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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JULIO DE MESQUITA FILHO”
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS
Programa de Pós-Graduação em Geografia
Área de Concentração: Organização do Espaço
Janaina de Alencar Mota e Silva Marandola
RIO CLARO – SP
2007
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Janaina de Alencar Mota e Silva Marandola
Orientadora: Profa. Dra. Lívia de Oliveira
Dissertação elaborada junto ao Programa de
Pós-Graduação em Geografia do Instituto de
Geociências e Ciências Exatas da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Área de Concentração
Organização do Espaço, para obtenção do
título de Mestre em Geografia.
RIO CLARO – SP
2007
910 Marandola, Janaina de Alencar Mota e Silva
M311c Caminhos de morte e de vida : o rio Severino de
João Cabral de Melo Neto/ Janaina de Alencar Mota e
Silva Marandola. – Rio Claro : [s.n.], 2007
133 f. : il.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual
Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas
Orientador: Lívia de Oliveira
1. Geografia. 2. Geografia e literatura. 3. Poesia. 4.
Espaço telúrico. 5. Imagens geográficas. 6. “Morte e
vida Severina”. I. Título.
Ficha Catalográfica elaborada pela STATI – Biblioteca da UNESP
Campus de Rio Claro/SP
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COMISSÃO EXAMINADORA
Profa. Dra. Lívia de Oliveira (UNESP-Rio Claro)
Orientadora
Prof. Dr. Wenceslao Machado de Oliveira Jr.
(FE/Unicamp)
Profa. Dra. Lúcia Helena Batista Gratão
(CCE/UEL)
Janaina de Alencar Mota e Silva Marandola
Aluna
Rio Claro, 14 de Novembro de 2007.
Resultado: Aprovada.
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RESUMO
A obra de João Cabral de Melo Neto é uma das mais significativas de nossa
literatura. Sua concepção racional da poesia atribuía à própria materialidade dos
objetos seu potencial poético. Para tanto, escrevia a partir da memória, sempre
distante dos lugares temas de sua poesia. Para ele, esta era uma condição
necessária à escrita, embora seus poemas não possuam um tom memorialista. A
memória era entendida por ele como o material de onde a poesia poderia emergir e
por isso Cabral fez uma obra com referências geográficas explícitas, de forma
consciente. A forma como ele enraizou sua poesia e como esta atingiu a
universalidade é objeto desta pesquisa, procurando em sua poética os traços que
tornam sua obra o elogio da matéria, da espacialidade e da geograficidade,
enquanto elementos intrínsecos da produção artística. “Morte e vida severina”, seu
poema mais conhecido, é tomado como eixo principal desta análise, a partir de suas
imagens, metáforas e da própria poética cabralina. O rio Capibaribe é o caminho de
Severino que emigra do sertão para Recife, promovendo uma transmutação entre
homem-rio no seu caminho de morte e vida. A análise revela a importância do
espaço telúrico, expressão da relação primitiva homem-meio, como a fonte de onde
emerge a força imagética e metafórica da poesia.
PALAVRAS-CHAVE
“Morte e vida severina” poesia espaço telúrico imagens geográficas
Geografia e Literatura
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ABSTRACT
The work of João Cabral de Melo Neto is one of the most significant of our literature.
His rational conception of poesy attributed to the own materiality of the objects his
poetical potential. For this reason, he wrote from his memory, always far from the
theme places of his poesy. It was for him a necessary condition to writing even
though his poems do not possesses a memorializing tone. Memory was understood by
him as the material where poesy could emerge, and for this reason, Cabral did a work
with explicit geographical references in a conscientious form. The way that he
established his poesy and how it reached universality is the object of this research,
looking for in his poetics the traces that makes his work the eulogy of matter, of
spatiality and of geographicity, while intrinsic elements of the artistically production.
“Morte e Vida Severina”, his most known poem, is taken as the main axle of this
analysis starting from its images, metaphors and from the own Cabral’s poetics.
Capibaribe river is the path of Severino that emigrates from sertão to Recife,
promoting a transmutation between man-river in his path of death and life. The
analysis reveals the importance of telluric space, expression of primitive relation
man-environment as the source from where emerges the imagery and metaphoric
strength of the poesy.
KEY-WORDS
“Morte e vida severina” poesy telluric space geographical images
Geography and Literature
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DEDICATÓRIA
A Eduardo,
este trabalho que também é seu.
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AGRADECIMENTOS
Na finalização de um trabalho o penoso como uma dissertação de mestrado, muita
gente passa por nosso caminho oferecendo uma mão amiga. Tenho medo de me
esquecer de agradecer a todos que o merecem, mas gostaria de agradecer aqui,
senão todos, ao menos aqueles que tiveram uma participação mais
direta neste trabalho.
Primeiramente à Lívia, responsável por eu ter “entrado neste barco” e por ter me
dado a oportunidade de seu convívio. Hoje, mais do que aluna e orientanda,
já me sinto um pouco sobrinha.
Ao Wenceslao, que me apresentou uma nova forma de enxergar a
Geografia e a Arte.
À Lúcia Helena, pela inspiração da poética da água e por todas as nossas
conversas entre sabores e saberes.
Ao Fadel, pela disposição em dialogar no exame de qualificação.
À Inajara, sempre um amparo e sempre o solícita a esta mestranda
tão ausente da UNESP.
À Leila, amiga desde a graduação, com quem pude compartilhar
também o mestrado.
À Lúcia e ao Edinho, que sempre estiveram com suas portas abertas, oferecendo-me
um lugar de acolhida em Rio Claro.
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Ao Hugo, “pau para toda obra”, sempre disposto e disponível para as mais
diferentes tarefas e que esteve presente, mesmo que não cientificamente,
em todo o processo.
À Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, pela “Bolsa Mestrado” que
me permitiu ter tempo e tranqüilidade para a realização deste trabalho.
Às bolsistas da Diretoria de Ensino – Região de Sumaré (D.E.), Fernanda, Carla e
Sônia, pela amizade e por compartilharem comigo as angústias que somente aqueles
que conciliam trabalho e estudo podem compreender.
Aos colegas da Oficina Pedagógica da D.E., em especial ao Alberto, coordenador
do projeto “Bolsa Mestrado”; à Clara, coordenadora da Oficina; ao João, ATP de
História e Geografia, com quem trabalhei mais diretamente; ao Mário, ATP de Língua
Portuguesa, que me ajudou a encontrar algumas referências fundamentais para este
trabalho; e, por fim, à Railda, à Izolina e à Regina, companheiras de Videoteca.
Agradeço também ao João Cabral, este poeta ranzinza, mal-humorado e anti-
musical, de palavras, ao mesmo tempo, tão secas e tão belas, que, por seu
estilo ímpar, conseguiu fazer esta pessoa que não gostava de poesia
apaixonar-se por sua obra.
Ao Chico Buarque, que tão bem musicou o poema de João Cabral e cujas canções eu
ouvia toda vez que sentia dificuldades em “encarnar o espírito cabralino” (se minha
vida tem trilha sonora, minha dissertação também teve).
E, especialmente, ao Eduardo, grande responsável pela finalização deste trabalho,
pois sempre me fez levantar todas as incontáveis vezes em que quis desistir. Por toda
sua atenção, paciência e dedicação, discutindo comigo, trazendo referências, me
fazendo ler e “obrigando-me” a escrever. Não fosse por seu apoio e por seu amor,
esta dissertação jamais teria ficado pronta.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 – Cronologia das obras e cidades onde morou João Cabral
de Melo Neto (1920-1999) _________________________________________29
Figura 02 – Regiões do Estado de Pernambuco _________________________________84
Figura 03 – A família das imagens _____________________________________________94
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO _________________________________________________________________11
CAPÍTULO I
A POESIA TELÚRICA DE JOÃO CABRAL____________________________________18
Profissão: Poeta-Diplomata _________________________________________________19
Poética e Estética Cabralina ________________________________________________31
Razão, objetividade e a poética da negação ______________________________31
O poeta viajante: memória e materialidade ______________________________38
Geografia Pessoal __________________________________________________________44
Pernambuco, Recife e o Capibaribe _____________________________________47
Sevilha e a Andaluzia___________________________________________________52
CAPÍTULO II
“MORTE E VIDA SEVERINA: AUTO DE NATAL PERNAMBUCANO” __________59
Símbolos e Imagens Natalino-Nordestinas___________________________________66
O pastoril e o Folk-lore pernambucano___________________________________72
Morte severina: morte em vida __________________________________________80
As Paisagens de Pernambuco no Caminho de Severino ______________________83
CAPÍTULO III
O CAMINHO DO RIO/HOMEM _____________________________________________92
Rio e Água, Caminho e Percurso: Imagens Geográficas ______________________98
Rio-Humanizado, Homem-Naturalizado ___________________________________ 103
O caminho do rio severino ____________________________________________ 112
O cinema espesso ____________________________________________________ 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS____________________________________________________ 122
REFERÊNCIAS ______________________________________________________________ 128
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RETRATO, À SUA MANEIRA
(João Cabral de Melo Neto)
Magro entre pedras
Calcárias possível
Pergaminho para
A anotação gráfica
O grafito Grave
Narra poema o
Fêmur fraterno
Radiografável a
Olho nu árido
Como o deserto
E além tu
Irmão Totem aedo
Exato e provável
friso do tempo
Adiante Ave
Camarada diamante!
Vinicius de Moraes
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O interesse geográfico pela arte e pela literatura se sistematiza a
partir dos estudos humanistas na década de 1970, quando um corpo de geógrafos
ocupados em opor-se ao positivismo e a uma visão racionalista exacerbada da
ciência se organiza e procura outras orientações teóricas e metodológicas para a
Geografia. Este movimento humanista resgata o sentido do humanismo
renascentista de valorizar o papel do homem em todas as suas dimensões,
recolocando a arte no espectro da ciência. (MARANDOLA JR., 2005) Esta Geografia
Humanista promove o resgate da intuição, da percepção e da emoção, fornecendo
um lugar próprio para os estudos de obras e manifestações artísticas na ciência
geográfica, estando ligados em seu desenvolvimento aos estudos de percepção e
cognição do meio ambiente. (AMORIM FILHO, 1987; OLIVEIRA, 2004)
No entanto, a leitura geográfica de manifestações artísticas tem sido
feita a partir de diferentes quadros teórico-metodológicos. No que se refere aos
estudos de Geografia e Literatura, o lugar e a paisagem são as categorias de análise
que mais têm sido exploradas desde a década de 1970. (MARANDOLA, 2006) A
ênfase incide sobre o aspecto afetivo e relacional que envolve o homem e o
ambiente, experienciado e significado, além de todos os elementos envolvidos na
atribuição de valores e sentido que o homem emprega para se localizar no mundo.
Isto porque a noção de lugar permite ao geógrafo pensar a Literatura e ao literata
pensar a Geografia. (POCOCK, 1988)
Ao olharmos de uma maneira ampla para tais estudos podemos
identificar duas grandes posturas (que reservam muita heterogeneidade em seu
interior) predominantes: (1) estudos que buscam o conteúdo geográfico nas
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manifestações artísticas e (2) estudos que buscam as geografias criadas por estas
manifestações.
Quanto aos trabalhos que têm enfocado o conteúdo geográfico nas
manifestações artísticas, temos alguns geógrafos que em primeira mão perceberam
a importância que as descrições de romancistas de regiões, lugares e paisagens, em
especial daqueles ligados ao realismo. Preocupados em ambientar e conferir
verossimilhança a suas narrativas, muitos autores (entre eles os regionalistas
brasileiros) realizavam minuciosa descrição dos espaços onde a ação romanesca
ocorria, procurando localiza-la num espaço-tempo real, verossímil. Estes romances
chamaram atenção de vários geógrafos, pelo conteúdo propriamente geográfico que
estes possuíam que, até àquela época, nem mesmo os geógrafos ou outros
cientistas haviam sistematizado. (OLIVEIRA e MARANDOLA JR., 2007) Assim,
geógrafos da chamada Geografia Tradicional foram os primeiros a apontar para a
Literatura enquanto fonte de conteúdos-conhecimentos geográficos, embora
encarassem a Literatura como documento, à semelhança de outros documentos
históricos. (MONBEIG, 1940; WRIGHT, 1947; SEGISMUNDO, 1949)
Mais recentemente, no entanto, uma ressignificação do sentido
deste “conteúdo geográfico”, realizada pelos estudos de Carlos Augusto de
Figueiredo Monteiro, que tem feito isto de forma mais completa, no que chama de
“conteúdo geográfico em criações romanescas.” (MONTEIRO, 2002) O conteúdo, em
seu caso, não se resume à descrição ou à simples documentação da obra, mas sim
à toda trama que envolve a narrativa. Os elementos geográficos estão na própria
estrutura de criação e compreensão da obra. A Geografia é vista, portanto, como
componente da própria narrativa, entremeada com os aspectos culturais, sociais,
históricos e políticos. Ele procura transcender o estudo do “lugar” que predominou
em muitas análises geográficas de obras literárias. Para ele, a melhor forma de
estabelecer a relação Geografia-Literatura é expressa nas imagens do “mapa” e da
“trama”: o mapa significa o contexto estrutural de configuração espaço-temporal
(mais do que o lugar) onde acontece o dinamismo da ação, que é a trama (narrativa)
criada pelo escritor.
O autor analisou a obra de diversos escritores da literatura
brasileira, tais como Guimarães Rosa, Aluísio de Azevedo, Graciliano Ramos,
Machado de Assis, Graça Aranha, entre outros, refletindo acerca de vários
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temas/problemas que as tramas e os mapas de tais obras suscitam. Entre as
principais virtudes desta abordagem está a exploração de detalhes da vida cotidiana
no cenário sertanejo ou no urbano, procurando, através de diferentes enfoques,
revelar o espaço, o tempo, os dramas das personagens, seus lugares e paisagens.
Sua leitura é profunda e procura diálogo com a Filosofia, a História, a Arte e com o
próprio processo de formação da sociedade e do espaço brasileiro. Portanto, ao
pensar o conteúdo geográfico de criações romanescas, Monteiro acaba por falar do
próprio Brasil.
Entre aqueles que têm buscado as geografias criadas por
manifestações artísticas e sua forma própria de linguagem, podemos citar
Wenceslao Machado de Oliveira Jr., com sua abordagem das “geografias de
cinema”, ou, em outras palavras, das “geografias que o cinema cria”. (OLIVEIRA
JR., 2004; 2005) O autor realiza suas leituras a partir do entendimento de que uma
obra fílmica nos oferece uma narrativa fundadora: “a cada filme produzido um
mundo é fundado.” A criação fílmica emprega uma linguagem que, em princípio,
são traduções, ou seja, “[...] tentativas de nomear o mundo, revelá-los aos homens,
de dar-lhe existência real (concreta ou imaginada).” (OLIVEIRA JR., 1999, p.5)
Neste sentido, ao tentar revelar o mundo, o cinema acaba por nos
mostrar pedaços da realidade que, no entanto, conservam em si a realidade
geográfica de onde foram tirados. Além disso,
O cinema também inventa outros objetos e lugares. Como exemplo
podemos lembrar dos movimentos por ele realizados. No cinema,
objetos inertes na realidade se movimentam diante dos nossos olhos.
Prédios e viadutos sobem e descem, giram; montanhas e estradas
aproximam-se e distanciam-se de nós. Ficam enormes e pequenos,
ameaçadores e submissos, desfocados, inclinados... criando outras
geografias, das quais suas formas e movimentos são criadoras.
Dessa maneira, os filmes nos permitem imaginar outros mundos,
poetizar objetos e lugares, deslocando-os da posição de mera
realidade. (OLIVEIRA JR. 2006, p.193)
Assim, ao buscar as geografias criadas pelo cinema, o autor acaba
por nos apresentar uma outra maneira de ler as manifestações artísticas. A
materialidade, base da imagem fílmica e da narrativa, é trabalhada no sentido de
trazer outras leituras da espacialidade, onde as leis da física parecem poder ser
transgredidas. Assim, através de metáforas espaciais, são criadas novas geografias
que nos atingem, produzindo movimentos em nós, receptores de tais imagens. Esta
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relação produção/execução/recepção das imagens é fundamental para acompanhar
a capacidade do cinema, assim como da literatura, de produzir geografias para além
da própria manifestação artística.
Buscamos neste trabalho uma abordagem que parta da primeira em
direção à segunda. Realizamos uma leitura geográfica de “Morte e vida severina”,
poema escrito por João Cabral de Melo Neto na década de 1950. Este se tornou um
dos poemas mais conhecidos do país após a montagem do grupo do teatro da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (TUCA), na década de 1960. Seu
autor, poeta do concreto e do trabalho árduo, racionalista convicto e adepto de uma
poesia anti-parnasiana, possui uma trajetória poética ligada aos seus dois lugares,
no sentido atribuído por Tuan (1983): Recife e Sevilha. Nos dois casos, estas
cidades são o epicentro de um lugar multi-escalar que concentrava a afetividade do
autor: Recife-Pernambuco-Nordeste e Sevilha-Andaluzia-Espanha. Cabral, poeta-
diplomata, esteve a maior parte de sua vida distante destes dois lugares, mas eles
estiveram consigo por toda vida, em sua memória.
Estas são características reveladoras de sua poética e estética,
marcada pela busca pelo racional e pela presentificação do distante a partir da
memória. Neste trajeto, a concretude da paisagem lhe deu acesso a um espaço
telúrico, que permanecerá sempre presente em sua poesia, dotando-a de uma
geograficidade inerente. Em busca desta trajetória é que realizamos uma leitura
geográfica do poema “Morte e vida severina”, em seu duplo movimento: auto de
natal pernambucano e caminho do rio/homem (Capibaribe/Severino), simbolizando
o devir de um povo e uma danação.
“Morte e vida severina”, mesmo tendo sido aclamado pela esquerda
e tomado como bandeira de movimentos sociais (como o dos trabalhadores rurais
sem terra), não possui sua força neste “conteúdo social”. João Cabral dizia que não
escrevia com o intento de fazer propaganda política ou denúncia social. O que ele
quis foi apenas falar sobre sua realidade, sobre sua terra natal, seu lugar,
elementos de sua memória. Sobre “Morte e vida severina”, Cabral disse que para
falar do Nordeste não como se furtar da pobreza e da miséria, que são parte
daquela realidade. Assim, a denúncia o era um fim nem meio de sua poesia, mas
uma conseqüência do espaço a partir do qual ele escrevia.
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Em vista disso, nosso estudo não se orienta pelas repercussões
sociais ou históricas que o poema produziu, nem por sua crítica e denúncia à
situação de pobreza. Antes, orienta-se pela compreensão das metáforas e imagens
geográficas, seus elementos telúricos e as possibilidades de leitura a partir da
poética cabralina, do mundo que é fundado a partir da poesia: sua geopoética.
(GRATÃO, 2006) Não se trata de tirar uma obra de seu contexto, mas de colocá-la
enquanto obra de um autor, em dado espaço-tempo, procurando projetar a partir
dela seus significados e possibilidades de leitura geográfica. Procuramos, portanto,
ressaltar a natureza fundadora da sua poética. Esta projeta imagens e metáforas
que dão significado aos lugares dos quais falou João Cabral. um duplo
movimento da fundação: o poeta parte de um espaço vivido para escrever e, ao
escrever, ajuda a constituir este mesmo espaço, fundando novas geografias a partir
de sua narrativa e poética.
Para tanto, a análise passa pela compreensão da poética cabralina,
a partir de seus dois lugares (Recife e Sevilha), procurando elementos que nos
permitam a leitura de “Morte e vida severina” (Capítulo I). Esta leitura parte dos
elementos da narrativa bíblica, do folclore nordestino e da própria geografia de
Pernambuco, bases da composição do poema, em busca dos símbolos e imagens
projetadas e suas reverberações enquanto metáforas espaciais e expressão da
geograficidade inerente a tais, que elevam o poema ao estatuto universal (Capítulo
II). Este caminho nos conduz ao último capítulo, dedicado à
relação/antropomorfização do rio/homem, tanto em “Morte e vida severina” como
nos dois outros poemas do chamado “tríptico do rio”: “O cão sem plumas” e “O rio”
(Capítulo III). Nestes poemas, anteriores a “Morte e vida severina”, aparecem vários
dos elementos que foram resgatados por Cabral no fechamento do tríptico. Vemos a
força telúrica das imagens da água, do rio e da relação homem-meio imprimindo à
condição severina (do homem, do rio e do espaço como um todo) seus traços de
morte e de vida.
O rio severino é o mesmo Severino que desce do sertão para
encontrar o mar. É uma saga coletiva, de anônimos, que se repete em todo canto
por um espaço telúrico, conferindo ao poema sua força simbólica e imagética. Os
percursos de morte e de vida que acompanham esta viagem revelam o sentido
geográfico deste caminho, enquanto Severino e o Capibaribe passam pelas
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paisagens pernambucanas, repletas de morte, e vão encontrar o renascimento da
vida nos mangues do Recife, às margens do mesmo Capibaribe. Ele é o eixo, é o
condutor deste caminho, para onde tudo conflui e por onde todos caminham. O
Capibaribe é o devir. Ao fundir rio e homem, Cabral atribui a Severino e ao
Capibaribe a mesma condição histórica e geográfica: uma direção inexorável e um
destino comum de morte e vida severina.
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Profissão: Poeta-Diplomata
Os “Engenhos de minha infância”
onde a memória ainda me sangra
João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto nasceu em nove de Janeiro de 1920, na
cidade do Recife, por uma tradição da família: o avô fazia questão que as filhas
tivessem os filhos em sua casa. Assim sendo, alguns dias após o nascimento o be
segue para o engenho de úcar no interior de Pernambuco onde moravam seus
pais, Luiz Antônio Cabral de Melo e Carmem Carneiro Leão. Primeiro vive no
engenho do Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata (às margens do rio
Capibaribe), depois a família se muda para os engenhos Pacoval e Dois Irmãos,
ambos no município de Moreno.
[Minha família não era rica,] era uma família tradicional. Não tive
infância luxuosa. Aqueles luxos que certos escritores atribuem ao
engenho devem ter sido no princípio da Colônia. Nenhum dos
engenhos de meu pai tinha luz elétrica, de modo que, quando
começava a escurecer, as empregadas punham todos os candeeiros
sobre a mesa, iam acendendo um por um e levando para diferentes
cantos para pendurar. (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.47)
Durante a Revolução de 1930, o pai é perseguido e o engenho
destruído. Com isso, a família se muda definitivamente para Recife, onde moram
nos bairros Monteiro, Casa Forte e Jaqueira, todos banhados pelo rio Capibaribe.
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Os municípios onde ficavam os engenhos da família, também ficavam às margens
de afluentes do Capibaribe. Assim, as lembranças de infância e juventude do poeta
estarão sempre ligadas a esse rio, que, de uma maneira ou de outra, marcou
profundamente sua geografia pessoal.
O menino João Cabral, então com 10 anos, é matriculado no
Colégio Ponte d’Uchoa, dirigido pelos Irmãos Marista, onde estudará até concluir o
secundário, aos 15 anos. Neste período, surge o medo terrível do inferno e da morte.
A imagem de uma imensa fogueira, com demônios vermelhos que torturam e fervem
pecadores por toda a eternidade povoa seus pesadelos desde menino.
O fato de ter sido educado num colégio religioso, onde me inculcaram
o pavor da morte, com todo esse negócio de céu e inferno, marcou-
me profundamente. Isso afeta a sensibilidade de uma criança para o
resto da vida. Embora tenha perdido a fé, não superei esse medo da
morte. O que me angustia é não poder dominar o pavor primário e
imbecil que os padres me imprimiram para sempre. O engraçado é
que não acredito na existência do céu. A minha angústia é com a
idéia de inferno. (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.61)
Este pavor primário que Cabral sente em relação ao inferno é um
dado importante para compreendermos a presença tão marcante da morte em seus
poemas, não apenas em “Morte e Vida Severina”, mas em vários outros (como uma
série de poemas sobre cemitérios). Durante uma crise de depressão que teve em sua
temporada madrilenha, o poeta consultou-se, por um tempo, com um famoso
psiquiatra espanhol. Logo na primeira consulta o dico lhe pede um exemplar de
um de seus livros. Após algumas sessões, o diagnóstico é taxativo: “Sabe porque
você fala tanto da morte do Nordeste? Para exorcizar seu próprio medo da morte.”
(CASTELLO, 2006, p.128) Esta relação feita pelo psiquiatra, apesar de parecer
simplória, fez muito sentido à Cabral, que sempre pensou que o mais duro da morte
era o seu processo, ou seja, a lenta decadência do corpo. Seja como for, ele jamais
se livrou da imagem do inferno marista e isso foi expresso, conscientemente ou não,
em sua obra.
Desde muito cedo, o menino João Cabral era apaixonado pela
leitura, lendo de tudo: romances, ensaios, cordel, livros cnicos ou qualquer coisa
que caísse em suas mãos. Inclusive quando seu pai lhe comprava os livros
didáticos, lia tudo de uma vez e achava que depois não precisava mais estudar. Por
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isso era visto como desinteressado na escola, apesar de tirar as maiores notas nos
exames, sendo considerado o “crânio” da família.
[...] desde que me entendo por gente tenho um livro ou um lápis na
mão. Eu me lembro de um detalhe: cada vez que meu pai comprava
livros de história, de geografia, de química para eu estudar durante o
ano, eu lia tudo de um fôlego só, por pura curiosidade. Não sabia
nada de química e lia aquele troço todo, do princípio ao fim, pelo
prazer de ler. (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.46)
No entanto, apesar de gostar demais da leitura, João Cabral
detestava poesia, isso porque as antologias da época iam até o parnasianismo, e
ele achava os poemas das antologias escolares uma coisa melosa e sentimental.
[...] quando era aluno do ginásio eu tinha horror à poesia... Ler, eu
sempre li, romance e, depois de certa idade, muito ensaio, muita
coisa. Agora poesia, eu tinha verdadeiro horror, porque, naquele
tempo, as antologias em que a gente estudava nos colégios iam
até o Parnasianismo, de forma que eu lia poetas brasileiros e
portugueses parnasianos, românticos, e aquilo me dava nojo, tinha
um verdadeiro ódio de poesia. Ódio é exagero, mas não entendia
como alguém podia se interessar por aquilo. (MELO NETO apud
ATHAYDE, 1998 p.37-38)
Somente depois de deixar o colégio é que João Cabral vai se
interessar por poesia. Isto ocorre quando em uma antologia poética moderna
organizada por Estêvão Cruz os poemas “Não sei dançar”, de Manuel Bandeira,
“Essa nega fulô”, de Jorge de Lima, e “Noturno de Belo Horizonte”, de Mário de
Andrade. Estes poemas foram uma revelação para ele. Chegou a pensar a princípio
que não era poesia, compreendendo depois, porém, que é possível ser poeta sem ser
romântico ou lírico. “Essa descoberta fundamental pode ser resumida em uma frase:
é possível ser poeta sem escrever ‘poesia’.” (CASTELLO, 2006, p.39). Retirava-se,
assim, o empecilho imposto pelo próprio João Cabral à obra poética: “[...] senti uma
coisa totalmente nova em relação à poesia [...] compreendi que podia haver uma
poesia lógica, e que a poesia não precisava ser obrigatoriamente rica. Decidi tentar
poesia.” (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998 p.36)
Quando sai do colégio, João Cabral pensa em ser agrônomo, no
entanto, acaba optando pelo jornalismo e só não segue a profissão por influência de
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seu pai que o desestimula. Aos 16 anos, porém, nutre o forte desejo de se tornar
crítico literário.
