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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM LINGÜÍSTICA APLICADA
EMÍLIO SOARES RIBEIRO
A RELAÇÃO CINEMA-LITERATURA NA CONSTRUÇÃO
DA SIMBOLOGIA DO ANEL NA OBRA O SENHOR DOS
ANÉIS: UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA
FORTALEZA – CEARÁ
2007
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
EMÍLIO SOARES RIBEIRO
A RELAÇÃO CINEMA-LITERATURA NA CONSTRUÇÃO
DA SIMBOLOGIA DO ANEL NA OBRA O SENHOR DOS
ANÉIS: UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
Acadêmico em Lingüística Aplicada do Centro de
Humanidades da Universidade Estadual do Ceará,
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Lingüística Aplicada. Área de
concentração: Tradução e Ensino-Aprendizagem de
L2/LE. Linha de pesquisa: Tradução, Lexicologia e
Processamento da Linguagem.
Orientadora: Profª. Dra. Soraya Ferreira Alves.
FORTALEZA – CEARÁ
2007
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM LINGÜÍSTICA APLICADA
Título do trabalho: A relação cinema-literatura na construção da simbologia do
Anel na obra O Senhor dos Anéis: uma análise intersemiótica.
Autor: Emílio Soares Ribeiro
Defesa em: 09/08/2007 Conceito obtido: ____________________
Banca Examinadora
___________________________________
Soraya Ferreira Alves, Profa. Dra.
____________________________ ____________________________
Denise Azevedo Duarte Guimarães, Profa. Dra. Laura Tey Iwakami, Profa. Dra.
3
EPÍGRAFE
“Seria dizer pouco que vivemos num mundo de mbolos um mundo de símbolos
vive em nós”. (Jean Chevalier)
“Fantasia é uma atividade humana normal. Ela certamente não destrói ou mesmo
insulta a Razão; e ela também não embota o apetite pela veracidade científica, nem
obscurece sua percepção. Ao contrário, quão mais inteligentes e claros são os
argumentos, melhor será a fantasia com eles construída. Se os homens estivessem
em um estado no qual não desejassem conhecer ou perceber a verdade (fatos ou
evidências), então a Fantasia iria repousar até que estivessem todos curados. Se eles
estivessem sempre em tal estado, o que não parece de todo impossível, a fantasia
desapareceria e se tornaria uma Desilusão Mórbida.” (J. R. R. Tolkien).
4
Aos meus pais, Jorge e Maria, a quem devo o que sou e o que sei.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte de esperança que me guia sempre, mesmo diante das adversidades.
À Profa. Dra. Soraya Ferreira Alves, pelo exemplo de sinceridade e dedicação na
orientação atenta da dissertação.
À Profa. Dra. Vera Lúcia Santiago Araújo, pelo constante estímulo à pesquisa, bem
como pela ampla participação em minha vida acadêmica.
À Profa. Dra. Denise Azevedo Duarte Guimarães, pelas relevantes contribuições por
ocasião do Exame de Qualificação.
A todos os amigos do CMLA, dentre os quais destaco as professoras Laura Tey
Iwakami, Stella Vieira, Dilamar Araújo, Irenísia Oliveira, pelas importantes
reflexões no campo da Lingüística, Tradução e Literatura.
À Profa. Paula Lenz Costa, pelo exemplo de compreensão.
Às professoras Josineuda Short e Astrid Miranda, pelo amor com que ministram
suas disciplinas e pelos muitos ensinamentos durante o curso de Letras.
Ao Prof. Dr. Carlos Augusto Viana da Silva, pelo exemplo a ser seguido e fonte de
inspiração constante que representou para mim, desde o período da graduação.
Às professoras Alba Liath, Marisa Aderaldo e Salete Nunes, que, à frente do Núcleo
de Línguas Estrangeiras da UECE, sempre ajudaram no que fosse possível para a
realização dos meus sonhos, assim como os de todos os professores do Núcleo.
6
Aos amigos do grupo de pesquisa Tradução para a mídia, em especial às
professoras e amigas Lucyana do Amaral Brilhante e Renata de Oliveira
Mascarenhas, pelas importantes discussões acerca de questões ligadas à Tradução,
Semiótica, Cinema e Literatura.
À Sandra Maria de Farias, fonte de amor e apoio incondicional em todos os
momentos de minha vida, principalmente nos mais tenebrosos.
Ao amigo Francisco Kássio Oliveira Silva, e profundo conhecedor da obra de
Tolkien, pelas várias conversas informais, imprescindíveis para a concretização da
pesquisa.
Ao Colégio Santa Cecília, pelo incentivo à constante qualificação dos educadores
que compõem seu quadro docente.
À FUNCAP, pelo apoio financeiro que tornou possível a realização do presente
trabalho.
Por fim, aos amigos e familiares, que sempre compreenderam a minha ausência e
que muito torceram pelo sucesso do trabalho.
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RESUMO
Através de uma análise interpretativa do símbolo Anel do livro O Senhor dos Anéis,
aliada a uma descrição detalhada das seqüências de plano, da movimentação de
câmera, do som e da iluminação das cenas do filme homônimo que fazem referência
ao Anel, a presente dissertação mostra como literatura e cinema se relacionam na
construção de tal simbologia e, através da confrontação entre os dois materiais,
analisa as estratégias utilizadas pelo diretor Peter Jackson e sua equipe para traduzir
tal símbolo do livro de J.R.R. Tolkien para o cinema. Dentre os vários significados e
associações do símbolo Anel na obra escrita, a pesquisa destacou, por exemplo, sua
personificação; a ligação do mbolo com o Olho em chamas de seu criador, com a
cor vermelha e com o fogo onde fora forjado; a influência que o Anel exerce sobre
todo aquele que o deseja ou possui em troca do poder que oferece; o Anel como
símbolo da união entre diversas raças; e a relação do Anel com o tempo. Dentre as
estratégias utilizadas por Peter Jackson e sua equipe para recriar expressivamente
tais significados no cinema, a análise destacou o close-up, a câmera subjetiva, o
zoom out, aspectos qualitativos da imagem como a cor vermelha, efeitos especiais, a
elipse do som, o uso do primeiro plano, a mera lenta, a contre-plongée, o zoom in,
a plongée, e a utilização de câmera panorâmica. A análise vincula a compreensão
do papel significativo do mbolo a ser estudado e a interpretação de alguns de seus
múltiplos sentidos a análises dos processos pelos quais os signos são construídos,
algo possível graças aos conceitos desenvolvidos por Peirce, e o almeja esgotar
nenhum dos domínios relacionados ao conceito de representação simbólica, mas
contribuir para a realização de outros estudos de tradução intersemiótica e tradução
áudio-visual, estudos literários e sua simbologia em geral.
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ABSTRACT
Through an interpretative analysis of the symbol Ring from the book The Lord of the
Rings, allied to a detailed description of the shot sequences, camera movements,
sound and light of the scenes of the homonymous movie that make reference to the
Ring, the current dissertation shows how literature and cinema relate to each other to
build such a symbol and, by confronting the two materials, analyses the strategies
used by the director Peter Jackson and his group to translate this symbol from the
book written by J. R. R. Tolkien to the cinema. Among the various meanings and
associations of the symbol Ring in the written work, the analysis showed, for
example, its personification; the connection between the symbol, its creator’s
burning Eye, the color red and the fire where it was forged; the influence the Ring
exerts over the ones who desire or possess it in exchange of the power it offers; the
Ring as a symbol of union between the diverse races; and the relation between the
Ring and the time. Among the strategies used by Peter Jackson and his group to
recreate expressively such meanings in the cinema, the analysis depicted the close-
up, the subjective camera, the zoom out, image qualitative aspects such as the color
red, visual effects, the ellipse of sound, the use of close shot, slow motion, the
contre-plongée, zoom in, the plongée, and the use of pan shot. The analysis links the
comprehension about the significant role of the symbol to be studied, the
interpretation of some of its multiple senses and the analysis of the process by which
the signs are built, something that is possible due to the concepts developed by
Peirce, and does not aim at using up none of domains related to the concept of
symbolic representation, but at contributing to other studies of intersemiotic and
audiovisual translation, literary studies and its symbols in general.
9
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: O Anel personificado .................................................................................81
Figura 2: Câmera subjetiva e a relação Anel-Olho ...................................................88
Figura 3: O Anel entra na mente de Gollum através do olho ...................................90
Figura 4: Frodo olha no Espelho de Galadriel ..........................................................93
Figura 5: A criação do Anel por Sauron ...................................................................97
Figura 6: O sol vermelho – sangue derramado .........................................................98
Figura 7: A reconstrução da espada Narsil, agora chamada Andúril.........................99
Figura 8: Shiva circundada por um anel em chamas ..............................................100
Figura 9: O pavor de Frodo e a relação Anel-fogo .................................................103
Figura10: Anel de fumaça .......................................................................................105
Figura 11: Elipse do som ........................................................................................113
Figura 12: Câmera lenta ..........................................................................................114
Figura 13: O Anel cresce na mente de Frodo .........................................................116
Figura 14: Frodo põe o Anel de poder.....................................................................121
Figura 15: A morte de Gollum.................................................................................126
Figura 16: Os anéis olímpicos.................................................................................129
Figura 17: O Conselho de Elrond ...........................................................................130
Figura 18: Câmera panorâmica................................................................................133
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................11
1. A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA E A RELAÇÃO CINEMA-
LITERATURA..........................................................................................................18
1.1.
A noção de equivalência e o conceito de tradução como diferença nos Estudos
de Tradução.......................................................................................................18
1.2.
A tradução como processo semiótico: transmutação de signos em signos........31
2. O ESTUDO DO SIMBÓLICO............................................................................54
2.1.
Considerações gerais sobre o símbolo...............................................................54
2.2.
A interpretação do simbólico.............................................................................57
2.3.
O símbolo para Peirce........................................................................................67
3. A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA DE O SENHOR DOS ANÉIS..................72
3.1.
Procedimentos metodológicos...........................................................................72
3.1.1. Constituição do corpus..............................................................................72
3.1.1.1. O livro de Tolkien..........................................................................72
3.1.1.2. O filme de Peter Jackson................................................................74
3.1.2. Análise dos dados......................................................................................74
3.2.
A construção do símbolo Anel na obra O Senhor dos Anéis: uma análise
intersemiótica.....................................................................................................76
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................138
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................143
FILMOGRAFIA......................................................................................................149
11
INTRODUÇÃO
As produções audiovisuais, dentre elas, minisséries, novelas e filmes, m
sofrido grande influência da literatura, visto que vários gêneros literários são
constantemente adaptados para as telas. Dentro de uma sociedade tão habituada a
imagens, o cinema, de certa forma, permite que os espectadores se interessem em ler
a obra escrita após terem acesso ao filme.
De fato, observamos que muitas obras literárias são produzidas almejando a
indústria cinematográfica e, através do marketing que envolve sua produção, fazem
com que o leitor se interesse pelo livro homônimo. O oposto também ocorre com
freqüência: muitas obras escritas tiveram como referência produções fílmicas.
Vários diretores de cinema acharam na literatura modelos para elaborar o
enredo, métodos de criar personagens, modos de apresentar processos de
pensamento e meios de trabalhar com tempo e espaço. As pessoas que trabalham
com produção cinematográfica tiram vantagem das ilimitadas técnicas dos filmes
para fazer a tradução de qualquer trabalho literário para as telas, muito diferente das
primeiras adaptações desse tipo, que possuíam apenas a preocupação de se manter o
mais fiel possíveis ao enredo original.
Alguns críticos de cinema e fãs de Tolkien entenderam como “de mau gosto”
as modificações feitas pelo diretor de O Senhor dos Anéis, Peter Jackson, e sua
equipe, com relação ao enredo (a exclusão, por exemplo, de personagens como Tom
Bombadil). Outros, ainda fundamentados em noções tradicionais sobre a relação
cinema-literatura, chegaram a afirmar que o filme “conseguiu chegar muito perto do
nível do livro”. O crítico da folha de São Paulo, Inácio Araújo (2002), por exemplo,
comentou os efeitos visuais utilizados na realização do filme, afirmando que, ao
assistir ao filme, “o espectador tende ao sono profundo, enquanto na tela processa-se
a overdose de magia” e, por não considerar as questões teóricas que permeiam uma
adaptação cinematográfica, diz que o filme de Peter Jackson é “ordinário, apenas
uma convenção que reduz o filme a uma carona no best-seller literário”.
12
Ao ser traduzida para o cinema, uma obra literária obviamente deixa de ser
um livro e adquire novas significações, dando origem ao filme, cujo diretor-tradutor
é o autor. No presente trabalho, chamo a adaptação de um trabalho literário para a
tela simplesmente tradução, porque ela é considerada apenas como um tipo de texto
que faz uma releitura de outro texto, redimensionando-o.
John Ronald Reuel Tolkien foi um escritor britânico e um dos mais lebres
professores da Universidade de Oxford (1945-1959). Além de lingüista, publicou
tanto estudos filológicos como também romances baseados em uma mitologia por
ele mesmo criada.
Em 1917, Tolkien começou a escrever a história da Terra-Média
1
com o livro
O Silmarillion, com a intenção de criar uma mitologia para a Inglaterra. Habitada
por criaturas estranhas como elfos, magos e orcs, a Terra-Média não era considerada
pelo autor uma história fantasiosa, mas algo que realmente se situa no passado do
nosso mundo.
Em 1920 ele assumiu o posto de professor na Universidade de Leeds e, em
1925, tornou-se professor de anglo-saxão da Universidade de Oxford. Com os anos,
apoiado por seu amigo de Oxford, C. S. Lewis, Tolkien mudou seus interesses e
passou a escrever histórias infantis, incluindo um conto intitulado O Hobbit, que foi
publicado em 1937 e que, a partir daquele dia, se tornou uma das histórias infantis
mais conhecidas em todo o mundo.
Tolkien é mais conhecido pelo seu livro escrito em 1954 e intitulado O
Senhor dos Anéis, umas das mais populares e influentes histórias do gênero de
fantasia como também da literatura em geral. Quando a lemos, notamos que
Tolkien, como lingüista e grande perito em diversos idiomas antigos, o criou
somente um mundo novo, seus habitantes e línguas que tornam a trama ainda mais
atraente. Ele foi o criador de uma literatura inovadora, que insere o leitor em uma
1
Terra imaginada por Tolkien em que se passa a história de O Senhor dos Anéis. Dentre as inspirações para a
criação do termo Terra-Média (Middle-Earth), incluem-se a literatura Anglo-saxã (Middangeard, termo
citado várias vezes em Beowulf), o Inglês Médio (Midden-erd ou Middel-erd) ou o Norueguês antigo (com o
termo Midgard).
13
dimensão mitológica, rica em símbolos e detalhes. A criatividade de suas obras e a
maneira como todos os elementos estão relacionados instituiu, de fato, um novo
estilo de obras de literatura fantástica, cujas influências podem ser observadas em
inúmeras outros trabalhos, entre os quais destaco Duna, de Frank Herbert, A Cor da
Magia, de Terry Pratchett, e recentemente, Harry Potter, de J.K. Rowling.
Os livros de Tolkien fizeram sucesso entre ingleses e americanos nos anos 60
e 70, marcaram o movimento pacifista hippie e muitos de seus personagens e
histórias estão presentes em músicas de bandas de rock das décadas de 60, 70 e 80,
como Led Zeppelin e Blind Guardian. Atualmente, após o sucesso que o filme
obteve, a mitologia criada por Tolkien ganhou muitos novos adeptos.
