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Universidade Estadual do Ceará
Marcio Fonseca Pereira
A adaptação do romance O invasor para o cinema:
tensão e impasse na relação entre as classes sociais
Fortaleza
2007
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Universidade Estadual do Ceará
Marcio Fonseca Pereira
A adaptação do romance O invasor para o cinema:
tensão e impasse na relação entre as classes sociais
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
Acadêmico em Lingüística Aplicada do Centro
de Humanidades da Universidade Estadual do
Ceará como requisito parcial para a obtenção
do grau de mestre em Lingüística Aplicada.
Área de Concentração: Tradução e
Ensino-aprendizagem de L2/LE. Linha de
pesquisa: Tradução, Lexicologia e
Processamento da Linguagem.
Orientadora: Profa. Dra. Irenísia Torres de
Oliveira
Fortaleza
2007
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
Curso de Mestrado Acadêmico em Lingüística Aplicada
Título do trabalho: A adaptação do romance O invasor para o cinema:
tensão e impasse na relação entre as classes sociais
The adaptation of the novel O invasor for the cinema: tension and deadlock in
the relationship between social classes
Autor: Marcio Fonseca Pereira
Defesa em: 03/08/2007.
Banca Examinadora
_____________________________________
Irenísia Torres de Oliveira, Profa. Dra.
_________________________ ______________________________
Vera Lúcia Santiago Araújo, Profa. Dra. Rubens Luís Ribeiro Machado Júnior, Prof. Dr.
3
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Irenísia Torres de Oliveira pela orientação bastante cuidadosa, pelo
apoio e pela amizade.
Aos meus pais pelo apoio em todos os momentos da pesquisa.
À CAPES pelo apoio financeiro necessário á realização dessa pesquisa
Às professoras e aos colegas do grupo de pesquisa Tradução para a mídia, pela
convivência amistosa e pelas discussões relevantes que tanto contribuíram para a
realização deste trabalho.
4
RESUMO
Nesta pesquisa, estudamos a relação tradutória entre O invasor, livro de Marçal
Aquino, e sua adaptação cinematográfica homônima, de Beto Brant. A partir das estruturas
narrativas de livro e filme, a saber, o jogo de interesses que move os personagens de
classes sociais distintas (o qual se desenvolve numa relação de aproximação e repulsão
entre eles), procuramos compreender as peculiaridades de cada obra. Para isso nos
baseamos em algumas teorias da tradução, em estudos que consideram a adaptação
fílmica como forma autônoma de arte e nas concepções de Antonio Candido sobre a relação
entre literatura e sociedade. Quanto ao estudo da linguagem cinematográfica, tivemos por
base diversos autores que tratam de questões como o olhar no cinema, a montagem (e sua
maneira de organizar o tempo e o espaço), música etc. Observamos que a adaptação fez
amplo uso da transição entre os espaços da cidade (periferia e área nobre) a fim de marcar
as diferenças entre essas realidades, ao mesmo tempo em que as relaciona através da
figura do matador, que está em ambas as partes. Com relação ao uso da música,
percebemos que ela tanto pode estar relacionada à classe social de um personagem quanto
ao seu estado psicológico. A montagem, por sua vez, cria uma instabilidade visual que serve
para impedir o relaxamento do espectador e envolvê-lo no clima da trama. Todos esses
aspectos se complementam na construção da tensão, no mal-estar onipresente na relação
entre as classes.
Palavras-chave: adaptação fílmica, montagem, tempo, espaço, música
5
ABSTRACT
This research analyzed the translation process of the novel O invasor (The
trespasser) by Marçal Aquino into its homonymous film adaptation by director Beto Brant. By
starting from the common narrative line, namely the diverse interests of the members of
different social classes (which develop into a relationship of attraction/repulsion) we came to
understand the peculiarities of structure and meaning of each work. Our analysis was based
on some theories of translation, on studies that regard film adaptation as an independent
form of art and on Antonio Candido´s conception of the relationship between literature and
society. With regard to the study of film language, the research was based on many authors
that deal with questions such as point of view, montage (and its implications on time and
space), music, etc. It was observed that the adaptation largely employed the transition
between rich and poor areas so as to set the differences between both realities and, at the
same time, connect them by means of the character Anísio (the killer), who walks on both
sides. As to music, it was noticed that it can be related to the social class of a character as
well as to his/her state of mind. Montage, on its turn, creates visual instability so as to disturb
the viewer´s comfortable position and involve him/her in the atmosphere of the plot. All these
aspects were put together to create tension, the ever-present uneasiness between social
classes.
Key words: film adaptation, montage, time, space, music
6
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Chegada de Ivan e Giba ao bar..................................................................63
Figura 2: Ivan e Giba avaliam o bar...........................................................................63
Figura 3: Anísio observa Ivan e Giba.........................................................................64
Figura 4: Giba e Ivan são observados apenas por Anísio.........................................65
Figura 5: Ivan e Giba contratam Anísio: tensão.........................................................66
Figura 6: Ivan segue Giba..........................................................................................72
Figura 7: Giba chama Ivan para a mesa....................................................................72
Figura 8: “Balada” e desânimo de Ivan: contraste.....................................................88
Figura 9: O olhar distante de Ivan.............................................................................89
Figura 10: Seqüência com música (velório de Estevão).......................................90-91
Figura 11: Rock e ambiente: psicodelismo (som diegético)......................................92
Figura 12: O vai-e-vem da câmera............................................................................92
Figura 13: A “apresentação” particular de Sabotage.................................................93
Figura 14: A conversa entre Estevão e Ivan: campo/contracampo............................96
Figura 15: As inserções: pensamento de Ivan...........................................................97
Figura 16: Flashback: Ivan e Rangel..........................................................................98
Figura 17: Os três porquinhos..................................................................................100
Figura 18: Giba e a família: duas faces....................................................................101
Figura 19: Capas do livro e do DVD........................................................................102
Figura 20: Anísio na direção ao som do rap............................................................103
Figura 21: Da área nobre à periferia........................................................................103
Figura 22: Sabotage expõe a realidade da periferia.........................................105-106
Figura 23: Zoom: a realidade mais de perto............................................................106
Figura 24: Anísio domina a cena.............................................................................107
Figura 25: Uísque: símbolo do novo status de Anísio..............................................108
Figura 26: A batida...................................................................................................110
Figura 27: Seqüência de Outubro.....................................................................110-111
Figura 28: Ivan e os rapazes da periferia.................................................................111
Figura 29: Anísio “invade” a mente de Ivan.............................................................113
Figura 30: Visão comprometida de Ivan..................................................................113
Figura 31: A corrida louca de Ivan...........................................................................114
Figura 32: Depoimento de Ivan...............................................................................114
7
Figura 33: Cecília no banheiro.................................................................................116
Figura 34: Ivan e Cecília: casamento fracassado....................................................116
Figura 35: Roupas claras para reforçar o ambiente.................................................118
Figura 36: Marina sob efeito de ecstasy..................................................................118
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................11
1 - TRADUÇÃO E ADAPTAÇÃO FÍLMICA................................................................14
1.1 - Os estudos de tradução: as questões da fidelidade e dos propósitos
tradutórios ...................................................................................................... 14
1.2 - Estudos de tradução e adaptação fílmica: a difícil compreensão da
relação entre literatura e cinema.....................................................................19
2 - AS NARRATIVAS DE LIVRO E FILME.................................................................29
2.1 - O livro de Marçal Aquino.........................................................................30
2.1.1 - O problema da representação da realidade..............................30
2.1.2 - A visão de classe média como foco narrativo............................37
2.2 - O filme de Beto Brant..............................................................................48
2.2.1 -A Retomada do cinema nacional................................................48
2.2.2 - Linguagem e momento histórico................................................52
3 - O PROCESSO TRADUTÓRIO.............................................................................55
3.1 - Metodologia.............................................................................................55
3.1.1 - Constituição do corpus..............................................................55
3.1.2 - Procedimentos metodológicos...................................................55
3.2 - Estruturas narrativas...............................................................................57
3.2.1 - A estrutura narrativa como categoria de análise.......................57
3.2.2 - As estruturas narrativas de O invasor (livro e filme)...................58
3.2.2.1 - Aproximação e repulsão entre classes sociais.............58
3.2.2.2 - A força do capital e a ausência da lei...........................60
3.2.3 - As classes entram em contato...................................................63
3.3 - Recursos narrativos.................................................................................73
3.3.1 - Questões de cinema..................................................................73
3.3.1.1 - A linguagem do cinema e a montagem........................73
3.3.1.2 - A música.......................................................................80
9
3.3.2 - A construção do filme O invasor................................................86
3.3.2.1 - Música e montagem em O invasor..............................86
3.3.2.2 - Espaço, tempo e montagem em O invasor..................94
3.3.2.2.1 - A conversa entre Estevão e
Ivan.....................95
3.3.2.2.2 - Os três porquinhos.........................................99
3.3.2.2.3 - Anísio leva Marina à periferia.......................102
3.3.2.2.4 - Anísio é o “dono” da mansão........................107
3.3.2.2.5 - A batida do carro de Ivan..............................109
3.3.2.3 - A questão psicológica................................................112
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................119
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................122
FILMOGRAFIA.........................................................................................................127
ANEXOS...................................................................................................................128
ANEXO I: Entrevista com o diretor do filme, Beto Brant..........................................129
ANEXO II: Entrevista com o diretor de fotografia, Toca Seabra..............................133
10
INTRODUÇÃO
A dificuldade de se organizar estudos sobre adaptação fílmica deriva,
antes de tudo, da natureza bastante distinta das duas formas de arte envolvidas. A
exploração por parte do cinema de recursos expressivos como a imagem em
movimento e o som, enquanto a literatura se concentra prioritariamente na forma
escrita obrigam o estudioso a lidar com um amplo espectro de possibilidades, tarefa
para a qual a especialização geralmente em apenas uma das áreas – costuma ser
um fator limitador e até gerador de equívocos e preconceitos.
11
Apesar de tão distintos, cinema e literatura têm em comum a possibilidade
de narrar histórias. Nesse sentido, a narrativa é em geral considerada o ponto de
maior proximidade entre uma obra literária (romance, conto etc.) e o filme produzido
a partir dela, podendo servir como primeiro referencial para o estudo, o que não
significa, entretanto, que este se resuma a buscar em que pontos as narrativas
literária e fílmica se encontram. Na verdade, essas semelhanças correm o risco de
“cegar” o estudioso para um problema de maior relevância, que é o modo como o
cinema resolve certos impasses, às vezes criados pela própria narrativa literária. Se
lembrarmos ainda que o filme é o esforço do diretor para veicular sua interpretação
da obra literária na qual irá propor uma discussão do tema em questão, ora se
aproximando ora se afastando do texto de partida veremos que a total fidelidade
não é possível nem desejável, pois uma tradução mantém uma obra viva
exatamente quando a atualiza. Baseado nessa mesma idéia, Stam (2005: 58) afirma
que a adaptação fílmica de um romance é uma forma de crítica ou de leitura dessa
obra, não devendo necessariamente subordinar-se a ela.
Da mesma forma, nossa análise da adaptação de O invasor não se
fundamenta em critérios de subordinação, especialmente devido ao fato de termos
em nosso estudo uma condição peculiar na relação entre livro e filme. Em O invasor,
o distanciamento temporal tão comum entre a obra escrita e a adaptação
desaparece uma vez que ambos são produzidos quase simultaneamente. Segundo
palavras do próprio diretor do filme, Beto Brant (ver entrevista no anexo I), o livro
ainda não havia sido terminado quando ele decidiu adaptá-lo. Segundo Alessandra
Brum, que entrevistou o escritor Marçal Aquino, o processo de criação do livro foi
interrompido no quarto capítulo, quando ele começou a se dedicar ao roteiro, a
pedido do diretor (Brum: 2003, 22). Em seguida, o filme foi produzido e, somente
depois, Aquino finalizou o livro, que foi lançado após o filme. Dessa forma, a própria
condição de “original” da obra literária fica parcialmente comprometida, que
sabemos que a influência se deu também no sentido inverso. Entretanto, essa
circunstância não chega a constituir um problema para nosso estudo, pois não
compreendemos o processo tradutório como uma relação hierárquica entre livro e
filme.
12
O escritor-roteirista exerce as duas profissões algum tempo. Tendo
trabalhado como roteirista nos dois longas-metragens anteriores de Brant, Os
Matadores (1997) e Ação entre Amigos (1998), percebemos que uma afinidade
entre o escritor e o diretor, a qual me foi confirmada informalmente pelo diretor
quando ele esteve aqui em Fortaleza em 2005. Essa afinidade e o trabalho de
roteirista produziram marcas cinematográficas na escrita do romance, que também
são investigadas em nosso trabalho. Nesse caso, diferentemente de outros estudos
sobre adaptação fílmica, levamos em conta uma relação dialética em que cinema e
literatura se imbricam, sendo diferente, portanto, daquela em que o filme vem como
um “segundo”, como na maioria dos casos.
O que destacamos em nosso trabalho como linha mestra das narrativas
em foco é a aproximação e repulsão entre indivíduos de classes sociais distintas,
fator que determina uma trama baseada no conflito de interesses, presente nas duas
obras. Esse elemento, entretanto, marca as estruturas das obras de maneira distinta,
devido, naturalmente, às diferenças inerentes a cada meio semiótico bem como às
escolhas efetuadas pelo escritor e pelo diretor. Devemos ainda lembrar que o
trabalho do diretor não ocorre de maneira isolada. Para a realização de um filme é
necessário também o trabalho de uma série de profissionais (atores, montador,
diretor de fotografia etc.) que influenciam, em maior ou menor grau, o resultado final.
O tema para a pesquisa surgiu a partir da leitura de uma entrevista
concedida por Beto Brant a Luciana Sanches (ver anexo I). Nela, o diretor revela sua
preocupação com as disparidades socioeconômicas no Brasil, ao perceber o desejo
intransigente das elites em perpetuar seus privilégios, ao mesmo tempo em que
excluídos se armam, buscando na criminalidade a sobrevivência. É precisamente
esse conflito que sentido à história. Por isso, a compreensão de como ele se
estrutura revela-se importante para a pesquisa. Além disso, após um estudo inicial,
percebemos que a exploração do psicológico também tem participação importante
no filme na medida que ajuda a compor a atmosfera de tensão ao revelar o
desespero ou o desamparo de alguns personagens. Deriva daí nosso estudo da
construção específica de alguns deles (item 3.3.2.3.), que têm suas vidas afetadas
direta ou indiretamente pelo conflito de interesses da narrativa.
Nossa preocupação foi examinar como as estruturas narrativas se
organizam, estabelecendo relações e propondo significados e, para isso,
respeitamos as peculiaridades inerentes a cada meio semiótico.
13
Nosso estudo está dividido em três capítulos: o primeiro trata de questões
teóricas sobre tradução e adaptação fílmica; o segundo estabelece uma discussão
sobre as narrativas de livro e filme, a fim de mostrá-los enquanto obras autônomas
e; no último capítulo, desenvolvemos nossa análise do processo tradutório, levando
em conta a especificidade da linguagem cinematográfica.
14
1- TRADUÇÃO E ADAPTAÇÃO FÍLMICA
Neste capítulo faremos uma discussão sobre algumas correntes da
tradução, abordando as diferentes concepções do ato tradutório e noções de
equivalência. Também dedicaremos um item a considerações sobre a adaptação
fílmica, discutindo a complexidade e os preconceitos ligados a essa forma específica
de tradução.
1.1- Os estudos de tradução: as questões da fidelidade e dos propósitos
tradutórios
A complexidade do processo tradutório tem sido estudada por teóricos a
partir de diversas perspectivas que, de uma forma ou de outra, acabam
contemplando o problema da equivalência entre tradução e original, o qual tem sido
preocupação freqüente dos estudiosos desde os tempos mais remotos. Entretanto, a
própria tentativa de definição do termo equivalência tem-se mostrado bastante
problemática, uma vez que existem diferentes critérios (formais, funcionais etc.) para
defini-la, o que acaba por gerar uma infinidade de conceitos que dificultam uma
teorização mais abrangente sobre o fenômeno da tradução.
Com base numa abordagem lingüística da tradução, teóricos como John
C.Catford (1989:70) e Eugene Nida (1989:80) tentaram encontrar meios de definir o
ato tradutório a partir do texto-fonte. Apesar de não apresentarem uma definição de
equivalência em si argumentaram que a preocupação principal do tradutor devia ser
a de encontrar, na língua de chegada, o equivalente ao conteúdo do texto de partida.
15
Com esse objetivo, Catford (apud Rodrigues 2000:38) fez uso da
lingüística contrastiva para tentar sistematizar a tradução, definindo-a como um ato
quase mecânico, matemático, de substituição de termos em frases
descontextualizadas a fim de se encontrar o “equivalente de tradução”. Esse termo
equivalente seria aquele que compartilhasse ao menos algumas características com
o termo a ser traduzido da língua de partida. Sendo assim, reconheceu que essa
operação era de “natureza aproximada” e dependia de semelhanças formais entre
as línguas fonte e alvo. Portanto, quanto mais aproximadas fossem as duas línguas
maiores seriam as chances de se encontrar um equivalente ideal. Segundo Cristina
Rodrigues (2000:41-42), os estudos de Catford apresentam limitações mesmo no
estudo de frases descontextualizadas, pois nelas as possibilidades tradutórias
variam significativamente de acordo com o tradutor, o que torna inútil, por exemplo,
o estudo de probabilidades de ocorrência de palavras, proposto por Catford. Devido
a essas limitações, o modelo teórico se prestaria muito mais à comparação entre
línguas do que propriamente aos estudos de tradução.
Nida (apud Rodrigues 2000: 62-63), por sua vez, desenvolveu seu
trabalho a partir das dificuldades encontradas em suas traduções da Bíblia, usando,
assim, a lingüística como suporte para a resolução de problemas relacionados à
tradução. Acreditava que seus estudos podiam se aplicar à tradução de forma geral,
o que revela sua visão prescritiva sobre o processo tradutório. Para ele, a tradução
consistiria em determinar o “núcleo” da mensagem da língua-fonte, a ser
transportado para a “língua receptora”, através de um processo de “equivalência
dinâmica”, o qual determinaria a necessidade da transmissão do conteúdo novo de
uma forma simplificada (o “equivalente natural mais próximo”). Esse processo
apesar de revelar uma preocupação com a recepção da mensagem tem como
referência (assim como em Catford) a língua inglesa. Seria, portanto, a partir dela
que a simplificação seria realizada e não de acordo com todas as exigências formais
da língua-alvo, o que confirma a unilateralidade de sua concepção tradutória, além
de revelar a crença na possibilidade de se usar a base estrutural da língua inglesa
para transmitir conteúdos, praticamente sem perda, dependendo da capacidade do
tradutor de “digerir” a mensagem para o receptor, que precisaria, assim, de um
esforço menor para decodificá-la.
16
Opondo-se à visão apriorística de Catford e Nida, os teóricos André
Lefevere (1992) e Gideon Toury (1995a, 1995b) pertencentes ao grupo dos
Estudos de Tradução – baseiam suas propostas na análise de traduções literárias. O
primeiro, com certa atenção ao estudo da evolução histórica das traduções e a
textos traduzidos do alemão para o inglês; o segundo, com certo enfoque no estudo
de traduções de poemas para o hebraico. Seus estudos apresentam um caráter
descritivo, pois procuram analisar como determinadas traduções foram realizadas e
não como supostas traduções ideais deveriam ser feitas.
Lefevere (1992:2) define a tradução como um processo de “reescritura”,
influenciado por aspectos ligados à cultura e à sociedade da língua-alvo. Dessa
forma, tanto fatores ligados ao sistema literário (o cânone e a crítica, por exemplo)
como à ideologia (política, de classe etc.) teriam influência sobre o que seria ou não
traduzido em determinada época, gerando conjuntos específicos de “estratégias” de
tradução para diferentes tipos de restrições situacionais. Isso, segundo ele, seria
responsável pelo destaque de certos escritores em detrimento de outros, o que
colocaria a reescritura no mesmo nível de importância que a escritura em uma
determinada cultura literária (especialmente se essa cultura fosse bastante
dependente das traduções), aspecto geralmente combatido pelos críticos literários,
que consideram a tradução uma atividade de pouco esforço intelectual em
contraposição à criação do “sagrado” texto literário. Apesar da clara mudança do
status da tradução, o critério de fidelidade permanece, que agora como
“equivalência funcional”, ou seja, a tradução atende a uma função determinada pelos
critérios coercitivos acima mencionados.
Toury (1995a), por sua vez, desenvolveu seus estudos com base na
Teoria dos Polissistemas (TP) de Even-Zohar. Para Even-Zohar, o polissistema de
uma cultura englobaria o conjunto dos meios semióticos que dela fazem parte.
Dentro da TP, o texto traduzido é visto como pertencente ao sistema literário da
cultura de chegada, o que possibilitou a Toury considerar – assim como Lefevere – a
relevância dos contextos histórico e social na análise do processo tradutório. Dentro
de sua proposta, dois conceitos são fundamentais: o de “norma” e o de “invariante
de comparação” (tertium comparationis). O conceito de norma que originalmente
na sociologia se refere àquele comportamento considerado aceitável por uma
determinada comunidade passa, então, a referir-se ao comportamento geral dos
17
tradutores de uma certa cultura que acabam, em maior ou menor grau, se
adequando a necessidades e exigências dos grupos para os quais traduzem. Assim,
a norma não é algo obrigatório como uma “regra”, nem muito menos fruto da
subjetividade de um tradutor isolado (“idiossincrasia”), mas determinada por todos
esses fatores em conjunto. O invariante de comparação, por sua vez, baseia-se na
possibilidade de total equivalência entre a tradução e o texto de partida. Nesse
sentido, a tradução que se desviasse do invariante em direção ao texto-fonte seria
estrangeirizada, atendendo ao critério de “adequação”, ao passo que a tradução
fluente, mais próxima da cultura de chegada, atenderia ao de “aceitabilidade”. Esse
critério de desvio serviria de base para determinar quais normas teriam sido
seguidas por um determinado grupo de tradutores. Como vemos, apesar do avanço
teórico dado ao se conferir um novo status à tradução, Lefevere e Toury não
descartam a possibilidade da transferência fiel de uma mensagem de uma língua
para outra, o que, entretanto, não deve ser visto como uma atitude obrigatória por
parte de quem traduz.
Outro grupo que também se interessa pela tradução enquanto produto de
um determinado contexto histórico e social é o grupo de Göttingen, Alemanha. Da
mesma forma que os membros do grupo dos Estudos Descritivos, estudam séries de
traduções e evitam emitir juízo de valor sobre a qualidade do trabalho do tradutor.
Entretanto, diferentemente dos estudiosos do outro grupo, não se interessam pela
literatura enquanto pertencente a um polissistema e trabalham com comparações de
trechos isolados. Uma das idéias que norteia o trabalho desse grupo é a de que a
tradução carrega valores culturais diferentes (Kulturschaffende Differenz) daqueles
da cultura do texto original. Segundo Milton (1998:197-198), estudos realizados por
dois de seus membros revelam resultados interessantes. Jürgen Von Stackelberg
demonstra que o romance anti-escravista Oronoko or the Royal Slave de Mrs. Aphra
Benn teve a crítica à escravidão totalmente suprimida ao ser traduzido para o
francês como Oronoko ou le Prince nègre em 1745. Brigitte Schultze, por sua vez,
mostra que na adaptação de peças polonesas para o inglês, o critério para a
tradução de nomes e títulos no século XIX era a domesticação, enquanto hoje a
tendência é de mantê-los próximos aos originais.
Para Milton (1998:199), assim como os estudiosos de Göttingen e dos
Estudos Descritivos, Walter Benjamin e Jacques Derrida também reconhecem o
18
papel de destaque da atividade tradutória. Devemos, entretanto, estabelecer a
diferença de visões desses dois tradutores em relação os membros dos dois grupos.
Benjamin, cujos estudos tem por base teórica o Idealismo filosófico de
Kant, entende o tradutor como aquele que busca o reencontro com a língua pura,
aquela que seria capaz de comunicar o que uma tradução não poderia de forma
isolada e, muito menos, atemporal. Dessa maneira, a tradução ideal (que nunca
poderia ser alcançada) seria uma forma de tentar atingir a completude e, portanto, o
Divino. A propósito dessa questão da estranheza entre as línguas, Benjamin diz:
(...) toda tradução é apenas um modo de alguma forma provisório de lidar
com a estranheza das línguas. Uma solução não temporal e provisória para
essa estranheza, uma solução instantânea e definitiva, permanece vedada
aos homens, ou pelo menos não pode ser aspirada diretamente. (Lages,
2002:201)
Derrida assume posição semelhante à de Benjamin ao se referir ao
esfacelamento pós-babélico das línguas. Para ele, da mesma forma que os
arquitetos que tentaram e não conseguiram erguer a torre que chegaria até Deus, os
tradutores também estariam fadados ao fracasso de tentar “edificar” traduções para
atingir a expressão comum e reconciliadora entre as línguas. O tradutor teria então
sua tarefa interdita desde antes do início, devido ao limite de formalização de cada
língua isolada, que surgiu da desconstrução da língua original de Babel:
A “torre de babel” não configura apenas a multiplicidade irredutível das
línguas, ela exibe um não-acabamento, a impossibilidade de completar, de
totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da
edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica. O que
a multiplicidade de idiomas vai limitar não é apenas uma tradução
“verdadeira“, uma entr’expressão [entr’expression] transparente e
adequada, mas também uma ordem estrutural, uma coerência do
constructum. (Derrida, 2002:12)
Com base no pensamento de Nietzche e na psicanálise de Freud, Derrida
reconhece a presença do “outro” no discurso do “eu” uma vez que não seria possível
estabelecer o conhecimento a partir do nada. Para o âmbito da tradução ou
interpretação (leitura) de um texto dito original, isso acarretaria um débito, que
atormentaria o tradutor (ou leitor), pois o original estaria sempre cobrando a sua
dívida. Portanto, a questão tradutória envolveria sempre um débito irreconciliável,
daí a necessidade de negar ou esconder a influência do original, “matando” o pai
(Arrojo, 1993).
19
Como vemos, ambos (Benjamin e Derrida) atribuem à tradução um
objetivo muito maior que o simples reencontro com um suposto original. Na verdade,
para eles, a boa tradução deve ir ao encontro do novo, daquilo que ficou como
lacuna no original, o que é possível a partir da interpretação crítica do texto a ser
traduzido.
Vemos, portanto, com base nas diferentes concepções de tradução, que o
ato tradutório admite diversas variáveis como fatores lingüísticos, culturais,
econômicos, políticos e até filosóficos, não se restringindo apenas ao objetivo
imediatamente reconhecível da retransmissão do conteúdo de um texto de partida.
1.2- Estudos de tradução e adaptação fílmica: a difícil compreensão da relação
entre cinema e literatura
A teoria de Even-Zohar, com seu conceito de polissistema, não se limitou
a influenciar apenas os estudos sobre tradução literária. Ela permitiu que o conceito
de tradução fosse ampliado, uma vez que considera a possibilidade de trocas tanto
intra quanto intersistêmicas no interior de cada polissistema cultural. A partir dessa
idéia, Cattrysse (1992) desenvolveu sua proposta metodológica de estudo da
adaptação fílmica como uma forma de tradução.
Na verdade, a terminologia que define esse tipo de tradução foi
inicialmente apresentada pelo lingüista russo Roman Jakobson, que denomina de
“intersemiótica” a tradução entre meios semióticos distintos. Segundo ele, “a
tradução intersemiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos
verbais por meio de sistemas de signos não-verbais” (Jakobson, 1995: 64-65), o que
nos permite entender a tradução como um fenômeno amplo, no qual outros signos
além da palavra escrita também podem entrar para constituir a ressignificação no
ato tradutório. Entretanto, Jakobson não organizou um modelo teórico que tratasse
especificamente da análise de adaptações fílmicas e sua definição, apesar de ser
bastante útil, parte do pressuposto lingüístico de que, para todo signo do original,
corresponderá um signo na tradução, o que não se verifica em adaptações fílmicas,
nas quais inclusões e exclusões são partes integrantes do processo tradutório.
Cattrysse, portanto, baseando-se na definição de Jakobson e adequando
os estudos de Itamar Even-Zohar (1978) e de Gideon Toury (1980) à sua área de
20
interesse, desenvolveu seus estudos sobre adaptação fílmica, propondo uma
metodologia para desvendar as normas que regem esse tipo de tradução
intersemiótica. Em um de seus estudos, analisou 30 filmes noir norte-americanos
para verificar as normas tradutórias adotadas pelo gênero.
Os estudos de Toury e Cattrysse não serão utilizados de forma direta na
análise de O invasor. Isso porque nosso objeto de estudo se constitui apenas do
livro, da adaptação fílmica e seu roteiro, não permitindo, como no trabalho de
Cattrysse, a verificação de normas que possam ser estendidas a, por exemplo,
outros filmes do mesmo contexto sócio-histórico que, em nosso caso, corresponde
ao ciclo de filmes nacionais denominado Retomada (ver item 2.2.1). Além disso, livro
e filme são produzidos praticamente ao mesmo tempo e dentro de uma mesma
cultura, não havendo, portanto, diferenças culturais que marquem a tradução.
Entretanto, a grande contribuição dos Estudos Descritivos se na medida em que
eles trazem uma nova visão do processo tradutório, permitindo que a adaptação seja
vista como um trabalho que detém um sentido próprio, fruto das peculiaridades da
arte cinematográfica, não devendo, portanto, ser avaliada a partir de critérios de
fidelidade ao texto original.
Se verificarmos o panorama atual dos estudos tradutórios com a devida
atenção, veremos claramente que a relação da literatura com as mídias visuais (em
particular, o cinema) é das mais produtivas, o que se traduz em um número
significativo de adaptações fílmicas nos últimos anos.
Na verdade, o fenômeno da adaptação fílmica não é tão recente, muito
menos exclusividade do nosso país, como bem ressalta João Batista B. de Brito ao
dizer que “na história do cinema o número de adaptações ultrapassa de muito a
quantidade de filmes com roteiros originais” (Brito, 1996:17).
Após o período inicial de dependência da linguagem da encenação teatral,
o cinema associou-se à literatura, percebendo que seu ponto de proximidade com
ela era a narrativa. Desde então, as adaptações fílmicas realizam uma simbiose
importante entre essas duas formas de arte tão distintas, mas que, ao mesmo
tempo, guardam pontos em comum e se influenciam.
A propósito da relação entre cinema e literatura, Ismail Xavier, um de
nossos maiores críticos de cinema, aponta para semelhanças no processo de
21
construção das narrativas. Sua posição é bem clara ao traçar um paralelo entre o
trabalho do escritor e o do cineasta:
A seleção e disposição dos fatos, o conjunto de procedimentos usados
para unir uma situação à outra, as elipses, a manipulação das fontes de
informação, todas estas são tarefas comuns ao escritor e ao cineasta.
(Xavier, 1984: 24).
Com relação à influência da literatura sobre o cinema podemos lembrar
que David Griffith, um dos pioneiros do cinema narrativo clássico, tirou grande
proveito da forma de contar histórias do escritor inglês Charles Dickens. Este, com
sua técnica de mudar repentinamente o foco de um grupo de personagens a outro,
permitiu a Griffith desenvolver sua famosa técnica de montagem paralela
1
. A
respeito dessa influência, Griffith, em visita a Londres, falou a A. B. Walkley do jornal
The Times em 26 de abril de 1922. Walkley assim descreve a entrevista de Griffith:
Ele (Griffith) é um pioneiro, ele próprio admite, em vez de um inventor. Isto
quer dizer que ele abriu novos caminhos na Terra do Cinema, tendo como
guia idéias fornecidas a ele. Suas melhores idéias, parece, surgiram a
partir de Dickens, que sempre foi seu favorito... Dickens inspirou o Sr.
