem a um
dos mais conhecidos antagonismos do futebol brasileiro, explicado por Anatol
Rosenfeld “como uma oposição entre o elemento local, nativo, e o elemento es-
trangeiro em ascensão que disputam entre si um mercado de trabalho ainda redu-
zido” (in: Damo, 1998, p. 44).
No Rio de Janeiro, apesar de o Bangu ter surgido ainda na fase de im-
plantação, como representante do operariado e do subúrbio, e ser antagonista de
todos os times formados na elite carioca, a primeira grande rivalidade surgiu em
virtude de um “racha” acontecido no Fluminense em 1911, quando vários joga-
dores do clube se desentenderam com a direção e bateram na porta do Flamengo,
clube que aentão se dedicava exclusivamente ao remo. Apesar disso, até o ad-
vento da profissionalização, os torcedores de Fluminense e Flamengo pertenciam
a uma mesma classe social em sua maioria. Apenas a partir da década de 1930 é
36
É curioso notar que o nome Corinthians foi adotado em homenagem a uma equipe inglesa que excursionou
pela América do Sul naquela época e que em seu país se destacava como defensora de um futebol elitizado e que
até hoje recusa a profissionalização do esporte.
37
A mudança de nome ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, para desvincular o nome do clube do facismo
de Mussolini. Mais uma vez,o futebol se mostra como espelho da sociedade.
161
que as torcidas desses times começaram a se diferenciar e uma tornou-se repre-
sentante da “elite entre a elite” (Fluminense) e a outra, do povão (Flamengo).
Mas, o maior antagonismo de torcidas no futebol carioca é entre vasca-
ínos e flamenguistas e existia antes mesmo dos times, pois tanto um como ou-
tro não iniciaram suas atividades nesse esporte, eram clubes de remo (daí a de-
nominação Clube de Regatas” de ambos). E é uma rivalidade motivada por
questões de representações sociais também, que o Vasco da Gama nasceu co-
mo um clube de portugueses, que naquele tempo sofriam restrições para se inte-
grar aos círculos sociais da capital. Na verdade, os portugueses que viviam em
bom número no Rio de Janeiro, viram no esporte uma “brecha” para se integrar à
sociedade e fundaram seu próprio clube de regatas, o Vasco da Gama, em 1898.
O time de futebol seria formado apenas em 1915 e disputaria a primeira divisão
em 1923, quando realmente se iniciou a maior rivalidade do futebol carioca.
A partir da década de 1920, com a crescente popularização do futebol e
a profissionalização oficializada em 1933, o Brasil tinha as principais rivali-
dades entre torcedores, que perduram até hoje. Além das citadas nos parágrafos
anteriores, as mais famosas são entre Cruzeiro e Atlético, em Belo Horizonte;
Grêmio e Internacional, em Porto Alegre; Ponte Preta e Guarani, em Campinas;
Bahia e Vitória, em Salvador; Remo e Paysandu,em Belém; Náutico, Santa Cruz
e Sport, em Recife; Goiás e Vila Nova, em Goiás. No Rio de Janeiro, a rivalida-
de não se resume a vascaínos e flamenguistas, a eles somam-se as torcidas de
Fluminense e Botafogo: as quatro odeiam-se mutuamente. O mesmo acontece
em São Paulo, com corintianos, palmeirenses, são-paulinos e santistas. A maio-
ria dessas rivalidades se ancora em motivos históricos, pois o torcedor não se
sente representado pelos jogadores e pelas cores do clube, ele se sente como uma
parte do time, já que fala dele sempre na primeira pessoa (meu time ganhou, nós
somos os melhores,etc.). O clube passa a carregar então todas as marcas culturais
do grupo que representa, por isso, alguns adversários incorporam o outro a ser
odiado. As rivalidades históricas entre brasileiros, argentinos, uruguaios e para-
162
guaios, faz com que qualquer jogo entre equipes deste país adquira importância
de um enfrentamento entre as nações e não entre as seleções.
Nas metrópoles, muitas pessoas vinham de diferentes partes do
território nacional ou do mundo. Na busca de novos traços de
identidade e solidariedade coletiva, de novas bases de coesão
que substituíssem as comunidades e os laços de parentesco que
cada um deixou ao emigrar, essas pessoas se vêem atraídas, dra-
gadas para a paixão futebolística que irmana estranhos, os faz
comungarem ideais, objetivos e sonhos, consolida gigantescas
famílias vestindo as mesmas cores. (Nicolau Sevcenko. In: Gia-
noli, 1996, p.32)
Depois de 1950 os modos de torcer passaram por outra modificação,
inicialmente sob a influência da Copa do Mundo daquele ano e da expansão dos
centros urbanos. Logo, com uma substancial colaboração dos meios de comuni-
cação de massa, especialmente da televisão, os clubes de futebol viram o número
de torcedores se multiplicar, bem como as suas respectivas representatividades.
Aos poucos, times que eram “de italianosconquistaram também a simpatia de
membros de outros grupos sociais. Além disso, começaram a nascer as torcidas
uniformizadas, em moldes muito diferentes de como são conhecidas as torcidas
organizadas de hoje – estas, surgiriam apenas na década de 1960.
Há registros de grupos de torcedores que iam ao estádio uniformizados
desde a década de 1940. Segundo Pimenta (1997), não uma cronologia exata
do fenômeno, mas ele indica a Charanga do Flamengo como o primeiro grupo
de torcedores organizados do Brasil, surgido em 1942. No entanto, Gianoli
(1996) aponta o Grêmio Sãopaulino (mais tarde, TUSP Torcida Uniformizada
do São Paulo), fundado em 1939, como a primeira “uniformizada” do país. Pi-
menta, porém, lembra que nesse grupo paulista “não havia uma estrutura organi-
zativa e o vínculo se dava com o clube” (p.65). No entanto, Gianoli cita o se-
guinte depoimento de Manoel Raymundo Paes de Almeida, o principal organi-
zador da TUSP, colhido em revista comemorativa dos 45 anos daquela torcida:
163
Ela foi organizada realmente por um grupo de torcedores que a-
companhavam muito de perto o futebol do São Paulo. Dela fazia
parte a juventude universitária sãopaulina: desde gente muito co-
nhecida, como os Mesquita ou os filhos de Paulo Machado de
Carvalho, a todos os jovens torcedores. A torcida uniformizada,
como o próprio nome diz, começou com a organização de unifor-
mes com o distintivo e as cores do time; era uma camisa branca
com o distintivo do São Paulo no peito e, em semicírculo o nome
Grêmio Sãopaulino ... (Gianoli, 1996, p.35)
Segundo Pimenta (1997, p. 66-67), esses agrupamentos surgidos a par-
tir dos anos de 1940, apesar de poderem ser considerados precursores, não têm
muito em comum com o que se conhece hoje por torcidas organizadas. “Em que
pese a utilização de bandeiras, faixas, camisetas dos clubes, banda musical, não
tinham e nem pensavam em formar uma estrutura burocrática” (idem, p.66). O
fenômeno das torcidas organizadas continuaria a se delinear no Rio de Janeiro,
com a criação da Torcida Organizada do Vasco, em 1944 (esta, ainda em ativi-
dade). Diferentemente do que acontece hoje, os três agrupamentos de torcedores
citados possuíam como principal característica atitudes festivas e pacíficas. In-
clusive, a Charanga condenava qualquer tipo de violência nas arquibancadas e
evitava usar palavrões.
Essa situação, entretanto, começou a mudar a partir dos anos de 1960,
quando surge a Torcida Jovem do Flamengo, dissidente da romântica Charanga
(Pimenta, p.66) e que passa a ter na violência sua marca registrada. Também en-
tre os vascaínos surge uma Jovem, criada “para se opor aos métodos considera-
dos demasiadamente pacíficos” até então adotados. Em São Paulo, nasce a Gavi-
ões da Fiel, do Corinthians, que por força de possuir uma estrutura burocrática,
ser regida por regras estatutárias, com presidente, conselheiros e diretores esco-
lhidos através de eleições periódicas, é por muitos considerada como a primeira
torcida organizada do país. Não por ser a mais antiga, mas por seu modo de or-
ganização, que se tornou modelo para as demais torcidas.
164
Oliveira (2000) na trajetória da torcidas organizadas modificações
que acompanharam as transformações históricas e sociais. “Elas fazem parte de
um conjunto de relações mais amplas e que, de certa forma, respondem às mu-
danças pelas quais passaram tanto o futebol quanto a própria sociedade” (p.44).
Assim, na década de 1950, os grupos de torcedores organizados e uniformizados
tinham como objetivo apenas torcer pelo time.
Os torcedores símbolos, como eram chamados, representavam to-
da a torcida do time e tinham prestígio na imprensa. Ao contrário
de hoje, estes grupos não viam inimigos do outro lado da arqui-
bancada, mas apenas adversários que deveriam ser superados na
festa das bandeiras e na animação da partida. (Oliveira, 2000,
p.44)
Para este autor, a partir da década de 1960, a sociabilidade passou por
grandes transformações, surgindo então outras formas de desfrutar do futebol
enquanto lazer e hábito. Com isso, o torcedor símbolo”, festivo, cedeu lugar ao
organizado que além de torcer na arquibancada passa também a fazer parte da
vida do clube fora dos gramados.
Em alguns casos, as torcidas são vistas como verdadeiros braços
armados de dirigentes dos clubes (ou currais eleitorais dos mes-
mos). Em outros, o movimento das primeiras torcidas faz parte e
foi fruto da mobilização e oposição ao período militar vivido pelo
país, formando canais de participação popular diante da ausência
de partidos e representações legais. (idem)
As torcidas organizadas surgem então como a representação do torce-
dor no cenário político do futebol, ou seja, na administração do clube. Para Pi-
menta, o que distingue uma “organizada” das demais formas de torcer é o fato de
as primeiras possuírem uma estrutura burocrática à qual o torcedor se associa
através do pagamento de mensalidades e se “enquadra” a um regulamento e ma-
neiras de procedimento dentro e fora dos estádios, estabelecidos pela organiza-
ção. Para Oliveira (op.cit.) as organizadas ao imporem limites, hierarquias, vesti-
165
rem-se de modo diferenciado, criar padrões estéticos de como torcer, influenciar
gostos e comportamentos de seus associados se distinguem definitivamente das
demais formas de torcer.
Uma outra diferenciação das “novas” organizadas para as antigas “uni-
formizadas” ou torcedores-símbolo, é a desvinculação e independência das pri-
meiras em relação ao clube. Na gênese das principais torcidas da cidade de São
Paulo isso fica bem claro. Segundo Pimenta (op.cit., p. 67) a Gaviões da Fiel
“foi fundada em 01/07/1969, com o objetivo de fiscalizar e apontar todos os er-
ros praticados pelos dirigentes do S. C. Corinthians Paulista, auto-intitulando-se
assim os representantes da nação corintiana junto à instituição-clube”.
“Foi na época do sr. Wadih Helu, seu Wadih Helu é o inimigo
número 1 nosso, entende. Porque na época ele contratava capanga
para batê em nós (...) Por que ele queria o quê? Ele queria que nós
chegássemos no estádio, gritasse Corinthians, tando bem, tando
ruim, de qualquer jeito. Ele queria comprar nós, né. Ofereceram
para nós a sede, entende, bandeira, instrumentos. Falaram Ó,
vocês o ser uma torcida uniformizada do Corinthians, que
vocês vão ter que: vocês nunca vão poder protestar, vocês vão ter
que engolir. E esse grupo não aceitou. Então ele ia lá, contratava
capanga que rasgava as bandeiras, quebrava os instrumentos (...),
batia nos caras. Teve um jogo que eles acabaram com nós, né, de-
ram porrada e tal. No jogo seguinte nós levamos uma faixa que
dizia: ‘Os Gaviões nunca acabarão’. Daí para rente é este monstro
que você está vendo (...) Nasceu para quê? Nasceu para fiscalizar
o Corinthians”. (Jamelão, presidente dos Gaviões, in: Motta, 1997,
p. 230)
Por sua vez, a Torcida Independente do São Paulo, fundada em 1972 e
reconhecida como uma das mais violentas do país, surge a partir de uma dissi-
dência da Torcida Uniformizada do São Paulo (TUSP) e com o objetivo de ser
“totalmente independente da instituição São Paulo F.C., ocupando os espaços
das arquibancadas para apoiar o time e a diretoria e a criticá-los se necessário”
(Pimenta, op.cit., p.68). Para os Independentes, a TUSP pecava por “não ser uma
166
torcida atuante e condicionar sua sobrevivência aos patrocínios que o São Paulo
F.C. oferecia em troca de apoio” (idem).
Outra torcida muito conhecida por sua truculência é a Mancha Verde,
da S. E. Palmeiras. Esse grupo surgiu da fusão de outras quatro torcidas (Império
Alviverde, Inferno Verde, Grêmio Alviverde e Pal-Chopp) e, no nascedouro,
possuía motivações bem pouco pacíficas. Segundo Pimenta, a Mancha nasceu
“porque os torcedores do Palmeiras cansaram de apanhar nas arquibancadas e se
acovardarem diante de um confronto” (p.69). Na época, a torcida do Palmeiras
era uma torcida amedrontada, que não tinha personalidade (...), nós resolvemos
juntar essas torcidas e fazer uma que viesse com peso e com respeito e, graças a
Deus, a gente conseguiu” (Paulo Serdan, presidente da Mancha Verde, in: Pi-
menta, p. 69).
O que se nota é que a maior parte das torcidas nasce a partir de situa-
ções conflituosas. Paradoxalmente, mesmo uma espécie de rede de solidarie-
dade, há um sentido de união entre os torcedores que se agrupam sob um nome e
uma causa. Essa colaboração faz com que o indivíduo se sinta entre os seus. Para
muitos, a organizada funciona como uma família, os demais associados, para
ele, são seus irmãos, com os quais podem contar, sempre.
“... a mais distante cidade que nós tivemos foi no Vale do Paraíba,
em Guaratinguetá, quase 600 quilômetros pra chegar, são 1.200
entre ir e vir ... você está lá, isolado, com 50 elementos, mas o jo-
gador se sente prestigiado, é minoria diante do adversário, mas ele
sabe que você está ali, ele vai jogar para você, para retribuir a ca-
minhada. Porque eles tiveram uma noite boa, um café da manhã
bom, vão ter um almoço bom, ou tiveram, e vão voltar com con-
forto. Torcedor não tem esta mordomia, o clube pode contribuir
com ônibus, ajuda, que existe o gasto do ingresso, sai do bolso
da gente, o rateio para o lanche, para um elemento que você sabe
que tem dificuldade, então existe aquela união, ninguém deixa de
entrar no estádio, ninguém deixa de comer, a gente mantém esta
união... Esse esforço não aparece na mídia, eles não sabem, no
fundo, o que se passa ...” (Pavanello)
167
No grupo, todos são iguais, as diferenças sociais são postas de lado,
pelo menos por alguns instantes. Teixeira (1998) colheu depoimentos esclarece-
dores sobre isso, entre os torcedores cariocas:
“Não importa o que você é. Maluco, advogado, polícia, qualquer
segmento social. Importante é que você seja Flamengo”.
“Tem vários torcedores aqui, vários componentes nossos que fa-
lam de política, uns o PDT doente, uns são PT, uns gostam de
Che Guevara. Outros são mais do lado de Deus ... uns já são do
diabo. Tem vários tipos de componentes, aqui tem de tudo”.
“Eu aprendi muita coisa porque a torcida é uma amostra da socie-
dade ... tem pessoas ricas com dinheiro que são amamãezadas, né?
Ou aqueles que tem dinheiro e são revoltados, tem os sem-grana
que de repente fazem de tudo para se dar bem e tem aqueles que
são super honestos ... Quer dizer é uma amostra da sociedade, vo-
começa crescer (...) Você fica mais humano, você começa a en-
tender melhor essa relação de classe ....”
“Tem um mundo de seres humanos ali, assaltante, drogado, pes-
soas de bem, trabalhador. Tem de tudo. Mescla tudo dentro de um
meio ali e esse meio é o quê? O fanatismo pelo time, que une es-
sas pessoas num mesmo pensamento”. (Teixeira, 1998, p.135)
“(...) é um grupo diversificado, aqui temos pessoas de todas as
classes. (...) temos pessoas aqui dentro que participam de partidos
políticos (...), ricos, pobres, negros, amarelos, viciados (...) A gen-
te forma uma grande família”. (Paulo Serdan, presidente da torci-
da Mancha Verde, in: Pimenta, 1997, p.96)
Portanto, embutido no fenômeno organizadas, processos de identi-
ficação em duas mãos. De um lado, se dão através da diferenciação, quando os
torcedores adotam uma agremiação e se distinguem dos demais, ao assumirem-
se como corintianos, palmeirenses, flamenguistas, vascaínos, etc. De outro, se dá
pela afinidade entre os associados, que se juntam para serem iguais entre eles.
Pertencer a uma torcida significa muito mais que ter simpatia por um time, im-
plica em compromissos como pagamento de mensalidades, a presença no está-
dio, conhecer as músicas, participar das coreografias e brigar, muito.
168
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Atualmente é impossível se falar em torcidas de futebol, do Brasil ou
de qualquer outro país, sem fazer referência à violência. E esse não é um pro-
blema recente, como muitos imaginam. Na Inglaterra, berço do futebol, alguns
registros atestam a rivalidade e as brigas entre torcidas desde a segunda metade
do século XIX.
(...) Cada uma das grandes cidades industriais inglesas se veria di-
vidida nesse período [durante a década de 1880] em duas imensas
comunidades rivais, arrastadas ao mais apaixonado estado de lou-
cura, quando os times que as representavam se viam frente a fren-
te nos limites do gramado e dos noventas minutos. Era uma como-
ção, um redemoinho, um cataclisma de nervos arrebentados e co-
rações explodidos, não raro com algumas cabeças quebradas e o-
lhos arroxeados. Era assim que se enfrentavam, por exemplo, o
Manchester United e o Manchester City; o Nottingham Forest e o
Nottingham County; o Glasgow Celtics e o Glasgow Rangers; ou,
em Londres, qualquer partida em que se confrontassem os arquiri-
vais Arsenal, Chelsea e Crystal Palace. (Sevcenko, 1994:35 in:
Damo, 1998, p.29)
Segundo Pimenta (op.cit.), entre 1895 e 1915 a Federação Inglesa de
Futebol adotou inúmeras medidas para tentar coibir as desordens e o comporta-
mento violento dos torcedores, entre elas interdições de estádios, advertências
aos clubes, etc. Depois desse período, a incidência de atos violentos arrefeceu até
pelo menos a metade da década de 1950, para depois recrudescer e atingir o auge
nas décadas de 1980 e 1990. Mas foi a partir dos anos 60, com o surgimento de
uma nova categoria de torcedor, denominada pela mídia inglesa de hooligans
38
,
que o mundo do futebol veria a violência atingir proporções de insanidade e o
fenômeno passou a preocupar as autoridades inglesas de um modo mais intenso.