Mas consciente de que lhe falta bagagem para exercer a crítica,
resolve se preparar para a profissão escrevendo poesia. A poesia lhe
surge, portanto, como um paliativo. Essa escolha, em que a poesia é
o caminho e a crítica o destino, é significativa. Cabral a poesia, a
princípio, como um rascunho da crítica. Com o tempo, porém,
descobre que prefere a poesia à crítica. E mais: que a poesia pode ser
a melhor forma para o exercício da crítica literária. (CASTELLO,
2006, p.44)
Seu primeiro poema, escrito aos 17 anos, é “Sugestões de
Pirandello”. Uma crítica que, a princípio, pretendia escrever em prosa, mas que
acaba escrevendo em versos. Para ele, crítica e poesia podem ser e são uma coisa
só. Esta vocação para a crítica está presente em toda a obra de Cabral, em poemas
críticos nos quais o poeta reflete sobre seu ofício e sobre a obra de outros, como em
“O engenheiro”, “A Paul Valéry”, “O sim contra o sim”, “Graciliano Ramos”, “A
escultura de Mary Vieira”, além da série “Linguagens alheias”, do livro Agrestes,
apenas para citar alguns. Entretanto, esta crítica não está de maneira alguma
afiliada a uma única tendência intelectual. O fato de “ter a poesia como veículo da
crítica o leva a não adotar um sistema crítico fechado e a não ceder às facilidades
de uma única teoria [...] Ao criticar, tenta sempre encontrar no outro um
companheiro de visada, ou pelo menos uma testemunha atenta.” (CASTELLO,
2006, p.156) Cabral critica “sem ir contra, como um pernóstico invejoso, ou a favor,
como um discípulo que adula, ele caminha lado a lado com seus escolhidos.”
(CASTELLO, 2006, p.160)
Por volta de 1938, conhece Willy Lewin, escritor e crítico, que será
influência fundamental em sua formação intelectual. Logo em seguida começa a
freqüentar o Café Lafayette, local onde se encontram os intelectuais de Recife, como
José Guimarães de Araújo, Lêdo Ivo, Antônio Rangel, Gastão de Hollanda, Benedito
Coutinho e Vicente do Rego Monteiro, sob a liderança do próprio Willy Lewin.
Os freqüentadores do Café Lafayette faziam parte de um movimento
que tentava romper com os romances regionalistas nordestinos prevalecentes na
época, tais como os de Jorge Amado, José Lins do Rego e Raquel de Queirós.
Tentavam se aproximar de uma literatura intimista e psicológica, desprezada pelos
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leitores da época. Na falta de ficções que fugissem dessa tradição regionalista e
procurando demarcar um terreno próprio, o grupo acabou dedicando-se mais à
poesia, o que contribui fundamentalmente para a aproximação de João Cabral com
este gênero literário.
Já aos 19 anos, João Cabral torna-se um dos poucos privilegiados a
ter acesso à biblioteca pessoal de Lewin, onde irá encontrar grande parte dos textos
que serão decisivos na sua formação poética. ele descobre os surrealistas, os
cubistas e a moderna poesia francesa. desde autores que lhe servirão de anti-
exemplo, como Marcel Raymond (que buscava uma “gênese espiritual” na obra de
arte, relacionando a poética diretamente aos fatores externos que a cercam), até
aqueles que serão fundamentais para sua poesia, como Paul Valéry, que dizia que
“[...] é preferível escrever um romance medíocre em plena consciência que uma obra
genial por inspiração.” (CASTELLO, 2006, p.48) Assim, seguindo os preceitos
valerianos, João Cabral passa a buscar uma poesia que fosse guiada pela razão.
Contudo, sua primeira opção teórica enquanto orientação de sua
poesia é o surrealismo. Este causa grande fascinação em João Cabral por possuir
uma formulação lógica, uma teoria, algo que substituía a inspiração. Os
surrealistas propuseram “um rompimento com a poesia inspirada, ainda que em
seu lugar se ponha um novo disfarce, mais explicado e arrogante, da inspiração. O
inconsciente se torna o novo nome que os surrealistas emprestam à velha musa.”
(CASTELLO, 2006, p.50) O que os surrealistas almejavam era ir além da lógica e da
razão, enfatizando o papel do inconsciente e dos sonhos na atividade criativa. Mas
ao afastar-se do consciente e, por conseqüência, da razão, o que eles estavam
fazendo era apenas dar uma nova roupagem, intelectualizada, da mesma inspiração
que tentavam negar. Ao dar-se conta disso, Cabral rompe com o surrealismo, indo
em busca de uma teoria que lhe permita realizar seu empreendimento, sem
espontaneísmos, procurando “[...] uma poesia mais construída e sem trapaças.
Uma poesia concreta, que se erga sobre o mapa do engenheiro.” (CASTELLO, 2006,
p.50) E é na teoria poética de Valéry (não em sua poesia) e na teoria modernista do
arquiteto Le Corbusier que ele encontrará o substrato teórico que procurava. Ambos
tinham forte influência cubista, que valoriza o geométrico na representação da
realidade, o que serviu a João Cabral de pedra teórica fundamental de sua poética.
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Na biblioteca de Lewin, Cabral encontra também um importante alter
ego: o poeta francês Pierre Reverdy, que defendia que “A arte é uma disciplina. Não
existe arte sem disciplina, não existe arte pessoal, sem disciplina pessoal.”
(REVERDY apud CASTELLO, 2006, p.61) Sob influência do cubismo, Reverdy
procura estabelecer a ordem interna do poema.
Cabral encontra em Reverdy um semelhante. Um homem que,
enojado da pasmaceira inspirada, procura as mesmas coisas que ele
rigor, objetividade, certezas. A arte esculpida com a frieza do
arquiteto que levanta a sua casa; projeto nas mãos, muito suor, sem
esperar pelas benesses da iluminação. (CASTELLO, 2006, p.61)
E é justamente na arquitetura que Cabral vai encontrar seu
principal fundamento teórico: Le Corbusier. Com ele, o poeta aprendeu lições
valiosas sobre a arte que foram incorporadas à própria estrutura da sua poética e
tornaram-se os alicerces de sua concepção teórica da poesia e da arte.
Aprendi com ele que se podia fazer uma arte não com o rbido,
mas com o são, não com o espontâneo, mas com o construído. Foi
ele quem me curou do surrealismo, definido como arte fúnebre em
seu livro Quando as catedrais eram brancas. A partir de O
Engenheiro, optei pela luz em detrimento das trevas e da morbidez.
(MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.133-134)
A luz é, para Cabral, a razão, o conhecimento e a sabedoria, fruto
de um trabalho pensado e arquitetado, uma verdadeira construção, num
procedimento claramente científico em seu método e rigor. O poeta sente fascínio
pela idéia de Le Corbusier da casa enquanto máquina de morar e da pintura
enquanto máquina de comover, a partir disso, adota a idéia de poesia enquanto
máquina de emocionar.
É também Lewin quem apresentará a Cabral a obra de Carlos
Drummond de Andrade, com o livro Brejo de Almas, no qual descobrirá que é
possível fazer poesia sem oratória. Esta leitura foi fundamental na decisão de João
Cabral de finalmente optar pela poesia. Cabral reconheceu, inclusive, que foi
Drummond o poeta brasileiro que mais influenciou sua obra, sobretudo nos
primeiros livros, antes da fama, quando ainda era um poeta da minoria.
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Em 1941, Cabral participa do Congresso de Poesia do Recife com a
tese “Considerações sobre o poeta dormindo”, onde contrapõe o sono e o sonho
enquanto fonte do poema. Para ele o sonho pode ser criticado, “[...] é como uma obra
nossa. Uma obra nascida do sono, feita para nosso uso.” Assim, seu interesse é com
o sono, que é um “[...] estado, um poço em que mergulhamos, em que estamos
ausentes. Um local onde a crítica não pode chegar, que não pode ser
documentado, “[...] é uma aventura que não se conta.” (MELO NETO, 1994, p.686)
Esta tese, escrita aos 21 anos de idade, pode ser considerada uma das peças
fundamentais para compreensão do nascimento de sua poética. Vemos um pré-
Cabral, ainda fortemente envolto no surrealismo, mas com traços do Cabral que
viríamos a conhecer. (CASTELLO, 2006)
Em 1942, conhece Vinícius de Moraes, que é em tudo o seu oposto.
Desde sua poesia, romântica e imaterial, guiada pela emoção e, mais do que tudo,
paixão, passando pelo gosto e envolvimento com a música (linguagem artística que
Cabral odiava) até seu modo de vida, boêmio e desregrado. No entanto, nasce entre
eles uma amizade e uma cumplicidade que permanecerá até a morte de Vinícius de
Moraes, em 1980. “Vinícius serve, a Cabral, como uma espécie de antídoto. Doce
veneno, que é preciso saber degustar para se fortalecer.” (CASTELLO, 2006, p.48)
Cabral sempre teve grande facilidade para fazer amizade com artistas de posições
completamente diferentes e até mesmo antagônicas às dele. Além de Vinícius de
Moraes, outro bom exemplo é o poeta alagoano do Ivo, tido como conservador,
amigo de Cabral por toda sua vida (desde os tempos do Café Lafayette) e com o qual
travava inúmeras discussões, sem que a amizade enfraquecesse. Certa vez, ao falar
sobre a amizade dos dois, Lêdo Ivo declarou: “Ele é calado e eu falo muito, ele é
conciso e eu prolixo, ele tem insônia e eu durmo pelo menos dez horas por noite,
mas nos adoramos.” (CASTELLO, 2006, p.53) Para Cabral, a proximidade com o
diferente não era vista como ameaça, mas como enriquecimento.
Ainda em 1942, muda-se para o Rio de Janeiro, cidade com a qual
ele dirá jamais ter feito grandes laços de afetividade. Mas esta estada lhe rende a
aproximação dos poetas Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, entre
outros, que se encontravam no consultório do médico e poeta Jorge de Lima, os
quais ele havia conhecido dois anos antes, quando esteve na cidade em visita com a
família. É interessante notar que Murilo Mendes também é citado por Cabral entre
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suas principais influências, embora acreditasse ser este o poeta brasileiro mais
diferente de si, desde a concepção da vida até da poesia. “Nenhum poeta brasileiro
me ensinou como ele a importância do visual sobre o conceitual, do plástico sobre o
musical. [...] Sua poesia me ensinou que a palavra concreta, porque sensorial, é
sempre mais poética do que a palavra abstrata.” Sua concepção sobre a poesia
contribuiu, por meio da negação, na definição da poética cabralina. (MELO NETO
apud CADERNOS..., 1996, p.127)
Neste mesmo ano, Cabral lança seu primeiro livro, Pedra do Sono,
em edição restrita, custeada por ele mesmo. O livro recebe uma crítica de Antonio
Candido, decisiva na carreira poética de João Cabral: “[A] crítica de Antonio
Candido foi para mim uma revelação. Foi ela que me deu coragem de continuar
escrevendo no início da minha carreira.” (MELO NETO apud CADERNOS..., 1996,
p.24). Nela, Candido (apud CADERNOS..., 1996, p.121) afirma que não pode
chamar Cabral de cubista “[...] porque ele não é isso. O seu cubismo de
construção é sobrevoado por um senso surrealista de poesia.” O que Candido faz é
chamar a atenção para os traços cubistas que apareciam numa poesia
aparentemente surrealista.
[...] ele previu tudo o que eu ia escrever, a maneira como eu ia
escrever e meu primeiro livro não é ainda muito característico da
minha maneira posterior, mas ele pressentiu tudo. Notou que minha
poesia aparentemente surrealista, no fundo, era a de um cubista. De
fato, de todas as escolas, estilos de pintura, a coisa que mais me
influenciou, mais me marcou foi o Cubismo. Daí também essa
grande influência de Le Corbusier. O Antonio Candido previu esse
meu construtivismo, essa minha preocupação de compor o poema,
de não deixar que o poema se fizesse sozinho, de falar das coisas e
não de mim. (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.100-101)
Com esta crítica, o autor recebeu o incentivo necessário para
prosseguir em sua construção de uma poética própria, original, que o associava e o
destacava, ao mesmo tempo, do grupo do Café Lafayette, dos modernistas e da
Geração de 45. Afastando-se cada vez mais do surrealismo em direção à sua poesia
construída, laboriosa e racionalista.
Em 1943, ingressa no Departamento Administrativo do Serviço
Público (DASP) no cargo de assistente de seleção. Três anos mais tarde, presta
concurso para a carreira diplomática, para a qual é nomeado em dezembro de
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1945. Sobre sua profissão, Cabral confessou que ao prestar concurso, o fez sem
muita convicção. Desejava apenas um emprego que lhe rendesse um bom salário
para sustentar a família e que lhe sobrasse tempo livre para escrever. Entretanto,
esta escolha foi fundamental no delineamento de sua poética. Em cada cidade que
serviu, estabeleceu importantes encontros literários: “com os metafísicos ingleses,
com os primitivos espanhóis, com os surrealistas e cubistas franceses.” Cabral
desenvolve assim, uma “identidade torneada por suas viagens”. (CASTELLO, 2006,
p.125)
Ainda em 1945, lança seu segundo livro, O Engenheiro, em edição
paga por Augusto Frederico Schmidt. Este havia recebido uma cópia do livro via
Lauro Escorel, amigo de Cabral, e que o passou, cheio de elogios, ao poeta. Ao lê-lo,
Schimidt se surpreende. “Augusto Frederico Schmidt, o poeta dos largos versos
metafísicos, tem consciência de que O Engenheiro, com sua estética objetiva e
ressecada, vem pôr em questão tudo o que escreve.” Mas deixando de lado a
vaidade, declara a João Cabral: “Este livro ainda vai me fazer um grande mal. Mas é
um grande livro. [...] Publique-o e depois mande a conta em casa que eu pago.”
(CASTELLO, 2006, p.75) Surge daí mais uma das “amizades antagônicas” de
Cabral.
Sobre seu segundo livro, Cabral comenta que ele é marcado pela
idéia de que um poema pode ser feito através de um trabalho puramente intelectual
e racional, como o trabalho de um engenheiro (daí o título do livro). Ao compará-lo
com Pedra do Sono, diz que seu primeiro livro, embora tenha sido cuidadosamente
construído, possui uma atmosfera mais noturna, criada pelo uso de imagens
aparentemente surrealistas. Neste sentido, o segundo pode ser apontado como mais
solar, pois “[...] a imagem não serve somente para criar uma atmosfera, mas começa
a ter um sentido lógico oculto, subjacente.” (MELO NETO apud ATHAYDE, p.100)
Carlos Drummond de Andrade faz uma crítica na qual afirma não ter em O
engenheiro “[...] nenhuma concessão e emotividade fácil, que transforma o poema
em coisa anedótica ou sentimental; mas antes, tentativa de isolamento da autêntica
emoção poética, por uma caça ao resíduo que chega a ser obsedante.” (ANDRADE
apud CADERNOS..., 1996, p.120) O estilo cabralino já aparece, neste segundo livro,
bastante delineado.
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A primeira vez que João Cabral deixa o Brasil, foi em 1947, ao ser
nomeado vice-cônsul brasileiro em Barcelona. Depois de Barcelona, Cabral viverá
tamm em Londres, Sevilha, Marselha, Madri, Brasília, Genebra, Berna, Assunção,
Dacar, Quito, Tegucigalpa e Porto. Depois de viver em 13 cidades e quarenta anos após
a partida, em 1987, Jo Cabral retorna ao Rio de Janeiro, cidade onde viveu a sua
morte em nove de Outubro de 1999. (Figura 01)
João Cabral casou-se duas vezes: primeiro com Stella Maria
Barbosa de Oliveira, com quem viveu por 40 anos, interrompidos com a sua morte
em 1986, vítima de câncer. Este casamento deu a João Cabral cinco filhos: Rodrigo,
Inês, Luiz, Isabel e João. No mesmo ano da morte de Stella, Cabral casa-se pela
segunda vez, com a também poeta, Marly de Oliveira. Diferente de muitos poetas e
intelectuais modernistas, Cabral sempre teve uma vida recatada, tanto do ponto de
vista amoroso, quanto familiar e social. Foi uma pessoa quieta, discreta e mal-
humorada, mas também extremamente melancólica e angustiada. Por praticamente
toda sua vida, dos 16 aos 67 anos, sofreu de uma dor de cabeça crônica, que lhe
tornou dependente da Aspirina, a qual ele tomou, regularmente, por cerca de 50 anos e
para a qual ele chegou a escrever dois poemas: “Num Monumento à Aspirina, onde ele
a compara ao “mais prático dos is (MELO NETO, 1994, p.360) e “Metadicionário”,
onde ele faz refencia ao fato de que ela existe em qualquer língua, pois
Nem mesmo Deus tem a faculdade
de se chamar em qualquer língua:
a aspirina existe acima
da geografia e seus sotaques.
(MELO NETO, 1994, p.411)
Em uma de suas crises mais fortes na juventude, chegou a ser
internado voluntariamente em um hospício, pois os médicos haviam diagnosticado
que sua dor estava ligada à tensão e a motivos emocionais. Após um mês de
internação a dor continuava a mesma e o poeta desiste do tratamento. Muitos anos
depois, Cabral se submete a uma cirurgia na cabeça que lhe desliga um nervo que
lhe faria perder a sensibilidade no lado esquerdo da testa (ponto onde se concentrava
sua dor). Ele perde a sensibilidade, mas a dor permanece inalterada. Em 1987, João
Cabral precisa ser operado às pressas de duas úlceras, provocadas pelo consumo
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excessivo de Aspirina (não é a primeira vez que teve úlceras por isso). O poeta sofre
complicações que lhe obrigam a voltar à mesa de cirurgia, o que quase lhe custa a
vida. Mas um efeito colateral o surpreende: na cirurgia é feito um corte no nervo vago
e a dor de cabeça desaparece, após 40 anos de dores ininterruptas.
Entretanto, ao invés desse fato diminuir sua angústia, ela aumenta.
Passada a dor fica o vazio, do qual a Aspirina não pode aliviá-lo. Isso soma-se à
mudança para o Rio de Janeiro, cidade que ele disse nunca ter gostado e que julgava
não conhecer. Na imensidão da cidade grande e violenta demais o poeta se sente
perdido e sozinho.
Essa angústia que acompanhou o poeta passou a ser especialmente
presente em sua vida a partir de 1952, quando esteve afastado, por dois anos, do
serviço diplomático, acusado de subversão. Tudo começou quando estava em
Londres e escreveu uma carta, ao colega Paulo Cotrim Rodrigues Pereira, que
estava servindo em Hamburgo, pedindo um artigo que seria publicado em uma
revista trabalhista inglesa. A carta foi interceptada pelo diplomata Mario Mussolini
Calábria, que a encaminha ao estado-maior do Exército atentando aos militares para
a formação de um movimento comunista dentro do Itamaraty, mas estes não deram
muita importância ao fato. Entretanto, Carlos Lacerda, que havia declarado uma
guerra particular contra Getúlio Vargas, conseguiu uma cópia da carta e utilizou-a
para criar um escândalo. O episódio colocou João Cabral na lista de Lacerda (e
devido à repercussão, também do governo) de comunistas que deveriam ser
combatidos. “A dor, o vazio, ou o que seja, começou ali. Talvez tenha sido a dor de ser
visto como alguém que eu não sou.” (MELO NETO apud CASTELLO, 2006, p.219) Por
muito tempo, o poeta sentiu essa angústia, sobretudo após a aposentaria.
Os médicos falam de depressão, todos falam em depressão, mas não
é depressão. Prefiro usar uma palavra antiga, que eles acham fora de
moda, mas que é a mais verdadeira para o meu caso: é angústia. [...]
A angústia é uma dor horrível no peito. Não é depressão. Depressão
aquele desânimo, aquela sonolência, não provoca essa dor que
sinto. Isso que sinto, tenho certeza, se chama angústia. (MELO
NETO apud CASTELLO, 2006, p.213-214)
Tomava remédios antidepressivos, que eram inúteis em seu caso e
mesmo prezando a racionalidade e o trabalho árduo, o poeta o conseguiu evitar
que esta depressão e sua angústia se tornassem elementos-chave de sua poesia.
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Impressa na estrutura dos poemas, evidenciada pelas temáticas abordadas, a
angústia está revelada pelas imagens e palavras que fundamentam a poética
cabralina.
Uma faca só lâmina é um livro/poema que expressa estes elementos
da personalidade e da poética de Cabral, fazendo jus ao subtítulo: sobre a
serventia das idéias fixas”. É um poema sobre a obsessão.
Outro elemento-chave desta poética é a viagem, associada à
memória. Castello (2006) chama João Cabral de poeta-viajante. Suas viagens
mostram-se profundamente associadas à obra e à estética cabralina. Mas não a
viagem de passeio, do conhecer superficial e corriqueiro. A viajem no seu sentido
amplo, pleno, profundo. Da experiência destas viagens e destes muitos viveres,
Cabral trabalhava, digeria, construía e dava à luz, em outro lugar, em outra
viagem, à sua poesia. Por isso, a experiência da viagem se tornava poesia via
memória, sendo esta última crucial para compreendermos João Cabral e sua
poética geográfica em “Morte e vida severina” e em toda sua obra.
Poética e Estética Cabralina
Razão, objetividade e a poética da negação
como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.
“Alguns toureiros”
João Cabral de Melo Neto
A epígrafe apresentada foi escrita em homenagem a, como o próprio
nome diz, “Alguns toureiros”, e em especial Manuel Rodríguez, o Manolete, morto
em 1947, durante uma tourada, por quem Cabral sentia profunda admiração. Neste
poema ele compara a precisão dos toureiros ao cultivo de flores, cada qual com seu
estilo, cada flor com sua característica. Quanto a Manolete, segundo Cabral, ele não
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só soube cultivar sua flor, mas também deu uma grande lição aos poetas: o cuidado
em não perfumar a flor, não poetizar seu poema.
[...] Porque esse é o problema de muito poeta: é que ele faz um poema
poético. Quer dizer, faz um poema a partir de elementos
convencionalmente poéticos. Ele perfuma a flor. É como você plantar
uma rosa e depois achar que a rosa não está cheirando o suficiente e
pôr, em cima da rosa, o perfume de rosas para ela cheirar mais.
Ele perfuma o poema. (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.70)
Essa é, de uma maneira geral, a essência da poesia cabralina:
escrever poesia sem os elementos convencionalmente poéticos. É, como aponta
Barbosa (1996), a despoetização dos poemas. Para Cabral, não se deve escrever
poesia sobre temas como saudade ou emoção, mas sobre coisas concretas como,
por exemplo, um copo d’água. É esse copo d’água que deve transmitir toda a
emoção que irá denotar saudade ou mesmo amor, sem, no entanto, estar
perfumado. Reside grande parte da singularidade e do encanto de sua poética,
que é emocionar sem ser emotivo.
Minha definição de emoção não é nada especial. É o que todos
chamam de ‘emoção’. O que acontece é que me recuso a explorar
essa coisa diretamente. O interesse do artista não é descrever suas
emoções. É criar emoções, é criar um objeto – se é poeta, um poema;
se é pintor, um quadro que provoque emoções no espectador. Mas
não explorar nem descrever a própria emoção. Quando digo que sou
contra emoção é exatamente nesse sentido: o de usar a minha
emoção para fazer com ela uma obra, descreve-la primariamente e
construir, com ela, um poema. [...] Quanto a esse descrever da
emoção e da sentimentalidade, a grande maioria da poesia que se
escreve no mundo é assim. A obrigação do poeta, repito, é criar um
objeto, um poema, que seja capaz de provocar emoção no leitor.
(MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.29)
Ainda sobre o ato de perfumar a flor, Cabral escreveu “Antiode
(contra a poesia dita profunda)”. Neste longo poema crítico, logo a primeira estrofe
já diz a que veio:
Poesia, te escrevia:
flor! Conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,
[...]
(MELO NETO, 1994. p.98)
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Em outro trecho, ele faz referência ao “vício da poesia” que
entorpece o ar de versos”. E finaliza voltando as fezes:
Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és.
Sei que outras
palavras és, palavras
impossíveis de poema.
Te escrevo, por isso
fezes, palavra leve,
contando com sua
breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe
como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.
(MELO NETO, 1994. p.101-102)
Desta aversão à poesia dita poética, temos, então, um poeta
preocupado antes de tudo com o material, com o concreto, que acreditava que a
poesia era algo a ser feito com a precisão de um engenheiro. Recebeu, por isso,
vários títulos que lhe foram atribuídos ao longo de sua vida: geômetra engajado,
poeta do menos, poeta da inteligência, da poesia com coisas, pedreiro do verso,
racional, cerebral, antilírico, poeta da linguagem como máquina, poeta-engenheiro,
entre outros. Chiossi (1995) afirma que muitos destes nomes surgiram da
dificuldade em classificar a poesia de João Cabral no desenvolvimento da literatura
brasileira. Mesmo sendo da Geração de 45 do modernismo, cronologicamente, não
se identificava com eles e, sobretudo, não se via um deles. Aqueles procuravam
ressaltar a linguagem pouco usual; do lado oposto está Cabral, fazendo uso de
palavras simples e diretas como pedra, seco, pau, copo, tronco, árvore, rio. Na
verdade, a Geração de 45 caracteriza-se mais pela postura crítica direcionada a
certos ramos da arte e da poesia do que por uma estética espefica que a distingue.
Por isso João Cabral afirma: “[...] me parece mais instrutivo tentar a caracterização
desse grupo de autores a partir da atitude crítica que se formou em relação a ela
pelos escritores de gerações anteriores.(MELO NETO, 1994, p.741) É uma geração
no sentido propriamente cronológico, e por isso Cabral e outros autores tendiam a
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minimizar a importância desta nomenclatura que nada exprime em termos poéticos
ou artísticos.
A dificuldade em classificar João Cabral está ligada, certamente, à
singularidade e originalidade de sua poética, sem correspondente na poesia
moderna. Assim, o recurso utilizado para “definí-lo” é a negação: sua interpretação
está mais no que nega (categorias negativas) do que pelo que afirma. (CHIOSSI,
1995) Nega a lírica, nega o romantismo, nega o parnasianismo, nega a inspiração,
nega a poesia temporária, nega a firula, nega o perfume de imagens poéticas
convencionais.
Mas caracteriza-se também pelo que afirma: a obra do poeta é o
trabalho de um engenheiro, de quem trabalha com a razão, método e constância na
construção de seus versos, lapidando, talhando, escolhendo com cuidado as
palavras e tornando-as um texto, uma poesia, uma forma de revelação explícita.
“Para mim, o trabalho da poesia é um trabalho intelectual como o de um
engenheiro” (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.70), ou seja, uma construção:
Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu
aprendi com Le Corbusier. A poesia é uma composição. Quando digo
composição, quero dizer uma coisa construída, planejada de fora
para dentro. Ninguém imagina que Picasso fez os quadros que fez
porque estava inspirado. O problema dele era pegar a tela, estudar os
espaços, os volumes. Eu entendo o poético neste sentido. Vou
fazer uma poesia de tal extensão, com tais e tais elementos, coisas
que eu vou colocando como se fossem tijolos. É por isso que eu posso
gastar anos fazendo um poema: porque existe planejamento. (MELO
NETO apud CADERNOS..., 1996, p.21)
Este labor e visão particular do ofício do poeta conferiram ao mesmo
tempo densidade e leveza a seus versos, pois o fundamental o era apenas que os
poemas estivessem construídos. Ao contrário, obstinava-se, com método e
planejamento, em busca do objetivo traçado, da métrica estipulada, dos significados
almejados. Como um arquiteto, título também a ele atribuído, trabalhava nas
palavras, na forma e nos versos até alcançar o efeito e o resultado desejado. Sentia
um certo prazer ao criar dificuldades a si próprio. Metrificava os poemas,
procurando torná-los uma celebração. Pesquisava, aguçava os sentidos, construía
teias de significados sem, no entanto, tornar-se obscuro ou abstrato. Nunca abriu
mão da materialidade para conseguir seus objetivos. E para que isso ocorresse, não
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tinha limites de tempo. Trabalhava, se necessário fosse, anos a fio. Dizia que
quando via um poema datado do dia do mês, ficava arrepiado”. Não suportava a
idéia de que um poema tenha sido escrito de uma vez só, num determinado dia.
Vários de seus poemas levaram anos para serem concluídos, como no caso de
“Tecendo a manhã”, aparentemente muito espontâneo, mas que ficou pronto após
árduo trabalho de uma década.
Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
Ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(MELO NETO, 1994, p.345)
Esta postura em relação à poesia estava muito ligada, certamente, à
sua mania de simetria” (CAMPEDELLI e ABDALA JR., 1982, p.101), gosto pela
razão e objetividade. Esta poética trazia para a arquitetura de seus versos palavras
com seu “[...] sentido denotativo, um sentido consagrado. São concretas e têm uma
organização rigorosa. As freqüentes enumerações ou permutações de palavras ou
versos estão presas a um rigoroso esquematismo.” Poeta racional e do trabalho
árduo, sua poesia nunca é sem razão de ser. Mesmo seus livros não eram apenas
uma coletânea de poemas soltos, mas sempre seguiam uma planificação. Serial, por
exemplo, foi todo escrito sob o número quatro: dividido em quatro partes de
qualquer ângulo que se olhe, tanto na organização dos poemas quanto na métrica
dos versos. “Tudo obedeceu a um esquema prévio”, conscientemente arquitetado.
(MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.114) Outro exemplo é A Educação pela
Pedra, escrito com base na dualidade: todos os poemas possuem duas partes ou
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duas metades, podendo estar em associação ou em repulsão. A exceção é Museu de
tudo, onde encontramos uma coleção de poemas, de vários tipos, temas e épocas.
Alguns de seus livros, como Paisagens com figuras, exemplificam
este procedimento, listando uma série classificatória de paisagens, às quais são
expostas com um rigor científico. Isto faz com que o poema se comunique por si
mesmo. “Transforma-se em uma ‘máquina’ que produz significações a ‘máquina
do poema’.” (CAMPEDELLI e ABDALA JR., 1982, p.101) A máquina de emocionar.
Nunca foi um poeta de escrever em guardanapos, ou qualquer papel
que lhe aparecesse à frente, como faziam muitos, para não perder a idéia do
momento, pois para ele, era preciso lapidar uma idéia. “Confesso que desde o início
construí minha poesia. Rendimento é uma questão de trabalho e método. De sentar
todos os dias à mesma hora. O rendimento dos primeiros dias pode ser menor, mas
depois se torna regular.” (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.48)
Aderindo assim de forma tão clara e explícita à razão e à
objetividade na escrita poética, Cabral negava completamente a emoção e a
inspiração. Ele não apenas negava a validade ou a virtude de tais ações para o
poeta; negava que alguém as pudesse usar em sua poesia. Eis o poeta se definindo
novamente pela negação.
Eu não creio que alguém escreva com emoção. Com emoção o sujeito
comete um crime, pratica atos irracionais. E escrever é um ato
racional. Mas você pode escrever friamente uma coisa que contenha
emoção para o leitor. Com emoção não se escreve uma obra de arte.
Você imaginou um arquiteto fazer uma casa com emoção? O
arquiteto senta calmamente frente à sua prancheta e desenha uma
casa. (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.28)
Esta negação da emoção se soma à negação da inspiração, que era
para João Cabral um elemento inadmissível de ser associado à poesia. “Inspiração
não tenho nunca. Aliás, como diz Auden, a poesia procura a gente até os 25 anos.
Depois, é a gente que tem de procurá-la, inspirá-la.” (MELO NETO apud ATHAYDE,
1998, p.48) A única forma de aceitar a inspiração era como uma idéia de fazer certa
coisa. “Vou fazer um poema sobre essa cadeira.” algum motivo que leva o poeta
a fazer um poema sobre esta cadeira, mas que não se sabe qual a razão. “Há
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sempre uma razão”, dizia Cabral, e assim ele concebia a inspiração. Como dizia
Valéry, que a pergunta mais profunda que se pode fazer é: “por que pensei nisso?”
[...] Agora, inspiração no sentido de se escrever de um jato, como se o
Espírito Santo baixasse de repente sobre a gente sou
absolutamente contra! admito a inspiração nessa escolha de um
assunto e não de outro. Você não pode escrever sobre tudo que
existe no mundo! Então, por que escolher este assunto? Digamos
que aí entrou a inspiração, mas mais nada. (MELO NETO apud
ATHAYDE, 1998, p.48-49)
Esta aversão de Cabral à inspiração o se reduz à sua posição
materialista e racionalista. Na verdade, a questão se estende um pouco mais além.
Envolve sua concepção de poesia e, num sentido mais estrito, à fonte da poesia.
Num embate antigo entre a experiência, a razão e a emoção na construção da
poesia, Cabral ataca aqueles que, diferente dele, baseiam sua obra na experiência,
fruto da inspiração. Para ele, aqueles que partem da inspiração traduzem uma
experiência direta em seu poema. “O poema é o eco, muitas vezes imediato dessas
experiências. [...] O poema traduz a experiência, transcreve, transmite a
experiência. Ele é então como um resíduo e neste caso é exato empregar a
expressão transmissor’ de poesia.” (MELO NETO, 1994, p.728) A poesia se torna
um resquício da experiência do poeta, aquilo que, no ardor do fato-evento, aflora de
tal maneira que o escape possível é compor versos para registrar, documentar,
reverberar a experiência.
Esta poesia, baseada na experiência, é uma particularidade, uma
excepcionalidade que emerge de um estado de espírito, numa dada circunstância,
num dado tempo. E o poema inspirado desta experiência é a confissão, o registro
deste momento único, para que não desapareça, criando o “[...] estado de exaltação
(ou de depressão) de que ele necessita para ser compelido a escrever.” Sem um
objetivo claro ou específico, sem uma direção certa ou um motivo que os guie, seu
excepcionalismo vai contra os valores racionais que Cabral preza. Não trata nem
aborda um assunto; representa “[...] um corte no tempo ou um corte num assunto.
[...] Do assunto ou do tema, ele mostrará apenas um aspecto particular, o aspecto
que naquele momento foi iluminado por aquela experiência.” (MELO NETO, 1994,
p.728)
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O racionalismo cabralinoo admite tal primazia da experiência
sobre a razão, mantendo a primeira sempre subordinada à segunda. Em toda sua
obra, a experiência sempre aparece como memória, entendida por Cabral como
fundamental, mas apenas como matéria-prima de sua obra. A poética estava na
forma, no moldar a meria: não nela mesma.
O poeta viajante: memória e materialidade
Sem viagem, sentido mesmo da palavra – ir de um
lugar para o outro, trânsito – a poesia freia, desiste.
Manoel Ricardo de Lima
Três elementos centrais para compreender a poética cabralina se
entrelaçam, ligando a identidade e a personalidade de João Cabral, sua profissão e
seu aprendizado intelectual: memória, viagem e o espaço telúrico.
A memória é, para João Cabral, sua grande fonte de energia e de
material poético. É nela que ele busca os elementos que são trabalhados e
retrabalhados na construção de seus versos. Ela é como um grande armazém onde
as experiências são curtidas até estarem no ponto para, daí, serem manipuladas,
talhadas e transformadas em poesia. Podemos dizer, neste sentido, que João Cabral
é um poeta movido pela memória. Memória essa que nunca demonstra saudosismo,
sentimentalismo, mas que percorre outros caminhos da poética modernista.
Caminhos muito próprios de João Cabral.
A primeira e grande fonte de experiências trazidas à sua poesia, por
meio da memória, é a sua terra natal. Recife, Pernambuco e o Nordeste foram temas
de mais de 200 poemas, embora tenha vivido a maior parte de sua vida fora dali.
Mas viveu no período de estabelecimento dos laços elementares, construindo uma
topofilia profunda, tal como Tuan (1980) afirma existir com nossa terra natal.
Esta ligação é embebida de uma geograficidade muito forte, para usar o termo que
Dardel (1952) cunhou para expressar a relação de cumplicidade e envolvimento
homem-terra. Mesmo estando longe, sempre carregou seu lugar de nascimento
consigo, tornando-o tema recorrente de sua obra e presença significativa mesmo
nos poemas que não tratam do Pernambuco de forma direta.
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Gastou Bachelard, em sua poética do espaço, mostra o papel
fundamental que a casa, em seu sentido amplo, possui para nossas memórias.
Segundo ele, é no espaço e não no tempo que fixamos nossas lembranças, estando
a estabilidade do ser associada ao lugar.
A memória coisa estranha! não registra a duração concreta [...].
Não podemos reviver as durações abolidas. podemos pensá-las,
pensá-las na linha de um tempo abstrato privado de qualquer
espessura. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos
fósseis de duração concretizados por longas permanências. O
inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto
mais sólidas quanto mais bem espacializadas. (BACHELARD, 1993,
p.28-29)
Esta relação memória-espaço é expressão da poética cabralina, pois
João Cabral associava suas memórias fortemente ao espaço, aos lugares e às
paisagens, notadamente sua terra natal, revelando o sentido de sua poesia.
Entretanto, não se trata de uma obra memorialística oriunda da
saudade, mas, ao melhor estilo cabralino, sua poesia enraizada foi um pensar,
racional e árduo, a partir da realidade nordestina, justamente pela ausência que se
fazia sentir, poeta-viajante desterrado que era.
Mas como ressaltado, este desenraizamento não dotou sua poesia
de uma melancolia do exílio ou de uma síndrome de saudosismo. A forma como
este duplo afastamento, no tempo e no espaço, foi incorporado por João Cabral é
singular e agrega à sua poesia uma identidade específica. Como não prezava o
sentimentalismo e o romantismo, seu distanciamento permitiu que trabalhasse a
memória, que a transformasse, sem receio de perder aquilo que não tinha mais.
Calvino afirma, pela boca de Marco Pólo, que este medo pode ser paralisante: “As
margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se. [...] Pode ser que
eu tenha medo de repentinamente perder Veneza, se falar a respeito dela.” (CALVINO,
1990, p.82) João Cabral não padecia deste medo: sua atividade racional fazia da
memória o cimento trabalhado pelas mãos de pedreiro.
Foi este afastamento, portanto, que permitiu toda sua obra. Esta
idéia é reforçada pelo próprio poeta ao afirmar que enquanto morou em
Pernambuco, nunca escreveu sobre Pernambuco. Isso se deu, não pelo medo de
ser provinciano, como ele mesmo confessa:
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Se eu tivesse ficado no Recife, jamais teria escrito Morte e vida
severina, e outros poemas, porque quando você está na província,
tem medo de ser provinciano. Acho que minha obra mudou e tomou
o curso que devia tomar porque saí pelo mundo e pude escrever
sobre a província sem me sentir provinciano. (MELO NETO apud
ATHAYDE, 1998, p.111)
Na verdade, sair de Pernambuco abriu a possibilidade e a
necessidade de escrever sobre ele. E como sabia que dificilmente voltaria a morar
lá, este tornou-se sua fixação. Esta permanência de Pernambuco é tanto mais
significativa quando pensamos na quantidade de lugares, países e povos que João
Cabral conheceu em suas viagens diplomáticas. Mas talvez, resida justamente
um aparente paradoxo que se resolve pelo seu reverso. Engana-se quem relacione o
poeta-viajante a uma inquietude geográfica inerente. Lêdo Ivo dizia que Cabral era
um anti-viajante por natureza, pois tinha pavor de avião. Detestava mudar de casa,
enviando sempre a família antes para arrumar a nova residência. “O que me
interessava era escrever minha obra, não era conhecer paisagens.” (MELO NETO
apud RECIFE / SEVILHA..., 2003) Antes, sua verdadeira viagem, enquanto poeta,
sempre foi pela memória. Os lugares onde estava nunca foram objeto de poesia em
sua estada. Antes de se transformar em memória e poder ser trabalhada à sua
maneira, não estava ainda no rol da experiência poética do autor. Observando a
linha cronológica de sua vida (Figura 01), observaremos que não poemas
sevilhanos escritos durante suas estadas , nem poemas pernambucanos escritos
em Pernambuco. Para João Cabral as viagens lhe forneciam a experiência, mas
apenas a experiência não servia como material poético para ele. Apenas após essa
experiência se tornar memória é que ele considerava que poderia trabalhá-la a fim
de fazê-la poesia.
Eu julgava que um diplomata que tem uma carreira tão variada
como a do João e que também é poeta, que haveria uma relação mais
ou menos direta entre essas viagens e a escrita. E comecei a ver que
não não havia, como que o que havia, no caso do João, era o
contrário. Ele insistiu comigo várias vezes, que a experiência de
diplomata e a geografia não eram o material da poesia dele, o
material da poesia dele era a memória. (CASTELLO apud RECIFE /
SEVILHA..., 2003)
A experiência e a geografia deveriam ter a companhia da imaginação
e da razão, enquanto as memórias eram trabalhadas, lapidadas, dando a elas a
solidez das imagens e paisagens que evocava e construía, mas sem uma
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correspondência direta de seu cotidiano imediato, vivido no presente. Sua poesia é
sempre trabalhada, como engenheiro que se dizia, e para isso a experiência e a
geografia tinham que ser passadas, para poderem ser submetidas às ferramentas da
memória, dando-lhe as formas e contornos desejados. Experiência e memória estão
assim profundamente ligadas, uma necessitando da outra para compor a poesia, mas
para Cabral elas estavam hierarquizadas, com lugares e tempos definidos em sua
estética.
Não precisa da realidade à sua frente para escrever. Ao contrário: a
proximidade excessiva, Cabral descobre, cega. ‘Fazemos literatura
com as impressões que recebemos até certa idade’, define mais tarde.
Que são essas impressões senão as pegadas que a matéria deixa na
memória? Um poeta que merece esse nome não precisa de fatos.
Precisa, sim, de idéias. É como se a pegada fosse, para o caçador de
versos, mais importante que a fera. A matéria é, sim, um
fundamento. Uma matriz a carimbar sombras de poemas. É dela que
o poeta passa a arrancar aquilo que se recusa a aceitar da
inspiração. (CASTELLO, 2006, p.93-94)
Por este entendimento, percebemos que para Cabral, a distância é
fundamental, pois é ela que, ao mesclar a matéria com a memória, vai conferir
profundidade aos poemas. Na verdade, a necessidade da memória sempre foi a
tentativa de fazer presente algo distante, ou seja, lembrar. “Minha poesia é um
esforço de ‘presentificação’, de ‘coisificação’ da memória.” (MELO NETO apud
CADERNOS..., 1996, p.31)
Sua memória era, portanto, como uma grande prateleira para onde
ele recorria quando ia escrever. Era seu grande armazém de onde buscava os
elementos que eram suas “Coisas de cabeceira”: Recife e Sevilha.
Diversas coisas se alinham na memória
numa prateleira com o rótulo: Recife
Coisas como de cabeceira da memória,
a um tempo coisas e no próprio índice;
e pois que em índice: densas, recortadas,
bem legíveis, em suas formas simples.
(MELO NETO, 1994, p.337)
Diversas coisas se alinham na memória
numa prateleira com o rótulo: Sevilha
Coisas, se na origem apenas expressões
de ciganos dali; mas claras e concisas
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a um ponto de se condensarem em coisas,
bem concretas, em suas formas nítidas.
(MELO NETO, 1994, p.344)
Em sua memória, as expressões, as coisas recortadas, densas,
condensavam-se, depuravam-se, assumindo aquilo que para Cabral era o principal:
suas formas simples, suas formas concretas e nítidas, tão claras que se tornam
materiais. Por isso a importância da memória. Por isso esperar, trabalhar sobre
elas, aguardando que elas tenham esta clareza, esta depuração.
Outro item relacionado à memória e às viagens na poética de Cabral
é o espaço telúrico. Este, assim como os anteriores, pode ser tanto entendido como
material ou fonte poética quanto elemento estruturante e estruturador de toda sua
estética. O espaço telúrico, segundo Dardel (1952), é aquele ligado à experiência
primitiva. Refere-se à espessura, solidez e plasticidade, centrada nos elementos da
natureza e em seus atributos. É primitiva no sentido de se referir à ligação mais
originária e orgânica do homem com o meio, antes das abstrações da ciência e da
cultura, numa relação direta com a concretude geográfica, revelando na ação das
forças telúricas, “[...] o poder eternizante da Terra sobre o Homem.” (WANDERLEY,
1997, p.39)
Esta experiência primitiva se reescreve nas nossas próprias
trajetórias individuais a partir do nascimento. Nos primeiros anos de nossa vida,
mesmo no início da aquisição da linguagem, nos relacionamos com a concretude
geográfica de forma direta, e este é um dos motivos porque a terra natal tem um
significado tão específico e forte para nós. Liga-se a uma geograficidade primitiva, a
uma experiência que é única, pois após a linguagem e a cultura, a mediação da
experiência torna-se entorpecente e direciona em grande medida nossa relação com
o mundo. A terra natal permanece; é onde está nossa infância. (BACHELARD,
1993) Permanece, no entanto, como reduto que podemos recorrer pela lembrança,
buscando um espaço que não existe mais, a não ser na memória e na imaginação.
A geograficidade é chave para compreensão do espaço telúrico, pois
se refere tanto à cumplicidade obrigatória homem-terra quanto a um espaço
material que não pode ser descartado. “A especialização da matéria exige do homem
um comportamento ativo, no qual a ‘distância’ é um elemento essencial na
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estruturação do mundo e não é experimentada especialmente como quantidade,
mas como qualidade expressa no ‘perto’ e no ‘longe’, no ‘lá’ e no ‘aqui’.” (HOLZER,
2001, p.111) Os marcos referenciais desta situação são o corpo, a casa e a cidade
natal. “É esse o ‘espaço primitivo’, onde se desenvolve a existência e que impõe a
procura de horizontes, a escolha de direções e de percursos a seguir.” (HOLZER,
2001, p.112)
Em João Cabral, seu grande marco referencial, em termos de ponto
a partir do qual escrevia, era sua terra natal. Recife e Pernambuco sempre foram o
ponto no qual ele se situava, relacionando-se com os outros lugares e com o mundo
a partir de tal posição. Este procedimento, é evidente, nunca exigiu sua presença
física, que a terra natal fica em nós e, em João Cabral, era constantemente
presentificada pela memória. E esta presentificação se dava a partir da
materialidade do espaço telúrico. E é neste espaço telúrico, a terra natal, lugar da
infância, que João Cabral irá recorrer sempre para escrever sua poesia.
Em sua crítica à Pedra do sono, Antonio Candido identifica, por
meio da necessidade cabralina do rigor construtivista, a presença constante da
materialidade como elemento fundamental da sua estética, fazendo valer a
concretude geográfica na plasticidade e na importância das imagens em seus
poemas. Segundo o crítico, esta sua tendência
[...] se mostra na sua incapacidade quase completa de fazer poemas
em que não haja um número maior ou menor de imagens materiais.
As suas emoções se organizam em torno de objetos precisos que
servem de sinais significativos do poema cada imagem material
tendo de fato, em si, um valor que a torna centro da poesia,
esqueleto que é o poema. (CANDIDO apud CADERNOS..., 1996,
p.121)
A materialidade e a concretude geográfica, portanto, possuem em
sua poesia posição central, mas não como mera paisagem sem significado ou lugar
contextual. Antes, as imagens estão embebidas de significado geográfico complexo,
que envolve desde feições telúricas até construções de teias de significados que
fazem diferentes referências culturais e históricas. Contudo, a imagem, expressa
com muita freqüência em seus poemas por meio da paisagem, é um dos elementos
estruturadores de sua estética, trazendo consigo as implicações não do local, mera
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materialidade sensível, mas do significado telúrico que tais imagens carregam em si
e a partir de si.
A poesia de João Cabral está repleta de imagens compostas a partir
deste espaço telúrico, que habita sua memória e imaginação pernambucana. O
sentido telúrico de sua poesia não está num diálogo ou manipulação direta dos
elementos da natureza, pois o trabalho racional ao qual ele submete suas
lembranças e experiências impõe (a coisa a si mesma), restringe (sem qualquer
adorno) e objetiva (torna universalmente compreensível) a matéria trabalhada. No
entanto, a força imagética e a concretude, espessura, plasticidade e sobretudo a
solidez que ele carrega em seus versos se deve ao espaço telúrico onde está situada
sua memória, projetando estas características nas imagens e nos versos. Neste
sentido, é importante notar, são os poemas sobre Pernambuco que possuem estas
características de forma mais significativa. Nem nos poemas sevilhanos nem nos
demais a presença desta concretude e solidez é tão latente quanto naqueles
situados na experiência primitiva do poeta.
Embora racional, a poesia de João Cabral está embebida de seu
mundo vivido. Mas não é uma transcrição de experiências, antes, ele transforma e
molda a concretude geográfica à sua maneira, dando à sua poesia uma estética
única: conceitual, telúrica e profundamente geográfica.
Geografia Pessoal
Auto-Crítica
Só duas coisas conseguiram
(des)feri-lo até a poesia:
o Pernambuco de onde veio
e o aonde foi, a Andaluzia.
Um, o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha.
João Cabral de Melo Neto
A relação Geografia-Literatura é antiga. Se os geógrafos muito
reconhecem o valor das descrições das paisagens literárias, romancistas e poetas
partem da sua própria geografia na construção de suas obras. Esta relação possui
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muitas facetas, desde a simples descrição de aspectos da paisagem (em geral,
fisiográficos), passando pelo sentido do lugar (identidade, cultura, costumes), até
elementos da própria experiência geográfica do autor que são expressos e compõem
sua estética. (MARANDOLA, 2006)
O peso da geografia é mais explícito e evidente em alguns casos do
que em outros. Em João Cabral, toda sua poesia é embebida de sua própria
geografia pessoal, tornando-se fundamental para compreendê-la, conhecer sua
trajetória de viajante, seus lugares e a relação que estabeleceu com eles.
Esta geografia pessoal, portanto, é muito mais do que simplesmente
mapear os lugares de forma objetiva. Antes, trata-se da geografia vivida do poeta,
procurando compreender os laços entre materialidade, experiência e memória,
dando os contornos da estética e da poética cabralina.
Entre todas as viagens de Cabral, duas cidades forneceram-lhe
experiências mais marcantes. A primeira foi “o de onde veio”: Recife, que lhe deu o
estilo seco e árido; a outra “o aonde foi”: Sevilha na Andaluzia, Espanha, sua cidade
feminina, que lhe serviu como contraponto à secura masculina do sertão, trazendo
um equilíbrio à sua poética.
Os primeiros poemas sobre Pernambuco foram escritos em sua
primeira temporada na Espanha. “O poeta pensa que a Espanha e Pernambuco se
parecem, e esse paralelo, que simultaneamente aproxima e afasta, esclarece e
engana, o estimula a trabalhar.” (CASTELLO, 2006, p.93) Mais uma vez, Cabral
busca elementos e se identifica com aquilo que lhe é oposto.
O livro Paisagem com figuras é, talvez, onde aparecem as mais ricas
descrições das paisagens de Pernambuco e da Espanha. O livro intercala poemas
sobre estes dois lugares, culminando com “Duas paisagens”, que os coloca em
comparação.
Duas paisagens
D’Ors termos de mulher
(Teresa, La Ben Plantada)
descreveu da Catalunha
a lucidez sábia e clássica
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e aquela sóbria harmonia,
aquela fácil medida
que, sem régua e sem compasso,
leva em si, funda e instintiva,
aprendida certamente
no ritmo feminino
das colinas e montanhas
que lá têm seios medidos.
Em termos de uma mulher
não se conta é Pernambuco:
é um Estado masculino
e de ossos à mostra, duro,
de todos, o mais distinto
de mulher ou prostituto,
mesmo de mulher virago
(como a Castilla de Burgos).
Lúcido não por cultura,
medido, mas não por ciência:
sua lucidez vem da fome
e a medida da carência,
e se for preciso um mito
para bem representá-lo
em vez de uma Ben Plantada
usa-se o Mal Adubado.
(MELO NETO, 1994, p.166)
A explicitação desta dualidade se estabelece nas duas imagens
contrapostas: a Ben Plantadae o “Mal Adubado”. A Catalunha, feminina tal como
a Espanha, clássica e harmoniosa, se opõe (se completa?) à lucidez que emana da
fome e da carência, dos ossos à mostra de um Estado duro, seco, masculino.
Nestas duas geografias está a chave para a compreensão da
natureza telúrica da poesia de João Cabral, para sua orientação material e
concreta. É um verdadeiro poeta-geógrafo que, a partir destes dois lugares e suas
paisagens, vai “[...] desenhando a geografia com a ponta de sua caneta.” Mas não
uma descrição mecânica ou que visa a representação da realidade. Antes, as
experiências vividas nestes dois lugares pelo poeta são gestadas pela memória e
trabalhadas pela razão, até o momento certo de cada concepção, onde “a paisagem
[...] se confunde com a projeção que o homem faz dela, com o seu desenho humano.
Escrita, mapa e real sendo, no fim, uma coisa só.” (CASTELLO, 2006, p.91) Nas
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geografias desenhadas sob a caneta de Cabral não dicotomia entre
humano/natural, real/imaginário, material/abstrato, particular/geral: tudo faz
parte do mesmo movimento racional-simbólico que tem no espaço telúrico e na
memória suas fontes mais ricas, mas que é fruto de contínuo trabalho de
construção dos significados.
Pernambuco, Recife e o Capibaribe
Ele é Pernambuco, era. Ele era feito da terra de
Pernambuco, misturado com garapa de cana de
Pernambuco, com uma pitada de cemitério de
pernambucano. Um pouco de lama do Capibaribe,
ele foi feito com lama do Capibaribe, é isso!
Inez Cabral
A declaração da cineasta Inez Cabral, filha de João Cabral, a
respeito da relação de seu pai com Pernambuco, expressa o quão profundas são as
raízes do poeta com a terra onde nasceu. A primeira vez que Pernambuco aparece
em seus poemas é em Psicologia da Composição, seu terceiro livro, escrito entre os
anos de 1946 e 1947, em Barcelona. A Escola das Facas, escrito entre 1975 e 1980,
foi inteiramente dedicado a Pernambuco. Tanto que o título original deveria ser
Poemas Pernambucanos. Mudou de nome apenas porque o editor achava pouco
comercial. “Pernambuco, coitado, não tem nem direito de dar nome a um livro.”
(MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.117)
Cabral reconhecia que sua poesia não era cosmopolita, pois se via
bastante enraizado na sua terra natal. Na verdade, identificava esta
contextualização como elemento fundamental para a compreensão de sua poesia:
O sujeito não pode entender minha poesia como a de um brasileiro
qualquer. É de um brasileiro de determinada região. Eu sou
brasileiro na medida em que sou nordestino, e sou nordestino na
medida em que sou Pernambucano. Você não pode ser brasileiro ‘em
geral’. Eu não conheço o Amazonas, estive em Porto Alegre uma vez,
nunca fui ao Mato Grosso. Como é que posso me dizer brasileiro ‘em
geral’? (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.67-68)
Este traço de sua poesia não está entrelaçado apenas com o estilo,
com o propósito de sua obra. Antes, ele revela também a natureza telúrica da
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relação de João Cabral com sua terra natal, freqüentemente manifestada por meio
da paisagem. Esta sempre foi um elemento constante, tanto implícita quanto
explicitamente, inclusive nos títulos dos poemas. Em toda sua obra encontramos
títulos como “Duas paisagens”, “Paisagem ao telefone” e “Paisagem com cupim”,
além daqueles que trazem a paisagem em seu contexto ou motivo do próprio poema.
Outra recorrência são os rios, os canaviais e as cidades pernambucanas, também
muito presentes, como nos poemas O rio”, “Vale do Capibaribe”, “Na morte dos
rios”, “Os rios de um dia”, “O mar e o canavial”, “A cana-de-açúcar de agora”, “A voz
do canavial”, “Chuvas do Recife”, “Ao novo Recife”, “Pregão turístico do Recife”,
entre muitos outros.
Esta constância nas paisagens se dá talvez pela sua imageabilidade,
os aspectos materiais concretos que a compõem, ao mesmo tempo em que
exprimem a cultura, a história e a sociedade, materializados em uma imagem
híbrida. Por seu fascínio e busca do racional e do concreto, a paisagem, a geografia
e a história serviram a João Cabral como forma de tornar sua poesia localizada,
correspondendo a fatos e lugares, além de ajudar a dar visibilidade, produzindo
imagens a partir de imagens.
Paisagem, cidade, rio e os lugares aparecem sempre com profundo
conteúdo humano. Não se trata de pedra pela pedra, ou da caatinga com o fim de
descrever simplesmente. As imagens que Cabral visa são compostas por uma
humanização destes elementos, não raro havendo a dubiedade entre um elemento
material e o homem. Em “O rio”, por exemplo, o Capibaribe é humanizado,
contando por ele próprio sua viagem e sua história. Já em “Morte e vida severina”, a
“linguagem, catalisadora de metamorfoses, transmuta Rio em Homem e Homem em
Rio, tornando esses elementos temáticos, em seu relacionamento recíproco,
imagens poéticas confluentes.” (PINTO, 2003, p.124) Este recurso poético será visto
em outros poemas, expressando uma cumplicidade homem-meio.
