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Universidade Estadual do Ceará
Tatiane de Aguiar Sousa
HAIKAIS DE BASHÔ: O ORIENTE TRADUZIDO NO
OCIDENTE
Fortaleza - Ceará
2007
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Universidade Estadual do Ceará
Tatiane de Aguiar Sousa
HAIKAIS DE BASHÔ: O ORIENTE TRADUZIDO NO
OCIDENTE
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado Acadêmico em Lingüística
Aplicada do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial para obtenção do grau de
mestre em Lingüística Aplicada. Área de
concentração: Estudos da Linguagem. Linha
de Pesquisa: Tradução, Terminologia e
Processamento da linguagem.
Orientadora: Profa. Dra.. Laura Tey
Iwakami
Fortaleza – Ceará
2007
2
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Universidade Estadual do Ceará
Centro de Humanidades
Curso de Mestrado Acadêmico em Lingüística Aplicada
Título do trabalho: Haikais de Bashô: o Oriente traduzido no Ocidente.
Autora: Tatiane de Aguiar Sousa
Defesa em: 27/08/2007 Conceito obtido: 9,5
Banca examinadora
_____________________________________
Profa.Dra. Laura Tey Iwakami
__________________________ ___________________________
Profa. Dra. Darci Kusano Profa. Dra. Soraya Ferreira Alves
3
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho àqueles que foram fundamentais para sua realização: meus pais,
que sempre me apoiaram incondicionalmente; meu amado Alexandre, que sempre me
incentivou, foi paciente e compreensivo em todos os momentos; minha orientadora,
que me auxiliou e orientou em todas as etapas deste trabalho.
4
AGRADECIMENTO
Agradeço:
- Primeiramente a Deus, pelo dom da vida e da persistência.
-Ao CMLA e a FUNCAP, por tornar possível a realização desse trabalho.
- À Profa. Dra. Laura Tey Iwakami, pessoa que me apresentou o haikai, por sua
amizade, orientação e disponibilidade.
-Aos meus pais e irmãos, pela compreensão e apoio.
- A meu amado Alexandre, meu porto seguro, pela paciência e força em todos os
momentos.
- Ás professoras Soraya Ferreira Alves e Haruka Nakayama (in memoriam), por suas
valiosas sugestões.
- A Ignácio Dotto Neto, por sua importante ajuda com material de Wenceslau de
Moraes.
-Ao meu professor de japonês Hendrik Lindelauf por ter me “alfabetizado” em língua
japonesa e à professora Yuka por sua valiosa ajuda com os ideogramas.
-Aos meus colegas do CMLA e amigos, em especial Gorete Dias, pelo apoio e
incentivo.
5
RESUMO
Uma forma poética muito antiga sobrevive no Japão, este que é um país extremamente
desenvolvido, mas que conserva e valoriza suas tradições culturais. O HAIKAI, uma forma
lírica singularmente japonesa, sem rima nem versificação acentual, possui como recurso
principal a medida silábica. Nossa pesquisa, de natureza analítico-descritiva, objetiva um
estudo do “HAIKAI da rã” de Matsuo Bashô, poeta japonês do século XVI, e as traduções em
Língua Portuguesa feitas por Wenceslau de Moraes, Paulo Leminski, Haroldo de Campos e
Paulo Franchetti, analisando os recursos e estratégias utilizados por cada um. Concluímos
que os conceitos estéticos de pobreza e solidão encontrados no original estão mais presentes
nas traduções de Leminski e Franchetti. Verificamos também que Campos explora o elemento
visual presente nos ideogramas da poesia original, enquanto Moraes acaba descrevendo a
imagem que o haikai sugere traduzindo-a em forma de quadra.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia – Haikai - Tradução
6
ABSTRACT
A very old poetic form survives in Japan, this country that is extremely developed, but
conserves and values the traditions. This singular Japanese lyrical form, without rhyme nor
accentuated versification is haikai, which has as main resource the syllabic measure. The
purpose of this research of analytical-descriptive nature is a study of Matsuo Basho´s "haikai
da rã" and the translations in Portuguese by Wenceslau de Moraes, Paulo Leminski, Haroldo
de Campos and Paulo Franchetti, analyzing the strategies used by each one. We concluded
that the aesthetic concepts of poverty and solitude found in the original poem, are more
present in the translations of Leminski and Franchetti. We also verified that Campos explores
the visual element present in the ideograms, while Moraes describes the image that haikai
suggests.
KEY WORDS: Poetry – Haikai - Translation
7
Lista de figuras
Figura 01: Kojiki..............................................................................................p. 15
Figura 02: Quadro de hiragana ........................................................................p. 20
Figura 03: Quadro de katakana ........................................................................p. 20
Figura 04: pictogramas ....................................................................................p. 21
Figura 05: pictogramas ....................................................................................p. 22
Figura 06: Matsuo Bashô..................................................................................p. 78
8
Sumário
INTRODUÇÃO..................................................................................................09
1. A poética japonesa...................................................................................13
1.1 Japão..................................................................................................14
1.2 A escrita japonesa .............................................................................16
1.2.1 O caráter visual da escrita japonesa...................................21
1.3 Pequeno histórico da poesia japonesa...............................................23
1.4 Estética oriental e ocidental...............................................................27
1.5 Bashô e a filosofia zen.......................................................................31
1.6 A arte do haikai .................................................................................35
1.6.1 O haikai no Brasil..............................................................38
2. Tradução literária: uma reflexão teórica..................................................41
2.1 A tradução no tempo..........................................................................42
2.2 A literatura comparada.......................................................................56
2.3 A semiótica peirciana - leituras da tradução......................................59
2.3.1 Haikai e semiótica................................................................65
3. O poema de Bashô e suas traduções ........................................................69
3.1 A poesia de Bashô..............................................................................69
3.1.1 Compreendendo o “haikai da rã”.........................................72
3.2 A tradução de Wenceslau de Moraes.................................................79
3.3 A tradução de Leminski ....................................................................84
3.4 A tradução de Haroldo de Campos....................................................91
3.5 A tradução de Paulo Franchetti/ Elza Doi ........................................97
3.6 Análise das traduções........................................................................102
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................108
BIBLIOGRAFIA ..............................................................................................111
ANEXOS...........................................................................................................117
9
INTRODUÇÃO
O Ocidente sempre mostrou muito interesse em tudo que diz respeito ao
Oriente. A cultura, os costumes, a forma de ver o mundo, tudo difere bastante do nosso
comportamento ocidental. De uma forma especial o Japão vem conquistando o carinho
e o interesse do Brasil, seja através das artes marciais, dos animes, da cultura etc. desde
que se iniciaram suas relações com nosso país em 1908 com a chegada dos primeiros
imigrantes japoneses.
Embora sua aparência venha se “ocidentalizando” cada vez mais, o Japão
moderno preserva sua tradição milenar tão rica e fascinante causando-nos muitas vezes
um “sentimento de estranheza”. Segundo Octavio Paz, esse sentimento de estranheza
quando nos deparamos com a cultura japonesa “não provém tanto de nos sentirmos
diante de um mundo diferente quanto de nos darmos conta de que estamos diante de
um universo auto-suficiente e fechado sobre si mesmo” (1980: 13).
Para entender o Japão atual é importante conhecer sua história que é dividida
em períodos ou eras. Em cada um deles encontramos características marcantes como a
Era Heian (794-1185) quando o povo japonês começa a criar sua própria cultura após
ter assimilado durante muito tempo elementos da cultura chinesa, a Era Muromachi
(1333-1573) quando ocorre o primeiro contato dos japoneses com os portugueses no
auge das grandes navegações, a Era Edo (1603-1868) quando o país vive dois séculos
e meio de paz embora se feche em si mesmo, cortando relações com países
estrangeiros através do fechamento dos portos, e a Era Meiji (1868-1912) onde há uma
“ocidentalização” após a restauração do poder imperial. Nesta era o Japão resolve
abrir-se para aprender as técnicas ocidentais, comprando armas, navios, máquinas e
implantando um parque industrial. Após a grande derrota na Segunda Guerra Mundial,
durante a Era Showa (1926-1989), reergueu sua economia e, atualmente (Era Heisei
iniciada em 1989), é um dos países mais desenvolvidos do mundo.
10
Apesar da forte influência ocidental que vem ocorrendo com a recuperação e
modernização da economia japonesa, a cultura nipônica é mantida, convivendo
harmonicamente o Japão antigo e o moderno. No Ocidente, a apreciação por essa
cultura, que cultiva a harmonia da natureza, das cores, do espaço, é muito grande e
exerce grande influência na arte. No Brasil uma forte presença japonesa através da
colônia, que foi se formando com a chegada dos primeiros imigrantes japoneses
(1908), e através da culinária, moda, desenhos animados, artes marciais e poesia.
O poema tradicional japonês, o HAIKU, conhecido no Brasil como HAIKAI,
é uma forma poética que ocupa um lugar especial em nossa poética. No sul do
Brasil, por causa do maior número de imigrantes e consequentemente maior contato
com essa forma poética, a popularidade do HAIKAI enquanto atividade artística ligada
à cultura japonesa é grande, ao contrário do que acontece em nossa região, onde não é
muito conhecido nem difundido provavelmente pela menor concentração de japoneses.
Embora muitos ainda desconheçam essa forma poética podemos perceber que a
produção de haikai em português é bastante vasta. Entre os haicaístas brasileiros mais
famosos encontramos Afrânio Peixoto, Guilherme de Almeida, Haroldo de Campos,
Millôr Fernandes e Paulo Leminski, entre outros. No Ceará, também temos nosso
representante entre os poetas de haikai: Adriano Espínola, autor do livro Trapézio:
Haikais (1984).
Poema breve de 17 sílabas, o haikai é organizado em três versos, sendo o
primeiro composto de cinco sílabas, o segundo de sete e o terceiro de cinco. Não
título, nem seus versos possuem rima. Sua forma é bastante simples. Essa
simplicidade, característica marcante da poesia, da arte e da vida japonesa de uma
forma geral, não significa pobreza, mas é sinônimo de serenidade, tranqüilidade e
despojamento. É o simples repleto de subjetivismo, com rica mensagem e reflexão.
Cabe a nós, leitores, inferir o que está nas entrelinhas, nos jogos de palavras.
Não é raro que tenhamos dificuldade em apreciar o haikai, visto que o
homem ocidental e o oriental aprendem e explicam o mundo de forma completamente
11
diferente. Por isso, a simplicidade e concisão do haikai muitas vezes não são
compreendidas pelo leitor ocidental que está desacostumado com tanto despojamento,
tornando-se, assim, mais difícil entender o que diz essa poesia, o que ela sugere. O
haikai é iluminação poética. É o dizer o mínimo significando o máximo, fazendo com
que o leitor perceba que nesse “mínimo” alguma coisa, que algo mais foi dito. A
dificuldade encontra-se exatamente na diferença, no modo de ver e sentir o mundo das
duas tradições. Ambas as culturas estão inseridas no contexto atual da globalização, da
tecnologia, da rapidez de informações. Mas o homem oriental aprendeu através de sua
cultura milenar que “há” muito no silêncio, na ausência e no vazio.
A presente pesquisa nasce de um interesse especial por essa forma lírica tão
singularmente japonesa, mas também universal. A produção de um artigo para a
graduação sobre análise de haikais aumentou o apreço por essa forma poética,
levando–nos até esta dissertação. Esperamos com esse trabalho, além de divulgar a arte
japonesa, contribuir com os estudos de tradução e também de haikai, difundindo essa
forma poética ainda pouco conhecida em nossa região nordestina.
De natureza analítica descritiva, consiste na análise de quatro traduções de
um haikai tradicional muito conhecido, escrito por um poeta japonês do século XVII.
Considerado até hoje um dos maiores poetas da história do Japão, Matsuo Bashô
(1644-1694) é quem teve o mérito de haver resgatado o haikai do momento de
estagnação em que se encontrava (Era Edo 1600-1868).
O objetivo dessa pesquisa é caracterizar a poesia de Bashô e analisar os
recursos/estratégias usados pelos tradutores Wenceslau de Moraes, Paulo Leminski,
Haroldo de Campos e Paulo Franchetti/Elza Doi ao traduzir o “haikai da rã” de Bashô,
verificando as traduções separadamente e também as semelhanças e diferenças entre as
mesmas.
Utilizaremos a abordagem qualitativa de pesquisa bibliográfica para analisar
traduções de um haikai de Bashô. A análise não será baseada nos princípios de
12
fidelidade e equivalência da tradução, mas em teorias e métodos de tradução que tem
em foco o processo tradutório. Fundamentaremos a pesquisa nos conceitos de Literatura
Comparada, apoiada nos Estudos Descritivos no que se refere ao conceito de tradução.
Haikais clássicos como os do poeta japonês, podem ser apreciados
mundialmente através das várias traduções existentes. André Lefevere ressalta “que a
tradução é responsável em grande parte pela imagem de um texto, de um escritor e de
uma cultura” (apud Carvalhal, 2004:24). Nesta pesquisa entendemos que tradução não
é equivalência. Segundo Arrojo,
Nossa tradução de qualquer texto, poético ou não, será “fiel” não ao texto
original, mas àquilo que consideramos ser o texto original, àquilo que
consideramos constituí-lo, ou seja, a nossa interpretação do texto de partida,
que será, como sugerimos, sempre produto daquilo que somos, sentimos e
pensamos. (2003:44)
Portanto, nosso propósito é responder aos seguintes questionamentos:
Os conceitos estéticos de pobreza e solidão presentes na poesia de Bashô se
apresentam, ou não, nas quatro traduções estudadas? Em que aspectos as traduções
apresentam semelhanças e diferenças entre si?
Nosso trabalho está dividido em três partes: na primeira, apresentaremos um
pouco do universo japonês através de um pequeno histórico da poesia nipônica, sua
filosofia e estética, Bashô e a arte do haikai. No segundo momento trataremos das
questões teóricas sobre tradução literária, apresentando discussões e argumentações de
teóricos no decorrer do tempo, além de uma breve explanação sobre os conceitos da
semiótica baseado nas teorias de Charles Sanders Peirce. Finalmente, na terceira parte
apresentaremos nossa análise sobre as traduções do “haikai da rã” de Bashô.
13
1. A POÉTICA JAPONESA E A POESIA HAIKAI
Que poetas são pois estes, os nipônicos? Como pretendem eles condensar,
em dezessete sílabas apenas, os múltiplos sentimentos que a poesia nos
sugere, a nós, brancos, que tão longas páginas de versos, não raras vezes,
dedicamos a um assunto apenas? (Moraes,1973:182)
No fim do século XIX, o poeta português, Wenceslau de Moraes
1
,
apaixonado pelo Japão, comentava sobre esse sentimento de estranheza e exotismo
que nos acomete quando entramos em contato com a cultura japonesa, quando, por
exemplo, vemos pela primeira vez um haikai. Nós do ocidente somos acostumados a
descrever, com riqueza de detalhes, tudo o que sentimos, vemos e pensamos. Temos
grande necessidade de explicar, definir, exemplificar, esmiuçar. Logo, não é de se
estranhar a diferença cultural com a nossa forma de ver e pensar o mundo.
Mas como compreender uma poesia rica de detalhes e imagens, em apenas
três versos e dezessete sílabas poéticas? Moraes (1973) já afirmava:
O leitor, fazendo a si próprio estas perguntas, esquece uma consideração
primordial, esquece que nós somos europeus e que os japoneses são
japoneses, isto é, que diferenças enormes de mentalidades nos separam,
irredutíveis, (...) evolucionando na existência mundial por dois caminhos,
que nada tem de comum um com o outro. Que admirar, pois, que os filhos do
Nipon hajam compreendido a poesia de um modo bem diverso da maneira
como nós, ocidentais, a compreendemos: (...) a alma japonesa sentiu, criou
uma poesia sua, em perfeita concordância com as suas preferências afectivas.
A poesia japonesa pouco mais é e pouco mais pretende ser do que uma
exclamação – um!(p.182-183)
Como europeu, um representante do Ocidente, Wenceslau de Moraes
percebeu essas marcantes diferenças, porém não as tratou com indiferença, mas ao
contrário, procurou entender esse novo universo que se lhe apresentava.
Nosso objetivo de estudo é o haikai conhecido como “poema da rã” de
Matsuo Bashô. Porém, achamos necessário, preliminarmente, expor um pouco da
1
Em 1899, Moraes, pertencente a Marinha Portuguesa servia em Macau, tornando-se depois cônsul em Kobe
(Japão).
14
cultura japonesa, sua escrita, sua poética, para que possamos nos situar nesse mundo
cultural, conhecendo um pouco mais a filosofia que envolve o haikai e esse povo que
integra vida, arte e religião de forma harmônica, misturando passado e presente,
tradicional e moderno.
1.1 O JAPÃO
Formado por quatro grandes ilhas Honshu, Hokkaido, Kyushu e Shikoku -
e mais de 6.852 ilhas menores, o Japão é um arquipélago formado por altas montanhas,
vulcões ativos, florestas silenciosas e vales profundos situados ao largo da costa leste
da Ásia, inteiramente dentro da zona temperada. Sua população, de cerca de 127
milhões de habitantes, onde 75% estão concentrados em centros urbanos, Com uma
área maior do que a Alemanha e 23 vezes menor que o Brasil, é um país com
expectativa de vida de 75,2 anos para os homens e 80,9 anos para mulheres, um dos
índices mais altos em termos de longevidade.
Reino de imperadores, shoguns, gueixas e de lutadores de sumô, judô e
karatê, o Japão é uma terra de grandes belezas naturais. Seus festivais antigos são
celebrados de acordo com as estações do ano. A comida pode ser elevada a um tipo de
arte.
A coexistência do antigo e do moderno é uma de suas principais
características. O país avança a passos largos, mas preserva uma herança de muitos
anos de história, traçada de geração em geração desde o mítico reinado de deuses sobre
a terra. As histórias sobre a origem do arquipélago e do povo japonês foram
transmitidas de geração a geração através de narrativas orais. Até a chegada da escrita,
através dos chineses, havia um oficial encarregado de guardar na memória
acontecimentos da corte. Esse cargo era passado de pai a filho, para garantir uma maior
exatidão na transmissão.
Com a adoção da escrita chinesa (século VIII) esses acontecimentos foram
transcritos e compilados em três volumes do Kojiki (Registro das coisas antigas – 712),
15
o primeiro livro da história do Japão. Escrito em forma poética, esse livro é de
fundamental importância para a literatura japonesa, por ser um precursor do estilo
poético que até hoje caracteriza o Japão. Nessa obra encontram-se documentadas a
mitologia sobre a criação do arquipélago japonês e as primeiras crônicas da “terra dos
deuses”.
Figura 01 – kojiki
2
De acordo com o Kojiki, no princípio de tudo existia apenas uma massa
oceânica viscosa, que se transformou em três criaturas: a primeira uma divindade, as
outras macho e fêmea. Dessa trindade surgiram gerações e gerações, até chegar aos
deuses Isanagi, que significa “macho que convida” e Izanami, a “fêmea que convida”.
Ao descerem à Terra, foi criada a ilha Ono-koro. Embora fossem irmãos, Izanagi e
Izanami casaram na ilha. Entre a sua prole contam-se os acidentes geográficos,
montanhas, vento e outras ilhas japonesas.
Amaterasu, a deusa solar, é considerada a ancestral primeira de toda a
descendência imperial japonesa, a grande mãe do povo japonês. Ela reinava no céu, e
também na Terra através de seus descendentes, os imperadores. O imperador sempre
2
Retirado do site: www.ten-f.com/oomiwajinja.html
16
foi considerado um ser divino, não podendo se relacionar com qualquer indivíduo, mas
apenas com aqueles de sua corte ou figuras políticas de destaque. Essa crença é uma
base importante do comportamento nipônico, influenciando o nacionalismo e a
identidade cultural. No atual sistema de governo japonês, o imperador é símbolo do
Estado e da unidade do povo, mas não é mais a autoridade suprema. Adotou-se um
sistema parlamentar de governo, onde o primeiro ministro, juntamente com os outros
membros da DIETA
3
, tomam as decisões. Respeitado como descendente de
Amaterasu, a figura do imperador japonês continua forte no imaginário popular.
Com um estilo de vida ligado à natureza, o povo japonês tem algo de
delicadeza de alma, de elevação de espírito. Essa capacidade de contemplação que
provavelmente é reflexo do budismo e do xintoísmo, é uma das características que
mais contrastam com o modo de ser ocidental. Para que possamos compreender um
pouco o universo japonês, devemos nos desprender da resistência ao o novo e
tentarmos ver e entender o mundo a partir do olhar oriental, especificamente do olhar
japonês.
1.2 A ESCRITA JAPONESA
O Japão é curiosamente o único país desenvolvido do mundo que não tem
uma matriz cultural européia. Sua cultura foi historicamente influenciada pelas culturas
continentais da Ásia, sobretudo da China, de quem importou a escrita e o budismo. À
medida que a prática de leitura e escrita foi avançando, a escrita chinesa foi sendo
adaptada à língua japonesa e assumida como própria pelo povo japonês, levando-os a
uma produção literária bastante atuante durante esse processo.
O Kanji, ou escrita chinesa, foi introduzido no Japão a partir do século V,
juntamente com o budismo (que entrou oficialmente em 538) e elementos da cultura
chinesa. Os japoneses adotaram os kanji, que conhecemos como ideogramas chineses,
3
Dieta é o mais alto órgão do poder estatal e o único corpo legislativo. Consiste em duas câmaras: Câmara dos
Deputados e Câmara dos Conselheiros.
17
utilizando o mesmo caractere para representar um objeto ou uma determinada idéia,
mas conservando a pronúncia japonesa. Posteriormente, foram incorporados símbolos
com a pronúncia original chinesa, em especial para formar novas palavras compostas.
Os Kanji são usados para escrever a raiz de palavras, as palavras compostas e os nomes
próprios. Até pouco depois da Segunda Guerra Mundial empregou-se uns 7.000
diferentes símbolos, mas, a 10 de Outubro de 1981, o ministério da educação japonês
definiu uma lista de 1945 kanji oficiais.
A escrita da língua japonesa é composta por dois sistemas: um ideogrâmico
(kanji - de origem chinesa) e outro fonossilábico, que se subdivide em dois: o
hiragana e o katakana (usados na escrita cursiva em combinação com os kanji). Os
kanji se desenvolveram muito tempo, a partir de desenhos usados pelos chineses
para representar o mundo ao redor deles. Alguns tipos de kanji conservam suas formas
pictográficas e se parecem com os objetos que representam.
Como o propósito de nosso trabalho não é um estudo aprofundado da
escrita, julgamos a classificação de Rowley (2003) mais apropriada para nossos
objetivos. Em seu Dicionário Ilustrado Mnemônico Japonês Português classifica os
kanji em quatro grupos:
a) a pictografia, que representa objetos físicos reais de forma estilizada;
Montanha portão
b) os símbolos, indicam noções abstratas através de modelos lógicos;
18
acima meio abaixo
c) as ideografias, união de dois ou mais símbolos para criar uma idéia
relacionada;
+ =
Sol lua claro, brilhante
d) e os fonoideográficos, um grupo mais desafiador, que combinam um
elemento que indica a pronúncia com o elemento que sugere o “assunto/tema” do
kanji.
Árvore árvore salgueiro tronco de árvore
Ele cita como exemplo árvore (), que além de ter um significado próprio,
também é um radical, geralmente indicando algo que é feito de madeira ou relativo às
árvores. Na formação do ideograma ele pode ter pouco ou nenhuma relação com o
significado do caractere.
19
Árvore árvore salgueiro tronco de árvore
Durante o século oito ou nove é criado o silabário kana (silabário
exclusivamente japonês), tornando-se muito mais fácil registrar os sons do ideograma
japonês. O kana caracterizou o Período Heian (794-1192), que teve como principal
monumento poético o Kokinshû (Coleção de Poesia Antiga e Moderna), de 914
4
.