Griffith com uma idéia, e seus empregadores (meros homens “de
negócios”) ficaram horrorizados; mas diz o Sr. Griffith, “fui para casa, reli
um dos romances de Dickens, e voltei no dia seguinte para dizer-lhes que
poderiam ou usar minha idéia ou despedir-me.”
O Sr. Griffith encontrou a idéia à qual se aferrou heroicamente em
Dickens... A idéia é simplesmente a de um “corte” na narrativa, uma troca,
na história, de um grupo de personagens por outro. Quem escreve
romances longos e cheios como Dickens, especialmente quando eles são
publicados em partes, acham esta idéia conveniente. (Eisenstein, 1949,
2002a:183)
1
A montagem paralela ficou definitivamente consolidada no modelo narrativo clássico através das famosas
cenas de perseguição. Esse tipo de montagem consiste em cortes sucessivos, mostrando, alternadamente,
perseguidor e perseguido. A partir desse uso inicial, pôde ser aproveitada em outras situações. (Xavier, 1984:20-
21).
22
Essa influência também se deve ao sucesso atingido por certos romances
do século XIX junto ao público nos séculos XIX e XX, o que fez aumentar o interesse
das produtoras de cinema em adaptá-los. Sendo o cinema uma arte em que a
questão da recepção pública é com freqüência um dos fatores determinantes da
produção artística, em especial no cinema de alto custo, rapidamente essa relação
se consolidou:
Dado o fato de que o romance e o filme são as formas mais populares de
narrativa dos séculos XIX e XX respectivamente, talvez não seja
surpreendente que produtores de cinema tenham buscado explorar o tipo
de resposta causada pelo romance, além de vê-lo como uma fonte de
material já pronto... (McFarlane, 1996:8, tradução minha)
2
Entretanto, desde o momento em que o cinema atingiu ampla difusão e
relativo reconhecimento, passamos a encontrar, com maior freqüência, críticos que
perceberam a afinidade de certos escritores com as técnicas da arte
cinematográfica.
Para André Bazin, a força da linguagem do cinema fez com que nossa
percepção ficasse condicionada pela realidade das telas. Essa nova forma de
construção do mundo teria aberto uma série de possibilidades que agradaram a
muitos romancistas modernos:
Sem dúvida, e como não poderia ser de outra maneira, os novos modos de
percepção impostos pela tela, maneiras de ver como o primeiro plano, ou
estruturas de relato, como a montagem, ajudaram o romancista a renovar
seus acessórios técnicos. (Bazin, 1991:89)
Brito reitera a posição de Bazin, afirmando que o modo de narrar do
cinema passou a ser referência para os escritores modernos ao perceberem que a
visão onisciente do narrador do Realismo
3
o dava conta da multiplicidade de
visões que compõem a experiência humana.
2
No original, em inglês: “Given the fact that the novel and the film have been the most popular narrative modes of
the nineteenth and twentieth centuries respectively, it is perhaps not surprising that film-makers have sought to
exploit the kinds of response excited by the novel and have seen in it a source of ready-made material...”
3
A respeito do narrador do Realismo, Decio de Almeida Prado diz: “O narrador, por excelência, talvez seja o
dominante no século XIX, o narrador impessoal, pretensamente objetivo, que se comporta como um verdadeiro
Deus, não por haver tirado as personagens do nada como pela onisciência de que é dotado. Ele está em
todos os lugares ao mesmo tempo, abarca com o seu olhar a totalidade dos acontecimentos, o passado como o
presente, é ele quem descreve o ambiente, a paisagem, quem estabelece as relações de causa e efeito, quem
analisa as personagens (revelando-nos coisas que às vezes elas mesmas desconhecem), é ele quem discorre
sobre os mais variados assuntos (lembremo-nos das intermináveis considerações marginais de Tolstoi em
Guerra e Paz), carregando o romance de matéria extra-estética, dando-lhe o seu sentido social, psicológico,
moral, religioso ou filosófico. “ (Prado, 2002:85-86)
23
Dessa forma, insatisfeitos com o narrador do romance do século XIX,
alguns escritores norte-americanos da primeira metade do século XX, como
Hemingway, Faulkner, Steinbeck e outros reagiram e:
(...) passando a recusar a onisciência da narração do romance clássico,
privilegiaram o diálogo e o centramento do foco narrativo no protagonista
de visão limitada, com isso aproximando seus textos de roteiros de cinema.
(Brito, 1996:15).
Para esses críticos, hoje podemos perceber com maior freqüência em
certas obras literárias construções próximas da linguagem do cinema narrativo
clássico. Em casos extremos, como o de best sellers, na própria escrita do romance
percebe-se o desejo patente do escritor de que seu livro seja adaptado para as
telas. Nesse sentido, vemos que muitas obras acabam por servir conscientemente
ou não como uma espécie de primeiro roteiro para muitas adaptações fílmicas.
Bazin, ao citar a “Série noir” norte-americana dos anos 40, confirma essa intenção
por parte dos escritores, dizendo que alguns romances foram “visivelmente escritos
com dupla finalidade e em vista de uma possível adaptação por Hollywood. (Bazin,
1991: 82)
Dessa forma, vemos que a relação entre cinema e literatura foi adquirindo
um caráter dialético gradativamente maior à medida que o cinema foi se
consolidando como arte autônoma. Se por um lado a literatura ensinou o cinema a
narrar, por outro, as técnicas específicas do cinema ajudaram a promover uma
renovação na narrativa literária.
Apesar de os fatores supracitados falarem em favor dessa antiga relação,
não podemos dizer que ela esteja totalmente esclarecida ou até mesmo que seja
bem aceita por todos. Muito por se dizer sobre o entrecruzamento dessas duas
formas de arte que, como quaisquer outras, na sua busca de renovação constante,
abrem caminho para análises que tendem a reformular freqüentemente certos
conceitos sobre a adaptação fílmica.
24
No debate sobre a relação entre literatura e cinema um fator importante
freqüentemente entra em jogo: o status da palavra escrita. Alguns críticos, ainda
influenciados pela idéia de superioridade da literatura em relação ao cinema, tendem
a qualificar os filmes adaptados como “bons” ou “ruins” de acordo com a sua maior
ou menor fidelidade à obra original, esquecendo-se de que estão diante de meios
semióticos diferentes e que, por essa razão, filmes e obras literárias não podem ser
considerados a partir dos mesmos paradigmas. Esse tipo de perspectiva tem trazido
sérios prejuízos à compreensão dos estudos sobre adaptação fílmica segundo Brian
McFarlane:
A discussão sobre adaptação fílmica tem sido continuamente ameaçada
pela questão da fidelidade, sem dúvida atribuída, por um lado ao fato de o
romance vir primeiro; por outro, ao arraigado sentido de maior
respeitabilidade dado à literatura nos círculos da crítica tradicional.
(McFarlane, 1996:8, tradução minha)
4
.
Como vemos, a questão é discutida tradicionalmente em termos de
hierarquia entre as artes. Nesse sentido, o meio mais antigo teria prioridade sobre o
mais novo e, por essa razão, a literatura determinaria quais os parâmetros a serem
seguidos pelo cinema. Isso explica, em parte, porque muitas vezes os estudos sobre
adaptações ficam restritos a comparações estabelecidas estritamente no nível
narrativo.
Apesar de o trabalho analítico ter algumas semelhanças na perspectiva
narratológica, muito mais no que se refere às especificidades de cada meio e
nem sempre os acadêmicos estão dispostos ou preparados para se desfazer de
seus preconceitos sobre o estudo de adaptações fílmicas. É dessa forma, portanto,
que certos trabalhos se limitam a estudar a fundo apenas o livro, terminando apenas
por justificar a grandiosidade e a “superioridade” da literatura.
Influenciado pela mesma concepção do texto escrito como intocável parte
do público que conhece a obra literária e admira o escritor acaba por se decepcionar
ao não reconhecer em uma adaptação fílmica a sua reprodução fiel.
4
No original, em inglês: “Discussion on film adaptation has been bedevilled by the fidelity issue, no doubt
ascribable in part to the novel´s coming first, in part to the ingrained sense of literature´s greater respectability in
traditional critical circles.”
25
Bazin se contrapõe àqueles que condenam a adaptação fílmica por
considerá-la forma de expressão artística de menor valor. Segundo ele, a adaptação
é uma prática antiga e legítima dentro das artes. Alega que, no Renascimento,
Giotto pintava em relevo sob influência da escultura gótica e nem por isso sua arte
deixou de ser grandiosa. Portanto, o caminho natural das artes mais jovens seria o
de se apropriar de ensinamentos oriundos das artes mais antigas, o que denominou
“leis comuns da evolução das artes”:
O cinema é jovem, mas a literatura, o teatro, a música, a pintura são tão
velhos quanto a história. Do mesmo modo que a educação de uma criança
se faz por imitação dos adultos que a rodeiam, a evolução do cinema foi
necessariamente inflectida pelo exemplo das artes consagradas. Sua
história, desde o início do século XX, seria, portanto, a resultante dos
determinismos específicos da evolução de qualquer arte e das influências
exercidas sobre ele pelas artes já evoluídas. (Bazin, 1991:84)
Além disso, a evolução do cinema estaria sujeita a dois outros fatores
igualmente importantes para o seu desenvolvimento e mesmo para a sua própria
sobrevivência, os quais geralmente são ignorados pelos críticos: a questão do
público e o problema dos custos de produção. Quanto à questão do público, Bazin
alerta:
(...) não nos deixemos enganar aqui pela analogia com outras artes,
principalmente aquelas que sua evolução em direção de um emprego
individualista tornou quase independentes do público consumidor.
Lautréamont e Van Gogh puderam criar, incompreendidos e ignorados por
sua época. O cinema não pode existir sem um mínimo (e esse mínimo é
imenso) de audiência imediata. (Bazin, 1991:100)
No que tange aos custos de produção, segundo Stam, estes são muito
mais restritivos ao diretor de um filme, que precisa lidar com a realidade
orçamentária da instituição financiadora:
A exigência de fidelidade ignora a realidade dos processos de realização
dos filmes, as diferenças importantes nos modos de produção. Enquanto
as escolhas de um romancista estão relativamente livres de considerações
sobre orçamentos – tudo de que o escritor precisa é tempo, talento, papel e
caneta – ... filmes estão profundamente imersos em contingências
materiais e financeiras. (Stam, 2005:16, tradução minha)
5
5
No original, em inglês: “The demand for fidelity ignores the actual processes of making films, the important
differences in modes of production. While a novelist´s choices are relatively unconstrained by considerations of
budget all the writer needs is time, talent, paper and pen ... films are deeply immersed in material and
financial contingencies.”
26
Contra o cinema pesa ainda outra alegação quando se estabelece
comparação com a literatura: a suposta deficiência na representação de estados
psicológicos. Alguns literatos (e até mesmo alguns críticos de cinema) afirmam que
essa seria uma limitação que tornaria inviável a tentativa de se transpor qualquer
conteúdo psicológico de relativa complexidade para as telas. Esse “ponto fraco” é
exposto pela crítica de cinema Pauline Kael da seguinte forma:
Filmes são bons para a ação; não o são para o pensamento reflexivo ou
conceitual. São bons para estímulos imediatos, mas não são um bom meio
de envolver as pessoas com outras artes ou com o aprendizado sobre
algum tema. As técnicas fílmicas parecem ir de encontro ao
desenvolvimento da curiosidade. (Kael apud Stam, 2000:59, tradução
minha)
6
Stam afirma que a visão de Kael faz um par com a crítica literária elitista,
pois parte do pressuposto de que o cinema inevitavelmente fica devendo à literatura
em termos de profundidade e dignidade. Contra essa afirmativa, argumenta que
filmes como os de Alfred Hitchcock sabem muito bem explorar a psicologia, através
de recursos específicos ao cinema.
Para Xavier, o problema da não-aceitação do filme adaptado reside
primeiramente no fato de ele, em geral, não ser compreendido como uma
experiência nova, com uma forma e um sentido próprios, os quais devem ser
“julgados em seu próprio direito”. A propósito dessas especificidades, Xavier alerta:
(...) livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não têm
exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de
esperar que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com
o seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo
quando o objetivo é a identificação com os valores nele expressos. (Xavier,
2003:62).
É nesse sentido que o crítico avalia as adaptações do Cinema Novo feitas
a partir de romances das décadas de 20, 30 e 40. Segundo ele, na década de 60,
seria pouco produtivo se os diretores de cinema interessados em intervir no
processo cultural e, se possível, nas questões políticas e sociais relevantes através
de sua arte tivessem tentado transpor certas peculiaridades de forma e de
conteúdo dessas obras para as telas.
6
No original, em inglês: “Movies are good at action; they´re not good at reflexive thought or conceptual thinking.
They´re good at immediate stimulus, but they´re not a good means of involving people in the other arts or in
learning about a subject. The film techniques themselves seem to stand in the way of the development of
curiosity.”
27
Vemos, portanto, que a expectativa da fidelidade é bastante calcada no
sentido da palavra escrita, que, nesse caso, ignora-se o contexto histórico e
cultural, e se espera que o diretor possa recuperar “uma tonalidade, uma atmosfera,
um ritmo que seja equivalente... uma tradução do que se admite realizado no
romance por meio da palavra” (Xavier, ibid).
Para Christian Metz, o problema talvez não esteja tanto na crença da
impossibilidade de se recriar o texto literário, mas muito mais no fator psicológico da
recepção, uma vez que o que se na tela muitas vezes não é o filme que se quer
ver, mas “a fantasia de outra pessoa.” (Metz apud Mc Farlane, 1996:7, tradução
minha)
7
.
No caso do nosso estudo, não o intervalo temporal mencionado por
Xavier, o que, entretanto, não impede que o diretor de O invasor faça sua leitura,
que sua sensibilidade não é a mesma que a do romancista, ainda que as leituras
estejam de certa forma imbricadas devido ao trabalho conjunto dos dois artistas.
McFarlane, por sua vez, parece englobar as visões de Xavier e Metz ao
lembrar que a compreensão do leitor sobre o que seria o ‘espírito’ (‘spirit’) ou a
‘essência’ (‘essence’) da obra acaba guiando as escolhas do diretor em detrimento
de uma fidelidade literal ao livro. Para o crítico, em qualquer dos dois modos, a
busca da fidelidade estaria fadada ao fracasso. No que tange à literalidade absoluta,
a impossibilidade seria derivada, naturalmente, das próprias diferenças entre as
formas literária e fílmica. Sob o ponto de vista de recuperar a ‘essência’, a
dificuldade seria ainda maior:
O último caso obviamente é bem mais difícil de determinar, uma vez que
ele envolve não apenas um paralelismo entre o romance e o filme, mas
entre duas ou mais leituras de um romance, que qualquer adaptação
fílmica pode apenas tentar reproduzir a leitura do original feita pelo diretor e
esperar que ela coincida com a leitura de tantos outros
leitores/espectadores. (McFarlane, 1996:9, tradução minha)
8
O primeiro caso apontado por McFarlane é exatamente uma das questões
centrais para Stam, que estabelece para os dois meios a diferença básica
(“automatic difference”) que definiria por si a impossibilidade de um filme ser
fiel a um livro. Como ele salienta, a literatura possui como material de expressão a
7
No original, em inglês: “somebody else´s phantasy”
8
No original, em inglês: “The latter is of course very much more difficult to determine since it involves not merely
a parallelism between novel and film but between two or more readings of a novel, since any given film version is
able only to aim at reproducing the film-maker´s reading of the original and to hope that it will coincide with that of
many other readers/viewers.”
28
linguagem escrita, enquanto o cinema possui pelo menos cinco materiais distintos:
“imagem fotográfica em movimento, som fonético, música, ruídos e material escrito”
(Stam, 2000:59, tradução minha)
9
. Vemos então que, se por um lado podemos traçar
um paralelo entre as narrativas de O invasor (livro e filme), por outro não se pode
esquecer do caráter predominantemente visual do cinema, que atualiza uma
determinada interpretação através da adaptação, a saber, aquela feita em conjunto
pelo diretor e os demais realizadores do filme (roteirista, atores, diretor de fotografia
etc.).
Quanto ao segundo caso, ou seja, o respeito ao “espírito” ou à “essência”
da obra original, Stam (2000:57-58) alerta que a dificuldade estaria na própria
impossibilidade de se estabelecer um ponto de referência único para a adaptação.
Alega que se o diretor, por exemplo, tenta respeitar as descrições físicas dos
personagens do romance, talvez não consiga bons atores para desempenhar os
papéis satisfatoriamente, perdendo na qualidade artística de seu filme. Se, por outro
lado, tenta adivinhar as intenções do autor, cai em outro beco sem saída, pois o
escritor pode escondê-las por razões pessoais, psicológicas ou por pressões
externas, guiando seu leitor por falsos caminhos.
Além de todos esses questionamentos, o problema da fidelidade passa
por uma outra questão importante: a da intertextualidade. Uma adaptação não
dialoga apenas com o texto de partida; ela também estabelece contato com outros
textos e outras linguagens (teatro, pintura etc.), oferecendo, portanto, possibilidades
que afastam a adaptação ainda mais da condição de mera transposição literal do
conteúdo escrito.
Vemos, portanto, que a adaptação fílmica assume diversas facetas. A
riqueza de possibilidades da passagem de um texto às telas é tão variada quanto às
possibilidades interpretativas de cada diretor. Ademais, o cinema é por excelência
uma arte onde outras formas de arte se encontram. Esses fatores exigem de quem
analisa uma adaptação fílmica o cuidado de se evitar visões prescritivas e fechadas
que podem comprometer a percepção do filme enquanto obra que tem um sentido
autônomo.
9
No original, em inglês: “moving photographic image, phonetic sound, music, noises and written materials.”
29
2 - AS NARRATIVAS DE LIVRO E FILME
Este capítulo está dividido em itens individuais para livro e filme. Essa divi-
são resultou da intenção de abordar livro e filme como produções autônomas, com
valor a ser definido em seus próprios campos.
Como nosso estudo leva em conta a realidade externa, que passa a ser in-
terna ao ser transformada na obra de arte, consideramos o ponto de vista de Rober-
to Schwarz que ao falar do problema de certos estudos que envolvem literatura de
ficção e aspectos exteriores a ela (vida psíquica, social, econômica etc) – alerta para
a necessidade de estruturação dos dois lados, caso contrário não haverá a produção
30
de conhecimento novo que “o campo não-estruturado dirá por força o que está
dito no campo estruturado” (Schwarz, 1987:145).
Acreditamos que esse ponto de vista também possa ser aplicado à relação
cinema/literatura e, por essa razão, nos preocupamos em mostrar a ligação de cada
um dos campos com a realidade exterior para que a consideração de cada obra iso-
lada não caísse no problema exposto por Schwarz e ainda a fim de que a análise do
processo tradutório não tentasse explicar o cinema pela literatura ou vice-versa. Por-
tanto, discutiremos aqui a relação entre sociedade, momento histórico e obra artísti-
ca respeitando as peculiaridades das duas linguagens envolvidas.
Primeiramente, entretanto, façamos uma sinopse da história para uma me-
lhor compreensão das idéias apresentadas a partir de agora neste trabalho.
Alaor (Giba, no filme) e Ivan, sócios minoritários de uma empreiteira in-
satisfeitos com seus ganhos e com a oposição de Estevão (sócio majoritário) à parti-
cipação numa concorrência ilícita em uma obra pública decidem assassiná-lo.
Para isso, contratam um matador de aluguel, Anísio, que seqüestra e mata Estevão
e sua mulher, Silvana. Na hora do pagamento pelo “serviço”, algo inesperado acon-
tece: Anísio surpreende Alaor e Ivan com uma proposta de sociedade e diz que quer
ficar trabalhando como segurança deles. A partir daí, a vida dos mandantes do crime
se complica seriamente. Ivan, não suportando a situação, começa a querer abando-
nar a empresa, o que deixa Alaor irritado. Este, por sua vez, solicita a Paula (Fer-
nanda, no filme), uma das garotas de programa de sua boate (seu negócio paralelo),
que inicie um relacionamento com Ivan para mantê-lo informado de seus planos. Pa-
ralelamente, encarrega Anísio de vigiar Ivan, pois teme que ele fuja ou conte à polí-
cia sobre o assassinato de Estevão. Quando Ivan finalmente descobre quem é Pau-
la, decide ir à polícia e conta tudo sobre a morte de Estevão; entretanto, o delegado
de plantão é amigo e sócio de Giba na boate e lhe entrega Ivan para que este seja
executado. A execução não ocorre efetivamente nas narrativas, mas tudo aponta
para essa possibilidade.
2.1 - O livro de Marçal Aquino
2.1.1 - O problema da representação da realidade
Antonio Candido (2006:29), ao se referir à obra de arte, afirma que “dizer
que ela exprime a sociedade constitui hoje verdadeiro truísmo”. Entretanto, logo em
31
seguida, alerta que este fato foi tido como novidade, representando algo
“historicamente considerável”. Segundo ele, no caso específico da literatura, esse
momento se deu no século XVIII, através de filósofos como Vico, Voltaire e Herder,
tendo sido talvez Madame de Staël, na França, a primeira a dar um passo além
dessa idéia inicial ao tratar a literatura também como um produto social que exprimia
as condições da civilização na qual era produzida. Essas condições (políticas,
econômicas, sociais, culturais etc.) de uma dada civilização estariam, por sua vez,
ligadas às contingências do momento histórico, que seria, em última instância, o
fator determinante ao qual a obra de arte não poderia escapar.
A concepção de análise da obra literária (e artística em geral) como sendo
influenciada pela realidade social tanto é comum à crítica marxista quanto às críticas
do Realismo e do Naturalismo e também à crítica moderna, como a de Antonio
Candido e Roberto Schwarz. Entretanto, as diferenças no modo como é abordado o
objeto literário em cada uma delas são marcantes.
Segundo Schwarz (1987:146), para a crítica marxista a questão política e
ideológica está embutida no próprio método de análise, o que acaba por
comprometê-lo, uma vez que o esquema sociológico apriorístico ao qual a obra
deve servir de confirmação acaba limitando a análise e levando-a a confirmar
hipóteses equivocadas. Assim sendo, a visão estritamente sociológica, ao ser
inserida na análise literária, não prejudica a recepção e compreensão da obra,
como também acaba por confirmar visões analíticas tradicionais, as quais, em geral,
prevaleceram ao longo da história.
Quanto às críticas realista e naturalista, o problema residiria no fato de
elas, também de forma apriorística, desejarem que a obra de alguma forma
espelhasse a realidade. Quanto mais pormenorizada fosse a transposição da
realidade para a obra artística (valor documental), maior seria o valor agregado a
esta última. Nesse sentido, caberia ao crítico encontrar na obra os elementos que
correspondessem à realidade do mundo exterior. Isso acarretaria a falha de a obra
nunca ser analisada no seu valor intrínseco, pois a realidade que deve ser apenas
o ponto de partida para a obra, que irá recriá-la a seu modo passaria à condição
de ponto de chegada, de finalidade da representação. Esse método tem base na
ciência empírica determinista e até hoje serve de parâmetro a uma parte da crítica
literária.
32
Para Antonio Candido, entretanto, a obra representa um mundo próprio,
com sua lógica peculiar, à parte do mundo exterior, embora em relação com este.
Segundo ele, a forma da obra de arte por si impõe um recondicionamento dos
dados da realidade exterior, que seria o suficiente para dizermos que não se trata
mais da realidade objetiva, em estado bruto.
As relações entre literatura e questões histórico-sociais foram analisadas
por ele em seu clássico, Literatura e Sociedade (1965, 2006), obra na qual monta
um painel do equilíbrio dos fatores internos (operações formais) e externos
(questões sociais, históricas etc.) que influenciam a estrutura de uma obra literária.
Candido alerta que a análise de uma obra não deve se prender em demasia a
questões de caráter externo sob pena de acabar se tornando um estudo de
sociologia da literatura ao invés de crítica literária propriamente dita. Nesse sentido,
apontar certos fatores sociais como responsáveis diretos pelas características de
uma obra específica pode levar a uma interpretação exagerada da relevância
desses mesmos fatores, além de esconder ou minimizar a importância de aspectos
formais para a construção dessa obra. Entretanto, o crítico não nega a importância
desses estudos que, devidamente enquadrados em suas respectivas áreas de
interesse, podem produzir resultados satisfatórios.
A fim de se evitar esse equívoco nos estudos literários, Candido (2006:22)
lembra que o trabalho artístico necessariamente estabelece com a realidade uma
“relação arbitrária e deformante”, mesmo quando o artista busca uma certa
aproximação com critérios de rigor científico. Dessa forma, os fatores externos não
devem ser estudados como “causa” ou “significado”, mas na medida que
influenciarem a estrutura da obra ou seja, tornando-se internos a ela e
assumirem determinadas funções que constituam sua expressividade e, por
conseqüência, o seu sentido global.
Essa visão encontra um paralelo em Anatol Rosenfeld, que estabelece a
especificidade da estrutura da obra literária da seguinte forma:
A estrutura de um texto qualquer, ficcional ou não, de valor estético ou não,
compõe-se de uma série de planos, dos quais o único real, sensivelmente
dado, é o dos sinais tipográficos impressos no papel. (Rosenfeld, 2002:13)
A fim de complementar as idéias apresentadas, vejamos dois trechos da
entrevista de Antonio Candido (1995), em que o crítico torna claro seu ponto de vista
33
teórico a respeito da arbitrariedade da obra literária com exemplos retirados de L
´Assommoir de Émile Zola e Ulysses de James Joyce:
Num romance, a pessoa tem que ter casa, mulher, filho, marido, parente,
ordenado. Isso tudo aparece... só que de uma maneira composta
completamente diferente para o romancista... O L´Assommoir. Tem o casal:
a lavadeira e o funileiro. Eles vivem lá no cortiço deles... razoavelmente. De
repente, eles vão empobrecendo... e caem na miséria. aparece o
inverno. Nos trinta anos que viveram antes no romance, o inverno não
apareceu. Não havia inverno em Paris naquele tempo? É claro que havia...
enquanto eles tinham aquecimento, roupa e salário, o inverno não era
problema. Quando o inverno se tornou um problema, ele passa a ser uma
necessidade literária. Portanto, não tem nada a ver com o inverno que tem
todos os anos... (Candido, UFPE:1995, trecho transcrito de entrevista)
No caso de Joyce, ele alerta para a tentativa de aproximação máxima com
a realidade através da representação dos pensamentos do personagem:
Joyce, por exemplo, fez uma tentativa de procurar descrever a vida... do
personagem dele... certos momentos do dia... tudo o que ele pensa... O
Ulysses acaba por um grande monólogo interior em que tudo passa pela
cabeça. É uma tentativa extraordinária, lindíssima... um caso extremo, que
ainda mostra como é que a literatura se faz de seleção. Essa seleção,
portanto, não corresponde à realidade. Ela é uma coisa inteiramente nova.
(Candido, UFPE:1995, trecho transcrito de entrevista)
Assim vemos que, segundo o autor, qualquer que seja a forma de
representação, ela sempre fará o que ele chama de “redução estrutural” dos dados,
ou seja, o autor terá de fazer escolhas para criar sua obra, organizando-a de acordo
com uma coerência interna, uma vez que não pode dar conta de toda a realidade
exterior.
Isso é verdade não em relação à obra como um todo, mas também no
que diz respeito à caracterização do personagem. Este, aliás, não existe separado
da realidade que lhe vida. Dessa forma, enredo, personagens e idéias fazem
parte de um todo orgânico, inseparável, que podemos perceber nos romances bem
realizados (Candido, 2002:54).
A criação de um personagem, portanto, atende, de forma clara ou não, a
um critério semelhante ao usado para a criação da narrativa em si. O escritor cria o
personagem segundo alguns traços físicos e psicológicos, exigidos pelas
necessidades literárias circunstanciais. Essa caracterização é baseada no repertório
do escritor, ou seja, na concepção de ser humano que acumulou ao longo de sua
vida:
34
Concorrem para isso [a caracterização do personagem], de modo direto ou
indireto, certas concepções filosóficas e psicológicas voltadas para o
desvendamento das aparências no homem e na sociedade, revolucionando
o conceito de personalidade, tomada em si e com relação ao seu meio.
(Candido, 2002:57)
Se o conhecimento que temos do “outro” e de nós mesmos é sempre
restrito, então nada mais natural que a caracterização de um personagem também
seja. Essa condição é reforçada por outra limitação de caráter prático, a saber, a
dimensão física de qualquer obra, que tem sempre um número finito de páginas. Por
esse motivo, a restrição na obra literária é de outra espécie, pois ela é criada e
controlada pelo escritor, enquanto a da nossa visão de mundo é fruto do
condicionamento de nossos valores. O escritor tem, portanto, a missão de criar
personagens que recomponham de maneira convincente a idéia que temos do que é
ser humano. É através dos recursos de caracterização que a impressão de vida é
transmitida ao leitor, fazendo com que um ser criado, fictício pareça “ilimitado,
contraditório, infinito na sua riqueza” (Candido, 2002: 59).
Na nossa busca por uma lógica que explique a complexidade humana,
encontramos como aliada exatamente a obra literária. Devido ao caráter de coesão
que ela ao ser humano, ficamos, nos casos bem sucedidos, com a impressão de
totalidade do ser e, então, experimentamos o prazer de acreditar tê-lo finalmente
conhecido. Entretanto, como ressalta Antonio Candido, esse conhecimento é apenas
um sobrevôo:
(...) mas nós apreendemos, sobrevoamos essa riqueza, temos a
personagem como um todo coeso ante a nossa imaginação. Portanto, a
compreensão que nos vem do romance, sendo estabelecida de uma vez
por todas, é muito mais precisa do que a que nos vem da existência. Daí
podemos dizer que a personagem é mais lógica, embora não mais simples,
do que o ser vivo. (ibid)
Voltando agora ao problema da relação entre momento histórico e obra
literária, vejamos dois estudos que mostram de maneira complexa a ligação entre
esses fatores na composição da estrutura profunda de dois dos romances mais
importantes e reveladores da sociedade brasileira do século XIX: Memórias de um
Sargento de Milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida e Memórias Póstumas
de Brás Cubas (1880), de Machado de Assis.
35
O primeiro romance foi o objeto de estudo de Antonio Candido em sua
Dialética da Malandragem. Nesse ensaio, o crítico demonstra que, ao contrário do
que pensava a crítica determinista, a força da obra não está na suposta
predominância de seu caráter documental, que existe apenas de forma restrita, mas
que ela, ao contrário, nasce exatamente da reestruturação da realidade em camadas
que não são perceptíveis sem um esforço analítico profundo.
A idéia do romance como reprodução fiel da sociedade brasileira no
reinado de D. João VI (início do século XIX) é descartada pelo crítico, uma vez que
os informes sobre a sociedade carioca são limitados e esparsos e, principalmente,
por se tratar de um enredo restrito tanto espacial quanto socialmente. Quase todas
as ações se dão no que hoje constitui a área central da cidade do Rio de Janeiro.
Com relação aos personagens, ficam quase que exclusivamente restritos à classe
social que o crítico chama de “gente livre modesta”, salvo um ou outro personagem
que fica como representante de certo setor: o Major Vidigal, a lei; D. Maria, a gente
abastada; dois capoeiristas e as baianas da procissão (só mencionadas), o negro.
Dessa forma, deve-se entender que essa escolha cumpre uma função na
narrativa. E é a partir dessa função que o romance (e a obra literária em geral) deve
ser analisado, pois é aí que reside o seu vigor enquanto obra de arte:
A força de convicção do livro depende pois essencialmente de certos
pressupostos de fatura, que ordenam a camada superficial dos dados.