O livro O Senhor dos Anéis narra a história do hobbit
2
Frodo, que, com a
ajuda de alguns companheiros, é o responsável pela destruição do Anel de poder
criado pelo Senhor da Escuridão, Sauron, para controlar outros anéis mágicos que
havia dado a alguns povos da Terra-Média. Enquanto Sauron recupera sua força,
Frodo deve destruir o Anel, lançando-o no fogo da Montanha da Perdição, para que
Sauron não reconquiste o mundo.
A obra está centrada na eterna luta do bem contra o mal e se passa em um
mundo arcaico (Terra-Média) influenciado pelas culturas céltica, nórdica, irlandesa,
bem como pelas sagas arturianas. Dentre os temas abordados na trama, se
sobressaem a mensagem de respeito ao próximo, tolerância, auto-sacrifício,
amizade, amor e desapego às coisas materiais.
Entre 2001 e 2003, o filme O Senhor dos Anéis, dirigido pelo diretor
neozelandês Peter Jackson, foi lançado no cinema em forma de trilogia. Certamente
muitos trabalhos literários são difíceis de ser traduzidos para o cinema, mas não
impossíveis. Jackson sabia que ele não poderia ser modesto em se tratando de uma
2
Hobbits são seres criados por Tolkien. São menores que os anões, mas extremamente ágeis, podendo
desaparecer com facilidade. Seus pés são grandes e peludos, tornando-os resistentes a grandes caminhadas.
Normalmente são pacatos, e adoram contar e ouvir boas histórias, comer e fumar cachimbo.
14
tradução desse nível. Decidiu então traduzir a trilogia
3
de O Senhor dos Anéis
simultaneamente, em dezoito meses.
Tolkien criou um novo mundo, seu povo, sua própria história e geografia
mitos que parecem reais. Quando ele escreve, pensamos que tudo é autêntico, pois
usa muitos adjetivos e descreve os personagens e principalmente o cenário
minuciosamente. Desde o começo, Jackson queria algo que também parecesse muito
real. O seu desafio era traduzir em imagens todas essas descrições existentes na obra
escrita e inserir no filme toda a ilusão de realismo do livro de Tolkien.
A obra é repleta de símbolos, dentre os quais se destaca o Anel, elemento que
permeia toda a história, sendo, por muitos, considerado um personagem na trama.
Dentre os vários anéis criados por Tolkien em sua vasta obra, o Anel de Sauron é a
representação do mal que destrói e corrompe a mente e o coração humanos, o que o
torna uma ameaça a felicidade da Terra-Média. Ao se associar a outros mbolos, o
Anel de poder compõe diversos significados que fundamentam os valores e
ensinamentos construídos ao longo da obra.
Com certeza, Tolkien não foi o primeiro autor a utilizar um anel como
elemento essencial de sua obra. São inúmeros os exemplos e as referências que a
literatura traz sobre esse mbolo, exemplos estes aos quais serão feitas referências
durante a análise. Diversos povos antigos criaram significados culturais e religiosos
para esse objeto aparentemente simples, mas que se constitui como uma verdadeira
ambivalência, posto que é um mbolo que une, mas que ao mesmo tempo isola,
como na imagem de um falconeiro ao aprisionar com uma argola um falcão, que, a
partir desse momento, caçará apenas para ele.
No livro que precede O Senhor dos Anéis, intitulado O Hobbit, Tolkien narra
a história do hobbit Bilbo, que durante suas aventuras, encontra um anel na caverna
de Gollum
4
. O anel de Gollum deriva de uma lenda nórdica sobre um anão chamado
3
Tolkien escreveu um livro, O Senhor dos Anéis, mas seu editor, achando que o livro era muito longo,
resolveu publicá-lo em três partes (A Sociedade do Anel; As duas torres; O Retorno do Rei).
4
Ser da raça dos hobbits que, quinhentos anos antes dos acontecimentos relatados em O Senhor dos Anéis, ao
pescar com o amigo Déagol, tomou-lhe o anel por ele encontrado e o matou.
15
Andvari, que tem seu anel mágico roubado. Ele, assim como Gollum, amaldiçoa
qualquer um que tenta ficar com o precioso objeto. Apesar de o anel dar longa vida a
quem o possuísse e fazer desaparecer quem dele fizesse uso, ele não desempenhava
um papel tão importante em O Hobbit. Em vez de escrever uma outra história sobre
aventuras em busca de tesouros, Tolkien queria algo mais tenebroso, que girasse em
torno do combate a um grande mal.
Todo o enredo de O Senhor dos Anéis adquiriu então uma nova acepção.
Bilbo precisaria livrar-se do anel aparentemente simples, mas que agora, depois de
descoberta a sua identidade, havia adquirido um caráter maligno. O objeto, agora,
possuía um mal dentro de si. São vários os anéis da literatura possuidores de espírito
ou alma. Uma lenda judaica, por exemplo, diz que o arcanjo Miguel deu ao rei
Salomão um anel mágico para que este pudesse aprisionar as almas dos gênios do
mal. O rei obrigou os gênios a construírem um grande templo e depois os lançou no
Mar Vermelho.
Da mesma forma, Tolkien construiu o enredo de O Senhor dos Anéis em
torno do Um Anel, que continha o mal de quem o criou, Sauron. Visto que o Anel era
parte do inimigo, este poderia ser derrotado, caso o objeto por ele criado também
fosse destruído.
O presente trabalho almeja, assim, analisar como literatura e cinema se
relacionam na construção da simbologia do Anel na obra O Senhor dos Anéis, bem
como estudar as estratégias usadas pelo diretor Peter Jackson para traduzir a
simbologia do Anel do livro para o cinema. A análise não almeja confrontar o filme
e o livro homônimo em busca de equivalências e discrepâncias, mas, além de
analisar como a obra escrita e o filme se relacionam na construção dos significados
do símbolo Anel, pretende estudar os recursos utilizados pelos produtores do filme
para traduzir tais significados.
O trabalho está dividido em três capítulos. A primeira parte do primeiro
capítulo justifica a concepção de tradução como diferença, criadora de um novo
texto dotado de uma outra significação e inserido em um outro sistema. Com o
16
intuito de fundamentar o estudo, farei uma discussão a respeito dos estudos de
Tradução, dando ênfase aos Estudos Descritivos de Toury (1995), bem como de
Lefevere (1992), que considera tradução como reescritura, o que nos faz
compreender a tradução cinematográfica de O Senhor dos Anéis como uma
recriação do mundo criado por Tolkien. Também citarei autores que trabalham a
relação cinema-literatura, dando importância a questões teóricas relacionadas a cada
um dos sistemas sígnicos.
Por se tratar de um estudo que envolve não apenas a questão tradutória, mas
também os diversos tipos de linguagem presentes no cinema, utilizar-me-ei de
conceitos da semiótica de Peirce, cujas estratégias e métodos para a leitura e
conseqüente análise dos processos pelos quais os signos são construídos, são
discutidos na segunda parte do primeiro capítulo, através das abordagens de Joly
(2002), Peirce (1975 e 1983), Perez (2004), Pignatari (1987), Pinto (1987), Santaella
e Nöth (1999), Santaella (1985, 1995, 2002 e 2005) e Santana (2005). Compõem a
fundamentação discussões teóricas acerca de cinema e sua relação com a literatura,
através de autores como Aumont et al. (1995), Macfarlane (1996) e Stam (2000 e
2005).
Para fundamentar a análise e interpretação da construção do mbolo do anel
em O Senhor dos Anéis, dedico todo o segundo capítulo ao estudo do simbólico. Na
primeira parte, teço considerações gerais sobre o termo símbolo, sua origem,
conceito e diferentes significados a ele atribuídos. Na segunda parte do capítulo,
procuro, de uma maneira geral, tecer comentários acerca da compreensão e
interpretação dos símbolos. Na terceira e última parte do capítulo, trato da
concepção de símbolo para Peirce. As discussões acerca do símbolo em geral e sua
interpretação presentes no capítulo têm como base as idéias de Chevalier (1993),
Cirlot (1984), D’alviella (s/d), Eliade (1991a e b), Grimal (2000), Lurker (1997) e
Riffard (1993).
No terceiro e último capítulo, apresento os procedimentos metodológicos e a
análise da transmutação do livro O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, para o
17
cinema. Em busca de algumas das várias significações do símbolo em questão, a
análise mescla compreensão e interpretação, envolvendo o apenas o estudo de seu
papel significativo na obra, mas também possibilidades de elaboração pessoal em
favor da autoridade das obras estudadas.
Não me preocuparei em fazer juízo de valor entre o Anel do livro e o do
filme, visto que tal mbolo está sendo traduzido para um outro sistema de signos.
Além disso, a presente análise não pretende esgotar todos os domínios e
significações do símbolo em estudo, algo que seria impossível, mas observar como
literatura e cinema se relacionam na construção da simbologia do Anel na obra O
Senhor dos Anéis, assim como verificar os artifícios do cinema que o diretor Peter
Jackson e sua equipe utilizaram para traduzir o Anel criado por Tolkien.
18
1. A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA E A RELAÇÃO
CINEMA-LITERATURA
Este capítulo discute os fundamentos e questões ligadas ao ato tradutório, sua
relação com a adaptação de obras literárias para o cinema, bem como as questões
intersemióticas envolvidas em tal processo.
O capítulo se divide em duas partes. A primeira discute a concepção de
tradução como diferença, criadora de um novo texto dotado de uma outra
significação e inserido em um outro sistema, o que torna necessária a discussão
acerca da impossibilidade de equivalência” no processo tradutório. A segunda e
última parte aborda as estratégias e métodos para a leitura e conseqüente análise dos
processos pelos quais os signos são construídos, com base na semiótica de Charles
Sanders Peirce.
1.1. A NOÇÃO DE EQUIVALÊNCIA E O CONCEITO DE
TRADUÇÃO COMO DIFERENÇA NOS ESTUDOS DE TRADUÇÃO.
A tradução, como atividade prática, remonta aos tempos romanos antigos, e
foi, durante muito tempo, rigidamente considerada como “certa” ou “errada”, “fiel”
ou “livre”. Pouca importância foi atribuída ao ato tradutório como processo através
do qual a atuação real do tradutor ocorre.
Como produto, porém, a tradução continua sendo estudada, criticada e até
mesmo julgada a partir dos mesmos critérios tradicionais de fidelidade que
nortearam sua prática até pouco tempo. Com o Pós-estruturalismo e a Pós-
modernidade, os modelos teóricos m se modificado, e atualmente entende-se a
tradução como uma transformação. Relacionam-na até à concepção de criação,
como evidencia o termo “transcriação”, de Haroldo de Campos.
19
É precisamente a procura pela equivalência que tem delineado a principal
dificuldade da prática tradutória, ao mesmo tempo em que o papel central dos
teóricos é definir o caráter e as condições de equivalência em tradução. Contudo,
apesar de ser uma questão pertinente, ela tende a integrar enunciados que adotam
como pressuposto algumas relações polarizadoras extensivamente estipuladas entre
tradução “literal” e tradução “livre”.
Para Wolfram Wills (apud Rodrigues, 2000: 18), não se pode determinar o
momento preciso de emergência do termo equivalência de tradução na ciência da
tradução. Presumivelmente, os estudiosos da tradução tomaram-no da matemática
no decurso de suas tentativas de construir uma terminologia autônoma”. Embora não
se conheça quando nem por quem o conceito foi inserido nos estudos de tradução,
observa-se, através da literatura sobre tradução escrita após a segunda metade do
século XX, que se constituiu como um dos seus mais importantes assuntos. Roman
Jakobson (1991: 65) o apenas entende que a tradução envolve “duas mensagens
equivalentes em dois códigos diferentes”, como afirma que “a equivalência na
diferença é o problema principal da linguagem e a principal preocupação
lingüística”.
Os teóricos, de uma maneira geral, m grande dificuldade para conceituar a
“equivalência”, embora seja um termo muito empregado e considerado importante.
Como forma de superar o entrave, chegam a fragmentar o conceito em várias
noções, porém não esclarecem a própria “equivalência”, que pode ser vista sob
diversos aspectos, o que leva a muitas tipologias diferentes.
Rodrigues (2000: 27) mostra que, no Dicionário latino-português de
Francisco Torrinha, a decomposição da palavra latina aequivalere (primitiva de
equivaler) remete a alguns significados que interessam ao contexto da tradução,
como igualdade ou obtenção de um mesmo valor. A etimologia do componente
lexical equivalência deixa perceber uma tendência para atingir a igualdade e
esclarece também a maneira pela qual muitos, ao considerarem que a tradução busca
atingir o nível do original, entendem a tradução como inferior e secundária.
20
Essa idéia, da mesma forma que qualifica o tradutor como incapaz, deixa
claro o fato de a tradução não se mostrar como igual ao texto de partida. A noção de
equivalência está associada à concepção que considera que a tradução deve
reproduzir o texto de partida e, conseqüentemente, ter o seu valor, pois sua utilidade
remete à busca da unidade, da semelhança existente entre o texto traduzido e o texto
original.
Além da etimologia, o conceito matemático de equivalência também se
relaciona à noção de igualdade. Segundo Raymond van den Broeck (apud
Rodrigues, 2002: 20), esta definição em matemática do termo equivalência é o
obstáculo central ao seu uso em teoria da tradução, no instante em que sugere uma
simetria e reflexividade que não se aplicam à tradução.
Ainda que a noção de fidelidade ao original como obra única, sagrada e
inalterável continue a perturbar os tradutores atuais, cada vez mais as traduções vêm
sendo tomadas não como produtos emanados do original, mas como frutos de
leituras diversas, que passam a ser vistas como signos icônicos umas das outras.
Nesse aspecto, a tradução é considerada uma atividade semiótica, e, portanto, digna
de uma maior liberdade e criatividade.
O conceito de equivalência também deriva do fato de que qualquer
linguagem possui uma ordenação básica, ou seja, os signos não se aglomeram, mas
são como sistemas organizados semântica e sintaticamente. A tradução se comporta
como um processo de transformação de um texto, estabelecido por um determinado
sistema semiótico, em um outro texto, pertencente a outro sistema semiótico. Isso
nos faz entender que, no momento em que interpretamos uma certa informação dada
em uma “linguagem” e codificamo-la por meio de um outro sistema semiótico,
torna-se imprescindível alterá-la, que todo sistema semiótico é marcado por
propriedades e restrições próprias, e nenhum conteúdo existe sem qualquer relação
com o meio no qual está inserido. É necessário, portanto, analisar as condições que
permitem a transformação de um texto em outro.
21
Autores do passado que defendiam as chamadas “teorias lingüísticas da
tradução” estudavam o ato tradutório através de uma abordagem prescritiva, a qual
enfatizava a simples transposição de uma língua de partida para uma ngua de
chegada. Dentre tais estudos, podemos incluir a Escola de Leipzig (Alemanha), cuja
inspiração originou-se nas ciências exatas e na lógica formal, e cuja teoria defendia a
simetria entre texto original e texto traduzido.
Uma outra corrente lingüística surgiu com John Catford, na Inglaterra, e
Nida, nos Estados Unidos. Ao estabelecer o conceito de equivalente de tradução”,
Catford propunha muito mais estudar as semelhanças e diferenças entre línguas do
que analisar a tradução, pois a parte mais significativa de suas pesquisas se
associava a questões envolvendo os sistemas lingüísticos. Igualmente, em grande
parte de sua obra A linguistic theory of translation: an essay in applied linguistics
(1960), apenas referência a orações descontextualizadas, o que leva a uma
compreensão idealizada de tradução, como uma atividade de aplicação prática de
conceitos pré-estabelecidos, e não como um processo condicionado ao contexto.