Pior, tal comportamento agressivo seria “exportado” para a maioria dos países
38
“O termo hooligan tem sua origem ligada ao nome de uma família irlandesa que viveu em Londres, no fim do
século XIX (Houlihan). Devido às características de violência e de não sociabilidade de seus membros, esse
termo passou, gradativamente, a designar os jovens que se organizavam em gangues” (Costa, Márcia Regina da.
In: Pimenta, 1997, p.72)
169
onde o futebol tivesse popularidade, como o Brasil. Isso, entretanto, não signifi-
ca que os torcedores de outros países tenham se tornado violentos por terem “co-
piado” o comportamento dos ingleses.
Cabe ressaltar que a violência nos estádios de futebol está associ-
ada, seguramente, ao processo de industrialização e suas conse-
qüências nos centros urbanos dos países que promoveram a cons-
trução de uma cultura específica, porém, com as peculiaridades de
cada sociedade. (Pimenta,1997, p.73)
Os hooligans se tornaram sinônimo de violência no futebol, mesmo
caminho trilhado pelas torcidas organizadas brasileiras, pelos barras-bravas ar-
gentinos, pelos tiffosi italianos, etc. Embora haja muitas diferenças entre os tor-
cedores ingleses e brasileiros, a começar pela própria história do futebol nos dois
países
39
, organizados e hooligans têm pontos em comum, como o fato de terem
surgido no final da década de 1960
40
e que, após eles, a violência no futebol au-
mentou de forma abrupta. o que antes deles não existisse violência, pelo con-
trário, mas essa tinha motivações diferentes e, raramente terminavam em mortes.
Paralelamente ao ludismo estampado na devoção e na festa dos organizados, se
desenrola uma disputa baseada em agressões físicas com objetivos como “impor
respeito” ou simplesmente de buscar a “violência pela violência”.
“... acho que o torcedor quando monta uma torcida organizada é
uma coisa tribal, de batalha de guerra. Tanto que nas vitórias os
caras brigam. Eu conversei com um torcedor da Mancha Bauru
uma vez, ele queria que eu entrasse na torcida, ele falou que
quando o São Paulo jogava e o Palmeiras o, eles iam para a
porta do estádio do São Paulo para brigar com alguém. O que
me espantou nas organizadas foram cenas de brutalidade que eu
vi, eu presenciei em Rio Preto, presenciei uma batalha campal,
um confronto na (rua) Constituição, em São Paulo, num jogo
Palmeiras e São Paulo da Libertadores de 94, uma família pas-
sando e os caras brigando, um apontava rojão contra o outro,
paulada e pedrada pra e pra cá. Aquilo me deixou muito triste.
Quando eu criei uma torcida de futebol a gente ia de trenzinho
39
No capítulo 2 do presente texto.
40
Mais detalhes à frente neste capítulo.
170
da alegria para o campo. Eu sonhava de ser carnaval. Eu gos-
to do batuque, gosto da cerveja e gosto de amizade, sempre gos-
tei de grêmios, clubinhos, associações, montar turma ser líder.
Então eu montei uma organizada, a Noruscaipira, eu pensei “vai
ser legal, todo mundo vai se divertir”. A gente levava uma ban-
dinha do Liceu [Noroeste, colégio de Bauru]. Em 92 na Primeira
Divisão, eu achava que a gente ia se divertir muito, mas você
espírito-de-porco no meio da sua torcida. Hoje eu vejo assim
uma organizada, o cara está indo num Corinthians e Flamengo
no Rio, nessa organizada, no meio dela, vai aparecer bandidos,
traficantes, desempregados, que se juntam ali e põem a camisa
da Gaviões, da Mancha, da Independente, da Jovem, da Leões da
Fabulosa da Portuguesa (que é pequena, mas violentíssima, de
bater em jogador e quebrar as coisas), esse torcedor, ele vai se
fortalecer. “Se eu arrumar uma encrenca aqui, todo mundo en-
tra”. E esse cara é um bandido em potencial. Ele vai passar ma-
conha pro moleque, ele vai passar uma arma branca, vai ensinar
o moleque a atirar, a brigar com o outro, a fazer alguma coisa
assim, quer dizer, que vai acontecer da torcida organizada ficar
desorganizada. (Sinuhe)
Pimenta (p. 71) levantou 18 tragédias “que marcaram a história do fu-
tebol mundial envolvendo confronto entre torcedores”, ocorridas entre os anos
de 1946 e 1985, em 14 países, nenhuma delas no Brasil. Porém, não ter sido in-
cluído não é sinônimo de que no país não tenham ocorrido mortes em função dos
confrontos, o dado é importante por mostrar que o comportamento violento não é
exclusivo das torcidas organizadas brasileiras, se dá também em outros contextos
socioculturais. O autor apresenta também um levantamento que registra 67 casos
de violência envolvendo torcedores publicados pela imprensa Paulista entre 1981
e 1995. No total, 25 torcedores morreram nesses confrontos (15 pertencentes a
torcidas organizadas e 10 identificados como comuns). O número de feridos
chega a 654. A cada episódio, a sociedade tenta buscar respostas, enquanto o po-
der público procura reagir para coibir a violência. Em São Paulo, algumas torci-
das organizadas, que comprovadamente se envolveram em episódios graves fo-
171
ram proibidas de existir
41
. Nada disso conseguiu solucionar a questão, numa re-
petição do que ocorreu na Europa, fazendo com que as sociedades em que o
problema se manifesta devam continuar a buscar respostas ainda por um bom
tempo. Um exemplo de quão complexa pode ser esta tarefa são os torcedores
conhecidos como casuels, fenômeno surgido na década de 1985, na Ingleterra,
após duras medidas tomadas pelas autoridades para combater o hooliganismo.
Para driblar o aparelho de segurança pública, grupos de hooligans passaram a ir
aos jogos vestidos com roupas de marcas e a se misturar aos demais torcedores e
a marcar os confrontos com os torcedores adversários fora dos estádios e em dias
de jogos não considerados “de risco” pelo controle policial. Dessa forma, podem
acompanhar os times e também dar vazão a seus instintos violentos. De forma
que, com tais características, as relações entre os torcedores e a imprensa não
poderiam ser livre de conflitos, como se verá no próximo item.
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Em relação à imprensa, em geral, os torcedores organizados, inclusive
os entrevistados neste trabalho, fazem avaliações negativas. A maioria os ór-
gãos de imprensa como responsáveis pela imagem agressiva que consideram
“distorcida” que se criou em relação aos organizados.
“Eu acho que [a mídia] deveria falar mais a verdade, mesmo que
for mal para algum lado, mas que falasse mais a verdade, porque
eu acho que muitas coisas ... acho não, tenho certeza ... porque
você muitas coisas no jornal, chega no final da tarde, você liga
a tevê está anunciando outra totalmente diferente. É que tem que
vender, a mídia tem que vender o seu produto, tem que trabalhar
em cima disto. Mas eu acho que deveria se falar mais a verdade,
antes de lançar alguma coisa no mercado, no jornal, na revista,
deveria ter a certeza, porque isto influencia os torcedores. Às ve-
zes você triste com o seu time, você certas coisas e pensa:
41
No entanto, duas das principais torcidas extintas oficialmente, resistiram e ainda hoje desafiam a proibição. A
Mancha Verde, do Palmeiras, trocou de nome para Mancha Alviverde e A Independente, do São Paulo, se man-
tém a custa de liminares, assim, de qualquer modo, permaneceram.
172
‘ô legal’. Daí a pouco, não é nada daquilo. Você lá: vai contra-
tar tal pessoa, você compra bebida, compra jornal, assina revista,
pensando que é aquilo e vai ver não é nada daquilo. [a mídia]
Vende uma ilusão para o torcedor, nem sempre é verdade... Mui-
tos torcedores nossos, o pessoal, às vezes chega e comenta: ‘ah,
você viu? O Corinthians vai fazer isso...’ Eu pergunto: ‘aonde vo-
viu isto?’, ‘Ah eu li numa revista, li num jornal...’ Hoje em dia
eu acredito vendo. ‘O Corinthians vai contratar o Maradona
42
!’
Eu falo assim: ‘legal’ [com desdenho]. acredito a hora que ele
chegar no Parque São Jorge, vestindo a camisa, porque não pra
você acreditar... Tem muitas matérias boas, eu acho que é mais
parte negativa, mas tem muitas matérias boas. Às vezes, você está
curioso, querendo saber certos assuntos... Que nem na parte de ar-
tes [do jornal]... O que está acontecendo? Porque tem muitas coi-
sas que eu chego: ‘nossa o que está acontecendo? O que vai acon-
tecer? Será que vai ter os jogos?’ Então, você vai no jornal e fi-
ca sabendo o que está acontecendo.” (Giva)
Gianoli (1996, p.157), colheu a seguinte declaração de um torcedor,
sobre os motivos que levam as organizadas a criarem cantos, “gritos de guerra”
e coreografias: “Tudo para contestar a imprensa”, afirmou um torcedor, porque a
mesma usaria as torcidas organizadas como bode expiatório pela violência no
futebol. A gente gasta dinheiro e fica trabalhando até tarde porque tem que se
preparar para um jogo, isso a imprensa não mostra”, afirmou o mesmo torce-
dor. Questionado se sente-se representado na imprensa enquanto torcedor, um
dos entrevistados para o presente trabalho também fez críticas contundentes so-
bre a atuação da mídia esportiva.
“Eles [e imprensa] mostram a parte ruim da torcida. Quando
tem uma briga no estádio mostra lá. A torcida causou a briga, olha
que escândalo! Mataram um torcedor, pisotearam o torcedor...
Mas quando o torcedor chega pra comprar o ingresso, enfrenta
aquela puta fila e não consegue comprar o ingresso, a imprensa
não divulga. Você vai, viaja - que nem nós aqui, são 400km até
São Paulo pra assistir um jogo do Corinthians, qualquer jogo do
Corinthians pra nós é uma viagem - a gente chega pra comprar
o ingresso e, às vezes, não tem. Você fica debaixo de sol, chuva,
ninguém isto. um jogador se machuca, eles falam: ‘ah, coi-
42
Nome do jogador argentino aposentado, sinônimo de “craque” entre os torcedores.
173
tado do jogador, treinou e se machucou’. que eles o vêem,
não falam, da torcida, não representam a torcida, não vêem o sa-
crifício que a gente faz. Isto aí a imprensa não mostra, eu acho que
a imprensa deveria mostrar um pouco isto pros próprios jogadores
verem o sacrifício que a torcida faz pelo seu clube. Ele vai, resiste
à esposa, deixa serviço, escola, tudo pra acompanhar o clube, sen-
do que a imprensa nem divulga isto, fala só sobre o time. “O joga-
dor não pôde jogar porque pegou uma gripe”. O torcedor está
na arquibancada com gripe, doente, com a família em casa pas-
sando mal também, passando necessidade, só que o torcedor está
lá, ele vai. Isso a imprensa não mostra, mostra o lado dos joga-
dores. Acho que deveria mostrar um pouco mais da torcida. Como
que o torcedor vai, as dificuldades que o torcedor tem pra chegar
num estádio. Por exemplo, numa final da Libertadores, o clube
aumenta o preço do ingresso, hoje em dia, no nosso país, como
que você consegue pagar R$ 70,00 um ingresso? No [Campeona-
to] Brasileiro agora, está R$ 20,00 o ingresso, tem oito jogos no
mês, às vezes, o torcedor ganha um salário mínimo, como ele po-
de acompanhar o seu clube? É bem complicado, e este lado a im-
prensa não mostra, às vezes, até puxa mais a sardinha pro lado do
clube. “Vamos aumentar, vamos profissionalizar o futebol”. Mas
quem faz a alegria do futebol é o povão... (Givanildo)
Os torcedores não ligados a torcidas organizados entrevistados para o
presente trabalho também foram convidados a tecer considerações a respeito da
influência da mídia sobre suas práticas.
“O jornalista influencia a gente sim, quando fala muito sobre um
time só. Conforme eles falam sobre os times, você passa a simpa-
tizar por eles. Porque o jornalista sabe conduzir o torcedor...” (E-
rasmo)
“Veja pelos times europeus, que ninguém conhece, mas começa a
passar na tevê e, pela mídia, a gente começa a ter simpatia por e-
les, torcer para o Real [Madrid], Barcelona, etc. Tem a publicida-
de também, que influencia bastante.” (Mário)
“Até brinco com alguns cunhados, com meus primos, que têm a
mesma idade que eu e torcem para o São Paulo. Eu falo que é
porque o São Paulo foi bicampeão da Libertadores, ganhou vários
títulos e ficou muito exposto na mídia, com posters, etc. Não
nos jornais, mas na televisão também, mostrou muito tudo aquilo,
acho que a mídia tem poder de convencimento, em todos os senti-
dos. Hoje você é Lula e amanhã não é mais. A mídia, não sei se
felizmente ou infelizmente, tem esse poder de convencimento.
(André)
174
O que se percebe é que os torcedores reconhecem os meios de comu-
nicação como potencialmente capazes de manipular informações e induzir os
leitores a assumirem opiniões, por outro lado, as notícias se baseiam em fatos
que nem sempre correspondem à realidade, são construções discursivas. Ao
mostrar que reconhecem uma intenção subliminar nos discursos midiáticos, os
torcedores se contradizem, pois demonstram que eles mesmos não foram mani-
pulados, o que é suficiente para dizer que o poder de convencimento da mídia
não é tão abrangente e influente. Exemplos dessa instabilidade são comumente
encontrados em reportagens publicadas na mídia esportiva impressa, fonte de
informação e formação para uma parcela considerável das pessoas envolvidas no
fenômeno. Na seqüência de textos abaixo
43
, apresenta-se uma dessas situações.
Texto 1
Norusca rompe com torcida organizada
Direção do clube denuncia hostilidades por parte de membros da
Sangue Rubro, apesar da vitória sobre a Matonense
1 Damião Garcia condenou as hostilidades de alguns elemen-
tos da Sangue Rubro, quinta-feira à noite, apesar da vitória
sobre a Matonense por 1 a 0, pelo Campeonato Paulista da
Série A2.
2 Segundo o presidente do Noroeste, as relações com a prin-
cipal facção da torcida organizada estão cortadas, pelo me-
nos temporariamente.
3 “Ao invés de comemoração pelo resultado, aconteceu um
ato de vandalismo, que me entristece muito”, afirmou Da-
mião Garcia, explicando que não adianta ele receber elogi-
os, se outras pessoas do clube recebem insultos e tentativas
de agressões.
4 “O time melhorou em relação aos jogos anteriores e ven-
ceu. Mas mesmo que tivesse perdido, não há justificativa
para as agressões. Não precisamos de torcedor desse tipo,
prefiro que eles nem apareçam no estádio”, disse Damião,
consolando a funcionária do Noroeste, Josiane Cardoso, a
Josi, que foi a principal vítima das cenas de selvageria. Josi
43
Essa análise está livre de qualquer valor de juízo sobre quem está certo ou errado em relação aos acontecimen-
tos relatados.
175
contou que ela e a colega de trabalho Elaine, sofreram hu-
milhações e quase foram agredidas.
5 “Dez ou 15 torcedores com a camisa da Sangue Rubro cer-
caram meu carro na entrada do portão e me chamaram de
vagabunda, p. além dos pontapés no veículo, causando da-
nos na lataria. Alegaram que eu joguei o carro contra eles,
mas não foi isso. Como eu estava assustada, acelerei um
pouco para fugir da fúria deles. Depois, na rua, um torcedor
investiu contra mim e não me agrediu mais graças ao
Pavanello, que interferiu”.
6 Josi lamentou a ausência da polícia no local, e procurava
identificar o agressor para fazer um Boletim de Ocorrência
ainda ontem.
7 Celso Zinsly, por sua vez, chegou a pedir demissão do car-
go, estava irredutível, e só voltou atrás por causa dos apelos
de Damião.
8 “Coloco muito dinheiro, sim, do meu bolso. Mas não adi-
anta gastar, se eu não contar com uma pessoa talentosa, de
minha confiança. Tudo que foi feito no estádio foi planeja-
do pelo Celso”, diz o presidente.
9 Membros da comissão técnica, funcionários do clube, al-
guns jogadores e imprensa, também lamentaram o triste a-
contecimento. Segundo eles, foram ofensas que partiram
das arquibancadas durante a partida, e na entrada de um dos
principais portões do Estádio Alfredo de Castilho.
10 “Nossa torcida é maravilhosa e vem nos apoiando. A média
por jogo desde o ano passado, tem sido de três mil pessoas.
Esses são noroestinos de verdade. a organizada, com 40,
50 ou 70 integrantes, sei lá, o representa nada. Não será
por causa dela que vamos subir para a Série A1 e nem cair
para a A3”, afirmou Celso Zinsly.
11 Dizendo que Sinuhe Daniel - fundador da extinta Norus-
caipira - é um grande noroestino, “além de ter educação”,
Celso lembra de outro protesto da Sangue, que segundo ele,
foi injusto.
12 “Num jogo que perdemos em Mirassol, no ano passado,
pagamos o ônibus para a viagem da Sangue Rubro, o in-
gresso da partida, e sabe qual foi o reconhecimento? Vira-
ram a faixa de ponta cabeça, vaiaram nosso time e gritaram
olé. São torcedores que ao invés de ajudar atrapalham”.
Texto 2
Pavanello pede desculpa
1 José Roberto Pavanello, criador e atual presidente da San-
gue Rubro, pede desculpa pelo incidente depois do jogo
176
contra a Matonense, no portão que acesso aos vestiários
e centro de treinamento do estádio.
2 “Realmente houve uma confusão e condeno todo o tipo de
hostilidades. Peço desculpa ao Noroeste, principalmente a
funcionária do clube. Estou muito chateado, foi lamentá-
vel”, disse Pavanello.
3 “É difícil controlar um grupo que tem dezenas de pessoas e
conter os mais exaltados. Mas tem uma coisa: torcedor que
não é sócio, adquire uma camisa da Sangue e se infiltra no
meio”.