Estes precisam ser encarados como elementos de composição, não como
meros informes proporcionados pelo autor, pois neste caso estaríamos
reduzindo o romance a uma série de quadros descritivos dos costumes do
tempo. (Candido, 1998: 34)
O estudo da estrutura profunda do texto revelou que ele se organiza numa
dialética da ordem e da desordem. Os personagens de cada uma dessas esferas
passam de uma à outra num vai-e-vem constante. O personagem principal,
Leonardo, ora está metido em confusão, ora parece estar pronto a se remediar
através da ajuda de algum protetor. O próprio major, defensor ferrenho da lei, alivia
sua punição a Leonardo quando solicitado por uma conhecida abastada, D. Maria,
que cochicha ao seu ouvido, o que sugere algum acordo ilícito. Essa dialética é
permeada de um tom divertido, bem ao estilo da produção cômica e satírica da
época do autor, o que o ajudou a criar o que o crítico chama de um “mundo sem
culpa”. Dessa forma, a estrutura da obra termina por reproduzir, com humor, a
frouxidão em relação às normas no país (ainda presente, daí a atualidade da obra) e
36
o leitor, então, acaba por tolerar os “deslizes” dos personagens e reconhecer
facilmente a sociedade ali proposta.
O que o estudo de Antonio Candido fez então, segundo Schwarz, não foi
tentar “encontrar” a realidade na obra, uma vez que não podemos dispor das duas
ou estudá-las da mesma maneira. A junção delas se através da forma, que é “um
princípio mediador que organiza em profundidade os dados da ficção e do real,
sendo parte dos dois planos” (Schwarz,1987:140-141). O que o autor da Dialética
fez foi recuperar a associação entre realidade social e obra literária da maneira
como foi estabelecida pelo escritor. Nesse sentido, o papel do crítico é o de
construtor e não o de descobridor:
Nestes casos, o crítico tem de construir o processo social em teoria, tendo
em mente engendrar a generalidade capaz de unificar o universo
romanesco estudado, generalidade que antes dele o romancista havia
percebido e transformado em princípio de construção artística. Esse
trabalho, se responde à finura de seu objeto, produz um conhecimento
novo. (Schwarz, 1987:140)
Vemos assim, que o fato de o romance não incluir todas as classes sociais
não se constituiu em seu ponto fraco, muito pelo contrário. A estruturação das
relações internas de uma classe quase exclusiva revelou uma riqueza que tem um
paralelo muito interessante com a complexidade das relações sociais no Brasil de
então (e de hoje).
Com relação ao segundo romance, o estudo de Roberto Schwarz (1998)
estabeleceu uma relação muito interessante entre a figura do narrador-defunto Brás
Cubas e as classes dominantes no Brasil do Segundo Reinado.
No Primeiro Reinado, a elite nacional não aceitava mais as justificativas
absolutistas portuguesas, usadas para governar o país durante todo o período
colonial que, crescendo em importância política, essa elite naturalmente desejava
concentrar todo o poder político. Entretanto, ao atingir seu objetivo, as idéias
libertárias e progressistas que defendia jamais foram postas em prática. Mantendo a
cultura escravista e o lucrativo tráfico de escravos, a nova elite apenas se
aproveitava da forma de exploração existente. Dessa maneira, os mesmos ideais
defendidos pela burguesia que ascendeu ao poder na Europa, derrubando o Antigo
Regime e instituindo o capitalismo industrial, aqui serviram apenas à confirmação de
um sistema econômico atrasado, contradição que atrelou o Brasil definitivamente à
37
condição de país periférico, importador dos produtos e da cultura de países
capitalistas desenvolvidos como Inglaterra e França.
Dada a permanência da exploração da mão-de-obra escrava e a falta de
acesso da população livre a melhores condições de trabalho e educação, as novas
ciências e a filosofia em voga na Europa, ao serem importadas, tinham aplicação
prática muito limitada, terminando muitas vezes por se tornar apenas especulações
teóricas a serviço dos prazeres da elite. Dessa forma, as “novidades do espírito”
(Schwarz, 1998:40) passavam a ser modismos que se sucediam sem o devido
aprofundamento, resultando em um conhecimento sem conseqüências para o
progresso da sociedade como um todo.
É precisamente essa volubilidade que Machado de Assis explora no
narrador de seu romance. Ao colocar Brás Cubas como um interessado por todos os
tipos de conhecimento (filosófico, científico, histórico), ele representa a elite de seu
tempo, atenta a tudo que surgia de novo, mas pouco propensa a se ocupar
efetivamente com qualquer dessas idéias. Essa opção foi fruto do processo de
entrada do Brasil na modernidade dentro do “desenvolvimento desigual e combinado
do capitalismo” (Trotski apud Schwarz, 1998), que previa a adesão das nações
periféricas de forma subalterna.
O narrador demonstra não ter levado qualquer projeto a sério durante sua
vida. Todas as suas idéias morreram no nascedouro, pois não tinham motivações
profundas; ele apenas queria um caminho que lhe proporcionasse bem-estar com
um mínimo de esforço.
A ironia machadiana, entretanto, não foi percebida pelos leitores de seu
tempo (e nem pela crítica determinista) que se viram refletidos de maneira positiva
na suposta erudição do personagem, o que revela a incapacidade da elite em
perceber o próprio cinismo. Nesse sentido, o narrador termina por revelar que sua
volubilidade expressa uma “satisfação de amor-próprio” (Schwarz,1998:40) que
permitiu à elite brasileira cometer atrocidades com base na suposta superioridade
em relação às classes menos favorecidas.
Essa volubilidade do narrador foi transposta para a forma da narrativa,
gerando um enredo propositadamente sem conflitos aparentes e com fraca ligação
entre os capítulos, dando a impressão de história sem uma certa motivação, o que
representa, na verdade, o próprio vazio existencial do narrador e, por extensão, da
elite nacional da época do escritor.
38
Temos, assim, na breve apresentação dos estudos desses dois romances,
uma boa noção da importância da relação entre momento histórico e estrutura
narrativa no sentido mais profundo que ela pode assumir. A relevância dos aspectos
externos não pode, portanto, ser negligenciada, muito menos exagerada, a fim de
que a adequação desses fatores à estrutura interna da obra seja o elemento no qual
o trabalho crítico se concentre efetivamente.
2.1.2 - A visão de classe média como foco narrativo
Veremos agora como se organiza a estrutura geral do livro dado o ponto
de vista narrativo, baseado numa visão de classe média, e a maneira de compor a
partir da influência da linguagem cinematográfica.
Para compreendermos a forma da narrativa, devemos atentar para o fato
de que o narrador, por ser em primeira pessoa, tem visão limitada dos
acontecimentos, desconhecendo, portanto, muitos dos eventos que decidirão sua
própria sorte. A essa limitação, alia-se o fato de que Ivan é o personagem mais fraco
de toda a trama, o que determina a tensão ao longo do romance.
Seu ponto de vista denuncia uma lógica típica de classe média, uma vez
que acredita que com dinheiro todos os problemas estarão resolvidos. Ao contrário
de Anísio, que é matador profissional, e de Alaor, que tem uma casa de prostituição
de menores em associação com um policial corrupto (Norberto) ele não tem a
noção exata do que pode acarretar a sua decisão de eliminar Estevão (o sócio
majoritário) e, por essa razão, não consegue enfrentar a pressão gradativamente
maior que ocorre após a execução do crime. Ivan acha que pode mandar matar
Estevão e depois simplesmente voltar à vida normal. Sua recusa de se reconhecer
como criminoso e a incapacidade de enfrentar as novas circunstâncias como tal – ao
contrário de Anísio e Alaor, que têm plena consciência do que fizeram determinam
o fracasso de seus planos posteriores.
A impossibilidade de enxergar a realidade sob outra perspectiva impede
que Ivan saiba lidar com surpresas como, por exemplo, a atitude de Anísio em
querer participar dos negócios da construtora ou a descoberta de que Paula (sua
amante) é uma das garotas de programas de Alaor. Nesse sentido, sua visão de
classe é o fator que unidade e determina a forma global da obra. A limitação de
Ivan fica visível assim que se realiza o primeiro contato com o matador. Este conta
39
que certa vez havia arrancado as unhas do pé de uma de suas vítimas e furado seus
olhos, o que gera uma reação de nojo no narrador, que pensa até em desistir do
plano:
Eu fiquei em silêncio, de estômago revirado, dentes apertando o horror que
sentia. Pensei em dizer a ele que mudara de idéia e queria cancelar tudo.
Mas olhei para Alaor e vi que era impossível: nosso navio estava muito
longe do porto. (Aquino, 2002:15)
Alaor, ao contrário, até pede a Anísio que maltrate Estevão antes de
executá-lo. Quando Anísio lhes pergunta sobre como desejam que Estevão seja
morto, a diferença entre as atitudes de Ivan e Alaor fica clara:
Olha, Anísio, o que interessa é que você tire o Estevão do nosso
caminho, eu disse, fazendo força para não vomitar ali mesmo. Como você
vai fazer isso é problema seu.
Ah, não, Alaor interveio. Estamos pagando caro e eu quero que
aquele filho da puta sofra.
Aquilo me chocou. Pessoalmente, não conseguia sentir raiva de
Estevão. Ele estava me atrapalhando e eu queria tirá-lo da frente, isso.
Mas Alaor parecia estar se vingando de algo que eu desconhecia. (Aquino,
2002:15)
Mais à frente, o discurso de Alaor revela uma frieza ainda maior,
demonstrando sua capacidade de lidar com o crime de forma bastante racional,
literalmente jogando com as circunstâncias, algo que não é possível para Ivan,
devido ao modo como encara a sua participação no plano. Nessa passagem, logo
após o encontro com Anísio, Ivan critica a atitude de Alaor de ter demonstrado
prazer ao ouvir a história cruel contada pelo matador:
(...) bem que você gostou da história. Achei que você ia gozar escutando
aquelas barbaridades.
Como você é ingênuo, Ivan. Aquilo foi jogo de cena. O Anísio
queria impressionar a gente, mostrar que é fodão. Ele até pode ter matado
o cara, mas duvido que tenha feito aquilo tudo. Eu só cumpri a minha parte:
fingi que acreditava pra ele ficar contente. (Aquino, 2002:18)
A partir de uma visão burguesa da relação contratante-contratado, Ivan
age como se estivesse pagando por um serviço qualquer, do qual se exige uma
garantia:
E se esse cara sumir com a nossa grana e não fizer nada do que foi
combinado?
40
Porra, Ivan, larga mão de ser pessimista. O homem é um profissional,
você não viu? E depois foi o Norberto que indicou, não tem erro. O Anísio é
quente.
Mas não temos garantia nenhuma.
O que você queria? Que ele desse um recibo pra gente? Essa é boa.
pensou? “Recebi a quantia de 10 paus como adiantamento pela
eliminação do senhor Estevão Araújo”, Alaor riu de sua piada. Essas coisas
não funcionam assim, Ivan. Temos que confiar no cara. (Aquino, 2002:17)
Como conseqüência dessa nítida limitação, não tardam a aparecer os
primeiros sinais de perturbação psicológica em Ivan. Isso transforma a percepção
que tem das coisas ao seu redor, fazendo-o associar tudo o que ou sente com o
crime:
Paramos num sinal e uma velha desgrenhada se aproximou, tentando
vender chocolates. Acionei os vidros, verifiquei a trava da porta do carro
...Arranquei assim que o sinal abriu e pude ver, pelo retrovisor, que a
mulher permaneceu falando e gesticulando, como se estivesse nos
lançando alguma maldição. (Aquino, 2002:18, grifos nossos)
Esse tipo de associação (velha como bruxa agourenta) naturalmente
poderia ocorrer a um narrador angustiado como Ivan. Se a história fosse contada por
Alaor ou Anísio, talvez essa personagem secundária nem existisse, uma vez que
não representaria informação relevante para a construção do ponto de vista
narrativo. Aqui temos o ponto de vista da classe média urbana brasileira em geral,
que encara as pessoas que trabalham nessa condição antes de tudo como uma
ameaça à sua segurança. Nesse caso, essa visão de rejeição ao excluído
associada à pressão gerada pelo envolvimento com o crime faz com que o
narrador veja a vendedora de forma sombria, o que também pode ser interpretado
pelo leitor como uma antecipação negativa da sorte de Ivan (na verdade, é Ivan que
antecipa essa sorte negativa, ele pressente que não vai agüentar).
A partir desse momento, o narrador em virtude de sua visão de classe e
de sua insegurança, lembrando do transtorno pelo qual havia passado ao tentar
convencer Estevão a participar de uma concorrência ilícita assume uma condição
de autodefesa, tentando convencer o leitor e a si mesmo de que acreditara que o
que havia feito era certo. Vemos essa atitude no momento em que relata a alegria
de seu parceiro, que está ansioso para assumir o controle da empresa:
Sem o Estevão para encher o saco, vamos enjoar de ganhar dinheiro
(...) A gente agora vai decolar, você vai ver. (Aquino, 2002:18)
41
Eu também deveria estar feliz. Mas não conseguia. Estava me
sentindo sujo, cansado, doente. Tentava racionalizar, lembrando que
Estevão nos colocara contra a parede por causa do negócio de Brasília.
Não havia saída. Era ele ou nós. Aquilo que estávamos fazendo era auto-
defesa. Mas esse tipo de pensamento não servia para me alegrar. Olhei
para Alaor, que batucava eufórico no painel do carro, falando de um
endereço onde iríamos nos divertir muito, e invejei-o. (Aquino, 2002:19,
grifo nosso)
Vale a pena observar que, mesmo nas situações menos importantes, a
fragilidade de Ivan em relação a Alaor e Estevão confirma a passagem acima. O
momento em que o narrador relembra a disputa para ver quem teria o nome em
primeiro na placa da construtora simboliza a sua desvantagem em relação aos
outros dois sócios:
Estevão dizia que, por ser o sócio majoritário, seu nome devia ser o
primeiro entre os engenheiros responsáveis pela obra. Alaor, na condição
de encarregado do acompanhamento, não queira ser o último. Nem eu.
Besteiras de recém-formados. A solução partiu de Alaor que, numa
manobra esperta, sugeriu a colocação dos nomes em ordem alfabética. Por
isso aparecia em primeiro. E eu em último. Estevão tinha se rendido ao
critério, mas nunca se conformara. (Aquino, 2002:43)
Devemos, entretanto, compreender que essa alegação pode ser também
mais uma tentativa do narrador de se fazer de vítima a fim de atrair a simpatia do
leitor. Observando atentamente, o narrador se revela covarde, incapaz de assumir
seus próprios atos. Mesmo quando finalmente percebe que errou, tenta equiparar
seu erro a outro qualquer, com se tivesse sido um simples deslize momentâneo e
não efetivamente um assassinato, fruto de sua ambição. Ao se referir aos policiais
que passam em uma viatura em frente ao edifício onde Paula mora, diz:
Nossos olhares se cruzaram e o policial que dirigia moveu a cabeça, num
cumprimento. Retribuí. E respirei. Um homem de bem, devem ter pensado.
E eu era. Um homem de bem que havia feito uma grande besteira. (Aquino,
2002:110, grifo nosso)
Ivan tem, portanto, uma visão distorcida, autopiedosa de si mesmo, e
atribui às circunstâncias a responsabilidade por seu erro. Não consegue perceber
que é tão criminoso quanto Alaor e, por isso, o critica. Duas passagens revelam
essa indignação contra a falsidade de seu parceiro. Na primeira, Alaor finge tristeza
no velório de Estevão e Silvana; na segunda, os dois parceiros, juntamente com o
42
pai de Estevão (Dr.Araújo) e a herdeira (a filha Marina), conversam sobre o futuro da
empresa, quando Alaor finge se emocionar ao lembrar de Estevão:
Alaor manteve no rosto durante todo o tempo uma expressão de quem
havia sofrido uma grande perda. Um verdadeiro artista. Pouco antes de os
caixões serem levados para o mausoléu da família Araújo, ele se postou ao
lado deles. Acompanhei com atenção aquele teatro. Alaor permaneceu
imóvel, de braços cruzados e de cabeça baixa, por longos minutos. Achei
aquilo constrangedor. Mas o show ainda tinha mais atrações: ele pegou um
lenço no bolso do paletó e então me dei conta das lágrimas em seu
rosto(...)Naquela hora, eu quis sumir dali.(Aquino, 2002:58-59)
O Estevão gostava muito desses dois, ele disse, segurando a mão da
neta. Uma vez, seu pai comentou que eles eram dois irmãos que ele tinha
encontrado no mundo(...)
Os olhos de Alaor marejaram. Que filho da puta, eu pensei, deveria
trabalhar na televisão. (Aquino, 2002:86)
Ivan é tão preso à sua visão de classe que acredita poder apagar seu erro,
por isso, tenta restabelecer a ordem em sua vida, sempre a partir de uma visão
pequeno-burguesa. Primeiro, de maneira ingênua, sugere a Alaor simplesmente que
ele e Marina comprem a sua parte na construtora. Depois, consciente de que essa
solução é inviável, tenta fugir; entretanto, a forma como pretende recomeçar a vida,
revela ainda uma visão limitada da realidade:
Eu vou sair da construtora. Quero vender a minha parte.
Que besteira é essa, Ivan? Agora que nós vamos começar a ganhar
dinheiro, você quer sair?
Eu não estou gostando do rumo que as coisas tomaram... (Aquino,
2002:97)
.........................................................................................................................
Parei diante da cena parisiense registrada por Cartier-Bresson. Eu estava
emocionado. Toquei o quadro: Paris era um bom lugar para refrescar a
cabeça enquanto eu decidia que rumo daria à minha vida. (Aquino,
2002:111)
O narrador-personagem, como vemos, compreende o mundo através de
uma ideologia bastante peculiar, individualista e, conseqüentemente, demonstra
pouco valor pelo ser humano, o que fica patente na forma “higiênica” como tenta
tratar do assassinato de Estevão. Com o distanciamento temporal dos fatos, passa a
compreender melhor o seu erro, porém ainda não é capaz de assumi-lo de forma
integral.
O que vemos em conseqüência dessa lógica de classe é uma narrativa
construída em torno das obsessões do narrador-personagem. Por querer lidar com o
43
lícito e o ilícito da mesma forma, não percebendo que é integralmente um criminoso,
Ivan sua situação se tornar um grande impasse. Começa, então, a se sentir
pressionado por Anísio e por uma suposta perseguição policial, além de apegar-se a
Paula como uma forma de alívio das tensões e de possibilidade de recomeço de
vida.
Ivan acredita, assim, que após pagar o serviço de Anísio poderá continuar
sua vida normalmente. Entretanto, o matador age de forma inesperada:
Ele pegou um maço de notas e guardou no bolso. Então fez algo
inesperado: deslizou a pasta sobre a mesa, na minha direção(...)
Se ficar comigo, acabo torrando tudo em besteira. Vocês podem
guardar pra mim?
Não complica, Anísio, pega o dinheiro(...)
Põe num banco, eu disse(...)
entendi, vocês querem ficar livres de mim...Vocês podem precisar
de mim outra vez...Posso cuidar da segurança de vocês. (Aquino, 2002:74-
75)
Demonstrando maior segurança, Alaor aceita a condição, esperando
resolvê-la no momento oportuno, enquanto Ivan fica profundamente perturbado:
Por que você topou esse negócio, Alaor? O Anísio vai foder a gente.
O que você queria que eu fizesse? Agora não é hora de criar atrito.
Acho que a gente entrou numa fria.
Calma, Ivan, eu vou falar com o Norberto, pra ver o que ele acha. (Aquino,
2002:77)
A partir daí, um acúmulo de tensão passa a pesar sobre Ivan, o que
transparece durante e após o almoço da nova presidência da construtora.
pressionado por uma entrevista do Delegado Junqueira a respeito do caso Estevão
(na qual fica com a impressão de desconfiança do delegado), agora Anísio também
passa a ser presença constante nos pensamentos de Ivan:
Enquanto conversávamos, aproveitei para dar uma espiada nos
outros clientes do restaurante. A maioria vestia terno. Executivos, homens
de negócios, era o que pareciam. Imaginei se um deles não seria um
policiaI nos vigiando...
De volta do almoço, eu disse a ele:
Vou chamar alguém pra fazer uma varredura nos telefones...
Pára com isso, Ivan. Essa história já encheu o saco.
E se aquele delegado grampeou nossos telefones?...
Que paranóia do caralho.
Ele pode estar escutando as nossas conversas.
Você precisa de férias, Ivan, está ruim da cabeça. O caso
arquivado...
44
E o Anísio?...
O Anísio é apenas um detalhe em aberto. Vamos resolver na hora
certa.
Ah é? E como? Matando ele? (Aquino, 2002:86-87, grifos nossos)
A escalada de Anísio se torna evidente para Ivan no momento em que
descobre que o matador e Marina estão namorando. Isso reforça o seu estado de
alerta, pois a união dos dois representa um risco ao seu controle sobre a
construtora, seu maior bem material:
(...) na manhã do terceiro dia, ao chegar à construtora, eu descobri que não
existe nenhuma situação ruim que não possa piorar...Os cabelos dele e os
da garota que dirigia o carro estavam molhados. Como se os dois também
tivessem acabado de sair de um motel. Eles se beijaram. Ele entrou na
construtora sem me ver. Ela arrancou com o carro. Anísio e Marina.
(Aquino, 2002:87)
Com Ivan se sentindo perseguido pela polícia e vendo Anísio participando
ativamente da vida de Marina, suas atenções se voltam para Paula, sua outra
obsessão, que representa tanto uma forma de fuga daquele cerco como uma
maneira de compensar a falência de seu casamento com Cecília. À medida que
percebe o agravamento da situação, seu apego à jovem aumenta. Na casa do litoral,
Ivan quer estender seu fim de semana, pois não sente vontade de retornar à
construtora e, conseqüentemente, ao convívio com Anísio:
Daqui a pouco temos que subir, ela disse. Que pena, está tão bom.
Eu havia explicado a ela minha situação com Cecília. Paula dissera
que, em princípio, aquilo não a incomodava, não queira ser o pivô de
nada.
Vamos ficar mais um dia...
É uma tentação. Mas você não tem que trabalhar amanhã?
Tenho, eu disse.
Essa era a pior parte. Eu não estava com um pingo de vontade de
aparecer na construtora. E tinha vários motivos para isso. O principal era
Anísio. (Aquino, 2002:74, grifo nosso)
A narrativa em primeira pessoa permite também uma possibilidade de
construção que agrega tensão ao discurso de Ivan. Trata-se dos bastidores da
trama. À medida que a narrativa se aproxima de seu clímax, o narrador passa a ter
menos conhecimento sobre o que acontece, o que significa uma perda crescente do
controle de seu próprio destino. Com isso, passa a especular mais do que
propriamente afirmar:
VI a notícia no jornal por acaso.
45
Um empresário do setor de materiais de construção havia morrido
num assalto...Achei a notícia curiosa. E incompleta: não mencionava as
outras atividades do morto, que, além de empresário, era um conhecido
agiota. Eu e Alaor devíamos um bom dinheiro para ele. Não podia ser
coincidência. Fui até a sala de Alaor...
Você teve alguma coisa a ver com isso? Você está usando o Anísio
pra resolver os nossos problemas? (Aquino, 2002:99-100)
Essa situação, coincidência ou não, levanta as suspeitas de que Alaor e
Anísio estão tramando juntos contra ele. Quando finalmente percebe que lhe
resta fugir, Ivan pressiona Paula por uma decisão urgente e, novamente, especula:
(...) Quero começar uma vida nova bem longe daqui. Você vem comigo?
Eu não posso largar tudo assim, Ivan, de uma hora pra outra.
Pode, sim, Paula. É só querer...
Eu preciso de um tempo, Ivan. Essa é uma decisão séria.
Eu sei que é. Só que eu não tenho muito tempo. (Aquino, 2002: 106)
........................................................................................................................
O QUE Alaor faria? Chamaria a polícia? Isso ele não iria fazer, eu sabia.
Era um dos meus trunfos...Talvez Alaor colocasse Anísio no meu encalço.
Não. Ele também não poderia fazer isso. E mesmo se fizesse, nunca me
encontrariam. (Aquino, 2002: 110)
Interessante observar que, em várias das citações feitas até aqui, ou
Anísio é o assunto central ou passa a sê-lo, sobrepondo-se ao assunto principal.
Como vemos, esse tipo de construção em que a lembrança do matador desvia o
foco da atenção do narrador se repete, marcando, na estrutura do romance, a
inquietação pela qual passou o narrador-personagem, que tenta recriar para o leitor,
no presente, a tensão por ele já vivida.
Paralelamente a essa estrutura narrativa criada em torno das obsessões
do narrador, temos ainda, dentro de sua tentativa expiatória, uma outra forma de
construção que visa a estabelecer uma ligação entre ele e a figura paterna. Nesse
sentido, o papel exercido por seus pais se torna mais um meio de caracterização
psicológica de Ivan, o qual também aponta para a sua fragilidade emocional.
É através das referências a seu pai e da opinião de sua mãe que podemos
completar seu perfil psicológico. Dessa maneira o narrador-personagem procura
compreender melhor sua própria personalidade, talvez numa busca pelas razões
que o levaram a se envolver num crime bárbaro como o assassinato de seu sócio
Estevão.
Seu pai (que havia se suicidado antes do início da narrativa) carregara
uma marca física, que também tinha um sentido simbólico e misterioso para Ivan: a
46
tatuagem de uma serpente enrolada num punhal no ombro esquerdo. Para Ivan, ela
devia guardar algo terrível e talvez escondesse não a chave para o passado de
seu pai como também para uma possível herança comportamental.
A ligação, de base psicanalítica, estabelece forte relação do filho com a
figura paterna através de um sonho de Ivan. Este é um elemento importante na
construção do personagem Ivan, pois é motivado pela tatuagem de Mirna, a garota
de programa com quem se relaciona após ele e Giba terem contratado o matador
Anísio. A tatuagem da garota ativa a lembrança da tatuagem do pai, que permanece
na mente de Ivan, sendo recuperada no sonho:
Quando Mirna despiu a calcinha, pude ver uma pequena tatuagem
colorida, que se misturava aos pêlos aloirados de seu púbis, ficando semi-
oculta. Um dragão.
Meu pai tinha um símbolo tatuado no ombro esquerdo, um círculo, no
interior do qual havia uma serpente enrolada numa espécie de punhal.
Uma coisa sinistra. (Aquino, 2002:22)
....................................................................................................................
Lavei o rosto e, no momento em que peguei a toalha para enxugá-lo,
recuperei o sonho que tinha me assustado. Nele, meu pai aflito me pedia
ajuda para livrar-se de sua tatuagem. (Aquino, 2002:26)
A relação com o pai é reforçada pelo discurso da mãe, a quem Ivan
recorre nos momentos difíceis. No capítulo 10, em uma conversa, a mãe lhe
confirma a semelhança com o pai. A visita de Ivan à mãe ocorre num momento
crucial da narrativa, exatamente quando percebe a ligação entre Anísio e Marina.
A visita representa, portanto, uma tentativa de encontrar alívio (que
buscará também com Paula) e explicações para o suicídio do pai, o que Ivan não
consegue:
(...)Uma atmosfera irreal me cercava. As coisas aconteciam sem controle.
Um princípio de loucura. (Aquino, 2002:85)
Você é igual a seu pai(...)Seu pai era um homem fraco, Ivan...
Ela não disse mais nada e eu sabia que não adiantaria insistir. Eu era
igualzinho a meu pai. Um fraco e estava apavorado. (Aquino, 2002:90-91)
Percebemos, dessa forma, que na narrativa literária os referenciais
familiares são uma fonte de informação importante sobre Ivan, que até essa última
conversa com sua mãe ainda tenta restabelecer alguma ordem ou ao menos
encontrar explicações para o rumo inesperado que sua vida tomou.
47
No que diz respeito à estrutura narrativa, uma constatação importante
relaciona-se ao modo como o capítulo 3 é construído. Ao invés do uso do pretérito,
como na maioria dos casos em que se dirige diretamente ao leitor, o narrador-
personagem usa prioritariamente o presente. Esse aspecto o aproxima do narrador
cinematográfico, uma vez que ao texto uma característica de “aqui-e-agora”,
como se o capítulo fosse uma espécie de roteiro, escrito para ser filmado. Ivan
relata o instante imediatamente anterior à sua conversa com Estevão sobre o
esquema ilícito com Rangel. As indicações são claras de que se trata de um
momento delicado e se assemelham às instruções de um roteiro:
Estevão está sentado à minha frente, folheando sem muito interesse uma
revista de arquitetura e decoração, enquanto eu reviso os cálculos de um
projeto. Várias vezes ele levanta os olhos da revista e me observa,
dissimulado. Percebo isso sem precisar desviar a atenção do que estou
fazendo, sem necessidade de olhá-lo de modo direto. Estevão quer me falar
alguma coisa(...) (Aquino, 2002:33)
Aliado a isso, o recurso predominante ao diálogo, com a constante
descrição das sensações e do estado psicológico momentâneo do narrador-
personagem tenta recriar no presente a angústia do passado. No capítulo 12, por
exemplo, temos a passagem, na qual Ivan compra uma arma ilegal de Edésio, o
segurança do bar que freqüenta:
Cuidado, tá carregado.
(...)tive vontade de perguntar se Edésio não via perigo em manter uma arma
carregada em casa(...)
Coloquei-o na cintura e cobri com o blusão. Percebi que iria me
incomodar quando me movimentasse.
É o tipo de revólver mais comum(...)Nunca falha quando você
precisa(...)
48
Tô comprando pra me proteger(...)
Paguei e saí aliviado. A sala abafada estava me deixando zonzo.
(Aquino, 2002:102)
Esse tipo de construção marca a narrativa do início ao fim como mais
uma característica que revela uma composição semelhante à de roteiro. As
ressalvas constantes do narrador dão, no conjunto da obra, a ilusão de toda uma
narrativa em tempo real, uma vez que não grandes pausas meditativas ou de
cunho filosófico (as quais poderiam quebrar a sensação de presente da ação
descrita), num desenrolar em que prevalece certa cronologia.
Além desses aspectos de ordem lingüística, a própria forma gráfica do
texto aponta para a estrutura cinematográfica. Em diversos capítulos, existe uma
fragmentação interna através do maior espaçamento gráfico entre determinadas
passagens do texto, diferentemente do que em geral ocorre na maioria dos
romances, em que temos capítulos de estrutura única. Esses “cortes” indicam
elipses diegéticas semelhantes àquelas entre capítulos distintos, ou seja, os
capítulos estão subdivididos em espécies de “cenas”. A estratégia em questão é
usada a partir do capítulo 2 e se repete com maior freqüência nos últimos capítulos,
em especial nos de número 11, 13 e 14, em que a troca rápida de “cenas” acelera a
narrativa rumo ao seu final. Com isso, percebe-se que o texto escrito passa por um
processo semelhante ao da montagem cinematográfica, em que cortes e colagens
são executados. Vejamos o exemplo retirado do capítulo 11:
O RUÍDO dos caminhões e carros que trafegavam pela Marginal Tietê
entrou pelo vitrô do banheiro junto com a claridade da manhã...Voltei para
a cama...Paula se espreguiçou e virou-se na cama...Paula deitou-se ao
meu lado.
Já pensou? As praias devem estar desertas nessa época do ano, ela disse.
ALAOR chegou atrasado ao restaurante...
Puxei meu braço. E esbarrei no copo de água, derrubando-o sobre a mesa.
A água respingou na camisa de Alaor. Vi que ele fazia força para manter o
controle. Suas mãos tremiam um pouco e ele começava a transpirar. Eu
também estava trêmulo.
