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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
INSTITUTO DE ARTES
ANDARILHO
– IMPULSO E TRIVIALIDADE –
Francini Barros Pontes
Rio de Janeiro
2007
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Francini Barros Pontes
ANDARILHO
– IMPULSO E TRIVIALIDADE –
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Artes do Instituto de Artes, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como
requisito para obtenção do título de Mestre em
Artes.
Orientador: Marcus Alexandre Motta
Rio de Janeiro
2007
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Francini Barros Pontes
ANDARILHO
– IMPULSO E TRIVIALIDADE –
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Artes do Instituto de Artes, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como
requisito para obtenção do título de Mestre em
Artes.
Orientador: Marcus Alexandre Motta
Aprovado em:
Banca examinadora:
Marcus Alexandre Motta
Prof. Dr. do Instituto de Artes da UERJ
Maria Ângela Abras Vianna
Prof
a
. Dr
a
. da Faculdade Angel Vianna
Vera Beatriz Siqueira
Prof
a
. Dr
a
. do Instituto de Artes da UERJ
3
4
Dedico a minha família;
À minha mãe, Clotilde; meu pai, Antônio e minha querida irmã, Lu.
5
Agradecimentos
A Marcus Alexandre Motta, pela amizade e generosa orientação.
A Ducha, meu amor, somente por sê-lo e também pela edição das fotos apresentadas na
dissertação.
A Elisa de Magalhães, amiga mais que querida, companheira de impulsos.
A Luciana Barros, pelas fotos dos navios.
A Ana Torres, pelas fotos dos impulsos.
A Geraldo Marcolini, lindo amigo, pela revisão da tradução do resumo.
A Tita Nigrí, pela paciência dispensada durante a elaboração do primeiro formato do
texto, apresentado na qualificação.
A Angel Vianna, mestra querida, pela atenção e participação.
A Roberto Corrêa, pela valorosa contribuição na qualificação.
A Lilia, Marcos e Bernardo Pacheco, pelo amor que nunca recusa ajuda.
A Maria Lúcia Galvão Souza e Ricardo Basbaum, pelos conselhos e pela acolhida.
Aos professores do Programa de Pós-graduação do Instituto de Artes da UERJ,
especialmente, a Vera Beatriz Siqueira e Roberto Conduru, indispensáveis à construção
desse trabalho. Muito obrigada.
Aos amigos que fazem parte da minha vida, também nesse capítulo, em ordem alfabética:
Adriana Guanaes, Ana Amélia, Bethania Assy, Celina Portella, Douglas Peres, Duda
Maia (primeira e eterna mestra), Francisco Ortega, Guga Ferraz, Gustavo Ciríaco,
Ignacio Aldunate, Jamil Cardoso, Lia e Lígia Bahia, Marcelle Sampaio, Milena Codeço,
Paulo Denizot, Sandro Amaral, Thiago Granato, Trícia Coelho, Vera Schroeder, Weld
Encarnação, e a todos os outros que não estão aqui: que não me perdoem por esquecê-
los…
Resumo
6
PONTES, Francini Barros. Andarilho – impulso e trivialidade. Rio de Janeiro 2007.
Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 2007.
A dissertação é o resultado do entrecruzamento de três categorias artísticas:
dança, artes plásticas e literatura. Ela tem início através do embate com a performance
Outdoor Piece, do artista plástico Tehching Hsieh, feita “idealizável” quando comparada
à questão do movimento bem como a outros artistas e obras literárias. Sempre a partir da
proposta feita ao movimento – impulso – a pesquisa propõe a aceitação do ceticismo em
relação à abrangência da linguagem artística, declinando o declínio do conceito “Dança”.
O impulso é pensado como palavra de movimento, transitória e trivial, que
recepciona as imagens do mundo. Enquanto ação andarilha, propõe o estado de trânsito
como argumento para a arte e sua história. Através da vivência de seu experimento a arte
encontra a condição anacrônica, revelando a tolerância da artisticidade para com as
imagens do mundo e com a própria história da arte; o impulso apresenta o ordinário como
condição artística.
Palavras-chave: andarilho, impulso, trivialidade, movimento, corporeidade.
Abstract
7
PONTES, Francini Barros. Andarilho – impulso e trivialidade. Rio de Janeiro 2007.
Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 2007.
The dissertation is the result of the intersection between three different artistic
categories: dance, visual arts and literature. It originates from the confrontation with the
performance “Outdoor Piece”, by the visual artist Tehching Hsieh, which was made
“ideal” when compared to the movement issues as well as to other artists and artworks.
Always stemming from the proposal of movement as “impulse”, the research sustains the
argument of skepticism in relation to the art languages as a possibility of the survival of
“Dance” as a concept.
The impulse can be thought of as a trivial and transitory word movement used to
translate the images of the world. The wanderer attitude is the argument presented to art
and art history when they can reveal themselves more tolerant to the world and historical
images and more anachronous. The impulse presents the ordinary as an art condition.
Key words: wanderer, impulse, triviality, movement, embodiment.
Sumário
8
Introdução 10
Capítulo Único 17
Conclusão 105
Referências 110
9
Introdução
10
11
O projeto para o mestrado em Arte e Cultura Contemporânea no Instituto de Artes
da UERJ nasce do interesse pessoal pelas artes plásticas. Bailarina de formação e
profissão poderia ter imaginado maior coerência pensando a associação da dança a
outra forma artística como o teatro, considerado, também, “arte nica”, e que também
requer a presença viva do intérprete na realização da obra. Outra possibilidade associativa
bastante coerente seria através de um recorte nas artes plásticas, nos happenings e
performances, principalmente a partir da década de 70.
O fato é que o embate com alguns artistas e suas obras foi determinante na
construção da bailarina-intérprete-criadora, bem como na formação do desejo e do senso
crítico em relação a meu próprio trabalho, e estas influências tampouco se enquadram nas
alternativas acima descritas.
Tendo como enfoque a arte contemporânea do século XX, comecei a fazer uso do
estudo de sua história paralelamente ao da história da dança, realizando associações
estilísticas e temporais por meio da comparação de determinados expoentes artísticos de
uma e de outra categoria. O estudo ganha maior importância a partir do enigma
readymade proposto por Duchamp e suas influências na produção artística da década de
60; na dança, a partir das inovações de Merce Cunningham e seu parceiro John Cage.
Meu estudo avança pelas décadas de 70 e 80, embora perceba que a história associativa
proposta é por mim construída a partir de uma forma de apreensão bastante linear,
conforme o raciocínio contextualista de causa e efeito.
Logo tem início o processo de orientação à dissertação com o professor Marcus
Alexandre Motta e é preciso fazer uma escolha teórica dentre tantas possibilidades
apontadas no projeto. É preciso propor uma questão e é da sensação de que algo foge à
12
coerência do raciocínio, é da dúvida, que o projeto nasce. Mas onde esta essa
incoerência? Por que não consigo defini-la?
Para tanto, um levantamento é feito de todos os artistas que, seja pela totalidade
de sua obra, seja por trabalhos isolados, ou ainda, como pude perceber mais tarde, por
sua persona, influenciaram de alguma forma meu trabalho. Interesses os mais diversos
fizeram-me chegar a artistas como Richard Long, Andrea Fraser, Flávio de Carvalho,
Artur Barrio, Richard Wentworth, grupo Fluxus, o coreógrafo Thomas Lemen, Jarbas
Lopes, e, por fim, o que, até então maior influência sobre mim exercia, o artista alemão
Joseph Beuys. A este último associo, inclusive, mais que uma influência artística, mas o
engajamento, o caráter político evidentemente presente no projeto.
O que todos os artistas citados têm em comum, em algum momento de seus
trabalhos, é a relação com a vida, com a existência das pessoas, algo oferecido; um
pedido de identificação. A ironia de uma verdade, o drama construído alterando a
situação do intérprete, aproximando-o da realidade do espectador: era o que mais, assim
pensava, se destacava nos trabalhos artístico destes que me influenciavam.
É nessa situação que me deparo com outro artista, taiuanês, cujo nome não saberia
pronunciar. Tehching Hsieh realiza performances, todas com a duração de um ano, em
Nova Iorque. Em Outdoor Piece, projeto de 1981/82, permanece nas ruas da cidade como
um homeless (e é assim que o chamo), sem poder se abrigar em nenhum lugar coberto,
condição violada pela detenção de quinze dias na delegacia de polícia. Diante de sua
ação, me calo.
A dúvida que me movia transforma-se quase num estado de vazio, do qual não
percebo saída. O projeto me parece agora muito “amarrado”, as possíveis questões
13
13
propostas parecem ter argumentação necessária para sua afirmação e confirmação.
Parece não haver mais espaços a preencher, talvez por falta de interesse ou mesmo pelo
caráter enfático, político, com que são, por mim, abordadas.
O mesmo acontece com os artistas estudados, e, especialmente com Beuys, sobre
quem, posteriormente, escrevo um trabalho para a disciplina História e Crítica da Arte,
confirmando o desinteresse momentâneo embora um dia, a influência tenha adquirido
tamanha importância em meu processo artístico. Assim como o projeto, também o
trabalho do referido artista não oferece mais as lacunas na compreensão, o que esvazia a
curiosidade e a capacidade de exercer o papel de leitora da obra. não consigo atingir o
estranhamento desejado para a geração das contra-imagens, respostas à obra de Beuys. A
autobiografia do artista, cuja narrativa oferece suporte tão detalhado a obra, define um
espaço bem delimitado no qual não encontro mais lugar para minhas perguntas. Somente
uma exceção, o tal taiuanês cujo trabalho não consigo emitir qualquer opinião a respeito,
mas apenas citá-lo, descrevê-lo, sem nunca, porém, deixar de sentir um enorme
incômodo.
Na qualidade de pesquisadora do movimento, a associação poderia facilmente se
estabelecer no que diz respeito ao movimento nas artes plásticas, ou, por outro lado, da
visibilidade na dança. Não que tais temas não sejam inevitavelmente abordados, uma vez
que, pela visualidade, quase toda experiência estética esteja impregnada e que, mesmo
uma possível inércia, caracteriza-se pela máxima potencialidade de movimento.
Assumindo-me, porém, como artista, as proposições para outras saídas poéticas tornam-
se necessárias frente à possibilidade da simples justificativa de teorizações o que
significa maior envolvimento com a minha artisticidade; a crítica viva.
14
14
É de comum acordo nesse momento da orientação que talvez o desinteresse pelas
questões teóricas se deva pelo seu distanciamento da prática artística, como se fosse uma
tentativa, talvez precoce, de conceitualização. Como artista, é necessário envolver-me,
fazer-me experimento, sem isso não poderia ter sobre qualquer questão,
responsabilidade
1
. Mesmo que, num primeiro momento, possa parecer difícil perceber o
que a intuição e a experimentação irão anunciar enquanto problema, partir da prática
parece uma solução ética: a defesa do retorno a uma situação habitual e cômoda à questão
do que é dança contemporânea, força uma codificação racional que bloqueia o fazer, o
ato de dançar, tornando-o mesmo desnecessário. Fica clara, portanto, a opção pela
formulação do problema a ser abordado, através da prática da dança, sem que qualquer
metodologia histórica seja aceita como herança
2
específica.
A escolha pela forma final de apresentação dessa dissertação em um único
capítulo – se deve pela própria forma de organização das idéias surgidas a partir de minha
atitude andarilha pela dança: impulsos andarilhos de movimento. Os pensamentos então
desenvolvidos foram organizados em rede através de um esquema ilustrativo, o que me
permitiu uma melhor percepção e compreensão de seu encadeamento. Tal encadeamento
1
“E quando o raciocínio e a poesia brigam com os pincéis, o resultado é a dúvidaOs pintores devem
pensar com o pincel na mão”.
BALZAC, Honoré de. A obra-prima ignorada. São Paulo: Comunique, 2003, p.37.
2
“Qualquer obra é obra das circunstâncias: isto quer dizer simplesmente que essa obra teve início, que
começou no tempo e que esse momento do tempo faz parte da obra, que, sem ele, ela teria sido um
problema insuperável, nada mais do que a impossibilidade de escrever”.
BLANCHOT, Maurice. A Parte do Fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p.295.
Este raciocínio, além de promover a tomada de responsabilidade sobre a questão, validou uma primeira
mudança na visão histórica linear que, até então, acompanhava a pesquisa. Se a obra inaugura seu próprio
tempo, inscreve a história sob uma perspectiva mais anacrônica de seus acontecimentos.
“O homem sabe que não deixou a história, mas a história agora é o vazio, é o vazio que se realiza, é a
verdade absoluta que se tornou acontecimento”.
BLANCHOT, Maurice, 1997, p.307.
15
15
possibilitou perceber o texto como um todo indissociável, formado por tantas partes
autônomas em seu desenvolvimento e, no entanto, interligadas pela motivação comum a
todas elas: impulsos. Não cabe aos assuntos abordados a moldura a enquadrá-los em
blocos distintos, apesar da autonomia que apresentam, mas a sugestão de uma leitura
mais livre, desprovida de um só traçado.
Cada subtítulo inaugura uma dessas partes, em cuja conclusão surge nova
interrogação e assim prosseguem, “inter-independentes” para a construção da idéia. Cada
um deles torna-se reação ao que foi dito anteriormente, nasce como um impulso
desencadeado pelo impulso que o precedeu. Impulsos: pequenos vetores de força que
apresentam começo, meio e fim no instante de sua ocorrência, mas geram a motivação
para cada novo impulso. Esse é o caminho aleatório a ser percorrido pelo leitor, segundo
seu próprio direcionamento, cumprindo sua própria atitude andarilha.
16
16
Capítulo Único
17
3X Nada.
18
o impulso
A partir do levantamento dos artistas plásticos e seus trabalhos, inicio a pesquisa
de movimento. Como a narrativa desenvolvida me afeta corporalmente e o que poderia
rapidamente escrever sobre isso?
É então que começo a perceber o a priori, o dado, meu corpo e a condição de
aprisionamento que a consciência dele causa. A barriga dói, mas não consigo realmente
sentir a dor, antes, constato-a apenas como algo externo, com o qual pudesse talvez
conversar. Nada pode, no entanto, me afastar dessa sensação de vida e fluidez, nem
mesmo a autocrítica ou a vergonha pela renúncia à técnica e ao pensamento que
substituem o experimento quando assumido como equivalente à experiência. E ele acaba
com o mesmo imediatismo com que começou, chamo-o impulso: um único impulso de
total presença. O movimento nega o corpo. Saio deambulando pela cidade.
Impulso. Eu buscava uma palavra que pudesse designar o meu vazio, mas ela é o
vazio, o silêncio que me faz, bailarina, falar. Buscava algo que pudesse aproximar vida e
arte, uma narrativa, uma obra espetacular, um acontecimento especial; mas aqui está a
própria vida como evidência mais trivial, como uma palavra que é eternamente quase
uma forma, quase uma idéia; impulso. Não posso usá-la, a palavra é.
Tudo começa a clarear, a arte acolhe a vida e esta a hospeda na própria construção
de seu presente, como se me descompromissasse de qualquer dado anterior. Talvez seja
esse o motivo que afasta o interesse anterior sentido por Beuys, num momento em que a
necessidade em questão era de aceitação profissional no universo da arte, necessidade
talvez anterior a da satisfação artística. O sujeito construído Beuys realiza o trabalho, um
passado é cuidadosamente por ele edificado, criando os alicerces nos quais a obra vai se
estruturando e mesmo se justificando. Se antes ele representava tão bem a aproximação
19
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da arte com a vida, como era tanto por mim esperado, agora seu corpo utilizado nas
performances, cujo caráter enigmático e espetacular visa buscar uma identificação com o
espectador significa, justamente, uma perda de relação e da afirmação de alteridade que
seu trabalho poderia proporcionar.
Talvez a dificuldade inicial se funde no ato arrogante da tentativa de chegar a um
ponto ximo, espetacular e diferenciado, como se houvesse a possibilidade de
radicalismos maiores que os vividos diariamente no mundo contemporâneo em toda a sua
velocidade. Ansiedade caracterizada na procura inconsciente por uma nova mercadoria.
Admitindo a utilidade do dado kantiano à noção da universalidade da criatividade
moderna
3
, o que será dessa forma fértil na contemporaneidade, quando tantos fatores
mundanos se fazem presentes na escolha ou não pela arte? Partindo de uma racionalidade
autônoma e constitutiva, o corpo, enquanto dado, faz, a priori, suas escolhas, quer sejam
estas a partir de uma herança assumida, de algum estilo reconhecido, quer seja de seus
próprios vícios e hábitos adquiridos, denunciadores de estilos pessoais. Se antes a busca
era pela semelhança, é hoje encontrada na diferença, onde, aparentemente, arte e vida
mais se aproximam.
O impulso significa agora o ponto zero da dúvida, onde não há mais perguntas,
as ruínas, onde tudo desmoronou e a questão está pronta para surgir.
Existe um outro lugar, um outro momento em que a vida se instaura na pretensão
do nada, no momento preliminar da falta das palavras, da falta de compreensão. O artista
taiuanês, cujo nome sequer saberia pronunciar, o que me deixa sem palavras, afirma seu
3
Na dança, o corpo visto como categoria kantiana para a dança e o movimento, uma vez comum a todas as
pessoas, poderia justificar o argumento da universalidade da criatividade. Se não nenhum impedimento
anterior, as possibilidades para que todos possam fazer o exercício da arte, são as mesmas. Isto, se de
maneira simplista excluímos tantos outros fatores que influenciam o desevolvimento da criatividade, como
os sociais, políticos e econômicos.
20
20
ato de coragem por dilatar o experimento proposto. O esgarçamento das referências tanto
pessoais quanto externas: o que me permite não pronunciar seu nome com conforto, pois,
o que ele representa? Que história carrega?
O artista renuncia a si mesmo, a suas escolhas; errante vaga pela cidade sem
destino certo, não tem rota a seguir, não determina sua origem. Não sabe mesmo quem
é, desconhece a identidade que justifica seu nome. Vagabundo, pertence agora a massa. O
mutismo anterior é proveniente de minha própria covardia; não era algo parecido o que
queria realizar, mas exatamente o seu trabalho. Como pode ter tamanha capacidade de
entrega, tamanha disponibilidade ao universo frio e estranho do outro, disponibilidade
para vivenciar sua dor? Entregue ao acaso das relações que se apresentam, não tem mais
responsabilidade sobre seu discurso; sequer sabe falar. O ato ordinário do andar se
constitui no extraordinário do pensamento enquanto desconstrução do que é fixo e
estável, dos espaços constituídos por hábitos referenciais identificadores de uma possível
subjetividade
4
.
O medo afasta o desconforto surgido diante do desconhecido; é por ele que a
diferença se faz sedução na possibilidade da quebra dos próprios limites. Limite que é o
dado ou o desejo, ou mesmo a consciência, a crítica e o engajamento enquanto
compromisso. O limite é a contribuição da própria mente no controle do experimento,
covardia diante dos impulsos, por mais monstruosos que possam parecer. No momento
4
“Parece inicialmente, com seus passos repletos de espírito, apagar da terra toda fadiga, e toda tolice… E
eis que se abriga num lugar um pouco acima das coisas, e diríamos que encontra um ninho em seus braços
brancos… Mas, agora, não parece estar tecendo com seus s um tapete indefinível de sensações? Cruza,
descruza, trama a terra com a duração… Ó encantadora obra, o trabalho precioso de seus artelhos
inteligentes que atacam, que esquivam, que amarram e desamarram, que se perseguem, que levantam vôo!
Que hábeis, que vivos, esses puros operários das delícias do tempo perdido!... Pelas musas, queria que
meus lábios tivessem esses pés!”
VALÉRY, Paul. A Alma e a Dança e outros diálogos. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.39.
21
21
A sala escura, o espaço vazio; o corpo, então, dança.