4 O líder da torcida organizada garante que episódio como o
de quinta não se repetirá, e gostaria de se reunir com Celso
Zinsly. (Jornal da Cidade, 5/2/04, p. 12)
Texto 3
O restante é sigiloso
A respeito do incidente no dia 3 de fevereiro de 2005, nos portões
laterais do estádio “Alfredo de Castilho”, quando alguns torcedo-
res exaltados faziam seu protesto, a “senhorita Josi”, funcionária
do Esporte Clube Noroeste, antes de sair com o veículo Gol, parou
do lado de dentro das dependências do Alfredão e trocou de lugar
com o motorista e então acelerou o carro contra os torcedores.
Sendo assim, venho esclarecer que é uma grande mentira ela dizer
que acelerou porque estava com medo sendo que ela foi para o vo-
lante premeditadamente para de vontade própria jogar o carro
contra os torcedores. A torcida Sangue Rubro foi a torcida que le-
vou o E. C. Noroeste nas costas na série A3 chorando, sofrendo,
rindo e festejando e o como algumas pessoas do clube afirmam,
que podem se virar sem a torcida, sendo que na hora que o bicho
pega ou pegou foi a Sangue que salvou. (Landulpho Nascimento
Hortêncio, Tribuna do leitor, Jornal da Cidade, 7/2/2005)
Texto 4
O restante é invenção
1 Gostaria de esclarecer ao senhor Landulpho Nascimento Hor-
têncio (RG 26.191.087-5/SSP) que de forma alguma troquei de
lugar com outra pessoa no carro para assumir a direção, a
porque o carro é meu e quem o dirige sou eu. O que houve é
que minha colega de trabalho Elaine estava subindo ao lado de
seu namorado e parou meu carro dizendo que ia pegar uma ca-
rona até sair do portão central porque estava com medo de pas-
sar por ali e a torcida mexer com ela. Então, disse que tudo
bem e realmente abri a porta do carro e eles entraram, mas co-
mo disse, em momento algum troquei de lugar, como haviam
falado.
177
2 Também gostaria de esclarecer que não joguei o carro nos tor-
cedores propositalmente. Acontece que a torcida estava toda na
frente do veículo e realmente a única saída que encontrei foi
acelerar o carro para ver se eles saíam da frente, vindo a ocor-
rer chutes na lataria e palavras ofensivas. Imagine se passo
devagar...
3 Inclusive, porteiros do clube presenciaram o fato real. Estou
com minha consciência tranqüila, mas me senti na obrigação
de responder aos leitores, pois quem cala consente. Portanto, o
restante não é sigiloso, o restante é invenção. (Josiane Apare-
cida Cardoso, Tribuna do leitor, Jornal da Cidade, 10/2/2005)
Texto 5
Jogadores pedem apoio da torcida
1 Alegando que a partida é de vida ou morte, os jogadores do
Noroeste fazem um pedido aos torcedores, em termos de
apelo, para que compareçam em massa esta noite, ao Está-
dio Alfredo de Castilho. “Mais do que nunca precisamos do
apoio da nossa torcida. Sabemos que o time andou dando
umas derrapadas, mas não foi por falta de empenho. Nesta
quarta-feira, queremos casa cheia para nos incentivar. A
Sangue Rubro sempre nos apoiou e agora queremos um in-
centivo bem maior e de todos os torcedores”, afirmou o a-
tacante Gileno, ídolo da galera.
2 Outros jogadores, como o goleiro Maurício, o meia Luís
Carlos e o atacante Sinval, entrevistados nos últimos dias
pelas emissoras de rádio, conclamaram o público esportivo
da cidade para esse jogo, considerado o da ‘vida do Norus-
ca’. “Torcedor, precisamos do seu apoio”, disse Sinval.
3 Celso Zinsly e alguns jogadores preferem esquecer as críti-
cas e cobrança feitas desde as primeiras rodadas. “Num
momento importante como esse, todos devem cerrar fileiras
pelo time”, disse o gerente de futebol.
4 José Roberto Pavanello, chefe da Sangue Rubro, promete
uma festa esta noite no estádio. “A Sangue vai incentivar o
time do princípio ao fim do jogo. Se sempre apoiamos, nes-
ta quarta-feira o incentivo será maior ainda”, disse Pavanel-
lo. Os componentes da Sangue se reunirão por volta das
18h em frente ao ginásio de esportes. (Jornal da Cidade,
27/04/05, p. 10)
Interessante notar que, através das páginas dos jornais, um incidente
entre algumas pessoas à porta de um estádio assume proporções de confrontação
178
entre o clube e a torcida organizada. Se os envolvidos no momento dos fatos não
estivessem investidos de identificações que os ligassem a uma ou outra entidade,
provavelmente, o ocorrido não teria maiores conseqüências. Na visão do clube,
divulgada pelo jornal, as agressões ocorreram não contra uma pessoa apenas,
mas contra o próprio Noroeste. E, talvez, os torcedores tenham realmente agido
com essa intenção: a de agredir o clube. A desavença preexistia aos fatos, com se
nos parágrafos 11 e 12 do texto 1, no qual nota-se ainda que os torcedores di-
retamente envolvidos não foram identificados: na primeira referência que se faz
a eles, aparecem como 10 ou 15”. Certamente, o fato de a polícia não estar pre-
sente colaborou para isso, pois sem boletim de ocorrência não há como identifi-
car os acusados. Estes, aparecem prejulgados, como culpados pelo incidente,
como se nota pela classificação dos eventos como hostilidades” e
cenas de sel-
vageria”
(par.1 e 4, respectivamente). Um dos entrevistados também fala em “a-
tos de vandalismo”. Certo ou errado, os representantes do clube fazem, via im-
prensa, a oficialização ou, simplesmente, tornam público um rompimento de re-
lações.
No texto 2, publicado na mesma página, como uma sub, é dado voz a
um dos torcedores, porém, não para apresentar uma versão do ocorrido, mas para
pedir desculpas, primeiro ao clube, depois à pessoa agredida. Na condição de
presidente da torcida, o entrevistado fala por todos, e procura eximir a Sangue
Rubro de qualquer responsabilidade, ao dizer que não é possível controlar “os
mais exaltados” ou que as agressões poderiam ter sido feitas por torcedores in-
filtrados” usando a camisa do grupo. No texto, o torcedor ainda manda um reca-
do diretamente para um dos diretores do clube, predispondo-se ao diálogo.
A essa altura, não esmais em questão o fato de alguém ter sido a-
gredido após uma partida de futebol, os cidadãos protagonistas do fato que oca-
sionou toda a celeuma saem de cena e surgem então os desdobramentos naturais,
com novos atores. O rompimento poderia ter se dado sem uma real necessidade
de ser publicado - bastaria, por exemplo, que a diretoria do clube comunicasse à
179
da torcida organizada que as relações entre ambos estavam cortadas -, no entan-
to, ele se via imprensa. Na prática, busca-se castigar os agressores, livres de
sanções imediatamente após terem agido, devido à ausência dos órgão regulado-
res da convivência pública. Assim, o jornal não noticia o rompimento, implici-
tamente, o jornal promove o corte de relações, à semelhança de documentador da
atitude “drástica”. A imprensa transforma-se assim em um espaço não apenas de
discussão, mas também de solução para os conflitos, com penalizações, perdões,
pedidos de desculpas, acusações, etc.
Sem a intenção de “ressuscitar” o assunto, mesmo porque, o impasse
entre clube e torcida foi superado alguns meses depois (texto 5), ou de defender
quem quer que seja, apresenta-se aqui um depoimento do presidente da Sangue
Rubro sobre a atuação da imprensa neste caso.
“Só que eles [imprensa] venderam uma imagem errada, porque
não sabiam na íntegra o que houve, eles não foram ao fundo. É ‘o
que ouvi falar, o que comentaram’. Então nós tentamos nosso es-
paço para justificar e não houve, não foi dado este espaço pra gen-
te. Não sei porque cargas d’água. Ou se pelo bom relacionamento
que eles têm com a diretoria do clube, ficou elas por elas...que
o tempo mostrou, hoje as coisas voltaram à normalidade, tanto
com a diretoria que reconhece a importância da gente, nós esta-
mos aí... Esse episódio marcou muito. Uma emissora [de rádio]
fechou a porta para a gente, a outra, é ligada ao clube... No caso
do JC, talvez alguém lá tenha amizade demais com a diretoria, fal-
tou esse espaço. E isso não é cobrado por mim não, é pela maioria
dos torcedores, que falam: ‘vocês não se defenderam?’ ‘Não, se
vocês quiserem falar como amigo da gente...que nada disso
foi publicado, nem na rádio e nem no jornal...
(...)Esse episódio, talvez essa parcialidade houve, porque tudo
começou errado, a divulgação foi equivocada. Ninguém, na rádio,
no jornal ou da tevê chegou para perguntar a nossa versão,
houve uma versão. “Ah, mas eu abri um espaço para vocês”. Puxa
vida, o presidente não vai numa emissora de rádio sabendo que vai
‘cair numa arena’, sabendo que vai ser bombardeado... O que ma-
goou a gente é que não houve o espaço que a gente esperava para
defesa...” (Pavanello)
180
O conflito ocorreu no dia 3 de fevereiro e foi publicado no jornal dois
dias depois, ou seja, o que foi divulgado pelo órgão de imprensa foram versões
de cada um dos envolvidos, entretanto, não é necessário uma análise muito mi-
nuciosa para se constatar que a cobertura do assunto foi tendenciosa para um dos
lados e, a seguir, adotou-se o silêncio. Ainda que tenham sido publicadas cartas
dos envolvidos alguns dias depois (textos 3 e 4), no ponto de vista estritamente
jornalístico, elas não podem ser consideradas matérias, pelo fato de não terem
sido produzidas pelo jornal. Além disso, as cartas apareceram numa seção espe-
cífica do jornal, que voz aos leitores em geral. O desdobramento do fato não
foi acompanhado pela editoria que deu amplo destaque para o “dia do rompi-
mento”. As cartas demonstram que o fato não chegou a ser totalmente esclareci-
do. Ao optar pelo silêncio e não mais publicar matérias sobre o caso, no mínimo,
o jornal deixou de dar uma resposta a seus próprios leitores, mais ainda após as
dúvidas levantadas na seção de cartas.
Surpreendente, em tudo isso é que, no texto 5, publicado 84 dias após
o incidente, os discursos mudam de tom. Esquece-se o passado
recente para con-
clamar a torcida a “cerrar fileiras” pelo clube. A expressão remete a uma convo-
cação para uma guerra. A organizada que não “representava nada” assume im-
portância vital em um jogo de “vida ou morte”. As divergências são superadas
em nome de um objetivo que passa a ser comum: a vitória do time.
Este caso serve para ilustrar como são conflituosas e contraditórias as
relações dos torcedores com os clubes e de ambos com a imprensa. Isso ocorre,
entre outras coisas, porque na raiz de todo o imbróglio está a insatisfação do tor-
cedor com a performance dos atletas e com o modo de agir daqueles que o estão
representando. Os torcedores avaliam os jogadores, julgam se estes honram, ou
não, a camisa. Os torcedores organizados reivindicam o direito de exigir dos jo-
gadores, técnicos e dirigentes que tenham bom desempenho. E fazem isso, por
que sofrem com as derrotas do time, que sempre que não agradar a torcida, pro-
porciona o risco de ocorrerem conflitos, que, na imprensa, são ampliados.
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A primeira questão a ser respondida neste capítulo é: o que é, ou que
são representações? A resposta, mais uma vez, é complexa, pois este não é um
termo claramente definido. França (2004, p.14) lembra que o conceito de repre-
sentação vem sendo historicamente construído “nas fronteiras da sociologia, psi-
cologia e semiótica”. Nas Ciências Sociais, “dizem respeito aos significados, às
imagens, ao quadro de sentidos construídos e partilhados por uma sociedade”. Na
Psicologia, diz respeito à capacidade de simbolização dos indivíduos, ligadas aos
processos de socialização e construção da noção de sujeito, são construções par-
ticulares que expressam a subjetividade do campo social”. Para a Semiótica, “diz
respeito às imagens mentais (processos intra-subjetivos), mas também à sua di-
mensão externa, forma de existência pública (processos intersubjetivos)”.
Portanto, dentro de uma perspectiva culturológica, representações são
construções simbólicas do homem sobre o mundo que o cerca, feitas de modo
subjetivo para uns e socialmente determinadas para outros, porém, sempre elabo-
radas fora dos fatos e dos objetos em si. Ou seja, representar algo, seja um acon-
tecimento, um sentimento ou um objeto materializado, é atribuir-lhe significação.
Quando se representa algo, é a idéia individual ou coletiva que se tem sobre isso
que é codificada e não a coisa em si. Esse processo, por sua vez, recebe influên-
cias das mediações, que, a grosso modo, “referem-se às nossas práticas sociais, à
nossa inserção na cultura, na história e no cotidiano”. (França, 2004, p. 20)
As representações midiáticas referem-se à significação que os meios de
comunicação de massa dão aos fatos que registram ou aos sujeitos que retratam.
E, para desvendá-las são necessárias análises que ultrapassem a superfície do tex-
to, que associem a historicidade dos meios e dos fenômenos, que busquem em
fatores como intertextualidade, vozes discursivas, coesão textual, relações de po-
der, etc, a real significação do que foi escrito, falado ou televisionado. As inter-
pretações dos discursos impressos, ou as maneiras como são recebidos pelos lei-
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tores, também são essenciais para completar a construção dos significados. Afi-
nal, uma representação se efetiva se quem a interpretar também atribuir-lhe
significação.
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Antes de apresentar o estudo de caso, através do qual se propõe analisar
as representações culturais do torcedor de futebol na imprensa esportiva, é neces-
sário fazer algumas considerações prévias sobre a natureza do espaço midiático
em que se desenrola o fenômeno a ser investigado. O Jornal da Cidade, publica-
ção escolhida para este estudo, é reconhecido como uma mídia local, termo que
tem uma multiplicidade de significações, determinadas pelo contexto em que é
invocado. Distinguir o que é local ou regional antes do desenvolvimento das tele-
comunicações e das redes de alcance mundial era bastante complicado, depois
do surgimento desses fenômenos, tornou-se tarefa quase impossível. Dois exem-
plos podem ilustrar tal dificuldade, o primeiro: um jornal que circule em um es-
paço geográfico demarcado como um bairro com a proposta de divulgar assuntos
de interesse específico para a população dessa localidade, é, sem hesitação, visto
como um meio de comunicação local e não deixará de sê-lo mesmo que passe a
ser disponibilizado na Internet e tornar-se acessível ao mundo inteiro. Ou seja, o
espaço de circulação das informações deixa der limitado, porém, a característica
da informação é mantida.
outros jornais, como o The New York Times, circulam por vastos es-
paços geográficos, com distribuição em muitas cidades. São veículos presentes
em mais de um país ou continente, por isso, a priori, não são reconhecidos como
mídia local ou mesmo regional. Contrariamente, porém, nos Estados Unidos e,
em particular, em New York, cidade de origem do exemplo, pode ser visto como
uma mídia local, sem vida de alcance e importância mundial, entretanto ainda
um jornal de New York.
184
No Brasil, muito mais ainda que na França, os jornais (informa-
ção) seduzem microgrupos. Primeiro são jornais regionais. Mes-
mo os de alcance nacional, como Folha de S. Paulo, O Estado de
S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil, conservam marcas de inser-
ção regional muito fortes. O Jornal do Brasil e O Globo, encar-
nam, até certo ponto, um espírito carioca. Folha de S.Paulo e O
Estado de S. Paulo expressam, como se diz, principalmente os in-
teresses paulistas ou, ao menos, um modo de ver, um estilo dito
paulista. Depois, dentro de cada jornal, as diferentes seções con-
quistam públicos específicos. Raramente a informação alcança to-
dos ao mesmo tempo. Quase nunca ele é universal. Esse é um mi-
to do jornalismo ocidental. (Maffesoli, 2003, p. 15)
Portanto, um jornal é reconhecido como local ou regional muito mais
por sua capacidade de representar uma determinada região, pela existência de
uma identificação mútua entre o veículo e os atores sociais envolvidos no proces-
so, do que pelo fato de circular em espaços geograficamente delimitados ou se
pautarem por assuntos relacionados a uma determinada localidade. Quando se
fala em regional, ou local, faz-se uma referência à noção de identidade, portanto,
um processo regido por parâmetros culturais. Por sua capacidade de aglutinar e
representar aspectos do modo de vida dos meios sociais em que se processam, os
meios de comunicação local podem dizer muito sobre as comunidades em que
estão inseridos, pois passam eles mesmos a serem produtos culturais das mesmas.
A imprensa local é um espaço que reproduz, registra e, em certo senti-
do, amplia as representações culturais de uma região. Entre elas, as práticas es-
portivas competitivas, nas quais indivíduos ou equipes tomam o nome de todo o
grupo a que pertencem. Países, estados, municípios, bairros, clubes, etc, são re-
presentados por times, que tentam realizar performances cada vez mais eficientes
para “honrar” as cores que identificam o grupo a que pertencem, geralmente ma-
terializadas em camisas ou bandeiras. Daí a importância de se entender as dinâ-
micas e os reais significados das publicações chamadas locais.
O Jornal da Cidade possui muitas características que o distinguem co-
mo um veículo de comunicação local, que representa, especificamente, o municí-
185
pio de Bauru e algumas cidades próximas
44
. Isso faz do veículo, ele próprio, um
espaço onde diversos grupos dessa comunidade realizam trocas culturais e eco-
nômicas. A despeito de conter informações do mundo todo e buscar um perfil de
jornal metropolitano, o JC não perde suas características de meio de comunicação
regional, o que demonstra, entre outras coisas, que o termo mídia local também
não pode ser determinado pelo conteúdo em si, mas pelo interesse que esse con-
teúdo desperta. Assim, o JC mostra-se um órgão representativo para muitas análi-
ses que se queira realizar sobre os fenômenos midiáticos, também no caso das
relações entre torcedor de futebol e imprensa.
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Neste item apresenta-se um breve panorama histórico do jornalismo em
Bauru, uma vez que para se construir um relato mais detalhado, seria necessário
uma pesquisa que tratasse especificamente de tal tema. Ou seja, não há pretensões
aqui de se contar a história da imprensa na cidade, mas apenas conhecer o contex-
to histórico em que nasceu e se desenvolveu o Jornal da Cidade. Os dados levan-
tados foram extraídos de um caderno especial publicado pelo JC, no dia 1 de a-
gosto de 1987, sob o título “Resumo histórico da Imprensa de Bauru”.
O município de Bauru foi fundado em 1 de agosto de 1896 e o primeiro
jornal a circular na localidade foi o Progresso de Bahuru, em 1905. Com periodi-
cidade semanal e formato pequeno”, foi lançado no 1
o
de maio daquele ano. No
entanto, seis meses depois, por dificuldades financeiras, o pioneiro saía de cena.