Cabral reconheceu a importância das imagens e das experiências da
infância e da juventude, que o acompanharam por toda a vida. E se sua poesia
brotava da memória, a infância e a juventude sempre foram seu principal “baú”.
Evidentemente, em alguns casos isto pode ser mais explícito do que em outros.
Sobre “Morte e vida severina”, por exemplo, Cabral disse que é sua “[...] experiência
de infância, que guardo na memória e que nunca me saiu da cabeça, sobretudo
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quando estava fora.(MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.108) a importância
do Capibaribe e do elemento rio, como um todo, também pode ser identificado em
sua infância. “A minha lembrança mais antiga talvez seja a de estar no engenho. É
uma imagem estática, mas na frente do engenho corria um rio, o Tapacurá,
afluente do Capibaribe.” (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.47) Quando menino
tinha o costume de ficar horas na margem do rio, observando o fluxo, as águas, o
entulho e o lixo passando. Essa memória está expressa no poema “O rio”, no trecho
“De Apipucos à Madalena”:
Um velho cais roído
e uma fila de oitizeiros
há na curva mais lenta
do caminho pela Jaqueira,
onde (não mais está)
um menino bastante guenzo
de tarde olhava o rio
como se fosse filme de cinema;
viam-me, rio, passar
com meu variado cortejo
de coisas vivas, mortas,
coisas de lixo e de despejo;
viu o mesmo boi morto
que Manuel viu numa cheia,
viu ilhas navegando,
arrancadas das ribanceiras.
(MELO NETO, 1994, p.137)
Sua relação com o rio se amplia na juventude, quando se dedicou à
natação, que pratica tanto no Capibaribe como nas piscinas da Escola de
Aprendizes de Marinheiros. “Sua paixão pela água se confunde com a paixão pelo
rio, o qual lhe dará, torneado pelas fronteiras da memória, alguns dos melhores
poemas.” (CASTELLO, 2006, p.38)
O rio Capibaribe será o elo ou o canal de ligação de João Cabral
com sua terra natal, fixado na memória. É nele e a partir de suas águas que Cabral
irá retornar ao Recife e ao Nordeste. Tal como admitiu Gaston Bachelard, o sentido
da água é entendido como fluxo da memória em sua ligação primeira com a terra
natal.
Mas a terra natal é menos uma extensão que uma matéria; é um
granito ou uma terra, um vento ou uma seca, uma água ou uma luz.
É nela que materializamos nossos devaneios; é por ela que nosso
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sonho adquire sua exata substância; é a ela que pedimos nossa cor
fundamental. Sonhando perto do rio, consagrei minha imaginação à
água, à água verde e clara, à água que enverdece os prados. Não
posso sentar perto de um riacho sem cair num devaneio profundo,
sem rever minha ventura... Não é preciso que seja o riacho da nossa
casa, a água da nossa casa. A água anônima sabe todos os segredos.
A mesma lembrança sai de todas as fontes. (BACHELARD, 1997, p.9)
O poema Volta a Pernambuco” expressa esta relação Capibaribe-
memória-terra natal na poesia cabralina, revelando o simbolismo da água e a força
que o rio terá em sua obra. O rio é o espaço da memória por excelência, onde ela se
fixa a um lugar, permanecendo. É na água, com a água e pela água que Cabral
retorna, na memória, ao Recife.
Volta a Pernambuco
Contemplando a maré baixa
nos mangues do Tijipió
lembro a baía de Dublin
que daqui já me lembrou
Em meio a bacia negra
desta maré quando em cio,
eis a Albufera, Valência,
onde o Recife me surgiu.
As janelas do cais da Aurora,
olhos compridos, vadios,
incansáveis, como em Chelsea,
vêem rio substituir rio,
e essas várzeas de Tiuma
com seus estendais de cana
vêm devolver-me os trigais
de Guadalajara, Espanha.
Mas as lajes da cidade
não me devolvem só uma,
nem foi uma só cidade
que me lembrou destas ruas.
As cidades todas se parecem
nas pedras do calçamento
das ruas artérias regando
faces de vário cimento,
por onde iguais procissões
do trabalho, sem andor,
vão levar o seu produto
aos mercados do suor.
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Todas lembravam o Recife,
este em todas se situa,
em todas em que é um crime
para o povo estar na rua,
em todas em que esse crime,
traço comum que surpreendo,
pôs nódoas de vida humana
nas pedras do pavimento.
(MELO NETO, 1994, p.164)
Tudo no poema é água, tudo retorna e se fixa por ela. Todas as
águas que o poeta encontra trazem-no Recife. A água é o grande elemento da
memória, permitindo acessar a partir dela a cidade, o Estado e a região: casa e terra
natal a partir de uma memória hídrica.
No entanto, a profissão de diplomata o levou para longe do
Capibaribe, do Recife, de Pernambuco e do Nordeste. Assim, mesmo desejando
profundamente estar em Pernambuco “O que eu gostaria no fundo, é que
Pernambuco fosse um país independente e que eu fosse embaixador do Brasil em
Pernambuco” (MELO NETO apud RECIFE/SEVILHA..., 2003) após sair para
seguir a carreira diplomática, nunca mais pôde voltar a morar lá. Esteve sempre de
passagem, retornando, visitando e, no final de sua vida, mal reconhecendo o Recife
que viveu. Menos por conta das transformações da paisagem da cidade, mas
principalmente pela ausência dos conhecidos. certa altura de sua vida, sua
principal queixa com relação ao Recife era perguntar pelas pessoas e saber que
haviam falecido. Sua angústia e medo da morte se fortaleciam e o afastavam
fisicamente da cidade.
É difícil voltar ao Recife. Saí da minha velha cidade em dezembro de
1942, aos 23 anos, e não retornei mais por um longo tempo. O Recife
que eu conheci, que guardei na lembrança, foi o Recife dos anos 40.
Era bem menor, uma cidade importante e vital para o país. Tinha
bondes. Eu adorava andar de bondes. Quando chego ao Recife hoje,
nunca fico muitos dias. Dói reencontrar meus irmãos Virgínio e
Lurdinha, que ainda estão vivos e moram lá, e perguntar: ‘Cadê
fulano?’, ouvindo como resposta: ‘Morreu’, e insistindo: ‘Cadê
sicrano?’ e a mesma resposta: ‘Morreu’. Como esses meus amigos,
morreram também meus irmão Maurício e Cláudio. [...] Muito mais
por essa dor de não rever os amigos como Gilberto Freyre, com quem
conversei muito nas tardes do Recife, que pela surpresa de ver como
a cidade mudou, sinto dificuldades de voltar a Pernambuco.’ (MELO
NETO apud CADERNOS..., 1996, p.129)
| 52 |
E para um poeta tão enraizado, tão comprometido e envolvido com
sua terra natal, que a ansiava mesmo sabendo que não poderia tê-la, a morte o
alcançou distante, muito longe do Nordeste. Morreu em seu apartamento, no Rio de
Janeiro, a centenas de quilômetros das águas barrentas do Capibaribe...
Sevilha e a Andaluzia
Presença de Sevilha
Cantei mal teu ser e teu canto
enquanto te estive, dez anos;
cantaste em mim e ainda tanto,
cantas em mim teus dois mil anos.
Cantas em mim agora quando
ausente, de vez, de teus quantos,
tenho comigo um ser e estando
que é toda Sevilha caminhando.
João Cabral de Melo Neto
A maior parte dos anos em que trabalhou a serviço da carreira
diplomática, foi na Espanha. Mas entre as cidades espanholas em que viveu, foi
Sevilha, onde morou nos anos de 1956 e entre 1962 e 1964, da qual enamorou-se
profundamente, resultando em uma extensa obra poética dedicada a ela, incluindo
a coletânea Poemas sevilhanos, de 1992; Sevilha andando, escrito entre 1987 e
1993, com poemas originais e fotos do autor; e Andando Sevilha, com outros 36
poemas escritos entre 1987 e 1989. No total foram em torno de 100 poemas sobre a
Andaluzia.
É interessante notar que Sevilha andando foi o único livro do poeta
escrito para uma única pessoa: sua esposa Marly de Oliveira. É o encontro de duas
grandes paixões: a cidade de Sevilha e a mulher Marly de Oliveira.
Constrói-se aqui uma simetria de gênero na obra cabralina: João
Cabral é Pernambuco: seco, duro, racional, e assim é sua poesia pernambucana.
Marly de Oliveira é a Andaluzia: doce, bela e feminina, assim como sua poesia
sevilhiana. Muitos dos estudiosos e amigos de Cabral apontam que Sevilha foi como
um verdadeiro caso amoroso, relacionando a cidade sempre à imagem feminina.
(RECIFE/SEVILHA..., 2003)
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Castelo (2006) afirma que João Cabral apaixonou-se por Marly
tanto quanto por Sevilha, fundando a mesma ligação que o poeta via entre si e sua
terra natal. Estas duas paixões se completam, entrelaçando-se numa mesma
imagem: a da “Mulher cidade”.
Mulher cidade
Andar por Sevilha
é o perfeito andar
que da Calle Sierpes
pela de Gusmán,
esquece os nomes
das ruas iguais
no seu ser estreito
e erva nos beirais,
até encontrarmos
a rua sem nome
que é Sevilha toda
e que é onde o homem
Nunca saberá
se vive a cidade
ou a mulher melhor
sua mulheridade.
(MELO NETO, 1994. p.645)
Mas foi em Quaderna, livro escrito entre os anos de 1956 e 1959,
que ele escreve o primeiro poema sobre a Andaluzia que se torna, também, o
primeiro poema feminino de Cabral. Até então, o poeta não havia se dado conta de
tal ausência. Castello (2006, p.108) menciona que fora Vinícius de Moraes quem
chamou a atenção de João Cabral sobre este fato: “Você notou que tua poesia
tem homens? Que é um longo monólogo masculino?” Embora relute e tente se
justificar no início, Quaderna é o esforço do poeta de colocar a mulher em cena:
Em Quaderna, pela primeira vez as comportas racionais de Cabral
começam a vazar. Por mais que se apegue à teoria, e que faça dos
poemas uma celebração das razões teóricas, o poeta-viajante não
pode conter a pressão da realidade. A experiência de uma Sevilha
diferente, da mulher que o tonteia, do drama encenado nas touradas,
do bailar das andaluzas devassa a alma do poeta. Não é mais
possível controlar tudo. (CASTELLO, 2006, p.109)
| 54 |
Na obra Sevilha andando, João Cabral escreveu 31 poemas sobre
Sevilha, sendo que vinte e dois deles fazem, de alguma forma, referência à cidade
enquanto mulher. Seja em título ou no corpo do poema, como em “Cidade de
Nervos” (“que é feminina sua epiderme”), “Sevilha andando 1” (“Uma mulher que
sabe ser-se / e ser Sevilha”) ou “As Plazoletas (“Quem fez Sevilha a fez para o
homem [...] E, claro, se a fez para o homem, / fê-la cidade feminina”), ou ainda, ao
declarar seu amor pela cidade em “Poema”:
Contigo hoje filei
o incompleto amor
(pois sem Pumarejo
nem o Salvador)
um amor andamos
em ruas de agora
em que eu tinha de por
a parte memória
sem poder fazer-te
sentir só de vista
o amor que resuma
toda qualquer Sevilha
não foi amor menor
– embora incompleto –
em que só de um lado
se deu o concreto.
(MELO NETO, 1994, p.646)
Se em Sevilha Andando, o tema mais latente é a feminilidade da
cidade, em Andando Sevilha poderíamos dizer que é sua paisagem, através da
descrição de suas festas, costumes, personagens, ruas, arquitetura, lugares. É uma
paisagem animada pelos personagens, pelos lugares plenos de significado e
memória. João Cabral fala das touradas, do Arenal, do Hospital de La Caridad, da
fábrica de tabacos, do museu de belas artes, dos padres, da praça de touros e
muitos outros lugares e elementos que constituem a cidade de Sevilha.
A identificação de Cabral com a cidade é tamanha que vemos em
seus poemas um sentido estético de satisfação e admiração pela natureza urbana e
humana da cidade. Há uma fruição do poeta diante do constructo Sevilha, o que ela
representa e as possibilidades que ela abre. A vida na cidade flui pelas suas ruas,
| 55 |
lugares e paisagens, como se o transeunte estivesse a navegar, como vemos em
Calle Sierpes”.
Calle Sierpes
Sevilla tem bairros e ruas
onde andar-se solto, à ventura,
onde passear é navegação,
é andar-se, e sem destinação,
onde andar navegando à vela
e nada a atenção atropela,
onde andar é o mesmo que andar-se
e vão soltas a alma e a carne.
Mas há uma rota obrigatória
como as do comércio de outrora:
a esta se chama Calle Sierpes,
apinhada de leste a oeste,
que serpenteia entre dois bares,
um na Campana e o outro o Corales,
onde após o andar solidão
se navega entre a multidão,
e não se pode o andar à vela
nem de leme solto e às cegas:
lá, navegar é em linhas curvas
como a cobra que dá nome à rua.
(MELO NETO, 1994, p.659-660)
Parte do aconchego e da admiração de João Cabral por Sevilha
estava justamente nos seus aspectos urbanos. Era uma cidade que “soube crescer
sem matar-se”, conforme assinala no poema “Sevilha e o progresso”. Cresceu sem
perder a intimidade, mantendo o “aconchego de mulher” e o macio do mel. (MELO
NETO, 1994, p.679-680). Cresceu sem perder a intensidade e a relação com o chão,
como neste trecho do poema “Retrato”.
E passa que nunca é prolixa
a intensidade é que está viva.
A intensidade sevilhana:
expressão de cidade plana,
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sem montanhas nos arredores,
sem arranha-céus, gritos, odes,
cidade toda em canto-chão,
limpa e varrida até o chão.
(MELO NETO, 1994, p.645)
Ao escrever sobre Sevilha, “[...] ele descreve a paisagem com as
minúcias de um navegador profissional. Descreve não: escreve. Cabral não é um
pintor clássico, que vai copiando os cenários em sua ordem natural. Não é um
retratista, que deseja acomodar o que dentro de uma moldura arbitrária. Não
quer retratar a cidade, mas desafiá-la.” (CASTELLO, 2006, p.29) E deixa antever um
desejo que revela em sentido pleno seu sentimento pela cidade: sevilhizar o mundo!
Sevilhizar o mundo
Como é impossível, por enquanto,
civilizar toda a terra,
o que não veremos, verão,
de certo, nossas tetranetas,
infundir na terra esse alerta,
fazê-la uma enorme Sevilha,
que é a contra-pelo, onde uma viva
guerrilha do ser, pode a guerra.
(MELO NETO, 1994, p.663)
A partir deste sentimento de profundo envolvimento com seu pólo
feminino, encontramos outra base onde Cabral busca elementos telúricos para a
composição de sua poesia. Se Sevilha o é sua terra natal, é nela que encontra o
aconchego e a segurança que apenas nossa casa, nosso lugar pode nos
proporcionar. (BACHELARD, 1993) O Pernambuco masculino precisa da Andaluzia
feminina, essenciais para a poesia e para a vida de Cabral. Se não há um espaço
telúrico baseado numa experiência primitiva vivida, a viagem realizada é pela
memória, não sua, mas da própria cidade, da própria humanidade. Cabral busca e
encontra em Sevilha elementos telúricos que, assim como em Pernambuco, passam
pela maturação da memória, sofrem as intervenções da razão e da geometria, e dão
à luz poemas únicos.
| 57 |
O espaço telúrico a partir do qual Cabral escreve é também o de sua
infância (não o lugar geográfico, mas os lugares interiores de onde todos nós
viemos). Este espaço é mais colorido e amoroso, como a Andaluzia. E por isso a
plasticidade o é mais apenas da paisagem, mas é também a espessura e os
contornos do corpo.
Viver Sevilhizar
1.
Se dá voltas a uma escultura,
o corpo é que a envolve, livre;
se penetra em qualquer pintura
como janela que se abrisse;
se pode boiar numa música,
nos pauis doentes de que consiste;
se pode ir em fins de semana
a romances que tenham o “habite-se”.
2.
Mas só a arquitetura é total,
não virtual, ao corpo que a vive,
ainda mais se essa arquitetura
numa cidade se urbanize;
como em Sevilha, a mais regaço
de toda cidade que existe,
pois nela vamos e nos vai,
num vai e vem que é ir-se e vir-se.
3.
Só em Sevilha o corpo está
com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existissem;
sentidos que fundam num só:
viver num só o que nos vive,
que nos dá a mulher de Sevilha
e a cidade ou concha em que vive.
4.
Uma mulher sei, que não é
De Sevilha nem tem lá raízes,
que sequer visitou Sevilha
e que talvez nunca a visite,
mas que é dentro e fora Sevilha,
toda a mulher que ela é, já disse,
Sevilha de existência fêmea,
a que o mundo se sevilhize.
(MELO NETO, 1994, p.636-637)
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Aqui Cabral revela uma faceta nunca vista em suas poesias sobre
Pernambuco. Não apenas a paixão, mas até uma sensualidade feminina, que se
mistura na plasticidade do corpo-cidade vivida pelo poeta, por onde se pode
navegar, não com a razão, mas “com os sentidos em riste”. Sentidos que ele admite
que nem mesmo sabia existir. Poucas vezes veremos as sensações recebendo tanto
destaque e importância em sua obra.
Provavelmente nenhum poeta andaluz escreveu tanto e tão bem
sobre Sevilha como João Cabral. A poeta espanhola Cinta Massip aponta que no
poema “Palo Seco”, Cabral conseguiu como nenhum outro poeta na história da
literatura espanhola captar o ritmo do palo flamenco.
1
Ela afirma ainda que é algo
surpreendente um poeta que não é de ter captado com tanta sabedoria e
sentimento a essência da música flamenca, que é o ritmo. (MASSIP apud RECIFE /
SEVILHA..., 2003) Isto se torna ainda mais notável se pensarmos que, até conhecer
o flamenco, ele desprezava todos os tipos de música.
Em sua dissertação de mestrado, Mércia Fernandes faz uma análise
das relações poéticas e sentimentais de João Cabral com Sevilha e aponta que o
contato do poeta com a cidade aproxima sua poesia, sempre marcada por um
rigoroso e impessoal processo de criação, dos elementos da subjetividade tão
renegados pelo autor. (FERNANDES, 2005)
Assim, Sevilha aparece e reaparece na poesia cabralina como um
lugar afetivo, onde Cabral sentia-se bem ao caminhar, gozando do aconchego que
não encontrara em nenhum outro lugar fora do Recife.
Sevilha torna-se a sede da paixão cabralina, onde a razão não pode
conter ou controlar tudo, onde a lascívia e a sedução feminina conseguiram
penetrar na dureza racional, minando a aparente invulnerável muralha do rigor que
João Cabral procurou construir durante toda sua vida. Entretanto, este
envolvimento arrebatador e inesperado mantém-se sóbrio e material, como um
poema de João Cabral.
1
Os Palos Flamencos são neros musicais dentro do Flamenco. o os diferentes ritmos, cantes e bailes
de que consta o cante flamenco. Palo (em portugs pau), faz referência aos primeiros cantores de flamenco
que marcavam o ritmo da sica dando golpes com um pedo de pau no solo. Daí vem a popular
expressão espanhola cantar a palo seco: cantar sem acompanhamento instrumental, cantar à capela.
| 60 |
MORTE E VIDA SEVERINA
[...]
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
[...]
João Cabral de Melo Neto
| 61 |
“Morte e vida severina: auto de natal pernambucano”, foi escrito
entre os anos de 1954 e 1955, por encomenda de Maria Clara Machado, então
diretora do Teatro Tablado, no Rio de Janeiro. A diretora, filha de um amigo de
Cabral, lhe pediu uma peça para ser encenada no natal. Com isso, o poeta
procurou fazer um auto de natal que retratasse os retirantes, que é, segundo ele
próprio, a obsessão dos nordestinos. Para construir o espaço-tempo Nordeste-
Pernambuco, buscou nas tradições nordestinas e na própria geografia do Estado,
elementos para compor seu texto.
Entretanto, Maria Clara Machado decidiu não montar “Morte e vida
severina”, pois não achou que fosse um auto de natal legítimo e, além disso, o
teatro não contava com os recursos técnicos necessários para a encenação. Assim,
o texto acabou sendo publicado primeiro como poema, fazendo parte do livro Duas
Águas.
Quando fui publicar Duas Águas, poesia completa até 1956, e o livro
estava pequeno, resolvi incluir o auto como poema. Tirei as
marcações entra, sai, faz, diz, essa coisa toda. Cada diálogo foi
transformado com o tracinho, mas não se quem o está dizendo. É
um monólogo-diálogo. (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.109)
Somente em 1966 “Morte e vida severina” tornou-se finalmente
conhecido enquanto peça teatral, em montagem inaugural do Teatro da
Universidade Católica de São Paulo (TUCA) musicada pelo então jovem compositor
Chico Buarque de Hollanda.
| 62 |
O retirante retratado neste poema é Severino, que sai do sertão de
Pernambuco
lá da serra da costela
limites da Paraíba
(MELO NETO, 1994, p.171)
buscando o Recife para fugir do ciclo de vida e de morte severina
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(MELO NETO, 1994, p.172)
O caminho de Severino para chegar ao Recife é também o caminho
do rio Capibaribe e, neste caminhar, João Cabral traça uma linha dorsal de
Pernambuco, passando por todas as paisagens nordestinas: sertão, agreste e zona
da mata até chegar no litoral, na grande capital. Neste poema, podemos encontrar
não a paisagem e a geografia nordestina, como também os aspectos levantados
anteriormente, como a relação de Cabral com o Capibaribe, com Recife e com
Pernambuco, tema que exploraremos no terceiro capítulo.
Ao escrever “Morte e vida severina”, João Cabral esperava atingir o
público mais simples, os retirantes e analfabetos que tinham uma história parecida
com a de Severino, o que não acabou acontecendo. Essa talvez tenha sido a maior
frustração de Cabral com relação ao poema, embora o autor não o tenha poupado
de críticas e reprovações durante a vida. “Morte e vida severina” não figura, na
avaliação de seu autor, entre seus grandes poemas, representando um capítulo à
parte na estética cabralina.
Contudo, mesmo com estas considerações, “Morte e vida severina”
tem um lugar especial na poesia brasileira. É a obra mais conhecida de João Cabral
e constitui um marco na própria poesia nordestina, conforme aponta Zila Mamede:
“A real poesia nordestina tem duas leituras básicas: uma anterior a João Cabral de
Melo Neto e outra posterior a Morte e vida severinao divisor de águas.(MAMEDE
apud MACHADO, 2002, p.115) Permeado de preocupações estéticas e temáticas
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modernistas, inaugura uma poesia e literatura que menos romanceia e mais
explicita a dura realidade nordestina. Embora João Cabral tenha sempre negado a
cobrança de fazer poesia engajada, “Morte e vida severina” inspirou toda uma
geração a fazer este uso da arte e da linguagem. Funeral de um lavrador, por
exemplo, música da peça, com os versos de Cabral e a melodia de Chico Buarque,
tornou-se um dos hinos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
A luta política dos anos 1960 e 1970 também foi fortemente influenciada pelo
conteúdo político da obra, conforme ressalta Lucrecia D’Alessio Ferrara, que
participou da montagem original do Tuca. Para ela, “Morte e vida severina” deixou
dois legados importantes. O primeiro foi “ter feito com que o estudante universitário
acordasse para a sua participação cultural e encontrasse no teatro um veículo de
comunicação tão veemente e interativo, como aquele que aconteceu em 1966. Ele é
tão persuasivo que continua até hoje.” O segundo foi fazer o estudante universitário
“acordar para a poesia de João Cabral de Melo Neto que passou a fazer parte do
currículo do curso médio e dos vestibulares da época e de muitos anos depois.”
Para Ferrara, a peça “levou o estudante universitário a acordar para a sua posição
de ação muito intensa e a não adormecer mais, passando, volta e meia, a ser um
elemento importante nas esferas de decisão.” (FERRARA, 2007)
Além desta importância política, principalmente para uma esquerda
militante e para os movimentos sociais, tantas outras referências à “Morte e vida
severina” permeiam a cultura popular brasileira, assim como o adjetivo “severino”,
que tornou-se sinônimo de retirante, representando a imagem do Nordeste pobre.
Mas o que deu notoriedade ao texto e o fez conhecido mundialmente
foi a peça teatral. A montagem original ganhou o primeiro prêmio do festival de
Nancy, na França, impulsionada pela magistral composição que musicou os versos
de Cabral, sem alterá-los. As melodias deram à peça dramaticidade e emoção que
atingiram um amplo público, mesmo que não falante de português, sensibilizando
até mesmo o anti-musical João Cabral.
Até hoje, creio que noventa por cento do êxito daquele espetáculo foi
feito pela sica. Eu tive medo, a princípio, porque conhecia
algumas experiências de se pôr música em verso de poeta brasileiro.
Em geral, o compositor põe a música que ele quer, e usa o verso de
uma maneira inteiramente arbitrária. [...] Mas, a coisa extraordinária
que eu encontrei na música do Chico, baseada nos versos de Morte e
vida severina, foi um respeito integral pelo verso em si [...] Eu tenho
| 64 |
impressão de que é o único caso que conheço de uma música que
saiu diretamente do poema, e não uma coisa sobreposta ao poema.
(MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.107)
A peça foi encenada por vários grupos de vários países, muitas
vezes embalados pelo conteúdo social e pela dramaticidade da miséria e da vida
severina não só do nordestino brasileiro, mas dos despossuídos de todo o mundo. O
próprio João Cabral acreditava que o sucesso do poema se deveu muito mais ao
sucesso da peça do que ao texto em si.
Além do teatro, sua razão de ser, da poesia, sua efetivação, e da
música, que completou e deu brilho à poética original dos versos, “Morte e vida
severina” serviu de argumento para um filme-documento, dirigido por Zelito
Vianna, em 1976, e para um especial de televisão, na forma de adaptação da peça,
dirigido por Walter Avancini e exibido pela Rede Globo, em 1981. Foi também
traduzido para vários idiomas (o que não deixou de desagradar seu autor, que
achava algumas das traduções dramáticas demais). Esta multiplicidade de leituras
da obra ajudaram a dar visibilidade e popularizaram o poema, que figura entre os
mais conhecidos do país, tornando-se referência intertextual da cultura intelectual
e popular brasileira. Citado direta ou indiretamente por vários tipos de
manifestação artística ou popular, contribuiu para a difusão das imagens
produzidas pela narrativa que continuam vívidas no imaginário nacional,
contribuindo decisivamente para a poesia e para a literatura nordestina e brasileira.
Além disso, o próprio poema está repleto de intertextualidade fundada em seu
discurso polifônico
2
que faz referência tanto à geografia e à história cultural, quanto
aos intelectuais nordestinos, como Gilberto Freyre e Francisco Augusto Pereira da
Costa.
Esta força intertextual e polifônica lança raízes na cultura
nordestina e na própria lama do Capibaribe. Cabral, ao buscar referências na
cultura popular procurou enraizar “Morte e vida severina” a Pernambuco e ao
Nordeste. Ao mesmo tempo em que regionalizou sua leitura (intertextualidade) ele
deu voz à cultura popular e à própria paisagem (polifonia), dotando tais elementos
2
Intertextualidade e polifonia são elementos centrais para a compreensão de qualquer texto. A
intertextualidade diz respeito às referências do contexto social e cultural que são necessárias para
compreensão do texto, ou seja, elementos externos ao próprio texto que dialogam com ele e clarificam
seu sentido. A polifonia, por outro lado, diz respeito às influências que o próprio autor tem (sua
composição), são as várias vozes que falam por meio do discurso do texto.
| 65 |
de geograficidade, que asseguram ao poema seu lugar, de um lado, mas lançaram-
no à universalidade, de outro. (MARANDOLA JR. e SILVA, 2004)
Assim, tanto do ponto de vista da importância e envergadura de seu
autor, quanto da repercussão e significado dos temas tratados, “Morte e vida
severina” é um texto (no seu sentido amplo) que merece ser lido, relido e estudado.