Existe uma versão de que foram as mulheres que simplificaram a escrita,
tendendo a um tipo de escrita mais cursiva e eliminando certos traços. Acredita-se que
foi utilizado pela primeira vez no século VIII, época de florescimento da literatura
japonesa quando se destacaram várias mulheres no campo da poesia. Por sua forma
simples e plana se chamou Hiragana. Paralelo a este silabário se desenvolveu o
Katakana, mais retilíneo e anguloso. O Hiragana se formou por evolução, da caligrafia
empregada na escrita dos kanji para um estilo cursivo “simplificado”. o Katakana
por abreviação, ou seja, também criado a partir do kanji, “surgiu como sinais gráficos
para auxiliar na leitura de textos chineses, ou ainda, para serem inseridos nos poemas
ou textos em estilo chinês”
5
. Vejamos a seguir os dois quadros de silabários:
4
A ordem para reunir as poesias foi dada em 905.
5
In: http://www.japaobrasil.com.br/historia_japao/274.php
20
Figura 2 – Quadro de hiragana
Figura 3 – Quadro de katakana
Tanto o hiragana quanto o katakana têm 46 símbolos silábicos. O primeiro
é utilizado para escrever palavras genuinamente japonesas, enquanto o segundo é
usado para palavras estrangeiras. Podemos perceber também uma diferença no traçado,
21
o hiragana tem formas mais arredondadas, semelhante a uma escrita cursiva, o
katakana tem traços mais retilíneos.
Mesmo tendo importado uma escrita estrangeira, a escrita japonesa foi se
adaptando e avançando, de modo que ganhou características próprias, tornando-se uma
escrita tão rica, que utiliza recursos sonoros e visuais. Compreendido seu
funcionamento, vejamos agora o caráter visual dessa escrita na poesia.
1.2.1 O CARATER VISUAL DA ESCRITA JAPONESA
O elemento visual participa da própria natureza da poesia japonesa, sendo-
lhe intrínseco. Isso acontece porque o ideograma é um ícone. Esse assunto será melhor
explicado no próximo capítulo, quando falarmos da semiótica peirciana e dos conceitos
de ícone, índice e símbolo.
Figura 4
6
6
Figuras quatro e cinco extraída de trabalho em multimídia de Iwakami.
22
Figura 5
Observando os pictogramas acima, percebemos que os elementos mãe,
criança, sol, lua e os outros, são representados através de desenhos, que foram
evoluindo até o estágio simbólico que se encontram atualmente. Segundo Iwakami
(1992) eles são ícones, prontos para imensas possibilidades relacionais, juntamente a
outros elementos pictóricos.
Esta dimensão visual herdada via ideograma aguça a percepção, permite um
poder de síntese imaginativa. “O pensamento imagístico [pensamento primitivo],
deslocado até um certo ponto definido, acaba-se transformando em raciocínio
conceitual” (Eisenstein apud Campos, 1994).
Campos (1977) assim define:
o kanji, que evoluiu de uma fase pictográfica (desenho do objeto) para uma
notação extremamente sintética e estilizada, é, em si mesmo, uma verdadeira
metáfora gráfica, tanto mais complexa quanto mais “abstratas” as idéias de
veicular, pois com este sistema de escrita se podem, como é obvio,
representar não apenas coisas do mundo real, como também emoções,
sentimentos, etc.(1977:63)
Ernest Fenollosa (1885), primeiro a chamar a atenção dos ocidentais para a
importância do ideograma como instrumento para a poesia, acredita que a escrita
chinesa (da qual se origina a escrita japonesa) abarca o mundo da imaginação, uma
23
linguagem que passou do visível para o invisível pelo mesmo processo usado em todas
as raças antigas, a metáfora (“o uso de imagens materiais para sugerir relações
imateriais”). Ou seja, através da concretude do mundo físico, da plasticidade da
natureza, consegue-se chegar às abstrações presentes nos sentimentos, impressões e
sensações. O haikai possui caráter icônico porque o ideograma provoca o visual. É
possível visualizar os elementos presentes na poesia.
1.3 PEQUENO HISTÓRICO DA POESIA JAPONESA
Segundo Nojiri (2005), a poesia japonesa assumiu três formas: a chinesa, a
tradicional e a moderna (contemporânea). A forma chinesa é uma poesia praticamente
extinta, escrita exclusivamente em kanjis. A tradicional é composta por poemas curtos,
enquanto a moderna é composta de versos livres, influenciada pela poesia ocidental.
Neste capítulo nos deteremos em uma breve análise da poesia tradicional japonesa,
onde está inserido o haikai, objeto de estudo desta pesquisa.
A literatura oral japonesa surgiu muito tempo, mas foi registrada
depois que os japoneses dominaram a escrita chinesa, introduzida no Japão no século
seis depois de Cristo. Os escritos mais antigos do Japão são o Kojiki e o Nihon Shoki.
O Kojiki foi compilado por volta de 712 d.C., sendo uma coleção de contos que
descrevem a criação do universo e relatos como a fundação da nação japonesa. Feito
num período de adaptação da escrita, quando no Japão ainda se utilizava a escrita
chinesa (ressaltando que era uma escrita de estilo híbrido, que obedecia ora a leitura
chinesa, ora a japonesa), o Kojiki surgiu da necessidade de registrar a história e mitos
japoneses, para justificar a existência do povo. De acordo com o ele, Sussanoo no
Mikoto, irmão mais novo de Amaterasu foi expulso do reino dos deuses pela irmã. E
quando andava pelo rio Hino, no país de Izuno, salvou a princesa Kushinada. Depois a
recebeu como esposa e construiu um palácio em sua homenagem. A seguir, uma
versão sobre a origem de um tanka presente no Kojiki.
24
Consta, também, na mitologia, que, ao entrar pela primeira vez nesse palácio,
Sussanoo sentiu o frescor do ambiente e achou-o muito agradável; por isso,
denominou-o Suganomiya. O casal viveu um intenso amor num clima de
muita harmonia. Tamanha felicidade levou Sussanoo a fazer, em homenagem
à sua esposa, um poema seguindo a estrutura silábica (5-7/ 5-7 / 7), cujo
conteúdo vem a seguir:
Yagumo tatsu
Izumoyaegaki tsumagomeni
Yaegaki tsukuru sonoyaegakio
7
Surgiram muitas nuvens
8
Formando uma cerca de oito voltas.
Oito voltas de nuvens cercam o palácio real.
Esse poema marca o início das composições com 31 sílabas que vão dar
origem ao Waka (estilo de poema tipicamente japonês), tendo sido, então,
Sussanoo-no-Mikoto o primeiro compositor nesse estilo. (Jordan Augusto)
9
O Nihon Shoki (Crônicas do Japão) data de 720 d.C. De conteúdo
semelhante ao Kojiki, foi escrito inteiramente em estilo chinês. Segundo Kato (1985), o
estilo de escrita híbrido do Kojiki talvez não conviesse com o objetivo de provar a
legitimidade do poder imperial, cuja origem era divina, por isso a necessidade de uma
obra com uma história oficial escrita em bom chinês.
O Manyôshu, traduzido como “miríade de folhas” ou “miríade de poemas”,
compilado por volta de 770 d.C., é uma antologia de 20 volumes com cerca de 4500
poemas criados por homens e mulheres de todas as camadas sociais. Segundo Iwakami
(2003), é considerada a mais antiga e importante antologia de poesia lírica japonesa.
Escritos em caracteres chineses que foram utilizados, ora pelo seu significado ora pelo
som que representava, os poemas de Manyôshu são compostos por versos longos e
curtos, com a seqüência de cinco ou sete sílabas, presente em toda poética japonesa e
muito importante no haikai.
Iniciamente chamado de waka (wa= expressão designativa de Japão e ka=
poema, canto), tanka significa, ao pé da letra, poesia curta. Composto por cinco versos,
7
Tradução literal: Surgiram muitas nuvens, as muitas nuvens do palacio Izumo. Para morar com minha
esposa, construo um palácio com muitas cercas. Ah! Esse palácio com muitas cercas.
8
Para os antigos, as nuvens eram as imagens da morte, logo nelas habitavam vários deuses.
9
In: www.bugei.com.br/index.asp?show=ensaio&id=648
25
sendo os três primeiros formados por uma seqüência de cinco, sete e cinco sílabas
poéticas e os dois últimos de sete sílabas, o tanka é um exemplo de estrutura da poesia
japonesa tradicional: versos de cinco e sete sílabas, sendo preferência de muitos poetas
da atualidade.
Vejamos um exemplo de tanka do grande poeta japonês Takuboku Ishikawa
(1886-1912), em sua obra Kanashiki Ganku (Brinquedos Tristes) com tradução de
Masuo Yamaki e Paulo Colina
10
:
10
Tradução literal: Não sei porque mas inesperado parece que outras pessoas pensam como eu.
26
A brevidade da forma tanka fez com que os poetas recorressem à sugestão
para poder expandir o conteúdo expresso nos seis versos, artifício literário que
caracteriza a poesia japonesa desde então.
No século VIII, durante as festas de cunho religioso, moços e moças se
desafiavam simulando diálogos de amor, os Sômon, que aparece no Manyôshu. Esses
27
diálogos simulavam elementos líricos, cômicos e satíricos e eram travados em tanka,
numa seqüência de estrofe-pergunta seguida de estrofe-resposta. Esse divertimento
evolui para a forma literária conhecida como RENGA (versos ligados), uma seqüência
de tankas feitos por poetas reunidos. “O gênero leve, cômico ou epigramático,
chamou-se renga haikai e o poema inicial, hokku.” (Paz, 1990:157). Cito uma tradução
feita por Octavio Paz (1990: 158) para o espanhol, de um fragmento de um desses
poemas:
El aguacero invernal
incapaz de esconder a la luna,
la deja escaparse de su puño.
TOKOKU
Mientras camino sobre el hielo
piso relámpagos: la luz de mi linterna.
JUGO
11
Al alba los cazadores
atan a sus flechas
blancas hojas de helechos.
YASUI
Abriendo de par en par
la puerta norte del palacio: la Primavera!
BASHÔ
Entre los rastrillos
y el estiércol de los caballos
humea, cálido, el aire.
11
Tradução do próprio O. Paz (1990:158):
O aguaceiro invernal/ incapaz de esconder a lua/ deixa-a escapar-se de seu punho./Enquanto caminho sobre o
gelo/ piso relâmpagos: a luz de minha lanterna.
28
KAKEI
12
A evolução de renga haikai até o haiku começa a partir da separação da
primeira estrofe do tanka (5-7-5) que é chamado hokku do restante. Com a separação
do resto da estrofe, o hokku passou a chamar-se haiku. Antes de Bashô, o haiku era
uma poesia de pendor cômico. Com Bashô passou a ter tpresentes os elementos de
wabi e sabi (pobreza e solidão). O verso satírico é chamado de Senryû.
Atualmente o nome haikai é considerado sinônimo de haiku, que foi uma
mudança que alguns poetas japoneses do fim do século XV imprimiram ao renga, em
resposta a sua rigidez formal e conceitual. Haikai faz referencia aos versos cômicos, de
construção engenhosa. No Brasil, essa forma poética é conhecida apenas como haikai.
1.4 ESTÉTICA ORIENTAL E OCIDENTAL
Toda cultura estabelece seus valores específicos. A eles acrescenta valores
novos, em suas fases criativas de desenvolvimento. Errado é, no entanto,
julgar os valores de uma determinada cultura com critérios de valor de outra.
Fenômenos culturais, qualquer que seja nossa posição diante deles, só podem
ser explicados e compreendidos a partir da situação psicológica e social que
os engendrou.
Eis o que devemos aprender, se pretendemos construir um futuro em comum.
(Koellreutter, 1983:20).
Em nosso primeiro contato com o haikai, principalmente com os originais
japoneses ou suas traduções, é comum o estranhamento, a não compreensão e, muitas
vezes, a rejeição a esse tipo de poesia. Muitos deixam de perceber a beleza e riqueza
dessa forma poética porque a visão de mundo ocidental restringe sua percepção ao
racionalismo. Na maioria das vezes não estamos abertos às simples sensações. Neste
subcapítulo, pretendemos fazer uma relação entre as duas estéticas, facilitando, dessa
forma, a compreensão do haikai de Bashô em seu meio histórico e cultural.
12
Versão literal portuguesa op. Cit.
Na aurora os caçadores / atam a suas flechas / brancas folhas de feto./ Abrindo de par em par / a porta norte do
palácio: a Primavera/ Entre os rastelos / e o esterco dos cavalos / fumega, cálido, o ar.
29
A busca de uma apreensão racional do homem e de seu meio ambiente
determinou toda a história ocidental. A estética surge quando filósofos passam a se
ocupar com a investigação racional do belo e com a análise dos sentimentos por ele
provocados (Sousa, 1995:210). Do grego aesthesis, estética designa conhecimento
efetivado pelos sentidos, sensibilidade, experiência.
Na Antiguidade, especialmente com Aristóteles e Platão, o estudo da estética
era fundido com a ética e a lógica, sendo o belo, o bom e o verdadeiro uma unidade. A
beleza é o próprio bem, equivalente à verdade. Para Aristóteles a beleza é harmônica,
percebida pela visão através de coordenação harmônica entre simetria, ordem e
grandeza.
O belo ser vivente ou o que quer que se componha de partes não deve
ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza que não seja qualquer.
Porque o belo consiste na grandeza e na ordem e, portanto, um organismo
vivente, pequeníssimo, não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando
se olha por tempo quase imperceptível); e também não seria belo,
grandíssimo (porque faltaria a visão do conjunto, escapando a vista dos
espectadores a unidade e a totalidade, imagine-se, por exemplo, um animal
de dez mil estádios...). (Aristóteles, 1973:449-50).
Na tentativa de apreender racionalmente o meio ambiente e a si próprio
nasce o conceito de Absoluto. A arte é, como originalidade absoluta, parte da
atividade criadora de Deus. Segundo a estética ocidental de Aristóteles e Platão, as
artes fundem-se no logos de um Deus e na idéia do cosmos. Na Renascença, mesmo a
personalidade do artista sendo considerada a força propulsora da atividade criadora,
aceitava-se a influência de um ideal de beleza absoluto. Tempos depois Descartes
afirmava que a sensibilidade estética era a razão obscurecida. os racionalistas
franceses “vêem na forma do poema um ‘quebra-mar’ contra os caprichos humanos”.
(Tanaka apud Koellreutter, 1985:22). Somente na atualidade a arte é vista como
construção e expressão que desvela a realidade e constrói um sentido novo.
Diferentemente da visão da estética ocidental, o haikai de Bashô, objeto de
análise de nosso trabalho, “é produto de um pensamento religioso sincrético, em que o
30
animismo shintoísta convive com a doutrina budista do mundo como ilusão e
sofrimento” (Franchetti, 1990: 19). Os critérios estéticos japoneses têm estreita ligação
com o pensamento confucionista e budista.
Segundo Franchetti,
Da mesma forma, ao pensar o haikai como arte, precisamos ter consciência
de que conceitos estéticos tão familiares para nós, como, por exemplo,
verossimilhança, universalidade, particularidade, são estranhos à tradição
japonesa. Além disso nunca existiu na cultura nipônica um corpo coerente de
doutrina estética, relativamente independente da religião, que sofresse
sucessivas interpretações ao longo dos tempos, nada que se assemelhasse a
tradição aristotélica entre nós. (1990:19)
O Oriente difere do Ocidente em muitos aspectos, especialmente o fato de a
vida cotidiana, arte e filosofia (religião) se integrarem, concentrando-se na relação do
“eu” com o “outro”. O japonês precisa tornar o convívio mais harmônico, por isso o
pensamento coletivo e a renúncia do individual em prol do social.
Dois intelectuais, S. Tanaka e H. J. Koellreutter, discutiram essas diferenças
entre a estética japonesa e a ocidental em doze cartas escritas entre 1974 e a 1976. Em
uma dessas cartas, Tanaka afirma que “A harmonia é uma exigência moral e estética,
sendo nossos conceitos morais geralmente baseados na sensibilidade estética” (apud
Koellreutter, 1985: 91). Para ele, a harmonia é uma das leis supremas da moral e
estética japonesa. E para realizar esse ideal de convívio harmônico, o japonês vive de
maneira a sentir a “presença do outro”, ou seja, o kehai.
(...) o japonês formulou uma estética a que eu chamaria “estética kehai ou
shojo”. Seus fundamentos consistem em relegar o ego a um segundo plano e
em penetrar o mais possível, no mundo emocional do outro, para dessa
maneira, realizar o ideal do convívio harmônico. (apud Koellreutter 1985:41-
42)
Muitas são as diferenças discutidas pelos dois, dentre elas podemos destacar
a necessidade tradicional no mundo ocidental de uma inspiração divina ou uma musa;
a consciência intuitiva japonesa e a consciência racionalista ocidental; a sugestão como
princípio da arte japonesa.
31
Embora nossa concepção de arte e estética moderna venham se
transformando no decorrer da história e intensificando a expressão do subjetivo, desde
Aristóteles perpetua-se a idéia de que o artista (do ocidente) precisa de uma inspiração
divina para produzir sua arte. Essa seria a ligação com o Absoluto mencionada. O
artista japonês desconhece o divino. A fonte exclusiva da criação poética é a alma e o
coração do poeta.
Em seu prefácio Kana-jo” do Kokinshu ki Tsurayuki (? 945) explica o
que a arte significa para o japonês, e mostra o que distingue a estética
japonesa da ocidental: “o poema japonês tem sua raiz no coração humano e
suas folhas, em milhares de palavras. O que fazer dos homens que vivem
nesse mundo é variado, e aquilo que sentem no coração (kokoro) expressam
através de objetos percebidos pelos olhos e ouvidos. A voz do rouxinol nas
flores ou a dos sapos nas águas... qual desses seres vivos não estará se
expressando através de um canto! Tudo que move céu e terra sem o emprego
da força e causa compaixão aos espíritos e deuses invisíveis, que torna a
relação entre o homem e a mulher mais afetuosa e ameniza o coração do
guerreiro impetuoso é poema, poema nascido no tempo em que, pela
primeira vez, céu e terra se abriram”. (Tanaka apud Koellreutter 1985:41-42)
A posse e o uso da razão caracterizam o homem, que é capaz de
conhecer, refletir, raciocinar e compreender os outros e a si mesmo. O modo de pensar
acentuadamente racional caracteriza o homem ocidental desde o período final da
Antiguidade. o pensamento nipônico tem uma capacidade de compreensão
totalizante, “intuitiva”. A arte oriental se funda no princípio da sugestão. Enquanto
tentamos explicar, detalhar, o japonês tenta expressar o que não pode ser expresso.
As formas de consciência japonesa e ocidental não são semelhantes, o
que leva a marcada diferença entre o pensar, sentir, arte e estética. Koelleutter (1983)
acredita que essas diferentes consciências tendem a completar-se, enriquecendo-se
mutuamente.
1.5BASHÔ E A FILOSOFIA ZEN
32
Este sub-capítulo será dedicado a Bashô, poeta que fez com que o haikai
alcançasse a liberdade e o frescor ignorados até então.
Bashô não rompe a tradição, mas segue-a de uma maneira inesperada; ou,
como ele mesmo diz: “Não sigo o caminho dos antigos: busco o que eles
buscaram”. Bashô aspira a expressar, com meios novos, o mesmo sentimento
concentrado da grande poesia clássica. Assim transforma as formas
populares de sua época (o haiku no renga) em veículos da mais alta poesia.
(Paz, 1990:156).
Nascido em uma cultura que buscava o sentido de tudo no silêncio e no
vazio, numa sociedade que valoriza o coletivo, Bashô (1644-1694), samurai e monge
zen, colocou em prática no haikai tudo aquilo que aprendeu e alimentou a sua alma
durante a vida. Tornou-se o maior poeta de haikai do Japão, transformando essa forma
poética em um caminho (), uma via de acesso a uma experiência.
Nos seus primeiros 23 anos de vida, Bashô viveu como um guerreiro
samurai. Desde cedo o samurai assimilava as destrezas com as armas (desde as lutas
corporais ao uso de espadas, lança, bastão, arco e flecha) e uma complexa ideologia
baseada no confucionismo. O “caminho do guerreiro” ou seja, o Bushidô, tinha ênfase
no dever, no sacrifício e na preponderância do social sobre o individual.
Com a morte do seu mestre Todo Yoshitada em 1667, Bashô e os outros
samurais que deviam vassalagem ao mestre partiram e se dispersaram, virando “ronin”,
ou seja, um samurai sem senhor para servir. A partir desse momento o poeta se dedica
ao caminho do haikai, o Haikai- dô. Antes de Bashô, o haikai era poesia cômica,
epigrama, jogo de palavras. Ele transformou seu sentido, através da busca do instante
poético. Dessa forma, sua poesia é um exercício espiritual.
Discípulo do monge Bucco, Bashô enche sua poesia de zen budismo.
Conjunto de tradições religiosas que surgiram a partir dos ensinamentos de Siddhartha
Gautama, o Buda histórico (563-483 a.C.), o budismo é uma das religiões mais
difundidas na Ásia, com aproximadamente 300 milhões de seguidores. Seus principais
33
ensinamentos são: todos os seres estão sujeitos ao sofrimento (velhice, doença, etc); o
sofrimento surge de causas, como cobiça, inveja, etc; eliminando as causas o
sofrimento é eliminado; e praticando o caminho óctoplo (oito práticas ensinadas pelo
Buda), o sofrimento e suas causas serão eliminados. Para Paz, Budismo é “filosofia
antes que religião” e “postula como primeira condição de uma vida reta a desaparição
da ignorância acerca de nossa verdadeira natureza” (1990:139).
Ao se espalhar pela Ásia ao longo dos séculos, o budismo se adaptou às
necessidades locais, surgindo dessa forma várias escolas com suas tradições. Cada uma
delas enfatiza determinados aspectos e ensinamentos budistas. O Zen é uma escola que
se difundiu principalmente na China, Coréia, Vietnã e Japão. Baseia-se na idéia de que
todos têm uma natureza búdica, e que para atingir a iluminação é preciso descobrir o
Buda interior, o que requer muita disciplina e anos de estudo. A influência zen budista
chega até os samurais, shoguns e aristocratas, influenciando até o código de honra dos
guerreiros (Bushidô).
Muitas vezes, erroneamente, associamos o zen a tudo aquilo que nos parece
místico, transcendental. A filosofia ocidental usa palavras ou imagens como portadores
de conceitos, afim de que compreendamos e tenhamos consciência do mundo a nossa
volta. O zen é um pouco diferente. Essa consciência deve ser atingida sem palavras,
através de um despertar. O zen prega a iluminação súbita, chamada satori.
O treinamento nas comunidades zen encaminha as consciências em direção a
um despertar (“satori”, em japonês), uma iluminação, indescritível,
intransferível. O desabrochar de uma consciência icônica, talvez. (Leminski,
1990:115).
Essa é uma das diferenças fundamentais entre o modo de pensar e viver
oriental e ocidental: a filosofia ocidental busca a “definição” da “essência das coisas”,
a oriental, representada pela filosofia zen, passa pelo plano transverbal.
34
O zen influenciou profundamente a cultura japonesa. A formalidade que
cerca a prática da meditação zen no Japão provavelmente se deve a influência da
formalidade da cultura japonesa, onde tudo é precisamente regulamentado como o
modo de andar, de sentar-se e de entrar em uma sala de meditação. Nos mosteiros
tradicionais, o zen é acessível às pessoas através dos “dôs”, “caminhos”, vias de acesso
a uma experiência. que o zen não se explica com palavras a única forma de
compreendê-lo é através da experiência, da vivência. Os principais caminhos são o
Kendô (caminho da espada), o Kyudô (caminho do arco e flecha), o Shodô (caminho da
caligrafia), o Chadô (caminho do chá), o Kadô (caminho das flores) e, a partir de
Bashô, o Haikaidô.