O MUNDO começou a desabar ao meu redor. Uma noite ao chegar em
casa, encontrei a empregada me esperando na cozinha...E descobri que
minha mulher tinha saído de casa...Tive um palpite e liguei para a casa da
mãe dela. Cecília atendeu...
É definitivo?
É sim, Ivan...
Você tem outro?
Ah, vá se foder, Ivan, ela disse.
E bateu o telefone. ( Aquino, 2002:95-97)
49
Como vemos, os trechos correspondem a eventos que ocorrem em
espaços e momentos bem distintos. Além do espaço entre os trechos, estes são
sempre iniciados em caixa alta, da mesma maneira que ocorre na passagem de um
capítulo ao outro, para ressaltar a elipse.
Dessa forma, vemos que a escrita literária de Marçal Aquino é
influenciada por sua condição de roteirista e que a soma de ação com certa
psicologia, além de revelar a visão de mundo fortemente ideológica do narrador,
poderia indicar ao diretor uma possibilidade de trabalho para a adaptação fílmica.
2.2 - O filme de Beto Brant
2.2.1- A Retomada do cinema nacional
O início da década de 1990 viu a produção cinematográfica brasileira
decrescer a níveis extremamente baixos. Essa queda foi motivada especialmente
pela extinção da Embrafilme durante o governo Collor, deixando os produtores sem
o apoio financeiro necessário à produção de novos filmes. Em meados da mesma
década, entretanto, a aplicação da Lei do Audiovisual, promulgada em 1993, deu
novo impulso ao cinema nacional, cuja produção cresceu e se estabilizou “em torno
de 20 a 30 novos títulos por ano” (Oricchio, 2003: 27).
A Retomada do cinema nacional proporcionou o surgimento de uma gama
de filmes com temas que variam desde o entretenimento puro, sem compromisso
com as grandes questões nacionais (os da Xuxa e dos Trapalhões, por exemplo) à
exposição de um Brasil dilacerado pelas mazelas sociais (O invasor e Abril
despedaçado, por exemplo). Esse período que se estendeu, segundo Oricchio,
apenas até o início da década atual, tendo completado um ciclo pareceu
favorecer a convivência relativamente pacífica entre visões e interesses bastante
distintos. Para ele, essa condição peculiar é fruto não dos novos incentivos à
produção, mas também do próprio momento histórico em que os filmes estão
inseridos:
Essa variedade de oferta, que não é apenas de gêneros, mas de estilos,
pode ser entendida de outra forma. Ela refletiria também a típica
fragmentação mental do homem dos anos 1990. Com o chamado “fim das
utopias”, cada qual se sentiu liberado para estabelecer a própria agenda de
prioridades. (Oricchio, 2003:30)
50
Esse quadro é confirmado por Ismail Xavier, que declara não haver uma
“união proclamada em torno de um ideário”, uma vez que “não pensamento
dominante, proclamações de vulto a provocar cisões, confrontos, neste quadro.”
(Xavier apud Nagib, 2002:10).
Preocupados com os problemas socioeconômicos brasileiros, derivados
da histórica desigualdade social, alguns diretores da Retomada não perderam a
oportunidade de apresentar a violência como o grave sintoma dessa sociedade
marcada por um abismo social que insiste em se perpetuar.
Nesse sentido, a comparação com o Cinema Novo tornou-se inevitável,
uma vez que a favela e o sertão novamente foram eleitos espaços privilegiados para
a observação de nossa realidade. Diretores do Cinema Novo, como Glauber Rocha
e Nelson Pereira dos Santos, criaram novas possibilidades estéticas, passando a ser
referência para os novos diretores, muitos dos quais revelam admiração por esses
mestres. É o caso de Walter Salles que ao citar diversos ciclos do cinema mundial
(Westerns, Nouvelle Vague, Neo-Realismo italiano, Cinema Novo etc.) como
influências na sua formação – admite que o ciclo brasileiro é o que mais o fascina:
Mas, de todos os ciclos, aquele pelo qual tenho a maior admiração é o
Cinema Novo, pelo fato de que pela primeira vez tive a oportunidade e a
possibilidade especulares de ver o rosto do Brasil na tela. Os cinema-
novistas fizeram um pouco daquilo que os neo-realistas haviam feito alguns
anos antes, e foram além.” (Salles apud Nagib, 2002:417)
Segundo Oricchio, essa admiração se reverte em clara influência no final
de Abril despedaçado (2001), quando o personagem Tonho busca “...o mar, esse
elemento arquetípico, sempre disponível em sua densidade simbólica para fins de
ficção” (Oricchio, 2003:95), uma citação da cena final de Manuel em Deus e o Diabo
na Terra do Sol (1963), de Glauber Rocha.
Entretanto, apesar de o tom de denúncia ser uma marca que une os dois
períodos, a arte da Retomada representa muito mais a nossa perplexidade diante de
uma sociedade tão injusta e desigual do que propriamente a indicação de algum
caminho como se buscava no Cinema Novo. É nesse sentido que Jean-Claude
Bernardet acredita que qualquer comparação mereça a devida ressalva, uma vez
que no Cinema Novo havia “uma ligação e uma preocupação com uma proposta
política que era fundamental para a sobrevivência ideológica do
51
movimento...proposta absolutamente ausente nos cineastas de hoje” (Bernardet
apud Nagib, 2002: 17).
No início da década de 60, como bem aponta Xavier (1993:9), a América
Latina vivia um momento de agitação revolucionária, no qual era grande a
expectativa de transformações substanciais na realidade política e econômica do
continente. No Brasil, o Cinema Novo assumiu a intenção de transformar a
realidade. É bem verdade que sua tônica de crença na superação do atraso, na
“promessa de felicidade” (Xavier,1993:13), como vemos no personagem Manuel
que ruma gradativamente para sua emancipação em Deus e o Diabo na Terra do
Sol deu lugar, a partir do golpe militar, a uma visão mais sarcástica e menos
esperançosa como a de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) fruto da
desilusão com o fracasso do projeto de emancipação nacional, abafado pela
opressão imposta pelo governo militar. Entretanto, no segundo período, manteve-se
expressa a consciência política, indispensável para a manutenção de uma arte que
continuou a pensar o país de forma crítica.
Hoje, passada a ditadura, a democracia brasileira se revelou muito aquém
de nossas expectativas. A extinção do cerceamento oficial das liberdades não
permitiu aos indivíduos se tornarem plenamente livres, pois os mecanismos de
exclusão socioeconômica permanecem intactos. As desigualdades estão longe de
serem resolvidas, o que é um fator diretamente responsável pela escalada
incessante da violência em nosso país. O agravamento da violência, em especial
nas grandes cidades, tem nos envolvido num pesado clima de descrença nas
autoridades, uma vez que demonstra o desinteresse das lideranças políticas
brasileiras em atender às necessidades da maior parte da população.
Naturalmente, a Retomada é o produto artístico desse confuso momento
histórico. Se, muitas vezes, os problemas brasileiros nos parecem quase insolúveis,
por não sabermos exatamente por onde começar a resolvê-los, por sua vez o
cinema da Retomada também parece mostrá-los dessa forma. É o caso específico
da violência, tão banalizada no Brasil que às vezes parece não ser fruto do caos
social, mas simplesmente da desumanidade despropositada, que brota do nada.
Algo que parece beirar a loucura.
Oricchio observa que essa é a forma de representação da violência em
Cidade de Deus, onde a comunidade parece ter se desenvolvido de forma isolada
das condições impostas pelo mundo exterior:
52
O romance pode ser acusado de falta de contextualização, e o filme dele
tirado não fica atrás. Como se aquele microcosmo tivesse nascido de si
mesmo, fosse o seu próprio ovo de serpente e não dependesse, da origem
ao crescimento desordenado, de algo que lhe é infinitamente mais amplo e
mais poderoso a estrutura da sociedade como um todo. (Oricchio,
2003:13)
O crítico aponta ainda a influência da cinematografia de Quentin Tarantino
no trabalho do diretor Fernando Meirelles, uma vez que Cidade de Deus (2002) é de
uma fluidez que agrada e prende o público, apresentando a violência com “certa
espetacularização” (Oricchio, 2003:158), o que é típico do cinema norte-americano,
notadamente mais comprometido com o entretenimento. Para Lívia Duarte (2006),
parte do problema se deve ao fato de que a maioria das cenas de crime em Cidade
de Deus é acompanhada por um samba ou música de discoteca, o que aumenta o
clima de “euforia” e transmite a idéia de uma violência praticada por pura maldade
ou diversão.
Apesar da falta de aprofundamento quanto às motivações da violência, a
criminalidade é apresentada como um dos males de nossa sociedade e, portanto,
não se pode dizer que o filme é estritamente feito à moda norte-americana, pois nele
a violência pode estar banalizada, mas certamente não é elogiada como ocorre em
Hollywood. Entretanto, a exploração bastante competente dos recursos técnicos
que costuma agradar o público em geral tornou a violência do filme mais fácil de
se digerir, portanto, menos incômoda.
De forma diversa, O invasor de Beto Brant apresenta uma linguagem
menos aprazível. Preferindo a sugestão ao tiroteio, a montagem truncada à
montagem fluida de Cidade de Deus, Brant procurou mostrar que a violência está
em toda parte e é responsabilidade de todas as classes sociais. Nesse sentido, a
falta de limites na busca pelo poder econômico e a movimentação entre área nobre
e periferia trazem à tona essa ligação dos dois lados pela violência, mostrando-a
como um problema social mais amplo.
Entretanto, nem Cidade de Deus nem O invasor discutem motivações
sociais mais profundas, ligadas ao subdesenvolvimento, como fazia o Cinema Novo,
pois ambos são frutos de um momento de perplexidade e desencanto, no qual os
ideais coletivos deram lugar ao “salve-se quem puder” e a preocupação com a
realidade imediata diminui o ímpeto pelos projetos a longo prazo.
53
Qualquer que seja a forma de representação da violência é inegável que
ela é tema recorrente na Retomada e, assim como qualquer outro, sofre tratamento
estético que corresponde a uma determinada visão da arte e da realidade que o
diretor procura transmitir aos espectadores de seu trabalho.
2.2.2 - Linguagem e momento histórico
A velocidade e a fragmentação com que os eventos são apresentados em
O invasor podem ser consideradas duas de suas características técnicas mais
marcantes. De fato, ao assistirmos ao filme, somos submetidos a um verdadeiro
“bombardeio” de imagens que se atropelam num ritmo que é próprio ao modo como
as diversas linguagens tendem a se organizar em nossos dias, nos quais as
informações são substituídas cada vez mais rapidamente.
Ao tentar retratar o caos social em que vivemos, o filme como não
poderia deixar de ser sofre a contingência de seu tempo diretamente na estética
que apresenta. É nesse sentido que podemos compreender a degradação do
indivíduo e suas desilusões como fatores recriados através das técnicas de
montagem e de fotografia, da representação dos atores etc.
De maneira interessante, o fato de O invasor ser um filme eminentemente
narrativo e voltado para a ação não o impede de se “mostrar” como cinema, ou seja,
de quebrar o naturalismo
10
da representação, aspecto tão caro aos filmes narrativos
em geral, em especial, aos feitos em Hollywood.
Apontar para si mesmo enquanto cinema é uma das principais marcas dos
filmes de Eisenstein, cuja linguagem se constrói com a intenção clara de chamar a
atenção do espectador (soviético) para as questões sociais e políticas relevantes da
sociedade de seu tempo.
O invasor também aponta questões cruciais a serem resolvidas em nosso
país (corrupção, pobreza etc.), apesar de fazê-lo numa linguagem diferente da do
diretor soviético, cuja intenção sempre foi a de buscar um cinema menos narrativo.
Além disso, O invasor não tem a mesma força evocativa para a ação que tem, por
exemplo, O Encouraçado Potemkin, o que, entretanto, não deve ser compreendido
como um demérito, visto que é fruto de uma sociedade e de um momento histórico
10
A representação naturalista, em cinema, é aquela em que se usam algumas técnicas de montagem de modo a
não deixar que o espectador perceba o corte, a fim de que a “impressão de realidade” seja mantida (Xavier,
1984:25), como na maioria dos filmes norte-americanos.
54
bastante distintos. O invasor, portanto, não aponta caminhos. É muito mais uma
interpretação de quem parece estar chocado com tudo o que está acontecendo no
país e muitas vezes se sente impotente diante da dimensão dos problemas; uma
visão que boa parte de nós compartilha de alguma forma. Diante dessa situação, é
natural que o indivíduo se degrade e se desiluda, e isso o filme também mostra de
maneira convincente através do modo como os estados físicos e emocionais dos
personagens são construídos.
No plano estético, a “câmera na mão” é a primeira marca a ser ressaltada.
É com essa técnica que boa parte do filme foi captado. Aqui ela transmite
instabilidade e inquietação ao olhar do espectador. Como o público alvo é o de
classe média urbana, ela tem a função de incomodá-lo, tirando-o de sua passividade
e de seu falso conforto, ao fazer menor uso do plano fixo. Ao obrigar o público ao
estresse visual de acompanhar, nessas condições, uma história por si
estressante, o diretor aumenta o impacto do filme, que a intenção de perturbar
está na própria técnica do filme. Ao convidar o público a participar de uma
representação da crueza da vida real, Brant mostra ao espectador médio que este
também está cercado por essa realidade, não importando o quanto tente fingir não
ser parte dela. Se, no Cinema Novo, a técnica da “câmera na mão” muitas vezes se
impôs como uma necessidade, transformada em estética criativa, aqui ela é uma
opção conscientemente feita para atingir um fim específico: causar desconforto.
Alia-se a essa técnica o recurso da montagem truncada, também de
grande importância para a quebra da naturalidade da representação. O corte seco
(em todo o filme apenas três fades
11
) e, às vezes, a retirada proposital de alguns
quadros
12
causam estranheza ao criarem um ritmo diferente da maioria dos filmes
narrativos. A percepção das primeiras cenas criadas dessa forma pode dar ao
espectador a impressão de defeito no disco ou falha no aparelho de DVD, por
corresponder a um “salto”. Entretanto, percebemos em certas seqüências o uso
sistemático desse recurso, o que configura, portanto, uma técnica e não uma falha.
Nesse caso, não é a instabilidade do movimento, mas sua descontinuidade que visa
a um acréscimo da tensão.
11
Fade ó surgimento ou desaparecimento gradativo da imagem na tela. Em geral é usado para indicar a
passagem do tempo entre duas cenas.
12
O termo quadro se refere à imagem que é mostrada num intervalo mínimo de tempo. Como no cinema a
velocidade é de 24 quadros por segundo (mais rápido que a percepção do olho) não podemos perceber os
quadros de forma isolada.
55
Outra característica marcante do filme é o tom semelhante ao documental.
Em muitas cenas, os personagens olham diretamente para a câmera e parecem
dirigir-se ao espectador em tom de desabafo, denúncia ou até de afronta. Os
“passeios” pela cidade com a câmera posicionada dentro do carro também
transmitem essa idéia, ao colocar o espectador na condição de observador da vida
de cidadãos comuns em seu cotidiano.
A partir dessas técnicas, portanto, o filme cria sua especificidade narrativa,
desmontando a realidade e recriando-a de forma que o mal-estar prevaleça em boa
parte do filme, buscando evitar o relaxamento físico e psicológico do espectador.
56
3 - O PROCESSO TRADUTÓRIO
Neste capítulo apresentaremos a metodologia com a qual esse trabalho foi
realizado e depois faremos a análise do processo tradutório de O invasor. Dentro da
análise, veremos como as estruturas narrativas de livro e filme se relacionam e
posteriormente estudaremos como os recursos narrativos do filme (montagem,
música etc) foram utilizados na sua organização e de que maneira contribuem para
a significação global da adaptação.
3.1-Metodologia
3.1.1- Constituição do corpus
O corpus de nossa pesquisa é formado pelo romance O invasor (2002) de
Marçal Aquino, por sua adaptação para o cinema o filme homônimo de Beto Brant
(2001) e por seu respectivo roteiro, escrito em parceria por Marçal Aquino, Beto
Brant e Renato Ciasca.
3.1.2 - Procedimentos metodológicos
Esta pesquisa consiste em uma análise de caráter descritivo, cujo
propósito foi o de estudar as relações que existem entre a obra literária e a sua
respectiva adaptação para o cinema, com base na compreensão das estruturas
narrativas. Nesse contexto, o roteiro também foi considerado na medida em que seu
estudo servisse para esclarecer determinadas adequações da estrutura da história
escrita para a história filmada.
Por entendermos que cinema e literatura são formas de arte com
características bem peculiares, o estudo do modo como as narrativas foram
realizadas procurou revelar as intenções comunicativas em cada semiose, tanto no
que elas têm de comum como no que apresentam de distinto e específico.
Inicialmente, fizemos um levantamento de trechos que se revelaram
significativos para nosso estudo. Esse levantamento teve como parâmetro inicial o
fato de que o livro tem foco narrativo em primeira pessoa, enquanto no filme a
narrativa assume pontos de vista variados. Essa diferença por si foi um dado
importante, uma vez que acarretou mudanças significativas na narrativa traduzida,
através de supressões e inclusões que deram significados diferentes à tradução.
57
Nesse sentido, não nos limitamos a buscar no filme somente aqueles trechos que
são adaptações de passagens semelhantes do livro a fim de verificar como a
tradução foi feita, pois a adaptação cinematográfica não se limita ao que é comum
entre as obras escrita e fílmica, mas é, antes de tudo, uma recriação, por isso
buscamos uma compreensão mais ampla do processo tradutório.
Dada a grande importância atribuída ao estudo do filme, a análise da
montagem e de suas relações com o tempo e o espaço, bem como com a
construção dos personagens foram fundamentais para a compreensão dos
principais aspectos da pesquisa. A análise desses aspectos não foi baseada em
critérios que indicassem juízo de valor como, por exemplo, se algum trecho do filme
estava em desacordo com o livro, sendo “melhor” ou “pior” que ele, mas sim qual o
efeito causado ou talvez pretendido e a maneira pela qual havia sido construído.
Nesse sentido, o estudo das funções da música aliada aos recursos de imagem deu
à nossa concepção de montagem um alcance ampliado, enriquecendo a análise.
Não fizemos decupagens
13
exaustivas, pois elas não nos auxiliariam no
tipo de análise executada nesse trabalho, que avalia de forma global categorias
como música, espaço e tempo. O tipo de análise aqui realizada assemelha-se ao
segundo modelo mencionado por Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété:
Com freqüência, lemos análises que não distinguem explicitamente as
fases de desconstrução e de reconstrução, que as imbricam uma na outra,
ou então, não param de alterná-las. Nem é preciso dizer que o texto,
resultado final da atividade analítica, não tem de explicar linearmente,
cronologicamente, os processos de sua produção. Mais ainda, inclusa no
trabalho de preparação que precede a redação não existe uma sucessão
escolar de uma fase de descrição e de uma fase de reconstrução, mas
antes uma alternância anárquica de ambas: apela-se a uma quando a outra
se esgotou e inversamente, num movimento de balanço incessante.
(Vanoye & Goliot-Lété, 2005:16)
Esse modo de trabalhar nos pareceu o mais adequado para lidar com a
dialética da aproximação e repulsão, que exige um vai-e-vem entre o geral e o
específico, a fim de se compreender a obra em ligação com a atualidade do tema
tratado. Portanto, procuramos criar um modelo de análise que agrega as questões
da narrativa em geral com os aspectos técnicos e artísticos da narrativa
cinematográfica, partindo da teoria de Antonio Candido sobre a relação entre
13
O termo decupagem aqui se refere à descrição da “estrutura do filme como seguimento de planos e de
seqüências” (Aumont, 2003:71).
58
literatura e sociedade que adverte que metodologias estritas podem prejudicar a
análise da obra de arte ao não respeitar certas peculiaridades de sua forma e
fundamentando os estudos de cinema em Xavier, Eisenstein, Bazin, Aumont,
Berchmans, entre outros (ver itens 1.2, 3.3.1.1 e 3.3.1.2), sempre adequando a
análise às necessidades de contextualização histórica e social de nossa pesquisa.
Portanto, nosso modelo de análise não teve um caráter totalmente
estabelecido de forma prévia, mas foi se adequando ao estudo dos conflitos da
narrativa e assumindo os contornos exigidos pela própria pesquisa.
3.2 - Estruturas narrativas
Nesse momento, iremos analisar as estruturas narrativas de livro e filme a
fim de verificar como os fatores externos de composição, aqueles derivados da
estrutura social, dos valores e das realidades individuais e de classe se transformam
em internos, passando, então, a constituir as estruturas das duas obras. Esses
fatores imprimem marcas específicas em cada uma delas, devido às especificidades
de cada semiose. Escolhemos para uma análise mais detalhada da estrutura os
inícios das tramas porque estes nos fornecem referências importantes para o estudo
das construções de Marçal Aquino e Beto Brant. O conhecimento das peculiaridades
estruturais é considerado, portanto, um fator decisivo para a compreensão do
processo tradutório em nosso estudo.
Procedemos primeiramente a análises mais gerais do livro e do filme por
acreditarmos que elas, postas em confronto, tanto ajudam a construir um processo
de interpretação mais preciso do nosso objeto de estudo como possibilitam ao leitor
deste trabalho uma melhor compreensão de nossa análise da adaptação fílmica,
uma vez que, através do estabelecimento de um quadro dialético das relações, as
sutilezas de significado são mais claramente reveladas.
3.2.1- A estrutura narrativa como categoria de análise
O sentido de estrutura a que aludimos em nossa análise não é o do
Estruturalismo lingüístico, mas aquele ao qual se refere Antonio Candido, uma vez
que levamos em conta o aspecto social enquanto constituinte profundo da obra, ou
seja, não na medida em que ele se reporta ao momento histórico para o qual a
obra aponta, mas também na maneira como ele se torna “agente da estrutura“
59
(Candido, 2006:15). É nesse sentido que procuramos mostrar por que os
movimentos de atração e repulsão entre indivíduos de classes sociais distintas
constituem as estruturas narrativas em O invasor, (tanto no livro como no filme),
embora eles sejam construídos de maneiras distintas em cada uma das obras, o
que, como veremos, também pode, em certas passagens, propor significados
diversos para cada semiose. O estudo da aproximação/repulsão é importante em
nosso caso, pois, como se trata de um eixo sobre o qual se desenvolve a narrativa,
subordina a análise de elementos como o tempo e o espaço. Dessa forma, apesar
de dedicarmos um item à parte para essas duas categorias, essa análise não terá
um fim em si, mas servirá a uma melhor compreensão do movimento dos
personagens.
3.2.2- As estruturas narrativas de O invasor (livro e filme)
3.2.2.1 - Aproximação e repulsão entre classes sociais
As duas narrativas se estruturam a partir das ações de aproximação e
repulsão entre as classes: a sociedade entre Estevão, que é rico, e os outros dois
colegas de faculdade, rapazes de classe média, no escritório de engenharia; depois
ocorre a repulsão entre eles, no caso do negócio ilícito não aceito por Estevão, que
ameaça desligar Ivan e Giba da sociedade; o trato com Anísio (matador de classe
baixa), para eliminar o sócio majoritário; e finalmente a superação dos dois pelo
matador, com o provável assassinato de Ivan pelo próprio colega.
A oposição de indivíduos de classes distintas se apresenta através de
uma complexa rede de relações. A insatisfação de Giba e Ivan com a presença de
Anísio é responsável por grande parte do conflito, a partir de certo momento da
história, pois ambos querem se ver livres do matador após o assassinato de
Estevão, encarando sua “proposta” de sociedade como a invasão de um território
exclusivo deles.
A própria noção de invasão predominante nas duas narrativas se reveste
de um caráter ideológico, que demonstra um ponto de vista de classe. Em ambos
os casos, vemos a representação do olhar das classes média e alta, cuja relação
histórica com as classes mais baixas tem sido de estranheza e desconfiança. Nesse
sentido, Anísio é incômodo porque representa a violência que tira o sossego da
classe média e impõe de maneira brutal a realidade da periferia (com mais destaque
60
no filme) àqueles que a desconhecem ou simplesmente fingem não vê-la.
Entretanto, essa oposição não significa que cada um dos três lute como
defensor dos interesses coletivos de suas classes. Ao contrário, lutam apenas por
seus interesses particulares. Entretanto, fica evidente em seus discursos e suas
reações que todos têm plena consciência da posição que cada um ocupa dentro da
sociedade capitalista.
Essa oposição que é o aspecto que mais se destaca em ambas as
narrativas não deve, entretanto, ser compreendida de forma isolada. Na verdade,
ela se torna possível a partir do conflito de interesses entre os sócios da
empresa. Esse primeiro conflito se estabelece entre os dois sócios minoritários e
Estevão, que detém o poder administrativo e econômico. Em princípio, deveriam
estar todos os três do mesmo lado, na busca comum do sucesso da construtora.
Entretanto, Giba e Ivan optam por participar do esquema ilícito com Rangel
(funcionário do governo que convida Ivan para uma falcatrua) e, para isso, precisam
eliminar Estevão. Apesar de serem sócios, não pertencem à mesma classe social.
Estevão é de origem rica, seu avô era um barão do café do interior paulista;
enquanto Giba e Ivan são arrivistas de classe média e sua aliança com Estevão para
formar a construtora deve-se a terem todos se formado como engenheiros na
mesma turma. Assim, os dois puderam entrar na sociedade com seus
conhecimentos especializados, enquanto Estevão entrou com o capital.
Essa rede de relações nos permite falar sobre o processo das
representações em termos de aproximação e repulsão entre as classes sociais,
embora os conflitos se dêem de maneira individual. A dialética de
aproximação/repulsão é determinada pelos interesses de cada uma das partes.
Cada um tenta usar o “outro” na medida dos seus interesses. Giba e Ivan solicitam o
“serviço” de Anísio porque eles próprios não são capazes de cometer o crime.
Anísio, por sua vez, aproveita-se de seus pontos fracos para manter-se próximo
deles e da carente Marina (filha de Estevão e, portanto, herdeira de seu patrimônio),
a fim de realizar a sua ascensão social ilícita.
61
3.2.2.2 - A força do capital e a ausência da lei
Em ambas as narrativas, vemos a representação de uma realidade em
que muitas regras de convivência social foram abolidas, referindo-se claramente à
violência urbana no Brasil, fruto do abismo social entre as classes.
Como bem ressalta Lúcia Nagib, o fenômeno da exclusão pela força do
capital não está restrito ao Brasil, mas ocorre nas “sociedades capitalistas em geral”
(Nagib, 2006:161). Entretanto, ele se apresenta de forma mais acentuada em países
periféricos como o nosso. É nesse sentido que Mario Sergio Conti identifica a
estrutura do filme à estrutura social brasileira:
O roteiro está subordinado a uma idéia geral, de longa tradição na arte
brasileira: a da tensão entre centro e periferia, captada no coração do
subdesenvolvimento. Essa tensão, no filme, pende para a investigação do
aspecto cada vez mais visível da contemporaneidade brasileira, o da
extralegalidade do capitalismo. (Conti apud Nagib, 2006:159)
Essa estrutura excludente é representada através dos seus sintomas,
como a corrupção, que pode assumir as mais variadas formas (corrupções política e
policial, crime encomendado, exploração da prostituição etc.). De um modo geral,
essa ausência de leis é responsável por criar o clima de abandono e individualismo
no qual vivem os personagens, o que leva cada um a tentar sobrepor seus valores
aos dos demais. No livro e no filme, toda a relação entre os quatro personagens
principais (Ivan, Giba, Estevão e Anísio) é, de alguma forma, afetada pela
criminalidade (esquema ilícito, assassinato etc.).
A luta pelo poder econômico é apresentada como verdadeiro vale-tudo,
no qual todos têm sua parcela de culpa pelo modo como as relações pessoais se
apresentam. Se por um lado Ivan e Giba são mandantes de um crime e Anísio, seu
executante, por outro, a figura de Estevão demonstra uma outra forma de
pensamento, a de quem usa o poder de seu capital para livrar-se de forma lícita (ou
ilícita) daquilo e daqueles que o incomodam. Para Estevão tudo é muito simples (“Eu
compro a parte dele e pronto.”, filme), uma atitude típica da classe dominante, para
quem a legitimidade do capital é inquestionável.
É bem verdade que uma cláusula contratual a Estevão plenos direitos
de comprar a parte de Ivan e Giba, mas sabemos também no livro que ele tenta uma
manobra para ficar sozinho na empresa, dizendo individualmente a cada um dos
62
sócios que irá comprar a parte do outro. A empresa é fruto de um esforço conjunto,
mas isso não importa para Estevão que, sentindo-se ameaçado, quer aproveitar a
ocasião como pretexto para afastar os outros dois, cuja presença na construtora não
lhe interessa mais.
É exatamente essa intenção de uso do poder do capital motivada pela
proposta do negócio ilícito com Rangel um dos fatores catalisadores da violência
de Ivan, Giba e Anísio. Nesse exemplo, fica bem claro, portanto, que o aparato legal
é usado para a imposição do economicamente mais forte, o que acaba estimulando
a violência entre os sócios.
Outro fator importante para a determinação do ambiente das narrativas é
a corrupção da polícia, fator que possibilita a instituição de um poder paralelo
praticamente irrestrito. Em ambas as narrativas, a polícia é parte integrante de uma
rede de corrupção, sendo representada na figura do Delegado Norberto. É ele quem
sugere a contratação de Anísio para assassinar Estevão, faz sociedade com Giba
numa casa de prostituição e finalmente com o apoio de seus subordinados
entrega Ivan a Giba e Anísio para que resolvam a situação “de uma vez por todas”
(Aquino, 2002:126). Norberto representa uma espécie de “onipresença negativa”, o
que é levado ao extremo pela coincidência de Ivan ir exatamente à delegacia onde
ele trabalha na noite em que seu “pessoal” está de plantão.
Além do lado corrupto da polícia, outra faceta é apresentada: a ineficácia.
Mesmo quando a polícia aparenta trabalhar de maneira correta, não consegue
resultados satisfatórios. No livro, todo o capítulo 6 é dedicado à apresentação da
conversa entre o delegado Junqueira que investiga o assassinato de Estevão
Ivan e Giba. Junqueira levanta uma hipótese (roubo seguido de morte por pura
crueldade), depois voltamos a reencontrá-lo mais uma vez (capítulo 9), quando
Ivan vindo de Brasília, após ter acertado os últimos detalhes da falcatrua com
Rangel o no aeroporto de Congonhas. Nesse segundo momento, não podemos
afirmar que Junqueira esteja espionando Ivan, especialmente porque esta é a última
participação do delegado no romance. Nenhuma das situações resulta em punição
contra Ivan e Giba e o único aspecto que fica patente é o medo que Ivan tem de ser
preso.
No filme, não existe a figura do Delegado Junqueira. Aliás, não
qualquer personagem que esteja encarregado da investigação. O boletim de
ocorrência é lavrado, os corpos de Estevão e sua esposa são encontrados e a
63
presença legal da polícia na narrativa termina. Essa ausência da polícia reforça a
sensação de impunidade e de falta de limites para os criminosos. Dessa forma, a
cidade é apresentada como um lugar sem leis, onde cada um sobrevive à sua
maneira, utilizando todos os meios que tem à mão com relativa confiança na
impunidade. Mesmo Ivan, que tem medo de ser preso (um medo mais psicótico que
real), acredita que poderá iniciar uma nova vida assim que fugir de São Paulo, para
longe de Anísio. Os demais personagens pouco ou nada dizem sobre a
possibilidade de punição legal.
A narrativa de O invasor (livro e filme) é, por essas razões, a
representação de um olhar espantado diante da impunidade e do quadro de
corrupção ao qual nossa sociedade foi capaz de chegar, o que faz um par com a
visão de muitos de nós: percebe a gravidade da situação, mas não vê soluções.