Do ponto de vista geográfico, é rico em imagens e conteúdo telúrico, de um lado,
sem perder a indissocialidade sociedade-natureza, de outro. Traz questões
fundamentais para pensar as relações entre o conhecimento e a linguagem artística
com o saber geográfico, na medida em que revela uma geografia essencial. Permite
que estabeleçamos pontes entre a linguagem e o conhecimento artístico e científico,
procurando explicitar a ligação natural e primeira entre estes saberes e suas formas
de dizer.
Fiel ao estilo de Cabral, o poema foi composto a partir de pesquisa e
de um esforço em localizar-se, a partir de imagens e referências intertextuais, no
lugar multi-escalar Recife-Pernambuco-Nordeste, a grande referência espacial de
Cabral. Enquanto auto de natal, o poeta buscou referências no folclore nordestino,
ligando seu auto à espacialidade e à memória pernambucana. A força telúrica da
paisagem é evocada para a composição da saga de Severino, que é o material da
construção de símbolos e imagens utilizadas por ele na composição de “Morte e vida
severina”, revelando assim os elementos geográficos que a obra evoca e que projeta
a partir de sua leitura.
Temos assim duas faces da composição intertextual de “Morte e
vida severina”: (1) a pesquisa cultural-histórica, principalmente ligada à narrativa
bíblica, ao pastoril e ao folclore nordestino; e (2) a pesquisa geográfica, baseada na
paisagem e nas unidades geográficas do Estado de Pernambuco, feita a partir de
consulta a cartas técnicas. Estes são dois dos materiais brutos trabalhados por
Cabral que compõem os fios principais da trama do poema. Este material é lapidado
de uma maneira a ressaltar sua forma bruta, buscando nele conferir materialidade,
força telúrica e verossimilhança, aspirando à realidade. Mas neste movimento, ao
melhor estilo cabralino, o que é particular-específico de um tempo e de um espaço
ganha os contornos do universal, descolando-se desta mesma materialidade tão
sólida dos versos de “Morte e vida severina”. A narrativa bíblica confere à saga de
morte e vida de Severino caracteres universais. Na mesma direção, como Cabral
| 66 |
busca e parte do espaço telúrico, mesmo tendo como seu lugar narrativo um lugar
vivido (lembrado), ele adquire a conotação geral, pois ele se baseia em seus
elementos essenciais e não nos típicos. É por isso que as repercussões foram muito
mais numerosas e múltiplas do que o autor esperava, mesmo que muitas destas
não tenham correspondido às intenções ou predições de Cabral. Estas produziram
novas leituras e novas espacialidades que construíram outras geografias, criadas e
imaginadas a partir da leitura do poema.
Assim, para realizar uma leitura geográfica do poema-peça,
buscamos primeiro explorar os elementos que foram trabalhados por Cabral na
composição de “Morte e vida severina” (cultural-históricos e geográficos), para no
capítulo seguinte explorarmos os aspectos particulares e seus contornos universais
à medida que procuramos nos versos e nos ecos de “Morte e vida severina” seu
significado geográfico essencial e multiplicado.
Símbolos e Imagens Natalino-Nordestinas
O anjo disse-lhes: “Não temais, eis que vos
anuncio uma boa nova que será alegria para
todo o povo: hoje vos nasceu na Cidade
de Davi um Salvador, que é o Cristo Senhor.
Lucas 2:10-11
Na educação familiar e formal de João Cabral, a tradição religiosa
esteve sempre presente. Mesmo tendo mantido uma certa distância de sua
formação católica, admitiu sempre a força e a presença que esta herança teve em
seu caráter e em sua personalidade durante toda a vida. Desde sua educação na
escola dos Irmãos Marista, onde adquiriu seu pavor da morte, passando pelas
tradições e festas nordestinas, sempre ligadas de alguma forma às tradições
católicas, João Cabral incluiu em muitos de seus poemas elementos de fundo ou de
origem religiosa. Mesmo não sendo ele próprio um devoto (seu racionalismo sempre
esteve a lhe opor tal idéia), procurava focar naquilo que é elementar na realidade a
partir da qual escrevia. A religiosidade é parte integrante da paisagem e da própria
vida do nordestino. Sua poesia, nordestina, não poderia esquivar-se de tais
referências. Assim como a religiosidade, o folclore é componente fundamental da
paisagem nordestina entendida tanto como uma construção da mente quanto
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como uma entidade física mensurável, incluindo tanto os “[...] estados psicológicos
como ao meio ambiente real.” (TUAN, 2005, p.12) O folclore, porém, foi menos
explorado por Cabral, sendo “Morte e vida severina” um dos poucos exemplos de
exploração cabralina de seus temas.
O universo privilegiado onde tais elementos se complementam e
convivem é a literatura de cordel. Nesta, João Cabral teve uma marcante vivência
durante sua infância que, embora não o tenha conduzido para ser um folclorista,
deixou impresso em sua memória os elementos que mais tarde foram resgatados na
composição de “Morte e vida severina”.
Eu conheço um folclore vivo, que eu vi. Esses livrinhos de folheto de
cordel, eu li desde moço. Eu me lembro que eu menino de engenho,
os empregados do engenho de papai, em Moreno, vinham para mim e
diziam: - João, esse folheto para mim. Essa influência eu tive na
infância. Não sou um folclorista. (MELO NETO apud PERNAMBUCO
DE A/Z, 2007)
A literatura de cordel é uma das mais populares e acessíveis
leituras do Nordeste. Até hoje são vendidas e lidas por um número grande de
pessoas, mesmo de pouca leitura, perpetuando e circulando imagens folclóricas,
religiosas e causos por todo o sertão. “Morte e vida severina” foi pensado enquanto
uma espécie de literatura de cordel, tanto em sua estrutura poética quanto em sua
linguagem e tema, visando atingir o público deste tipo de literatura, o povo inculto.
Eu tenho a impressão de que [Morte e vida severina] é um poema
fracassado. Escrevi para esse leitor ou auditor do romanceiro de
cordel, para esse Brasil de pouca cultura, e esse Brasil nunca
manifestou nenhum interesse por ele. Quem manifestou interesse por
ele foi o Brasil das capitais, o Brasil que vai aos teatros. Foi um grande
mal-entendido. Quem gosta dele é a gente para quem eu não escrevi.
E a gente para quem eu escrevi nunca tomou conhecimento dele.
(MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.110)
Reforçando esta idéia de um mal-entendido quanto ao público
leitor, podemos citar a viagem que fez Leonardo Sakamoto, em 2000, às terras que
inspiraram “Morte e vida severina”. A maioria das pessoas entrevistas por ele jamais
tinha ouvido falar do poema. (SAKAMOTO, 2002) No entanto, ficaram encantadas e
inclusive se identificavam com o texto ao ouvi-lo na boca do jornalista, mostrando
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que talvez o fracasso não tenha sido pelo poema em si, mas na mediação do texto
até as pessoas.
Quando Maria Clara Machado solicitou um auto de natal a João
Cabral, este procurou escrever algo que retratasse os nordestinos. Buscou assim
uma forma e estética para a peça que representasse a cultura singular dos
nordestinos, em especial no que tange às representações natalinas. Por isso, “Morte
e vida severina” tem em seu estilo o verso popular, o verso solto típico da literatura
de cordel.
Ao escrever o poema [...] pretendi encontrar a forma válida para dizer
aquilo que queria. Trata-se de uma peça destinada ao povo. O verso
utilizado só poderia ser o popular, aquele que encontramos nos
romances e romanceiros. [...] Se utilizasse outra linguagem, se
tivesse posto alexandrinos na boca de um retirante analfabeto, teria
caído na oratória, no requinte e não atingiria o objetivo em vista. O
povo sente o romanceiro popular. (MELO NETO apud ATHAYDE,
1998, p.106)
É interessante notar que mesmo levando no título sua razão de ser,
“Auto de Natal Pernambucano”, raras vezes os leitores ou mesmo críticos entendem
a obra como uma narrativa bíblica. Normalmente o caráter de crítica social acaba
sendo mais enfatizado, sem observar que esta nunca foi, na verdade, a intenção de
João Cabral.
O que me chateou muito também a respeito do sucesso mundial de
Morte e Vida Severina foi que a burrice nacional brasileira começou
a fazer inferências políticas sobre o poema. Muita gente queria que
depois de cada espetáculo eu subisse ao palco e gritasse ‘Viva a
Reforma Agrária’. Recusei-me a fazer isto. Não faço teorias para
consertar o Brasil, mas não me abstenho de retratar em poesia o que
vejo e sinto. Eu mostrei a miséria que havia no Nordeste. Cabia aos
políticos cumprirem seu papel. Essas exigências de engajamento
político me irritaram muito. Ainda bem que logo depois fui para
Sevilha, Genebra, Assunção e fiquei muito tempo longe do Brasil. Foi
o tempo necessário para que parassem de achar que eu deveria fazer
arte engajada em vez de poesia pura. (MELO NETO apud BARBOSA,
2007)
Cabral deixa claro, portanto, que “Morte e vida severina”, mesmo
com suas especificidades, é tão fiel ao estilo e estética do poeta quanto qualquer
outro de seus poemas. Busca uma “poesia pura”, ou seja, um exercício poético livre
de compromissos ou amarrações que extrapolam o universo da composição. A
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racionalidade, o a ideologia, é sua motivação e objetivo principal. Reafirma-se
assim sua afinidade com uma ciência racionalista e seu distanciamento de uma
ciência e pensamento engajados.
Toda a narrativa é bíblica, o que pode ser visto na própria condução
do poema. O caminho de Severino é de morte e vida, nesta ordem, remetendo à
ressurreição de Cristo, que morreu para depois viver. Além disso, todo o caminhar é
rodeado pela morte em suas várias faces: a morte matada, a morte aos poucos, a
morte em vida, a morte morrida, a morte severina. Este caminho de morte pode ser
entendido como uma alusão à Via Crucis que Cristo percorreu e que é celebrada
durante os ciclos de Páscoa, em forma de novenas e encenações.
Na segunda parte do poema, quando o retirante chega em Recife, a
temática é a vida, com o nascimento da criança que remete ao nascimento do
Menino Jesus. Este constitui uma encenação do presépio ou pastoril que, na
tradição católica nordestina, es presente no ciclo de festividades natalinas. A
partir desta estrutura básica, Cabral reuniu e citou trechos de diferentes tradições
e origens, tendo a narrativa bíblica como principal fio estruturador. Como exemplo,
temos o próprio caminho de Severino entendido por ele como um rosário, que é um
dos principais instrumentos de oração católica.
– Antes de sair de casa
aprendi a ladainha
das vilas que vou passar
na minha longa descida.
Sei que há muitas vilas grandes,
cidades que elas são ditas
sei que há simples arruados,
sei que há vilas pequeninas,
todas formando um rosário
cujas contas fossem vilas,
de que a estrada fosse a linha.
Devo rezar tal rosário
até o mar onde termina,
saltando de conta em conta,
passando de vila em vila.
Vejo agora: não é fácil
seguir essa ladainha
entre uma conta e outra conta,
entre uma e outra ave-maria,
há certas paragens brancas,
de planta e bicho vazias,
vazias até de donos,
e onde o pé se descaminha.
(MELO NETO, 1994, p.175-176)
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Uma outra referência bíblica é a chegada de Severino à Zona da
Mata:
– Bem me diziam que a terra
se faz mais branda e macia
quanto mais do litoral
a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei
nesta terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui
têm a água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;
cavando o chão, água mina.
(MELO NETO, 1994, p.182)
A visão da pujança das terras férteis da Zona da Mata, o faz pensar
na chegada à terra prometida, “uma terra que mana leite e mel” (Êxodo 3:8), no
meio do deserto.
na segunda parte, após chegar no Recife, Severino pensa em
acabar com a agonia de sua vida pulando para “fora da ponte e da vida”. José,
Mestre Carpina, conversa com ele, tentando convencê-lo de que ainda vale a pena
viver. É neste momento crítico, quando a morte está tão próxima, que chega uma
mulher com a notícia:
Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dentro da vida
ao dar seu primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabei que ele é nascido.
(MELO NETO, 1994, p.195)
A contraposição entre Severino, disposto a saltar da ponte e da vida,
e o menino nascido, que acaba de saltar para dentro da vida é o momento em que o
caminho de morte e vida finalmente chega à vida: uma vida que brotou em meio à
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morte. Os acontecimentos referentes ao nascimento do menino são relativos à
narrativa bíblica, desde a profissão (carpinteiro), a cidade de origem (Nazaré da
Mata) e o nome de seu pai (José), passando pelos presentes e visita de vizinhos e
amigos (os reis magos), até as condições humildes do nascimento: num barraco, na
pobreza.
É ainda mais contundente a fala dos vizinhos e amigos que entoam
louvores ao recém-nascido.
– Todo céu e a terra
lhe cantam louvor.
Foi por ele que a maré
esta noite não baixou.
– Foi por ele que a maré
Fez parar a seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau-cheiro não voou.
[...]
– E a banda de maruins
que toda noite se ouvia
por causa dele, esta noite,
creio que não irradia.
– E este rio de água cega,
ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu,
hoje enfeitou-se de estrelas.
(MELO NETO, 1994, p.196)
Neste trecho, vemos que não apenas as pessoas se mobilizaram pelo
nascimento, mas até mesmo a natureza altera seu rumo e enfeita-se para acolher
tão importante criança. A maré pára, a mau cheiro do mangue não sobe, os
maruins não zunem e o rio enche-se de estrelas.
Na Bíblia são os reis magos que presenteiam o Menino Jesus com
incenso, mirra e ouro. Estes presentes são símbolos de riqueza. No auto de Cabral
estes
foram substituídos pelos presentes que procuravam satisfazer as
necessidades do recém-nascido. Sempre com a ressalva de que a
situação de pobreza em que vivam limitava a oferta, as pessoas
foram trazendo o melhor possível para defender aquela vida que
acabava de florescer. (MELO FILHO, 2006, p.83)
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Além disso, os tipos de presentes e suas origens são bastante
regionalizadas, fazendo referência a bairros e ruas do Recife ou cidades da região.
Entre os presentes encontram-se caranguejos, leite materno, papel de jornal, água
de Olinda, canário da terra, bolacha d’água de Paudalho, pitu de Gravatá, abacaxi
de Goiana, tamarindos da Jaqueira, cajus da Mangabeira, Goiamuns da Avenida
Sul e da Avenida Norte, entre outros.
Na verdade, como era um auto de natal pernambucano, ele buscou
nas manifestações religiosas e no folclore nordestino elementos para a composição
da peça. Por exemplo, se na narrativa bíblica os personagens são os reis-magos, a
estrela-guia, os animais e os pais do menino, nas manifestações folclóricas
nordestinas estes personagens foram substituídos, aos poucos, por outros, mais
presentes na realidade do Nordeste: amigos, vizinhos e ciganas que lêem a sorte do
recém-nascido. E é assim que estes personagens aparecem em “Morte e vida
severina”, vistos pelos olhos do folclore pernambucano.
O pastoril e o Folk-lore pernambucano
A Pereira da Costa
Quando no barco a linha da água
era baixa, quase naufrágio,
ele foi quem mais ajudou
o Pernambuco necessário,
porque com sua aplicação,
não de artista mas de operário
foi reunindo tudo, salvando
tanto o perdido quanto o achado.
Sem o sotaque do escritor
nem o demônio do missionário,
só quis de pernambucania
ser simples professor primário.
João Cabral de Melo Neto
A manifestação folclórica na qual João Cabral buscou elementos
para seu auto foi o pastoril, que são espetáculos de canto e dança encenados em
Pernambuco na época do natal e podem ser considerados a forma animada,
dramatizada do presépio. No pastoril existem dois cordões, o azul e o encarnado,
cada um formado pelas “pastoras”, sendo que os cordões competem entre si,
intermediados pela Diana (metade azul e metade encarnada), que o toma partido
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algum. A disputa se através das jornadas (cânticos de conteúdo natalino-
religiosos) entoadas por ambos os grupos. Em meio a isso, entram outros
personagens, como a cigana, a borboleta, o pastor, os reis magos entre outros que
ajudam a dar cor e vida ao espetáculo e a celebrar o nascimento de Jesus.
Este tipo de celebração foi introduzido no Nordeste provavelmente
no século XVI, originário dos presépios portugueses e se disseminaram por toda a
região. Com o tempo, surgiram outros tipos de pastoril, como o ponta-de-rua ou
profano, criando uma diferenciação entre este tipo de pastoril e o religioso. (MELLO
e PEREIRA, 1990) No entanto, é do pastoril religioso que João Cabral
declaradamente retirou elementos para compor o poema.
[...] Eu peguei várias sugestões do pastoril a mulher que chama o
são José para dizer que Jesus Cristo nasceu, as mulheres cantando
que a natureza mudou, o sujeito com os presentes, as ciganas lendo o
futuro da criança –, acrescentei outros assuntos, todos de conteúdo
pernambucano. (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.109)
Para escrever “Morte e vida severina”, João Cabral baseou-se na
obra do folclorista pernambucano Francisco Augusto Pereira da Costa, que
compilou as várias manifestações folclóricas pernambucanas no livro que é, até hoje,
referência sica sobre a cultura do Estado: Folk-lore pernambucano: subsídios para
a história da poesia popular em Pernambuco, publicado originalmente em 1908.
(PEREIRA DA COSTA, 2004) Livro fundamental, pois garantiu a sobrevivência da
cultura popular oral do Nordeste. O próprio João Cabral reconheceu sua importância
no poema que escreveu sobre o grande historiador.
Assim, quando Maria Clara Machado pediu a João Cabral que
escrevesse um auto de natal, e ele decidiu que seria um auto de natal
pernambucano, lembrou-se de Folk-lore Pernambucano, onde há registros do
pastoril, sobretudo do século XIX (período do apogeu). A partir de tais práticas
folclóricas registradas em Pereira da Costa, Cabral afirma que apenas mudou o
conteúdo, conservando a estrutura e adaptando à realidade local. No final do
poema, recorreu ao “tema eterno da literatura do Nordeste: o sujeito emigrado do
sertão para vir procurar uma vida melhor para os lados do Recife”. (MELO NETO
apud PERNAMBUCO DE A/Z, 2007) Folk-lore pernambucano foi a forma utilizada
por Cabral para moldar seu poema, deixando-o, assim, com a marca do Nordeste.
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Segundo Pereira da Costa, a celebração evoluiu da forma como era
feita no início, em conventos franciscanos de Olinda, ganhando com o tempo
dramaticidade e elementos regionais.
Era à noite que se reunia a família e os visitantes, diante de frondoso
e ameno oratório. As pastorinhas, trajadas uniformemente, à
consonância de seus pandeiros e maracás, enfeitados, talvez de
outros instrumentos à parte, com arcos de flores e fitas, ou sem eles,
dançavam modestamente, cantavam hinos e recitavam, em breve
poesia, piedosas jaculatórias e enternecidos adeuses de inocente
simplicidade e graça ao Lindo Infante, seus amores, Deus de infinita
majestade feito homem para remir ao mundo; e por fim depunham
suas humildes oferendas no altar da maviosa lapinha. (MELLO apud
PEREIRA DA COSTA, 2004, p.210)
A popularidade do pastoril é notória, envolvendo pessoas de todas
as idades e condições sociais.
Esta parece ser uma folgança endêmica do nosso Pernambuco. Em
se aproximando o Natal, surgem em todas as partes os presépios,
sendo a cidade de Olinda o lugar mais abundante deste gênero...
Começam na noite do Natal, e repetem-se todas as noites até o dia de
Reis, depois do qual entra por seu turno o ato de queimar as
palhinhas de cada presépio, o que constitui nova folgança. As
pastorinhas cantando diversas endechas, dançam em cadência, e
repetem suas loas em honra e louvor de Jesus Cristo recém-nascido.
(LOPES DA GAMA apud PEREIRA DA COSTA, 2004, p.212)
Partindo de muitas cenas e paisagens retratadas pelo folclore (a
partir de Pereira da Costa) e de imagens presentes na literatura e na cultura
nordestina, João Cabral acaba construindo uma forma original própria de sua
estética mas uma obra repleta de referências intertextuais que localizam
espacialmente o poema. É por isso que Rosenfeld (apud CADERNOS..., 1996,
p.123-124) afirma que “Morte e vida severina” tem características de uma paródia:
Paródia no sentido autêntico do termo um canto primevo, o canto
original, numa forma que evoca e conjura o motivo enquanto ao
mesmo tempo se distancia dele pela modernidade da expressão [...]
Não podendo repetir o mito com a mesma singeleza e primitiva, o
autor chega através do requinte a uma segunda simplicidade e
através da dúvida e da indignação a uma segunda (o menino
“infecciona” a miséria com vida nova e sadia; “contagia” com o novo o
velho e “corrompe” com sangue novo a anemia: não poderia haver
maneira mais maliciosa e sarcástica para exprimir o potencial de
“perigo” que se anuncia em cada novo severino) [...].
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Talvez seja justamente este caráter de paródia que despista os
leitores de acompanhar a saga de Severino como uma narrativa bíblica, um auto de
natal tão pernambucano, ou de enxergar os elementos folclóricos do pastoril
presentes e importantes na composição poética.
Mas o tom paródico se amplia à medida que o autor pretendeu
referenciar a tradição cultural ibérica, patrona e o presente na cultura
nordestina. Os elementos desta tradição estão presentes especialmente nas últimas
seis cenas do poema, onde o poeta constrói seu próprio presépio.
Morte e vida severina é uma homenagem às várias literaturas
ibéricas: os monólogos do Retirante têm em comum com o
romanceiro ibérico o uso do heptassíbalo e a assonância; a cena do
Irmão das Almas homenageia o romance catalão do conde Arnaut; a
cena do velório é pernambucana; a da mulher na janela é um poema
narrativo em português arcaico incorporado ao folclore
pernambucano. A cena dos coveiros é, curiosamente, escrita em
verso livre, quem sabe com a intenção de continuar, de levar adiante
uma conquista modernista. O diálogo do Retirante com o Mestre
Carpina segue os processos da tenção galega; o resto é romance”
castelhano. O nascimento de Cristo se tornou um fato realista; a
cena dos presentes, como outras, tem relação com os autos
pernambucanos do século passado. As ciganas estão nos autos
antigos, prevendo o futuro nascimento da criança. (OLIVEIRA, 1994,
p.18)
Mas é de Pereira da Costa e do pastoril que Cabral bebeu com mais
afinco. Várias passagens de “Morte e vida severina” são paródias do relato do
grande folclorista.
[...] A cena do nascimento, com outras palavras, está em Pereira da
Costa. ‘Compadre, que na relva está deitado’ é transposição deste
folclorista, pois no Capibaribe lama, e não grama. ‘Todo céu e
terra lhe cantam louvor’ também é literal do antigo pastoril
pernambucano. O louvor das belezas do recém-nascido e os
presentes que ganha existem no pastoril. As duas ciganas estão em
Pereira da Costa, mas uma era otimista e a outra pessimista. Eu
alterei as belezas e os presentes, e pus as duas ciganas pessimistas.
(MELO NETO apud BARBOSA, 2007)
Na narrativa bíblica, é um anjo quem avisa a José que Maria vai ter
um filho. No pastoril, segundo o registro de Pereira da Costa (2004), encontramos
os seguintes versos na Loa do anjo anunciando as pastoras o nascimento do
messias:
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Pastoras, belas pastoras,
Que na relva estais deitadas
Descansais, e não sabeis,
Que a luz do céu é chegada?
(PEREIRA DA COSTA, 2004, p.503)
Aqui, Cabral substitui o anjo pela mulher que avisa o seu José que
seu filho nasceu, com as seguintes palavras:
Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado.
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
(MELO NETO, 1994, p.195)
Outro trecho claramente retirado das jornadas descritas por Pereira
da Costa é um canto de louvor ao nascimento do Menino Jesus:
Todo o céu e terra
Vos cantem louvor,
Ó Menino Deus,
Nosso redentor.
(PEREIRA DA COSTA, 2004, p.504)
Cabral adapta estes versos na forma da fala dos vizinhos, amigos e
ciganas que se aproximam:
– Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor
e cada casa se torna
num mocambo sedutor.
– Cada casebre se torna
no mocambo modelar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.
[3]
(MELO NETO, 1994, p.196)
3
Referência a Gilberto Freyre, em seu famoso Sobrados e Mocambos, de 1936. (FREYRE, 2006) A
ironia manifesta-se na celebração dos mocambos (habitações miseráveis) em detrimento dos sobrados,
como o fez Gilberto Freyre. (BARBOSA, 2007)
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Um terceiro trecho de Pereira da Costa é a oferta dos presentes. Em
Ofertas das pastoras, lemos:
Minha pobreza tal é
Que uma oferta não achei!
Na aldeia não encontrei
Cousa que fizesse fé;
(PEREIRA DA COSTA, 2004, p.519)
Em “Morte e vida severina” Cabral transpõe estes versos para a fala
das pessoas que trazem presentes para o recém-nascido:
– Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos
pescados por esses mangues;
mamando leite de lama
conservará nosso sangue
(MELO NETO, 1994, p.196)
Djalma A. de Melo Filho aponta que Cabral alterou também os
presentes oferecidos. “No original as pastoras oferecem pombinhos, ovos, coifinha,
travesseiro de penas, jasmins, vinho, farinha de trigo, fitinha, toalha, cueirinho e
romã.” (MELO FILHO, 2006, p.83)
A força intertextual de “Morte e vida severina” está, em parte, neste
caráter paródico, que evoca elementos da vivência e da tradição oral nordestina,
ligada às festas e às celebrações, fazendo do poema uma leitura do Nordeste, suas
paisagens e sua gente. A adaptação passa por uma incorporação à forma do poema
e à manifestação dos elementos concretos de maneira mais evidente, ressaltando a
materialidade e a força imagética das situações.
Mas outros personagens foram tirados do pastoril, que claramente
não possuem nenhum vínculo com a narrativa bíblica. Talvez o exemplo mais
notório neste sentido seja o das ciganas que no pastoril se apresentam e lêem a
sorte do Menino Jesus. A primeira acentua sua divindade, as graças e a
importância que terá para a humanidade, enquanto a segunda prevê os
acontecimentos trágicos: a traição, a crucificação, a morte prematura e, finalmente,
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a ressurreição. A fala das ciganas, segundo a jornada registrada por Pereira da
Costa, começa da seguinte maneira:
Somos ciganas do Egito
Que viemos de Belém,
Adorar a um Deus menino
Nascido p’ra nosso bem.
[...]
Atenção peço, senhores,
Para esta breve leitura,
E uma atenção piedosa
A toda e qualquer criatura.
Deste menino formoso
Vindo de origem divina,
Em suas mãos pequeninas
Eu vou ler a sua sina.
(PEREIRA DA COSTA, 2004, p.516)
João Cabral apenas readaptou essa fala para
– Atenção peço, senhores,
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito,
lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
[...]
(MELO NETO, 1994, p.198)
Um último trecho escrito a partir de Pereira da Costa foi transposto
na derradeira fala dos vizinhos, amigos e pessoas que vieram com os presentes. Em
Pereira da Costa lemos:
Da sua formosura
Eu já vou dizer,
Algumas coisinhas
Do meu entender.
Os seus cabelinhos
São felpas de ouro,
Que bem mostram ser
De um rico tesouro.
(PEREIRA DA COSTA, 2004, p.505)
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Em Cabral, vemos mantida a estrutura e a imagem da criança:
– De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.
– De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.