Sem explicação ou algo de imediato que o motive além do estado em que se encontra; e
dança como nunca antes. Será essa mesma a palavra?
Sem pensamento do corpo, o centro conectado e alerta, corporeidade acontecendo sobre o
dado entregue.
Lápis e papel antes que a memória da palavra se esvazie e, no lugar dela, a crítica. O
poema é a forma do que foi assim, cuspido no pensamento.
E acaba com o mesmo imediatismo com que começou.
Um impulso, um único impulso de total presença.
Por que não é sempre assim? Sem registro de memória.
Asilo, asilo, ó meu asilo, Turbilhão! Eu estava em ti ó movimento e fora de todas as
coisas…
VALÉRY, Paul. A alma e a Dança e outros diálogos. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.68.
22
do impulso, a vontade torna-se impedimento enquanto condução, e a aceitação do externo
que irrompe se faz motivo da ão. Uma vez suspensa, a intencionalidade torna-se
percepção
5
.
Disponho o catálogo da exposição de Hsieh na vertical, colado à parede de forma
que, de qualquer lugar do ambiente, possa ver seu rosto nas inúmeras fotos disponíveis;
entrego-me aos impulsos. O tempo do experimento se dilata, não posso determiná-lo, o
movimento se faz falha temporal, anunciando, no momento mesmo em que nasce, seu
próprio fim. Caio no chão, exausta, enjoada e em contrações; é necessário um longo
tempo para que me recupere e possa novamente estar de pé.
Uma foto, em especial, chama a atenção. Ela capta a estranheza ao contemplar o
rosto no espelho deixado na rua. A mão toca o queixo; tenta reconhecimento. Sigo para o
espelho e procedo da mesma forma. Monstruosa, não conheço esta que vejo; desfigurada,
um rosto sem expressão, aberto às marcas que estão por vir, desprovido dos vícios e da
culpa pela deformação que não anuncia, na verdade, nada de estranho, mas o mais
simples, o trivial. Um em-si “sendo”, sem a possibilidade da conferência de qualquer
significado. O espelho não mais significa a entrada na ordem simbólica, não por sua
negação, mas por impossibilidade de identificação com a imagem prontamente refletida,
como se ela assim não o fosse
6
.
5
Kudielka apresenta, na aproximação por ele proposta entre Mondrian e Pollock, a questão da “negação do
acidente”, o que significaria não propriamente sua negação, mas, ao contrário, a aceitação e a
“transformação do acidental em ato de resposta”.
KUDIELKA, Robert. Abstração como Antítese”. In: Novos Estudos, n.51. São Paulo: CEBRAP, 1998,
p.30.
6
“Havia um espelho na fachada e, pela primeira vez desde que começara a sua vigília, Quinn viu a si
mesmo. Não que tivesse medo de defrontar-se com a própria imagem. Simplesmente não havia
acontecido… Agora, quando olhou para si mesmo no espelho da loja, não ficou nem chocado nem
decepcionado. Não tinha emoção nenhuma a respeito de tudo isso, pois a verdade era que não reconhecia
como ele mesmo a pessoa que via a sua frente. Pensou que havia captado no espelho a imagem de um
desconhecido e, naquele primeiro momento, voltou-se bruscamente para ver quem era… Traço por traço,
estudou o rosto à sua frente e devagar começou a perceber que essa pessoa tinha certa semelhança com o
23
23
Por impulso, o estrangeiro é recebido com hospitalidade, à intencionalidade
cumpre apenas a condição de separação radical, o que torna o reconhecimento possível. É
na separação infinita que o rosto do Outro se permite reconhecer. É no medo do
pressentimento do Outro, na angústia frente a sua presença, que ele nos arranca de nós
mesmos. Na incerteza em que o impulso surge e se mantém é que os desconhecidos de
mim se constituem, inscritos na definição temporal de sua ocorrência. A dúvida
permanece no tempo do susto quando o eu se perde para mudar na relação com o Outro.
É na violência do encontro com a imagem externa a si, onde abandona, mesmo que
momentaneamente, sua capacidade de conhecimento, que esse Outro se torna um
obstáculo ao tempo corrente; o reconhecimento se faz, pela diferença que se apresenta.
O impulso enquanto resposta reativa permite o reconhecimento dessa diferença e
manifesta sua morte, a partir da qual a integração recíproca pode se dar.
O corpo parece não ter mais memória de qualquer técnica ao longo do tempo
vivenciada. não é possível reconhecer signos que identifiquem um vocabulário
específico ou o traço de uma subjetividade anterior. Nenhum estilo apreendido se
consagra, parece mesmo não haver mais o próprio corpo, dado anterior, condição
limitante em suas predileções por normas estéticas referidas a uma conduta racional, ou
até mesmo ao que se costuma designar por emoção. A materialidade do corpo é anulada
pela corporeidade estado potencial de movimento aberto à motivação do mundo
externo, prestes a assumir, por autonomia, a tradução de quaisquer estímulos, feitos
homem que ele sempre pensara ser… Mesmo então, porém, não ficou desconcertado… Tentou recordar-se
de si mesmo tal como fora antes, mas achou difícil. Olhou para aquele novo Quinn e encolheu os ombros.
Na verdade não tinha mais importância. Havia sido uma coisa antes e agora era outra. Não era nem pior
nem melhor. Era diferente, e isso era tudo.”
AUSTER, Paul. A trilogia de Nova Iorque. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.133.
24
24
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impulso. Os bitos o mais respondem à vida das sensações experimentadas não
mais portos, nem vícios.
Justifico a palavra impulso vivenciando seu sentido como reconhecimento
desse Outro andarilho, que passa a fazer parte de minha história. Assim como o andar
constitui a configuração nima do deslocamento, assim como a palavra é o balbuciar
anterior a qualquer discurso, também o impulso constitui uma forma pré-artística de
movimento e, assim, inaugura outro lugar possível para pensar o que se costuma chamar,
arte.
No ato de andar, consagra-se a abertura à exterioridade dos acontecimentos, onde
qualquer ilusão ótica pode se dar, onde nada pode ser representado, pois simplesmente é.
Na vida do instante em que se apresenta, o sentimento instalado, erguido como marca
7
,
não é a significação de nada. O taiuanês, o homem que é a marca. Que signo a ele
associar, para a radicalidade do ordinário que experimenta? Ele anda, realiza seu impulso
circular cuja superfície percorrida gera perplexidade. E é no percurso aleatório pelo
labirinto da grande cidade que inscreve sua lenda sobre o simples ato de andar; sabe que,
para isso, é preciso sustentar o esquecimento.
Em seu experimento, “o taiuanês” realiza a troca constante de lugares e situações,
espaços que nunca se fundam o homem como literalidade da marca, a quem nenhuma
significação pode ser previamente atribuída, dele nada se pode esperar lugares do
inusitado.
Para o andarilho não há mais referências a seguir, nenhum a priori pode ser aceito
7
Walter Benjamin define a marca em contraponto à noção de signo. Ao contrário deste, que se imprime, a
marca levanta-se somente do vivo, comumente como o aviso da falha. Ela tem uma significação temporal,
além de estar ligada `a dissolução da personalidade em elementos arcaicos.
BENJAMIN, Walter. Sur la peinture, ou: Signe et tache. In: Ouvres 1. Paris: Gallimard, 2000, pp.172-178.
26
26
27
que dirija o experimento. O que seria dançar assim? O embate com sua obra instala a
dúvida sobre a eficiência do movimento dançado em expressar sua própria vida,
apontando para nossa relação com o discurso.
O impulso, não saberia sequer defini-lo senão enquanto possibilidade de
movimento, o do fenômeno em si, mas da errância na expressão do trauma ocorrido.
Como o andarilho, sua condição é sempre aberta ao trânsito por lugares onde a
motivação, por atração ou mesmo repulsa, leva-o, temporariamente, a definir um lugar.
Enquanto pronúncia de movimento, o impulso é a própria materialização da apreensão do
fenômeno, leitura do mundo que se ergue no corpo. Palavra inventada que traduz, por
abstração, o conto, cuja leitura agora, também deve ser reinventada. Ele nasce, vive e
morre mesmo em fração de segundos; tem existência e faz o tempo acontecer. E na
plenitude da vida que é, traz a possibilidade da mudança de sentido até que o movimento
seja necessário, até que a palavra seja habitada por sua vivência.
Stanley Cavell
8
apresenta as palavras em exílio de Wittgenstein, palavras que
precisam ser levadas para casa, conhecidas e recepcionadas. Se “tudo que conheço é
recepção
9
”, então nada sei de antemão até que se apresente a mim. As imagens do
mundo, imagens sonoras, imagens de movimento, fontes de trauma que, pela função que
cumprem, precisam ser nomeadas. Os referentes da criação artística, esgarçados, perdem
a condição de modelo, o desconhecido pode, então, ser reconhecido em seu poder de
afecção.
8
CAVELL, Stanley. Esta América Nova, Ainda Inabordável. São Paulo: Ed. 34, 2004.
9
Observação de Emerson usada como desafio à Crítica da Razão Pura de Kant, sobre a inexistência da
intuição intelectual.
Ibidem, p.79.
27
As palavras são descompromissadas de sua condição gramatical e inaugura-se a
reflexão sobre a perda do acordo, do senso comum em relação a seu poder de
significação. Desvinculadas do discurso, tornam-se a própria expressão da vida de quem
as pronuncia, assim como o andarilho, sempre disponível para experimentar as palavras
que nomeiam os traumas por ele sofridos. Sua condição de balbuciar, prestes a dizer
alguma coisa, continuamente matando e dando vida a novas palavras.
Remeto-me a minha própria vivência na dança. Que palavras eu posso pronunciar,
capazes de expressar o significado pessoal que os acontecimentos assumem? Pelo que
quero, artista, me responsabilizar?
da leitura
É preciso agora me entregar aos impulsos, permitir que aconteçam revelando o
desconhecido. É a partir do embate com algumas obras literárias estrategicamente
escolhidas, e com as imagens cotidianas apreendidas no processo literal de andar sem
destino pela cidade, que o experimento tem prosseguimento. Através da abertura as
pequenas e sutis percepções
10
, contra-imagens surgem, pequenos textos: respostas
poéticas autônomas e imediatas, impulsos andarilhos de escrita.
O primeiro livro: A Prisioneira
11
, de Marcel Proust. Como fazer apropriações
10
“… todas as representações, todas as imagens disjuntadas dos seus correspondentes verbais, contém
qualquer carga inconsciente de sentido… Chamemos a este tipo de imagem, imagem-nua, despojada da sua
significação verbal… São produtores de pequenas percepções, o que implica toda uma semiótica particular,
que não entram facilmente nas diferentes classificações conhecidas de signos (em particular, na de
Pierce). Enfim, como Leibniz observará já, as pequenas percepções encontram-se associadas a forças: a
percepção das imagens-nuas provoca um apelo de sentido, como se estimulasse o espírito à procura da
significão verbal ausente.”
GIL, José. A imagem nua e as pequenas percepções: estética e fenomenologia. Lisboa: Relógio D’Água,
1995, p.15.
11
“Não, encarando a sonata de outro ponto de vista, tomando-a em si mesma como obra de um grande
artista, era reconduzido pelas ondas sonoras aos dias de Combray… quando também desejara ser um
artista. Abandonando de fato esta ambição, porventura renunciara a algo de real? Poderia a vida consolar-
me da arte, haveria na arte uma realidade mais profunda em que a nossa personalidade verdadeira encontra
28
28
29
externas, se tão aprisionada me encontro no meu interior? Se necessário chegar ao
limite da prisão, mesmo sabendo que este pode se estender cada vez mais e mais? O autor
aprisiona o leitor em páginas cheias, sem qualquer espaço onde se possa respirar. Quando
a verdadeira questão se aproxima, ocorre a fuga, o desvio a qualquer futilidade narrada.
Então, na riqueza dos detalhes, o leitor corre atrás de si mesmo, vagando em círculos… A
cada experimento de impulso, linhas escritas, às vezes poucas delas, outras, páginas
inteiras, tudo em concordância com a qualidade, com a duração dos movimentos e o lugar
para onde me transportam; novo processo de tradução
12
autônoma. Escrevo cartas a esse
Outro, que, embora desconhecido, me parece o íntimo. Meus Outros? É a própria
dança que escrevo? Ou, arte? Difícil ainda saber.
Assim como as artes plásticas, a dança também sofre, na modernidade, o processo
de objetivação e a tentativa de definição do essencial da categoria; torna-se autoreferente
e busca autonomia. O corpo deixa de estar a serviço de uma dada técnica e passa a ser
identificado como “um instrumento de autoconhecimento
13
”. Uma vez conquistados a
consciência e o autoconhecimento, hoje, talvez, uma outra leitura para essa alteridade
adquirida seja através de possibilidade que ela anuncia para a inibição, anulação do
caráter aprisionante do corpo e as restrições por ele impostas, enquanto dado que é.
Tendo a identidade assegurada, parte-se para a conquista do exterior. É a partir de então
que uma corporeidade puramente poética pode acontecer. O autoconhecimento é o
uma expressão que não lhe dão as ações da vida?
PROUST, Marcel. A Prisioneira. São Paulo: Globo, 2002, p. 146.
12
Tradução, em toda a pesquisa, tomada como leitura” feita por abstração sem a pretensão da fidelidade
ao modelo; lugar onde a palavra erro já não pode sustentar sua definição.
13
Ronaldo Brito, na crítica feita ao trabalho de Iole de Freitas, exposição fotográfica no Museu de Arte
Moderna em setembro de 1974, caracteriza as fotos como “uma das primeiras manifestações de body art no
Rio de Janeiro” e identifica, dessa forma, o corpo.
BRITO, Ronaldo, Experiência Crítica. São Paulo: Cosac & Naif, 2005, pp. 237-238.
29
instrumento utilizado pelo artista na afirmação de sua subjetividade. Preso, entretanto, às
limitações sicas; consciente do que acredita ser possível, determina seu modo de estar
no mundo, acorrentado a si mesmo. São seus hábitos os definidores em potencial das
características referentes na busca da identidade, constituidores de estilos próprios,
identificadores. Referenciado, entretanto, apenas no interior da categoria, o estilo pessoal
perde a conexão com o mundo, dissociado da percepção do artista e das exigências
surgidas em seu experimento. Estas deixam de ter vida por sua necessidade e passam a se
apresentar como conhecimento adquirido. Perdem o frescor da descoberta e afastam a
possibilidade das falas e inadequações que permitiriam manter o estilo em constante
transformação. O estado de estar à deriva, em viagem a uma terra estrangeira, é conquista
da superfície que circunda o eu vivido do lado de fora de casa, longe do conforto do que
pode ser conhecido e identificado.
Após cada entrega ao movimento, preciso sair e perceber o retorno à primeira
situação, de motivação andarilha. Ando pelas ruas sem a proteção da fuga aos
pensamentos, ausência de experiência interior, ou esta está diluída no exterior, quando
posso olhar e ver cada Outro. Perambular torna-se uma espécie de alheamento, quando a
soberania da interioridade é usurpada pela transposição do exterior para o interior. E novo
texto é produzido. Retorno ao andarilho Hsieh vivendo, eu mesma, a literalidade de seu
contínuo trânsito.
É preciso parar em algum ponto, colecionar estímulos.
Impossível fazê-lo.
O som grave do caminhão faz o peito vibrar.
Incha que quase levita, um estado como se a qualquer momento pudesse se desprender do
resto do corpo, e voar…
30
30
É preciso fechar os olhos, mas não é necessário fazê-lo.
Não vejo nada, como que a nadar nesse ar de gente passando, mas não posso ver seus
rostos.
Só ouço o vento que se desloca quando passam muito perto de mim.
E o ônibus acelera; este e o outro também e o outro e o outro, e ainda mais um, é possível
distingui-los.
O corpo exaure, anda porque é mais fácil que parar, senão, desmorona.
O tique nervoso é quase depressão.
O som do sinal quando vai de amarelo a vermelho e os carros freiam e o corpo anda;
acúmulo de ruídos, agora, ainda mais cansaço.
O impulso é som.
Som de vendedor ambulante que grita, gente que fala, carro que anda e que pára e buzina
e azucrina as idéias, Pessoas que passam, a sirene da garagem do prédio, a caixa
registradora da confeitaria.
O som do olho do homem que pisca muito próximo ao meu: posso vê-lo agora que
seu cheiro de sujeira é tão próximo.
E as Pessoas na marquise da loja me olham assustadas.
A gringa louca e o sujo fedorento.
Não o vi realmente.
Os sons não mais se distinguem.
Pano de fundo, papel de parede.
Posso dizer o avião, os cachorros, o carro que sobe a ladeira, a vizinha que grita, a obra, o
bambu da cortina da área de serviço, o pé que desliza na madeira, os passos do cachorro.
Movimento não é impulso.
Impulso é som.
Movimento é escolha, embora não saiba direito de quem.
Abro os olhos, não faz diferença; não que não vejam, é que escutam.
A imagem é o corpo que flutua no ar, a imagem é ar, onda sonora, no fundo, alta ou
baixa, um só fundo de vida.
Poucos minutos se passaram, no bambu, algumas horas.
O relógio é o pulso do ponteiro que gira.
O movimento é o vento que balança as folhas.
Humanidade de som.
Movimento suave que torce, suave, sem nunca chegar ao fim.
O último ruído suspende o movimento no ar, como asa de pomba…
Som demais faz dormir, cansa antes da hora.
A dúvida cria o estado de alerta que nunca cessa.
Tormento, isso é perseguição e o movimento suave voa.
Só possível apreendê-lo em sensação.
31
Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si-próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus…
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo…
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os pontos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero…
Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,
E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.
Não me subordino senão por atavismo,
E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama…
Clarim claro de manhã ao fundo
Do semicírculo frio do horizonte,
Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas
Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis…
Estatelo-me ao comprido de toda a vida
E urro em mim a minha ferocidade de viver…
Não há gestos de prazer pelo mundo que valham
A alegria estupenda de quem não tem outro modo de a exprimir
Que rolar-se pelo chão entre ervas e malmequeres
E misturar-se com terra até sujar o fato e o cabelo…
Não há versos que possam dar isto…
CAMPOS, Álvaro de. “A passagem das horas”.In: Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.175.
Próxima leitura, O Paraíso Perdido
14
, de John Milton. Há memória nos impulsos?
14
“O Inferno, e seus monarcas todos
Hão de vir fora delas receber-te.
Terás ali morada mui diversa
Deste circuito exíguo: nela pode
Tua inúmera estirpe acomodar-se.
Se não achares grata essa vivenda
32
33
Como se deixam traumatizar pelas palavras? Se a resposta é afirmativa, como será a
receptividade dessas palavras?
Surge a resistência frente ao novo e o desconforto que produz, assim como o
desejo do retorno à situação anterior, lugar onde tudo é conhecido e previsível. Mas não
mais nada a fazer, não existe sequer um momento diferenciado para os impulsos,
que acontecem enquanto leitura. Sim, há memória no trauma causado pelas palavras, mas
memória somente de uma primeira faísca do movimento e, logo, os impulsos ganham
autonomia. A leitura vence a resistência e o impulso se faz vida. As palavras perdem
significado determinado, se tornam cadência, musicalidade.
Não, não é memória a palavra adequada. As lembranças que surgem não fazem
parte do processo consciente de discernimento e escolha dos estímulos gerados. Talvez
seja aqui possível substituí-la por “arquivo”.
Esta palavra foi associada inicialmente por Freud a uma memória espontânea,
impossível de ser atingida, entretanto, por obstáculos internos (recalque) e externos
(repressão), impostos. Derrida
15
realiza a leitura do arquivo freudiano situando-o
justamente no lugar da falta da memória, onde o que se pressupõe é uma exterioridade.