Em seus estudos de tradução, Catford buscou encontrar probabilidades de
equivalência, com fins prescritivos. A finalidade do estudo lingüístico não seria
procurar na lingüística um quadro que pudesse ajudar a tradução, mas utilizar a
teoria lingüística para construir o alicerce para uma sistematização quantitativa da
tradução, formulando regras da tradução.
No entanto, a noção de equivalência de tradução, oriunda dessa análise
quantitativa de ocorrências, é um desígnio irrealizável, uma vez que a multiplicidade
de possibilidades de traduções impede que se faça uma sistematização do gênero. De
fato, os tradutores não utilizam normas pré-estabelecidas para a escolha dos itens
que vão integrar seus textos, o que inviabiliza a tentativa de construção de regras de
tradução ou equivalência a partir de resultados de uma pesquisa como essa.
Diferentemente de Catford, Nida, em seus trabalhos, não pretendeu
sistematizar a tradução com fundamentos lingüísticos, mas utilizar a lingüística
como um instrumento para análise e solução de problemas da tradução. Sua teoria de
22
tradução engloba uma parte que se pode apresentar como um tratado de lingüística
geral para tradutores, cujo objetivo é descrever cientificamente o processo de
transferência de uma mensagem de uma língua para outra. Apesar disso, segundo
Rodrigues (2000: 63), nos pontos em que efetivamente trata da tradução, uma
série de orações em que emprega ‘é necessário’, ‘o tradutor deve’, ‘deveríamos’, que
apontam para a prescrição e não para uma mera descrição de problemas”.
Nida, como mostra Rodrigues (2000: 64), chegou a estabelecer conjuntos de
prioridades fundamentais” a serem seguidos pelo tradutor: devia-se usar a forma
oral, em vez da forma escrita; deviam-se buscar estruturas utilizadas pelo público
almejado e aceitas por ele, em lugar de usar as de prestígio; deviam-se evitar
cacófatos e palavras vulgares; não se devia traduzir uma palavra sempre pela mesma
palavra, entre outros.
Ao pensarmos dessa forma, estamos nos baseando na univocidade, na
possibilidade de uma leitura definitiva que encerra o jogo da intertextualidade e
existe enquanto verdadeira e única. Em outras palavras, no instante em que
queremos atribuir um mesmo valor ou obter correspondência entre dois termos em
duas diferentes línguas, temos em mente que os significados estão fixos no texto, ou
no sistema, fora do jogo que eles instauram.
Novas maneiras de entender o processo de tradução passaram a permitir um
diálogo entre o texto traduzido e as estruturas sociais do sistema da cultura de
chegada. A tradução nesse outra dimensão tem como base a teoria dos
polissistemas”, de Even-Zohar (1978), segundo a qual as normas sociais próprias da
cultura de chegada determinam as pressuposições estéticas do tradutor e, dessa
forma, interferem em suas decisões. Ao reconhecer os entraves das teorias
lingüísticas de tradução, Even-Zohar muito contribuiu para uma perspectiva de
análise mais histórica e social dos textos fonte e alvo. Apesar do presente trabalho
não se basear diretamente em sua teoria, ela é importante para ratificar a concepção
de tradução por mim adotada.
23
André Lefevere e Gideon Toury, em cujas idéias sobre tradução baseei a
minha pesquisa, são dois teóricos que rejeitam a noção de equivalência como
construto definido baseado no texto de partida, isto é, um ideal a ser atingido e que
depende de regras formuladas pelos teóricos. As pesquisas de ambos estão inseridas
nos domínios de uma disciplina denominada Estudos da Tradução (Translation
studies). Teorias como as de Susan Bassnett, do grupo Anglo-americano, e Itamar
Even-Zohar, da Escola de Tel Aviv, também estão inseridas neste campo de
pesquisa.
Lefevere analisa a tradução literária e estuda os fatores que influenciaram a
produção de traduções em determinadas épocas ou tradições. Analisando os seus
trabalhos entre 1981 e 1992, podemos observar sua concepção de tradução como
“reescritura”.
O autor critica tanto abordagens teóricas de fundamentação literária quanto
lingüística, uma vez que considera que a quase total estagnação dos estudos de
tradução foi fruto da orientação dada pelas abordagens de caráter normativo.
Essa falta de confiabilidade que os estudos na área proporcionam é decorrente
de uma variedade de fatores. O principal seria a tentativa de impor normas, tanto por
parte dos lingüistas como por parte dos estudiosos de literatura. Outro motivo é a
concentração dos estudos na questão do processo de tradução, tentando, em vez de
analisar o produto em seu contexto histórico-social, estabelecer o que acontece
durante a tradução.
Para Lefevere, o estudo da tradução após a Segunda Guerra Mundial passou a
ter enfoque lingüístico. Partia-se do pressuposto de que a tradução era sinônimo de
equivalência e ignorava-se a tradução literária. Julgava-se que o enfoque era
unilateral, no momento em que usava o texto-fonte como parâmetro para julgamento
das traduções e não havia referência ao contexto de recepção dos trabalhos. As
análises limitavam-se a pares de línguas ou pares de textos, o que dava mais
informações a respeito dos arcabouços lingüísticos envolvidos do que sobre o
processo ou produto da tradução em si.
24
Do mesmo modo, a idéia de que apenas os textos que se mostram como
equivalentes, ou seja, que apresentam todos sos segmentos substituídos em outra
língua, são traduções levaria à exclusão de muito material que Lefevere julga de
suma importância, tais como textos que apresentam acréscimos, adaptações,
omissões, resumos, eliminados do corpus de pesquisa pelos lingüistas. O próprio
Lefevere (1992) chegou a afirmar que “o conceito de recepção é necessariamente
diferente de sua produção, não pode haver possibilidade alguma de recuperação”.
Em lugar de tecer minuciosas comparações entre original e tradução,
Lefevere e Bassnett (apud Rodrigues, 2000: 125), na introdução da coletânea
Translation, history and culture, deixam claro que se deve evitar qualquer juízo de
valor, ao afirmarem:
O leitor não vai mais encontrar minuciosas comparações entre originais e
traduções; porque tais comparações, além de falsamente reforçarem a
idéia do texto-enquanto-unidade, tendem a ser vítimas da “teoria
invisível” do tertium comparationis, implicitamente postulado para
garantir julgamentos sobre o motivo de uma determinada tradução
(normalmente a proposta pelo escritor do trabalho em questão) ser
melhor que a outra.
Igualmente, os autores o de encontro ao pensamento tradicional, segundo o
qual deveria existir um modelo de correção para se traduzir e que se deveria tentar
sistematizar o processo para que qualquer tradução pudesse atingir esse padrão de
“fidelidade” e “exatidão”.
Como Lefevere, Gideon Toury não estabelece qualquer tipo de relação a
priori entre o sistema produtor de um texto e o receptor de uma tradução, como
necessária ou suficiente para um texto se estabelecer como tradução. Ele entende
que uma teoria lingüística da tradução “pode ser de algum uso em termos de
descrição, de menor uso em termos de explicação, de quase nenhuma utilidade em
termos de qualquer predição verdadeira”. (Toury apud Rodrigues, 2000: 158).
Toury modifica o conceito de equivalência de Catford ao entender que “a
equivalência de tradução ocorre quando um texto (ou item) em língua-fonte e um em
25
língua-alvo se relacionam aos mesmos traços relevantes (ou, pelo menos, a alguns
deles)”. Toury (apud Rodrigues, 2000: 143) afirma que a noção que acrescenta à
definição de Catford é uma “propriedade relativa”, inicialmente porque alguma
coisa pode ser relevante para um dado ponto de vista ou para alguma finalidade;
em segundo lugar, porque se refere a textos, compostos de traços em diversos níveis,
dos fonológicos aos morfossintáticos, havendo a possibilidade de valorizar todos
como relevantes.
Na sua visão, o grau de relevância nos modelos tradicionais seria determinado
pelo texto-fonte, e a forma ideal de tradução corresponderia à reconstrução de todas
as suas características proeminentes. No momento em que isso denotaria a
interpermutabilidade entre o texto-alvo e o texto-fonte, as teorias comumente teriam
que recorrer ao conceito de “equivalência funcional” como condição obrigatória
para o ato de tradução. O teórico entende que passar a enfocar o texto-alvo significa
não postular a equivalência; ela, na verdade, passaria a ser um fato sem caráter
científico.
Para Toury (Rodrigues, 2000: 145), mesmo as teorias que tentam explicar a
equivalência “não fornecem uma definição que se aproveite como ponto de partida
para os estudos descritivos”. Afirma também que a noção ‘tradicional’ de
equivalência de tradução não é só falha em si, mas também mal equipada para servir
como base para os estudos descritivos da tradução e para explicar a ampla variedade
de relações tradutórias” que existem entre original e tradução.
De acordo com Toury (p. 153), as abordagens existentes “não só incluem uma
noção de traduzibilidade, como realmente reduzem a tradução à traduzibilidade”,
não levando em consideração outros fatores que “desempenham um papel tanto na
formação e na formulação de textos traduzidos, quanto em sua aceitação enquanto
traduções em contextos culturais e lingüísticos específicos”.
Além disso, “suas noções não passam de versões restritas de um conceito
geral de traduzibilidade, visto que sempre postulam que algumas condições de
adequação específicas são as únicas corretas”, o que as tornaria prescritivas. Toury
26
entende que essas teorias restringem a tradução à tradução que imaginam correta,
segundo as condições formadas a priori e definidas pelo texto. Elas considerariam a
correção como uma realização do construto da traduzibilidade, enquanto Toury
pensa que essa seria apenas uma das possibilidades de tradução, dentro de um
sistema potencial, mas não essencialmente uma possibilidade consolidada.
Por esse motivo, Toury (apud Rodrigues, 2000: 153) rejeita as “teorias da
traduzibilidade” como embasamento exclusivo para o “estudo da tradução como um
fenômeno empírico, comportamental. Não haveria, para ele, sempre uma mesma
relação entre o texto-alvo e o texto-fonte, já que pensa que a “tradução real, como
próprio uso da linguagem, é comportamento de seres humanos comuns (de tipo
bilíngüe), e não um construto criado ou ditado por teóricos”, e que “serve a vários
fins e assume várias formas”. Da mesma forma, entende que as relações efetivas
entre os textos não remetem necessariamente às relações enumeradas pelas teorias
da traduzibilidade.
Foi Cattrysse (1992) quem primeiro inseriu a análise de adaptações fílmicas
nos Estudos de Tradução. Apoiado na Teoria dos Polissistemas, o autor procurou
desenvolver um método de estudo para textos transmutados (traduzidos de um
sistema de signos verbais para um sistema de signos não-verbais). Após analisar 30
filmes Noir americanos dos anos 40 e 50, Cattrysse verificou a ineficiência do
método dos polissistemas em fornecer instrumentos adequados para se estudar e
comparar adaptações, devido à necessidade de se aperfeiçoar a concepção de
sistema. Apesar do presente trabalho não utilizar o método adotado pelo autor, seu
pioneirismo em considerar o texto transmutado como tradução é inegavelmente
relevante.
Por se tratar de uma transmutação de um texto verbal em um texto não-
verbal, a adaptação fílmica foi por muito tempo considerada como algo que muda o
texto original. Por esta razão, o que chamamos de tradução intersemiótica, (conceito
abordado na próxima parte deste capítulo), durante muitos anos não foi considerado
tradução. Mesmo atualmente, muitos críticos e o próprio público em geral não
27
compartilham o mesmo posicionamento acerca de adaptações, como afirma Brito
(1995: 18 19), em seu artigo, em que comenta quão diversas são as visões a
respeito da adaptação cinematográfica. Dessa forma, apesar do progresso que a
teoria da tradução teve durante os últimos anos e da expressiva superioridade do
número de filmes adaptados em relação aos provindos de roteiros originais, a
concepção de adaptação fílmica como tradução não substituiu as idéias de alguns
especialistas tradicionais.
Um exemplo é o teórico Jean Mitry, citado por Brito (1995: 18 19), que
pensa ser impossível a tradução entre a literatura e o cinema, devido às diferentes
estruturas dos dois sistemas. Em uma visão essencialmente prescritiva do processo
de adaptação, o autor sugere fidelidade à obra escrita, ou caso afaste-se do original,
sugere que um novo título seja criado para a obra.
Posicionamentos como este nos fazem observar que o termo “adaptação” é
comumente entendido como referente a um processo de mudanças no qual as
diferenças entre a obra escrita e o filme se devem quase totalmente à passagem da
obra de um sistema sígnico para outro, o que implica um “original” estável, cuja
essência é estanque, somente compreensível a um pesquisador que utilizar a correta
aparelhagem conceitual e, conseqüentemente, for capaz de realizar uma adaptação
fiel. Assim, vê-se no texto tido como original” o possuidor de significado e
qualidades estéticas que lhe seriam inerentes, independentes de um leitor. Ao
adaptá-lo, tal intérprete teria que “transportar” esses elementos do texto de partida
para outra língua ou sistema semiótico, criando assim um texto de chegada
equivalente ao original.
Para Oliveira (1999: 11), a divulgação da minissérie “Grande sertão: veredas”
(1985), da Rede Globo de televisão, também é exemplo da presença ainda constante
dessa idéia tradicional que envolve o conceito de “adaptação”. Segundo Oliveira
(1999), em entrevistas com a equipe de produção, observou-se ênfase à procura pela
“fidelidade ao original”. Além disso, o diretor Walter Avancini, na apresentação que
28
precedeu o primeiro capítulo do programa, disse: “Trabalhamos muito, muito
mesmo, em busca da fidelidade que a obra merece”.
No presente trabalho, considero que todo e qualquer filme é, desde o
princípio, uma tradução, mesmo que não se inspire em alguma obra literária: tudo
começa com a tradução de uma idéia para o roteiro, e então desse roteiro para a
produção do filme. Partindo dessa idéia, Stam (2005), tendo como base a noção de
adaptação como hipertexto
5
de Gerard Genette, fala das traduções cinematográficas
como hipertextos derivados de hipotextos pré-existentes que foram transformados
por meio de operações de ampliação, atualização, recontextualização, redução e
seleção, numa relação em que a adaptação é automaticamente diferente do original
devido à mudança de meio”
6
7
(Stam, 2000: 55). Em sua abordagem, o autor não
trabalha com hierarquização de valores, de modo que o texto alvo pode ser analisado
em todas a suas alterações técnicas, interpretativas, ideológicas ou críticas.
Stam (2000: 57) mostra que os sinais verbais nem sempre são comunicados
da mesma forma em outro contexto. Referências óbvias aos leitores do século XVIII
de Robinson Crusoé não são necessariamente óbvias aos leitores atuais. Além disso,
o teórico lembra que, se nem mesmo os próprios autores estão conscientes de suas
intenções mais profundas, como podemos então exigir que alguém seja a eles fiel?
De fato, como já afirmei anteriormente e como menciona Dick (1990: 183),
ao falar sobre adaptação fílmica, sabemos que essa fidelidade em tradução é
impossível. Em cada releitura ou interpretação é inevitável que se mude o texto de
partida e que o produto seja uma nova obra, principalmente quando trabalhamos
com dois sistemas sígnicos diferentes ou com obras que estão sendo traduzidas para
novos contextos culturais e temporais.
Como mostra Mcfarlane (1996: 07), sabe-se que:
5
Teoria que trata da relação entre um texto (hipertexto) e um texto anterior (hipotexto), em que o primeiro
(filme, nesse caso) transforma, modifica, elabora ou estende o segundo (obra literária).
6
Todas as traduções do trabalho foram por mim realizadas, e os textos-fonte encontram-se em notas de
rodapé.
7
“[...] An adaptation is automatically different from the original due to the change of medium.” (STAM,
2000: 55).