64
3.2.3 - As classes entram em contato
Neste item, faremos uma análise da parte inicial de livro e filme, a fim de
mostrar a complexidade das relações que se estabelecem entre os personagens a
partir de suas perspectivas de classe.
No início de O invasor (filme), vemos a chegada de Ivan e Giba ao bar
onde irão contratar Anísio, o matador que irá assassinar Estevão, o sócio majoritário
da construtora.
A câmera, com seu olhar de dentro para fora do bar de periferia, captando
a chegada dos dois, indica que eles não pertencem àquele lugar (figura 1); o que é
reforçado pelo modo como avaliam o local ao entrar (figura 2) e confirmado quando
ouvimos a conversa com o matador. Um procedimento contrário da câmera, ou seja,
correspondendo ao olhar de um dos dois sócios, talvez não transmitisse a mesma
idéia (pelo menos não com a mesma intensidade), pois não veríamos o olhar
preocupado dos dois ao chegar.
Figura 1: Chegada de Ivan e Giba ao bar
Figura 2: Ivan e Giba avaliam o bar
De qualquer modo, a câmera assume o ponto de vista de Anísio desde o
início. Portanto, Ivan e Giba estão sendo vigiados desde a chegada, uma primeira
sugestão de que é Anísio quem tem o controle da situação. No momento em que os
dois param à entrada do bar, percebemos que a visão da câmera é a do invasor,
65
pois os olhares dos dois se dirigem para ela, que faz movimentos laterais de um
para o outro, num reconhecimento de suas feições (figura 3):
Figura 3: Anísio observa Ivan e Giba
No livro, o olhar de estranhamento dos dois e o olhar vigilante também
estão presentes. O primeiro, através da descrição do local onde o bar se encontra:
(...) numa rua estreita e escura da Zona Leste. Um lugar medonho...perto
do que parecia ser uma fábrica abandonada, um galpão enorme e
cinzento, com as paredes pichadas e vitrôs com vidros quebrados...Então
ali estávamos, naquele lugar sem nenhuma vocação para cartão-postal.
(Aquino, 2002:7)
O segundo, através do relato de Ivan acerca da atitude de alguns
freqüentadores do bar:
Merecemos uma rápida avaliação dos dois sujeitos que bebiam cerveja
debruçados no balcão, conversando com o velho que devia ser o dono do
bar. Os quatro homens que jogavam bilhar também nos olharam por um
instante, e depois retomaram sua conversa. O rádio sobre o balcão chiava
um programa de músicas antigas. (Aquino, 2002:8)
No filme, entretanto, temos uma significação diferente. A câmera capta
outras pessoas apenas de passagem, na medida que elas aparecem no pequeno
trajeto de Ivan e Giba do portão do bar até a mesa de Anísio. Como elas agem
naturalmente, não temos a mesma impressão de hostilidade que o narrador-
personagem do livro transmite (figura 4).
Quanto ao reconhecimento do bar, temos apenas uma noção parcial.
Como os dois andam praticamente em linha reta e o foco permanece sempre neles
(olhar de Anísio) não podemos conhecer o bar com maiores detalhes como na
descrição feita pelo narrador-personagem no livro (sinuca, balcão, rádio velho, dono
do bar etc).
66
Figura 4: Giba e Ivan são observados apenas por Anísio
Curiosamente, “visualizamos” de forma mais completa no meio escrito
enquanto, no meio visual, ficamos apenas com uma visão parcial do espaço da
narrativa.
No que diz respeito à narrativa romanesca, a sensação de incômodo dos
dois se agrava quando Ivan e Alaor (Giba, no filme) se sentam, o que demonstra a
fragilidade de quem está em território alheio:
Alaor sentou-se e colocou a pasta no chão, sob a mesa. Eu e ele ficamos
de costas para a porta do bar e isso me incomodou. Sempre gostei de ver
o que acontece ao meu redor em bares, ainda mais num daqueles.
(Aquino, 2002:8, grifo nosso)
Como no filme o ponto de vista é o de Anísio, notamos no livro, então,
uma situação diversa, pois nesse caso temos o ponto de vista de Ivan, narrador-
personagem de classe oposta à de Anísio. No filme, portanto, o diretor obriga seu
público que é de classe média à condição de identificação com o olhar do
“outro”, algo que não acontece no livro.
O diretor encontra ainda, na própria estrutura física do bar, um modo de
transmitir o sentimento de estranheza experimentado por Ivan e Giba. Como o bar é
cercado por grades, a escolha de se filmar a chegada dos dois por trás delas (figura
1) aponta para o sentido de “mistério, aprisionamento, exclusão” (Dick, 1990:42).
Este é explorado continuamente pela movimentação da câmera, num plano-
seqüência
14
, acompanhando as grades ao redor do bar até que eles se aproximem
da mesa. Ao sentar, a câmera passa então a um posicionamento mais fixo nos dois
(figura 5) somente por um instante abaixando para mostrar a mão do invasor
14
A própria definição do termo “plano” constitui motivo de polêmica entre cineastas de diferentes escolas.
Numa das acepções admitidas por Aumont, o termo é considerado um substituto aproximativo de “quadro” ou
“enquadramento”. O plano-seqüência seria, então, “um plano bastante longo e articulado para representar o
equivalente de uma seqüência (isto é, de um encadeamento, de uma série, de vários acontecimentos distintos”.
(Aumont, 2003: 231)
67
mantendo as grades ao fundo e, portanto, a idéia do bar como uma prisão até o final
da cena. Como toda a cena (que dura 1min27s) é filmada sem nenhum corte,
mantendo, portanto, sempre a visão do matador, fica reforçada a sugestão inicial de
seu controle da situação que, dessa forma, se revela total.
Completa-se, então, a idéia de território estranho, pertencente ao “outro”,
no qual Ivan e Giba estão e se sentem pouco à vontade, como podemos perceber
através de suas fisionomias, tensas do início ao fim da seqüência (figura 5)
Figura 5: Ivan e Giba contratam Anísio: tensão
Desse modo percebemos que a movimentação da câmera preenche uma
função narrativa importante, ou seja, faz mais do que simplesmente mostrar, ao
estabelecer quem são os visitantes, mas deixando incógnita a identidade do
matador.
Em qualquer das formas (verbal ou visual), percebemos que antes mesmo
da troca de palavras entre os dois e o matador, temos estabelecido um clima de
desconfiança, que irá se confirmar e evoluir à medida que a conversa se desenrolar
e avançarmos em ambas as tramas.
Entretanto, não devemos pensar que as narrativas fílmica e romanesca de
O invasor se organizam em torno de equivalentes. As tramas no livro e no filme são
distintas, apesar de podermos deduzir de ambas uma mesma fábula, pois “o que um
filme, um romance ou uma peça me oferecem é a trama” (Xavier, 2003:66), ou seja,
temos acesso apenas ao “relato tal como ele é dado” (ibid). Desse modo, o que
importa não é a história em si, mas o modo como cada trama nos permite o acesso
aos eventos narrados, o que constitui um jogo no qual informações podem ser
fornecidas, sonegadas ou até mesmo distorcidas. Nesse sentido, podemos
compreender as duas obras no que elas têm de singular.
68
Vemos, então, que, desde o início, a aproximação entre pessoas de
classes sociais distintas se apresenta tensa, incerta, uma condição que conhecemos
bem. Na conversa entre os três, essa dialética de aproximação/repulsão é
expandida de maneira diferenciada no romance e no filme, criando significações
específicas e influenciando a forma das narrativas.
No livro, o primeiro capítulo é dedicado a uma apresentação do local, dos
personagens e das razões que motivam o crime a ser executado (ainda que de
forma parcial, uma vez que não é revelado o negócio ilícito com Rangel), evento que
será de extrema importância para todo o desenrolar da narrativa. Ivan então expõe a
Anísio a situação:
Vamos dizer que estamos tendo problemas na hora de decidir o que é bom
para a empresa... O Estevão não aceita nossos pontos de vista e agora
está ameaçando desfazer a sociedade. Ele quer comprar a nossa parte
para acabar com os problemas. Dei o sangue naquela empresa e, se sair
agora, recebo uma mixaria. (Aquino, 2002:12)
Dessa forma, o leitor tem diante de si um quadro relativamente amplo
de informações que lhe permite conhecer as posições ocupadas pelos principais
personagens na narrativa.
É interessante observar como Marçal Aquino constrói esse primeiro
momento de contato entre as classes. Percebemos, através das falas dos
personagens, que há, inicialmente, uma certa intenção de não constranger o “outro”.
Esse aparente relaxamento no clima tenso acaba criando uma falsa descontração
no relacionamento entre eles, pois, apesar de contratantes e contratado estarem se
vendo pela primeira vez, existe uma certa liberdade no modo como se dirigem uns
aos outros.
Os principais responsáveis por tentar criar esse relaxamento são Anísio e
Alaor, uma vez que falam muito abertamente. Alaor demonstra mesmo pouco
cuidado com as palavras, fator motivado pelo consumo desenfreado de bebida
alcoólica. Aliás, é através da bebida que se estabelece também a primeira oposição
entre as classes na conversa, ou seja, ela é ao mesmo tempo um fator de
aproximação, mas também de diferenciação entre as classes, como podemos ver no
trecho abaixo:
O velho veio até a mesa e perguntou o que iríamos beber. Eu pedi
uma cerveja e quando Alaor falou que queria água, Anísio e o velho riram.
Tem não, o velho disse. Água aqui só de torneira.
69
Meio sem jeito, Alaor apontou o copo com um líquido escuro que
estava à frente de Anísio e perguntou o que era.
Rabo-de-galo, o velho explicou. Aqui a gente chama de traçado.
Pinga com Cinzano.
Pode trazer um para mim, Alaor pediu, e me olhou com cara de quem
tinha feito uma grande coisa. (Aquino, 2002:8)
Alaor estabelece o contraste com Anísio ao pedir água, uma bebida que
nem no bar, a menos que seja da torneira. Ao decidir tomar o rabo-de-galo,
entretanto, tenta uma aproximação com Anísio, pois este é um meio de mostrar que
o estranhamento entre eles pode ser superado, ao mesmo tempo em que simboliza
para Alaor uma medição de forças com o matador.
Essa atitude de Alaor é fonte de preocupação para Ivan, pois este teme
que o parceiro estrague a negociação ou até mesmo os coloque em situação difícil:
Ele terminou sua bebida e fez sinal para o velho, pedindo outra. Alaor, que
tinha feito cara feia nos primeiros goles, agora tomava aquilo feito refresco.
Fiquei preocupado: ele não prestava para beber e, naquele ritmo, em
pouco tempo estaria falando mole e dando risada à toa. (Aquino, 2002:10)
Confirmando as expectativas de Ivan, a bebida começa a afetar Alaor, o
que provoca sua gradativa desinibição, fazendo com que aja de forma imprudente
ao responder a Anísio quando este pergunta se é Estevão quem manda na
construtora: “Também não é assim, Alaor reagiu, tocando o braço de Anísio com
uma intimidade que me assustou. Mas no fim das contas é ele quem decide as
coisas por lá...“ (Aquino, 2002:11).
Finalmente, com Alaor totalmente influenciado pelo álcool, Anísio acaba
tendo que mudar o tom da conversa para ressaltar sua condição de profissional do
crime e a dificuldade de se executar um assassinato:
(...)Esse Estevão anda com guarda-costas, essas coisas ?
Que nada. Ele é tranqüilo igual a nós. Vai ser moleza, você vai ver,
Alaor, de repente pareceu ficar excitado.
Você acha ?, Anísio perguntou, olhando-o de forma direta. Nunca é
moleza. Se fosse, vocês não tinham vindo me procurar.
O sorriso sumiu do rosto de Alaor. (Aquino, 2002:13)
Esse é, portanto, um momento de repulsão, que recoloca os dois em suas
posições iniciais, desfazendo a aproximação desejada por Alaor que, logo adiante,
tentará reiniciá-la.
70
Da parte de Anísio, um certo relaxamento na tensão quando ele ri do
fato de Alaor pedir água, como vimos no trecho em que as bebidas são servidas.
Devemos lembrar, nesse caso, que Anísio está em seu território, o que lhe
bastante segurança.
Além disso, o matador curiosamente cria uma certa pausa reflexiva na
narrativa, extrapolando o limite do estritamente profissional ao revelar sua visão das
diferenças entre as classes, que já iniciariam pelo aspecto físico:
Quando vocês entraram, nem precisei olhar duas vezes... Estava na cara
que eram os dois bacanas que eu estava esperando... vocês têm cara de
gente de bem... uma olhada no povo desse bar:... pele manchada,
cabelo ruim, faltando dente, unha preta. (Aquino, 2002:9)
Anísio parece permitir certa intimidade da parte de Alaor e de certa
forma até incentivá-la – porque assim talvez seja interessante para ele. Sua intenção
desde cedo parece ser a de se aproveitar da fragilidade de Alaor e Giba, que não
dispõem de muitos recursos financeiros como o próprio Ivan revela: “Estevão é o
sócio majoritário, o que tem dinheiro...” (Aquino, 2002:11). Em certas passagens
ficamos com a impressão de que o discurso de Anísio sugere alguma intenção não
declarada e prejudicial ao futuro dos outros dois:
Olha, normalmente eu não aceitaria esse tipo de coisa. Mas eu gostei
de vocês. E, além do mais, foi o Norberto quem indicou e eu confio em
quem ele confia. Vou aceitar isso aqui como um sinal. Espero que vocês
não estejam pensando em me dar um calote.
Que é isso Anísio?, Alaor se mexeu na cadeira. A gente vai pagar
direitinho.
Tenho certeza que vão, Anísio colocou a pasta no colo. Vocês vão
querer mais bebida? (Aquino, 2002:16, grifos nossos)
No trecho acima, o verbo “pagar” parece assumir um duplo sentido, o de
pagar pelo serviço e o de pagar “caro” por se envolverem com alguém como Anísio.
Dessa forma, o matador a impressão de se comportar como um agiota (sem que
os dois percebam sua manobra), esperando lucrar muito mais no futuro através de
possível extorsão.
Ivan, por sua vez, também deixa patente sua visão de classe, que
apenas ao leitor, ao se revelar surpreso com Anísio por duas vezes. Na primeira,
dizendo que a figura do matador não corresponde às suas expectativas ( “Ao
contrário do que eu imaginava, ele não parecia tão ameaçador embora houvesse
71
dureza em seu olhar.” (Aquino, 2002:9); na segunda, confessando achar estranha a
pergunta de Anísio a respeito de como resolver a situação com Estevão (“E o que
vocês querem fazer?” (Aquino, 2002:12), uma vez que imaginava que matadores
fossem “mais diretos” (ibid). Essa visão de Ivan é claramente preconceituosa,
estereotipada, semelhante a que as classes mais abastadas têm das menos
favorecidas.
É interessante observar também que a visão das classes é exposta antes
mesmo que os três entrem na discussão principal, que inicia somente no final da
página 10 (quarta página da história) quando Anísio finalmente interrompe essa
“introdução” (“Bom, acho que vocês querem falar de negócios, não é?”). Esta parece
servir para situar as partes, mostrar a importância das visões e posições para os
destinos dos personagens. Do “estudo” inicial, passa-se então, na conversa, à fase
do embate propriamente dito, executado com diplomacia e estendendo-se ao longo
da negociação para finalmente terminar com a prevalência do discurso
amedrontador de Anísio que, em nenhum momento, perde o domínio da conversa.
Vemos, portanto, que os discursos dos três se entrelaçam para compor
um embate de visões e de atitudes, em que momentos de pressão e de
concessão, de avanços e de recuos, cada um com suas intenções explícitas ou
implícitas, completando essa rede que é a complexa relação de aproximação e
repulsão entre os contratantes e o matador da periferia.
No filme, a conversa entre os três é elaborada de maneira distinta. Aqui a
economia de informações é o que prevalece. Não sabemos quem será assassinado;
aliás, podemos desconfiar de que se trata de um assassinato, pois não temos
indicações concretas disso. Anísio se apresenta aqui, (ao contrário do livro, em que
temos sua descrição física) como uma voz em off, que deixa marcas de sua origem
através das gírias (“E o trampo, taí?”/ “Ah, em uma semana eu desosso essa fita
aí.”
15
). A não-aparição de Anísio ao espectador pode transmitir a idéia de que se está
lidando com o desconhecido, especialmente se levarmos em conta que a atmosfera
do encontro nada tem a ver com a diplomacia na narrativa do romance. Em certo
momento, Anísio desconfia que Ivan é policial. Nessa hora, Gilberto lhe assegura
que Ivan é seu sócio, e recebe a ameaça de Anísio de forma direta (“É, por que se
não for é o seguinte: ninguém sai daqui.”). É interessante observar que a gíria
15
Trampo tem o sentido de “serviço”. Nesse momento, Gilberto entrega um envelope com a quantia acertada e
as informações necessárias sobre Estevão para que Anísio possa assassiná-lo.
Desossar a fita significa realizar o assassinato.
72
(marca da camada social) e a agressividade patente (através da ameaça direta) não
ocorrem no livro. Nele, a linguagem não-marcada e as conjecturas de Anísio
estabelecem uma certa igualdade entre ele e os outros dois, reforçada por sua
atitude de agressividade dosada.
A diferença entre as linguagens marcada e não-marcada de Anísio (no
filme e no romance, respectivamente) se deve ao fato de que, no livro, a fala de
Anísio é mediada pelo narrador. O fato de Ivan nos recontar a história faz com que
os acontecimentos (e também as falas de outros personagens) passem por seu
“filtro”, daí deriva a aproximação da fala de Anísio à sua. Como a fala do narrador
é coloquial, essa aproximação não compromete a verossimilhança da narrativa. No
filme, entretanto, com recursos de som e imagem, tal semelhança iria provavelmente
contrariar a expectativa que o público tem da representação de indivíduos de
classes distintas.
Por sua vez, a atitude diferenciada de Anísio no livro e no filme tem a ver
com o modo como escritor e diretor exploram a tensão, o que está relacionado com
a especificidade de cada forma artística. No romance que permite maior acúmulo
de informações devido à sua extensão a narrativa se desenrola de modo que a
tensão cresce de forma mais gradual, com momentos mais longos de distensão,
maiores pausas reflexivas etc. No filme, entretanto, as necessidades da ação e o
tempo curto da narrativa acabam por ajudar a “concentrar” a tensão, mostrando um
Anísio bem mais agressivo desde o início. Não estamos dizendo, com isso, que
estas eram as únicas opções possíveis para Aquino e Brant. Entretanto, as
condições apontadas provavelmente tiveram importância nas escolhas de ambos.
Outra distinção importante nas duas tramas é a posição de Ivan dentro da
negociação. No romance, Ivan toma a frente, assumindo, portanto, uma posição
ativa. É ele quem estabelece o primeiro contato no bar, apresentando a si e Alaor
(Giba) ao matador: “Quem é quem?, ele perguntou, enquanto apertava a minha
mão./ Eu sou Ivan e ele é o Alaor, eu disse.” (Aquino, 2002:8).
No filme, ao contrário, Ivan tem uma atitude totalmente passiva. Isso
pode ser percebido no momento em que se dirigem à mesa de Anísio. Nesse
instante, Giba chama Ivan e este o segue (figura 6). No momento em que chegam à
mesa, Giba olha novamente para Ivan, chamando-o para se aproximar e depois diz
a ele para se sentar (figura 7). Aqui é Giba quem apresenta os dois. Ivan está tão
73
assustado que não consegue falar e poucas vezes tira os olhos de Anísio (rever
figura 5, p.66). A seqüência mostra, então, que toda a iniciativa fica a cargo de Giba.
Figura 6: Ivan segue Giba
Figura 7: Giba chama Ivan para a mesa
Nesse caso, a diferença no comportamento de Ivan está ligada à visão de
classe, mais estrita no livro (ver item 2.1.2, p. 37). Por essa razão, no romance, Ivan
demora um pouco mais para perceber a situação na qual se envolveu e, dessa
forma, seu enfraquecimento é mais gradual, ocorrendo à medida que as coisas vão
saindo de seu controle. No filme, entretanto, ele se apresenta muito tenso já desde o
início, com o olhar fixo, como que em estado de choque. Essa atitude também se
relaciona com o objetivo de “concentrar” a tensão. Sendo assim, as atitudes de
Anísio e Ivan no filme se complementam para a mesma finalidade.
Vemos, então, que na primeira parte da narrativa um tratamento
diferenciado na realização das duas tramas e que este não apenas envolve
restrições semióticas ou escolhas puramente técnicas, mas também tem relação
com a quantidade, o tipo de informação e o modo como ela é veiculada, para se
atingir certos objetivos ligados ao desenvolvimento da história.
74
3.3 - Recursos narrativos
Veremos agora como os recursos narrativos do cinema ajudam a construir
e a reforçar elementos fundamentais no filme como a idéia de invasão, a tensão, a
angústia e o desconforto, criando a unidade de significado global da obra.
3.3.1 - Questões de cinema
3.3.1.1 - A linguagem do cinema e a montagem
Nesse momento vamos destacar a discussão sobre a linguagem do
cinema, dentro da qual temos as diversas visões sobre o complexo processo de
montagem cinematográfica, que é de grande relevância para o presente trabalho,
uma vez que ocupa parte importante de nossa análise.
Muitos estudiosos e profissionais de cinema entre os quais o roteirista
francês Jean-Claude Carrière (1995:14) são enfáticos ao atribuir à montagem o
status de elemento fundador da linguagem cinematográfica. Antes do
estabelecimento da montagem como recurso básico na confecção de um filme, este
era o produto de uma filmagem única, sem cortes e de curta duração. Nesse
primeiro momento, a linguagem do cinema era bastante tributária da do teatro, daí o
uso da expressão “teatro filmado” para designar o cinema em seus primórdios. Esse
modo de filmar consistia no posicionamento fixo da câmera num ponto de vista
semelhante ao do espectador de teatro, o que exigia a disposição dos elementos do
cenário nos moldes do mise-en-scène teatral, bem como limitava a interpretação e a
movimentação dos atores, que deveriam entrar e sair de cena lateralmente, como
num espetáculo teatral. Essa condição de dependência rapidamente deu motivo à
crítica por parte daqueles que se opunham à nova arte. Por não possuir uma
linguagem específica, o cinema era criticado em termos daquilo que ficava devendo
ao teatro, muito mais antigo, consolidado no gosto do publico e da crítica e, por
conseqüência, considerado uma forma de arte superior.
O cinema, entretanto, não tardou a se libertar dos parâmetros teatrais. O
primeiro passo nesse sentido foi a criação do “espaço verdadeiramente cinemático”
(Xavier, 1984:14). Esse corresponde ao espaço aberto, lugar dos acontecimentos
naturais:
75
No caso deste plano fixo e contínuo corresponder à filmagem de um evento
natural ou acontecimento social em espaços abertos, apesar da postura de
câmera ser a mesma, a ruptura frente ao espaço teatral estaria garantida
pela própria natureza dos elementos focalizados, aptos a produzir a
expansão do espaço para além dos limites do quadro graças ao seu
movimento. (ibid)
Essa transição para o espaço aberto permitiu, em seguida, que a
movimentação da câmera fosse instituída, ampliando o conteúdo visível para o que
estava além do quadro e proporcionando ao cinema a sua definitiva ligação com as
longas narrativas.
A montagem se impôs, então, como uma necessidade, uma vez que um
rolo de filme não é tão grande que possa comportar toda uma longa história. Além
disso, a própria estrutura do modelo narrativo do romance do século XIX, que
influenciou o cinema clássico (e até hoje o influencia), demanda um tratamento
complexo em relação a aspectos como tempo e espaço, o que também determina a
necessidade da montagem.
Com o estabelecimento dessa estreita relação cinema/literatura, o cinema
é definitivamente reconhecido como arte narrativa. A partir de então, cineastas e
teóricos se têm dedicado ao estudo das possibilidades expressivas da montagem,
tendo alguns estudiosos organizado verdadeiros tratados sobre o assunto. Dada a
complexidade do recurso da montagem e, conseqüentemente, da própria linguagem
cinematográfica, era natural que ao longo da história surgissem diferentes opiniões –
às vezes, diametralmente opostas – sobre o papel da montagem. Essas
divergências têm origem em diferentes motivos, dentre os quais figuram as
concepções de arte e os posicionamentos ideológicos, passando por questões de
ordem econômica.
Ao longo da história desenvolveu-se um modelo narrativo chamado de
“decupagem clássica”, cuja maior base de estruturação e divulgação foi o cinema
hollywoodiano. Até hoje em vigor nos Estados Unidos, e com maior ou menor
influência na cinematografia de outros países do Ocidente, esse modelo baseia-se
na tentativa de se atingir um alto grau de realismo na representação dos fatos
narrados, de modo a fazer parecer ao espectador que não são fruto da criação de
uma pessoa (ou de várias), mas simplesmente “estão ali” como qualquer outro
acontecimento do mundo real. Para isso, a montagem é feita de modo que o corte
não seja percebido, nesta empregando-se diversas técnicas para que a
76
descontinuidade visual seja dissolvida em continuidade narrativa (Xavier, 1984:21).
Esse modelo desde muito cedo associado à exploração da imagem de atores e
atrizes famosos foi rapidamente adotado pelos grandes estúdios, que viram nele
uma boa forma de criar narrativas de fácil aceitação e compreensão para o público
médio, desejoso de alguns momentos de entretenimento e sonho.
Na Rússia de 1917, o cineasta e professor de cinema Lev Kuleshov, foi o
primeiro a estudar as razões para o sucesso da maneira de narrar do cinema
hollywoodiano instaurada por Griffith, sendo, portanto, o inaugurador da teoria da
montagem. Seu método empírico (baseado na observação das reações do público
russo) apontava para uma preferência deste pelo cinema de Hollywood em
detrimento do cinema europeu de um modo geral (inclusive do próprio cinema
soviético). O crítico concluiu então que o sucesso do modelo se devia ao ritmo
rápido da montagem, que contrastava com a lentidão da montagem do cinema
europeu. Em 1922, em seu artigo As Americanidades, expôs suas observações a
respeito da linguagem cinematográfica hollywoodiana:
Ao procurar, na medida do possível, diminuir a extensão de cada parte
componente do filme, ou seja, a duração de cada plano obtido através de
um posicionamento de câmera, os americanos descobriram um método
simples de resolver a complexidade das cenas através da filmagem
daquele elemento particular do desenvolvimento sem o qual, em cada
momento determinado, a ação necessária e vital não poderia ocorrer; e a
câmera é colocada em tal perspectiva que o tema de uma determinada
passagem atinge o espectador e é entendido por este da maneira mais
rápida, simples e compreensível. (Kuleshov apud Xavier, 1984:36)
77
Com base nessas observações, Kuleshov acreditou ter encontrado a
essência do cinema, a sua forma natural de significar, o que o levou a privilegiar a
montagem em detrimento do plano isolado. Essa idéia de primazia da montagem lhe
permitiu a formulação de conceitos importantes como efeito Kuleshov
16
e geografia
criativa
17
, os quais nortearam suas investigações nos anos 20.
Todavia, a partir dos anos 30 sua visão mudou profundamente graças à
influência do grande cineasta também soviético Sergei Eisenstein. Kuleshov
percebeu que seu antigo critério do ritmo e da continuidade deixara de fora a
questão ideológica da criação, agora considerada essencial no processo da
montagem, que passava a ser entendido como revelador de uma “intenção de
classe” (Kuleshov apud Xavier, 1984:41).
Sua nova concepção lhe permitiu perceber a montagem do cinema
hollywoodiano como reflexo do capitalismo norte-americano. Este encontraria no
cinema de ação, o correspondente ideal à sua proposta de motivar as pessoas a
usarem sua energia na construção de projetos individuais, afastando-as, dessa
maneira, de qualquer idéia de coletividade. Para ele, a figura que melhor
representava essa ideologia era a do detetive, sempre enérgico, competitivo e
pronto para a ação. Em 1935, assim o crítico revelou seu novo posicionamento:
A arte americana tinha inevitavelmente de se tornar uma arte de consolo,
uma arte a que faltava realidade, uma arte que afastava as massas da luta
de classes, da consciência de seus próprios interesses de classe; e, por
outro lado, tinha que ser uma arte que dirigia a energia para a
competitividade, a iniciativa, alimentadas com moralidade burguesa e com
psicologia burguesa. (Kuleshov apud Xavier, ibid)
16
O Efeito Kuleshov baseia-se na idéia de que um filme é uma construção “tijolo por tijolo”, na qual o fragmento
perde a força de sua individualidade para a montagem, a qual deverá ser responsável por criar um efeito de
realidade. (Xavier, 1984:38)
17
“A noção de geografia criativa corresponde... ao processo pelo qual a montagem confere um efeito de
contigüidade espacial a imagens obtidas em espaços completamente distantes e dá aparência de realidade a um
todo irreal.” (Xavier, 1984:37)
78
Contudo apesar da influência decisiva de Eisenstein na reformulação do
pensamento de Kuleshov não podemos dizer que este passou a negar totalmente
o naturalismo
18
da representação, como fez o primeiro. Apenas o naturalismo se
prestava agora a uma representação profunda da realidade social, ao contrário de
antes, em que apenas o caráter externo dos fatos era apresentado. Esse novo
posicionamento mostra um equilíbrio de idéias, pois, não descartando a visão
anterior sobre montagem, englobou uma visão social indispensável à teorização de
um cinema mais crítico.
O cineasta soviético Vsevolod Pudovkin, principal discípulo de Kuleshov,
da mesma forma que o mestre, reconheceu a montagem como elemento fundador
da linguagem cinematográfica. Todavia, a sensação de realidade para Pudovkin não
brotava da precisão dos detalhes da representação, mas exclusivamente do sentido
produzido por ela. Também de forma peculiar, seus filmes apresentam um processo
de tomada de consciência por parte do personagem, o que aponta para uma
presença mais marcante de uma vertente psicológica. Dessa forma, a montagem se
prestava a organizar visualmente essa mudança no personagem, tendo o
posicionamento da câmera a função de olhar privilegiado na construção desse
processo, guiando a percepção do espectador.
O húngaro Bela Balazs, de modo semelhante a Pudovkin, acreditava que
o bom diretor devia manipular a compreensão do espectador, não deixando que este
olhasse para uma cena de forma aleatória. Contudo, enquanto Pudovkin privilegiava
a idéia do “tema” como algo não específico a nenhuma forma de arte em especial,
Balazs acreditava que a forma de visualidade específica da arte cinematográfica
seria responsável por influenciar a nossa sensibilidade de maneira histórica e
cultural.
Tratando ainda da questão da representação “natural” dos eventos de um
filme, o extenso trabalho do teórico francês André Bazin aponta para uma visão
diferente sobre o fenômeno da montagem. Segundo ele, o cinema teria uma
vocação “ontológica” de representar acontecimentos respeitando sua unidade
factual, ou seja, não desmembrando a realidade para recriá-la de outra maneira,
pois isso trairia a verdade dos fatos. Entretanto, Bazin não proibia a manipulação
dos recursos técnicos para reforço da ilusão de realidade contanto que fosse
18
O termo naturalismo aqui não tem o sentido de vinculação específica à escola literária naturalista, mas sim de
tentativa de representação que visa a esconder sua natureza de linguagem manipulada.
79
respeitada a integridade factual dos acontecimentos. Nesse sentido, desenvolveu o
conceito de montagem proibida
19
, que exigia a presença simultânea de dois ou mais
fatores (personagens, por exemplo) quando destes dependesse o “essencial” (o
sentido) do acontecimento. Dessa forma, a montagem não seria algo totalmente
proibido, mas deveria atender a exigências que restringissem seu uso.