No ken-dô, através do zen tenta-se alcançar a compreensão do imóvel, os
conceitos de não-pensamento e espontaneidade. Tudo converge para a não-ação, para o
estático. As qualidades do Sadô são a harmonia, o respeito, a tranqüilidade e a pureza.
Segundo Blyth, “o modo como um mestre do Chá caminha, sua inconsciência, seu
andar-como-se-não-estivesse-andando, era o que Bashô queria atingir no haikai” (apud
Leminski, 1990:125). Tudo isso pode parecer muito estranho aos olhos de um
ocidental, tão acostumado a um modo de vida dinâmico e acelerado, não conseguindo
compreender o que está por trás do silêncio, do estático e do não agir. Como diz
Teitaro Suzuki
13
, "em muitos casos o silêncio é tão eloqüente como a loquacidade..."
Enquanto o pensamento ocidental é muito mais racional que intuitivo, o pensamento
oriental é predominantemente intuitivo, característica essa herdada do budismo zen.
Entre o zen, a arte e a poesia oriental uma relação muito direta. Para o
japonês, vida e arte se integram. A arte é expressão e produto exclusivo do homem,
nasce da subjetividade, do intuitivo, do equilíbrio interior. Bashô elaborou sua poética
através de sua vivência profunda e incessante com o haikai, unindo filosofia, modo de
vida e arte.
13
In Nojiri, Antonio. Poesia Japonesa. São Paulo: Zipango, 2005. p. 37.
35
Para Leminski, Bashô é “santidade e sentido, guerreiro de nascença e
formação, monge por escolha, poeta por fatalidade” (1980:83). Chega a ser comparado
por ele a São Francisco de Assis (1182- 1226) jovem rico que abandonou tudo,
andando errante e maltrapilho em afronta e protesto à sociedade burguesa da época,
entregando-se a um estilo de vida fundado na pobreza, na simplicidade de vida e amor
total a todas as criaturas. Embora vivendo realidades completamente diferentes, ambos
abandonam a vida que possuíam para viver segundo aquilo que acreditavam, além da
sensibilidade para sentir o mundo a sua volta.
Francisco conseguia
entender
o que a ave dizia.
Bashô enxergava
a lágrima
no olho do peixe.
(Alice Ruiz)
Para Bashô, a arte é um caminho, um modo de viver no mundo. E nos
ensina: “Aprenda a respeito do pinheiro diretamente do pinheiro, a respeito do bambu,
diretamente do bambu”. Ou seja, devemos encarar o objeto diretamente, penetrando-o.
Dessa forma, o desconhecido se revela e sensibiliza a alma, nascendo, assim, a poesia.
1.6 A ARTE DO HAIKAI
O haikai é uma forma de canto. O canto existe desde o início do céu e da
terra. Quando a deusa e o deus desceram do céu a Onokoro -jima, a deusa
disse primeiro: “Ah, que homem encantador!” E então o deus disse: “Ah, que
mulher encantadora!” Isso ainda não era canto. Mas como o canto é a
expressão em palavras do que sente o coração, vê-se aí a origem do canto.
36
No tempo dos deuses o número de sílabas não era fixo, mas chegando a
idade dos homens definiram-se, com Susanô-no-Mikoto, as trinta e uma
medidas:
Yagumo tatsu Todas essas nuvens
Izumo yaegaki que se acumulam
Tsuma gomeni no céu de Izumo
Yaegaki tsukuru parecem muros
Sono yaegaki wo construídos para nos abrigar
Diz-se que foi com este canto que o número de sílabas ficou determinado. E
como se tratasse da maneira do país de Wa, passou a se chamar Waka. (Toho
apud Franchetti, 1990:9).
14
O haikai é uma modalidade poética de origem japonesa que prima pela
simplicidade, concisão e plasticidade. Segundo o dicionário MICHAELIS, haikai é
“uma pequena composição poética japonesa, em que se cantam as variações da
natureza e a sua influência na alma do poeta. Consta de dezessete sílabas, divididas em
grupos de cinco, sete e cinco”. Luis Antônio Pimentel
15
nos define haikai de uma
maneira mais poética, através de um próprio haikai:
Que é um haikai?
É o cintilar das estrelas
Num pingo de orvalho!
Poema breve, o haikai é composto de 17 sílabas poéticas organizado em três
versos, sendo o primeiro composto de cinco sílabas, o segundo de sete e o terceiro de
cinco. Não tem título nem seus versos possuem rima. É uma poesia simples e concisa
onde abundam os substantivos.
Antes que fossem escritas as poesias no Japão, o que aconteceu no século
seis depois de Cristo quando os japoneses dominaram a escrita chinesa, as pessoas
diziam tankas aos deuses e aos monarcas no poder. A poesia japonesa tradicional se
estrutura na alternância de versos de cinco e sete sílabas. O tanka, também chamado
waka, é um antecessor do haiku. É também um poema curto, mas um pouco maior que
14
A forma poética original presente no Kojiki é apresentada como a origem da métrica clássica da
poesia japonesa (5/7/5). Nesse capítulo foram apresentadas duas traduções para este mesmo poema,
uma na página 13 e a presente nesta página.
15
Citado no site: www.universodohaikai.cjb.net
37
esse. São 31 sílabas divididas em duas estrofes, a primeira de três versos (5, 7 e 5) e a
segunda de dois versos de sete sílabas. Na criação do tanka geralmente participavam
dois poetas: um escrevia os três primeiros versos e o outro os dois últimos. Depois
começaram a ser escritas séries inteiras de tankas ligados por um tema (geralmente ao
das estações). Esses poemas encadeados passaram a se chamar Renga.
A evolução de renga até o haiku começa a partir da separação da primeira
estrofe do tanka (5-7-5), do restante que é chamado hokku (7-7). Vejamos um tanka
escrito por Raimundo Gadelha (1991), poeta e fotógrafo brasileiro, que estudou a
cultura japonesa e escreveu tankas em português, mantendo as características originais
de um tanka:
Temos no olhar
a prisão de imagens
e no coração
sede de liberdade…
a emoção do vôo.
Quanto ao conteúdo, segundo os poetas japoneses do século XVII,
“haikai é simplesmente o que está acontecendo neste lugar, neste momento”. É a
descrição de um acontecimento, geralmente trivial, que chamou a atenção do poeta. A
vegetação, o clima, as estações do ano ou um riacho podem ser o tema de um haikai.
À primeira vista essa forma poética parece muito simples de escrever e
interpretar, já que uma poesia tão pequena não deve conter muitas informações. Mas
está a grande dificuldade: por ser composto por apenas três versos com 17 sílabas, o
haikai deve ser conciso, mas repleto de significação. Como afirma Paz, “sua própria
brevidade obriga o poeta a significar o muito dizendo o mínimo” (1980:16). Eis a arte
do haikai.
38
O haikai é essencialmente contemplativo, registro do instante poético, e
nossa visão de mundo aristotélica
16
tende a obscurecer a diferença entre as palavras e
as coisas, ou seja, o fato de que “um objeto ou uma sensação [...] não são verbais, não
são palavras” (Korzybsky apud Campos, 2000:233). A meta filosófica tradicional no
Ocidente tem sido a busca da definição de “essência das coisas”. Enquanto um
ocidental “é” no mundo, o oriental “está”.
Para se compreender o caminho do haikai precisamos compreender o
ambiente cultural em que ele se desenvolveu. O haikai de Bashô é um exercício
espiritual; o budismo zen está presente em sua obra e em sua vida. Sua obra capital foi
ter elevado o haikai ao estatuto de um michi, um , ou seja, um caminho de ida, uma
forma de ver e viver o mundo. é uma via de acesso a uma experiência. Haikai-dô
ou caminho do haikai é a poesia como exercício espiritual. O zen budismo é a
expressão dos valores que ele cultiva: a espontaneidade, a intuição, o aperfeiçoamento
espiritual.
Os termos de central importância para o haikai de Bashô são o SABI e o
WABI. O sabi caracteriza o poema pelo clima de solidão e tranqüilidade.
Em solidão,
Como minha comida -
E sopra o vento do outono.
Issa
17
O wabi se refere mais ao desapego das coisas deste mundo. É modéstia,
desprendimento, simplicidade. A poesia que predominou antes de Bashô era
ostensivamente trabalhada e aparentemente carregada de sentido. Bashô tem sua
definição do haikai ideal: “Na minha presente concepção, um bom poema é aquele em
16
Segundo A. Korzybiski denomina, a estrutura de língua tradicional indo européia interiorizada por nós
educados na cultura ocidental e, segundo ele, inadequados para a solução dos problemas contemporâneos.
17
In: FRANCHETTI, Paulo (org). Haikai. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990:21.
39
que tanto a forma do verso quanto a junção de suas partes parecem leves como um rio
raso fluindo sobre um leito arenoso”.
18
A restauração Meiji de 1868 não abriu o Japão às influências ocidentais,
mas também constituiu um ponto de partida no interesse de outros países pela cultura
japonesa, que o intercâmbio cultural até então havia sido mínimo. A partir desse
momento, o interesse pela arte nipônica vem crescendo cada vez mais no mundo
inteiro. Poetas ingleses, franceses, portugueses, espanhóis, hispano-americanos e
também brasileiros tomaram conhecimento dessa forma poética até então desconhecida
no ocidente e passaram a dedicar-se à sua arte.
1.6.1 O HAIKAI NO BRASIL
O haikai chegou ao Brasil em 1919 com o poeta Afrânio Peixoto e, desde
essa época, vem passando por vários momentos como perder e ganhar rima e título, o
que gerou algumas polêmicas quanto a sua forma e dividiu os haicaístas em três
correntes.
19
A primeira corrente defende o tradicional haikai japonês, conservando a
forma e a métrica, a linguagem simples sem rima e o kigô
20
. Seus principais
representantes são Edson K. Iura, Francisco Handa, Douglas Eden Brotto, Francisco
Pichorim, Paulo Franchetti, Luis Antônio Pimentel, Antônio Seixas, Jorge Fonseca
Ramos e outros. A segunda corrente é a de Guilherme de Almeida, que afirma que o
haikai deve ter título, rima e métrica rígida. A terceira corrente incorpora ao haikai as
tradições brasileiras, acrescentando-lhe novas possibilidades temáticas e a não
valorização da métrica. Seus principais representantes são poetas como Paulo
Leminski, Helena Kolody, Millôr Fernandes, Alice Ruiz e mais recentemente César
Silveira e Olga Savary.
18
Opus cit.
19
Divisão feita por Franchetti que será retomada novamente no capítulo três.
20
Referência a natureza expressa por uma palavra que representa uma estação do ano.
40
Na nossa região o haikai é pouco conhecido, mas também temos nossos
representantes. Entre os haicaístas nordestinos, mencionamos o cearense Adriano
Espínola, que publicou o livro Trapézio (1984). Dentre suas poesias podemos destacar
quatro, que se referem às estações do ano.
Primavera Verão
Uma borboleta Ao sol, um lagarto.
em dois divide o ar. Depois A tarde ali se espicha e arde.
pinta-o de violeta. De calor, vou farto.
Outono Inverno
Folhas. Ventania. Caem jenipapos.
Cajus se despencam nus: A chuva desaba viúva
apodrece o dia. Soluçam os sapos.
O haiku japonês está impregnado de um forte sentimento de estações do
ano. É o kigô. A primavera identifica-se com o florescer das cerejeiras, o canto das
aves, as sete flores da primavera, etc. O verão com o canto dos insetos, as chuvas, a
plantação. Os patos, as garças e a colheita do arroz são próprias do outono. O inverno
vem acompanhado da neve, do vento e dos campos vazios. Mas, ao contrário do Japão,
grande parte do Brasil não tem as estações do ano bem definidas. Como exemplo,
temos o Estado do Ceará, que possui apenas duas estações: a chuvosa e a não-chuvosa.
Curiosamente, Adriano Espínola faz um haiku para cada estação do ano. Mas as
retrata, mostrando através de elementos regionais, como são as estações do ano do
ponto de vista do cearense.
Como pudemos perceber, a arte de escrever um haikai consiste em
descrever o momento com poucas palavras, em apenas três versos. O haijin (haicaísta)
nos sugere algo. Nós leitores desenvolvemos essa sugestão, o que estas poucas
palavras querem nos transmitir.
41
2. TRADUÇÃO LITERÁRIA: UMA REFLEXÃO TEÓRICA
A tradução é um elemento importante em todo processo literário e deva ser
estudada nas várias formas de sua contribuição além de em si mesma, como
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concretização possível de outros textos, de outras culturas. É, sem dúvida,
como se reitera sempre, um recurso indispensável à escrita da história
literária, pois que a análise das traduções em seu conjunto permite que nelas
se acompanhe o processo evolutivo das formas, dos gêneros e do gosto, pela
penetração tardia ou rápida das idéias, dos estilos e das atitudes críticas
alheias. Além disso, como estratégia e lugar das meditações interliterárias, a
tradução é modernamente considerada recurso essencial das relações com o
Outro. (Carvalhal,2004:23)
Tradicionalmente, tradução nos remete à idéia de fidelidade e equivalência
(termos tratados aqui como sinônimos) objeto de estudo de várias correntes teóricas no
decorrer da história. A atividade tradutória sempre gerou discussões a respeito de como
conservar ou manter a essência do texto original, e em cada época há um ponto de vista
sobre o fenômeno tradutório. A maioria dos escritores e poetas que abordam a tradução
de textos literários considera que traduzir é destruir. uma frase italiana muito
conhecida que afirma que o tradutor é um traidor (traduttore, traditore), reforçando a
idéia de tradução como inferior. Alguns chegam a afirmar que pode traduzir poesia
quem for poeta. O tradutor e poeta José Paulo Paes acredita que o tradutor de poesia
deveria ter o mesmo tipo de inventividade do poeta, “ainda que em segundo grau”.
Com o intuito de compreendermos melhor os diferentes pontos de vista dos
tradutores analisados nesta pesquisa, faremos um breve apanhado das reflexões
teóricas sobre a noção de tradução no decorrer do tempo e da questão da fidelidade.
Também abordaremos os estudos comparatistas através de um breve explanação sobre
a literatura comparada. Como último tópico deste capítulo apresentaremos uma breve
explanação sobre a semiótica peirciana e como ela pode auxiliar nossa análise.
2.1 A TRADUÇÃO NO TEMPO
As discussões acerca da fidelidade de um texto traduzido do original é algo
que remonta à Grécia Antiga. Cícero, ao traduzir o Protágoras de Platão, já declarava:
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O que homens como vós... chamam de fidelidade em tradução os eruditos
chamam de minuciosidade pestilenta... é duro preservar em uma tradução o
encanto de expressões felizes em outra língua... Se traduzo palavra por
palavra, o resultado soará inculto, e se, forçado por necessidade, altero algo
na ordem ou nas palavras, parecerá que eu me distanciei da função do
tradutor. (apud Milton,1998:5)
O conceito de fidelidade é uma questão bastante recorrente na literatura de
tradução, um ponto central. Ser “fiel” é o mesmo que ser “equivalente”, termo
provavelmente tomado da matemática, na tentativa de estudiosos de tradução
construírem uma terminologia própria. Em matemática, o termo ‘equivalente’ significa
“ser o mesmo, igual em relação a” alguma coisa. Na tradução, “fidelidade” tem seu
significado a cada época. No período Renascentista o trabalho do tradutor era inferior
ao original, mas após 1650, a tradução passa a ser vista como preservação da
“chama”, da essência, do original.
Nos dois últimos séculos, essa noção de equivalência tem variado muito.
Para Benjamin (2001), tradução não é igual, mas deve assemelhar-se ao modo de
designar do original:
Assim como os cacos de um vaso, para poderem ser recompostos, devem
seguir uns aos outros nos menores detalhes, mas sem se igualar, a tradução
deve, ao invés de procurar assemelhar-se ao sentido do original, ir
reconfigurando, em sua própria língua, amorosamente, chegando até os
mínimos detalhes, o modo de designar do original, fazendo assim com que
ambos sejam reconhecidos como fragmento de uma língua maior como cacos
são fragmentos de um vaso. E precisamente por isso, ela deve abstrair do
propósito de comunicar e, em larga medida, do sentido, sendo-lhe o original
essencial apenas pelo fato de ter eliminado pelo tradutor e sua obra o
esforço e a ordem próprios de comunicar. (2001:207)
As teorias que enfocam a tradução sob o prisma da lingüística vêem a
equivalência como
um conjunto de requisitos básicos, que não tem fundamento nos textos ou nas
culturas envolvidas, mas em exigências abstratas, determinadas pelo modelo
em que se baseia a proposta. A relação de significação postulada é estática e a-
histórica, pois a tentativa de formulação de métodos para atingir a exata
significação dos textos por meio da análise lingüística pretende ser válida
universalmente. Isso vincula a concepção de equivalência a uma noção de
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tradução como transporte ou substituição de significados pretensamente
neutros, que não sofreriam influência do meio para que se dirigem (Rodrigues,
2000: 100).
Jakobson define a tradução como mensagens equivalentes em dois códigos
diferentes e Toury (1980) propõe que a equivalência entre texto fonte e texto alvo seja
apenas uma relação possível entre dois textos que a equivalência tem suas
limitações. Para Pound, o tradutor é como um recriador do original, idéia também
adotada pelos irmãos Campos.
Como podemos perceber, a visão dos conceitos de fidelidade e equivalência
se modifica durante o tempo e cada tradutor adota uma visão. Vejamos agora um
pouco das concepções sobre tradução no decorrer da história.
A prática da tradução se inicia no momento em que povos separados por
barreiras geográficas e diferentes culturas passam a relacionar-se. Podemos considerar
a tradução da Bíblia como marco inicial da arte de traduzir no Ocidente. Jerônimo, tido
como patrono dos tradutores, traduziu a Bíblia do hebraico para o latim no século IV.
Com a Reforma Protestante no século XVI, a Bíblia passa a ser traduzida em línguas
populares e difundida entre povos de diversas origens, após a invenção da imprensa.
Dessa forma, o trabalho dos tradutores começa a ser mais e mais requisitado, surgindo
teorizações diversas a respeito da arte de traduzir.
Do fim do século XVII até o século XVIII, podemos destacar o período
Augustan, que foi a primeira tentativa de uma teorização do ato tradutório. Originado
na Inglaterra, tem como figuras centrais John Dryden, Alexander Pope, Abraham
Cowley, Lorde Roscommon e Lorde Woodhouslee.
Os Augustans tinham a plena consciência de que seu período era um período
de melhoria na sociedade (...) E a solução dos Augustans foi a de seguir
modelos clássicos tanto em literatura, como na linguagem, na arquitetura e na
culura como um todo. Os autores gregos e latinos foram os modelos para os
Augustans. (Milton 1998:25).
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John Dryden figura mais influente na segunda metade do século XVII na
Inglaterra, teceu os comentários sobre as traduções mais importantes do período.
Dryden dividia a tradução em três tipos: metáfrase, paráfrase e imitação. A metáfrase é
a tradução literal. O próprio Dryden adverte que é quase impossível traduzir
literalmente e bem. Na paráfrase, ou “tradução com latitude”, o texto é traduzido
parafraseando o original, o autor é mantido ao alcance dos olhos. Na imitação o autor
tem a liberdade de variar as palavras e o sentido, modificando-os quando achar
conveniente.
Segundo Milton (1998), para Dryden.
o mais importante é que o tradutor seja poeta e mestre de ambas as línguas
com as quais trabalha. Também tem de estar completamente familiarizado
com as características do seu autor e deve tentar associar-se ao autor. (p. 27).
Podemos destacar alguns pontos centrais do período Augustan, dentre eles a
preocupação em ser fiel ao texto original, ao mesmo tempo em que tenta “melhorar”
sua qualidade de escrita, como a manutenção da métrica e as rimas emparelhadas na
poesia. Não consideravam o original como sagrado, intocado, que devesse ser
reproduzido na língua de chegada. Prezavam as versões livres, mas também não
admitiam uma liberdade total do tradutor que, além de ser sensível ao autor, deveria
admirá-lo e sentir uma relação próxima com ele (Milton, 1998), além de preocupar-se
em traduzir o texto de forma que enriqueça o leitor intelectualmente. Interessante notar
que muitos dos preceitos da tradição Augustan são muito semelhantes aos atuais, como
o consenso de que a tradução literal nunca chega ao núcleo do original. Podemos dizer
que esses conceitos ainda são atuais.
Por sua vez, a arte de traduzir francesa e alemã desenvolveu-se em épocas
cronologicamente paralelas, entretanto com idéias completamente opostas. As belles
infidèles, como eram chamadas na França (século XVII), seguiu um caminho muito
diferente da tradição Augustan. Para chegar à clareza do som, a suavidade e, sobretudo,
o prazer do público leitor, os tradutores franceses faziam alterações significativas em
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suas traduções, dentre elas acréscimos e omissões. Segundo Milton, muitas
modificações eram feitas para eliminar aquilo que julgavam inapropriado nos clássicos
originais, “a embriaguez e as práticas homossexuais dos macedônios, o estupro de
Britânico por Nero e o adultério de Agripina e Palas são todos eufemizados”
(1998:16).
Nas traduções de d`Ablancourt encontramos um culto ao belo. Para alcançar
a beleza era necessário eliminar todo tipo de obscuridade. Para conseguir ser
equivalente ao texto original, os franceses acreditavam que deveriam criar uma
“impressão” semelhante, o que não seria feito através da tradução literal. Esta afastaria
cada vez mais a tradução da mensagem original, obscurecendo-a. O importante era
adaptar o texto original.
Os tradutores franceses demonstram desaprovação por traduções feitas palavra
por palavra (...) d`Ablancourt menciona sua reprovação ‘dessa tradição
judaica, que segue a letra e que suprime o espírito’. Traduzir um autor dessa
maneira apenas mostrará a metade de sua eloqüência traindo-o e desonrando-
o: ‘é privar um homem de boa casa a quem fingimos hospedar em nossa casa’.
(Milton, 1998: 60).
Na Alemanha a tradução influiu politicamente aproximando culturas
distantes. Após a tradução da Bíblia por Martinho Lutero (1483-1546), do latim para
vários dialetos alemães, a literatura alemã começou a desenvolver-se. O momento era
bastante propício, pois o alemão era uma língua em construção, tendo em vista o
processo de unificação dos reinos independentes que culminaria na formação do povo
alemão.
Os tradutores alemães, dentre eles Friederich Schleiermacher, Friederich
Schlegel, Johan Goethe e Mme. De Stael praticavam a tradução identificadora, que
considerava a tradução como de grande valor para o indivíduo, que apresentava ao
leitor a nova cultura, cabendo a ele absorver o que lhe interessasse. Dessa forma, a
língua alemã seria como um armazém para a literatura do mundo.
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Interessante notar como as belles infidèles e a tradição alemã diferem,
embora sejam contemporâneas: alemães com a tradução identificadora e os franceses
com a tradição naturalizadora. Encontramos nas idéias alemãs algo de antifrancês, ou
seja, os alemães iam de encontro com as idéias dos tradutores franceses que faziam
com que qualquer texto clássico, em nome da clareza, soasse francês. Por esses
motivos os alemães os julgavam insensíveis ao original.
No século XX uma grande revolução no mundo literário foi instaurada por
Erza Pound. Figura importante do período, grande poeta e tradutor, Pound exerceu um
papel central na teorização da tradução desse século. Grande poeta e tradutor, Pound
consegue elevar a tradução a um plano superior, colocando abaixo a necessidade de
tradução total e erudição mantida por outras tradições. Ele acredita que a tradução é
uma força importante ao escrever poesia e entender literatura. Era fundamental acabar
com qualquer separação entre leitor e obra.
Ele pregava o fim da metafísica para o estudo literário e repudiava qualquer
tipo de abstração em torno da arte. Para ele, não deveriam existir biombos
críticos entre leitor e obra. A crítica era válida enquanto processo de um
exercício de escuta, o que, segundo Heidegger, é o princípio de toda abertura e
interação, para deixar em segundo plano o pensar sobre (isto é, o abstrair) a
obra (no ABC da literatura ele diz: “Se alguém quiser saber alguma coisa
sobre poesia, deverá fazer uma das duas coisas ou ambas. E, é olhar para ela
ou escutá-la. E, quem sabe, até mesmo pensar sobre ela”). (Márcio-andré,
2005).
