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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA
ENTRE A ORTODOXIA E A HETERODOXIA: CONFLITOS SIMBÓLICOS E
RELAÇÕES DE PODER ENTRE CRISTIANISMOS NA ANTIGUIDADE E O CASO
DA BIBLIOTECA DE NAG HAMMADI
Luciano José de Lima
Rio de Janeiro
2 0 0 7
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Entre a ortodoxia e a heterodoxia: conflitos simbólicos e relações de poder entre
cristianismos na antiguidade e o caso da Biblioteca de Nag Hammadi
Luciano José de Lima
Programa de Pós-Graduação em História Comparada IFCS/ UFRJ
Mestrado em História Comparada
Orientador:
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Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese
Rio de Janeiro
2007
Entre a ortodoxia e a heterodoxia: conflitos simbólicos e relações de poder entre
cristianismos na antiguidade e o caso da Biblioteca de Nag Hammadi
Luciano José de Lima
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História Comparada do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de
Mestre em História.
Aprovada por:
Prof.: Dr.
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(orientador)
Prof.: Dr.
Prof.: Dr.
Rio de Janeiro
2007
FICHA CATALOGRÁFICA
Lima, Luciano José de.
Entre a ortodoxia e a heterodoxia: conflitos simbólicos e relações de poder
entre cristianismos na antiguidade e o caso da Biblioteca de Nag Hammadi /
Luciano José de Lima. – Rio de Janeiro, 2007.
x, 186 f.: il.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS, 2006.
Orientador: André Leonardo Chevitarese
1. História Antiga. 2. Cristianismo Primitivo.
3. História - Dissertação. I. Chevitarese, André Leonardo (Orient.). II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais. III. Título.
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Para Amélia
Que de um modo dadivoso ofereceu-me à luz no altar da vida
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Para Íris
Menina dos meus olhos, que me faz ver o amor como estado de graça, fugindo a dicionários e
a regulamentos vários
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Agradecimentos
(Em ordem alfabética)
André: mais que orientador, amigo, dentre muitas coisas ensinou-me que ainda existem
mestres de verdade.
Arthur+(Priest): com ele as tardes pós MOFIC são sempre agradáveis.
Bizon (Padre): amigo do mundo ecumênico, ministro do diálogo.
César+(Priest): amigo franciscano, o primeiro anglicano de quem me tornei amigo.
Cida e Alê: amigos que estavam presentes no início desta caminhada e se fizeram
companheiros.
Dilene: A menina da ternura e da amizade que se encarna nos gestos poéticos da
solidariedade.
Evandro e Juliana: senhor de boas palavras e menina do cuidado.
França: o melhor pai que tive.
Francisco Weffort: o professor de grande sensibilidade política.
Gean (Reverendo): nas palavras de Crossan: “abrigo oferecido e refeição compartilhada”,
vivências de ressurreição.
Hebert e Isabel: amizade que transpõe os anos marcando-os com risos e compaixão, com ele
e ela o café é sempre uma eucaristia.
Hérmiton e Jamile: filosofia e literatura personificadas no caminho da existência.
Irismã: convite constante a viver na morada da alegria e amorosa companhia.
Irmãs: Sheila, Micheli e Nicoly, minhas mais antigas lembranças de ternura.
Irmã Giza: peregrina de Sion, maturidade e experiência na dialogal jornada do respeito.
Jessé e Cláudia: paroquianos e amigos na esperança.
João Luiz e “Ser”: quanta saudade eu tenho de vocês.
Loide e Dário: música e sorrisos de bons momentos vividos.
Lucas: conspiração, amizade e companheirismo partilhados a guisa de pão e vinho.
Luiz Carlos Albuquerque (vulgo Homi, ou Luis com “L”): meu grande e saudoso amigo
austro-pernambucano, senhor de boas intuições.
Luiz Carlos Ramos: amigo e co-celebrante na liturgia da vida.
Meninas da Biblioteca da Faculdade de Teologia (Aline, Gláucia, Maristela e Monique):
sempre foram fiéis companheiras e muito me ajudaram com seus serviços prestados, não
apenas com competência, mas com carinhosa atenção.
Meninas da Secretaria do PPGHC: a minha gratidão pela paciência e compreensão diante
dos atrasos que as circunstancias me impuseram.
Norma Musco Mendes: suas aulas eram sempre de ricas experiências e fecundos diálogos.
Painchauld: que não poupou esforços em me ajudar a iniciar minha aventura pelos mistérios
que circundam Nag Hammadi.
Pedro: amigo que se tornou imprescindível em minha existência, e agora ao lado da Vilma
compõe uma nova e bela história.
Regina Bustamante: suas aulas eram sempre singulares e prazerosas, como aquela em que
refletimos enquanto partilhávamos o “pudim cartaginês”.
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““ Quem controla o passado”, dizia o lema do Partido, “controla o futuro; quem controla o
presente, controla o passado”. E no entanto o passado, conquanto de natureza alterável, nunca
fora alterado. O que agora era verdade era verdade do sempre ao sempre. Era bem simples.
Bastava apenas uma série infinda de vitórias sobre a memória. “Controle da realidade”,
chamava-se. Ou, em Novilíngua, “duplipensar.”
George Orwel
In 1984, 36
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LIMA, Luciano José de. Entre a Ortodoxia e a Hetreodoxia: conflitos simbólicos entre
cristianismos na antiguidade e o caso da biblioteca de Nag Hammadi. 2007. Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
RESUMO
Análise e comparação de dois grupos cristãos antigos, um que mais tarde ficou conhecido
como portador da ortoxia, outro marcado por uma identidade gnóstica de cristianismo. O foco
da comaparação está em compreender os dois grupos como dois sistemas simbólicos em
conflito pela autolegitimação, considerando que seus discursos veiculam modelos de
sociedade e possuem implicações políticas. O grupo ortodoxo passa a fazer parte do Império
Romano e ganha legitimidade do estado, ao passo que o grupo gnóstico procura resistir
recorrendo a seus mitos e ascese que valorizam um saber secreto revelador da “verdadeira”
natureza das coisas. Observamos como um cristianismo é investido de uma posição
hierárquica que constrói uma relação do que seria a identidade cristã “ortodoxa” e os que
faziam parte de seu universo simbólico passam a se compreenderem dentro da ordem
gnosiológica do mundo. A definição da ortodoxia define quem está simbolica e socialmente
excluído, portanto considerado como parte da heterodoxia ou heresia. Mas diante da
dominação, os grupos dominados, no caso os cristãos gnósticos, resistem recorrendo a seus
sistemas de significações religiosas, onde mito tem papel importante.
Palavras-chave: cristanismo; gnósticismo; ortodoxia; heterodoxia; heresia; Império Romano;
sistema simbólico
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Sumário
Introdução........................................................................................................................... 19
1. Cristianismo: Sistema Simbólico e Pluralidade................................................................ 22
1.1 Questões Teórico-Metodológicas .............................................................................. 22
1.2 Como o Cristianismo Chegou ao Egito...................................................................... 46
1.2.1. Cristianismos de Origem: No princípio era a pluralidade ................................... 46
1.2.2. O Universo Multicultural no qual nasce o Cristianismo ..................................... 47
1.2.3. Cristianismos Originários, o cristianismo egípcio e o(s) movimento(s)
monástico(s)................................................................................................................ 52
2. Gnosticismo, Cristianismo e Monaquismo ...................................................................... 82
2.1 Das Origens do gnosticismo ao cristianismo gnóstico................................................ 82
2.1.1 O que foi o Gnosticismo ..................................................................................... 82
2.2 Gnosticismo e Cristianismo Gnóstico........................................................................ 92
2.3 Grupos Monásticos Gnósticos ................................................................................. 101
2.4 A Biblioteca de Nag Hammadi como luz para a história do Cristianismo e do
Gnosticismo.................................................................................................................. 107
2.4.1 A História de uma Descoberta .......................................................................... 108
2.4.2 Nag Hammadi e o Mundo das Escrituras Cristãs Antigas.................................. 112
2.4.3 Ascese Gnóstica no Deserto: O Local dos Códices de Nag Hammadi ............... 129
3. A Cristianização do Império, a Romanização do Cristianismo e o lugar do Cristianismo
Gnóstico. .......................................................................................................................... 140
3.1 Da pluralidade à disputa pela hegemonia................................................................. 140
3.1.1. O Cristianismo como Hairesis no mundo helenístico-romano .......................... 141
3.1.2. Princípio de Diadoché e a institucionalização da verdade................................. 147
3.1.3. Igrejas domésticas e os tituli romanos: mitos de afirmação .............................. 149
3.2. Quando o cristianismo tornou-se religião romana e a reação do cristianismo gnóstico
..................................................................................................................................... 152
3.2.1. O que era religião no mundo romano ............................................................... 152
3.2.2. Como o cristianismo passou de superstitio ilícita a religião licita..................... 155
3.3 Conflitos de Realidades: Resistência mito-prática do cristianismo gnóstico............. 178
Conclusão......................................................................................................................... 190
Referências Bibliográficas ................................................................................................ 195
19
Introdução
Este trabalho pretende ser um exercício de história comparada, pressupondo que a
análise de fenômenos sociais aprofunda-se por conta da contribuição do diálogo e a
comparação “dos resultados das pesquisas, abrangendo objetos, teorias e métodos dos
diferentes aportes das chamadas Ciências Humanas” (THEML & BUSTAMANTE, 2004: 9).
Antes de uma questão de método, o problema é a realidade na qual se insere o fenômeno que
se deseja analisar. Em nossa concepção, a realidade social é uma produção histórica
complexa, razão pela qual o príncípio de interdisciplinaridade é necessário para uma pesquisa
mais fecunda. Assim a análise de um fenômeno pede que consideremos o locus a partir do
qual se sua dinâmica, procurando verificar as condições objetivas e subjetivas dos
processos históricos.
A linha de pesquisa que norteia nosso trabalho é Historia Comparada das Diferenças
Sociais, esta cuja reflexão foca os processos de diferenciação social através dos quais, tanto
grupos quanto indivíduos, são investidos de poder, colocados em posições e hierarquias, e
como se dão as relações construtoras de identidade e diferença, casos que definem classe,
etnia, raça, gênero, nação e cultura, ou ainda, status e região. Esta forma de análise e reflexão
auxilia na compreensão de como historicamente determinados grupos e pessoas lidam com o
poder em suas práticas e discursos.
Isto posto, apresentamos o caso específico de nosso trabalho. Comparamos dois
cristianismos em conflito na antiguidade. Embora tenhamos que fazer um retrospecto para
apontar como a pluralidade era um fator presente no cristianismo primitivo, o ponto em que
desejamos chegar é o século IV d.C., quando se deu a aproximação de um grupo cristão do
Império Romano, este que pouco depois passou a integrá-lo e contribuiu para redefinir, tanto
a natureza do que seria religião, quanto qual seria a nova natureza do império que passava a
ter o deus dos cristãos como divindade protetora.
Comparamos então dois cristianismos, considerando-os como sistemas simbólicos que
expressavam diferentes compreensões de mundo, ou seja, a diferença de universos simbólicos
como sinal de diferentes percepções e projetos de realidade social. Podemos também falar de
diferentes ideologias com dois distintos projetos de poder, um de dominação e outro de
resistência. De um lado apresentamos o cristianismo que se afunila na tragetória de um
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projeto de ortodoxia que, apesar da diversidade, busca um caminho em certa medida uniforme
para a sua Igreja Una e que encontra eco no que ficou conhecido como tradição patrística, dos
quais destacamos alguns de seus conhecidos representantes, em particular Irineu de Lion (séc.
II d.C), Eusébio de Cesaréria e Atanásio de Alexandria (ambos no séc. IV d.C.). De outro
lado, destacamos uma forma de cristianismo que construía sua identidade a partir de um
sistema de significados dado pelo gnosticismo, entendendo, na idéia de um conhecimento
secreto revelado a poucos iniciados, a verdadeira natureza do mundo, de Deus e de si mesmo.
Dos muitos lugares de sobrevivência das idéias gnósticas cristãs, encontramos a região
desértica da Tebaida, no alto Egito, na qual proliferavam comunidades de ascetas dedicados à
vida monástica, que por sua vez, também não era marcada por um cristianismo uniforme.
Nosso principal indício seria a presença de documentos compilados e guardados no quarto
século na referida região, textos que foram encontrados em um espaço de trânsito monástico.
O achado ficou conhecido como A Biblioteca de Nag Hammadi, que representa perspectivas
bastante distintas do cristianismo que se tornou hegemônico. Uma expressão que ficou
reduzida à periferia do Egito de fala copta, mesma língua em que foram traduzidos os textos
que compunham a biblioteca, que antes disso circularam em grego, língua de sua redação
original.
Procuramos analizar os documentos de Nag Hammadi como produção simbólica de
um cristianismo periférico, esta é o corpus literário não uniforme das representações de
alguns grupos cristãos gnósticos, com discurso de resistência. E como acreditamos que
pertença religiosa veicula modos de relações e opções políticas, este grupo não tardaria a ser
entendido como um pequeno incômodo para o cristianismo que se romaniza e propõe os
padrões nos quais devem se fundamentar o “autêntico” cristianismo.
Segue-se da seguinte forma a estrutura do trabalho: no primeiro capítulo apresentamos
nosso quadro teórico e metodológico, a fim de esclarecer as ferramentas e chaves de leitura
que norteiam a análise comparativa que queremos propor. Em seguida, partindo do
pressuposto da pluralidade do cristianismo dentro do universo cultural oriundo do período
helenístico, marcado por interações religiosas, tentamos compreender como a religião cristã se
difundia e se diversificava conforme o contexto cultural em que se inseria. Para assim,
apontar nossas hipóteses, tanto sobre as origens do gnosticismo cristão, quanto sobre as
origens do cristianismo no Egito, e como é possível cruzar as informações a fim de supor um
cristianismo gnóstico no Egito. Para por fim estabelecer relações possíveis deste último com o
monaquismo.
21
Em nosso segundo capítulo, retomamos a discussão sobre monaquismo e gnosticismo
cristão, discutindo a origem do pensamento gnóstico antes do cristianismo, sua definição, sua
relação interativa com o dado cristão, e em particular com cristãos de vida monástica. E assim
procuramos seguir as teorias que apontam na direção da biblioteca de Nag Hammdi como
coleção de textos de comunidades monásticas de possível tendência gnóstica. Fazemos
também alguns apontamentos sobre a história da descoberta dos códices, enquadrando-os no
mundo das escrituras cristãs antigas, que refletem uma cosmovisão diferente daquela
entendida como correta pelos Pais da Igreja que os demonizaram como hereges.
O terceiro e último capítulo inicia-se pela discussão sobre como o cristianismo que se
defendia como a fala oficial da ortodoxia se aproximou do Império, encontrando lugar na
corte e tendo seus membros entre os ilustres dignatários da sociedade romana. Dedicamos
atenção para as transformações semânticas e estruturais, pelas quais passaram os conceitos de
religio e supertitio, que foram de grande importância na definição do cristianismo que passou
de superstição ilícita a religião autorizada (senão insentivada e promovida) a se tornar
religião oficial do império. E diante destas transformações, destacamos o papel da hierarquia
estabelecida pelo cristianismo hegemônico, o caso dos bispos que se tornaram guardiões das
ciuitates, e como esta hierarquia defendia projetos de poder através de suas afirmações
teológicas, o que permitia conflitos entre poderosos ameaçando a unidade imperial, uma das
razões da convocação dos concílios. Por fim, o capítulo direciona tal discussão para a relação
do cristianismo do império para com grupos periféricos, em particular o cristianismo gnóstico
do Egito, e como em ambas as expressões de cristã, os sistemas de símbolos nos quais se
estruturam suas cosmovisões, são também modelos de realidade e projetos de sociedade em
conflito, este que definimos como uma guerra de mitos para afirmar a legitimidade de seu
poder. Consideramos aqui que as marcações simbólicas do cristianismo ortodoxo produzem
também a exclusão social das falas destoantes, e a linguagem mítica do grupo periférico dos
cristãos gnósticos atua como forma de resistência. Uma disputa entre discursos pela definição
da ordem gnosiológica do mundo.
22
1. Cristianismo: Sistema Simbólico e Pluralidade
1.1 Questões Teórico-Metodológicas
Antes de adentrarmos especificamente no objetivo de nossa pesquisa, faz-se
necessário elucidá-lo, bem como apresentar as chaves de leitura das quais fazemos uso em tal
empreendimento. Ou seja, apresentamos qual o objeto de pesquisa e o quadro teórico que
subsidiará nossa análise, bem como a metodologia utilizada.
Nossa linha de pesquisa, História Comparada das Diferenças Sociais nos estimula na
formação de um campo de exercício de experimentação comparada em torno dos processos
de diferenciação social, por meio dos quais indivíduos ou grupos são investidos de poder em
posições e hierarquias, estabelecendo relações de alteridade, identidade, gênero, raça, etnia,
classe, status, região, nação e cultura”.
1
Nosso enfoque dentro de tal linha de pesquisa procura construir um campo e analisar
processos de diferenciação social no cristianismo antigo. Apontamos para estes processos
destacando como um grupo cristão é investido de poder, e quanto maior é este poder, procura
definir-se como o “verdadeiro cristianismo”, relegando assim os outros grupos, com suas
experiências e organizações, ao status de heréticos, portanto ilegítimos com cristãos.
Este cristianismo que se empodera, começa a se autodefinir como identidade unívoca
do cristianismo no segundo século. Mas na origem era uma das muitas vertentes cristãs no
contexto plural em que os cristianismos se espalharam. Contudo o modelo que se propõe
hegemônico ganha maior força no Séc. IV por conta de Édito de Milão em 313 com o
1
In: PPGHC e sua dinâmica. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004: 1.
23
Imperador Constantino. A partir daí se encaminhará até o momento em que o Imperador
Teodósio o transformará em religião oficial do império em 391 d.C.
Neste processo o cristianismo da Grande Igreja (como chamaremos o grupo que se
oficializou) deixa de ser uma superstitio para tornar-se uma nova religião para o mundo
romano. Veiculando uma nova forma de romanidade, de modo que ser cristão passa a
implicar na integração religiosa seguida da submissão política, uma nova forma de
engajamento na dinâmica das cívitas’. Quando o cristianismo entra neste processo que o
tornará religião do Estado, aos poucos começa a representar a societas organizada em civitas,
seu papel será o de vetor pelo qual progressivamente se faz a romanização do cristianismo e a
cristianização da romanidade (SACHOT, 2004:155).
Contudo, isto não significa uma adesão de todas as formas de cristianismos a tal
modelo, uma série de tensões poderá ser observada neste processo. Na verdade, outros grupos
que divergiam desde o início, continuarão a apresentar compreensões, discursos,
representações e práticas de cristianismo que correspondem a sistemas de símbolos não
heterogêneos, mas tamm tidos como ameaçadores para o Império cristão em formação.
Dentre os muitos grupos que destoam do cristianismo expresso pelo bispo Eusébio de
Cesaréia (265-340), amigo do Imperador Constantino, estão os grupos gnósticos, ou melhor,
os cristãos gnósticos.
Comparamos como estes dois cristianismos formaram suas identidades num
conflituoso processo de diferenciação em que o empoderamento de um apresenta uma nova
modalidade de cultura imperial e o outro desenvolve uma postura de resistência, sobretudo
simbólica através des transcritos. Podemos falar de um cristianismo que se autoapresenta
como o “centro” de onde se irradiava a fala correta da religião, e também passará a constituir
o “centro” do poder imperial, e veiculará um padrão cultural. Por outro lado, teremos muitos
grupos que constituirão cristianismos “periféricos”, como é o caso do cristianismo gnóstico do
24
Egito de língua copta que sobrevivia ao longo do vale do Nilo na Região da Tebaida, como já
observamos. Por gnósticos podemos entender uma série de grupos religiosos que defendiam
um conhecimento secreto de caráter soteriológico que se revelava a poucos, conduzindo-os à
gnose de si mesmos e de Deus. Dentre estes surgiram, por conta das relações interativas
viabilizadas pelo universo cultural helenístico, uma forma de gnosticismo cristão, que
verificaremos com alguns pormenores. A este grupo será exigida a submissão, contudo sua
indisposição o levará a ser tratado como heterodoxo ou herege. É interessante lembrar que
este é o resultado esperado para grupos periféricos. Na verdade, uma região que apresenta
uma leitura alternativa para a ordem acaba por se tornar refúgio para rebeldes e hereges, o que
faz deste tipo de periferia um contraponto à ortodoxia e ao respeito por tradições e autoridades
associadas ao centro (BURKE, 200: 115).
A relação entre estes cristianismos não nos parece de complementaridade, mas de
conflito. Uma cultura (“romanizada”) dominante busca exercer “controle social” ou
hegemonia cultural sobre grupos plurais querendo subordiná-los. Este cristianismo periférico
de cunho heterodoxo que apontamos teria encontrado acolhimento e se desenvolvido entre os
grupos monásticos do Egito. É sabido que as relações entre Império Cristão e monaquismo
sempre forma conflituosas, contudo poucos exploram a profundidade do conflito em termos
de sistema simbólico e reduz a uma questão de testemunho prático da Grande Igreja.
Discordamos de tal ponto, pois ele desconsidera a pluralidade e faz parecer uma pequena
disputa interna dentro de uma igreja única, o que é muito comum na leitura de alguns teólogos
cujo foco é a disciplina História da Igreja, como é o caso de Justo L. Gonzáles e Williston
Walquer (GONZALES, 1995: 57-59; WALKER, 1967: 15-74), herdeiros contemporâneos do
modelo consagrado pela tradição da História Eclesiástica estabelecidos por Eusébio de
Cesaréia.
25
A apresentação mais comum do movimento monástico do culo IV da Era Cristã
mostrava este como um grupo solidamente ortodoxo, o que na verdade reflete
anacronicamente uma leitura do monaquismo tardio responsável pelos registros acerca do
período anterior, como bem observa James Robinson (ROBINSON, 2006: 32).
É preciso que esclareçamos que a história das origens do cristianismo foi codificada
pela “tradição”. Se tomarmos o caso da História Eclesiástica de Eusébio, notaremos a
atribuição da forma presente da crença às suas origens. Um meio legitimador que atribui ao
momento fundante elementos que se constituíram depois (SACHOT, 2004: 11). A afirmação
dentro do horizonte da tradição tendeu a desconsiderar ou desqualificar as vozes plurais.
Uma grande contribuição para uma história do cristianismo que aponte elementos
plurais, desconsiderados ou desqualificados, foi à atenção dada à análise histórico-crítica dos
textos do cristianismo antigo, canônicos ou apócrifos. No caso destes últimos, as descobertas
como a da Biblioteca de Nag Hammadi em 1945 trouxeram novas luzes para a compreensão
da pluralidade do cristianismo na antiguidade.
A supracitada biblioteca representa uma coleção de textos que, embora mais antigos,
na sua versão copta encontrada no Egito seria de propriedade de gnósticos cristãos de vida
monástica do deserto (ROBINSON, 2006: 32). O que sugere que o movimento monástico não
era tão homogêneo e ortodoxo como a tradição quis fazer parecer. Nessa relação entre
cristianismo gnóstico de vertente monástica do Egito e o cristianismo que virou hegemônico,
destacamos uma luta para fazer prevalecer o sistema do último, ao passo que os primeiros
buscam resistir ao consenso instituído. Uma vez estabelecido o que comparamos, é preciso
apresentar com maior clareza o nosso quadro teórico.
Pierre Bourdieu um seu livro “O Poder Simbólico” nos oferece elementos que irão
subsidiar nossas leituras. Antes de aplicá-las, mais diretamente, comecemos por descrevê-las.
26
Bourdieu (2005: 7) fala do poder simbólico como um poder invisível que para ser
exercido, precisa da cumplicidade de quem não quer saber que lhe está sujeito, ou da
aceitação destas como naturais, sem que os mecanismos reais sejam vislumbrados.
Trazendo à memória elementos da tradição neo-kantiana de Cassirer, Durkheim e Levi
Strauss; Bourdieu apresenta os sistemas simbólicos, leia-se mito, religião, língua, arte, ciência
e etc., como instrumentos de conhecimento e construção do mundo (BOURDIEU, 2005: 8). O
sistema de representações e fatos, incluídos no conceito mais abrangente de cultura, é
responsável pelo consenso tanto do significado dos signos quanto do sentido do mundo. As
“formas simbólicas” atuam como “formas de classificação”, as subjetividades compartilhadas
são tidas como geradoras” da objetividade. Neste caso os sistemas simbólicos são estruturas
estruturantes.
Por outro lado, referindo-se a elementos da tradição marxista em interação como
constribuições weberianas, Bourdieu aponta para um outro aspecto assumido pelos sistemas
simbólicos, a saber, o de legitimadores da ordem vigente, instrumentos de poder. Em sua
síntese e crítica ele pondera: Os sistemas simbólicos”, como instrumento de conhecimento e
comunicação, podem exercer poder estruturante porque o estruturados. “O poder
simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
gnosiológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)”
(BOURDIEU, 2005: 9).
Os sistemas simbólicos são produções históricas e que atuam como instrumentos de
dominação e seus elementos, pensando no caso de uma cultura dominante, atuam para uma
integração fictícia da sociedade, conduzindo, por conseguinte, á desmobilização dos grupos
sociais dominados. Uma ordem estabelecida é legitimada ideologicamente e cria processos de
diferenciação social, distinção hierárquica, apresentando-as como naturais, assim, o edifício
cultural humano deixa de ser compreendido como elaboração histórica e social. Isto é,
27
enquanto elementos de comunicação, os “sistemas simbólicos” cumprem função política de
imposição ou de legitimação da dominação (BOURDIEU, 2005: 11). O cristianismo que se
consolidou, corresponde a uma “visão constantiniana” influenciada por Eusébio (RICHARD,
1995: 7). Evidenciamos que nas disputas entre cristianismos do século IV é possível notar o
que Bourdieu chama de uma “luta simbólica” para impor a definição do mundo social mais
conforme aos seus interesses (Idem). O grupo constantiniano, representado por Eusébio e
mais tarde por outros grupos que se arrogarão detentores da ortodoxia, buscará impor sua
ordem gnosiológica de mundo. Neste caso, definir a cristã “verdadeira”, passa a implicar
também qual é o legítimo mundo social. Não é à toa que Constantino crie legislação que
incrimina grupos considerados heréticos pelo grupo cristão de Eusébio, declarando
intoleráveis as práticas de grupos como os novacianos, os gnósticos valentinianos, os
marcionitas e outros (BARNES, 1981: 224).
Uma imagem de cristianismo que bebia da tradição patrística de Irineu de Lyon (cuja
obra Contra as Heresiasfoi escrita no Século II) e outros grupos que se julgaram porta-
vozes de um cristianismo unívoco, acabaram por se tornar a expressão do cristianismo em
processo de “casamento” com o Império, formando um modelo padronizado.
Verifica-se na Histórica Eclesiástica, uma estrutura institucional e corpo dogmático
pronto. Para esta, a diversidade é posterior a uma “unidade e ortodoxia primitiva” e por isso a
pluralidade passou a ser sinônimo de heresia (RICHARD, 1995: 8). De igual modo, a
literatura que não foi aceita como canônica foi considerada herética e tardia.
Na disputa pelo monopólio da verdade es jogo o que Piere Bourdieu chama de
“monopólio da violência simbólica legítima” (BOURDIEU, 2005: 12) e as definições de
são também afirmações políticas. Como disse Elaine Pagels: “o que cada um de nós percebe e
age como verdadeiro tem muito a ver com a nossa situação social, política, cultural, religiosa
ou filosófica” (PAGELS, 1992: 27).
28
Não é nossa intenção dizer que idéias religiosas sejam exclusivamente um meio para
disfarçar motivos políticos, mas acreditamos que os sistemas religiosos, como sistemas
culturais inseridos na dinâmica social têm seu instrumental marcado por diferentes modos de
relação com o mundo. Isso porque veiculam concepções de sociedade e se predispõem a
realizar escolhas políticas e sociais grávidas de conseqüências de explicação histórica, como
observa Aline Coutrot na obra organizada por René Rémond (COUTROT, 2003: 339).
Os vários cristianismos formavam sistemas diferenciados por conta da própria
pluralidade cultural em que se desenvolveram. uma variedade de “cristianismos
originários” palestinos e extrapalestinos que, conforme as pesquisas historiográfica e
exegética podem ser apontadas como bastante diferentes em sua compreensão de Cristo e sua
interpretação do mundo.
Assistimos se intensificar no século IV uma divisão do trabalho religioso que
conforme Bourdieu é uma dimensão do processo da divisão do trabalho social. Assim, alguns
grupos têm o seu poder reafirmado ao passo que outros o chamados a se submeterem sob o
risco de serem considerados heréticos por líderes religiosos influentes na corte imperial
romana.
Desde o século II se buscava impor um modelo de eclesiológico de igreja e um
padrão teológico ortodoxo. Este ganhou força e no século IV e foi desqualificando outros
modelos eclesiológicos de comunidades marginais. Uma “ordem” é estabelecida como
“natural” ou “legado divino” por meio de sistemas de classificação e de estruturas mentais
objetivamente ajustadas às estruturas sociais.
Eusébio inicia seu trabalho apontado para a “Preexistência e a divindade de nosso
Salvador” (História Eclesiástica, 2000: 31) e termina com “A vitória de Constantino e os
benefícios que ele trouxe aos súditos do poder romano” (Idem: 505). Temos aí uma história
29
do cristianismo que vai da teologia da pré-existência de Cristo até a ascensão do Imperador. O
sentido da cristandade aponta para o Império.
É importante ressaltar aqui o elemento de identidades cristãs se autodefinindo. As
identidades em confronto adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos
pelos quais elas são representadas (WOODWARD, 2004: 8).
As considerações tecidas por Kathryn Woodward na obra Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais” reforça nosso quadro teórico ao estabelecer o papel dos
sistemas simbólicos na construção de identidades. Em seu estudo o foco está sobre a
identidade nacional dos sérvios e a dos croatas. No nosso caso, voltamos o olhar para a
formação de uma identidade cristã que no século IV se inscreve como um novo aspecto da
identidade cultural romana, e, portanto cumpre um papel político integrador. Sabemos que a
política religiosa pode ser vista como uma estratégia de romanização (MENDES, 2005: 198).
O que ocorre neste caso é que o cristianismo aos poucos passa a ser a nova religião de
prestígio e passa a ocupar uma função legitimadora no império romano cristianizado. Assim, a
relação de conflito entre estes dois cristianismos diferentes marca a identidade de ambos. A
negação do cristianismo hegemônico em relação ao cristianismo gnóstico estabelece uma
diferença sustentada pela exclusão. E como podemos observar, conforme Woodward, essa
identidade é marcada por meio de símbolos, o que não exclui causas materiais e sociais,
que “se um grupo é simbolicamente marcado como inimigo ou tabu, isso teria efeitos reais
porque o grupo será socialmente excluído e terá desvantagens materiais.” (WOODWARD,
2004: 14).
É exatamente isso o que acontece com o cristianismo copta que vive “deserto adentro”
no Egito. A marcação simbólica, vista pelo lado oficial, estabelece o sentido das práticas e
relações sociais definindo quem está sob a ordem e quem é excluído ou uma ameaça a ela.
30
aqui um mecanismo de diferenciação social que propõe classificações buscando manter o
ideal daquele modelo (DOUGLAS: S/D, 15).
Existem reindicações essencialistas para fundamentar e legitimar a estrutura. A
identidade apela para a “verdade” fixa de um passado compartilhado (WOODWARD, 2004:
15). É muito comum um grupo fundamentar sua identidade como legítima reivindicando uma
cultura ou uma história. Ou seja, aponta suas origens para um momento fundante,
miticamente elaborado. Por essa razão, Eusébio escreve uma história da igreja que remete a
identidade cristã de seu grupo para o momento original do cristianismo, um meio de
afirmação que apresenta o seu discurso cristão como o herdeiro do legado original. E não é
apenas isso, não se apresenta como herdeiro do legado de Cristo, mas também aponta para
uma dimensão mais ancestral, voltando-se para o fundamento do mundo ao iniciar sua obra
discorrendo sobre a pré-existência de Cristo. Ele não diz que sua identidade está ancorada
na “sucessão apostólica”, mas também aponta para a legitimidade de seu cristianismo para
antes da origem do mundo. E nesta linha todos os grupos cristãos diferenciados têm suas
histórias apresentadas como desvios da verdade (História Eclasiástica, 11: 1-8).
Sejam os relatos de origem do mundo, sejam os da origem de um grupo específico,
eles atuam, neste caso, como modelo exemplar, definindo padrões para uma sociedade. O
historiador das religiões Mircea Eliade, chama a nossa atenção ao apontar a função
sóciopolítica dos mitos como “paradigmas”, elementos arquetípicos
2
(ELIADE, 1992: 12).
Estamos cientes que a abordagem de Eliade enfocava as sociedades arcaicas, entretanto,
seguindo a reflexão proposta por Kathryn Woodward, ampliamos tal função da narrativa
mítica pra os casos de grupos que na reafirmação de sua identidade apontam para o passado
formador da comunidade, o que até para a construção das identidades nacionais, étnicas, bem
como para a legitimação de um modelo de poder que se ampara em um passado que lhe
2
Arquétipo neste caso não tem o sentido junguiano. Aqui apontamos o significado usado por Eugênio d’ Orsino
qual arquétipo é sinônimo de “modelo exemplar” ou paradigma.
31
confere razão de ser. Sobre isso ela diz; citando Daniels: “[...] algumas comunidades buscam
retornar a um passado perdido, ordenado [...] por histórias de eras de ouro, antigas tradições,
por fatos heróicos e destinos dramáticos localizados em terras prometidas, cheias de paisagem
e locais sagrados [...]” (Apud: WOODWARD, 2004: 23).
Os padrões e modelos acabam encontrando sua legitimidade no passado como também
sua contestação ancora-se numa outra versão do passado apresentada pelos grupos que
contestam a ordem estabelecida. Ou seja, a contestação no presente se justifica, para criar
nova identidade e nova ordem ou manter a mesma, através da evocação das origens, das
fronteiras do passado, das mitologias. Mesmo que argumentemos não existir nenhuma
identidade essencial e fixa pra o cristianismo primitivo, os grupos envolvidos comportam-se
como se existisse e pudesse ser recuperada a unidade desta “comunidade imaginada” (Idem:
23). Não é à toa que, diante da história que se pretende unívoca, no século II, os vários
grupos gnósticos apresentavam versões diferentes da vida de Jesus, como é o caso do,
Evangelho de Maria Madalena, Evangelho de Felipe e Evangelho de Tomé, os dois últimos
encontrados em Nag Hammadi; além de apresentarem versões diferenciadas da própria
origem do mundo, como ocorre nos textos: A Hipótese dos Archontes e Sobre a Origem do
Mundo, também textos d supracitada biblioteca.
As identidades em conflito localizam-se no interior de mudanças políticas, sociais e
econômicas, tais identidades contribuem para tais mudanças (WOODWARD, 2004: 25). Os
textos sagrados ou oficiais para cada grupo, retornam às origens para justificar suas
representações e práticas presentes. Existem aqui indícios de um conflito de sistemas
simbólicos que atuaram como sistemas de classificação, nos quais o grupo que ganha a
hegemonia marca o grupo diferente como herético, justificando a exclusão social dos
mesmos.Diante do poder de definição do grupo hegemônico, a reação dos gnósticos será a de
32
reafirmar suas identidades através de seus discursos que incluíam outras compreensões da
origem do cosmo.
Acreditamos que a experiência religiosa ascética dos gnósticos não é simples fuga
alienante do mundo, mas sim um meio de elaboração da identidade. Paulo Nogueira afirma
que a experiência religiosa era um meio de construção da identidade cristã das origens e
sublinha o caso dos grupos apocalípticos do primeiro século. Em sua pesquisa, ele propõe que
vejamos nos relatos reflexões e fragmentos de uma forma de vivência religiosa que atuava
como definidora de cosmovisões e práticas em sociedade (NOGUEIRA: 2003, 9). Com isso,
Nogueira assevera que as experiências extáticas dos apocalípticos formulavam um
cristianismo cujas experiências religiosas também eram críticas sociais na quais as viagens
celestiais, dentro de um quadro cultural de referência, davam uma compreensão do mundo, na
realidade, da sociedade.
Em nossa reflexão, ao compararmos o gnosticismo cristão e o cristianismo
constantiniano de Eusébio (que se diz legítimo herdeiro da verdade cristã transmitida pelos
Pais da Igreja), queremos apresentar esse dois grupos como dois sistemas de significados que
no conflito definem sua identidade apresentando-a como a legítima. Contudo um grupo tem
poder para impor a sua visão da ordem estabelecida. Diante disso, os grupos gnósticos, em
seus escritos e suas práticas religiosas, criticariam tal ordem ao apresentar este mundo como
criação dos “archontes”, ou de um deus inferior e mesquinho. Tomamos a idéia de
experiência religiosa e crítica social na formação da identidade cristã gnóstica. Esta também é
plural, que encontra em grupos monásticos do deserto da Tebaida, lugar fértil para sua
disseminação (VEILLEUX, 1984: 276).
Ao investigarmos tal conflito entre os dois sistemas de cristianismo que comparamos,
procuramos definir qual o papel do mito nesta história. Pois ambos usam um conteúdo mítico
no discurso sobre suas origens. E ainda é importante lembrar que os mitos de criação ou
33
origem do mundo, usados pelos gnósticos são dotados de uma crítica ao sistema
autolegitimador do cristianismo patrístico
3
. (PAGELS, 1979: 68)
Com a ascensão de Constantino como imperador em 306 d.C., o cristianismo começa a
ser adotado como religião, e começa a se fortalecer a idéia de uma Igreja única e ortodoxa,
desconsiderando os outros “afluentes”. É aqui que entra Eusébio de Cesaréia, escritor da Vida
de Constantino e da História Eclesiástica que vincula a nova situação do Império com a
história do próprio cristianismo, estabelecendo as idéias de que o poder romano de
Constantino era fruto da providência divina. Assim, as atitudes políticas de Constantino
seriam legítimas para a cristandade e a idéia de um Estado cristão, como um novo modelo de
império, em uma cultura romana com novas características começava a ganhar forma e força.
Momigliano nos recorda que a história eclesiástica é a “história da nação cristã agora
emergindo como classe dominante do Império Romano” (MOMIGLIANO, 2004: 199).
A igreja, que emergia vitoriosa sob Constantino, não representava todas as formas e
sistemas de cristianismos espalhados pelo mediterrâneo. A Grande Igreja representa um
grupo dominante de cristãos que se inserem nas esferas da romanidade, isso vale tanto para
bispos nicenos como para os arianos. Esta igreja ascendendo ao poder vai se tornando parte
do Estado (mesmo que a oficialização formal venha depois com Teodósio) no qual exercita
seu poder. Por isso essa tendência interativa que vai conduzindo a fundição de igreja e
império, e consequentemente heresia e rebelião política passariam a ser difíceis de distinguir
até o ponto de serem consideradas uma só coisa.
Em termos teóricos, consideramos a contribuição de Bourdieu sobre a questão do
“Poder Simbólico”, e por isso o entendemos o conflito entre cristianismos como a disputa pela
definição do sistema do real, da estrutura da sociedade. Ou seja, o poder de confirmar ou
transformar a visão de mundo constituída deste. Em termos metodológicos analisaremos os
3
Uma vez que podemos falar de cristianismo como religião oficial do império a partir de Teodósio em 391,
vamos nos referir ao cristianismo que ganhou hegemonia como eusebiano ou constantiniano.
34
discursos de Eusébio e alguns pais da Igreja, bem como de grupos gnósticos em particular os
de alguns textos da Biblioteca de Nag Hammadi, como sistemas de símbolos, cujo discurso
atua como construtor de sentido e legitimação ou questionamento da ordem social. Elementos
muito utilizados por estudiosos do papel da análise do discurso aplicada às ciências sociais
(INIGNEZ, 2004: 51).
Uma vez que estamos diante de documentos escritos, perguntamos pelo lugar social e
político dos mesmos. De um lado apontamos para a corte de Constantino ou os centros de
poder episcopal ligados ao Império, como é o caso dos textos de Eusébio e mais tarde de
Atanásio, este último aponta mais diretamente para o Egito. De outro lado, temos os escritos
gnósticos escondidos em Nag Hammadi, que representam cosmovisões bastante distintas do
cristianismo hegemônico e que como o afirmamos, teriam seu trânsito, bem como leitura e
reflexão em ambientes monásticos de tendências gnósticas nas regiões desérticas e periféricas
do Egito. Lugar para onde afluem camponeses despossuídos, escravos, ladrões e outras
pessoas que buscavam escapar do fisco ou da justiça das cidades. Estes grupos, dizia-se que
praticavam a anacorese, termo grego que significava uma retirada, saída da chora jurisdição
dos donos do poder.
Vale lembrar que o termo anacoresis ganhará um sentido exclusivamente religioso
num contexto tardio. Tratava-se em princípio de uma atitude anti-social, ou melhor, contrária
a um modelo de sociedade. Para muitos cristãos do Egito o império cristão era mais que uma
forma nova de imperialismo greco-romano (LACARRIÈRE, 1996: 46).
Ainda, é importante lembrar que o contexto destas disputas simbólicas e políticas com
implicações sociais intensas, é o mundo mediterrâneo, marcado pela cultura helenística. Os
encontros ocorridos entre culturas variadas geraram convergências que ajudam a criar um
modelo explicativo para pluralidade dos cristianismos e até dos judaísmos. Por isso,
chamamos a atenção para as contribuições da obra Ilhas de História de Marshall Sahlins, que
35
enriquece nosso quadro teórico no tocante à questão das interações culturais. Para ele
(Sahlins, 2003: 7) “a cultura é historicamente reproduzida na ação”, o que permite
convergências geradoras de novas estruturas, dadas às mudanças sistêmicas. Embora dedique
sua reflexão ao caso dos encontros entre ingleses e havaianos, foi demonstrado que suas
“lentes de análise” também são aplicáveis na observação das interações culturais no mundo
helenístico, o que nos permite afirmar a hipótese de que havia vários cristianismos além de
judaísmos (CHEVITARESE & CORNELLI, 2003: 14).
Tais postulados são de grande auxílio para explicar em nossa análise que não havia um
cristianismo único como os grupos em disputa, principalmente o Eusebiano, quiseram fazer
crer. Outro ponto que merece ser sublinhado em nosso quadro teórico é o caso dos conceitos
do que entendemos por religião, cultura, império e romanização. Conceitos importantes uma
vez que falamos de disputas entre grupos religiosos no contexto do Império Romano e,
quando os compararmos descobrimos que um deles se insere nas esferas da romanidade.
Uma vez que entendemos, à luz do pensamento de Pierre Bourdieu (2005: 8), a
religião como sistema simbólico, nós a compreendemos, auxiliados também pelas
contribuições do antropólogo Clifford Geertz, como:
“Um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e
duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de
conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal
aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente
realistas” (GEERTZ, 1989: 104).
A partir de tal conceito queremos apresentar religião como construção da cultura
humana em sociedade. A religião confere às exigências mais específicas da ação humana
fundamental, vinculando-a a um contexto mais geral da existência humana (GEERTZ, 1989:
141). O que servirá, seja para conferir um sentido legítimo e transcendente a uma ordem
social, como também pode ser elemento questionador ao apresentar o sistema dominante
como ilegítimo dessacralizando-o.
36
Uma vez que afirmamos que a religião é uma construção cultural das sociedades,
definimos aqui a cultura como totalidade de produtos humanos, materiais ou não, contudo
enfocamos seu papel de “o conjunto de atitudes e valores de um grupo determinado e sua
expressão simbólica, cujos significados são veiculados através de práticas culturais, tais como
artes de descrição, comunicação e representação” (MENDES, 2005: 197).
Por império definimos que Norma Musco Mendes apresenta em suas investigações
sobre cultura, identidade e poder no Império Romano: “Império é uma relação formal ou
informal em que um Estado tem hegemonia efetiva sobre outra Comunidade de povos. Pode
ser alcançada pela força, colaboração política, pela dependência econômica, social ou
cultural” (MENDES, 2005, 197).
Tais definições são importantes para nossa compreensão acerca do papel que o
cristianismo passa a ter quando se torna um sistema simbólico no contexto imperial, e a forma
como agirá em relação aos outros cristianismos, em particular o cristianismo gnóstico. Pois
uma vez que, torna-se parte da ordem imperial romana, se torna elemento pró-império e seu
discurso será um meio de impor a cultura dominante forçando o reconhecimento da
legitimidade da cultura do império cristão e divulgando a ilegitimidade da cultura dos
dominados. Isso faz com que aos poucos se estabeleça no império um novo centro sagrado
ou exemplar”, como poderemos ver quando começam os concílios convocados pelos
imperadores.
Procuramos compreender como um discurso religioso, enquanto sistema simbólico
pode servir a uma dada estrutura hegemônica. O que nos faz lembrar também que filiação
religiosa estimula atitudes políticas. Uma vez que os grupos culturais veiculam diferentes
concepções da sociedade, predispondo-o a realizar escolhas sociais e políticas, isso implicara
em conseqüências históricas (COUTROT, 2003: 331). O que notamos é que um grupo
37
hegemônico apresenta o que seria a realidade correta, e procura impor tal concepção de modo
a integrar culturalmente os outros grupos.
Segundo Norma Musco Mendes (2004: 258), isso ocorre no caso do que definimos por
romanização. A pesquisadora ao estabelecer uma conexão entre poder e cultura, discussão
presente no pensamento de Edward Said (1995, 38), lembra-nos que a hegemonia, tanto na
sua busca como manutenção, não está restrita a armas e soldados. A autoridade pode se
consolidar por meio de “idéias, formas, imagens e representações, sustentadas por formações
ideológicas potentes (MENDES, 1995: 38). Ao processo de romanização vinculam-se
discursos associados a tais formações ideológicas.
Queremos observar a romanização como discurso da hegemonia do poder no contexto
em que o cristianismo aproxima-se deste poder. Na verdade, acreditamos que começa a ser
forjada no século IV d.C. uma nova forma de identidade romana, que se organizará em torno
da idéia de um Império Romano Cristão (FUNARI, 2002: 132).
Consideramos a romanização como cultura do imperialismo buscando integrar as
alteridades, contudo no supracitado contexto merece que identifiquemos um novo aspecto da
identidade cultural romana compreendida num processo interativo que Maurice Sachot
chamou de “Romanização do Cristianismo e Cristianização da Romanidade” (SACHOT,
2004: 154). Um cristianismo se introduz numa compreensão latina de religião e, em parte,
transforma sua concepção e identidade ao se inscrever nas esferas da romanidade. A partir
deste encontro, ambos não são mais os mesmos, leiam-se cristianismo e romanidade. Sobre
isso retornaremos em momento oportuno.