(MELO NETO, 1994, p.199-200)
Enquanto narrativa bíblica e relato folclórico, “Morte e vida severina”
contém a mensagem de redenção e da vida após a morte, mesmo que esta morte
permaneça por toda a vida. Não contém elementos trágicos (MELO FILHO, 1996-
1997), mas mantém uma direção e ordem irrepreensível em direção à morte, para
chegar na vida. Este caminho é, além de sóbrio e duro ao estilo cabralino, também
irônico, com requintes de humor negro, como o próprio João Cabral admite:
Em Morte e vida severina também existe humor negro. Você lembra
daquele trecho: ‘Mais sorte tem o defunto / irmão das almas / pois já
não fará na volta / a caminhada’? Pois bem. A origem disso é uma
história que me contaram na Espanha. Dizem que, na época de
Franco, ele mandava fuzilar seus inimigos num lugar chamado Sória,
que é o mais frio do país. Conta-se que, um dia, um condenado
virou-se para os soldados que iriam executá-lo e disse: ‘Puxa, como
faz frio neste lugar’. Ao que um dos soldados respondeu: ‘Sorte tem
você, que não precisa fazer o caminho de volta’. Foi assim que essa
frase foi parar no meio de Morte e vida severina. mais humor
negro do que isso? (MELO NETO apud CADERNOS..., 1996, p.27)
Assim, entender “Morte e vida severinacomo uma obra de catequese,
religiosa, é fugir de sua dureza e amarga realidade. O auto retoma os tradicionais
quadros e personagens natalinos, mas os subverte, pela ironia dessublimatadora do
nascimento de uma criança entre os habitantes do mangue, cujo destino, previsto
pelas ciganas, se o de também levar uma vida severina.” (PINTO, 2003, p.3) A ironia,
inclusive no trato da morte, o tema principal de toda a narrativa, dota cada cena de
uma dramaticidade contida, embora nunca exacerbada. O controle é a ironia e a fina
linha que liga os dlogos à materialidade da composão.
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Morte severina: morte em vida
E vi todas as mortes
em que esta gente vivia:
[...]
Ali não é a morte
de planta que seca, ou de rio:
é morte que apodrece,
ali natural, pelo visto.
“O rio”
João Cabral de Melo Neto
Mas que morte é esta que permeia tudo na vida? Que tantas mortes
para se morrer nesta vida severina? É a morte em forma de sina, morte que
permeia e envolve a vida de uma existência contida num caminho que leva, mesmo
antes de nascer, ao fim.
A morte está ligada, portanto, ao próprio significado do ser severino.
Cabral capta o ciclo de sofrimento do retirante nordestino que a morte encontra
e só nela vive.
– Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva
só a morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira).
(MELO NETO, 1994, p.195)
Mas a maior melancolia e angústia não é a morte, sina severina,
mas a própria condição de severino que o priva de qualquer individualidade, de
qualquer significância no caminho que percorre. O psicólogo Antonio Ciampa
afirma que severino, enquanto adjetivo, tornou-se sinônimo de uma
homogeneização absoluta, de uma privação que chega a diminuir até o sentido da
morte. “Nada o distingue, nada o singulariza: nem seu nome, nem seus pais, nem o
passado, nem o corpo, nem o lugar onde vive, nem a vida, nem a morte o
individualizam.” Neste sentido, o substantivo próprio vira substantivo comum, além
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de um adjetivo. “Severino é um severino severino.” (CIAMPA, 1986, p.22) Em “O
rio”, o Capibaribe percebe esta homogeneidade humana que é muito diferente de
toda a paisagem que ele viu em sua descida.
Tudo o que encontrei
na minha longa descida,
montanhas, povoados,
caieiras, viveiros, olarias,
mesmo esses pés de cana
que tão iguais me pareciam,
tudo levava um nome
com que poder ser conhecido.
A não ser esta gente
que pelos mangues habita:
eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga;
que os distinga na morte
que aqui é anônima e seguida.
São como ondas de mar,
uma só onda, e sucessiva.
(MELO NETO, 1994, p.141)
Mas nesta privação e homogeneidade, a identidade se pelo
coletivo, por aquilo que possui de universal e que carrega a sina não de uma
pessoa, mas de uma classe. Sua identidade transcende assim sua individualidade,
constituindo-se, segundo Ciampa (1986, p.22), por vidas ainda não vividas e por
mortes ainda não morridas, “[...] mas que estão contidas em suas condições
atuais e que emergirão como desdobramento de um tempo severino.”
(De fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade
e até gente não nascida.)
(MELO NETO, 1994, p.172)
Nesta identidade difusa, transcendente do próprio indivíduo, o
tempo perde o significado, pois cada vida é a mesma sina histórica, de uma classe
que vive para morrer, e morre para viver. Perde sentido a diferença entre passado,
presente e futuro. Tudo é um tempo severino que “[...] é vivido como um quotidiano
estruturado na luta pela sobrevivência. O quotidiano o produz e ele o reproduz
severino: esta sua sina!” (CIAMPA, 1986, p.23)
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Mas ao mesmo tempo em que admite esta situação de
homogeneidade, que não consegue se identificar nem pelo adjetivo nem pelo
substantivo, o Severino do poema torna-se verbo, emigrando do sertão ao Recife,
fugindo da morte, procurando a vida.
No entanto sua fuga se pelas sendas da morte (sua Via Crucis),
que está onipresente em toda obra, ressaltando a oposição vida e morte, criação e
esterilidade. (GINZBURG, 1995) Esta tensão está presente durante todo o poema e
se desenlaça apenas no nascimento do menino. Severino é envolvido e conduzido
pela morte por todo seu caminho, mas permanece em sua fuga. Procura vida, mas
encontra a morte. Quando finalmente decide se entregar e procurar a morte
saltando “fora da ponte e da vida”, é salvo pela notícia de que o menino “saltou para
dentro da vida.” (MELO NETO, 1994, p.195) A tensão se desenrola não porque a
vida do menino seria uma redenção, pois sua vida também era severina: mas por
contrapor a morte à possibilidade de sua recriação e de sua reinvenção, mesmo que
seja na mesma sina, ainda assim é vida.
Entre as muitas imagens que a morte assume, uma delas é
especialmente perturbadora: a da morte como um tipo de cultivo.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.
(MELO NETO, 1994, p.182)
Por outro lado, embora a morte parecesse lógica, lenta ou rápida,
casual ou intencional, ela é sempre leve, não um fardo. Segundo Ana Lúcia
Tettamanzy, a leveza da morte é desproporcional em relação à opressão enfrentada
em vida. Mas está justamente outro ponto da oposição morte-vida: se a morte é
leve, seu oposto, a vida, é sólida, pesada como chumbo. (TETTAMANZY, 1995)
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As tensões e oposições que conduzem o caminhar de Severino,
portanto, revelam a manifestação do geral no particular, enquanto a experiência do
indivíduo é a própria coletividade, ao mesmo tempo em que este procura sua
individualidade na sobrevivência e ação de migrar. Uma migração em direção à
vida, pelas sendas do Capibaribe e das paisagens do Estado do Pernambuco.
As Paisagens de Pernambuco no Caminho de Severino
Vou na mesma paisagem
reduzida à sua pedra.
A vida veste ainda
sua mais dura pele
“O rio”
João Cabral de Melo Neto
O caminho de Severino é do interior para o litoral, para a capital.
Como diz João Cabral, Recife é o depositário de toda a migração do Nordeste. É
para que todos os severinos buscam fugir da morte. E o leitor encontra este
Severino saindo do sertão, iniciando seu caminho em direção ao Recife, tentando,
por cada lugar que passa, ficar, trabalhar, viver. Mas como dito, todo o caminho
é de morte, e ele segue seu curso, acompanhando o Capibaribe, até sua foz: o
encontro com o oceano em Recife.
Neste caminho, João Cabral observa e trata das grandes unidades
geográficas do Estado do Pernambuco (Figura 02), incorporando este “pano-de-
fundo” à trama do poema.
A migração se inicia no sertão, domínio da caatinga e do semi-árido,
com baixos índices pluviométricos, população rarefeita e enormes carências sociais.
Domina a maior parte do território do Estado, sendo a região que projeta a imagem
da paisagem e do povo nordestino.
Segundo Mário Lacerda de Melo, “O vocábulo ‘sertão’, no Nordeste
do Brasil, designa o vasto interior onde o relevo é geralmente mais uniforme, o
clima mais seco, a caatinga mais rude e a ocupação humana mais rarefeita.”
(LACERDA DE MELO, 1958, p.154) É uma expressão que abarca vários sentidos e
denomina várias áreas em diferentes períodos, conforme mostra Maria Geralda de
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Almeida, contendo ao longo do tempo o sentido do desconhecido, expressão da
visão do outro (europeu) diante do novo continente. Tornou-se expressão cultural e
ideológica do incerto, do atrasado, do desconhecido, do longínquo e do selvagem,
associando-se, com o uso, às “[...] terras ásperas do interior, com matas que não
são florestas, o que culminou por, historicamente e socialmente, aproximar os
biomas da Caatinga e do Cerrado.” (ALMEIDA, 2003, p.76) O sertão aparece na
literatura brasileira a partir destas noções, tanto como espaço e lugar, como em
Grande sertão: veredas (LIMA, 1996), quanto como lugar vivido em Pedra do reino e
lugar coletivo como em Os sertões. (WANDERLEY e MENEZES, 1996)
Em Pernambuco, o sertão refere-se a toda porção Oeste do Estado,
subdivido em sertão do São Francisco (porção sul, drenado pelo rio homônimo) e o
sertão, que é a porção norte. É todo recortado e delimitado por elevações,
constituindo-se numa “[...] vasta superfície deprimida, bastante plana e bastante
homogênea.” (LACERDA DE MELO, 1958, p.153)
Figura 02 – Regiões do Estado de Pernambuco
Fonte: Dantas-Torres e Brandão-Filho (2006, p.353).
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Do solo à vegetação, das cidades às pessoas, a secura é a principal
marca da paisagem. É, como bem denominou João Cabral, uma “paisagem
mineral”: árida e sólida. O sertão remete à luta pela sobrevivência, com rios
intermitentes, serras “ossudas” e frias. uma completa sintonia, portanto, entre
lugar-sertão e homem-severino: deprimidos, secos, homogêneos. Esta paridade é
recorrente em todo o poema, como fica explícito na fala de Severino, que descreve o
seu local de origem em alusão a si próprio:
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
(MELO NETO, 1994, p.171)
A dureza do sertão aparece muitas vezes e de várias maneiras: “uma
terra que não nem planta brava”, “terra de pedra a areia lavada”, com “magros
lábios de areia” e de “pêlo hirsuto”, região “que o vento vive a esfolar”, “escalavradas
pela seca faca solar”, onde “plantas de rapina são tudo o que a terra dá”. A imagem
evocada é aquela que humaniza a paisagem ao mesmo tempo em que naturaliza o
homem. Ações humanas o aplicadas aos elementos, apontando para o laço
indissociável homem-meio.
Quando perguntado acerca de sua profissão, Severino revela ter
sido “sempre lavrador, lavrador de terra má”, afirmando no começo do poema que
os severinos têm todos a mesma sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado de cinza.
(MELO NETO, 1994, p.172)
Neste caminho, até os rios são severinos. A água é, sem dúvida,
elemento central que permeia “Morte e vida severina”, não apenas na sua presença,
mas principalmente em sua ausência. Nem mesmo os rios no sertão são caminhos
seguros. Intermitentes ou semi-intermitentes, podem trazer tanto a morte quanto a
vida. Severino, buscando a água, escolhe seguir o rio.
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Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
(MELO NETO, 1994, p.176)
Mas em certo ponto, vê-se impossibilitado de fazê-lo ao deparar-se
com um trecho seco do rio.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
(MELO NETO, 1994, p.176)
O caminho das águas leva Severino à segunda unidade de paisagem
do Estado de Pernambuco, a partir do interior: o Agreste, área de transição entre a
Zona da Mata e o Sertão. Talvez por conter tanto elementos da caatinga sertaneja
quanto da área fértil próxima do litoral, João Cabral não a tenha destacado no
caminho de Severino. O Agreste é citado apenas nominalmente num trecho
posterior, quando Severino já está na Zona da Mata, assinalando que ele não
percebeu diferença entre o Agreste, o Sertão e a Zona da Mata, no que se refere às
condições de vida da população.
Mas não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é a mais mínima.
(MELO NETO, 1994, p.185-186)
Por outro lado, a passagem sem clara distinção pelo Agreste indica
uma alteração da relação entre as regiões-lugares do espaço pernambucano e do
espaço narrativo: sertão-litoral, seco-úmido, sertão-cidade, masculino-feminino.
Todo o poema está estruturado nesta oposição-complementariedade, comprimindo
o espaço percorrido por Severino e pelo Capibaribe. No espaço narrativo de “Morte e
vida severina”, não há o Agreste: passa-se do Sertão para a Zona da Mata direto.
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Quando o retirante se conta de que está deixando o Sertão para
trás, ele está chegando na Zona da Mata, região que originalmente era recoberta
pela Mata Atlântica (daí seu nome), com clima mais úmido e solos férteis. Ele
percebe na paisagem as alterações que espera que se reflitam na condição de vida.
– Bem me diziam que a terra
se faz mais branda e macia
quanto mais do litoral
a viagem se aproxima.
(MELO NETO, 1994, p.182)
Severino se sente chegando, como apontado anteriormente, à terra
prometida, uma terra completamente diferente daquela do sertão onde vivia. Ali a
terra é doce, os rios têm água vitalícia. A percepção da paisagem de Severino é
daquele que busca uma imagem de que apenas ouvira falar. Ele identifica a
contrastante paisagem hídrica e vegetal em relação à paisagem mineral do sertão.
Esta oposição e contraste da paisagem revelam-se a Severino como uma oposição
de gênero: a Caatinga masculina, dura e seca; a Zona da Mata feminina, macia e
úmida. Isto enche o retirante de esperança, fazendo-o pensar em interromper a
viagem e ali ficar.
Vejo agora que é verdade
o que pensei ser mentira
Quem sabe se nesta terra
não plantarei minha sina?
Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a vida),
e para quem lutou a braço
contra a piçarra da Caatinga
será fácil amansar
esta aqui, tão feminina.
(MELO NETO, 1994, p.182-183)
Mas sua sina é Severina, e logo ele se dá conta do engano. O
entorpecimento do verde fez com que de início o retirante não percebesse a
natureza daquela paisagem. Logo o deslumbre diminui e ele se inquieta.
Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina;
somente ali à distância
aquele bueiro de usina;
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somente naquela várzea
um bangüê velho em ruína.
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?
(MELO NETO, 1994, p.183)
Lançada a semente da dúvida, Severino ainda tenta manter a
esperança, temendo que sua terra prometida se desmanche diante dos seus olhos.
Feriando: que nesta terra
tão fácil, tão doce e rica,
não é preciso trabalhar
todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida.
(MELO NETO, 1994, p.183)
A explicação para a ausência de pessoas a trabalhar em terra tão
doce, tão rica, logo se revela no funeral de um lavrador. É a representação da morte
da classe, daquela forma de viver. A impossibilidade da vida do lavrador naquela
paisagem, mesmo com todas as condições para o plantio, inexistentes no sertão,
choca Severino, que entende que ali não poderá ficar. A cana tudo tomou, tudo
ficou na mão dos latifúndios, tudo voltado para as usinas. Toda a terra com plantas
que não se pode comer.
Mário Lacerda de Melo escreve, à época de “Morte e vida severina”,
sobre esta alteração da paisagem da Zona da Mata:
[...] depois de quatro séculos de agricultura canavieira, as florestas
reduzem-se a pequenos testemunhos situados nos topos e nas
encostas altas das colinas. [...] Atualmente a região é ‘da mata’ no
nome. Quem a conhecesse apenas por esse designativo e por ele
ajuizasse de seu aspecto fitogeográfico, verificaria com surpresa que
já não é o verde-escuro e exuberante da floresta tropical o seu
colorido predominante. O colorido predominante, em vez do peculiar
à pujança da mata dos climas quentes e úmidos, é o verde-claro dos
canaviais e das capoeiras. (LACERDA DE MELO, 1958, p.93)
O autor ressalta ainda que a substituição dos engenhos, em
funcionamento séculos, pelas usinas, contribuiu significativamente para a
aceleração e agravamento da situação, já que estas necessitam de muito mais
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terras em comparação com aqueles. O resultado foi o aumento dos latifúndios e a
diminuição das oportunidades de trabalho. Esta situação também foi apontada pela
mulher na janela:
Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já;
(MELO NETO, 1994, p.180)
Com a nova desilusão, Severino chega à conclusão que não importa
onde, é sempre a morte que ele encontrará em seu caminho. Seja na secura da
caatinga ou na aparente pujança da Zona da Mata, a morte está sempre presente.
Mas não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é a mais mínima.
Está apenas em que a terra
é por aqui mais macia;
está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina:
pois é igual o querosene
que em toda parte ilumina,
e quer nesta terra gorda
quer na serra, de caliça,
a vida arde sempre com
a mesma chama mortiça.
(MELO NETO, 1994, p.185-186)
Desta forma, Severino decide apressar o passo para finalmente
chegar ao Recife, seu destino final. Ao chegar na cidade ouve a conversa de dois
coveiros que estão falando sobre os retirantes que vão para o Recife em busca de
esperança e acabam também encontrando a morte. Mas nesta conversa os coveiros
apresentam também alguns elementos do modo de vida dessa população de
retirantes que vivem na cidade e, por conseqüência, da paisagem das periferias
recifenses: o mangue.
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha;
(MELO NETO, 1994, p.191)
| 90 |
Na fala dos vizinhos evidenciam-se outros elementos comuns da
paisagem do mangue em que a população vive:
a lama ficou encoberta
e o mau cheiro não voou
[...]
– E a língua seca de esponja
que tem no vento terral
veio enxugar a umidade
do encharcado lamaçal.
[...]
– E este rio de água cega,
ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu,
(MELO NETO, 1994, p.196)
Aqui o mangue é apresentado como um ambiente lúgubre, com
mau-cheiro, extremamente úmido, como um rio de águas terrosas.
Cobertos de lama e vivendo dos parcos recursos da pesca de
caranguejos, os severinos de todo o Nordeste vivem na periferia do Recife. Lacerda
de Melo, ao descrever a paisagem recifense, aponta como traço característico da
cidade o quadro de urbanização dos rios, apresentando muitas ruas e avenidas
situadas ao longo destes, com edificações de um lado e a água do outro. Para o
autor, este é o elemento mais representativo da paisagem da cidade. “Nenhum outro
elemento da paisagem urbana fala melhor do Recife do que esses rios, essas pontes
e essas ruas. [...] Uma visão panorâmica do Recife surpreende quase por da parte
a influência da água. [...]” E citando Waldemar de Oliveira, complementa: ‘o que
não é água, foi água ou lembra água, sendo essa a razão por que a chamam cidade
anfíbia.’ ” (LACERDA DE MELO, 1958, p.42)
João Cabral também ressalta a abundância hídrica da cidade
quando Severino percebe a perenidade de suas águas, em face à intermitências dos
rios do sertão:
(que o rio, aqui no Recife,
não seca, vai toda a vida).
(MELO NETO, 1994, p.193)
O mesmo rio que estava seco no sertão, em Recife
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quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
(MELO NETO, 1994, p.193)
“Morte e vida severina” é, portanto, um poema-peça-música-filme-
manifesto-folclore que representa e revela uma geografia rica para além das
paisagens e dos elementos históricos em que foram baseadas. As imagens
geográficas, como visto, são inúmeras e ricas, trazendo significados múltiplos para
a composição de outras geografias, ressaltando o alcance e a força de tais imagens e
representações.
Mas o grande elemento geográfico-telúrico presente em Morte e
vida severina” é o rio. A partir do Capibaribe e da simbologia da água, Cabral
explorou um grande número de significados que conseguem abordar o particular e
o universal. Isto permite que cheguemos ao último capítulo desta dissertação numa
grande foz para onde confluem todos os canais tributários deste trabalho: a vida e a
memória de João Cabral, como poeta-diplomata e pernambucano; o poema “Morte e
vida severina”, enquanto obra de arte, com sua polifonia e intertextualidade; o
universo geográfico de referências de João Cabral, em especial o seu espaço
telúrico; e os símbolos e as metáforas de caráter geográfico criadas e manipuladas
pelo autor em seus escritos.
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A força das imagens e dos símbolos geográficos reside em sua
natureza telúrica. Eles possuem elementos essenciais que vão além das mediações
culturais e das representações sociais nas quais estamos inseridos. Mas isto não
faz deles elementos puros, absolutos, isentos de influência. Antes, esta natureza
telúrica dá a eles uma força anterior que, em cada espaço-tempo, poderá ser
potencializada ou limitada. Assim como João Cabral recorreu à sua força simbólica
para dar materialidade a seus poemas, elas são desconsideradas em boa parte de
nossa secularizada cultura e sociedade contemporânea.
As imagens e os símbolos não têm sido devidamente contemplados
pelos geógrafos. Seja por serem considerados “pouco científicos” ou por estarem
“contaminadas” com a visão subjetiva, uma ampla resistência tem se mantido
atenta à incorporação de tais elementos no discurso científico da Geografia.
(PHILLIPS, 1993) Curioso é que nem todas as imagens são assim consideradas, pois
mapas, fotografias e gráficos são amplamente utilizados pelos geógrafos. A rejeição
se concentra nas imagens perceptivas e mentais.
É importante esta consideração pois o que entendemos por imagens
muitas vezes é limitado ao campo gráfico. No entanto, se pensarmos na família das
imagens, segundo Mitchell (apud PHILLIPS, 1993), teremos um quadro
consideravelmente mais amplo destas, notando, inclusive, que os geógrafos se
utilizam muito mais do que talvez pensem, de variadas e importantes imagens.
(Figura 03)
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Figura 03 – A família das imagens
Fonte: The family of images. (MITCHELL apud PHILLIPS, 1993, p.182)
Vemos na família das imagens desde as projeções, tão caras à
cartografia, até as descrições, presentes em todas as etapas da história da
Geografia. Phillips (1993) alerta que tanto na tradição francesa, com as noções de
meio e paisagem, quanto entre geógrafos comportamentalistas da década de 1940,
nos Estados Unidos, temos trabalhos que apontam para a importância de todas
estas imagens para a Geografia. Mapas mentais, geosofia, saber ambiental e
imagens da cidade são apenas alguns exemplos de enfoques e imagens investigadas
pelos geógrafos nas últimas décadas.
No nosso caso, uma leitura geográfica de uma obra artística, que
tem em sua base um texto-poema, junto às imagens telúricas, às lembranças do
autor e às descrições, temos como grande imagem-marca da poética cabralina a
metáfora. Imagem verbal capaz de movimentar todas as outras, a metáfora está
presente em toda obra de João Cabral, sendo especialmente notável em seus
poemas mais telúricos, como aqueles que têm no rio Capibaribe seu grande
personagem e eixo estruturador.
Metáforas são utilizadas no pensamento ocidental desde Aristóteles,
significando etimologicamente transporte”, “mudança”, “trânsito”, indicando a
transposição de um termo para um campo de significado que não lhe é próprio.
Image
likeness
resemblance
similitude
Graphic
pictures
statues
designs
Optical
mirrors
projections
Perceptual
sense data
“species”
appearances
Verbal
metaphors
descriptions
Mental
dreams
memories
ideas
fantasmata
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Ocorre, segundo Seeman (2005, p.06), “[...] uma ‘transferência de significado’ que
consiste em dar a uma coisa um nome que pertence a uma outra coisa.”
Seeman afirma que seu uso pode ser múltiplo, sendo aplicada
quando o fenômeno ou a situação não possuem um termo próprio ou para reforçar
o termo que não tem a conotação desejada. Na sua função simbólica, o autor afirma
que a metáfora é utilizada para fazer comparações palpáveis ou para provocar a
busca por perspectivas e pensamentos diferentes. Embora esteja entre as imagens
mal-vistas pela ciência, é amplamente utilizada por ela, servindo em muitos
momentos de recurso cognitivo para clarificar elementos novos ou mesmo para
potencializar o entendimento de um determinado assunto. A Geografia sempre
esteve, em sua história, ligada às imagens. (KOSEL, 2001)
A poesia de Cabral se vale muito de metáforas, em especial as
geográficas. Este uso está associado ao esforço do autor em localizar espaço-
temporalmente sua poesia, partindo do próprio espaço telúrico, em especial quando
escreve sobre o Nordeste ou a Andaluzia. Por recorrer a tais imagens, Cabral traz
para sua poesia elementos simbólicos antigos, manipulando e compondo suas
próprias imagens a partir deste material bruto, essencial, recontextualizando-o ao
seu próprio intento.
Em vista disso, sua poesia está repleta de imagens e simbolismos
geográficos, que não figuram apenas como acessórios ou decoração da narrativa
principal. Fiel a seu estilo, tudo o que está em seus versos tem uma razão de ser, e
as metáforas e imagens geográficas são parte integrante de sua poética e de seu
argumento.
Entre estas imagens de natureza telúrica figuram a água e o rio.
Água, elemento primordial da vida, busca incessante dos nordestinos retirantes.
Rio, canal que fornece a água e conduz o caminhar de Severino. Rio Capibaribe, que
em “Morte e vida severina” é o caminho, mas que de outro ponto de vista, é símbolo
maior de toda a estrutura narrativa. Na verdade, este é o fechamento de uma
espécie de trilogia de poemas, que ficou conhecida como “tríptico do rio” (BARBOSA,
1996; VERNIERI, 1999), e que tem no rio Capibaribe seu grande protagonista: “O
cão sem plumas”, de 1949-1950, “O rio”, de 1953, e “Morte e vida severina”, de
1954-1955.
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Se vamos estudar a relação entre rio e homem em “Morte e vida
severina” não podemos deixar de lado os elementos e imagens que aparecem nos
dois primeiros poemas sobre o rio e que foram retomados em seu fechamento. Em
“Morte e vida severina” temos os mesmos elementos dos dois primeiros poemas,
mas de forma implícita, incorporados à poética e à narrativa. Por isso é
importante recorrer aos apontamentos de “O o sem plumas” e “O rio”, onde
muitos dos elementos característicos do tríptico, como um todo, estão mais
evidentes.
“O cão sem plumas” foi escrito em 1950, quando o poeta estava
servindo em Barcelona. O poema apresenta uma descrição da paisagem do rio de
acordo com a percepção do autor. O Capibaribe é como um cão sem plumas, ou
seja, sem adornos. A idéia para o poema veio quando Cabral leu em uma matéria
publicada em O Observador Econômico e Financeiro que dizia que a expectativa de
vida no Recife era de 28 anos, enquanto na Índia era de 29. Essa notícia foi para ele
totalmente inesperada. “As senhoras da sociedade pernambucana faziam crochê
para doar aos mortos de fome da Índia, sem olhar para o quintal delas.” (MELO
NETO apud BARBOSA, 2007) Diante do choque de tal informação Cabral
compreendeu “[...] que aquilo era um beco sem saída, que poderia passar o resto da
vida fazendo esses poeminhas amáveis, requintados, dirigidos especialmente a
certas almas sutis. Foi daí que resolvi dar meia-volta e enfrentar esse monstro: o
assunto, o tema.” (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.104)
“O rio” foi escrito durante seu afastamento da carreira diplomática,
enquanto estava no Rio de Janeiro. Cabral o escreveu propositadamente de maneira
rude, tosca, com assuntos nada poéticos, apresentando um rio falante, contando
sua história e descrevendo a paisagem por onde flui desde a nascente até a foz.
Deseja escrever um poema não poético, isto é, que rompa em
definitivo com os temas e a dicção da tradição poética brasileira. A
fala de um rio não pode ser simbolista, nem parnasiana. Tratando-se
de um rio nordestino, não pode também ser úmida. Deve ser seca
como a região que o abriga. (CASTELLO, 2006, p.119)
É um de seus poemas mais geográficos, escrito com o auxílio,
inclusive, de mapas da região por onde passa o Capibaribe. “[...] Não sabia os
afluentes do Capibaribe todos de cor. Então, tive que ir à biblioteca consultar os
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mapas geográficos. Foi o poema que me deu mais prazer, por poder voltar àquelas
coisas todas da minha infância.” (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.105)
Em “O rio”, as paisagens pernambucanas desfilam pelo poema
como em uma aula de Geografia: o Sertão, os afluentes, os canaviais, a Zona da
Mata, o Recife...
O poeta-viajante parece chegar a seu máximo: O Rio, mais que um
poema, é a carta de um navegante. O roteiro de uma fuga. O poema é
didático: nome aos lugares, relata sua história, descreve os
contornos da paisagem. (CASTELLO, 2006, p.119)
O próprio Cabral chamava “O rio” de poema geográfico, enfatizando,
assim como em “O cão sem plumas”, a paisagem e todo o trajeto do rio Capibaribe
rumo à sua foz, com a diferença de que agora é a natureza que doma o homem,
fazendo de “O rio” um “cão sem plumas” às avessas. (CASTELLO, 2006)
em “Morte e vida severina vemos a paisagem menos explícita,
pois a relação e o papel do rio na narrativa é diferente. Mas é igualmente um fazer
poético a partir da espacialidade e da paisagem, profundamente amarrados à trama
sociocultural. A própria cumplicidade que ele estabelece entre o caminho de
Severino e o caminho do Capibaribe coloca, por si mesma, uma geografia
essencial explicitada na trama do poema: o andar humano-natural é um só:
caminhar para Recife e para o mar.