Ao falar sobre a possibilidade de se traduzir, Pound esclarece que a poesia
tem três elementos. O primeiro é a melopéia. Este elemento seria a musicalidade, o
som das palavras, difícil de ser traduzido devido à sonoridade e musicalidade particular
de cada língua. O segundo elemento é a fanopéia, uma projeção de imagens na
imaginação. Conseguir as mesmas imagens nas duas línguas seria possível através de
palavras bem escolhidas. A logopéia, terceiro elemento, não pode ser traduzida, mas
parafraseada. É o uso especial de palavras no poema, como os jogos de palavras. Mas
termos equivalentes podem ser ou não encontrados. Segundo essa concepção não se
pode manter tudo no original, a visão do tradutor é mais importante.
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A partir de Pound a tradução passa a ser vista como um processo criativo
que auxilia no desenvolvimento da linguagem. Esse processo de “recriar” exerceu
grande influencia sobre os poetas concretistas brasileiros, especialmente os irmãos
Campos.
Quando os poetas concretos de São Paulo se propuseram uma tarefa de
reformulação da poética brasileira vigente, (...), deram-se, ao longo de suas
atividades de teorização e de criação, a uma continuada tarefa de tradução.
Fazendo-o, tinha presente justamente a didática decorrente da teoria e da
prática poundiana da tradução e suas idéias à função da crítica e da crítica
via tradução como “nutrimento do impulso” criador. Dentro desse projeto,
começaram por traduzir em equipe 17 Cantares de Ezra Pound, procurando
reverter ao mestre moderno da arte da tradução de poesia os critérios de
tradução criativa que ele próprio defende em seus escritos. (Campos, 1976:30-
31).
Pound liberou a tradução de várias maneiras. O tradutor moderno passa a ter
liberdade de escolher em que “grau de fidelidade ao original” ele vai se colocar,
podendo também se concentrar em outras características do texto, como a
musicalidade. Enquanto Dryden afirma que o tradutor deve seguir os passos do texto
original, Pound diz que a tradução deve ser dominada pelo tradutor, e este deve pôr sua
essência nela.
É importante ressaltar que Ezra Pound foi o intermediário entre a poesia
oriental e o ocidente. Devido a sua intuição e sensibilidade de poeta inventor, foi
escolhido, pela viúva de Ernest Fenollosa como legatário dos manuscritos do sinólogo
sobre seus estudos sistemáticos de poesia chinesa em 1897. Fenollosa (1853-1908) foi
um professor americano que teve papel importante na Era Meiji para a preservação da
arte nipônica. Fenollosa estudou a língua chinesa como instrumento para a poesia,
percebendo no ideograma chinês a presença de “harmônicos” que transformam o verso
em algo pictórico. Em contato com a arte oriental, Pound recebeu influência do haikai,
escrevendo assim, um de seus mais famosos poemas:
49
The apparition of the faces in a crowd;
Petals on a wet black bough.
(A aparição das caras na multidão;
Pétalas em negro galho molhado.)
21
Como vemos, Pound foi uma figura de grande importância no século XX.
Com o lema “Make it new” (renovar), deu grandes contribuições às teorias de
tradução. As idéias apresentadas por outros tradutores do século XX não são nada mais
que repetições das idéias de Pound, de Dryden e dos Augustan. A maioria dos
tradutores contemporâneos tem consciência da importância da forma do poema a ser
traduzido, não tendo nenhuma forma padrão para ser seguida.
Em 1921, Walter Benjamin escreveu o ensaio A tarefa do tradutor,
causando grande impacto nos estudos de tradução. Define tradução como uma forma,
reconceituando desta maneira a tarefa do tradutor. Segundo Milton (1998), nesse
ensaio Benjamin “coloca a tradução dentro da tradição cabalística”, enfatizando que a
“tradução verdadeira traduz a forma da obra-fonte”, ou seja, “a importância da obra
poética está mais na forma do que no conteúdo” (p. 160).
uma tradução verdadeira é transparente; não encobre o original, não bloqueia
sua luz, mas deixa pura a linguagem, como se fosse revigorada por seu próprio
meio, brilhar no original ainda mais plenamente. (Benjamin apud Milton,
1998:160).
Dessa forma Benjamin afirma que tradução é uma forma cuja lei reside no
original, e esse vínculo estreito com o original se dá através da traduzibilidade.
A traduzibilidade é, em essência, inerente a certas obras; isso não quer dizer
que sua tradução seja essencial para elas mesmas, mas que um determinado
significado inerente aos originais se exprime na sua traduzibilidade. É mais do
que evidente que uma tradução, por melhor que seja, jamais poderá ser capaz
de significar algo para o original. Entretanto, graças a sua traduzibilidade, ela
encontra-se numa relação de grande proximidade com ele. (Benjamin,
2001:193).
21
Citado e traduzido in Milton, 1998:91.
50
Através de algumas metáforas, ele analisa a relação entre texto original e
tradução. Diz, por exemplo, que no original conteúdo e língua formam uma unidade
determinada como a fruta e a casca, enquanto a língua da tradução envolve esse
conteúdo como um manto real com dobras sucessivas. Outra metáfora muito conhecida
de Benjamin é a que ele compara o original a um vaso e a tradução a um vaso
quebrado, que teve seus cacos recompostos. Com essa metáfora, ele se refere à questão
da fidelidade, afirmando que por mais que esses cacos sejam o vaso, quando
recompostos jamais serão como o original. Em suma, a tradução jamais poderá igualar-
se ao original.
Benjamin concorda com Pannwitz em seu livro Crise da cultura européia,
quando afirma que
Nossas traduções (mesmo as melhores) partem de um falso princípio, elas
querem germinar o sânscrito, o grego, o inglês, ao invés de sanscritizar,
grecizar, anglicizar o alemão. Elas possuem um respeito muito maior diante
dos próprios usos lingüísticos do que diante do espírito da obra estrangeira.. O
erro fundamental de quem traduz é apegar-se ao estado fortuito da própria
língua, ao invés de deixar-se abalar violentamente pela língua estrangeira.
Sobretudo quando traduz de uma língua muito distante, ele deve remontar aos
elementos últimos da própria língua, onde palavra, imagem e som se tornam
um só; ele tem de ampliar e aprofundar sua língua por meio do elemento
estrangeiro. (apud Benjamin, 2001:211).
Acredita que deve-se deixar as influências de língua estrangeira entrarem, aumentando
dessa forma as possibilidades de desenvolvimento da própria língua. Em seu ensaio
Benjamin também comenta que podemos nos aproximar da língua pura (Ursprache)
através da tradução.
A partir da segunda metade do século XX, surgem muitos trabalhos
abordando a tradução do ponto de vista da lingüística. Seus principais representantes
foram Eugene Nida, que usava “o instrumento mental da lingüística para solucionar
questões de tradução” e John Catford, que “buscava na teoria lingüística bases para a
sistematização da tradução” (Rodrigues, 2000: 25-26). Esses autores se baseiam na
51
noção de equivalência enquanto idéia de igualdade, termo este provavelmente
absorvido da matemática.
A lingüística contrastiva, vertente ligada a Catford e também representada
por Halliday, segundo Rodrigues (2000) acredita que a tradução seja a “relação entre
dois ou mais textos que desempenham papel idêntico”. Embora tenham a questão da
equivalência como central, nenhum teórico dessa vertente conseguiu definir com
precisão o que seria equivalência.
A vertente dos estudos lingüísticos vinculada a Nida é a que “não tem como
objetivo sistematizar a tradução com fundamentos lingüísticos”, mas “usar a lingüística
como instrumental para análise e solução de problemas de tradução” (Rodrigues, 2000:
62). Nida concebe tradução como igualdade de valores, fragmentando o conceito de
equivalência, embora não o defina, apenas repetindo o termo sem explicá-lo.
O objetivo de Nida é descrever cientificamente “o processo de transferência
de uma mensagem de uma língua para outra” (1964, p.6). Em outras palavras,
pretende “fornecer uma abordagem essencialmente descritiva para o processo
de tradução” (p.8). No entanto, nos pontos em que efetivamente trata de
tradução, uma série de orações em que emprega “é necessário”, “o tradutor
deve”, “deveríamos”, “o tradutor precisa”, que apontam para a prescrição e
não para uma mera descrição de problemas (Rodrigues, 2000:63).
Em seus textos, as soluções de problemas de tradução são apresentadas de
forma normativa, como receitas para que um tradutor seja bem sucedido.
Resumindo, os estudos de tradução através dos lingüistas, nas suas duas
vertentes, têm em comum a tentativa de determinar o que é “equivalente de tradução”.
Ambas priorizam a cultura e a língua de partida e “compartilham objetivos
prescritivos, ainda que seus métodos sejam diferentes” (Rodrigues, 2000:98). No
entanto, muitos trabalhos que falam de tradução não sistematizam em um enfoque
teórico, mas buscam particularidades da recriação literária. Dois grupos de estudos
sobre tradução literária se destacaram, dirigindo críticas específicas a abordagens que
se baseiam na noção de equivalência,
52
direcionando seus estudos para a análise da solução dada por um certo
tradutor ou grupo deles, e para as razões pelas quais uma determinada escolha
foi feita, em detrimento de outras possíveis, e evitam a prescrição de regras
(Rodrigues, 2000: 103)
O primeiro grupo, conhecido como grupo de Tel Aviv, tinha como
principais nomes Itamar Even-Zohar e Gideon Toury. Devido a insatisfação com o
registro e classificação positivista, Even-Zohar propõe “uma abordagem na sua visão,
funcional e relacional” (Vieira, 1996: 124). Ele os fenômenos semióticos como um
sistema, de caráter dinâmico e heterogêneo. Para enfatizar essa idéia, Even-Zohar
passou a chamar esse sistema de “poli-sistema”.
Um poli-sistema, então, seria uma rede fechada de relações na qual os seus
membros assumem um determinado valor através de seus respectivos opostos.
Mas ele é também uma estrutura aberta composta de várias redes simultâneas
de relações (Even-Zohar apud Vieira, 1996: 125).
Segundo Milton (1998), esse grupo afirma que a fonte deve ser totalmente
desconsiderada. Toury acredita que raramente as traduções influenciam no sistema da
fonte, e nunca influenciam suas normas lingüísticas, elas “são fatos de um único
sistema: o sistema alvo” (Toury apud Milton, 1998: 188). Ele salienta o aspecto da
diferença em que o texto traduzido é o “outro” em outro contexto.
Toury entende, portanto, que os estudos devem se direcionar a fim de
descobrir a maneira pela qual as traduções se moldam para satisfazer os
objetivos do pólo receptor, e de como as funções que devem preencher
influenciam sua produção (Rodrigues, 2000:133).
Além dessas características, esse método é descritivo, pois analisa as
traduções tentando levar em conta os vários elementos dentro de uma tradução, como o
desenvolvimento histórico da tradução em uma dada sociedade etc.
O segundo grupo, de André Lefevere e Susan Bassnet, é conhecido como
grupo Anglo-saxônico e acolhe algumas das concepções do grupo de Tel Aviv. Ambos
têm em comum rejeitar a noção de equivalência enquanto construto definido com base
53
no texto de partida. Ambos enfatizam a importância dos aspectos espaços-temporais,
que os tradutores sofrem influência dos tempos em que vivem, das tradições literárias
que tentam conciliar e dos traços das línguas com os quais trabalham. Mas Lefevere
analisa o comportamento tradutório. Seu objetivo é estudar a tradução literária e
pesquisar os fatores que influenciam a produção de tradução em certos períodos ou
culturas.
Ele enfatiza o papel dos agentes de continuidade cultural, do contexto
receptor na transformação de textos e criação de imagens de autores e
culturas estrangeiras, bem como o da tradução de cânones literários. Ou seja,
as traduções, produzidas dentro dos limites ideológicos e poetológicos da
cultura receptora, têm também um efeito retroverso ao criarem imagens da
cultura originária e cânones transculturais. (Vieira, 1996:138).
Ainda considera tradução como reescritura, que não é isenta nem objetiva,
que reflete uma certa ideologia. Para Lefevere, fidelidade é apenas uma estratégia
tradutória para transmitir a ideologia conservadora, e tratar a “tradução fiel” como a
única possível é utópico e fútil. Frequentemente são essas “traduções fiéis” que se
inspiram em uma ideologia conservadora.
Os estudos das escolas de Tel Aviv e Anglo-saxônica ficaram conhecidos
como Estudos Descritivos, porque propõem uma análise de tradução literária numa
perspectiva histórica, levando em consideração a cultura de chegada e a articulação
entre o texto original e tradução. A análise a que se propõe essa dissertação é feita, de
uma forma geral, nessa perspectiva, visto que nossa intenção é descrever os recursos e
estratégias (escolhas) usadas nas quatro traduções do poema da de Bashô pelos seus
respectivos tradutores.
Além dos Estudos Descritivos, uma outra linha de pensamento surge nos
estudos de tradução. É um enfoque teórico que neutraliza as diferenças, minando os
conceitos de equivalência, criticando o universalismo e o essencialismo, e afirmando
que os valores são convencionais e socialmente determinados. Enquanto o pensamento
tradicional considera a leitura como preservação de significados, a recuperação da
54
intenção do autor, sendo a tradução uma reprodução de uma língua em outra, uma
vertente da pós-modernidade que se denomina desconstrução, questiona a validade ou
a legitimidade do pensamento tradicional. Ao ler, estamos criando nosso próprio texto.
A tradução seria identidade e diferença.
Dois dos autores do pensamento pós-moderno que se destacam são o norte-
americano Fish e o francês Jacques Derrida. Este acaba desenvolvendo as idéias de
Benjamin quanto à lenda da Torre de Babel.
Em seu ensaio intitulado Torre de Babel (1987), Derrida comenta o artigo de
Benjamin a partir da história bíblica da divisão da língua única (Ursprache) em
diferentes línguas. Essa divisão teria acontecido como forma de castigo por causa do
desejo dos homens de construir a mais alta torre para alcançar a Deus, a Torre de
Babel. Além de um nome próprio, Babel significa “confusão”. Derrida acredita que
jamais poderemos alcançar a suposta unidade pré-babélica, onde as variadas línguas se
relacionariam e se completariam. A tradução nunca conseguiria atingir esse domínio,
mas seria um complemento do original, um suplemento. Para Derrida, é necessária e ao
mesmo tempo impossível.
Se o tradutor não restitui nem copia um original, é que este sobrevive e se
transforma. A tradução será na verdade um momento de seu próprio
crescimento, ele aí completar-se-á engrandecendo-se. Ora, é necessário que o
crescimento, e é nisso que a lógica “seminal’ deve ter-se imposto a
Benjamin, não dê lugar a qualquer forma em qualquer direção. O
crescimento deve concluir, preencher, completar (Erganzung é aqui a palavra
menos freqüente). E se um original chama um complemento, é que na
origem ele não estava sem falta, pleno, completo, total, idêntico a si.
Desde a origem do original a traduzir, existe queda e exílio. O tradutor deve
resgatar (erlosen), absorver, resolver, tratando de absorver-se a si mesmo de
sua própria dívida que é, no fundo a mesma e sem fundo. (Derrida,
2002:46-47).
Na reflexão pós-moderna, o tradutor está isento da responsabilidade de
transportar a carga semântica de uma língua para outra. Para essa reflexão, a relação
entre o texto de partida e a tradução é algo complexo. Ambos são produtos de leituras
construídas contextual e socialmente, e estão em relação de suplementaridade. A
55
tradução seria uma leitura do tradutor influenciada pelas circunstâncias que o cercam.
Como disse Derrida, “a tradução não é a vida nem a morte de um texto, mas a
continuação de sua existência” (apud Rodrigues, 2000:178).
No Brasil, as reflexões acerca da desconstrução foram aplicadas pelos
irmãos Campos. Haroldo de Campos, um dos poetas tradutores presentes na pesquisa,
a tradução como leitura, “como um ato subversivo de natureza cultural, a ação
efetiva da tradução na tradição que ela altera ou prolonga, a tradução como escolha e
como interpretação, enfim, como crítica” (apud Carvalhal, 2004:25). Sua estética
tradutória está presente não só nas traduções, mas também na criação de poemas.
Campos (1977) define sua estética tradutória como uma “transposição
criativa”:
É o que podemos chamar também de recriação ou transcriação (não a
transcrição meramente literal-referencial) (...) procuramos descrever o
fenômeno da seguinte maneira: a informação estética do poema traduzido é
autônoma, mas está ligada a do poema original por uma relação de isomorfia;
se elas são diferentes enquanto expressão idiomática, seguiram a lei dos
corpos isomorfos, cristalizando-se dentro de um mesmo sistema. (p. 143).
Transcriar seria recriar levando em conta as diferenças existentes, a começar
da língua, dos próprios universos do tradutor e do traduzido. A reflexão sobre tradução
em Campos (1977) tem em sua base um entendimento do processo tradutório como
transposição e transferência de sistemas culturais. Para ele, traduzir (entenda-se por
tradução criativa, recriação, transcriação) “é vista como forma de crítica” (p.10).
Além da relação com a desconstrução, a transcriação tem relação com o
movimento literário brasileiro da poesia concreta formado pelos irmãos Campos e
Décio Pignatari. A poesia concreta, segundo Melo (2006), incorpora aspectos que vão
além da informação semântica e que encontram equivalentes na forma ou estrutura da
informação estética.
56
Se, por um lado, a transcriação é identificada como a poética da
desconstrução, pois leva o tradutor a desconstruir item por item, por outro
lado a tradução visa apropriar-se do texto original num ritual (Antropofagia
em termos osvaldianos) eu dele extrai as forças do original, para dar vida ao
outro, a tradução, encontrando um equivalente (isomorfia) num
desdobramento, em uma língua de chegada, com toda a vitalidade do
original. (Melo, 2006:37).
Campos sempre demonstrou muito interesse pela poesia japonesa. Ao falar
do movimento da poesia concreta, Campos expressa sua vinculação com a tradição
oriental: “a poesia concreta procurou esgotar o campo do possível”, chegando à síntese
ideogrâmica. Haroldo de Campos define a poesia enquanto concreção de signos,
“forma significante”. Para ele,
coexistem, lado a lado, em seu pensamento, a tradução como procedimento
(trans)criador e a poesia ou uma concretização do processo de construção
poética e, igualmente, o entendimento da tradução como estratégia e recurso
transcultural, ou, como diz, um dispositivo transculturador preferencial (apud
Carvalhal, 2000:113).
Algumas das razões podem ter sido: a exploração do visual, a contenção da
linguagem, o jogo dialético, enfim, aspectos que embasaram a poesia concreta.
Ao término do apanhado sobre a história da tradução, vimos que alguns
pontos de vista foram mudando a cada época ou sendo retomados em algum ponto da
história: os Augustan que se modelaram segundo valores clássicos e tendo como seu
principal representante Dryden, que concebeu o paradigma triádico metáfrase,
paráfrase e imitação, termos ainda usados hoje em dia; as Belles Infideles na França
(séculos XVII e XVIII) que exigiam que tudo fosse sacrificado pela beleza e clareza e
os alemães (fim do século XVIII e início do XIX) que valorizavam as formas da língua
de partida; Pound, um dos maiores nomes da tradução literária e o seu método “make it
new” de “fazer suas traduções novas”; o pensamento pós-moderno com Benjamin e o
mito de Babel, vendo a tradução como um modo de desconstrução; os Estudos
Descritivos que acredita que é possível a tradução apresentar os mesmos valores
presentes no texto de partida; e a tradução no Brasil com a abordagem da transcriação
57
dos irmãos Campos. Vimos que a questão da fidelidade sempre foi central e polêmica
gerando várias discussões a seu respeito.
A partir deste momento falaremos brevemente sobre a literatura comparada,
traçando um breve histórico desde a origem de seus estudos até o tempo em que o
termo se firmou.
2.2 A LITERATURA COMPARADA
Quando vemos a expressão “literatura comparada” entendemos uma “forma
de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas” (Carvalhal, 2006:5).
Mas quando nos deparamos com trabalhos acadêmicos de estudos literários
comparados, percebemos que ela tem um vasto campo de atuação devido à diversidade
e complexidade dos temas estudados.
Além da diversidade não um consenso definido sobre seus objetivos e
métodos, havendo divergência nas orientações metodológicas. Segundo Carvalhal
(2006),
o sentido da expressão “literatura comparada” complica-se ainda mais ao
constatarmos que não existe apenas uma orientação a ser seguida, que, por
vezes, é adotado um certo ecletismo metodológico. Em estudos mais
recentes, vemos que o método (ou métodos) não antecede à análise, como
algo previamente fabricado, mas dela decorre. Aos poucos torna-se mais
claro que literatura comparada não pode ser entendida apenas como
sinônimo de “comparação”.
É no início do século XX que a literatura comparada se torna uma disciplina
reconhecida, presente nas grandes universidades européias e americanas. Nessa época
predominavam os estudos clássicos, que tinham duas orientações. O primeiro
acreditava que “a validade das comparações literárias dependia da existência de um
contato real e comprovado entre autores e obras ou entre autores e países”´(Carvalhal,
2006:13). a segunda “determinava a definitiva vinculação dos estudos literários
58
comparados com a perspectiva histórica”, passando a ser vista como um ramo da
história literária.
As grandes escolas comparativistas foram a francesa, a norte-americana e a
soviética. Na primeira predominam as relações causais entre obra ou entre autores,
mantendo uma estreita ligação com a historiografia literária. A escola francesa era base
para as duas orientações acima referidas. escola americana difere da francesa por
seu maior ecletismo e facilidade de absorver noções teóricas, de uma forma especial os
princípios do new criticism, um movimeto crítico desenvolvido nos Estados Unidos a
partir dos anos 30. Seu maior representante foi René Wellek.
A escola soviética, representada por Victor Zhirmunsky, tem como princípio
básico a compreensão da literatura como produto da sociedade, associada ao
comparativismo. Também é importante mencionar a investigação comparatista na
Alemanha, orientada para os estudos de temas, motivos e personagens, mas atualmente
voltada para a imagologia.
Dessa forma, muitas foram às contribuições didáticas para a fixação do
termo literatura comparada, que foi sendo aprimorado com o decorrer do tempo. As
propostas dos manuais franceses tinham caráter normativo e foram bastante difundidas.
Paul Van Tieghem (1931) distingue literatura geral da comparada afirmando que os
estudos de literatura comparada, responsável por estudos binários, seriam como
“análise preparatória” aos trabalhos de “literatura geral”, esta mais “sintética” e a
primeira mais “analítica”.
No Brasil, a escola francesa teve um fervoroso seguidor, o professor Tasso
de Oliveira que argumenta que em Literatura Comparada verifica-se a filiação de uma
obra, autor/movimento de um país aos de outros países. Como seguidor da escola
germânica temos João Ribeiro que, em Páginas de Estética, dedica um capítulo ao
comparativismo.
59
Com relação aos estudos traçados a partir da literatura comparada no Brasil
os que se dão sobre as obras de Machado de Assis e Oswald de Andrade. Mas aqui o
termo literatura comparada também tem seus problemas, pois muitas vezes usava-se
em estudos para encontrar a influência de uma nação em outra, colocando uma obra
em ponto superior a outra influenciada, sem se levar em consideração a originalidade
obtida a partir da literatura de fundação, o diálogo entre os textos, o caráter de imitação
e invenção, a intertextualidade, a tradição, a presença dos precursores, dentre aspectos
como as noções de autoria e originalidade e a recepção produtiva.
O comparativismo entra em crise e René Wellek critica o princípio
causalista que rege os estudos clássicos de fontes e influências, mostrando-se contrário
aos paralelismos estéreis resultantes das semelhanças investigadas.