Bazin criticava os adeptos da decupagem clássica exatamente por
tentarem impor uma certa leitura ao espectador. Para ele, o uso excessivo da
montagem impediria que os eventos apresentassem suas ambigüidades naturais,
como no mundo real. Essas ambigüidades formariam o espectro de possibilidades
interpretativas às quais o espectador teria direito. Além disso, Bazin acreditava que
esse tipo de montagem logo perdia seu efeito uma vez que o espectador
rapidamente se acostumaria com ela, passando a perceber o corte, o que causaria
uma quebra do ilusionismo da continuidade. Entretanto, tal visão deriva da idéia de
uma percepção natural contínua que, segundo Xavier (1984:72) é um equívoco, uma
vez que a impressão de realidade não é um processo linear que depende da
captação de uma imagem “fiel” dos fatos, mas sim da adesão psicológica do
espectador.
No extremo oposto ao de Bazin, temos o cineasta soviético Sergei
Eisenstein. Com formação teatral, Eisenstein incomodava-se com as restrições da
continuidade temporal e da limitação espacial da representação cênica, o que o
levou para o caminho do cinema, no qual julgava ter maior possibilidade de realizar
suas idéias sobre a criação artística. Adepto do Marxismo e grande entusiasta da
Revolução Bolchevique, não escondia o cunho político que sua arte possuía e suas
concepções sobre a montagem cinematográfica exemplificam esse posicionamento.
Para ele, ao contrário de Bazin, a montagem devia ser utilizada para
transformar a realidade em discurso articulado sem o compromisso de tentar
representar os eventos em sua continuidade. O que importava para Eisenstein eram
as associações de conteúdo e as oposições entre os espaços e as formas, pois,
para ele, a arte significava conflito e, por essa razão, o cinema devia representar as
contradições próprias da vida e do ser humano sem amenizá-las como no cinema
19
André Bazin conceitua a montagem proibida com um exemplo retirado do filme O balão vermelho (Ballon
rouge) de Albert Lamorisse. Em uma das seqüências, um balão vermelho segue um menino pela rua como se
fosse seu cachorro de estimação. A fim de tornar a cena verossímil, Lamorisse a filmou em um plano com o
auxílio de um ventilador que soprava o balão. Para Bazin, essa solução do diretor (evitando o corte) foi muito
melhor do que uma montagem, que iria criar um balão existente nas telas, enquanto, na cena contínua, ele
remeteria o espectador à realidade. (Bazin, 1991:57)
80
hollywoodiano. Nesse sentido, sua montagem estabeleceu uma construção diferente
daquela do cinema clássico, com associações estáticas que congelam o tempo,
exigindo uma intensa participação reflexiva do espectador que futuramente deveria
se transformar em ação política. Por não querer envolver o espectador num mundo
de sonhos, mas trazê-lo à realidade dura da vida do cidadão comum, sua montagem
não buscava esconder o corte e, portanto, sua narrativa apresentava uma
temporalidade e uma espacialização bastante específicas.
Para Eisenstein, o cinema soviético do início da década de 40 havia
superado a montagem paralela de Griffith, a qual considerava um conceito apenas
cinematográfico, técnico, que visava à “intensificação recíproca do entretenimento,
tensão e tempos” (Eisenstein, 1948, 2002a: 219), enquanto para os soviéticos a
montagem havia se tornado um meio de atingir “uma unidade de ordem superior”
(ibid), que relacionava o todo e as partes numa unidade orgânica, revelando, dessa
maneira, uma concepção artística e uma ideologia singular.
Dentro das conceituações de montagem, a de sentido “ampliado” de
Jacques Aumont buscou aliar as duas formas de pensamento: “A montagem é o
princípio que rege a organização de elementos fílmicos visuais e sonoros, ou de
agrupamentos de tais elementos, justapondo-os, encadeando-os e/ou organizando
sua duração.” (Aumont, 1995: 62)
Essa definição do termo apresenta o fenômeno além da sua acepção
“restrita”, a qual relaciona a montagem apenas com o trabalho técnico e artístico de
ligação entre os planos. Aumont juntou conceitos distintos (e até antagônicos) de
montagem a fim de tornar sua definição a mais abrangente possível. Por um lado,
inclui o conceito de justaposição de Eisenstein – que se baseia na junção entre duas
idéias que produzem uma terceira, mais completa e, por outro, apresenta o
encadeamento (dos planos) como a forma de organização da narrativa. Esse
segundo caso está na base das teorias de montagem de Kuleshov e Pudovkin,
sendo a forma adotada pelo cinema narrativo clássico.
Foi exatamente esse segundo modo de compreender a montagem que
Eisenstein condenou em seu trabalho como crítico de cinema. Segundo ele, havia
um equívoco em acreditar que o comprimento das partes (planos) e sua conexão,
por si só, seriam responsáveis por criar o ritmo fílmico. Devemos observar,
entretanto, que Aumont não comete um erro ao juntar as diferentes ideologias em
seu conceito de montagem, que demonstra consciência de que o ritmo é uma
81
composição complexa, em que aspectos visuais (“ritmos plásticos”, como os de luz e
cor) e sonoros (“ritmos temporais”, como o da música) se unem para dar forma à
representação fílmica. Essa conceituação revela que Aumont assim como
Eisenstein percebe a importância da construção interna do plano como fator
responsável pelo significado de uma obra fílmica. O arranjo cênico, a atuação dos
atores e o movimento de câmera devem ser analisados nessa perspectiva, uma vez
que eles também representam a forma fílmica que, aliás, é inseparável de seu
conteúdo. Portanto, o ritmo da narrativa não pode ser visto como apenas aquele
criado entre os planos; o plano em si contém um ritmo interno, que se soma ao
ritmo entre os planos e o ritmo interseqüencial, formando o efeito de conjunto do
filme.
Vemos, portanto, que a montagem pode ser compreendida de diversas
maneiras e que, embora seja considerada por vários estudiosos como elemento
fundador da linguagem cinematográfica, não trabalha isolada, uma vez que o plano
isolado também pode admitir uma construção interna que carregue significados bem
definidos, sendo, portanto, o trabalho conjunto entre as partes e o todo, o fator
primordial para a consecução do sentido total de um filme.
3.3.1.2 - A música
A presença da música no cinema remonta aos primórdios da sétima arte.
O cinema que conhecemos como mudo, no qual as falas dos personagens e outras
informações necessárias eram veiculadas por legendas, sempre recorreu ao
acompanhamento musical. No início, a música tinha mera função ilustrativa e
também servia para abafar o ruído produzido pelos projetores, entretanto, esse
recurso foi sendo ampliado à medida que os diretores descobriam novas maneiras
de utilizá-lo em prol do enriquecimento da narrativa de seus filmes.
Nas salas mais simples, em geral contratava-se um pianista; nas mais
requintadas, podia haver a presença de uma orquestra inteira durante a projeção.
Qualquer que fosse a sala, entretanto, o objetivo principal do uso da música logo
passou a ser o mesmo, ou seja, transmitir os sentimentos e idéias que o diretor
acreditava serem importantes para elevar o valor de sua arte e, assim, poder
arrebatar o público.
82
David Griffith, um dos pioneiros do cinema, percebeu imediatamente que a
relação entre a música e o cinema tinha tudo para se tornar um casamento perfeito.
Foi um dos primeiros grandes diretores a solicitar com freqüência o serviço de
arranjadores musicais em seus filmes, como em O Nascimento de Uma Nação (The
Birth of a Nation), já em 1915.
Com o tempo, as pesquisas por novas tecnologias foram sendo
incorporadas pelas companhias cinematográficas e, assim, os diretores passaram a
dispor de material técnico que os auxiliava (e os impelia) na renovação constante
das formas de expressão em seus filmes.
Em 1927, patrocinado pelos irmãos Warner, surgiu o Vitaphone, um
aparelho que incluía um projetor e um toca-discos, que funcionava em sincronia com
o filme. Foi o primeiro passo para a transição do cinema mudo para o sonoro. É bem
verdade que houve resistência por parte de alguns que acreditavam que o cinema
deveria permanecer mudo, entretanto a inclusão dos diálogos, dos ruídos e da
música vinha para ficar e o Vitaphone, com toda a sua precariedade (baixa
qualidade sonora e possibilidade de arranhar o disco, prejudicando o sincronismo
entre imagem e som) tornou-se o marco para as novas tecnologias que rapidamente
o sucederam.
Com o avanço tecnológico e a criação do sistema Movietone, a impressão
de som passou a ser feita na própria película, acabando com os problemas do
chiado e da falha no sincronismo. Estava então, assegurada a conquista do som
proporcionada pelo antigo Vitaphone. A partir de então, o cinema seguiu sua
gradativa evolução até encontrar melhores maneiras de utilizar o som de forma
adequada à sua linguagem.
Nesse sentido, a música passou a assumir uma dimensão diferente e os
músicos tiveram que repensar suas formas de compor. A necessidade do pianista e
da orquestra durante as projeções foi superada e as composições originais foram
aos poucos ocupando maior espaços nas trilhas sonoras dos filmes.
Durante algum tempo, no início do cinema sonoro, a música clássica foi o
acompanhamento tido como natural para os filmes. Os primeiros grandes
compositores de Hollywood vieram da Europa, trazendo sua bagagem da música
erudita. Os anos 30 e 40 viram a ascensão de grandes nomes, entre eles os
austríacos Maximilian Steiner e Erich Korngold, o húngaro Miklos Rozsa, o alemão
Franz Waxman, o russo Dimitri Tiomkin, o polonês Bronislau Kaper, entre outros.
83
Também com formação erudita, surgiram nesta época os americanos Bernard
Herrmann famoso pela trilha inovadora de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) –,
Victor Young, Hugo Friedhofer e David Raksin, alguns destes tendo inclusive
estudado na Europa.
Dentre todos esses, destacou-se Steiner pelo seu pioneirismo e grande
capacidade artística. Criador de trilhas inesquecíveis como a de King Kong (1933),
seu primeiro trabalho de grande repercussão, e seu arranjo para As Time Goes By
de Herman Hupfeld, para o filme Casablanca (1942).
Na Antiga União Soviética, ocorreu a parceria entre o diretor Sergei
Eisenstein e o maestro Sergei Prokofiev, que compôs a grandiosa trilha para
Aleksander Nevski (1938).
Aqui no Brasil, o maestro Heitor Villa-Lobos foi convidado a compor para o
filme O Descobrimento do Brasil de Humberto Mauro (1937), cuja produção fora
solicitada por Getúlio Vargas com propósitos ufanistas. Outros compositores de
formação erudita como Radamés Gnatalli e Guerra-Peixe também compuseram para
o cinema brasileiro em seus primórdios. Essas participações, entretanto, não eram
muito freqüentes uma vez que a maior parte da produção cinematográfica brasileira
da época era composta de comédias e musicais populares, o que acarretava o
predomínio das canções em detrimento da música instrumental original.
Nos EUA, a partir do final da década 40, a trilha passou a ser composta
prioritariamente em função do gênero. Os filmes noir
20
, os suspenses e os romances
passaram a ser musicados com formas bem peculiares. Essa americanização das
trilhas ocorreu com maior força a partir dos anos 50, devido à perda da inocência
causada pela Segunda Guerra Mundial. Além disso, o cinema começou a enfrentar a
concorrência da televisão. Por isso, investiu em novas tecnologias e em temas ainda
proibidos de serem levados aos lares americanos, como virgindade, drogas e
delinqüência juvenil.
Nos anos 60 e 70, as tendências musicais nos filmes se diversificaram. A
música tradicional orquestral permaneceu, mas agora dividia espaço com o rock´n
20
O noir foi um tipo de filme adaptado de romances policiais nas décadas de 30 e 40 nos EUA. Em geral,
predominava a atmosfera sombria e misteriosa na qual um crime devia ser investigado por um detetive. Esse
estilo reflete uma visão desiludida da sociedade norte-americana do período da Depressão (pós 29). Humphrey
Bogart foi um dos atores mais famosos em filmes desse gênero. (Matos, 2003)
84
´roll, a música popular, o jazz, as composições atonais
21
e dodecafônicas
22
e a
música eletrônica vanguardista, esta com especial referência para a trilha de Walter
Carlos para Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971) de Stanley Kubrick.
Nos anos 60 no Brasil, o Cinema Novo, como estética inovadora que foi,
também propôs uma nova forma de trabalhar com a música. Misturas até então não
executadas de músicas existentes com mosaicos sonoros passaram a colaborar
na significação dos filmes. Em Terra em Transe (1967), por exemplo, o diretor
Glauber Rocha rompeu com padrões estéticos tradicionais ao unir Villa-Lobos e
percussão em sua obra. Nos anos 70, o cinema marginal continuou a
experimentação proposta pelo Cinema Novo quando, devido a fatores como a idéia
de cinema autoral e a problemas como limitação tecnológica e falta de recursos
financeiros, muitos diretores passaram a se responsabilizar pela música de seus
filmes.
Nos anos 70 e 80 quase toda a vertente pop da música foi explorada, até
que, nos 80, filmes como Amadeus (1986) e E.T. O Extraterrestre (E.T. The Extra-
Terrestrial, 1982) a partitura orquestral retornou à narrativa do cinema, concomitante
à música pop e à canção-tema do filme, fato verificado também em diversas outras
produções nos EUA.
A partir do final dos anos 80 e início dos anos 90, percebemos uma
convivência natural entre a música sinfônica e todas as novas influências musicais.
Alguns compositores famosos de hoje começaram a compor para cinema nessa
época e tem sua origem musical no pop e no rock como Danny Elfman, que compôs
as trilhas de Batman (1989) e Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands,
1990). Elfman foi vocalista e compositor da banda pop Oingo Boingo, grande
sucesso nos anos 80.
Em nosso cinema, atualmente temos a atuação importante, dentre outros,
de músicos como André Abujamra, que compôs para Bicho de Sete Cabeças (2001)
e Carandiru (2003), David Tygel, premiado no Festival de Gramado por composições
para O Homem da Capa Preta (1986) e Quem Matou Pixote? (1996), e Leo Henkin,
que desenvolve parceria com o diretor Jorge Furtado, tendo composto para os filmes
Houve Uma Vez Dois Verões (2003) e O Homem que Copiava (2003).
21
Música atonal é toda aquela que não segue a escala musical de sete sons específica do estilo tonal, não
tendo, portanto, uma tonalidade preponderante. (Wikipédia, 2007)
22
O dodecafonismo é uma técnica de composição criada na década de 1920 pelo compositor austríaco Arnold
Schönberg. Nela “as 12 notas da escala cromática são tratadas como equivalentes, ou seja, sujeitas a uma
relação ordenada e não hierárquica.” (Wikipédia, 2007)
85
Com base nesse breve histórico, vemos que a música do cinema
percorreu o caminho da busca por sua especificidade. Isso tem demandado dos
compositores o conhecimento cada vez mais especializado das formas e das
exigências desse tipo de composição, o que fez alguns desses profissionais
passarem a se dedicar exclusivamente ao trabalho voltado para o cinema.
Como se vê, a música está presente no cinema desde seus primórdios.
Essa importante presença, como não poderia deixar de ser, tem suscitado
discussões sobre o seu papel dentro da linguagem cinematográfica, cujo grau de
complexidade fez surgir posições divergentes sobre a utilização desse recurso.
O cinema logo percebeu que as imagens ganhariam uma nova dimensão
e se tornariam mais atraentes ao público se a elas fosse somado o
acompanhamento musical.
Para Tony Berchmans, o objetivo da música é ‘tocar’ as pessoas”
(Berchmans, 2006:20). Essa é uma idéia que envolve um alto grau de complexidade,
uma vez que estamos lidando com a própria variedade dos sentimentos humanos,
cuja riqueza pode ser ativada através dos diversos tipos de composições. Nesse
sentido, o autor define essa expressão em sentido amplo:
Tocar pode ser emocionar, arrancar lágrimas, causar tensão, desconforto,
incomodar, narrar um acontecimento, uma morte, uma perseguição, uma
piada, um diálogo, um alívio, uma festa, descrever um movimento, criar um
clima, acelerar uma situação, acalmá-la, enfim, de um jeito ou de outro, a
boa composição não existe em vão. Ela está por algum motivo, e ainda
que não a ouçamos, podemos senti-la. (ibid)
Apesar de haver um certo consenso entre diretores de cinema e público
acerca da importância da música num filme, seu uso atinge níveis de complexidade
que demandam um estudo cuidadoso para cada situação. Sabemos hoje, por
exemplo, que o momento de usá-la (e mesmo o de não usá-la) pode influenciar
decisivamente no resultado de um filme.
Para Rubens Ewald Filho, apesar do consenso sobre a relevância da
música nos filmes, discordância entre os diretores a respeito do modo como esse
recurso deve ser utilizado quando se trata do problema da percepção do público:
Segundo alguns críticos a melhor trilha musical seria aquela que terminado
o filme você nem percebesse que houve música. Mas é um exagero. E hoje
em dia, nem sempre verdade. A boa trilha é aquela que passa o clima do
86
filme, muitas vezes também expresso numa canção. (Ewald Filho apud
Berchmans, 2006:12)
A questão do uso desse recurso tem sido motivo de grande preocupação
para diversos profissionais de cinema, uma vez que não o compositor como o
diretor, o roteirista e outras pessoas também podem ter um envolvimento maior ou
menor ao decidir sobre a adequação da música a um filme.
O próprio Alfred Hitchcock, um dos mais renomados diretores do cinema
mundial, viu-se em dúvida com relação ao uso da música durante a produção de Um
Barco e Nove Destinos (Lifeboat, 1944). Para ele, não deveria haver música, pois
não seria natural sua presença numa cena em alto-mar. O compositor americano
David Raksin, então, de forma espirituosa, alegou que também não era comum a
presença de câmera em uma situação como aquela. Essa curiosa passagem
demonstra que o problema da naturalidade também pode se tornar relevante para a
escolha ou não do recurso da música.
Não existe um método totalmente seguro de garantir a eficácia do uso
desse recurso, pois as questões relativas ao seu emprego acompanham a
renovação da própria linguagem do cinema, impedindo que caminhos mais precisos
sejam traçados com a mesma velocidade, o que ao mesmo tempo pode ser bastante
produtivo por forçar os compositores a buscar a constante superação de seus
trabalhos.
Na verdade, esse problema deriva da própria complexidade do tema em
questão, pois se trata da junção de duas artes que, apesar de estarem
constantemente em trabalho conjunto, têm peculiaridades e caminhos bastante
distintos, o que lhes assegura a autonomia estética. A partir das evoluções
individuais do cinema e da música, as possibilidades associativas aumentam ainda
mais, pois, ao consagrado uso de certas formas, aliam-se novas tecnologias que
constantemente abrem caminho para a experimentação.
87
3.3.2 - A construção do filme O invasor
3.3.2.1 - Música e montagem em O invasor
Neste momento estudaremos como a música e a montagem se articulam
em O invasor, a fim de traduzir a aproximação/repulsão entre os personagens e
determinar a criação de seus estados psicológicos, ajudando, desta forma, a compor
a linha central da narrativa.
A música em O invasor é um recurso que equivale em importância aos
demais. Amplamente utilizada no filme, visa estabelecer e reforçar a atmosfera de
cada cena a fim de aumentar o seu poder de convencimento ao tentar forçar a
adesão psicológica do espectador.
A trilha sonora
23
do filme é composta tanto por composições antigas como
por faixas feitas especialmente para o filme. Nesse grupo de composições, estão
23
O termo trilha sonora “tecnicamente representa todo o conjunto sonoro de um filme incluindo, além da música,
os efeitos sonoros e os diálogos. Na prática, é comum e amplamente aceito o sentido musical do termo...”
(Berchmans, 2006:19). É neste último sentido que o empregamos aqui.
88
presentes estilos variados como o rap, a música eletrônica e até estilos híbridos
como o rap-metal, mistura de rap com rock pesado.
Verificando a narrativa como um todo, a música predominante é o rap.
Esta escolha não é fortuita. O rap é a música que representa a periferia e,
conseqüentemente, o matador Anísio. Sua importância é tão grande no filme que o
rapper Sabotage, além de assumir um papel no filme, tornou-se uma espécie de
consultor para assuntos da periferia. Ele ajudou o diretor e principalmente o ator
Paulo Miklos (Anísio) na composição do personagem e da atmosfera que envolve
aquela realidade, trazendo não o rap, mas todo o gestual e as gírias, que
representam não só um estilo, mas um modo de vida.
Em O invasor, a duração da música é explorada de forma não-
convencional. Na maioria dos filmes, ela é utilizada para pontuar a narrativa. Esses
pontos são chamados na linguagem técnica de cues e correspondem à duração de
um trecho musical desde o momento de sua entrada até o de sua saída. Um cue
pode ter duração variável, mas, em geral, não dura mais que alguns segundos, pois
ele introduz um tema ou um personagem e depois deixa que a própria ação, com
seus diálogos, se encarregue de fazer o resto. Evidentemente, nada impede que um
cue entre no meio da ação (às vezes, isso é recomendável e até mesmo
necessário), mas não é comum que ele se estenda demais.
É exatamente esse o caso em O invasor. Os cues são extremamente
longos, ocupando, por vezes, uma ou mais de uma cena, ou seja, a música passa a
durar mais do que certas imagens, o que representa uma inversão que indica a
importância atribuída a ela. Em alguns casos, a duração da música chega a ser tão
longa que temos a impressão de estarmos ouvindo uma faixa inteira do CD da trilha
sonora do filme. Essa presença da música de longa duração se junta em algumas
cenas à montagem fragmentada e acelerada, com planos curtos, formando um
excesso visual que traz consigo forte carga emocional nas imagens apresentadas,
causando um estresse perceptivo na medida em que o olho capta imagens que mal
podem ser processadas pelo cérebro e já são rapidamente substituídas.
Essa é claramente uma influência da Estética Videoclipe. Essa linguagem
contemporânea se consolidou a partir dos anos 80, com o surgimento nos Estados
Unidos da MTV (Music Television), canal de televisão por assinatura lançado em
1981, que passou a massificar a cultura e a música pop, influenciando o modo de
vida, os gostos e os anseios das gerações seguintes.
89
Essa estética, entretanto, evoluiu de experimentações do próprio cinema
para depois “devolvê-las” de forma ainda mais fragmentada. O efeito de montagem
acelerada não é propriamente uma descoberta do cinema mais recente, como afirma
Jean-Claude Carrière. Segundo ele, o uso da aceleração de imagens existia de
forma experimental desde a década de 20. Entretanto, com o advento do vídeo, a
junção desse efeito de montagem com a música fez o cinema entrar em uma nova
fase. A respeito dessa nova linguagem, o roteirista francês nos escreve uma
passagem esclarecedora:
(...) aliados às formas mais extremas de música pop, esses mesmos efeitos
de montagem ocuparam um lugar central. O volume de som desses clips
permanece razoavelmente constante (em outras palavras, extremamente
alto), não importa o quão afastados estejamos dos músicos e dos cantores,
mas as imagens se sucedem, umas às outras, numa série de sacolejos
inesperados, em mudanças espasmódicas de formato e de ângulo. É como
se tentassem fragmentar e dispersar nossas faculdades de percepção, com
a intenção manifesta de eliminar a consciência e talvez até mesmo a visão.
(Carrière, 1995: 23-24)
Para Juliana Zucolotto, a velocidade e a multiplicidade de imagens dessa
estética está diretamente ligada ao ritmo próprio das culturas urbanas
contemporâneas, nas quais a linguagem visual passou a ser uma forma cosmopolita
pela “necessidade de uma representação de fácil e rápida assimilação com alto nível
de abrangência e grande poder de sedução pelos estímulos que produz” (Zucolotto
apud Wikipédia, 2007). Assim sendo, esse modo de produção está intimamente
ligado à ideologia da sociedade de consumo e traz conseqüências para o fenômeno
da globalização dos produtos culturais, entre eles, o cinema.
Em O invasor, a narrativa inicia, contrariamente ao que se tem em boa
parte do filme, com uma certa economia do uso da música. Essa maneira de usar o
recurso tem relação com o gradativo crescimento da tensão e da complexidade das
relações entre os personagens ao longo da história.
Na cena do bar, na qual Ivan e Giba contratam o matador Anísio, ouvimos
apenas o som ambiente (vozes, barulho de veículos, som de garrafas etc.), no qual
prevalece o rápido diálogo entre Giba e Anísio. Em nenhum momento, música
nesta cena. Nesse caso, seu uso poderia criar uma antecipação exagerada e talvez
reveladora do matador, o que poderia contradizer a própria intenção de gerar um
clima de suspense em relação à sua figura e ao desenrolar da narrativa. Essa
intenção fica manifesta pelo fato de o espectador ter acesso a uma informação
90
limitada sobre o assunto da conversa e pela opção de se mostrar do matador
apenas a mão direita enquanto ouvimos sua voz. Dessa forma, a economia de
imagens e a ausência da música trabalham em conjunto com o objetivo de negar ao
público o que ele só deve compreender no momento considerado oportuno.
Duas cenas à frente, já dentro da boate de Giba, o ritmo da “balada” ajuda
a criar o clima de agitação que contrasta com o visível desânimo de Ivan (figura 8). A
garota de programa Alessandra o leva para o quarto e, no momento em que fazem
sexo, o volume da música aumenta apesar de estarem longe do salão, que é o local
de onde vem o som. Nesse momento, ouvimos a batida da música como se a fonte
sonora estivesse dentro do quarto, especialmente para acompanhar o “ritmo” dos
corpos de Ivan e Alessandra durante o ato sexual. Por fim, o corte brusco para a
cena seguinte, na qual Ivan entra em seu quarto, interrompe também a música.
Figura 8: “Balada” e desânimo de Ivan: contraste
A cena de sexo termina depois de decorridos pouco mais de quatro
minutos de filme. Até então, a música da boate é a única a participar da narrativa,
dando o ritmo da vida noturna da classe média alta. É o ritmo da celebração de
Giba, que acredita estar na iminência de uma “conquista” tranqüila, em contraste
com a preocupação de Ivan, que começa a ficar perturbado por sua escolha de
participar no plano de assassinato de Estevão.
Após esse momento, a música cede grande espaço para as falas e
diálogos e a trama vai se tornando mais complexa, quando se agrava a pressão
psicológica sobre Ivan. Ele e Estevão têm uma conversa tensa sobre os destinos da
empresa enquanto Rangel o pressiona pelo telefone para enviar os projetos da
concorrência ilícita. A morte iminente de Estevão também começa a atormentá-lo e
então procura Giba para dizer que não suporta mais a idéia do plano de assassinato,
momento em que Giba lhe diz que não há como retroceder.
Este intervalo sem música dura cerca de dez minutos de projeção.
Quando a música retorna, o ritmo é outro. A animação da “balada” é substituída
91
por um rock meio psicodélico que acompanha o ritmo lento e inseguro com que Ivan
se movimenta dentro de uma danceteria, reforçando o cansaço e o tom depressivo
que o dominam. Os cortes aqui quebram a naturalidade de seus movimentos até
que se deita numa almofada, enquanto a câmera mantém o primeiro plano
24
no seu
olhar vago na direção das luzes do teto da danceteria, até que a transição para a
outra cena corte a música.
Figura 9: O olhar distante de Ivan
Até esse momento do filme, a música é instrumental e trabalha
prioritariamente como recurso diegético
25
, inserida na própria narrativa, ou seja, “cuja
origem pode ser identificada por personagens do filme” (Berchmans, 2006:165).
Vemos, então, que até essa parte, a música tem grande importância na
caracterização do estado físico e mental de Ivan, ao sugerir a acentuação do seu
desgaste emocional.
Após novo intervalo de cerca de sete minutos, a música retorna à
narrativa. Dessa vez, entretanto, o som é agressivo, ensurdecedor e visa a perturbar
o espectador. A canção vem de fonte externa (extra-diegética) e representa uma
virada da narrativa, o momento em que ela se torna invasiva e determina o fim de
qualquer possibilidade de sossego para Ivan e Giba. Nesse instante, o frágil
equilíbrio se desfaz e a tensão finalmente explode através dos gritos na canção.
Nessa cena, Giba é acordado no meio da madrugada pelo telefonema de
Ivan. O rock pesado Ninguém presta do grupo Tolerância Zero é enfático e forma
para o espectador um par com o telefonema que desperta Giba: Bem-vindo ao
pesadelo da realidade...”. Uma vez que a música entra no final desse plano, ela
ajuda a antecipar a atmosfera de horror da próxima cena, na qual vemos o local
onde os corpos de Estevão e sua mulher (Silvana) são encontrados. Toda a
seqüência é ocupada pela música (mesmo nos momentos em que os personagens
24
Primeiro plano (ou close-up) é o plano no qual “a câmera, próxima da figura humana, apresenta apenas um
rosto ou outro detalhe qualquer que ocupa quase a totalidade da tela.” (Xavier, 1984:19)
25
“O termo diegese é próximo, mas não sinônimo de história (conteúdo narrativo), Ele tem um alcance mais
amplo, pois designa a história e seus circuitos, a história e o universo fictício que pressupõe.” (Vanoye, 2005:40)
92
falam), assim, ficamos com dois áudios simultâneos. A música continua na próxima
seqüência a do enterro de Estevão e Silvana e termina na quarta seqüência,
quando Anísio “invade” o escritório de Ivan para receber o pagamento do crime. Em
toda a seqüência de cenas a relação imagem/música é veloz e desorientadora
devido à movimentação da câmera, à maneira da linguagem do videoclipe:
a) Chegada de Ivan e Giba ao local onde Estevão e Silvana são encontrados mortos “Bem-
vindo ao pesadelo da realidade. Você não consegue fugir da estupidez. Algo grita em sua
mente...”
b) Ivan e Giba consolam Dr.Araújo (pai de Estevão) - solo pesado de guitarra
c) Velório de Estevão e Silvana - solo pesado de guitarra e gritos
d) Chegada de Anísio à construtora “Eu, você, a vadia, ninguém presta.”
(diversas vezes)...Ninguém prestaaaaaaa!”
Figura 10: Seqüência com música (velório de Estevão)
93
Temos assim, a música assumindo uma função narrativa explícita,
revelando-se, para usar o termo do compositor David Raksin, “utilitária” (apud
Berchmans), visão que encontra respaldo em meio à boa parte dos que compõem
para o cinema:
Parece haver um consenso entre a maioria dos compositores no sentido de
que a música deve servir ao filme. Ele deve auxiliar a narrativa, seus
personagens, seu ritmo, suas texturas, sua linguagem, seus requisitos
dramáticos. (Berchmans, 2006:20)
Como vimos, a música efetivamente “serve” aos propósitos narrativos,
mas não como mero pano de fundo. Ela literalmente conduz a narrativa e auxilia a
montagem na ligação entre os planos e as cenas.
Agora, após o assassinato de Estevão e a inesperada morte de Silvana
(esta não estava incluída no plano), aumenta a pressão sobre Ivan. A esses fatores
soma-se outra surpresa: a presença de Anísio em seu escritório. O matador chega à
construtora para começar a por em prática seu plano de ascensão. Toda essa
conjunção de fatores reflete-se novamente na música, com mais uma visita de Ivan
à danceteria, o lugar onde busca escapar à realidade que o está cercando
gradativamente.