Como dito, uma interação com a cultura dos dominados que procura ajustá-la aos
padrões, contudo este processo não está isento de conflitos. Este não nega a presença de
relações marcadas pela violência simbólica, pretensão de ensinar aos dominados a “enxergar
corretamente” (BURKE, 2002: 122).
38
Como alternativa, grupos dominados, como é o caso de alguns egípcios que rompiam
com o centro alexandrino e com suas próprias choras, rumo ao deserto, decidiam pela
“resistência” ao invés da negociação
4
.
Dentre as várias formas de resistência, estas que abrangem ações coletivas que vão de
pequenos furtos, sabotagem, fuga até pretensa ignorância e relutância generalizada,
destacamos uma forma de resistência mito-prática. Para tanto, é necessário que retomemos
nossa definição de mito, pra entender sua importância como sistema simbólico que atua na
justificação de estruturas sociais como seu modelo exemplar.
Peter Burke (2004: 141) fala da importância de reconceituar a idéia de “mito”. Ele nos
lembra que muitos historiadores fazem uso de tal termo para designar histórias ou relatos
como inverídicos ao contrário de sua “História”. Por isso, o referido historiador considera
esclarecedora a comparação do termo mito com a noção empregada por antropólogos, teóricos
literários e psicólogos.
Para o historiador das religiões, Mircea Eliade, o mito é uma “história” tanto do cosmo
como da sociedade humana, e ele a chama de uma “história sagrada” (ELIADE, 1992: 12).
Essa “história sagrada” transmitida pelo mito remete aos eventos fundadores de uma
sociedade e atua como transmissor de paradigmas ou modelos exemplares para todas as
atividades às quais se dedicam os seres humanos. É neste sentido e não na concepção
junguiana
5
, que os mitos são elementos arquetípicos, tipos primeiros”, paradigmáticos e que
por meio de atualização (ritual ou outra) reafirmam os papéis e legitimam o mundo.
Os mitos narram como, por meio da ação de seres sobrenaturais (deuses ou o) uma
realidade passou a existir, isso vale para o cosmo, uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento, ou ainda, uma instituição (ELIADE, 1986: 11).
4
Para aprofundamento do conceito de resistência leia: BURKE, Peter. História e teoria Social. o Paulo:
Unesp, 2002 pag. 123 e SCOTT, J. C. Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts. New Haven,
Londres, 1990.
5
Não adotamos neste trabalho a definição junguiana de arquétipos.
39
Modelos primordiais exerceram grande importância, tanto no judaísmo, como no
próprio cristianismo primitivo (sem desconsiderar seu papel nas mais variadas tradições),
como nos lembra John Dominic Crossan (2004: 309).
Malinowski afirmava que os mitos eram “histórias com função social” (Apud:
BURKER, 2004: 141) por serem estas a retomada de um passado que atua como “alvará” para
o momento presente. Seu papel está em justificar ou legitimar uma instituição presente
visando manter sua existência. E isso não vale apenas para as histórias de grupos aborígenes,
mas também para outros grupos religiosos ou instituições políticas e sociais laicas do mundo
moderno e contemporâneo, incluindo, portanto “mito” da Carta Magna que serviu para
justifica instituições e práticas ao longo dos séculos.
É importante lembrar que líderes também eram apresentados como figuras míticas
heróicas ou vilãs. Em suma, nós entendemos os mitos neste trabalho como sistemas
simbólicos, conforme Bourdieu, entendidos como produtos da cultura, sujeitos a
transformações dentro de contextos históricos, políticos e sociais diferenciados. E possuem
funções sociais de integração, legitimação ou de constatação. Neles a organização de uma
sociedade encontra justificativa no modo como surgiu o mundo ou o grupo inspirador dos
modelos sociais. O surgimento de “um mundo” como fator de exploração e emergência de
uma estrutura social.
Por isso que acreditamos que a História Eclesiástica de Eusébio vincula seu modelo
de cristianismo a uma história ininterrupta que remonta ao próprio Jesus Cristo, e este e
relembrado como figura pré-existente. Temos aqui um modelo exemplar a ser imposto para
todos os cristãos do Império, como a verdadeira história e modelo. Não nos esqueçamos do
lugar social que Eusébio ocupa próximo a Constantino. Essa idéia vale também para outros
escritos patrísticos como o de Atanásio, bispo de Alexandria, no caso destacando da obra Vida
e Conduta de Santo Antão, que virou modelo da hagiografia. Atanásio representa o grupo
40
niceno do quarto culo que se outorgava os detentores da ortodoxia. Por volta de 367 d.C.
promoveu certa perseguição a grupos gnósticos considerando seus textos heréticos
(ROBINSON, 2006: 33). Curiosamente, é por volta deste período que ele teria concluído e
divulgado sua obra sobre Antão, texto que desempenhou um papel determinante na
divulgação do monaquismo (LACARRIÈRE, 1996: 53).
A obra de Atanásio, escrita entre 356 e 366 d.C. é considerada uma obra do gênero
aretológico (de aretos: “virtude” e logos: entendido aqui como “discurso”). Um discurso
edificante” e ou exemplar. Tal gênero estava muito em voga na antiguidade e não tinha por
objetivo fornecer testemunhos históricos objetivos sobre uma pessoa, mas apresentar aos
leitores um quadro de vida ideal. Modelos ideais de comportamento era o propósito de tais
obras, seja na aplicação do gênero literário em contextos cristãos ou não. Jacques Lacarrière
recorda que este estilo pode ser encontrado nas Vidas dos sábios como no caso da Vida de
Apolônio de Tiana, escrita por Filóstrato, Vida de Pitágoras, por Jâmblico e a Vida dos
Sofistas, escrita por Eunápio (Idem).
Ainda que se admita ter existido uma pessoa histórica chamada Antão que viveu como
anacoreta no Egito, o personagem histórico terminou por integrar ciclos míticos que narravam
o momento fundante do monaquismo. E a obra de Atanásio, diz Lacarrière, tem pouca relação
com o Antão histórico ( LACARRIÈRE, 1996: 54).
Se entendermos o pano de fundo em que Atanásio escreve, fica mais evidente que, em
um Egito onde o cristianismo era plural, no qual o gnosticismo não florescia desde séculos
anteriores como também havia produzido ampla literatura (KRAFT, 1998: 177), a obra tinha
motivações de integração ao que para Atanásio era o Cristianismo oficial e verdadeiro
6
.
James Robinson, um dos pesquisadores da Biblioteca de Nag Hammadi, lembra que o
cristianismo não era um movimento unificado e que a idéia de apresentar o movimento
6
o desconsideramos que esta fase foi fortemente marcada pelos conflitos entre Nicenos e Arianos, no entanto,
destacamos o problema de bispos e grupos ligados ao cristianismo “ortodoxo” com os gnósticos.
41
monástico do século IV como “solidamente ortodoxo” trata-se de uma leitura anacrônica que
reflete modelos tardios do monaquismo projetados para o período anterior por tradições
legendárias (ROBINSON, 2006: 32).
Os indícios apontam para grupos monásticos de vertente gnóstica, o que escapava ao
controle das investidas em nome da “ortodoxia”. É neste contexto que a narrativa de Atanásio
se inscreve. Vemos mais um exemplo em que um sistema de símbolos procura sobrepujar os
discursos destoantes e reduzi-los à categoria de heréticos (ROBINSON: 33).
Se por um lado os grupos do cristianismo eusebiano, constantiniano ou atanasiano, que
refletem o projeto hegemônico da ortodoxia, fazem uso de sistemas de significação mítica
para autolegitimação, é importante situar neste contexto a resistência mito-prática do grupo
(ou grupos) gnósticos.
Marshall Sahlins em sua obra estuda os casos de encontros de grupos culturais
distintos, ingleses e havaianos. Em tal obra, ele nos fornece um exemplo bastante ilustrativo
de resistência mito-prática, que servirá ao nosso quadro teórico. Sahlins (2003, 8) toma o caso
de Hone Heke, um herói maori. Em 1845, o referido herói organizou seus guerreiros com a
finalidade de tomar de assalto o maior assentamento colonial na Nova Zelândia. Um dos
objetivos fundamentais de Hone Heke era derrubar um mastro de bandeira que os britânicos
haviam exigido na região. Como entender tal atitude? Para compreender citaremos um grupo
passível de comparação.
Mircea Eliade, em “O Sagrado e Profano” (S/D: 46), fala da importância a ser dada
aos processos de “cosmisação” dos territórios desconhecidos por meio da consagração. Tal
tradição se buscava atualizar seu mito das origens. No caso dos Arunta australianos,
acreditava-se que o Ser divino “cosmisou” o mundo nos tempos míticos, onde emergiu a tribo
e suas instituições. Ele fez isso do tronco de uma árvore, que se tornou o poste sagrado
kauwa-duwa e, após ungi-lo com sangue, subiu por ele e desapareceu no céu. O poste vira o
42
eixo cósmico do mundo, o sentido daquela sociedade. A apartir dos indícios consideramos o
caso dos maori similar (SAHLINS: 36). Para os maori a humanidade, bem como toda a
sociedade, surge a partir da separação entre céu e terra por meio de um poste sagrado. O poste
representa a fundação do mundo. Assim, com o ato de erguer um mastro com bandeiras, os
britânicos, na ótica maori, estariam refundando a ordem, o cosmos. Tomar ou derrubar o
mastro era uma disputa pelas origens do mundo, uma luta pela definição do real, um conflito
que define quem está em conexão com as origens do universo, o que confere legitimidade a
um grupo.
Tal exemplo nos ajuda a entender o papel dos mitos em grupos subjulgados ou
marginalizados. Na nossa pesquisa isso vale tanto para a narrativa fundante do cristianismo
apontada para o movimento de Jesus, como as discussões sobre a origem do mundo como
criação divina ou obra de seres inferiores no gnosticismo.
Elaine Pagels lembra-nos que o mito clássico de Adão e Eva era usado entre grupos de
judeus e cristãos como recurso para defender atitudes e valores básicos (PAGELS, 1992: 17).
Olhar para o passado para justificar suas crenças e sua cosmovisão. Em outras palavras, olhar
para as origens para por o mundo em ordem. Até a estrutura patriarcal da vida comunitária,
que via no bispo o pai a ser obedecido encontrou no Éden sua estrutura estruturante.
Os gnósticos elaboraram sua resistência mito-prática através de seus discursos, isto é,
de suas representações sobre a origem do cosmos e sobre o movimento de Jesus. Por exemplo,
os cristãos gnósticos afirmavam que o sentido da história só poderia ser descoberto se
compreendêssemos os relatos comuns do mito da criação, contando-o na perspectiva da
serpente, vista como um símbolo do Cristo que ensinou Adão e Eva a se libertarem da
“ditadura” dos Arcontes que criavam este mundo (PAGELS, 1992: 23).
Os cristãos gnósticos discordavam entre si, uma vez que não era um movimento
unívoco, mas concordavam que a história ocultava verdades secretas sobre a verdadeira
43
natureza das coisas. No texto Hipótese dos Arcontes um grupo gnóstico desqualifica o criador
do mundo como um ser inferior:
“O chefe deles é cego; [por causa de seu] poder e de sua arrogância [e de sua]
arrogância disse, com o seu [poder], sou eu quem é o Deus; não existe algo [à
parte de mim]”. Quando disse isso, ele pecou contra [a totalidade]. Esse
pronunciamento subiu até a incorruptibilidade; então vejo uma voz da
incorruptibilidade dizendo, “Tu estás enganado Samael” o que significa. “Deus
dos cegos”.
O criador é apresentado como um ser arrogante e malévolo. O pano de fundo deste
texto reflete um grupo cristão gnóstico sofrendo pressão de um grupo cristão ortodoxo
(BULLARD, 2006: 144).
A resposta dos grupos sob pressão não deve ser compreendida como apenas uma
discussão religiosa e/ou filosófica. A doutrina sobre Deus, sejam entre os ortodoxos” como
entre os gnósticos e outros, envolve questões sociais e políticas (PAGELS, 1979: 63).
no século II d.C. havia uma discussão sobre a crença em Deus como legitimadora
da autoridade dos bispos que o representam. Se o deus dos bispos é o criador do mundo, como
eles defendem, para um gnóstico, tal deus, não passa de um ser inferior, sua criação um aborto
equivocado. Por isso os cristãos gnósticos o nutriam respeito por tal divindade e nem
deviam obediência a seus representantes.
Por sua vez o grupo que se pretende ortodoxo reafirma sua posição dizendo que
desobedecer à hierarquia, principalmente aos bispos, implica em desobedecer ao próprio
Deus. Quem se recusa a obedecer é culpado de “rebelião” contra o divino. Tais conflitos
são vistos no século II nas cartas de Clemente Romano, nos escritos de Inácio, bispo de
Antioquia e em Irineu de Lyon na obra Contra as Heresias. Inácio chegou a afirmar em sua
carta aos Magnésios (6.1-7.2) e aos Efésios (5:3) que as três ordens principais da “Igreja”
bispos, presbíteros e diáconos constituíam uma ordem herárquica que era reflexo da
hierarquia divina no céu (PAGELS, 1979: 64).
44
Temos uma estrutura de símbolos que legitima modelos sociais e políticos que,
integrados na dinâmica imperial, exercem poder de palavras de ordem, definindo o mundo,
tanto pelo discurso falado e escrito como por meio do que Bourdieu chamou de capital
simbólico objetivado ( BOURDIEU, 2005: 15).
Aqui é importante lembra uma outra consideração de Bourdieu: “O que faz o poder
das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de subvertê-la, é a crença
na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da
competência das palavras” (Idem).
Por isso insistimos em ler o conflito no seu aspecto de embate entre sistemas de
símbolos que buscam definir a ordem, o que cria marcações simbólicas que definem
identidades para cada grupo cristão. E é claro que, estas marcações serão um meio pelo qual
se estabelecerão as práticas e relações sociais. Uma vez que definida a ordem arquetípica, os
seus empoderados vão definindo quem é incluído e quem é excluído. O cristianismo
constantiniano (que não é uma estrutura imutável) define sua identidade e por meio da
diferenciação social, e, portanto seus “opositores” serão marginalizados. Uma vez definido o
mundo, tem-se o poder de dizer quem dele participa.
A teologia da “sucessão apostólica” foi um outro meio de se ligar ao momento
fundante do cristianismo para impor a ordem ou para subvertê-la.
citamos a estrutura da História Eclesiástica de Eusébio, bem como seu lugar social
como conselheiro e apologista do imperador Constantino (MOMIGLIANO, 2004: 196). Os
cristãos gnósticos produziram textos que refletiam como seu grupo se vinculava às tradições
dos discípulos integrantes do movimento de Jesus. Destes, o Evangelho de Tomé, Evangelho
de Felipe e Os Atos de Pedro e dos Doze Apóstolos o exemplos encontrados na Biblioteca
de Nag Hammadi. Eles apresentam versões diferenciadas para a vida e os ensinos de Jesus.
45
Podemos dizer que recorriam às autoridades expressas em suas escrituras” para questionar a
autoridade imposta.
Elaine Pagels defende a hipótese de que as disputas entre discípulos homens e Maria
Madalena no Evangelho de Felipe refletem disputas de autoridade entre cristãos de diferentes
vertentes (PAGELS, 1979: 91). Vejamos o que nos diz o texto referido:
“[...] a que acompanha o [Salvador é] Maria Madalena. [Mas Cristo a amava]
mais que [todos] os discípulos, e costumava beija-la [frequentemente] nos
[lábios]. Outros discípulos se ofenderam com isso [...] E lhe disseram: Por que
tu a amas mais que a todos nós?”O Salvador respondeu e disse-lhes: Porque eu
não os amo como [amo] a ela”“? (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 134).
Assim, esperamos ter elucidado nosso quadro teórico e apontado os caminhos de nossa
análise comparativa nesta primeira parte. Entendendo a religião como sistema de símbolos
produzido culturalmente e que possui caráter estruturante, por conseguinte produz
classificações sociais e lealdades políticas e procuramos aplicar no caso dos cristianismos
analisados. Destacamos o papel das elaborações míticas e suas funções dentro de uma
estrutura social. Tal quadro norteará nossa reflexão nas próximas etapas deste trabalho.
Em suma, comprendendo cultura como um conjunto de significações que se enunciam
também através dos discursos e comportamentos (CHARTIER, 1990: 66), não vendo o
discurso como apenas referindo-se à fala, mas à escrita, adereços monumentos, artefatos e
imagens (THEML, 2002:11) que, como sistemas de significados podem veicular discursos de
poder variados. Destacamos como as realidades sociais podem ser construídas, pensadas,
expressando as formas de distintos grupos de cristianismo apreenderem o mundo. Nossa
metodologia então procurará identificar nos textos patrísticos selecionados do grupo ortodoxo
e nos textos da biblioteca de Nag Hammadi, entendidos como textos do grupo gnóstico, os
discursos que apresentam representações da sociedade, do mundo romano, do cristianismo e
dos modelos que os constituem para cada grupo.
46
1.2 Como o Cristianismo Chegou ao Egito
1.2.1. Cristianismos de Origem: No princípio era a pluralidade
A história do cristianismo foi tradicionalmente apresentada como História da Igreja,
um modelo historiográfico cujos pilares foram estabelecidos por uma leitura teológica da
história, influenciada pela idéia de “sucessão apostólica” e por elementos doutrinários
elaborados pela “ortodoxia” do século IV d.C. (MOMIGLIANO, 2004: 197). Estes princípios,
como antes apresentamos, são herdeiros do pensamento patrístico e em particular da História
Eclesiástica escrita por Eusébio, bispo de Cesaréia (265-340) amigo do imperador
Constantino Magno. Sua história unívoca da cristandade, que vai de Cristo a Constantino,
estabelece a idéia de uma igreja única lutando contra os “hereges” e defendendo a precedência
de sua ortodoxia, esta se ornará paradigma para a auto-compreensão da cristandade posterior.
Com o avanço das pesquisas em história das religiões focada no mundo romano e na
cultura helenística, começou a ser percebido que o fenômeno cristão do primeiro século
implicava em uma variedade de experiências plurais dentro de contextos culturais distintos.
Razão que nos permite a adotar noção de cristianismos de origem.
Francisco Garcia Bazãn afirma que a elevação de um tipo de cristianismo à condição
de ortodoxia e oficialidade obscureceu as outras possibilidades de experiência religiosa e
cultural das identidades cristãs diferenciadas. Refere-se ao fato de que nos princípios do
cristianismo havia, além do grupo protocalólico, grupos judeu-cristãos e gnósticos se
difundindo livremente pelo espaço da cultura greco-romana e do antigo Oriente próximo
(GARCIA BANZÃN, 2002: 7-8).
47
1.2.2. O Universo Multicultural no qual nasce o Cristianismo
Uma vez que estabelecemos nosso quadro teórico e apresentamos nossa opção
metodológica no horizonte da lise do discurso com vistas a aprofundar a discussão dos
documentos históricos, considerando o pano de fundo, isto é, o lugar sócio-político dos
mesmos, é necessário sublinhar o universo cultural em que surge o cristianismo, e no qual ele
se espalha em processo de interatividade com as culturas variadas dentro do mundo
mediterrâneo de tradições greco-romanas.
Queremos discorrer sobre como os encontros entre grupos culturais geraram
convergências sincréticas que possibilitaram uma rica pluralidade de experiências religiosas
como as expressas pelos cultos de mistério, o hermetismo, as muitas faces de judaísmo, o
cristianismo e o gnosticismo.
A própria formação do pensamento ocidental deve ser compreendida como um
processo complexo e não-linear. Falar em complexidade implica no cuidado a fim de evitar,
por um lado leituras de pretensões totalizantes ou de completude; por outro, leituras
unidimensionais por demais simplificadoras e mutiladoras (MORIN, 2001: 9).
A palavra complexidade traz mais problemas do que soluções, por isso mesmo, ela nos
estimula na construção de “olhares plurais”, a partir de um diálogo multidisciplinar. A partir
daí, levamos em conta que as sociedades são formadas por conjuntos complexos de elementos
pertencentes, à dinâmica das relações e práticas sociais (BUSTAMANTE & THEML, 2004:
14), produzindo sistemas abertos em constante movimento, num processo não estanque.
Retomamos os conceitos sobre interação cultural, desenvolvidos e apresentados por
Marshall Sahlins no qual este nos chama a atenção para a cultura como “históricamente
reproduzida na ação” (2003: 7). Para ele os sistemas culturais são sistemas abertos, as
relações simbólicas são tidas como objeto histórico.
48
Os sistemas de símbolos, como meios pelo qual se sentido a práticas e relações
sociais (WOODWARD, 2004: 141), não podem ser entendidos como estruturas fechadas
dentro de uma lógica cultural separada.
Postulamos que várias culturas sempre interagiram, gerando mudanças em seus
sistemas, revelando dinamismo em seu funcionamento. Sahlins reflete sobre a “interação dual
entre ordem cultural enquanto constituída na sociedade e enquanto vivenciada pelas pessoas”
(2003: 9), o que faz do sistema a “síntese da produção e da variação” (Idem). Ou, como diria a
sociologia do conhecimento de Peter Berger, a organização da sociedade é “um fenômeno
dialético por ser um produto humano [...] que, no entanto retroage continuamente sobre seu
produtor” (BERGER, 1985: 15). Os sistemas de símbolos atuam como modeladores
modeláveis, o que, conforme Pierre Burdieu são estruturas instrumentos de comunicação e
conhecimento que agem de modo estruturante, mas sabemos que antes disso elas foram
primeiramente estruturadas e são passíveis de mudança (BOURDIEU, 2002: 9).
A diversidade de culturas, com suas diferentes historicidades, bem como universos
semânticos em um contexto de pluralidade produzem transformações estruturais, alterando
sentidos, modificando posições e categorias, fazendo emergirem “mudanças sistêmicas” nas
culturas inseridas no movimento da história (CHEVITARESE & CORNELLI, 2003: 11).
Linguagem, mito e religião o sistemas de símbolos (BOURDIEU, 2002: 8) que
atuam como elementos significadores do mundo, vinculando sentido para a ordem social. Mas
o que acontece quanto estes “mundos” se encontram? Depois que interagem nunca mais são
os mesmos, são outras ordens, outros sistemas de significação e classificação.
Segundo André Leonardo Chevitarese, o horizonte das pesquisas referentes a
encontros culturais ocorridos a partir das conquistas de Alexandre Magno tem se ampliado
muito (CHEVITARESE & CORNELLI, 2003: 11). O que nos fornece referenciais para a
análise intercultural de fenômenos históricos na antiguidade.
49
Compreendemos que os processos de helenização não podem ser vistos como
homogêneos, pois isso negaria a diversidade cultural e as singularidades locais. Os encontros
culturais permitiam relações de troca, negociações, conflito e resistência, claro que com seus
devidos condicionamentos e limites. Esse terreno” propiciado pelo helenismo tornará
possível uma série de convergências que farão germinar outros grupos culturais com
experiências religiosas variadas e criativas.
É claro que tais elementos sincréticos sempre foram apresentados como exóticos e
exceções, devido a uma categoria tradicional estabelecida na modernidade que lia a
antiguidade através de uma espécie de classificação da história marcada por uma idéia
renascentista de herança como ponto de referência (TRABULSI, 2004: 167). Existe uma
leitura “positiva” do pensamento ocidental (VERNANT, 1973: 293) que desconsidera
fenômenos interativos do mundo antigo.
O cristianismo nasce em um mundo marcado por forte fermentação religiosa, em que o
sincretismo gerava novas sínteses entre os grupos. Na época helenística as religiões
tradicionais não desapareceram. Os estratos e articulações hierarquizadas de muitas
sociedades continuavam a legitimar-se apontando para o sistema expresso no modelo
hierárquico do mundo divino (SCARPI, 2004: 107). Pierre Léveque nos lembra que no século
IV a.C., as Panatenéias continuavam a subir à Acrópole, os atletas mediam-se na liga olímpica
e tanto Delfos como os vestíbulos de Elênsis eram freqüentados (LÉVEQUE, 1987: 143).
Mas também neste período foi marcado por um descontentamento com as tradições
políades, o que gerou grande insegurança em relação a grupos religiosos oficiais, e na
providência dos deuses.
Este contexto favoreceu idéias de fatalismo astral, expresso no culto da deusa Tyk (a
Fortuna) que ganhou força. A deusa caprichosa que distribuía a felicidade e sorte, o
fortuito e o destino tornavam incertos e inseguros a vida das pessoas (ELIADE, 1979: 43).
50
No entanto, por outro lado aparece um novo tipo de fervor religioso no qual o culto de
divindades de outras regiões ou mesmo divindades tradicionais com novas características se
inseriam fazendo interagir vários elementos permitindo novos modelos sincréticos de culto. E
é nas camadas populares que tal fervor religioso se mostra mais intenso. Para Léveque isso se
deve tanto às crises sociais, como pelo fato das religiões das cidades não beneficiarem as
camadas mais baixas da população (LÉVEQUE, 1987: 145).
Diante disso, a “promessa de salvação” caracterizou-se como elemento essencial em
muitas religiões do mundo helenístico. A sede de salvação da desordem e do caos margem
ao florescimento de cultos mais emotivos e também extáticos, sinais de busca por um contato
mais íntimo com a divindade.
Um caso bastante ilustrativo é um exemplo dado por Mircea Eliade (1979:44) no qual
os “Mistérios de Isis” podem ser compreendidos à luz das inseguranças sociais. Diante de
tantos problemas que encontravam na crença de Tykhé sua legitimação e convite à
resignação, nos mistérios de Ísis acreditava-se que o iniciado poderia suplantar os desígnios
da deusa do destino, libertando-se das imposições desta. Nos “Louvores de Ísisexiste uma
proclamação na qual se afirma que a deusa teria conquistado o destino e que a Fortuna está
em suas mãos (Idem).
Novas identidades começam a ser forjadas a partir destes novos sistemas religiosos.
Elementos similares podem ser encontrados no culto de Cibele, nas variadas formas do culto
de Dionísio, nos mistérios de Elêusis e no culto de Mitra, no qual “o pão e o vinho conferiam
aos iniciados força e sabedoria nesta vida, e imortalidade gloriosa na outra” (ELIADE,1979:
46).
Apareceram muitos sistemas religiosos, em circunstâncias culturais variadas, que
organizavam seus cultos na perspectiva da busca da salvação. E o processo interativo desses
sistemas era tal que Léveque faz referência a um caso em Delos de uma dedicatória feita “a
51
uma Isis Sóteria (Salvadora) Astartè Afrodite” dizendo ser uma “deusa da salvação ao mesmo
tempo grega, semítica e egípcia”. (LÈVEQUE, 1987: 155)
Outro derivado desse universo multicultural foi o hermetismo, compreendido como
um conjunto complexo de crenças, idéias e práticas apresentadas pelo que chamamos de
literatura hermética. Esta que corresponde a uma série de textos cuja redação teria ocorrido
entre o século III a.C. e o século III d.C.. O corpus hermeticum não é um corpo literário
unificado (LOHSE, 2000: 252), e as herméticas mais antigas referiam-se à astrologia, à
reflexão sobre o poder das pedras preciosas e semipreciosas, e também ao estudo da força das
plantas. Estas idéias remontariam, segundo Layton (2002: 525), ao século II a.C., enquanto
que as “herméticas filosóficas” apresentam reflexões sobre cosmologia e moral, e seriam mais
tardias (século I e II d.C.). Existe uma intensa correspondência do hermetismo com o
gnosticismo.
o nome hermetismo remonta a um quadro de interação cultural/religosa. Na
religião egípcia, o senhor divino da literatura e da sabedora era Tot, criador do calendário,
senhor da Lua e escriba dos deuses (COHN, 1996: 25). Este deus, patrono da escrita
hieroglífica, conhecido por sua benevolência, será identificado entre os gregos como Hermes,
mensageiro dos deuses. No Egito helenístico e romano será chamado Hermes Trimegistos
(três vezes grande). Em torno de sua figura se originou um tipo de literatura que lhe foi
atribuída, bem como aos seus discípulos Asclépio (Imhotep), Ammon, Ísis, Horus, Tot e
Agathodaimon. Além das obras sem atribuições (LAYTON, 2002: 225).
Florescem as religiões que prometem meio de salvação por um conhecimento secreto,
cresce a religião popular voltada para a magia entre os grupos desmilitarizados, formando
sistemas de crença que chegam a questionar a legitimidade, servindo como protesto e crítica
social.
52
1.2.3. Cristianismos Originários, o cristianismo egípcio e o(s) movimento(s)
monástico(s)
John Dominic Crossan assevera que o historiador judeu Flávio Josefo e o historiador
Tácito, ao descrevem o cristianismo, notaram quatro pontos consecutivos: movimento,
execução, continuação e expansão (CROSSAN, 2004: 44). E a estes ele acrescenta um quinto
ponto, baseado na leitura apresentada por Edward Gibbon no clássico Declínio e Queda do
Império Romano, a este ponto ele chama dominação (Idem).
Em nosso trabalho nos concentramos em discutir o ponto referente à dominação que,
usando as palavras de Gibbon, trata-se do momento em que o cristianismo conseguiu
“finalmente erguer a bandeira triunfante da cruz por sobre as ruínas do capitólio” (GIBBON,
1989:194). Contudo, para compreendermos o cristianismo no culo IV d.C. e o caso do
cristianismo dominante em conflito cm grupos cristãos gnósticos do Egito, é preciso fazer
algumas considerações acerca dos períodos equivalentes ao movimento, execução,
continuação e expansão para entendermos como o cristianismo era plural e como chegou ao
Egito. Para por fim, percebermos como o grupo dominante lidou com os grupos divergentes, o
que inclui o cristianismo gnóstico.
O chão” ou pano de fundo no qual surge o movimento de Jesus é o universo judaico
da Palestina romana marcada por uma cultura dominante helenística. Assim como falamos de
cristianismos, é importante termos em mente a noção de judaísmos, uma vez que não havia
uma expressão única do judaísmo, seja dentro da Palestina ou fora dela na Diáspora.
Segundo os estudiosos de linha de pesquisa s-bultmaniana mais recentes sobre o
Jesus Histórico, o homem galileu Jesus de Nazaré era um judeu. Contudo, Gabrielle Cornelli
ressalta que a questão do judaísmo na Galiléia é mais complexa. (CHEVITARESE &
CORNELLI, 2003: 28).
53
É preciso que se considere que, no tempo de Jesus, os povos que habitavam a Palestina
se constituíam numa sociedade de grande complexidade, marcada por conflitos políticos, ao
invés de um modelo de religião unitária chamada judaísmo.
Esta leitura marcada por equívocos, é fruto, em grande parte, do pressuposto ocidental
que separa religião, política e economia. Richard Horley nos recorda que as sociedades
ocidentais institucionalizaram esta divisão da realidade”, e não fizeram isso apenas na
separação entre a Igreja e o Estado, mas também no caso da economia capitalista, bem como
na “divisão acadêmica do trabalho” (HORSLEY, 2004: 12). Tais pressupostos acabaram por
ser projetados para as sociedades antigas. Por isso Jesus e os primeiros cristãos estão
adequados na categoria de “figura religiosa”. Portanto os aspectos político-econômicos
implicados no discurso e prática do movimento foram ignorados.
Tal perspectiva se intensifica ao ser somado à compreensão, que enquadra a religião
no âmbito do individualismo ocidental moderno (Idem: 13). Jesus foi reduzido a um mestre
religioso proferindo sentenças isoladas que importavam para as pessoas individualmente de
modo bastante despolitizado. Esta forma de ler Jesus também foi modeladora da leitura sobre
seus seguidores e o contexto de sua atuação. Por isso o contexto galileu e judeu do primeiro
século foi domesticado e despolitizado. A partir daí, todos os “judeus” foram compreendidos
num quadro cultural com suas práticas e perspectivas essencializadas. Com isso, uma série de
tipologias envolviam o entendimento de um judaísmo padrão, uma identidade essencial que
engloba Herodes, o grande, Caifás, o sumo sacerdote, Gamaliel, o fariseu, e Jesus, o Galileu.
Aqui somem as diferenças e interesses políticos (HORSLEY, 2004: 15).
Retomar tal discussão é importante para falarmos de cristianismos mais adiante, bem
como aprofundar a questão sobre as implicações sóciopolíticas de um discurso religioso.
Condordamos com Horsley sobre não existir o que poderia ser rotulado de o judaísmo”.
Recentes descobertas de historiadores do povo judeu apresentam o reconhecimento de uma
54
grande diversidade entre visões e grupos judaicos. E ainda que se mantenha o termo judaísmo,
hoje é sugerida que falemos deste considerando-o como um grupo formador que precedeu o
surgimento do judaísmo rabínico que a porteriori tornou-se normativo. E é preciso que
chamemos a atenção para a reflexão que aponta as realidades judaicas antigas como mais do
que religiosas
7
.
Assim, consideramos que o essencialismo que leva a conceber todos da antiga Judéia e
Galiléia como “judeus”, obscurecendo as significativas diferenças existentes entre os mesmos,
é uma visão reducionista, senão um equívoco. As posições sociais e experiências históricas
eram bastante variadas. Participar da classe dos sumos sacerdotes ou das famílias herodianas
implicava em formas de participação do poder, desfrutar de privilégios e posses, e suas
posições eram mantidas pelos romanos. Mas havia uma grande maioria formada por
camponeses economicamente marginalizados que viviam em aldeias, além das cidades.
A palestina vivia no contexto maior do Império Romano, dos quais herodianos e sumo
sacerdote eram representativos. No contexto galilaico, os impérios helenísticos haviam
empreendido uma política de helenização com a fundação de várias cidades, embora não
interferissem muito na organização básica e na cultura tradicional das aldeias
8
. Tais
considerações servem-nos para entender a Galiléia em um contexto onde as interações
culturais, bem como uma política de resistência, definiam características que não nos
autorizam a falar de um judaísmo padronizado.
O movimento de Jesus teve seu chão no contexto sócio político da Galiléia e seus
discursos não eram sentenças e parábolas isoladas. Nestor Míguez assevera sobre a
importância do não se omitir também que, as “diversas origens do cristianismo”, estavam
7
Para aprofundar a questão vide: HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: O Reino de Deus e a nova desordem
mundial, São Paulo: Paulus, 2004.
8
Sobre isso ver: CORNELLI, Gabriele. Jesus era Judeu? Ou A Galiléia Esquecida. In: CHEVITARESE, André
L. & Cornelli. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo: Ensaios sobre Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo.
Rio de Janeiro/Piracicaba: Ottoni Editoda, 2003, p. 27-50.
55
de algum modo inscritas na pluralidade do mundo vital em que Jesus é encontrado (MIGUEZ,
1995: 22).
Neste mundo que não era em nada unívoco, no qual divisões e conflitos sociais,
culturais e econômicos acontecem, as idéias de Jesus de Nazaré eram recebidas por setores,
grupos e classes diferentes. Sua aceitação ou rejeição já a inseriam em quadros socioculturais
diferenciados (Idem: 23). Já no próprio movimento de Jesus, a adesão ao mesmo não era feita
a partir das mesmas perspectivas. Assim como é notável nos textos sobre sua vida e
mensagem (os evangelhos), percepções distintas da figura do Galileu. Tendo em conta que o
texto evangélico, como nos diz Cornelli, “é literatura religiosa de uma comunidade, que o
movimento de Jesus à luz das questões que a mesma comunidade estava vivendo no tempo
dela” (CORNELLI, 2003: 29).
A estrutura de símbolos percebida no movimento de Jesus está sujeita as várias
hermenêuticas, condicionadas pelos “contextos vitais e setores socioculturais dos quais
provém. Portanto trata-se de produções simbólicas diferentes. No momento mais tardio de sua
expansão, várias tradições sobre a pessoa de Jesus, vão ganhando outras formas na medida em
que incorporam outras recepções e mediações. Estes elementos estarão presentes nas
narrativas textuais dos evangelhos, sejam aqueles mais tarde canonizados ou não. Temos
assim indícios de pluralidade na trajetória do(s) cristianismo(s) primitivo(s).
No final do primeiro século e começo do segundo encontramos documentos de
segunda e terceira interpretação de fontes mais antigas. Vale lembrar que Mateus e Lucas
apresentam relaborações de fontes antigas sobre Jesus, estas que bebem de uma versão mais
antiga de Marcos e da fonte de ditos Q. Além do que chamamos de material exclusivo de
Lucas e Mateus
9
. É claro que não aprofundaremos o contexto de cada evangelho, pois isso
extrapolaria a proposta deste trabalho.
9
Acerca das discussões sobre a teoria das fontes ver:
56
Após a guerra de 66-70 já podemos falar de distintas variantes do cristianismo, ou de
vários cristianismos. A visão de um movimento unificado, expandindo-se em círculos
concêntricos a partir de Jerusalém, conforme a teologia Lucana do texto de Atos dos
Apóstolos, na verdade, não pode esgotar a compreensão das origens cristãs. Esta idéia de uma
unidade/uniformidade original é uma interpretação posterior, segundo Miguez, não teria sido
conquistada sem pressão e exclusões (MIGUEZ, 1995: 32). Aqui retornamos às idéias de
Kathryn Woodward quando afirma que a formação simbólica da identidade, em perspectiva
essencialista, além de ser marcada por processos de diferenciação/exclusão, também se
projeta para o passado para legitimar-se. no século II d.C. alguns grupos, relacionados à
patrística principalmente, farão reivindicações essencialistas da identidade cristã apontando
para um passado miticamente elaborado como uniforme. Um exemplo do segundo século é o
próprio Irineu, bispo de Lion. No livro III de sua obra “Contra as Heresias”, ele dedica várias
linhas à tradição apostólica, própria daqueles que alegavam possuir o conhecimento perfeito.
Aos seus herdeiros, Irineu se soma em oposição aos gnósticos, apresentando-os como
ilegítimos, pois estão fora da “tradição que vem dos apóstolos e que é conservada nas várias
igrejas, pela sucessão dos presbíteros” (Contra as Heresias, 1995: 248).
Vale lembrar que o objeto da polêmica de Irineu era os gnósticos. Ele combate este
grupo como um monte de “hereges” e afirma que o único caminho “reto e seguro” está na
aceitação da que a igreja prega (PAGELS, 1979: 136). Aqui Irineu, que se tornou um dos
grandes expoentes do pensamento patrístico, define um cristianismo único e os que
apresentam perspectivas diferentes estão distantes da verdade. Tema que se encontra em
outros autores do século II como Hipólito Romano e Tertuliano de Cartago.
É no século dois que começa a ganhar força uma estrutura na qual uma hierarquia
clerical ganha poder e passa a definir qual é a doutrina verdadeira e única. Na obra atribuída a
O PORTO, Santiago Guijarro. Ditos Primitivos de Jesus: Uma introdução ao “Proto-Evangelho de ditos Q”. São
Paulo: Loyola, 2006.
57
Clemente Romano, uma carta para a comunidade Cristã de Corinto, reflete um problema que
nos ajuda na reflexão sobre a definição de uma hierarquia melhor fixada na virada do primeiro
para o segundo século. Ao que parece, alguns líderes da referida comunidade haviam sido
despojados de seu poder. Elaine Pagels ressalta elementos interessantes da disputa refletida
em tal documento.
Clemente diz que “algumas pessoas imprudentes e voluntariosas” despojaram seus
líderes. E diz mais: “os de reputação ergueram-se contra os de boa reputação, os tolos
contra os sábios, os jovens contra os velhos”. (Apud: PAGELS, 1976: 63). Em sua resposta,
Clemente considera tais atitudes como rebelião e reafirma que os líderes foram delegados por
Deus e estes são os bispos, padres e diáconos. A recusa em lhes obedecer é sinal de
insubordinação ao próprio Deus (Idem). Um caso bastante significativo de como a paulatina
negação da pluralidade em função de, um cristianismo unívoco, envolvia um meio discursivo
que, Pierre Bourdieu classificou como violência simbólica, isto é, o “poder de impor e
mesmo inculcar instrumentos de conhecimento e expressão (taxionomias) arbitrária” [...]
(BOURDIEU, 2005: 12).
Estamos cientes que mesmo no primeiro século havia conflitos entre expressões
cristãs distintas, contudo percebemos que no século dois, crescerá a busca por uma definição
exclusiva do que é a Igreja, quem são seus líderes legítimos e qual a verdadeira fé e doutrina.
Mas retomando o período de expansão do século I, na época em que a comunidade
cristã de Antioquia foi fundada, parece que outras igrejas foram criadas nas regiões da Síria
Palestina, em grande parte fruto do trabalho dos grupos helenísticos que haviam sido expulsos
de Jerusalém depois da morte de Estevão.
Outro ponto relevante é que, entre o ensino de Jesus refletido nos sinóticos e o de
Paulo nas epístolas, sinais de cristianismos bem distintos. Não queremos com isso discutir
a polêmica sobre Paulo como um deturpador do verdadeiro cristianismo, mesmo porque, além
58
de não ser parte desta dissertação, não concordamos de todo com tal hipótese. Postulamos que
Paulo é a expressão de um tipo de cristianismo que surge em contexto de situação religiosa
bastante variada (WOODRUFF, 1995: 73). Mais tarde a figura de Paulo, principalmente
através das denteropaulinas, serviu de normativa para grupos cristãos do final do primeiro
século e do início do segundo
10
.
Havia (ligado à comunidade de Jerusalém) um cristianismo judaico comprometido
com a observância ritual da lei, grupo com o qual Paulo parece ter tido dificuldades no tocante
à idéia da conversão estar associada à adesão a costumes como a circuncisão e às leis
relacionadas com a pureza e alimentação. Essa comunidade estaria sob a liderança de Tiago,
irmão de Jesus que defendia de um modo ferrenho a observância da lei. Contudo foi
assassinado em Jerusalém em 62 d. C., durante uma vacância da procuradoria romana. Helmut
Koester afirma que esta comunidade deixou a cidade antes do início da Guerra Judaica
(KOESTER, VOL2, 2005: 217). E segundo Eusébio (História Eclesiástica 3:5.3), teriam
migrado para Pela, no lado oriental do Jordão.
Não se sabe ao certo o que foi feito desta comunidade, que muitos relatos sobre a
mesma estão circunscritos às narrativas de Eusébio que, nos século IV, procurava vincular a
história da comunidade de Jerusalém à história de uma igreja católica antiga. Eusébio
apresenta a figura de Simeão, um primo de Tiago e Jesus, como bispo de Jerusalém, seguido
ou uma lista de vários nomes de sucessores até o tempo de Adriano (História Eclesiástica 4:
5).
Koester (2005: 217) fala de uma possível relação entre o cristianismo judaico de
Jerusalém com um grupo tardio que é conhecido pelo nome de Ebionistas, os pobres”. Isso
porque Paulo sabia que a Igreja de Jerusalém se autodenominava “os pobres”. Contudo esse
10
A idéia de um Paulo reelaborado para se tornar palatável à tradição posterior e outras discussões sobre a figura
do apóstolo, podem ser aprofundadas na obra:
ELLIOT, Neil. Libertando Paulo: A justiça de Deus e a Política do Apóstolo. São Paulo: Paulus, 1997.
59
nome foi adotado por grupos independentes. Houve também um grupo ligado ao Evangelho
dos Ebionitas, citado por Irineu com este nome.
Possivelmente judeus cristãos de língua grega, apresentavam formas de fé bastante
distintas. Foram considerados hereges, pois consta que alguns rejeitavam o nascimento
virginal e aceitavam que o espírito havia descido sobre Jesus no batismo, um paralelo com
tendências gnósticas. Além disso, rejeitavam o culto sacrifical e eram vegetarianos.
Outro grupo que nos indica a pluralidade das tradições cristãs é o dos elkasaítas, um
movimento missionário judaizante sincretista que, conforme Koester (Idem: 222), competia
com grupos herdeiros do pensamento de Paulo. Um testemunho deste grupo na região da Síria
é o Livro de Elkasai
11
que apareceu por volta de 101 d.C. (no texto aparece a indicação: “No
terceiro ano de Trajano”). Ele foi preservado em fragmentos por Epifânio e Hipólito. Tal
grupo pode ser atestado nos séculos seguintes, mas passou a ser considerado com maior
atenção após pesquisas apontarem para o fato de os pais de Mani (fundador do Maniqueísmo)
terem sido elkasaítas.
Tais elementos indicam um cristianismo bastante diferente se desenvolvendo na Síria.
Isso é para nós um dado importante, pois é na Síria que acreditamos ter se desenvolvido o
gnosticismo cristão que mais tarde encontraremos com muita força no Egito.
também um cristianismo curioso refletido nas Pseudoclementinas e Kerygmata
Petrou. A primeira é um romance sobre Clemente de Roma, na qual este é apresentado como
discípulo de Pedro acompanhando-o em viagens missionárias. Texto de caráter judaico
cristão. as Kerygmata Petrou, seria uma carta de Pedro a Tiago de Jerusalém na forma de
uma Contestatio. Elas rejeitam a idéia de Pedro ter pregado a abolição da lei, e como Tiago é
uma autoridade para o cristianismo fiel à lei, Pedro aparece aprovado pelo mesmo. O texto
mostra Pedro refutando Simão Mago, mas o curioso é que quem é realmente atacado nessas
11
Elkasai se deve à autodenominação do autor: “Elkasai”- Poder de Deus.
60
refutações é Paulo. Aparece aqui a idéia de uma gnose que, mediada por Jesus se apresenta
como idêntica à lei mosaica. E a lei não é vista apenas como prescrição de certos rituais a
serem observados, mas como o princípio crítico por meio do qual a revelação e o universo
podem ser mais compreendidos do que por meio da pregação de Paulo. (KOESTER, VOL 2,
2005: 224).
O ambiente sírio favorecia encontros culturais fecundos. Archibald Woodruff, em
texto supracitado, relembra que a Síria é o nome de uma vasta região que, no primeiro século,
era província romana. Era composta pela Fenícia, Babilônia, Jerusalém e Damasco, Samaria e
Decápolis. (WOODRUFF, 1995: 76). Esta região que havia sido império helenístico dos
selêucidas teve grande parte da população de ascendência semítica e a sintonia cultural
permitia a presença de divindades semíticas reelaboradas assim como no caso houve de
divindades gregas. Nessa região marcada pelo helenismo, onde a realidade religiosa era
bastante variada, oferecer sacrifício a um deus não significava necessariamente uma pertença
religiosa específica. E neste contexto, a magia floresceu durante o período romano. O curisoso
é que designações de deus oriundas do judaísmo, por exemplo ‘Iao’ (de “Jahve”) ou mesmo
“Sabaot”, interagiam com palavras mágicas e nomes de ouras origens como o de deuses
egípcios e gregos e termos misteriosos (KOESTER, VOL 1, 2005: 383). Muitos grupos
cristãos poderiam ter tido seu primeiro contato com um “judaísmo” no contexto de um
encantamento ou exorcismo, ou mesmo ouvindo relatos de milagres praticados por Jesus. A
busca pela magia intensificou a pluralidade cultural das regiões. Recorrer a um praticante
de magia não era exclusividade de um grupo religioso específico. Embora nessa mesma época
crescesse a idéia de participação nos mistérios.