René Wellek insiste na concepção de literatura comparada como uma
atividade crítica, considerando-a mesmo como sinônimo de crítica literária e
opondo-se, frontalmente, àqueles que estabeleciam limites entre as duas,
distinguindo investigação de fontes da análise crítico-interpretativa dessas
mesmas fontes (...) se diferencia de seus colegas comparativistas por refletir
amparado em diversa noção do literário, que afina com orientações teóricas
para as quais o texto é o objeto central das preocupações. (Carvalhal,
2006:42-43)
É no século XX que os estudos sobre a natureza e o funcionamento dos
textos literários ganham impulso. As reflexões sobre a natureza e o funcionamento dos
textos abriram caminho para a reformulação de alguns conceitos básicos da literatura
comparada tradicional. Tynianov (1971) sugere que a tradição seria um processo de
idas e voltas. Também afirma que um mesmo elemento tem funções diferentes em
sistemas diferentes.
Para o comparativista brasileiro interessa diretamente investigação de
questões que permitam esclarecer melhor nosso sistema literário. Mas esses estudos
não deve abranger apenas literaturas nacionais, mas também
colaborar decisivamente para um história das formas literárias, para o traçado
de sua evolução, situando crítica e historicamente os fenômenos literário.
60
Desse modo, a investigação das hipóteses intertextuais, o exame dos modos
de absolvição ou transformação (como um texto ou um sistema incorpora
elementos alheiros ou os rejeita) permitem que se observem os processos de
assimilação criativa dos elementos, favorecendo não o conhecimento da
peculiaridade de cada texto, mas também o entendimento de processos de
produção literária.(Carvalhal, 2006:85-86)
agora uma necessidade de articular a investigação comparatista com a
história num sentido abrangente, com o político, o social e o cultural. Ela não é mais
vista como um confronto entre obras e autores, nem uma perseguição de imagens ou
temas que uma literatura faz da outra. Carvalhal (2006) afirma que a literatura
comparada ambiciona contribuir para a elucidação de questões literárias que exijam
perspectivas altas. Dessa forma a análise contrastiva favorece a visão crítica das
literaturas nacionais, permitindo a ampliação dos horizontes do conhecimento estético.
2.3 A SEMIÓTICA PEIRCIANA – LEITURAS DA TRADUÇÃO
Santaella (1983) define semiótica como a “ciência de toda e qualquer
linguagem”, ou seja, “que tem por objetivo o exame dos modos de desconstituição de
todo e qualquer fenômeno de produção de significado e de sentido” (p. 10,15). Seu
estudo é muito antigo, remontando à filosofia de Platão e Aristóteles. Antes de se
utilizar o termo semiótica, Platão se preocupou em definir signo em seus diálogos
sobre a linguagem. No século XVII, John Locke postula uma “doutrina de signos”
chamada de Semeiotike e no século XVIII, Lambert escreve um tratado intitulado
Semiotik. O termo é derivado do grego semeîon (signo) e sema (sinal).
Existem alguns “tipos de semiótica”, que se diferenciam por sua concepção
e delimitação de seu campo de estudo. São eles:
Semiótica estruturalista/ semiologia: que tem como representantes
Saussure, Lévi-Strauss, Barthes e Greimas, tendo como foco de atenção
os signos verbais.
61
Semiótica russa ou semiótica de cultura: representada por Jakobson;
Hjelmslev; Lotman e com foco de atenção na linguagem, literatura e
outros fenômenos culturais, como a comunicação não-verbal e visual,
mito, religião.
Semiótica Peirciana: idealizada e concebida pelo americano Peirce, tem
como foco de atenção a universalidade epistemológica e metafísica.
Como mencionamos, neste trabalho tomaremos a Semiótica Peirciana e
sua aplicação como base. Charles Sanders Peirce (1839-1914) foi um cientista que
atuou em várias áreas como a matemática, física e astronomia. Filho de um famoso
matemático da época, Peirce sofreu influência deste e se tornou um importante
intelectual. Embora tenha atuado em várias e diferentes áreas, se voltou mais para a
lógica, na sua época chamada de lógica das ciências. Ele percebeu que a análise da
ciência é, no fundo, uma análise semiótica, “uma vez que não interpretação sem
signos, pois toda interpretação é signo” e “a concepção de signo passou a ocupar um
lugar proeminente no pensamento de Peirce”. Daí conclui que não há pensamentos sem
signos.
A semiótica Peirciana é fundamentada na noção de signo. Segundo Santaella
(2005):
A noção de signo da semiótica peirciana é muito genérica e abrangente. (...)
Numa definição mais formal, o signo é qualquer coisa de qualquer espécie,
podendo estar no universo físico ou no mundo do pensamento, que
corporificando uma idéia de qualquer espécie (o que nos permite usar este
termo para incluir propósitos e sentimentos) ou estando conectada com
algum objeto existente ou ainda se referindo a eventos futuros através de
uma regra geral – leva alguma outra coisa, chamada signo interpretante, a ser
determinada por uma ação correspondente com a mesma idéia, coisa
existente ou lei. (p.39).
Também explica que a semiótica se divide em três ramos: a gramática
especulativa, que é “tem por função estudar a fisiologia dos signos de todos os tipos”; a
gramática crítica, que trata do signo argumental, o tipo mais complexo da classificação
62
peirciana; e a Retórica especulativa ou metodêutica, que “estuda as condições gerais da
relação dos símbolos e outros signos com seus interpretantes” (Santaella, 2005: 40,41).
Peirce concluiu que tudo que aparece à consciência através de três
propriedades formais, denominadas Qualidade, Relação e Representação. O termo
relação foi substituído mais tarde por reação, mas a terminologia determinada que
realmente foi fixada foi Primeiridade, Secundidade e Terceiridade.
Primeiridade é a qualidade da sensação, a pura possibilidade, o
indeterminado. “Trata-se, pois, de uma consciência imediata tal qual é” (Santaella,
1985:57). Aparece em tudo que está relacionado ao acaso, ao sentimento, à
possibilidade. É uma consciência presente e imediata, espontânea e livre. Isso quer
dizer que quando vemos uma rosa vermelha, a primeira sensação provocada pelo
sentido da visão é a primeiridade. A consciência primeira, o perceber o vermelho sem
identificá-lo ainda como a cor vermelha, é primeiridade.
Secundidade é a percepção da existência, é a reação a uma sensação, o
conflito, a surpresa, a dúvida. Está diretamente ligado a primeiridade, visto que a
qualidade de sentir é logo seguida pela qualidade de perceber. “Qualquer sensação é
secundidade: ação de um sentimento sobre nós e nossa reação específica, comoção do
eu para com o estímulo” (Santaella, 1985:63). Retomando o exemplo da flor, o
perceber e identificar a cor vermelha é secundidade.
Já terceiridade diz respeito à síntese intelectual, racional. É o pensamento em
signos, a representação, a interpretação. Vivemos em um mundo de signos, através da
linguagem. Quando nestes signos predomina a relação de convencionalidade, esse
signo é símbolo. Através de um processo natural o convencional os símbolos são
criados e difundidos, sendo um elemento essencial no processo da comunicação.
Somos seres simbólicos. Podemos citar como exemplo a pomba branca que simboliza
a paz.
63
Como foi dito, para Peirce, a noção de signo é muito abrangente. Em
termos gerais signo é “um primeiro que põe um segundo, seu objeto, numa relação
com um terceiro, seu interpretante” (Santaella, 2005:40). Mais uma vez classifica signo
em uma lógica triádica: signo – objeto – interpretante.
interpretante
signo objeto
Nessa relação triádica, signo é uma forma de representação que se apresenta
à mente de um sujeito; o objeto é o referente, que se liga ao interpretante, que é a
relação entre signo e objeto em um possível intérprete. Cabe ao intérprete identificar os
significados, analisá-los e construí-los.
De acordo com Santaella (1985), devido sua natureza triádica, o signo pode
ser classificado em dez divisões triádicas, mas apenas três dessas tricotomias foram
mais exploradas por Peirce e divulgadas: a relação do signo com ele mesmo, a relação
do signo com seu objeto e a relação do signo com seu interpretante. Apresentaremos
aqui as duas primeiras relações.
Peirce classifica o signo em relação a si mesmo como:
Quali signo: a pura possibilidade qualitativa, a primeira impressão que
um signo pode gerar.
Sin-signo: o caráter singular e concreto do signo, a sua existência.
Legi-signo: são as convenções, os signos obedecendo a uma classe de
coisas, a uma lei.
64
Já os níveis interpretativos do signo, ou seja, o signo em relação a seu objeto
é dividido por Peirce em:
Ícone: que representa o objeto por traços de semelhança ou analogia.
Mantém uma relação de proximidade sensorial e emotiva entre o signo e
o objeto representando-o através da semelhança. Segundo Melo (2006:
63), “é o modo como sua qualidade pode sugerir ou evocar outras
qualidades do signo”, “é um signo que tem como fundamento um quali-
signo”. Podemos citar como exemplo a fotografia ou a pintura, que é
uma representação de algo real no papel.
Índice: indica o objeto através de uma relação física, concreta, por ser
afetado por ele, apontando para seu objeto ou parte dele. Através do
indício chegamos às conclusões, por exemplo, pegadas na areia indicam
alguém que passou, a fumaça indica fogo, a fotografia, que também é
ícone, é um registro da luz em um determinado momento.
Símbolo: refere-se ao objeto através de uma convenção, de uma lei, de
uma associação geral de idéias. É uma relação convencionada entre signo
e objeto. De acordo com Peirce (apud Santaella, 1985:93), “um símbolo
não pode indicar uma coisa particular; ele denota uma espécie (um tipo
de coisa). E não apenas isso. Ele mesmo é uma espécie e não uma coisa
única”. A palavra cadeira, por exemplo, é uma convenção para se referir
ao objeto que usamos para sentar.
Na década de 50 do século passado, Roman Jakobson, um teórico russo que
refletia sobre os problemas de tradução, entra em contato com a semiótica de Peirce.
Com ele, surge pela primeira vez o termo tradução intersemiótica. Jakobson (1995)
classificou as traduções em três tipos: tradução interlingual (de uma língua A para uma
língua B), tradução intralingual (ocorre dentro da mesma língua) e tradução
intersemiótica (que traduz de um meio verbal para outro não-verbal).
65
Plaza (1987), na tentativa de sistematizar a tradução intersemiótica e tendo
por base a relação do signo com o objeto, classifica-a em três tipos, que estão ligadas
as noções de signo de Peirce: icônica, indicial e simbólica. Ele afirma que todo
pensamento é tradução:
Todo pensamento é tradução de outro pensamento, pois qualquer
pensamento requer ter havido outro pensamento para qual ele funciona como
interpretante. Quando pensamos, somos obrigados a manter o pensamento
conosco mesmos e, nessa operação, criamos um observador leitor desse
pensamento que somos nós mesmos, visto que o pensamento se desenvolve
por etapas. (Plaza, 2003:18).
Como mencionamos, neste trabalho tomamos como base a semiótica
peirciana, dando uma atenção especial ao ícone e ao símbolo, visto que o haikai possui
um caráter icônico e simbólico. O próprio ideograma é um ícone e um símbolo, o que
confere ao haikai essas propriedades. É importante lembrar que a semiótica neste
trabalho é um instrumento para as análises e interpretações
2.3.1 HAIKAI E SEMIÓTICA
Tendo em vista que o ícone representa o objeto por semelhança ou analogia,
se tomamos por exemplo o ideograma (ki), perceberemos uma semelhança com
o que ele significa: árvore.
66
Mas, ao mesmo tempo em que ideograma é ícone, ele é símbolo, visto que,
por convenção, é identificado na leitura como árvore. Esse caráter icônico e
simbólico do kanji também se manifesta no haikai, que além do seu caráter poético,
tenta ser uma fotografia do momento que se propõe a descrever poeticamente.
Vejamos, como exemplo, a análise de um haikai de Bashô, feita por Haroldo
de Campos, tendo em vista a visualidade do ideograma:
明 ぼのや akebono ya (alvorada)
白魚白き shirauo shiroki (peixe branco)
こと koto issun (uma polegada de alvura)
Bashô
明ぼの や 白魚 白き こと
(1) (2) (3) (4) (5) (6)
67
(1) 明ぼの (明炎) akebono
Palavra composta de ake (de akari, luz) + hono (que passa a bono por mudança
fonética de aglutinação), que significa chama.
Ake , que significa luz, é a junção do signo de sol + lua . No poema Bono
está representado por hiragana , mas também pode ser representado pelo kanji de
chama , que é a junção de dois kanji de de fogo .
(2) ya
Ya é partícula expletiva.
(3) 白魚 shirauo
Shirauo significa pequeno peixe branco. É uma palavra composta pelos kanji de
branco (shiro) e peixe (uo). Branco é o kanji de sol ligeiramente modificado.
representa o peixe.
(4) 白き shiroki
Forma adjetiva de shiro (branco), com a desinência grafada em hiragana .
68
(5) こと koto
Koto significa coisa. Sua grafia está em hiragana.
(6) issun
Issun é uma palavra composta por i (ichi) , que significa o numeral 1 e sun
significa polegada. Segundo Vacari, esse kanji evoca a distância entre a linha do pulso
e o ponto que tocamos para sentir as pulsações (medida de uma polegada).
O haikai funciona como uma fotografia do momento. Provavelmente o poeta
contemplava o amanhecer quando um shirauo (peixe branco) surge da água. A
claridade do amanhecer, a brancura do peixe, a limpidez da água (não mencionada no
poema, mas sabemos que está presente no contexto), todos esses elementos são
visualizados no original através do kanji de sol , presente na alvorada e no branco
. Se contarmos com o kanji de chama , esse será mais um elemento que contribui
com a luminosidade do poema. Para Haroldo de Campos, esse haikai de Bashô poderia
ser definido como “estudo em branco”.
Na análise podemos verificar a importância do ideograma na composição do
haikai. Um Primeiro que sugere e possibilita um Segundo, a existência física, que
remete ao Terceiro. Assim, o kanji sugere através do Ícone, um Índice, um caminho,
uma orientação, uma percepção para o Simbólico. Kanji é Índice enquanto
materialização do objeto em relação à imagem, ou seja, a percepção da imagem do
Kanji nos leva ao Símbolo, propriamente a uma relação abstrata e racional com o
objeto. É a pura convenção para o entendimento, para a significação. É uma metáfora
69
gráfica usada com grande eficácia pelo poeta japonês, pois permite um refinamento da
percepção, um grande poder de síntese imaginativa.
3. O POEMA DE BASHÔ E SUAS TRADUÇÕES
3.1 A POESIA DE BASHÔ
“Não sigo o caminho dos antigos: busco o que eles buscaram.”
Bashô
70
Bashô viveu em uma época em que o Japão tem uma sociedade urbana mais
livre e espontânea, mais aberta. O período em que viveu, a Era Edo (1603-1867), tinha
como principal objetivo pacificar o país depois de um longo período de conflitos
internos. Coincidindo com a consolidação da paz interna, surge uma nova classe, a dos
comerciantes (Shônin), que se fortalece e converte-se em patrona das artes.
Nesse período o Japão tem grande desenvolvimento cultural e pela primeira
vez a população urbana passou a ter meios e tempo livre para o divertimento e a nova
cultura de massas. Mas apesar dessa liberdade e libertinagem elegante, a criação
artística continuava. Destacamos o Ukiyô, um termo que expressa uma idéia de
efemeridade, daí sua significação: mundo que flutua, que “passa como as nuvens de
um dia de verão” (Paz, 1990:156). Temos então o Ukiyo-ê, ou estampa japonesa, que
tem como principais temas os atores e personagens do teatro kabuki
22
e paisagens
conhecidos e o ukiyô-sōshi, literatura que retrata a vida da classe comerciante. Como
vimos anteriormente, o Japão convive até hoje com a dicotomia tradicional e moderno,
o que não é diferente na poesia.
O haikai existia antes de Bashô. Sua contribuição foi elevá-lo a um
“caminho de vida”, um , um caminho impregnado de budismo zen para se chegar ao
satori
23
. Com Bashô o haikai deixa de ser uma forma poética popular de sua época e
se transforma em veículo da mais alta poesia.
A poesia japonesa, graças sobretudo a Matsuo Bashô, alcança uma liberdade
e um frescor ignorados até então. E deste modo, converte-se em uma réplica
do tumulto mundano. Diante desse mundo vertiginoso e colorido, o haiku de
Bashô é um círculo de silêncio e recolhimento: manancial, poço de água
escura e secreta. (Paz, 1990:164).
“Aprenda a respeito do pinheiro diretamente do pinheiro, a respeito do
bambu, diretamente do bambu”
24
. Nessa frase de Bashô podemos perceber a essência
22
Teatro japonês que surgiu no século XVII, é representado apenas por homens que usam requintadas
maquiagens. O acompanhamento musical é feito por flautas e tambores.
23
Como foi dito no primeiro capítulo, satori para o budismo zen, significa iluminação súbita, a consciência deve
ser atingida sem palavras, através de um despertar.
24
Teiiti suzuki, Obras completas de Bashô apud NOJIRI, Antonio. Poesia japonesa. p.37
71
de sua poesia. Devemos observar, contemplar, interagir com o objeto. Do silêncio, da
meditação e da contemplação (práticas budistas) nasce o haikai. Em sua poesia Bashô
nos fornece apenas alguns elementos. Cabe a nós leitores fazermos essa viagem com
“nossas próprias pernas”, aceitando o mote inicial do poeta. Ele mesmo afirma: “Não
se pode viajar nas costas de outra pessoa. Pensa no que te serve como se fosse outra e
mais fraca perna tua.” (apud Paz: 1990). Ou seja, explicando através da semiótica
peirciana, o haikai é um índice para que o leitor, que percebe o instantâneo, faça sua
interpretação.
Como vimos no primeiro capítulo, a poética do mestre japonês tem como
características principais o WABI (simplicidade, desprendimento) e SABI
(tranqüilidade). Sua poesia é intuição, espontaneidade, momento poético. Vejamos
dois exemplos traduzido por Paz (1954):
Admirável
aquele que ante o relâmpago
não diz: a vida foge...
Um relâmpago
E o grito da garça
Fundo no escuro.
Para Paz (1990), o haikai de Bashô nos abre as portas do satori, o sentido e a
falta de sentido, a vida e a morte coexistem. No primeiro, o relâmpago é como a vida,
nem longa nem curta, e essa intensidade de luz é como a intensidade verbal, que nos
diz que o homem não é escravo do tempo e da morte, mas que dentro de si leva a outro
tempo. No segundo, o grito do pássaro e o relâmpago fundem-se e desaparecem na
escuridão. A idéia de morte é sugerida, mas o autor não a nomeia. Se o fizesse ela
evaporaria.
72
Outra característica encontrada nos haikais de Bashô também é encontrada
em outros poetas tradicionais. Eles fazem referência à natureza em seus poemas,
impregnando o haikai de um forte sentimento de estações do ano. A primavera identifica-se
com o florescer das cerejeiras, o canto das aves, as sete flores da primavera, etc. O
verão com o canto dos insetos, as chuvas, a plantação. Os patos, as garças e a colheita
do arroz são próprios do outono. O inverno vinha acompanhado da neve, do vento e
dos campos vazios. É o kigô. Os japoneses se comprazem em falar de estações do ano,
natureza e calendário. Esse hábito de ligar a vida cotidiana às estações do ano tem
origem na religião. Ao fazer isso, o japonês sente que faz parte do universo, sente a
proteção da natureza. Vejamos haikais de Bashô das estações primavera, verão, outono
e inverno.
.
春なれや haru nare ya Já é primavera
名もなき山の na mo naki yama no Uma colina sem nome
朝がすみ asagasumi Sob a névoa da manhã.
25
朝露に asa-tsuyu ni no orvalho da manhã
よごれてすずし yogorete suzushi sujo e fresco
瓜の泥 uri no doro o melão enlameado.
瓶わるる kame waruru o jarro quebra
夜の氷の yoru no kôri no ah, o despertar
ねざえかな nezame kana do gelo da noite.
25
As quatro traduções que seguem são de Franchetti e Elza Doi.
73
海くれて  umi kurete- O lago escurece
鴨の声 kamo no koe os gritos dos patos
ほのかにしろし honoka ni shiroshi levemente brancos.
3.1.1 COMPREENDENDO O “HAIKAI DA RÔ
O mais famoso haikai de Bashô, foi traduzido no mundo inteiro. Na
língua portuguesa encontramos mais de 50 traduções (ver anexo).
A leitura do poema em japonês é feita da direita para a esquerda, na vertical.
O kanji, que veio da China, foi trazido ao Japão e foi adaptado às necessidades dos
japoneses. Alguns kanjis têm origem pictográfica, outros, têm associação com o som
74
da palavra ou a associação de duas ou mais idéias através da junção de dois ou mais
kanji e existem duas escritas fonossilábicas, hiragana e katakana, que representam,
respectivamente os sons em japonês e de palavras estrangeiras, auxiliando no
entendimento da leitura.
Faremos agora uma breve análise dos elementos que compõem o poema,
para que possamos compreender melhor sua origem pictográfica. Nessa análise usamos
o dicionário de origem dos kanji Kanji Gen (1998) e o dicionário de kanji para crianças
Kanji Yomikaki Jiten (1970).
furui: significa antigo, velho, alguma coisa dura. O pictograma que originou o kanji
representa um crânio com um enfeite na parte superior.
26
A parte de baixo da figura representa a cabeça, logo acima algo que sinaliza,
a que enfeita. No passado, para se fazer homenagem e oração aos antepassados
mortos, colocava-se um enfeite em cima do crânio. Essa referência aos antepassados
empresta ao pictograma idéia de antigo, velho.
ike: significa lago, tanque. Esse kanji é uma associação de duas idéias: do lado
esquerdo a idéia de água, através do desenho de uma corrente e do lado direito, um
desenho que pode representar um escorpião ou um réptil, levando em consideração o
formato do corpo desses animais.
26
Esta seqüência corresponde à evolução do pictograma até chegar ao ideograma atual.
75
A idéia que se quer transmitir é a de água, retida em um lugar que tenha visualmente a
forma dos animais acima mencionados.
ya: é uma partícula escrita em hiragana, que no japonês arcaico significava a
interjeição Oh! Ou Que! , como na frase “Que bonito!”.
kawazu: significa rã, sapo. Seu kanji é uma junção do ideograma de inseto com
outro que significa barulho.
(inseto) (barulho)
O animal, chamado por eles de inseto, que faz muito barulho, seria a e o sapo, por
causa do seu coaxar.
tobikomu: verbo composto, que não tem correspondente em língua
portuguesa. É a junção de dois verbos: tobu e komeru.
Tobu significa voar, seu kanji vem de um pictograma que representa um
pássaro voando, com as asas estendidas.
Komu significa adentrar, entrar, colocar, enfiar. O kanji que representa
essa idéia é formado por dois ideogramas, do lado esquerdo a idéia de caminho,
76
estrada, e do lado direito o pictograma de entrada, que pelo desenho pode
significar tanto os pés de quem entra, como a própria entrada.
(radical de caminho) (entrada)
A idéia que o ideograma (tobikomu) representa é voar e entrar, ou
seja, o salto e logo após o mergulho.
mizu: siginifica água. Sua origem é um pictograma que representa uma corrente
de água.
no: escrito em hiragana, é correspondente à preposição “de” da língua
portuguesa.
oto: significa rumor, ruído. É a combinação de dois ideogramas, palavra e
boca. De acordo com o dicionário de origens dos ideogramas, esse kanji vem de
(iu), que significa dizer. A parte de baixo de representa a boca ().
(iu) (oto)
Em oto, a boca foi marcada por um sinal, algo colocado nela que impede a fala,
deixando apenas o ruído, a tentativa de falar.