Um olhar atento a essa cena nos permite perceber um detalhe técnico
importante. Apesar de, na montagem da narrativa, a cena corresponder a uma
segunda visita de Ivan à danceteria, percebemos que os músicos são os mesmos,
inclusive usam as mesmas roupas, o que revela o fato de as duas visitas terem sido
gravadas numa mesma ocasião, o que, aliás, é absolutamente corriqueiro no
cinema, devido à redução dos custos de filmagem e possibilitado obviamente pelo
posterior trabalho de reorganização na fase da montagem. Contudo, como se trata
de um momento posterior na trama, Ivan acusa maior desgaste físico e emocional. A
música (o rock instrumental psicodélico), agora está mais lenta e mais distorcida
com wah-wahs
26
e faz um par com a movimentação mais lenta de Ivan, que
praticamente se arrasta pelo meio do salão, esbarrando nas pessoas, enquanto a
câmera, meio “preguiçosa”, ora se aproxima, ora se afasta de seu rosto. O destaque
26
Wah-wah (ou somente wah) é a onomatopéia para o som de uma nota musical que se assemelha à voz
humana pronunciando a sílaba wah . É alcançado através da ligação da guitarra a um pedal wah-wah, que
altera o tom do sinal vindo da guitarra. Esse tipo de recurso sonoro se popularizou com o guitarrista norte-
americano Jimi Hendrix nos anos 60. (Wikipédia, 2007)
94
para algumas pessoas dançando ajuda a completar o clima psicodélico criado pelo
som e pela mistura de luzes coloridas que dominam o ambiente:
Figura 11 : Rock e ambiente: psicodelismo (som diegético)
a b
c
Figura 12 – O vai-e-vem da câmera
Quando o rap finalmente passa a ser a música principal da narrativa,
então temos um momento crucial, que é a ”dupla invasão” de Anísio e Sabotage ao
escritório de Ivan. A chegada dos dois representa uma grande ameaça ao domínio
daquele território exclusivo dos mandantes do crime, que se vêem acuados diante
da extorsão de cinco mil reais para a gravação do CD do rapper, provável cúmplice
de Anísio.
Esta cena tem forte conteúdo simbólico, pois ali a música da periferia não
pede licença, mas se faz ouvir a contragosto. A realidade de quem é marginalizado é
contada para quem não está interessado em ouvi-la. A invasão representa a própria
perda do sossego da classe média, ao contar a história desse “novo mundo do qual
queremos distância e segurança” (Jabor apud Oricchio, 2003:181). Portanto, a
música de Sabotage, que interpreta ele mesmo, faz o elo entre ficção e realidade:
95
No filme de Beto Brant, uma cena antológica, quando o rapper negro
Sabotage
27
um que existe de verdade faz o papel dele mesmo e canta
um rap num escritório de burgueses perplexos. Ali, o documento invade a
ficção. É um ET contra os “brancos”, e se desamparo ali, é dos
branquelos. (ibid)
O rapper ocupa o centro do quadro e rouba a cena com sua apresentação
inesperada. Olhando para a câmera em certos momentos, dirige-se diretamente a
nós, que também passamos a ser seu “público”:
a) Sabotage no centro do quadro b) Sabotage olha para a câmera
Figura 13: A “apresentação” particular de Sabotage
Vemos, portanto, uma evolução do uso da música de modo a acompanhar
o agravamento da tensão da narrativa, dando ao sentido de ”invasão” um aspecto
social através da ocupação do espaço da classe dominante pelos indivíduos e pela
música da periferia (sobre o rap, ver também item 3.3.2.2.3). Além disso, a música
especial destaque também à condição do personagem Ivan, cujo sofrimento
evolui de maneira crescente até o final da narrativa.
3.3.2.2 - Espaço, tempo e montagem em O invasor
O cinema, como arte criada a partir de um processo de montagem do
produto audiovisual, recria o espaço e o tempo de maneira bem peculiar. O espaço
restrito do quadro (bem como o que está fora dele) e as relações de causa e
conseqüência na trama são responsáveis por essa recriação, que se inicia na
confecção do roteiro, passando pelos processos de filmagem e montagem até a
apresentação do filme como produto final.
Nesse momento, analisaremos como o espaço, o tempo e a montagem se
articulam na produção de significados no filme. O estudo da influência de outras
linguagens exploradas na narrativa fílmica mostrará como a oposição entre os
indivíduos de classes distintas e o componente psicológico passaram por
27
O rapper Sabotage foi assassinado em janeiro de 2003.
96
tratamentos complementares que convergiram para formar a totalidade do tema em
questão.
O espaço em toda a narrativa fílmica se apresenta essencialmente como o
território demarcado de cada classe. Nesse sentido, a presença do “outro” no
espaço alheio traz sempre consigo, para efeito de construção da narrativa, a idéia de
deslocamento ou diferença, ainda que isto não desencadeie necessariamente
hostilidade entre os personagens dos dois lados envolvidos.
Como vimos na análise conjunta dos inícios do romance e do filme (rever
p.63), o espaço do bar é o território de Anísio, onde Ivan e Giba estão “cercados”
pelas grades. Esse início é importante para estabelecer a exploração do espaço
como elemento importante na medição de forças entre os lados e determina o tom
dominante de ambas as narrativas literária e fílmica, antecipando a tensão como sua
marca fundamental.
A seguir, veremos como o espaço e o tempo são organizados pela
montagem a fim de criar a tensão que envolve toda a articulação do plano de
assassinato de Estevão e o posterior desencadeamento dos conflitos derivados
dessa trama.
3.3.2.2.1 - A conversa entre Estevão e Ivan
Falando sobre o esquema sujo que Ivan e Giba querem estabelecer com
Rangel (favorecimento na possível concorrência de uma obra pública), Estevão
reafirma sua posição contrária à falcatrua, razão que havia determinado a opção de
Giba e Ivan por seu assassinato. Em termos de narrativa, fica igualmente elucidado
o motivo da contratação de Anísio no livro e no filme. Entretanto, no livro temos uma
descoberta menor (o motivo) enquanto, no filme, ela é tripla (o tipo de crime a ser
praticado, a futura vítima e o motivo). Naturalmente, os diferentes tipos de
descoberta estão ligados ao início diferenciado de ambas as narrativas (livro e filme)
que, como vimos acima, tem maior concentração de informações no livro.
No livro, Ivan tem a preocupação de descrever o comportamento de
Estevão antes do início da conversa, revelando, assim, um traço da personalidade
deste (“Estevão quer me falar qualquer coisa. Mas espera, faz rodeios. Bem ao seu
estilo.”, p.33). No filme, entretanto, vemos a conversa entre Estevão e Ivan iniciar-se
97
com a fala sem rodeios de Estevão: “Eu não quero negócio com o governo, Ivan,
tem sempre alguma falcatrua no meio...”. Essa relação da economia da linguagem é
a mesma que descrevemos no primeiro encontro no bar no item 3.3 e revela a
preocupação do cineasta em concentrar-se nos pontos centrais da narrativa,
dispensando o que provavelmente considera excessivo para a realização da trama.
Mesmo levando em consideração o roteiro, iremos perceber que a introdução da fala
de Estevão que se assemelha à do livro foi retirada. No roteiro, esse momento
corresponde à passagem de número 10 (interna. Escritório de Ivan Dia). É nessa
parte que Estevão admite saber da insatisfação de Ivan e Giba com o que os dois
ganham na empresa:
Olha, Ivan, queria te falar que eu lamento muito o que está acontecendo.
Acima de tudo, somos amigos. Sei que muito tempo você e o Giba
estão insatisfeitos com o dinheiro que conseguem retirar aqui. Sei também
que os dois trabalham pra caralho e essa empresa deve muito a vocês.
Mas eu não posso concordar com o que vocês estão propondo, você me
entende? (Aquino, 2002:152-153, roteiro incluso no livro)
A exclusão desse trecho no filme reforça a idéia de afastamento entre
Estevão e os outros dois sócios, uma vez que ele não reconhece, como no livro e no
roteiro, a dedicação de Ivan e Giba aos negócios da empresa.
Nessa conversa, vemos o uso do recurso de campo/contracampo
28
, que
ajuda a estabelecer a tensão através das expressões faciais em primeiro plano.
Durante boa parte da cena, é Estevão quem fala, cabendo a Ivan apenas algumas
respostas curtas. Vemos, por um lado, a indignação no olhar e na fala de Estevão e,
por outro, a inquietação de Ivan, com seus gestos tensos e em alguns momentos até
demonstrando estar com o pensamento distante (ver figura 14):
Figura 14 – A conversa entre Estevão e Ivan: campo/contracampo
28
Campo/contracampo Campo é a porção de espaço...percebida a cada instante na imagem fílmica. (Aumont,
2003:42). O contracampo...supõe uma alternância com um primeiro plano (campo). O ponto de vista adotado no
contracampo é inverso daquele adotado no plano precedente e a figura formada dos dois planos sucessivos é
chamada campo/contracampo. (Aumont, 2003:61-62)
98
Esses momentos de distração de Ivan no livro, são digressões sobre o
modo como Ivan imagina que Anísio irá matar Estevão são traduzidos, no filme,
como inserções (inclusão de uma passagem subjetiva ou explicativa na cena
principal) que mostram Estevão sendo surpreendido pelo assassino. Interessante
observar que nessas inserções apesar de eles traduzirem o próprio pensamento
de Ivan a identidade de Anísio ainda permanece incógnita para o espectador, pois
o diretor escolhe empregar a câmera subjetiva representando o olhar do matador.
Esse tipo de representação ajuda a aumentar a tensão da narrativa, na medida em
que retarda o momento da revelação do rosto do assassino e põe o espectador cara
a cara com a vítima assustada, na posição subjetiva do assassino.
Anísio vai matá-lo. Talvez aguarde escondido no estacionamento, no
começo da noite, e pule sobre ele de repente e o esfaqueie. Não. Anísio
seria visto pelo vigia ao entrar no estacionamento (...)
Talvez Anísio espere por ele à noite, próximo à sua casa. E avance
para o carro no momento em que Estevão acionar o portão eletrônico da
garagem(...) Não também: Alaor pediu e Anísio, antes de atirar, terá de
dizer a Estevão a mando de quem está fazendo aquilo. (Aquino, 2002:33-
34)
a b
c d
Figura 15 – As inserções: pensamento de Ivan
Ainda com relação à combinação digressão/inserções, podemos destacar
um momento, presente no livro e no roteiro, cuja ausência no filme tem um
significado especial para a narrativa: a explosão do carro de Estevão. Ivan, ao narrar
uma das possíveis mortes de Estevão, imagina que Anísio irá colocar uma bomba
99
em seu carro, mas logo rejeita o pensamento e ressalta: “Não, bomba é coisa de
filme americano. No Brasil isso não acontece”. O cineasta prefere, portanto, seguir
as “indicações” do próprio narrador do livro, não incluindo a passagem sugerida no
roteiro:
15. EXTERNA. ESTACIONAMENTO QUALQUER DIA: Câmera mostra
ESTEVÃO no momento em que ele chega ao seu carro, abre a porta e
entra. Detalhe da chave sendo colocada no contato. Câmera mostra a
clássica cena do carro explodindo. (Aquino, 2002:155)
As palavras do narrador revelam uma forma de agir (assassinato com
explosão) que não condiz com a nossa realidade. Nesse caso, ele expõe o modo
como o cinema hollywoodiano trabalha, geralmente transformando a violência em
espetáculo pirotécnico, o que é diferente da linguagem de O invasor, que explora
muito mais a sugestão de violência. Basta lembrar que não um tiro ou corpo
ensangüentado (apenas roupas ensangüentadas) no filme. Conforme o próprio
diretor diz, na preparação da cena em que Estevão e sua mulher são encontrados
mortos, ele prefere não mostrar os corpos no porta-malas do carro. Sua intenção é
não banalizar a violência, como ele próprio diz: “...porque mais horror que isso, só se
meter dois corpos aí, mas isso é que eu não quero. Quero insinuar...” (O invasor,
making of). Esse depoimento revela bem qual é o posicionamento do diretor em
relação ao modo como explora a violência no filme como um todo.
Outro recurso de grande importância nesse momento da narrativa é o
flashback
29
, pois a quebra da linearidade temporal se presta a uma melhor definição
do caráter de Ivan. No momento em que ele responde a Estevão que foi Giba quem
combinou a falcatrua com Rangel, ocorre um corte seguido do flashback no qual
vemos Ivan e Rangel no Aeroporto de Congonhas, o que desmente, portanto, sua
acusação a Giba.
29
O flashback (analepse, na literatura) é um recurso cuja origem remonta às epopéias gregas. Consiste no
retrocesso a um momento anterior ao presente da narrativa. Segundo Dick (1990:176-177) pode cumprir três
funções: (1) fornecer informação que não é disponível de outra maneira; (2) apresentar um evento passado
porque ele pede uma visualização e (3) conectar passado e presente quando nenhum dos personagens pode
fazê-lo por si. O flashback da conversa ente Ivan e Rangel cumpre a função 1.
100
Figura 16 – Flashback: Ivan e Rangel
No livro, o próprio Ivan faz o mea culpa, revelando-se para o leitor de
maneira direta, o que inclui o reforço gráfico do pronome pessoal: “Na verdade, eu
havia feito o contato com Rangel...” (p.37). Vemos, portanto, de formas distintas,
Ivan desmascarado para o leitor/espectador, o que desfaz a possibilidade de Ivan ter
simplesmente sido levado a se envolver com o crime por medo de contrariar Giba.
.
3.3.2.2.2 - Os três porquinhos
Giba encontra-se em seu apartamento, contando a história dos três
porquinhos para a filhinha, que está sentada no sofá com a mãe. A cena tem um
forte conteúdo simbólico, uma vez que o diretor aproveita a história infantil para
estabelecer um paralelo entre os porquinhos e os personagens do filme.
Em primeiro lugar, devemos observar a relação do animal “porco” com
“lama”, “sujeira” etc., que são palavras que podem assumir tanto o sentido
denotativo quanto o conotativo. No filme, a relação entre os “porcos” se refere,
naturalmente, ao segundo caso. Giba, adaptando a história para a realidade dos
três, associa a condição de porcos à sujeira (negócios ilícitos), na qual ele e seu
parceiro Ivan se envolveram. Existe, com relação a Estevão, também um sentido
pejorativo, uma vez que ele é o porquinho que vai brincar (jogar futebol), pois é o
que tem mais dinheiro, enquanto os outros dois devem trabalhar duro para manter a
101
construtora. Aliás, a construção frágil do irmão mais novo é a própria construtora que
agora deverá passar para os outros dois porquinhos mais “preparados”,
interessados em outro tipo de construção, a da licitação de cartas marcadas com
Rangel.
O jogo de significados dos três irmãos é estabelecido através do recurso da
montagem paralela, que faz a ligação entre espaços, personagens e significados.
Enquanto Giba caracterizado como personagem da história, pois usa um focinho
de porco – conta a história para sua filha, Estevão joga futebol com os amigos e Ivan
aparece desacompanhado numa danceteria. Ao referir-se ao porquinho mais novo,
que fez a casinha de palha para poder ir brincar, temos o corte para Estevão,
jogando futebol. Quando ele se refere à fuga desse porquinho para a casa do irmão
do meio, novamente temos um corte, dessa vez para Ivan, que fuma e anda em
meio às pessoas na danceteria. Por último, ele cita o irmão mais velho, que é ele
mesmo e, nesse momento, a câmera se fixa nele enquanto conta o resto da história,
que é exatamente quando o lobo entra e se queima na lareira acesa pelo porquinho
mais velho.
102
“(...) e o preguiçoso construiu uma casa de palha muito mal feita porque ele queria ir brincar...”
“(...) socorro, socorro. Aí foi pra casa do outro irmão, que era o irmão do meio...”
“(...)Só que o porquinho mais velho era muito esperto, muito inteligente...e acendeu a lareira,
tocou fogo na lareira. Aí o lobo entrou na lareira... e caiu e queimou a bunda. Ai, ai... saiu
correndo. (risos)”
Figura 17 – Os três porquinhos
Com relação ao lobo, podemos interpretá-lo como o próprio Anísio que,
nesse caso, não conseguiria ser bem-sucedido na invasão da casa (negócios dos
outros dois). Entretanto, essa “previsão” acaba não se concretizando, pois Anísio se
aproxima de Marina e acaba por obter o controle da situação. Assim, a história
simboliza uma relação dominada por Giba, que se considera o mais esperto e, por
direito, segundo sua própria lógica, o mais capacitado para levar a construtora à
frente.
A presença da família de Giba no espaço da casa, que representa
aconchego e proteção, é de grande importância para a passagem. Ela estabelece o
contraste da inocência da filha com a podridão de Giba, que consegue esconder da
família a sua verdadeira face, mostrando-se bom pai em casa enquanto, fora dali,
mantém um prostíbulo, participa de uma negociata e organiza um esquema para
assassinar seu sócio majoritário e obter o controle da empresa.
103
Figura 18 – Giba e a família: duas faces
Interessante observar finalmente que, se não essa relação entre os
três porquinhos no romance devido à condição de Ivan de narrador-personagem
(portanto, de visão restrita dos acontecimentos), ela também não fica explícita no
roteiro. Este indica apenas que Giba conta a sua filha uma “história clássica... à sua
maneira” (Aquino, 2002:169, roteiro).
Nesse caso, o foco na visão de Giba, que se julga o mais capaz, acaba
por revelar que existe uma condição de desigualdade entre ele e os outros dois
“irmãos”. Até esse momento na narrativa, essa condição o opõe a Estevão, mas
também é um prenúncio de sua incompatibilidade com Ivan, que não é tão
“esperto” quanto ele.
104
3.3.2.2.3 - Anísio leva Marina à periferia
Essa é uma outra passagem do filme em que não a presença de Ivan.
Trata-se, portanto, de outra inclusão proposta no roteiro. Após ter “invadido” a
construtora (espaço da classe alta), onde chantageou Giba e Ivan e realizou sua
aproximação com Marina, Anísio agora tem acesso ao último reduto da classe alta
que lhe faltava atingir: a mansão de Marina. Após uma breve passagem pela casa,
onde presenteia Marina com um cachorro, conquistando definitivamente sua
confiança, Anísio a leva para conhecer o seu “território”: a periferia. Vemos assim, a
gradativa ascensão de Anísio, que vai literalmente roubando a cena, em detrimento
dos outros dois, em especial de Ivan, que sofrerá de maneira mais aguda as
conseqüências de ter cruzado o seu caminho.
Esse destaque especial dado a Anísio no filme, através de um número
maior de aparições, tem relação direta não com o ponto de vista onipresente do
narrador (ao contrário do narrador em primeira pessoa do livro), mas principalmente
com a intenção de tornar a periferia mais visível. Sendo Anísio o representante
desse espaço, é com ele que Marina tem o acesso a esse outro lado pouco
conhecido da cidade.
Se observarmos as capas do livro e do DVD, veremos a indicação
antecipada dessa mudança de foco. Enquanto no livro tudo nos é contado pela ótica
do narrador-personagem Ivan (no filme, representado por Marco Ricca), no filme
vemos Anísio (Paulo Miklos) em presença física, ocupando todos os espaços da
narrativa: periferia, escritórios da construtora, mansão etc (figura 19).
livro DVD
Figura 19: capas do livro e do DVD
105
Outro aspecto digno de nota na capa do DVD é a cor. A cor natural do
rosto de Paulo Miklos é substituída pelo verde e amarelo, uma clara referência ao
Brasil. Dessa forma, temos a indicação de que o personagem apresentado remete à
nossa realidade e que esta será, de alguma forma, representada na narrativa.
Nesse momento de transição de um espaço (bairro nobre) a outro
(favela), mesmo se levarmos em conta apenas roteiro e filme, veremos que a idéia
de Anísio como aquele que guia a cena está mais presente no filme:
60. EXTERNA. FRENTE DA CASA DE ESTEVÃO/MARINA TARDE:
MARINA sai com o carro da garagem. ANÍSIO está no banco do
passageiro. Câmera segue o carro pela cidade, mostrando São Paulo ao
entardecer. É um sábado, portanto o trânsito está leve. O cd-player do
carro está tocando música eletrônica. (Aquino, 2002:199, grifos nossos)
No filme, entretanto, a realização da cena é bem diversa, com Anísio ao
volante do carro de Marina e a trilha sonora de um rap, o som da periferia, ao invés
da música eletrônica, mais característica de um público de classe média:
“Na zona sul, cotidiano difícil. Mantenha o proceder...’ (Rap do cantor e compositor
Sabotage intitulado “Na zona sul”)
Figura 20: Anísio na direção ao som do rap
Com relação ao tratamento dado aos espaços, percebemos a articulação
de planos curtos numa longa seqüência (1min30s) que vai desde a saída da casa de
Marina, passando pelas ruas pobres da periferia até a chegada ao salão de beleza
de Debi, uma conhecida de Anísio.
Figura 21: Da área nobre à periferia
106
Essa seqüência funciona como a ligação entre os dois espaços
contrastantes de modo a realçar o fato de que pertencem à mesma cidade, apesar
de apartados social e economicamente, o que significa, portanto, que eles se
apresentam como partes inseparáveis de uma realidade única, mais complexa do
que se os contextos fossem representados isoladamente.
É interessante ressaltar que, na exploração desses espaços no livro, cada
um é tratado de forma mais isolada. Aliás, a concentração no livro é maior na trama
em si que ocorre basicamente nos ambientes de Ivan, Giba e Estevão por isso,
áreas pobres aparecem menos na narrativa romanesca. Num desses momentos, na
passagem do capítulo 11 para o 12, temos um “salto” da sala de Alaor (Giba, no
filme) para uma área pobre sem qualquer transição que indique movimento de uma
região à outra. De repente, estamos lá com o narrador-personagem, que vai comprar
uma arma para tentar se proteger da ameaça cada vez maior, agora representada
por Anísio e Giba juntos:
(...) Às vezes eu acho que você não compreendeu direito o que nós
fizemos, Ivan.
Eu nunca deveria ter topado...
Mas topou e agora não tem volta. Estou falando sério, Ivan: você não
vai pular fora. (Aquino, 2002:100)
O corredor era estreito e escuro e fedia a urina de gato. A chuva que caíra
durante boa parte do dia dera lugar a um vento gelado. Edésio, o negro
corpulento que caminhava à minha frente, trabalhava como segurança do
bar que eu freqüentava. (Aquino, 2002:101)
No filme, o “passeio” pela periferia é construído de modo a confundir o
olhar de Marina com o do espectador. uma intenção clara de mostrar a esse
espectador que existe uma outra realidade que ele não pode ignorar, por isso, a
câmera é posicionada no banco do carona, numa altura correspondente ao olhar de
Marina (câmera subjetiva) e sempre aponta para a paisagem e as pessoas que
circulam na rua. Nesse momento, o confronto entre os mandantes do crime e o
matador abre espaço na narrativa para o tom de denúncia daquela realidade que
observamos de dentro do carro. Segundo Karel Reisz é exatamente essa
característica que distingue o filme de ficção do documentário:
Um filme de ficção e isto nos servirá como uma distinção de trabalho
entre o documentário e um filme de ficção trata do desenvolvimento de
uma trama. O documentário trata da exposição de um tema. É para além
107
dessa diferença de objetivos que os métodos de produção nascem. (Reisz
apud Dancyger, 2003:315)
Dessa forma, o tom documental é que passa a prevalecer nessa
seqüência. A letra do rap estabelece a ligação com as imagens, reforçando a
denúncia da realidade do local: a pobreza e o mundo das drogas (figura 22):
a) A chegada: morro ao fundo em contraste com os prédios altos
b) Lixo (metáfora do dinheiro sujo) c) “Menino, qual o seu futuro?”
“(...) não me iludo, no subúrbio, dinheiro sujo constantemente nos trai no futuro...”
“(...) falsos amigos e aliados pensando em ganhar, não adianta passar pano, o pano rasga...”
d) Os falsos amigos
“(...) mundo cão decepção constrói, transforma a pivetada da quebrada num transporte pra
droga...”
e) A pivetada do lugar
108
“(...) Zona sul, conheço um povo todo inibido, tanta promessa, enrolação, acaba nisso...”
f) O povo da Zona sul
Figura 22 – Sabotage expõe a realidade da periferia
Sabotage é a voz da periferia. Se as pessoas não falam como é de se
esperar num documentário tradicional, o cantor faz a vez delas. Entretanto, a
câmera faz a sua parte, apontando para algumas pessoas, que olham diretamente
para ela (ou para nós), mostrando que têm rosto e individualidade. O recurso ao
zoom serve para nos aproximar ainda mais dessa realidade:
Figura 23: Zoom: a realidade mais de perto
O cineasta francês Jean-Luc Godard afirma que essa relação com o
documentário é absolutamente lícita e necessária, devendo existir de forma dialética,
ao afirmar que "o bom documentário tende à ficção; a boa ficção tende ao
documentário" (Godard apud Freitas, 2004:58). Percebemos, dessa forma, a
intenção de aproximar ficção e realidade, característica muito comum na criação
moderna, na qual as fronteiras se tornam cada vez mais difíceis de precisar.
109
3.3.2.2.4 - Anísio é o “dono” da mansão
Nessa cena, boa parte da significação está contida no próprio ambiente,
que é a sala da mansão de Marina. No início da seqüência, a câmera está fixa, ao
contrário de na maior parte do filme, em que está na mão e captando uma imagem
instável e perturbadora. O posicionamento estático ajuda a reforçar a idéia de
conforto já determinada pela riqueza e aparência agradável do lugar.
Temos, nesse caso, a apresentação de um plano geral que capta toda a
sala, de forma semelhante à visão de um espectador de teatro. A própria entrada
dos personagens pela esquerda é similar à dos atores entrando em cena num palco.
Anísio entra primeiro, ereto e de roupão, revelando quem é o “dono da cena”,
enquanto Giba entra com a postura curvada, os braços caídos e, assustado, verifica
se há outra pessoa na casa.
110
Figura 24 – Anísio domina a cena
O mise-en-scène, bem como no teatro, é de grande importância para a
significação da passagem. Vemos a lareira (símbolo de opulência e de aconchego
da família) quase no centro do quadro, com os assentos à esquerda e à direita. Após
Anísio pedir a Giba para sentar, o matador caminha para o lado oposto, onde vemos
um bar. Anísio prepara um uísque, outro símbolo de requinte. As luzes acima da
lareira, em ambos os lados, iluminam o piso de mármore, que brilha. Toda a sala
resplandece em branco, iluminada também nas laterais. A disposição dos objetos
dentro do quadro, com o posicionamento simétrico dos sofás e das luzes da parede
em relação à lareira, dá a toda a sala um ar de sobriedade.
Da entrada em cena até o primeiro corte passam-se aproximadamente 15
segundos em plano geral. Nesse intervalo, o mecanismo de representação parece
mover-se sozinho, “sem a presença de um mediador que o possa manter
funcionando” (Rosenfeld, 1965: 19). É evidente que essa semelhança com a
representação teatral é aparente uma vez que, ao assistirmos a um filme,
teremos sempre a mediação da câmera, que atenderá a propósitos narrativos
específicos, influenciando o modo como o espectador deverá perceber a ação.
111
No que respeita à quebra da paz que o ambiente transmite, é exatamente
o contraste entre a situação dos personagens e a conversa tensa entre eles que
exercerá essa função. Esse é o momento em que as palavras de Anísio confirmam
sua ascensão. Confortavelmente vestido de roupão e chinelos, assume a atitude e o
discurso da classe dominante. O copo de uísque, que agora substitui a cerveja do
bar, simboliza o seu acesso a um novo círculo sócio-econômico (figura 25). Quando
Giba pede que Anísio intervenha contra Ivan, que está armado e procurando por ele
pela cidade, o matador com um sorriso de quem está no controle da situação
expõe de forma direta a inversão das posições: “Escuta, João, eu não faço mais. Eu
mando fazer... Vou te emprestar o Parabellum, você vai e tranca ele”. A conversa,
da mesma forma que o diálogo entre Estevão e Ivan, é apresentada através do
recurso de campo/conta-campo e visa a contrastar, em primeiros planos, a
expressão angustiada de Ivan com o olhar firme e dominador de Anísio. Quando
Giba diz a Anísio que alguém poderá contar a Marina a verdade sobre este, ele sai
de sua posição recostada no sofá, se aproxima e diz, de forma enfática, que irá
matar quem estragar seu “barato com a mina”. Anísio demonstra, assim, uma atitude
agressiva, aferrada à sua nova posição, a qual será capaz de tudo para manter, da
mesma forma que fez para atingi-la. Nesse sentido, Anísio completa seu papel como
invasor, uma vez que agora domina o espaço físico da classe dominante,
representado aqui pela casa, com a qual está totalmente ambientado, como se fosse
o próprio dono.
Figura 25 – Uísque: símbolo do novo status de Anísio
3.3.2.2.5- A batida do carro de Ivan
112
Essa seqüência é construída com uma montagem que proporciona ao
espectador visões diferenciadas dos momentos que antecedem a colisão do carro
de Ivan com outro veículo.
A batida aqui assume um importante sentido simbólico, uma vez que
remete ao próprio choque entre as classes sociais. Essa oposição faz parte somente
da narrativa fílmica, pois, no livro, a colisão ocorre num bairro de classe média alta
(Alto de Pinheiros), sendo o outro carro uma caminhonete dirigida por rapazes de
classe social elevada. No filme, por sua vez, no outro carro estão dois rapazes da
periferia e a batida ocorre próximo a uma favela. Dessa forma, as mudanças do
espaço e dos personagens agregam ao choque físico (colisão) um sentido de
choque social no qual indivíduos de classes distintas são postos frente a frente, o
que é, na verdade, correspondente à oposição que marca a narrativa como um todo,
ou seja, aquela entre matador e contratantes:
Então cruzei uma preferencial. E não vi a camionete a tempo. O impacto na
parte dianteira foi tão forte que meu carro rodou e ficou atravessado na
rua...Dois garotões saltaram da camionete para examinar os
estragos...Ambos eram grandes e musculosos. Gente de academia...Eu
não tinha uma idéia precisa de onde me encontrava. Sabia apenas que
estava no Alto de Pinheiros. (Aquino, 2002:121-122, grifos meus)
No filme, a montagem cria a expectativa da batida. A cada corte temos um
plano que proporciona uma visão diferente do momento da colisão. Num instante,
vemos somente o carro de Ivan; depois, com um plano mais afastado, vemos os
dois carros prestes a colidir; somos então colocados no banco do carona de Ivan
para, em seguida, vermos tudo novamente de um plano mais afastado. Essa
construção cria um novo tempo, mais lento do que seria o tempo real da batida, que
visa a aumentar a ansiedade do espectador e o impacto da cena sobre ele. A
propósito dessa forma de exploração do recurso da montagem, Carrière afirma:
Ocasionalmente, como nos tiroteios dos westerns, o cinema alonga o
tempo. Nos thrillers, por exemplo: o punhal voa em direção à garganta e
sem recorrer à câmera lenta (quase sempre um desastre estético), uma
vez mais utilizando um simples truque de montagem, através de uma
seqüência de tomadas alternadas, o punhal nunca encerrando o seu vôo
nem a garganta, o seu oferecimento ao sacrifício o tempo se arrasta
indefinidamente, e por vezes parece estimular nossa sensação de
angustiada expectativa. Prendemos a respiração, o próprio tempo se queda
paralisado. (Carrière, 1995:118)
113
a b
c d
Figura 26: A batida
Esse tipo de construção, segundo Nöel Burch, tem origem provável na
teoria eisensteiniana da montagem. Para ele, o cineasta soviético foi o primeiro a
desenvolver uma exploração sistemática do raccord
30
:
(...)uma das maiores descobertas de Eisenstein, da qual ele parece ter
falado incidentalmente, é a estruturação da montagem em função da
composição de planos sucessivos, principalmente no que se refere a uma
série de planos mostrando o mesmo tema sob ângulos sucessivos. (Burch,
1992:58)
É esse o caso de diversas seqüências montadas pelo grande diretor
soviético, dentre as quais a do início de Outubro (1927), quando o povo sobe as
escadarias para destruir a estátua de Alexandre III, imperador da Rússia:
a b
30
raccord“Não termo específico em português que traduza fiel e integralmente o significado de raccord. No
dicionário Petit Robert, encontra-se: 1) ligação de continuidade estabelecida entre duas coisas, duas partes; 2)
(Cin.) maneira pela qual dois planos de um filme se encadeiam (resultado da tomada de vistas e da montagem).”