Distanciando-se da idéia de memória espontânea, o arquivo acolhe a instituição de uma
Deves agradecê-la ao que me obriga
A tramar contra ti, que não me ofendes,
Esta vingança atroz que só devia
Recair nele que me ofende tanto.
Pela inocência pura que te adorna
Enterneço-me assaz; porém contudo,
O público interesse, a honra empenhada,
O ardor de me vingar engrandecendo
Coa conquista do Mundo o meu império,
Obrigam-me a fazer coisas agora
Que eu, inda que votado às penas do Orco,
Em outras ocasiões abominara.”
MILTON, John. Paraíso Perdido. São Paulo: Martin Claret, 2003, p.159.
15
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo, uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
33
“prótese do dentro
16
”, marcando não a representação pela inscrição da natureza, mas uma
ruptura com a mesma através de algo que se ergue do interior. Segundo Derrida, ele
esquece a memória por jamais se reduzir a ela: arquivo como produção e registro do
evento; uma noção, apenas.
Por memória, o pensamento torna-se a vigília que cobra das coisas algo além de
sua simples presença no mundo. A quebra da autonomia e da alteridade é realizada pela
expectativa diante delas, para além de sua própria responsabilidade de simplesmente ser e
estar presente. A verdade da sensação: o único mundo verdadeiro, mesmo que inventado.
Repetir um impulso o significa afirmá-lo, instituindo sua forma, mas repetir
um verbete, suficiente para a dilatação de seu instante, um retardo, uma suspensão frente
ao movimento a seguir, que pode, no entanto, ser intuído. A condição de sujeito
confirma sua instabilidade na proporção de sua falta de consciência das imagens
apreendidas e da ausência de memória das respostas espontâneas surgidas no momento da
apreensão. A autonomia da imagem se confirma; independente, isenta de qualquer
controle subjetivo.
O mais curioso é que, aos poucos, texto, cadência, vírgulas e pontos transformam-
se num só impulso, o de andar; a mim, nenhum outro movimento é passível de realização.
Com os passos, a tradução do texto se faz, como se o autor é que tivesse partido deles
para escrever, e não o contrário; contaminação. É através dos passos que, no corpo, o
texto pode ser lido.
O que são, então, os impulsos, senão minha própria atitude andarilha? E se através
deles alguma narrativa surge, é também andarilha, na efemeridade de sua ocorrência não
constituinte de qualquer espaço identificável. Contínua troca de uma imagem a outra, de
16
Ibidem, p.31.
34
34
35
impulso em impulso a imagem se faz e desfaz, abrindo espaço a outro lugar de
motivação. A imagem é fragmento, ruína que anuncia o perigo de sua perda; por ela, o
mundo apresenta-se descontínuo.
E se o impulso é andar, cumpre a literalidade do mais arcaico movimento,
potência de trânsito aberta, palavras que encerram em si mesmas, a vida, e assim, a
urgência por nova palavra. Se texto, imagem e movimento são a todo tempo trocados,
não seria também necessária a própria troca da palavra arte? Como se configura esse
outro lugar para minha singularidade de bailarina na obra plástica?
A escolha da palavra impulso: impaciente, importante, impertinente, imperativo,
impessoal, imperceptível, imperfeito, impróprio, impreciso, imperial, impotente. Em
inglês, imp, o demônio, satanás de Milton, de onde nascem os impulsos andarilhos, a
perversidade mesma da língua; a palavra e seus demônios. Se o ato do experimento se faz
aleatório, a palavra que o denomina aparece por escolha; o demônio da palavra impulso,
seu movimento inicial, imp, sua origem implantada e autônoma que nos invoca, nos
chama em nosso próprio abandono, imagem sonora e visual da palavra.
O artista andarilho não caminha por não haver um destino; desapropria-se de si na
falta do traçado a seguir, entrega-se ao andar, ao desconhecido que ainda está por vir. A
35
36
nominação do impulso não é um pecado sem conceituação prévia, mas o próprio fruto de
sua permanente convivência com o por vir por ele mesmo instalado.
O próximo livro é Fausto, tragédia subjetiva
17
, de Fernando Pessoa. Por que
tenho que morrer para dar vida a alguma coisa? Sinto todo o cansaço e o incômodo diante
da entrega e desejo parar. O impulso é o de andar em círculos, desesperada, como que
em busca de mim mesma. A inércia tão desejada já não é mais possível e nem mesmo o é,
retroceder.
Disponho o texto decorado pelo chão e nele piso. Descarrego toda a raiva pela
perda do conforto, do discurso em sequência, da morada, renúncia a tudo que era, tão
17
“Sou a consciência em ódio ao inconsciente,
Sou um símbolo encarnado em dor e ódio
Pedaço d’alma de possível Deus
Arremessado para o mundo
Com a saudade pávida da pátria
A cujo horror tremo ao pensar voltar
Mas se em nada da (…) e da ilusão
Pra viver neste desterro. Amor,
Paz, amizade, tudo quanto/ajuda/
A viver a mentira do universo
Falha-me e eu (…)
Ó sistema mentido do universo
Estrelas-nadas, sóis irreais
Oh com que ódio carnal e estonteante
Meu ser desterrado vos odeia.
Eu sou o inferno. Sou o Cristo negro
Pregado na cruz ígnea de mim mesmo
Sou o saber que ignora;
Sou a insânia da dor e do pensar
Sobre o livro de horror do mundo.
Por que fui eu, amaldiçoado horror
Que me fizeste ser e que eu nem posso
Pensar pra te amaldiçoar, ou crer
Em ti, tão cheio do consciente e mensurante
Que o ódio não me cegue para ver
Que não sei que tu és para saber
Se sequer poderei pensar odiar-te.”
PESSOA, Fernando. Fausto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p.112.
37
37
38
pouco tempo, tão caro.
A perda de mim mesma faz ver o Outro, não há mais com o que me identificar,
qualquer busca nesse sentido é em vão. Hsieh e seu rosto no espelho, o que o arquivo
me traz. Aqui estou e o que motiva, por curiosidade ou incômodo, é a língua da mulher
que não consigo entender ou o cheiro desagradável dos dejetos de gente na areia, a sujeira
do Outro a mim exposta, sem que nenhum pensamento possa lhe mascarar. Piso no texto
e em fezes de pessoas; ando e descubro-as, metafórica e literalmente. não é possível
voltar para casa, buscar abrigo, e percebo a condição de Hsieh como uma consequência
de sua entrega, não mais a causa.
O que seria mais politicamente engajado que desistir de toda ideologia, toda
fórmula de bula pré-estabelecida e entregar-se à relação, ao momento? O impulso faz-se
novamente, movimentos disformes e a cada vez mais autônomos. é possível ceder-me
para que aconteçam e assim percebo-os quase que externos; alheios a qualquer escolha. E
se a mim chegam, é por conversão
18
, abandono e renúncia em direção a uma
transfiguração
19
na qual inteligível e sensível, ativo e passivo, não mais delimitam
fronteiras.
18
“A diferença entre Emerson e outros profetas ou sábios do século XIX… é seu reconhecimento do poder
das palavras comuns - por assim dizer, da vocação que elas têm - de serem redimidas, de redimirem-se a si
mesmas e, caracteristicamente, de pedir a redenção à (a partir da) filosofia. Emerson dirá ou mostrará, que
as palavras exigem uma conversão, ou transfiguração, ou um novo afeto; ao passo que Wittgenstein dirá
que elas devem ser levadas para casa, como se estivessem no exílio”.
CAVELL, Stanley, 2004, p.81.
19
“A retórica da humanidade como uma forma, ou nível de vida, necessitando de algo como transfiguração
– uma mudança radical mais, por assim dizer, de dentro para fora e não causada por alguma coisa…”.
Ibidem, p.48.
38
Tem esse fundo. É isso a opacidade do som? Será possível nada fazer para além
da receptividade? E a conversa deles, pensa que se repete, mas não, diferentes timbres
escapolem no final. E esse som característico, cadência no ritmo que propicia os escapes.
Será só isso, então, essa medida? Trazer à tona o que destoa?
É de mar ou de carros? Faz a orelha dele se levantar. Ouço, está tudo lá, nos
impulsos. São como fundo, fundo de Satã. Orgulho, soberba? Não sei; fundo de no
chão. A transferência garante a aderência. Ele, súbito, entra voando. Vai bater na parede,
é muito rápido, não posso vê-lo. Como louco, da sala pra cozinha, pra varanda, vai bater
na minha cabeça, abaixo e sequer sei por onde saiu. Quanto durou? O tempo de um
impulso de urgência. Tapa na orelha; matei seu som irritante! Não, não está morto,
Ferroada de marimbondo. Queimadura de limão na mão. Quebradura.
O corpo do Outro é mais meu do que o meu sempre foi, na medida em que não
anuncia qualquer obstáculo. Parece agora incoerente a manutenção do raciocínio
39
40
sujeito/objeto, respectivamente ativo/passivo, onde uma relação mais experimentável se
anuncia. O movimento, que até pouco denominava dança, significava uma prisão
justamente na dificuldade dessa relação, na qual sujeito e objeto coincidem no corpo, que,
enquanto dado material, traz inerente, limitações físicas e sociais que, por tantas vezes,
restringem as possibilidades de escolha. É no corpo, entretanto, que o pensamento
passivo da visão surge quando excitado pelo objeto externo que o circunda.
É entre os extremos da razão e da sensação que o experimento do impulso pode se
situar, na faixa intermediária onde a vida surge em pensamento, espírito e poesia. No
momento em que qualquer processo de codificação a algo pré-estabelecido é afastado, a
obra artística assume a responsabilidade por si própria. O preço é sempre o da desistência
de alguma coisa, o abandono onde se sofre a própria pobreza, através do poder da
passividade.
O ato sublime de renúncia da modernidade é o objeto; talvez a definição de sua
alteridade nos permita ousar em direção ao acolhimento na relação que surge a partir da
condição de desconhecimento. O sujeito, embora anterior à linguagem, é por ela fundado,
e faz dela, a prova de sua existência, sua inscrição.
A “arte contemporânea” funda seus próprios códigos de exibição do corpo, onde a
alteridade é buscada na individualidade, mesmo quando atrelada à produção de outros
estereótipos, definidora de novos modelos; uma alteridade acidental não tem lugar. O
monstruoso e o obsceno tornam-se, então, uma convenção. Renunciar a eles significa
deixar de agir, tornar-se passivo frente à autonomia das imagens que irrompem, permitir-
se fazer uso delas, na instalação de incertezas.
No descontrole do impulso não é possível mensurar a estranheza, nenhuma
40
41
busca por qualquer traço de familiaridade é possível; já nasce no estranho e aí se mantém,
expondo o ato artístico no total risco da perda de si – lugar convencional da loucura onde
as referências tendem a se apagar. Os Outros antes desconhecidos impõem-se, anulando
os traços de qualquer referência que se consagre. A alteridade acontece pela negação do
que pode ser conhecido; entrega à exterioridade. A estranheza gera outros “existires”,
tamanho o potencial de deformação. O ato artístico desapropria-se de si, entra no trivial
do estranho, reconhecendo-o.
O desejo e a escolha cedem lugar a mais pura manifestação de corporeidade, onde
nenhuma expectativa pode ser satisfeita. A alteridade se impõe como reconhecimento
desse Outro imoral e obsceno, cujos sinais identitários não posso definir, dado que são
marcas transitórias que de mim também se elevam. A apropriação da monstruosidade, do
sensual, do lascivo do Outro, faz-se em mim, no impulso, sua recepção, e a tradução do
que lhe é próprio transforma a impressão sobre a alteridade conquistada.
A monstruosidade destrói a autoconsciência do corpo, que, ignorante a seu
próprio respeito, faz desmoronar a subjetividade que o referenciava. O impulso edifica,
então, a corporeidade.
O artista andarilho dissimula tais signos capazes de identificá-lo na trivialidade da
relação com os acontecimentos em seu trânsito
20
. Assume as circunstâncias da obra,
inscreve-se no tempo em que ela se faz possibilidade, esse novo autor, que a própria obra
pressupõe.
Se antes os impulsos eram tímidos, voltados para mim, como que em círculos,
agora expansivos, devolvo-os ao mundo. A sensação da perda dos nculos supera a
20
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se
sofre inteiramente”.
SOARES, Bernardo. Livro do Desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, p.254.
41
42
vertigem causada pelo movimento realizado na altura, movimentos bruscos afastam sua
própria sombra, expulsando os fantasmas. Lá embaixo, a cidade burburinha independente
de mim
21
. Convivo com a repulsa e este é o desafio; humanidade agora não é vencê-la,
mas permitir, através dela, o meu próprio aniquilamento.
Coleciono, então, estímulos do mundo conquistado. Imagens sonoras triviais
como uma esquina movimentada da cidade e a poesia Passagem das Horas
22
, de Álvaro
21
“Cidades, com seus comércios (…)
Tudo é mesmamente estranho, mesmamente
Descomunal ao pensamento fundo
Estranhamente incompreendido
Tudo é mistério, tudo é transcendente
Na sua complexidade enorme,
Um raciocínio visionado e exterior,
Uma ordeira misteriosidade,
Silêncio interior cheio de/som/”.
PESSOA, Fernando, 1991, p.54.
22
“… Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
E faz pena saber que há vida que viver amanhã
Eu, enfim, literalmente eu,
E eu metaforicamente também,
Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso
Às leis irrepreensíveis da Vida,…
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo, longínquo…
Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra,
E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros
Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio,
Põem-se alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo,
Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstracto,
Para inencontrável, ali sem restrições nenhumas,
A meta invisível todos os pontos onde eu não estou, e ao mesmo tempo…
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero…”
CAMPOS, Álvaro de. Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.175.
42
de Campos, na memória. Esse poeta, por sua vez, é um heterônimo, um Outro autônomo.
Os sons são percebidos até não mais poder distingui-los. O impulso faz com que
movimento seja som, e os olhos agora escutam. Corporeidade suspensa no ar…
O ritmo do deslocamento dos impulsos produz quase um “desfocado”. No trânsito
das imagens fugidias, outro tipo de apreensão se faz necessária, uma vez que a
formatação visual não é possível; inaugura-se um outro tipo de leitura do movimento
através da percepção do trauma gerado e suas consequências. O tempo para o impulso é o
tempo necessário para que o agora do mundo faça sua impressão sobre nós.
O andarilho, sem destino, rompe com qualquer referente geográfico, cultural ou
político. Inscreve seu próprio mapa aleatório, sem rota pré-concebida. Com ele transita
seu ponto de vista e a moldura que cede lugar aos enquadramentos instantâneos, a todo
tempo demarcados. Seu ato desestabiliza o espaço onde a identidade permanece em
constante deslize, o vagabundo leva o espaço consigo.
Deambulando sem destino pela cidade, o artista mantém-se em trânsito,
instalando sua própria condição entre-lugares. Que condição seria essa, andarilha, para
pensar a arte? Tomando o andar como a atitude mais arcaica e trivial do ser humano em
relação ao movimento, como, a partir do “taiuanês”, pensar uma outra possibilidade de
apreensão da dança
23
?
Em sua atividade de andar a deriva, estabelece modos alternativos de habitar e ver
a cidade, desvelando a infinita realidade, muitas vezes oculta, ao transeunte comum. Para
encontrar o próprio trivial nos recantos da cidade é necessário estar perdido. O único
23
A dança é considerada por Mário de Andrade, assim como o desenho, uma arte intermediária entre as
artes do tempo e do espaço, realizando-se “por meio do tempo, sendo materialmente uma arte em
movimento”. Tempo e espaço tomados, pois, como a priori, categorias da razão pura.
ANDRADE, Mário de. Do desenho”. In: Aspectos das Artes Plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984, p.239.
43
43
44
elemento norteador da percepção é a abstração, a coragem da passividade. O lado ativo
da percepção é o pensamento que vai consagrar os recortes do mundo, apreendidos
artisticamente; recortes do lugar não diferenciado da trivialidade.
É das coisas do mundo, corriqueiras, do dia-a-dia, que o movimento nasce,
destruindo todo e qualquer tema ou narrativa tão arduamente construída no corpo,
destruindo o tempo mesmo de sua construção, inaugurando-o agora, onde uma nova
sensibilidade estética se torna possível.
Hölderlin nos fala sobre a necessidade de que o espírito poético não se
presentifique “num momento singular
24
”, mas em momentos que se prolongam em
outros. Para tanto, é necessário um “ponto de vista infinito”, para que o todo se estilhace
numa infinidade de momentos isolados e supere o contexto objetivo a favor de um outro,
mais sensível.
O impulso, para além de sua autonomia, cumpre a função desse estado
intermediário, onde a influência do mundo se dá a conhecer e manifestar. Estado
Já não posso me mexer. Esvaziamento. Tristeza mundana cala. O que poderia haver nisso
de mais trivial? O que difere este trivial de outro qualquer? O que tem completude
suficiente para ser apropriado? Por que não posso tomar para mim, isso que vivo? Por
que é isso que se apropria de mim? Cala, empobrece. Desistência ou resistência? Fausto
não impulsiona, mal caminha. Fausto pára. Fausto não faz nada, não chora, não ri, não
come, não anda, mas vive na garganta, esse nó, sinal único de resistência, de humanidade,
como que salvação, talvez o último resquício de trivialidade, um na garganta. Se me
aproprio, dou vida. Como posso, então, sentir tamanho conforto em algo que é
simplesmente morte? Eu que nasci para a vida, tenho que morrer pra dar vida a alguma
coisa? Ou esse vazio é mesmo fruto de incompetência? Desnecessário morrer assim? Não
existe um personagem, como pode ter ele um nome? O carro que anuncia a promoção,
como pode estar tão distante, compondo uma realidade tão externa, da qual sequer posso
me apropriar? Estranha. É preciso reagir. Forjar a situação ou entregar? Até a dúvida é
controle. Será possível pensar em entrega? Impossível, entretanto, ler sentada. Parece
mesmo, que o na garganta e a dor nas cadeiras são necessários, vitais à leitura. O
24
HOLDERLIN, Friedrich. Reflexões. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p.39.
44
cansaço e o incômodo levam ao desejo da inércia; impossível realizá-la. Se a coluna não
dói, impossível ler, se sento, impossível ler. Cada vez que paro para escrever, o livro
imediatamente me responde. Dialoga comigo? Por que estou, literal e metaforicamente,
andando em círculos? Será o que me resta fazer? vivi isso antes, embora quase não
me lembre, ou, ao contrário, tento trazer de volta uma situação. Desse ponto, tem
solução? Ou é mais um ponto do círculo? Eterno ciclo. Impossível ignorar a vida do
que se apropria, somente a partir dela, associação, sociedade, cumplicidade, gerar vida
por ir junto, compartilhar, não roubo. Tem propriedade de ser. Lúcifer é o
personagem.
Num atordoamento e confusão
Arde-me a alma, sinto nos meus olhos
Um fogo estranho, de compreensão
E incompreensão urdido, enorme.
Agonia e anseio de existência
Horror e dor, agonia sem fim!
PESSOA, Fernando. Fausto, tragédia subjetiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p.20.
Shakespeare:
E é loucura a inspiração!
PESSOA, Fernando, 1991, p.36.
Quando às vezes eu penso em meu futuro,
Abre-se de repente (…) abismo
Perante o qual me cambaleia o ser.
E ponho sobre os olhos as mãos da alma
Para esconder aquilo que não vejo.
Oh Lúgubres gracejos de expressão!
/Estorce-se-me a alma sacudida e louca
Até parecer rindo/.
PESSOA, Fernando, 1991, p.37.
intermediário em que a “ânsia de identidade
25
”, a ânsia de significação e distinção” e a
“ânsia de harmonia”, convivem e devem mostrar-se irrealizáveis exigindo a “resignação
ou o retorno à infância, ou o desgaste em considerações infrutíferas dentro de si mesmo”.