Essa análise dos ideogramas da poesia de Bashô é importante por nos
permitir enxergar e resgatar um pouco o elemento visual presente nos pictogramas, e
77
será necessária mais à frente quando estivermos analisando a tradução de Haroldo de
Campos. O haikai japonês pode usar a visualidade do kanji como recurso poético.
Analisando a forma do poema, constatamos as características do haikai
tradicional japonês, sete sílabas poéticas e nada de rima. As sílabas poéticas japonesas
são contadas de acordo com o número de sílabas do verso. Temos então:
Fu ru i ke ya
1 1 1 1 1 = 5 sílabas
Ka wa su to bi ko mu
1 1 1 1 1 1 1 = 7 sílabas
Mi zu no o to
1 1 1 1 1 = 5 sílabas
Além da métrica 5/7/5, podemos verificar que não nenhuma rima externa nem
interna no poema, apesar das duas palavras do segundo verso terminarem com a letra
u.
Furu ike ya
Kawasu tobikomu
Mizu no oto
Quanto ao conteúdo, podemos dizer que a idéia do poema é simples: um
tanque ou lago, em um momento de quietude e silêncio total, tem sua água
completamente parada. De repente uma salta e o estado muda, o movimento.
Também há a quebra do silêncio decorrente do barulho do salto da rã na água (mizu no
oto), silêncio este muito importante e significativo na cultura japonesa. O kigo do
poema é kawasu, a rã, que corresponde à primavera. A simplicidade e beleza do
acontecimento dão um toque especial ao haikai.
78
Em relação à mensagem do haikai, são várias as interpretações. Para alguns,
esse haikai é um momento de iluminação, é satori. Paz (1990) acredita que a
percepção poética surge entre um ponto de vista descritivo e outro inesperado. E no
haikai o leitor, que é o interprete, deve recriar o poema.
Na primeira linha encontramos o elemento passivo: o velho tanque e seu
silêncio. Na segunda, a surpresa do salto da que rompe a quietude. Do
encontro desses dois elementos deve brotar a iluminação poética. E esta
iluminação consiste em retornar ao silencio do qual o poema partiu, que
agora carregado de significação. À maneira da água que se expande em
círculos concêntricos, nossa consciência deve expandir-se em ondas
sucessivas de associações. (Paz, 1990:164).
Outros acreditam que esse haikai não é nada mais do que a fotografia do
momento, a contemplação de um instante vivenciado pelo poeta, sem influencia do
pensamento zen budista. Masaoka Shiki (1867- 1902), um dos quatro grandes haijin
27
japoneses, não acreditava no “sentido esotérico” muitas vezes atribuído aos haikais de
Bashô.
Quando o visitante diz que ninguém conseguiu até agora explicar-lhe o
sentido do poema, Shiki responde: "O sentido desse verso é o que está
dito nele; ele não tem outro sentido, nenhum sentido especial. No entanto, os
professores vulgares de haikai falam como se houvesse um sentido
esotérico tão profundo que as pessoas comuns não pudessem entendê-lo.
Nesse caso, o que se faz é enganar as pessoas.{...} Para conhecer o valor real
deste verso, é preciso conhecer a história do haikai; este verso significa
apenas que o poeta ouviu o som de uma saltando para dentro de um velho
poço -- nada deve ser acrescentado a isso. Se você acrescentar qualquer
coisa, não se trata da real natureza do verso. Clareza e simplicidade, sem
ocultar nada, sem recobrir nada, sem pensamento, sem ostentação técnica --
eis o que caracteriza esse verso. Nada mais.".
28
O que não podemos negar é que a poesia de Bashô é instante poético, seja
por simplesmente fotografar o momento, seja por estar pleno da filosofia budista. A
arte de escrever um haikai depende da percepção aguçada do que está em volta, da
sensibilidade de sentir e perceber sons, imagens, cheiros e sensações. É interagir com o
27
Poeta de haikai.
28
O texto está traduzido por Blyth em A history of haiku. Tokyo, Hokuseido Press, 1963, vol. II, pp. 47-76,
citado no artigo Wenceslau de Morais e o haikai retirado da internet:
http://www.unicamp.br/~franchet/moraesha.htm
79
mundo e como um “click” de uma máquina fotográfica, captar um instante mágico da
vida. Em outras palavras, é um exemplo do icônico de Peirce, o estado presente do
poeta é sensação, mera qualidade no instante. Para o poeta a vida é arte, é poesia.
Concordamos com Paz (1990), quando afirma que Bashô é um convite a viver de
verdade a vida e a poesia.
Figura 6 – Matsuo Bashô
3.2 A TRADUÇÃO DE WENCESLAU DE MORAIS
Na segunda metade do século XIX, a Europa vivia um momento intenso:
segunda fase da Revolução Industrial, efervescência das idéias do iluminismo,
positivismo e determinismo, surgimento de novas disciplinas (Sociologia,
Antropologia e Psicologia), descobertas científicas e tecnológicas. Devido a essas
influências no âmbito econômico, político, social e científico, os escritores da época
sentiam a necessidade de criar uma literatura mais sintonizada com a nova realidade.
Surge nesse momento o movimento literário chamado Realismo.
Juntamente com esse movimento coexistiram outras formas de atividade
literária: a historiografia, a crítica literária e a literatura de viagens. Esta última
remonta ao século XV, mas o exotismo romântico do século XIX o trouxe de volta.
Com o advento da estética realista, renasce o gosto de viagens, desta vez por
força de um cosmopolitismo não de todo alheio às idéias coletivistas trazidas
pelo Socialismo. Dentre os vários que cultivam, ao menos passageiramente,
essa atividade literária, citam-se: Eça de Queirós (O Egito, 1926), Ramalho
Ortigão (Em Paris, 1868)(...)De todos, porém, o mais importante é Venceslau
José de Sousa de Morais... (Moisés, 1998:201-202).
80
Wenceslau de Morais (1854-1929) foi um português apaixonado pelo
Oriente. Apesar de apreciado por seus contemporâneos, não é lembrado em nosso
tempo. Tendo feito várias viagens pela Marinha de Guerra na América, África e Ásia,
passa a residir em Macau, China, como imediato da Capitania do Porto e inspetor do
ópio e professor, convivendo de perto com Camilo Peçanha. Depois de nomeado
cônsul do Japão em 1899 se estabelece no país até sua morte. Ao radicar-se
definitivamente em Tokushima (Japão), entrega-se à atividade literária e converte-se
ao budismo. Apesar de ser o único ocidental residente na cidade, procura viver os
costumes orientais, o que causa estranhamento das autoridades.
Suas obras revelam grande curiosidade e sensibilidade ao Oriente. Entre elas
temos: Traços do Extremo Oriente Sião, China e Japão (1895), Dai-Nippon “O
grande Japão” (1897), Cartas do Japão (1905), O Culto do Chá (1905), O Bom-Odori
em Tokushima (1916), O-Yoné e Kó-Haru (1923), Paisagens da China e do Japão
(1906), Os Serões no Japão (1926), Relance da Alma Japonesa (1926) e Osoroshi “o
mete-medo” (1933). Em Relance da Alma Japonesa, Moraes faz considerações sobre a
poesia japonesa, indo desde o KOJIKI, obra escrita em forma de poemas, que conta a
história japonesa desde a origem mitológica, até o haikai, que é a própria poesia
tradicional. Encantado com a característica sintética do haikai, cita alguns exemplos e
suas respectivas traduções e comentários, feitas por ele mesmo. É em Relance da Alma
Japonesa, que encontramos a tradução de Moraes, do “haikai da rã” de Bashô.
Diferentemente dos outros tradutores que serão apresentados nesta pesquisa,
exceto Elza Doi, Moraes vivenciou o estilo de vida japonês bem de perto, dedicando
seu tempo à contemplação e procurando entender as diferenças entre Oriente e
Ocidente. Esse encantamento pelo Japão pode ser verificado em suas obras. Para ele, a
arte literária e a pintura japonesa possuíam as mesmas características: sobriedade,
sugestão, divagação.
um trecho qualquer de pintura japoneza mal consegue representar uma
determinada scena, um canto de paizagem conhecida, por exemplo. Mas, por
um dom sentimental do executante, dom que é o assombroso privilégio da
81
raça de artistas que é o povo japonez, os traços, os esboços, encerram um
estraordinário poder evocativo, suggestivo; rasgando, no espírito do
observador, um mundo immenso de recordações, de divagações. E n’isto está
principalmente o seu encanto. Isto, que se diz para a pintura japoneza, diz-se
para a inteira Arte japoneza; e diz-se, conseguintemente, para a Arte
litteraria, para as bellas lettras. (Moraes, 1927:09).
Moraes na poesia nipônica a “sobriedade da palavra, a vaga exposição da
idéia”, que recorda ao leitor um “vastíssimo horizonte de impressões”. Quando se
refere ao tamanho dos poemas japoneses, acredita que se deve ao fato de que
Os poemas longos nunca mereceram grande estima por parte dos nipônicos;
achavam-lhes não sei o quê de enfadonho, de causticante; o tanka teve
sempre a preferência. E quando no fim do século XIV, se iniciou o drama
lírico, que havia de cessar antes do fim do século XIV, os japoneses, achando
ainda o tanka longo de mais, começaram a cultivar um novo gênero, o hokku,
pelo qual o poema completo continha apenas dezessete sílabas... o cúmulo da
concisão na arte poética!... (Moraes, 1927:09).
Como podemos observar, Porutogarusan ou “Senhor Portugal”, como era
conhecido por seus vizinhos japoneses, era um grande apaixonado pelo Japão e sua
arte. Os motivos de sua tradução ter sido escolhida para este trabalho são três: o fato de
nosso projeto de pesquisa propor um estudo de traduções do “poema da rã” em língua
portuguesa (encontramos em Wenceslau de Moraes um representante da língua
portuguesa de Portugal), por ser uma tradução antiga, a mais antiga das escolhidas para
a pesquisa, e também a forma escolhida para traduzir o poema. Vejamos agora a
análise dessa tradução:
Os dois haikais, expostos lado a lado, um original (aqui apresentado em
romaji, escrita usando o alfabeto para representar os sons em japonês) e outro, a
tradução de Wenceslau de Morais, fazem-nos perceber as diferenças na forma:
Furu ike ya Um templo, um tanque musgoso;
Kawasu tobikomu Mudez apenas cortada
Mizu no oto Pelo ruído das rãs,
82
Saltando à água. Mais nada...
Enquanto o original possui três versos com, respectivamente, cinco, sete e
cinco sílabas poéticas, a tradução apresenta quatro versos com sete sílabas poéticas
cada um.
Um/ tem/plo, um/ tan/que/ mus/go/so;
1 1 1 1 1 1 1 = 7 sílabas
Mu/dez/ a/pe/nas/ cor/ta/da
1 1 1 1 1 1 1 = 7 sílabas
Pe/lo/ ru/í/do/ das/ rãs,
1 1 1 1 1 1 1 = 7 sílabas
Sal/tan/do à/ á/gua/. Mais/ na/da...
1 1 1 1 1 1 1 = 7 sílabas
Encontramos também uma rima cruzada no segundo e quarto versos
(ABCB).
Um templo, um tanque musgoso; (A)
Mudez apenas cortada (B)
Pelo ruído das rãs, (C)
Saltando à água. Mais nada... (B)
83
Como podemos perceber, Wenceslau de Moraes, ao traduzir o haikai de
Bashô, não tentou manter a métrica e a ausência de rima existente na tradição do
haikai japonês. A forma escolhida pelo tradutor foi a quadra, bastante popular em
Portugal, que pode ser constituída por sete ou dez sílabas. Moraes acredita que ela é a
melhor maneira de traduzir os haikais japoneses, por ser a forma poética “mais
resumida” existente em nossa língua, um “correspondente” em nossa poesia.
Poderíamos ainda afirmar que, ainda mais resumida do que o soneto, existe a
quadra, com quatro versos e vinte e oito syllabas; mas a quadra portugueza,
embora muitas vezes deliciosa, é propriamente a fórmula rythmica da
emotividade popular, espontânea, sem pretenções a peça literária. A quadra
portugueza é para o povo, o que o gorgeio matinal é para o rouxinol (Moraes,
1927:09).
O próprio Moraes (1973) afirma que o haikai é uma sugestão, que antes
prefere enunciar-lhe o início, deixando o resto para ser adivinhado. Mas ao fazer sua
tradução, Moraes opta por não fazer uso desse recurso de apenas sugerir. Ele acaba
descrevendo esse instante poético através de suas percepções, como numa prosa.
Através da sugestão provocada pelo poema, o tradutor viu um lugar
silencioso, um templo. Nele um tanque cheio de musgo. O silêncio típico desse lugar
era cortado apenas pelo ruído das rãs (não uma, mas várias). No haikai original não se
fala em templo, nem se muitos detalhes sobre o tanque, apenas que era velho. Não
se menciona a quantidade das rãs, nem que esse silêncio era cortado frequentemente
pelas rãs que saltavam. O poema sugeriu algo e Moraes sentiu e visualizou.
A tradução é a seguinte: - Ah, o velho tanque! E o ruído das rãs, atirando-se
para a água!... O leitor não se encontra prevenido para poder encontrar as
belezas, assim de surpresa, numa pequenina poesia japonesa. Mas pense um
pouco. Não acha encantador esse instantâneo, recordando a paz de um lugar,
provavelmente junto de algum templo budístico, em cujo terreiro se encontra
o velho tanque, sendo o silencio apenas cortado pelo som melancólico que
acompanha a queda das rãs sobre a água adormecida?... (Moraes, 1973:184).
Alguns estudiosos de haikai como Franchetti (1996), acreditam que ao
mudar o terceto japonês para a quadra portuguesa, uma perda importante com
84
ausência de rima, não sendo reconhecível do ponto de vista musical para a nossa
tradição. Por esse motivo, acaba-se comprometendo a tradução, porque a forma poética
5/7/5 tem grande relevância no haikai japonês. Janeira
29
, biógrafo e especialista da
obra de Moraes, afirma que o exotista português "nunca chegou a penetrar no espírito
da poesia japonesa".
Mas Moraes, apaixonado pela cultura japonesa, compreendeu como poucos
o Japão, por isso sua sensibilidade ante a cultura nipônica. Ele mesmo nos explica
porque optou por esse tipo de tradução, afirmando que essa forma difundida,
tradicional e popular poderia ser traduzida por uma forma que fosse tudo isso na
língua portuguesa, na sua concepção, a quadra. Essa tradução talvez seja resultado da
interpretação que o poema original evocou em Moraes, associada ao desejo de adaptá-
la à cultura ocidental e ao gosto literário da época. Embora não seja bem aceita por
alguns haicaístas, sua tradução é de grande relevância, especialmente porque foi uma
das primeiras traduções de haikai no Ocidente.
3.3 A TRADUÇÃO DE LEMINSKI
Nascido em 1944, o curitibano Paulo Leminski sempre esteve envolvido
com a literatura. Poeta, escritor e tradutor, conhecido e respeitado, foi um estudioso da
cultura e da língua japonesa. Através do judô, arte marcial da qual era faixa preta,
obteve seu primeiro contato com o zen, tão presente na cultura nipônica. Escreveu
muitos livros, dentre os quais destacamos Catatau (1975), Metamorfose (1994)
ganhador do prêmio Jabouti em 1995, Cruz e Sousa: O Negro Branco e Bashô e a
lágrima do peixe (1983), republicada no livro Vida (1990) juntamente com a biografia
Jesus A.C.(1984) e Trotski : A paixão segundo a revolução(1986). La vie em close
(1991), publicada postumamente por Alice Ruiz.
29
Armando Martins Janeira. O jardim do encanto perdido -- aventura maravilhosa de Wenceslau de Moraes no
Japão. Porto, Manuel Barreira, Editor, 1956, pp. 196. Citado no site:
http://www.unicamp.br/~franchet/moraesha.htm
85
Em Vida (1990), na biografia de Bashô, podemos perceber a admiração de
Leminski ao poeta japonês e à sua poesia, que transforma o cotidiano em arte. No
prefácio da obra, Alice Ruiz, poetisa que foi casada por vinte anos com Leminski,
afirma que ele era nipônico de coração, que foi a fundo na cultura japonesa e não
passava um dia sem escrever pelo menos uma linha, recebendo, por isso, o codinome
de samurai da poesia por Haroldo de Campos e Leyla Perrone-Moisés.
Apesar da vivacidade e intensidade com que viveu cada momento, em junho
de 1989 falece Leminski. Amigos acreditam que ele escolheu esse caminho, inspirado
na vida dos samurais. Segundo Alice Ruiz,
Ele chegou a verbalizar pra mim que tinha escolhido esse caminho. (...)Não
sei exatamente se a tradução de Sol & Aço induziu. Acho que deu um
fundamento, uma estética. O livro do Mishima é uma apologia ao suicídio
honroso. Paulo transformava tudo em evento, em signo. (Alice Ruiz)
30
Sua obra assimilou elementos da primeira fase do modernismo, como o
coloquialismo e o bom-humor, e do concretismo. Outra característica de sua poesia é a
concisão, provavelmente herdada do haikai. Cria assim uma poesia instantânea com
infra-estrutura concretista, preocupada com a fugacidade do tempo e da transitoriedade
das coisas, mas sem tanta preocupação com a forma estética original do haikai japonês.
Praticante de judô, Leminski pôde sentir, como poucos ocidentais, o
“treinamento especial” que essa arte, e os outros dôs (caminhos) oferecem. Ele
experimentou ensinamentos do zen budismo, através do caminho da arte marcial. O
treinamento zen consiste em despertar no discípulo uma consciência, alcançar o satori,
como vimos no primeiro capítulo. As lições vêm diretamente da natureza, dos animais,
das plantas, dos fenômenos naturais. Na época de Bashô, a espada era um desses
caminhos, arte a que ele se dedicou enquanto samurai. Nela o zen se manifesta através
30
Comentário de Alice Ruiz sobre a morte de Leminski e a possível influencia de um livro japonês (Sol & Aço)
que o poeta traduziu com acessoria técnica de tradução de Elza Doi e Darci Kusano, que fazia menção ao
suicídio honroso.
86
dos conceitos de “não-pensamento”, espontaneidade, liberdade natural do corpo para
movimentar-se conforme sua própria lógica, e outros mais. No karatê, outra arte
marcial de origem japonesa, o princípio nasceu da observação de um monge lutador,
que observou uns corvos se secando no telhado após uma chuva. Ao abrir uma asa, o
corvo bateu numa telha e a quebrou. O ensinamento da natureza é: as penas frágeis,
mas concentradas são capazes de quebrar pedras e telhas. Observar e aprender, esse é o
caminho.
Difícil para o ocidental aprender ou compreender o sentido das coisas sem o
uso de teorias, sem as palavras. O zen ensina e treina através de não-palavras, das
imagens, sensações, atitudes e situações. Se nos dispomos a entender o mundo com
esse outro olhar, poderemos então perceber a beleza e a grandeza que a forma poética
haikai possui. Se não, ela nada mais é que três versos incompletos.
Leminski sentiu essa beleza mais facilmente, talvez, por seus anos de
dedicação ao judô. Ele percebeu que através do caminho do haikai,
Os pensamentos mais sutis revelam-se nas condições mais materiais. E a
mais alta poesia, nas circunstancias mais pedestres e corriqueiras. Assim,
Bashô transformou uma prática de texto, uma produção verbal, em
“caminho” para o zen, a mais extraordinária aventura espiritual do bicho
homem(...) Ele [o haikai]é inscrito. Desenhado. Incrustado, como um objeto,
em outro sistema de signos. (Leminski, 1990:125 e 126)
Dada essa subjetividade do haikai, Leminski acredita que traduzi-lo possa
ser algo “tão dramático quanto a abertura da tumba de Osíris para os rituais da
ressurreição”. Outro motivo que dificultaria a tradução é a própria escrita japonesa, tão
complexa e tão diferente da nossa.
O sistema de escrita japoneses (“kanji”, “hiragana”), mais as deformações da
caligrafia, dão infinita possibilidade plástica de grafia aos haikais, que nossos
insossos ABCs nem de longe alcançam, em sua mecânica uniforme horizontal.A
escrita japonesa dos haikais tende para o estado gasoso., a rarefação, a dissolução da
matéria, sempre a um terço do ponto onde se fixa, mas não se define. As
frases/linhas do texto se aproximam da fumaça, com um dinamismo Norte-Sul (do
céu ao inferno, do inferno ao céu), distinto da horizontal orientação Oeste-Leste da
escrita ocidental de extração semita. (Leminski, 1990:88 e 89)
87
Ao nos apresentar o haikai de Bashô, Leminski afirma que além da escrita
caligráfica, o haikai tem um plano fonético com tramas sonoras muito elaboradas,
apesar de não apresentar a rima como nós a conhecemos (coincidência sonora no final
dos versos). Ele na poesia japonesa princípios da poesia moderna brasileira, como o
da redundância de elementos. Podemos perceber essa transformação no poema abaixo,
de Taigi, um discípulo de Bashô, traduzido pelo poeta brasileiro:
YAMABUQUI YA
HÁ NI HANA NI HÁ NI
HANA NI HÁ NI
a montanha sopra
folha em flor em folha em
flor em folha em
“Montanha-sopra” (“yama-buqui”) é o nome em japonês, da rosa amarela.
Esse caso abre margem a um vertiginoso jogo de imagens, e que as folhas
(‘há”) e flores (“hana”) da planta são açoitadas pelos ventos que sopram,
etmologicamente, do seu próprio nome.
“Ni”, em japonês clássico, pode ser tanto a preoposição “em” quanto a
conjução “e”, ambigüidade impensável em língua indoeuropeia.
Vale notar, neste micropoema, onde uma montanha, ora rosa, sopra folhas,
flores, folhas, a presença subjacente da palavra “nariz”.
O que cheira e o que será cheirado estão em relação trocadilhesca. Como
traduzir tamanha complexidade? (LEMINSKI, 1990:91)
Leminski também menciona um outro princípio da poesia japonesa que é o
kakekotoba, uma palavra que dentro do poema faz referencia a outra, que a lembra
como uma “saudade”. Por meio desse princípio, temos a compreensão de muitas idéias
num espaço reduzido, através dos jogos de palavras. Com essa elaboração da poesia
japonesa Leminski justifica a tarefa de traduzir o haikai como “hercúlea (ou
hermética)”.
Sendo poeta e grande apaixonado pela arte japonesa e pelo haikai, não é de
se estranhar que Leminski tenha traduzido o famoso poema de Bashô. Ao nos
88
apresentar o “haikai da rã”, ele começa a explicar a origem do poema através de uma
pequena história:
Bucchô, do mosteiro de Komponji, um monge de amplas leituras e profundas
luzes, tornou-se o professor de Bashô.
Indo ao templo de Chokeiji, em Fukagawa, perto de Edo, um dia, ele visitou
o poeta, acompanhado por um homem chamado Rokusô Gohei.
Este, ao entrar no quintal da choça de Bashô, gritou:
-Como vai a lei de Buda neste jardim quieto com suas árvores e ervas?
Bashô respondeu:
- Folhas grandes são grandes, folhas pequenas são folhas pequenas.
Bucchô,então, aparecendo, disse:
- De uns tempos pra cá, qual tem sido seu empenho?
Bashô:
-A chuva em cima, a grama verde está fresca.
Então, Bucchô perguntou:
-O que é que era esta Lei de Buda, antes que a grama verde começasse a
crescer?
Neste momento, ouvindo o som de um sapo que pulava na água, Bashô
exclamou:
-O som do sapo saltando na água.
Bucchô ficou cheio de admiração a esta resposta, considerando-a uma
evidencia do estado de iluminação atingido por Bashô.
Deste momento, data esta microilíada zen, o mais célebre haikai, o mais
lembrado poema da literatura japonesa, isto de Bashô:
Velha lagoa
O sapo salta
O som da água
(Leminski, 1990:81)
A fonte de onde foi retirada essa história não foi citada. Mas, assim como o
poeta português Wenceslau de Moraes visualiza o momento onde o poema foi
concebido, explicando assim sua tradução, Leminski também o faz, não no templo
budista, mas na própria choça de Bashô. O zen estaria presente no cotidiano do mestre
Bashô, e sua poesia é fruto de reflexões, de momentos de iluminação sobre a existência
e o sentir da natureza. Puro zen.