(Aumont, 2003:251)
114
c d
Figura 27: Seqüência de Outubro
A movimentação que vem de todos os lados uma idéia precisa da
grande força da massa enfurecida (e de total adesão popular) que, em movimento
ascendente, “sobe” ao poder. Nesse sentido, a soma dos quadros agrega uma
tensão maior do que se tivéssemos, por exemplo, um plano geral, permitindo a
visualização de todo o povo ao mesmo tempo. O espaço é, assim, desmontado pelo
diretor para ser recriado pelo espectador, ao qual não é permitida uma participação
passiva na construção da narrativa.
Retomando a cena de O invasor, temos, ao final, Ivan e os dois rapazes
frente a frente. É nesse momento que a batida adquire o sentido já referido, uma vez
que podemos determinar a classe social dos rapazes:
Rapaz de touca. “Não aponta a arma pra nós não, mano!”
Figura 28: Ivan e os rapazes da periferia
Como vimos, as duas montagens (de Outubro e de O invasor) guardam
semelhanças técnicas, apesar de em Outubro a construção estar totalmente voltada
para incentivar o espectador ao engajamento político, o que não ocorre em O
invasor, que quer apenas fazer alusão às classes e explorar a tensão através do
alongamento do tempo.
115
3.3.2.3 - A questão psicológica
Nesse momento analisaremos o modo como se a construção dos
estados psicológicos dos personagens Ivan, Cecília (sua esposa) e Marina (filha de
Estevão) em suas relações com o espaço e o tempo. Como dissemos na
introdução deste trabalho, o conflito pelo poder afeta direta ou indiretamente o
comportamento dos personagens aqui analisados, daí nosso interesse em estudá-lo.
Boa parte da exploração do psicológico e do emocional do filme recai
sobre esses três personagens. Através da agonia e do vazio em suas vidas,
podemos ter uma boa idéia de como o diretor buscou criar um universo de total
desagregação entre os indivíduos.
Na tradução da narrativa literária à fílmica Ivan mantém sua importância
como personagem central, pois continua sendo ele o personagem menos capaz
dentre os três (ele, Giba e Anísio) de lidar com a situação gerada pelo assassinato
de Estevão, que exige esperteza e um controle emocional que ele não possui. Assim
sendo, torna-se o personagem mais indicado para uma exploração psicológica mais
freqüente e, portanto, é principalmente por meio de suas emoções que o espectador
experimenta o efeito da tensão na narrativa.
Ao perceber que Anísio e Giba estão unidos contra ele, Ivan decide, de
forma desesperada, partir para a ação sozinho. De posse de uma arma, está
disposto a matar qualquer um dos dois que encontrar, pois sabe que eles também
tentarão matá-lo. É nesse momento que ocorre o clímax de sua tensão, com sua
saída de carro em alta velocidade.
Dentro do carro de Ivan, ficamos no banco do carona, acompanhando sua
agonia. O som aqui cumpre um papel importante, pois é através dele que temos
acesso à mente do personagem ao escutar as mesmas vozes que ele, as quais têm
alguma relação com Anísio. Primeiramente, ouvimos a voz do matador que, desde
sua “invasão” à construtora, começou a ocupar boa parte dos pensamentos de Ivan,
passando da condição de invasor do espaço físico da empresa a invasor de sua
mente e transformando sua vida num inferno. Depois ouvimos a voz do próprio Ivan,
que relembra o momento em que Anísio apareceu na empresa com os objetos de
Estevão e Silvana, colhidos depois de tê-los executado:
116
Voz de Anísio: “(incompreensível)”
Voz de Ivan: “Giba, esse cara vai foder com a gente...”
Figura 29: Anísio “invade” a mente de Ivan
Logo em seguida, vemos a imagem desfocada, representando o olhar de
Ivan, cuja perturbação se agrava pela descoberta de que sua amante que na
verdade se chama Fernanda, ao invés de Cláudia é uma das garotas de programa
de Giba. Através desses recursos podemos ter uma noção do descontrole e do
entorpecimento dos sentidos do personagem nos momentos que antecedem a
colisão de seu veículo:
Figura 30: Visão comprometida de Ivan
Após a cena da batida, Ivan corre desorientado por uma avenida. Nesse
momento temos um longo plano-seqüência, filmado com a técnica de “câmera na
mão”. Esse recurso ajuda a reforçar o clima tenso, pois a imagem instável obriga o
espectador a um esforço para poder acompanhar a movimentação do personagem,
semelhante àquele necessário para assistir a uma reportagem de perseguição
policial. A seqüência dura mais de dois minutos (2min10s) e a câmera mantém um
foco bastante instável em Ivan, captando os barracos de uma favela próxima, o que
indica que o personagem está fora de seu “território”, aumentando ainda mais a
tensão. O acompanhamento musical também ajuda a compor a cena, pois trata
diretamente da condição de Ivan quando diz: “Boom, a bomba vai explodir, ninguém
vai te acudir. A sociedade destrói sua vida. O capitalismo por aqui é suicida”. Trata-
se de uma antecipação do “fim da linha” para Ivan, que está próximo. Assim o
117
acompanhamos, ora andando, ora correndo, como testemunhas de sua agonia, que
passa a ser também um pouco nossa, devido ao ponto de vista da câmera. Aqui,
portanto, não é a combinação de planos através do corte que dita o ritmo da
narrativa, mas sim a própria movimentação do que é capturado pela câmera que,
ora se aproxima, ora se afasta de Ivan, tentando reproduzir seu ritmo cambaleante
(ver também figura 12, p.92).
Figura 31: A corrida louca de Ivan
Ao final do plano-seqüência temos um corte seco que nos põe
imediatamente cara a cara com Ivan denunciando tudo sobre o assassinato de
Estevão e Silvana numa delegacia que, para seu azar é o local de trabalho do
delegado Norberto (sócio de Giba na boate). Entretanto, o depoimento de Ivan é a
única indicação ao espectador de que o local é um departamento de polícia.
Qualquer outro tipo de informação nos é negada, pois apenas Ivan fala e o primeiro
plano nos permite ver apenas sua expressão de desespero.
Figura 32: Depoimento de Ivan
118
Segundo Bernard Dick (1990:40), esse tipo de enquadramento é
amplamente utilizado para transmitir um “sentimento de opressão”, uma vez que o
personagem aparece “confinado” e não temos indicações sobre o que está fora do
campo visual. Acrescenta-se a isso o fato de que o depoimento é composto de
diversos planos fixos que se sucedem em cortes secos, criando uma incômoda
descontinuidade no movimento de Ivan. Esses “saltos” têm, portanto, uma função
semelhante à das aproximações e dos afastamentos da câmera na cena da corrida
de Ivan, que procuram também traduzir tecnicamente o estado psicológico do
personagem.
Dessa maneira, a construção com economia de informações transforma o
depoimento em desabafo feito diretamente ao espectador, que é – por concentrar-se
apenas em Ivan convidado a um maior envolvimento emocional com o que é
apresentado.
No que diz respeito aos relacionamentos interpessoais de Ivan, vemos o
aumento gradativo do seu isolamento que, além do afastamento de Giba, se agrava
com o fracasso de seu casamento com Cecília. Na narrativa fílmica, esse
relacionamento é criado com precisão em poucas passagens que nos dão a idéia
exata da desarmonia na qual o casal vive. Na seqüência principal, explora-se a
angústia de Cecília na cena em que ela chega de uma festa bêbada e sozinha até o
momento em que se deita na cama, afastada de Ivan.
Novamente, a montagem se encarrega de criar a atmosfera
correspondente ao estado da personagem. O espaço físico do banheiro transmite
um sentido de aprisionamento uma vez que a montagem se aproveita da
movimentação angustiada de Cecília de um lado a outro, de sua expressão em
primeiro plano e de posicionamentos invertidos de câmera que, aliados ao reflexo do
espelho, causam uma certa confusão no espectador com relação à direção real do
movimento da personagem. Ademais, toda a cena é marcada por um ruído que, ora
se assemelha ao de um ponteiro de relógio, ora ao de pingos d´água (semelhante ao
que ouvimos em filmes com cenas de prisão), reforçando o sentimento de angústia
da personagem.
A seqüência do banheiro dura 32 segundos e contém 17 cortes (cerca de
um a cada 2 segundos). Ela, na verdade, é acelerada pelos cortes, pois o que
acontece ali dura mais que os 32 segundos efetivamente mostrados. Cecília lava e
enxuga o rosto, passa creme, senta-se no bidê e, em certo instante, levanta-se de
119
perto do vaso sanitário, sugerindo que acaba de vomitar. Juntas essas passagens
não poderiam levar menos que alguns minutos para ocorrer em uma situação real. A
montagem, portanto, “comprime” o tempo, pois, metonimicamente, as partes (planos
curtos) valem por intervalos de tempo significativamente maiores. Aqui, portanto,
temos um tratamento do tempo de forma contrária ao que vimos na cena da batida
do carro de Ivan, em que ele é “alongado”. Entretanto, ambas as construções visam
a um fim comum, que é o de quebrar a continuidade visual e causar desconforto ao
olhar do espectador:
a b c
120
d e f
Figura 33: Cecília no banheiro
Figura 34: Ivan e Cecília: casamento fracassado
Essa construção econômica do casamento de Ivan não corresponde ao
que ocorre no romance, no qual o relacionamento é descrito em diversas
oportunidades, todas transmitindo a mesma idéia de distância e desinteresse, até
que ocorre a efetiva separação:
Houve um momento em que eu e Cecília percebemos que nossa relação
estava morta. Mas nenhum de nós reagiu. (Aquino, 2002:32)
Cecília praticamente tinha se mudado para o quarto de hóspedes, eu
passava dias sem vê-la. Só sabia que ela estava em casa porque às vezes,
da sala, ouvia sua tosse no quarto. Nosso casamento tinha entrado na
prorrogação. (Aquino, 2002:90-91)
Uma noite, ao chegar em casa, encontrei a empregada me esperando na
cozinha. Ela reclamou que seu salário estava atrasado era Cecília quem
cuidava disso mas a empregada disse que não se encontrava com ela
fazia dias. Estranhei e fui conferir. E descobri que minha mulher tinha saído
de casa. (Aquino, 2002:98)
121
Portanto, no filme, a economia novamente prevalece e, nesse caso, as
raras aparições do casal fornecem a informação da qual o espectador precisa.
Assim, mesmo sem sabermos do início e da separação, podemos concluir que o
casamento, como relação afetiva, já não existe mais.
Por último, temos a construção da personagem Marina, uma referência
clara à juventude alienada de classe média (alta), que busca nas drogas e nas
“baladas” uma forma de dar sentido à vida. Como personagem secundária, aparece
sempre com Anísio, que consegue se tornar seu namorado, explorando sua carência
afetiva e seu vício com as drogas, o que aumenta seu poder de interferir na
construtora, seu objetivo principal. No romance, as poucas vezes em que o narrador
estabelece a ligação entre Marina e os pais são suficientes para construirmos o seu
perfil de jovem desorientada:
Ela herdara parte da beleza da mãe, embora os traços delicados, que
davam altivez a Silvana, conferissem ao seu rosto um quê de
arrogância.Tinha dezoito anos, cabelos pretos pintados num tom ainda
mais escuro e piercings em várias partes do corpo. Eu achava que, por ser
filha única, fora mimada em excesso por Estevão e Silvana. (Aquino,
2002:53)
Nossa nova sócia tinha no currículo uma passagem, aos dezesseis anos,
por uma clínica de desintoxicação. Era um assunto sobre o qual Estevão
evitava falar. Eu e Alaor achávamos que ela continuava usando drogas.
(Aquino, 2002:84)
No filme, o espaço onde vemos bem caracterizada a personagem é o da
festa rave, lugar da classe média alta por excelência. Nessa cena, a batida rápida da
música eletrônica trance o tom do estado alucinado (“transe”), favorecido pelo
uso de ecstasy, no qual estão Anísio e Marina. A música se associa às imagens
desfocadas e ao colorido da luz laser e neon para completar a atmosfera delirante
na qual se encontram os personagens. O diretor de fotografia (Toca Seabra) relatou
em entrevista que, nessa cena, o ambiente foi especialmente preparado com tubos
de lâmpadas fluorescentes com gelatina verde e outras pequenas lâmpadas com
gelatinas coloridas. Além disso, pediu que alguns figurantes fossem para a locação
com roupas fluorescentes para reforçar a presença da cor. Na pós-produção, então,
a cor foi acentuada, finalizando-se o trabalho de criação da atmosfera do local (ver
parte da entrevista no anexo II).
122
Figura 35: Roupas claras para reforçar o ambiente
Em uma das passagens da festa, a luz e o efeito distorcido da imagem
compõem o estado de confusão mental de Marina (já sob efeito da droga), de forma
semelhante ao que ocorre com Ivan no momento da colisão. A câmera se fixa no
rosto da jovem que se multiplica em diversos vultos, como se sua alucinação de
repente fosse nossa, o que é mais uma tentativa de recriar na visão do espectador o
estado psicológico da personagem:
Figura 36: Marina sob efeito de ecstasy
Como vimos, espaço e tempo sofrem “deformações” através da
montagem, a fim de criar as condições específicas de cada personagem. Nesse
sentido, recursos de som e imagem se complementam para estimular a percepção
do espectador e aumentar o efeito das cenas sobre ele.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em O invasor, vemos que no processo tradutório houve o deslocamento
do foco restrito do narrador em primeira pessoa muito mais preocupado em
entender as razões de seu envolvimento com o crime a partir de sua lógica de
classe média para a exploração dos bastidores da trama contra Ivan e,
principalmente, para a exposição da realidade da periferia, que se concretiza através
123
das “invasões” (de Anísio, de Sabotage, da música etc), como forma de representar
a “reivindicação” de um espaço maior dentro da estrutura socioeconômica.
A ênfase dada às questões ligadas à periferia revela a intenção de expor
uma sociedade dividida, na qual a animosidade entre as classes sociais tem
aumentado. A “invasão” da maneira como é representada no filme mostra,
portanto, que quem está social e economicamente excluído ao perceber que os
espaços nunca são abertos pode decidir tomá-los à força e com os recursos que
tem à mão, o que aponta para a perspectiva de uma realidade cada vez mais
baseada na lógica do “vale-tudo”. Por essa razão, a utilização dos recursos no filme
serve para apresentar uma realidade bastante incômoda ao espectador, mostrando
que ela tem influência decisiva em sua vida, o que serve de alerta aos que insistem
em pensar que a sorte alheia não lhes diz respeito. Nesse sentido, a montagem
(especialmente através do corte seco), a música invasiva e o ponto de vista da
câmera se mostram como os principais meios de construção da atmosfera de mal-
estar do filme.
A montagem com o uso predominante do corte seco (às vezes,
propositadamente fácil de perceber) impede que a narrativa flua de maneira
agradável ao olhar do espectador, reforçando, na forma, o desconforto próprio das
temáticas da corrupção e da ameaça, que atinge de maneira bastante acentuada o
personagem Ivan, o mais fraco do esquema de corrupção e, portanto, aquele sobre
o qual recai a maior exploração dos estados psicológicos. Com relação à construção
do espaço da narrativa, a montagem faz a ligação entre o bairro nobre e a periferia,
numa transição que visa a transmitir a idéia de que o lado privilegiado está muito
mais próximo do lado excluído do que imagina (ou do que gostaria de estar). Sendo
Anísio o “guia” dessa transição, ele representa a violência que circula pelos dois
lados, englobando a todos que habitam o “espaço da cidade”.
124
Quanto ao uso da música, vemos que ela reitera o sentido de invasão
proposto pela presença do matador no espaço da construtora, local que está ligado
ao círculo fechado de poder dos dois contratantes de classe social mais elevada. A
presença do rap a música da periferia e, portanto, a voz dos que estão à margem
da sociedade é apresentada pelo cantor Sabotage, que se torna o outro invasor,
juntamente com Anísio. Ao cantar seu rap para os “dois bacanas”, também o faz
para o espectador, pois seu olhar se direciona para a câmera. Um olhar semelhante,
aliás, se repete no momento em que rodamos pela periferia ao som de sua música.
Os personagens anônimos olham para “nós” e mostram que também têm rosto, que
literalmente existem e que sua realidade, cantada no rap, não pode ser ignorada.
Essa importância do rap (como apontamos na análise) é crescente na narrativa e
vai ocorrendo com a ascensão de Anísio que, ao trazer Sabotage consigo, traz toda
uma realidade pouco presente no romance. Isto revela a importância da música, que
agrega significado à adaptação.
O ponto de vista da câmera, por sua vez, varia bastante ao longo do filme.
Em certos momentos, fica-se como espectador da ação, em outros, como uma
espécie de interlocutor do personagem ou ainda no lugar do próprio personagem,
em especial Ivan ou Anísio (câmera subjetiva). Essa variação visa a tirar o
espectador da comodidade de uma visão única e parcial. Ao contrário do que ocorre
no romance, o “outro” ponto de vista (o do matador) adquire grande importância e
está presente em diversas ocasiões, nas quais somos forçados a estar (pelo menos
visualmente) do lado oposto (primeira cena, inserções na conversa de Estevão e
Ivan etc.). Com relação a Ivan, podemos presenciar sua agonia como espectadores
privilegiados, acompanhando seus passos; em outras ocasiões assumimos seu
ponto de vista (dentro do carro com a visão distorcida, na cena da batida) ou
escutamos o seu relato do crime contra Estevão, na suposta posição de um inspetor
de polícia na delegacia. Através dessa variação, estabelecemos uma relação mais
complexa com os personagens do que através do simples olhar distanciado. Tais
construções propiciam um maior envolvimento emocional com a trama, o que
permite que as sensações de angústia, medo, inquietude etc., compondo a tensão
da narrativa, sejam transmitidas com eficácia.
125
No que diz respeito às diversas linguagens que o filme incorpora,
destacamos a do teatro (Anísio e Giba na mansão de Marina), a do videoclipe e a do
documentário. A linguagem do teatro aqui o tom da suntuosidade, da riqueza da
mansão, o lugar (palco) que o matador alcança, realizando, assim, sua ascensão
ilícita e assumindo um lugar central.
O videoclipe, por sua vez, linguagem que espelha a velocidade e as
inquietações de nosso tempo, também tem grande destaque na composição da
atmosfera de instabilidade, que passa por uma intensificação a partir da seqüência
do enterro de Estevão, na qual a movimentação da câmera e a sucessão rápida de
imagens são acompanhadas pela música, que introduz uma nova fase na história.
Nesse sentido, a fragmentação visual e a música assumem um papel narrativo
fundamental ao apresentar a condição em que se encontram os personagens.
A inserção de seqüências nas quais prevalece o tom documental também
é outra característica importante do filme. Sendo um modo de aliar ficção e
realidade, a introdução de personagens anônimos da periferia e a própria
participação de Sabotage que sai da realidade para virar personagem, trazendo
consigo o gestual e a linguagem da periferia e narrando a realidade do lado
desfavorecido servem para mostrar a “outra” realidade que não pode e não deve
ser ignorada.
Nesse sentido, temos estabelecido no filme um conjunto de fatores
temáticos, técnicos e artísticos que contribuem para a realização de uma narrativa
tensa do início ao fim e construída de modo a tentar impedir que o espectador tenha
uma visão distanciada, pouco envolvida com a história apresentada.
126
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In:______. Notas de literatura I.
Tradução de: Jorge M.B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p.15-
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132
ANEXOS
133
ANEXO I
Beto Brant: O Invasor
Em O Invasor, Beto Brant mostra as mazelas e contradições da sociedade
brasileira
Por Luciana Sanches
O longa-metragem O Invasor marca a terceira parceria do cineasta
paulista Beto Brant com o escritor Marçal Aquino. Desde sua estréia, em
abril deste ano, o filme não pára de colecionar prêmios. Além de ter sido a
grande sensação do Festival de Brasília, foi vencedor da competição latino-
americana no Festival de Sundance e um dos destaques do Festival de
Berlim. A produção conta com um elenco de estrelas, composto por
Mariana Ximenez, Alexandre Borges, Marco Ricca, Malu Mader e a estréia
do titã Paulo Miklos como ator.
O Invasor retrata o lado podre da sociedade e nos remete a uma
análise do comportamento humano, sempre num eterno dilema entre o
Bem e o Mal. “Eu penso que o mundo está cruel, eu acho que uma
truculência das elites em perpetuar os seus privilégios, isso existe. Por
outro lado, tem a questão de que os oprimidos estão se municiando, estão
se armando. Esse é o conflito que o filme apresenta. Eu acho que a
sociedade brasileira precisa se repensar”, explica o diretor Beto Brant.
Em entrevista exclusiva concedida a Saraiva.com.br o cineasta nos
fala sobre a parceria com Marçal e a relação entre cinema e literatura,
sempre presente em seus filmes.
Saraiva.com.br - O Invasor marca sua terceira parceria com Marçal
Aquino. Essa característica de trabalhar em dupla é mais comum
no cinema europeu. Você prefere trabalhar sempre com um mesmo
roteirista?
Beto Brant Isso acontece na música. Existem bandas que tocam juntas
anos e ninguém acha estranho. Eu acho que existe uma aliança de
idéias. Quando comecei a fazer curtas, li um conto do Marçal que me deu
vontade de adaptar. Aos poucos fui conhecendo sua literatura e acabamos
ficando muito amigos. Eu tenho uma admiração por sua postura, pela
investigação que ele faz do mundo e da história contemporânea do Brasil.
Saraiva.com.br – Então a parceria surgiu dessa admiração pela lite-
ratura do Marçal?
Beto Brant – É, foi assim. E nós já estamos preparando coisas novas, co-
mo o projeto de um novo filme.
Saraiva.com.br - Por que o livro do Marçal foi lançado depois do
filme?
Beto Brant Quando filmamos Ação Entre Amigos, ele tinha um plano de
fazer um livro, que me deu como argumento para o filme, mas que acabou
134
não escrevendo. Quando resolvemos fazer O Invasor, ele estava
começando a escrever esse livro e me deu pra ler. Então, eu resolvi
filmar, antes mesmo que ele terminasse. O que aconteceu é que, como ele
escreveu o roteiro primeiro, acabou se sentindo motivado a terminar o
livro. Acompanhando as filmagens, ele entrou no barato de retomar a idéia
de acabar de escrevê-lo. Nós ficamos prontos para lançar O Invasor antes
da editora. Mas o livro e o filme foram lançados quase ao mesmo tempo,
com uma diferença de poucas semanas.
Saraiva.com.br - Em seu primeiro papel no cinema, Paulo Miklos foi
elogiado pela crítica por seu desempenho como ator. Como surgiu
a idéia de convidá-lo para viver o Anísio?
Beto Brant Paulo Miklos é um sujeito que está na estrada do rock’n roll
25 anos. A banda Titãs surgiu numa época de desvario, de loucura dos
anos 80, mas ao mesmo tempo apresentava letras muito politizadas. O
Paulo é um grande artista, um cara com muita maturidade. Então, ele
“mete a cara” no que faz, tem uma postura muito autêntica, não se
preocupa se vai ficar bem fazendo isso ou aquilo. Ele tem essa “cara-de-
pau” e uma inteligência de quem tem muitos anos de estrada. Para
compor o personagem, nós conversamos com o Sabotage, que trouxe a
linguagem e o gestual da periferia, a terminologia, a gíria e outras
características.
Saraiva.com.br Foi o Sabotage quem deu as dicas ?
Beto Brant É, foi ele. E os dois são músicos, então eles acabaram se
entendendo completamente. O Paulo tem ouvido de músico, né? É um cara
muito forte no Titãs, é mais intérprete do que músico. No palco ele tem
uma atitude muito cheia de estilo.
Saraiva.com.br - Apesar de mostrar o lado podre da sociedade e to-
da a promiscuidade que nos rodeia, o filme não fez nenhum julga-
mento de valores, se manteve neutro. Qual a reação que você pre-
tendia arrancar do público com essa história?
Beto Brant Em primeiro plano está a literatura, que tem essa
capacidade de fazer com que você se envolva emocionalmente, assim
como o cinema. Eu não tenho a pretensão de fazer um tratado da
sociedade brasileira, um manifesto. Em primeiro plano está a história. O
conflito de classes é pano de fundo. O objetivo era contar uma história
adrenalizada por esses dois lados representados pelo Anísio, que é o
personagem do Paulo Miklos, que é um príncipe e ao mesmo tempo é um
demônio, que é carismático e envolvente, mas ao mesmo tempo é um
“mala”.
Saraiva.com.br - Esse é o seu primeiro filme cuja ação se passa to-
talmente numa cidade grande. Como foi encarar de frente a perife-
ria de São Paulo?
135
Beto Brant – O maior barato foi fazer um filme na cidade em que eu vivo
há mais de 30 anos. Quando você assiste ao filme você reconhece lugares,
pessoas. E isso é legal. Mas a periferia faz parte da cidade. A gente chegou
na periferia com o Sabotage, que conhecia muita gente, então nós fomos
apresentados, não invadimos a área de ninguém. Inclusive foi legal porque
as pessoas ajudaram. Também tinha esse lance com a Mariana Ximenez,
todos estavam curiosos pra chegar perto.
Saraiva.com.br - O Invasor não pára de colecionar prêmios desde
seu lançamento e já foi considerado um fenômeno de mídia. Como
você vê o sucesso do filme?
Beto Brant – Que sucesso ? (risos).
Saraiva.com.br Esses prêmios todos? Isso é novo na sua carrei-
ra?
Beto Brant “Os Matadores” foi muito bem recebido pela crítica e dentro
da classe também. Então o sucesso não veio de uma hora para outra,
existe uma trajetória. Eu estou 17 anos na estrada. É uma carreira
muito bem construída com essa parceria do Renato, do Marçal, da Bianca.
Ela é gradual. A gente não tem esse deslumbramento porque começa tudo
de novo quando temos que fazer outro filme. De fato muitas chances se
abriram, mas nada se efetivou. De qualquer forma, que bom que está
dando certo.
Saraiva.com.br – Você faz alguma hierarquia de valores entre os
seus filmes?
Beto Brant – Não tem porque eu acho que se a gente não perder a cabe-
ça e procurar se aprimorar, temos que fazer um filme melhor que o outro.
Você tem que amadurecer, a não ser que se degenere e se entregue a lu-
xúria. A idéia é você aprender mais coisas, com um nível de complexidade
maior, vivências emocionais. Essa maturidade acaba exigindo filmes me-
lhores, acredito. Mas todos os filmes foram muito legais de fazer. O Inva-
sor é com certeza o filme mais impactante, mais perturbador. Eu me senti
mais livre para experimentar.
Saraiva.com.br - A maioria dos diretores brasileiros do passado
eram roteiristas de seus próprios filmes. Você concorda que o cine-
ma de autor perdeu muito de sua força? É uma tendência do cine-
ma nacional os cineastas se absterem do roteiro e ficarem somente
com a direção?
Beto Brant – Não sei se é uma tendência. Eu acho que não dá para traçar
um paralelo, fazer esse tipo de comparação porque estamos em outra épo-
ca e as coisas mudaram muito, a sociedade mudou. Não dá pra comparar
a produção de hoje com aquele cinema revolucionário do Joaquim Pedro,
do Nelson Pereira e do Glauber, que morreu tentado fazer seus filmes. É
um outro contexto. Mas é uma luta constante também, um filme acaba e a
gente já está correndo para conseguir fazer outro. Meu cinema está muito
136
ligado à literatura, à fantasia e nem tanto à realidade escancarada e crua.
Saraiva.com.br - Uma parceria com a televisão seria uma solução
para os problemas do cinema nacional?
Beto Brant Não sei se ajuda muito. Depende da política de cada
televisão. Eu sou um pouco cético, boto na autonomia da classe, nessas
pessoas que se mobilizam, que olham e questionam. Eu não acredito
nessas grandes TVs comerciais porque têm interesses econômicos como
gestoras dessa política. Eu acredito na Ancine, que tem uma postura mais
comprometida com o desenvolvimento cultural do país. Seria ótimo que a
televisão no Brasil tivesse esse comprometimento. Se o Canal Brasil fosse
um canal aberto, por exemplo, seria um canal com altíssimos índices de
audiência. Na verdade não um interesse econômico em que ele seja
aberto, inclusive para você assiná-lo precisa comprar também aquela
“pacoteira” de canais. E é caro. O que a televisão aberta faz? Passa
aqueles filmes medonhos, horrorosos, de guerra. A televisão brasileira
criou um culto ao sucesso, ao colunismo social, às cópias mal feitas. A
televisão levanta essa bola, essa coisa amarrada que a própria cultura
popular produz.
Qual a expectativa que você tem para o lançamento do filme em
DVD?
Beto Brant Esse filme foi feito em 16 mm e passei para HDTV, onde
pude fazer toda a manipulação de cores, de tonalidades, enfim, toda uma
linguagem do filme de sair do realismo e partir para o expressionismo, da
paranóia do personagem e tal. Pude criar efeitos, como a cena do viaduto,
quando o personagem do Marco Ricca está embriagado. Eu utilizei a
tecnologia para criar elementos de linguagem para o filme. Então, acho
que a tecnologia é uma aliada sempre. Um DVD, com maior fidelidade de
imagem, com maior rapidez, é muito legal. Essa questão dos extras, o
making of, tem clipes do Sabotage e do Tolerância Zero, um documentário
sobre o filme, cenas de bastidores, fotos que a gente selecionou. Tudo isso
que está em volta do filme é legal de se ver. Infelizmente não é uma coisa
popular, mas a tendência é que seja.
Saraiva.com.br - Quais são os próximos passos da sua produtora, a
“Drama Filmes”? Algum novo projeto?
Beto Brant – O Marçal está escrevendo coisas, já tem um livro que será
lançado no começo do próximo ano chamado Cabeça à Prêmio. Tem um
outro projeto que estou querendo filmar, mas não quero atropelá-lo como
fiz com Ação Entre Amigos e com O Invasor. Quero deixar que ele escreva
para depois pensarmos num roteiro.
137
ANEXO II
Trecho da entrevista concedida pelo diretor de fotografia,
Toca Seabra.
Texto por André Moncaio - GT Projeção ABC
Agradecimentos a Marcelo Trotta (Tintin) e Camila Mouri
A cor: saturação e dessaturação
O fotógrafo revelou que em muitos momentos a cor era sugerida na capta-
ção e depois acentuada no telecine. Um bom exemplo são as cenas que se passam
nos bares, na boate e nos apartamentos.
A dessaturação das cores também foi uma opção e foi realizada na
telecinagem do material Super16mm. As cenas do escritório de engenharia e dos
personagens de Marco Ricca e Alexandre Borges receberam tratamento do colorista
Ely Silva para “perder cor” e ganhar uma eventual e leve tonalidade verde. Todo o
tratamento de imagem - cor, textura, granulação, contraste - foi feito no C-Reality um
telecine 2K com uma mesa de correção de cor DaVinci, e os efeitos especiais foram
realizados nos programas Fire e Inferno.
A cena de Marina com Anísio na boate e a luz negra
Toca conta que nesta cena todas a luzes foram “gelatinadas” Ele usou a
gelatina C ongo Blue misturada com refletores HMIs de 200w, tubos de lâmpadas
fluorescentes com gelatina verde foram colocados nas colunas e ‘’escondidos” por
tules e pequenas lâmpadas foram espalhadas pelo bar com gelatinas coloridas.
Houve um pedido para que alguns figurantes fossem para a locação com roupas
fluorescentes e depois no telecine “a gente deu uma pilotada violenta”.
138
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