O pouco que se sabe sobre o Progresso é que a iniciativa de lançá-lo foi do cida-
dão José Antonio Pereira Júnior e o gerente se chamava Horácio do Vale. Ante às
dificuldades para levar o empreendimento adiante, o proprietário da publicação
teria recorrido à Câmara Municipal, propondo divulgar os atos do órgão público
44
A população estimada da cidade de Bauru em 2005 é de 350.000 habitantes.
186
em troca de uma ajuda em dinheiro no valor de 240 mil réis. Com a “colabora-
ção” da edilidade, o pequeno hebdomadário circulou por mais alguns meses, po-
rém, em dezembro daquele mesmo ano, seu proprietário recorreu mais uma vez à
Câmara Municipal e solicitou um empréstimo de 500 mil réis. O parecer favorá-
vel, datado de 21 de dezembro, foi submetido à sessão plenária apenas em 12 de
fevereiro de 1906, quando o jornal já não mais circulava. A seguir, foi rejeitado.
Passaria-se ainda quase um ano para que a cidade voltasse a ter um pe-
riódico impresso. Em 16 de dezembro de 1906 começava a circular O Bauru, fun-
dado pelo advogado, político e comerciante Domiciano Silva. O jornal tinha o
formato de 30cm x 42cm, o que corresponde, aproximadamente, a um tablóide
atual, e mais estabilidade financeira que seu precursor, portanto, sem a perigosa
dependência de um órgão público a sustentar-lhe. Assim o periódico foi o primei-
ro na cidade a ultrapassar os 12 meses de vida, circulando normalmente até 1908,
quando, por motivos políticos e ameaçados de morte, seus proprietários tiveram
que deixar a cidade e a publicação suspensa. Àquela altura, porém, o jornal era
uma necessidade no município e, no mesmo ano, O Bauru voltaria à cena, sob a
direção de Almerindo Cardarelli. A instabilidade e violência política da época
foram uma constante ameaça ao periódico que conseguiu manter-se em atividade
até 1929, quando seu diretor decidiu-se pela aposentadoria e uma vida mais tran-
qüila, em uma fazenda da região junto com seus familiares.
O terceiro jornal a surgir em Bauru foi A Cidade de Bauru, fundado em
1909 e ligado ao Partido Republicano Paulista (PRP). Com o formato de 32cm x
45cm, um pouco maior que um tablóide e seis páginas, a exemplo de seus ante-
cessores era semanal. O principal objetivo inicial dessa publicação foi reforçar o
movimento que lutava pela criação da Comarca de Bauru, o que ocorreria em
1911. Um ano antes, em conseqüência de distúrbios causados pela disputa pela
presidência da República entre o marechal Hermes da Fonseca e Rui Barbosa, a
sede do jornal seria destruída por uma multidão favorável ao candidato civil, irri-
tados com a militância de A Cidade em favor do candidato militar (que ganhou o
187
pleito, saberia-se depois). Reconstruído, o jornal se engajaria ainda em outra
campanha, em 1913, contra a demolição da igreja matriz da cidade, entretanto,
dessa vez, sairia derrotado e seu proprietário, Nélson Noronha de Gustavo, mago-
ado com o fato, decidiu abandonar o município e A Cidade deixava de circular.
No ano seguinte, o redator-chefe desse jornal, Albino F. dos Santos
fundaria A Gazeta de Bauru, também semanário e assumidamente “órgão do Par-
tido Republicano”, porém, de vida efêmera (de fevereiro a setembro de 1914). No
ano seguinte, o advogado Eduardo Vergueiro de Lorena adquiriu o maquinário de
A Gazeta e lançou O Comércio de Bauru, que também não teria longa duração,
desaparecendo no mesmo ano.
Outro jornal de importância naquela época foi O Tempo, que teve seu
primeiro número lançado em 12 de maio de 1910, fundado por Carlos Marques da
Silva, um político que foi vereador e prefeito da cidade por duas vezes, com o
claro objetivo de se contrapor politicamente ao A Cidade. Apesar de não haver
precisão nos dados, essa publicação circulou até meados da década de 1920.
O primeiro jornal diário de Bauru começou a circular em 1916 e se
chamava O Correio de Bauru, que nascera semanal sob o nome O Dilúculo. O
fundador dessa publicação foi Manoel Ferreira Sandim, um português de nasci-
mento, simpatizante e militante do PRP. Em 1925, mais um diário começou a cir-
cular na cidade, tratava-se de o Diário da Noroeste. A opção política das duas
publicações, contra a Aliança Liberal, que apoiava Getúlio Vargas, acabou por
determinar-lhes um final trágico. No dia 24 de outubro de 1930, Vargas tomava o
poder e, no dia seguinte, simpatizantes da Aliança saíram às ruas para comemorar
ruidosa e violentamente a vitória. Resultado: as sedes dos dois diários foram “em-
pasteladas”, ficando totalmente destruídas.
Na década de 1930, Bauru viu nascer alguns dos principais órgãos de
imprensa de sua história. Em 1933 começava a circular semanalmente A Folha do
Povo, que receberia o reforço do extinto A Gazeta da Noroeste e, em 1937, se tor-
naria diário. Esse foi um dos jornais de mais longa duração na imprensa local,
188
circulando por mais de 30 anos. O fim da publicação começou em 1956, quando
um incêndio destruiu boa parte de sua sede, depois disso, teve diversos proprietá-
rios até parar de circular em meados dos anos de 1960.
Em 1931, surgiu O Correio da Noroeste, o mais duradouro dos jornais
antigos, que circulou durante “quase quatro décadas”. Este teria sido o primeiro
jornal de Bauru a dar importância maior aos esportes. Inclusive, seu proprietário,
José Fernandes, foi um dos fundadores da Liga Bauruense de Futebol Amador,
entidade ainda em atividade no município.
O Correio da Noroeste sempre dispensou aos esportes muita aten-
ção, encarando sua prática como uma atividade muito útil ao espí-
rito e ao corpo, desviando o pensamento da juventude de outros
campos nocivos aos costumes e à saúde.
O jornal criou a “Volta de Bauru”, grandiosa competição de pe-
destrianismo que se realizava anualmente. Organizava e patroci-
nava corridas de bicicletas, para adultos e para as categorias juve-
nis. E foi ainda o mesmo jornal, por inspiração de José Fernandes,
que deu origem ao tradicional campeonato amador de futebol, en-
tão com a denominação de Campeonato Varzeano de Futebol,
quando em 1942, patrocinou o primeiro certame dessa categoria.
A sede dos dirigentes estava localizada na própria redação do jor-
nal. (Jornal da Cidade, suplemento especial Imprensa, um poder
sempre vigilante, 1987, p. 14)
Em 1938 nasceu A Folha de Bauru, bisemanário vendido em 1945 para
Nicola Avallone Júnior, José Gomes de Araújo e Emílio Viegas, que remodela-
ram a publicação e mudaram seu nome para Diário de Bauru. O novo jornal co-
meçou a circular em 1 de janeiro de 1946 e resistiu ao final dos anos de 1990.
O Diário de Bauru serviu como meio de propaganda política para eleger Avallo-
ne Júnior prefeito, em 1955, e deputado estadual de 1959 a 1964, quando teve seu
mandato cassado. Gomes de Araújo também se beneficiou do jornal para conse-
guir um mandato como vereador em 1951. Viegas falecera logo apos a fundação
do diário.
Apesar dessa orientação política, a exemplo do Correio da Noroeste, o
Diário de Bauru teve desde de suas primeiras edições o esporte como um de seus
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principais temas. Com era costume à época, o jornal organizou e patrocinou di-
versos campeonatos de futebol, boa parte para categorias infantil. Um desses tor-
neios teria contado com a participação de um garoto chamado Edson Arantes do
Nascimento e apelidado
como Pelé, que mais tar-
de defenderia o Bauru
Atlético Clube e depois
seria reconhecido como o
melhor jogador de fute-
bol de todos os tempos.
A longevidade e re-
presentatividade do Diá-
rio de Bauru só viria a
ser repetida no município
pelo Jornal da Cidade,
que começou a circular
no dia 1 de agosto de
1967, com 52 páginas e
7.500 exemplares. O pro-
jeto de lançamento do
JC, como é comumente
chamado, teve à frente o
empresário Alcides
Franciscato, que se ele-
geria prefeito de Bauru
em 1968 e conseguiria quatro mandatos consecutivos na Assembléia Legislativa
paulista. O comando editorial da publicação foi entregue ao jornalista Nilson Cos-
ta, que tivera seu mandato de deputado cassado em 1966. Uma das principais
características empresariais do JC é acompanhar a inovação tecnológica, tanto
que, em 1972, tornou-se o primeiro jornal do interior do estado a ser impresso
Foto da primeira página do Jornal da Cidade número 1
190
em 1972, tornou-se o primeiro jornal do interior do estado a ser impresso pelo
sistema offset. Atualmente, a empresa possui um dos mais modernos parques grá-
ficos do país.
Em relação à linha editorial, o JC, em que pese ter nascido com motivações
políticas, não pode ser considerado um jornal combativo”, se o termo for pensa-
do como qualquer tipo de militância. A orientação sempre foi de ser um veículo
“informativo”, com notícias locais, regionais, nacionais e internacionais. Isso, po-
rém, não quer dizer que o JC não tenha participação ativa na vida política do mu-
nicípio, pois desde seus primeiros anos de vida revestiu-se, e foi aceito, como um
dos principais “formadores de opinião” na cidade. Quanto ao esporte, o JC nunca
deixou de circular sem dedicar ao menos uma de suas páginas ao tema, assunto a
ser tratado mais detalhadamente no próximo item.
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Das 52 páginas da primeira edição do Jornal da Cidade duas foram de-
dicadas ao tema esportes. Uma delas traçava a trajetória histórica do Bauru Atlé-
tico Clube (BAC), um dos clubes mais importantes da cidade e no qual o jogador
Pelé iniciou oficialmente sua carreira de atleta. No entanto, o texto de página in-
teira tem característica de propaganda institucional, não se trata de uma reporta-
gem sobre a instituição, mas de uma espécie de homenagem. O segundo texto,
com o título Noroeste é líder autentico e tem muita pinta de campeão” apresenta
um resumo da campanha do E.C. Noroeste no campeonato daquele ano e pode ser
considerado como a primeira matéria de esportes do JC.
Assim como o restante do jornal, devido às condições técnicas da épo-
ca, a página é graficamente rústica pra os padrões atuais, entretanto, em termos de
conteúdo, o JC adotava um discurso abertamente favorável ao clube em questão,
o que pode ser visto pela manchete. Pela quantidade de texto, vê-se que o esporte
não estava entre os principais assuntos abordados pela publicação.
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Até pelo menos 1970, o JC teria, em média, uma página de esportes por
dia, logo após a Copa do Mundo, essa média passaria a duas páginas e assim se
manteria por quase toda aquela década. Na década de 1980 essa média subiria
para três páginas e chegaria à média de 4,5 páginas esportivas diárias já na década
atual. Isso demonstra que o esporte foi ganhando espaço paulatinamente na publi-
cação e hoje é uma das maiores seções no todo do jornal.
Em relação ao conteúdo a editoria de esportes do JC passou por algu-
mas transformações. Até 1972, a maior parte das notícias eram sobre fatos locais.
Um exemplo é a edição de 10/08/1967, em que das seis matérias publicadas, cin-
co eram sobre acontecimentos esportivos de Bauru. O futebol nacional tinha seu
espaço, porém, bastante limitado, com uma matéria agregando as informações
de todos os times e feita por um correspondente instalado em São Paulo. Entre-
tanto, a partir daquele ano, o jornal entrou na “era das agências de notícias”, o que
operaria alterações consideráveis na pauta. Aos poucos, o futebol nacional tor-
nou-se o principal assunto no jornal. Pouco mais de 10 anos após sua fundação,
em 14 setembro de 1977, o JC circulava com duas páginas de esportes, nas quais
o material “de fora” superava a produção própria. Naquele dia foram publica-
das 13 matérias, sendo 5 locais e 8 nacionais ou internacionais, duas colunas (a
opinativa Em Confiança e uma de indicações para a Loteria Esportiva) e uma fo-
to-legenda.
Passados mais dez anos, em 13 de setembro de 1987, não se notam mu-
danças profundas na editoria, apenas um pequeno aprimoramento gráfico. Em
relação aos textos, o material não-local continuou predominando. A edição da-
quele dia foi composta de 20 matérias, sendo apenas 5 delas locais, ou seja 25%.
Na década de 1990, o jornal evoluiu graficamente, acompanhou as no-
vas tecnologias, passou a ser colorido e o esporte continuou ganhando espaço.
Também foi mantida a relação desfavorável entre o material local e o “de fora”.
Na edição de 10 de outubro de 1997, as três páginas de esportes do JC reuniram
25 matérias, apenas cinco delas produzidas pela própria editoria, ou seja 20%. O
192
futebol, em todos os casos sempre manteve-se como assunto predominante, seja
em relação ao esporte local ou não.
Assim, nota-se na trajetória da editoria de esportes do JC uma tendên-
cia a valorizar mais os acontecimentos não-locais. Da primeira página ‘100% lo-
cal” a publicação chegou a três páginas com 20% de material próprio. Esses nú-
meros, obviamente, pela pequena amostra, podem sofrer variações, mas estas não
serão significativas a ponto de contradizerem a constatação de que o material so-
bre o esporte local de Bauru foi perdendo espaço, curiosamente, enquanto a edito-
ria do assunto foi sendo ampliada. Tanto que a investigação feita com edições
mais recentes (2003) confirma essa tendência, como se verá no próximo item.
193
Acima e abaixo à esquerda, fotos da primeira página de esportes publicada pelo JC, em sua primeira edição
(01/08/1967). Abaixo, à direita, a página de esportes do JC no dia 10/08/1967
194
Acima, páginas de esportes do Jornal da Cidade de 14/09/1977; abaixo de 13/09/1987
195
Na década de 1990, já com páginas coloridas, o
JC circulava com a média de três páginas es-
portivas por dia. As fotos são da edição de
10/10/ de 1997.
196
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J
J
C
C
Neste item apresentam-se análises de conteúdo e dos discursos da edi-
toria de esportes do Jornal da Cidade. Para tanto, foram escolhidas três seqüên-
cias. A primeira, aleatória, composta de dez edições (entre os dias 7/12 e 16/12 de
2003) e as demais escolhidas em virtude de lacunas apresentadas nesse período,
como por exemplo o fato de o EC Noroeste, principal time de futebol da cidade,
não estar disputando nenhum campeonato nos dias das edições selecionadas, fator
que poderia influenciar nas observações. Assim, para preencher essa ausência, foi
incluída a seqüência dos dias 13/09 a 15/09 de 2003, quando o referido time esta-
va em atividade. A seqüência dos dias 19 e 20/10 de 2003 levou em consideração
o fato de se tratar de edições publicadas em um domingo e uma segunda-feira, os
dias em que o esporte é mais visado pelos jornais e também para efeitos de com-
paração com as primeiras análises.
O que se busca mostrar a partir destas análises é a representatividade da
editoria de esportes dentro da edição; a relação entre material local e não-local,
bem como entre futebol e demais esportes. No quadro a seguir, apresenta-se as
quantificações das 16 edições analisadas.
197
Data
(2003)
Total de
páginas na
edição
Primeiro
caderno
Páginas
de
esportes
Textos
sobre
esportes
Esporte
local
Sobre
futebol
Outros
Esportes
Sobre
futebol
local
7/12 (dom)
86 18 5 22 8 14 8 3
8/12 (seg)
26 14 5 25 5 18 7 4
9/12 (ter)
34 14 4 17 5 9 8 0
10/12 (qua)
42 16 4 18 2 13 5 1
11/12 (qui)
48 18 4 22 0 16 6 0
12/12 (sex)
42 18 4 21 1 17 4 1
13/12 (sáb)
50 18 4 22 2 15 7 1
14/12 (dom)
122* 18 5 17 5 10 7 5
15/12 (seg)
24 12 4 20 3 16 4 3
16/12 (ter)
32 12 3 14 3 10 4 2
13/9 (sáb)
48 18 5 26 13 14 12 5
14/9 (dom)
82 16 5 24 4 16 8 3
15/9 (seg)
24 12 5 27 3 19 8 3
18/10 (sáb)
52 18 5 20 6 14 6 2
19/10 (dom)
102 16 4 20 3 15 5 2
20/10 (seg)
24 12 4 21 3 16 5 3
Totais/
Médias
388
52,4
250
15,6
70
4,4
336
21
66
4,12
232
14,5
104
6,5
38
2,4
* Inclui caderno especial Guia de Compras, de 32 páginas, portanto, a edição teria 90 páginas.
Obs: não estão inclusas na contagem as colunas Em Confiança (diária), Tênis (às segundas-feiras) e Futebol
Menor (aos sábados).
Em relação a esses dados, num primeiro momento, observa-se que:
O número de páginas total do jornal é bastante variável, indo de um
mínimo de 24 até o máximo de 122. A média é de aproximadamente
52 páginas por edição, porém, se não se considerar as edições de
domingo, que incluem cadernos especiais, cai para 36 páginas.
198
O primeiro caderno, que inclui em todas as edições as páginas de es-
portes, tem um mero de páginas mais constante, variando de um
mínimo de 12 e um máximo de 18, com média de 15,46.
A editoria de esportes tem uma média de 4,33 páginas diárias, osci-
lando bastante entre 4 e 5. Desse modo, é responsável por mais de
um quarto das páginas do primeiro caderno.
Às segundas-feiras o assunto esporte chega a preencher mais de 40%
das páginas do primeiro caderno e 20% de toda a edição.
De um total de 336 matérias de esportes publicadas (média, 21,5 por
dia) apenas 66 se referiam a esporte local ou 18,5%.
O futebol é assunto predominante, sendo este o tema de 232 das 336
matérias publicadas (70%). O futebol local contribui com 15% do
material publicado sobre futebol. Se forem consideradas as edições
fora da seqüência de 7 a 16/12 (em virtude de o Noroeste não estar
em atividade) a participação do futebol local aumenta para 20%.
Observou-se ainda (não consta no quadro) que das 70 manchetes, ou
matérias principais das páginas de esportes, 38 foram sobre futebol
nacional, 14 sobre esportes locais (10 de futebol) e 13 de outros es-
portes.