Vejamos o original e tradução lado a lado:
Furu ike ya Velha lagoa
89
Kawasu tobikomu O sapo salta
Mizu no oto O som da água
Leminski (1990) afirma que, por mais livre que o haikai seja como idéia e
poema, ele obedece a certo esquema de sentido, onde o primeiro verso expressa uma
circunstância eterna, normalmente uma alusão à estação do ano, no caso a primavera,
representada pelo sapo:
Velha lagoa
O segundo exprime a ocorrência do evento, o acaso, a mudança, o acidente
casual.
O sapo salta
O terceiro seria o resultado da interação entre a “ordem imutável do cosmos
e o evento”, onde as articulações sintáticas são soltas, abertas, não sendo uma
conclusão lógica, mas parte da obra de arte que é o haikai.
O som da água
Encontramos no poema os três versos característicos do haikai, menos a
métrica 5/7/5.
Ve/lha/ la/go/a
1 1 1 1 = 4 sílabas
O /sa/po /sal/ta
90
1 1 1 1 = 4 sílabas
O/ som/ da/ á/gua
1 1 1 1 = 4 sílabas
Também há ausência de rima:
Velha lagoa
O sapo salta
O som da água
Quanto à tradução, Leminski faz algumas escolhas no vocabulário. Ike pode
significar tanque ou lagoa, mas na maioria das traduções aparece como tanque. O poeta
opta por lagoa, uma lagoa velha. Kawasu também tem dois siginificados, e sapo,
apesar de kaeru também significar o mesmo. Aqui também a tradução de Leminski
diferencia-se, escolhe sapo ao invés de rã, como a maioria das traduções. O verbo
tobikomu, que representa a ação saltar/entrar, sem correspondente em nossa língua, é
traduzido apenas por saltar. Oto é traduzido por som, pois todo barulho ou ruído é um
som. Se lermos a tradução de Leminski em voz alta, percebemos que um som se
repete. A letra “s” de “sapo”, “salta” e “som” quando pronunciadas seguidamente,
ressaltam a quebra o silêncio.
A simplicidade e concisão do original são percebidas na tradução, que não
diz nada mais que o essencial, deixando que o leitor preencha os espaços através da
sugestão. A preocupação de Leminski com o zen está presente em todo o capítulo de
Vida dedicado a Bashô. Finalizaremos este subcapítulo, mencionando uma
complementação de Leminski do haikai da rã, presente no livro La vie em close
(1991), com intuito de enriquecer essa análise. Através deste poema auto-reflexivo,
com a estrutura formal alterada, Leminski ênfase a imagem poética inusitada do
haikai, mas com características do modernismo brasileiro.
91
KAWÁSU
‘Kawásu é ‘sapo’, em japonês.
Imagino ter relação original com
‘kawa’, ‘rio’. O batráquio é o animal
totêmico do haikai, desde aquele
memorável momento em que Mestre
Bashô flagrou que, quando um sapo
‘tobikômu’ (‘salta-entra’) no velho
tanque, o som da água.
3.4 A TRADUÇÃO DE HAROLDO DE CAMPOS
Nascido em 1929, em São Paulo, Haroldo Eurico Browne Campos foi poeta,
tradutor de poesias em várias línguas, ensaísta e crítico literário, além de procurador da
USP até se aposentar. Juntamente com seu irmão Augusto de Campos e Décio
Pignatari fundou o grupo Noigandres e uma revista com o mesmo nome, embrião da
poesia concreta. A tradução é um dos aspectos mais importantes em sua obra. Acredita
que esta é transcriação, recriação, considerando a estrutura do poema, o ritmo e as
combinações sonoras como elementos de grande importância que devem ser
explorados na tradução. Em 1962 escreve Da tradução como criação e como crítica,
ensaio importante para os estudos de tradução. Traduziu poetas e romancistas como
Pound, Joyce, Mallarmé, Gomringer, Dante, Maiakovski e haicaístas japoneses, entre
eles Bashô.
Recebeu muitos prêmios e homenagens, das quais destacamos a homenagem
do Projeto Yugén/ Fundação Japão em 2000 concedido a Haroldo de Campos, Tomie
Ohtake e H.J Koellreutter, e a da USP em 2002 por seu papel na divulgação da
literatura japonesa no Brasil. Morreu em 2003 deixando muitas obras e trancriações.
92
Para Campos (1977), a poesia japonesa nos oferece uma impressionante
tradição de síntese absoluta e apresentação direta. Ele não está de acordo com a “aura
de melifluidade e exotismo gratuito”, que a visão ocidental procura ver na poesia
japonesa, desvitalizando dessa forma sua principal riqueza, a linguagem concentrada.
Não aceita a denominação de “poesia pó-de-arroz”
31
dada ao haikai por Pound em
ABC of Reading (1934). Para ele, uma poesia tão rica de técnicas de expressão
encontra paralelos em pesquisas das mais avançadas da literatura ocidental
contemporânea.
Ao comparar a linguagem poética ocidental e a oriental, Campos (1977)
exalta a qualidade desta última por ter como um recurso adicional a visibilidade da
metáfora
32
, que se através do ideograma. A etimologia do kanji está sempre visível,
enriquecendo e refinando a poesia chinesa e japonesa.
A linguagem poética vibra sempre com camadas sucessivas de harmônicos e
afinidades naturais, mas no chinês a visibilidade da metáfora tende a elevar
essa qualidade à sua mais alta potência. Realmente quando se considera que
a palavra “sonho” (em japonês, yumê) é expressa pelos desenhos abreviados,
superpostos de vegetação crescendo + rede de pesca+ cobertura+ sol-pôr,
nâo se poderá deixar de pensar nos estímulos que este simples vocábulo
oferece (...) o poeta japonês, com eficácia talvez maior utiliza inclusive as
analogias gráficas de seu material vocabular. São como os “harmônicos” no
plano visual, à disposição do poeta. (p.64-65)
Como um flash da câmara fotográfica, o haikai é produto da sensibilidade e
sutileza do poeta que capta a realidade do mundo exterior e interior do poeta,
convertendo-o em algo visível a nós leitores. Depois disso, fazemos o processo
inverso, do visível (a poesia) para o invisível, ou seja, através da metáfora temos o
“uso de imagens materiais para sugerir relações imateriais”.
31
Em Pound, a poesia japonesa é apresentada como algo enfeitado, ornamentado.
32
A metáfora é parte importante e indispensável a forma como o homem usualmente conceitualiza o mundo. A
metáfora tem várias definições tradicionalmente, mas para Lakoff e Turner (1989), “metáfora é uma ponte que
liga domínios semânticos diferentes fazendo, assim, com que percebamos novos caminhos para a compreensão
do sujeito”.
93
Campos concorda com Fenollosa
33
quando este, em seus estudos, classifica o
ideograma como um ícone, acreditando que por esse motivo a poesia japonesa e
chinesa estão estreitamente ligadas num sentido visual com artes expressivas como a
pintura.
Desde logo o “pictograma” é decididamente um “ícone”: é uma pintura que,
em virtude de suas prórias características, se relaciona, de algum modo, por
similaridade, com o real, embora essa “qualidade representativa” possa não
decorrer de imitação servil, mas de diferenciada configuração de relações
segundo um critério seletivo e criativo (Campos, 1994:48-49).
Vejamos a poesia original e a tradução de Campos:
Furu ike ya
Kawasu tobikomu
Mizu no oto
O velho tanque
rã salt
tomba
rumor de água
Como podemos perceber ao comparar original e tradução, a forma em que a
última é apresentada é bastante diferente. Nesta poesia temos quatro versos dispostos
como degraus de uma escada, em quatro linhas, de forma descontínua. Os versos têm
4, 2, 1, 4 sílabas poéticas, respectivamente, com ausência de rima e título.
33
Ernest Fenollosa (1853-1908) foi um japonólogo simólogo americano que procurou preservar a arte
tradicional japonesa. Faleceu em Londres, mas a seu pedido, suas cinzas foram enterradas perto do lago Biwa, na
Provincia de Shiga.
94
O/ ve/lho/ tan/que
1 1 1 1 = 4 sílabas
rã/ salt
1 1 = 2 sílabas
tom/ba
1 = 2 sílabas
ru/mor/ de/ á/gua
1 1 1 1 = 4 sílabas
Para fazer sua tradução, Campos fez um estudo dos ideogramas que compõe
o poema, por considerar a visualidade do kanji extremamente importante no conjunto
da poesia. Vejamos sua análise:
(1) furu (velho): O sinal de 10 sobre a boca (kuchi); o que passou de
boca em boca por 10 gerações (Pound via Fnollosa), ou noticia 10 vezes
repetida (Vaccari, Pictorial Chinese/ Japanese)
(2) ike (lago, tanque): caracteriza-se pelo elemento “água” (mizu),
abreviado, àq esquerda do ideograma.
(3) ya: partícula expletiva, escrita em hiragana.
(4) kawazu (rã): caracteriza-se pelo elemento “verme” (mushi), à
esquerda do ideograma, indicando espécie animal.
(5) tobikomu: verbo composto por tobu “saltar” + komeru,
“entrar”; contem os dois pólos da ação: o salto e o mergulho; grava-se com
dois kanji superpostos: o de tobu seria, para Vaccari, a pintura sintética de
pássaros no ato do vôo; o de komeru reúne uma parte inferior, indicativa de
uma parte de “movimento para frente” (shinnyu, cf. Vaccari; “o processo”:
pegadas + um pé, cf. Pound/Fenollosa), e outra superior (nyu, Vaccari),
significando “entrar” (como um rio na sua foz); a desinência verbal mu está
grafada em hiragana.
(6) mizu (água): pictografia de fios de água correndo.
(7) no (de): preposição, em grafia hiragana.
(8) oto (rumor): embora extremamente estilizado e de interpretação
problemática, este símbolo, para Vaccari, remontaria a uma antiga
pictografia de uma boca aberta, deixando ver a língua (parte inferior do
kanji), no ato de produzir o som.
95
Neste haikai de Bashô, talvez o mais famoso do gênero, o eixo da
ação está na palavra composta tobikomu, formada pela aglutinação dos
verbos saltar (tobu) + entrar (komeru). No original, a transição dos “shots”
visuais se faz assim, sem solução de continuidade, de uma tomada para outra,
até o remate, que se resume, como numa etapa final de montagem
cinematográfica, no rumorejar da água agitada pelo baque de um corpo que
saltou e nela imergiu. Por aqui se pode avaliar a pobreza, para não dizer
infidelidade, que haveria numa tradução convencional, que fixasse a
imagem da saltando, por exemplo. Com a “palavra-valise” à maneira
joyciana, “saltomba” (fragmentada visualmente por um recurso à Cummings
de apostrofação, “salt/tomba”), procurei acompanhar o desenrolar fílmico da
idéia, “esse desejo de fundir imagem em imagem que, para D. Keene,
caracteriza a poesia japonesa. De outro lado, a textura fônica de “saltomba”
não deixa, de certo modo, de responder à tobikomu. (CAMPOS, 1977:62)
A análise feita por Campos assemelha-se um pouco à feita no início deste
capítulo, salvo algumas diferenças quanto à origem pictográfica. Vale ressaltar que
nossa análise dos ideogramas da poesia de Bashô tem como objetivo facilitar sua
compreensão nem sempre fácil, para nós que utilizamos a escrita alfabética, visto que o
ideograma se originou através de desenhos, pictografias, que simbolizavam algo e que
com o decorrer do tempo passaram a ser símbolos convencionados. (vide página
69). Em sua análise dos ideogramas, Campos se utiliza das pesquisas de Fenollosa e
Vaccari. Algumas das diferenças que podemos perceber entre as duas análises são:
O ideograma , onde a parte superior representa o número dez,
exatamente como o numeral é escrito em japonês que, associado à parte inferior
(kuchi, boca em japonês), significaria dez gerações, ou notícia dez vezes
repetida. Em nossa análise o pictograma representa um crânio com um enfeite
na parte superior, fazendo referencia aos antepassados, ao antigo, velho.
Em nossa análise de kawasu , seu kanji é uma junção do ideograma de inseto
com o kanji que indica o sinal sonoro de barulho. , enquanto na
análise de Campos os mesmos significam verme e espécie animal.
96
Oto para Campos, é a boca aberta com a língua visível ao se produzir som.
Segundo o dicionário de pictogramas usado em nossa análise, o que impede a
fala não é a língua, mas um sinal, algo que interfere na produção do som.
Para Campos essa análise foi fundamental em sua transcriação, pois através
dela tenta recuperar o recurso visual do ideograma. O poeta tradutor começa a
transcriar através da forma do poema. Para traduzir o verbo tobikomu, criou a palavra
SALTOMBA, para recuperar a idéia de voar + entrar do verbo tobikomu. E para tornar
mais visual essa ação, Campos brinca com a disposição dos versos:
Desta forma, Campos tenta tornar visível a idéia de salto e mergulho da
na água. A forma do poema original é abandonada em prol da recuperação de um
outro elemento, a visualidade da ação do verbo tobikomu presente no ideograma e sem
correspondente em língua portuguesa. Essa maneira de traduzir, sempre priorizando a
forma do poema é uma das principais características da trancriação.
É importante mencionar que, ao escrever os ideogramas nos dias de hoje, o
japonês não percebe esses elementos visuais do kanji tão claramente como poderíamos
imaginar, visto que o processo de escrita é algo automatizado e também produto de
mudanças e convenções que foram acontecendo no decorrer de milhares de anos.
Durante a aquisição da escrita, a criança japonesa é apresentada aos pictogramas
sempre fazendo referencia a imagem que ele evoca. No decorrer do tempo desse
processo é interiorizado, e os elementos passam a ser símbolos, como as letras do
nosso alfabeto. O recurso visual apresentado por Campos está presente, mas não é em
97
todos os kanji que ele aparece claramente, sendo necessário um estudo da origem e da
evolução da pictografia ao ideograma. O elemento visual pode ser explorado na
poesia, por exemplo.
Neste subcapítulo vimos que a tradução de Campos não é convencional, é
uma transcriação. Para preservar algumas características do poema original que julga
mais importantes, o tradutor opta por transcriar a palavra tobikomu por salt/tomba, para
dar ênfase ao movimento da rã. Também valoriza bastante a metáfora visual presente
no haikai via ideograma. Embora sua corrente teórica e transcriações não sejam
totalmente aceitas por alguns teóricos, Campos é um dos grandes tradutores brasileiros
e considerado um dos maiores divulgadores da poesia haikai no Brasil.
3.5 A TRADUÇÃO DE PAULO FRANCHETTI/ ELZA DOI
Paulo Franchetti é considerado um dos maiores pesquisadores sobre haikai
do Brasil. Professor de Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa da Universidade
Estadual de Campinas UNICAMP, começou a interessar-se academicamente pela
poesia japonesa após um trabalho sobre poesia concreta em 1982 e início de uma
pesquisa sobre Camilo Peçanha e Wenceslau de Moraes. Desde então seus estudos
sobre haikai só aumentaram, através de leitura mais aprofundada sobre poesia japonesa
e o aprendizado da língua japonesa. Dos seus anos de estudo sobre o assunto
resultaram vários trabalhos, dentre eles o livro Haikai antologia e história, feito em
parceria com Elza Doi, também professora da UNICAMP, grande amiga, e co-
tradutora da “poesia da rã”. Essa tradução está presente no livro acima mencionado,
juntamente com outras traduções de poesias de haicaístas japoneses importantes,
divididas de acordo com o kigô (Ano Novo, Primavera, Verão, Outono e Inverno).
Franchetti (1990) afirma que Bashô é um poeta especial não pela sua
concepção de vida e poesia que se revela através do haikai, elevando-o a um michi
(caminho). Ao contemplar sua poesia não se deve esquecer que seu haikai
98
é produto de um pensamento religioso sincrético, em que o animismo
shintoísta convive com a doutrina budista do mundo como ilusão e
sofrimento (...) Da mesma forma, ao pensar o haikai como arte, precisamos
ter consciência de que conceitos estéticos tão familiares para nós, como, por
exemplo, verossimilhança, universalidade, particularidade, são estranhos a
tradição japonesa. (p.19)
O que o autor quer dizer é que ao tentar compreender a obra de Bashô sem
entender a filosofia, os costumes e a época em que ele viveu, não chegaremos a um
resultado. O pensar ocidental e o oriental diferem bastante entre si, e para entender o
outro lado é preciso desprender-se de preconceitos e tornar-se mais sensível ao novo.
Em seu livro Haikai antologia e história, Franchetti apresenta um rápido
panorama da presença do haikai no Ocidente, mais especificamente nos países de
Língua Portuguesa. “A história do haikai no Ocidente é apenas um capítulo da longa
história da integração entre os dois lados do planeta”, e uma das primeiras definições
do que seria essa nova forma poética foi feita pelo Padre João Rodrigues, em 1604, em
Arte da lingoa de Iapam, quando os missionários católicos começavam seus trabalhos
no oriente:
hua sorte de versos a modo de Renga que se chama: Faicai, de
estilo mais baixo & o verso he de palavras ordinárias, & facetas a modo de
verso macarrônico, & este modo de Renga, posto que nan tem tantos preceitos
como a verdadeira, o numero de versos pode ser o mesmo. E pode começar
pello segundo verso de sete sete, que se chama Tçuquecu, & continuar com
cinco sete cinco. (apud Franchetti, 1990:37)
Também comenta as traduções de Wenceslau de Morais e Haroldo de
Campos, comentários estes que em breve serão expostos. Como pesquisador e
estudioso do haikai no Brasil, divide-o em três tendências ou linhagens
34
:
1) A tendência originada por Guilherme de Almeida, que julgava o haikai
como “a anotação poética e sincera de um momento de elite”, além de
acrescentar métrica rígida e título a seus poemas.
34
In www.germinaliteratura.com.br/p.cruzadas_out2005.htm
99
2) A tendência que provém dos imigrantes japoneses que aclimataram o haikai
conservando os critérios que julgavam mais importantes no gênero. Seu
principal representante é o poeta Nempuku Sato, e essa tradição se mantém
em algumas cidades brasileiras, preservadas através de grupos ou
associações dedicadas ao haikai. A mais antiga é o Grêmio Haikai ipê. Sua
característica principal é a exigência da objetividade do haikai e a presença
de uma palavra indicativa de estação do ano (kigo).
3) A tendência que valoriza o lado zen, observando atentamente o haikai,
buscando um segundo sentido, irônico ou místico através de uma relação
entre elementos da linguagem. A métrica deixa de ter importância. Seu
maior representante foi Paulo Leminski.
Franchetti acredita que para se produzir um bom haikai, é preciso algum
conhecimento, mas não um conhecimento denso da cultura japonesa, nem estudar
profundamente os textos budistas, assim como um lutador de judô ou karatê não
precisa se aprofundar nos costumes nipônicos para serem bons lutadores.
Algum conhecimento é necessário, principalmente para poder sentir a
diferença, para perceber o jeito de olhar e de registrar a sensação que
respondem pela especificidade do haicai. Décio Pignatari, contrapondo-se a
um conferencista que afirmava que era impossível compreender a gravura
japonesa sem conhecer o Zen e a história da cultura japonesa, afirmou, certa
vez: “não será preciso que eu vista uma armadura medieval para entender uma
igreja românica, nem tampouco que me enfie numa roupagem de samurai para
saber ver um kakemono”. Quanto a mim, nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
A leitura dos clássicos, a percepção do quadro de referências religiosas e
culturais, a observação do que o poeta disse numa determinada situação em
que outras coisas podiam ou deviam ser ditas tudo isso compõe, à volta das
breves linhas do haicai, um quadro de estranhamento, em relação à nossa
própria época e tradição, que é, a meu ver, salutar.
35
Ao traduzir o famoso haikai de Bashô, Franchetti utilizou-se de seus estudos
sobre a poesia e a língua japonesa e, juntamente com Elza Doi, fez a seguinte tradução:
35
Franchetti, em entrevista concedida a Revista de Cultura Agulha,
http://www.revista.agulha.nom.br/ag42franchetti.htm
100
Furu ike ya O velho tanque
Kawasu tobikomu Uma rã mergulha,
Mizu no oto Barulho de água.
Em uma primeira análise, percebemos que a tradução possui três versos
como o texto de partida.
O/ ve/lho/ tan/que
1 1 1 1 = 4 sílabas
U/ma/ rã/ mer/gu/lha,
1 1 1 1 1 = 5 sílabas
Ba/ru/lho/ de/ á/gua.
1 1 1 1 1 = 5 sílabas
A métrica é de 4/5/5 sílabas poéticas, com ausência de rima e título.
O velho tanque
Uma rã mergulha,
Barulho de água.
Observamos o poema original e sua tradução:
101
A tradução de Franchetti, das quatro apresentadas, é a mais literal. Cada
palavra da poesia foi traduzida: furu velho; ike tanque; ya, partícula expletiva
substituída pelo hífen; kawasu rã; tobikomu mergulha; mizu água; no
preposição de; oto barulho. Mais do que a forma e a estética da apresentação,
preocupa-se em transmitir a essência e a informação do que o poema contém.
Franchetti afirma que devemos considerar o texto a ser traduzido como
ponto de tensão entre outros textos (com leitores de épocas diferentes, contemporâneo
ao original e de uma época seguinte onde será traduzido).
Penso que o haicai seja tão traduzível quanto qualquer texto pertencente a uma
civilização distante da nossa no tempo ou no espaço. Não me parece que deva
ser mais difícil traduzir um haicai do que um poema provençal ou um poema
árabe. Quando se muita literatura de um período ou civilização, percebe-se
a rede de referências em que se apóia cada novo texto. A tradução deve levar
em conta esses efeitos de sentido, isto é, o que, no impacto de um texto sobre
o leitor, provém das alusões que ele faz a outros, pelo aproveitamento que faz
dos que o precederam. Um texto é sempre um ponto de tensão dentro de um
conjunto de outros textos: o leitor da época tinha costumes e referências com
as quais o texto se combinava ou colidia; os leitores das épocas seguintes
tinham também os seus costumes e referências, que incluíam, modificados e
selecionados, os costumes e referências do tempo da produção da obra.
Quando leio um haicai japonês, uma parte do que percebo provém de eu
conhecer um pouco da tradição poética japonesa, de ter lido muitos haicais e
textos sobre haicai.
36
36
Opus cit.
102
Afirma que em sua tradução procura reproduzir os efeitos que sentiu, e se
julgar necessário o faz em notas de rodapé. Embora em sua tradução não tenha se
utilizado de artifícios, se tomarmos novamente o conceito de haikai, veremos que ele é
um poema breve e objetivo, cujo único interesse é seu sabor particular. Essa
característica de não informar nada além do necessário e fazer com que o leitor
preencha as lacunas através do que o poema sugere, é o fundamento do haikai, e
Franchetti, através de sua experiência e conhecimento da tradição poética japonesa,
talvez tenha procurado preservar em sua tradução esse conceito, não acrescentando
nenhuma informação estética, não alterando a forma.
Na minha tradução, é claro, vou tentar reproduzir os efeitos de sentido que
percebi. Mas isso não quer dizer que não precise complementar a tradução
com notas de rodapé, para que o leitor possa perceber de onde vem o brilho, a
especificidade ou o caráter de obra-prima do haicai que tem ante os olhos.
37
Desse modo, Franchetti acredita que traduzir poemas não é tarefa
impossível, é necessário apenas compreendê-los em um contexto maior, da cultura de
partida e de chegada. E em sua tradução opta pela literalidade, talvez para manter o
sabor particular próprio do haikai: cabe ao leitor inferir e completar o seu sentido.