O mito da divindade que morre e ressurge, também podia ser observado nas tradições
dos cultos de mistério. Tudo isso precisa ser levado a sério na investigação sobre o
cristianismo. Antes de adentrarmos no caso do cristianismo que chegou a assumir formas
61
peculiares no Egito, julgamos como necessárias essas considerações sobre a pluralidade cristã.
Estamos cientes de outros casos na Ásia Menor, Macedônia Acaia de outros cristianismos
que, no estudo, descobrimos formas criativas dos mesmos.
1.2.4 O Cristianismo Egípcio
Birger A. Person em seu trabalho sobre o Gnosticismo, Judaísmo e Cristianismo
egípcio assevera que as origens do cristianismo no Egito são boscuras (PERSON, 1990: 195).
Com o que concorda Helmut Koester ao discorrer sobre o problema das fontes e evidências no
estudo sobre os primórdios do Cristianismo no Egito.
O Egito no período do Império Romano foi marcado por estruturas políticas,
econômicas e sociais bastante peculiares, diferenciadas de outras regiões do mundo greco-
romano (KOESTER, VOL 2, 2005: 402). Gozava de um status especial no Império, era
possessão pessoal do imperador. Também fornecia um terço do trigo que se consumia em
Roma. Sua cidade mais importante era Alexandria, a segunda maior do Império Romano,
sendo um centro econômico e cultural de grande prestígio. Segundo Harris, Estrabão a
descreveu “como o maior império do mundo habitado” (HARRIS, 1993: 402). Contudo, é
mais adequado falar de Alexandria como próximo do Egito do que parte dele. O sustento
vinha da área rural, das choras (Idem: 403). O restante do país era de predominância rural
com alguns povoados como Oxirrinco, Arsinoé e Hermópolis. Estas aldeias sofriam alguma
influência da cultura urbana, todavia não podemos compará-las com os centros culturais
espalhados pelo mundo romano. É possível até falar que neste “estado” helenístico duas
“nações” estavam presentes, uma helenizada e uma copta, sendo os primeiros dominadores e
os últimos dominados (HOORNAERT, 1991: 84).
62
Tais contrastes eram agravados por conta das diferenças lingüísticas e educacionais.
Enquanto em Alexandria encontramos uma população de língua grega, totalmente helenizada,
nas áreas rurais encontramos um povo nativo que falava vários dialetos egípcios e em grande
parte não sabia ler e escrever.
Não como falar do cristianismo egípcio sem mencionar Alexandria, entretanto,
concordamos com o supracitado historiador que afirma ser Alexandria mais uma cidade
helenística próxima ao Egito do que efetivamente uma cidade nativa. Diante disso, é curioso
como a tradição sempre associou o cristianismo mais ao centro alexandrino, fazendo daí o
irradiador cristão para o restante da região.
Gonzalo Aranda Pérez, um dos tradutores da coleção “Apócrifos Cristianos”, aponta
para considerações que se tornaram lugar comum quando se introduz a questão da emergência
do cristianismo em terras egípcias (PÉREZ, 1995: 42-43). O professor da Universidade de
Havana relembra a presença de uma expressiva comunidade judaica em Alexandria,
apoiando-se nos relatos lucanos do livro de Atos dos Apóstolos, no caso da narrativa teológica
do dia de Pentecostes (Atos 2: 10) e a aparição de um erudito judeu alexandrino que se
tornava pregador cristão chamado Apolo (Atos 18: 24-26). Estes elementos sugerem alguma
presença cristã já no século I d.C., com o que concorda Helmunt Koester, embora este afirme
a ausência de evidências diretas acerca dos primórdios do cristianismo no Egito (KOESTER,
VOL2, 2005: 239), restando-nos apenas indícios.
Grande parte das alusões ao cristianismo no Egito são tardias. As informações
apresentadas por Eusébio de Cesaréia, na História Eclesiástica, de que Marcos foi quem
fundou a primeira igreja cristã em Alexandria, tornando-se seu primeiro bispo, não é possível
de ser confirmada por fontes antigas. Tais informações, presentes no livro capítulo 5 do
segundo livro da Obra de Eusébio, corresponde mais a um discurso legitimador dos modelos
63
ortodoxos constantinianos/eusebianos do que dados das origens do movimento cristão na
região.
Koester (2005: 239) afirma que a primeira figura histórica concreta da lista de
sucessão de Eusébio em Alexandria foi Demétrio encontrado em 189 d.C., além desta,
destacamos como evidência de presença cristã no Egito na primeira metade d século II d.C., o
papiro 52 da John Rylands Library, cuja possível procedência é a região do Fayum (PÉREZ,
1995: 42).
Existem antigos manuscritos de livros cristãos no Egito, dentre os quais um exemplar
do Evangelho de João. um fragmento de João e o Evangelho Desconhecido do Papiro
Egeston 2, ambos escritos no século II d.C., o que sugere a hipótese de que tanto o Evangelho
de João quanto uma de suas possíveis fontes eram conhecidos há algum tempo no Egito.
Interessa-nos também pensar sobre como o cristianismo teria chegado à população
egípcia que não falava grego e vivia na região rural, os coptas. Para tanto devemos entender o
que queremos dizer quando falamos neste grupo. Trata-se de um povo nativo, que não se
expressava em língua grega, mas sim por uma antiga língua derivada do idioma do período
faraônico. Contudo esta língua havia adquirido uma forma mais simplificada de escritura do
que a escrita em hieróglifos, por volta do século II a.C. Esta forma nós a chamamos de
demótica e, a partir dos séculos I e II d.C., adotou caracteres gregos (maiúsculos),
conservando ainda sete signos demóticos. Depois desta etapa, é possível falar em língua
copta. Mas é preciso frizar que o termo “copta” é uma designação dada pelos grupos de língua
árabe aos cristãos egípcios no século VII d.C., época da conquista do Egito pelos árabes.
“Copta” deriva do termo grego ‘aegyptios’. (Idem: 43).
Os primeiros textos literários em copta foram traduções de textos gregos, de modo
especial de livros que vieram a compor o cânon bíblico. Mas é possível apontar para a
presença de textos ou mesmo pequenas frases em copta em fragmentos de escritos de magia
64
entre os séculos I e II d.C., estes que são um exemplo da progressiva introdução do alfabeto
grego na escrita egípcia.
A expansão do cristianismo egípcio está em parte refletida no cultivo de textos em
copta que tenderão a crescer nos culos III e IV, e encontrarão nos mosteiros um espaço
quase exclusivo de produção e guarda (PÉREZ, 1995: 43). Mais tarde, entre o século V e
VIII, o dialeto do alto Egito – o saídico- suplantou o acmímico (de Achmin) e o fayúmico (de
Fayum). Somente a partir do século VIII é que o dialeto da região do delta, o bohaírico, se
converterá em língua oficial do patriarcado de Alexandria, traduzindo textos que existiam
em saídico. Após a ocupação mulçumana, o árabe foi se impondo como língua comum, e o
copta bohaírico foi paulatinamente reduzido à língua litúrgica como se pode observar até hoje.
Uma contribuição relevante para compreender os começos do cristianismo no Egito é
a de Walter Bauer. Em 1934 publicou a obra Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity
12
.
Sua proposta é que os começos do cristianismo egípcio foram “heréticos”, razão pela qual
obras de cunho cristão produzidas não teriam sido preservadas. Além disso, informações
poderiam ter sido suprimidas ou rejeitadas pelos que adotaram o discurso eclesiástico de
pretensões hegemônicas.
Bauer ainda chama atenção para o fato de que as “heresias” teriam sido definidas pelos
círculos eclesiásticos posteriormente (BAUER, 1990: 196). Isso sugere que na disputa pela
memória cristã legítima, grupos mais fortes desqualificam seus opositores designando-os
como heréticos. Hoornaert (95) recorda que desde cedo grupos cristãos formularam uma
teologia da “sucessão apostólica” para justificar o discurso e práticas de poder de alguns
líderes que se afirmavam depositários da memória fiel de Jesus e dos apóstolos. Para Elaine
Pagels (1979:38), até as discussões sobre a forma padrão para interpretar a ressurreição de
Jesus, foi objeto de disputas com vistas a determinar quem o os verdadeiros sucessores dos
12
“Ortodoxia e Heresia no Cristianismo Primitivo”.
65
apóstolos. E ela afirma que os cristãos que se intitularam ortodoxos no século II rejeitaram a
pluralidade de interpretações da ressurreição, pois a sua própria tinha a função política de
legitimá-los como sucessores dos que viram Jesus ressuscitado, e, portanto podiam reivindicar
o exercício exclusivo de liderança sobre as comunidades. A doutrina da sucessão apostólica
13
servia para validar a autoridade de alguns epíscopos no contexto em que vários mestres
concorriam entre si afirmando ensinar a “verdadeira” doutrina de Cristo e, portanto acusavam
os diferentes de portadores do erro, como fez Irineu de Lyon nos anos 180 d.C. com os
gnósticos ao acusarem os mesmos de serem dotados de “falsa gnose” (IRINEU, 25: 1).
Os relatos de Eusébio são para nós, um construto histórico que defendeu a idéia da
ortodoxia por toda parte.
As descobertas de manuscritos no Egito ofereceram dados que iluminam questões
sobre o cristianismo que foram desconsideradas por Eusébio de Cesaréia. Textos em grego e
em copta, descobertos na região da Tebaida ajudaram a fornecer pistas para a pesquisa sobre
as origens do cristianismo egípcio. Em especial, destacamos a Biblioteca de Nag Hammadi
como uma das mais significativas expressões de pluralidade do cristianismo, pois esta aponta
uma variedade de interpretações gnósticas acerca do cristianismo e judaísmo, interpretações
às vezes díspares até entre os gnósticos.
Estes dados nos levam à hipótese de que o cristianismo copta não era o que a
“ortodoxia” descreveu. Na verdade, acreditamos que “ortodoxia” e “heresia”, com a carga
semântica legada pela tradição, não corresponde ao que o cristianismo (ou os cristianismos)
foi (foram) no principio do movimento, conforme a teoria de Bauer, segundo a apresentação
de Marcel Simon e André Benoit (SIMON&BENOIT, 1987, 297).
Para tentar entender como o cristianismo chegou ao Egito, Koester (Vol. 2, 2005: 240)
refere-se ao que denominou Tradições Sírias no Egito. O autor em questão sugere uma
13
Por volta de 160 d.C. Hegesipo viajou pelas comunidades cristãs de Corinto e Roma com vistas à divulgar
listas de sucessão apostólica, recurso ao qual Eusébio de Cesaréia recorreu no século IV d.C. como podemos
observar em vários dos livros que compões a obra Historia Eclesiástica (História Eclesiástica 4: 22, 2-3).
66
relação entre os escritos de Nag Hammadi com a Síria. Se tal hipótese for verdadeira, o
cristianismo egípcio terá uma fonte antiga e não necessariamente ligadas às visões dos grupos
que se autodefiniram como ortodoxos no século II d.C.
Acredita-se que pregadores da Síria teriam levado o cristianismo ao Egito e, através de
algumas descobertas de antigos manuscritos cristãos em terra egípcia ajudam a tornar uma
impressão do que os mesmos ensinavam. indícios que apontam para a presença gnóstica
na região ao longo do Nilo. Três cópias diferentes da versão original em grego do Evangelho
de Tomé foram encontradas em Oxirrinco (KOESTER, In: A Biblioteca de Nag Hammadi,
2006: 114)
14
. É claro que a identificação foi possível com a descoberta do texto copta do
Evangelho de Tomé em Nag Hammadi.
A relação com a Síria está no destaque da figura de Tomé para o cristianismo egípcio.
Marvin Meyer, que também é um dos especialistas em literatura e história do gnosticismo
cristão e desenvolve pesquisas sobre Nag Hammadi, na mesma equipe de James Robinson e
Helmut Koester, defende que a versão original do Evangelho de Tomé teria sido escrita em
Edessa (atual cidade de Urfa, na Turquia), local em que a memória de Tomé era reverenciada
(MEYER, 1993: 18). Um elemento muito discutido é se teria originalmente sido escrito em
aramaico.
Bentley Layton, outro pesquisador do gnosticismo e sua relação como cristianismo,
organiza o pensamento gnóstico em escolas e estabelece a escola de Tomé como um grupo
gnóstico de origem síria, mais especificamente em Edessa, e de teria migrado para o Egito
(LAYTON, 2002: 428).
O Evangelho de Tomé, assim como o Evangelho de João, pareciam ser bem
conhecidos no Egito do século II d.C. ao passo que não encontramos comprovação da
presença de manuscritos dos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, antes do ano 200.
14
Os fagmentos gregos do Evangelho de Tomé encontradas no Egito estão contidos no Papiro Oxirrinco 1, 654 e
655. São respectivamente encontrados na Biblioteca de Bodleiana na Universidade de Oxford, na Biblioteca
Britânica em Londres e na Biblioteca Houghton na Universidade de Harvard.
67
Koester (vol. 2, 2005: 241) lembra-nos que Clemente de Alexandria evidencia a
presença de um Evangelho Secreto de Marcos circulando entre um grupo de cristãos
“perfeitos” de Alexandria. O curioso é que tal obra também era utilizada pelos seguidores do
gnóstico Carpócrates
15
. É possível que este texto circulasse no Egito muito tempo. Um
elemento interessante é a presença de um rito de iniciação secreta, neste Jesus passa uma noite
com um jovem que ele havia ressuscitado. O jovem se apresenta trajando somente uma veste
de linho e Jesus lhe ensina os mistérios do reino de Deus. Estas descrições coincidem com
ritos secretos de iniciação dos rculos gnósticos do Egito, como estão preservados em textos
da Biblioteca de Nag Hammadi. O que nos parece é que tais escritos poderiam ter uma origem
na síria e depois levados para o Egito como livros secretos, como parece sugerir a cautela
exigida pelo Salvador em alguns textos como no Apócrifo de João
16
: “[...] “E a ti tenho dito
tudo para que possa escrevê-las e oferece-las aos teus espíritos companheiros, pois este é o
mistério da raça imutável.” E o Salvador o apresentou estas coisas para que ele pudesse
escrevê-las e guardá-las de forma segura.”
Outro ponto que merece ser salientado é a presea de um cristianismo judaico egípcio
que não se trata do mesmo padrão estabelecido tradicionalmente por grupos oriundos, seja do
cristianismo patrístico e eusebiano (mais tarde), sejam pelas escolas rabínicas do judaísmo
formativo e/ou normativo. São testemunho destes grupos os fragmentos de evangelhos
judaicos atribuídos a um texto alexandrino denominado Evangelho dos Hebreus. Nestes a
linguagem de sabedoria judaica é muito forte. O Espírito é apresentado como a “mãe de
Jesus” e Maria aparece como a manifestação terrestre de um poder celestial, a saber, Miguel.
A presença de Tiago, irmão de Jesus ocupa um lugar que não é similar às narrativas
canônicas. Ele aparece na última ceia prometendo não comer nem beber até que visse o
“Senhor” ressuscitado dentre os que dormem. Tal relato pode ser um reflexo dos rituais de
15
Tal interpretação encontra-se apoiada em Helmut Koester no texto supracitado.
16
Segundo Irineu de Lyon era o pai da “heresia gnóstica”. Ver Eusébio (IV, 7, 9-11).
68
jejum preparatório do grupo redator para alguma celebração como a da Páscoa (KOESTER,
Vol 2, 2005: 242).
Tomás Kraft em seu artigo publicado em RIBLA
17
29 sobre o cristianismo africano
(KRAFT, 1998: 168), afirma que, no período correspondente ao século II d.C., os documentos
do cristianismo africano são oriundos de um a ”periferia cristã”, referindo-se aos textos
gnósticos do Egito. Concordamos com a idéia de o cristianismo gnóstico estar situado na
periferia do Egito, e de certa forma ser “periferia cristã”, se considerarmos tal ótica na
perspectiva de grupos como os de Irineu que buscavam se definir através de uma identidade
única para o cristianismo.
A presença de mestres gnósticos no Egito é constatada pelos grupos de tendência
ortodoxa que buscavam a refutar tais mestres e nos documentos de ídole gnóstica. Dentre
estes estão Carpócrates, Basílides e Valentino.
Carpócrates teve seu cristianismo considerado herético. Eusébio de Cesaréia no século
IV, citando Irineu, afirma que Carpócrates era “o pai de outra heresia dos chamados
gnósticos” (História Eclesiástica, 4: 7-9). Eusébio, em sua apresentação da história oficial das
origens cristãs parte de Atos 8: 9-24, figura condenada por Pedro na referida narrativa por
querer comprar o poder apresentado pelos apóstolos.
Basílides, o filósofo, teria atuado em Alexandria por volta de 132-135 d.C., seu
movimento cristão no Egito ainda estava ativo no culo IV d.C.. Seu filho Isidoro teria sido
um dos primeiros líderes da escola basilidiana. Dos textos de Basílides que sobreviveram, não
uma obra completa. Sabe-se que reivindicou autoridade apostólica dizendo-se discípulo de
Gláucio, intérprete de Pedro e observa-se que seus postulados éticos receberam influência
estóica, embora seja considerado um filósofo eclético (LAYTON, 2002: 492).
17
Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Dedica-se à publicação de pesquisas acadêmicas
interdisciplinar na área de bíblia e documentos antigos. Também possui uma proposta de leitura compreendida
com o continente latino-americano.
69
Valentino (100-175 d.C.) ficou famoso como um dos grandes sistematizadores do
pensamento gnóstico. Teria nascido no Delta Egípcio em Dhrebonis (Idem: 259). Recebeu
educação grega e é possível que tenha encontrado Basílides. Possuía familiaridade com uma
tradição platônica oriunda da interpretação helenística-judaica da Bíblia, o que é sugerido pela
influência da obra do alegorista e filósofo judeu alexandrino Fílon. A carreira de Valentino
iniciou-se em Alexandria onde ensinou entre 117 e 138 d.C.. Muitos de seus seguidores
relataram que ele reinvidicava herança apostólica a partir de um seguidor do pensamento do
apóstolo Paulo, cujo nome era Teudas. Valentino acabou migrando para Roma entre 136 e
140 d.C. Seu sistema teológico baseava-se em sua interpretação do mito gnóstico.
Layton (2002: 263) afirma que, ao contrário do que disseram os Padres da Igreja,
Valentino o se retirou de Roma por causa de seus opositores, contudo parece ser difícil
esclarecer o fim de sua carreira em 165 d.C., e de sua morte nada conhecemos. Sabemos,
porém, que os grupos cristãos em Roma na segunda metade do século II d.C. eram bastante
variados, apesar das tentativas uniformizantes, o que tornou o lugar estigmatizado por
controvérsias e debates.
O cristianismo egípcio foi marcado por convergências sincréticas, próprias de um
contexto de interações culturais. Dizemos que, uma vez que não podemos falar em cultura
sem movimento, o cristianismo em seus encontros com ambientes culturais diversificados
passou por “transformações estruturais”. Tomás Kraft afirma que este universo interativo que,
nas palavras de Marshal Sahlins gera “mudança sistêmica” (SAHLINS, 2003: 7), compromete
o tipo de cristianismo que se origina no Egito. Considerando o caso alexandrino, Kraft lembra
de uma citação feita por J. Fernández, a respeito de uma carta do imperador Adriano ao
cônsul Serviano. A autenticidade da carta é questionável, mas é um testemunho valioso da
situação religiosa em Alexandria do ano 130 d.C.:
70
“Em relação ao Egito que me louvavas, querido Serviano, cheguei a descobri-lo
como inteiramente frívolo, oscilante e que revoluteia a impulsos de qualquer
rumor. Ali, os que veneram Serápis são cristãos e se acham consagrados a
Serápis os que se fazem chamar de bispos de Cristo. o existe ali um arqui-
sinagogo dos judeus, nem um só samaritano, nem nenhum presbítero dos cristãos
que não seja astrólogo, adivinho e curandeiro [...]” (Apud KRAFT, 1993: 171).
Tais elementos de interação no mundo religioso alexandrino são confirmados pelas
investigações arqueológicas de Alexandria, conforme Fernández (1994: 115-124). E Irineu,
embora uma fonte que deva ser vista de um modo mais desconfiado, acusa os discípulos de
Carpócrates de prestarem cultos a uma imagem de Jesus posta entre estátuas de Pitágoras,
Platão e Aristóteles (Contra as Heresias, 1: 25, 6). Este último caso reflete um tipo de
gnosticismo cristão ativo em Alexandria e que chegou a ter alguma presença em Roma.
O Evangelho dos Egípcios, não se trata do texto de mesmo nome citado na literatura
patrística (BÖHLIG, 2006: 184), mas um texto esotérico que representa uma linha do
gnosticismo conhecido como sethiano
18
. O mito gnóstico, que trataremos mais adiante, está
descrito neste texto que aponta Seth como um salvador e sua trajetória celestial é narrada.
Este texto teria circulado na área rural da Tebaida e Líbia entre grupos ao longo do Vale do
Nilo, e contém várias vogais e palavras do mundo da magia conforme comenta James
Robinson (2006: 33).
Elementos da magia estão presentes em várias religiões, isso inclui o hermetismo e
gnosticismo (KOESTER, vol. 1, 2005: 383). Citamos a seguir um exemplo do Evangelho dos
Egípcios:
“[Um] mistério [invisível] e oculto surgiu:
iiiiiiiiiiiiiiiiii[iii]ééééééééééééééééééé[ééo]
ooooooooooooooooooooooooooo uu [uuu]
uuuuuuuuuuuuuuuuuuu eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee
aaaaaaa[aaaa] aaaaaaaaaaa mmmmmmmmm [mm]
18
Referência a Seth, o terceiro filho de Adão. Sobre os grupos gnósticos e suas tendências discutiremos no
capítulo dois.
7
1
mmmmmmmmmmm. (ROBINSON, 2006: 186).
Kraft (1998: 172) defende que, embora a região da Tebaida também fosse habitada por
grupos cristãos o necessariamente gnósticos, a difusão de cristãos gnósticos na região teria
sido intensa e cresceu ainda mais na região rural. A presença pode ser atestada pela variedade
de textos cristãos (gnósticos ou não) circulando nesta região. Tal afirmação, também é
encontrada na obra Early Egyptian Christianity de Wilfred Griggs (s/d: 23).
O cristianismo egípcio não é um bloco fechado, isso vale tanto para os grupos
gnósticos como para os grupos que se impuseram como ortodoxos. A descoberta dos códices
de Nag Hammadi ajuda a elucidar o cristianismo no Egito, pois, conforme Alberto Camplani
em sua obra L’Egito Cristiano: Aspectti e Problemi in età tardo-antica”, os textos gnósticos
da referida biblioteca representam elementos crisos cuja ideologia é concorrente ao grupo
hegemônico, que também podemos chamar de a “Grande Igreja” (CAMPLANI, 1997: 121).
1.2.5 O Cristianismo Monástico no Egito
Os códices de Nag Hammadi são produto de grupos gnósticos do século IV d.C., mas
seus textos correspondem a períodos anteriores. A tradição dos textos havia seguido um
itinerário através de ambientes de orientação religiosa diversa, contudo os estudos de
cartonagem indicam um ambiente monástico. Aqui temos um problema, pois indicamos que a
chegada do cristianismo no Egito não chegou por uma única via, e era uma realidade plural. E
ainda, falamos de um cristianismo na região rural cujo caráter era gnóstico. Agora temos que
investigar a relação deste com o monaquismo egípcio.
A leitura tradicional da história do monaquismo fala do anacoreta Antão (251-305)
que foi para regiões desertas e torna-se o modelo de solitário
19
, conforme Atanásio. Depois
19
Monge é um termo de origem grega: “monakós” e significa sozinho ou solitário.
72
disso o monaquismo passou a se organizar em comunidades, os cenóbios. Este fenômeno foi
atribuído a Pacômio (292-346) que teria organizado anacoretas em grupos de vida comum,
por isso foi considerado o pai da vida cenobítica. Contudo, sem desconsiderar os dados da
tradição, consideramos o fenômeno monástico mais complexo e plural.
Bentley Layton, ao discorrer sobre o meio cultural em que surgiram algumas escolas
do pensamento gnóstico, reconhece sua circulação no Egito, mas aponta suas origens para a
região da Síria (LAYTON, 2002: 428). Ao organizar os argumentos que defendem uma raiz
síria para grupos cristãos de tendência gnóstica que teriam migrado para o Egito, Layton
refere-se a um ethos cristão de ascetas errantes que antecipou (e influenciou) o caráter de vida
monástica peculiar da Síria e Mesopotâmia (Idem: 429). É claro que o encratismo e outras
formas de rejeição ao mundo são observados em grupos cristãos “ortodoxos”, tanto quanto em
“heterodoxos”, no entanto uma forma radical destas práticas está presente nos documentos do
cristianismo que teriam origem na Síria e se encontram no Egito.
A rejeição radical ao “mundo” em suas realidades físicas como o corpo, o tecido social
e as instituições são elementos que irão marcar fortemente o gnosticismo. Tais “tendências
gnósticas não surgem como movimentos independentes” (KOESTER, vol. 2, 205: 225), mas
implicam em parte de um processo interpretativo de tradições e ditos bíblicos. Serão visíveis
na adoção de uma escatologia realizada e na negação da realidade terrena e física. Não
podemos falar de instituições gnósticas, mas em grupos e escolas que adoraram o gnosticismo
como um “principio hermético no processo de interpretação” (Idem, 226).
“No tocante aos ditos de Jesus, o gnosticismo se manifesta na ênfase dada aos ditos
sapienciais e na espiritualização” dos ditos de cunho escatológico. Esse tipo de interpretação
aparece em textos ligados à figura de Tomé. Interpretações bastante diferentes daquelas dos
grupos que compunham a Grande Igreja e que neste processo de diferenciação construíram
uma identidade cristã diferente, este que encontra sua fonte em um cristianismo siríaco, mas
73
que migra e ganha mais contornos no mundo egípcio, principalmente na região da Tebaida, na
periferia, no limite do “mundo”. Exatamente o lugar que, na interpretação oferecida por Peter
Burke, é “um refugio para rebeldes e hereges” (BURKE, 2002:118). Elemento importante de
nosso quadro teórico.
Segundo Jacques Lacarrière, a visão” escatológica convida a uma ruptura com o
“mundo” (LACARRIÈRE, 1996: 23-32). Mas, nos perguntamos aqui, que “mundo”? Crossan,
ao discutir escatologia como debate sobre os eschata, as últimas coisas”, ele indaga se estas
são “últimas coisas” do mundo físico ou do mundo humano (CROSSAN, 2004: 300). E
propõe a idéia de que a escatologia não era exclusivamente a visão de um final cataclísmico
do tempo e do espaço, mas uma forma de referir-se ao fim do poder da dominação. Crossan
também chama a atenção para que não se confunda “escatologia futura” com escatologia
realizada” ou presente. Assim, ele define escatologia como uma das grandes e fundamentais
opções do espírito humano” (Idem: 301). Na verdade, significa negação do mundo, ou de um
sistema de mundo, uma espécie de utopia baseada em um “radicalismo divino” presente em
formas sapienciais impregnadas de teor escatológico (Idem,ibidem: 304).
Retomando Lacarrière e sua história do monasticismo, é possível observar que o
fenômeno é marcado pela idéia de rejeição do mundo, mas o como simples fuga religiosa,
pois este é um postulado ocidental moderno que separa ideologia religiosa de política e
economia, o que não é o caso das sociedades antigas como nos aponta Richard Horley (2004:
13). Assim, consideramos a rejeição do mundo que inspirará anacoretas e monges pelos
desertos do Egito, uma renúncia aos modelos sociais considerados opressores. E esta
“renúncia ao social implica também um renuncia à ‘carne’, e é por isso que o anacoreta é
necessariamente um asceta” (LACARRIÈRE, 1996: 30).
74
Quando os “primeiros” anacoretas e monges começaram a se instalar nos desertos do
Egito, o cristianismo já começava a viver na prática a dinâmica de religião romana no
contexto imperial
20
.
Tradicionalmente o termo anacoreta é tratado como um sinônimo para asceta ou
monge (do deserto). Todavia é necessário que situemos a anacorese em um contexto que
elucide o sentido do termo no contexto da sociedade egípcia do século IV d.C..
O eremita ou monge figura ao lado do fora-da-lei no contexto dos marginalizados do
Egito (Idem: 17). Após o rompimento com um modelo de sociedade, a vivência “anti-social”
é evidenciada nos contos do “Bandido que virou monge” e mesmo nas “Vidas dos Padres do
Deserto”, mostrando bandidos tornando-se eremitas (Idem, ibidem: 17).
O Egito Cristão do século IV começou a ser povoado por ascetas, oriundos do
campesinato que se tornaram práticantes da anacorese. Tal fenômeno é indicador de uma
retirada do mundo cotidiano. O termo anachoresis em sua raiz refere-se a um rompimento
com a vida social na chora (região rural e periférica da qual se extrai os produtos de consumo
dos grandes centros). A opção anti-social, não é apenas religiosa. Dos vários grupos de
camponeses, escravos e ladrões, que no Egito fugiam de seus amos, da justiça local, ou
buscavam escapar do fisco, o termo que lhes era aplicado era a anacorese (LACARRIÈRE,
1996: 18). A F. Shore, na obra organizada por J. R. Harris, “O Legado do Egito” afirma que
“as condições econômicas e o peso dos impostos no século III induziram a mão-de-obra a
retirar-se, e ao abandono da terra marginal” (SHORE,1993: 412). É este o contexto egípcio da
anacorese, e é possivelmente entre estes grupos que surgem os primeiros ascetas e o
movimento monástico.
É preciso ter em mente que estes dados e indícios que interpretamos aqui, o podem
reduzir as explicações sobre as origens do monaquismo. Este apareceu de formas diferentes
20
A partir do Édito de Milão em 313 d.C. o cristianismo tornou-se religião autorizada, e em grande parte
favorecida. Somente após 392 que Teodósio torna o cristianismo religião oficial o império. Contudo, em termos
práticos o cristianismo foi ganhando poder e status desde o édito de Milão.
75
no Egito. O que queremos indicar e que é no fenômeno da anacorese que o movimento
monástico fortalece seus ethos de rejeição do status quo. O indivíduo que se retira de seus
ofícios em protesto contra as situações de trabalho (HARRIS, 1993: 413) vai aos poucos se
transformando quase exclusivamente num termo análogo à vida monástica.
Não como precisarmos quem foi o primeiro monge no deserto egípcio. O que se
tem são literaturas de fundo hagiografico (vida de santos) ou aretológico queo tem
pretensões histórico-biográficas como entendemos no mundo contemporâneo. Tais literaturas
apresentam modelos ideais de vida, o que encontramos na literatura cristã ou “pagã”. Por
exemplo, a Vida de Apolônio de Tiana (escrita no séc. III por Filostrato), Vida de Pitágoras
(por Jâmblico no século IV) e a Vida dos Sofistas (obra de Eunápio, também do séc. IV),
encontramos elementos similares aos textos das vidas dos santos. A literatura aretológica de
cunho edificante, em sua versão de Vida dos Santos, bebe do universo literário aretológico
das ‘Vidas dos Sábios’ (LACARRIÈRE, 1996: 54). Nelas, sábios ou santos, comandam
elementos da natureza, afastam flagelos, subjulgam bestas selvagens, fazem milagres,
exorcizam os possessos. Na Vida e Conduta de Antão de Atanásio, estes elementos aparecem.
Não eram escritos simplesmente para descrição. No caso da vida de Antão, por exemplo,
visava-se apresentar um retrato exaltador da vida no deserto, e se considerarmos o lugar
político a partir do qual Atanásio (Bispo de Alexandria) fala, notamos a imposição de um
padrão normatizador para a vida monástica que era bastante plural em sua forma de crenças.
Um problema comum na história do monaquismo é que estes foram lidos a partir de
uma perspectiva que o apresentava como um movimento solidamente ortodoxo no século
IV d.C.. Mas, como observa James Robinson em sua introdução aos textos de Nag Hammadi,
não havia apenas um tipo de monaquismo (ROBINSON, 2006: 32). Mesmo que se admita
algum padrão de cristianismo, ao retirar-se da “civilização”, um eremita perdia o contrato com
as comunidades de aldeias e irmandades. No começo do século IV, um monge de nome
76
Hierakas, que vivia na região do Delta do Nilo e que havia sido escriba e comerciante,
defendia o encratismo, afirmando que uma pessoa casada jamais poderia “herdar o reino dos
céus”. Por tal atitude, foi considerado herético pela política eclesiástica dos grandes centros, o
que não impediu que crescesse o número de seus seguidores. Tais ideais são também
encontrados no texto O Testemunho da Verdade da Biblioteca de Nag Hammadi, que acusa o
casamento de ser “encantador” e “aprisionador” das almas, impedindo-as de viverem na luz e
incapacitando-as de atravessar o Arconte (governante) da escuridão (Idem: 32).
Sabe-se que em 367 d.C. Atanásio enviou uma carta de Páscoa condenando heréticos e
seus “livros apócrifos”, estes que aribuiam sua antiguidade a “santos do passado”. Um líder
dos mosteiros Pacomianos de nome Teodoro providenciou para que uma versão copta da carta
fosse fixada como norma, o que indica uma ação diante de um movimento de natureza o
homogênea. Em uma lenda pacomiana, aparece um texto acusado de heresia” (atribuído a
um santo) que alega que Eva, ao comer o fruto proibido, gerou Caim a partir do demônio.
Esta memória é demonizada pelo testemunho da lenda. Curiosamente, algo similar está
registrado na Hipóstase dos Arcontes, outro texto de Nag Hammadi (Idem, ibidem: 33).
Podemos ver nisso um reflexo das disputas entre os vários grupos monásticos do Egito, que
incluíam debates entre grupos que optaram pelo cristianismo hegemônico, de perspectiva
eusebiana/constantiniana, ao qual pertencia Atanásio, e grupos de tendências gnósticas que,
no contexto em que o monaquismo vivia a realidade cenobítica. existiam colônias nas
quais o ascetismo podia ter vertentes tanto “ortodoxas” quanto gnósticas (KRAFT, 1998:
161).
Aos poucos um modelo “ortodoxo” de cristianismo começa a se impor à vida
monástica. A Vida de Antão e mesmo a Vida de Paulo de Tebas, (cuja figura não encontra
comprovação histórica de existência), tornam-se textos paradigmáticos ou arquetípicos para a
77
vida monástica. Chegam a seguir quase que uma estrutura uniforme, na qual os ascetas
fundadores foram primeiramente ricos nas cidades e depois pobres no deserto.
A vida de Paulo de Tebas é um texto da autoria de Jerônimo de Dalmácia, organizador
da tradução da Vulgata (a versão latina da Bíblia). O texto foi escrito entre 374-379. Fora a
obra de Jerônimo, este monge que teria precedido Antão na Tebaida e Arcádia, o
encontramos confirmação de sua existência. No texto referido menciona-se um “bem-
aventurado Paulo que viveu outrora na Tebaida, que foi tão célebre quanto Antão e cuja festa
continua a se celebrar” (Apud, LACARRIÈRE, 1996: 72). E o caso da vida de Antão,
Lacarrière afirma ser um texto aretológico no qual a história do asceta reveste-se de
linguagem mítica para legitimar um modelo monástico.
Mas outro ponto que indica desdobramento do(s) movimento(s) monástico que chama-
nos a atenção é o fato de a vida monástica ter sido organizada no modelo cenobítico
21
(comunal). E na história de tal transição figura a vida de Pacômio, considerado o primeiro
organizador dos mosteiros do mundo cristão (Idem: 77).
Os primeiros textos da Vida de Pacômio são do século V d.C. e foram escritos em
copta, em diferentes dialetos: bohairico e menfítico (Delta e Baixo Egito), akhmínico e sub-
akmínico (Médio Egito) e sahídico (Alto Egito), este último e o mesmo dialeto da Biblioteca
de Nag Hammadi. As versões não variam apenas quanto ao dialeto, embora sigam um padrão
referente a episódios da infância e regra de Pacômio. Seus autores procuravam frisar que,
embora de origem “pagã”, a presença de Pacômio fazia com que os deuses pagãos
silenciassem. Tendo se tornado soldado do exército romano, conhece a existência dos cristãos
em uma missão em Antimoé, quando testemunha casos de martírio. Após abandonar o
exército vai para a região de Chenobóskion, onde é batizado por um asceta ancião (seu nome é
21
Cenóbio vem de ‘koine’ (comum) e bios (vida), “vida comum”.
78
Palemão) de um duro ascetismo, marcado por jejum e privação do sono
22
. Estas práticas dos
inícios da ascese de Pacômio refletem a vida nos primeiros mosteiros pacomianos, como é o
caso do “estacionismo” que consistia em ficar imóvel por muito tempo em com os braços
erguidos ou cruzados e, às vezes, com um peso sobre os ombros. A idéia era afirmar que o
asceta domina a imobilidade e o silêncio dos mortos, aniquilando as influências do “mundo”
exterior, isto é, livre do poder dos grandes centros.
Enquanto os primeiros eremitas buscavam os antigos túmulos, Pacômio começou a
organizar comunidades na região de Chenobóskion, lugar das legendárias obras de Palemão.
É também nessas proximidades, perto da escarpa do Jebel el Tarif, onde se encontram tumbas
faraônicas, que foram enterrados num pote os códices de Nag Hammadi.
As fundações pacomianas, até a morte de Pacômico em 348 eram nove. Situavam-se
entre Tebas e Akhimin, respectivamente ao norte e ao sul, tendo o seu centro em
Chenoboskion, Tabenes e Pbou. Perto deste último, fundou também comunidades para
mulheres. A organização baseava-se na mentalidade camponesa do mundo copta, refletia
modelos de direção em sociedade por acreditarem que a vida ascética inaugurava uma
sociedade nova no deserto. Essa mentalidade do deserto como lugar em que anjos e demônios
moravam e que era o espaço além do mundo habitado, vai favorecer o modelo da anacorese
como uma forma de rebeldia e resistência. Mesmo que haja cisões entre os mosteiros, devido
à opção de alguns pela ortodoxia “auto-outorgada” pelos grupos ligados à hegemonia da
Grande Igreja” e a rejeição de tal modelo pelos gnósticos, a vida monástica constituirá focos
de insubmissão para com a autoridade temporal e religiosa dos grandes centros.
Armand Veilleux, em um artigo para a Laval Teologique et Philosophique, intitulado
Monachisme et Gnose, aponta alguns dados significativos para nossa pesquisa. Após a morte
de Pacômio, ocorreu uma crise de autoridade entre seus sucessores que teve implicações sobre
22
O sono era visto como algo perigoso que arrastava o asceta para o mundo das ilusões e erros, sendo então um
entrava para a “libertação espiritual”.
79
a questão de qual cristianismo seria o ortodoxo (VEILLEUX, 1984: 278-279). Além disso, o
mundo monástico não era de domínio exclusivo do monaquismo pacomiano, muitos monges
estavam relacionados com grupos monásticos que, para o modelo de cristianismo que se
organizava junto ao império, eram heterodoxos. Epifânio testemunhou a presença de grupos
gnósticos (monásticos) no Egito na mesma época (VEILLEUX, 1984: 280). O que reafirma
que as origens monásticas não eram únicas mesmo com o trabalho de Pacômio e seus
seguidores. O que nos permite afirmar que haviam cristãos gnósticos entre os monges. Ao que
parece, assim como houve uma identidade cristã que para se afirmar adotou um discurso que
reforçava sua diferenciação em relação aos outros modelos de cristianismo, o monaquismo
teve no modelo pacomiano um padrão normatizador que captava ou excluía outros grupos.
A presença da Bibioteca de Nag Hammadi na encosta do Jebel el Tarif, poucos
kilomêtros dos três primeiros mosteiros pacomianos (Tabenése, Pbou e Chenoboskion) deu
fôlego para estudos que viam as origens do monasticismo num quadro de interações culturais
que permitiam pluralidade mesmo em meio ao mundo rural copta e entre os que rompiam com
o sistema sócio políticos e religioso do centro, além de haver um sentimento de indiferença e
certa hostilidade pela “Igreja Hierárquica”.
É importante lembrar a hipótese de estudiosos do gnosticismo como Khosroyev de que
a região sofreu forte influência sincretista. Isso permitiu interação entre grupos com sistemas
religiosos distintos. É importante frizar que a adesão de um determinado grupo a um
cristianismo não passava pela adesão dos discursos dos patrísticos, seja de Alexandria ou de
qualquer lugar do Mediterrâneo (CAMPLANI, 1997: 138). E no caso do monaquismo não
para precisar o número de grupos monásticos divergentes no século IV que competiam e
disputavam com os pacomianos. E como todo grupo fabrica sua identidade por meio de
sistemas de classificação da diferença, podemos dizer que as disputas entre monges buscavam
classificar os grupos de modo a excluir como heréticos os grupos cujos sistemas de símbolos
80
diferenciavam do mesmo. Por esta razão, as vidas de santos ou textos sagrados adotados
sempre reivindicavam ser a expressão por excelência do monaquismo e cristianismo original.
Isso ocorre no cristianismo expresso na Vida de Antão e mais tarde na Vida de Pacômio, bem
como na adoção dos livros que para uma dada comunidade tem legitimidade “canônica”.
Acreditamos, a partir destes indícios, que em um mundo cristão plural, os coptas o
representavam um único modelo de cristianismo. E no tocante ao caso dos cristãos gnósticos
do Egito, embora seja difícil precisar, muitos destes contavam-se entre os primeiros monges,
quer eremitas quer cenobitas. Estes se apresentavam descontentes em relação ao cristianismo
que se oficializava exigindo sua subordinação.
Endentemos a história do cristianismo num quadro da história das religiões que a
localiza no mundo helenístico e romano onde os encontros geravam variadas estruturas, o que
permitia que grupos cristãos e judeus tivessem contato com religiões de mistérios, com a
magia, com rituais agrários de divindades autóctones e outros sistemas religiosos. Neste
universo as falas oficiais podiam ser reorganizadas e reelaboradas no contexto de
religiosidade popular.
Elaine Pagels (1979: 142) lembra-nos que entre os cristãos que defendiam um modelo
padronizado até toleravam grupos de idéias e práticas contraditórias desde que colaborassem
para sua estrutura básica. Tanto que muitos cristãos ligados ao modelo patrístico proto-
católico, adotaram formas ascéticas de um universo monástico bastante heterodoxo para seus
esquemas. Vale lembrar que o termo monakos’, monge ou solitário é usado no Evangelho de
Tomé para descrever os gnósticos. Na sentença quarenta e nove do referido texto, por
exemplo, em meio ao texto copta aparecem as expressões gregas ‘makarios’ (felizes) e
monakos’ (sozinhos): (1993: 53). Pagels (1979: 142) acredita que o movimento monástico foi
alinhado à autoridade episcopal, mas parece que nem todos aceitaram.
81
O cristianismo gnóstico que teria sobrevivido entre alguns grupos monásticos poderia
ser uma forma de resistência ante a imposição de um modelo oficializante de cristianismo que
se apresenta como único e legítimo. Buscava-se a afirmação de um modelo hegemônico.
Afinal, parece que não havia uma um batismo e um senhor, conforme defende a
epístola deuteropaulina intitulada aos Efésios
23
, no capítulo quatro, versos cinco.
23
Um texto possivelmente do final do séc. I d.C., possivelmente escrito por um cristão-judeu paulino. A epístola
se insere num período depois da morte de Paulo, quando sua teologia começava a ser transformada em doutrina
eclesiástica. Quanto ao endereço, não para afirmar que a carta tenha sido enviada a Éfeso. Os termos “Em
Éfeso(1.1) não aparecem nos manuscritos mais antigos e Marcião chegou a afirmar que o endereço original era
Laodicéia. Muitos exegetas acreditam ser uma carta circular para várias comunidades. Sobre estas questões
reflete (KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. Vol. 2: História e Literatura do Cristianismo
Primitivo. São Paulo: Paulus, 2005, 256-291).
82
2. Gnosticismo, Cristianismo e Monaquismo
2.1 Das Origens do gnosticismo ao cristianismo gnóstico
2.1.1 O que foi o Gnosticismo
Cláudio Moreshini e Enrico Norelli defendem que o gnosticismo trata-se de uma
“heresia” que surgiu no cristianismo do século II d.C., e ainda afirmam que obras gnósticas de
conteúdo não cristão seriam obras “descristianizadas” ao invés de pré-cristãs (MORESHINI
& NORELLI, 1996: 246-247). Tal perspectiva reproduz muito bem a compreensão tradicional
da patrística que influenciou a historiografia de modo a tratar o tema do gnosticismo como um
capítulo da heresiologia na “história da igreja cristã”, ou seja, o gnosticismo está circunscrito
ao debate sobre o desenvolvimento doutrinal do cristianismo e é considerado apenas um
desvio da “doutrina original”.
Embora nosso trabalho tenha elegido para análise comparativa o gnosticismo cristão
ou cristianismo gnóstico, divergimos de tal hipótese que nos apresenta a idéia de um
cristianismo uniforme, do qual a pluralidade seria fruto de desvios. Postulamos a hipótese de
que, assim como o cristianismo surge no universo multicultural helenístico, suas relações com
grupos culturais diferenciados permitiram trocas e hermenêuticas diferenciadas dos sistemas
simbólicos que faziam parte de seus olhares sobre o mundo. Portanto o cristianismo gnóstico
poderia ser uma expressão dessas interações.
83
Existem estudiosos que acreditam ser o gnosticismo um sistema surgido, não do
cristianismo, mas antes dele. Uma ou algumas expressões poderiam ter contato com um tipo
de cristianismo e com ele convergido, mas ainda sim poderíamos falar da existência de
gnosticismo não cristão (LOHSE, 2000: 243).
Simon e Benoit dizem que a existência do gnosticismo exige a necessidade de
explicação dos fatores que proporcionaram seu surgimento, e apontam para a presença de
elementos cristãos nos sistemas gnósticos darem a freqüente impressão de serem secundários.
(SIMON & BENOIT, 1987: 275). Hipótese cujo fundamento pode ser atestado segundo
James Robinson, um dos especialistas em gnosticismo e nos estudos histórico-críticos da
Biblioteca de Nag Hammadi (ROBINSON, 2006: 21). Acreditamos, com os historiadores da
religião, que deve ser questionada a idéia de que o gnosticismo deva ser entendido apenas
como um desenvolvimento interno do cristianismo. Consideramos de grande relevância a
possibilidade de o movimento gnóstico ser mais abrangente, independente e até é possível que
anteceda ao movimento cristão (Idem). A Biblioteca de Nag Hammadi oferece em seu estudo
apoio para a compreensão do gnosticismo como um fenômeno que vai além do que se chamou
o gnosticismo cristão, ao contrário do que defendem e documentam os heresiologistas. É claro
que isto não minimiza a complexidade, tanto do gnosticismo quanto do cristianismo. Tanto
que são numerosos os trabalhos que procuram entender as origens e desenvolvimento dos
sistemas e gnósticos e os movimentos que os postulavam.