A partir dessas quantificações, fica evidente que o esporte local não é a
prioridade da editoria, mas sim o futebol nacional, que ocupa 60% das manchetes
e é responsável por 70% de todo o material veiculado. O esporte local aparece em
21,5% das manchetes, mas é responsável por apenas 18,5% do material veicula-
do. Observe-se que no dia 11/12 de 2003, o JC circulou sem nenhuma matéria
sobre o esporte local. Naquele dia foram publicadas quatro páginas de esportes
com 3 manchetes sobre futebol e uma sobre a Superliga Masculina de Vôlei (tor-
neio sem participação de Bauru). No total foram 16 matérias de futebol e 6 de ou-
tros esportes. Se não forem consideradas as manchetes sobre futebol, o esporte da
199
cidade aparece apenas 3 vezes (4,6%) como matéria principal de uma página. Em
contrapartida, no dia 13/9/2003, o JC teve uma edição mais “balanceada”. Nas
cinco páginas de esportes, duas manchetes foram de futebol nacional, duas locais
e uma de tênis. Das 26 matérias publicadas naquele dia, 13 foram locais, portanto,
50% do material veiculado. Esses meros contradizem, pelo menos em relação
ao esporte, o slogan do jornal: O melhor jornal do [nosso] mundo.
Entretanto, embora os números mostrem o contrário, entre os leitores-
torcedores entrevistados a inserção de material sobre o esporte local no JC é con-
siderada satisfatória.
“Trabalham bem. Eles dão notícia até da segunda divisão do fu-
tebol amador. Eles procuram divulgar o futebol amador de Bau-
ru. Está bom, pelo porte da cidade o JC está bem em relação ao
esporte local, divulga bastante, inclusive basquete e outros”. (E-
rasmo)
“Não sou muito de acompanhar o esporte local. Mas sou até
torcedor do Norusca. O basquete está bem. Na verdade, eu não
me interesso muito pelo esporte local, eu leio mais aquilo que me
interessa diretamente, que é futebol, vôlei e Fórmula 1 Mas se o
JC desse mais espaço para outros esportes eu leria mais, claro”.
(Mário)
“O JC tem dado um espaço bom para o Noroeste. Também ao
basquete, principalmente quando ganhou os campeonatos Brasi-
leiro e Paulista, o JC deu matéria dignas da conquista. Acho que
tem mesmo de incentivar, independente de um ou outro patroci-
nador ser ou não anunciante do jornal. De vez em quando, tem as
manchetinhas sobre o judô do BTC, ‘ganhou não sei o quê’ ou
do xadrez, ‘conquistou tal’, acho interessante isso, inclusive se
possível ter fotos. Na verdade, acho que o JC não deixa muito a
desejar no esporte, como acontece com outros assuntos, mas não
vem ao caso aqui”. (André)
“Eu nem sabia que tinha ginástica em Bauru, e o Jornal da Ci-
dade falou de ginástica. O jornal fala do tênis, do pólo, tenho a-
lunos que participam do pólo e falam ‘nós saímos no jornal’. O
Quiroga joga hoje no Bauru Basquete, mas era comentado
desde os tempos de cadete. Então é um trabalho que é divulgado
assim”. (Sinuhe)
“Nessa parte de esporte local eu sou meio desatualizado, acom-
panho assim: leio alguma matéria, como está o resultado, mas
de passagem. Acompanho é o Corinthians. Às vezes, quando es-
tou na cidade, que estou de folga, alguma coisa, eu acompanho
200
eu vou assistir algum esporte amador, basquete, alguma coisa,
mas sou totalmente por fora... Mas apesar de não acompanhar
acho que o jornal uma boa cobertura. O amador, o que eu ve-
jo, futebol amador, cobertura total sobre jogadores, sobre os
times, como que está a campanha. Às vezes que acho que tem
cobertura melhor no futebol amador do que do próprio Estadual
mesmo”. (Givanildo)
Outra observação é que a tendência à supremacia do assunto futebol nas
páginas analisadas é mantida em relação ao esporte local, não apenas quanto aos
números, mas também quando se refere ao tratamento qualitativo das performan-
ces atléticas. Na edição de 8/12 foram publicados dois fatos que mereciam, no
mínimo, o mesmo destaque, porém, aconteceu o contrário. Enquanto a decisão do
campeonato de futebol amador da cidade, que teve inclusive chamada de capa,
ocupou quase uma página inteira, a conquista do campeonato estadual de basque-
te infanto-juvenil por uma equipe local mereceu apenas uma matéria de ¼ de pá-
gina, visivelmente elaborada a partir de um press release, ainda que pese o fato
de ter sido manchete. Fica evidente o uso de “dois pesos e duas medidas”. O feito
da equipe de basquete, em termos de dificuldade atlética foi de maior relevância e
poderia ter tido mais atenção.
Ainda em relação ao conteúdo e retornando ao assunto torcedor de fu-
tebol, observou-se que em 6 das 16 edições analisadas foram publicadas matérias
com títulos contendo a palavra “torcida” ou “torcedores”.
No dia 14/9/2003, g. 16, um texto de 3 colunas, aparece com o título
“Palmeiras empata e frustra torcida”. No entanto, na matéria, apenas em um dos
nove parágrafos faz-se uma pequena referência ao torcedor de futebol, com as
seguintes palavras: “Uma nova goleada se prenunciava. No entanto, coube à defe-
sa do Palmeiras estragar a festa da torcida, que ontem compareceu em pequeno
número”. Assim, não é um texto sobre o comportamento da torcida ante a um re-
sultado negativo da equipe, como sugere o titulo, mas sobre o jogo em si.
201
No dia 10/12/2003, pág. 14, texto de duas colunas, com o título Ponte
Preta espera pelo apoio maciço da torcida”. Na matéria fica implícita a importân-
cia do apoio do torcedor para que o time consiga alcançar a vitória. Para incenti-
var a presença de público em um jogo, a diretoria da A.A. Ponte Preta, de Campi-
nas, anunciava uma promoção no preço dos ingressos. Entretanto, no texto, pro-
duzido pela Agência Estado, fala-se do torcedor e para o torcedor sem dar-lhe voz
ativa. Além disso, fica no ar a dúvida: por que não houve essa movimentação e
preocupação do clube em ter casa cheia em outros jogos do campeonato? Por que
apenas na hora de extrema necessidade?
No dia 11/12/2003, pág. 16, matéria de 3 colunas, sob o título “FPF
quer a volta das uniformizadas”. Este sim um texto sobre torcidas, assinado pela
Agência Estado. Nele, estão presentes duas vozes: a do presidente da Federação
Paulista de Futebol e a de um misterioso “Marinho”, provavelmente ligado à Po-
lícia Militar. No final das contas, o torcedor é apenas o assunto a ser comentado,
nenhum representante das organizadas foi ouvido. Ressalve-se que isso pode ter
sido causado por alguma dificuldade do jornalista em encontrar membros das tor-
cidas ou até recusa destes em falar com a imprensa. O que, entretanto, não foi es-
clarecido aos leitores.
Em 13/12/2003, uma matéria de quatro colunas anuncia no título: “Tor-
cida é trunfo na última rodada”, que já denota o conteúdo, elaborado pela Agência
Folha, de São Paulo. O texto refere-se à última rodada do Campeonato Brasileiro
de 2003 e começa com a seguinte frase: “Os torcedores estão sendo convocados a
comparecer em massa aos estádios”. Com a necessidade de vencerem seus jo-
gos,alguns clubes fizeram promoções para ter casa cheia”, fator considerado es-
sencial para o time alcançar o resultado esperado. Mais uma vez, na hora do sufo-
co, os clubes buscam apoio na torcida. Apesar de ser uma matéria sobre a impor-
tância do torcedor em jogos decisivos, o torcedor continua sem voz ativa. Os jor-
nalistas ouviram os presidentes de três clubes e nenhum torcedor.
202
O quinto texto referente aos torcedores foi publicado em 15/12/2003,
como um “box” da matéria principal da página, sobre a vitória do Grêmio, de
Porto Alegre, sobre o Corinthians Paulista. Em duas colunas, sob o título “Torci-
da ‘enlouquecida’ tumultua final do jogo”, o jornalista fala sobre o comportamen-
to dos torcedores gremistas, que entusiasmados com a vitória da equipe, promo-
veram uma invasão do gramado. Na pequena reportagem, foram ouvidos o presi-
dente e o treinador do clube. Nenhum torcedor.
Finalmente o último “texto” sobre torcedores é uma foto da torcida do
Cruzeiro, de Belo Horizonte, que foi o campeão daquele ano. A imagem ilustra
uma matéria sobre a fórmula de disputa do campeonato que terminara dois dias
antes da edição. No texto em si, assinado pela Agência Estado, não referências
aos torcedores. Inclusive, uma frase chama a atenção: “O Brasileiro de 2003 foi
aprovado por boa parte dos jogadores, treinadores e dirigentes.” E os torcedores?
Resumo: num total de 241 matérias sobre futebol, cinco se referiam ex-
clusivamente ao torcedor e, em nenhuma delas ele surge com voz ativa. Por outro
lado, na seção A tribuna do leitor das 16 edições analisadas foram publicadas du-
as cartas com o assunto esporte, ambas sobre o E.C. Noroeste.
Ao torcedor sem limites
1. Agradecemos de coração as manifestações de carinho para com o
nosso Norusca do torcedor Reynaldo C. Grillo, New Jersey, USA.
Você não imagina o quanto importante são as críticas, sugestões e,
principalmente, elogios que nos animam ainda mais nessa difícil
missão de levar adiante a nossa proposta frente ao Esporte Clube
Noroeste.
2. Primeiramente, gostaríamos de dizer que a atual diretoria está
aqui para servir ao Noroeste e não se servir do Noroeste, contando
com transparência, honestidade, lealdade e, acima de tudo, boa von-
tade para colocar o Norusca no lugar de destaque que é o Paulistão.
3. Hoje, com as pendências sanadas, o clube pode se orgulhar de
dizer que tem alojamento para 16 atletas juniores, Casa do Atleta,
estando em fase de conclusão (pintura) com alojamento para 54 a-
tletas, todas instalações individuais, tipo flats. Tudo isso resultará
em uma economia de concentrações e refeições, uma vez que onde
funcionava a sala de atletismo, está sendo construída uma cozinha
para atender a demanda.
203
4. estamos atendendo em nossa nova administração que conta
com sala da presidência, gerência de futebol, tesouraria e secretaria,
visando atender aos nossos sócios, torcedores e admiradores que se
dirigem até ao Estádio Alfredo de Castilho, encontrando um ambi-
ente muito agradável e confortável.
5. Junto à secretaria estará também a galeria dos troféus conquista-
dos pelo clube ao longo de seus 93 anos de existência.
6. Também está em pleno funcionamento a sala de fisioterapia, que
conta com profissionais altamente competentes para atender todos
os atletas noroestinos que dela necessitarem.
7. É pensamento de nossa diretoria transformar a antiga secretaria,
ao lado dos portões de entrada do Estádio, em uma loja que estará
vendendo os produtos com a logomarca do Noroeste: a Noroeste
Mania. Funcionará inclusive em dia de jogos para atender aos nos-
sos torcedores.
8. Obrigado pelas palavras de reconhecimento e incentivo ao nosso
trabalho e esperamos poder contar com a união de torcedores vi-
sando levar o nosso querido Noroeste ao lugar que merece e você
mostrou que o bom senso não tem limites.
9. Solicitamos seu endereço para futuras correspondências e mos-
trarmos as novidades do Noroeste e também mandarmos uma lem-
brança de Natal. Um grande abraço, feliz Natal e que o novo ano
seja repleto de realizações. Celso Zinsly, gerente de Futebol do Es-
porte Clube Noroeste. (JC, 14/12/2003, p.2)
Novo Noroeste
Léo, você está correto! A grande maioria dos noroestinos é omissa
(me incluo) ou oportunista: não colabora efetivamente e assim fica
apenas na saudade e na espera de um milagre. Moro em São pualo
(estou fora de Bauru há 20 anos) e gostaria de participar mais efeti-
vamente da vida do clube que gosto e torço tanto, por isso pergun-
to: para me tornar sócio-contribuinte, como faço? Além de noroes-
tino sou palmeirense e pela primeira vez tiro meu chapéu para um
corintiano (mas também um grande noroestino, como eu): Damião
Garcia, parabéns. Antonio Augusto Juliani (JC, 16/12/2003, p. 2)
No primeiro caso, a carta é um agradecimento do clube a um torcedor
que assina Reynaldo C. Grillo, de New Jersey, USA, e costumeiramente tem suas
cartas publicadas na seção. O texto ocupa mais da metade da coluna e em seis
dos nove parágrafos o autor aproveita para desfilar ações e planos da diretoria do
clube. Assim, o agradecimento serviu de argumento para o clube falar dele pró-
prio. Além disso, implicitamente fica a mensagem de que é este tipo de torcedor,
que se manifesta sempre positivamente até mesmo quando faz críticas, que mere-
204
ce o apoio público dos dirigentes, uma vez que a carta foi a única manifestação
desta natureza observada.
A título de esclarecimento, antes de comentar a segunda carta, “Léo”, a
pessoa a que se refere o autor na primeira linha, é o senhor Leonardo de Brito,
editor de esportes do JC e Damião Garcia, o presidente do Noroeste. No texto
surge, enfim, a voz de um torcedor, que cobra publicamente um apoio mais subs-
tancial dos demais simpatizantes, ao mesmo tempo em que solicita informações
de como se filiar ao clube.
Em ambos os casos, os autores das cartas poderiam ter optado por um
contato direto, que não envolvesse o jornal, entretanto, não o fazem. Mas os mo-
tivos de terem se utilizado de um espaço público para manifestarem-se são dife-
rentes. O clube não pretendia apenas agradecer a um torcedor, mas tornar notório
o que a administração do Noroeste realizou durante o ano que, no calendário es-
portivo, terminara e também deixar claro qual tipo de torcedor quer ter. no
segundo caso, o torcedor pretende apenas compartilhar com os leitores sua apro-
vação a alguma declaração feita anteriormente pelo jornalista que cita no texto.
As informações solicitadas via imprensa, poderiam ser obtidas até com mais faci-
lidade junto ao próprio clube. É possível dizer que a verdadeira intenção do tor-
cedor talvez era mostrar-se ou ver-se nas páginas do jornal.
Entre os entrevistados para este trabalho, apenas um leitor afirmou sen-
tir-se representado, enquanto torcedor de futebol, pelo JC. Os demais responde-
ram negativamente e foram unânimes em reivindicar mais espaço para o torcedor
de futebol nas páginas do jornal.
“Sim, estou representado pelo jornal. Quando leio as matérias me
sinto mais próximo do time. Quanto à qualidade e espaço reserva-
do para o torcedor, é boa, mas podia ter mais uma página para es-
clarecer mais as dúvidas do torcedor”. (Arialdo)
“Não, de maneira nenhuma. Ele [o jornal] se preocupa com o clu-
be, mas não estão nem com o torcedor. O JC também deveria
dar mais voz para o torcedor. Jornal e rádio não dão apoio ao tor-
cedor”. (Erasmo)
205
“Não é o JC, outros jornais também deveriam de ter um espaço
para o torcedor falar, fazer o protesto. Você tanta coisa errada
no futebol, os dirigentes ... deveria ter um espaço para o torcedor
desabafar. O torcedor fica amargurado, sempre esperando uma
chance de dar sua opinião, que não tem voz, quem tem voz é
quem comanda o futebol, acho que a parte do torcedor fica meio
vaga. (Mário)
“Não. Não representa. o sei outros jornais. Mas o ‘nosso’ aqui
não. Pelo menos eu nunca vi manifestação de torcedor no jornal.
As entrevistas são direcionadas aos jogadores, técnicos e dirigen-
tes. Seria interessante, porque, na verdade, o próprio torcedor pre-
cisa expor sua opinião fazer críticas, construtivas ou não. Na ver-
dade tem ali a Coluna do leitor, que não é exatamente para isso,
mas daria para usar. Inclusive pensei em fazer um paralelo de
tudo o que está acontecendo na política...” (André)
“Eu daria mais espaço para o torcedor. Uma coisa é ligar para o
editor de esportes, para o jornalista responsável, e falar: ‘fala mais
do Palmeiras, o Noroeste está contratando não sei quem’. Outra é
o torcedor poder tirar aquele sarro, ele ser ‘o torcedor’, igual a i-
déia do Lance! de colocar o Tião da Fiel
45
, etc”. (Sinuhe)
“Não. Eu me baseio por algumas pessoas que mandam alguma
matéria pro jornal... as pessoas de bom senso não vão mandar ma-
téria ofendendo, xingando... mas eu acho que existe uma barreira
ali, é cortado parte do que a pessoa gostaria de expressar, então o
espaço do torcedor precisava se expressar um pouco mais. Se ele
quiser falar de um jogador, de um diretor, se estiver descontente,
eu acho que devia ter esse espaço, porque existe outros jornais, a
gente vê, que têm a chamada ‘voz da arquibancada’, o torcedor
tem espaço, desde que não esteja falando palavrão ou fazendo a-
cusações graves sem provas ... a gente vê, a gente está antenado e
toda hora no estádio as torcidas, o dia-a-dia dos clubes, é difí-
cil, o torcedor falar, se manifestar (...) então, esse tipo de espaço
para o torcedor, se for feito uma pesquisa geral entre os torcedo-
res, esse espaço está faltando ainda (...) num espaço democrático,
a gente poderia falar de nosso trabalho, dar nossa opinião a respei-
to de contratações de fulano, de beltrano, do treinador... da mesma
maneira que o diretor tem o espaço dele, o treinador, o jogador.
Mas o torcedor não tem esse espaço, quando ele escreve alguma
coisa, a gente percebe que não sai tudo. Um exemplo é o incidente
que aconteceu com a garota. Algumas pessoa me ligaram, não do
grupo, mas pessoas simpatizantes e disseram que mandaram maté-
rias, mas não foram publicadas, eram matérias de defesa, quem
45
O diário esportivo Lance! criou personagens de acordo com os estereótipos de torcedores dos chamados “ti-
mes grandes” paulistas (Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos), que dão sua opinião sobre jogos e outros
fatos relativos ao clube. Apesar da criatividade da iniciativa, os textos são elaborados na redação do matutino,
portanto, não são manifestações dos torcedores, mas de jornalistas.
206
conhecia a gente, sendo solidário a gente. o foram, publicadas,
também não cobramos e não sabemos ... a gente tem que respeitar.