3.6 ANÁLISE DAS TRADUÇÕES
Faremos mais uma análise das traduções de Moraes, Leminski, Campos e
Franchetti, numa perspectiva comparativista. Nossa intenção é, a partir das quatro
traduções analisadas separadamente, confrontá-las com o intuito de observar
semelhanças e diferenças entre elas.
Conforme foi mencionado, essas traduções foram selecionadas de um
conjunto de cerca de 50 traduções do haikai da rã” em língua portuguesa. Interessante
notar como um pequeno poema feito no século XVII despertou e ainda desperta o
interesse de tantos poetas e tradutores ocidentais. Para esse trabalho foram escolhidas
37
Opus cit.
103
quatro traduções entre as mais conhecidas e difundidas de anos diferentes do século
XX, uma de Portugal e as demais do Brasil.
Devemos levar em conta não as diferentes épocas em que os poetas estão
inseridos, mas também sua bagagem de conhecimentos, vivências e proximidade com
o “universo” japonês.
Dentre os quatro tradutores, Wenceslau de Moraes e Elza Doi foram os
únicos que viveram no Japão, sendo que Moraes permaneceu até o fim de sua vida.
Teve a oportunidade de interagir com o povo japonês, conhecer seus costumes e
apreciar a cultura e a literatura de perto. Porém, os demais tradutores em estudo,
mesmo sem uma experiência como a de Moraes, tiveram contato com o Japão de
alguma forma. Leminski entrou em contato com o zen budismo através das artes
marciais, filosofia que é a essência do haikai de Bashô. Campos dedicou-se ao estudo
do ideograma como metáfora visual, por considerar a visualidade do kanji
extremamente importante no conjunto da poesia. Franchetti apaixonou-se pela poesia
e, por causa dela procurou conhecer mais e mais esse “novo mundo” através do
aprendizado da língua e literatura japonesa.
Vejamos agora as quatro traduções:
Um templo, um tanque musgoso;
Mudez apenas cortada
Pelo ruído das rãs,
Saltando à água. Mais nada...
(Wencelau de Moraes)
Velha lagoa
O sapo salta
104
O som da água
(Paulo Leminski)
O velho tanque
rã salt
tomba
rumor de água
(Haroldo de Campos)
O velho tanque
Uma rã mergulha,
Barulho de água.
(Paulo Franchetti/ Elza Doi)
Numa primeira análise vemos que a forma e a métrica diferem bastante nas
poesias, a primeira com sete sílabas poéticas em cada verso e rima cruzada no segundo
e quarto versos (ABCB), a segunda com quatro sílabas poéticas em cada verso sem
rima, a terceira com quatro , dois, dois, quatro sílabas poéticas respectivamente a
última com quatro, cinco, cinco sílabas poéticas sem rima. São duas poesias com três
versos e duas com quatro, mas nenhuma observa a métrica tradicional do haikai.
Das quatro traduções, apenas uma não é brasileira, a mais antiga, que
apresenta uma forma bastante conhecida e apreciada em Portugal: a quadra. Como
sabemos, Moraes optou por traduzir o haikai nessa forma por considerá-la a mais
indicada para o público alvo, visto que a quadra era a forma popular mais curta da
poesia portuguesa, portanto, a melhor opção para a tradução.
105
Outra diferença das demais é seu caráter descritivo. As outras traduções
preservam a objetividade da mensagem do haikai original. A tradução de Moraes é
praticamente uma descrição poética do que o original sugeriu em poucas palavras.
Franchetti (1990) faz um comentário sobre essa tradução:
(...) Moraes se esforça por mostrar aos portugueses a grande e sofisticada
civilização que se desenvolvia no outro extremo do mundo, busca apresentar-
lhes uma possibilidade concreta e realizada de alto desenvolvimento moral e
cultural fora dos padrões e práticas cristãs (...) Do ponto de vista da tradução
de haikai, seu trabalho não deixa de ser interessante, mas, preocupado em
conseguir em português tão tradicional e popular quanto o terceto japonês,
Moraes vai traduzir os hokku em quadras, o que o obriga freqüentemente a
inserir palavras ou frases que não aparecem na versão literal que faz também
de cada poema. O resultado, muitas vezes, deixa a desejar, porque o texto
traduzido resulta muito explicativo ou mesmo prolixo. (p.38-39)
Usaremos a divisão de Franchetti das tendências do haikai no Brasil para
analisarmos as outras traduções. Recordamos que Franchetti divide em três vertentes
ou tendências: a representada por Guilherme de Almeida (métrica rígida com rima e
título no poema), a tradicional, que provém dos imigrantes japoneses e preserva as
tradições da poesia japonesa inclusive o kigo, e a tendência que valoriza o lado zen,
buscando um sentido irônico ou místico, representada por Leminski.
De acordo com essa classificação, a tradução de Franchetti se encaixaria na
linha tradicional, por causa da objetividade e literalidade, para dessa forma manter o
tradicional. A tradução de Leminski se encaixaria na terceira vertente, não por ele
ser seu maior representante enquanto poeta de haikai, mas porque sua tradução é um
pouco mais trabalhada na escolha das palavras.
Franchetti acredita que essas duas tendências são as mais interessantes, pois
preservam as características de um haikai:
Nas suas vertentes mais interessantes, que são a de orientação zen e a de
orientação nipônica conservadora, o haicai faz da modéstia e do apagamento do
eu valores estéticos. E tendo como norma central a busca de uma linguagem
objetiva e coloquial, tanto o haicai zen quanto o haicai tradicional tendem a
recusar o exibicionismo, a ostensiva e fácil elaboração lingüística ou
106
metalingüística. Além disso, essas duas vertentes do haicai o difundem
basicamente por meio de oficinas, debates, concursos e sessões de estudo, de
modo que o nome haicai designa aí, mais do que um nero literário ou uma
forma, uma prática, um modo específico de utilizar a linguagem. Uma prática
que se revela avessa à celebração e à exibição do “gênio”, e na qual o produto é,
muitas vezes, avaliado principalmente como testemunho de uma ação dirigida
para uma finalidade.
38
A transcriação de Campos não teria lugar nessa classificação de Franchetti,
pois este acredita que a abordagem adotada por Campos é exclusivamente literária,
concentrando muita atenção na “materialidade do signo”, perdendo uma característica
do haikai: o despojamento.
Penso que as traduções de Haroldo foram feitas com um viés muito específico.
Ele julgava que devia concentrar a atenção no ideograma. Ora, uma dada
palavra, num haicai, tanto pode ser escrita com ideograma ou com caracteres
silábicos. É uma escolha que o poeta ou o calígrafo tem. Além disso, a poesia
clássica japonesa, da qual o haicai emerge tardiamente como forma autônoma, é
eminentemente oral: os participantes se reúnem e dizem as estrofes do poema
coletivo, que são anotadas por um secretário. o haicai, o terceto isolado do
poema coletivo, era apresentado sempre com um outro texto, verbal ou visual.
Quando era apresentado com um acompanhamento visual, a escolha do kanji ou
da grafia silábica era determinada pelas necessidades da composição visual.
Quero dizer: muito mais visualidade, no haicai, do que a visualidade
enfatizada por Haroldo, que tinha uma perspectiva simultaneamente etimológica
e paronomástica: etimológica porque buscava decompor o kanji nos seus
componentes, e paronomástica porque buscava, ao longo do haicai, as
repetições, as retomadas das partes ou figuras identificadas na decomposição do
ideograma. Minha crítica à tradão do haicai da rã, nesse livro, se funda no
fato de que o texto de Bashô, cuja singularidade na história do haicai reside no
fato de ter tratado a sem personificações, alusões ou ironia, acabou por
originar, em português, um texto desequilibrado, que atrai sobre o jogo verbal, e
não sobre o seu despojamento imagético e lingüístico, a atenção do leitor.
39
Concordamos com Franchetti quando ele afirma que na tradução de Campos
falta o despojamento que o haikai, em sua essência, propõe. Mas é preciso levar em
consideração que a concepção de tradução para Campos é outra, é de recriação. A
transcriação usada por Campos possibilita ao tradutor, a partir do seu olhar sobre o
poema, traduzir de forma criativa, sendo sua tradução o produto de elaboração da
38
Franchetti em entrevista concedida a Revista de Cultura Agulha,
http://www.revista.agulha.nom.br/ag42franchetti.htm
39
Opus cit.
107
forma. Vemos na tradução de Campos uma forma interessante e criativa de expressar o
que o original sugeriu.
Neste trabalho apresentamos quatro formas de ver/interpretar o haikai da
rã” de Bashô. Os autores se propõem a interpretá-lo, cada qual com um olhar diferente
sobre o original, muitas vezes percebendo algo que não foi visto por outra pessoa. Essa
diversidade de leitura é que traz riqueza ao poema, também através de suas traduções.
O haikai da rã” é uma poesia que conquistou o mundo, chegando a ter,
somente em língua portuguesa, muitas traduções (vide anexo). Bashô foi um grande
mestre, lembrado e respeitado até os dias de hoje por sua poética. Não é de admirar que
muitos tenham tentado traduzir sua poesia durante esses séculos, através de tradutores
de inúmeros países com os mais variados pontos de vista teóricos. Sem essas
traduções, o haikai de Bashô não estaria presente até hoje em vários países de tantas
línguas diferentes. Por isso, terminamos nossa análise com uma citação de Arrojo
(2003:24), que diz que a tradução, como leitura, deixa de ser, portanto, uma atividade
que protege os significados “originais” de um autor, e assume sua condição de
produtora de significados; mesmo porque protegê-los seria impossível.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Contextualizando a poesia haikai e o poeta Bashô no seu tempo e espaço,
passando pela busca da compreensão da forma oriental de ver o mundo através da arte,
vida e religião, analisamos neste trabalho quatro traduções do haikai da rã”, nas quais
a sensação do ‘instante poético’ do Mizu no Oto” concretiza-se de diversos modos.
Toda essa cuidadosa pesquisa sobre a cultura japonesa não foi por acaso, pois a
finalidade foi apresentar ao nosso leitor essa cultura tão fascinante que é a japonesa e,
dessa forma, facilitar a compreensão da análise feita neste trabalho.
Assim, nossa intenção foi analisar as traduções de Wenceslau de Moraes,
Paulo Leminski, Haroldo de Campos e Paulo Franchetti/Elza Doi do “haikai da rã” de
Bashô, verificando os recursos/estratégias usados pelos tradutores, além das
semelhanças e diferenças entre as mesmas. Fundamentamos nossa análise nas teorias
de Literatura Comparada. No que diz respeito à tradução, nos baseamos especialmente
109
nos Estudos Descritivos, pois analisa as traduções de forma descritiva. Pudemos
verificar, direta ou indiretamente, quais concepções e teorias são aceitas e usadas por
cada tradutor em seus poemas-traduções.
A semiótica de Peirce nos ajudou na análise e compreensão do haikai,
permitindo-nos penetrar no movimento interno da mensagem do poema. Através dela
vimos que o haikai é ícone, através da imagem sugerida pelo ideograma, e também
índice, que indica aquilo que o poeta quis transmitir. Entendendo que o haikai é,
principalmente, a qualidade da pura sensação, ou seja, a primeiridade definida por
Peirce, pudemos compreender melhor os recursos e procedimentos empregados no
haikai original e em suas traduções, chegando às conclusões que se seguem.
Ao traduzir o haikai japonês em língua portuguesa, suas características
formais não são necessariamente mantidas. Apenas um dos tradutores, Franchetti, que
procura manter “fidelidade” à essência do original, apresenta uma tradução literal,
embora a métrica 5/7/5 não seja mantida.
As outras traduções utilizam uma abordagem mais literária, cada uma à sua
maneira. Moraes procurou adaptar o poema de Bashô à cultura de chegada, ou seja, a
cultura portuguesa. Julgou mais apropriado traduzir a forma 5/7/5 através da quadra
portuguesa, forma poética popular em Portugal, correspondente à popularidade do
haikai no Japão. Moraes preocupou-se com o pólo receptor, adaptando sua tradução
aos moldes portugueses.
Leminski, por sua vez, buscou transmitir em sua tradução a mensagem
filosófica do haikai. Como vimos, a filosofia zen budista é intrínseca aos haikais de
Bashô. Leminski, praticante do zen, pode sentir mais que os outros tradutores essa
essência, por isso procurou transmiti-la em sua tradução, preservando a simplicidade e
concisão do original.
110
Campos é o tradutor que explora intensamente a forma do poema.
Fundamentado na estética que ele próprio criou junto com seu irmão, a transcriação,
ele recria o poema da de forma que é possível visualizarmos o movimento do salto
da rã. Baseado na transcriação e nas idéias de Fenollosa e Pound sobre a visualidade do
ideograma, Campos explora todos os elementos presentes no original, resultando em
uma das traduções mais originais desse poema, sendo por esse motivo bastante
elogiada pela criatividade e inventividade da transcriação, e também criticada por
perder a característica essencial do haikai: a simplicidade.
Com esta análise, concluímos que os conceitos estéticos de pobreza e
solidão presentes no original estão mais presentes nas traduções de Leminski e
Franchetti, pois estes procuraram não rebuscar muito a tradução, mantendo o objetivo
primeiro do haikai que é concisão, simplicidade e objetividade. Encontramos as
seguintes semelhanças entre as traduções:
Apenas duas traduções apresentam três versos.
Nenhuma tradução mantém a métrica 5/7/5 sílabas poéticas.
Todos mostram-se encantados por sua poética e mencionam a
importância de desprender-se do preconceito com o novo e o
conhecimento da filosofia zen budista.
Quanto às diferenças, estas foram apresentadas nos parágrafos anteriores.
Apenas enfatizamos que cada tradutor pertenceu a uma época e adotava sua teoria
tradutória. Moraes viveu no Japão, Leminski experimentou o zen através de uma arte
marcial, percebendo-o melhor no poema de Bashô. Campos procurou no ideograma a
mensagem do poema. Franchetti estudou a fundo a poesia japonesa e baseados nele fez
sua tradução. Com um único objetivo, o de traduzir Bashô, fazem-no seguindo o
conselho do mestre, o de chegar ao mesmo lugar, mas traçando seu próprio caminho.
111
A cultura japonesa é tão rica e vasta, que este trabalho é apenas um estudo,
ainda inacabado, de muitas possibilidades e aspectos que ainda podem ser explorados.
Pesquisar sobre a poesia japonesa foi bastante proveitoso e gratificante. Poder
conhecer um pouco mais sobre a história e a cultura do Japão, mais precisamente sobre
o haikai, contribuiu não somente para um enriquecimento pessoal, mas também para
divulgar, através da presente pesquisa, a cultura nipônica. O haikai, enquanto instante
poético, possibilita-nos perceber a primeiridade definida por Peirce, uma consciência
imediata que não analisa, apenas sente. E é na poesia de Bashô que podemos perceber,
de uma forma especial, a essência do haikai.
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http://www.unicamp.br/~franchet/moraesha.htm.
117
ANEXOS
118
ANEXO I
Antologia da traduções em língua portuguesa do “haikai da rã” de Bashô
apresentadas no site da revista online de haikai Kaqui, na página da web:
http://www.kakinet.com/caqui/furuike.shtml
Lago vetusto:
A rã se lança n'água
Com estrépito!
Anônimo
Portal, julho de 1987
Em pleno luar,
119
Ao duplo salto de um sapo,
Seguiu-se um desmaio.
Abel Pereira
Mármore Partido,1989
VELHO LAGO
MERGULHA A RÃ
FRAGOR D'ÁGUA
Alberto Marsicano
Haikai,1988
Velho tanque abandonado ao silêncio...
lança-se a rã num mergulho:
quase inaudível som da água.
Antônio Nojiri
Poesia japonesa, 2005
A Rã
Coro de cor, sombra de som de cor, de mal me quer
De mal me quer, de bem, de bem me diz
De me dizendo assim: serei feliz
Serei feliz de flor, de flor em flor
De samba em samba em som, de vai e vem
De verde, verde ver pé de capim
120
Bico de pena, pio de bem-te-vi
Amanhecendo sim perto de mim
Perto da claridade da manhã
A grama, a lama, tudo é minha irmã
A rama, o sapo, o salto de uma rã
Caetano Veloso e João Donato
in Caetano Veloso Songbook, de Almir Chediak (ed.), 1997
silencioso lago
o sapo salta
tchá
Carlos Verçosa, tradutor de Octavio Paz
Oku: viajando com Bashô,1996
No velho tanque
Uma rã salta-mergulha
Ruído na água.
Casimiro de Brito
Uma rã que salta: homenagem a Bashô, 1995
121
Velho tanque.
Uma rã mergulha.
Barulho da água.
Cecília Meirelles
Escolha o seu sonho, 1974
Embaixo do tanque
Não encontro o que procuro
Uma rã me assusta.
Clóvis Moreira dos Santos
Haicais - 1a Antologia 2001, 2001
No lago, mergulha
uma rã... Na água, a manhã
verde-azul borbulha...
Cyro Armando Catta Preta
Moenda dos Olhos, 1986
122
Perereca
Elástica... pula...
Risco acrobático, arisco.
A poça se ondula...
Cyro Armando Catta Preta
Palhas do Tempo, 1993
VELHA
LAGOA
UMA RÃ
MERG ULHA
UMA RÃ
ÁGUÁGUA
Décio Pignatari
citado em Matsuo Bashô, de Paulo Leminski, 1987
Tanque envelhecido
uma rã nele mergulha
um barulho n'água!
123
Delores Pires
O livro dos haicais, 2001
Superfície verde.
A rã mergulha quebrando
a tranqüilidade.
Eduardo Martins
Poemas japoneses, 1950
chuá, chuá
coach, coach
tchibum!
Estrela Ruiz Leminski
Cupido: cuspido, escarrado, 2004
Uma rã saltando
blum o rio também
pula alforriado
Fernando Sérgio Lyra
Planos de Gaivota, 1996
Ah! o antigo açude!
E quando uma rã mergulha,
o marulho da água.
Guilherme de Almeida
Acaso: versos de todo tempo, 1938
124
No velho poço
plop e some, tão fria
a rã de Bashô
Gustavo Alberto Corrêa Pinto
Gotas de Orvalho, 1990
o velho tanque
rã salt'
tomba
rumor de água
Haroldo de Campos
A arte no horizonte do provável, 1969
camões revisto por bashô
as rãs
daqui e dali s l a d
a t n o
o charco soa
Haroldo de Campos
Crisantempo: no espaço curvo nasce um, 1998
o salto da rã
sobre a folhagem
contorce o verso
125
Jaime Vieira
Hai-kais ao sol (antologia), 1995
Verde
Na lâmina azinhavrada
desta água estagnada,
entre painéis de musgo
e cortinas de avenca,
bolhas espumejam
como opalas ocas
num veio de turmalina:
é uma rã bailarina,
que ao se ver feia, toda ruguenta,
pulou, raivosa, quebrando o espelho,
e foi direta ao fundo,
reenfeitar, com mimo,
suas roupas de limo...
João Guimarães Rosa
Magma, 1997
Quebrando o silêncio
de charco antigo, a rã salta
na água, ressoar fundo.
126
Jorge de Sena
Poesias de 26 séculos, v.2, 1960
O velho tanque
uma rã mergulha
dentro de si.
Jorge de Souza Braga
O gosto solitário do orvalho, 1986
o tanque estanque
mergulho de rã: t
SHI
bun !
circunfluindo ...
Josely Viana Batista
jornal Gazeta do Povo, Curitiba, s/d
Na beira do charco,
coaxa o sapo-ferreiro
e acorda o silêncio.
127
Leda Mendes Jorge
Haicais, 1999
Na antiga lagoa
pro fundo uma rã mergulha.
Barulho das águas.
Lena Jesus Ponte
Na trança do tempo, 2000
Salta a rã no lago
((((( o tremor da água se espalha )))))
mergulha em galáxias.
Lena Jesus Ponte
Na trança do tempo, 2000
Ao pular de um sapo,
as águas do velho lago
se abriram sonoras...
Luís Antônio Pimentel
Tankas e haikais, 1953
Um velho lago parado... cerrado... calado...
de águas turvas e tranqüilas,
realizava, no deslumbramento da noite clara,
seu sonho antigo de ser espelho...
128
Seu fundo lodoso e sombrio
refletia, cheio de orgulho,
um cortejo relumbrante de estrelas,
quando um sapo, asqueroso e profano,
saltou sobre ele,
arrancando de suas águas
um arrepio de pavor
e um gemido estrangulado de agonia...
Luís Antônio Pimentel
Tankas e haikais, 1953
Água resmungona...
No tanque limoso
o pulo da rã.
Luiz Bacellar
Satori, 1999
O pulo
Estrela foi se arrastando no chão deu no sapo
sapo ficou teso de flor!
e pulou o silêncio
Manoel de Barros
Arranjos para Assobio, 1982
129
As pererecas
pulam no lago verde
A água suspira
Maria Apparecida Arruda
Hai-kais ao sol (antologia), 1995
Sobre o tanque morto
Um ruído de rã
Que mergulha.
Maria Ramos, tradutora de Osvaldo Svanascini
Três mestres do haikai: Bashô, Buson, Issa,1974
Nem grilo, grito, ou galope;
No silêncio imenso
Só uma rã mergulha plóóp!
Millôr Fernandes
Hai-kais, 1986
águas paradas
mal pula a rã se inundam
de ondas sonoras
130
Nelson Ascher
Folha de S.Paulo, 19/01/2004
Ploc! Uma rã pula
no silêncio da lagoa,
e o silêncio ondula.
Oldegar Vieira
Gravuras no vento, 1994
Sobre o tanque morto
um ruído de rã
submergindo.
Olga Savary
O livro dos hai-kais, 1987
Ah, o velho lago.
De repente a rã no ar
e o baque na água.
Olga Savary
Bashô, 1989
O velho tanque
Uma rã mergulha,
Barulho de água.
Paulo Franchetti e Elza Doi
Haikai, 1990
131
velha lagoa
o sapo salta
o som da água
Paulo Leminski
Matsuo Bashô: A Lágrima do Peixe, 1983
MALLARMÉ BASHÔ
um salto de sapo
jamais abolirá
o velho poço
Paulo Leminski
La vie en close, 1991
No tanque vetusto
um estalido na água:
o salto da rã!
Primo Vieira
Bashô - Palhas de arroz, 1994
132
Plenitude
A água está parada.
Uma rã salta no musgo.
Olho. E mais nada.
Raul Machado
As Cinco Estações, 1993
velho tanque
a rã salta
som do baque n'água
Regina Bostulim
Armadilha de Polvos, 2003
O tanque rachado.
Um fio de água molha
a pata da rã.
Roberto Saito
Fúrias - Faíscas - O grande silêncio, 1992
133
O sapo mergulha:
N'água fria da lagoa
uma pedra parda.
Ronaldo Bomfim
Essências e medulas, 2000
Com seu pulo mole
mergulha... A água borbulha
e num gole a engole...
Sebas Sundfeld
Sínteses Poéticas, 2002
Um velho tanque:
salta uma rã zás!
esquichadelas.
Sebastião Uchoa Leite, tradutor de Octavio Paz
Signos em Rotação, 1971
O sapo pulou
no velho tanque vazio
e... espatifou-se.
Sérgio Dal Maso
Natureza - Berço do haicai (antologia), 1996
134
No velho tanque,
saltou uma rã. O bulício...
Tei Okimura
A poesia e os japoneses: o "haikai"
in: Brasil e Japão, duas civilizações que se completam, 1934
Ruidosas crianças
Afugentam da lagoa
As rãs de Bashô.
Teruko Oda
Relógio de sol, 1994
No capim que cresce
A pequena rã mergulha
Tarde cinza-chumbo.
Teruko Oda
Haicai - A poesia do kigô, 1995
Um templo, um tanque musgoso;
Mudez, apenas cortada
Pelo ruído das rãs,
Saltando à água, mais nada...
Wenceslau de Moraes
Relance da alma japonesa, 1925
135
O sapo, num salto
cresce ao lume do crepúsculo
buscando a manhã
Zemaria Pinto
Fragmentos de Silêncio, 1996
136
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