Como dissemos, por muito tempo a questão do gnosticismo foi considerada um
problema basicamente cristão. Era apresentado como “uma deformação da doutrina cristã por
elementos provenientes da filosofia grega ou da religiosidade helenística” (SIMON &
BENOIT, 1987: 276). Essa leitura, oriunda dos Pais da Igreja, foi seguida por muitos
historiadores antigos e modernos (ELIADE, 1983: 137).
84
Irineu de Lyon, Hipótilo de Roma, entre outros teólogos da antiguidade, confrontaram
vários grupos que insistiam no papel fundamental do conhecimento como caminho de
salvação e professavam doutrinas tidas como inaceitáveis pelos referidos patrísticos. E como
representantes de um sistema religioso cristão divergente, e que se considerava o original e
verdadeiro, dedicaram-se a depreciá-lo como falsa gnose(Conta as Heresias, 2: 25) e seus
mestres foram considerados “chefes da pseudognose” (História Eclesiástica, 7: 1).
Os patrísticos procuraram ver no gnosticismo uma “contaminação” da doutrina cristã
pela filosofia grega. Isso pode ser observado em todo o capítulo catorze do Conta as Heresias
de Irineu de Lyon. Nesta obra Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxágoras, Demócrito,
Epicuro, Empédocles e Platão aparecem como afluentes que alimentam o “desvio” do
gnosticismo. Tais idéias são continuadas por Hipólito de Roma que, retomando tal tese,
postula que cada escola filosófica influenciou em um ponto, gerando seitas” que de alguma
forma influenciaram a gnose.
Além do esforço de encontrar no gnosticismo um desvio da doutrina cristã por
influência da filosofia grega, os pensadores patrísticos traçaram uma história que apontava
para Simão o Mago (citado em ATOS 8: 9-24) que seria oriundo de Samaria. A partir daí, o
gnosticismo teria seguido para o Egito onde encontrou seus grandes mestres, a saber,
Basílides, Carpócrates e Valentino (SIMON & BENOIT, 1987: 277). Deparamo-nos aqui com
um exemplo da luta para impor/inculcar instrumentos de conhecimento e expressão
arbitrários” (BORDIEU, 2005: 12) para o que seria a “verdadeira identidade cristã”.
A perspectiva patrística prevaleceu por muito tempo na historiografia sobre o
cristianismo. Um dos exemplos de grande destaque é o caso do historiador alemão Adolf Von
Harnack que, tendo baseado suas investigações nos pais da igreja concluiu que o gnosticismo
era uma heresia cristã. Afirmava que os gnósticos teriam interpretado as doutrinas cristãs
tendo como referenciais a filosofia grega e, ao fazerem isso, distorceram a mensagem cristã e
85
divulgaram modelos falsos de ensinamento cristão, a isto ele chamou de “helenização aguda
do cristianismo” (Apud. PAGELS, 1979: 27). Assim, se de um lado ocorrera uma helenização
radical do cristianismo gerando gnosticismo, por outro lado, o cristianismo primitivo teria
reagido e sistematizado seus dogmas. Este último seria o catolicismo.
Eugène de Faye, em sua obra Gnostidques et Gnosticisme’, considerava que tudo o
que se sabia acerca dos sistemas gnósticos estava alicerçado no testemunho dos pais da igreja.
Mas defendia ser indispensável o acesso às obras e fragmentos gnósticos disponíveis. Julgava
os textos patrísticos exposições polêmicas e parciais, próprias de adversários (Apud. SIMON
& BERNOIT, 1987: 278).
A história do gnosticismo, como um fenômeno intra-eclesial, foi sendo questionada
quando o cristianismo e o próprio gnosticismo passaram a ser investigados a partir da
perpectiva da “escola da história das religiões”, interessada no estudo das manifestações e
formas do pensamento religioso da antiguidade. O gnosticismo passou a ser enquadrado em
um contexto mais amplo, um fenômeno da história das religiões do qual o caso do
cristianismo gnóstico era apenas uma expressão. Gnosticismo seria então um movimento do
mundo helenístico, fruto de um universo de interações culturais que se difundiu também entre
grupos cristãos e interagiu com eles formando novas estruturas de cristianismo e de
gnosticismo. Estes, em suas ordens de significação teriam tido os elementos ressignificados
na prática.
Poder-se-ia definir gnose (“conhecimento” em grego) como uma complexa estrutura
de pensamento (não estanque) que marcou alguns movimentos religiosos, que em princípio
não era parte do cristianismo, mas que aos poucos para ele convergira dentro de um contexto
que permitia contatos envolvendo vários sistemas culturais (o que inclui estruturas religiosas).
Tais contatos, em níveis locais diferenciados, proporcionaram novas cosmovisões, novos
sentimentos e experiências religiosas peculiares. Este fenômeno pode ser encontrado na
86
antiguidade envolvendo experiências do judaísmo, cristianismo e grupos politeístas
(CHEVITARESE & CONELLI, 2003: 14).
A gnose pressupõe um conhecimento oculto que revela a verdadeira natureza de todas
as coisas, sobretudo o verdadeiro “eu” como parte da natureza divina. O termo gnosis em
grego significava, tanto na vida cotidiana, quanto especificamente religiosa, o ato de
conhecer. Contudo, para os gnósticos, tratava-se de um conhecimento diferente, (LAYTON,
2002: 9) acessível apenas a alguns. O gnóstico (termo do grego gnóstikos) é aquele que faz
parte “dos que possuem o conhecimento” (GARCIA BAZÁN, 2002: 146).
Segundo um mestre gnóstico chamado Teódoto, o gnóstico é quem chegou à
compreensão de: “Quem éramos e quem nos tornamos, onde estávamos [...] para onde nos
precipitamos, do que estamos sendo libertos: o que é o nascimento, e o que é o renascimento.”
(Apud. PAGELS, 1979: 17).
Eduard Lohse, estudioso do contexto e ambiente do Novo Testamento, afirma que,
para os gnósticos, o “conhecimento ocorre no homem, que é arrebatado pelo objeto de
conhecimento, ou seja, Deus” (LOHSE, 2000: 246). Por meio de exercícios ascéticos ou por
uma “visão extática” o gnóstico toma conhecimento do que é o mundo, e se descobre uma
centelha divina aprisionada no universo imperfeito da matéria. E este mesmo conhecimento
vai revelando o caminho de volta ao mundo divino, ao pleroma (plenitude). Para esta forma
de crença dos gnósticos, o mundo é algo negativo, maligno.
O meio mais forte de apresentação da compreensão gnóstica da realidade é o mito. Os
mitos gnósticos podem até ter variantes antagônicas, mesmo porque não um grupo
gnóstico unívoco. No entanto sua estrutura básica tenta dar sentido ao estado do mundo
questionando sua realidade e legitimidade, mostrando a “verdadeira” origem de todas as
coisas. Se pensarmos que opções religiosas estão inseridas em uma cultura, bem como em
87
contexto sóciopolítico, não será difícil compreender porque os gnósticos se entendiam livres
das leis e dos governantes que regem a sociedade, como observa Mircea Eliade (1983: 143).
Diante disso, consideramos a gnose como uma perspectiva da realidade, presente em
sistemas simbólicos (mito e religião) que marcava uma variedade de movimentos não cristãos
e talvez até pré-cristãos. E uma vez convergindo com alguns sistemas cristãos, deu origem ao
gnosticismo cristão ou cristianismo gnóstico. Contudo o movimento gnóstico não permaneceu
uma estrutura fechada, mas na prática e reprodução sofreu outras alterações a ponto de
desaguar no maniqueísmo (SIMON & BENOIT, 1987: 279). Vemos assim que uma ordem de
significação pode ser redefinida na ação como assevera Sahlins (2003: 04).
Novos olhares foram possíveis acerca do gnosticismo devido à tomada de
consciência de que para compreender um fenômeno é preciso superar alguns isolamentos
reducionistas e colocá-lo num quadro mais amplo, permitindo análises comparativas. Isso
começou a ser realizado quanto se renovou e aprofundou o campo de pesquisa que buscava
definir e encontrar as origens da gnose (Idem). É importante mencionar as contribuições de
W. Bossuet, R. Reitzenstein, P. Wendland, M. Lidzbarski, e ainda, R. Bultmann, G.
Widengren e H. Jonas.
Os adeptos da “escola de história das religiões”, procuraram destacar os temas
principais da gnose. Por exemplo, W. Bossuet investigou temas da literatura religiosa do
Oriente Próximo até a Índia, e destacou como traços característicos da gnose o dualismo e a
idéia de um salvador que vem ao mundo salvar as almas. (Idem, ibidem: 280).
P. Wendland observou os temas gnósticos investigando a religiosidade helenística e
romana, dando maiores atenções aos cultos orientais presentes no mundo grego-romano. o
filósofo Richard Reitzenstein argumentou que o gnosticismo seria oriundo da antiga religião
iraniana e que teria sido influenciado por elementos do zoroastrismo (PAGELS, 1979: 27).
88
Rudolf Bultmann orientou sua pesquisa para o Novo Testamento, buscando distinguir
em seus textos a presença de elementos gnósticos. Segundo ele, o Evangelho de João havia se
inspirado no tema gnóstico do mensageiro celeste que desce ao mundo para revelar o divino
aos seres humanos. No entanto, isso não significava, para Bultmann, que a tradição joanina
teria usado integralmente a tradição do mito gnóstico.
A influência da filosofia existencialista também foi forte na análise do gnosticismo.
Perguntava-se sobre a origem existencial do mesmo. Segundo Elaine Pagels, Hans Jonas
propôs que o gnosticismo teria surgido de uma atitude diante da existência (PAGELS, 1979:
27). Para ele, os sistemas gnósticos têm sua fonte na idéia de que Deus salva os seres
humanos do cosmo, que se encontra organizado de forma antitética, por isso os temas Luz-
Trevas, Pneuma-Psique, Vida-Morte, em suma, Deus-cosmo (SIMON & BENOIT, 1987:
281). Assim, Deus” traduz a idéia de negação do mundo, que para Jonas implicava na
originalidade das estruturas de pensamento gnóstico. Ocorreu também à tentativa de uma
abordagem fenomenológica por parte de H. Puech em sua análise sobre o maniqueísmo.
Um historiador cuja obra foi significativa, tanto para gnosticismo como para o
cristianismo, foi, o já mencionado, Walter Bauer. Defendia que as origens cristãs eram muito
mais diversificadas do que as “fontes ortodoxas” tenderam a apresentar. Por conta disso, foi
acusado por dois estudiosos H. E. W. Turner e C. H. Roberts de ter simplificado por demais a
questão (Idem: 301).
Com a descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi em 1945, uma nova etapa dos
estudos se instaurou. A maioria dos estudiosos de hoje estão de acordo, apesar das diferentes
linhas de pesquisa, que aquilo que chamamos de gnosticismo foi um “movimento muito
difundido cujas fontes podem ser encontradas em várias tradições” (PAGELS, 1979: 29).
Dedicaremos com maior especificidade a segunda parte deste capítulo ao caso exclusivo da
Biblioteca de Nag Hammadi.
89
Simon & Benoit (1987: 282) observam que, na atualidade, o fenômeno do gnosticismo
está um pouco melhor delimitado, de modo que apresentam como temas principais da gnose
os seguintes:
1. Uma teoria do conhecimento, isto é, o auto conhecimento e o conhecimento de
Deus (correspondentes) revelam o caminho da salvação;
2. Um dualismo dotado de uma perspectiva depreciativa do cosmo;
3. Um mito do “Salvador Salvo”;
4. Um mito de ascensão da alma.
Ainda sobre as origens do gnosticismo, o historiador Pierre Levèque apresenta a
hipótese de que o gnosticismo encontre seu nascedouro no universo plural da cultura
helenística (LEVÈQUE, 1987: 155-158). A crise política sofrida por várias cidades acabou
por enfraquecer os cultos cívicos. Diante da onda de “pessimismo”, cresce o culto de Tyke (a
Fortuna), como um meio de dar sentido à situação. Na sociologia da religião isso é
compreendida como uma forma de relacionar a “realidade humanamente definida com a
realidade última”. Isso porque um fenômeno caótico precisa ser “explicado em termos das
normas estabelecidas na sociedade em questão” (BERGER, 1985: 48-65). Mas o culto de
Tykê perde força diante dos cultos que, em meio à crise social, oferecem sabedoria e
salvação, esta última ganha peso especial (LEVÈQUE, 1987: 145).
Dentre os cultos que ofereciam salvação, as religiões de mistério, grandes exemplos de
convergências sincréticas, terão preponderância. Em particular, no caso de cultos a divindade
que teriam conhecido a morte e o retorno à vida (ELIADE, 1983: 42). Neste universo dos
mistérios, novas estruturas de significação são formuladas. Um exemplo bastante interessante
é o caso mencionados de uma dedicatória de Delos feita a “Isis Soteria Astarte Afrodite”
90
(LEVÈQUE, 1987: 155) que mostra um caso de uma divindade salvadora que sugere
elementos de interação gregos, semíticos e egípcios.
A busca por salvação e ressignificação da ordem, permite de um modo bastante
criativo, o surgimento de novos sistemas de pensamento religioso. É aqui que encontramos
um traço mais relacionado com o que chamamos de gnosticismo, a saber, o Hermetismo.
O Hermetismo segundo Levéque (Idem: 145), foi uma forma de pensamento religioso
de grande importância, que buscou na figura do deus grego Hermes, denominado três vezes
grande” seu fundador mítico. Hermes aparece relacionado ao deus egípcio Tot, inventor da
escrita, legistador e patrono da sabedoria, secretário e eventual substituto de ‘Ra’.
Tot era o sábio inventor da escrita, no mundo helenístico era possível atribuir a
Hermes-Tot, ou Hermes Trimegisto, os textos mais antigos. Levèque lembra que para
Clemente de Alexandria: “a literatura sagrada do Egito remonta a ele, que é o autor de 42
livros, dos quais 36 sobre a filosofia e 6 sobre a astrologia e a medicina.”(Idem).
Em torno da figura de Hermes Trimegistro se desenvolveu todo um corpo literário no
Egito. Algumas destas obras foram atribuídas ao próprio Hermes, mas também aos seus
discípulos: Imhotep (Asclépio), Agathodaimon, Ammon, Isis, Horus.
Os tratados herméticos que restaram correspondem ao período romano, escritos entre
100 a 200 d. C. (LOHSE, 2000: 252), contudo estudiosos estão de acordo que são um
derivado mais antigo do contexto helenístico (LEVÈQUE, 1987: 155; LOHSE, 2000: 252;
LAYTON, 2002: 525; ELIADE, 1983: 60).
O Corpus Hermeticum, como foi conhecido, sintetiza crenças, idéias e práticas que
definem o hermetismo. Na coletânea de textos apresenta-se um revelador que traz aos seres
humanos uma mensagem divina que os conduz ao conhecimento. O ensinamento ocorre
através de um diálogo no qual uma pessoa pergunta e a divindade responde com uma doutrina
secreta, transmitindo somente boca a boca (LOHSE, 2000: 251).
91
É claro que não se trata de um compêndio unificado como literatura, os dezoito
tratados parecem ter autores bem diferentes com percepções diferenciadas e, segundo Lohse,
existem traços da religião iraniana, babilônica, egípcia e grega, além da assimilação de idéias
da filosofia platônica, pitagórica e estóica. Sem deixar de mencionar que, em alguns
fragmentos, observa-se a presença de elementos judaicos (LOHSE, 2000: 252). O que para
nós é mais um exemplo dos frutos dos contatos interculturais do mundo helenístico, que
justificam a análise baseada na obra de Marshall Sahlins sobre as interações e mudanças
sistêmicas ocorridas no encontro de culturas diferentes.
Um historiador egípcio helenista do século III a.C. cujo nome era Manetto de
Sebennytos, relatou uma tradição relacionada ao hermetismo. Manetto afirmava ter existido
uma linha de autoridade por meio da qual Tot-Hermes teria transmitido seus ensinos a uma
sucessão de membros de uma família. O texto que conteria os ensinamentos originais haviam
sido gravados em tabuletas depositadas na “terra de Seiris” antes do “dilúvio”. Tempos depois
os textos teriam sido traduzidos para o grego e por fim postos sob a guarda dos templos
egípcios (LAYTON, 2002: 525). Bentley Layton lembra de um paralelo na tradição judeu-
helenista que traz uma história sobre tabuletas guardadas em Seiris, contudo, o registro é
atribuído a Seth, o terceiro filho de Adão. Estes elementos estão presentes na literatura
clássica, privilegiando a figura do mítico Seth. Tais dados evidenciam uma relação entre
gnose e hermetismo.
Estudiosos como Mircea Eliade, Pierre Levèque e Helmut Koester chegam a colocar o
hermetismo, a gnose e magia como muito próximos. Levèque afirma que:
“[...] o hermetismo dá, assim, à ação mágica um suporte filosófico [...] o mágico,
iniciado pela sua gnose, detém uma parte do seu poder; pode ameaçar os deuses e
obter, se necessário pela violência, um maior conhecimento, logo, um maior
poder. O seu poder, que derivava do seu Saber, está na origem de um saber mais
extenso”. (LEVÈQUE, 1987: 156)
92
O fenômeno do hermetismo tem sua história inserida no contexto do esoterismo. Seus
tratados, para Eliade, “pressupõe a existência de grupos fechados, que comportam uma
iniciação comparada à dos alquimistas” (ELIADE, 1983: 64). Sugere-se o conhecimento de
práticas que conduzem ao êxtase, por exemplo, no tratado 13, Hermes ensina a seu discípulo
Tat como, através da experiência extática, entrar num corpo imortal, ao que o discípulo
aprende e consegue fazê-lo.
Parece-nos que o hermetismo implicava na transmissão de “textos revelados”, cuja
interpretação era feita por um mestre a seus discípulos, que eram preparados por meio de
exercícios ascéticos e práticas culturais. A revelação contida em seus tratados referia-se a uma
“gnose suprema”, isto é, um conhecimento que assegurava a “salvação” (ELIADE, 1983: 65).
Eduard Lohse acredita que o Corpus Hermeticum seja o testemunho de um
gnosticismo pré-cristão, pois apresenta uma visão gnóstica do mundo sem vinculação ou
amálgamas com o cristianismo (LOHSE, 2000: 252).
2.2 Gnosticismo e Cristianismo Gnóstico
Embora ainda seja difícil precisar as origens do gnosticismo, podemos encontrar
elementos de seu sistema em tradições mais antigas que o cristianismo. A teoria de influência
iraniana continua a ser discutida entre estudiosos (SIMON & BENOIT, 1987: 253). Um texto
gnóstico parece conter indícios que alicerçam tal hipótese é o ‘Hino da Pérola’
24
. Este
apresenta um mito helenista (LAYTON, 2000: 433) sobre a entrada da alma em um corpo
pela encarnação e sua superação final do corpo. O autoconhecimento revelador seria o meio
da alma se salvar deste mundo.
24
Os títulos “O hino da Pérola” ou “ O hino da alma” são elaborações de pesquisadores modernos. Não
aparecem em nenhum manuscrito antigo.
93
O Hino da Pérola é atestado como parte de Os Atos de Tomé, composto entre 200 e
225 d.C. em Edessa, conforme John D. Turner e Bentley Layton. Quanto a Simon e Benoit, e
Widenguem identificam no conteúdo de “O Hino da Pérola” a pressuposição da existência do
império parta, mais precisamente no século II a.C. (SIMON & BENOIT, 1987: 284).
Estes indícios nos levam à hipótese de que a gnose teria sido um fenômeno pré-cristão.
O gnosticismo como um complexo de tendências interpretativas da gnose formava vários
grupos e alguns convergiram com um tipo de cristianismo, este que também era plural. Cabe
aqui retomar uma discussão importante ao considerarmos o gnosticismo cristão. Esta se refere
à forma, mencionada, como o cristianismo foi apresentado em sua história, e como tal
modelo obscurece mais do que elucida a pluralidade do fenômeno cristão.
A perspectiva que entende a “ortodoxia” como mais antiga que a “heterodoxia”,
conserva um tom valorativo, nesta, a pluralidade é sinônimo de erro e este seria um desvio
tardio. Existe uma concepção “clàssica” sobre as relões entre ortodoxia e hetorodoxia,
presente nas histórias da “Igreja” e dos “dogmas”. Tal concepção começou a ser elaborada no
contexto do grupo cristão patrístico que se denominou como ortodoxo no século II d.C. Irineu
de Lyon chegou a defender que nas origens não havia heresia na Igreja. Para ele, esta última
seria um fenômeno tardio: “Todos eles, porém, se encaminharam para a apostasia em tempo
bastante recente, quanto os tempos da Igreja chegaram aos seus ambientes”. (Conta as
Heresias, 3: 4, 3)
A compreensão dos patrísticos acerca do surgimento tardio da heresia passava pela
forma como entendiam o advento da ortodoxia que postulavam. Para eles, Cristo havia
anunciado sua doutrina verdadeira, e já deixara escolhido o grupo de testemunhas oculares
dos ensinamentos e eventos redentores, e a estes caberia a tarefa de anunciar ao mundo tal
realidade. No dia de Pentecostes, este grupo de apóstolos teria recebido o poder do Espírito
94
para percorrer o mundo proclamando o que testemunharam, isto fazia dos membros de tal
grupo “os missionários autorizados dos fatos redentores” (SIMON & BENOIT, 1987: 291).
Na lógica patrística, os apóstolos saíram pelo mundo a fim de pregar a verdadeira
doutrina e anunciar o evangelho pelo mundo. Dado o sucesso das pregações, formaram-se
comunidades ou igrejas. Diante disso, para preservar a verdadeira” doutrina, assegurando a
ortodoxia, os apóstolos investiram de poder os bispos. Responsáveis pelo legado apostólico,
os episcopos deveriam zelar pela autenticidade da doutrina cristã. Assim, aqueles que os
substituíam se responsabilizariam pela mesma tarefa, e com isso aceitava-se que a autoridade
episcopal remontava aos apóstolos, bem como ao próprio Cristo.
Simon & Benoit recordam que a primeira epístola de Clemente (I Clemente 42: 44),
no século II, já apresentava uma igreja primitiva sob esta perspectiva:
“[...] os apóstolos recebemos, para nós, o evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo, Jesus Cristo foi enviado por Deus. Portanto, Cristo é de Deus e os
apóstolos o de Cristo, e estas duas coisas procedem, em perfeita ordem, da
vontade de Deus. Tendo, deste modo, recebido uma missão [...] eles se puseram a
pregar o evangelho, com a plena garantia do Espírito Santo, e anunciaram que o
Reino de Deus estava prestes a instaurar-se [...] organizaram suas primícias e,
depois de submetê-las à prova do Espírito, estabeleceram-nas como episkopie
diakonoi’ [...]” (APUD SIMON & BENOIT, 1987: 292).
Esta hermenêutica começou a se impor no século II d.C. como sustentáculo da Grande
Igreja, cujo discurso se tornaria mais tarde a opção eusebiana e constantiniana. Para esta visão
é impossível aceitar vozes destoantes como legítimas. As conseqüências dessa forma de
compreender o cristianismo se expressou no fato de que algumas Igrejas que se tornaram
importantes começaram a fixar listas de bispos ligando suas figuras até o apóstolo fundador.
Relembramos aqui o palestino Hegesipo que por volta de 160 foi aRoma buscando
traçar uma linha de sucessões espiscopais das igrejas. Tais observações sobre uma história de
igreja construída na sucessão apostólica foram muito bem aproveitadas por Eusébio em sua
obra (História Eclesiástica, 5: 22, 2-3). A lista dos bispos legítimos é o que definia a
identidade da “verdadeira igreja”. Para nós, estes discursos eram representações que atuavam
95
como sistemas classificatórios de diferenciação que apelavam para um passado essencial. A
verdadeira identidade cristã era definida pela fixação de um passado compartilhado”. Como
defende Kathryn Woodward “os discursos e os sistemas de representação constroem lugares a
partir dos quais os indivíduos podem se posicionar” (WOODWARD, 2004: 15) e, portanto se
identificar e se diferenciar religiosa e politicamente.
A sucessão dos bispos era o critério para a ortodoxia, encontramos estes princípios,
defendidos ardorosamente no século IV d.C., se “institucionalizando” o século II d.C..
Quando Irineu quis afirmar que sua interpretação das escrituras era ortodoxa, recorreu as
sucessões da igreja de Roma (Conta as Heresias, 1: 1-3, 3). Simon & Benoit escrevem que
“bastaria estar de acordo com a Igreja de Roma, cuja ortodoxia era segura em virtude de sua
sucessão, para que outra Igreja também fosse ortodoxa” (SIMON & BENOIT, 1987: 294).
Segundo esta concepção de história da igreja, os heréticos” foram surgindo depois
como obra do diabo, e assim teriam corrompido a verdadeira doutrina e deturpado os
ensinamentos de Cristo, sobre isso chama-nos à atenção o que assevera Elaine Pagels sobre
como Irineu em seus escritos procurava associar os hereges com “agentes secretos de
Satanás” (PAGELS, 1996: 200).
Acreditou-se por muito tempo em uma ortodoxia que veio primeiro e que os discursos
destoantes eram desvios heréticos tardios. Estas idéias que buscavam se impor através da
política da sucessão apostólica no século II d.C. se estabeleceu como fala definitiva e oficial
do cristianismo no século IV d.C.
Contudo, os acusados de heresia também procuraram uma sucessão que remontasse a
Cristo, ou tradições a ele ligadas. Como foi o caso de Carpócrates, cujos discípulos evocavam
a memória de Salomé ou Marta, ou Valentino que se dizia discípulo de Tendas, por sua vez
discípulo de Paulo.
96
A leitura clássica foi muito questionada pelas pesquisas de W. Bauer o que é de
grande importância. Sua originalidade considerava a ortodoxia como um padrão construído
posteriormente. Em principio, os conceitos ortodoxia, heterodoxia e heresia não cabem no
movimento plural do cristianismo com a carga semântica que conhecemos.
Se seguirmos a linha de Bauer investigando os centros cristãos da antiguidade, mais
especificamente dos dois primeiros séculos, como Alexandria, Ásia Menos, Edessa e Roma.
Podemos perceber que em um primeiro momento os cristianismos em cada cidade tinham
formas bastante peculiares. Quando um discurso hegemônico, sob a figura de uma Grande
Igreja começa a se impor, a diversidade é reprimida com a introdução do modelo ortodoxo.
As diversas formas de interpretar a vida e ensinos de Jesus ganharam contornos
culturais próprios nas regiões em que se estabeleceram. Houve por exemplo, em Edessa,
tradições de “ditos de sabedoria” de Jesus cuja transmissão parece independente
(HOORNAERT, 1998: 49). Ou ainda as disputas na Ásia Menor entre discípulos de Paulo e
de Apolo. É também significativa a perspectiva bastante diferenciada do cristianismo
testemunhado no Apocalipse de João, que parece ter mais afinidade com os Oraculos
Sibilinos (compostos no Egito) do que com as Pastorais da tradição paulina (NOGUEIRA,
1998: 134). Sem contar Alexandria e suas convergências sincréticas (KRAFT, 1998: 170).
Estes dados apresentados por historiadores e exegetas refletem não pluralidade,
como os conflitos também. Parece que o cristianismo ortodoxo reflete o pensamento
elaborado na relação entre Roma e Antioquia. O grupo aí representado, pouco a pouco impôs
o seu modelo de cristianismo, e o utilizou para reconstruir sua própria história
25
.
O cristianismo primitivo foi se espalhando por esferas culturais variadas, em alguns
círculos, apesar da radicalidade que havia marcado o movimento inicial, forma se tornando
25
Vale lembras que mesmo o cristianismo em Roma, tradicionalmente fundada sob a autoridade de Pedro e
Paulo (Contra as Heresias, 3: 3,3), não teve Pedro como seu bispo, o que seria anacrônico, tal afirmação
corresponde ao século III. E a estrutura episcopal como modelo único chegou a Roma entre 140 e 150 d.C..
No inicio uma missão judaico-cristã teria formado um “colegiado” de presbíteros.
97
paulatinamente uma organização estabelecida. Como grupo organizado, conforme defende
James Robinson, surgiu a preocupação com a “manutenção da ordem, continuidade, linhas de
autoridade e estabilidade”, o que acabou por encorajar maior proximidade e compromisso
com o status quo (ROBINSON, 2006: 18). O curioso, afirma Robinson, é que muitos grupos
que mantiveram perceptivas radicais tratavam com hostilidade os simpatizantes do status quo.
Esta seria uma das razões para a demonização dos radicais como desviantes e representantes
da ameaça à organização.
É possível que, na medida em que o contexto cultural mudava devido à transformação
do tempo e a transição geográfica dos grupos, a interpretação da mensagem e da idéia de
transcendência ganhou nova categorias de significação. O gnosticismo cristão em sua
emergência defendia uma reafirmação da postura original” do cristianismo. Eles
consideravam-se como “continuação fiel” da postura que fez dos cristãos o que eram (Idem:
19). Todavia, o que seria apenas diferente, passou a implicar divergências intensas, o que teria
levado outros cristianismos a acusarem o cristianismo gnóstico como traição. O sistema de
símbolos do cristianismo gnóstico apresentava-se bastante diferente dos grupos que o
acusaram, e que teria levado à rejeição dos mesmos pelo grupo hegemônico que se definia
como a Igreja, o que resultou em rejeição e banimento dos gnóstico como hereges (Idem,
ibidem).
O gnosticismo com sua idéia de um conhecimento esotérico
26
serviu para intensificar
as controvérsias com os patrísticos.
26
O adjetivo “esotérico” (do latim esotericus’), do qual vem o substantivo “esoterismo” remonta ao grego
esoterikós, termo tardio, possivelmente derivado antônimo do termo exoterikós. Nos escritos latinos de cícero
(orador romano), o termo antônimo extotericus’ era utilizado com o significado de “feito para o público”
(CÍCERO, SOBRE OS BENS 4: 16, 2). Acredita-se que esoterikós teria sido formado a partir de eiso-ter-ikós’,
que quer dizer “mais para dentro” ou interior, assim como exoterikós viria de ‘exo-ter-ikós’, literalmente
“exterior”. Em Clemente de Alexandria encontramos a defesa de que Aristóteles teria escrito obras
acroamáticas’, isto é, para serem ouvidas, e as exotérica ara o público. As acroamáticas são chamadas de
“esotéricas”. Muitos grupos antigos falaram destas duas esferas de conhecimento, enaltecendo o esoterismo
como busca do conhecimento culto, profundo, a esta diferenciação os grupos cristãos primitivos não teriam
ficado alheios. E vale lembrar que no próprio judaísmo, no caso do Livro dos Jubileus’, que era uma leitura
esotérica da escritura hebraica, o tema de conhecimentos secretos e intensos (GARCÍA BAZAN, 2002: 116).
98
Os pais da Igreja negaram a existência de elementos esotéricos na prática de Jesus e
seus discípulos, uma forma de desautorizar qualquer grupo que pensasse de modo diferente.
Nisto os patrísticos foram seguidos pela maioria de historiadores antigos e modernos
(ELIADE, 1983: 137). No entanto, considerando o esoterismo como transmissão de cunho
iniciatório de práticas e doutrinas reservadas a um número reduzido de adeptos, nós podemos
atestá-los em várias religiões banhadas pelo helenismo, e no próprio cristianismo, seja pela
prática de ensinamento esotérico, sugerida no Evangelho de Marcos 4: 10; 7: 17; 10: 10, seja
pela prática de ações mágicas, como atestam John Dominic Crossan (CROSSAN, 1994: 341-
342)
27
, André Leonardo Chevitarese e Gabriele Cornelli (CHEVITARESE & CORNELLI,
2003: 51-53; 59-77).
Várias comunidades cristãs na antiguidade distinguiam grupos de graus diferentes,
conforme o conhecimento que lhes eram revelados, sobre isto escreve Mircea Eliade citando
que Orígenes enfatizava a existência de um conhecimento secreto que Jesus dava aos
discípulos (ELIADE, 1983: 138). E o próprio Clemente de Alexandria evocava seus mestres
que teriam conservado a “verdadeira tradição dos bem-aventurados ensinamentos,
diretamente oriundos dos santos Apóstolos Pedro, Tiago, João e Paulo” (Idem).
Temas de caráter oculto não são estranhos ao mundo cristão. Acreditamos que o
gnosticismo cristão resulte dos encontros entre grupos cristãos e outros que tinham no
gnosticismo um “princípio hermético no processo de interpretação” (KOESTER, VOL. 2,
2005: 226). Embora seja difícil precisar um início objetivo para o gnosticismo cristão,
compartilhamos das hipóteses que indicam a Síria como um espaço de desenvolvimento e, a
partir daí, teria migrado para o Egito.
Em um universo no qual as interpretações sobre a vida e ensinamentos de Cristo eram
distintas por razões de contextos culturais de diferentes inserções, os nomes de vários
27
Estabelecemos aqui uma relação entre conhecimento secreto e magia conforme defende Francisco Garcia
Bazán. Este autor insere o tema da magia e seus praticantes, bem como o gnosticismo, no quadro dos
conhecimentos esotéricos (GARCÍA BAZÁN, 2002, 129).
99
apóstolos ou figuras insignes para os cristãos, eram evocados para conferir autoridade às
tradições.
A tradição dos ditos de Jesus encontrou no gnosticismo uma leitura que enfatizava os
ditos de sabedoria e uma releitura dos ditos escatológicos. Dentre os documentos disponíveis
o Evangelho de Tomé é um exemplo desse modo de interpretação que invoca a autoridade do
apóstolo Tomé. Sabemos que uma das tradições mais expressivas de To encontra-se na
Síria, mais precisamente na região de Edessa, cujo cristianismo era bastante distinto do que se
chamou cristianismo ortodoxo.
Ao refletir sobre o gnosticismo cristão na Síria, Helmut Koester alude aos judeus-
cristãos por traz do Evangelho dos Ebionitas que usaram em sua cristologia, construtos
mitológicos gnósticos (KOESTER, VOL. 2, 2005: 228). O que nos leva a supor que no
gnosticismo cristão da Síria, os temas gnósticos tiveram também influência de um tipo de
judaísmo. Isso ajudaria a compreender temas de textos do cânon veterotestamentário,
sobretudo do Gêneses, reinterpretando dentro da perspectiva gnóstica, particularmente no
desenvolvimento das cosmologias.
Mesmo diante de todos estes dados é difícil precisar, tanto a origem do gnosticismo,
quanto do gnosticismo cristão. Assim, nós o consideramos o gnosticismo fruto de
movimentos do mundo helenístico que teve ramificações. Acolhendo elementos de diversas
tradições religiosas, teria se difundido antes e durante a origem do cristianismo, vinculando-se
de múltiplos meios a elementos cristãos, o que teria levado ao surgimento de alguns grupos
cristãos gnósticos. Portanto, concordamos com as idéias do erudito Edward Lohse que
defende ser o gnosticismo uma “formação caleidoscópica que une idéias iranianas,
babilônicas, egípcias e judaico-veterotestamentárias com o pensamento da filosofia grega,
representando um sincretismo multicolorido” (LOHSE, 2000: 244).
100
As idéias expressas pelos cristãos gnósticos eram abominadas pelos grupos que se
definiam como ortodoxos. Um exemplo marcante era como os gnósticos entendiam a origem
do mundo. Para os mesmos este mundo era a criação de um ser perverso identificado com o
Deus do Antigo Testamento. Sobre isso Irineu falou aos seus em Lyon, quando buscava
refutar os gnósticos presentes entre os seus congregados. (Contra as Heresias 1: 30, 5), tema
similar encontra-se descrito nos textos intitulados A Hipótese dos Arcontes e Sobre a Origem
do Mundo. Além de uma definição diferenciada das origens do mundo, falam da importância
do elemento feminino da divindade, celebrando Deus como Pai e Mãe. Também tinham uma
interpretação da ressureição que não era aceita pelos patrísticos.
Concordamos com Elaine Pagels que:
“discussões religiosas acerca da natureza de Deus, ou de Cristo, têm simultaneamente
implicações sociais e políticas que foram cruciais para o desenvolvimento do cristianismo
como religião institucional. Em termos mais simples: as idéias cujas interpretações eram
contrárias [...] foram taxadas de “heresia”; as idéias que implicitamente a apoiavam tornaram-
se ortodoxas”. (PAGELS, 1979: 33).
Segundo Birer A. Person, os começos do cristianismo no Egito não estão remetidos ao
modelo ortodoxo definido pela patrística e oficializados no século IV d.C. Retomando em
parte o pensamento de Walter Bauer, ele faz refencia à possibilidade de, considerando que o
movimento cristão não nasceu como um corpo doutrinário uniforme, o cristianismo ter em
suas rias origens elementos que tardiamente seriam considerados heterodoxos ou heréticos
(PEARSON, 1990: 196). Quando um cristianismo começou a se definir como única fala
correta, então outros elementos foram definidos como hereges. Pearson ainda chama nossa
atenção para outro dado importante, a “ortodoxia” triunfou principalmente em áreas sob a
posterior influência da Igreja de Roma e seu estabelecimento eclesiástico (Idem).
O fato de Eusébio de Cesaréia ter estabelecido uma sucessão de bispos, reforça tal
hipótese. O sociólogo Peter Berger trata em um de seus trabalhos sobre como é possível
reconstruir o passado para que este se ajuste a uma estrutura social (BERGER, 1972: 76).
101
Segundo as hipóteses de Bauer, a literatura atribuída ao Egito indica de forma
consistente que as origens cristãs no referido tema seja resultado, em grande parte, da
circulação de cristãos gnósticos. O Evangelho dos Hebreus e o Evangelho dos Egípcios
seriam grandes exemplos de produção oriunda de movimentos rebeldes gnósticos de contexto
sincrético (PEARSON, 1990: 198).
Concordamos neste trabalho com a hipótese de que grupos missionários de origem
síria teriam de alguma forma levado seu cristianismo para o Egito. E este cristianismo pelos
temas encontrados em sua literatura, que correspondem a temas presentes em textos cristãos
do Egito, possivelmente seja gnóstico, como defende Helmut Koester (KOESTER, VOL. 2,
2005: 240). Tanto os fragmentos que retomam temas joaninos como a literatura
explicitamente judaico-cristã supracitada (Evangelho dos Hebreus e Evangelho dos Egípcios)
apresentam afinidade com a tradição gnóstica de origem síria (Idem: 242).
O Apocryphon de Tiago é um outro exemplo. Os cristãos judeus da Síria adotaram
vários escritos sob a figura e autoridade de Tiago, dentre eles o Primeiro e o Segundo
Apocalipse de Tiago. Estes dois textos encontram sua origem nas tradições de Tiago que se
desenvolveram na Síria e são escritos gnósticos (Idem, ibidem: 243). Os escritos citados
podem ter sido adotados por grupos de Alexandria ou mesmo fora da cidade em aldeias
camponesas.
2.3 Grupos Monásticos Gnósticos
Armand Veilleux em seu texto Monachisme et Gnose, Deuxime partie: Contacts
Litteraires et Doctrinaux entre monachisme et gnose, apresenta uma relação entre o
monaquismo primitivo e a gnose, a partir da observação de documentos antigos que
102
circulavam entre casas monásticas, cujo conteúdo reflete um ambiente gnóstico (VEILLEUX,
1985: 3-24).
Admiti-se a tese das origens egípcias do monaquismo, mas também são observáveis
aparições do fenômeno na Mesopotâmia e na Síria e Capadócia. Veilleux afirma que o
monaquismo apareceu em vários lugares de modo imprevisto, e teria continuado sob diversas
formas ou correntes ascéticas que marcaram a vida de igrejas nos primeiros séculos,
sobretudo em zonas de influência judaico-cristã (Idem: 10).
Embora com origens pouco precisas ou obscuras, assim como do próprio cristianismo
egípcio, as origens de um ascetismo cristão, reporta-se a temas tanto na Síria quanto no Egito.
O ascetismo na Síria e suas tendências ao encratismo
28
não podem ser dissociados das origens
do próprio cristianismo sírio. A releitura dos evangelhos de Marcos, Lucas e João formando
um único documento, o Diatessaron de Taciano apresenta uma forte tendência encratista
característica monástica que, segundo Eduardo Hoornaert, era marca em todo o cristianismo
sírio, que via na renúncia à vida sexual, aceleração do fim de um mundo, para irromper nele
um mundo puro” e “angélico” (HOORNAERT, 1998: 51). O sistema de significados
expresso aqui entende a ordem do cosmos como algo a ser superado e o encratismo um meio
poderoso. A renúncia é entendida como um meio necessário, ou melhor, o objetivo da ascese
síria é renunciar a tudo aquilo que Jesus renunciou para proclamar a morte
29
em favor do
enraizamento de seu esrito vivificante (VEILLEUX, 1985: 13).
No Evangelho de Tomé, em sua última sentença (114) se diz:
“Simão Pedro disse a eles: “Maria deveria deixar-nos, pois as mulheres não são dignas
da vida”.
Jesus disse: “Eu a guiarei para fazer dela homem, de modo que também ela possa
tornar-se um espírito vivo semelhante a vocês homens. Pois toda mulher que se torna homem
entrará no reino do céu.” (MEYER, 1993: 75).
28
Renúncia às relações sexuais, ao casamento e a procriação.
29
“Morte” no sentido figurado, não necessariamente uma referência à crucificação de Jesus.
103
São temas de ascese da Síria, no qual o asceta, atento às “sentenças ocultas” de “Jesus
vivo”, apreende tal vida em si superando as condições desta existência. Contudo, Marvin
Meyer observa, em suas notas do Evangelho de Tomé, que a linguagem desta sentença não
deve ser compreendida como apenas um “afastamento ascético da natureza, ou melhor, da
mulher”, mas um retorno à condição primordial em que não sexos separados (MEYER,
1993: 134), a androginia Adão. Com o que concorda Armand Veilleux, ao afirmar que a
sentença tem um conteúdo escatológico no qual o ponto forte não está na distinção entre
homem e mulher simplesmente, mas a defesa de um retorno a “unidade primordial que
transcende à dualidade. Assim, afirma que, mais que um dualismo antropológico, podemos
pensar em uma visão escatológica e pneumatológica (VEILLEUX, 1985: 13).
Existe um vínculo entre práticas ascéticas e batismo. Para muitos destes grupos
ascéticos a recepção do batismo exigia uma condição celibatária e desencorajavam o
casamento como algo negativo.
Quanto às origens da ascese cristã no Egito, embora relembremos sua obscuridade,
encontramos pontos de contato com as tendências sírias. É possível que o trânsito de
documentos gnósticos de origem na Síria, levados para o Egito no início do século II d.C.
(KOESTER, VOL. 2, 2005: 244), encontre neste produto de contato ascético sua explicação.
Epifânio de Salamina foi testemunha da presença de um certo Hiéracas no Egito, que
defendia uma forma de encratismo radical que marcou o monaquismo da região. Veilleux o
coloca no meio da relação entre monaquismo e gnose (VEILLEUX, 1985: 16).
É comum pensar na história do monaquismo do Egito reportando-se à história da
tradição pacomiana e dos registros do monaquismo posterior que releu as tradições sob o
horizonte ortodoxo. Assim, acreditamos que a história monástica tardia se prestou a
“ortodoxizar” a história. As vidas de grandes monges fundadores estão para o cristianismo
oficial o que os “magos rabinizados” (CROSSAN, 1994: 177) estão para o judaísmo e
104
cristianismo do primeiro século. Afirmamos isto com base no que diz o pesquisador James E.
Goehring em seu artigo Monastic Diversity and Ideological Boundaries in Fouth-Century
Egypt, publicado no Journal Early Christian Studies. Goehring defende que as origens
ortodoxas do ascetismo cristão correspondem a um passado mítico sempre produzido no
presente. O autor ou compilador dos textos modela a vida dos santos referenciais do
monaquismo de modo a se tornarem ícones literários aceitáveis ao discurso hegemônico. Por
traz desta história está um modelo ideológico a ser seguido, uma estrutura estruturante
definindo um padrão de sistema de significados. Ao reescrever a história do ascetismo,
procurou-se definir os limites doutrinários e eclesiásticos do ascetismo cristão. O passado
reconstituído sanciona qual modelo deve ser imitado, e quem nele se enquadra é considerado
genuíno, quem não se conforma acaba por ser marginalizado e considerado herético. Assim, é
o discurso hegemônico quem determina qual é o modelo de ascetismo que será legítimo no
“monaquismo oficial” (GOEHRING, 1997: 6).
Samuel Ruenson’s em análises recentes das tradições em torno da figura de Antão,
sugere uma revisão sistemática e crítica destas, e também sobre como foi apresentado o ideal
ascético. Ele chega a afirmar que a “Vida de Antão” é “um texto político” que visava um
modelo de vida cristã e exortava os discípulos das casas monásticas a adotarem o modelo de
Antão como o retrato da vitória final da ortodoxia contra “pagãos” e “heréticos”, como cita
Goehring (Idem). Por traz disso move-se a ideologia atanasiana, compreendida aqui como
desdobramento do cristianismo eusebiano e constantiniano.
Uma tendência buscou forjar uma tradição copta ortodoxa que marginalizava e
apagava as tendências diferentes. Dentre estas, consta a influência do movimento ascético
maniqueu na emergência do monaquismo cristão cenobita que, segundo James Goehring seria
um outro modelo rejeitado pela tradição. O autor considera a importância de elementos o
recordados como o fato de sacerdotes discípulos de Melitão (condenado como herege) e
105
grupos “ortodoxos” estarem juntos, grupos origenistas e anti-origenistas conviverem em
Scetis e por fim o próprio apreço de Pacômio por literaturas que seriam mais tarde condenadas
por seu caráter divergente da “ortodoxia” (Idem, ibidem: 7).