29
[...] o leitor está sempre comparando as imagens mentais que cria
constantemente sobre universo de uma obra literária e seus personagens
com aquelas criadas pelo produtor do filme. Porém, como afirma
Christian Metz, o leitor não irá sempre encontrar seu filme, no instante
em que ele está se deparando com a fantasia de um outro alguém.
8
Dessa forma, uma tradução deve necessariamente possuir características
próprias de seu tradutor. Se não pensasse dessa forma, estaria partindo do
pressuposto de que o texto original funciona como algo imutável e, portanto,
superior. Para Lages (2002), na verdade, o tradutor deve ter liberdade para realizar
seu trabalho de traduzir, pois, ao fazê-lo, ele está criando um novo produto, o que o
leva a responder pela sua obra. Poderíamos assim deduzir que o ato de traduzir está
muito mais ligado à idéia de diferença do que à idéia de semelhança.
O conceito de fidelidade é equivocado, pois, ao levar em conta o que pode ser
transferido da obra escrita para o filme, ele marginaliza elementos que não têm
relação com o livro, mas que m grande influência sobre o filme, como questões
ligadas à própria cultura de chegada e ao desenvolvimento da tradução como obra
autônoma e dotada de ideologia. Para Christopher Orr (apud Mcfarlane, 1996: 10), a
questão que deve ser levada em consideração não é se o filme traduzido é fiel à sua
fonte ou não, mas “como a escolha de estratégias específicas e o enfoque dado a
essas estratégias constroem a ideologia do filme”
9
.
Dentro desse contexto, abre-se um campo extenso de realizações para os
cineastas, que têm na relação entre literatura e cinema uma área experimental
infindável, assim como para os estudiosos da literatura e de suas traduções
cinematográficas. O modo como cineastas e teóricos trabalham com tal relação tem
mudado ao longo dos anos, estabelecendo um leque extremamente diverso de
possibilidades: o diretor pode, por exemplo, escolher determinado aspecto sem
8
Constantly creating their own mental images of the world of a novel and its people, they are interested in
comparing their images with those created by the film-maker. But as Christian Metz says, the reader will not
always find his film, since what he has before him in the actual film is now somebody else’s phantasy.
9
“[...] the issue is not whether the adapted film is faithful to its source, but rather how the choice of a specific
source and how the approach to that source serve the film’s ideology.” (MCFARLANE, 1996: 10)
30
relevância em uma determinada obra, amplia-lo e realizar outra obra; pode também,
ao traduzir para o cinema, evocar obras escritas anteriormente pouco reconhecidas.
McFarlane (1996: 03) diz que, bem mais do que outros assuntos ligados ao
cinema, a questão da adaptação:
[...] tem sido fruto de discussão mais de sessenta anos. Escritores, por
meio de um amplo alcance crítico, tem considerado o assunto fascinante.
Jornais a revistas oferecem comparações entre filmes e seu precursor
literário; de revistas para fãs à livros escolares, encontramos reflexões
sobre a incidência da adaptação. Enfim, trabalhos de todos os tipos
encaram de diferentes maneiras esse fenômeno, quase tão antigo quanto a
instituição do cinema.
10
Recentemente, tanto no Brasil como no exterior, muitos pesquisadores têm
estudado a tradução de textos literários para o cinema. Cattrysse (1992) explicou
como se analisar um texto transmutado, afirmando que o ato de traduzir não é
realizado arbitrariamente, mas gerido por normas relacionadas ao sistema no qual a
tradução está inserida.
Diniz (1998) explicou as estratégias intersemióticas usadas pelo diretor russo
Grigori Kozintsev para traduzir Karol Lear, da peça de Shakespeare, King Lear e a
influência de alguns aspectos culturais nessa tradução. Novamente Diniz (2003),
ampliando seu trabalho, fez uma análise comparativa de quatro traduções fílmicas de
King Lear: o filme russo de Kozintsev, Karol Lear (1970); o filme do diretor inglês
Peter Brook (1969/1970); o filme japonês de Akira Kurosawa, Ran (1985) e o do
diretor francês Jean-Luc-Godard, com o mesmo nome da peça (1987).
Oliveira (1999) também trabalhou com tradução intersemiótica ao examinar
em sua tese a minissérie “Grande Sertão Veredas”, da Rede Globo de Televisão,
produzida em 1985, baseada na obra de João Guimarães Rosa. Da mesma forma,
10
“[...] the issue of adaptation has attracted critical attention for more than sixty years in a way that few other
film-related issues have. Writers across a wide critical spectrum have found the subject fascinating:
newspaper and journal reviews almost invariably offer comparison between a film and its literary precursor,
from fan magazines to more or less scholarly books, one finds reflections on the incidence of adaptation;
works serious and trivial, complex and simple, early and recent, address themselves to various aspects of this
phenomenon almost as old as the institution of the cinema.” (MCFARLANE, 1996: 03)
31
Silva (2002) analisou a transmutação de ‘Mrs. Dalloway’, de Virginia Woolf, para o
cinema. Seu trabalho examinou se o filme inverteu o projeto narrativo de um
romance de conjectura e se o transformou num drama romântico cuja ênfase está no
enredo. Diferentemente de Silva (2002), Alves (2004) analisou a tradução
intersemiótica do livro de Michael Cunningham As Horas para o cinema, realizada
pelo diretor Stephen Daldry. Fundamentada na teoria literária, a partir da qual
analisou aspectos da literatura de Virginia Wolf, assim como na semiótica de Peirce,
a autora identificou as relações icônicas, indiciais e simbólicas existentes entre
romance e filme.
Mascarenhas (2006) procurou investigar três diferentes traduções
audiovisuais da peça O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna: os filmes Os
trapalhões no Auto da Compadecida (1987) e O Auto da Compadecida (1999), e a
microssérie O Auto da Compadecida (1999). Além de discutir a tradução da peça de
Suassuna, a autora tece relevantes discussões acerca da adaptação como ato
tradutório, bem como reflexões sobre intertextualidade entre gêneros decorrente
desse processo intersemiótico.
1.2. A TRADUÇÃO COMO PROCESSO SEMIÓTICO:
TRANSMUTAÇÃO DE SIGNOS EM SIGNOS.
As produções cinematográficas foram, a princípio (final do século XIX),
realizadas através de uma câmera fixa, em um plano único, produzindo uma
perspectiva visual similar a de um palco de teatro, como afirma Mascarenhas (2006:
26). Esses primeiros filmes eram compostos por quadros que eram separados por
grandes elipses para os quais nem mesmo as legendas conseguiam recuperar uma
seqüência narrativa lógica. De fato, como afirma Aumont et al (2002: 89), nos
primeiros anos de existência, o cinema não era necessariamente narrativo, não tendo
a vocação de contar história e sendo concebido apenas como forma de registro.
32
Entretanto, depois, buscando se legitimar enquanto arte, o cinema passou a
adquirir enredos mais desenvolvidos, recorrendo ao romance e ao teatro. Brito
(2006: 8) diz que, apesar da crise generalizada de representação vivenciada pelas
artes, com o surgimento das vanguardas do começo do culo XX, o cinema optou
por seguir o modelo convencional do romance do século anterior, com enredos
dotados de começo, meio e fim. O autor cita o cineasta David Wark Griffith que,
utilizando suas leituras constantes das obras de Charles Dickens, criou técnicas
cinematográficas inovadoras. Aparentemente “imitando” o romance, Griffith
inventava uma linguagem específica, genuinamente cinematográfica.
Como afirma Cruz (apud Santana, 2005: 8), traduzir literatura para as telas é
uma atividade empreendida desde o início do cinema. Com os avanços promovidos
pela indústria cinematográfica (adotando, por exemplo, avançados níveis de
computação gráfica na elaboração dos filmes), as trocas entre os dois meios crescem
incessantemente. Diversas obras literárias são escritas exatamente para serem
transmutadas para o cinema. Outras ganham leitores adeptos através da tradução
cinematográfica, como foi o caso de O Senhor dos Anéis, que, tendo sido escrito por
Tolkien há mais de cinqüenta anos, ganhou admiradores de uma outra geração
graças ao filme de Peter Jackson, embora já tivesse milhões de fãs em todo o
mundo. Há ainda os casos de filmes que inspiram obras escritas.
Sabe-se que o cinema é uma arte heterogênea e, como tal, abrange
características básicas de outros sistemas. Por exemplo, possui a plasticidade e a
noção de quadro (enquadramento) da pintura; o movimento e o ritmo de música e
dança; o estilo dramático, a noção de encenação, de cenário e de representação do
teatro; e o estilo narrativo, incluindo conflito, trama e montagem, das obras
literárias.
Comparando um texto literário com o cinema, aparentemente, um abismo
que separa estas duas esferas, cada um com seu sistema de signos e seus códigos
específicos. Porém, Santaella (2005: 27) mostra que, enquanto nos currículos
escolares e universitários, por exemplo, os dois sistemas são colocados em campos
33
estanques e continuam sendo estudados separadamente, as trocas, migrações e
intercursos entre as diversas linguagens são densos e complexos, como afirmei
anteriormente. Para a autora, costuma-se confundir linguagem com o canal que a
veicula, e voltar acentuada atenção para o meio veiculador das linguagens.
Contrariando tal visão, Santaella (2005: 27) coloca que, embora o meio pelo qual
determinada linguagem é veiculada seja relevante para se compreender a produção,
transmissão e recepção de suas mensagens, deve-se levar em consideração as trocas
de recursos entre as linguagens e seus processos sígnicos.
Dessa forma, análises envolvendo, por exemplo, traduções cinematográficas
de obras literárias ou livros inspirados em filmes e sua relação com a obra
homônima, devem ter como base a relação entre as linguagens envolvidas, suas
peculiaridades e como estas se relacionam na construção dos significados da obra
estudada.
Tal estado permanente de comparabilidade e troca de recursos entre literatura
e cinema, e entre os mais variados sistemas sígnicos, consiste em apenas um
exemplo indicador do poder multiplicador e do efeito proliferativo das linguagens,
iniciado com a revolução industrial e intensificado com a revolução eletrônica e com
a atual revolução informática e digital, como afirma Santaella (2005: 28). A todo o
momento, estamos imersos em linguagens diversas e somos bombardeados por
imagens, palavras, músicas, sons e ruídos, provindos dos mais variados meios.
Novos tipos de linguagens surgem à medida que novas tecnologias são criadas e
também através da hibridização entre os meios
11
.
Evitando concepções acerca da linguagem baseadas somente no modo através
do qual a mensagem é transmitida, cabe a s procurar compreender como tais
linguagens são formadas e como se relacionam entre si. A semiótica surge então
11
Santaella (2005: 28) fala do casamento entre meios como propulsor para o crescimento das linguagens e
ilustra sua visão por meio de exemplos, dentre os quais está o jornal, que é, entre outras coisas, uma união
entre o telégrafo (hoje transmutado em fax e rede de telecomunicação), a foto e a modificação qualitativa da
linguagem escrita no espaço gráfico (diagramação, uso dos tipos etc.).
34
como opção diante da necessidade de se utilizar um método capaz de analisar não
apenas o texto literário, mas qualquer tipo de linguagem.
Embora não tenha, em seu início, recebido o nome semiótica, o estudo das
linguagens e dos signos acompanha o homem desde os tempos remotos. É tão antigo
quanto o início do pensamento filosófico, com Platão (427 347 a.C.) e Aristóteles
(384 – 322 a.C.). Para Nöth (apud Perez, 2004: 139):
[...] a semiótica propriamente dita tem seu início com filósofos como
John Locke (1632 1704) que postulou a “doutrina dos signos” com o
nome Semeiotiké, ou com Johann Heinrich Lambert (1728 1777) que,
em 1764, foi um dos primeiros filósofos a escrever um tratado específico
intitulado Semiotik.
Perez (2004: 139) diz que, embora não seja muito aceita, ainda há a visão, por
parte de alguns autores, como Sebeok, de que a semiótica teria surgido através do
esforço dos primeiros médicos ocidentais em entender como se processa a interação
entre corpo e mente. Nesse ponto de vista, a semiótica seria a ciência através da qual
médicos como Hipócrates (460 377 a.C.) e Galeno de Pérgamo (131 201 d.C.)
observavam os sintomas de doenças psicológicas e, assim, elaboravam seus
diagnósticos.
A semiótica moderna possui diversas correntes, dentre as quais se destacam: a
semiótica greimasiana, a semiótica da cultura (de tradição russa) e a semiótica
peirceana, que foi privilegiada na presente análise.
A semiótica greimasiana, fundada por Algidras Julien Greimas (1917 1992), se
estabeleceu na França e teve sua origem no estruturalismo de Hjelmslev (1943 –) e
nos estudos antropológicos de Lévi-Strauss (1908 –). Greimas tentou aplicar os
métodos de pesquisa próprios da lingüística estrutural na análise de textos.
nos países soviéticos, os estudos semióticos modernos têm como
precursores Mikhail Bakhtine (1895 1975) e Roman Jakobson (1896 1982), e
sempre estiveram focados em uma visão globalizadora da cultura. A semiótica russa
moderna, com destaque para a Escola de Tártu, se desenvolveu de forma intensa,
35
embora seu início tenha sido um pouco retardado devido ao stalinismo. Dentre os
principais autores, pode-se citar Iúri Lotman, professor de Literatura Russa na
Universidade de Tártu, Estônia, que atualmente é um dos mais célebres semioticistas
da cultura.
A semiótica
12
ou lógica do matemático e filósofo americano Charles Sanders
Peirce (1839 – 1914) nos fornece definições e classificações para análise de todos os
tipos de linguagens e de tudo que está nelas implicado. Como já dito, desde o
advento da fotografia, seguido pela criação e desenvolvimento do cinema, o
progresso na imprensa e a revolução eletrônica e digital em que vivemos atualmente,
houve um surgimento contínuo de novas linguagens, linguagens estas que precisam
ser lidas e compreendidas de uma maneira mais profunda. Daí a importância da
semiótica, que permite estudar os diversos tipos de linguagem, inclusive as presentes
no cinema.
A teoria de Peirce, como afirma Santaella (2002: 05), nos permite penetrar
no próprio movimento interno das mensagens, no modo como elas são engendradas,
nos procedimentos e recursos nelas utilizados”.
A partir dos conceitos da semiótica de Peirce, pode-se retirar estratégias e
métodos para a leitura e conseqüente análise dos processos pelos quais os signos são
construídos, em músicas, publicidade, literatura, hipermídia, cinema etc.
Das três divisões da semiótica peirceana (gramática especulativa, lógica
crítica e retórica especulativa ou metodêutica), a gramática especulativa é a que se
tornou mais conhecida durante o século XX, pois é através dela e de suas
classificações que se dá o estudo das mais diversas linguagens, tais como a verbal ou
a visual.
12
A escolha pela Semiótica Peirciana deu-se principalmente porque ela, diferentemente da Semiologia
Saussuriana, leva em consideração cada sistema de signos na sua especificidade, evitando se submeter à
linguagem verbal. No instante em que entende o signo como uma realidade psíquica com duas faces, o
significado (conceito) e o significante (a imagem acústica), Saussure se limita ao universo da linguagem
verbal.
36
No instante em que considera linguagem como representação e entende que
para interpretarmos o universo que nos cerca é necessário criarmos linguagens para
representar, Peirce representação como um conteúdo apreendido pelos sentidos,
pela memória, pela imaginação, pelo pensamento, e caracteriza a semiótica como a
Teoria Geral dos Signos ou Teoria Geral das Representações.