Arte e natureza deixam de ser dados anteriores à apresentação da linguagem, à nomeação
do desconhecido.
No mundo contemporâneo, a fluidez e o fluxo com que as informações se
propagam, faz com que a identidade se dissolva no mundo, onde pode ser encontrada
25
HOLDERLIN, Friedrich, 1994, p.43.
45
46
no lugar transitório da relação. A condição explorada artisticamente pelo ato trivial do
andar é a do estrangeiro, na eliminação de qualquer ponto de vista fixo, quando novas
construções de identidade se fazem possíveis nas relações travadas com o mundo.
Destituída dos juízos a priori, a arte confere ao trivial a força da imagem que
irrompe presentificando a obra na vida de um primeiro impulso guardado no
descompromisso
26
.
O impulso evidencia também a trivialidade ao se aproximar dessas imagens
cotidianas que nos atravessam e que, muitas vezes, não deixam nenhuma possibilidade de
codificação frente ao inusitado de sua aparição; é antes, reação, apenas. No processo de
sua vivência, quebra a hierarquia do experimento artístico como condição espetacular
diferenciada e é dessa forma que os recortes de realidade por ele produzidos, fazem de
Logo no início, o cheiro, cheiro de esgoto, urina velha de gente.
A mesma mulher na mesma roupa estranha. Ela fala de alguma coisa, viro o rosto,
não quero lhe ouvir, nem entender. Prefiro pensar, somente, que fala outra língua, uma
que não consigo entender.
O mar bate na areia esculpida e molha até o pescoço. Banho, a princípio de sal,
logo em seguida, de merda. Há merda por toda parte, merda de gente.
Olho pra frente e tento me distrair vendo a paisagem, é fácil. E o menino passa
com a bola. O aleatório em sua relação. Ele chuta, a bola rola e ele corre atrás dela, ou
ainda, corre com ela. O Outro, acompanha seu Outro. Mas é preciso, ainda, olhar para
baixo, sob o risco de pisar em alguma merda. Vou embora agora!
O taiuanês. Será por isso que me intriga?
Não posso, não consigo. Lugar onde não consigo chegar. Haverá algum
equivalente a tamanha entrega? Querer o Outro sem desejar a limpeza de sua sujeira.
Abrir mão de tudo que é conhecido e confortável.
Onde estão meus impulsos? Abrir mão de todo hábito é entrar no lugar
26
“Não importa o que ele escreva, a frase já está perfeita. Esta é a certeza profunda e estranha da qual a arte
faz sua meta. O que está escrito não é nem bem nem mal escrito, nem importante nem vão, nem memorável
nem digno de esquecimento: é o movimento perfeito pelo qual o que dentro não era nada veio para a
realidade monumental de fora como algo necessariamente verdadeiro, como uma tradução necessariamente
fiel, já que aquele que ela traduz só existe por ela e nela”.
BLANCHOT, Maurice. A Parte do Fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p.295.
46
desconhecido do Outro, onde tudo é possível, pois, não é meu próprio, mas do Outro.
A condição do andarilho. Aberto a toda e qualquer reação possível, aceitação
plena do desconhecido.
Centro da cidade, o ser disforme, se num primeiro momento me olha, logo sua
cara rasteja no chão. Deus e o diabo na terra do sol. Cedo ao calor e à náusea, é preciso
sentar. Na escada do metrô há sombra, a menina e o bebê. Vou embora.
Mas que liga espaço, tempo, que liga seres,
Que liga um mundo, (…) cores, sons,
Movimentos, mudanças (…)
Que liga qualquer cousa, sim que a liga?
Isto, considerado intimamente,
Afoga-me de horror. E eu cambaleio
Pelas vias escuras da loucura,
Olhos vagos de susto pelo facto
De haver realidade, e de haver ser.
Estrelas distantes, flores, campos – tudo
Desde o maior ao mínimo, do grande
Ao vulgar, quando eu, aqui sentado,
Fixamente o contemplo até que chegue
`A consciência sobrenatural
Daquilo como SER, desse existir
Como existência, tremo e de repente
Uma sombra da noite pavorosa
Invade-me o gelado pensamento,
E eu, parece-me que um desmaio envolve
O que em mim é mais meu, que vou caindo
Num precipício cujo horror não sei,
Nem a mim mesmo logro figurar,
Que só calculo quando nele estou.
PESSOA, Fernando. Fausto, tragédia subjetiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p.33.
sua escrita, formas de vida. A ruptura do espetáculo inaugura a categoria de risco na qual
a heteronomia se funda, na trivialidade da não produção de estereótipos.
É furtando-se das tarefas da eternidade que o andarilho encontra o sublime no
corriqueiro, de acordo com a concepção do ordinário de Cavell. O gesto cotidiano
instaura a sublimidade na linguagem, não pela busca de semelhança. Se o risco
espetacular do Outro me coloca diante de minha própria mediocridade, com ele me
identifico, porém, sem qualquer possibilidade de relação. É por reconhecimento da
diferença que a relação pode ser travada. A trivialidade das imagens do quotidiano traz a
47
48
possibilidade do contato com o fantástico do Outro
27
, deste que faz parte da vida a cada
dia, este que desconheço, assim como desconheço tantos “eus Outros” que possam, por
relação com o mundo, se apresentar desde que se esteja em estado de alerta, disponível ao
inusitado. Ritual de resistência? Seria, então, sua atitude, a busca de um absoluto na
trivialidade?
A sublimidade acontece, então, através da alteração do olhar diante do comum
que talvez, por mudança perceptiva, aconteça sublime. O trivial se justifica na ficção que
a vida é, na teatralização que confere a tantos “eus”, liberdade; no ordinário onde o
comum é o espetáculo, ordinário no qual a vivência mais simples adquire importância
infinita; na impessoalidade da alma.
É na trivialidade do acontecimento cotidiano que as pequenas percepções se
tornam alimento das poéticas que escapam a semiotização. O drama aproxima o trabalho
artístico da vida das pessoas, não pela expectativa do que poderia vir a ser, se “comum”
não fosse, mas pela vivência cotidiana dos traumas e sua inserção no contexto de
validade do espectador, mesmo que o espectador não tenha consciência sobre o
acontecido.
O impulso se expressa como erupção imagética a partir da qual uma infinidade de
metáforas pode ser retirada; apresenta na manutenção da dúvida. É na possibilidade de
deformação de qualquer harmonia instituída, que anuncia ao reino do movimento, sua
própria ruína.
O andarilho se permite desestruturar pelas imagens. Ele vive as confusões da
27
O outro aqui é concebido segundo a leitura de Emmanuel Lévinas feita por Derrida. Refere-se ao Outro
cuja separação de mim é infinita. O Outro cuja presença pode ser pressentida pelo encanto quando nos
toma e nos arranca de nós mesmos. O Outro de mim mesmo, gerado quando o objeto não pode ser, pelo
sujeito, apropriado, mantendo-se desconhecimento.
DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2004.
48
49
percepção. Entrega-se à condição passageira. E se algo insinua configurar-se, é somente
até que nova situação surja – referências temporárias filtradas pela visualidade.
Onde estará, então, a vida? No real
28
, no sonho, no acontecimento mais trivial ou
no movimento por ele motivado? A linguagem produzida é forma de vida, o que é, então,
capaz de distingui-la da vida em si?
dúvida
é hora de repensar a questão. Que motivos causaram a aproximação do artista
andarilho? Seu experimento, pela dimensão alcançada, esgarça as referências a priori, e a
bailarina também não as quer. Volto ao projeto. A busca era por uma palavra, um
problema a nomear e percebo-o agora como um estado. A procura pelo esclarecimento da
dúvida cede lugar à aceitação do gerúndio, um “duvidando” que reflete a manutenção,
somente, da inesgotável descrença.
A palavra-estado é ceticismo. Se pareço saber o que procuro, é no dado da
indeterminação que encontro resposta.
O projeto já denunciava a dúvida quanto à possibilidade do alcance de linguagens
fechadas que afastam o artista dos possíveis agenciamentos com o mundo. O estado de
dúvida caracterizado pelo ceticismo é velado e reside, muitas vezes, na impossibilidade
de, claramente, apontar o inimigo, mas apenas pressenti-lo.
A desconfiança surge, até mesmo, com relação a minha própria capacidade de
desapego pessoal ao acolhimento do Outro, misto de admiração e desconfiança sentido
28
“A verdade é que ele [o escritor] arruína a ação, não porque disponha do irreal, mas porque coloca à
nossa disposição toda a realidade. A irrealidade começa com o tudo. O imaginário não é uma estranha
região situada além do mundo; é o próprio mundo, mas o mundo como conjunto, como o todo”.
BLANCHOT, Maurice, 1997, p.305.
49
50
frente à obra do taiuanês; meu mundo diante da perda de referências e do conforto
adquirido. É a insegurança com relação a minha própria capacidade humana o que
agencia o contato com o filósofo americano Stanley Cavell.
Em seu texto, El filósofo en la vida Americana (acerca de Thoreau e Emerson)
29
,
o autor descreve sua interpretação das Investigações filosóficas
30
de Wittgenstein, no que
diz respeito ao ceticismo a partir da linguagem ordinária como se segue:
En este punto, mi pensamiento era que el escepticismo es un lugar,
probablemente el lugar secular fundamental, donde se expresa el desejo humano de
negar la condición de la existencia humana; y en la medida en que esta negación es
esencial a lo que entendemos por lo humano, el escepticismo no puede, o no debe, ser
negado. Esto hace del escepticismo un argumento interno a la criatura humana
individual, o separada; por decirlo así un argumento del yo consigo mismo (por encima
de su finitud). Y llegó a parecerme que esto mismo se expresa como una especie de
argumento del lenguaje consigo mismo (por encima de su esencia) cuando desarrolaba
la idea de que las Investigaciones de Wittgenstein no están escritas-como según mi
experiencia había sido uniformemente asumido-como una refutación del escepticismo
(como si el problema del escepticismo estuviera expresado por una tesis), sino como
una respuesta a lo que he dado en llamar la verdad del escepticismo (como si el
problema del escepticismo se expresara por su amenaza, o tentación, por el sentido que
tenemos de carencia de fundamentos).
Não representa o impulso, a negação de algo pré-concebido como existência na
falência de sua potência poética? Não afirma ele a possibilidade de redenção da poética
pela vida, na construção do presente da obra que se apresenta?
Para Cavell, Wittgenstein defende o ordinário, a linguagem ordinária como saída
possível da angústia de morte causada pelo ceticismo. Não estaria eu dialogando com ele
na escolha da trivialidade das imagens empregadas, fontes de trauma para os movimentos
que, a partir delas, se seguem? Também não são ordinários os impulsos, enquanto leitura
das imagens autônomas e não hierarquizadas neste processo de humanização onde o
29
CAVELL, Stanley. En busca de lo ordinario. Valencia: Frónefif, 2002, p.61
30
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Vozes, 2005.
50
51
espetacular perde respaldo e lugar de importância?
Emerson e Thoreau
31
confirmariam Wittgenstein em sua devoção ao comum na
filosofia da linguagem ordinária, contra o que representaria para eles “una intimidad
perdida con la existencia
32
. Thoreau denominaria esta condição cotidiana, “tranquila
desesperación” e Emerson, por sua vez, “melancolia silenciosa
33
”.
31
“…que el sentido de lo ordinario que mi obra deriva del ejercicio del segundo Wittgenstein y de J. L.
Austin, el su atención al lenguaje de la vida ordinaria o cotidiana, está respaldado por Emerson y Thoreau
en su devoción al tipo de cosa que ellos llaman lo común, lo familiar, lo cercano, lo bajo. Esta connexion
significa que yo entiendo ambos desarrolos filosofia del language ordinario y transcendentalismo
Americano – como respuestas al escepticismo, a esa ansiedad concerniente a nuestras capacidades humanas
en tanto que cognoscentes que, cabe asumir, abre la filosofia moderna con Descartes, ansiedad interpretada
por esta filosofia como sujeción humana a la duda.”
CAVELL, Stanley, 2002, p.60.
32
Ibidem, p.61.
33
Ibidem, p.66.
51
52
Entendida num sentido espiritual e religioso, a perdição consiste em viajar para o
âmbito de uma terra estrangeira, em estar fora.
BORGES, Jorge Luis, 2001, p.172.
Os impulsos se perdem, ou talvez, a consciência deles. O corpo assume
movimentos compulsivos, espasmos.
Não sei quanto tempo dura, mas é medido pela cada vez maior dissolução da
forma. Parece que o fim nunca vai chegar, não sei se estou morta e preciso parar, mas
continuar é a única possibilidade de fuga. Não percebo o cansaço chegar, é como se
estivesse de fora, talvez o único indício, a respiração.
O Outro, ser o Outro. O Outro que me soa completamente desconhecido. O corpo
não obedece, mas sequer há ordens a seguir. O que estou seguindo, já nem sei mais o que
é, nem tampouco o nomeio mais impulso.
Vômito, o mosaico é o corpo estendido no chão. O movimento continua sendo
somente espasmo, choro, soluços. Mal consigo levantar e quando me dou conta, estou em
frente ao espelho. Esse Outro, rosto muito branco, orelhas marcadas, o olho transparente
como que feito de pupilas. Será por acaso nunca pronunciar seu nome? Será ele essa
marca, ou o Outro que se propõe a viver?
A impossibilidade de estar de por total fragmentação, desconhecimento.
Permissão a que o Outro seja. A questão, somente, com ou sem rodeios.
53
Cavell propõe a questão do ceticismo como a representação de uma tragédia
34
e
que nossas vidas ordinárias participam da tragédia pela vivência dele. O extraordinário
estaria presente no que chamamos de usual, e é através da trivialidade faz o pedido à
filosofia para que abandone a tarefa argumentativa, propondo uma outra tomada de
responsabilidade sobre o discurso, como a poesia
35
. A poesia recoloca nosso poder de
expressar para além do que julgamos já conhecer. Por ela a escrita se torna ato passivo de
recepção da linguagem do Outro. A filosofia passa a ser reivindicada como a relação
entre ler e escrever, não livros, mas o que quer que se apresente.
O autor renuncia, dessa forma, à herança filosófica européia para a América
36
,
conferindo a este continente autoridade própria sobre seu filosofar que se inaugura
poeticamente, na literatura. Na América, lugar do ordinário onde o conto fantástico é
possível, esse Outro fantástico é meu louco e, por ele, a linguagem se realiza. Qualquer
significância só é passível de coerência na medida em que se torna necessária. Se há uma
lei, então é apenas sob a ordem da necessidade de que a fenomenologia seja fiel a si
mesma. Cavell nomeia essa outra forma filosófica chamando-a “leitura”.
Segundo Cavell uma herança, adotada por Wittgenstein, da lógica
34
Se, na modernidade, a busca do objeto puro de Mondrian significou para o artista a negação da
motivação trágica da vida para a construção da obra, o ceticismo como argumento artístico propõe uma
nova aproximação arte/vida pela aceitação do trágico estado da dúvida. A objetivação moderna pode, então,
ser considerada como a busca da eliminação das dúvidas e o restabelecimento do ceticismo, como uma
tentativa de humanização, e não subjetivação, do fazer artístico.
35
“A linguagem significa quando, em vez de copiar o pensamento, deixa-se desfazer e refazer por ele. Traz
seu sentido como o rastro de um passo significa o movimento e o esforço de um corpo. Distingamos o uso
empírico da linguagem já elaborada e o uso criador, do qual o primeiro, aliás, só pode ser um resultado”.
MERLEU-PONTY, Maurice. O olho e o Espírito. São Paulo: Cosac & Naif, 2004, p.73.
36
Ou se aceita uma herança determinada, ou se cria a própria história.
“Los americanos no son, en todo caso todavía no, lo que cabe llamar profesores de filosofia, obrigados a
leer todos y cada uno de los textos que se proclaman como filosofia y a encontrarles un lugar en nuestros
pensamientos. No somos poseedores de ningún discurso estable donde encajar todas y cada una de las cosas
que han dicho los filósofos. O bien somos filósofos o no somos nada; no tenemos nada que profesar. O bien
somos capaces de repensar un pensamiento que nos salga al paso, de hacerlo nuestro y evaluarlo según se
nos presente, o tenemos que dejarlo pasar de largo, no es nuestro”.
CAVELL, Stanley, 2002, p.78.
54
3131
31
54
55
transcendental de Kant. Nela, Kant enuncia um uso a priori do conhecimento, sua
possibilidade anterior, da mesma forma que Wittgenstein dirige a investigação, não aos
fenômenos, mas à possibilidade de seu acontecimento. Assim, também, o corpo pode ser
visto como um dado, a priori ao movimento, que, enquanto tal, não pode ser negado, mas
apenas anulada sua importância determinante na realização do acontecimento poético
feito corporeidade no impulso. Meu louco, o andarilho, miserável, que nada possui além
do instante inaugurado por necessidade, e é assim que o impulso acontece: pela aceitação
do acidente. É no ordinário do mundo manifestado por seu movimento que a dança pode,
a todo tempo, inventar a própria herança no fantástico do Outro.
É a partir da motivação frente ao diálogo com Stanley Cavell, que a questão pode,
então, ser claramente formulada. Diante do meu próprio ceticismo e desespero com a
possibilidade de a linguagem ser meramente um acordo, descubro o impulso onde ela se
faz forma de vida, capaz de dar provas sobre a existência da vida do movimento dançado.
O impulso inaugura o dado de indeterminação no ato do experimento, mantém
suspensa a dúvida, assumindo a essencialidade do ceticismo frente à rigidez da
experiência que se realiza de cor. Mesmo que da forma mais espontânea, alguém terá
que, por memorização, realizar a atitude da dança. É nesse universo que nasce o impulso
enquanto dado mínimo de flexão da categoria. Expressão que é da perda do objeto e da
dor que acompanha a busca de sua apreensão, o impulso declina o declínio do conceito de
dança, torna o discurso, hipótese, dignifica sua escrita. Apesar de signo que se imprime,
traz a potência do vazio de qualquer marca, que enquanto traço de humanidade pode se
levantar e dizer: existo. O rosto no espelho, o andarilho entrega-se ao acolhimento, na
visão de sua própria imagem, a condição de sua existência. Derrida afirma: “o que o rosto
55
tem em comum com a hospitalidade é a irredutibilidade ao tema, aquilo que excede a
formalização ou a descrição tematizante
37
”.
O ceticismo nunca é o suficiente. Por ele, a dança reinventa o próprio andar
olhando-se no espelho. Abandonada a revelia
38
, sobrevive estrangeira na linguagem
encerrada por apenas um gesto.
estado “andarilho”
O impulso enquanto balbuciar anterior a qualquer palavra de movimento, potência
de vida a partir da qual ela inclusive pode surgir, leva a linguagem gestual a experimentar
o nada que precede a estabilidade do discurso. Por não falar de nada, o impulso permite
aos movimentos que dele brotam a manutenção do mutismo significativo que compõe a
palavra instável, desígnio da imagem fugidia e autônoma, e que, sob essa condição, se
mantém, assim como o andarilho, o mutismo anterior à pronúncia de seu nome.
O impulso pede para falar. não é mais possível definir seu tema, ao movimento
nada é atribuído a não ser por opinião, e assim, desestabiliza a linguagem da dança na
pretensão de nada ser além do elemento que falta. Através dele a linguagem se torna o
silêncio aberto a qualquer significação, renunciando à repetição de palavras mortas em
sua estabilidade de associações. O que apresenta a realização do nada no nada da obra: a
simples materialização do afeto constituída pelo acolhimento do Outro.
37
DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.39.
38
“The moral the private” “language” “argumentwould like for us to draw may than perhaps be put as
follows: there is no way for the skeptic to be skeptical enough… Should the skeptic just give up his
skepticism, or should he, until he finds a way to go further, just refraim from confessing it?”