As definições eclesiásticas de cunho doutrinário levaram à condenação pública e
expulsão de monges cujas tendências fossem próximas do maniqueísmo, docetismo e
gnosticismo. Para que existissem tais condenações digiridas a anacoretas é pressuposto que
muitos o seguiam os padrões oficiais no século IV d.C. e as disputas ideológicas envolvem
também divisões sociais. Por um lado temos uma afirmação da hierarquia e autoridade
episcopal sob o discurso teológico da unidade, por outro lado comunidades ascéticas que se
compreendem independentes da autoridade dos bispos. A unidade doutrinária é também um
meio de controle político e a diferenciação entre “ortodoxos” integrados á Grande Igreja e
“heterodoxos” ou “heréticos” desviados dela, é também um meio simbólico de diferenciação
social. Com a anexação de monges ao discurso hegemônico ter-se-ia elementos do poder
central que o representassem na periferia (e além dela). O sistema simbólico “legítimo” define
aqui qual é o verdadeiro monaquismo, os que o contestam estão excluídos socialmente e terão
“desvantagens matérias” (WOODWARD, 2000: 14). O poder simbólico torna legítima certas
estruturas. A linguagem religiosa presta serviço a um modelo. Mas sabemos que, mesmo
assim, existiram grupos monásticos diferentes do padrão construído para se estabelecer o
passado de maneira uniforme.
Como pôde ser observado, a maior parte de nossa discussão metodológica gira em
torno do local ideológico da produção dos documentos, assim podemos falar que o conflito
entre sistemas cristãos gnósticos e “ortodoxos” são refletidos principalmente na
documentação que produziram ou compilaram, transmitiram e guardaram. Diante disso, cabe
aqui aprofundarmos a reflexão sobre o papel efetivo da Biblioteca de Nag Hammadi, atada ao
longo de nossa pesquisa, na história do gnosticismo e do cristianismo. Ela permitirá uma
106
ponte mais esclarecedora, esperamos, com o tema gnose, cristianismo e monaquismo, o que é
fundamental para nossa comparação ao modelo constantiniano.
107
2.4 A Biblioteca de Nag Hammadi como luz para a história do Cristianismo
e do Gnosticismo
A Biblioteca de Nag Hammadi é composta por uma série de textos religiosos de
considerável variação quanto ao local e período em que foram escritos. Não apresentam um
discurso unívoco, possuem pontos de vista que divergem de modo que não podemos
compreendê-los como obras oriundas de um único movimento ou grupo (ROBINSON, 2006:
16). Mas é importante ressaltar que os materiais, mesmo em sua diversificação, poderiam ter
apresentado um elemento comum por aqueles que os escolheram, coletaram e guardaram.
Segundo Raymond Kuntzman e Jean-Daniel Dubois (1990: 10), a descoberta dos
códices de Nag Hammadi revelou uma importância histórica comparável à descoberta dos
pergaminhos do Mar Morto. É válido lembrar que antes da descoberta dos textos gnósticos, o
que sabíamos sobre o gnosticismo era fruto da refutação dos Pais da Igreja. Na verdade, cabe
enquadrar a Biblioteca de Nag Hammadi como sinal de perspectivas distintas acerca do
cristianismo, ou seja, expressões de distintos cristianismos em meio a conflitos de definição
da qual seria a identidade cristã oficial, única.
Alguns estudiosos defendem que utilizar o termo “gnóstico” ou “gnosticismo” é muito
vago (Idem: 19), de modo que deveria ser abandonado. Todavia seguimos neste ponto as
idéias de Bart D. Ehrman (2006: 83-84), um dos estudiosos do gnosticismo e autor de
comentários à recente tradução do Evangelho de Judas. Assim como para o supracitado autor,
acreditamos ser legítimo falar a respeito de “gnosticismo”, tanto quanto falar sobre judaísmo e
cristianismo, mesmo havendo grandes diferenças entre os tipos de judaísmo e cristianismo,
tanto hoje quanto na antiguidade.
108
2.4.1 A História de uma Descoberta
No mês de dezembro de 1945 camponeses da região do Alto Egito, procuravam
nitratos na escarpa do Jebel el Tárif para fertiliarem suas plantações. Dois irmãos do clã al-
Sammãn, a saber, Muhammad e Khaltfah ‘Ali, enquanto levavam seus camelos pelo sul da
rocha e começaram a escavá-la, encontraram um jarro vermelho de cerâmica, com quase um
metro de altura. Tanto Eliane Pagels, quanto James Robinson contam que, seguindo o próprio
Muhammad, este estava com medo que romper o jarro fechado com betume, por acreditar na
possibilidade de que nele estivesse um jinn, isto é, um gênio. No entanto, considerando a
possibilidade de que o jarro contesse ouro, recobrou sua coragem a arrebentou o pote com sua
picareta. (PAGELS, 1979: 11; ROBINSON, 2006: 35)
Os irmãos não encontraram nem ouro, e muito menos gênio, mas treze livros de papiro
encadernados em couro. Muhammad envolveu-os em sua túnica e levou os códices para sua
casa em al Qasr, localidade da antiga Chenoboskion, onde Pacômio havia iniciado seu
cristianismo monástico cenobita. Os textos foram postos juntos a um montede palha ao lado
do fogão e Umm-Ahmad, mãe de Muhammad, afirmou ter queimado algumas folhas de papiro
junto com a palha para acender o fogo, possivelmente do códice XII.
Muhammad e seu irmão, passadas algumas semanas mataram a picaretas um homem
chamado Ahmed Ismail, para vingar a morte de seu pai, assassinado em 7 de maio de 1945,
enquanto trabalhava como vigia noturno.
O problema é que o assassino morto, Ahmed Ismail, era filho do delegado Ismail
Husayn, um homem muito poderoso. Por esta razão, Muhammad temia que, na investigação,
sua casa fosse revistada e os textos descobertos. Assim, após ser informado de que os textos
eram cristãos, pediu que o padre copta de al Qasr, Basiliyus Abd af-Masih guardasse os textos.
109
Um professor de inglês e história de nome Raghip Andrawus, cunhado do padre
30
,
suspeitando terem os textos
31
algum valor enviou-os ao Cairo para serem avaliados. Alguns
vizinhos que tiveram acesso aos textos, os venderam ou trocaram por muito pouco. O outro
caso interessante sobre o destino de alguns dos textos, é o de um comerciante de grãos
chamado Fikri Jabrail, que vendeu manuscritos de que se apossara por um preço o alto que
conseguiu montar seu próprio negócio. Inclusive era o grande proprietário das Lojas Nag
Hammadi que existia no Cairo. É claro que sempre negou seu envolvimento em tal questão.
Os textos forma vendidos no mercado ilegal por intermédio de lojas de antiguidade, o
que chamou a atenção do governo do Egito, que adquiriu um e confiscou dez dos treze
códices, colocando-os sob a guarda do Museu Copta do Cairo. (PAGELS, 1979: 12).
O historiador da religião de Utrecht na Holanda, Gilles Quispel, descobriu que a maior
parte do décimo terceiro códice, que continha cinco textos, havia sido contrabandeada para
fora do Egito e colocado a venda nos Estados Unidos. Assim, atendendo a um pedido de
Quispel, a Fundação Jung de Zurique adquiriu a obra, contudo perceberam a falta de algumas
páginas. Isso levou Quispel em 1955 até o Museu Copta do Cairo para procurar tais
fragmentos. Com fotografias tiradas de alguns textos, retornou ao hotel em que se hospedava,
para examiná-los. Ao decifrar a primeira linha ficou surpreso com o que acabara de ler:
“Essas são as palavras secretas que Jesus, o vivo, proferiu, e que seu meo Judas Tomé,
anotou” (APUD, PAGELS, 1979: 12).
Quispel estava ciente que H. Puech referira-se, segundo pesquisas de Jean Doresse, a
identificação de um fragmento de um Evangelho de Tomé, em grego, descoberto por volta de
1890. Agora, como um evangelho secreto, o texto apresentava elementos paralelos com os
sinóticos. Este era apenas um dos cinqüenta e dois textos descobertos nas proximidades de
Nag Hammadi.
30
Os padres coptas podem ser casados, assim como em outras tradições orientais.
31
O códice III
110
Ensinamentos presentes na coletânea escrita em copta criticam algumas crenças do
cristianismo que se tornaram normativos, como a ressurreição corporal de Jesus.
No período da descoberta, o diretor do Museu Copta do Cairo era Togo Mina, que
estudara em Paris e fora colega da esposa de Jean Doresse que, na qualidade de acadêmico
francês, foi até o Egito estudar os mosteiros coptas (ROBINSON, 2006: 37). Foi neste período
que surgiram os planos de uma publicação em francês da biblioteca, o que não logrou êxito
devido ao falecimento de Togo Mina me 1949. Neste mesmo ano, Albert Eid, comerciante
belga de antiguidades, por temer a ação do governo, contrabandeou o que tinha para os
Estados Unidos, ao adquiri-los pelos vinte e dois mil dólares almejados. Eid foi indiciado no
Egito, porém morreu antes do resultado do processo. Por fim, Quispel conseguiu que a
Fundação Jung de Zurique comprasse o texto através de um intermediário da viúva de Eid.
Assim, tinha-se, em 1952, doze códices e meio no Museu Copta do Cairo e grande parte do
décimo terceiro códice ficou guardada em Zurique. Durante os próximos vinte anos estes
textos se tornariam objeto de debates intensos. Em 1959 conseguiram publicar o Evangelho
Tomé.
Em 1961, a UNESCO, insistindo na publicação integral dos manuscritos, propôs a
formação de uma comissão internacional com vistas à sua organização. Entre 1972 e 1977, os
treze códices foram postos sob domínio público. O professor James Robinson, diretor do
Institute for Antiquity and Christianity, que era membro da comissão supracitada, formou um
grupo internacional que deveria copiar e traduzir os documentos antigos. Estes foram
enviados em cópias mimeografadas para vários pesquisadores do mundo, dentre eles George
MacRae e Helmut Koester da Universidade de Harvard. Neste período Elaine Pagels passou a
dedicar-se à pesquisa de tais textos em busca de criar um quadro para analisar o gnosticismo
cristão primitivo e sua relação com o cristianismo ortodoxo (PAGELS, 1979: 25-26). A
111
tradução em português foi publicada na íntegra em 2006, a partir da versão em língua
inglesa, fruto da organização de James Robinson.
No tocante à datação dos manuscritos, a análise de cartonagem elucida muita coisa.
Como observamos, a Biblioteca de Nag Hammadi é composta por doze livros, o que inclui
oito páginas que teriam sito removidas do livro terceito no fim da antiguidade, formando
assim 52 tratados. No ínicio, livros eram escritos em rolo, mas foram substituídos por meios
mais econômicos que permitiam melhor uso (em ambos os lados) do material. Diferente do
rolo ou volume, o livro em formato de páginas é conhecido por códices. E no Egito o uso do
papiro era o mais utilizado para a escrita. Cada códice foi encadernado em couro e para colar
os textos e produzir um efeito sólido, utilizava-se grossas cartolinas chamadas de cartonagem.
Este papiro trazia letras em copta e grego, reproduzia nome de pessoas e de lugares, bem
como datas que ajudavam a detectar períodos aproximados de fabricação. Papiros utilizados
para documentar negócios foram reutilizados para engrossar capas de couro. No caso do
Códice VII, encontramos elementos indicadores do ano 341, 346 e 348 d.C. (ROBINSON,
2006: 30). Além do Códice I apresentar em sua cartonagem a região de “Diospol [is] próxima
a Chenobos [kia]” (Idem).
Na capa do Códice VII, as cartonagens indicam que pertenceram a um monge de nome
Sansnos, responsável pelo gado de um mosteiro. Os exames indicam proveniência de uma
região de intensa presença monástica. Além de o próprio local ser um lugar onde se formaram
várias casas monásticas, dentre elas a de Pbou, sede da ordem pacomiana.
Robinson (Idem, ibidem) recorda um ponto importante sobre a datação, um indício em
um dos textos, a saber, O Conceito do Novo Grande Poder que permite formular hipóteses
para o período do códice VI. O texto em questão, segundo Francis E. Williams, pesquisador
da equipe de Robinson, trata-se de uma história de salvação gnóstico-cristã” (WILLIAMS,
2006: 269). uma referência a um grupo considerado herético conhecido como Anhomoean
112
ou Anomean: “Renunciai às cobias e desejos maldosos e (os ensinamentos dos) Anomoeans, e
as heresias malévolas que não têm fundamento algum”.
Por volta de 350 d.C., enquanto Atanásio, bispo de Alexandria, escondia-se em
mosteiros pacomianos, por causa da controvérsia ariana, florescia em Alexandria em grupo de
nome “anamean”. É possível que o formato final do texto corresponda ao período que segue.
É difícil dizer que os textos tenham pertencido a uma biblioteca de um dos mosteiros
pacomianos, contudo a presença monástica no colecionamento e guarda dos textos e
amplamente admitida.
2.4.2 Nag Hammadi e o Mundo das Escrituras Cristãs Antigas
Investigar Nag Hammadi é um problema complexo, pois estes textos são
diversificados. Não procede de uma única “escola” gnóstica. Como assevera Elaine Pagels os
textos incluem “evangelhos secretos”, poemas e descrições semifilosóficas da origem de
universo, até mitos, rituais mágicos e instruções para a prática mística (ROBINSON, 2006:
16). Existe a possibilidade de os coletores terem elaborado uma chave esotérica de leitura que
harmonizasse os textos, oferecendo significados ocultos, que não necessariamente fossem da
intenção dos autores originais. Cabe aqui a contribuição de Bentley Layton quando fala de
escolas de pensamento gnóstico, cujas idéias eram refletidas em seus textos, estes que
acabaram virando coletâneas (LAYTON, 2002: xv). Acreditamos que tais coletâneas
poderiam ser organizadas em um corpus literário maior e que, em sua versão em copta,
gozassem do status de textos sagrados, não importando tão diretamente possíveis contradições
internas. Isso não seria uma novidade se nos recordamos que após o final de um processo de
canonização, a diversidade ideológica de textos do referido “cânon” não representa
113
necessariamente uma ameaça para o grupo que o adotou. Cria-se uma doutrina ou um critério
hermenêutico para a leitura.
Quando falamos em história cristã antiga, a ascensão de Constantino Magno ao trono
imperial em 306 d.C., é um elemento bastante significativo. A religião cristã é paulatinamente
adotada como religião pelo Estado, fixando a idéia patrística de uma “Igreja única, unificada e
ortodoxa”. Antes disso é difícil definir uma igreja principal ou tradição central: em vez de
uma corrente principal, encontram-se vários afluentes” (LAYTON, 2002: xvii). Os cristãos
das regiões culturais diferenciadas apreendiam e interpretavam o cristianismo de forma não
padronizada. É de se esperar, portanto, que seus escritos fossem bastante distintos, não havia
um cânon fixo, mas escrituras adotadas como sagradas por alguns e rejeitadas por outros.
Alguns textos poderiam nascer de conflitos entre cristianismo distintos, como observa Pagels
a respeito das relações conflituosas por traz dos Evangelhos de João e Tomé (PAGELS, 2004:
38).
“Enquanto trabalhávamos para editar e anotar esses textos de Nag Hammadi,
outros estudiosos e eu constatamos que a pesquisa gradualmente esclarecia e
complicava nossa compreensão das origens do cristianismo. Pois, em lugar de
chegar ao “cristianismo inicial”, mais puro e mais simples, que muitos de nós
buscávamos, encontramo-nos no meio de um mundo mais diversificado e
complexo do que qualquer um de nós poderia ter imaginado. Por exemplo:
muitos acadêmicos estão convencidos agora de que o Evangelho de João no
Novo Testamento, provavelmente escrito no final do século I, resultou de um
intenso debate em torno de quem Jesus era [...] Para minha surpresa, depois de
passar muitos meses comparando o Evangelho de João com o de Tomé, que
podem ter sido escritos mais ou menos na mesma época, vim a entender que o de
João foi redigido no auge da polêmica, para defender certas opiniões e rejeitar
outras.” (PAGELS, 2004, 41-42).
32
Diante disso, cabe aqui uma reflexão sobre a idéia de escritura e cânon, bem como o
problema que a diversidade poderia representar. ‘Escritura’, segundo Layton (2002: xvii),
pressupõe um corpo literário religioso produzido por meio de um grupo que apresenta, sob a
idéia de autoridade, critérios sobre “a crença comportamento, retórica e condução de questões
32
É claro que não existe unanimidade sobre o caso de Tomé estar redigido no século I. Quispel acredita ser o
texto de por volta de 140, outros defendem que seja obra surgida entre 60 e 110. Helmut Koester sugere que os
ensinamentos do ‘Evangelho de Tomé’ circulassem no primeiro século, embora tenha sido fixado em um
texto por volta do ano 140, que incluiu tradições mais antigas que os evangelhos canônicos.
114
práticas”. Parece ser um modelo significador para a comunidade. Layton sugere que a
escritura seja compreendida como protadora de um “sistema de simbolos pelos quais os
leitores podem se orientar e dar sentido à sua relação com o mundo, o divino e as outras
pessoas” (Idem).
É sob essa perspectiva que compreendemos a Biblioteca de Nag Hammadi. Ela pode
apresentar um sistema de símbolos que (res) significa o mundo de um grupo cristão gnóstico
em seus conflitos com os cristianismos que se outorgam a única fala autorizada e correta.
Cabe aqui também lembrar o papel dos símbolos sagrados (escrituras, falas conceitos [...] )
segundo Clifford Geertz. Para o antropólogo, os mbolos sagrados sintetizam o ethos do
grupo, em seu tom, “caráter, e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e
estéticas e sua visão de mundo [...] idéias mais abrangentes sobre a ordem” (GEERTZ,
1989: 103-104).
Através do mito, um sistema privilegiado em muitos grupos religiosos, como é caso
especítico destes que observamos no gnosticismo. O grupo reinterpreta o mundo, as relações
de poder e sentido ao seu papel na ordem do cosmo, explicando” a origem de tudo e em
particular de sua religião, de seus membros, afirmando sua distinção e identidade.
Pierre Bourdieu defende que os sistemas simbólicos possuem poder de construir
realidade, estabelecendo uma “ordem ‘gnosiológica’ o sentido imediato do mundo (e, em
particular, do mundo social)” (BOURDIEU, 2005: 09). Essas escrituras podem ser
compreendidas como elementos de interpretação que propõe reforçar uma ordem e questionar
outra. Num primeiro momento a diversidade poderia apresentar conflitos entre sistemas
cristãos diferenciados como o caso supracitado entre Tomé e João. Quando o quadro muda no
século IV d.C., a formação de um cânon oficial, torna-se instrumental para negar falas e
produções textuais que apresentam divergência.
115
Na época das primeiras manifestações do movimento de Jesus, este não tinha
escrituras exclusivamente sua. Considerando sua emersão entre grupos judaicos, os textos por
eles usados eram escrituras judaicas. No entanto, após a execução de Jesus, tornou-se ainda
mais polissêmica a forma que os grupos de seguidores liam os textos, produzindo
interpretações à luz dos ensinamentos de Jesus, bem como indagando sobre o sentido de sua
vida e morte. Isso inclui a idéia da na ressurreição. Não estamos postulando aqui a idéia
cultivada por algumas tendências da exegese acadêmica que entendiam a religião dos
primeiros cristãos como se fosse um constante exercício de produção e transmissão textuais.
Concordamos com a perspectiva exegética do teólogo, especialista em história e literatura do
cristianismo primitivo, Paulo Nogueira que entende os textos escriturísticos como “reflexos e
fragmentos de uma intensa vivência religiosa e comunitária” (NOGUEIRA, 2003: 8). Os
textos não eram tratados de dogmática, mas expressões da forma como os cristãos
imaginavam o mundo e seu papel nele, os textos ganham papel de autoridade, mas sua
produção não era, em princípio, as formulações que se tornaram a posteriori. O próprio cânon
do Novo Testamento quando lido sob a crítica não modelada por uma leitura dogmatizada
enfatiza uma vasta diversidade de experiências religiosas não padronizadas oriundas de
diferentes comunidades. É por isso que hoje, mais que falar em cristianismo, precisamos ter
em conta a já mencionada noção de cristianismos.
Conforme Layton (2002: xvii), quando um determinado grupo cristão reconhecia
autoridade em um escrito ou coleção de escritos, estes recebiam o status de escritura, sendo
comparados, igualados e, em alguns casos, considerados superiores às escrituras judaicas
clássicas. Alguns textos que nasceram de necessidades bastante específicas, como é o caso da
Epístola de Paulo a Filermon, num contexto desvinculado do período de redação, ganha status
de escritura. Existem também casos de obras compostas para atacar outros textos
escriturísticos, desconsiderando sua legitimidade. É o exemplo de um texto gnóstico de Nag
116
Hammadi, o Livro Secreto segundo João ou Apocrifo de João: “Eu perguntei ao Salvador, “o
que é o esquecimento?” E ele replicou: “não é de forma que Moises escreveu (e) tu escutaste
[...] ”” (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 109).
As escrituras cristãs, considerando não existir um modelo padronizado de
cristianismo, podiam apresentar mensagens cujas perspectivas distavam-se umas das outras,
com pontos de vista que até entravam em conflito. Nos três primeiros séculos não havia uma
uniformidade centralizada apesar das discussões e polêmicas de Irineu de Lyon e de outros
patrísticos que condenavam como erro documentos e idéias que deversificavam um relação às
suas próprias perspectivas, ou interpretações da fé cristã. Isso ajuda a explicar porque existiam
textos que gozavam de autoridade e respeito por alguns, enquanto por outros era visto como
de menor valor, ou até mesmo rejeitados. A ausência de modelos padronizados no tocante às
escrituras do cristianismo, são forte indício da diversidade presente no âmago da religião
cristã das origens. Segundo Layton (2002: xvii), podemos descrever o cristianismo primeiro
como uma complexa rede de grupos e partidos. E também é preciso ter em conta que a
diversidade resulta em grande parte de diferenças sociais, culturais e lingüísticas. As
expressões religiosas formais da Síria e Mesopotâmia diferem de expressões de Roma (Idem).
A importância e sentido da vida e pessoa de Jesus manifestavam tradições distintas. O
mago operador de milagres, o revelador a sabedoria encarnada, o Messias, profeta, emanação
de um mundo superior e etc., eram reflexos de sistemas simbólicos que conferiam modelos e
cosmovisões bem variadas.
A literatura cristã gnóstica apresenta perspectivas bem diferentes do cristianismo e
judaísmo que foram apresentados como modelos. Além de também apresentar um mundo de
fantásticos símbolos e mitos que narram a existência de seres celestiais, ela questiona
postulados cristãos e judaicos que gozavam de grande aceitação. Por exemplo, temos a forma
117
como o Criador do mundo é apresentado. Um ser inferior, demiurgo, governantes (ou
arcontes) malévolos.
A circulação destes textos encontrou certa facilidade no mundo do Império Romano.
Cristãos que migravam levavam usas idéias para contextos marcados pela alteridade a
respeito do próprio cristianismo. Isso motivou ainda mais alguns líderes cristãos a dedicarem-
se à refutação de idéias e literaturas tidas com indesejáveis. Diante disso, surgiram as
primeiras listagens de livros autorizados e livros rejeitados. Isso alimentou controvérsias entre
facções cristãs que rivalizavam entre si.
Um cânon, isto é, um corpus literário padronizado que serve de norma ou regra,
começou a ser traçado em algumas comunidades no século II d.C. Só mais tarde, um grupo se
sobressaiu na organização de um cânon proto-ortodoxo ou proto-católico (GARCIA BAZÁN,
2002: 7; LAYTON, 2002: xx). Este é o grupo de tendências hegemônicas que encontrou eco
em Eusébio de Cesaréia no século IV d.C. No entanto, é difícil precisar qual era a
expressividade deste grupo nos séculos que antecedem a aproximação entre cristianismo e
império. Havia uma grande variedade de cânones em uso nas várias igrejas do século II, e
estes representavam em parte o ethos de determinadas comunidades.
A história do non no Novo Testamento encontra em Marcião uma figura
paradigmática. Não acreditamos ser ele o autor de um primeiro cânon, contudo sua obra,
organizada por volta de 145 d.C.
33
, gerou conflitos com os patrísticos fazendo com que estes
definissem um cânon. Bastante exemplar é a acusação feita por Irineu de Lyon a Marcião,
dizendo ser este um blasfemador (Contra as Heresias, 1: 27, 2).
Em Alexandria existiam várias tendências de cristianismo, dentre elas, destacamos
uma comunidade aristocrática que adotara como escritura, não apenas o canon
veterotestamentário e alguns textos correspondentes ao Novo Testamento, mas também o
33
O cânon de Marcião foi adotado por vários grupos cristãos e era formado por: Uma espécie de resumo do
Evangelho de Lucas e uma versão alterada das cartas paulinas.
118
Evangelho segundo os Hebreus, o Apocalipse de Pedro, a Pregação de Pedro, a Epístola de
Barnabé, a Epístola de Clemente, as Tradições de Mateus, a Doutrina dos Doze Apóstolos, o
Evangelho de Pedro, os Atos de Pilatos, as Memórias Clementinas, as Epístolas de Inácio, os
Atos de Paulo e O Pastor (LAYTON, 2002: xx). Enquanto isso, era possível encontrar na
Síria, entre os que veneravam Tomé como fundador apostólico e nele viam o missionário e
arquetípico peregrino asceta, o uso do Evangelho de Tomé e o Diatessaron de Taciano, que
até o século V era parte do cânon de igreja siríacas.
Os exemplos supracitados nos apresentam uma variedade considerável de textos que
em regiões diferenciadas eram agrupadas formando cânones utilizados por cada tipo de
cristianismo dessas regiões. Enquanto em um lugar privilegiava-se um conjunto de livros,
outro contexto geográfico poderia privilegiar obras distintas. Esta diversidade é atestada já no
ano 200 d.C. e muitas destas obras eram lidas como “escrituras” antes da idéias de um cânon
definitivo ter se imposto como padrão universal. E mesmo após a idéia de um cânon limitado
se apresentar como norma, vários autores cristãos reivindicavam autoridade para elaborar
textos canônicos. Tais manuscritos recebiam títulos pseudoepigráficos, sendo atribuídos a
autoridades do passado, ou então se apresentavam como relatos visionários. Dois exemplos
interessantes de cada um destes casos são: primeiro a Terceira Epístola aos Coríntios,
composta por um presbítero de Éfeso no século II. Dotada de um teor antignóstico, foi
traduzida para o copta para ser usada por cristãos egípcios e também divulgada entre os
armênios; segundo, O Pastor de Hermas é um texto organizado em cinco visões alegóricas e
capítulos de ensino moral. Foi aceito como escritura canônica ao século IV entre igrejas de
língua grega.
Uma vez que o havia um cânon único, e mesmo depois de que tal idéia começou a
se impor, havia uma série de textos que circulavam e gozavam de grande peso. Isso inclui os
textos gnósticos considerados um tipo de escritura cristã.
119
Em termos gerais existem alguns elementos que acabaram por estigmatizar um texto
como gnóstico. Lembremos que o que se sabia sobre o gnosticismo foi por muito tempo
aquilo que se encontra nos textos heresiológicos dos Pais da Igreja. Com a descoberta dos
textos de Nag Hammadi, podemos hoje formular uma noção do gnosticismo a partir do que os
vários grupos pensavam e expressavam, isto é, podemos “ouvi-los” falarem por si (PAGELS,
2004: 137).
Alguns textos gnósticos nos apresentam um tipo de mito através do quais os gnósticos
liam e interpretavam seu lugar no mundo, explicavam esta realidade. Um dos textos que
exemplifica tais representações é o texto que já mencionamos intitulado A Hipótese dos
Arcontes, também conhecido como A Realidade dos Governantes, ou Realidade dos
Soberanos (BULLARD, 2006: 144).
É interessante notar que este tratado anônimo organiza-se como uma interpretação
esotérica do livro de Gênesis (capítulo um a seis). Seguindo, de certo modo, a forma de
discurso de revelação no qual um anjo é interrogado, a obra testemunha a convergência de
elementos culturais do mundo helenístico. Fala do início do cosmos e sobre uma divindade
cega e ciumenta chamada de Samael deus dos cegos que também é apresentado como
Yaldabaoth, relacionado ao deus de Israel. O escrito é do judaísmo helenístico e recebeu uma
forma cristianizada.
Antes de estabelecermos as tendências de escrituras gnósticas em Biblioteca de Nag
Hammadi, cabe uma síntese da estrutura geral do mito gnóstico que é possível ser encontrado,
ainda que com algumas variações, em vários textos gnósticos. Tomamos aqui estruturas
registradas no Apócrifo de João
34
por apresentar uma versão bem elaborada do mito gnóstico
clássico. Idéias abstratas aparecem personificadas.
34
O ‘Apócrifo de João’ apresenta uma versão clássica do mito gnóstico. Tanto o autor quanto o lugar de
composição são desconhecidos, no entanto podemos dizer que antecede ao ano de 180 d.c., pois Irineu de Lyon
parece conhecer uma versão deste texto. O tratado apresenta a figura pseudoepigráfica de João, filho de Zebedeu,
um dos doze apóstolos (Mateus 4:21; Marcos 1:19; Lucas 5:10). nessa espécie de romance (atos dos apóstolos
120
O relato começa referindo-se a um Reino da Luz no qual o chamado Paida Totalidade
(Princípio Primeiro) emana seu Pensamento, também chamado de Barbelo (Princípio
Segundo), conhecido como Pai-Mãe, um Andrógeno divino e pré-ontológico, do qual emana
o Intelecto Filial (GARCIA-BAZÁN, 2002: 152).
Do Pleroma (a Totalidade) são emanados dez Eons, ou quinteto andrógino, pois são
pares, formando assim: o Perfeito Pensamento, Conhecimento Prévio, Incorruptibilidade,
Vida Eterna, Verdade.
Após estes aparece o divino auto-originado, este será o Cristo. Ele está acompanhado
de Doze Eons que, organizados de três em três, formam os quatro trios chamados de quatro
luminares”. São seus nomes: Harmozél (Beleza, Verdade e Forma); Ororael
(Pensamento Posterior, Percepção, Memória); Daueithai (Inteligência, Amor, Forma
Ideal); 4º Eleleth (Perfeição, Paz e Sabedoria ou Sophia).
A Sabedoria (Sophia) resolveu gerar de si mesma, de modo separado e sem
consentimento de Espírito (sua parte/ seu consorte masculino). Isso fez com que dela nascesse
um ser imperfeito, um ser em forma de serpente com cabeça de Leão, cujos “olhos eram como
faíscas de relâmpago em chamas” (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 104). Tal criatura,
gerada por Sophia em sua ignorância foi escondida em uma nuvem com um trono no meio. O
nome dado à criatura foi Yaldabaoth
35
(também chamada de Saclas ou Samael).
Também haviam sido emanados Quatro Seres: Geradamas ou Adamas (o ser humano
perfeito) com Hamozel; Seth (filho de Adamas) com Oroiael; Posteridade de Seth (Almas dos
Santos) com Daueithai e Almas com Eleleth.
apócrifo), como observa Layton (2002, 26), João ouve e registra as palavras do ‘Salvador’ que lhe anuncia coisas
que revelam as estruturas fundates do cosmos. Esta versão cristianizada de novela grega trata de responder qual é
a origem do mal e como pode uma pessoa escapar deste mundo mal para a “casa celestial” (WISSE, in BNH,
2006, 99). Escrito originalmente em grego, conhecemos três versões da obra que representam traduções
independentes em copta, a saber uma versão longa, duas versões curtas, além de O Sumário’ encontrado em
Irineu (Contra as Heresias, 1: 1 1-2.6).
35
Também Ialdabaoth, Ialtabaoth e Altabaoth. Este é o principal dos Arcontes ou Governantes. Foi ele –
segundo o mito gnóstico que teria criado os outros Arcontes, Reis, Poderes, Anjos, Serafins e Demônios.
Copiando um modelo da Totalidade criou o universo conforme o relato de Gênesis, lido em perspectiva gnóstica
(LAYTON, 2002: 28ss).
121
A humanidade aparece no mundo criado por Yaldabaoth da seguinte forma: “Adão” (o
primeiro ser humano material, uma cópia de Adamas); Eva (criada a imagem do pensamento
posterior); Abel (um filho justo de Yaldabaoth com Eva); Caim (o filho injusto de Yaldabaoth
e Eva); Seth (de Adão e Eva, uma cópia do Seth celestial); Posteridade de Seth (uma raça de
perfeitos, dos quais fazem parte Noé, João e seus discípulos), e por fim Outros (o restante da
humanidade, incluindo o fariseu Arimânios, o rival de João no tratado).
Bentley Layton identifica quatro atos, como uma peça, no qual o drama está narrado
(LAYTON, 2002: 13-14):
Ato. A expansão de um solitário primeiro princípio (Deus) em um universo não-
físico (espiritual) completo;
2º Ato. Criação do Universo material, incluindo estrelas, planetas, terra e inferno;
3º Ato. Criação de Adão, Eva e seus filhos;
4º Ato. História subseqüente da raça humana.
Com a ação de Sophia, parte do poder divino oriundo da totalidade, ficou presa no
mundo criado por Yaldabaoth. Com isso o que se quer dizer é que neste “mundo mal” existem
fragmentos divinos que precisam ser recuperados. O “ensinamento do Salvador, e a revelação
dos mistérios” (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 100) seriam os segredos que o
ressuscitado teria passado a João. Este conhecimento, ou esta gnose, revelaria aos iniciados a
verdade sobre Deus, sobre eles mesmos, sobre o mundo e seu lugar nele.
Os gnósticos seriam os fragmentos divinos presos neste mundo considerado como
prisão, sono e ignorância. O Salvador” seria o revelador da gnose/conhecimento libertador
que despertaria o gnóstico, deixando-o livre dos poderes deste mundo governado por Arcontes
malévolos.
122
O texto de tendência valentiniana, chamado de O Tratado Tripartido, procurava
refletir sobre este processo de degeneração e reintegração da divindade. Nele fala-se do
sentido da vida de Jesus de Nazaré. Na verdade, o Cristo, em acordo com a Totalidade ou
Pleroma, envia o Salvador até às formas psíquicas e carnais” a fim de trazer novamente os
gnósticos à verdadeira realidade, a “espiritual” ou pneumática”, este é o sentido de
ressurreição para alguns grupos gnósticos (GARCIA BAZÁN, 2002: 160).
Assim os seres humanos seriam de três espécies: sarkikoi
36
, não possuem nada de
divino, perecerão com este mundo; psychikoi ou “psíquicos”, podem se recuperar se
atentarem ao chamado do revelador. E pneumatikoi ou “pneumáticos”, estão destinados a se
elevarem de volta ao Pleroma (DODD, 1977: 147). A “Vida de Cristo” é compreendida
dentro de tais categorias, de modo que nele, se o início dos tempos escatológicos
(GARCIA BAZAN, 2002: 160) ou um retorno ao princípio da totalidade.
Como já afirmamos a Biblioteca de Nag Hammadi não é um bloco de tratados
homogêneos. Possuem fortes elementos em comum, o que nos permite traçar um perfil
gnóstico, contudo possuem contrastes e sugerem conflitos em alguns textos. Por exemplo, em
O Testemunho da Verdade possivelmente escrito em Alexandria entre o final do século II e
início do III d.C. reflete uma polêmica bastante curiosa. Além de criticar os cristãos não-
gnósticos em sua primeira parte (29: 6-45,6), dedica a segunda parte (45: 6-74, 30) ao ataque
contra grupos de cristãos gnósticos que adotam práticas rituais e um ethos diferenciado:
“[Entretanto eles] não sabem o que é salvação, mas caem [em desgraça] e em [
[...] ] na morte, nas [águas]. Este [é] o batismo [da morte que eles celebram ( [...]
) vão à morte [ [...] e] este é [ [...] ] de acordo com [ [...] ] ele concluiu o curso
[de] Valentinus. Ele mesmo fala sobre o Ogdoad, e seus discípulos se
assemelham [aos] discípulos de Valentinus. Eles, por sua parte, de mais a mais, [
[...] ] ele pronunciou [muitas palavras e] escreveu muitos [livros [...] ] palavras [
36
Sarkikoi vem de sarx ou sarkós, que quer dizer “carne’ (GINGRICH, 1986, 186).
12
3
[...] eles são a] manifestação [da] confusão em que se encontram, [no] engano do
mundo. Pois [eles] vão àquele lugar, junto com seus conhecimentos, [que são]
vazios.” (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 382).
Este fragmento que citamos refere-se ao mestre gnóstico Valentino e a seus seguidores
como seguidores do engano”. O Testemunho da Verdade é um tratado que reflete o
pensamento de uma corrente gnóstica ligada a um mestre chamado Julius Cassianus. Tal
corrente era fortemente encratista, rejeitavam a procriação e negavam a necessidade de um
rito batismal com água. Por isso ataca Valentino que usava o batismo com água. Ainda critica
a corrente gnóstica dos siminianos por se casarem e terem filhos, o que cabe também aos
valentinianos e basilidianos. Isto nos ajuda a perceber que havia distinção ente as tendências e
grupos gnósticos, ou melhor, havia diversidade de “escolas gnósticas” (SACHOT, 2004: 112).
Segundo Bentley Layton podemos organizar as obras em escolas ou correntes de
pensamento gnóstico (LAYTON, 2002: xvi). O referido autor acredita que podemos
identificar relações históricas nos escritos. Começando pelo que chama de “escritura gnóstica
clássica”, refere-se a textos que os estudiosos contemporâneos classificaram como textos
“sethianos”. Nestes temas comuns podem ser observados, bem como afinidade de léxico e de
estilo literário. O estudioso do cristianismo egípcio Alberto Camplani afirma que o
pesquisador H. M. Schenke, em suas investigações sobre os Códices de Nag Hammadi,
percebeu esta afinidade temática em catorze tratados da Biblioteca de Nag Hammadi
(CAMPLAN, 1997: 148).
O corpus sethiano apresenta com tema a identificação dos gnósticos com a semente ou
descendência de Seth, terceiro filho de Adão (isto aparece nos textos: Apócrifos de Adão,
Apócrifo de João, Três estrelas de Seth, Evangelho dos Egípcios, Melckisedek e Zostriano).
Além disso, Seth é apresentado como o Revelador/Salvador nos seguintes tratados: Evangelho
124
dos Egípcios, Alóyeno, Marsanes, Zoatriano e Apocalipse de Adão. Aparecem iluminadores
celestes ligados à figura de Seth no Apócrifo de João, Hipostasi dos Arcontes, Evangelho dos
Egípcios, Zostriano, Melquizidique, Protenoia Triforme. O demiurgo Yaldabaoth aparece
querendo destruir a semente de Seth no Apócrifo de João, no I e no tratado Hipóstase dos
Arcontes. Além da presença de muitos termos comuns de autoidentificação como: Sementes
de Seth”, “a raça incorruptível”, “a raça vivente e impertubável”, “a grande geração”, “a
geração idômita” (CAMPLANI, 1997:149).
Segundo Schenke (Apud; CAMPLAN, 1997: 148) podemos identificar o relato de
Irineu (Contra as Heresias, 1: 29) como uma referência a um tipo sethiano de gnosticismo.
Irineu fala dos “ofitas” e “sethianos” e afirma que estes em seus mitos acusam o
demirgo Yaldabaoth de ter escolhido Abraão e depois Moisés como seus emissários (Idem, 1:
30, 1-10).
Além do termo “setiano”, também são chamados “barbeloístas”,
“barbebelognósticos”, “ofitas” ou “ofianos”. Grande parte dos tratados em que aparecem
estão em forma cristianizada, todavia é possível admitir que em sua forma original não fossem
textos cristãos (LAYTON, 2006: 23).
Segundo James Robinson, os textos do grupo sethiano de Biblioteca de Nag Hammadi
evidenciam um gnosticismo de origem não-cristã que foi cristianizado, interpretado com
categorias cristãs num processo de interações. São textos despossuídos de temas cristãos, os
tratados: As Três Estrelas de Seth, Alogenes, Masanes, O Pensamento de Norea. Outros que
trazem temas cristãos são: Zostrianos e o Apocalipse de Adão. Ainda temos aqueles que nas
palavras de Robinson “exibem um verniz cristão”: Protenoia Trimorfe e o Evangelho dos
Egípcios. Já existem outros que podem ser enquadrados como textos de gnose cristã, são eles:
A Hipóstase dos Arcontes, Melquisedeque e o Apócrifo de João.
125
Observamos temas de sabedoria judaica em Protenóia Triforme e no Apócrifo de
João, contudo o último é nitidamente cristão, ao passo que no primeiro a temática cristã é
secundária.
Se por um lado identificamos elementos judaicos nas obras, o corpus sethiano também
indica intimidade com o pensamento neoplatônico, seja no tratado Eugnosto, O Bem
Aventurado, seja nas obras Zostriano e Alogenes, que apresentam similitudes com textos
contestados pelo neoplaônico Amelius e outros (ROBINSON, 2006: 24). Ainda, é importante
considerar que o líder neoplatônico do século III d.C. Plotino faz referências de gnósticos em
sua escola: “Sentimos certa consideração pelos que se encontram nesta linha de pensamento
antes de se tornarem nossos amigos, apesar de não compreender como eles lidam com isso e
continuam nisso” (APUD, ROBINSON, 2006: 23)
É necessária a menção da presença de um fragmento de A República de Platão
presente entre os demais tratados de Nag Hammadi. Trata-se de uma versão copta das partes
588
A e 589 B da parábola de Sócrates no livro nono da referida obra. Justamente o texto no
qual a alma humana aparece retratada como características híbridas de três forças diferentes:
uma besta (paixões inferiores), um leão (a coragem) e homem (a razão) (JACKSON, 2006:
275).
Além do corpus sethiano, a biblioteca de Nag Hammadi oferece um outro corpus,
também uma classificação recente, organizada por E. Thomassen (CAMPLANI, 1997: 149).
A saber, o corpus de Valentino e de seus seguidores. De proveniência valentiniana são: o
Tratado Tripartido, o Evangelho de Filipe, o Primeiro Apocalipse de Tiago, a Interpretação
de Conhecimento e Exposição Valentiniana. Em segundo lugar, temos textos de provável
procedência valentiniana, são eles: o Tratado da Ressureição e o Evangelho de Verdade. Em
terceiro lugar, temos tratados em que há uma presença “não-sistemática do pensamento
valentiniano: A Exegese da Alma e O Autentico Logos. Existem também textos que
126
originalmente não seriam valentinianos, mas que teriam sofrido interpretações valentinianas, a
saber: A oração do Apóstolo Paulo e Eugnosto, O Bem Aventurado.
O caso da obra A oração do Apóstolo Paulo é intrigante, pois apresenta conexões
valentinianas, mas trás eco de outras composições, dentre as quais elementos do Corpus
Hermeticum, preces invocatórias de obras místicas. Aparenta similaridade com o tratado O
Evangelho de Felipe, mas em seu começo parece com o hino da “primeira estrela” do texto As
Três Estrelas de Seth (do corpus sethiano). Dieter Müller em sua introdução para este texto,
por ocasião da publicação da Biblioteca de Nag Hammadi, diz:
“A Oração do Apóstolo Paulo” se deve altamente aos Salmos e às Cartas
Paulinas. O eco mais notável do apóstolo e, ao mesmo tempo, um índicioo claro
de orientação gnóstica, é pedido para que seja concedido “o que anjo algum tenha
visto e nenhum arconte (tenha) ouvido, e que não tenha penetrado no coração
humano””.
A hipótese de um processo de cristianização de documentos pode ser reforçada no
caso do tratado “Eugnosto, o Bem Aventurado”. Este seria uma obra original de um
gnosticismo pré-cristão (KOESTER, VOL. 2, 2005, 246). O mesmo tratado teria sofrido uma
adaptação cristã também colocada entre os demais tratados de Nag Hammadi, começa como
uma carta de um professor a seus discípulos e se torna um discurso de Revelação”
(PARROTT, 2006: 193), sem influências de cristianismo. Um gnóstico cristão o teria
utilizado na composição do tratado A Sofia de Jesus Cristo. Este seria um discurso revelador
de Jesus ressuscitado oferecido aos discípulos que indagavam. Douglas M. Parrott considera
um caso significativo do processo por meio do qual um tratado não-cristão foi reelaborado
como texto gnóstico cristão (Idem).
Helmut Koester (VOL. 2, 2005: 246) recorda-nos que algo similar ocorre com o texto
sethiano O Evangelho dos Egípcios
37
que seria uma reelaboração cristã do tratado do
mitológico sethiano O Livro Sagrado do Grande Espírito Invisível. Nos textos conta-se uma
37
Não confundir com o “Evangelho dos Egípcios” citado na literatura patrística.
127
história gnóstica de salvação na qual Seth é retratado como pai da raça gnóstica (WISSE &
Bühlig, 2006: 184).
Layton ainda classifica alguns textos, gnósticos de Nag Hammadi como parte do que
chama de “escola de São Tomé” que seria oriunda do universo siríaco de ethos monástico dos
“ascetas errantes” (LAYTON, 2002: 429).
Helmut Koester (2005: 247) procura construir suas hipóteses sobre o cristianismo
gnóstico no Egito considerando, dentre outros, os tratados de Nag Hammadi. Ele afirma que o
gnosticismo egípcio recebeu elementos da especulação gnóstica filosófica “pagã”, do
gnosticismo sethiano sírio, e de tradições “judaico-cristãs gnosticizantes” nas quais a figura de
Tiago é singular (possíveis tendências da Síria/Palestina). Mas ainda é preciso considerar que
entre estes vários grupos gnósticos não padronizados e que competiam entre si, foi com a
tradição de Tomé que ele teria ganhado grande impulso. Este representaria um grupo ligado a
uma memória sapiencial de Jesus que via na tradição das sentenças ocultas o seu ponto
fundamental.
A Biblioteca de Nag Hammadi traz um conteúdo bastante diversificado que refletem
correntes e escolas de gnosticismos diferenciados. Da tradição zoroastriana ao hermetismo e
sethianismo, nos parece que fortes interações marcaram o(s) movimento(s) com interpretações
cristianizadoras deste vasto universo. (ROBINSON, 2006: 214).
Apesar da variedade de procedências e de escolas que se difundiram, sobretudo no
século II d.C., devemos considerar que estes textos circularam e foram traditados desde sua
versão grega até chegarem à redação em copta sahídico.