Agora, se o jornal tem amizade demais com o diretor, com o pre-
sidente, com o jogador... O torcedor se manifestou, agora se não
foi publicado... (Pavanello)
Deve se considerar que a percepção do que é estar representado” é di-
ferente para cada um dos entrevistados. Para Arialdo, é “sentir-se mais próximo
do time”, ou seja, para ele, o importante são informações sobre o clube em si, se o
mesmo estiver representado, ele mesmo, Arialdo, estará. uma contradição na
opinião dele em relação ao espaço reservado ao torcedor: está bom”, mas pode-
ria “ter mais uma página”. Como são-paulino, ele se sente representado nas maté-
rias que saem diariamente sobre seu time.
Por sua vez, Erasmo vincula a representação com ter apoio ou ser obje-
to de preocupação. Assim, estar representado não é uma simples questão de se
falar a respeito ou dar voz aos sujeitos, em sua visão, seria necessário haver uma
colaboração entre o órgão de imprensa e a torcida.
Os demais torcedores compartilham da idéia de representação como um
espaço de expressão, um canal em que pudessem expor suas convicções. Entre-
tanto cada um deles possui motivações diferentes para pensar dessa forma. Para
Mário, deveria servir para protestos e desabafos. Sinuhe, para “ser torcedor” fazer
provocações aos adversários, ponto de vista lúdico. Para o leitor-torcedor Pava-
nello, teria características políticas, de reivindicação e negociação. De toda forma,
há, tanto na interpretação dos conteúdos como na opinião dos entrevistados, uma
lacuna relativa à representatividade do torcedor nas páginas do JC.
A
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As representações midiáticas podem ser percebidas mais detalhadamen-
te através da análise nos discursos. De acordo com a proposta teórica desenvolvi-
da no primeiro capítulo desta dissertação, apresenta-se nesta seção uma análise de
207
alguns textos do JC, selecionados de acordo com os seguintes critérios: a) sobre
eventos paralelos ocorridos em âmbito local; b) não serem provenientes de agên-
cias de notícias ou de assessorias de imprensa; c) referentes ao futebol. É uma
amostra pequena, mas que pode revelar muitos aspectos sobre o discurso da edito-
ria em relação ao torcedor de futebol.
Quanto aos textos, são necessários alguns esclarecimentos prévios para
que as pessoas não familiarizadas com os sujeitos envolvidos possam entendê-los
melhor. As reportagens referem-se aos campeonatos de futebol amador de Bauru.
Na cidade existem duas ligas organizadoras de torneios entre equipes amadoras.
A divisão é recente. Até 1999 existia apenas a Liga Bauruense de Futebol Ama-
dor - LBFA, entretanto, uma dissidência da entidade resolveu criar a Liga Regio-
nal de Futebol de Bauru - LRFB. Assim, todos os anos são disputados dois cam-
peonatos paralelos na cidade. Apesar de ser mais recente, a LRFB conseguiu afi-
liar os clubes mais tradicionais de Bauru, conseqüentemente, seu campeonato é
considerado de nível técnico mais elevado e atrai mais torcedores. Por outro lado,
os times da LRFB são semi-profissionais, fato que para muitos tem descaracteri-
zado a face amadora de seus torneios, com algumas equipes conseguindo patrocí-
nios fortes e decretando uma disparidade técnica. Esta tendência começa a atingir
a LBFA, que teve em 2003 um campeonato bem desequilibrado, com o time
campeão apresentando-se com estrutura muito superior a seus adversários. Trans-
creve-se agora as reportagens.
Reportagem 1 (publicada em 08/12/03, página 14)
Parquinho é o bicampeão da cidade
Time do Vista Alegre venceu Nacional virada, num jogo tumultuado, e ficou com o
título deste ano da Liga Regional
1. O Parquinho conquistou o bicampeonato da cidade, ao vencer o Nacional por 2 a
1, de virada. A decisão de ontem pela manhã, no Mirante Ferroviário, foi tensa e
teve um grande tumulto quando o árbitro apitou o final do jogo. A torcida do
Nacional provocou os incidentes.
2. O Parquinho foi superior tecnicamente, e mereceu com todos os méritos seu se-
gundo título seguido do Campeonato Amador da Liga Regional de Futebol de
Bauru (LRFB).
208
3. A partida começou com 20 minutos de atraso, porque os torcedores do Nacional
ocuparam um setor da arquibancada que estava reservado aos parquinhenses.
Branco, presidente do Parquinho, alegou que de acordo com o que foi combina-
do, os fãs do seu clube teriam que ficar naquela parte, porque no jogo de ida,
ficou a torcida rival.
4. Mas foi um jogo limpo, bom tecnicamente, sem cartão vermelho e com uma ar-
bitragem normal. O Nacional, que entrou nas finais com a vantagem de dois re-
sultados iguais, seria o campeão se desse empate. E logo aos 4 minutos abriu a
contagem através de Cláudio. Tanaka aproveitou uma bola perdida pelo Par-
quinho no meio-campo e fez longo lançamento para a área. A bola bateu em um
zagueiro parquinhense e Cláudio, bem posicionado, desviou para as redes: 1
a 0.
5. O Parquinho não se abateu, saiu logo para o jogo, graças, principalmente, às jo-
gadas feitas pelo lateral-esquerdo Silva, que além de bom marcador, apóia com
incrível talento e tranqüilidade.
6. E de tanto insistir nas investidas, o tricolor do Parque Vista Alegre chegou ao
empate aos 27 minutos, num pênalti bem cobrado pelo ótimo atacante Baiani-
nho. O gol do empate deixou o time comandado por Beto mais confiante e ofen-
sivo.
7. No segundo tempo o Parquinho melhorou a marcação e a qualidade no toque de
bola, além de pressionar mais do que o seu leal adversário. O jogo estava bom,
quando então alguns membros da torcida organizada do Nacional resolveram ti-
rar o brilho do espetáculo. Uma pedra atirada da arquibancada atingiu um joga-
dor, e o Parquinho ameaçou abandonar o campo. O jogo ficou 20 minutos parali-
sado. O policiamento, eficiente, recebeu reforço e a partida foi reiniciada.
8. Os dez minutos finais foram dramáticos, com pontadas perigosas dos dois lados.
O lateral parquinhense Neto salvou gol certo, tirando uma bola em cima da risca,
num chute de Tanaka.
9. E quando os torcedores do Naça comemoravam o possível título, Fabinho Ibitin-
ga fez o gol da virada e do bicampeonato, aos 43 minutos, numa jogada coorde-
nada por Silva. Ibitinga partiu em velocidade e encheu o para as redes, sem
chances para Dida. Nas comemorações do Parquinho aconteceu um sério tumul-
to, com a invasão do campo.
10.Parquinho: Paulo César; Neto, Rogério, Frizão e Silva; Fernando (Mineiro), Pe-
reira, Bocão e Lolo (Fabinho Ibitinga); Baianinho (Rodrigo) e Fio (Fabinho Ne-
gão). Técnico: Beto.
11.Nacional: Dida; Rica, Roni, Fabinho e Nescau; Cacau, Tanaka, Adílson e Kika;
Zé Cláudio (Elton) e Mona. Técnico: Aparício. Árbitro: Márcio Tragante. Assis-
tentes: Antônio Ramos e Ricardo Garcia.
Sub1: Sentimento do dever cumprido
1. Toninho Goulart, presidente da Liga Regional de Futebol de Bauru (LRFB) e co-
tado para ser eleito o dirigente do ano do futebol bauruense, mostrava-se triste
com os incidentes, mas ao mesmo tempo satisfeito.
2. O sentimento de Toninho Goulart, seus companheiros de diretoria e dos dirigen-
tes dos dois clubes era o do dever cumprido.
3. “É até provável que alguém nos critique, mas estamos com a consciência tran-
qüila, porque temos certeza que fizemos um campeonato vibrante, competitivo,
tudo com transparência, como é o lema na Liga Regional. Lamentamos, mas pa-
209
ra o nosso conforto, os incidentes não foram provocados pelos verdadeiros e
grandes nacionalistas”, disse Goulart.
4. Vadão, diretor de esportes do Nacional, foi a única pessoa que fez o uso da pala-
vra durante a premiação. O dirigente pediu desculpas pelo tumulto e lembrou
que durante o jogo nada de mal aconteceu com os jogadores das duas equipes e
com o trio de arbitragem.
5. “Recebo com o orgulho esse troféu de vice-campeão e cumprimento o Parquinho
pelo título. Infelizmente a gente não queria um final de campeonato dessa forma,
mas não foi culpa nossa”, disse Vadão, explicando que segurar torcedor briguen-
to é quase impossível.
6. O radialista e membro do comando do Nacional, da Barca, condenou os atos
de vandalismo. Não afirmou, mas deu a entender claramente que o tumulto foi
de uma torcida de aluguel.
7. “Vamos escolher melhor nossos torcedores. O que aconteceu hoje (ontem) vai
servir de exemplo para o futuro”, disse Zé da Barca.
8. No Parquinho, o técnico Beto, que é um dos ‘cardeais’ do clube, era o mais e-
mocionado. Beto chegou a chorar de emoção e fez rasgados elogios ao time to-
do, pela aplicação tática e poder de reação. E preferiu não comentar o ato impen-
sado dos ‘hooligans’.
9. “A alegria por esse bicampeonato é muito grande, faz a gente esquecer as coisas
desagradáveis”, afirmou o treinador, elogiando os torcedores do Parquinho e os
atletas do Nacional por não terem apelado para qualquer tipo de antijogo na
grande final.
10.“Foi um ótimo campeonato e cumprimos nosso grande objetivo em 2003. Agora
é só festa”, disse Branco, presidente do Parquinho.
Sub2: Tumulto rouba a cena na final
1. Grande tumulto acabou roubando a cena na decisão de ontem. Alguns integran-
tes da torcida organizada do Nacional - chamada por muitas pessoas, inclusive
da Liga Regional, de torcida de aluguel - deram muito trabalho aos policiais mi-
litares quase o jogo todo.
2. Esses torcedores provocaram uma paralisação de 20 minutos, por atirarem pe-
dras no gramado, na metade do segundo tempo, e causaram grande tumulto
quando o árbitro usou o apito pela última vez. O gramado do Mirante se trans-
formou em praça de guerra.
3. Muitos torcedores das duas equipes pularam o alambrado, os do Parquinho para
fazer a festa com os jogadores, enquanto os do Nacional queriam mesmo confu-
são. Se confrontaram com os torcedores rivais e até com os PMs, que foram o-
brigados a agir com certo rigor.
4. Nenhum atleta, nem a arbitragem foram agredidos, mas o patrimônio do Tria-
gem foi danificado e pelo menos cinco pessoas ficaram feridas, uma delas um
Oficial da Polícia Militar, que levou uma pedrada no rosto. O caso mais grave é
de um rapaz que foi atropelado por um cavalo, ficou desacordado e levado para
o hospital por uma unidade do Resgate.
Reportagem 2 (publicada em 15/12/2003, página 12)
Corinthians vence e conquista o bi
210
Alvinegro do Jardim Prudência goleou o Barcelona ontem, e após 11 anos do pri-
meiro título volta a erguer a taça
1. Confirmando o favoritismo ao longo de todo o campeonato, o time do Corinthi-
ans, sagrou-se bicampeão da Liga Bauruense de Futebol Amador (LBFA), ao
golear o Barcelona, ontem, por 4 a 0, no Estádio Silvio de Magalhães Padilha.
2. O Corinthians foi superior em relação as outras equipes durante toda a competi-
ção e sacramentou a ótima campanha ao ganhar as duas partidas da decisão - na
primeira havia marcado 4 a 2. O Barcelona ficou com o vice-campeonato e foi
escolhido como time revelação do torneio.
3. No primeiro tempo, o jogo ficou truncado no meio-de-campo, com chutões sem
perigo de gol. O primeiro lance importante aconteceu aos nove minutos, num
chute do volante Pica-Pau, do Barcelona, que passou sobre a meta do goleiro Ri-
cardo.
4. Logo em seguida o Corinthians, através do experiente meia Marquinhos Yama-
moto, cruzou na área, mas a zaga do Barcelona cortou para a lateral.
5. Na metade do primeiro tempo, o que se viu foi o Barcelona ameaçando com chu-
tes de fora da área, com o volante Sabá e algumas jogadas pela ponta-direita com
o atacante Gilsinho.
6. Até que, aos 24 minutos, surgiu o primeiro gol da partida. O ex-noroestino Mar-
quinhos Yamamoto, recebeu um lançamento vindo do meio-campo, dominou
com categoria a bola na risca da grande área, invadiu um pouco e chutou no can-
to direito do goleiro Fábio, sem chances de defesa: 1 a 0.
7. O Barcelona não esmoreceu com o gol adversário e aos 33 minutos aconteceu
um lance que poderia mudar a história do jogo. Num cruzamento da direita, que
passou por toda a zaga do Corinthians, a bola chegou no atacante Reginaldo, que
teve tempo de dominar escolher o canto e chutar. A bola caprichosamente bateu
na trave direita da meta do goleiro do Corinthians, para sorte dos campeões.
8. O último lance do primeiro tempo, aconteceu a favor do corintinha. Novamente
com Yamamoto. O jogador entrou na área, driblou um defensor, mas na hora do
arremate o chute saiu prensado.
9. No segundo tempo, o Barcelona voltou para o tudo ou nada. que aos oito mi-
nutos, o Corinthians marcou o seu segundo gol com o atacante Té. O jogador
deu um drible desconsertante no zagueiro do Barça e chutou rasteiro, de canhota,
para o fundo das redes do adversário: 2 a 0.
10.Após o segundo gol o jogo ficou meio morno e, aos 35, o atacante Adriano
Dick, que tinha acabado de entrar, desviou a bola de cabeça, após cobrança de
escanteio e marcou o terceiro gol do alvinegro. Logo em seguida o Barcelona te-
ve um pênalti, marcado em cima do atacante Gilson. Ele mesmo bateu, mas o
goleiro fez grande defesa e no rebote o zagueiro do Barça tirou em cima da risca.
11.Logo após o pênalti perdido foi a vez do Corinthians ir ao ataque. Novamente
com Adriano que dominou dentro da área e chutou fraco, a bola resvalou na zaga
adversária e entrou devagarinho, dando números finais a partida: 4 a 0.
12.Após o jogo, o atacante Té, um dos destaques do Corinthians e autor do segundo
gol, era alegria. “Foi muito emocionante esta conquista, eu vinha de contusão
e felizmente pude marcar um dos gols”, conta.
13.Já pelo lado do Barcelona, o capitão Rogério ressaltou a raça da equipe. “O Co-
rinthians mereceu o título, mas o nosso time lutou até o final e sai de campo de
cabeça erguida.”
211
14.O técnico do Barça, Cléber Luiz, também destacou a união do grupo. “Meus jo-
gadores sentiram um pouco a responsabilidade. Mas agora o que importa é man-
ter o grupo para a próxima temporada”, conta.
15.Corinthians: Ricardo; Negão, Elizeu, Tiziu, Ailton, Juninho, (Dick), Bia (Jo-
ão Rubens), Marquinhos , Hebinho e Renatinho (Lênis).
16.Barcelona: Fábio; Luis André, Rogério, (Reinaldo) Nardo e Nardella; Pica-Pau,
Sabá, Gilsinho, Reginaldo; Paulo e Renato. Àrbitro: Antonio Cardoso.
Sub: Presidente faz balanço
1. O presidente da Liga Bauruense de Futebol Amador, Milton Martins, fez um ba-
lanço ontem sobre o campeonato. O dirigente ressaltou as falhas e virtudes da
sua gestão ao longo do campeonato.
2. “Uma medida que será tomada com mais rigor é contra a violência nos jogos.
Em algumas partidas houve tumulto dentro e fora de campo. Para o campeonato
do ano que vem nós iremos punir com a eliminação das equipe da competição.”
3. Sobre as acusações que o presidente da entidade sofreu de favorecer a equipe do
Corinthians, com inscrições de atletas de forma irregular, Martins respondeu que
não passa de intrigas de pessoas que não têm espírito esportivo.
4. “Ninguém foi favorecido no decorrer do campeonato, falaram isso porque eu
fui presidente do Corinthians nas décadas de 80 e 90. Quando as inscrições fo-
ram abertas, foi para todos os clubes e não para o Corinthians. Houve um
prorrogamento para as inscrições e todos tiveram tempo para inscrever qualquer
jogador”, afirma Martins.
5. Para o próximo ano, Martins pretende aumentar o número de clubes na Segunda
Divisão e manter o mesmo número na elite da LBFA.
Nos títulos das matérias já se nota que o jornal considera o vencedor do
campeonato da LRFB como “bicampeão da cidade”, portanto, seria este o campe-
onato da cidade, o outro é apenas o da entidade que o promove. No primeiro pa-
rágrafo de ambos fica mais clara ainda esta posição dos jornalistas. Em 1: “O
Parquinho conquistou o bicampeonato da cidade...”. Em 2: “...o time do Corinthi-
ans sagrou-se bicampeão da Liga Bauruense de Futebol Amador”. Entretanto, o-
ficialmente, esta distinção não existe, sendo as duas entidades consideradas equi-
valentes. Nenhuma delas é a representante oficial do futebol amador da cidade.
A estrutura de ambas as reportagens é bastante parecida, há semelhan-
ças claras entre as duas. Ambas o iniciadas com um lead estruturado de acordo
com a fórmula apresentada no capítulo 3, ou seja, diz quem, o resultado, quando
e as conseqüências do evento. A seguir, no segundo parágrafo, os dois textos a-
presentam opiniões generalizadas e até certo ponto descontextualizadas acerca do
campeonato. A questão da subjetividade no texto jornalístico aflora nestes pará-
212
grafos. Afinal, a “superioridade” das equipes não é justificada analiticamente, a-
penas o texto 2 tenta apresentar alguns dados que abonem tal afirmação: os placa-
res dos dois jogos decisivos, o que, certamente, pode não refletir o que ocorreu
durante a disputa do torneio. As afirmações podem até corresponder à realidade,
mas precisavam ser contextualizadas.
A subjetividade é ainda mais clara no texto 1. Logo no parágrafo inici-
al, emite-se um julgamento, ao atribuir a culpa pelos incidentes ocorridos após a
partida aos torcedores de uma das equipes (Nacional). No terceiro parágrafo, rela-
ta-se um incidente que atrasou o início da partida em 20 minutos, entretanto, des-
creve a reivindicação do dirigente de apenas uma das equipes (Parquinho). A se-
guir, o texto narra a partida. Apesar de não aparecer claramente, nas entrelinhas é
possível notar a simpatia do narrador por um dos times, no caso o Parquinho: no
quinto e sexto parágrafos aparecem elogios um tanto exagerados a jogadores e ao
time do Parquinho, como o fato de a equipe não se abater com uma desvantagem
inicial, ou as seguintes características de um dos atletas da referida agremiação:
“além de bom marcador, apóia com incrível talento e tranqüilidade”. Sobre outro
atleta: “ótimo atacante”. Sobre o time: “ainda mais confiante e ofensivo”. Ms não
há qualquer referência aos jogadores do adversário.