CAVELL, Stanley. The Claim of Reason. Oxford: Oxford University Press, 1979, p.353.
56
56
Impulsos de canção.
Se há fundo?
O homem bêbado pára e contempla e, de repente, o grito da criança.
Grito na canção. É uma resposta? É a iminência da fuga?
Espaço amplo, a torção faz os soluços que desvirtuam o caminho, pés percorrem
superfície de mar, raio, buzina, mareia; ela não sabia dizer nada, beijo… e sabia beijar
também.
Livro fechado, vida aberta à memória ou o que talvez nem seja esta, ou aquela outra,
talvez não seja nada.
Cada queda interrompe o fluxo, estaca zero, zero de energia, como se nunca possível
parar, só recomeço, e esvazio a história.
Ler um pouco mais.
Impulso que quica e reverbera faz continuar a canção, suspende a gravidade; zero é o
peso da gravidade.
Superfície, mapeamento, rastreamento.
A melodia, que agora é da voz, cessa o movimento, os passos dão a cadência, nova dança
de palavras, o é preciso reconhecer seu significado, de uma fala a outra, o movimento
próprio à música cantada.
Música é agora dança, dança sonora de palavras sem sentido.
Gritos não são vírgulas, mas tropeços.
Não são pausas para a respiração.
Atos falhos, más leituras; no que darão?
E se eu simplesmente não der nome a isso que se configura?
O som do vento…
Mar, vento, folhas, trovão, águas, vacas mugindo, o mercado de gado, galinhas não
cucurucam, serpentes que tsiam. Há música por toda parte. A porta do Ruttledge: êê
rangente. Não, isso é ruído. O minueto de Dom Giovanni é o que ele está tocando agora.
Vestido de gala de todos os tipos nas câmaras do castelo dançando. Miséria.
Camponeses do lado de fora. Verdes caras esfomeadas comendo azedinhas. Bonito é o
que é isso. Olhar, olhar, olhar, olhar, olhar, olhar: tu nos olhas.
JOYCE, James. Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p.366.
Na dança a própria efemeridade da execução e apreensão dos movimentos poderia
57
58
ser lida como indicadora de sua condição andarilha. Os movimentos de impulso,
constituidores de lugares, não necessariamente definem espaços propiciadores de leitura
que os materialize enquanto linguagem, mas como palavras soltas. Surge, por reação, a
palavra capaz de nomear o acontecimento. E se cada um desses acontecimentos parece
revelar um fragmento da totalidade nunca vislumbrada, imediatamente cede lugar a outro
acontecimento, e se faz, então, outro fragmento, outro impulso, outra palavra.
O espaço virtual do bailarino torna-se também fugidio, inerente a transitoriedade
dele cuja presença, enquanto ocupação, se faz, imediatamente, ausência. Assume seu grau
zero, o que permite propiciar ao espaço físico prévio, falar; a subjetividade é
desqualificada. E a ausência do espaço constituído mantém a condição primária de
humanidade que o movimento apresenta, ordinariamente. É na passividade da potência de
recepção dos traumas que a fugacidade e a evanescência do autêntico da obra se
sustentam a cada instante.
A palavra pode ser, então, lida como idéia, no singular, autônoma em sua
liberdade de associações. A fala da dança é a palavra que a denomina. Dançando sei que
assim como “alma”, a palavra, “dança”, não pode ser usada como referência.
A compreensão da nova linguagem se por seu movimento, na autonomia das
palavras não determinantes de um discurso, na ausência mesmo dessas palavras. Fala-se
aos surdos, trazendo a linguagem ao lugar das artes mudas. Linguagem andarilha.
Na vivência da dúvida quanto à possibilidade de sustentação do significado, troco
a palavra. A troca das palavras é a confirmação do ceticismo, a admissão de que o
discurso não é abrangente o suficiente para que possamos, simplesmente, renomeá-las,
atribuindo-lhes, meramente, novo significado. A vida da palavra escrita é garantida pela
58
possibilidade da troca; intransigente a qualquer processo de adequação, de re-significação
que sustente seu uso, ela realiza o desapego. A perda se faz, senão necessária, essencial.
Que significado, afinal, de se esperar de algo que existe e origem a seu tempo?
Que significado esperar da vida expressa na palavra impulso além do aqui e agora que
presentifica o experimento, palavra pronunciada (dançada)? Pensa-se, antes, em sua
leitura e na própria palavra “ler”. Já que a palavra inaugura o mundo, sua escolha decorre
da adequação ao mundo instalado. E é por aspirar compreensão que se atribui a ela
tamanha importância, guardada a possibilidade que tem de ser traduzida, parafraseada.
A necessidade da troca das palavras pode também ser vista como metáfora da
distância e efemeridade do que se fala embora a dança preserve o lógos vivo dessa fala
39
pelos gestos do corpo. Assim como o andarilho, a escrita da dança o reside em nada e
dessa forma, se submete, apenas, às leis da vida, discurso vivo que é; o simulacro da
identificação é inutilizado. O estrangeiro se reconhece no Outro obsceno, e assim
vivencia a alegoria das palavras, a metáfora da necessidade de que a leitura da expressão
humana seja consumada. “Metáfora” significa a possibilidade de a expressão ser
traduzida em outras, fato que dilui as representações.
O impulso realiza a morte do que é passível de categorização e, mantendo-se
assim, dignifica a vida de sua palavra prévia ao movimento a ser configurado. Não há,
para ela, uma forma definida, mas múltiplas, o enigma do Outro é restaurado pela
impossibilidade de sua identificação à certeza de uma só configuração.
Adarilha é, então, a palavra continuamente trocada. E o artista que entregue à
39
“Pois o discurso ‘vivo’, uma fala (e não um tema, um objeto ou um assunto de discurso) pode ter
um pai; e, segundo uma necessidade que não cessará de iluminar-se para nós, os logói são crianças. Vivos o
bastante para protestar quando for o caso e para se deixar questionar, capazes também, diferentemente das
coisas escritas, de responder quando seu pai está presente. Eles são a presença responsável de seu pai”.
DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991, p.23.
59
59
60
passividade frente à escolha pelas palavras transita, afinal, em êxodo no mundo, elas
exigem pastoreio. Cavell assume a escrita como assunto de vida ou morte. Expressa a
existência do “eu” na possessão das palavras e sua devolução a vida – essa é a herança de
Emerson
40
para pensar a linguagem.
A única restrição é não poder estar abrigado sob um teto. O andarilho se faz
condição literal da vida da arte, vive o paradoxo das associações sem meta. Andarilha é a
arte, onde obra e autor não constituem um espaço formal definido, mas andam pela
história da arte ou por tantas triviais possibilidades, indiscriminadamente. Arte andarilha
que não realiza a ocupação de espaços: isso já seria uma tematização?
O impulso toma a responsabilidade sobre o movimento sem qualquer
comprometimento com sistemas de crenças tornados insuficientes. Se uma tematização
prévia se faz necessária, é na medida da ameaça que nossa percepção sofre. Longe de
qualquer referência que suporte à obra, histórica ou pessoal, a condição da própria
dança enquanto categoria estética se desconstitui, uma vez que sua poética está
subordinada apenas ao inusitado. O que pode a dança enquanto categoria, que pela
presença do vivo, traz o frescor da fala? O que pode sua escrita? O que sabe o texto da
dança?
A plasticidade da carne pode ser usada como tentativa de conferir flexibilidade ao
discurso da dança, tão justificado no dado corpo, tornado morto pelo impulso. À dança só
uma razão pode ser atribuída: a pluralidade de interpretações possíveis. O que antes era
belo agora se define como recusa da cadeia representativa que atribuiu ao corpo função
pré-determinada, estética ou cultural.
40
“Tal como sou, assim eu vejo; qualquer que seja a linguagem que usemos, nunca podemos dizer nada a
não ser aquilo que somos”…
CAVELL, Stanley, 2004. Apêndice, p.145.
60
O corpo, vazio mesmo com todos os seus órgãos, tem o efeito de sua
materialidade anulada pela corporeidade: potência de movimento disponível à motivação
do mundo externo, prestes a assumir, por autonomia, a tradução de quaisquer estímulos
em impulsos. A passividade frente ao ordinário, que na força da simplicidade se
apresenta, embora não isente o artista da responsabilidade por sua escolha, confere a ele
opção frente ao uso da linguagem.
Henri Pierre Jeudy, afirma em seu livro, O corpo como objeto de arte
41
que, na
performance, a imediaticidade da expressão do corpo afasta-o da representação. Ele
associa a expressão ao poder de afecção e afirma que esta precederia a representação
decorrente de posterior interpretação. Reconhece, entretanto, como impossível abandonar
a ordem da representação e que sua negação significaria, na verdade, um desejo de
escapar da relação especular, alterando hábitos perceptivos. O autor considera o espelho
como “a experiência originária da entrada na ordem simbólica
42
”. Por comodidade nos
tornamos fantasmas ou meros espectros, sem a possibilidade de reconhecimento de lugar
nenhum. O espelho é o próprio pensamento que desvirtua a sensação em busca do
conhecimento, de algo que o identifique, e oriente.
Cavell, por sua vez, atribui ao corpo a função de expressar a alma, afastando-o da
função representativa
43
, afirmando que o corpo é da alma, condenado a seu propósito.
Esta é uma visão fenomenológica que atribui o pensamento da alma segundo o corpo e
não segundo si mesma, e a união dos dois inclui o espaço externo onde age a percepção.
E é através da relação interno/externo que nasce a visão em ato, sobre a qual o
41
JEUDY, Henri Pierre. O Corpo Como Objeto de Arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p.109.
42
JEUDY Henri Pierre, 2002, p.120.
43
“The statue is not in the stone (except in a certain myth of the sculptor); the statue is not on the stone
(except in the case of itaglio). The statue is stone.”
CAVELL, Stanley, 1979, p.398.
61
61
pensamento não pode ser transferido e pela qual o enigma se mantém. O corpo se
constitui, então, não como o meio pelo qual a visão se realiza, mas como seu
depositário. Quando a idéia da coisa não mais existe, a coisa e sua idéia se tornam um só,
o que é possível exclusivamente por tradução; não por representação.
Merleau-Ponty fala desse “corpo atual que chamo meu”. Descreve-o como a
“sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e meus atos
44
”. Refere-se ao
corpo que por mim transita e pelo qual, e com o qual transito; não o corpo em sua
materialidade animal, mas Outros, estrangeiros por sua própria espécie e território. A
tarefa da corporeidade: conferir um corpo, um lugar ao que não o tem; tornar visível a
invisibilidade.
Pode-se dizer da corporeidade do bailarino não que seja a negação do corpo, mas
de seu caráter determinante. É o traço incorpóreo, a expressão do silêncio que convida o
espectador a falar. Agindo sobre esse espectador a quem é permitido ver o mundo por
outros olhos, incitando-o a seu próprio gesto, é que a obra de arte é consumada sem exigir
a completude de sua forma. Por corporeidade, a condição de vida do corpo é a de
interpretar o mundo através dos experimentos por ele vivenciados, transformando-o em
movimento, realizando o eterno recomeço de sua existência. Corpo social, trivial, cuja
carne incrustada de mundo os mantém atrelados, por definição.
A alteração da plasticidade que comporta o sentido feito corporeidade não resulta
do dado embora não o preceda a priori que é. Essa é uma possibilidade desse corpo
transitório, construtor de presente, corpo que traduz visibilidade em dança. Corpo que
não toma para si, não se apropria assumindo o rigor do compromisso subjetivo, mas
transforma em si, responsabiliza-se por seu ponto de vista, antecipa sua própria visão
44
MERLEAU-PONTY, Maurice, 2004, p.14.
62
62
num impulso de movimento. O mundo produz em nós sua forma carnal acolhida, e é isso
o que viabiliza sua existência. Andarilha é a corporeidade.
Sob a condição andarilha, a dança acontece “sendo”. Inaugura o tempo do
movimento que a configura. O impulso é o anúncio da mudança perceptiva pela qual o
movimento passa a ter a verdade do andar, a certeza da duração de cada passo e a vida
transitória de suas pegadas inscritas no corpo. Este cumpre somente o testemunho da
união ativo/passivo, quando ainda não podem se distinguir. No imediato da expressão do
contágio das imagens é possível questionar a escrita de movimento, situando-a no lugar
das possibilidades infinitas onde o especular não mais se consagra.
A dança abandona, assim, os modelos e inaugura um estado performativo.
“Performando”, ela institucionaliza questões como identidade e essencialidade; não se
preocupa materialmente com o que lhe é de competência, afinal, como diferenciar o
corpo utilizado na dança, nas performances, ou na body-art? O caráter representativo de
sua expressão pode ser ignorado pela passividade e entrega do bailarino aos arquivos, o
abandono das codificações próprias da memória, de onde quer que ela venha.
Para isso funcionam os arquivos: para que as coisas do mundo, por autonomia,
possam ser expressas por nós, sem que tenhamos sobre elas, controle além da capacidade
que temos de expressá-las. O artista intui a resposta, veículo que é do mundo, feito cavalo
de macumba. O experimento de arte sugerido por impulso é sensível, imediato: destrói
qualquer arquivo prévio e exige do Outro muito aquém de sua compreensão; a leitura
torna apenas seu vestígio possível. Inutilizando, por imediatismo, o próprio arquivo, o
63
63
Destruição.
Olhos fechados.
Gira em círculos. O barulho do vento. Calafrio.
De um papel a outro, presa a um círculo de papel.
O desterro é um pé que não pára, de um ponto a outro,
em fração de segundos.
Em fração, partido, o todo não há; a memória, não.
Integridade da parte.
Tremo ao pensar voltar, e tento, e parece que não posso me lembrar, não sei o caminho.
Eu tento, e, da prisão, o riso. Já não posso.
Pequenos espasmos de fuga.
Não configura.
Andarilha, de uma frase a outra,
me perco.
Rasgo o papel e rio,
o impulso é de rir.
O pé não mais pisa porque desliza em papel de horror e consciência.
Queria reter e agora, só destroços.
Brincadeira sobre dor e ódio.
Não posso mais ler,
só papel branco no chão.
Brinco com a dor, rasgo o papel,
eu posso tudo.
Meus pés se tornam papel, é ridículo como não consigo sair daqui.
Deslizam sobre o Cristo Negro que não sou eu.
Papel pra cachorro comer.
Guardo agora os restos da minha consciência. O espaço já não me prende.
Da casa. Do pagode no morro. Do mundo.
O mundo!
O impulso fez-se movimento; ele se fazia, e era, então, percebido.
impulso se destitui da potência mimética representativa; a dificuldade de sua leitura não
64
65
permite identificá-lo prontamente nem tornar possível seu conhecimento. Ato erótico que
permite a elevação do Outro no próprio corpo, ele sustenta o esquecimento que
decepciona a ânsia pela criação de novos arquivos. A pulsão de destruição é infinita e
destrói os limites e as próprias condições transcendentais de manutenção do dado. Não é
mais possível pensar a dança sequer enquanto categoria, que estão dissolvidas suas
referências próprias de identificação. Se a categoria ainda se constitui, é para a garantia
de sua visibilidade, preocupação mercadológica quanto às formas de apresentação e não
quanto aos recursos expressivos; sobrevive para a determinação de seus meios.
O impulso realiza a troca do movimento, uma vez que ele não faz o menor
sentido quando uma real mudança na percepção estética se efetua. Faz a transferência de
sua obra (o andarilho) para um outro contexto que não é o das artes visuais, nem o que
habitualmente se costuma chamar dança, onde se pode ver com o fígado ou as vísceras,
ou pelo tato do ar deslocado, ou ainda pelos próprios olhos. O dado, desfuncionalizado
em prol da vida do acontecimento, é feito motivação, gerando novas vias perceptivas e a
necessidade de outras formas de leitura. Assim, é por deformação do sentido estético,
reconhecimento do corpo, que a percepção elege seus lugares.
A arte contemporânea se funda na recuperação do estranho no familiar, no dado
espetacular a ser produzido para o reconhecimento por semelhança como única
possibilidade mas é no trivial, no espetáculo que a existência mesma é, que a dor
pelo automatismo perceptivo se revela. Nessa vida de hábitos e sensações grosseiras
quase tudo parece ser pouco merecedor de registro. O impulso recepciona as questões do
mundo e, na trivialidade de sua ocorrência, nenhuma reserva visual para o
reconhecimento de seu movimento pode ser aceita. O impulso é o lugar do movimento
65
onde a resposta ao Outro assume exclusivamente o rigor da percepção, onde a única
certeza que nos resta é a da visão em sua inquietude. Nossa percepção, moldada pelas
referências externas, opera com o significante e o significado conferidos pela visualidade.
E é permitindo a vinda do visível a si por movimento, que o bailarino nasce das
coisas assumindo seu caráter figurativo, concentrando em si a visibilidade do mundo,
sem, no entanto, representá-lo. Vítima do significado, o andarilho tenta o escape do
automatismo perceptivo associado a uma pré-significação. A visualidade se apresenta
andarilha, em seu potencial de significação.
Assim, através da leitura do mundo exterior, a prisão conferida pelo corpo torna-
se não mais um tormento, mas a possibilidade da fuga, da ausência de si mesmo pelo
escape conferido aos olhos. A visão é o instrumento do acolhimento. Andarilha é a
percepção
45
.
O andarilho idealizável é Tehching Hsieh. Seu experimento cumpre a função
literal do contínuo trânsito: sempre prestes a estabelecer lugares-tempo de relação onde
quer que o trauma ocorra. Metáfora da história da arte e da dança, hipérbole do artista
contemporâneo, é por dessemelhança que sua obra pode ser comparada à de outros
artistas, andarilhos também, na proposição de seus experimentos.
A partir de meu próprio experimento dou vida ao andarilho, ele não serve como
modelo, mas renasce no trabalho, na medida em que, a partir dele, assumo outro ponto de
vista. Seria esse o ato de renomear a arte dita contemporânea, abolindo a obra como
45
Didi-Huberman propõe a “crise das palavras”, portadoras, se possível, de “efeitos críticos e
construtivos”. Isso feito a partir da análise das palavras “forma” e “presença”. O autor apresenta a
concepção de Derrida segundo a qual a “presença real” perderia sua força enquanto expressão, em toda a
tradição filosófica. Ele propõe, em contrapartida, a palavra differánce, situando a presença enquanto
questão de “determinação” e “efeito”. A nova palavra proposta cumpriria, justamente, a função de eliminar
a oposição entre ativo/passivo, causa/efeito, presença/ausência, sugerindo a crise da própria visualidade.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O Que Vemos, O Que Nos Olha. São Paulo: Ed. 34, 1998, p.201.
66
66
referência cultural morta? Que tipo de obra é essa que me leva a percebê-la de outra
forma?
O mesmo ocorre com Cavell. Antes de tomá-lo como herança, o que proponho é a
manutenção da interrogação em meu próprio ato prático de corporeidade, a fuga de toda
tradição pela proposição da palavra; a tomada de responsabilidade sobre a leitura de sua
obra e a produção pessoal da contra-imagem dela decorrente. A tentativa é de percebê-la
através da expressão primordial de resposta não da busca por adequação.
O impulso é aqui dado de tolerância, a possibilidade da dança na indeterminação
do acontecimento. É tomando-a, bem como ao movimento, como dados de dúvida, ou
seja, depreciando-os com a incerteza, que se torna possível confirmá-los, edificá-los a
partir de suas ruínas. A tentativa é de garantir a autonomia e a vida do movimento,
questionando a dança.
traços paralelos
estava lá, no projeto, todo o tempo. Era preciso apenas decidir sob que
argumentos tratar a questão; vivenciá-los. Se antes propunha a construção de uma
geografia, é na atitude arcaica dos passos do andarilho que ela se torna possível. E se a
questão da autoria era abordada sob a necessidade da negação da genialidade do artista,
sua negação enquanto sujeito, esta se mantém, no entanto, sob o argumento da
passividade diante de sua própria inscrição na obra, mesmo sendo ele anterior a ela;
aceitação do paradoxo. Uma dentre tantas possibilidades começa a surgir para o enfoque
artístico a que me proponho pesquisar.