Sem cair em anacronismos e nem comparações simplistas, acreditamos que, conforme
Layton (2002: xvii) muitos textos foram ganhando com o tempo status de escritura, utilizadas
para a edificação de determinados grupos e escolas. Até chegar a um momento em que os
conflitos entre interpretações de escolas gnósticas divergentes foram minimizadas por uma
128
leitura que enfatizava mais a resistência perante o grupo celesiástico que se impunha como
ortodoxia e exigia obediência para com os bispos, presbíteros e diáconos. Por exemplo, o
Apocalipse de Pedro seria um documento de resistência aos defensores da hierarquia ortodoxa
por parte de cristãos gnósticos. A perseguição sofrida por gnósticos por parte de “bispos e
diáconos” (BASHLER, 2006: 319). Neste texto apocalíptico Jesus aparece criticando aquela
que se tornou a principal corrente do cristianismo:
“Eles abrirão caminho ao nome do homem-morto, pensando que se tornarão
puros. Porém eles se tornarão altamente corrompidos e cairão no nome do erro e
na mão do demônio, no homem astuto e no dogma emaranhado, e serão
governados hereticamente [...] muitos outros, que se opões à verdade e o as
mensagens do erro, estabelecerão seus erros e suas leis contra estes meus
pensamentos puros [...] se denominaram bispos e diáconos, como se tivessem
recebido suas autoridades de Deus. Elas se curvam diante dos julgamentos dos
líderes. Essas pessoas são canais secos.” (biblioteca de Nag Hammadi, 2006:
321-322)
O autor acusa os cristãos da Grande Igreja de interpretação equivocada do ensino
apostólico, numa disputa ocorrida entre o século II e II d.C.. Contudo, pensando no contexto
do século IV, o mesmo texto poderia figurar ao lado de outros textos gnósticos, que na origem
fosse de uma escola rival, mas que formava um “cânon” da resistência à Grande Igreja. O
argumento de autoridade sempre se reportaria ao passado para legitimar a identidade do
grupo.
Vale lembrar que com a “conversão” de Império Romano ao Cristianismo de matriz
patrística de Eusébio de Cesaréia, os cristianismos gnósticos veriam reduzidas suas chances
de sobrevivência”. Para James Robinson um grande sinal disso é o que vemos na história do
enterro da Biblioteca de Nag Hammadi, guardada para não ser destruída por ocasião da
chegada de autoridades do império cristão. (ROBINSON, 2006: 33)
129
2.4.3 Ascese Gnóstica no Deserto: O Local dos Códices de Nag Hammadi
Bentley Layton ao discorrer sobre o Evangelho de Tomé acredita que este expressa
uma visão de mundo típica de uma forma de cristianismo focada na figura de “ascetas
errantes” que marcariam o ethos monástico (LAYTON, 2002: 429). Este é um dentre outros
tratados de Nag Hammadi que sugerem este ascetismo em perspectiva gnóstica. E se
estiverem certos os pesquisadores que defendem que a Biblioteca (Gnóstica) de Nag
Hammadi era uma coleção de textos que pertenciam a monges, então nossa hipótese de que o
movimento monástico no Egito não era unívoco, assim como o cristianismo de uma maneira
geral, estará em vias de confirmação.
A propósito do Evangelho de Tomé, que teria sido escrito em grego na Síria, podemos
encontrar na sua versão copta, nas sentenças 16, 49 e 75 a palavra monachos, que significa
“sozinho” ou “solitário”. Segundo Marvim Meyer, o termo indicaria uma pessoa que é única,
solitária, solteira e mais tarde, monge num sentido mais técnico (MEYER, 1993: 86). O texto
teria sido escrito antes de 200 d.C., e sua versão grega teria sido usada no século II d.C.
(KOESTER, 2006: 114). A tradução para o copta, quando comparada a fragmentos em grego,
demonstra que no processo de transmissão o documento foi submetido a alterações. Os
elementos mais antigos seriam os pronunciamentos de cunho escatológico de Jesus, o que
incluiria algumas parábolas. A ênfase se encontrava na busca da sabedoria (o encontro com
o “Reino do Pai”) que reunia o conhecimento (gnosis) de si mesmo (Idem).
É interessante para nós que o texto gnóstico de Tomé deslocou-se para o Egito e virou
parte de uma série de documentos que transitaram em meio monástico. Helmut Koester
afirma que mesmo entre os monges dos mosteiros de Pacômio, apresentado como um
defensor da ortodoxia era comum que lessem e copiassem escritos gnósticos para sua devoção
130
religiosa, e que por causa desta atividade monástica os escritos de Nag Hammadi foram
preservados. O autoconhecimento e o conhecimento da origem divina de cada um é que
garante a salvação. Na prática ascética a busca pelo conhecimento de Deus e
autoconhecimento deveria conduzir o discípulo a “atravessar a existência conceptível” (Idem,
ibidem). As sentenças 21, 37 e 56, apelam para a necessidade de se “despir do mundo”. E o
discípulo gnóstico modelo é o “solitário”, que deixou tudo o que o une aos seres humanos e
seu mundo (sociedade). Mesmo que no momento de sua redação dos “solitários” não
significasse o “monge”, como no século IV d.C., podemos suspeitar que uma versão dos
grupos de ascetas gnósticos encontraram aí um elemento que reforça seus ethos
38
.
É importante notarmos que um meio ao texto copta, a sentença 49 aparecem dois
termos gregos, a saber: macarios e monachos. Seguimos a tradução em português feita por
Júlio Castanôn Guimarães, realizada a partir da tradução em inglês, a partir do copta, feita por
Marvin Meyer. O texto fica da seguinte forma: Jesus disse: “Felizes aqueles sozinhos e
escolhidos, pois encontrarão o reino. Vocês vieram dele e retornarão a ele”.”
O mesmo termo grego aparece no texto copta nas sentenças 16 e 75. É mais uma vez,
os eleitos são os “solitários”, só que neste caso, no tratado de O Diálogo do Salvador: “Porém
quando eu vim, abrir o caminho e lhes ensinei sobre a passagem a qual atravessarão o eleito e
o solitário, [os quais tem conhecido o Pai, tendo acreditado] na verdade e [em todos] os
louvores, enquanto vós oferecestes o louvor.” (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 215)
É claro que estas referências não devem ser entendidas como provas cabais, mas
apenas como indícios que sugerem o uso dos textos com vistas a reforçar os ideais
monásticos. Todavia, mais importante ainda é a defesa de práticas ascéticas em outros textos
da biblioteca. Por exemplo, o tratado Ensinamento Autorizado ou Autenticos Logos, “uma
38
Entendemos aqui os textos como estruturas estruturantes e estruturadas, ou como sistemas de símbolos
sagrados. E por isso acreditamos, conforme Clifford Geertz, que os símbolos sagrados funcionam para sintetizar
o ethos de um povo o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticas e a
sua visão de mundo o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, sua idéias mais
abrangentes de ordem. (GEERTZ, 1989: 109-110).
131
exposição altamente metafórica sobre a origem, a condição e o destino final da alma”
(MACRAE, 2006: 203). O texto apresenta traços comuns da literatura helenística romana,
além de paralelos com o Evangelho de Felipe, Exegese da Alma, Ensinamentos de Silvano,
bem como com os tratados herméticos do Códice VI. Enfatiza o caráter maléfico do mundo
material, defende o conhecimento salvífico revelado como caminho e aponta para prática
ascética como meio de não ser subjugado pelas forças do mundo material. O texto teria sido
escrito por volta do ano 200, no contexto de forte controvérsia com o grupo que reivindicava a
ortodoxia. Tanto pelos gnósticos por parte dos “ortodoxos”.
“ E (quanto) àqueles que lutam conosco, sendo adversários que lutam contra nós,
seremos vitoriosos vencendo a ignorância deles por meio do nosso conhecimento,
pois já temos conhecido o Inscrutável do qual viemos. Não possuímos nada neste
mundo com receio de que a autoridade do mundo, que veio à existência, venha a
nos deter nos mundos que estão nos us, aqueles os quais a morte universal
existe rodeada por indivíduos [ [...] ] mundanos [...]
Enquanto trabalham em seus negócios, nós levamos a vida com fome e com sede,
buscando por nossa moradia, o lugar onde nossa conduta e nossa consciência
possam estar voltadas ao futuro, sem que nos apeguemos às coisas que vieram a
ser, e sim nos retirando delas. Nossos corações estão voltados às coisas que
existem, apesar de estarmos enfermos, fracos e doloridos. Mas uma grande
força oculta dentro de nós.” (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006, 266)
“Levar a vida com fome e sede” como busca pela “moradia”, sugere práticas ascéticas
que conduziam ao verdadeiro conhecimento revelador das origens (moradas) de gnósticos. E
nisso eles se diferenciavam do grupo “ortodoxo” que trabalham em seus próprios negócios.
Outro elemento ascético que é muito forte e é lido em perspectiva gnóstica, é a
renúncia sexual, sobre a qual fizemos menção sob o nome de encratismo. O texto que
reflete o pensamento do mestre gnóstico Julius Cassianus, também já mencionado, tece
críticas a outras correntes do gnosticismo e deprecia osortodoxos”. O texto é O Testemunho
da Verdade
39
.
O autor ataca a Lei, que para ele, está resumida na ordem da procriação relatada no
Gênesis (Gn 1.28), rejeita o que ele chama de ressurreição carnal” e refere-se ao casamento
39
Não confundir com o tratado gnóstico valentiniano ‘O Evangelho da Verdade’.
132
como corrupção. Ao descrever o arquétipo gnóstico, o autor o apresenta como aquele que
renuncia ao mundo e se reintegra ao “reino da imortalidade”. A renúncia ao mundo passa pela
opção ascética de rejeição à vida sexual, e o Testemunho da Verdade é o conhecimento de
Deus, bem como o autoconhecimento que revelam este caminho (ascético) até à “imarcescível
coroa”. A salvação pela gnose, um conhecimento que liberta do “mundo”, com o que
concorda e pesquisador deste tratado Bieger A. Pearson (2006: 383). Além disso, a serpente
do Gênesis é a reveladora do conhecimento e da vida, que ajuda a humanidade a se libertar do
criador, este que é acusado de ser um malévolo e ignorante demônio. Do ponto de vista
alegórico, a serpente representa o Cristo. Temos um exemplo de tratado que traz um modelo
de ascetismo esotérico gnóstico. Além das relações sexuais, deve-se renunciar também ao
dinheiro para fazer parte da geração do “filho do Homem”:
“Outros são pegos na morte do [...]. Eles o [puxados] <de toda> maneira, (e)
são gratificados pelo perverso Mamon. Eles emprestam dinheiro [com juros]; eles
[desperdiçam o tempo]; e eles não trabalham. Mas aquele que é [o pai] do
[Mamon é (também)] (o) pai da relação sexual.
Mas aquele que é capaz de renunciar a eles mostra [que] é [da] geração do [filho
do Homem], (e) que tem o poder de acusa [-los [...] ele] [...]
Mas aquele [que] encontrou [a palavra provedora da vida, e aquele que] conheceu
[o Pai da Verdade, descobriu o repouso]; deixou [de buscar], tendo [encontrado].
E quando encontrou se tornou [silencioso].
[...] o batismo da verdade é algo diferente; [é por meio da renúncia [do] mundo
que ele é alcançado” (BNH, 2006, 389)
No tratado Os Ensinamentos de Silvanus, redigido entre II e III d.C., formado por
idéias bíblicas judaicas tardias, conceitos antropológicos, teológicos e éticos do “platonismo
mediano” e do estoicismo tardio, é considerado uma “espécie rara de sabedoria cristã-
helenística que exibe uma notável síntese de idéias. Não é um texto originalmente gnóstico,
contudo acredita-se que esteja inserido no códice VII: 4 de Nag Hammadi por seus conselhos
acerca do controle sobre as “paixões inferiores e os pensamentos impuros que são induzidos
pelo adversário, o Satã” (PEEL & ZANDEE, 2006: 325). Além disso, a obra recomenda a não
133
confiar nos amigos, entregar-se a Deus e sugere a solidão, pois para ele, quem ama a Deus
não precisará de ninguém (Idem: 331). Ainda considera este mundo como “uma cópia daquilo
que está oculto” (Idem, ibidem: 332).
No Códice VIII: 1, encontramos um texto que reflete uma jornada celestial, típica de
literatura apocalíptica. É uma das obras mais longas do códice. O tratado ficou conhecido
como Zostrianos, um testemunho de como alguns gnósticos “combinavam a visão de mundo
mitológico com a interpretação filosófica com base no pensamento platônico”. A personagem
principal, Zostrianos, oriunda da genealogia de Zoroastro, é convidado a abandonar o mundo
rumo a uma jornada atravessando os céus atrás da gnose salvadora. Ao retornar a este mundo
escreve com vistas a beneficiar os descendentes sagrados de Seth. Apesar de algumas alusões
ao Novo Testamento, parece não haver interesse por elementos cristãos.
Para nós, elementos de maior destaque referem-se à presença que reforçam a ascese.
Zostrianos aparece em busca de um lugar de repouso para seu espírito, ao cair em aflição e
melancolia retirou-se para o deserto, esperando morrer pelas feras. E é no deserto que
encontra o anjo do conhecimento da luz eterna”. O anjo é quem lhe abre para o
conhecimento e o leva para a sua jornada, atravessando os ‘eonsaté o Barbelo
40
e o ‘Espírito
Invisível’ o que o tornou perfeito (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 365).
O Barbelo é um eon que aparece nas narrativas mitológicas de vários tratados, por
exemplo, Apócrifo de João e As Três Estrelas de Seth. Também aparece com outros eons do
mito gnóstico em um texto composto originalmente em grego na cidade de Alexandria, pouco
antes de 300 d.C. teria circulado em grego e traduzido para copta, conforme o exemplo
encontrado no códice XI: 3. A obra é chamada de Alógeno, que quer dizer “espécie diferente”
(estrangeiro), uma referência aos descendentes de Seth (WIRE, 2006: 415). Este tratado
convida o leitor a se identificar com o divino e a aprender a superar a ignorância e o medo,
40
No mito gnóstico, o princípio segundo, o pensamento divino personificado (LAYTON, 2002, 27) é a entidade
feminina que incorpora os atributos de mãe, virgem; e o Espírito Primordial, próximo do Deus supremo.
(LAYTON, 2002: 27; KUNTZMAN & DUBOIS, 1990: 170)
134
para isso a meditação em cada etapa da gnose revelada conduz à ascensão até a plenitude do
ser divino: “E [eu] me virei [e] vi a luz que me [rodeava] e a Bondade que havia em mim, eu
me tornei divino. E o Ser todo-glorioso, Youel, ungiu-me nova mente e ela me deu poder.”
(Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 418):
Estes são alguns exemplos de obras que originalmente podiam representar
perspectivas diferentes de gnosticismo, tendo em comum a idéia de salvação pelo
conhecimento e a rejeição do mundo como algo mal. Entretanto quando pensamos que estes
52 tratados foram encontrados em copta saídico organizados em doze códices, possivelmente
como obra de monges, que o fizeram para sua “edificação religiosa” (KOESTER, vol. 2,
2005: 258), podemos supor que para alguns grupos de cristãos gnósticos tais obras tenham
alcançado o status de escritura formando uma espécie de “cânon” de comunidades monásticas
do deserto
41
. O que não é impossível se considerarmos as hipóteses apresentadas por Koester
e por James Robinson (2006: 30-34) e também por Elaine Pagels (1979: 142).
Camplani (1997: 172) ao discorrer sobre a composição, reelaboração e circulação dos
textos gnósticos em copta, acredita que, apesar da diversidade e até elementos contraditórios
(fruto de escolas gnósticas rivais) na Biblioteca de Nag Hammadi, é possível considerarmos
uma cultura literária entre monges que valoriza o texto a partir de uma organização ideológica
e também que estes poderiam dever, apesar dos contrastes internos, sua unidade” a
motivação polêmica contra a Grande Igreja.
Parece que a coleção pertencera a grupos receptivos da tradição gnóstica que definiam
sua identidade no contexto dos confrontos com o modelo “ortodoxo”. E por mais difícil que
seja dar maior precisão ao grupo, concordamos com Camplani (Idem:142) acerca do ambiente
monástico no qual os tratados de Nag Hammadi circulavam como escritura dessa corrente
religiosa-ascética.
41
Sobretudo se consideramos escritura” como um corpo literário considerado de certo modo autoritativo para
os que o liam, transmitiam e preservavam. Imbuída de um sistema de símbolos por meio do qual os leitores se
orientavam dando sentido à sua relação com o mundo, as pessoas e a sua divindade. (ver LAYTON, 2002: xvii)
135
O elemento central nos textos gnósticos coptas é a crítica radical ao Deus (criador do
mundo) do A.T. e sua lei. Este seria a divindade que comanda o grupo que se define como a
ortodoxia da Grande Igreja com sua hierarquia. Através do conhecimento os iniciados
conhecem os meios ascéticos de se separar deste mundo. Os textos seriam o corpus literário
que guarda os escritos de resistência do ascetismo gnóstico que afirma sua identidade como
separação do cosmo arcôntico”, renunciando a tudo que maquia a alma como as paixões e a
sensualidade (CAMPLANI, 1997: 146). Este grupo (ou grupos) rejeita a procriação como
uma determinação do Arconte, e entende a Grande Igreja como sua representante opressora
contra a “raça eleita” (Idem: 147).
O espaço privilegiado da luta contra o “cosmo arcôntico”, centralizado na sociedade
romano-cristã do século IV d.C., encontra no deserto o seu “contramundo” (BROWN, 1990:
185), lugar de uma sociedade angélica alternativa. Não é à toa que ao longo da Tebaida
“pululavam colônias de ascetas tanto ortodoxas como gnósticas” (KRAFT, 1998: 161).
O deserto representava um “além mundo” para os antigos, um lugar de ambigüidade,
lugar da deserção, da fuga do fisco que era imposto sobre as choras. Espaço de bandidos se
refugiarem, da não-vida, dos demônios e divindades que muito tempo transita pelas orlas
anti-sociais. Neste lugar (não apenas geográfico) transitavam os profetas errantes que
conclamavam grupos da periferia “a enfrentar o risco supremo (anacorese, assim como
anabase, é passar de um nível inferior para o superior)” (DEBRAY, 2004: 66). O deserto do
Alto Egito era visto como lugar do isolamento radical e da organização da nova sociedade.
Régis Debray nos diz:
“Nos primeiros séculos, ia-se ao deserto para buscar refúgio, para escapar do
cobrador de impostos e do juiz; o havia muita distância entre o rebelde e o
santo, ou entre o bandido e o monge usava-se o temo ‘anacorese’ para os dois
tipos de aventura. O homem novo de que fala o Paulo adotou no século IV a
figura emblemática desse divino fora-da-lei.” (DEBRAY, 2004: 67)
136
Quanto mais próximo do Império ficava o grupo patrístico, mais difícil tornava-se a
sobrevivência do cristianismo gnóstico. Enquanto podia-se pensar em Valentino em Roma no
século II, no século IV o lugar de maior presença gnóstica era entre monges posicionados em
regiões marginais do deserto em lugares “preservados do calcar das passadas humanas”
(Apud: BROWN, 1990: 182).
Embora tenha sido Antão a figura heróica das “Profundezas do Deserto”, do espaço
cósmico do mundo ascético, os renunciadores cristãos” já eram encontrados à margem de
aldeias egípcias e muitos teriam se inspirado nas lendas siríacas de Judas Tomé, estas que por
sua vez haviam migrado para o Egito. Pesquisadores admitem que a Biblioteca de Nag
Hammadi teria sido compilada e guardada por estas figuras dos setores monásticos
(CAMPLANI, 1997: 120; ROBINSON, 2006: 30; PAGELS, 1979: 142; VEILLEUX, 1984:
292). O elemento complicador é a identificação destas obras com a Ordem Monástica
Pacomiana que teria produzido muitas obras no mesmo período e região da produção dos
códices coptas de Nag Hammadi. Esta hipótese considerada desesperadora” está longe de
conclusões.
As lendas monásticas como aquela expressa em A Vida de São Pacômio, refletem uma
perspectiva mais identificada com os postulados da tradição ortodoxa, o que levam muitos a
hesitarem em associar os códices de Nag Hammadi aos mosteiros pacomianos. Alega-se que é
pouco provável que um grupo que se identificasse com o modelo “ortodoxo” de cristianismo
colecionasse os textos não-cristãos presentes em Nag Hammadi. E quanto à possibilidade de
serem copiados para se ter uma referência para a formulação de uma refutação da “heresia”,
algumas das obras não eram consideradas tão “heréticas” para figurarem nos catálogos
monásticos. O que sugere que, nem em meio aos grupos supostamente “ortodoxos”, a
presença de postuladores de idéias gnósticas deixava de estar presente.
137
Ao que nos parece é que, concordando com Robinson (2006: 30), a biblioteca era fruto
da combinação de coleções menores oriundas de possíveis grupos de monges gnósticos que
produziam cópias de textos para sua reflexão e devoção. Com o que também concorda
Koester (vol. 2, 2005: 258). A Biblioteca de Nag Hammadi reflete em sua produção uma certa
“devoção religiosa” que, segundo James Robinson (2006: 31): dificilmente sugerem que os
livros foram produzidos por questões antagônicas ou mesmo por desinteresse quanto ao
conteúdo, mas sim para refletir a veneração perante os textos sagrados.”
E no que tange ao monaquismo cenobita, São Pacômio não era Lei, transitavam no
Vale do Nilo, duzentos anos antes de Pacômio
42
, grupos maniqueus (CAMPLANI, 1997:
124) que, conforme García Bazán pode ser classificado como portadores de um “Gnosticismo
Oriental (GARCÍA BAZÁN, 2002: 178-200). E Veilleux afirma que o monaquismo
pacomiano não dominava totalmente o mundo monástico (VEILLEUX, 1984: 279).
Como sabemos, em 367 d.C., o arcebispo de Alexandria Atanásio, muito conhecido
por sua presença na controvérsia ariana, escreveu uma carta de Páscoa que condenava os
“heréticos” e seus documentos, “livros apócrifos para os quais são atribuídos nomes de
santos” (Apud, ROBINSON, 2006: 33). A carta teria sido traduzida por um discípulo de
Pacômio, Teodoro, e servia como norma para os mosteiros. Isso sugere a presença de monges
que apresentavam uma concepção diferenciada daquela defendida pelos modelos normativos
do cristianismo constantiniano.
Existe uma lenda pacomiana segundo a qual existia um livro herético que alegava que
Eva, ao ser enganada e tendo comido o fruto da árvore, teria gerado Caim de um demônio.
Esta lenda pacomiana, citada por Robinson (2006: 33) se assemelha à narrativa do A
Hipóstase dos Arcontes
43
do códice II,4 de Nag Hammadi.“Então as autoridades foram ao seu
42
Por volta de 270 d.C. ocorrera uma missão de maniqueístas no Egito que se estendeu de Alexandria ao Vale do
Nilo.
43
A Hipóstase dos Arcontes ou A Realidade dos Soberanos, trata-se de uma obra anônima com uma leitura
esotérica de Gênesis 1-6. Organiza-se como um discurso revelador entre um interrogador e um anjo. Tal tratado
138
Adão. E quando viram a sua parceira feminina falando com ele, eles ficaram agitados um
grande alvoroço; e eles se apaixonaram por ela” e eles a perseguiram. Eles disseram uns aos
outros, “Vinde, deixai-nos semear nossa semente nela [...] (Biblioteca de Nag Hammadi,
2006: 147).
No começo do culo V d.C. o abade Shenoute, do “Mosteiro Branco” em Panópolis,
teria confiscado livros acusados de conterem “abominações” e magia. Estes grupos
localizavam-se em um templo Pneueit, e afirmavam estar acima dos “demiurgos” e não terem
rei, e por isso mesmo não aceitavam a autoridade episcopal do então arcebispo de Alexandria,
Cirilo. Segundo Robinson (2006: 33) estes seriam gnósticos cristãos sethianos. Nas acusações
aparecem a associação deste grupo com magia por seus livros conterem escritas secretas com
vogais inteligíveis. Isso aparece também em Nag Hammadi, por exemplo, no ritual gnóstico
da ascensão em Marsanes, no códice X, 1.
[...] estou falando contigo [quanto aos três] formatos de alma. [O] terceiro
[formato da alma é [ [...] ] é um formato esférico, posicionado depois dela por
meio de vogais simples: eee. Iii, ooo, uuu, óóó. Os ditongos são os seguintes: ai,
au, ei, eu, eu, ou, ou, oi, éi, éi, Mi, auei, euei, oiou, 999, 999, 999 [...] E tu (s.g.)
[colocas] que leas se assemelham umas as outras [com as vogais [e] as
consoantes. Algumas são: bagadazatha hegedezeth, [bégédé] zéthé, [bigidizithi,
bogo] dozotho, [bvgvaevtho] [...] (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 393-397)
Essas palavras também aparecem no tratado hermético O Discurso sobre a Oitava e a
Nona, no códice VI, 6. O fato de a biblioteca estar depositada em um jarro nos leva a entender
que quem guardou desejasse que não fosse eliminada, local próximo dos túmulos dos
príncipes egípcios da sexta dinastia (no terceiro milênio a.C.).
A tradição bíblica faz referência ao enterro em jarro (pote) como meio mais adequado
para se preservar um texto, assim como o fogo é o modo ideal pra destruí-lo (Jeremias 32:14
sobre preservação e Jeremias 36: 23 sobre destruição).
reflete intenso sincretismo helenístico, dotado de componentes judaicos e elementos cristãos. Seu gnosticismo
aproxima-se de uma perspectiva sethiana. Sua possível origem seria no século III d.C.. O texto teria circulado
entre cristãos gnósticos, cientes do material do cânon veterotestamentário, conhecedores de textos
neotestamentários e que aceitavam a autoridade de Paulo parece haver influencia apocalíptica entre este grupo.
139
Vale lembrar que, por mais polêmica que seja tal afirmação, um grupo de cristãos
enfurecidos liderados pelo patriarca Teófilo, teria atacado o Serapeum em 389, (BÁEZ, 2006:
69). Isso sugere que uma vez considerados heréticos, este seria o possível destino dos códices
de Nag Hammadi. Mesmo na Vida de São Pacômio existe a alusão de este desejar queimar
livros “heréticos” (Apud, ROBINSON, 2006: 69). Logo, se os códices estivessem em algum
mosteiro paconiano, sua retirada por devotos que os venerassem para guardá-los da destruição
parece-nos uma hipótese aceitável. Alógeno e O Evangelho dos Egípcios fazem alusão à sua
guarda por segurança (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 192-423).
Acreditamos que a Biblioteca de Nag Hammadi seja uma coleção de textos
considerados sagrados por alguns monges de tendência gnóstica cristã e que esconderam seus
venerados textos da destruição por parte do cristianismo que se tornara por fim hegemônico.
Estes grupos monásticos situados num contexto periférico desenvolveram uma literatura
religiosa de resistência. Enquanto sofriam violência simbólica do grupo que os considerava
heterodoxos, legitimando assim a destruição de seus textos, eles encontravam em suas obras
sagradas as motivações para uma crítica social e com “conotações políticas evidentes”
(BERNARDINO, 2002: 127).
Lembramos que, ao perguntarmos “quem fala”
44
através destes textos, o “lugar” de
seus discursos e as “posições” que ocupam nesta rede de relações (FOUCAULT, 2005: 56ss),
percebemos um grupo que, diante da violência simbólica sofrida procuram se rearticular em
torno de textos que seriam “transcritos ocultos”. A fala daqueles que de alguma forma foram
subjulgados, mas que procuram lidar com a dinâmica e o grupo dominado. Isto posto, em
nosso próximo e último capítulo analisaremos comparativamente as relações deste grupo num
quadro de diferenciação social.
44
Referimo-nos não a seus criadores, mas aos que compilavam e veneravam.
140
3. A Cristianização do Império, a Romanização do Cristianismo e
o lugar do Cristianismo Gnóstico.
3.1 Da pluralidade à disputa pela hegemonia
Elaine Pagels (1996: 193-233) apresenta uma reflexão sobre a forma como grupos
cristãos que se consideraram como a autoridade absoluta sobre a "verdade cristã"
demonizaram seus inimigos. As expressões destoantes, que representavam cristianismos
diferenciados, foram alvos da violência simbólica do grupo hegemônico. Sabemos que à
medida que o Império Romano se cristianiza, cresce também a intolerância por parte de
bispos e outros deres cristãos, tanto em relação aos "pagãos" (MENDES & SILVA, 2006:
259) quanto em relação às outras tendências de cristianismo (RUBENSTEIN, 2001: 145).
A cultura como um padrão de significados, conforme explica Geertz (1989: 103),
também pode ser compreendida, de acordo com Roger Chartier (1990: 66-67), como
"conjunto de significações que se enunciam também nos discursos ou nos comportamentos",
estes são vínculos de modelos de realidade.
Ao compararmos o cristianismo que se oficializa com o cristianismo gnóstico,
apontamos a diferença entre seus discursos como diferença entre modelos de realidade em
conflito. As representações do cristianismo imperial procuram reafirmar uma forma de
controle social sobre os outros grupos que deveriam ser cooptados ou então excluídos. Por
isso a elaboração de um padrão de igreja e de doutrina marca as disputas do século IV d.C.
As disputas pelo direito sobre a fala exclusiva e autoridade plena a respeito do
cristianismo não surgiram no século IV, como observamos nos capítulos anteriores, no
141
entanto, é neste referido século que um grupo é empoderado de modo a subjugar as demais
expressões de religião cristã. Importa para nosso trabalho discutir como isso se deu.
John Dominic Crossan (2004: 44) faz referência a cinco momentos do cristianismo na
antiguidade. Refere-se a: movimento de Jesus; execução do nazareno; continuação,
por seus seguidores; 4º expansão; edomínio. Embora ao longo de nosso trabalho tenhamos
precisado tratar os antecedentes, nosso foco é o momento intitulado domínio, momento em
que, nas palavras do historiador do século dezoito Edward Gibbon, é fixada "a bandeira
triunfante da cruz por sobre as ruínas do Capitólio" (GIBBON, 1989: 194). Contudo
ressaltamos que tal seqüência serve para efeitos didáticos e de sistematização, não queremos
com isso criar categorias fechadas que desconsiderem a complexidade.
É necessário considerar que o cristianismo percorreu um caminho para chegar a ser
religião protegida pelo Império e depois a religião do mesmo. Portanto passamos a considerar
alguns destes pontos que julgamos necessários para compreendermos os processos que
levaram um grupo cristão a se tornar poderoso.
3.1.1. O Cristianismo como Hairesis no mundo helenístico-romano
Sabemos que o cristianismo nasceu em um mundo de muitas oportunidades de contato
que envolvia grupos judaicos e politeístas ao longo da bacia do Mediterrâneo,
"proporcionando, em níveis locais, especificidades no ver, no sentir, no praticar [ [...] ]
experiências religiosas” (CHEVITARESE & CORELLI, 2003:13). Assim, as fontes cristãs,
falam de Jesus a partir de reconstruções teológicas que não eram necessariamente
homogêneas, pois mesmo os discípulos e seguidores não formavam um grupo uniforme
(SACHOT, 2004: 17).
142
Embora concordemos com a pesquisa do historiador James S. Jeffers (1995: 62-69)
sobre a organização do cristianismo primitivo em comunidades domésticas, julgamos
necessário refletir sobre uma outra forma de organização e compreensão de cristianismo que
sugere tanto a idéia de pluralidade, quanto a questão dos conflitos acerca da verdade entre os
vários grupos. Referimos-nos a um modelo assumido entre comunidades cristãs que se
compreendiam como escolas, este é o caso em que se aplicava o termo haireseis ou hairesis,
que podemos traduzir por "escolas de pensamento". Flávio Josefo, em sua Autobiografia
(Apud, SACHOT, 2004: 101), usa haireseis para designar "escolas de filosofia". Tal categoria
helenística é aplicada para múltiplas organizações que se compreendiam sob as categorias de
escolas de pensamento, sendo muito variadas, inclusive com suas próprias doutrinas
45
. Os
referidos termos foram usados por grupos judaicos do mundo helenístico para se referir à
multiplicidade de grupos, e por conseqüência tal compreensão passou ao movimento cristão.
Um exemplo disso aparece na narrativa lucana de Atos dos Apóstolos (24: 5 e 14: 28.22),
onde os cristãos são apresentados como uma "escola de pensamento particular", conforme
atenta Sachot (2004: 102), que em sua reflexão refere-se a uma "refundação" do cristianismo
como filosofia, entendendo-a como vetor heterogêneo de interpretação de vida de Jesus no
contexto da cultura helenística.
Muitos grupos cristãos quando fundavam comunidades referiam-se a estas como
scholé (Idem: 104). Parece-nos que, quanto mais se espalha entre outros grupos culturais, as
idéias cristãs são reinterpretadas e mesmo reelaboradas dentro de outros quadros referenciais.
Não estamos dizendo que filosofia e cristianismo sejam a mesma coisa, mas sim que alguns
grupos cristãos releram sua condição com outras categorias culturais, inclusive considerando
o “dado cristão como sendo uma escola de filosofia”, ou seja, “os elementos do discurso da fé
[...] são integrados no vetor filosófico”. Ocorreu uma integração e reinterpretação em
45
Os termos haireseis e hairesis o designam aqui o conceito tradicional cristão que o traduziu para o latim
secta. Para maiores detalhes sobre a história dos termos em questão ver: GLUCKER, J. Antiochus and Late
Academy. Hypomnemata 56, Göttingen, 1978.
143
conformidade com o ambiente sócio-cultural, o que permitiu algumas comunidades cristãs se
compreenderem como escolas de pensamento. Exemplo que se aplica às escolas de Justino e
de Valentino. Isso reforça nossas hipóteses acerca da pluralidade de discursos cristãos e como
sua reprodução pressupunha também variação. Sobre tal discussão o texto supracitado de
Sachot aponta:
“A inclusão da filosofia como novo vetor de elaboração conduz, pois a uma
"refundação" do movimento cristão como "filosofia", como "cristianismo", no
sentido preciso que este termo em - ismo sugere, tornando-se ao mesmo tempo
um princípio centrípeda, (busca de um fundamento filosófico), e um princípio
centrífugo (esfacelamento entre uma multidão de hairesis, de "escolas de
pensamento"). A primeira conseqüência dessa redistribuição em "escolas" é a
volta polêmica que toma o discurso da maior parte entre elas. Fiéis nesse aspecto
a uma tradição bem estabelecida entre escolas filosóficas gregas, as "escolas
cristãs" se afirmam defrontando-se umas com as outras e, assim fazendo,
desenvolvem suas próprias doutrinas.” (Idem, ibidem: 105)
Esta forma de autocompreensão entre grupos cristãos intensifica as disputas entre
hairesis concorrentes, sejam elas ligadas a algum judaísmo, cristianismo ou outras presenças
do mundo helenístico. Quanto mais intenso é o confronto definidor da identidade dos grupos,
observa-se maior diversificação entre os mesmos. A situação ganha maior complexidade
quando a questão do discurso da verdade leva à impossibilidade de se considerar a
multiplicidade como algo benéfico. Podemos então afirmar que uma “aparelhagem filosófica
é mobilizada para fundamentos centralizadores e uniformizadores por parte do grupo
ortodoxo. Isso ganha corpo principalmente no século II d.C., quando uma noção de ortodoxia
começa a tomar força. A identidade dos ortodoxos se definia pela classificação, rejeição e
exclusão das perspectivas diferenciadas que serão chamadas de heterodoxia.
Mesmo que não se definissem como "escolas de pensamento", várias comunidades
cristãs passaram a disputar sobre o legítimo discurso a respeito da verdade e a autoridade
sobre o mesmo (MORESCHINI & NORELLI, 1996: 229). Uma hairesis implicava em uma
“corrente intelectual, espiritual e cultural”, relativamente organizada em uma scholé. Nesta
última, uma hairesis poderia se estruturar e rivalizar com outras scholai ou didaskaleias.
144
Tanto Justino quanto Marcião (em Roma) e Clemente (em Alexandria), fundaram
didaskaleias (escolas) e utilizaram o título de didaskalos (professor), e reuniram mathètai
(discípulos) que recebiam seus mathèmata, didachè ou didaskalia (ensinamentos) (SACHOT,
2004: 108).
Essas escolas de pensamento cristão, que rivalizavam entre si, podiam ser partes de
uma assembléia eclesial, comunidade doméstica ou mesmo podiam ser independentes,
configurando-se como comunidade-escola, por si mesmas. Em nome de um logos alethes
(discurso verdadeiro) algumas escolas e assembléias organizaram os fatores de unificação que
determinariam o que era o verdadeiro cristianismo, e, por conseguinte os fatores de
diversificação que procuravam por em descrédito os grupos que não aceitavam o discurso
verdadeiro. Os que postulavam e detinham a fala verdadeira definiam-se como os de reta
doxa, ou a ortodoxia. os demais grupos eram considerados como postuladores de falsas
hairesis e suas escolas foram apresentadas como escolas de mentira e falsidade. É neste
contexto que a idéia de heresia começou a ganhar sua carga semântica que a torna sinônimo
de erro em si mesmo. Isso aparece em Justino e no próprio Irineu.
A essa discussão devemos somar o processo de definição sobre qual seria a verdadeira
natureza da ekklesia (igreja) cristã à luz dos modelos de hierarquia romana (JEFFERS, 1995:
14). A partir daí se fortalece um paradigma de organização que tenderá à uniformização
doutrinária e institucional. Em Roma uma das igrejas domésticas procurava estabelecer um
cristianismo central que via nas escolas de Valentino e Marcião rivais que precisavam ser
contidas. Por essa razão essa organização de tendências centralizadoras procurava controlar a
operação de todos os outros grupos cristãos, a tal ponto que centros administrativos eram
formados para vistoria do trabalho de outras comunidades e escolas (Idem: 69). A
comunidade de São Clemente Romano é o exemplo ao qual nos referimos.
145
Jeffers, ao discorrer sobre a comunidade de Clemente Romano, afirma que esta é um
caso significativo de adoção das categorias romanas de ordenamento de relações entre os
cristãos: Clemente e sua congregação aceitariam as distinções sociais entre si como base de
ordenamento das relações. Ou seja, por causa da influência da ideologia romana, eles
terminaram aceitando a hierarquia como natural ao cristianismo.
Uma ordem eclesiástica, seja do colégio de anciãos de Roma
46
, seja a do Episcopado
Monárquico de Antioquia (que se tornará um padrão) será imposta sobre os cristianismos da
cidade (RICHARD, 1998: 43).
Sachot (2004: 111) escreve sobre um deslocamento de assembléias eclesiais para o
didaskaleion, isso sugere que quanto maior era a centralização em torno de um modelo
eclesiástico, mais se manifestavam grupos independentes organizando escolas de pensamento
com mestres que se viam livres da jurisdição dos líderes “oficiais”. É possível que a
organização da escola de Valentino, que embora tenha tido contato com o grupo ortodoxo
romano, e até exercido funções junto aos mesmos, teria sido um caso como o que acima
descrevemos, já que o referido mestre gnóstico promovia encontros dos quais podiam
participar seus discípulos e estes não eram vistos com bons olhos (ROBINSON, 2002: 262).
Os valentinianos julgavam o cristianismo dos senhores da igreja romana superficial e diziam
buscar um sentido mais profundo, que expressavam sob o modelo de um mito gnóstico. O que
transformou Valentino em alvo de ataques violentos. Pagels (1979,: 61) identifica uma das
falas de Irineu, em seu Adversus Haeresis (Contra as Heresias) como se referindo a Valentino
e aos seus: Pelo fato de dizer as mesmas coisas que nós, mas que por dentro são lobos,
porque a sua doutrina é homicida enquanto inventa uma pluralidade de deuses, imagina uma
46
Ao contrário do legado pela tradição cristã, não foi Pedro quem levou o cristianismo para a cidade de Roma,
não sendo, portanto o seu fundador. Quanto à tese de ter sido ele o primeiro bispo da cidade, existem igualmente
problemas históricos. O episcopado só chegou à capital do império entre 140 e 150 d.C., e a menção do apóstolo
como bispo é documentada apenas no século III d.C por grupos influenciados pelo pensamento de Irineu no final
do século II. Sobre isso ver: RICHARD, Pablo. A Origem do Cristianismo em Roma. In. RIBLA 29. Petrópolis:
Vozes & São Leopoldo: Sinodal, 1998, 142-156.
146
multidão de pais e faz em pedaços e divide de várias formas, o Filho de Deus [...] (Contra as
Heresias, 3: 16, 8).
As escolas de pensamento cristão se espalhavam e intensificavam as disputas sobre a
interpretação correta, bem como o discurso verdadeiro acerca de Cristo, principalmente entre
os que se diziam os postuladores do “pensar reto” as comunidades e escolas que o
aceitavam a autoridade daqueles. Assim os grupos que divergiam dos ortodoxos eram
considerados inimigos da verdade, sendo alvo de violência simbólica. Tertuliano defendia que
o verdadeiro cristão era aquele que escolheu “nada saber [...] que divirja da verdadeira fé”. E
quando as pessoas “insistem em continuar a perguntar sobre questões que as interessam,
temos a obrigação moral de refutá-las”. Tertuliano ainda declara que os hereges não têm
direitos sobre as Escrituras: Hereges não devem ter permissão para contesta as Escrituras,
uma vez que provamos que eles nada têm a ver com elas. Isto porque, desde que são hereges,
não podem ser crisos verdadeiros. ( Apud PAGELS, 1996, 210, grifo nosso).
A controvérsia não se restringia a Roma, havia grupos em várias regiões que
postulavam uma uniformidade ortodoxa, mas vários grupos o se ancoravam na ortodoxia,
por se compreenderem como escolas de pensamento livre do modelo imposto. E vale lembrar
também que muitos mestres consideravam-se “totais enunciadores do discurso cristão
verdadeiro” (SACHOT, 2004: 111), ao contrário do que defendiam seus opositores. Estes
organizavam suas compreensões doutrinárias sobre o cristianismo, sistematizavam sua
hairesis para compartilhar entre discípulos tais idéias. Dentre tais hairesis estão às escolas
gnósticas (Idem).
147
3.1.2. Princípio de Diadoché e a institucionalização da verdade
Diante da diversidade e dos conflitos, não foram poucos os cristãos, sobretudo os que
se intitulavam ortodoxos, que adotaram o princípio de diadoché, isto é, sucessão. Procurando
assim salvaguardar sua identidade e “instituição”. Tal idéia reflete a busca pela definição de
quem eram os legítimos herdeiros do discurso verdadeiro, e quem eram os postuladores do
falso conhecimento. O princípio de diadoché tornou-se assim um critério de permanência
institucional.
Entre as escolas que mais se difundiram e se diversificaram encontramos as escolas
gnósticas. As disputas entre gnósticos cristãos e entre, principalmente, os patrísticos
defensores da ortodoxia é que estes últimos articularam e defenderam o que seria uma
doutrina cristã unívoca. Aos poucos definiram que sua “filosofia” era a única verdadeira. Isso
foi defendido por Justino em seu Diálogo com Tryfon. A verdade deixa de ser um enunciado e
busca, para ser uma posse absoluta, conforme esclarece Sachot:
“Não sendo mais uma afirmação humana, mas vinda do próprio Deus, o está
mais sujeita a sanção, o é mais uma doxa, uma “opinião”, ela se impõe como
dogma, um “decreto”. A opinião cede espaço ao dogma [ [...] ] É a própria
verdade: pasês philosophias antrôpeiou hypertera, “nosso ensino é superior a
toda filosofia humana”, declara Justino.” (Apud Sachot, 2004: 122)
Em meio aos confrontos muitos grupos cristãos tiveram suas escolas e assembléias
integradas ao modelo ortodoxo sob a idéia de uma Grande Igreja, a qual are conduzida pelos
sucessores dos apóstolos. Outros, porém, continuaram formando suas escolas de pensamento
ou comunidades partindo da idéia que sua legitimidade não era conferida pela hierarquia que
ganhava força. Conforme o modelo hierárquico ganhava poder revelava-se mais do que uma
escola, mas uma tendência que acabou por se impor sobre as outras, desqualificando-as como
escolas de falsidade, mentira, cuja inspiração era oriunda do demônio e não de Deus.
148
O princípio de diadoché tornou-se um dos fundamentos que sustentava essa tendência
de cristianismo que se tornava dominante, e acabou transformando o sentido de hairesis em
heresia tal como mais tarde ficou conhecido. Sob a idéia de sucessão, ao afirmar que um
grupo diferente era escola de mentira, afirmava-se também que seu discurso de sucessão (caso
existisse) era falso. Tal argumento visava desacreditar a legitimidade de determinado grupo
cristão. Escolas e comunidades que se identificavam com a Grande Igreja defendiam suceder
a uma linha oriunda dos apóstolos, o que lhes garantia a autoridade.
O princípio da sucessão se tornou tão importante que mesmo seguidores de Valentino
reivindicavam para seu mestre a sanção apostólica afirmando ter ele sido instruído por um
homem de nome Teúdas, oriundo da escola paulina (ROBINSON, 2006: 259).
Sobre a discussão a respeito da legítima sucessão de um determinado grupo, Irineu
defendia que deveria ser investigada “de acordo com o sistema da fé” (Contra as Heresias, 1:
10,3), este que já estava previamente definido pelo quadro de referências da ortodoxia.
As categorias com as quais se entende a verdade já não eram de caráter epistemológico
apenas, ela passa pela idéia de algo institucional. Reforça-se a noção de um cristianismo
instituído que fora legado a um grupo específico, este seria o canal para garantir a verdade.
“As ‘Igrejas’ são o único lugar verdadeiro onde a Palavra de Deus se expressa, se revela e se
comenta de maneira autêntica” (SACHOT, 2004: 127). Assim, elaborações doutrinais, bem
como práticas de escolas de pensamento ou comunidades que não preenchessem os requisitos
definidos seriam rejeitadas, divergência doutrinal e separação institucional se implicarão
mutuamente. Isso porque, como notamos, o critério da verdade deslocou-se para um tipo de
vetor institucional, definindo-se assim o princípio de uma grande igreja ortodoxa, herdeira de
uma linha sucessória da verdade. A partir daí, a função das didaskalias foi assumida pela
figura que vinha concentrando as responsabilidades sobre o ensino apostólico, a saber: o
149
episcopos (bispo). A elaboração de uma koiné teológica forneceria respaldo para uma série de
processos que culminariam na igreja imperial institucionalizada do século IV d.C.
3.1.3. Igrejas domésticas e os tituli romanos: mitos de afirmação
Segundo o historiador James Jeffers, as primeiras comunidades cristãs romanas se
reuniam em casas, o que lhes legou o nome de igrejas domésticas. Estas nunca foram
padronizadas quanto à forma e conteúdo de seu cristianismo. Sabe-se que havia casas de
judeu-cristãos e grupos gentílicos. Contudo, a tradição eclesiástica do século IV desenvolveu
a idéia de um modelo eclesiástico e o projetou para os momentos fundantes da igreja cristã, ou
seja, elaborou-se uma antiguidade para justificar a autoridade de algumas igrejas.
A referência tradicional está no texto de um cronista do século IV intitulado Líber
Pontificalis, cuja função social e política reafirma a antiguidade institucional de algumas
igrejas e de seus líderes (JEFFERS, 1995: 67). Relembramos aqui das reflexões de Kathryn
Woodwward, no tocante à afirmação de identidades. A pesquisadora lembra-nos que grupos
em luta para afirmação de sua identidade se reportam à verdade fixa de um passado
compartilhado” (WOODWARD, 2004: 15). Uma idéia essencialista na qual um movimento,
instituição etc, reivindicam uma história como fundamento de sua identidade. Assim, o
princípio de diadoché, bem como a idéia de ortodoxia, pode ser compreendido dentro da
lógica dos sistemas de representação, nos quais os discursos e as práticas significadores/as são
produzidos de modo a posicionar o grupo.