No sétimo parágrafo, ao atribuir o adjetivo de “leal” ao “adversário do
Parquinho”, a tomada de partido assume contornos explícitos. Afinal, duas equi-
pes se enfrentavam por um título e, presumivelmente, ambas são “leais”, que
de acordo com o próprio texto, no quarto parágrafo, foi um jogo limpo”. No mí-
nimo, desnecessária a observação. Ainda no sétimo parágrafo, em relação a um
tumulto, novamente atribuído à torcida do Nacional, o jornalista refere-se ao poli-
ciamento como “eficiente”, o que acaba por ser contradito na própria reportagem,
que o eficiente” policiamento o conseguiu conter o tumulto após o encerra-
mento do jogo.
Em relação ao “sério tumulto”, as informações fornecidas são bastante
superficiais. Mesmo uma das “subs” sendo dedicadas ao assunto (“Tumulto rouba
213
a cena na final”), a abordagem foi bastante subjetiva e assemelhou-se mais a uma
crítica aos prováveis provocadores da confusão do que a um texto jornalístico a
respeito de um tumulto de grandes proporções como fazia crer as indicações ini-
ciais da reportagem e da sub. No segundo parágrafo afirma-se ter o “gramado do
Mirante se transformado em praça de guerra”, o que justificaria a apuração mais
detalhada sobre o assunto. Afinal, foi aberto boletim de ocorrência? Se não, por
quê? Quantas, e quais, pessoas teriam sido presas e indiciadas? O texto omite es-
tes dados, importantíssimos para um dimensionamento “objetivo” da confusão.
Afinal, se os culpados eram tão visíveis e o policiamento tão eficiente, não deve-
ria ter havido dificuldades em relação a estes esclarecimentos oficiais.
A reportagem poderia ter ouvido autoridades policiais e torcedores. No
terceiro parágrafo, relata-se que “muitos torcedores das duas equipes pularam o
alambrado, os do Parquinho para fazer a festa com os jogadores, enquanto os do
Nacional queriam mesmo confusão”. É difícil imaginar como o jornalista conse-
guiu separar quem brigava e quem comemorava em meio a “uma praça de guer-
ra”. O relato pode até ser verdadeiro, o que se questiona é a falta de dados que o
comprovem, principalmente porque não foram ouvidas nenhuma das partes en-
volvidas na confusão, nem policiais, nem torcedores, nem atletas. Desta vez, o
torcedor não ficou de fora sozinho.
Em outra sub da reportagem 1, é dado voz a alguns dirigentes que te-
cem os mais variados elogios à organização da competição e ao jogo decisivo. O
próprio título da matéria indica seu teor: “Sentimento do dever cumprido”. Nada
contra os dirigentes defenderem seu trabalho ou o jornalista dar espaço para esta
defesa. No entanto, o senso crítico pede que outras partes sejam ouvidas. Ainda
que dirigentes das duas agremiações tenham dado suas opiniões no texto, faltou
novamente ouvir os torcedores e também os atletas, partes integrantes e verdadei-
ros protagonistas do evento.
Na reportagem 2 a narração dos lances da partida é um pouco mais ob-
jetiva, não privilegia nenhuma das equipes, apesar de aparecerem termos que de-
214
notam subjetividade, como “jogo meio morno” (parágrafo 10). Diferentemente da
reportagem 2, o jornalista ouviu atletas das duas equipes ao final da partida (pará-
grafos 12 e 13). No entanto, ao elaborar uma sub exclusivamente com o presiden-
te da Liga, demonstra-se a tendência a ouvir o “lado do poder” no espetáculo. O
dirigente estaria sendo acusado de favorecer uma das equipes. Mas quem, afinal,
acusa? E por que acusa? Se o dirigente tem o direito de se defender, o outro lado
deveria ser ouvido, o que não ocorreu. Da maneira que o assunto foi apresentado
parece mais uma defesa do que um esclarecimento dos fatos.
Voltando ao método de análise proposto por Fairclough e seguindo o
roteiro por ele sugerido, podem ser apontados alguns elementos lingüísticos im-
portantes para o entendimento do discurso da editoria de esportes do JC. Em rela-
ção ao controle interacional, o que se nota é que a voz do jornalista é praticamen-
te única nas matérias da reportagem 1, à exceção da sub Sentimento do dever
cumprido”, na qual alguns dirigentes das agremiações envolvidas foram ouvidos.
Entretanto, a voz é dada pelo jornalista, não há uma tomada de turno, como numa
conversa, são fragmentos do discurso de outras pessoas, usados pelo narrador na
construção de seu próprio texto e que, ao fim, servem para justificar afirmações e
opiniões pessoais, que todas as declarações seguem um tom único de condena-
ção aos torcedores que provocaram incidentes no evento e de elogios à organiza-
ção da competição. Na verdade, trata-se mais de uma intertextualidade direta do
que um controle interacional, já que o narrador é quem dirige os rumos do texto o
tempo todo.
Na reportagem 2 o controle interacional continua em poder do narrador,
ainda que no texto principal atletas e um dos treinadores tenham manifestado suas
vozes. na sub Presidente faz balanço”, o entrevistado tem voz ativa e a usa
para justificar seus próprios atos. Nesse caso, o narrador aparece como um porta-
dor da mensagem,que não há mais de uma opinião a ser costurada. O que deve
ser ressaltado é que não há troca de informações em nenhum momento de ambas
215
as reportagens e que o controle do discurso fica o tempo todo a cargo dos jornalis-
tas.
Quanto à coesão, os textos principais apresentam narrativas fluentes.
Relatam no lead (conforme descrito) o fato em um nível macro, para depois
descrevê-los em detalhes. Nas descrições uma cadeia temporal bastante nítida,
na qual os fatos são descritos numa sucessão cronológica rígida. Na reportagem 1,
desde fatos precedentes até o apito final. Na reportagem 2, do início da partida até
os momentos imediatamente subseqüentes ao encerramento da disputa, com de-
clarações de atletas “após o jogo”.
Em relação ao que Fairclough classifica como polidez, ou o modo como
os sujeitos são tratados no texto, na reportagem 1, “jogo limpo e bom tecnicamen-
te”, “bem posicionado”, “bom marcador”, “apóia com incrível talento e tranqüili-
dade”, ótimo atacante”, “leal adversário” e “policiamento eficiente”, são algu-
mas adjetivações positivas. O lado negativo do evento recai todo sobre uma parte
dos torcedores, como já dito anteriormente, acusados diretamente como responsá-
veis pelos tumultos.
Por tudo o que foi analisado, pode dizer que em relação ao ethos, o
que transparece nas reportagens é que os organizadores do evento são mais valo-
rizados, a eles é dada voz e não se faz qualquer comentário crítico. Os atletas apa-
recem como heróis, porém, distantes dos fatos, cumprem seu papel de jogadores e
só. Não têm voz, a performance atlética é o que interessa. Na reportagem 2, a voz
dada a dois atletas - quatro linhas para cada - ameniza um pouco, mas não apaga a
impressão de que para o narrador, além da performance durante a disputa, nada
mais resta. Os torcedores são coadjuvantes do espetáculo em ambas as reporta-
gens, ainda que tenham tido papel central em um dos eventos (na reportagem 1)
aparecem sem voz. É o discurso de quem gostaria que o povo permanecesse em
seu devido lugar e só se manifestasse festivamente.
Em relação à gramática, todos os textos primam pela simplicidade, sem
rebuscamentos e com elementos que deixam claro o assunto que se trata. São ter-
216
termos como “superior tecnicamente”, “abriu a contagem”, “encheu o pé”, “jogo
truncado”, “cortou para a lateral”, “invadiu um pouco”, chute prensado”, “drible
desconsertante”, etc., que fazem parte de um vocabulário particular, o dos futebo-
listas. Algumas falhas de revisão podem ser notadas, como no olho da reportagem
1, Time do Vista Alegre venceu Nacional virada”, o certo é “de virada”, que no
discurso futebolístico significa reverter um placar adverso. A simplicidade grama-
tical é auma exigência da prática jornalística, que presume assim tornar o texto
acessível a leitores de vários níveis de alfabetização.
Por outro lado, as reportagens apresentam a visão dos jornalistas e de
alguns dirigentes e, de modo distante, dos atletas. Os torcedores, mesmo reconhe-
cidamente protagonistas do espetáculo, aparecem como sujeitos passivos nos tex-
tos, no sentido de não terem voz. Mais uma vez, é necessário lembrar que o que
se pretende aqui não é fazer julgamentos de juízo, dizer se algo está certo ou erra-
do, o que se pretende é apenas apontar aspectos da mídia nem sempre transparen-
tes e, na maioria das vezes, ocultos do grande público. Afinal, ninguém lê, ou
poucos lêem, reportagens de maneira crítica, principalmente sobre um assunto tão
“leviano” como uma decisão de campeonato de futebol amador.
No entanto, apesar de aparentemente ser um “assunto de menor impor-
tância” e tecnicamente classificado como fait divers
46
, os jogos de futebol amador
em Bauru são uma das pouquíssimas opções de lazer para os que moram na peri-
feria da cidade, onde são realizadas as partidas, sempre aos domingos de manhã.
Assim, atraem grandes públicos - ainda que não haja estatísticas oficiais, estima-
se que mais de três mil pessoas assistiram ao jogo Parquinho x Nacional - e são
ainda opção para os “atletas de final de semana”, que não possuem renda sufici-
ente para freqüentar clubes sociais ou academias de ginástica. No torneio da L-
RFB participaram 18 equipes (cerca de 270 atletas) e no da LBFA mais 16 (cerca
de 240). O futebol amador é ainda uma espécie de estágio para jogadores que de-
46
Este conceito acabou por confinar de vez aspectos da cultura popular ao espaço das coisas de menor impor-
tância”, entretanto, o que se classifica como fait divers pode ser mais revelador sobre uma determinada socieda-
de do que aspectos políticos e outras categorias de assuntos “sérios”.
217
sejam tentar carreira no futebol profissional e, de outro lado, prolonga as ativida-
des de ex-profissionais, além de ser um espaço para aqueles atletas que sabem e
gostam de jogar mas não tiveram oportunidade como profissionais. Há, sim, um
importância social muito grande nestes eventos, por isso, merecem ser visto além
da simples performance esportiva.
De outro lado, a análise textual, aponta o poder do discurso, que trans-
forma totalmente um fato. Ou seja, o que realmente aconteceu é uma coisa, o que
foi relatado é outra, mas que passa a ser tomada como os próprios acontecimen-
tos. Após as reportagens, o que se passou é o que deu no jornal. E, nos casos a-
presentados, fica evidente que nem sempre isso corresponde à realidade e nem
mesmo às expectativas dos leitores.
É positivo o fato e as reportagens analisadas apresentarem uma faceta
do esporte local bem longe dos grandes espetáculos que costumeiramente se
em relação a decisões de campeonatos de futebol. É o esporte em sua plenitude
lúdica, sem grandes estrelas e com cidadãos anônimos. Por outro lado, o jornal
não conseguiu explorar este lado, ao prender-se demais em uma cobertura que
privilegiou aspectos da organização e dos organizadores, que, por sua vez, tenta-
ram mascarar os defeitos destes campeonatos. Em relação ao tumulto da decisão
da LRFB, o JC poderia ter explorado o fato de os aparelhos de segurança pública
terem subestimado o evento, não proporcionando segurança adequada; poderia
mostrar um pouco mais quem são os atletas. Em relação aos torcedores, um
campo inteiro a ser descoberto pelo jornal. Além disso, poderia ter sido mais ex-
plorado o lado não-profissional e “folclórico” do futebol varzeano. Há, porém de
se louvar o fato de o JC pautar o evento e até dedicar chamadas de capa para eles,
pois, nos grandes jornais, o futebol amador inexiste.
Mais recentemente, o próprio jornal deu uma amostra de que é possível
sim inserir a voz do torcedor nas matérias sobre esporte, principalmente, local. No
mês de julho de 2005, o E.C. Noroeste disputou as finais da segunda divisão do
Campeonato Paulista e foi vice-campeão, com isso, conquistou o direito de dispu-
218
tar a divisão principal no ano seguinte. Em pelo menos duas edições (de 09/06 e
13/06) o JC publicou matérias em que os torcedores aparecem como os principais
personagens do espetáculo.
Reportagem 1
Partida do Noroeste mobiliza a cidade
Desde o início da tarde de ontem, torcedores se aglomeravam na
porta do estádio, atrás de ingressos e camisas
O clima nas imediações do Estádio Alfredo de Castilho durante toda a
tarde de ontem, antes do confronto decisivo contra o Mirassol, era de
empolgação, confiança na vitória e, principalmente, na conquista do a-
cesso à Primeira Divisão do Campeonato Paulista da Série A1, em
2006.
Até às 14h, dos 15 mil ingressos disponíveis, aproximadamente 8 mil já
haviam sido vendidos e segundo estimativas da polícia militar 12 mil
torcedores estiveram presentes.
A procura por ingressos foi intensa durante o dia todo, que a maioria
dos torcedores estavam em horário de trabalho e acabou comprando o
ingresso no final da tarde. Desde o torcedor mais fanático, até o craque
do Norusca Luciano Bebê, que cumpria suspensão automática, busca-
vam o melhor lugar para assistir ao jogo.
Luciano Bebê assistiu à partida acompanhado da esposa e do filho de
apenas nove meses na tribuna do estádio. “Eu queria estar dentro, a-
judando o Noroeste e meus companheiros, mas infelizmente eu terei
que cumprir suspensão automática”, disse o craque noroestino.
Um caso de total dedicação e paixão pelo Alvirrubro era o torcedor bau-
ruense Eliseu de Almeida, de 44 anos, com mais de 20 dedicados ao
Norusca. Após ser transferido por motivo de trabalho, em 2004, para
Mirassol, cidade do time rival do Norusca, Eliseu pediu ao seu patrão
para viajar e assistir à partida do time do coração.
“Eu consultei o meu chefe, achando que a resposta seria negativa, mas
ele é torcedor do América, de São José do Rio Preto, um dos rivais do
Mirassol e não teve dúvidas em me liberar”, conta o torcedor, que ainda
afirmou que pretendia ficar até domingo, para acompanhar o jogo con-
tra o Bandeirante, de Birigui.
Os ambulantes, que nesses dias de jogos de grande porte buscam uma
forma alternativa de ganhar um dinheiro extra, se mobilizavam para
montar barracas, churrasqueiras, com o tradicional espetinho, para po-
derem atender a massa noroestina que chegava de todas às partes da
cidade.
“Eu trabalho na prefeitura, mas o meu marido está desempregado e eu
tenho que ganhar pelos dois”, revelava Maria Gomes, que apesar da es-
perança de vender os mais de 400 refrigerantes do seu estoque, ficou
sabendo em cima da hora, que às vendas não poderiam ser feitas na por-
ta do estádio e sim numa área de 200 metros de distância da porta do
Alfredão.
219
Consultado pela reportagem do JC, o tenente Valentim, que comandou
uma operação desde às 17h, nas imediações do campo, com cerca de 40
policiais, revelou que a presença dos ambulantes próximos dos estádios
é proibido por lei.
“Nós seguimos as leis e vamos cumprir até o fim. Com organização e
disciplina tudo transcorrerá normalmente”, concluiu o tenente. (Jornal
da Cidade, 09/06/2005, p. 16)
Sub
Dono de tradicional barraca vende e torce em família
Um dos principais points dentro do Estádio Alfredo de Castilho, a bar-
raca de lanches ‘Au Au’, do apaixonado noroestino Reinaldo Costa, que
mais de 20 anos vende os saborosos lanches, esperava com ansieda-
de o início do jogo decisivo.
O vendedor-torcedor, como ele mesmo se auto define, chega a vender
mais de 500 lanches e espetinhos antes, durante e após os jogos de mai-
or apelo e revela uma curiosidade.
“Nós dias de jogos à noite, a procura é muito maior do que no período
diurno”, conta o vendedor, que ontem vivia um clima de alegria e satis-
fação.
“Além de ganhar um dinheiro, eu, como noroestino, torço e vibro com
os gritos de gol em família”, diz Reinaldo, que conta com a ajuda das fi-
lhas e genros.
“Todos trabalham e torcem juntos em prol do Noroeste”, conclui Rei-
naldo Costa, que espera ansioso pela volta do Norusca à Série A1. “O
ano que vem o Noroeste estará na Primeira Divisão, podem apostar.”
(Jornal da Cidade, 09/06/2005, p. 16)
Reportagem 2
Série A2: '12º jogador', torcida também deu show
Público vibrou antes, durante e depois da partida que definiu a volta do
Noroeste à Primeira Divisão do Paulistão
Quando o apito do árbitro Rodrigo Martins Cintra ecoou no ar decre-
tando o final da partida entre Noroeste e Bandeirante, os mais de 15 mil
torcedores presentes ao Estádio “Alfredo de Castilho” foram ao delírio
vibrando com a conquista oficial do acesso do “Norusca” à Primeira
Divisão do futebol paulista. A “explosão” de alegria atingiu seu ápice
na volta olímpica dos jogadores, que ouviam entusiasmados os gritos de
“Primeira Divisão” entoados pela torcida.
A festa da galera”, após a goleada de 4 a 0, “invadiu” as principais ru-
as da cidade e começou tão logo após a saída do elenco noroestino, por
volta das 21h, do “Alfredão”. À frente, um caminhão preparado por -
rias empresas bauruenses levava os jogadores e integrantes da comissão
técnica.Ele era seguido pelo ônibus oficial do Noroeste, que transporta-
va os familiares dos jogadores, um trio elétrico e milhares de carros de
torcedores que faziam um “buzinaço”.
A “carreata da vitória” saiu da rua Nilo Peçanha e passou pela avenida
Duque de Caxias, seguindo pela rua Rio Branco em direção à avenida
Getúlio Vargas, onde partiu rumo ao ponto final da festança: a sede da
escola de samba “Acadêmicos da Cartola”, no Parque Vista Alegre. Lá,
220
muitos litros de chope e a bateria da Cartola foram os “combustíveis”
que alimentaram o ânimo dos torcedores, jogadores e comissão técnica
do “Norusca”.
Entretanto, não foi apenas após a partida que a torcida incentivou o time
alvirrubro. Para apoiar o “Norusca”, a enorme torcida que compareceu
ao “Alfredão” deu as mais variadas manifestações de amor ao time.