Os objetos de arte, materialidade da obra, se antes eram tratados como produtos
mercadológicos ou mesmo ideológicos preocupação tão presente na Transvanguarda
67
67
68
dos anos 80 e seu debate sobre o conceito de identidade da arte “contemporânea” – já não
podem mais ser “reconhecidos e instituídos na sociedade do capital
46
”. Na transitoriedade
do mundo contemporâneo, na qual a arte pode ser definida como “algo que está em toda
parte e afinal em lugar nenhum
47
”, um outro tipo de visibilidade se inaugura de acordo
não mais com a produção ou a contemplação, mas com o tempo do trauma das relações
momentaneamente travadas e a resposta perceptiva a elas.
Quando a imagem se confirma por perda, a obra produzida desqualifica a
hierarquia do objeto para tornar-se materialização de fatos. O que proponho a dança é um
desvínculo a situações sempre tão caras a categoria artística estabelecida, onde muitas
vezes o valor da obra é substituído pela construção de valores pessoais e mercadológicos
que anulam sua capacidade poética.
Nesse trânsito pela literatura e as artes plásticas, não existe a pretensão da
representação mútua por semelhança. Imagem, texto e movimento não têm espaço
comum, mas hora por similitude
48
, hora por diferença, constroem o lugar da interferência
que é a abstração. A questão se traduz em como podem se afetar, e em como, a partir da
Desvínculo,
perda de vínculo.
46
BRITO, Ronaldo, 2005, p.277.
47
Ibidem, p.275.
48
“A semelhança tem um padrão: elemento original que ordena e hierarquiza a partir de si todas as cópias,
cada vez mais fracas, que podem ser tiradas. Assemelhar significa uma referência primeira que prescreve e
classifica. O similar se desenvolve em séries que não tem começo nem fim, que é possível percorrer num
sentido ou em outro, que não obedecem a nenhuma hierarquia, mas se propagam de pequenas diferenças
em pequenas diferenças. A semelhança serve à representação que reina sobre ela; a similitude serve à
repetição, que corre através dela”.
FOULCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p.60.
68
Como a enxotar a sombra, movimentos bruscos a afastar fantasmas.
O Outro de mim, perda total, o ódio às pessoas daqui.
A buzina do navio,
o gavião,
dois únicos pontos de fuga.
Essas pessoas são de lá de baixo, do eco do burburinho.
motivação sofrida, cada dia, por autonomia, é capaz de produzir sua própria leitura.
Tornam-se, na verdade, leitores mútuos; imagem plástica, texto e movimento co-habitam
na medida em que são, simplesmente, imagens artísticas. A interseção de suas palavras
69
acontece através da relação constituída e é a convivência de todas as possibilidades
poéticas o que permite a não geração de dicotomias.
A narrativa dessa dissertação nasce, portanto, do entrecruzamento das três
categorias artísticas em questão: dança, artes plásticas e literatura. Sem estabelecer um
espaço comum constituído, mas aceitando o trânsito entre-lugares; processo de migração
pelas imagens artísticas de uma e outra categoria para a produção de nova contra-
imagem
49
.
a escrita do impulso
algum tempo não realizava mais os experimentos de impulso, desde que me
propus efetivar a questão. Agora que escrevo, novamente a vivência deles se faz
essencial, assim como o deambular sem destino, onde me detenho para escrever
quando o trauma dilata o tempo das coisas do mundo; tempo feito lugar do
acontecimento. A linguagem, a palavra soletrada, é a própria tradução dos passos dados,
o que garante a imediatidade da expressão, impulso. A sensação é de como se o papel em
que o símbolo das palavras é registrado simplesmente acabasse, e restasse somente a fala
49
“Agora, observando a borboleta que pousa sobre meu livro, gostaria de escrever “com base no
verdadeiro”, tendo em mente a borboleta. Relatar, por exemplo, um crime, que, embora atroz, “assemelhe-
se” de algum modo à borboleta, que seja leve e sutil como uma borboleta.
Poderia também descrever a borboleta, mas tendo em mente o crime, de modo que a borboleta se converta
em algo terrificante, espantoso”.
CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.176.
70
70
do movimento preenchendo o escuro com sua voz; o caminho não pode ser traçado, mas
71
72
erguido da escuridão do nada.
O trânsito das imagens artísticas no experimento dos impulsos não obedece a uma
direção determinada, mas cíclica. Andarilho, ele se nas diversas direções possíveis da
leitura que traumatiza os movimentos. Estes, por sua vez, geram a produção da escrita,
que demanda novos movimentos sem destino, formas que se apresentam na efemeridade
de seu acontecimento autônomo e traumatizado. A escrita ideal deveria, então, despertar
esse pensamento multifocal cujo isolamento disciplinar e perceptivo não fosse mais
possível.
É por isso que as escritas de impulso são apresentadas aleatoriamente pelo texto,
sem que nenhum motivo as direcione além do acaso do encontro. Não existe a busca por
coerência, a imagem da escrita obedece somente à condição acidental de sua aparição,
quando interrompe o curso corrente do texto, produzindo um sobressalto em sua lógica.
A escolha por esse formato foi a solução encontrada para a produção de uma leitura
também andarilha, onde, para vivenciar as discussões propostas na dissertação, o leitor
tenha que renunciar a seu conforto para tornar-se, ele próprio, andarilho.
Cada escrita de impulso apresenta autonomia em relação às demais, e pode ser
lida isoladamente, se assim desejado. A possibilidade do livre trânsito por elas é a
proposta de uma alteração perceptiva com relação ao texto, apresentado não como espaço
bem definido a percorrer, mas como lugares por onde é possível transitar aleatoriamente,
sem direção pré-determinada a seguir. Define, apenas, os lugares do imprevisível: pontos
de vista cuja temporalidade inerente aos traços de humanidade não mais obedece às leis
de causa e efeito. Cada impulso constitui uma imagem independente que irrompe, assim
como a imagem anterior que o gerou.
72
No texto, O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl
Einstein
50
, Georges Didi-Huberman analisa a diversidade da escrita do autor em questão.
Segundo ele, o “engajamento estético” do historiador não seria possível sem “um
engajamento literário tão radical quanto diversificado
51
” e afirma:
É necessário, a partir daí, compreender que a autêntica tarefa de uma história
da arte compreender as imagens da arte reverte em compreender a eficácia dessas
imagens como fundamentalmente sobredeterminada, alargada, multifocal, invasiva.
Poder-se-ia dizer, parafraseando Carl Einstein, que as imagens não nos apaixonariam
como o fazem se elas fossem eficazes na frente estreita de sua especificidade
histórica ou estilística. É, por conseguinte, em todas as frentes do pensamento que a
imagem exige ser experimentada, analisada, e é precisamente em todas as frentes do
pensamento que Carl Einstein tentará dar conta dela.
O andar denuncia algo percebido, porém não anunciado, pela repetição de cada
passo. Não há, para ele, a valia de nenhum antes, mas a instalação do presente que traz
em si todos os tempos na trivialidade de seu movimento e das imagens que percorre. Esse
trânsito viabiliza os enquadramentos instantâneos, suspensões de tempo subordinadas
somente à dilatação produzida por cada imagem que se apresenta. De um impulso a outro
se evidencia a produção dos desvios gerados pelo embate entre o tempo vertical
52
e
virtual da obra e o tempo horizontal objetivo, o qual não percorre, mas somente atravessa.
Enquanto fragmentos isolados, os impulsos se constituem como imagens fora do
tempo, tradução dos momentos ordinários que os originaram, e talvez possam, por isso,
50
DIDI-HUBERMAN, Georges.O anacronismo fabrica a história: a inatualidade de Carl Einstein”. In:
ZIELINSKY, Mônica (organizadora). Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2003, pp.19-53.
51
Ibidem, p.24.
52
“A posição horizontal da espinha dorsal sobre a terra significa que estamos adormecidos ou mortos: a
não existência como seres conscientes… Somente a raça humana, ou quase, escolheu levantar sua espinha
dorsal verticalmente em relação ao solo… Nunca ouvi dizer que alguém tivesse atingido a iluminação
espiritual em posição deitada. Parece ser realmente necessário posicionar a coluna vertebral verticalmente
em relação à terra, para estabelecer contato com uma vasta energia invisível. Os seres humanos não existem
apenas a meio caminho entre o céu e a terra, mas existem para religar o céu e a terra.”
OIDA, Yoshi, Um ator errante. São Paulo: Beca, 1992, p.107.
73
73
74
ser chamados de imagens artísticas. Essas imagens apresentam-se como potência, são
pré-formas do aleatório, respostas reativas a percepções nem sempre conscientes diante
de outras imagens, no espetacular de sua trivialidade. Através do que irrompe enquanto
imagem artística se abre a possibilidade do questionamento à dinâmica “normal” dos
acontecimentos, cuja oficialidade sugere os sinais identitários a seguir como modelo. Os
impulsos são como pensamentos que surgem, tropeços na narrativa cotidiana. Responder
a seu chamado é garantia para que nova vida surja, longe da ameaça do cadáver
consagrado a posteriori. Mesmo que a referência buscada seja histórica pois negá-la
seria instalar uma outra hierarquia da imagem, às avessas para que não se trate de um
modelo natimorto é necessária a realização de sua leitura.
O impulso apresenta o seu próprio tempo, primeiro sopro que anuncia a vida.
Autoridade que é da origem da palavra poética de movimento se faz turbilhão, apreensão
anacrônica que importuna, impetuosa, o próprio tempo corrente das coisas do mundo. O
impulso traz, ainda, em si, a morte que antecede a vida. É na impossibilidade da
expressão de um significado, que mantém a pergunta na ausência da resposta, permanente
incômodo da deformação que sustenta a interrogação. A morte que é vida e que,
paradoxalmente, mantém o enigma na indefinição desta vida que anuncia. Emmanuel
Lévinas define a morte como “ex-ceção
53
”, o que seria “distinguir e colocar fora da
sequência”. O evento da morte não se resume no aniquilamento do ser, mas na relação
onde não há saber.
Esse é o lugar da verdade a qual não mais se busca, criadora de um espaço próprio
e definido, mas a verdade na qual se está ou não; da fábula inventada, que, por assim ser,
torna-se trivialidade contada. E a realidade pode ser então, inscrita na própria escrita do
53
DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.22.
74
75
movimento percebido; antes dele nada existe. Estrangeiro é o movimento, vivo numa
terra sem leis onde nada funda. Sua herança: as perguntas feitas ao silêncio em busca da
primeira palavra.
Renunciar à herança de uma tradição significa abandonar o pré-estabelecido, cuja
consequência é a entrega à relação, ao momento presente. A vida é feita eterno
descobrimento, o mundo é fundado sem fundadores na impossibilidade da ausência da
dúvida. O passado, intencionalmente ou não, nos encontra e renova. Se por arquivo, faz
surgir tempos imemoriáveis, cria contemporâneos ao próprio tempo do surgimento da
obra. A história gerada é, pois, cumulativa e tolerante. Por ela, cada parte alude ao todo, o
que foi e o que está por vir. Pela escolha de uma tradição, a expressão primordial do
corpo é substituída pela busca de sua adequação, o que, por sua vez, gera não mais que
uma nova tradição. Por arquivo, cria-se o próprio tempo da obra onde todos os outros
tempos estão contidos, uma historicidade primordial é originada por reconhecimento.
O impulso nada oculta, antes mostra, apresenta o mínimo, insinua o secreto
desvelado, disfarça o teor factual para que tantas leituras possam dele surgir e para que
nunca se transforme em teor de verdade. O arcaico de seu estímulo sustenta a ruína, o
efêmero a partir do qual se ergue a obra. Assim garante a autonomia de seu conceito
54
e a
necessidade da criação de sua leitura; questiona o tempo das verdades eternas,
filosoficamente prováveis. O presente por ele instaurado faz com que qualquer antes ou
depois seja percebido como rearranjo histórico, na força da forma de vida que é.
Isso feito, a impessoal gestão do ato, nos equívocos de significação, deixa apenas
54
“Nessa acepção vulgar, o conceito que numa postura por assim dizer imperativa, se refere ao nexo
inseparável entre forma e conteúdo – se coloca a serviço de um embelezamento filosófico da impotência, à
qual, por falta de rigor dialético, escapa o conteúdo na análise da forma e a forma, na estética do conteúdo.
Este abuso ocorre toda vez que, na obra de arte, a “aparição” de uma “idéia” é classificada de “símbolo”.
BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986.
75
76
marcas, temporárias e excludentes. A individualidade existe nas conexões com as coisas
do mundo, e é por migração que ela constitui sua multiplicidade. Migração metafórica do
pensamento e literal do artista pela arte, em sua trivialidade, e da própria história da arte,
que se confirma numa progressão viva e não cronológica.
O “contemporâneo” passa a ser, então, entendido como o próprio caminho
aleatoriamente traçado, uma noção que insinua seu próprio tempo. A escrita de
movimento deixa de ser registro, e torna-se a visibilidade da imagem, sua apreensão
perceptiva na expressão pré-significativa da linguagem.
A autonomia das partes constituintes reintera a tolerância enquanto anúncio de
outras possibilidades de leitura, sem a determinação de um caminho, mas assumindo a
trivialidade da dispersão. Considerando a possibilidade do acaso, nada deve ser
negligenciado e o centro da escrita se desloca a cada acontecimento que impele a história
para frente – está, pois, em toda parte.
Thoreau afirma que um livro de filosofia deveria ser escrito sem continuidade,
onde cada sentença encerrasse, em si mesma, a idéia ou sentimento que lhe cabe,
negando a coerência da progressão. Tomado como modelo para as artes, isso seria
adotado como princípio de uma obra de originalidade, na qual a narrativa não mais
justificasse o papel do verso no todo, conferindo-lhe a potência mesma do discurso. Cada
fragmento é um todo.
Se não sei o que leio,
piro de um lado a outro em fluxo,
que a cada repetição somente se interrompe e retrocede como que de volta a um
76
passado,
pequeno looping de um instante,
rebobina a fita e quebra.
Quebra de continuidade.
Impulso de quê?
Já não sei,
não entendo de que fala,
não poderia dizer, mesmo assim sigo dizendo, ou talvez lendo,
o que também não se deixa compreender. Não poderia sequer falar em estranheza,
por não poder falar em nada além desse fluxo que
arrebenta e novamente é sugado, refluxo, e uma vez mais,
arrebenta, mesmo que cada vez menor,
arrebenta, mesmo que de novo,
de um salto.
A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.”
PESSANHA, Camilo. Branco e Vermelho. In: Clepsidra e outros poemas. Lisboa: Ática, p.34.
Estariam aqui, novamente, os impulsos de movimento? Cada impulso um
fragmento isolado, que, embora aberto às influências externas e mútuas, apresenta
autonomia em relação aos demais. Cavell descreve e referida proposta filosófica como se
77
78
segue:
… estaría escrito casi sin ninguna progression, sería un libro que culminase en
cada sentencia. Esto suena como una prescripción para una nueva música, digamos
para un nuevo discurso, y en consecuencia como una negación de la poesía tanto como
de la narrativa, dado que implícitamente niega, en una obra de originalidad literaria, el
papel del verso; la sentencia lo es todo…O bien somos filósofos o no somos nada; no
tenemos nada que profesar. O bien somos capaces de repensar un pensamiento que nos
salga el paso, de hacerlo nuestro y evaluarlo según se nos presente, o tenemos que
dejarlo pasar de largo, no es nuestro.
55
Os impulsos são notícias de histórias que podem tomar qualquer rumo; histórias
cuja narrativa pode seguir em qualquer direção que, uma vez tomada, pode ser, a
qualquer momento, interrompida. O agora existe como um “ainda não”, o que está prestes
a acontecer, e que faz o dia nascer em direção ao ilimitado. Andarilha é, então, a história
escrita pelos impulsos, na perda das palavras que exige sua constante troca, na renúncia
do sujeito artista que assimila o tempo pela obra instaurado.
E por que não dizer uma possibilidade para a arte, na anacronia que o
experimento do impulso inaugura na dança? Arte andarilha
56
, transeunte; sempre “prestes
a”; arte em estado de alerta.
A condição andarilha é apresentada como uma dentre tantas possibilidades
poéticas para a arte e o artista nela inserido. Assumida como processo de tolerância ao
Outro, a arte viabiliza a condição “a-histórica”, capaz de conferir ao trivial a importância
e a autonomia da obra gerada. Por tolerância constrói-se a história em que os tempos não
lutam entre si exigindo o esquecimento, mas co-habitam e renascem a cada obra.
A arte ocidental pré-determina as categorias estéticas, reduzindo seus
55
BENJAMIN, Walter, 1986, p.78.
56
Merleau-Ponty justifica o tratamento da arte como linguagem na tríade “percepção, história e expressão”
e no potencial que ela tem de recolher a eternidade das expressões anteriores.
MERLEAU-PONTY, Maurice, 2004, p.109.
78
79
experimentos às experiências. O impulso por sua vez, assim como o arcaico do andar,
determina somente o tempo como potência de corporeidade. Manifestação de atitude
andarilha que é, torna a linguagem apenas passagem.
A escrita andarilha torna-se também minha forma de validar a pesquisa,
confirmando a tomada de responsabilidade tanto sobre o trabalho do andarilho Hsieh,
feito idealizável, quanto sobre os textos literários que motivaram a produção dos
impulsos, e, por abstração, sua escrita. A escrita permite também que a dissertação do
mestrado seja transformada no produto de sua vivência plena, não como registro do
experimento ao longo do processo, mas como tentativa de realização de uma poética que
seja vida em si mesma, e que apresente, assim, sua própria realidade. É desejo e procura
que a linguagem desenvolvida no trabalho seja produto da vivência criadora que permitiu
sua elaboração.
Como na dúvida de Friedrich Holderlin, Sobre o modo de proceder do espírito
poético
57
:
Não será que, tanto para a linguagem como para o conhecimento, o momento
mais belo reside no lugar em que se encontra a formulação própria, a linguagem mais
espiritual, a consciência mais viva, a transição de uma infinitude mais determinada
para uma mais universal?
Esse poeta afirma o conhecimento como uma “sensação ainda pura e irrefletida da
vida
58
e que, quando ele se apropria de sua própria vida tanto interior quanto exterior,
pressente a linguagem. Assim também minha tentativa de que, pela proposição da escrita
andarilha, a linguagem se faça sensação no ato de escolha que nega seu condicionamento
57
HOLDERLIN, Friedrich. Reflexões. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, p.48.
58
HOLDERLIN, Friedrich. Reflexões. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, p.49.
79
80
a um modelo a priori. Para que o impulso, palavra poética, e uma narrativa mais teórica,
conceitual, possam estabelecer entre si a criação de um paradoxo relativo à criação de
contra-imagens e não de associações coerentes. As palavras soltas, na integridade de sua
autonomia conquistada não realizam a história que a luta por sua transformação realiza,
só aí reside o discurso e a potência narrativa.