Peirce (apud Santaella, 2005: 39) considera o signo como:
Qualquer coisa de qualquer espécie, podendo estar no universo físico ou
no mundo dos pensamentos, que corporificando uma idéia de qualquer
espécie (o que nos permite usar esse termo para incluir propósitos e
sentimentos) ou estando conectada com algum objeto existente ou ainda
se referindo a eventos futuros através de uma regra geral leva alguma
outra coisa, chamada signo interpretante, a ser determinada por uma
relação correspondente com a mesma idéia, coisa existente ou lei.
Para o autor, o signo é um primeiro (algo que se apresenta à mente), ligando
um segundo, chamado de seu objeto (aquilo que o signo representa), a um terceiro,
chamado de seu interpretante
13
(o efeito que o signo irá provocar em um possível
intérprete). Dessa forma, Peirce (apud Plaza, 2001:17) entende o signo não como
uma entidade monolítica, mas um complexo de relações triádicas” (signo, objeto e
interpretante), que têm um poder de autogeração.
Santaella (1985: 78), complementando as idéias de Peirce (1975: 94), mostra
que “o signo é uma coisa que representa uma outra coisa” para alguém, ou seja, cria
na mente desse alguém um outro signo, que é interpretante do primeiro.
Essa definição de signo explica o processo de semiose como “transformação
de signos em signos, uma relação de momentos num processo seqüencial-sucessivo
ininterrupto”. Peirce (apud Plaza, 2001:17) discute essa relação ao afirmar que:
Um signo “representa” algo para a idéia que provoca ou modifica. Ou
assim é um veículo que comunica à mente algo do exterior. O
“representado” é seu objeto; o comunicado, a significação; a idéia que
provoca, o seu interpretante. O objeto de interpretação é uma
13
Como mostra Santaella (2005: 43), interpretante não é sinônimo de intérprete, embora a figura do
intérprete, de fato, corresponda a um dos veis do interpretante (o interpretante dinâmico), como veremos
adiante.
37
representação que a primeira representação interpreta. Pode conceber-se
que uma série sem fim de representações, cada uma delas representando
a anterior, encontre um objeto absoluto como limite. A significação de
uma representação é uma outra representação [...].
........
[...] Finalmente, o interpretante é outra representação a cujas mãos passa
o facho da verdade; e como representação também possui interpretante.
Aí está nova série infinita.
No momento em que pensamos através dos signos, o próprio ato de pensar é
por eles mediado. Ao se constituir como uma transmutação de signos em signos, o
pensamento é fundamentalmente tradução, visto que, ao pensarmos, traduzimos o
que está em nossa consciência em outras representações. Dessa forma, todo
pensamento é, na verdade, uma tradução de outro pensamento para o qual ele é
interpretante.
Assim, o significado de um signo pode ser definido como sendo sua tradução
por outro signo que possa aparecer em seu lugar (um dicionário é o exemplo que
ocorre imediatamente)”
14
, especialmente um signo no qual este significado possa se
desenvolver de um modo mais completo. Em outras palavras, um signo se define
como sendo uma representação de algo, um instrumento que comunica algo do
exterior, neste caso, essencial no processo comunicativo. Para ilustrar a dinâmica de
reprodução de significados dos signos, Pignatari (1987: 42) faz uso do diagrama
triangular de Ogden e Richards:
14
Ao observar que o signo não se constitui como um objeto, apenas o substitui, e que ele nunca esgota seu
objeto, estou remetendo à idéia discutida anteriormente sobre a impossibilidade de equivalência em tradução.
38
Interpretante
Signo Objeto
Como mostra o diagrama, observamos que todo processo sígnico opera
através de relações triádicas entre signo, objeto e interpretante, e, como afirma
Pignatari (1987: 44), que o significado é um processo significante que se desenvolve
por meio dessas relações.
Santaella (1985: 78) mostra que para Peirce o signo é uma coisa que
representa uma outra coisa, que é o seu objeto. Assim, o signo não é um objeto,
apenas o representa. Para ilustrar tal idéia, a autora mostra o seguinte exemplo:
[...] a palavra casa, a pintura de uma casa, o desenho de uma casa, a
fotografia de uma casa, o esboço de uma casa, um filme de uma casa, a
planta de uma casa, a maquete de uma casa, ou mesmo o seu olhar para
uma casa, são todos signos do objeto casa. Não são a própria casa, nem a
idéia geral que temos de casa. Substituem-na, apenas, cada um deles de
um certo modo que depende da natureza do próprio signo. A natureza de
uma fotografia não é a mesma de uma planta baixa. (pág. 78)
Dessa forma, o signo faz a mediação entre o objeto que ele substitui e a
representação desse objeto na mente do intérprete, o que vem a ser o interpretante.
S
O
S
O
S
O
39
Tal interpretante produz na mente interpretadora um outro signo, traduzindo, assim,
o significado.
Para Peirce, o objeto de qualquer signo tem duas faces: o objeto imediato e o
objeto dinâmico. O primeiro é interno ao signo e consiste, como afirma Santaella
(2005: 45), no modo como o objeto dimico se apresenta no próprio signo. O
segundo é externo ao signo e corresponde à realidade que, de alguma forma, realiza a
atribuição do signo à sua representação, ou seja, corresponde à coisa representada tal
como ela é. Santaella (2005: 46) cita o espelho como exemplo: a imagem refletida é
o signo, aquilo que ela reflete é o objeto dinâmico, e o modo como o objeto dinâmico
aparece naquele reflexo específico se constitui no objeto imediato daquele signo.
Santaella (1995: 55) diz que:
Aquilo que provoca o signo é chamado de “objeto” (para sermos agora
mais precisos: objeto dinâmico). O signo é determinado por alguma
espécie de correspondência com esse objeto. Ora, a primeira
representação mental (e, portanto, signo) dessa correspondência, ou
seja, a primeira representação mental daquilo que o signo indica é
denominada “objeto imediato”.
Como afirma Santaella (2005: 46), percebe-se que o objeto imediato é uma
emanação do objeto dinâmico, ou seja, um certo modo de torná-lo mediatamente
presente.
Percebe-se que o significado se desloca incessantemente: o signo representa
algo (o seu objeto) e também aponta para alguém em cuja mente se processará sua
remessa para um outro signo, onde o seu sentido se traduz. Assim, como afirma
Santaella (2005: 43), a ação que é própria do signo é a de ser interpretado em um
outro signo, ou seja, a de determinar um interpretante.
De acordo com as idéias de Peirce, um signo põe algo no lugar da idéia que
ele produz ou modifica. O objeto é aquilo que ele substitui; o significado é o que ele
coloca em seu lugar; o interpretante é a idéia que ele faz surgir. Para Sebeok (apud
Diniz 2003: 34), “o interpretante seria, pois, um signo que, de alguma maneira,
40
traduz, explica ou desenvolve um signo prévio e assim continuamente, num processo
de semiose infinita”.
Como afirma Santaella (2005: 43), o interpretante não é qualquer signo, mas
o efeito causado por um signo em uma mente. Assim, algo funciona como signo
se for interpretado. Caso contrário, torna-se apenas um signo virtual, que pode se
atualizar como signo tão logo encontre um intérprete. Observa-se então o potencial
infinito das coisas para funcionar como signo.
Peirce distinguiu três principais níveis do interpretante: o interpretante
imediato, o interpretante dinâmico
15
e o interpretante final. Para ilustrar, Savan (apud
Santaella, 2005: 47) cita o exemplo de uma pedra provinda da civilização maia, cheia
de inscrições e linhas, encontrada na Guatemala. Mesmo na falta de um intérprete
(por exemplo, alguém que não possua um repertório para compreender a escrita
maia), a pedra não perde o seu poder para significar. Ela significará assim que
encontre um intérprete. Tal propriedade objetiva do signo para significar”, como
mostra Santaella (2005: 47 – 49), corresponde ao interpretante imediato.
Ao ser interpretada, a pedra maia do exemplo produz na mente de seus
intérpretes um efeito, chamado por Peirce de interpretante dinâmico. Como afirma
Santaella (2005: 48), o interpretante dinâmico de um signo sempre será múltiplo, e:
O signo não se esgota em um único interpretante. De um lado, porque um
mesmo signo pode produzir diversos efeitos em uma mesma mente
interpretadora [...] De outro lado, o interpretante dinâmico é sempre
múltiplo porque em cada mente interpretadora o signo irá produzir um
efeito relativamente distinto.
A pedra maia, por exemplo, pode ser interpretada de diferentes maneiras.
Caso o intérprete nunca tenha ouvido falar em civilização maia ou nunca tenha visto
qualquer forma de escrita, a pedra maia encontrada não será interpretada como tal.
Apesar disso, o signo ainda pode produzir alguns efeitos interpretativos, efeitos estes
que correspondem ao interpretante dinâmico. Em um certo intérprete, a pedra pode
15
O interpretante dinâmico, para Peirce, divide-se ainda em interpretante emocional, interpretante energético
e interpretante lógico, como veremos a seguir.
41
produzir apenas qualidades de sentimento (encantamento com as formas, cores etc),
o interpretante emocional. Em outro intérprete, a mesma pedra pode produzir
curiosidade acerca de sua origem, instigando-o a compreender as formas, o que
corresponde ao interpretante energético. Por último, uma determinada conclusão a
respeito da pedra, tomada por meio de raciocínio lógico por parte do intérprete,
corresponde ao que Peirce chamou de interpretante lógico.
O interpretante final é “o efeito que o signo produziria em qualquer mente, se
fosse possível o signo produzir todos os interpretantes dinâmicos”. Como ratifica
Santaella (2005: 49), cada intérprete é capaz de produzir apenas interpretantes
dinâmicos singulares, falíveis e provisórios, o que impede que se esgotem todas as
possibilidades interpretativas de um signo, o seu interpretante final.
O conceito de interpretante vem a ser uma noção muito útil aos estudos de
tradução, no momento em que tradução, como atividade semiótica, implica sempre
um interpretante, a relação entre signos e um objeto, construída dentro de um leque
de possibilidades. Podemos dizer que o interpretante resulta do ponto de vista sob o
qual o objeto é tratado.
Alguns estudiosos, como Pinto (1987) e Vieira (1996), vêm trabalhando com
a idéia de que traduzir é criar signos interpretantes. Essa idéia tem sido, algumas
vezes, confundida com o conceito de intérprete, mas, na verdade, para Peirce, se
constitui como uma representação mental provinda do signo, ou uma representação
mediada e, assim, se difere de significado.
Dessa maneira, a idéia de tradução de signos entre diferentes sistemas de
linguagem é o que forma o conceito de tradução intersemiótica. Esta é um processo
de criação que determina escolhas no interior de um sistema de signos estranho ao
sistema original e leva à descoberta de outras realidades. Plaza (2001:30) entende
que:
[...] os signos empregados têm tendência a formar novos objetos
imediatos, novos sentidos e novas estruturas que, pela sua própria
característica diferencial, tendem a se desvincular do original. A eleição
42
de um sistema de signos, portanto, induz a linguagem a tomar caminhos e
encaminhamentos inerentes à sua estrutura.
Para Peirce, o conceito de interpretante é o efeito que o signo produz no
intérprete, a capacidade do signo em sugerir, significar, mas que está inscrita no
próprio signo. Assim, embora o signo se constitua como algo variável, que se
modifica de acordo com o olhar do observador, ele também possui uma autonomia
relativa em relação ao seu intérprete. Este somente atualiza alguns níveis de um
poder inerente ao signo.
Dessa forma, até o olhar autônomo do tradutor está comprometido com o
signo que lê, objeto de sua representação. Em uma análise intersemiótica, faz-se
necessário considerar os aspectos semióticos de todos os sistemas comparados e a
que ponto a intertextualidade como semiose declarada e reveladora do processo de
tradução está inscrita na adaptação.
Jakobson (1995: 64-65) contribuiu muito para a difusão de um novo conceito
sobre tradução, descrevendo-a de um modo mais abrangente e distinguindo três
modos diferentes para interpretar o signo (teoria posteriormente sistematizada por
Plaza (2001), com base na semiótica peirceana):
1) Tradução Intralingual: é a tradução dos signos verbais por outros signos do
mesmo idioma.
2) Tradução Interlingual: é a tradução dos signos verbais em signos de outra
língua.
3) Tradução Intersemiótica ou transmutação: é a tradução de signos verbais
em sistemas de signos não-verbais.
Dessa forma, Jakobson redimensiona o conceito de tradução e o relaciona
com os estudos semióticos. Reescrever um texto no mesmo idioma, em um idioma
estrangeiro e até mesmo em outro sistema semiótico (como na adaptação de uma
obra literária para o cinema), passa a ser considerado exemplo de tradução.
Apesar de sua grande contribuição, Jakobson ainda se apega a conceitos
tradicionais envolvendo questões ligadas à tradução, ao mostrar, por exemplo, a
43
tradução interlingual como tradução propriamente dita”. Além disso, o autor
estabeleceu a transmutação como tradução, mas não realizou estudos mais densos
sobre o tema. Relacionando essa nova concepção de tradução à semiótica peirceana,
o presente trabalho procura aprofundar e discutir questões referentes à tradução de
obras literárias para o cinema, exemplo de tradução intersemiótica.
Embora a adaptação seja considerada por muitos como um exemplo de
atividade tradutória, ainda uma rie de divergências tanto por parte dos críticos
literários e cinematográficos, quanto pelos cineastas, sobre qual termo seria o
considerado correto” para se referir ao que chamo simplesmente de tradução”, ou
mais especificamente de tradução intersemiótica ou transmutação”. Os conceitos
tradicionais de tradução, ainda presentes em algumas discussões ligadas ao tema, não
compartilham da idéia de que a tradução intersemiótica, ao criar uma nova
linguagem, não se remete apenas a representar aquelas realidades já existentes, mas a
criar novas realidades.
Barbosa (apud Diniz 2003: 33) considera a tradução intersemiótica como “via
de acesso mais interior ao próprio miolo da tradição”, e Plaza (2001: 209),
complementando essa idéia, concebe a tradução intersemiótica como:
[...] prática crítico-criativa, como metacriação, como ação sobre
estruturas e eventos, como diálogo de signos, como um outro nas
diferenças, como síntese e re-escritura da história. Quer dizer: como
pensamento em signos, como transito de sentidos, como transcriação de
formas na historicidade.
Assim, adaptação é um tipo de tradução, e “tradução” deve ser vista como
construtora de sentido, visto a ação do signo, pois não envolve transferência de uma
“essência”, mas constrói significados em um outro sistema de signos, no caso da
transmutação. Como afirma Santana (2005: 30), a sintaxe da obra-alvo varia, ou está
relacionada à própria forma dos signos do sistema alvo. Ao se constituir como uma
nova sintaxe, a tradução não almeja uma simples cópia de realidades pré-existentes,
mas visa a criação de novos conteúdos. A partir dessa idéia, Plaza (2001: 30) afirma
44
que “a tradução intersemiótica é, portanto, estruturalmente inversa à ideologia da
fidelidade”.
Como já dito no capítulo anterior, ao analisarmos uma tradução fílmica, é
necessário saber que tanto livro como filme possuem suas particularidades, sendo,
portanto, incoerente fazer comparações ligadas à literalidade. No instante em que se
constitui como resultado de um processo, o texto traduzido faz alusão a outros textos
e estabelece com eles uma determinada relação, representando-os de alguma forma.
Essa relação entre a tradução e o texto escrito primeiramente é que se define como
objeto dos estudos de tradução, do ponto de vista intersemiótico.