Muitos fizeram até sacrifícios para assistir à partida.
Foi o caso de Luiz Carlos Machado, que, mesmo com a perna quebrada,
foi ao campo apoiado em muletas. “Para assistir o Noroeste, vale qual-
quer coisa. E pode ter certeza que hoje é só alegria, pois vai ser uns dois
a zero pra gente”, profetizou.
Quem também não se abateu com as dificuldades de locomoção foi Má-
rio Luiz de Oliveira, que foi de cadeira de rodas e torceu juntamente
com Gilmar José Furquim, Rildo Nunes e Nivaldo Antunes de Oliveira.
“Onde tem jogo do Noroeste, a gente não perde”, ressaltou Mário. “Vai
ser uns dois a zero, fora as bolas na trave”, palpitou Gilmar.
Anderson Rozetti, de apenas 9 anos, provou que a paixão pelo “No-
rusca” não tem idade. Com o rosto pintado de vermelho e branco, as co-
res tradicionais do Noroeste, arriscou um 3 a zero como resultado do
jogo e fez questão de destacar: “Venho ao campo desde pequenininho,
pois adoro o Noroeste”, frisou o jovem noroestino.
Até mesmo o Dia dos Namorados foi usado como justificativa para a vi-
tória do time. Chegando ao estádio de mãos dadas, o casal Pedro e Gio-
vana aproveitou a data para pedir um “mimo” ao Noroeste. “Se ele ven-
cer, principalmente de goleada, iria ser um belo presente para comemo-
rar o Dia dos Namorados”, salientou Pedro.
E o trio formado por Tião Camargo, Rodrigo Costa e Marcelo Fernan-
des reunia antes do jogo os sentimentos comuns à todos os noroestinos.
Bem-humorados, dispostos a vibrar até o último minuto e confiantes no
acesso do Noroeste à Primeira Divisão, o grupo salientou que o mais di-
fícil era conter a emoção e a ansiedade. “Só assistindo para descrevê-
las, mas antes o coração já está batendo a mil por hora. Mas o importan-
te é que o ‘Norusca’ ganhe, não importa o placar e nem que seja com
um gol de bunda”, exagerou Camargo.
Costa acrescentou que fez até promessa, sem revelar qual, para o “No-
rusca” vencer. Aí, também vou poder ver o o Paulo jogar aqui no
ano que vem”, destacou. Diante da resposta do amigo, Camargo não
perdeu a chance de zombá-lo. “A promessa dele é ir a pé daqui até o bo-
teco ali perto para comemorar”, brincou. (Jornal da Cidade, 13/06/2005,
p.16)
Os três textos são exemplares de como é possível inserir a opinião do
torcedor e demonstram a riqueza de informações que se pode obter com isso.
Em apenas três reportagens são resgatados detalhes que mostram como o fenô-
meno futebol mexe com os sentimentos das pessoas, como os torcedores são
capazes de se sacrificarem pelo time. Revela-se a paixão do torcedor que mora
221
pazes de se sacrificarem pelo time. Revela-se a paixão do torcedor que mora em
outra cidade e negocia com o patrão para poder assistir a um jogo de futebol.
Mostra-se a esperança da ambulante que aproveita a ocasião de um jogo com
“casa cheia” para melhorar a renda familiar, porém, tem de enfrentar a regula-
mentação do poder público e manter-se afastada do local do espetáculo. Desco-
bre-se o vendedor-torcedor que trabalha dentro do estádio e pertence a uma fa-
mília toda de simpatizantes do time; um torcedor que foi a um dos jogos “de
muleta”; outros que acompanham o time mesmo necessitando de cadeiras de
rodas; um casal ‘comemorando’ o dia dos namorados no jogo; amigos que se
unem em torno do evento. Enfim, além do jogo em si, em torno do futebol
todo um universo a espera de ser revelado nas páginas esportivas dos jornais. No
entanto, esse tipo de matéria não é a regra nas coberturas esportivas, mas a exce-
ção. E isso não acontece com o JC, o jornal apenas reflete uma tendência do
jornalismo em geral, cada vez mais presos às questões de mercado e menos às
culturais.
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Como já colocado na introdução, a proposta teórica deste trabalho po-
deria levantar mais questões do que dar respostas. Isso era previsível não apenas
pelos conceitos adotados, mas também em virtude do tema escolhido envolver
elementos culturais, sujeitos sociais, representações simbólicas e ser de natureza
midiática. Assim, antes de tentar responder à dúvida-título deste trabalho, apre-
sentam-se algumas considerações, ou melhor, interpretações de todo o percurso
percorrido ao longo dessas mais de duzentas páginas. Ressalte-se que, em meio
à explanação foram tecidas algumas considerações específicas relativas a cada
seção, assim, neste último tópico, busca-se associar os vários aspectos estudados
com o tema nuclear: o torcedor de futebol e a mídia esportiva.
Primeiramente, observou-se que ambos os fenômenos (futebol e mídia)
se dão numa dimensão cultural, portanto, para serem interpretados de um modo
mais proveitoso, necessitam ser vistos a partir de um ponto de vista culturológi-
co. Assim, a opção mais viável foi buscar subsídios nos Estudos Culturais, uma
vez que a investigação trabalha com os conceitos de identificações, significa-
ções, relações de poder, historicidade e linguagem (discursividade).
Ao aceitar as posições dos culturalistas britânicos, o estudo proposto
obrigatoriamente se desenvolveria a partir do campo da recepção ou no “espaço
em que se constroem os significados”. Entretanto, pelo menos em relação ao
tema desta investigação, surge um certo desconforto quanto às influências que
os receptores recebem. O leitor é agente ativo no processo e isso não dá para ne-
gar, porém, também não se pode ignorar que os agentes construtores da notícia
conseguem trabalhar as informações de modo a induzir esse leitor. A omissão
proposital de informações, a tomada de posição a favor ou contra personagens e
instituições e a subjetividade discursiva não podem ser vistas como variantes
acessórias, claramente identificáveis pelos receptores. Também influências co-
mo a formação (escolar, política, religiosa, etc.) dos leitores interferem no pro-
223
cesso, através da imposição, não necessariamente pela força, de paradigmas que
passam a ditar tendências e a condicionar as leituras. Desse modo, como é pos-
sível dizer que o leitor decodifica a informação livremente, que não sofre ne-
nhum tipo de manipulação?
Aceitar esses contrapontos críticos ou “frankfurtianos” não significa
afirmar que a mente do leitor é uma espécie de tábula rasa ou que os consumido-
res da informação sejam uma massa acrítica, não-pensante e manipulável. As
reflexões teóricas apresentadas apontam para uma convergência entre conceitos
de duas teorias aparentemente antagônicas, mas que, numa visão livre de pré-
conceitos, mais se complementam do que se chocam. São incompatíveis em al-
guns momentos, porém, se completam em outros.
Os Estudos Culturais exigem uma postura além da ideologia, que bus-
que também no cotidiano, na linguagem, no “jeito de ser” das pessoas comuns e
nas produções da massa, elementos para entender melhor as sociedades e os fe-
nômenos socioculturais contemporâneos. Entretanto, não podem ignorar a força
do poder simbólico e a influência das ideologias nos processos de identificações
e representações, que tanto prezam como objetos de estudo.
Por seu turno, a Teoria Crítica, juntamente com todo o paradigma
marxista, se é que exista um, viu muitos de seus conceitos serem superados tan-
to por novas configurações sociais impossíveis de serem previstas à época em
que os frankfurtianos desenvolveram seus trabalhos, como por novas teorias que
avançaram e se aprofundaram justamente nas brechas deixadas por Adorno,
Horkheimer et al - as principais: a possibilidade de reação das massas e a impre-
visibilidade do efeito das mensagens. Por outro lado, a idéia de uma Indústria
Cultural soberana e controladora dos discursos midiáticos encontra respaldo a-
inda hoje nas redações do mundo todo. O próprio Stuart Hall (1997) coloca a
Teoria Crítica como um dos discursos teóricos em que os Estudos Culturais se
apoiaram para elaborar suas conceituações.
224
A partir desse posicionamento teórico, a mídia esportiva aparece como
um dos mais típicos produtos da Indústria Cultural, seja por seu conteúdo classi-
ficável como fait divers ou por seu distanciamento da realidade política. Já o
fenômeno torcedor de futebol surge como um dos muitos processos de identifi-
cação criados no contexto urbano da era industrial. O crescimento das cidades
forçou a convivência de diversos grupos sociais, que passaram a lutar não mais
por espaços físicos (ainda que não deixassem de fazê-lo) mas simbólicos. Por
outro lado, os esportes de competição que até então eram praticados nos espaços
públicos, foram sendo incorporados às grades curriculares das instituições de
ensino e passaram a ter regras rígidas, que logo também se estabeleceriam para
além dos colégios e transformariam o conceito de esporte, até então vinculado às
festas e ao sagrado. É nessa conjuntura que práticas como o futebol e o rugby
surgem na Europa Moderna. As agremiações foram sendo criadas em torno de
grupos sociais e passaram a representá-los. Ao incorporar simbolicamente valo-
res culturais, os times de futebol começaram a conquistar simpatizantes que se
identificam com estes significados agregados em torno do fenômeno: os torce-
dores.
Quando os times entram em campo, não são apenas alguns atletas que
lutarão desesperadamente durante alguns minutos para tentar passar, o maior
número de vezes possível, uma bola por dentro de um de dois retângulos colo-
cados em extremidades opostas do campo. Quem entra na arena são as cores, a
tradição, a história, o jeito de ser de um grupo, ou mesmo de uma classe social,
representadas através da simbologia das camisas envergadas pelos atletas. Para a
torcida, quem ganha ou perde não são os jogadores (eles), mas eles mesmos tor-
cedores (nós).
A mídia, como espaço privilegiado para que as representações cultu-
rais se manifestem, não poderia deixar de se relacionar com tal fenômeno e logo
se tornou ela própria uma parte dele. É a partir da intervenção dos meios de co-
municação que o futebol extrapola definitivamente sua dimensão de prática es-
225
portiva. Primeiramente, através dos jornais, que passam a dar atenção aos jogos
e a criar seus personagens, a eleger seus heróis e a desaprovar os fracassados. A
seguir é o rádio, que introduz uma nova narratividade ao jogo e contribui de no-
do significativo para a construção de uma linguagem especial para o esporte.
Finalmente, surge a televisão que amplia as qualidades imagéticas do espetáculo
e faz do jogo um evento não mais para centenas ou milhares, mas sim milhões
de indivíduos.
No entanto, constatou-se que a teia de relações estabelecidas na inter-
secção entre o espaço midiático e o futebolístico é cheia de pontos também con-
flituosos. A mídia utiliza-se do futebol para buscar fatos que possam atrair leito-
res, ouvintes ou telespectadores. Os sujeitos e entidades esportivas, por sua vez,
usam o futebol para se projetarem, se tornarem conhecidos e conseguir subsídios
financeiros ou institucionais que possam melhorar suas performances ou apenas
atrair público para vê-los em ação. Mídia e entidades esportivas, na verdade, es-
tão em busca de um sujeito: o cidadão-consumidor, nesse caso, investido na
figura do torcedor.
Por outro lado, o torcedor de futebol não se trata de uma categoria úni-
ca. O mais certo é falar em torcedores, o porque existam muitos, mas porque
são de muitos tipos. Num jogo de futebol, dentro do estádio, podem se reunir
desde simples admiradores do esporte, interessados em ver uma boa performan-
ce, “uma partida bem jogada”, até seguidores incondicionais do clube mais pre-
ocupados com o resultado. ainda aqueles que simpatizam de maneira mode-
rada com um dos times e os fanáticos, estes, podem ainda ser vinculados ou não
a uma organização. Em vista disso, conclui-se que o torcedor focalizado neste
trabalho e objeto da pergunta-título é o fanático e, se for pensado exclusivamen-
te no contexto do futebol é também a alma do espetáculo. Entretanto, como de-
monstrado, na imprensa, os torcedores fanáticos ou não são representados
apenas como o público pagante, não possuem voz ativa, aparecem como plano
226
de fundo para um cenário em que as performances atléticas são o mote quase
único das reportagens.
Os torcedores também são sujeitos atuantes no espaço da recepção, es-
tabelecem relações a partir das manifestações da imprensa em relação às suas
equipes, às suas preferências. Apesar de não estarem representados nas páginas
dos jornais com a mesma magnitude com que atuam no desenrolar dos eventos
esportivos, isso não faz dos torcedores sujeitos passivos no processo. Eles rea-
gem e buscam modos de mostrar suas identificações, mas, principalmente, têm
consciência de que a mídia não os representa, não lhes voz para desabafarem
suas insatisfações ou comemorar as conquistas de seus times (e deles mesmos).
Assim, não dependem da imprensa para fazê-lo. Os torcedores podem efetivar
suas reivindicações diretamente nas arquibancadas, quer a mídia divulgue-as ou
não. Podem também se manifestar através da festa ou da violência e, nesse caso,
mais do que no primeiro, conseguem chamar a atenção dos meios de comunica-
ção.
Quanto ao caso estudado, constatou-se que realmente há uma lacuna
em relação aos torcedores de futebol, verificada tanto na análise do conteúdo,
quanto nos discursos e também nas falas dos torcedores-leitores entrevistados.
Essas lacunas não têm origem apenas na opção editorial do veículo analisado,
ela tem relação com a cultura da sociedade em que os fenômenos se dão. A his-
tória da imprensa bauruense mostra que os jornais estabelecidos na cidade, em
sua maioria, surgiram para representar interesses de grupos específicos, não da
sociedade como um todo. E isso tem reflexos diretos nas pautas, nas abordagens,
nos conteúdos e nos discursos. No caso apresentado, o veículo assume-se desde
sua edição de lançamento, como porta-voz do único time profissional da cidade.
O jornal “veste a camisa do time”, defende-o até mesmo nos embates com os
próprios torcedores, que a princípio são também leitores da publicação (não se
pretende aqui julgar ou fazer qualquer valoração quanto às posições do veículo,
mas sim demonstrar como o jornal é posicionado no espaço da recepção).
227
Obviamente que algumas das constatações aqui expostas poderiam ser
um pouco diferentes se tivesse sido tomado qualquer outro veículo como refe-
rência. Mas crê-se que, na essência, ou seja, nas representações da mídia acerca
dos torcedores de futebol, ter estudado outro órgão impresso, nada mudaria de
maneira substancial, uma vez que no estágio atual das práticas jornalísticas, to-
dos os veículos possuem uma linha de produção textual bastante próxima uns
dos outros. A imprensa contemporânea tende ao “discurso único”.
A título de justificativa, é preciso dizer que este estudo também possui
lacunas, em conseqüência de não ter sido possível, em virtude do tempo estipu-
lado para o curso, estudar todos os aspectos relativos ao fenômeno. A questão do
gênero entre os torcedores poderia ter sido incluída, mas até pela importância
que possui, mereceria um estudo à parte, bem como a problemática dos precon-
ceitos racial e sociais embutidas no universo do futebol. Ficaram de fora ainda
as relações entre esporte e educação, também de extrema importância. Assim,
fica aqui a sugestão de alguns bons temas para serem discutidos de modo mais
aprofundado em âmbito acadêmico.
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Em vista das observações feitas neste estudo, propõe-se neste item al-
gumas sugestões que possam amenizar os conflitos verificados. No tocante às
questões teóricas é necessário superar as barreiras estabelecidas por conceitua-
ções estanques. Ou seja, o comunicólogo não pode ficar preso a conceitos de
uma só corrente, ainda que possa parecer contraditório, pois os fenômenos co-
municacionais são plurais: se desenvolvem no espaço da recepção, mas esta so-
fre influências do meio social, das instâncias produtoras e até do próprio suporte
da informação. Assim, uma análise culturológica deve procurar aglutinar estes
fatores. De que maneira isso pode ser feito é mais uma questão a ser respondida,
228
o percurso do presente texto apresenta alguns passos, mas não o caminho
completo, que seria muito mais longo.
Em relação aos estudos sobre o futebol, é preciso inserir novos capítu-
los na história desse esporte, que contenham a versão dos que, assim como os
torcedores de hoje, deram vida ao espetáculo, mas ficaram de fora das manche-
tes dos jornais. É preciso reavaliar as teses dos “mitos fundadores”, dos “heróis
pioneiros”. Afinal, antes do football association dos ingleses, havia o soule dos
franceses e o calcio italiano. Antes desses, houve o harpastum romano, o epys-
chiro grego, o kemari japonês e o tsu-chu chinês, além do tlatchtli asteca, do
tchoekah dos patagônios, do pilimatum dos chilenos, do pasuckquakkohowog
dos índios da América do Norte e, possivelmente, muitos outros jogos. Eram
essas outras práticas futebol? Provavelmente não, mas elas deram forma ao lon-
go do tempo a uma propensão do homem em jogar utilizando-se de objetos esfé-
ricos até que se formasse o association.
Quanto ao futebol brasileiro, é preciso investigar além dos Chares Mil-
lers e Oscars Cox, como fez José Moraes dos Santos Neto, no seu Visão do Jo-
go, trabalho que resgata a prática do futebol nos colégios jesuítas,antes da exis-
tência dos times oficiais. É preciso buscar como se formou a Liga dos Canelas
Pretas no Rio Grande do Sul, bem como a implantação do futebol fora do eixo
Rio-São Paulo. Não para desmistificar nomes, mas para contar uma história in-
clusiva, com todos os reais protagonistas da introdução e formação do futebol no
país.
Aos jornalistas esportivos fica a sugestão de incluir a voz do torcedor
nas reportagens sobre jogos de futebol. Muitas vezes, o repórter vai ao campo
fazer a cobertura e senta-se em meio aos torcedores, porém, não se digna a to-
mar suas opiniões. Escreve seu texto baseado em suas próprias observações e
nas análises de técnicos, dirigentes e atletas. Certamente, se puder incluir uma
voz a mais, terá espaço para ampliar suas pautas e, conseqüentemente, elaborar
229
matérias mais próximas dos leitores, que podem ampliar sua identificação com o
veículo.
Aos meios de comunicação, e vale não só para o veículo que foi objeto
da análise, sugere-se, além de orientar repórteres e redatores a adotarem a práti-
ca de ouvir e inserir os torcedores em seus textos, que também incluam em suas
páginas colunas dedicadas ao torcedor, como, por exemplo, um espaço para pu-
blicar cartas e mensagens específicas dos esportistas (não futebolistas). As-
sim, no futuro, a história poderá ser contada sem excluir a alma do espetáculo.
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