As cartas ou, eventualmente, mensagens e pequenos verbetes são formas de
escrita capazes de denunciar a efemeridade dos impulsos-tempo; triviais associações de
palavras. Que a escrita, assim como o impulso, mantenha-se metáfora da vida primeira do
movimento, como o próprio ato de andar. Que ela traga, dessa forma, o frescor da fala e
da dança, inscrevendo o inusitado da presença na criação, o que estará sempre incompleto
na multiplicidade de suas possibilidades. Que a escrita, enfim, represente a si mesma. A
forma do contemporâneo desaparece no movimento cumprindo com a exigência de
realização da dança na literal necessidade de reapresentação da sua forma.
autobiografia como método
Eu não queria falar do meu próprio trabalho. Desde a seleção para o mestrado,
quando fui questionada sobre a coerência da escolha pela linha teórica, História e Crítica
da Arte, e não pela linha prática, Processos Artísticos Contemporâneos, esse era o único
argumento por mim defendido. Parecia óbvio pensar na coerência pela escolha da linha
80
As imagens se misturam como flashes de memória de acontecimentos nunca
ocorridos, o corpo da mulher contra o vidro fosco, respiração, gemidos, de um lado sexo,
do outro, imagem, sentada, pernas abertas, procura por algo esquecido, algo perdido no
clitóris, camadas de pele afastadas pela ponta dos dedos e do outro lado do vidro,
arremessa suas costas. Prazer não há, antes, algo entre o funcional e o agressivo e a
mesma respiração tão coerente.
É preciso escrever, mas se paro, talvez cessem estes flashes, clarões de imagens
que irrompem de cada estrelinha chinesa do abajur. Algumas frases soltas, ao menos, que
me remetam à imagem, mas no fim, a única imagem que me resta é a das próprias frases
dispostas no chão. Sua materialização tornou-se mais forte e fez-se memória.
O que sobra é o espaço vazio.
O que sobra é você.
O que sobra de você é o intérprete, esse Outro obscuro.
Rebentona.
O negativo é o que você não vê; o que vela e, enfim se revela, por si, ou por outra
forma que não será sempre a mesma, a nuance da cor, a sombra que desnuda. Pode ser a
mesma foto escurecida, se só quando me vejo é no espelho, ou o avesso, quando em outro
lugar.
prática, uma vez ativa artisticamente no circuito da dança. Apesar disso, buscava uma
pesquisa teórica que pudesse alimentar meu trabalho, de preferência em artes plásticas,
cujos inúmeros traumas sofridos aumentavam cada vez mais meu interesse. Sobretudo,
sentia-me arrogante diante da possibilidade de focar meus estudos em mim, como se
81
82
fosse, eu mesma, meu próprio alimento poético; queria falar de algo mais universal, quem
sabe, um sentimento comum a despertar e compartilhar.
Nova dúvida, então, surge, quando começo a escrever na primeira pessoa e
sempre a partir de meu próprio experimento de movimento. Os textos desenvolvidos
parecem agora tão pessoais, como pode isso acontecer, logo a mim, que aentão negava
veementemente a possibilidade da pesquisa autobiográfica? É novamente Stanley Cavell
quem ajuda a esclarecer a questão.
Escrevendo, ele mesmo, sempre na primeira pessoa, o autor nega a filosofia como
legado: como conhecimento ao qual se deva assumir qualquer tipo de compromisso. Fala-
nos, antes, da filosofia como uma herança sobre a qual se deva ter inteira
responsabilidade:
Más bien la inconfortable implicación es que la autoridad filosófica no es
transferible, que toda reivindicación de hablar en nombre de la filosofia tiene que
ganarse la autoridad por sí misma, tiene que dar cuenta, digámos así, de ella misma.
59
O argumento que faltava era a tomada de responsabilidade que me permitiria,
claramente, identificar e assumir a questão, minha própria hospitalidade para com ela.
Cabe à arte encontrar, para si, saídas, quando até a filosofia questiona sua tarefa
argumentativa. É através do poeta do homem que fala que o mundo se mantém em
suspensão, sem que o trato sobre ele adquira rigidez para além da responsabilidade
assumida; declínio do compromisso. O que chama o olhar é o que está vivo. A poética
suspende a possibilidade do surgimento de qualquer forma morta, especulativa. A vida
acontece no impulso porque é maior que qualquer expectativa por definição. O
59
CAVELL, Stanley, 2002, p.79.
82
movimento é capaz de fazer de quem o executa um bailarino: universaliza sua própria
leitura no reconhecimento.
O medo da pretensão de que minha experiência pessoal fosse especial o bastante
para interessar e servir de alimento a outras poéticas é substituído pela aceitação da
trivialidade do que se apresenta e conquista importância, na proporção em que dilata o
tempo da vivência; puro processo de validação e valorização da vida, mesmo quando não
há tempo…
Wittgenstein apresenta os argumentos para, the fantasy of a private language
60
.
Essa linguagem não é a tentativa de representá-lo, mas é a vida do próprio experimento
captada pelos olhos. É pela leitura particular, aproximando-nos de nós mesmos, que a
captura se dá, quando a opacidade do olhar é rompida e nos afasta do pensamento.
Partindo do princípio de que nenhuma definição para o signo pode ser formulada,
admitimos para a palavra uma formulação própria e não o apontamento de seu
significado. O problema torna-se, então, a própria apresentação desse significado a partir
da expressão dos estados próprios vivenciados.
Ele nos fala ainda, sobre a criação de um diário pessoal, no entanto, passível de
apropriação por qualquer um. O diário apresenta a nomeação da palavra a partir da
contra-imagem gerada; presentificação da mesma na produção de novos traumas. E
poderia pensar na palavra private em todas as suas possíveis traduções, particular,
pessoal, isolada, privada, só, secreta, clandestina, ou ainda, calada; na pretensão mesma
de nada dizer. A pronúncia particular confirma a inscrição da natureza em nós, erguendo
as marcas da subjetividade.
60
CAVELL, Stanley. The Claim of Reason. Oxford: Oxford University Press, 1979, p.348.
83
83
Não existe a busca pela identificação capaz de estabelecer uma relação com o
leitor, mas a autonomia das palavras-impulsos de movimento, cujo significado é alheio ao
desejo. A possibilidade de apropriação dos signos se consuma na leitura pessoal que
caracteriza novo diário ao qual, novamente, nenhum significado pode ser compartilhado.
O que se compartilha é algo mais universal, da ordem do sentimento, a própria
impossibilidade de compreensão da linguagem e o desejo de passar a largo dela. Ver uma
fisionomia seria, então, interpretá-la de acordo com uma visão própria, uma leitura
particular e sua não aceitação como um mero conhecimento
61
. O rosto no espelho…
A dissertação torna-se autobiográfica embora não se comprometa com a narrativa
de uma história pessoal, nem muito menos com a busca de algo com o que o possível
leitor possa se identificar. Trata-se, antes, da exposição de uma particularidade na
associção dos fatos e das categorias artísticas e teóricas envolvidas, garantida, talvez, pela
manutenção das peculiaridades na própria vivência das diferenças no ato artístico.
Autobiográfica até mesmo como forma de expurgar qualquer possibilidade de
instalação de nova lei, e como sinal de tolerância na atitude de apenas apontar mais uma
possibilidade. Se for de dentro da experiência pessoal que nasca a questão, que esta se
faça viva e transitória como o seu experimento de origem.
61
“I have to read the physiognomy, and see the creature according to my reading, and treat it according to
my seeing,”
CAVELL, Stanley, 1979, p.356.
84
84
Enfim, me deito.
Paro, observo, e é daqui desse ponto de vista, que me faço transeunte. O pássaro
que voa, é para mim que voa, como se somente minha inércia o fizesse voar. E aí, não
faz mais a menor diferença: eu, ou ele, quem está parado?
E as pessoas que passam de para cá, eu as posso ver, não percebem minha
presença, sou eu, estrangeira sobre suas vozes, seus passos, sua dança, trivial andar, seus
risos, seus beijos. Transeunte sob o tempo ancestral dos dois irmãos, também como eu,
parados, a observar o continuo trânsito corriqueiro dessas tantas imagens a vagar. Como
era mesmo? O eco do burburinho…
Pode a mudança perceptiva dos olhos alterar mesmo, a visão? Como posso agora
ver, essa poeira pulsante diante de mim, matéria ínfima e desprezível a qual jamais vi?
Autobiográfica ainda como a rejeição de um espaço constituído, tanto de
escrita quanto de leitura e como a instalação da escrita andarilha, pelas possibilidades de
deslocamento por outros lugares mesmo que imprevistos que ela inaugura. Toda a
angústia e a poética envolvidas no cotidiano da busca do objeto de relação entre a dança e
85
86
as artes plásticas, quem sabe, sejam lugares onde haja um sentimento comum a
compartilhar.
humanização da escrita
A dissertação desenvolvida a partir da arbitrariedade dos meus interesses pessoais
ou da minha individualidade traz a confissão do meu ceticismo. O ceticismo, na verdade,
se manifesta desde o momento anterior de escolha da dança enquanto expressão artística,
pela dificuldade apresentada no processo de abstração que a mídia propõe: paradoxo da
situação do corpo enquanto materialidade que percebe e a imprevisibilidade das reações
por ele mesmo traduzidas.
O impulso é meu sim ao Outro-arte, e é através da particularidade do experimento
que posso dar testemunho ao ceticismo de que algo que restaure a humanidade do
movimento dançado, talvez possa ser feito. O impulso mantém a dúvida sempre presente
na destruição. O que está por vir? Se a linguagem é o destino, que eu escolha, ao menos,
como fazer uso dela. O guardado, o arquivo está lá; é, de fato, nossa marca. O homem
inscrito em sua obra, em estado por vir, simplesmente a ele se disponibiliza.
Por visualidade e tradução é que se garante a manutenção de duas coisas em
separado, o dentro que possibilita a leitura e o fora do objeto externo a ser expresso;
aproxima-se, no entanto, suas distâncias. A escrita faz-se impulso de escrita, também
86
87
andarilha e autônoma em seu próprio experimento, constituindo-se como o “entre”, um
outro lugar possível, lugar da relação.
O impulso é manifestação de movimento desse eu-Outro estrangeiro,
subjetividade que desconheço e que se afirma como eu, confirmando essa minha
existência. É o asilo a ele oferecido; estado de acolhimento.
O andarilho é a hospedagem aberta a tantos Outros, quanto motivação e
deformação produzidas. Desprendido em sua errância, sem raízes,habita onde o “sim”
lhe é concedido e tem o impulso como resposta. Por relação, tornamo-nos como todo
mundo, o que significa adentrar nos sentimentos mais íntimos do Outro, tomá-los para si
por leitura, originando assim os Outros diante dos quais a própria questão singularidade
torna-se inautêntica e incoerente. É somente através da entrada na solidão do Outro que,
por diferença, posso entrar em mim mesmo e não no pensamento sobre mim que a
autoconsciência gera.
Por impulso, o objeto moderno não pode ser substituído pelo sujeito e suas
fábulas no estilo, mas pelo mundo que se dá a perceber e traduzir, o que permite justificar
a comparação da arte à linguagem, pelo caráter mediador da criação artística e da obra. O
estilo passa, então, a ser considerado para além da técnica e dos meios que utiliza,
preocupação sem a qual se reduziria ao tema e a sua possibilidade enquanto modelo de
discurso. Ao contrário, se adotado como a consequência de um ponto de vista, re-instala
o artista no mundo, justificando a manifestação de um fenômeno, afastando-o do
automatismo perceptivo. A própria condição humana da falha é garantida ao corpo cuja
função é antes inspecionar o mundo do que prever seus efeitos, corrigindo imperfeições
fundadas em qualquer referente distinto da percepção. Ao corpo é conferida a tolerância
88
88
pela qual se espera, não o milagre da renúncia, mas o amadurecimento da visibilidade.
O impulso é o crédito, a aposta, apesar de toda a dor que acompanha o conforto de
qualquer juízo prévio a assegurar a vaidade do artista que cria, mas não consegue, no
entanto, se sentir criador, dono somente da dor constante do vazio estéril do filho Outro
que nunca nasceu por nascer morto. O impulso é a resposta ética, minha aceitação,
forma de compartilhar a dor alheia, feita marca no meu corpo.
E é através da escrita que o faço, a descoberta dessa linguagem hospitaleira, sem
qualquer pretensão de que possa representar o impulso em sua autonomia de movimento,
mas traduzi-lo em sua alteridade, a acolhida do impulso que nasce do sim para o sim. A
hospitalidade
62
, então, pensada como a própria linguagem que surge, desapropria a arte
da situação de conforto e estabilidade, desafiando princípios e regras de conduta. A
tolerância é conferida a outras possibilidades apresentadas a partir de múltiplos pontos de
vista. Tolerância, portanto, ao inusitado que produz incompreensão, permanecendo
como vazio.
Que expressões seriam capazes de significar um impulso, o que seria genuíno
expressar sobre o gesto autônomo do movimento além do que respondeu a ele como
contra-imagem a partir de sua leitura e não da tentativa de sua representação? A escrita
andarilha reintera a dúvida desconfiando da expressão genuína a figurar fielmente os
impulsos. O impulso faz interseder a dor e sua expressão; enquanto escrita genuína da
relação que se apresenta, não assume definição formulável para além da leitura.
O movimento cuja profundidade inesperada é a de um gesto quase ainda não
constituído configura apenas a prestes expressão da fala que realiza a quebra do
automatismo visual. Enquanto deformação frente a qualquer expectativa, um “desajeito”,
62
DERRIDA, Jacques, 2004.
89
89
é a inquietação que se mantém no invisível. A única condição prévia ao impulso é
pressupor não saber, é mantendo-se dúvida que não se define como conhecimento,
permitindo à arte e à sua história o estado de alerta a partir do qual tudo pode ser
registrado. Ele dilata o tempo gasto na vivência das coisas simples e cotidianas, diante
das quais me detenho. O impulso é o momento anterior a qualquer possibilidade de
compreensão, a menos que sensível, do movimento que se insinua.
O impulso, fonte de vida e de destruição, humaniza a escrita de movimento,
dignificando a necessidade da presença viva de quem se expressa, a “boa escrita
63
tão
procurada, que traz essa fala sobre a possibilidade da falha da dança enquanto ação
humana. Materializa a experiência errante, onde os assaltos da paixão tornam-se
possíveis e a servidão não pode mais salvar. Através dele, o Outro é reconhecido por
estado desejante.
E o que espero dessa escrita é que possa ser a realização de minha própria
errância, onde me assumo transeunte, andarilha; e se escrevo, o faço a mão, atitude para
mim tão arcaica quanto andar. E, na qualidade de resposta ao Outro, qualquer que seja,
por quem possa me responsabilizar. A tradução humaniza o sentimento e faz com que,
por arte, este Outro possa ser todos os Outros, indistintamente; sublimidade do ordinário.
O gesto trivial não forma um mundo explícito, mas insinua tantas possibilidades.
Para que a escrita do andarilho relacionada ao impulso de movimento andarilho
– possa incorporá-lo e não simplesmente narrá-lo, é necessária a vivência do experimento
proposto pelo encontro. A pesquisa que nasce desse deambular em sua demanda física,
63
Alusão ao jogo exercido pela filosofia, na determinação de duas escritas distintas, a boa e a má,
respectivamente, referentes a fala e a escrita.
DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991, p.101.
90
90
não é, ela mesma, andarilha?
A humanização da escrita pelas vias do ordinário possibilita trocar a razão e o
conhecimento, enquanto formas de apreensão do mundo; abole o império do conceito. A
arte, então, passa a ser o instrumento de libertação de si mesma, para que uma
modalidade de sentimento possa ser traduzida na linguagem do Outro, e o processo de
relação seja consumado. O Outro literal ou os Outros de mim, passam a ser uma questão
de certificação, uma vez que é impossível conhecê-los, mas apenas intuí-los na própria
escrita.
Que fragmentos de arte consigo retirar da vida hoje, aqui, nesse lugar? Nenhum
esforço ou sacrifício é cabível, nada a desnuda, a imagem simplesmente se apresenta pelo
despertar perceptivo que anuncia. Longe de qualquer referência, nada mais a emoldura,
conferindo-lhe verdade.
Cavell
64
afirma que a monstruosidade é a resolução do nosso dilema sobre a
humanidade, a única forma obtida para nos livrarmos da natureza humana. É o lugar do
ceticismo, visto que a dúvida é a própria condição da idéia de humanidade. o homem
tem a capacidade de sentir horror, e somente o monstro, o inumano, pode causar horror.
O autor refere-se à palavra horror para tratar da precariedade da identidade humana, a
necessidade da transformação de nossa percepção, para que a origem do ser humano
possa ser responsabilizada. Ao Outro confiro existência lendo-o em mim, sendo na
constatação da dessemelhança que ele pode ser pensado enquanto homem. Através do
impulso, revela-se a natureza inumana do mundo a partir da qual o homem se ergue.
64
CAVELL, Stanley, 1979, p.416.
91
91
Impulso / arte / tempo de ação / reação ligada ao trivial / ajo sobre o mundo e/
Ajo na entrega ao impulso / não reajo na medida dos recortes que faço / a escolha
determina o relevante / revelante no acaso como o que aconteceu agora
Agora é o lugar da reação.
Revela-se a separação radical que destitui os hábitos de sua condição referencial para a
92
93
percepção: a capacidade que têm de humanizar o mundo em busca de adequação. O
impulso legitima em mim, o experimento do andarilho, possibilita reconhecê-lo.
O que Hsieh faz é percorrer a vida do Outro. Abandona seu próprio recorte de
realidade e submete-se à visão desse Outro sob sua condição, na evidência de seu
universo desconhecido. O andarilho entrega-se ao domínio de algo que é externo, retira
poética do trivial por pura percepção. Acolhe o trauma e hospeda esse Outro que o gerou,
mesmo sob o risco de sua monstruosidade. Esse Outro não é igual a mim e me permite,
por relação, perceber os Outros de mim; posso, então, olhá-lo assim como me olho. O
Outro com o qual não me confundo e, junto a ele, a diferença traz a resposta: minha
relação originária.
Então, se o faço, é para mim, como possibilidade de estar no mundo. Se um
Outro, é assim que compartilho sua dor, se minha própria dor diante dele se materializa,
se da morte faço alguma coisa surgir, e o que surge é o meu diálogo. A imediaticidade da
dor rompe a indiferença e o risco da perda se impõe, independente do medo sempre
anterior à entrega. E é na ausência de mim frente a esse Outro que me motiva que o
experimento ocorre e me transforma; alteração de minha alteridade. E essa leitura,
humanizada em nova escrita, faz-se impulso na tentativa de dignificação desse
sofrimento, para que ele não seja em vão, sua materialização poética. Ainda por Lévinas:
…perceber-se do interior produzir-se como eué perceber-se pelo mesmo
gesto que se volta para o exterior para extraverter e manifestar para responder pelo
que se percebe para exprimir; que a tomada de consciência é linguagem; que a
essência da linguagem é bondade, ou ainda, que a essência da linguagem é bondade e
hospitalidade
65
.
É a partir do Outro que escrevo e não para ele. Antes, para mim, como prova da
65
DERRIDA, Jacques, 2004, p.26.
93
94
minha própria existência, são as palavras de movimento que nomeiam meus Outros eus.
Para mim, e que eu possa, enfim, me sentar, que o movimento possa ser arte, e por ele a
vida seja gerada na recusa aos hábitos e códigos; impulsos monstruosos, deformantes,
autoconfiança que elimina o dado artístico. Para que possa apresentar essas palavras de
movimento na forma de sua vida, sem hesitação; a palavra não é mesmo vida?
E é assim que se consuma em mim a expectativa de exercer uma escrita mais
humanizada, na medida das relações triviais que foram travadas com o artista andarilho, a
literatura e o movimento. Será possível sentir sua dor? A arte pode ser vista não como a
construção do mundo, mas como seu grito, sua manifestação. Talvez a busca por um
outro tipo de linguagem, associada ao trivial, colabore na função de humanização do
fazer artístico. Lugar onde reside a humanidade? A linguagem é dessemelhante a mim:
aqui resido, mantendo-me estrangeira pela dança.