A obra literária e o cinema, no momento em que existem para significar,
representam atividades semióticas. Para se compreender o caráter de cada um desses
sistemas semióticos, é necessário entender os aspectos a eles inerentes, ou seja, que
espécie de signos o empregados e como é a sua organização. As definições e
classificações da gramática especulativa de Peirce permitem penetrar no movimento
interno das mensagens e analisar as diversas linguagens, códigos ou sinais, isto é,
permitem o estudo do poder representativo de um signo.
De fato, a semiótica não é a saída para entendermos os processos sígnicos que
desconhecemos. Para Santaella (2002: 06):
Ela funciona como um mapa lógico que traça as linhas dos diferentes
aspectos através dos quais uma análise deve ser conduzida, mas não nos
traz conhecimento específico da história, teoria e prática de um
determinado processo de signos.
Assim, devido a sua generalidade, a semiótica deve ser associada ao estudo
de outras teorias, mais próprias dos sistemas de signos que estão sendo trabalhados.
Uma análise semiótica envolvendo o cinema, por exemplo, exige que também se
utilizem teorias específicas sobre cinema.
A semiótica de Peirce está alicerçada na Fenomenologia ou Doutrina das
Categorias, uma quase-ciência que estuda os modos como apreendemos os
fenômenos. O termo fenômeno (do grego Phaneron) remete a tudo aquilo que se
45
apresenta à percepção. Assim, a fenomenologia tem como função apresentar
categorias formais e gerais dos modos como os fenômenos são percebidos pela
mente e, assim, descrever e analisar as experiências que acontecem ao homem.
Para Peirce (apud Santaella, 2002: 7), qualquer fenômeno, ou seja, tudo o que
aparece à consciência, assim o faz numa gradação de três propriedades:
primeiridade, secundidade e terceiridade, propriedade estas que, para Santella
(2002: 12) podem ser entendidas respondendo-se a três perguntas: 1) Como uma
simples qualidade funciona como signo? 2) Como o fato de existir faz de algo um
signo? 3) Como uma lei corresponde a um signo?
A primeiridade caracteriza-se pelo elemento do fenômeno constituído por
qualidades ou sentimentos puros, tais como prazeres, cores, sons, odores. Trata-se de
fenômenos singulares, constituídos pela diversidade e variedade das qualidades do
mundo. A secundidade é constituída pela experiência de alteridade, a idéia de outro,
de força bruta, caracterizada pela relação do individual contra uma consciência
primeira. Trata-se da experiência de mediação entre um primeiro e um segundo,
extensa no tempo por manter um vínculo entre passado e futuro. A terceiridade diz
respeito às regularidades percebidas no mundo, que requerem uma consciência que
experiencia no tempo. Nesses fenômenos encontra-se uma continuidade ou lei, tais
como aparecem no desenvolvimento do pensamento lógico.
Tendo como base as propriedades fenomenológicas, Peirce mostra que o
signo pode ser analisado de três formas distintas:
1. Em si mesmo, nas propriedades internas, ou seja, no seu poder para
significar, em seu fundamento.
2. Na sua referência, ou seja, no modo como ele representa o seu objeto.
3. Nos tipos de efeitos que está apto a produzir nos seus receptores, isto é,
nos tipos de interpretação que ele tem o potencial de despertar nos seus intérpretes.
16
16
As indicações 1, 2 e 3 remetem às três categorias fenomenológicas. (primeiridade, secundidade e
terceiridade) e serão utilizadas para retomar as três formas por meio das quais o signo pode ser analisado (1),
(2) e (3).
46
O signo em relação a si mesmo (1), ou seja, no seu modo de ser, aspecto ou
aparência, pode ser classificado em quali-signo, sin-signo ou legi-signo. Ao
funcionar como signo, uma qualidade é denominada quali-signo. Se tomarmos, por
exemplo, o vermelho, sem considerar um determinado contexto, observamos que a
cor, por si , produz em nossa mente uma cadeia de associações cujos elementos
incluem o sangue, o fogo, o amor etc. A cor não é o sangue ou o amor, mas lembra
esses elementos, funcionando como signo devido ao poder de sugestão que a mera
qualidade da cor apresenta, ou seja, o que poder a essa cor para funcionar como
signo é apenas a sua qualidade. Assim, as primeiras impressões que um signo é
capaz de gerar, sem se entrar no nível interpretativo referem-se aos quali-signos.
Estes são pura possibilidade qualitativa e são observados nas propriedades internas
do signo, nos seus aspectos qualitativos, sensórios, como, por exemplo, movimento,
formas, cores, linhas, texturas, volume, brilho etc.
O momento que precede toda a síntese e elaboração dessas relações entre o
quali-signo e outros elementos (momento este que não pode ser articuladamente
pensado) é que corresponde ao que Peirce chamou de primeiridade. A primeiridade,
assim, aparece em tudo que estiver relacionado ao acaso, possibilidade, qualidade,
sentimento, originalidade, liberdade. É o sentimento presente, espontâneo e imediato.
Tudo o que existe conecta-se e reage com outras coisas existentes, isto é,
qualquer coisa aponta para infinitas outras coisas e direções. A cor vermelha, por
exemplo, é signo de cada uma das referências a que se aplica, pois funciona como
parte daquilo para o que remete. É a propriedade de sin-signo (sin = singular) que
ao vermelho, nesse caso, a capacidade de funcionar como signo. O sin-signo refere-
se ao signo observado em seu caráter singular, concreto. Ao deixar de ser apenas
qualidade e passar a ser observado em sua particularidade em um determinado
contexto, o signo adquire um caráter de sin-signo: o vermelho, por exemplo,
utilizado em um outdoor sobre o Dia dos Namorados o é o mesmo vermelho
presente na bandeira japonesa.
47
Essa reação, choque e sensação do eu para com o estímulo caracterizam o que
Peirce chamou de secundidade. Ela está ligada às idéias de surpresa, resistência e
dúvida que a mente do intérprete tem no instante em que o signo fornece algo mais
do que uma mera qualidade.
Uma lei é uma abstração que opera no momento em que possui um caso
sobre o qual agir. A lei permite que, ao surgir uma certa situação, as coisas
aconteçam de acordo com o que a lei determina. Em semiótica, quando algo tem a
propriedade de lei, de convenção, dá-se o nome de legi-signo. Um legi-signo
corresponde a um signo que obedece a uma classe de coisas, fazendo com que a
mensagem seja analisada na sua perspectiva convencional, no seu caráter geral.
Palavras, por exemplo, obedecem à gramática; os sinais de trânsito estão em linha
com o Código Nacional de Trânsito etc.
Entender a cor vermelha de um outdoor sobre o Dia dos Namorados, por
exemplo, como se referindo à paixão, e esquecer de seu caráter meramente
representativo, remete ao que Peirce chamou de terceiridade. Esta última propriedade
é síntese intelectual, elaboração cognitiva; diz respeito à generalidade, continuidade,
lei, crescimento, inteligência.
Essas três categorias fenomenológicas
17
(sua mera qualidade, sua existência e
seu caráter de lei) são comuns a todas as coisas que se apresentam à percepção e à
mente. Elas possibilitam que algo funcione como signo e são a base de todos os
signos. Justifica-se então a afirmação de que qualquer coisa pode ser analisada
semioticamente, desde um grito, uma boneca, até mesmo uma obra literária ou um
filme.
Ao se ler semioticamente determinado signo, segue-se alguns passos, em
correspondência com as categorias de primeiridade, secundidade e terceiridade.
Primeiro, contempla-se a coisa: expõem-se os sentidos aos aspectos qualitativos da
coisa contemplada, sem julgamentos. Em seguida, discrimina-se a coisa: observa-se
17
Santaella (2002: 14) ressalta ainda que tais categorias não são excludentes, mas operam juntas na maior
parte das vezes, já que a lei incorpora o singular nas suas réplicas, e qualquer singular incorpora qualidades.
48
o modo particular como o signo se corporifica, observam-se suas características
existenciais, ou seja, aquilo que nele é único. Para isso é necessário desenvolver
considerações situacionais sobre o universo no qual o signo se manifesta e do qual
faz parte. Por fim, fazem-se generalizações acerca da coisa contemplada: extrai-se de
um dado fenômeno aquilo que ele tem em comum com todos os outros que
compõem uma classe geral, ou seja, atenta-se para as regularidades, para as leis.
O signo em relação ao seu objeto (2) pode ser classificado em ícone, índice
ou símbolo. Para Santaella (2002: 14), “se o fundamento é um quali-signo, na sua
relação com o objeto, o signo será um ícone; se for um existente, na sua relação com
o objeto, ele será um índice; se for lei, será símbolo”.
Conforme Peirce, um ícone é um signo que tem como fundamento um quali-
signo. Santaella (2002: 17) diz que “na relação com o objeto que o quali-signo pode
porventura sugerir ou evocar, o quali-signo é icônico”, ou seja, ele pode sugerir
seu objeto por similaridade. Assim, um ícone é um signo que representa o objeto por
traços de semelhança ou analogia, sem ter com ele uma conexão física. Ele sugere ou
evoca algo porque a qualidade que apresenta é similar a uma outra qualidade, como,
por exemplo, uma pintura abstrata, considerando-a somente em seu caráter
qualitativo (cores, luminosidade, texturas, volumes, formas etc). Como afirma
Santaella (1985: 86), percebe-se que:
O objeto do ícone, portanto, é sempre uma simples possibilidade, isto é, a
possibilidade do efeito de impressão que ele está apto a produzir ao
excitar nossos sentidos. Daí que, quanto mais alguma coisa a s se
apresenta na proeminência de seu caráter qualitativo, mais ela tenderá a
esgarçar e roçar nossos sentidos.
E apesar de o representarem nada, os ícones, têm um grande poder de
sugestão: qualquer qualidade pode ser substituída por qualquer coisa que a ela se
assemelhe.
O índice, por sua vez, é um signo que estabelece uma relação de fato
(concreta) com o objeto, pelo fato de ser afetado por ele. Por exemplo, a fumaça é
49
um índice que aponta para o seu objeto, o fogo, por ser uma parte deste, por ser o
resultado de uma conexão entre ambos. Assim, como afirma Santaella (1995: 160), é
a conexão física entre signo e objeto que capacidade para o índice agir como
signo. Este só funcionará como signo se encontrar um intérprete, mas não é o
intérprete que lhe confere seu poder, e sim sua afecção pelo objeto. Observando-se
uma fotografia, por exemplo, vê-se que, ao ter semelhanças com o objeto, ela age
como um ícone. Por esse motivo, pode-se reconhecer imediatamente o objeto.
Porém, a fotografia também funciona como índice, já que ela é o produto de uma
conexão de fato entre a tomada da foto e o objeto.
O mbolo refere-se ao objeto devido a uma convenção de idéias, lei, ou
associação geral de idéias, isto é, o símbolo é um signo que representa o seu objeto
através de uma lei. Para Santaella (2002: 20), no instante em que tem como base uma
lei, um mbolo está “plenamente habilitado para representar aquilo que a lei
prescreve que ele represente”. A bandeira de um país ou a pomba, representando a
paz, por exemplo, são símbolos, pois mantém uma relação convencional com seu
referente
18
.
O signo em relação ao seu interpretante (3), isto é, com base nos efeitos que
está apto a produzir nos seus receptores, classifica-se em rema, discente ou
argumento.
Ao contemplarmos, por exemplo, as formas das nuvens, muitas vezes, nos
flagramos comparando-as com imagens de outros objetos (animais, seres humanos,
monstros etc) (Santaella, 1985: 87). Nesse caso, as nuvens, que apenas sugerem as
imagens sem representá-las, o ícones. Assim como o ícone, o interpretante que ele
está apto a produzir é uma mera possibilidade, conjectura ou hipótese, qualidade de
impressão, que chamamos de rema. Assim, como mostra Santaella (1995: 188), um
rema é “um signo que é interpretado por seu interpretante final como representando
18
Considerações mais detalhadas acerca do símbolo em semiótica serão encontradas na terceira parte do
segundo capítulo.
50
alguma qualidade que poderia estar encarnada em algum objeto possivelmente
existente”.
O interpretante de um índice, que não ultrapassa a constatação de uma
relação física entre existentes, é um signo chamado de discente. Diferentemente do
ícone (do qual se pode derivar informação através das semelhanças com seu
objeto, sem veiculação com este), no nível da secundidade, o discente é um signo
que é interpretado por meio da sugestão e veiculação de alguma informação sobre
um existente, como mostra Santaella (1995: 190). Ele é um signo puramente
referencial, reportando-se a algo existente.
O interpretante que um símbolo está apto a produzir é um signo que é
interpretado como um signo de lei, ou seja, “é um signo cujo interpretante lhe
representa o objeto como sendo um signo ulterior, por meio de uma lei” (Peirce apud
Santaella, 1995: 192), e é chamado de argumento ou inferência. Por pertencer a uma
classe de inferências possíveis que se conformam com uma espécie (um tipo de
coisa), um argumento é um signo que deve ser interpretado por meio de um princípio
guia, uma lei.
A análise de uma adaptação sob a perspectiva da tradução intersemiótica
deve levar em consideração os signos literários usados na realização do texto, e sua
relação com o signo cinematográfico, produto da operação semiótica desempenhada.
Na prática da adaptação, os elementos visuais, sonoros e verbais, próprios do filme,
referem-se ao verbal da obra literária.
A obra literária e sua adaptação cinematográfica se apresentam como signos
indiciais um do outro, visto que um remete ao outro. Cada signo é entendido como
uma transformação do outro, uma tradução. A passagem de um sistema verbal para
um não-verbal se constitui como um processo tradutório, em que trabalhamos com
dois signos: o signo traduzido, que é a obra literária em si, e o signo tradutor, que é a
tradução para a tela, quer seja em forma de novela, de documentário ou outros. Estes
são os aspectos chamados de intersemióticos, aqueles provenientes do fato de que o
cinema e a literatura têm propriedades distintivas derivadas de meios diferentes.
51
A plurisemiose do cinema nunca é percebida isoladamente. Diniz (2003: 66)
entende que ela faz parte de um “todo orgânico em que os sistemas interagem,
reforçam uns aos outros, criam novos sentidos a partir de sua tensão interior”. Assim,
juntos, todos os signos mostrados m seu papel para o conjunto dos significados de
um único momento. E para tal, segundo Plaza (2001: 67), é mister que não se almeje
uma compreensão tida dos limites entre os sistemas gnicos envolvidos,
dividindo-os em códigos separados (verbal, musical, pictórico etc), o que acarretaria
uma grande quantidade de subdivisões, desviando a atenção do processo da tradução
intersemiótica. Plaza (2001: 67) afirma que:
O importante para se inteligir as operações de trânsito semiótico é se
tornar capaz de ler, na raiz da aparente diversidade das linguagens e
suportes, os movimentos de passagem dos caracteres icônicos, indiciais e
simbólicos não apenas nos intercódicos, mas também no intracódigo. Ou
seja, não é o código [...] que define a priori se aquela linguagem é sine
qua non icônica, indicial ou simbólica, mas os processos e leis de
articulação de linguagem que se efetuam no interior de um suporte ou
mensagem.
Assim, cada elemento que compõe uma cena de um filme (cenário, música,
figurino, personagens etc) reforça integradamente o significado do momento. Os
signos precisam ser separados somente para efeito de descrição.
O signo cinematográfico de uma adaptação tem como referente o literário, já
que o produtor do filme utiliza o signo literário como objeto a ser traduzido, porém,
ao contrário do que muitos teóricos pensam, isso não reflete uma superioridade da
literatura em relação ao cinema. Em vez de fazer uma mera representação do signo
verbal, o diretor e sua equipe criam uma realidade cinematográfica fazendo uso dos
signos próprios do novo sistema tradutor. Ao ter contato com um determinado filme,
o intérprete atualiza as inúmeras possibilidades interpretativas do signo
cinematográfico, dando significado à obra.