A tradição eclesiástica, em um momento tardio, afirmou que no século I existiam 25
congregações em Roma. Segundo a mesma, o papa Anacleto, seguindo a orientação de São
Pedro, teria ordenado vinte e cinco presbíteros. Estes, nos primórdios do século II, teriam se
tornado responsáveis por vinte e cinco igrejas titulares (tituli) em Roma, por ordem do papa
150
Evaristo. Mais tarde, o papa Marcelo (no início do século IV) transformara as referidas tituli
em centros de administração eclesiástica.
Diante disso, consideramos que mesmo que seja possível afirmar que algumas dessas
comunidades sejam pré-constantinianas, tais histórias refletem uma organização eclesiástica
tardia. Jeffers (Idem) concorda que alguns tituli se originaram nos séculos IV e V, tendo sido
na maioria identificado com um mártir ou santo fundador apenas no século VI d.C. No caso
dos tituli pré-constantinianos, acredita-se que seriam propriedades de cristãos que tinham
devoção por um santo ou mártir ao qual a comunidade doméstica honrava a memória.
Mas, também é possível que membros posteriores da comunidade confundiram o
nome de doadores da propriedade com o de uma pessoa venerada como santa. Nos lugares em
que a tradição localiza os tituli, a arqueologia evidencia a existência de basílicas erguidas no
século IV. Um exemplo que julgamos necessário mencionar é o do titulus de São Clemente
Romano.
Em 1857, um dominicano cujo nome era Joseph Mullody começou a cavar nos jardins
do mosteiro que fica na basílica de São Clemente em Roma, que foi erguida no século XII.
Abaixo encontrou o transepto norte de uma basílica do século IV. Mais tarde, em 1869,
encontrou um conjunto de escadas abaixo da igreja do século IV que levava a um santuário de
Mitra, um dos mais completos encontrados pela arqueologia.
Podemos dizer que, na origem, titulus não era referência à basílica ou igrejas titulares
que sob as ordens papais organizaram o cristianismo romano. Tal idéia é tardia e foi projetada
a posteriori para todo o mediterrâneo. É possível que os tituli romanos tivessem a ver com
propriedades que, conforme um costume romano recebiam nos edifícios o nome do construtor
ou de seu dono.
No caso de comunidades cristãs, é possível que a referência aos construtores, doadores
ou proprietários, passou a apontar para figuras mitificadas e identificadas com um mártir ou
151
santo. Mais tarde a Grande Igreja organizou seu argumento sobre os tituli para defender sua
autoridade apoiando-se nos paradigmas de sucessão. Teríamos assim um mito fundante ou de
afirmação. O que nos ajudaria a supor que no século IV, um corpo especializado de discursos
e de ritos religiosos, ou da divisão do trabalho religioso, determinou qual era o passado e a
ordem da igreja cristã.
Acreditamos que a definição de um modelo de ortodoxia, bem como a adoção do
princípio de sucessão para fortalecê-lo, fazem parte de uma série de disputas pela verdade. E
cabe dizer que definir o que é a “verdade” implica em definir o que é, ou como deve ser a
realidade e, portanto, quais são os paradigmas da sociedade. Vale lembrar o papel político que
as religiões assumem, como observado pelos colaboradores de René Remond em sua obra Por
uma História Política (Op. Cit.).
Outro ponto, sobre a definição da verdade por meio de uma modalidade de creas,
que nos auxilia na interpretação destas questões que apresentamos, encontra-se nas reflexões
de Paul Veyne (1984: 45), para quem, em casos como estes que apresentamos, acreditar é
obedecer”. Logo, olhando por tal perspectiva, aceitar os postulados do grupo hegemônico que
constituía a Grande Igreja, implicaria para os grupos diferenciados de cristianismo, entre os
quais situamos os cristãos gnósticos, em uma forma de obediência simbólica. O cristianismo
começa a estabelecer qual é o seu “centro de profissionais da verdade” (Idem: 43) com os
mitos de fundação e legitimação de seu mundo.
A definição de qual seria a verdade cristã, o que inclui dizer quais são os livros
canônicos e quem pode interpretá-los corretamente ajudam a confirmar que, conforme Veyne
(Idem, ibidem: 53), “relações entre verdades são relações de força”.
152
3.2. Quando o cristianismo tornou-se religião romana e a reação do
cristianismo gnóstico
3.2.1. O que era religião no mundo romano
Embora falemos de diversidade religiosa na antiguidade, relembramos que usamos
categorias e conceitos de nosso próprio contexto de pesquisa, buscando interpretar as
transformações religiosas pelas quais passou o cristianismo. Estamos cientes que a idéia de
religião como algo à parte, com uma hermenêutica de caráter etológico é um conceito que não
existia no mundo antigo até o cristianismo em seu processo de oficialização elaborá-lo.
Citamos as palavras de Régis Debray sobre isso:
“A cidade antiga, e também o povo hebraico, o têm clero, pela simples razão
de que não tem religião. Foi o cristianismo que inventou a religião como coisa à
parte – separação que não tem sentido para um grego (que até ignora a palavra, já
que não separa o divino do humano, do cívico e dos cultos), nem para um judeu
(porque, no judaísmo, nação e religião estão unidas). Em Jerusalém, Atenas e
Roma, o ritual cívico é religioso e o ritual religioso é cívico.” (DEBRAY, 2004:
215)
Por mais que a fala de Debray possa apresentar elementos questionáveis, temos que
concordar que o termo religião, tal como o ocidente conhece hoje, não possuía o mesmo
sentido para um romano. Assim, para entendermos como o cristianismo tornou-se religião
romana, se faz necessário retomar a idéia de religião no Império Romano e seu papel
integrador na cultura romana.
Como afirma Norma Musco Mendes (2005: 198), “na sociedade romana o termo
religio apresenta um sentido bem diferente daquele do pensamento monoteísta”. A religião
não está dissociada da política, é estatal e tem papel integrador. Refere-se à ligação entre
humanos e deuses e ao respeito para com tal ligação, conforme os vocábulos religare (religar)
153
e religere (zelar, controlar). Para Mendes (Idem) a religião implica em uma comunhão que
organiza um “sistema de obrigações”. Não se trata em relações de tom afetivo com as
divindades, mas em um “conjunto de regras formais e objetivas oriundas das tradições”.
A religião dá coesão social à civitas. Emile Benveniste em seu Vocabulaire des
institutions indo-européennes (BENVENISTE, 1969: 270) afirma que religio: “É uma
hesitação que retém escrúpulo e não um sentimento que dirige uma ação, ou que incita a
praticar o culto”. Maurice Sachot (2004, 137) afirma que religio romana pode designar
escrupuloso respeito pelo instituído, idéia que marca a latinidade. Tal sentido pressupunha a
religião como um elemento de coesão que dava força às instituições garantindo sua duração.
Sem tal coesão a civitas não poderia existir, a religio atuava como um fator de identidade para
a cidade. Não é à toa que Cícero disse em seu De natura deorum (Apud SACHOT, 2004, 138)
que na religião osromanos eram superiores aos estrangeiros.
A religião no mundo romano tinha um caráter público e se referia ao conjunto de
cidadãos e, de modo específico, era fator de pertença às estruturas institucionais. Assim, as
definições oriundas do conceito de religião cristã, tais como fé e corpo doutrinal, não se
aplicam à definição de religião romana. Sobre isso assevera Robert Turcan (1988: 2 -3):
“Para os Romanos da antiga tradição a religião não é um corpo de doutrinas sobre
os deuses ou o divino, nem uma mística teosófica, também não é uma técnica de
acesso ao sobrenatural. Eles o adoram um deus de si para si, a fim de se unir a
ele espiritualmente, no êxtase ou na efusão. Esse ideal inspirará muito mais
tarde, no declínio do paganismo, uma elite de filósofos neoplatônicos. Os
problemas que atormentarão os neopitagóricos, os cristãos ou os gnósticos o
chegam nem perto do realismo latino. A religião dos romanos não tem nada que
ver com uma moral pessoal ou social, como a que tende a sacralizar o homem nos
cristianismos modernos do Ocidente europeu ou americano.”
É claro que religio não se refere apenas à religião romana, uma vez que se concebe a
idéia de religião em outros povos. Estes, quando livres são dotados de religião legítima , ao
passo que, quando integradas ao império pela conquista podem ser ilegítimas. Como estava
fundamentada nos parâmetros do pensamento politeísta, no império romano não era proibida a
154
propagação de outras religiões, desde que não desenvolvessem poderes paralelos às
autoridades civis. Sobre esta questão discorre Norma Musco Mendes:
“As pessoas podiam ter ligações religiosas privadas e as crenças que desejassem,
desde que o criassem poderes paralelos às autoridades da cidade, o
obscurecem ou ameaçassem os cultos públicos através de práticas e
conhecimentos secretos, e representassem uma alternativa de identidade religiosa.
A isso relacionamos as severas punições contra a magia, a perseguição ao culto
do deus Baco, a questão dos druidas na Gália e na Britânia e o cristianismo.”
(MENDES, 2005: 211)
Apesar da possibilidade de que outras religiões interagissem com a religião romana,
esta última conservava o status hegemônico e integrava as alteridades à ordem romana, uma
vez que entendemos esta religião como parte do discurso de romanização
47
. Segundo esta
concepção de religião, o culto imperial atua também como um elemento integrador que
reafirma o lugar de hegemonia da romanidade. Isso se observa no ritual em que estava
centrado.
Por essa razão reafirmamos que entender religio a partir de nosso conceito de religião
ocidental implica em compreendê-lo já no sentido que o cristianismo lhe conferiu. Para
efeitos de investigação e análise, adotamos o conceito de religião definido por Geertz, para
quem religião é:
“[...] um sistema de mbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e
duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de
conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal
aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente
realistas.” (GEERTZ, 1989: 104-105)
Tal conceito é trabalhado em diálogo com a concepção de Pierre Bourdieu, que para
nós é similar, este último compreende religião, bem como o mito, como sistema simbólico
que instrumentaliza um modelo de mundo, que uma vez estruturados, exercem poder
47
Entendemos por romanização o que foi explicitado pela historiadora Norma Musco Mendes, que a define
como “a retórica do poder hegemônico veiculando a identidade cultural romana”, e também como a “cultura do
imperialismo”(Op. cit, 407).
155
estruturante (BOURDIEU, 2005: 9). E é sob três parâmetros que entendemos o caso da
religião romana.
3.2.2. Como o cristianismo passou de superstitio ilícita a religião licita
Embora a difusão do cristianismo tenha se dado graças aos parâmetros do pensamento
religioso politeísta presente na política religiosa dos romanos, o cristianismo também foi
marcado por perseguição e foi compreendido e foi compreendido no quadro de religio ilícita.
Mas é necessário frisar que a idéia acerca dos cristãos como uma minoria perpetuamente
perseguida, obrigada à vida clandestina por conta da ação repressora é em grande parte uma
leitura romântica da história (BROWN, 1999: 42). E vale lembrar que, mesmo sob o governo
de Nero (alimentado na memória como um modelo da perseguição) os cristãos viveram em
paz até o ano 62 d.C. (CHEVITARESE, 2006: 164).
Em nossa pesquisa pudemos observar que quando o movimento cristão se inscrevia
em novos espaços culturais, as pessoas formadas em tais culturas apreendiam o cristianismo a
partir de sua categorias, ou seja, a partir de uma cosmovisão, com linguagens peculiares ao
ambiente, etc.
Interessa-nos aqui a reflexão sobre como um vetor interpretativo teria redefinido o
cristianismo na esfera da romanidade, e como a própria romanização poderia significar, a
partir de então, como ampliação de uma identidade romana cristã.
Para tanto o conceito de religio poderá trazer luz à nossa discussão, sobretudo no que
diz respeito aos novos significados dados à noção de religião pelo cristianismo que se tornou
hegemônico. Sachot (2004: 151) defende que o cristianismo teria sido compreendido em
princípio por um vetor sinagogal, este fazia o movimento compreender-se como a realização
156
do judaísmo. Em seguida, com a difusão cristã se intensificando por outras áreas e contextos
culturais do mundo helenístico, a autocompreensão de muitos grupos cristãos ter-se-iam dado
por uma noção de filosofia (escola de pensamento).
Mas prossegue Sachot (Idem), por influência de categorias latinas da romanidade, a
idéia de religio passa a definir o cristianismo, ou um cristianismo, dentro de uma nova
perspectiva. A “única filosofia segura e apropriada” de Justino será definida como religio para
grupos de cristãos romanos. É necessário ressaltar que, a despeito da visão romântica que
apresentava o cristianismo como uma grande assembléia formada apenas por pessoas
humildes, a partir da segunda metade do século II conhecemos casos explícitos de cristãos de
Roma (e de outras partes do Mediterrâneo) que viviam em uma classe social bastante distante
do que Crossan (2004: 69) identificou como “a pobreza camponesa judaica de Jesus de
Nazaré”, que caracterizou o movimento nas origens.
São para nossa pesquisa elementos significativos, os casos como o de Márcia,
influente concubina do imperador Cômodo, que consegui por vezes proteger bispos cristãos
em Roma, ou ainda os indícios de uma pequena nobreza cristã vivendo na Ásia Menor,
atestados por descobertas na região (BROWN, 1999: 43).
Além disso, no ano 300 d.C., um encontro de bispos na Andaluzia, conhecido a
posteriori como concílio de Elvira, referiu-se de forma condenatória a cristãos que
participavam de conselhos urbanos e, por conseguinte do culto imperial, recebendo títulos
honoríficos, os mesmos não eram pobres. Enquanto as associações religiosas, funerárias e
comerciais pressupunham, por vezes, grupos específicos de uma determinada classe, o grupo
cristão que se organizava em torno da idéia de uma Grande Igreja era bastante variado. Em
Alexandria existiam bispos e presbíteros cristãos que participavam do culto de Serapis e eram
contados entre os ilustres (KRAFT, 1998: 181).
157
O cristianismo dos teólogos patrísticos, herdeiros da tradição de Irineu de Lion,
Justino e outros defensores de sua própria fala como a voz da ortodoxia, torna-se aos poucos
uma instituição romana. O cristianismo se romanizava na medida em que muitos de seus
intelectuais orgânicos proclamavam uma proposta cristã de adesão política e cultural ao poder
romano, reforçando inclusive o abismo social entre classes no crsitianismo e apresentando
isso como algo natural que não podia ser questionado.
Ocorre uma substituição “semântica e institucional” na qual o que era superstitio
torna-se religio e o que era religio torna-se superstitio:
“[...] os significados e os referentes das novas categorias (aqui religio e
superstitio) são radicalmente mudados: investido pelo cristianismo, religio vai
recobrir todo o dado cristão (aqui, fé, episcopado, clero, corpus da Escritura,
messianismo etc.); inversamente, investido pela categoria de religio, o
cristianismo vai se inscrever no espaço que este termo recobre em latim e ser
redefinido por ele: a do cristão vai ser percebida na atitude pessoal do cidadão
a respeito da cidade (ciuitas) e a instituição eclesial (ecclésia) vai ser retomada
nas categorias que estruturam a sociedade (societas) em cidades (ciuitates). De
seu lado superstitio que qualificava até então o fenômeno cristão da mesma
maneira que as religiones externae ac prauae, vai qualificar o mundo latino, mas
com a conotação que receberam as hairesis no esaço anterior, o de ser não
somente uma “sobrevivência”, mas ainda em oposição com a fé, que é a
verdadeira religio, um amontoado de “crenças falsas”. No termo deste processo,
o cristianismo, que guardará certamente esse nome adquirido em meio grego,
será transformado em religio romana christianaque, isto é, em “religião” no
sentido em que, geralmente, nós entendemos, a partir de então, esse termo nas
culturas ocidentais latinas “ (SACHOT,2004: 152).
Não se trata de uma de uma troca simplista de referências, mas de reconceituação da
idéia de religio e, de certa forma, da idéia de superstitio. Por exemplo, religião incluirá a
noção de verdade revelada”, com uma linguagem marcada por conteúdos doutrinais, rituais
de adesão e sistema de revelação. As verdades pragmáticas formadoras de vínculos que
representavam o respeito para com o instituído tornam-se também alvo de reflexão teórica e
hermenêutica. Ocorre a introdução de uma noção filosófica de verdade na categoria de religio.
Assim, a verdade revelada torna-se verdadeira religio do verdadeiro Deus (Idem, 141). Por
conseguinte, tudo que fosse considerado “sobrevivência insensata”, por não ser beneficiada da
revelação divina “legítima”, o passava de superstição e de erro. E como tal, tornava-se
158
oposição à verdade, portanto falsa crença ou religião digna de desprezo. Até mesmo a religião
romana tradicional foi reduzida à condição de superstição. Assim de um lado se tinha a uera
religio e verdadeira filosofia, e por outro superstitio e hairesis.
Segundo Carlos Augusto Machado (2000: 153) a própria construção de Constantinopla
no culo IV foi um exemplo de romanidade cristã, pois exaltava o poder imperial e a igreja
cristã. Uma religião que intentava expressar a totalidade e ser um marco civilizador. Se antes
religio é um meio de apreensão do estabelecido romano, tanto cultural quanto civilizacional,
nesta nova realidade o cristianismo é que será o novo veiculador da civilidade romana, mas de
uma outra forma de romanidade. O que se torna mais claro, quanto mais próximo ao estado o
cristianismo se estabelecer. Concordamos com Sachot (155), quando este afirma que
“representando a societas organizada em ciuitas, religio é bem o vetor pelo qual se faz
progressivamente a romanização do cristianismo e a cristianização da romanidade”. Da
mesma maneira como usou categorias filosóficas do contexto helenístico para afirmar-se
como filosofia verdadeira, o cristianismo lança mão com os postulados sobre a ciuitas romana
para justificar seu modelo de sociedade perfeita. Mas, como afirmamos, o cristianismo era
plural e a religião romana e cristã não integra todos os cristianismos. Mas como já afirmamos,
o cristianismo era plural, e a religião cristã romana era uma expressão entre várias. Contudo
defendia ser a fala correta do cristianismo.
Diante de tal realidade, outras expressões de cristianismo tornaram-se grupos de
resistência, muitos deles ligados a setores da vida monástica, mesmo entre alguns que se
identificavam com o discurso “ortodoxo”. As idéias expressas por Irineu de Lion noculo II
acerca da ortodoxia foram muito bem-vindas no cristianismo que se instituía no contexto
imperial do século IV (PAGELS, 2004: 164), sobretudo por conta do papel que passava a
assumir perante a realidade. Instrumentalizava o princípio da universalidade da religião
159
romana cristã, estava estabelecida a “igreja católica legítima e mais sagrada” (História
Eclesiástica, 10: 6).
A partir daqui podemos falar de cristianismo como propriamente uma instituição.
Claro que desde o século II já pode ser encontrada grupos cristãos estruturados e organizados,
porém sem um modelo institucional único e sem uma legislação padronizada. No caso do
cristianismo romanizado da Grande Igreja, este agora se instituía na perspectiva de uma nova
cosmovisão romana, marcada por referências institucionais, políticas e tudo o mais que
ordena a res publica conforme já fora definida por Dumezil (Apud SACHOT, 2004: 156).
As cidades (ciuitates) eram a referência da unidade institucional, embora fossem
numerosas e variassem quanto ao status, estavam integradas no conjunto unificado que
formava o Império Romano.
“Suas instituições [...] refletem mais ou menos completamente as de Roma e
partilham com ela todo ou parte de seu direito. o elas e esse direito imperial
que fornecem, aos autores latinos cristãos, as categorias institucionais pelas
quais eles apreendem o fenômeno cristão” (Idem,157).
Se pudermos afirmar que, no mundo romano, religio conferia identidade à ciuis
através da coesão que faz a ciuitas existira, sob o paradigma institucional romano, o
cristianismo passou a ser a religião que reforçava a cidadania romana. Contudo, a tolerância
para com outras tradições, que antes existia desde que não suscitasse desordens, passava a ser
cada vez menor. Em 324 d.C. Constantino promulgou uma lei proibindo a reunião de grupos
cristãos considerados heréticos, dentre os quais encontramos os valentinianos e outros
gnósticos (SILVA, 2006: 258). Neste quadro compreendia-se que a unidade da Igreja
implicava na segurança do Império (Idem).
O processo que definiu o cristianismo como religião é importante para nossa pesquisa,
sobretudo para nossa análise comparativa entre este e o cristianismo gnóstico. O primeiro a
referir-se ao cristianismo como religio foi Tertuliano de Cartago no século II. Por volta de
160
197 escreveu sua obra intitulada Apologética, cuja função era defender o cristianismo perante
acusações. Assim o supracitado autor que, mesmo tendo mais tarde optado pelo montanismo,
permaneceu um ícone da literatura patrística, reponde aos seus adversários.
Sachot (2004: 147) observa que Tertuliano principia seu texto adotando para o
cristianismo a categoria de secta, entendida como uma escola de pensamento, com uma
doutrina para a vida, uma forma de filosofia. O autor da Apologética argumenta:
“O que de estranho se um ensinamento a seus alunos (sectatoribus) um
apelido tirado do mestre? Os filósofos não se chamam com nome de seu mestre,
platônico, epicuristas, pitagóricos [...] ?” (Apologética III. 6).
Após classificar o cristianismo como “filosofia”, Tertuliano o define como a filosofia
que ultrapassa a todas, alegando que sua verdade emana do próprio Deus por meio de Moisés,
dos profetas, do Cristo, dos apóstolos e seus sucessores. Depois disso, busca refutar as
acusações de ateísmo e impiedade que eram feitas aos cristãos por se recusarem a honrar o
genius do imperador. Tertuliano procura discursivamente inverter a lógica e acusar seus
adversários. A discussão em torno da verdade chega a seu ponto polêmico quando o referido
autor procura refutar a acusação feita aos cristãos de serem adoradores de uma cabeça de
asno. Então, aparece o termo religio, que será mais bem trabalhado no ponto em se discute a
acusação de superstitio. Usando a apologética grega, Tertuliano transpõe a discussão do
âmbito filosófico para o âmbito jurídico (FRANGIOTI, 1992: 68), e assim refere-se ao
cristianismo como, não apenas uma religio, mas como ‘a’ religio verdadeira. Quanto à religio
romana, acusa-a de não passar de superstitio.
A definição de religião para o cristianismo apresentada por Tertuliano adota a idéia de
um conteúdo doutrinal com vistas a justificar que cultuam ao “verdadeiro Deus”. Defende a
inexistência dos deuses romanos para, através de uma espécie de silogismo afirmar que tal
religião não é verdadeira, portanto superstitio. Logo os cristãos não poderiam ser culpados de
laesae religiones (SACHOT, 2004: 149). Mais tarde, passados cem anos, o escritor Arnóbio
161
falará de uma religio christiana em seu Adversus nationes. Mas é a Minúcio Félix que se
atribuirá uma compreensão antitética entre religio cristã e superstitio para religio romana e
outras religiones (Idem, 150).
A partir dessas transformações estruturais em setores do movimento cristão, não
podemos falar apenas de uma troca de papéis nos quais o que era religio vira supertitio e vice-
versa, mas de reelaborações conceituais das quais um determinado cristianismo redefine sua
identidade. E como observamos, neste processo, tal cristianismo passa a ser um vetor de uma
nova categoria cultural de romanidade, depreciando como superstitio, tanto as expressões
plurais de cristianismo quanto outras tradições religiosas. Assim como a religião romana era
uma religião política (MENDES, 2005: 211), de modo que conflitos religiosos envolviam
questões de autoridade e poder, quando o cristianismo torna-se o novo poder divino para a
proteção de Roma era de se esperar a teologia cristão ortodoxia torna-se um discurso pró-
humanidade além de ser seu veiculador.
Deste modo, monumentos de documentos produzidos pela Grande Igreja teriam
caráter de transcritos públicos
48
. Em suma, a idéia de ser cristão para ser romano e ser fiel ao
Império como sinal de uero cristianismo era o meio deste veicular uma nova forma de
identidade romana pela reafirmação de um modelo “adequado” de religião cristã.
A Igreja tornou-se instituição romana, e nesse contexto do século V as estruturas
hierárquica, ministerial e cultual serão reinterpretadas sob paradigmas sacerdotais. O exegeta
Pablo Richard afirma:
“A cristandade sobre uma profunda rejudaização teocrática de suas estruturas
ministerial e cultual. Será implantada uma concepção judia davídico-salomônica
do templo cristão e se imporá uma sacerdotalização [...] do ministério
presbiteral.” (RICHARD,1998: 148).
48
Relembramos aqui as categorias desenvolvidas pelo antropólogo e cientista político James Scott, a saber:
Transcrito público e transcrito oculto que auxiliam na explicação de tipos distintos de comunicação ocorridos na
conflituosa dinâmica das relações de poder entre dominadores e dominados. SCOTT, James C. Domination and
the Art of Resistance. New Haven: Yale University Press, 1990, xii; 15.
162
Os termos latinos sacerdos e grego hiereos eram usados no século III no
vocabulário de grupos cristãos como referência ao papel do bispo e aposteori, o presbítero.
Tal perspectiva ganhou força no desenvolvimento do cristianismo no século IV. Como
observam Marcel Simon e André Benoit (1987: 179), entre judeus e outros grupos religiosos,
o sacerdote caracterizava-se, entre outras coisas, como o que oficia os sacrifícios. Para alguns
grupos cristãos a morte de Jesus foi teologicamente compreendida como sacrifício, o
sacerdote que imolara a si mesmo. Conforme o rito eucarístico revestia-se desse caráter
sacrificial (o sacrifício da nova aliança), os responsáveis, bispos e presbíteros qualificados
para celebrar, assumiam um perfil mais sacerdotal.
A organização eclesiástica ganha marcas que indicam paradigmas do universo
institucional romano. O princípio de diadoché (sucessão) colocava na direção da comunidade
o substituto nomeado por seu predecessor, tal prática passou a ser inscrita dentro de funções
de cunho simbólico e teológico. Sachot assevera que a função de representação do processo
de revelação e comunicação da salvação derivada de modo unívoco de Deus, dentro das
categorias estruturais romanas, acaba formulando uma organização jurídica sobre os
postulados teológicos:
“Cada função é doravante definida pelo direito em suas atribuições e seus cargos.
O episcopo é o primeiro “magistrado”. E como a categoria de religio é muito
cheia, essa magistratura assim como a do conselho dos antigos (o presbyterium)
se estruturam em “clero”, distinto do povo [...]
A sobredeterminação jurídica vem no momento oportuno para reforçar o papel do
episcopo e definir, para todas as comunidades cristãs, à imagem da unidade do
Império, uma hierarquia interna que ao episcopado monárquico (ou
monoespiscopado), a autoridade sobre todas as outras funções e cargos”
(SACHOT, 158).
A “romanização do cristianismo” e a “cristianização da romanidade” permitiram à
Grande Igreja se organizar sob os modelos estruturais imperiais como também ser parte
formadora dessas estruturas. A reestruturação de igreja local em diocesis governada por um
bispo que será o seu praefectus, mostra como a relação entre igreja e Império se estreita e
163
como a romanização, enquanto retórica do poder hegemônico, se propaga com idéias, formas,
representações e imagens que consolidam o Império Cristão. Com o tempo a liturgia cristã
tornou-se um ritual público que assegurava os favores do Deus cristãos para ciuitas, e as
cidades passaram a ser sagradas pelos rituais realizados pelo bispo. O Tetrápilo (monumento
de quatro colunas que marcavam o centro da cidade) passou a ser benzido pelo bispo com
muito incenso, o que marcava o eu poder civil e religioso. Representantes do governo
imperial e o conselho da cidade eram recebidos com freqüência nos palácios episcopais
(BROWN, 1999: 129).
Faivre (1992: 77) discorre sobre alguns casos de disputas ocorridas entre bispos que
procuravam fazer carreira transferindo-se para dioceses mais importantes e influentes. Tais
bispos seguiam o padrão de funcionários civis e ocorreram casos nos quais epíscopos
buscavam o status de metropolita da própria província até tornarem-se patriarca superior e por
fim patriarca ecumênico da capital.
Além disso, as leis do Império tornaram-se as leis dos cristãos. A unidade da Igreja era
a unidade do Império e este é, conforme Eusébio de Cesaréia em seu Laudes Constantini, a
“imitação do poder monárquico nos céus”. E Constantino é elogiado como alguém “investido
da realeza celeste, com os olhos levantados, governa regrando as coisas daqui debaixo,
segundo a idéia de seu arquétipo” (Laudes Constantini, 5: 3).
O arquétipo, como tipo primeiro, paradigmático, modelar, define aqui que o governo
de Constantino é legítimo por refletir a realidade celeste. A instituição imperial é legitimada
com uma projeção teológica. O império não é apenas protegido por Deus, mas também é uma
realidade divina, portanto a igreja fiel a Deus é fiel ao Império.
Foram várias as obras cristãs que asseveravam sobre o império como reflexo de
realidades celestes, ou estabeleciam alguma relação entre o status quo com o mundo divino.
Dentre estes destacamos: Institutiones diuinae, obra de Lactâncio que, segundo Sachot (2004:
164
159), teve seu título “calcado nos manuais de jurisprudência; De gubernationa Dei, Salvien de
Marseille; A hierarquia Celeste, de Dionísio o Areopagita. Além dessas, o próprio Eusébio
dedica o livro décimo de sua História Eclesiástica para discorrer sobre os benefícios que o
Império concedia à Igreja e interpretava tal situação como a” Paz que Deus nos outorgou
(História Eclesiástica, 10: 155). Também incluem em suas obras várias cópias de cartas de
Constantino pelas quais concedia bens às igrejas, convocando os bispos à concórdia e
isentando os chefes da Igreja de encargos públicos (História Eclesiástica, 4: 5, 7).
Os discursos de Eusébio devem ser compreendidos considerando o lugar que o
referido bispo ocupara na realidade imperial. Um bispo integrado ao grupo hegemônico e
ligado ao imperador. Eusébio está ligado à Grande Igreja, integrada ao modelo estruturante
da ciuitas imperial, nela o cristão é compreendido como ciuis (cidadão) e seu acesso à
salvação é definido nos termos de “direito e deveres” (Sachot, 2004: 160).
Nessa lógica, ser salvo era tornar-se membro da sociedade celeste, e para tanto era
necessária a pertença à cidade cristã. O cristianismo ortodoxo como novo eixo de identidade
romana tem sua noção de respeito escrupuloso pelo instituído interpretado como categorias
teológicas e jurídicas. O que intensifica a importância da unidade da Igreja. Não nos
referimos apenas a coesão religiosa, mas a afirmação de um modelo de realidade social.
Na linguagem de Antonio Gramsci
49
podemos dizer que Eusébio e outros teólogos que
“advogaram” em favor do Império atuaram como intelectuais orgânicos da Igreja imperial.
Nesse contexto, ganha novo fôlego as afirmações outrora feitas por Cipriano, Bispo de
Cartago: “Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe. Como ninguém se pôde
salvar fora da Arca de Noé, assim ninguém se salva fora da Igreja. (A Unidade da Igreja
Católica, VI, 3)
49
Para maior aprofundamento, ver: GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo:
Circulo do Livro, s/d.
165
Tanto Cipriano, quanto Irineu e outros foram lidos para fortalecer a nova dinâmica da
Igreja imperial, principalmente para afirmar que o lugar da verdadeira religião cristã era o
âmbito eclesiástico. A não pertença à Igreja implicava em não pertença à cidade celeste. Tal
marcação simbólica podia definir quadros sociais. Não fazer parte do cristianismo que se
definia como oficial acabou por se tornar um critério de diferenciação social, sobretudo se
levarmos em conta que a cristianização do império envolveu tanto o aumento de privilégios
aos que pertencessem aos quadros da Igreja hegemônica, quanto à marginalização e repressão
a grupos “pagãos” (SILVA, 2006: 258) e cristãos que não fizessem parte das estruturas da
Grande Igreja.
Parafraseando Kathryn Woodward (2004: 14), se grupos cristãos e o-cristãos são
simbolicamente marginalizados no discurso oficial da cristandade, isso terá efeitos reais, pois
os grupos serão socialmente excluídos e terão desvantagens de ordem material. Não era
suficiente reconhecimento pessoal (subjetivo) de Jesus como “o Cristo” para fazer parte da
comunidade cristã, era necessário aderir ao conjunto doutrinário oficial, com a adoção dos
ritos regulamentados e das práticas institucionais eclesiásticas que se formavam. Ao recitar os
símbolos de (o credo) no dia do batismo, o fiel o expressa apenas uma pessoal, mas a
adesão a um corpo institucional.
Adesão a um sistema de significados, no caso ao discurso considerado expressão da
realidade, implicava em o que chamamos de obediência simbólica. Quanto maior a crença na
legitimidade das palavras que justificavam o modelo eclesiástico, maior o poder de
manutenção da ordem no qual se inscreve. Ao fazer ver e crer, ou confirmar uma visão de
mundo, o poder simbólico-estruturante da Grande Igreja mostra-se eficaz a ponto de
conseguir mobilização e reconhecimento.
166
O supracitado apotegma de Cipriano de Cartago passou a ser compreendido em um
aspecto mais amplo no contexto do Império cristianizado, os “infiéis” ou “hereges” podem
sofrer sanções além da condenação ao inferno.
O processo de institucionalização do cristianismo não ficou restrito a uma adaptação
coletiva e exterior, os princípios interpretativos da teologia cristã obedeciam a critérios de
uma institucionalização do pensamento, de modo que podemos falar que a verdade revelada
passa a ser compreendida como verdade decretada (SACHOT, 2004: 163). Isso ocorre
através da seguinte forma de raciocínio: Deus revelou a sua verdade a certos homens,
passando por Moisés e os profetas, encontrou sua plenitude em Cristo cuja mensagem
verdadeira se manteve através dos apóstolos e dos epíscopos e presbíteros que o sucederam.
A tradição e a sucessão tornam-se um princípio institucional que garante qual é a verdadeira
Escritura e como deve ser interpretada. Embora tal discussão tivesse ocorrido no culo II,
agora princípios jurídicos eram definidos a fim de dizer quem poderia oferecer a interpretação
correta dos ensinamentos cristãos. Sachot (Idem: 165) afirma que os textos de Irineu e de
Tertualiano foram utilizados para confirmar a idéia de que a interpretação Escritura e, por
conseguinte, a exclusividade sobre a verdade pertencia à autoridade competente. Segundo os
autores H. Jordan e A. Souter, pesquisadores da Patrística, a tradução latina do Contra as
Heresias de Irineu teria sido feita entre 370 e 420 (final do século IV e início do século V)
50
.
É interessante notar que é neste contexto que a obra poderia ter sido utilizada para reforçar o
cristianismo do Império, o mesmo teria ocorrido com textos de Tertualiano.
Neste caso não falamos apenas no contexto no qual Irineu escreveu
51
, mas indagamos
sobre o contexto em que a obra foi utilizada para reafirmar a diadoché do cristianismo
romanizado. Vejamos: Eis porque se devem escutar os presbíteros que estão na igreja, que são
50
Tais informações constam na introdução a obra de Irineu em sua edição em língua portuguesa: Irineu de Lião.
Contra as Heresias. São Paulo: Paulus, 1995, 11.
51
A polêmica de Irineu se deu por volta de 180 d. C., principalmente contra os gnósticos valentinianos.
167
os sucessores dos apóstolos, como o demonstramos, e que com a sucessão do episcopado
receberam o carisma seguro da verdade segundo o beneplácito do Pai. (Contra as Heresias, 4:
26, 2)
No século IV este texto teria reafirmado a primazia de um grupo cristão e a autoridade
de seus agentes contra grupos que se pretendessem autônomos que ousavam interpretar as
Escrituras de modo diferenciado, sem a mediação dos epíscopos e presbíteros. Sem contar
quando não tinham suas próprias Escrituras.
Além de definir quem pode interpretar os textos reconhecidos, o cristianismo oficial
define o que é a fé ortodoxa e quais são as obras que compõem o cânon. Tal discussão não era
nova, mas é o século IV que ganha maior força a noção de definição canônica do NT,
conforme indica a carta de Atanásio, enviada na Páscoa de 367 aos mosteiros da Tebaida com
os nomes dos textos que compunham o cânon oficial (ROBINSON, 2006: 33).
A partir da ascensão de Constantino em 306 o cristianismo foi sendo abertamente
adotado até que em 391 Teodósio o tornou religião oficial do estado romano. Deve se
considerar a importância do Édito de Milão em 313, contudo cabe aqui uma observação sob o
ocorrido na referida cidade. Roque Frangiotti, em suas notas sobre a História Eclesiástica de
Eusébio (2000: 491), admite que não foi promulgado nenhum édito em Milão. O que teria
ocorrido é que os imperadores teriam se encontrado em fevereiro de 313 para a celebração do
casamento de Licínio com a irmã de Constantino. Ali acertaram sob qual seria política
adotada em relação aos cristãos. Depois disso, Constantino enviou instruções aos
governadores provinciais que prescreviam a devolução de bens confiscados às igrejas e a
isenção do clero dos munera ciuilia. Em junho do mesmo ano, depois que Licínio derrotou
Maximino, mandou que tais decisões fossem fixadas em Nicomédia. Estes rescritos ficaram
conhecidos como Édito de Milão.
168
Mas essa atitude que beneficiava os cristãos não se referia a todo tipo de cristianismo.
No contexto, no qual uma instituição se torna a única responsável pelo discurso sobre Deus,
detentora das Escrituras e de sua interpretação, a idéia de começa a ser identificada com
regra. Ter implica em cumprir o que é normativo, verdades e decretadas pela autoridade
eclesiástica e legitimadas pelo Império. A instituição conciliar será um derivado dessa forma
estrutural. Sobre os concílios como expressão da romanidade cristã, escreve Sachot:
“Eles foram precedidos por assembléias (sínodos), reunindo, por sua iniciativa,
os bispos de várias igrejas, a fim de debater questões comuns e decidir medidas
disciplinares, como a excomunhão, isto é, falando de comunidades, a mesma
condenação que infringiria a um cidadão, privando-o totalmente de seus direitos
cívicos e banindo-o. Uma igreja excomungada não pode transmitir a salvação.
Ela própria fica privada dessa salvação. Mas, a unificação (parcial) das Igrejas na
unidade do Império, sob a autoridade do imperador, leva este, verdadeiro
representante de Deus na terra, a convocar o conjunto dos bispos em uma
assembléia geral (chamada concílio ecumênico), a presidir os debates, a
sancionar os atos dessa assembléia como leis do Império e a fazer executar as
decisões dela. A verdade é decretada, se é permitido associar esses dois termos,
no entanto, contraditórios. Mas tal é a definição da ortodoxia. Esse status de
verdade transforma imediatamente um desentendimento doutrinal entre bispos
em ruptura institucional: uma heresia se torna cisma” (SACHOT, 2004: 166-
167).
Esta hipótese sobre o cristianismo romanizado ganha força ao nos recordarmos que
conceitos metafísicos se revestem das noções jurídicas da latinidade, dentre os primeiros o
conceito de physis ao ser traduzido para natura, teria sofrido uma sobredeterminação
institucional (RESWERBER, 1989: 80).
O que queremos apontar com tais considerações é que no contexto de romanização do
cristianismo e cristianização da romanidade, um dos resultados desta interação é que
definições e decisões teológicas ganham status institucional, expressando um discurso de
poder. A linguagem religiosa deste cristianismo ortodoxo e oficial é um sistema simbólico
que define uma identidade cristã hegemônica, logo os grupos cristãos destoantes como os
cristãos gnósticos, por não se enquadrarem serão excluídos, alvo de violência simbólica. No
caso das definições cristológicas, não está em jogo apenas definições de fé de pessoas em
comunidades, mas dizer quem tem a definição correta sobre Cristo, sobre seu mito fundante
169
que expressa neste caso o discurso de poder sobre os demais grupos. Tal discurso defende a
vantagem de uma posição do grupo hegemônico. Por isso é que, com dizia Paul Veyne (1983,
45), acreditar nas decisões oficiais implica em obediência a fala oficial e a seus
pronunciadores. Na medida em que um cristianismo organizou seu corpo de especialistas da
verdade, sua autoridade o podia aceitar concorrentes. Os mitos fundantes, as Escrituras e
demais sistemas discursivos não estão deslocados de lugares sócio-políticos. A identidade do
cristianismo romanizado corresponde a um modo de relação com o mundo, sendo vínculo de
uma concepção de sociedade. Crer diferente tornar-se desobediência, ser herege ou
heterodoxo implica em rebeldia o que faz do desobediente uma ameaça a verdade instituída
ma medida em que este forma um grupo de resistência. Aline Coutrot, em sua reflexão sobre
religião e política, embora analise um período diferenciado, contribui teoricamente para
elucidar essa perspectiva: A existência de subculturas cristãs que veiculam diferentes
concepções da sociedade e predispõem a realizar escolhas sociais e políticas é prenhe de
conseqüências para explicação histórica (COUTROT, 2003: 339).
Para a modalidade de cristianismo imperial, as figuras do imperador e do bispo se
tornam paradigmáticas, um legitimava a autoridade do outro. O imperador tomou para si a
obrigação de defensor da religião cristã e tal poder, através da convocação dos bispos, podia
definir qual credo cristão deveria prevalecer, afirmando assim o que seria a ortodoxia. O
historiador João Pedro Caetano, ao discorrer sobre as relações sobre Império e Igreja, defende
que a unidade desta presta serviço à integridade imperial. O Império compreendia-se com
moldes cristianizados. “A ideologia do poder imperial era proveniente do classicismo romano
e tinha sido profundamente remodelada pela cultura cristã e helenística do Império do
Oriente. Os antigos soberanos romanos divinizados cederam lugar ao imperador cristão
escolhido por Deus” (CAETANO, 2001: 161).
170
Os rituais da corte constantiniana eram cerimônias religiosas, muitas se realizavam em
igrejas. Estes serviam como meio de demonstrar a relação do imperador com Deus, um
símbolo deveras poderosos de afirmação do modelo social. A Glória Imperial refletia a
Glória de Deus que por sua vez legitimava a primeira. O cristianismo organizava
simbolicamente o poder, ajudando ao imperador na implementação de sua política. Uma
figura revestida de sacralidade e, portanto de legitimidade (Idem: 163, 164).
No caso do bispo, como afirmamos, este ganhara status de praefectus, sinal de que
tinha grande influência na esfera política. Além do imperador, os bispos passaram representar
a ordem eclesiástica e civil. Tanto que a hierarquia da igreja oficial estava entre as elites
palacianas. Os clérigos eram com freqüência convidados à participação em cargos estatais. O
bispo tornara-se o protetor da cidade, podendo supervisionar questões de ordem estatal,
administrativa e financeira. Além de ser o responsável da ortodoxia doutrinal, que de certo
modo também estava a serviço do império (Ibidem, 165). Uma lei decretada em 318/321 (?)
obrigava os juízes imperiais a reconhecerem a jurisdição episcopal (SILVA, 2006: 255). A
busca por maior espaço de poder levou bispos a conflitos entre si e, às vezes, com o próprio
imperador, razão pela qual este último procurava controlar as eleições episcopais.
Com a transferência da corte da recém criada Constantinopla intensificou a relação
entre Igreja e Estado, e isso ocorre bem antes da ação de Teodósio que torna o cristianismo a
religião exclusiva do Império. Podemos dizer que Estado e Igreja (oficial) não podem ser
separadamente definidos, o que também não significa a ausência de conflitos. Por esta razão,
Constantino interfere diretamente nas disputas entre grupos cristãos sobre desacordos de
ordem disciplinar e doutrinária (Idem, 257).
A figura de Constantino foi considerada por historiadores enigmática e fascinante
(SIMON & BENOIT, 1987: 307). Sobretudo quando o assunto volta-se para a pergunta sobre
se ele teria se convertido ao cristianismo ou tudo seria uma estratégia política. Para nosso
171
trabalho, tal indagação soa um tanto subjetiva, que não com afirmar sobre a sinceridade ou
a ausência dela na opção do imperador. Por outro lado, embora consideramos aqui as
implicações sócio-políticas de opções religiosas, o seguimos um postulado que entenda os
grupos cristãos como se usassem o cristianismo como máscara para intenções políticas. Para
nós, religião na Antigüidade não ignora aspectos políticos e econômicos, como considera os
pressupostos ocidentais modernos que separaram tais dimensões. Em sociedades tradicionais
não se separa dimensão religiosa da vida econômica e política (HORSLEY, 2004: 14).
É muito difícil, senão impossível, definir as intenções subjetivas de Constantino, mas
observamos que em outubro de 312, após a derrota de Maxêncio, ele entra em Roma com um
imperador cristão se recusando a sacrificar a Júpiter Capitôlino pela vitória, contrariando a
tradição (BARNES, 1981: 44).
Helena, mãe de Constantino, intitulada Augusta em 324, peregrina até a Palestina em
326 visando restaurar lugares sagrados para os cristãos e, sob os custos do estado constrói
igrejas. Santuários e basílicas eram patrocinados pelo governo imperial, seus funcionários
eram instruídos a utilizar nas atividades os fundos públicos. Tais construções representavam a
piedade do imperador como um novo Moisés (SILVA, 2006: 256). Dentre as várias
construções erigidas contamos: San Lorenzo Fiori de Mura, San Giovanni in Laterano, Santa
Croce in Gerusalemme, São Pedro, Santo Sepulcro (em Jerusalém); Igreja da Natividade (em
Belém) e Igreja dos Santos Apóstolos (em Constantinopla) (Idem).
Eusébio de Cesaréia foi amigo de Constantino, além de sua famosa História
Eclesiástica, suas contam com uma biografia do referido imperador muito próximo do estilo
hagiográfico.