O produto da linguagem é a própria relação com o Outro, sem fronteiras, onde a
unidade não se pela coerência da identificação, mas pela própria pluralidade dos
elementos constitutivos. Sem a presença de qualquer negatividade, estabeleço minha
relação de paz com as artes plásticas e a literatura. Se a essência da linguagem é a
hospitalidade, o impulso é meu acolhimento poético do conhecido ao desconhecido. E se
hoje abandono o poema, é para recomeçá-lo amanhã. O impulso, enquanto expressão
anterior ao sentimento, esvazia o movimento de sua significação. E é por alteração
perceptiva que a Universalidade pode se dar no Outro, por diferença.
outros andarilhos
A escolha da palavra, a escolha do artista. Vários outros artistas ou situações
94
95
andarilhas foram usados como objeto de comparação para que Tehching Hsieh pudesse
ser considerado o “modelo idealizável”, fonte primeira de motivação para pensar uma
outra possibilidade para a arte e seus valores.
Richard Long realiza caminhadas cujos percursos são por ele definidos
previamente. O interesse do artista é o tempo real, não artificial, utilizado pelo homem
como recurso único a seu próprio deslocamento. É dessa forma que assume o
compromisso com os diferentes lugares por onde passa.
Em trabalhos como Caminhando por uma linha no Peru, de 1972, ou Uma
caminhada de seis dias por todas as estradas, alamedas e pistas duplas dentro de um
raio de seis milhas centrado no gigante de Cerne Abbas, de 1975, o artista circunscreve
as trajetórias de seus experimentos, apresentados ao público através de fotos, relatos ou
outros registros de sua passagem. Ele documenta também as alterações que
conscientemente produz na natureza, como carregar um objeto ou desenhar o percurso no
chão com pedras e gravetos. O que o artista propõe em suas caminhadas é um
desenvolvimento do potencial perceptivo no ato de “trivializar” os locais instituídos para
a arte. Mesmo os documentos das caminhadas, apresentados em museus e galerias, são
vistos como contextos para a comunicação e não como obras em si. O que Long
apresenta ao público é o resultado das experiências pelas quais se compromete e
responsabiliza, apesar de se comparadas às de Hsieh, elas perderem o potencial de
experimento que, somente por sua própria vivência, se evidencia.
A sinalização tão clara do trajeto significa o enquadramento a uma situação
bastante específica que talvez limite a descoberta. O caminho previamente traçado nos
dirige para que o nos percamos, literal e metaforicamente. O que se no trabalho, ao
95
96
invés do radicalismo da entrega ao desconhecido e a busca por reconhecimento, são
idéias sobre espaço, tempo, distância e uma diversidade de matérias, referentes a
diferentes partes do mundo. O efêmero é bastante discutido como um dos aspectos do
tempo. A dissolução ou a permanência de interações no ambiente denunciando a
possibilidade de a obra desaparecer, mas não a sua idéia são exemplos disso. Long
também realiza uma crítica viva a representação da paisagem na pintura, inscrevendo as
caminhadas diretamente nela, considerando-a como um dado real.
O artista Arthur Barrio realiza, em 1970, 4 dias e 4 noites, trabalho sem registro
em que deambula pelas ruas do Rio de Janeiro. Assim como Hsieh, Barrio deixa sua casa,
sem dinheiro, e início ao que seria por ele descrito como uma experiência de uma
“subjetividade quase total
66
”. Na tentativa de romper com certas barreiras aprisionantes
do meio e do contexto circundante, o artista se entrega à errância a todo o tempo
vinculado à superação pessoal em direção a uma nova percepção dentro de seu próprio
trabalho de arte – escape a qualquer formalização, ou mesmo herança.
A intenção do artista era transformar esse outro nível de percepção alcançado em
criação, e o trabalho em si foi considerado por ele um ato estético para fugir de sua
definição como loucura. O maior ganho perceptivo ocorreu de forma bastante subjetiva:
no embate do artista com seu próprio desgaste físico decorrente tanto da trajetória em si,
quanto da falta de alimento e do uso de drogas. A duração do experimento não foi
previamente determinada nem seu caminho específico; ele teve fim quando o artista
chegou a seu “limite”.
66
BARRIO, Artur. [“4 dias e 4 noites”].
São Paulo, 2001. Entrevista concedida a Cecília Cotrim, Luiz Camillo Osório, Ricardo Basbaum, Ricardo
Resende e Glória Ferreira. In: COHEN, Ana Paula (org.).
Panorama da Arte Brasileira 2001. São Paulo: MAM, 2001, pp. 81-97.
96
Barrio considera o trabalho em questão como uma “maceração do tempo, da
percepção, da subjetividade
67
”. Em Outdoor Piece, o tempo dilatado do experimento,
bem como o espaço escolhido, coloca a maceração de Barrio talvez num lugar de
inocência. Se o primeiro alarga seu percurso até a dimensão de uma cidade como o Rio
de Janeiro, é nos limites da grande cidade de Nova Iorque que o experimento de Hsieh é
inscrito. Cidade sobre a qual o artigo indefinido não pode ser empregado por sua
dimensão e pela exacerbação de seu labirinto: a grande metrópole. Na desordem de Nova
Iorque, onde coisas, pensamentos e pessoas assumem sua forma mais fragmentada, as
palavras não podem mais nomear os objetos em sua função, uma vez que essa sofre, a
todo tempo, modificações. Se de certa forma o experimento de Barrio pelas ruas do Rio
tinha um enfoque mais claro no tempo, na duração do experimento percebido até
mesmo no título do trabalho e as performances de Long focavam mais o espaço na
definição clara dos percursos traçados Hsieh alarga, definitivamente, a proposta em
direção a ambas as categorias. E o que antes poderia ser usado como afirmação de
subjetividade, desemboca na perda da mesma.
Os limites de Hsieh, por ele mesmo impostos – um ano de performance pelas ruas
de Nova Iorque e as consequências disso permitem ao artista a conquista da
exterioridade para além de suas defesas pessoais. Em Barrio, pela falta de documentação
do trabalho condição escolhida pelo artista há, ainda, a presença da narrativa. Ela
Aqui se produziu uma dilatação do tempo referente à fuga do pensamento.
67
BARRIO, Artur, 2001.
97
97
A magia da falha temporal da marca quebra a resistência do presente entre o passado e
o futuro, que unidos, caem sobre os pecadores.
BENJAMIN, Walter. Sur la peinture, ou: Signe et tache. In: Ouvres 1. Paris: Gallimard, 2000, pp.172-178.
constitui o único registro possível a interar a condição subjetiva, afirmando o ser artista
na proposição da obra. Ele realiza o ato pedagógico da arte, no esclarecimento de
qualquer interrogação em suspensão ao potencial de dúvida, o enigma que o trabalho, em
98
99
si, poderia suscitar.
Stephen recurvou-se para a frente e afundou os olhos no espelho sustido ante
ele, fendido numa rachadura curva, cabelo em pé. Como ele e os outros me vêem.
Quem escolheu esta cara para mim? Esta canicarcaça a sacudir sanguessugas. Ele me
pede a mim também… É um símbolo da arte irlandesa. O espelho rachado de uma
criada… Parados de novo. Ele teme o escalpelo de minha arte como eu o da dele. A
fria pena de aço
68
.
Dedalus vislumbra seu rosto no espelho, sua face a de dentro ou a de fora do
espelho? a face vista pelos olhos. Em Ulisses, os objetos passam e as coisas são
descritas como são vistas. Personagem andarilho, Dedalus nunca se detém em sua leitura,
também andarilha, do mundo. Na constatação do mundo, a simultaneidade das
ocorrências é fragmentada e elas ganham a autonomia de imagem poética, o som da
imagem, o cheiro, a cor verde do experimento, suspensões no tempo. Dedalus/Bloom é o
catador de um poema abandonado chamado vida, que maravilhosamente nunca acontece;
antes, eterna espera.
O mundo é a palavra aberta enquanto possibilidade de imagens, palavra que nada
determina, mas anuncia miragens, inacabamentos onde nada pode ser provado. A palavra
segue o rastro das formas de vida que se apresentam como restos. Na totalidade, a vida
não se realiza, mas somente na efemeridade das pequenas partes constituintes, que
podem, em trânsito, ser assimiladas. As imagens passam, e é por perda que toda a sua
visualidade se organiza, imagens-impulso do cotidiano. Elas não têm mais uma forma
delineada perdem seu contorno, tornam-se manchas: “e então o gesto, não a música,
não os odores, seria a linguagem universal, o dom das línguas tornando visível não o
sentido vulgar, mas a primeira enteléquia, o ritmo estrutural
69
”.
68
JOYCE, James. Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p.13.
69
JOYCE, James, 2004, p. 557.
99
É no final da imagem que a perda se evidencia; o que se antes dela? No lugar
onde a vida ainda não aconteceu, tornamo-nos todos triviais coletores de imagens e
referências poéticas de onde quer que elas venham; arte andarilha. Dedalus/Bloom é o
andarilho, o homeless, a quem tudo pode acontecer em um dia. O narrador como se as
coisas estivessem de passagem, e, por trivialidade, anula qualquer expectativa por novo
dilema, o enigma a decifrar. É o corriqueiro dos acontecimentos que nos leva a perceber a
obra de outra forma, produzindo a própria leitura, fato que possibilita ao leitor nomeá-la.
“A arte tem de revelar-nos idéias, essências espirituais sem forma. A suprema questão
sobre uma obra de arte está em quão profunda é uma vida que ela gera
70
”.
Dedalus possui o conhecimento, não fala por ignorância, entretanto, não é ouvido.
É no impacto com a vida que diminui a força de seu saber. Andarilho transita por
posições, lugares onde o espaço se constitui somente no tempo da relação e esta,
produzida pela falha, pela dilatação do tempo real, contém o passado e o futuro.
Um choque quente de calor de mostarda afogueou o coração do senhor
Bloom. Levantou os olhos e defrontou a mirada de um relógio bilioso. Duas. Relógio
de frege cinco minutos adiantado. O tempo passando. Ponteiros movendo-se. Duas.
Não ainda. Seu diafragma emergiu forte então, mergulhou dentro dele, emergiu mais
anchamente, ansiosamente. Vinho. Ele cheirossugou o sumo cordial e, concentrando a
goela fortemente a avisá-lo, depôs delicadamente o vinicopo. Sim disse ele de
facto é ele o organizador. Nada a temer. Um desmiolado
71
.
Ao longo do livro imagens recorrentes vivificam a memória própria do texto, não
compartilhada pelo leitor; num único dia, o tempo de todos os tempos. Metaforicamente,
os espaços fechados, o bar, a torre a beira-mar, servem à ressonância da memória dos
personagens em contraste com a rua, a qual nenhuma referência é cabível.
70
Ibidem, p. 242.
71
JOYCE, James, 2004, p. 225.
100
100
Bloom, Dedalus, narrador e leitor se confundem. As cenas não acontecem, não
teatralização plena, mas um momento anterior, o ensaio, a marcação da cena. A imagem
fugidia dessas relações pode, então, ser descrita, mas não contada. O narrador cede lugar
ao organizador dos instantâneos apenas, fragmentos de cena cujas personagens são as
palavras. “Tenho pensado muitas vezes ao rememorar esse estranho tempo que foi esse
pequeno acto, trivial em si mesmo, esse riscar daquele fósforo, que determinou todo o
sobrecurso de nossas ambas vidas
72
”.
O texto é humanizado no cotidiano, onde as culturas, erudita e banal, têm a
mesma importância. Joyce está fora do livro, e, paradoxalmente, nele inscrito, no atrito
que o texto oferece à persona que não se configura, entregue a seu deambular. Nem
mesmo os personagens têm personalidade, não tema; o romance é o bilhete que marca
um encontro em algum lugar. O livro responde com as possibilidades, com as verdades
que não discursam e que não podem ser determinadas no espaço percorrido. Dessa forma,
na trivial abertura de suas possibilidades, compara-se ao taiuanês, Hsieh, na dilatação do
dia, que só tem seu fim, quando propõe outra saída à escuridão da noite que se anuncia:
“Estas pesadas areias são linguagem que maré e vento inscreveram aqui
73
”.
Dedalus é a própria coragem da passividade frente ao que se apresenta no mundo,
ao que se impõe pelas desigualdades infindas, onde nehuma identificação é possível. Se
algum sonho romântico o impele, é na passividade ao momento em que sua liberdade de
ser Bloom o salva. O que a obra consagra é a totalidade do instante, as interrupções. Cava
suas raízes na neutralidade, onde nenhum dado é aceito. Para Bloom, o trânsito tem início
na ruptura do hábito, o beijo não dado em Molly, que inicia sua tarefa trivial de fazer
72
JOYCE, James, 2004, p. 183.
73
Ibidem, p. 62.
101
101
instantâneos, pensamento e palavra. É através de Molly que o autor diz “sim” à vida e se
torna digno de cada acontecimento.
Inelutável modalidade do visível: pelo menos isso, se não mais, pensando
através dos meus olhos. Assinaturas de todas as coisas estou aqui para ler, marissêmen
e maribodelha, a maré montante, estas botinas carcomidas. Verdemuco, azulargênteo,
carcoma, signos coloridos. Limites do diáfano. Mas ele acrescenta: nos corpos. Então
ele se compenetrava deles corpos antes deles coloridos. Como? Batendo com sua
cachola contra eles, com os diabos. Devagar. Calvo ele era e milionário, maestro di
color che sanno. Limite do diáfano em. Por que em? Diáfano, adiáfano. Se se pode por
os cinco dedos através, é porque é uma grade, se não uma porta. Fecha os olhos e vê
74
.
Molly é a única personagem que se constitui e com ela, toda a idéia de escrita. Ela
é o movimento posterior ao impulso (Dedalus/Bloom), o discurso tecido sem
interrupções; sua proposta para a construção da obra: a trivial materialização dos fatos.
Em sua totalidade, o livro é constituído de todas as formas de escrita possíveis, sem a
escolha de um único modelo a seguir.
O andarilho fecha as portas para seguir andando.
Pequenos balanços acompanham toda a leitura.
74
JOYCE, James, 2004, p. 52.
102
102
Tentativa quase que instintiva de apreensão de um estado de equilíbrio; mais
instável do que normalmente.
O trauma traz instantaneamente ao corpo, a memória do impulso. Este, em seus
pequenos ímpetos, persegue o equilíbrio a tal ponto que é possível reviver alguns
impulsos.
Mais que possível, há agora impulsos de repetição de impulsos.
Curiosamente, os percebo acontecer quando o corpo se transforma em algo monstruoso,
disforme, a perda de toda a harmonia. O prazer na desfiguração, renúncia a toda marca.
Os impulsos estão cada vez menores, e mesmo os MAIORES, antes mesmo de
provocarem a queda, reverberam em outros impulsos.
Estranha essa sensação dos pés agarrados ao chão, como ventosas que a cada transfertência sugassem dele pequenas
raízes.
E (que horror!) morre a vida, e vive a morte!
MILTON, John. Paraíso Perdido. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 91.
103
104
Conclusão
105
Sob o argumento da autonomia de movimento apresentada pelo impulso, seria
possível imaginar que sua ocorrência, desvencilhada de referências técnicas ou mesmo
históricas específicas, sugerisse um retorno ao argumento pós-moderno da dança em
busca da pureza ou mesmo da nulidade de seu objeto, pela ausência de especificidade
artística. Essa atitude poderia ser comparada nas artes plásticas, à objetividade pura
buscada por Mondrian e a corrente do Concretismo, por ele direcionada e, talvez, ao que
possa ser lido como o ponto máximo de sua busca, a anulação do objeto representada por
universos aparentemente distintos: o Carré Noir de Malévitch e o readymade de
Duchamp comparados na dança, respectivamente à pureza dos movimentos de
Cunningham e ao “Trio A” de Yvonne Rainer e seus contemporâneos da Judson Church.
No entanto, o que o argumento do impulso propõe é um retorno, não ao
movimento que encerra, ou o que poderia parecer um “mínimo de movimento”, mas à sua
motivação do mundo externo. O impulso significa, então, não a autonomia do movimento
surgido pelo que aqui foi definido por corporeidade e, portanto, uma possibilidade de
autonomia para a categoria dança mas, somente, a aceitação plena do grande paradoxo
vivido pela abstração. Se por um lado, a busca do movimento abstrato era de ruptura com
um possível caráter representativo da arte em relação às imagens do mundo, por outro,
admite, no momento mesmo em que surge, a incapacidade de se desvencilhar
completamente dos traumas que propiciaram sua leitura.
Por visualidade e tradução, o impulso promove a pronta aceitação das imagens do
mundo, indiscriminadamente, quaisquer imagens, históricas ou triviais, cotidianas ou não,
cumprindo a aproximação arte/vida, nos lugares de motivação onde se expressam
mútuamente, reativamente; na apresentação da própria vida do movimento artístico que
106
106
encerra.
É, então, por hospitalidade que o impulso se traduz em atitude andarilha pelos
estímulos sensitivos que o geraram, mesmo que não tenhamos consciência deles, estão
guardados em nós, como arquivos que possuímos e que vão estabelecer nossa relação
com o mundo. O por vir é o performativo, o que não assume qualquer relação com o
registro, mas com a violência imposta pelo esquecimento, sem a qual a imediatidade
expressiva performática do intérprete torna-se apenas um novo modelo referencial
associado à reserva da memória. Por arquivo chega-se ao que o próprio arquivo perde: a
origem viva do experimento. Isso visto como mais uma possibilidade, assumindo a
palavra que traduz tão bem o que hoje, historicamente denominamos por
“contemporâneo”: tolerância.
É por tolerância que o impulso apresenta à dança uma outra possibilidade para sua
escrita, na qual o corpo, enquanto a priori inegável ao movimento, perde seu caráter
determinante em prol da aceitação da visualidade enquanto recepção. Dessa forma, exige
a alteração perceptiva capaz de transformar a leitura em nova escrita, talvez mais
anacrônica por conter em si, todos os tempos feitos corporeidade, potência latente para o
movimento. Talvez, a própria sobrevida da arte e de sua história, dependa desse reajuste,
da assimilação de outros parâmetros, da conquista do que, a princípio, não pode ser
prontamente identificado. Por impulso, andarilha se torna a história que transita pelas
imagens triviais nas quais o domínio do experimento se perde na relação com o Outro, na
conquista de múltiplas e passageiras identidades pelas quais os significados fluem
conferindo um destino transitório à linguagem artística.
A dissertação apresenta o impulso como possível saída, alternativa poética ao
107
107
108
modelo filosófico especulativo aceito pela arte como referência. Por passividade e
reatividade afirma a aproximação da dança ao que se costuma chamar linguagem,
permitindo assim defini-la. É pela possibilidade que confere ao artista de expressar suas
próprias respostas, que a dança inscreve a subjetividade do artista na obra e assim ele
renasce, a cada vez que nova leitura se consuma, confirmando sua própria existência.
A vivência do impulso aqui apresentada teve sua origem no embate com a
performance Outdoor Piece, de Tehching Hsieh. Os paralelos traçados entre sua vivência
transeunte, meus próprios impulsos andarilhos e as demais obras literárias e artistas
abordados foram possíveis através do diálogo travado com a obra de Stanley Cavell e
sua visão sobre o ceticismo, o que me possibilitou aceitar meu próprio estado de dúvida
acerca do alcance da linguagem artística. O impulso materializa a condição da linguagem
enquanto destino e se apresenta a ela como opção, como outra possibilidade de seu uso.
108
Sobre viver estrangeiro.
Sobre estar como o Outro de tudo, a cada cheiro,
A cada olhar que mareia, a cada grito gelado.
Do estado aberto.
Da falta de definição, olhar mareia.
Marcas em sua temporalidade, a palavra veste,
E se despe, e então,
Outra, de Outro, nenhum signo.
Perpétuo trânsito andarilho.
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