52
Ao se interpretar determinado signo, visto a intuição
19
da interpretação, não
se conta da complexidade das relações que estão implicadas nesse ato. Do
contrário, como afirma Santaella (2002: 37), ao se analisar determinado signo, é
necessário que tornemos tais relações explícitas, analisando os interpretantes com
base nos aspectos envolvidos no fundamento do signo, bem como nos aspectos
envolvidos nas relações do signo com o objeto que ele representa. Ainda, segundo a
autora, deve-se evitar estereótipos; evitar impor sobre o signo uma interpretação
pronta, extraída de um repertório prévio, sem levar em conta o fundamento e os
objetos do signo.
Santaella (2002: 39) mostra que, ao analisarmos um signo, estamos, na
verdade, examinando o interpretante imediato e levantando, a partir do exame da
natureza do signo (sua relação com o objeto, seu potencial sugestivo, seus aspectos
icônicos, indiciais, simbólicos), as possibilidades que ele apresenta. Ao levantarmos
tais possibilidades, estamos entrando no domínio do interpretante dinâmico.
Dessa maneira, como afirma Santaella (2002: 39), em todo ato de análise
semiótica, sempre ocupamos a posição lógica do interpretante dinâmico, pois
analisar também significa interpretar. Assim, podemos dizer que uma semiose
pode ser estudada a partir do ponto de vista do analista. Porém, apesar de o signo ser
múltiplo, variável e modificar-se de acordo com o olhar do observador, ele tem uma
autonomia relativa em relação ao seu interpretante, isto é, o poder evocativo,
indicativo e significativo do signo não depende inteiramente do intérprete. Para
Santaella (2002: 42), o intérprete apenas atualiza níveis de um poder que já está no
signo.
De fato, analisar semioticamente significa empreender um diálogo de signos,
no qual nós mesmos somos signos que respondem a signos. Não nenhum critério
apriorístico que defina exatamente como uma certa semiose funciona, que tal
19
A diferença entre uma interpretação analítica e uma interpretação intuitiva (apesar de a primeira não excluir
a segunda) está na utilização que a análise faz das ferramentas conceituais que permitem examinar como e por
que a sugestão, a referência e a significação são produzidas. (Santaella, 2002: 39).
53
funcionamento depende do contexto de sua atualização e do aspecto pelo qual ela é
observada e analisada.
54
2. O ESTUDO DO SIMBÓLICO
Este capítulo trata do estudo do simbólico e se divide em três partes. Na
primeira parte, faço considerações gerais sobre o termo símbolo, sua origem,
conceito e os vários significados que a ele são atribuídos. A segunda parte é
dedicada a comentários sobre a compreensão e interpretação dos símbolos em geral.
Na terceira e última parte do capítulo, trato da concepção de símbolo para Peirce.
2.1.
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O SÍMBOLO
Segundo Cirlot (1984: 12), indícios antigos, como o empoar dos cadáveres
com ocre vermelho, de que o pensar simbolista
20
teve seu princípio nos fins do
paleolítico ou até mesmo antes. Naquela época, as constelações, os animais, as
pedras e os elementos da paisagem natural foram os mestres da humanidade. A
inserção do homem no mundo dos fatos espirituais e morais, por exemplo, se deu
por meio do contato com o visível. Sem dúvida, como afirma Eliade (1991a: 8), o
pensamento simbólico, em todas as suas dimensões, é consubstancial ao ser humano
e precede qualquer linguagem e razão discursiva.
Para Riffard (1993: 331), a palavra símbolo (do grego symbolon) foi
inicialmente utilizada entre os gregos para se referir às metades de uma tabuinha que
hospedeiro e hóspede guardavam, cada um a sua metade, transmitidas depois aos
seus descendentes. As duas partes juntas (sumballô) funcionavam para reconhecer
os portadores e para provar as relações de hospitalidade ou de aliança adquiridas no
passado
21
. Lurker (1997: 656) diz que:
20
Embora o termo simbolismo seja também utilizado para se referir ao movimento literário e artístico, cujas
raízes remontam ao fim do século XVII, refiro-me aqui ao que Lurker (1997: 649) chamou de “o estudo, a
doutrina, a ciência dos símbolos, de sua origem, significado e divulgação”. Nesse sentido, a palavra envolve,
por exemplo, os significados de uma figura mítica, de uma obra de arte, de um sonho ou dos elementos que
fazem parte de uma cultura ou religião.
21
Na antiguidade grega, os mbolos, concebidos dessa forma, eram também sinais de reconhecimento que
possibilitavam aos pais reencontrarem seus filhos abandonados.
55
Quando dois amigos se separavam por um período longo, ou para
sempre, partiam uma moeda, uma plaquinha de barro ou um anel; se após
anos alguém das famílias amigas retornasse, as partes unidas (symbáleim
= juntar, reunir) podiam confirmar que o portador de uma delas
realmente fazia jus à hospitalidade.
Uma das partes da moeda ou medalha diz respeito à representação simbólica
propriamente dita, e a outra metade faz referência ao objeto representado pelo
símbolo, sem o qual a primeira metade carece de sentido. Uma parte não existe sem
a outra, e o sentido adquirido através da representação só é possível quando as duas
partes estão juntas.
Dessa forma, ao representar as duas partes reunidas, o símbolo é,
inicialmente, símbolo feito de algo”. Ao ser utilizado, ele passa a ser símbolo de
algo”. Como afirma novamente Lurker (1997), o símbolo, em sua origem, é um sinal
visível de algo que o se encontra ali presente e concreto, algo que pode ser nele
percebido: no exemplo dado, a amizade dos possuidores das partes. Chevalier (2001:
XXI) complementa tal idéia, afirmando que:
O símbolo separa e une, comporta as duas idéias de separação e de
reunião; evoca uma comunidade que foi dividida e que se pode
reagrupar. Todo signo comporta uma parcela de signo partido; o sentido
do símbolo revela-se naquilo que é simultaneamente rompimento e união
de suas partes separadas.
Por analogia, tal significado foi ampliado acompreender os cupons, senhas
ou fichas, que dão direito a receber soldos, indenizações ou víveres.
O sentido da palavra símbolo desenvolveu-se bastante, chegando a envolver,
por exemplo, oráculos, presságios, fenômenos extraordinários considerados
provindos dos deuses, emblemas de corporações, crachás e vários tipos de sinais de
compromisso, como o anel de casamento ou o anel depositado pelos participantes de
um banquete, garantindo que pagarão corretamente por ele. De fato, poucas palavras
adquiriram tão vasta significação como a palavra símbolo.
56
Em resumo, como afirma D’Alviella (1995: 21), o termo símbolo passou
gradualmente a se referir a tudo aquilo que, seja por acordo geral ou analogia,
representava convencionalmente alguma coisa ou alguém. Como já mencionado
rapidamente no capítulo anterior, um símbolo é uma representação, mas não uma
reprodução. Enquanto uma reprodução implica igualdade, um símbolo é capaz de
evocar a concepção do objeto que ele representa devido, por exemplo, a
características em comum, como é o caso da aliança como símbolo do casamento,
ou dos pratos de uma balança como símbolo da idéia de justiça.
Segundo Chevalier (2001: XXI), a história do símbolo comprova que
qualquer coisa pode adquirir valores simbólicos, seja ela natural (pedras, animais,
flores, fogo, rios, raio etc) ou abstrata (número, idéia, forma geométrica etc). Assim,
através dos símbolos, objetos comuns adquirem ilimitáveis novos significados. Um
simples pedaço de pano, por exemplo, ao ser erguido até o topo de um mastro,
refere-se à idéia de pátria. Da mesma forma, dois simples segmentos de reta
concorrentes e perpendiculares fazem alusão ao sacrifício espontâneo de Cristo.
Vivemos rodeados por mbolos, desde o aceno de mãos em uma despedida
ao alfabeto que utilizamos para falar e escrever. símbolos que dizem respeito
predominantemente ao psicológico; outros ao cosmológico e natural.
Encontramos facilmente as mesmas representações simbólicas em lugares
diversos, povos distintos. Segundo D’alviella (1995: 27), essas questões dificilmente
podem ser explicadas pelo acaso. Para o autor, ou essas imagens análogas foram
concebidas independentemente ou foram apropriadas de um país para outro.
Representação como a do sol por um disco ou face que emite raios, por exemplo,
não é própria de nenhuma raça ou nação específica, mas trata-se de um aspecto
inerente ao ser humano: em determinada fase de seu desenvolvimento, o homem
simbolizou o deus-sol com características que remetem à sua estrutura físico-
anatômica.
Da mesma forma, símbolos podem ser apropriados. O simbolismo hindu,
chinês e japonês, por exemplo, penetrou entre nós por meio de artigos comerciais,
57
dentre eles, vasos, tecidos e peças curiosas do Extremo Oriente. Do mesmo modo,
era hábito, entre os soldados, marinheiros e viajantes antigos, ao deixar seus lares,
levar consigo seus símbolos, objetos a que tinham um estimável apreço,
disseminando seu significado e adquirindo outros novos. Ao circularem, as moedas
também difundem as representações simbólicas traduzidas por seu povo ao cunhá-
las.
Os símbolos dificilmente aparecem isolados, mas unem-se entre si, dando
lugar a composições simbólicas. Embora se costume estudar as razões pelas quais
acontecem alterações nas formas dos símbolos, nem sempre se dá relevância à
atração que certas figuras exercem sobre outras. Para D’alviella (1995: 145), quando
dois mbolos expressam as mesmas idéias ou se inter-relacionam, eles apresentam
uma tendência para se amalgamarem ou se combinarem, produzindo, como
conseqüência, um outro símbolo. D’alviella (1995: 145) diz ainda que:
Por não terem levado em consideração que um símbolo pode se unir a
várias figuras que diferem acentuadamente quanto à origem e até mesmo
na aparência, muitos arqueólogos desperdiçaram seu tempo debatendo
sobre as origens de um signo ou imagem [...]
Assim, ao estudar um símbolo, deve-se procurar não somente os seus
antecedentes, mas também as comunicações que podem ter acontecido entre seus
protótipos e, caso se faça necessário, deve-se estudar as relações entre os estágios
sucessivos das transmutações simbólicas pelas quais o mbolo passou
22
. Apresento
a seguir algumas idéias acerca da interpretação de representações simbólicas.
2.2.
A INTERPRETAÇÃO DO SIMBÓLICO
Os primeiros estudos do simbólico foram realizados por Athanasius Kircher
(1602 1680), professor de matemática e línguas orientais em Würzburg e Roma.
22
Na presente análise, procurei não estudar o mbolo Anel de maneira isolada, mas relacionando-o a outras
representações simbólicas relevantes e que têm significado na obra em estudo.
58
Kircher foi o primeiro autor a falar acerca de uma disciplina symbolica e entendia o
símbolo como algo que conduz o espírito humano a conhecer uma outra coisa
através de alguma semelhança física com outras.
As tentativas seguintes vieram do Romantismo, com destaque para Friedrich
Creuzer, que desejava a criação de uma disciplina própria para o estudo dos
símbolos, o que não se concretizou devido à constante ridicularização do estudo do
simbólico realizada pelos seus opositores e pelas correntes racionalistas e
positivistas do século XIX. Bachofen, pesquisador da antiguidade, também não
conseguiu que o seu Versuch über die Gräbersymbolik der Alten (1859) (Ensaio
sobre o Simbolismo dos mulos da Antiguidade), fosse compreendido, por não
restringir sua análise do símbolo a uma explicação meramente iconográfica e
estética, mas procurar estudar os símbolos visando sua interpretação.
O estudo do simbólico passou a ser contemplado pela psicologia a partir de
Freud, e depois com Jung, que não procuram os símbolos em manifestações
culturais ou religiosas, mas tentam identificá-lo na psique do homem. Para a escola
freudiana, a palavra mbolo exprime, de modo indireto, figurado e difícil de
decodificar, o desejo ou os conflitos. Nessa lógica, o símbolo seria a relação que une
o conteúdo manifesto de um comportamento, de um pensamento, de uma palavra, ao
seu sentido latente. Como afirma Eliade (1991a: 8 – 9), para a psicanálise, as
imagens, os mbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique, mas
respondem a uma necessidade e preenchem um papel: revelar as mais íntimas
modalidades do ser. Assim, estudar os mbolos permite um melhor conhecimento
do homem.
Enquanto Freud via o inconsciente como uma espécie de “quarto de
despejos” dos desejos reprimidos (Jung, 1977: 12), Jung concebia-o como um
mundo tão real e vital para a vida de um homem como é o consciente. Os elementos
(linguagens e pessoas) do inconsciente seriam os mbolos, que, através dos sonhos,
poderiam se comunicar com o mundo consciente. Para Jung, os símbolos presentes
nos sonhos não podem ser decifrados ou interpretados por meio de um manual ou
59
glossário. Por serem uma expressão integral, importante e pessoal do inconsciente
particular de cada um”, os símbolos selecionados pelo inconsciente individual de
certa pessoa (durante o sonho) têm um sentido que lhe diz respeito e a mais
ninguém. Por isso, o autor considera a interpretação dos símbolos presentes nos
sonhos uma tarefa unicamente pessoal e particular, que não pode ser realizada
empiricamente. Para Jung (1977: 20), um símbolo é:
[...] um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser
familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além de seu
significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga,
desconhecida ou oculta para nós.
Assim, para a escola jungiana, uma palavra ou imagem é considerada
simbólica no momento em que implica algo além de seu significado manifesto e
imediato, algo que não pode ser precisamente definido ou explicado. Por este
motivo, ou seja, por haver várias coisas que não podemos compreender, é que, para
Jung (1977: 21), freqüentemente usamos termos simbólicos para representar
conceitos que não conseguimos definir completamente. Um exemplo é a utilização
de linguagem simbólica e de imagens pelas igrejas.
Somente em 1953 foi fundada, por M. Engelson, em Genebra, a primeira
sociedade destinada ao estudo dos símbolos, Sociéde Symbolisme, que se reúne
em Genebra, Bruxelas e Paris e publica seus artigos no Cahiers Internationaux de
Symbolisme. Em associação com o Psycology Department (Universidade Estadual
da Geórgia), formou-se nos Estados Unidos a International Society for the Study of
Symbols, cuja publicação é intitulada International Journal of Symbology. Além
disso, muitas instituições científicas contribuem de diversas formas para o estudo
dos mbolos, como o Instituto C.G. Jung de Zürich, The Mediaeval Academy of
America, fundada em Cambridge em 1925, com a publicação Speculum, e a
Fundação Ludwig Keimer (Basiléia) que, em associação com o Instituto Ticinese di
Alti Studi (Lugano), realiza conferências cuja ênfase está na arqueologia e na
etnologia.
60
Para Eliade (1991b: 205 – 206), dentre os fatores que contribuíram para
generalizar o interesse pelo estudo dos símbolos na atualidade, pode-se citar: as
descobertas da psicologia de Freud e Jung de que a atividade do inconsciente é
apreensível através da interpretação das imagens, o surgimento da arte abstrata
(início do século XX), as experiências poéticas surrealistas após a Primeira Guerra
Mundial e as pesquisas dos etnólogos, principalmente acerca das idéias de Lucien
Lévi-Bruhl sobre a estrutura e as funções da mentalidade primitiva”, idéias estas
que instigaram muitos filósofos Europeus a estudarem o mito e o mbolo. Eliade
(1991b) fala ainda da importância dos estudos realizados por epistemólogos e
lingüistas buscando mostrar o caráter simbólico da linguagem e das artes.