Os Concílios Ecumênicos como o de Nicéia, foram compreendidos como meios de
buscar a unidade da Igreja, mas também refletem a preocupação imperial com a segurança do
Império, por isso a necessária concórdia entre grupos cristãos de disputam a ortodoxia. É
172
neste quadro que compreendemos a controvérsia ariana. Diferente do gnosticismo, o
arianismo contava com figuras poderosas do Império cristão. Richard Rubenstein (2001: 100)
refere-se ao Concílio de Nicéia como uma disputa entre os vencedores sobre como deveria ser
o Império Cristão. O próprio Eusébio de Cesaréia estava mais para ariano do que para niceno
(Idem, 104). Muitos bispos que em principio concordaram com o presbítero Ário, depois o
abandonaram, mesmo entre alguns que continuaram partidários de suas idéias, desvincularam
sua teologia ariana da figura do presbítero, a fim de afirmar suas posturas hierárquicas como
bispos. Rubenstein recorda a referência feita por Atanásio sobre esses bispos:
“Jamais fomos adeptos de Ário (pois como nós, sendo bispos, seguiríamos um
presbítero?) ou aceitaríamos qualquer forma de fé diferente da que tínhamos
estabelecido deste o início; nós nos aproximamos mais dele como investigadores
e juízes do seu credo do que como seus sectários.” (Idem, ibidem: 172)
O Concílio de Nicéia foi convocado por Constantino para em princípio se realizar em
Ancara, contudo o imperador mudou o local para sua residência de verão em Nicéia, próximo
de Nicomédia. Apesar dos tumultos que tal decisão causara o encontro teve início no final de
maio de 325 como combinado. O Concílio foi presidido por um bispo ocidental, o espanhol
Ósio de Córdoba. Acredita-se que, além dele, apenas dois presbíteros vindos de Roma,
participaram do concílio representado o Ocidente (ALBERIGO, 1995: 25). A participação
majoritária foi do Oriente. Na verdade, quem usou o termo para designá-lo “ecumênico”
foram Eusébio de Cesaréia em sua Vita Constantini (III, 7) e Atanásio na Apologia de sua
fuga (7, 2).
O concílio ficou conhecido como Concílio dos 318 padres, conforme Hilário de
Poitiers (Idem).
As discussões acerca da divindade de Cristo, ponto central da questão ariana, eram
acompanhadas de questões sobre a autoridade dos bispos, e a superioridade de Alexandria,
173
Roma e Antioquia, sob o restante do mundo cristão. Além disso, questões aparentemente
periféricas como a data da Páscoa também fizeram parte das reflexões conciliares.
A abertura do Concílio de Nicéia teve um caráter de oficialidade imperial. Constantino
foi recebido com um discurso proferido por Eusébio de Cesaréia que referia-se ao Imperador
como Salvador dos cristãos (Rubenstein, 2001: 104). Após a acolhida, Constantino
52
fez um
discurso em latim, que foi traduzido para o grego e foi entregue aos bispos. Esta etapa do
evento ocorreu no grande salão do palácio, local de julgamentos.
A forma como Constantino estava trajado também refletia o perfil da reunião. Vestia
púrpura e usava a coroa imperial. Sua presença dessa forma era um sinal de que Império e
Igreja estavam agora intimamente ligados, portanto os conflitos teológicos não podiam
ameaçar a integridade imperial.
As disputas religiosas sobre o poder episcopal, a data da Páscoa e a divindade de
Cristo o definiam uma questão de fé ou teologia, mas também quem teria no final o
poder sancionado pelo Estado romano. E uma vez que um grupo saísse vencedor, os
divergentes que não aderissem às decisões conciliares poderiam ser combatidos, não mais
como correligionários que pensavam diferente, mas como pecadores impenitentes: como
indivíduos corruptos, malévolos, e até mesmo satânicos (Idem: 116).
As disputas se arrastaram por anos, mesmo depois do término oficial do concílio
53
levando as deposições e readmissões de bispos e presbíteros arianos e não arianos.
A figura do Jesus histórico agora era bem distante, a forma de interpretar sai vida o
era padronizada nem entre os ortodoxos e nem entre grupos heterodoxos. Mesmo entre os
gnósticos, a interpretações variavam muito. Por trás da multiplicidade de imagens de Jesus
encontramos muitas perspectivas sócio-culturais, nascidas da interação das várias mensagens
52
Constantino tinha grande fluência em grego, entretanto parece que tinha dificuldade em fazer um discurso
formal que não fosse em latim.
53
Não se sabe com precisão a data em que o Concílio de Nicéia terminou. Conforme as atas do Concílio de
Calcedônia em 451, a conclusão teria se dado em 29 de junho de 325 (ALBERIGO, 1995: 44).
174
cristãs com os meios pelos quais passaram. Já por trás das disputas sobre a verdadeira
condição de Cristo encontramos, não somente, mas também as busca pelo empoderamento do
grupo que bateria o martelo” sobre a verdade cristã com sanção imperial. Podemos supor as
razões pelas quais a discussão teológica por vezes privilegiou uma visão de Cristo que
reafirmava a condição de regente poderoso e justo ao invés da imagem de um advogado e
amigo:
“Cada lado enfatizava uma imagem enquanto fingia desconsiderar a outra, a cada
lado era prisioneiro de seus medos de que o outro estaria tentando suprimir o
“seu” Jesus. Enquanto Atanásio denunciava os arianos por tentar diminuir Cristo
até um ponto tal que a sua majestade e o seu poder de salvação desapareceriam;
os arianos por outro lado acusavam Atanásio e Marcelo de elevar Cristo a um
ponto tal que seu amor (e a majestade de Deus) desapareciam” (RUBENSTEIN:
182).
Os discursos religiosos não planam no vazio, eles refletem projetos de vida, de
sociedade e de poder. Sobretudo num conflito entre bispos membros da corte. Em nossa
opinião, o Concílio de Nicéia fio uma disputa entre poderosos defendendo um modelo de
religião que iria dizer como deve ser enxergado o mundo, a sociedade cristã. Como deveria
ser à religio romanae e quais os paradigmas deveriam ser seguidos para mostrar o
escrupuloso respeito para com o instituído. Os concílios são para o nosso trabalho mais um
indício da cristianização da romanidade e da romanização da cristandade.
Quando o governo apadrinhou um grupo cristão, começou a torná-lo universal, e seu
universalizador, o imperador Constantino, garantiu para a Grande Igreja, não apenas os
mesmos privilégios que outrora era concedido ao sacerdócio “pagão”, como garantiu-lhes
outros privilégios adicionais. Portanto, era necessário definir os postulados da Igreja
universalizada. E por isso discordar das doutrinas definidas era discordar do estado também.
Em dezembro de 361, uma rebelião em Alexandria levou cristãos atanasianos a
atacarem a prisão da cidade e lincharem o bispo ariano Jorge da Capadócia que tinha sido
preso após a morte do imperador Constâncio II, de tendência ariana. A depender da orientação
175
do imperador, o poder era distribuído entre partidários de Atanásio ou de Ário. Tal
acontecimento foi registrado no século V na História de Akephala (Apud RUBENSTEIN,
2001: 21).
Atanásio estava em um e seus exílios, mas mantinha relações com seus seguidores em
Alexandria e com bispos de outros locais, dentre os quais, o bispo de Roma. A controvérsias
sobre o fato de Atanásio ter sido o verdadeiro incentivador das ações contra Jorge, contudo
ele teria tido participação indireta. A após a morte do bispo ariano, Atanásio retornou
vitorioso a Alexandria. Este combativo bispo de Alexandria não ficou conhecido pelo que
escrevera para defender suas posições, Rubenstein refere-se a ele com um adversário que
tomou atitude de algoz e Barnes, em sua obra Constantine and Eusebius, fala de sua forma de
articulador que lhe rendeu um poder tão grande sobre Alexandria que, sempre que quisesse,
poderia instigar revoltas e comprometer a organização administrativa da cidade (BARNES,
1981: 230-231).
Atanásio passou à história eclesiástica como um dos maiores e mais ilustres padres e
doutores da Igreja, Conforme afirma Frangiotti em sua introdução às obras de Atanásio
(2002: 9). Como defensor do Credo de Nicéia, advogava em favor do dogma da
consubstancialidade entre o Pai e o Filho, o que lhe valeu o título de pilar da ortodoxia
(Idem).
Atanásio viveu entre 295 e 373, versado em língua copta e grega, tornou-se cristão por
volta de 17 anos. Cresceu em Alexandria num local onde viviam cristãos partidários dos
viriam a ser a ortodoxia, mais também cristãos melecianos, judeus, adoradores da divindade
greco-egípcia Serapis, maniqueus e gnósticos. Foi acolhido quando jovem pelo Alexandre que
mais tarde o escolheria para sucede-lo no trono de São Marcos. Era apenas um homem de
estatura baixa, de cabelos ruivos, que lembrava mais uma criança (RUBENSTEIN, 2001: 89).
176
Quando se iniciou a controvérsia ariana, Alexandre reuniu um sínodo em 320 através
do qual condenou o presbítero Ário. Nisto Alexandre foi incondicionalmente apoiado por
Atanásio, seu diácono. A principal idéia defendida era que o Verbo não fora criado e essa
deveria ser a fé ortodoxa. Por essa razão aplicou-se o termo grego homoousios
54
.
Antes de morrer, Alexandre indicou Atanásio para substituí-lo no episcopado de
Alexandria, o que teria ocorrido em 328. A sagração foi reconhecida e homologada por
Constantino (FRANGIOTTI, 2002: 13). Não tardou a perseguir os arianos, melecianos, alguns
de seus correligionários e os gnósticos. Seus conflitos, inclusive com os imperadores
Constâncio, Juliano, Valente e o próprio Constantino, lhe custaram cinco exílios.
O lugar sócio-político a partir do qual precisamos compreender Atanásio bem como
seu discurso, difere de Eusébio de Cesaréia. Enquanto Eusébio era mais próximo de
Constantino, a ortodoxia de Atanásio e seu poder floresceram da forma como se articulou na
sociedade alexandrina e de seus contatos com outros bispos aliados. Todos com influência no
império. Para alcançar seus objetivos, considerava a possibilidade de usar todos violentos.
Na questão dos melecianos (um grupo considerado cismático por não se submeter ao bispo de
Alexandria Pedro, foi liderado por Melício de Licópolis que considerava o bispo um vacilante
da cristã por ter fugido de uma perseguição ocorrida em 303) Atanásio chegou a enviar
seus adeptos nas regiões coptas em que houvesse presença meleciana para que surrassem e
matassem cristãos melecianos. Além disso, conseguiu que seus adversários políticos fossem
excomungados, amaldiçoados, espancados, raptados, intimidados, aprisionados e exilados
(RUBESNTEIN, 2001: 24 e 136).
Em uma ocasião, Atanásio vistoriava a região de Mareólis, e nessa região egípcia
atuava um cristão copta chamado Isquiras, que era partidário de um cristianismo minoritário
54
Homoousios: significa da mesma essência ou substância. A expressão era usada para defender que Jesus Cristo
era Deus, das mesma substância que o Pai. Tal palavra encontra-se na versão grega do Credo Niceno-
Constantinopolitano. Sobre isso ver: A Confissão da Apostólica: Documento de Estudo da Comissão de e
Ordem do Conselho Mundial de Igrejas. São Paulo: Ciências da Religião & Conic, 1993, 21-22.
177
desqualificado pela sede alexandrina. Ao saber de sua atuação, o pilar da ortodoxia enviou
um de seus representantes, Macário, para proibir-lhe a ação. Macário invadiu o local de
reuniões (uma igreja), virou os móveis, agrediu Isquiras e quebrou um cálice usado na
eucaristia. Diante da acusação de violência e sacrilégio (a quebra do cálice), Atanásio
defendeu-se dizendo que o havia ocorrido nenhum ato sacrílego, apenas violência. Ou seja,
por não reconhecer Isquiras como clérigo legítimo, quebrava o cálice não era sacrilégio. Mas
não negou os atos de violência contra o sacerdote copta (Idem, 144). Mesmo assim, diante de
todas as acusações, Constantino, após conversa com Atanásio, reafirmou apoio ao mesmo
dizendo ser ele um verdadeiro homem de Deus (BARNES, 1981: 232).
Mesmo com os exílios Atanásio não perdia nem o poder e nem o prestígio, mais ao
contrário, era capaz de manter o controle à distância. Exilado fora do Egito, ou apenas fora de
Alexandria, transitando na região da Tebaida, mantinha-se no poder. Em suas viagens ao Alto
Egito desatou perseguição ferrenha aos grupos gnósticos cristãos, retomando princípios
constantinianos que os considerava ilegais e deveriam ser definitivamente suprimidos.
É neste quadro conflituoso que afirmar a verdade religiosa implicava em afirmar
também a legitimidade de um poder e de uma realidade, que se situam as obras de Eusébio de
Cesaréia e do próprio Atanásio de Alexandria. Mas também é este o contexto em que os
textos que compuseram a Biblioteca de Nag Hammadi possivelmente teriam circulado no
Alto Egito.
Apesar dos conflitos, os discursos religiosos da ortodoxia firmavam o poder imperial
(FUNARI, 2002: 132), bispos administravam cidades, perseguiam “pagãos” e hereges”. A
estrutura de símbolos do cristianismo ortodoxo estruturava um modelo de sociedade na qual o
Império Cristão desqualificava as falas divergentes. Se pensarmos que esta estrutura
estruturada objetivava o universo a partir da afirmação de um universo simbólico cristão, no
qual Deus Pai Todo-Poderoso criara o céu e a terra, e que, através do imperador Constantino,
178
trouxera paz aos súditos do poder romano, com dissera Eusébio referindo-se aos cristãos;
pensar o universo, suas origens, a natureza do Império, de Deus e do próprio cristianismo, de
modo distinto, implicaria numa outra forma de realidade. E se os gnósticos eram tão pouco
significativos, por que persegui-los por apresentarem cosmovisões diferentes?
O monaquismo, o anacoretismo, o encratismo eram vistos como posturas de
resistência e de grande influência. Veilleux (1984: 275-294) apresenta relações do
gnosticismo com grupos que defendiam os supracitados modos de vida. Para nós está
vinculado a essa problemática uma das principais razões pelas quais Atanásio se apresentava
como discípulo de Antão e reivindicava ter a fala legítima sobre a vida monástica. Isso indica
conflitos com grupos heterodoxos do monaquismo, os quais eram de tendência gnóstica.
3.3 Conflitos de Realidades: Resistência mito-prática do cristianismo
gnóstico
Sobre a idéia de que discursos míticos, pensados aqui como relatos fundadores do
mundo, ou de uma instituição ou grupo, possuem aspectos com vistas a definir modelos de
realidades, relembramos um exemplo tirado de John Dominic Crossan em sua obra. O
nascimento de Virgílio ao ligar a história de Augusto às narrativas míticas da Ilíada de
Homero.
Na Ilíada, após Aquiles ter matado o troiano Heitor, Príamo, o rei de Tróia e pai do
morto, persuade Aquiles a entregar-lhe o corpo para o digno sepultamento. O final da história
se fá com o banquete em honra a Heitor. Crossan (2004: 22) diz:
“[...] onde termina a Ilíada de Homero, começa a Eneida de Virgílio. Júlio César
foi assassinado em março de 44 a.C., porque republicanos aristocratas pensaram
que ele planeja a autocracia. Otávio, seu filho adotivo e herdeiro legal, de 19
anos, divinizou César em janeiro de 42, denotou Antônio e Cleópatra em
179
setembro 31 e foi declarado Augusto em janeiro de 27 a.C.. Otávio era também
Pacificador, Benfeitor, Salvador e Filho de Deus. Era até senhor do próprio
tempo, de modo que o dia de seu aniversário, 23 de setembro, passou a ser dia de
Ano Novo na província romana da Ásia Menor porque, nas palavras desse
decreto relativo ao calendário [...] , o dia do nascimento de nosso deus assinalou
o início da boa-nova (euaggelion) para o mundo, por causa dele [...] Agora ele era
o que César poderia ter sido, autocrata supremo, ainda que chamado por qualquer
nome que fosse escolhido para disfarçar esse fato óbvio. No entanto, nem
divindade, nem poder haviam sido suficientes para proteger César do assassinato.
O que Augusto precisava (para solidificar as legiões e o poder que agora ele tinha
era de artista da propaganda. A Eneida de Virgílio é ótima poesia. É também
ótima propaganda.”
“Ela narra a história do povo romano, em especial a do clã juliano até César,
Augusto e suas famílias. Porém tudo começou muito antes disso, com o troiano
Anquises e a deusa grega Afrodite. Enéias é filho humano-divino ou mortal-
imortal dessa união e é a que ele Heitor aparece com os grupos dentro dos
muros da cidade condenada ( [...] )
Enéias, “filho da deusa”, foge de Tróia, levando consigo o pai, Anquises, e o
filho, Iulo. Eles chegam, por fim, à Itália [...] O poema unia o céu e a terra, ligava
Tróia a Roma e atribuía ao povo romano e ao principado augustano origem
divina e destino mítico.”
A longa citação de Crossan serve-nos para retomar o que Peter Burke, baseando-se em
Malinowski, reflete sobre o mito como história com funções sociais (BURKE, 2002: 141).
Recontar as origens do universo, ou do movimento cristão, seja nos textos de Eusébio
de Cesaréia e Atanásio, seja nos textos de Nag Hammadi (respeitada a sua diversidade) são
um recurso de afirmação da identidade do grupo, como também a apresentação de um modelo
de mundo.
Eusébio fala da Igreja sob Constantino como conseqüência da obra de Deus em Cristo
que pré-existe desde a eternidade (História Eclesiástica, 1: 2, 7ss). Logo o Império Cristão é
um desdobramento da vontade de Deus no mundo por ele criado Atanásio conta para os
monges de Tebaida em seu Vida de Antão”, como era o anacoreta que se tornou o pai dos
monges. Sua aretologia definia como devia ser o verdadeiro monge, e ele era fiel à ortodoxia,
logo vozes destoantes do monaquismo seriam infiéis à sua condição se não aceitassem os
postulados da ortodoxia alexandrina.
De igual forma, os textos gnósticos que s e referem à origem do mundo ou do
cristianismo de uma forma diferente e “heterodoxatambém estariam veiculando identidades
180
diferentes e apresentando um universo simbólico que atuava como vetor de resistência a
Grande Igreja. Por exemplo, a Hipóstase dos Arcontes, texto gnóstico de orientação sethiana,
fala da criação como obra dos Arcontes (Soberanos), “autoridades da escuridão”, liderados
por Samael, o “deus dos cegos” (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 145-146). Também
chamado de Ialdabaoth é identificado com o Deus criador ou Deus de Israel. De modo similar
esta história se repete em Sobre a Origem do Mundo e no Apócrifo de João. Este mundo é mal
por ser obra do demiurgo, oude seres “demoníacos” malévolos, que não são o verdadeiro
Deus embora aleguem sê-lo. O texto valentiniano O Evangelho da Verdade refere-se à origem
do mundo como resultado da ignorância sobre a verdadeira divindade (Biblioteca de Nag
Hammadi, 2006: 50). Embora não sejam idênticos estes textos correspondem a visões que não
aceitam a concepção defendida pela ortodoxia que se constitui como discurso hegemônico
sobre o cristianismo.
Concordamos com Elaine Pagels (1979: 66) quando considera a hipótese de que ao
associar o Deus criador a Ialdabaoth e rejeitá-lo, os cristãos gnósticos estão rejeitando os que
falam em seu nome e rejeitam também todo seu modelo de realidade.
Pelo alcance da gnose, os cristãos gnósticos defendem que o Deus que todos
conhecem como criador não passa de um maldoso demiurgo e a hierarquia que exige sua
sujeição o passam de seguidores do deus dos cegos. Não aceitar as decisões de Atanásio
poderia ser uma forma de enfrentar o demiurgo e vice-versa. Como diz Pagels, “a gnose
oferece nada menos do que uma justificação teológica para as pessoas se recusarem a
obedecer aos bispos [...]” (Idem, 67).
Mircea Eliade recorda que os gnósticos, pela gnose descobriu a libertação deste
mundo e, portanto, se julgavam livres das leis que governam a sociedade (ELIADE, 1983:
143) e é preciso lembrar que, quando nos mitos de origem o mundo surge ou é criado, a
sociedade é um dos elementos que dele emerge. Falar deste mundo como algo mal, implica
181
em justificar a resistência perante os que o governam. Assim, rejeitar o criador deste mundo é
o mesmo que declarar liberdade frente aos poderosos que em nome dele governam.
Tanto no Apócrifo de João quanto no Evangelho da Verdade, ou ainda no Evangelho
de Tomé, Jesus é apresentado de modo diferente do Jesus da ortodoxia. Jesus é o mestre
revelador que auxilia os humanos a ser libertarem pela gnose. Além da própria origem do
mundo, os mitos fundantes do movimento cristão são contatos sob outros olhares, nisto
repousava a autodefinição da identidade dos cristãos gnósticos, que não se viam como hereges
nem ilegítimos.
Se for verdade o que diz Pagels acerca das implicações políticas das idéias religiosas
(PAGELS, 1979: 67), a estrutura de símbolos presente em textos gnósticos veicula práticas
sócio-religiosas questionadoras da verdade apresentada pelo universo simbólico do Império
Cristão, que por sua vez definia seu padrão de realidade e de práticas políticas e sociais.
Discordar do discurso mítico e também político era desobedecer e ao mesmo tempo relativizar
um modelo de mundo. Jameson (1981: 79) influenciado pela antropologia de Levi-Strauss,
discorre que todas as culturas são produtoras de discurso mítico sobre realidades sociais
expressando em seu discurso uma espécie de inconsciente político. Ancorado neste
pensamento o exegeta Ched Myers reflete que a luta entre grupos é assim articulada [...] com
sendo “guerra de mitos (MYERS, 1992: 40). A partir disso, acreditamos que os discursos
míticos podem reafirmar ou questionar realidades sociais. O discurso do grupo hegemônico
(mesmo que este vivesse em conflito interno) que tanto Eusébio como Atanásio fizeram parte,
reafirma como modelo de realidade aquela baseada no cristianismo da verdade instituída,
adotado pelo novo Império romano cristão, ao passo que o discurso apresentado (ainda que de
modo não uniforme) pelos mitos gnósticos representa uma realidade que, embora sem chance
de vencer, atua como horizonte de resistência destes grupos periféricos frente às imposições
do centro cristão oficial. Os mitos gnósticos seriam então propostas de contra-realidades.
182
Utilizando as idéias James Scott, apresentadas na obra Domination and the Arts off
Resistance, consideramos a obra de Eusébio de Cesaréia História Eclesiástica, assim como a
Vida de Antão de Atanásio como transcritos públicos do cristianismo que definiu sua própria
centralidade demarcando no imaginário por meio de suas definições dogmáticas a fronteira
com as expressões cristãs periféricas. O mesmo vale para outros textos da Patrística evocados
para reafirmar a legitimidade do grupo ortodoxo. Usando as mesmas idéias do supracitado
pesquisador, consideramos os textos da Biblioteca de Nag Hammadi como transcritos ocultos
de grupos cristãos cuja identidade era diferenciada do padrão que se impunha, e sua forma de
resistência se dava por meios míticos a partir de uma realidade marginal.
Nas conflituosas relações de poder entre o grupo dominante e os dominados, o
comportamento e o discurso dos gnósticos cristãos, possivelmente de vida monástica, que
viviam no deserto egípcio no século IV, tornaram-se alvo de coação. Enquanto os discursos
(textos e outras representações) oficiais dos bispos guardiões das cidades e dos paradigmas do
Império, bem como obras produzidas a partir desse locus, refletem o pensamento a partir da
hierarquia, do corpo de oficiais da verdade. Os grupos marginalizados criavam estruturas de
significados que atuavam como crítica social e resistência pelas costa de seus opressores. A
esta atitude Horsley (2004: 59) chamou de formas ocultas de resistência. Assim, pensamos o
cristianismo (ou cristianismos) por trás da versão copta dos textos de Nag Hammadi como
transcritos ocultos de um cristianismo periférico.
A vida ascética também pode ser um meio de resistência. Embora não seja exclusiva
dos grupos gnósticos, os textos destes, como maior ou menos intensidade, defendem tal
postura como renúncia ao mundo. Sobre isso reflete o texto gnóstico O Testemunho da
Verdade que apresenta o pensamento do mestre asceta gnóstico Julius Cassianus (Biblioteca
de Nag Hammadi, 2006: 389).
183
Deserto e vida encratista eram meios de compreender-se livres, sinais da concretização
de ideais ascéticos. Crossan (2004: 306-307) refere-se a uma escatologia ascética presente no
Evangelho de Tomé, que entendemos aqui como uma redação gnóstica. O que nos interessa na
contribuição de Crossan é que escatologia é compreendida como negação do mundo:
“A escatologia é um das grandes e fundamentais opções do espírito humano. É
um não profundamente explicito ao sim profundamente implícito com o qual
costumamos aceitar as circunstâncias normais da vida, os pressupostos da cultura
e os dissabores da civilização. É negação ou rejeição do mundo, básica e
incomum, oposta à afirmação ou aceitação do mundo igualmente básica, porém
mais comum” (Idem: 301).
Para o autor a escatologia pode referir-se ao futuro próximo ou longínquo, ao presente
ou ao iminente, pode ser também consumada ou realizada, mas sua característica fundamental
é que ela nega um mundo, uma realidade e seus poderes de conservação. Considerando isso, o
pesquisador do primitivo cristianismo, alude a uma escatologia ascética, esotérica, secreta,
oculta (Idem: 311). Baseados nisso acreditamos que o gnosticismo era possuidor de uma
espécie de escatologia ascética esotérica, que não apenas em Tomé, mas também em outros
textos de Nag Hammadi negam, motivados pelo conhecimento revelador o mundo-sociedade
em que se insere. A salvação vem da gnose, o autoconhecimento e conhecimento de Deus, e
os que conhecem a si a Deus seriam os mesmos que renunciaram à vida sexual, ao dinheiro e
um tipo de convivência social (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 387-389). O conhecimento
secreto vivenciado na prática ascética revela o caminho correto para Deus. Perguntamos então
qual mundo é rejeitado. Ao rejeitar o mundo rejeita-se sua realidade como falsa e afirma-se
uma outra realidade cujo prenúncio se realizava em uma vida de ascese gnóstico no deserto.
A gnose inspirou várias escolas de pensamento baseando-se em um conhecimento
secreto que conduziu a uma visão negativa do mundo, tal compreensão conduziu grupos a
práticas sociais de negação do mundo e à rejeição da legitimidade dos poderosos que o
governavam, mesmo que os poderosos governantes dissessem ser cristãos legítimos, legados
184
por Deus sobre a verdadeira e Grande Igreja. Se a experiência de mundo dos gnósticos
mostra-o como ruim, é preciso a expectativa para fora desta realidade tida como enganosa.
Assim como tradicionalmente grupos apocalípticos projetam para o futuro o fim deste mundo,
fazendo deste paradigma escatológico sua crítica social (BROOK & GWYNTHER, 2003:
264; 316ss), o gnosticismo, para criticar as realidades atuais em sua estrutura fundamental,
volta-se a um passado mítico. Ele recua a este passado para encontrar seu modelo perfeito de
realidade que será também um elemento crítico para o mundo presente: Jesus disse: “Se lhes
disserem: De onde vieram?;digam-lhes: Viemos da luz, do lugar onde a luz surgiu por si,
estabeleceu[-se]e apareceu em sua imagem”(Evangelho de Tomé: 50).
Ir para as origens do mundo para questionar as estruturas da realidade, ou melhor, se
reportar às origens para criticar uma sociedade também pode ser observado em outras
tradições. Por exemplo, Marshal Sahlins (2003: 78ss) oferece uma interessante reflexão sobre
isso, conforme tratamos em nosso primeiro capítulo.
Essa escatologia que, segundo Stevan Davies (Apud CROSSAN, 2004: 309) pode ser
chamada de protologia, o que implica em negação do mundo de modo radical a partir de uma
reflexão sobre os começos. Mas uma questão a ser esclarecida, os textos de Nag Hammadi
foram escritos em grego em um contexto anterior ao século IV. Contudo para nós eles
interessam na sua versão copta conforme foram encontrados. Mais do que a forma de
composição original interessa-nos pensá-los como foram lidos dentro de um horizonte
gnóstico, mesmo que originalmente não fossem produções do universo do gnosticismo
55
.
Estes textos eram instrumentalizados para fortalecer uma prática ancorada na idéia de
uma ascese esotérica baseada no conhecimento, isto é, na gnose. Baseada em uma sabedoria
secreta, esta escatologia protológica negava o mundo governado pelos servidores do
55
Na Biblioteca de Nag Hammadi existem textos que sabemos não serem de origem gnóstica, um caso
significativo é o do fragmento da República de Platão em um dos códices.
185
demiurgo (os bispos), e por meio do encratismo propunha-se retornar a condição andrógina
das origens, conforme se pensava ter sido o estado do mítico Adão.
Acreditamos que esta compreensão mítica pode ter motivado práticas anacoréticas na
qual a fuga do mundo rumo ao deserto tratava de um rompimento com uma estrutura social
legitimada pelos mitos fundantes de centros de poder. Nós inserimos a Biblioteca de Nag
Hammadi neste contexto de reflexão, embora seja difícil apontar elementos gnósticos na
literatura monástica e anacorética tradicional, sobretudo porque esta foi organizada e
estabelecida num período posterior. Apenas as lendas e apotegmas pudessem confirmar a
ortodoxia eram levados em conta (ROBINSON, 2006: 32). Manuel Riu, historiador
eclesiástico, conta que um monge chamado Paládio da Galácia escreveu em 419 d. C. uma
obra intitulada História Lausíaca. Esta narra a história de muitos monges anacoretas dos
desertos da Mesopotâmia, Palestina, Síria, Galácia e Egito (RIU, 1967: 30). A obra em
questão quase padronizou o monaquismo dando a ele uma ortodoxia uniforme até no que diz
respeito às vestimentas monásticas. Tal texto tornou-se um clássico e refletia, senão
influenciava, obras sobre a ascese monástica. Este é um testemunho de como, ao ler a história
do monaquismo e anacoretismo, as lentes já tinham determinado um modo ortodoxo de
perspectiva.
Mesmo com Pacômio a vida monástica não se tornara uniforme. Existiam monges que
além de romperem com o centro, saindo de suas próprias aldeias, buscavam total
transformação através de rituais considerados secretos e registrados por escritas secretas. O
próprio Pacômio escrevia textos usando um código secreto com vogais difíceis de decifrar,
que se assemelham aos silvos encontrados na literatura de magia e em obras de Nag Hammadi
como o do texto Zostrianos, que era usado por um grupo gnóstico “na prática da louvação ou
contemplação” (SIEBER, 2006, 346).
186
O deserto era o contra-mundo mais adequado para a organização desses grupos que
citamos (BROWN, 1990: 185). No contexto do Império cristão o monaquismo era visto com
desconfiança (SACHOT, 2004: 155) e por menor que fosse a força dos grupos gnósticos,
numa sociedade em que a religião era um fator importante para as estruturas que a
legitimavam, seu movimento não era bem visto. A civilização imperial ainda considerava
como óbvia a vida religiosa atrelada à vida civil e isto continuava no império romano cristão e
tomava corpo na era Bizantina (MORESCHINI & NORELLI, 1996: 516). Os líderes cristãos
ligados às estruturas imperiais, seja na corte como Eusébio viveu um tempo, ou seja, nas Sés
episcopais como Atanásio em Alexandria, não viam como alvo salutar grupos que se
encontravam fora da jurisdição ortodoxa. Muitos grupos cristãos gnósticos ou não formaram
mosteiros (micro-cidades alternativas) por vezes com seu próprio cânon a orientar suas
perspectivas inclusive aquelas que os dispensava da submissão à hierarquia da Grande Igreja.
Perante as ações do grupo hegemônico, dos quais Atanásio e Eusébio são para nós
figuras emblemáticas (Idem: 542), a resistência dos grupos minoritários ou ilegais como os
gnósticos, se dava através, principalmente, dos mencionados meios míticos e rituais ascéticos.
Mas poderíamos questionar dizendo que os textos aos quais recorriam, encontrados em Nag
Hammadi, não apresentam uniformidade, tanto que nem todos os textos são originalmente
gnósticos. Além disso, existem obras de grupos gnósticos rivais como é o caso dos discípulos
de Julius Cassianus e dos de Vantino. Isto é exemplificado na crítica que O Testemunho da
Verdade faz aos gnósticos valentinianos (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 388).
Diante deste problema da falta de uniformidade original dos textos, relembramos as
considerações do professor de literatura da Universidade de Oxford, Terry Eagleton. Em sua
obra A Idéia de Cultura ele discorre sobre a função que obras literárias podem ocupar como
subsídio ideológico. Existem textos que embora não sejam uniformes, passam a ser lidos sob
uma série de postulados quando juntos alcançam status canônico. O que importa não são as
187
obras em si mesmas isoladas, mas a maneira como são coletivamente interpretadas [...]
Tomadas em conjunto, elas são apresentadas como evidência da unidade atemporal
(EAGLETON, 2005: 81). O autor se refere à formação canônica de obras na cultura ocidental
moderna e contemporânea. No entanto, os processos de canonização na Antigüidade seguem
princípio similar, pois considera os textos com uma unidade que não corresponde
necessariamente ao contexto de origem dos mesmos, nem as contradições que os mesmos
apresentavam quando comparados como obras distintas. O próprio cânon vétero e
neotestamentário são expressões plurais de religiosidade e visão sócio-política. Vale lembrar
as distintas tendências de textos proféticos entre si em relação a textos oriundos do ambiente
monárquico do Israel antigo. Além disso, são exemplares os diferentes cristianismos refletidos
nos quatro evangelhos canônicos entre si em relação aos textos paulinos e deuteropaulinos.
Os processos de canonização colocam os textos dentro de um horizonte interpretativo.
Tanto é que não bastava para a Grande Igreja definir quais os textos eram legítimos, mas
também qual a forma correta de interpretá-los. Exemplo disso é o caso do Evangelho de João
que também foi lido e interpretado por gnósticos. Isto posto, consideramos que os textos da
Biblioteca de Nag Hammadi formavam uma espécie de cânon, revestidos por um cuidado e
devoção religiosa que sugere a mesma veneração para com o texto sagrado, o que segundo
Robinson (2006: 31) ajuda-nos a pensar a pensar o status que tais textos tinham para aqueles
que os compilaram, preservaram e esconderam. Juntos eles reforçavam um sistema simbólico
que propunha outra forma de classificação da realidade, na qual os poderosos eram
apresentados como seguidores de Ialdabaoth, o arconte criador do mundo.
Esses grupos gnósticos vinculavam sua própria identidade ao mundo dos eons,
atribuindo sua própria origem à realidade suprema da verdadeira divindade. Perante poder
estruturado e estruturante do cristianismo imperial, o grupo em torno dos textos de Nag
Hammadi encontram neste seu cânon legitimador que questionava aquela que seria a falsa
188
realidade que os oprimia. Seu locus encontrava no deserto o contramundo cuja as
classificações apresentavam uma ordem gnosiológica (BOURDIEU, 2005: 9) diferenciada.
Esta ordem oferecia um modelo social cujo ancoradouro mítico os reportava para longe das
estruturas de um cosmos criado por demiurgos inferiores e governado por imperadores e seus
bispos. As decisões conciliares, decretos e documentos espicopais, ou mesmo imperiais, que
definiam como deveria ser o cristianismo do âmbito do império, ofereciam marcação
simbólica que reforçavam o processo de diferenciação social. Qualquer voz divergente, que
apresentasse um poder paralelo a civilização romana e cristã, incorria contra a realidade
instituída e ficava em desvantagem nesta sociedade.
A heresia ou a heterodoxia são ambas para nosso trabalho as verdades dos grupos
marginais, ao passo que a ortodoxia e a expressão do grupo capaz de se afirmar como
hegemônico. Assim, dizemos que a ortodoxia é a verdade do grupo vencedor. Não discutimos
aqui se uma realidade ontológica verdadeira nos discursos de ambos os grupos, mas nos
interessa observar como a definição de verdade e realidade considera ambientes sócio-
culturais diferenciados. Destacamos ao longo de nossa pesquisa como, diante do
empoderamento de um dos grupos, as vozes destoantes são apresentadas, senão
desqualificadas como inverdades. O grupo que vence tem grandes chances de objetivar seu
mundo através de seu poderio, no caso do cristianismo hegemônico, não militar, mas a
partir de idéias, formas, imagens e representações, sustentadas por potentes formações
ideológicas que consolidam a autoridade” (SAID, 1995: 38).
Pagels (1979, 170) lembra-nos que o cristianismo gnóstico, enquanto grupo
minoritário, não foi páreo para a ortodoxa, seja por popularidade, por eficácia
organizacional ou pela falta de apoio de uma instância de grande poderio político e militar.
No fim, os gnósticos cristãos, como expressão de uma outra opção de cristianismo, foram
empurrados para as margens. E quando as ordens de Atanásio ecoaram em 367 contra os
189
documentos gnósticos, através da chegada de autoridades romanas cristãs em visita às casas
monásticas da Tebaida, os documentos da Biblioteca de Nag Hammadi, com seus olhares
plurais diferentes do pensamento ortodoxo, seriam preservados da queima se enterrados.
Não para afirmarmos com certeza de onde vieram os textos da biblioteca, mas esta é a
hipótese que postulamos, pensando história como reflexão interativa que procura reconstruir
olhares sobre o passado, olhares plurais.
190
Conclusão
Ao longo de nosso trabalho procuramos, destacando as funções políticas dos sistemas
simbólicos (em particular, o caso da religião), analisar como grupos cristãos apresentavam
projetos de poder e modelos de realidade diferenciados. E no caso da discussão sobre religião
e poder no contexto do mundo antigo, privilegiamos as linguagens de cunho mítico sobre as
origens, seja as cosmogonias ou narrativas dos inícios da própria tradição religiosa. Estas são
vistas como formas simbólicas que marcavam a identidade, bem como a definição do real. Os
símbolos foram encarados dentro de uma dimensão sócio-cultural. As formas de fazer
teologia representam também guerras de mitos entre dominadores e dominados.
Consideramos os textos utilizados pela Grande Igreja em formação como obras
vinculadas a circunstâncias políticas, textos que refletem a ideologia dos centros de poder.
Para nós, discurso trata-se de “sistemas simbólicos/lingüísticos e narrativos empregados na
comunicação humana” (MYERS, 1992: 40). Assim, a relação religião e poder é pensada
como relação de discursos e poder. Com destaque para os possíveis lugares políticos destes
que são também expressões culturais.
Por meio da linguagem, em seu amplo sentido de sistema simbólico, um grupo social
interpreta o mundo. A pluralidade cristã da antiguidade foi percebida em nossa pesquisa como
multiplicidade de práticas e representações de sistemas de significação, cuja variação era
resultado de processos interativos, dada a diversidade cultural em que o movimento se
espalhava. Multiplicidade de culturas significa também diferentes cosmovisões que se
expressam por meio de variados sistemas de significado que nascem das interações.
A linguagem de diferentes grupos cristãos deve ser considerada sob um aspecto
estrutural e ideológico, com implicações sóciopolíticas. A linguagem religiosa (mitos,
191
representações etc.) é uma das ferramentas construtoras de mundos, não uma descrição do real
ontológico, mas antes a estruturação de realidades históricas, organização social. Diferentes
teologias são também diferentes interpretações construídas no âmbito da história a partir de
um lócus social.
Quando comparamos o cristianismo romanizado que fortaleceu a idéia de uma Grande
Igreja, com o cristianismo gnóstico do Egito, discutíamos sobre os universos simbólicos e os
papéis que podem assumir politicamente, considerando o espaço que ocupam na sociedade em
que está inserido. O cristianismo da Grande Igreja, dado o poder que recebia do Império que
se cristianizava, ganhava força para legitimar o seu universo simbólico, assim procurou
objetivar o sentido do mundo a partir de seus mitos, de seu cânon e de sua tradição. Dessa
forma produzia os significados que deveriam integrar as significações presentes, ou eliminar o
que ameaçasse sua plausibilidade.
A nova ordem institucional romana da cristandade constantiniana (RICHARD, 1995:
7) era explicada de modo a outorgar a “validade cognoscitiva” (BERGER, 1976: 128) ao
mundo que objetivava. Assim, justificava-se uma ordem institucional que se estabelecia
dando a si mesma dignidade normativa que transcendia este mundo ancorando-se na “vontade
divina”. Um “conhecimento” específico define os papéis hierárquicos e legitima processos de
diferenciação social. “O universo simbólico é concebido como a matriz de todos os
significados socialmente objetivados e subjetivamente reais” (Idem: 132). Por essa razão, o
cristianismo ortodoxo do Império, ao definir seu corpus escriturístico, bem como as verdades
a serem aceitas, define também qual a sociedade cristã real.
Por parte do cristianismo gnóstico, observamos uma forma de resistência nesta luta
pelo universo simbólico, uma busca por reafirmação de sua identidade e contraposição aos
sistemas de símbolos dominantes da Roma imperial cristã. Dois discursos sobre realidades
sociais diferenciadas. O gnosticismo apresenta um universo, descoberto pelo conhecimento
192
secreto, que revela a falsidade do universo de símbolos do centro eclesiástico de poder. Estes
últimos, por sua vez negam a “verdade” dos gnósticos definindo-os como inimigos de sua
verdade e ortodoxia, perigosos hereges, o que nos mostra que a disputa entre os dois sistemas
era uma luta de cosmovisões pela posse final da ordem gnosiológica. Os cristãos gnósticos
encontravam em seu sistema a resistência contra a objetivação do mundo forjada pelas
estruturas de dominação, “[...] um indivíduo sozinho não tem condições para sustentar uma
estrutura de consciência divergente daquela que domina a sociedade, a menos que esta
estrutura divergente seja por sua vez sustentada por uma comunidade menor, localizada em
meio à maior” (ALVES,1999: 21).
As fronteiras entre ortodoxia e heterodoxia/heresia, o definidas pelo grupo cujo
sistema simbólico domina culturalmente. Sabemos que no plano social e político, o Egito
copta, onde sobreviveu o material gnóstico de Nag Hammadi, era um espaço de dominados.
Os bispos, arianos ou atanasianos, eram representantes do Império. O grupo dominado
organiza sua resistência de modo mítico, mas também ritualmente pela ascese e pela saída das
choras para formar comunidades de “contramundo” no deserto. E entre estes contavam
grupos que portavam suas próprias escrituras, contendo seu sistema simbólico e por estes
meios se orientavam e davam sentido às suas relações com mundo, consigo mesmo e com o
transcendente (LAYTON, 2002: xvii).
Pagels (2004: 188) reforça nossa hipótese de que o cristianismo não foi, desde a
origem, um sistema de doutrinas dotado de uma verdade indiscutível, conforme quisera Irineu
de Lion. E a cada geração, mesmo os grupos que optaram pelo projeto hegemônico,
reinventaram suas tradições na medida em que as re-significaram. Religiões são organizações
simbólicas do mundo e todo discurso “novo” ou diferente, mesmo que antigo, contém uma
infinidade, mesmo que implícita, de heresias. E o grande problema da heresia é que esta es
situada no plano do poder. A ortodoxia é a verdade dos mais fortes, que tem poder para dizer
193
a última palavra, ou a palavra última, suprema. Por esta razão os ortodoxos definem-se como
os portadores da verdade e acusam seus adversários como portadores de falsidade e mentira.
Heresia é, assim, a verdade do mais fraco, “a voz dos fracos” (ALVES, 1982: 25; 50).
Acreditamos que, assim como outros grupos acusados de desviantes, o gnosticismo era
visto como desvio herético, assim, surgem mecanismos de controle e eliminação do desvio.
Estes mecanismos precisam se preocupar com dois níveis, segundo explica Rubem Alves em
seus estudos sobre religião e linguagem (Idem, 109). O primeiro nível refere-se ao
comportamento desviante, ões consideradas inadequadas; o segundo, refere-se ao
pensamento desviante, isto é, aquilo que se afirma ou se nega a respeito da realidade.
Tomemos o exemplo de Alves e depois aplicaremos às nossas conclusões de pesquisa. Um
ladrão que invade uma propriedade é menos ameaçador do que um não-ladrão que contesta a
legitimidade da propriedade privada em um mundo alicerçado em tais princípios. O ladrão
rouba, incorre em seu crime, mas não questiona necessariamente o sentido ideológico da
propriedade, não rejeita necessariamente a ordem. no outro caso, rejeita-se um modelo de
mundo. Em nossa pesquisa, enquadramos o gnosticismo cristão neste segundo caso, pois faz
afirmações que desacreditam a autoridade da Igreja Imperial, considerando seus bispos como
“canais sem água” (Biblioteca de Nag Hammadi, 2006: 322). O pensamento desviante do
gnosticismo negava a validade de uma ordem social, aquela do mundo em que as cidades
eram governadas pelos bispos em um cosmo criado por arcontes que nada tinham a ver com o
verdadeiro Deus. Em sua linguagem religiosa rejeitavam a legitimidade e validez da ordem
politicamente instituída, assumiam uma postura deveras subversiva com sua ascese esotérica
de negação do mundo, vivendo alem das choras. Os desviantes que reconhecem a verdade
instituída não se declaram independentes do sistema, mas se entendem integrados nele ainda
que como “pecadores”, não contestam a visão do mundo. os hereges, estes contestam a
ordem. Os gnósticos admitiam uma origem para uma realidade precedente deste mundo
194
arcôntico como forma de crítica social, como contestação dos paradigmas. Assim como
grupos apocalípticos, no seu transe visionário, iam até o céu ou ao eschaton. Os hereges
nunca se reconhecem como tal, seu título é um estigma criado pela oficialidade para preservar
sua legitimidade, inserindo o pensamento desviante em um quadro previsto, inclusive
contando a história do seu desvio da verdade, como foi o caso do atrelamento dos gnósticos à
história de Simão, o Mago, condenado pelos apóstolos. A pluralidade tornava-se
inconciliável com a verdade oficial.
Por fim, é preciso reafirmar que não existe pesquisa neutra, por isso julgamos
necessário elucidar parte de nossas opções, tendências e motivações éticas. A relevância de
uma pesquisa historiográfica que procura re-visitar pontos polêmicos de uma religião se
mostra diante de uma realidade na qual crescem as tendências fundamentalistas, estas que
postulam a idéia de monopólio de verdades absolutas, apagando todos os seus vínculos
históricos, políticos e sociais, pretendendo fazer de seus discursos a descrição de realidades
inquestionáveis e excludentes. Por isso se faz necessário repensar os começos enfatizando
que no princípio era a pluralidade e que a diversidade não nega as identidades, mas propõe um
diálogo culturalmente enriquecedor. Tal tarefa exige de nós também a disposição para
caminhos interdisciplinares e olhares plurais na construção e problematização dos objetos de
pesquisa.
195
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BARROS, José D. O campo da história: especialidade e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004.
CARDOSO, Ciro Flamarion e BRIGNOLI, Hector P. Os métodos da história. Rio de Janeiro:
Graal, 1979.
PETIT, Paul. A paz romana. São Paulo: Pioneira/ Edusp, 1989.
SALISBURY, Joyce E. Pais da Igreja, virgens independentes. São Paulo: Página Aberta,
1995.
STEGGEMANN, Ekkehard. História social do proto-cristianismo. São Leopoldo: Sinodal/
São Paulo: Paulus, 2004.
WENGST, Klaus. Pax romana: pretensão ou realidade. São Paulo: Paulinas, 1991.
202
RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a igreja
católica. Rio de Janeiro: Record/ Rosa dos Ventos. 1996.
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