A escolha de Recife como destino, não foi aleatória. “O Recife é o
depósito de miséria de todo o Nordeste. O paraibano não emigra para João Pessoa,
mas para o Recife; o alagoano emigra para o Recife; o rio-grandense-do-norte
emigra para o Recife. Todos esperam melhorar de vida e só encontram coisas
desagradáveis.” (MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.109)
E é justamente esta cumplicidade e entrelaçamento, presente em
todo o tríptico do rio, mas levado às suas últimas conseqüências em “Morte e vida
severina”, que exploraremos neste capítulo. Partiremos das possibilidades
simbólicas e poéticas das imagens geográficas da água e do rio, centrais nos
poemas, para discutir a ligação homem-meio estabelecida pelo autor e suas
repercussões em termos da construção de outras geografias e metáforas
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geográficas, assim com propõe Oliveira Jr. (2002, p.292): “Tudo que é material se
desmaterializa, se assim o quisermos. O rio pode ser estrada, a guerra pode ser
angústia, a floresta pode ser treva [...] e podem ser também, e ao mesmo tempo, tão
somente um rio, uma guerra, uma floresta [...].”
Rio e Água, Caminho e Percurso: Imagens Geográficas
Os acontecimentos de água
põem-se a se repetir
na memória.
“O poema e a água”
João Cabral de Melo Neto
Em sua tese de doutorado sobre a poética do rio Araguaia, Lúcia
Helena B. Gratão, afirma que a imagem pode ser entendida como um suporte ao
pensamento, tornando possível uma evocação interior a partir de mecanismos
perceptivos que, nesta interiorização, produzem e atribuem significados. Estes,
afirma a autora, sofrem influência da cultura, da vivência e dos elementos da
natureza, tornando-se fundamentais na orientação e tomadas de atitudes das
pessoas. (GRATÃO, 2002)
A autora toma o rio a partir de diferentes imagens, sejam aquelas
produzidas pela fala dos personagens do rio (ribeirinhos, indígenas, pescadores,
turistas), sejam aquelas cantadas em versos da música e declamadas nas lendas. O
rio é entendido em sua dimensão topofílica, enquanto fonte de vida, canal de
confluências e encontros. Seu caminho é o caminho de doação: da vida, de sentido,
de lar, de lugar. É uma paisagem vivida que acompanha ou conduz, levando o
caminhante a encontros, conversas e a uma verdadeira viagem interior.
O rio é entendido assim numa dupla metáfora geográfica: caminho e
lugar. Caminho pela condução e lugar pelos elos que estabelece e deixa estabelecer
consigo. Ele é pausa e movimento ao mesmo tempo, impelindo à viagem e
convidando ao aconchego. É fonte de vida, de lazer, de suor, de prazer e de sofrer.
As águas doces do rio trazem e levam, permitindo assim a fluência de imagens e
imaginações, fertilizando as terras e mentes por onde passa.
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Heráclito dizia que “é impossível banhar-se duas vezes no mesmo
rio”, utilizando-se da fluidez da água para referir-se à transitoriedade da própria
vida, que está sempre em movimento, sempre em mutação. Susana Vernieri afirma
que o rio é símbolo do encontro e da separação, caminho para o encontro máximo,
o mar, para onde tudo se encaminha. “Símbolo da fluidez ininterrupta do tempo
que carrega o homem em direção ao mistério final da morte.” (VERNIERI, 1999,
p.38)
Na literatura as águas receberam inúmeras leituras e
interpretações diferentes.
Ao longo dos tempos, elas foram lidas como caminhos que correm em
direção ao encontro de todas as águas: o mar, como obstáculos a
serem transpostos para se alcançar a outra margem; como símbolos
de fertilidade, de renovação, de morte; como espaços propícios para
abrigar em suas margens a fundação de uma cultura ou, até mesmo,
de um indivíduo. (VERNIERI, 1999, p.38)
Desde a Antiguidade os rios têm seu fluxo comparado à circulação
do sangue pelo corpo, daí serem chamados de bodies of water (corpos d’água). De
acordo com Schama (1996), Platão entendia que a forma mais perfeita era o círculo
e tanto a natureza como o nosso corpo foram construídos seguindo a lei universal
da circulação, expressa no ciclo hidrológico.
Por outro lado, Barlow (apud SCHAMA, 1996, p.253) sabia que um
rio envolve uma grande corrente de mitos e lembranças, “forte o bastante para nos
levar ao primeiro elemento aquático de nossa existência intra-uterina.” Muitas das
paixões sociais e animais mais intensas nasceram justamente desta torrente,
promovendo transmutações do sangue e da água, revelando a “vitalidade e a
mortalidade de heróis, impérios, nações e deuses.” A água é esta seiva da vida que
fez florescer e morrer homens, cidades e paisagens.
A vitalidade no vale do Nilo, por exemplo, tem sua origem mítica
ligada ao deus egípcio Osíris, que após ser assassinado por seu irmão Set, teve o
corpo desmembrado em vários pedaços, sendo que sua genitália foi lançada ao rio.
Esta transferiu ao Nilo “[...] um poder fecundante, que, desde então, se tornou a
fonte da vida e da vegetação de todo o Egito.” (BARLOW apud SCHAMA, 1996,
p.258)
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Na mitologia de vários povos, tanto a morte como a ressurreição
estavam ligadas, simbolicamente, ao calendário da natureza. No Egito, aponta
Schama (1996), havia a crença de que a fertilidade do Nilo podia curar mulheres
estéreis.
Se, entretanto, o mundo era um organismo tão perfeitamente
harmonioso e capaz de auto-reabastecer-se, a inteligibilidade de seu
funcionamento não era nada simples. E em nenhum outro lugar as
molas de seu mecanismo eram mais misteriosas que no Nilo. Desde
Heródoto, no século V a.C., os geógrafos pasmavam diante de duas
características marcantes no grande rio. [...] Os gregos achavam
estranho que o Nilo corresse de uma zona mais tórrida para uma
menos tórrida, ao invés de seguir a regra universal de originar-se
numa área montanhosa e mais fria e terminar numa planície ou
delta quente. E segundo (outra coisa esquisita), sua inundação
sazonal contrariava as expectativas convencionais, atingindo o auge
no calor escaldante, quando todos os outros rios conhecidos estavam
em seu ponto mais baixo. Plutarco sabia muito bem que os mitos
não explicavam essas maravilhas naturais nem eram explicados por
elas. Antes, constituíam as formas poéticas por meio das quais se
simbolizavam intrincadamente tais mistérios. Para ele, isso era
quase tão interessante quanto a topografia em si. (SCHAMA, 1996,
p.262)
Citando Plutarco, Schama aponta que nesse esquema metafórico,
Osíris atua como a personificação da fecundidade, “a fonte total e a faculdade
criadora das águas”, enquanto o Nilo representa a efusão de Osíris”. Por outro
lado, Set/Tifão é sua antítese, a personificação da aridez e da fome. “Assim, o
encerramento do semideus em seu esquife ‘significa, nada menos, que o
desaparecimento da água’.” Os elementos reagem à morte do herói, como no baixar
das águas. A primavera é a reconstituição osírica, vencendo seu inimigo e impondo
as águas doces do rio ao mar, permitindo que floresça a vida em todo o vale. “Morte
e sacrifício são, portanto, as precondições do renascimento. O sangue
miraculosamente se transubstancia em água.” Assim, a “fertilidade constitui a
recompensa do martírio.” (SCHAMA, 1996, p.262-263)
São muitos os exemplos das imagens do rio, que junto do caminho e
percurso, possuem a fluidez e o sentido de morte e vida muito presente. A água
tanto representa a vida, seu fluxo e conexão entre os seres, quanto sua morte, para
onde tudo conflui, apodrece e volta a se misturar. Este ciclo de morte e vida é o
mesmo ciclo osírico do Nilo, assim como o é o próprio ciclo hidrológico e a ligação
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indissociável estabelecida no Capibaribe entre homem e rio, conforme veremos à
frente.
Na fenomenologia da imaginação de Bachelard (1997), vemos que
várias águas que emanam da imaginação da matéria hídrica: águas claras e
primaveris, águas amorosas, águas profundas e mortas, águas compostas, água
maternal e feminina, água de purificação, água doce e água violenta. Thiago Melo e
Garcia Lorca são poetas de águas doces, águas claras. (RAMOS, 1999) João
Cabral é poeta de águas profundas, águas mortas. Água que purifica pela morte,
não pela vida.
Resgatando o mito de Narciso, Bachelard afirma que o rio é um
espelho, refletindo aquilo que somos e a paisagem por onde passa. Assim é o
Capibaribe de João Cabral: ele reflete a condição severina da população que com ele
caminha e que habita suas margens. Mesmo um rio de águas escuras e pesadas é
um reflexo da realidade pela qual ele passa. As águas do Capibaribe são como tudo
aquilo que está às suas margens. Assim, se as águas claras de Narciso refletem sua
beleza, as águas escuras do Capibaribe refletem a dura vida (ou “morte em vida”,
nas palavras de Severino) do retirante que se mira nele.
Esta dimensão simbólica e metafórica do rio é uma de suas grandes
forças, chamando a atenção de muitos estudiosos, que realizaram trabalhos sobre
vários rios brasileiros. Entre os trabalhos de geógrafos, podemos destacar a tese de
Lineu Bley sobre o Nhundiaquara, no estudo de paisagem valorizada em Morretes
(BLEY, 1990); a pesquisa de Amélia R. B. Nogueira sobre a geograficidade nos
mapas mentais dos comandantes de embarcações no Amazonas (NOGUEIRA,
2001); a geopoética do rio Araguaia, à luz da imaginação na tese de Lúcia Helena B.
Gratão (GRATÃO, 2002); e o Jacaré-Pepira na transformação da paisagem
provocada pelo turismo, em Brotas, investigado por Renata Barrocas (BARROCAS,
2005), para citar apenas alguns.
Estes trabalhos, assim como outros realizados por não geógrafos,
mas que dialogam de forma muito próxima com a ciência geográfica, como o de
Lineu Castelo sobre o Guaíba (CASTELO, 1996), traçam um mosaico de imagens de
múltiplas faces, destacando as possibilidades imagéticas e simbólicas da água e do
rio em sua dinâmica geográfica e cultural própria.
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Segundo Gratão (2007, p.54), a água tem três grandes sentidos
simbólicos: fonte de vida, meio para purificação e centro de regenerescência,
dotando-a de um sentido sacro. Estes estão ligados à sua função de seiva da vida,
elemento que liga os seres e os elementos. A água é, portanto, muito mais que um
símbolo ou elemento químico. Ela se integra à própria essência da existência
humana. Segundo a autora, ela oferece ao homem o mais profundo sentimento de
plenitude [...] a água simboliza pureza, fertilidade e vida especialmente quando, em
estado de natureza encontra-se pura, limpa e transparente.”
Mas a água é símbolo da vida não apenas pela sua função orgânica,
mas também pelo seu papel central em todo o desenvolvimento humano e
civilizatório. A história das culturas está atrelada à água e aos rios. As grandes
civilizações do passado floresceram (e caíram) à margem de seus grandes rios.
O rio, portanto, canal que leva e traz a água, é o santuário por
excelência deste bem simbólico do homem. Mas não de vida os rios e a água se
fazem. A poesia de João Cabral, em específico “Morte e vida severina”, nos traz o
reverso destas imagens ligadas à água e ao rio: a morte. Assim, o que vemos em
João Cabral é, nas palavras de Vernieri (1999, p.13), o suicídio dos rios. “A seca é
recarregada de sentido ao ser equiparada a uma tentativa de fuga da vida rarefeita,
constituída tão somente de poças.” Embora exista uma autonomia dos rios, tendo
uma condução própria do curso de suas águas, esta é incerta, fugidia. No sertão
seco, até os rios e a água falham no suprimento e manutenção da vida.
O Capibaribe é tanto o rio do sertão, fraco e intermitente, mas que
ainda sustenta alguma vida, quanto o rio do mangue, aquele que é espesso e que
recolhe toda a sujeira em suas densas e profundas águas: devora a vida
convertendo-a em morte. No sertão, a morte é ainda mais forte, onde nem mesmo
os rios conseguem seguir regularmente seu curso, faltando-lhes o sangue nas veias.
Tal como no deserto, cuja imagem é sempre ligada ao abandono, à indiferença e à
morte (UNGER, 2001), o sertão está marcado por esta insígnia. No entanto, como
veremos, é justamente destas águas espessas que novamente brotará a vida, num
ciclo que une homem e rio na sina severina.
E assim como em João Cabral o rio é morte e vida, de forma
ambígua, ele mantêm esta relação dúbia quanto à sua natureza, enquanto
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metáfora: é tanto um rio em particular, o Capibaribe, quanto o rio em geral,
enquanto símbolo; é tanto Severino, aquele que se pôs a emigrar diante do leitor,
quanto todos os retirantes, severinos. Sobre estas tensões e duplicidades, a mais
significativa e forte, do ponto de vista geográfico, é aquela que ele estabelece entre o
rio e o homem: Capibaribe/Severino, rio/homem. Nesta relação o maior número
de imagens geográficas, enriquecendo assim a leitura e a densidade de “Morte e
vida severina” e da geopoética cabralina.
Rio-Humanizado, Homem-Naturalizado
Pára a chuva com a saída do sol e, à luz do dia, surge
nítida esta estranha paisagem do charco, mistura incerta
de terra e de água, povoada de estranhos seres anfíbios –
os homens e os caranguejos que habitam os
mangues do rio Capibaribe.
Josué de Castro
O anfíbio é o híbrido por natureza. Simboliza a comunhão terra-
água, a convivência e a simbiose de dois ambientes diferentes, encarnados em um
único corpo, formando um novo ambiente: o mangue. Este tem uma paisagem
própria, também anfíbia, assim como são anfíbios também seus moradores. Esta
relação dos que vivem o rio ou que habitam as suas margens é de cumplicidade e
de envolvimento onde impera o sentido anfíbio da mistura: as pessoas convertem-se
em rio e o rio converte-se em pessoa.
Gratão (2002) explora este sentido hibridizante da relação das
pessoas com o rio, levantando a natureza particular das imagens e do elo afetivo
que são possíveis de se estabelecer com o rio. Este, portanto, representa “[...] canal
fluente na formação da experiência, através da interiorização das informações e da
participação do sujeito no meio exterior, mediante experiências que podem ser
diretamente sobre os objetos [...].” (GRATÃO, 2002, p.47) Estas se realizam nas
tarefas diárias que envolvem homem-rio, conduzindo experiências que entrelaçam
um forte elo entre eles.
Esta relação é, segundo Gratão, fluida: conduz entre os elos deste
envolvimento, partilhando homem e rio do mesmo ritmo, mesma direção, numa
fluidez que conduz à paisagem vivida e aos significados telúricos do homem-no-
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mundo. Este envolvimento é denominado pela autora de topofilia hídrica: hidrofilia.
Esta seria a expressão da geograficidade estabelecida no envolvimento homem-rio,
enquanto uma geograficidade hídrica, que conduz e que produz a confluência no
encontro e no caminhar conjunto.
Este envolvimento primário homem-rio é um dos eixos principais do
tríptico do rio de Cabral. Como vimos, este isomorfismo é recorrente na poesia
cabralina, que utiliza tais metáforas também quando fala do sertão ou da cidade,
como quando faz “[...] uma identificação total entre Severino e o local em que vivia,
a serra da ‘Costela’, magra e ossuda como o sertanejo esfomeado.” (BARBOSA,
2007) Mas este isomorfismo é mais significativo no que se refere ao rio, imagem
maior destes poemas. Em “Morte e vida severina”
a linguagem, catalisadora de metamorfoses, transmuta Rio em
Homem e Homem em Rio, tornando esses elementos temáticos, em
seu relacionamento recíproco, imagens poéticas confluentes. [...]
sistema de equivalências, em que o rio humanizado e o homem
fluvializado confundem suas naturezas, em face de um estado de
precariedade por ambos compartilhado. (PINTO, 2003, p.124)
Este recurso transfere as qualidades e mazelas de um para o outro,
aprofundando a teia de significados destas imagens geográficas, que se tornam
humano-naturais. Este é um procedimento componente da própria poética
cabralina, conforme assinalado. Em Morte e vida severina”, Pinto (2003, p.124)
afirma que Severino e o Capibaribe se definem por sua natureza desvalida: “ambos
estão sujeitos a um destino de penúria, motivado pela seca. É a marca da carência
que os aproxima e une numa poética de travessia.” Um é o eco do outro, tornando-
se difícil realizar sua distinção.
Sente-se que o rio se identifica com o viver nordestino, ou mesmo
que o rio e a vida são a mesma coisa. Tem-se, no caso, a
configuração do elemento fluvial como extensão do humano (e vice-
versa). A relação isomórfica entre rio e homem torna-se, na poética
de JCMN, metáfora de realidades amplas e, ao mesmo tempo,
projeção simbólica de procedimentos de uma cultura regional que se
movimenta à beira do precário e da sobrevivência. (PINTO, 2003,
p.124)
Mas que rio é este, o Capibaribe?
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Em primeiro lugar, é um rio severino, que em suas águas
intermitentes, luta para chegar ao oceano, buscando sobreviver. Suas origens são
incertas, fracas e superficiais, confundindo-se com outros rios que pelo caminho
vão passando pelas paisagens de Pernambuco. Um rio sertanejo que ganha novo
fôlego ao passar pela irrigada zona da mata, mas que encontra seu destino nas
poluídas terras baixas do Recife.
É no primeiro poema do tríptico do rio onde aparecem mais
elementos metafóricos que nos permitem identificar a imagem projetada pelos
versos. Em João Cabral, o rio é definido, sobretudo, por aquilo que não tem, por
sua ausência. Como um cão sem plumas, ele não tem adornos. É um rio que não
sabe da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, um rio que não se abre em peixes. É
também um rio espesso:
§ Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.
(MELO NETO, 1994, p.115)
4
O rio flui entre a paisagem. Porém, o rio é espesso, pois carrega os
dejetos da cidade. E não apenas por esgotos e sujeiras de todo tipo, mas a própria
fome o faz um rio espesso, a paisagem do rio em Recife é toda espessa. Bachelard
aponta que há, nestes casos, uma inversão “[...] que atribui ação humana ao
elemento material. A água não é uma substância que se bebe; é uma substância
que bebe; ela engole a sombra como um xarope negro.” (BACHELARD, 1997, p.57)
Escuro, o Capibaribe suga toda luz a seu redor, carregando não os detritos, mas
toda a história dos lugares e pessoas. O seu fluir, portanto, não é exatamente um
fluir, pois a densidade das águas tornam o fluxo do rio vagaroso e enlameado. “É
4
Ao lado do primeiro verso de cada estrofe de “O cão sem plumas” aparece o símbolo de parágrafo (§).
A razão deste uso não foi explicada por João Cabral, entretanto Vernieri (1999) arrisca que esta marca
tipográfica é uma forma de deixar o texto truncado, uma pedra no caminho do leitor. “Eu procuro uma
linguagem em que o leitor tropece, não uma linguagem em que ele deslize”. Se o poeta é o pedreiro que
ajusta as pedras, João Cabral procura “fazer uma poesia que não seja asfaltada, que seja um
calçamento de pedras, em que o leitor tropeçando e não durma, nem seja embalado.” (MELO NETO
apud VERNIERI, 1999, p.89)
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desse fluir/não-fluente que brotará o homem lama, membro integrante da paisagem
como se fosse mais um elemento que compõe o cenário em descrição.” (VERNIERI,
1999, p.106)
§ Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
(MELO NETO, 1994, p.108)
O rio é espesso também pela lama, por seu ventre “grávido de terra
negra” (MELO NETO, 1994, p.106), onde não se distingue o que é rio, lama,
homem, anfíbio...
§ Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
(MELO NETO, 1994, p.110)
Esta espessura também se em virtude da densidade histórica
associada aos rios, oriunda da relação íntima que os povos das mais diferentes
épocas desenvolveram com seus rios. Macaulay, membro do parlamento britânico e
historiador da evolução constitucional, notava, em meados do século XIX, a
ligação e a importância dos rios e suas civilizações. Freqüentemente utilizava
metáforas fluviais, afirmando certa vez que o Tamisa expressava uma feliz aliança
entre fartura, liberdade e moderação, tal como os ingleses de sua época. Sobre o
Ródano e sobre o amor e veneração que os rios despertam sobre quem vive às suas
margens, declarou:
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Os rios possuem, em maior grau que praticamente todo outro objeto
inanimado, a aparência de animação, algo que se assemelha a
caráter. Às vezes são lentos e escuros; outras violentos e impetuosos;
outras, ainda, radiosos, saltitantes e quase irreverentes. (MACAULAY
apud SCHAMA 1996, p.357)
Os rios demonstram caráter e o Capibaribe não foge a isso,
enquadrando-se no primeiro tipo de rio apontado por Macaulay:
Rio lento de várzea,
vou agora ainda mais lento,
que agora minhas águas
de tanta lama me pesam.
Vou agora tão lento,
porque é pesado o que carrego:
vou carregado de ilhas
recolhidas enquanto desço;
de ilhas de terra preta,
imagem do homem aqui de perto
e do homem que encontrei
no meu comprido trajeto
(também a dor desse homem
me impõe essa passada de doença,
arrastada, de lama,
e assim cuidadosa e atenta).
(MELO NETO, 1994, p.139)
O Capibaribe é lento, pesado e escuro, não somente pela lama que
carrega, mas também pela dor do homem que com ele caminha ou habita suas
margens. O caráter do rio é determinado também pelo caráter do homem.
Este hibridismo homem-rio emerge da própria paisagem do Recife,
do papel do rio no cotidiano do pernambucano e mais especificamente do recifense.
Até o final do século XIX e começo do XX, o Capibaribe representava uma das
paisagens mais valorizadas da cidade. Para ele se voltavam as frentes dos casarões
e não os quintais. Por ali trafegavam os barcos dos senhores de engenho e por ali
entrava-se nas mansões da cidade. Gilberto Freyre registra que era no rio que
ocorria o lazer, não no mar. Neste ficavam os dejetos e os urubus. No rio, ao
contrário, ficavam as mulheres e crianças, deleitando-se de uma das poucas fontes
de lazer dos sobrados. (FREYRE, 2006) Mello e Pereira (1990, p.22) apontam que as
mulheres freqüentavam mais as águas do rio do que as ruas da cidade, pois se a
sociedade conservadora de então não as permitia saírem sozinhas às ruas, elas
passavam os dias aproveitando as águas do Capibaribe. “Enquanto os donos da
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casa tocavam os negócios para frente, as mulheres, os filhos e a criadagem gozavam
um ócio preguiçoso nas águas, puras ainda, do Capibaribe.” O rio esteve por muito
tempo no imaginário da população recifense como mbolo de fartura, de lazer, de
beleza. Entretanto, com o passar do tempo, vieram os esgotos, as favelas, a
degradação.
Gilberto Freyre aponta que esta degradação teve início quando as
usinas passaram a usá-lo como depósito de todos os seus resíduos. “O monocultor
rico do Nordeste fez da água dos rios um mictório. Um mictório das caldas
fedorentas de suas usinas. E as caldas fedorentas matam os peixes. Envenenam as
pescadas. Emporcalham as margens.” (FREYRE apud VERNIERI, 1999, p.104) O
resultado disso foi que o rio foi desvalorizado e perdeu completamente seu glamour
de outrora.
Quase não um rio do Nordeste do canavial que alguma usina de
ricaço não tenha degradado em mictório. As casas já não dão a frente
para a água dos rios: dão-lhe as costas com nojo. Dão-lhe o traseiro
com desdém. As moças e os meninos não tomam banho de rio:
banho de mar. os moleques e os cavalos se lavam hoje na água
suja dos rios. (FREYRE apud VERNIERI, 1999, p.104)
Bachelard (1997) mostra que a tendência de toda água clara é
tornar-se escura, como aconteceu com o Capibaribe: de rio mpido e sinônimo de
status e beleza, o rio converteu-se em mictório de usina, uma água que morreu.
Nunca a água pesada se torna uma água leve, nunca uma água
escura se faz clara. É sempre o inverso. O conto da água é o conto
humano de uma água que morre. O devaneio começa por vezes
diante da água límpida, toda em reflexos imensos, fazendo ouvir uma
música cristalina. Ele acaba no âmago de uma água triste e sombria,
no âmago de uma água que transmite estranhos e fúnebres
murmúrios. (BACHELARD, 1997, p.49)
Mas a ligação do recifense permaneceu com o Capibaribe. É o
devaneio que começou com as águas claras e que não acabou mesmo com a
degradação do rio. Rio e homem se aproximam novamente: na condição degradada,
às voltas com a morte e nas suas sendas caminhando.
Esta degradação atinge sua manifestação máxima nos mangues
recifenses, o depositário de toda a pobreza do Nordeste. Este se forma às margens
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do Capibaribe, o canal para onde tudo conflui. Saindo do sertão, onde suas águas
intermitentes começam a correr, ele atravessa as paisagens trazendo para a cidade
os detritos, a lama, as pessoas e suas esperanças. Este é o material que forma o
mangue, onde a água do Capibaribe é mais espessa e sua natureza híbrida se
manifesta nos mocambos e seus habitantes anfíbios: homens e caranguejos. “Tudo
é, foi, ou está para ser, caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A
lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz. Quando
ainda não é caranguejo, vai ser.” (CASTRO, 2005, p.26)
Gilberto Freyre chama a atenção para a dualidade que se estabelece
entre sobrados e mucambos. O primeiro, a residência seca à beira do rio enquanto
lhe convém, “abriga” seus nobres moradores, enquanto o mocambo “esconde”
aqueles que têm seu destino ligado ao mangue, marcando uma profunda diferença
de apropriação do espaço. (MONTEIRO, 1996) O sociólogo coloca, assim, esta
desigualdade impressa nas formas de habitação e de ocupação do espaço:
O problema não é o ecológico, de distribuição humana desigual, o
rico se estendendo pelo seco, o pobre se ensardinhando na lama. As
populações miseráveis em luta com a lama muitas vezes acabam
saneando o chão. Mas o chão enxuto e saneado é espaço
aristocratizado: o mucambeiro é enxotado dele; e vêm os ricos que
levantam casas de pedra e cal. Os mucambos vão aparecer adiante,
noutros trechos de lama, dentro doutros mangues. (FREYRE, 2006,
p.349)
O mocambo é o espaço da indissociabilidade anfíbia entre homens e
caranguejos, desta população severina do Recife. Esta co-existência anfíbia é outra
imagem forte do isomorfismo homem-meio na poesia cabralina, tendo sido utilizada
como eixo do romance do médico e geógrafo Josué de Castro, Homens e
Caranguejos, de 1966. Escrito a partir de sua própria vivência no mangue, Castro
admite ter sido fortemente influenciado pelas imagens dos poemas de João Cabral
na composição de seu romance. (CASTRO, 2005)
Ele, assim como Cabral, teve sua infância muito ligada ao
Capibaribe, aprendendo com o rio a compreender a paisagem e a história do
Nordeste.
Foi o rio meu primeiro professor de História do Nordeste, da História
desta terra quase sem história. A verdade é que a história dos
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homens do Nordeste me entrou muito mais pelos olhos do que pelos
ouvidos. Entrou-me por dentro dos olhos ávidos de criança sob a
forma destas imagens que estavam longe de serem sempre claras e
rizonhas. (CASTRO, 2005, p.16)
Estas imagens eram anfíbias, híbridas, da irmandade de homens e
caranguejos estabelecida nos restos da cidade e do Nordeste, indissoluvelmente
ligados na lama e nas águas do mangue.
Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife,
fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de
carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos. Seres
anfíbios – habitantes da terra e da água meio homens e meio
bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite
de lama. Seres humanos que se faziam irmão de leite dos
caranguejos. Que aprendiam e a andar com os caranguejos da lama
e que depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se
terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se
terem impregnado do seu cheiro da terra podre e de maresia, nunca
mais se podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tão
parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras
carapaças também enlambuzados de lama. (CASTRO, 2005, p.10)
Vemos no relato de Castro várias das imagens que Cabral traz em
“Morte e vida severina” e que se tornaram emblemáticas da condição severina dos
habitantes dos mangues do Recife. Quando nasce o filho de Mestre Carpina, os
primeiros presentes são caranguejos, pois
mamando leite de lama
conservará nosso sangue
(MELO NETO, 1994, p.196)
e o leite materno de uma das vizinhas, também de caranguejo, pois
aqui são todos irmãos,
de leite, de lama, de ar.
(MELO NETO, 1994, p.197)
Na previsão do futuro do menino, a primeira cigana não vê saída
para o ciclo homem-caranguejo, prevendo sua manutenção:
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– Atenção peço, senhores,
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito,
lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, como goiamuns,
e a correr o ensinarão
os anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar:
primeiro, com as galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida;
depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.
Vejo-o, uns anos mais tarde,
na ilha do Maruim,
vestido negro de lama,
voltar de pescar siris;
e vejo-o, ainda maior,
pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão.
(MELO NETO, 1994, p.198)
Assim, é próprio da condição severina que o destino dos nascidos
no mangue seja integrar-se ao ciclo de morte e vida anfíbia, que se perpetua na
morte a partir da vida e da vida a partir da morte. Um elo estabelecido entre
homens e caranguejos, conforme mostra Castro (2005, p.26-27):
O caranguejo nasce nela, vive dela, cresce comendo lama,
engordando com as porcarias dela, fabricando com a lama a
carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas
vísceras pegajosas.
Por outro lado, o povo vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas,
comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo
e com sua carne feita de lama fazer a carne de seu corpo e a do corpo
de seus filhos.
São duzentos mil indivíduos, duzentos mil cidadãos feitos de carne
de caranguejo. O que o organismo rejeita volta como detrito para a
lama do mangue para virar caranguejo outra vez.
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A cumplicidade do ciclo morte-e-vida é expressa no destino do
caminho severino: a vida anfíbia dos caranguejos nos mangues do Recife. Estas
imagens, revelam o sentido do rio na essência da vida nordestina e seu papel no
quadro recifense.
O caminho do rio severino
Um tísico à míngua espera a tarde inteira
Pela assistência que não vem
Mas vem de tudo n’água suja, escura e espessa deste
Rio severino, morte e vida vêm
[...]
O rio é um rosário cujas contas são cidades
À espera de um deus que dê
“O rio severino”
Herbert Vianna
João Alexandre Barbosa afirma que “O cão sem plumas” é uma
forma de olhar o regional, figurado no Capibaribe, vinculando a paisagem do
mínimo, ao mínimo da existência que habita as paisagens ribeirinhas. As duas
primeiras partes do poema “trata-se, por um lado, de indicar o modo pelo qual o rio,
antropomorfizado, sabe ou não sabe daquilo por onde passa e, por outro, de
estabelecer a relação entre o que foi definido como sem plumas (leia-se: sem
adornos) e o próprio homem que habita as suas margens.” (BARBOSA, 1996, p.74)
O crítico afirma que o tríptico do rio é o momento em que estas
características são melhor exploradas. Uma espécie de educação regional é levada à
cabo, num processo de incorporação dos elementos e valores regionais, como a sua
geografia, construindo um discurso poético livre de adornos, colado a seu objeto.
“João Cabral aprendeu que a pior alienação do escritor é aquela que, buscando
acusar uma condição miserável, não sabe fazer da linguagem um recurso mínimo
de nomeação, sem as plumas inadequadas da escrita autosuficiente.” (BARBOSA,
1996, p.76)
Nos três poemas encontramos tanto a antropomorfização do rio,
quanto a naturalização do homem. Entretanto, no primeiro o que está mais latente
é o olhar do homem sobre o rio e, no segundo, é o rio enquanto ser animado,
falante e caminhante, ciente e observador de seu caminho. em “Morte e vida
severina” é o homem que está em foco, pondo-se em marcha. O homem em sua
| 113 |
condição natural, seguindo o caminho do rio. Porém, mais do que complementos
um do outro, em “Morte e vida severinahomem e rio são um só, numa fusão dos
dois percursos: um ligado ao outro, por um caminho de seca e de morte em busca
da vida.
Embora em “Morte e vida severina” a voz narrativa esteja em
Severino, seu caminho é ditado e conduzido pelo rio, o que o torna um personagem
implícito mas central. Quando na caatinga o Capibaribe interrompe seu caminho,
Severino se questiona se não deveria fazer o mesmo.
Penso agora: mas por que
parar aqui eu não podia
e como o Capibaribe
interromper minha linha?
(MELO NETO, 1994, p.178)
A motivação não parte das condições que observa ou de algo
promissor na paisagem. Ela está amarrada ao caminho do rio, seu próprio caminho.
No sertão, por exemplo, o retirante teme se extraviar, pois o seu guia, “cortou com o
verão.” (MELO NETO, 1994, p.175)
A ladainha que decorou antes de sair de casa é o rosário de cidades
que pontuam o rio em seu caminho. Ladainha que permitiria que, quando o rio
falhasse, ele não se perdesse. Como metáfora blica, o rosário de cidades é a
confiança religiosa, a proteção que vai além das próprias forças de
Severino/Capibaribe, pois falhando o rio é o próprio Severino quem está
fraquejando. E no momento de revelação, Severino percebe que, assim como ele, o
rio é falho e pobre, tanto quanto os outros rios do sertão ou todos os severinos. O
Capibaribe não passa, portanto, de um rio severino.
No entanto, quando percebe que ali não esperança, entende que
na verdade o que ocorreu com o rio não foi a parada, por escolha, mas o sofrimento
pelos efeitos da morte e seca rondando de perto. Achando novamente o curso do rio,
trata de segui-lo novamente, continuando a descida.
Na zona da mata, acompanhando o Capibaribe, Severino reflete.
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Agora é que compreendo
por que em paragens tão ricas
o rio não corta em poços
como ele faz na Caatinga:
vive a fugir dos remansos
a que a paisagem o convida,
com medo de se deter,
grande que seja a fadiga.
(MELO NETO, 1994, p.187)
Severino relaciona a pressa do rio em sair dali, mesmo com fartura
de água, fertilidade do solo e abundância da vegetação, com o cenário de morte que
ele encontrou. Como visto, mesmo numa situação ambiental favorável, os engenhos
e os latifúndios haviam retirado toda a possibilidade de vida na região. Assim como
Severino, o Capibaribe também queria continuar o caminho, rumo ao mar.
Sim, o melhor é apressar
o fim desta ladainha,
o fim do rosário de nomes
que a linha do rio enfia;
é chegar logo ao Recife,
derradeira ave-maria
do rosário, derradeira
invocação da ladainha,
Recife, onde o rio some
e esta minha viagem se fina.
(MELO NETO, 1994, p.186-187)
A derradeira ave-maria é onde está a última esperança, a
expectativa da salvação. E pode ser pela água que este caminho de descida se
envereda, água dos rios da vida:
Os rios que correm aqui
têm água vitalícia
(MELO NETO, 1994, p.182)
A chegada ao Recife é a chegada ao ponto final. A última ave-maria
é a cidade anfíbia (LACERDA DE MELO, 1958), a cidade dos mangues e dos
caranguejos. A cidade de Josué de Castro, de Gilberto Freyre, a cidade de João
Cabral de Melo Neto, a cidade de tantos severinos. Ali, ao invés da fluidez, do
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caminho e da busca pela vida, eles param: misturam-se aos poucos na lama do
mangue, tornando-se parte do mangue, parte do rio, parte da cidade.
Se até chegar no Recife a indissociabilidade homem/rio se dava pela
intencionalidade e hibridismo, no mangue esta ligação se torna material por meio
do ciclo homem-caranguejo, descrito por Josué de Castro. E a fusão o se
apenas entre homem e natureza, severinos e rio. Assim como a humanização do
rio, há também a do divino, com a troca dos personagens bíblicos por moradores do
mangue. (MELO FILHO, 2006) Assim, o divino também é dessacralizado e envolvido
na mesma lama, na mesma água espessa, pois na metáfora bíblica, seus
personagens são homens-caranguejos, assim como o menino que nasce, trazendo
vida, é um filho do mangue, da mesma lama do Capibaribe. Homem, natureza e
divino são fundidos numa imagem de celebração da vida, apesar de tudo.
Conclui-se a viagem, que é conduzida por Cabral como uma viagem
de vida, rodeada e perseguida pela morte. O rio, de acordo com Pinto (2003), é
translato, viagem que coincide com a procura de melhores paragens. É a história do
Nordeste inscrita nas águas espessas do rio que une o sertão à capital, tornando-se
canal de transposição e de possibilidade de travessias aos que se ligam a este
percurso hídrico. Caminhos de morte e vida severina.
O cinema espesso
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrase:
se reatando, de um para outro poço;
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.
“Rio sem discurso”
João Cabral de Melo Neto
O caminho do rio é a história do Nordeste, de Pernambuco e dos
pernambucanos. Ouvir a história do rio é percorrer estes caminhos, passando por
suas paisagens e pela cultura do povo nordestino. o trajetos presentes na
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memória e por isso são tão fortes as imagens do sertão, do agreste, da zona da mata
e do Recife. Vemos isso em Cabral, que tanto falou do rio por querer falar do
Nordeste, quanto em outros autores pernambucanos.
O citado Josué de Castro é um bom exemplo. Assim como tantos
nordestinos e pernambucanos, ele e sua família têm sua história atrelada às águas
lamacentas do Capibaribe.
Criei-me nos mangues lamacentos do Capibaribe cujas águas,
fluindo diante dos meus olhos ávidos de criança, pareciam estar
sempre a contar-me uma longa história. O romance das longas
aventuras de suas águas descendo pelas diferentes regiões do
Nordeste: pelas terras cinzentas do sertão seco, onde nasceu meu pai
e de onde emigrou na seca de 1877 com toda a família, e pelas terras
verdes dos canaviais da zona da mata, onde nasceu minha mãe, filha
de senhor de engenho. Esta era a história que me sussurrava o rio
com a linguagem doce de suas águas passando assustadas pelo mar
de cinza do sertão, caudalosas pelo mar verde dos canaviais
infindáveis e remansosas pelo mar de lama dos mangues, até cair
nos braços do mar de mar. Eu ficava horas e horas imóvel sentado
no cais, ouvindo a história do rio, fitando as suas águas correrem
como se fossem uma fita de cinema. (CASTRO, 2005, p.16)
Assim como Cabral, que disse que ficava horas às margens do
Capibaribe, Castro também reconhece que ficava às suas margens ouvindo a
história do rio, acompanhando seu movimento. No poema “O rio”, que é
considerado como um dos mais autobiográficos de João Cabral, ele fala de um
menino bastante guenzo que o via passar como se fosse filme de cinema: o próprio
Cabral, habitante de engenho que via o rio passar, para encontrar o menino Josué
no mangue do Recife.
Tanto Josué de Castro como João Cabral apontam o rio como um
cinema, um filme que passava. Mas é um cinema espesso, como o próprio rio. O rio
que conta sua história, como numa bula, é um rio espesso, carregando em suas
águas o espaço e o tempo de toda uma região.
Josué de Castro disse também que o rio tinha sido seu primeiro
professor de História. Foi pelo rio que ele aprendeu sobre os severinos que o
acompanham, e sobre os homens-caranguejos que o habitam. Em “Morte e vida
severina”, vemos uma necessidade histórica, um caminho e uma direção que se
impõem, assim como as águas do Capibaribe não têm outra direção: tudo conduz
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Severino para o Recife. Segundo Melo Filho (1996-1997, p.416), em “Morte e vida
severina” aparece uma noção linear da história, com um fato ligado a outro por
necessidade, “[...] haja vista a alusão a um rosário onde a linha seria a estrada na
qual vai se desenrolando a história de Severino retirante. [...] Impelido pela própria
necessidade histórica, Severino, independentemente de sua vontade, assim como o
rio Capibaribe, deveria cumprir sua sina, isto é, chegar ao Recife.”
Severino é impelido em sua jornada, portanto, por várias forças: a
natureza, na direção inexorável do rio; o religioso, que se manifesta nas contas-
cidades do rosário; e a história social, de tantos retirantes que tinham partido antes
dele e que, assim como ele, não encontraram lugar de pausa antes do mangue,
antes do Recife.
E quando chegam ao Recife, chegam homem e rio, juntos, como um:
Ao entrar no Recife,
não pensem que entro só.
Entra comigo a gente
que comigo baixou
por essa velha estrada
que vem do interior;
entram comigo os rios
a quem o mar chamou,
entra comigo a gente
que com o mar sonhou,
e também retirantes
em quem só o suor não secou;
(MELO NETO, 1994, p.134)
João Cabral compara o rio a um jornal, que pode mantê-lo
informado sobre as transformações da realidade e da paisagem, expondo-se à
leitura:
O Capibaribe e a leitura
O Capibaribe no Recife
de todos é o jornal mais livre.
Tem várias edições por dia,
tantas quanto a maré decida.
Na Jaqueira, o Capibaribe
tinha uma edição do Recife
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e tinha outra do interior
(sempre quando a maré baixou).
Se não lhe devo saber ler,
devo-lhe fazer do ler ser,
o imóvel ser para a leitura
que nos faz mais enquanto dura,
esse dar-se que a paciência
de sua passada pachorrenta
impõe a quem lhe lê a gazeta
que ele dá a ler, letra a letra.
(CABRAL, 1994, p.531-532)
Enquanto jornal, o rio pode ser lido, compreendido e comentado.
Mas talvez, tanto quanto o jornal, ele nunca seja igual. Além disso, enquanto texto
traz, segundo Barbosa (1996, p.97), os recantos da memória da infância de Cabral,
“(o bairro da Jaqueira, e se viu a sua presença no poema O rio [...] é parte
entranhada de sua mitologia pessoal), que, ao mesmo tempo, embora não tenha
ensinado o poeta saber ler, como está na quinta estrofe, ensina uma modalidade de
leitura, de passada pachorrenta e letra e letra.”
“O rio” apresenta vários elementos da história pessoal de Cabral. Na
fala do rio o poeta transforma-se em escrivão da história do rio, que está ligada à
sua própria, constituindo-se de uma dupla vocalização do discurso.
Transformado em escrivão da fala do rio, como está dito nos versos
em que acena sua genealogia (“Então o Tapacurá, / dos lados da
Luz, freguesia / da gente do escrivão / que foi escrevendo o que eu
dizia.”), a inserção de traços autobiográficos do poeta é realizada pela
autobiografia maior do próprio objeto do poema. Deste modo, aquilo
que poderia correr o risco de vir a ser um exercício de comiseração,
marcado pela exaltação da subjetividade, é resgatado pela
objetividade própria da narrativa. (BARBOSA, 1996, p.63)
Sob um pano de fundo do rio que conta sua história, através do
poeta, temos, na verdade, um poeta que conta sua história através do rio. João
Cabral é, tal como Severino, hibridizado com o rio. A sua história também se
mistura, afinal, com a história do Capibaribe. E, misturando-se com o Capibaribe, o
poeta iguala-se a um, entre tantos, severinos. Tão nordestino e pernambucano
quanto todos os outros que, retirantes ou não, buscam sempre poder se fixar em
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sua terra, sem ter de migrar, sem ter de deixar para trás aquele rio severino que
com todos emigrou.
Em “O o sem plumas” os elementos da memória também estão
presentes, entrelaçando estes caminhos de vida e morte:
§ Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
[...]
(MELO NETO, 1994, p.114)
O rio está presente na memória, mas não perdeu sua espessura
nem sua densidade. A presentificação do que está distante, que é o sentido da
lembrança, o tornava tão material/real como se estivesse com seus pés afundados
em sua água e lama espessas.
§ Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
(MELO NETO, 1994, p.115)
Sobre esta relação entre a memória e a realidade contida nela, em
depoimento sobre seus escritos sobre Recife, João Cabral declarou:
Tenho 180 poemas escrito sobre Pernambuco – a maioria deles sobre
o Recife e seu Rio Capibaribe. E escreveria outros tantos de pudesse.
A veia inspiradora do Recife, não morre, porque a cidade continua a
existir. Persiste a atmosfera de miséria que inspirou, por exemplo, O
Cão Sem Plumas, de 1950, ou Morte e Vida Severina, de 1954.
Sempre escrevi poemas sobre o Recife longe da cidade. Eu não
precisava estar para recriar o universo sobre o qual falo em meus
poemas. Não acabaram as favelas nem as populações ribeirinhas do
Capibaribe, que conheci na minha adolescência andando pelos
mangues perto de casa, na Jaqueira. (MELO NETO apud BARBOSA,
2007)
Este comentário do poeta revela um dos aspectos da força imagética
e metafórica de sua poesia. Mesmo que tenha um lugar vivido em sua memória que
lhe servia de base para sua composição, não é a mera presentificação daquele lugar
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distante, no tempo e no espaço, que conduz sua poética. Na verdade, ele parte dos
elementos particulares, daqueles caracteres específicos e eleva-os à sua dimensão
universal.
Neste percurso, o rio, elemento permanente e estreitamente ligado
ao próprio devir humano, permitiu que Cabral pudesse realizar a conexão simbólica
em três níveis: sua história pessoal e o Capibaribe, a história do Nordeste e o
Capibaribe e a história da humanidade e os rios.
E são estas histórias que a tela espessa do rio severino exibe a
todos aqueles que às suas margens se postam, aos tantos severinos que por seus
caminhos se guiam, aos tantos homens anfíbios do Recife e àqueles que
acompanham a leitura dos versos do severino João Cabral de Melo Neto. Este é o
cinema espesso que se a ver, ao mesmo que contempla as paisagens por onde
passa. Ao final de “O rio”, por exemplo, o Capibaribe refere-se aos retirantes que
caminham com ele:
Conheço toda a gente
que deságua nestes alagados.
Não estão no nível de cais,
vivem no nível da lama e do pântano
Gente de olho perdido
olhando-me sempre passar
como se eu fosse trem ou carro de viajar.
É gente que assim me olha
desde o sertão do Jacarará;
gente que sempre me olha
como se, de tanto me olhar,
eu pudesse o milagre
de, um dia ainda por chegar,
levar todos comigo,
retirantes para o mar.
(MELO NETO, 1994, p.142)
O rio é caminho, segui-lo é uma forma de viajar, ou um meio de
transporte, pois ele leva consigo as pessoas, como se fosse trem ou carro.
Convertido em percurso, não é ele quem deságua, mas as pessoas, entregando-
se no Recife como o Capibaribe entrega-se ao mar. Neste caminho, o Capibaribe é
lido e assistido por todos que ficam, por aqueles que não o acompanham, mas
acompanham ao fluir de suas águas.
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A última estrofe de “O rio”, denominada “Oferenda”, é o rio que
encontra o mar, o rio que se doa ao mar em uma grande oferenda. Em suas últimas
palavras o Capibaribe retoma e atesta definitivamente sua indissociabilidade com o
homem:
Ao partir companhia
desta gente dos alagados
que lhe posso deixar,
que conselho, que recado?
Somente a relação
de nosso comum retirar;
só esta relação
tecida em grosso tear.
(MELO NETO, 1994, p.143)
A relação do rio com o homem, não poderia ser delicada como a
seda, deveria ser grosseira, imperfeita, tecida em grosso tear, como a própria
condição severina. Com estas palavras o rio se desmancha no mar. “Nada sobra a
não ser a lembrança, que agora ocupa o lugar da matéria. Haverá metáfora mais
precisa para a poética de Cabral?” (CASTELLO, 2006, p.120)
O percurso do rio severino mostra-se assim como um cinema, um
filme espesso, e o tríptico do rio reflete esta característica. Tal como no cinema, os
poemas não puderam se furtar de uma espacialidade explícita. Os poemas resgatam
o sentido profundo dos detritos e da confluência destas águas, deixando aos leitores
a tarefa da interpretação e da decodificação de seus símbolos. Não é necessário
conhecer o Capibaribe, Recife ou o Nordeste para compreender o sentido da
geopoética cabralina. Sem fazermos recurso à memória, a própria poesia nos
apresenta estes entes geográficos, em sua força telúrica, histórica e metafórica.
| 123 |
João Cabral de Melo Neto foi um nordestino diplomata, viajante e
poeta. O caminho de sua vida esteve atrelado a este lugar “de onde era”: Recife,
Pernambuco, Nordeste. Não havia outra forma de ler sua poesia. Em sua carreira
diplomática, descobre um reencantamento com o lugar, em Sevilha e na Andaluzia,
onde descobre outro aspecto de sua personalidade e de sua poesia: o feminino, que
dá algumas cores à aspereza de sua poética e estética.
“Morte e vida severina” pode não ser considerado por seu autor
como sua obra-prima, nem mesmo figurar entre os que considerava seus grandes
poemas. Mas ele tanto representa o estilo de Cabral como merece destaque pela
força intertextual e polifônica que atingiu na cultura intelectual e popular
brasileira. E não resta dúvidas de que, mesmo que o poeta afirme que teria feito
várias modificações ao texto, encarando-o como um tanto mal acabado, é um texto
plenamente cabralino.
A força imagética e metafórica do poema está em dois elementos: na
narrativa do caminho do rio/homem, história comum a tantos severinos, e à
expressividade do espaço telúrico, em sua espessura, forma e plasticidade. Ambos
geram a identificação e ao mesmo tempo a construção de uma geografia do devir de
morte e vida. Ganha ares de narrativa épica, que representa a história de um povo.
Por outro lado, para o restante do país e para o mundo, produz uma imagem forte
desta sina, que também é vista em outras partes, mas que se torna a história do
Nordeste, a história dos severinos.
| 124 |
“Morte e vida severina”, assim como toda a obra de Cabral, não é
proveitosa à Geografia (ou a qualquer ciência) apenas por uma verossimilhança ou
correspondência exata com as paisagens do Nordeste ou com a situação de vida nos
mangues do Recife ou no sertão pernambucano. Sua riqueza está nas imagens e
metáforas que produz, em outras palavras, nas geografias criadas pela poética, por
sua geopoética. Aponta-se para a importância de desfocar o olhar geográfico de
obras literárias, e manifestações artísticas em geral, como um esforço de tornar
científico aquilo que não foi feito com esta intenção. Embora tanto se discuta sobre
a necessidade de romper com as dicotomias entre razão e emoção, arte e ciência,
trazidas pela modernidade (HAESBAERT, 1997), ainda continuamos encarando a
arte e a literatura enquanto objetos da ciência, sem considerar suas especificidades
enquanto linguagem e enquanto uma forma própria de produção do conhecimento.
As obras literárias, bem como as demais manifestações artísticas, não precisam ser
reduzidas a simples documentos que retratam uma certa realidade. Mas então, qual
o sentido do estudo geográfico de obras literárias?
Um primeiro sentido é a capacidade que uma narrativa tem de
fundar um novo mundo. Assim, o Capibaribe de João Cabral existe a partir de sua
obra poética, e a geografia que se criou a partir disto não advêm somente da lama e
da água espessa do rio. O texto e a poética de Cabral, construídas a partir de sua
memória e experiência daquele mesmo rio, funda uma nova imagem ou conjunto de
imagens sobre o Capibaribe. Assim, o Capibaribe conhecido no Brasil ou no exterior
é o Capibaribe do João Cabral. Os homens-caranguejos de Josué de Castro ou o rio
severino de Herbert Viana vieram à existência não apenas pelas pessoas que
habitam os mangues do Recife, mas também pela narrativa fundadora de João
Cabral. Se não houvesse João Cabral e sua poesia, talvez os homens-caranguejos
estariam lá, tanto quanto hoje ou 50 anos. Mas seriam os mesmos, sem esta
imagem colada à sua existência?
Um segundo sentido da Literatura e das demais manifestações
artísticas para a Geografia está na sua capacidade de revelar a essência da
espacialidade humana: sua geograficidade. Toda grande arte se notabiliza por falar
do específico e atingir, por esta via, o universal.
Arte, assim como a ciência, está sempre ligada a contextos espaciais
e temporais específicos. Mas a arte, diferente da ciência, não visa a explicação ou
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representação dos objetos. Neste aparente descompromisso com o que é material e
específico ela consegue revelar de uma maneira integrada os traços essenciais dos
objetos e da própria existência humana. A literatura consegue revelar de maneira
intensa a geograficidade dos fenômenos através da palavra, de sua poética e das
narrativas.
A forma como a literatura atinge este fim é revelada na poética
cabralina: o espaço telúrico. Este está na base da própria geograficidade que, em
última análise, é o material bruto sobre o qual os poetas compõem suas obras. Este
espaço telúrico, ligado ao sentido primitivo da relação homem-meio, pode estar
mais ou menos explícito nos versos e nos traços dos artistas, mas está sempre
presente. A obra de João Cabral é um exemplo de uso racional deste espaço telúrico
enquanto base de toda composição de sua obra. O telúrico é o espaço da memória
do poeta, fundado em sua terra natal. Enquanto poeta da memória, João Cabral
recorreu sempre à sua lembrança, além de pesquisa documental para edificar seus
versos. Na memória, as lembranças primitivas embrenham-se com as lembranças
vividas, tornando os elementos da paisagem componentes freqüentes de sua
estética. O grande canal condutor destas memórias eram as águas espessas do
Capibaribe. Por outro lado, a presença sempre marcante da espacialidade está
ligada ao seu desejo de aproximar a produção artística do trabalho racional
científico. Assim, muitas das precisões geográficas e históricas em suas descrições
estão ligadas a seu trabalho de pesquisa, do qual não abria mão ao propor-se
escrever.
Ironicamente, o chamado poeta do concreto, poeta racional, do
trabalho árduo, aquele que por todas as vias celebrou a razão e o método científico,
edificou uma obra em que todos estes elementos são como que adornos da forma de
sua poética. Ciência e arte estão plenamente conciliadas em João Cabral, sem
nenhum paradoxo, sem nenhuma dicotomia. Sendo racional, buscando o concreto e
ansiando a clareza, o que ele fez foi deixar que a própria materialidade e dureza das
coisas fizessem sua própria poesia. Espessura, plasticidade e a textura dos objetos
(espaciais ou não) saltam aos olhos em imagens nítidas, trazendo em si mesmas
sua poeticidade. Não é o estilo ou a forma, mas é a própria imagem do objeto,
lembrado, que faz a poesia. É o copo d’água a fonte de sua poesia e não o perfume
da flor.
| 126 |
João Cabral viajou e viveu vários lugares sem nunca deixar sua
terra natal, revisitando-a e presentificando-a constantemente pela memória. Um
poeta viajante, um poeta geógrafo ele foi.
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RESPOSTA A VINÍCIUS DE MORAES
Camarada diamante!
Não sou um diamante nato
Nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz do vago
quer de toda forma evita-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.
João Cabral de Melo Neto
| 128 |
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria G. de. Em busca do poético do sertão: um estudo de
representações. In: ALMEIDA, Maria G. de e RATTS, Alecsandro J.P. (orgs.)
Geografia: leituras culturais. Goiânia: Alternativa, 2003. p.71-88.
AMORIM FILHO, Oswaldo B. O contexto teórico do desenvolvimento dos estudos
humanísticos e perceptivos na Geografia. In: ______. et al. Percepção ambiental:
contexto teórico e aplicações ao tema urbano. Belo Horizonte: IG/UFMG, 1987.
p.09-20. [Publicação Especial n.5]
ATHAYDE, Félix de. Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira: FBN; Mogi das Cruzes: Universidade de Mogi das Cruzes, 1998.
151p.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. (trad. Antonio de P. Danesi) São Paulo:
Martins Fontes, 1993. 242p.
______. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. (trad. Antonio
de P. Danesi) São Paulo: Martins Fontes, 1997. 202p.
BARBOSA, Frederico. Estudo de Morte e vida severina de João Cabral de Melo Neto.
In: A poesia de Frederico Barbosa poesia contemporânea brasileira. Disponível
em <http://fredbar.sites.uol.com.br/mvs.html>. Acessado em Junho de 2007.
BARBOSA, João A. A lição de João Cabral. In: CADERNOS de Literatura Brasileira.
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