Edmond Leach (apud Grimal, 2000: VII) classifica as teorias que embasam as
pesquisas míticas contemporâneas em três grandes tipos: teorias funcionalistas,
teorias estruturalistas e teorias simbolistas. De acordo com tais perspectivas, o mito
constitui-se como uma ciência, dotada de metodologias próprias, que atua em várias
direções e se apóia em diversas áreas, dentre elas, a psicologia, a sociologia, a
etnologia, a história das religiões, a lingüística, a gnosiologia, a antropologia etc.
(Grimal, 2000: VII).
As posições funcionalistas se voltam para o papel exercido pelos mitos nas
sociedades em que se conservam vivos e atuantes, sem almejar desvendar o
significado espiritual ou intelectual das narrativas míticas. Do contrário, enfatizam a
função social que os mitos desempenham na vida comunitária, como mostra
Malinowski (apud Grimal, 2000: VII e VIII):
O mito cumpre, na cultura primitiva, uma função indispensável;
expressa, acentua e codifica a crença; protege e reforça a moral; vigia a
eficiência do ritual e de certas regras práticas para a orientação do
homem. O mito é, assim, um ingrediente vital da civilização humana; não
é uma fábula vã, mas uma força criadora activa; o é uma explicação
intelectual ou uma imagem artística, mas é um privilégio pragmático da
fé primitiva e da sabedoria moral.
61
Incluem-se nesses estudos autores como M. P. Nilsson (1874 1967), que
estudou questões culturais do mito e sua influência na vida dos Antigos; J. E.
Fonterose e Theodor H. Gaster, com sua corrente intitulada Teoria do mito e do
ritual; Walter Burkert, que estuda os mitos ressaltando as decorrências sociais e a
sua coesão com o ritual. Para Burkert, o mito, que pertence ao nível lingüístico, é
um conto tradicional aplicado a algo de interesse para a coletividade, transferindo,
dessa forma, a sua relevância não para o momento da criação, mas para o da
transmissão e preservação.
Diferentemente, como mostra G. Dumézil (apud Grimal, 2000: XVI e XVII),
para as teorias estruturalistas:
A função da classe particular das lendas que são os mitos é, com efeito, a
de exprimir dramaticamente a ideologia de que vive a sociedade, de
manter na sua consciência não só os valores que ela reconhece e os ideais
que persegue de geração em geração, mas, principalmente, o seu ser e a
sua própria estrutura, os elementos, os vínculos, os equilíbrios, as tensões
que a constituem, justificar, no fundo, as regras e as práticas tradicionais
sem as quais tudo o que é seu se dispersaria.
Para o autor, as religiões são o meio pelo qual se distribui qualquer
experiência do homem, e seu estudo não deve se voltar para questões isoladas, mas
enfocar as relações de elementos, já que o sistema religioso de uma sociedade
exprime-se em mitos que representam estas relações. Tal concepção de Dumézil
acerca do mito influenciou muitos autores que pesquisaram sobre a mitologia e a
religião da Grécia e Roma, incluindo, entre outros, E. Benveniste, Stig Wikander,
Lucien Gruschel, T. W. Powel, Jan de Vries, J. Duchesne-Guillemin, Francis Vian,
Raymond Bloch e Jean Bayet.
Destaca-se também como grande investigador do estruturalismo Claude Lévi-
Strauss (1908 - ) que, apoiado nos conhecimentos metodológicos da Escola
Lingüística de Praga, especialmente em Roman Jakobson, e nos estudos de V.
Propp, propõe uma análise estrutural do mitos acompanhada de uma ampla
inventariação de determinantes psicológicos, que postula uma analogia de estruturas
62
entre as várias ordens de fatos sociais e lingüísticos. Para o autor, o mito tem uma
esfera de existência e de significação independente, dentro da qual se verifica a
actuação de variações, associações, de montagens que são autónomas” (Grimal,
2000: XVIII).
Na perspectiva simbolista da análise mitológica, domínio em que se inserem
os estudos realizados no presente trabalho, estão autores que vêem o mito como uma
forma diferente de exprimir o pensamento, a cultura e o modo de observar o mundo.
Para Grimal (2000: IX), teóricos tão diferentes como E. Cassirer, S. Freud, C. G.
Jung, K. Kerényi, W. F. Otto, M. Eliade, P. Ricoeur ou G. Durand m em comum o
fato de:
[...] admitirem o símbolo, tautegórico, que se afirma a si próprio,
implicando a intervenção de reacções fundamentais, como a actividade
física e a vontade. Trata-se de um outro tipo de linguagem, colectiva,
mais emotiva e rica, exprimindo o que não pode ser expresso
directamente no falar corrente. Os mitos dirigem-se, pois, não apenas ao
entendimento, mas, também, à fantasia e à realidade.
E. Cassirer (1874 1945), por exemplo, considera que o mito é forma que
cria significado, já que é algo que se apóia sobre uma força positiva da figuração e
da imaginação, e não sobre uma espécie de deficiência do espírito. Grimal (2000:
IX) mostra que, para Cassirer, ao se constituir como forma de pensamento, forma de
intuição e forma de vida:
[...] o mito pode apenas ser história verdadeira, mesmo que o seja na
medida em que estabelece uma relação com os elementos formais
estáticos da experiência, os únicos a que é possível atribuir a
qualificação, relativa, de objectividade.
O filólogo clássico W. Otto (1874 1958) inova a idéia de mitologia e
religião ao considerar os deuses gregos, como o mostrados, por exemplo, nos
63
Poemas Homéricos, “imagens simbólicas de uma intuição vital não traduzível de
outro modo” (Grimal, 2000: X). Karl Kerényi (1897 1973) entende a mitologia
como meio capaz de informar sobre a vida social do homem antigo, sendo um traço
básico da sua vida comum. Para ele, as imagens ou os elementos narrativos que
aparecem na narrativa mítica com valor simbólico essencial são chamados
mitologemas e “são considerados expressão da psyche coletiva do povo que criou a
mitologia” (Grimal, 2000: XII).
Para Mircea Eliade (apud Grimal, 2000: XIII):
[...] o mito conta uma história sagrada; relata um acontecimento que teve
lugar no tempo primordial, no tempo fabuloso das origens. Por outras
palavras, o mito conta como, graças ao actos dos seres sobrenaturais,
uma realidade teve existência, quer seja a realidade total, o Cosmo, ou
apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento
humano, uma instituição.
O mito seria, pois, uma narrativa de criação”, através da qual se conta a
maneira como determinada coisa foi produzida, como começou a ser.
As várias formas contemporâneas de aproximação do mito, que traduzem o
interesse do homem em tentar compreendê-lo, ampliaram e atualizaram o seu
conceito, antes relacionado apenas às histórias de heróis e deuses da Grécia e Roma
antigas. O mito excedeu tais limites e passou a envolver, por exemplo, aspectos do
cotidiano atual.
Como se pode observar, a formação, agenciamento, e interpretação dos
símbolos são interesse de várias disciplinas: a História das Civilizações e Religiões,
a Lingüística, a Antropologia Cultural, a Crítica de Arte, A Psicologia, a Medicina, a
Publicidade, etc. De fato, todas as ciências do homem, assim como todas as formas
de arte estão envolvidas com o simbólico, embora cada uma tenha sua própria
concepção e aplicação da designação símbolo.
Segundo Eliade (1991b: 207), embora o simbolismo seja estudado segundo
diversas perspectivas (a perspectiva da psicologia profunda, da arte plástica e
poética, da etnologia, da semântica, da semiótica, da epistemologia e da filosofia),
64
devido ao forte vínculo que entre as disciplinas humanas, qualquer descoberta
relevante de uma área contribui para as outras. Assim, idéias acerca do simbólico
próprias da psicologia, por exemplo, muitas vezes interessam à ciência das religiões.
Ainda que as contribuições e o sentido do simbólico sejam diferentes em cada
disciplina, não se pode negar que o assunto é o mesmo.
O presente trabalho, por várias vezes, faz referências a diversos significados
que o atribuídos ao símbolo do anel em outras obras, culturas e religiões;
significados estes formulados a partir de diferentes perspectivas.
Um dos sentidos de um símbolo é apreendido por meio da análise das
condições em que aparece, de como se comporta e de sua conseqüente finalidade.
Tecer análises que apenas produzem conjecturas sobre o sentido do símbolo vai de
encontro ao que Cirlot (1984: 41) pensa quando afirma que:
O realismo que no fabuloso uma cópia alterada ou uma confabulação
de elementos diversos, tampouco faz algo senão subministrar uma
explicação secundária sobre a problemática “origem”, sem penetrar a
razão de ser deste ente.
Dessa forma, para Cirlot (1984), afirmar, por exemplo, que a imagem de um
morcego gerou a idéia de hipogrifo, de quimera e de dragão, é fornecer um elemento
ínfimo a respeito do valor significativo e simbólico de tais animais mitológicos.
Lurker (1997: 667) compartilha com tal idéia e diz que a análise e interpretação
simbólicas devem ser isentas de perspectivas ideológicas e de associações
precipitadas.
Contrariando tal idéia, alguém afirmaria que a famosa e freqüente associação
entre a árvore e a serpente, por exemplo, deve-se unicamente à observação (que
ocorre nos países em que serpentes) de que tais répteis fazem seus antros ao
das árvores. Mesmo sem descartar a possibilidade de tal idéia, observamos que ela
não explica, por exemplo, o sentido deste símbolo na história da tentação bíblica. O
simbólico vai mais além. Neste caso, vários aspectos remetem à relação análoga que
entre a serpente e a árvore: o seu caráter linear, a semelhança da serpente com as
65
raízes, a dualidade bem e mal (enquanto a árvore eleva os ramos ao sol, como
adoração, a serpente espera por sua presa para matá-la).
Segundo Cirlot (1984: 5), a redução ou especialização extrema do sentido de
um símbolo costuma ter como conseqüência a degradação do significado, tornando-
o uma insignificância alegórica ou atributiva. No instante em que resumimos a
análise do mbolo da serpente e da árvore ao fato de as serpentes se aninharem
junto às árvores, estamos apenas utilizando uma constatação para explicar, sem
mencionar elementos referentes à relação interna entre os símbolos.
É certo que, ao explicarmos o simbólico, sempre resta algo intraduzível. Isso
ocorre porque, como mencionado anteriormente, o mbolo aponta para algo que
está ausente, representando-o, mas sem apreender todas as suas possibilidades. Um
símbolo, como afirma Lurker (1997: 657), não é composto de formações rígidas,
que podem ser facilmente e precisamente delimitadas, mas mutáveis e, em muitos
casos, ambíguas. De fato, ordena significados análogos, cada um em um certo nível,
ou seja, revela diferentes sentidos simultaneamente. Segundo Hampate (apud
Chevalier 2001: XXIV), na lenda fula
23
de Kaydara, o velho mendigo (o iniciador)
diz a Hammadi (o peregrino, em busca de conhecimento): “Ó meu irmão! Aprende
que cada símbolo tem um, dois, vários sentidos. Esses significados são diurnos ou
noturnos. Os diurnos são favoráveis, e os noturnos, nefastos”.
Tendo como base essa multiplicidade de sentidos de um símbolo, entende-se
que cada representação simbólica funciona como o centro de uma teia, que es
ligado a diversas outras teias com seus respectivos centros. R. de Becker (apud
Chevalier 2001: XXII), diz algo semelhante quando afirma que o símbolo pode ser
comparado a um cristal que reflete de maneiras diversas uma luz, conforme a faceta
que a recebe. Nesse sentido, Todorov (Chevalier, 2001: XXIV) considera que no
símbolo é produzido um fenômeno de condensação, ou seja, um significante
23
Os Fulani, Fula ou Phoulah, são um grupo étnico nômade que compreende várias populações espalhadas
pela África Ocidental, desde a Mauritânia a noroeste até aos Camarões a leste. A língua fula (também
chamada peulem francês e fulani em inglês), é falada entre 10 e 16 milhões de pessoas e tem um status de
língua oficial na Mauritania, Senegal, Mali, Guiné, Burkina Faso, Níger, Nigéria, e Camarões.
66
remetendo a mais de um significado. Assim, o mbolo anel, por exemplo,
representa diversos objetos, que, por sua vez, funcionam como representação de
diversos outros objetos, em uma cadeia infinita.
A percepção do símbolo é também pessoal. Em seu processo de formação, o
ser humano acrescenta às experiências pessoais, valores culturais e sociais herdados
da humanidade que o precedeu até então. Chevalier (2001) afirma que:
O símbolo tem precisamente essa propriedade excepcional de sintetizar,
numa expressão sensível, todas as influências do inconsciente e da
consciência, bem como das forças instintivas e espirituais, em conflito ou
em vias de se harmonizar no interior de cada homem.
Assim, a compreensão de um símbolo depende fortemente da percepção
direta, possibilitada pelo repertório pessoal. Análises históricas, comparações
interculturais, pesquisas acerca das interpretações provindas das tradições orais e
escritas e prospecções da psicanálise contribuem para tornar tal interpretação mais
completa e menos arriscada. Wirth (apud Chevalier 2001: XXII) complementa tal
idéia, afirmando que “[...] é próprio dombolo o permanecer indefinidamente
sugestivo: nele, cada um aquilo que sua potência visual lhe permite perceber.
Faltando intuição, nada de profundo é percebido”.
Visto tal subjetividade e sugestividade dos símbolos, cada análise realizada
torna-se produto de um ponto de vista, e não deve almejar esgotar, nem ao menos
relativamente, nenhum dos domínios referentes à concepção de representação
simbólica, mas procurar unir a compreensão do papel significativo do símbolo em
estudo à interpretação de alguns de seus múltiplos sentidos, em favor da autoridade
das obras estudadas.
67
2.3.
O SÍMBOLO PARA PEIRCE
A noção de representação relacionada à idéia de signos, mbolos, imagens e
a outras formas de substituição é alvo de interesse dos estudos semióticos desde a
escolástica medieval, que a definia, de maneira geral, como o processo de
apresentação de algo por meio de signos”. Para Santaella & Nöth (1999: 16), o
próprio conceito inglês representation(s), ao ser concebido como sinônimo de signo,
explica a concepção de representação.
Para Peirce (apud Santaella & Nöth, 1999: 17), representação é a
apresentação de um objeto a um intérprete de um signo ou a relação entre o signo e
o objeto. Assim, o autor define representar como “estar para”, no instante em que
considera que algo está numa relação tal com um outro que, para certos propósitos,
ele é tratado por uma mente como se fosse aquele outro”. Nasser (2003: 11) diz, por
exemplo, que uma foto ou uma pétala seca que levamos em nossa carteira e que foi
dada por uma pessoa muito especial, representa esta pessoa, para quem se dirige a
concepção de reconhecimento.
De fato, ao carregar a foto ou pétala seca, uma pessoa estará, de certa forma,
trazendo para perto de si a outra pessoa, pois gostaria que estivesse sempre consigo.
No momento em que não pode estar presente, esta pessoa está ali simbolizada e seu
significado, aproximado por meio dos símbolos que a representam.
Para Peirce (apud Santaella & Nöth, 1999: 63):
[...] qualquer palavra comum - “estrela”, “pássaro”, “casamento” – é
exemplo de símbolo, e o mbolo é aplicável a tudo aquilo que possa
concretizar a idéia relacionada com a palavra. Por si mesmo o símbolo
não é capaz de identificar as coisas às quais se refere ou é aplicável, isto
é, não nos faz ver uma estrela no céu não nos mostra um pássaro voando,
nem celebra um casamento diante de nossos olhos, mas supõe que somos
capazes de imaginar tais coisas, tendo a eles associado a palavra.
68
Assim, como no caso do retrato e da tala seca representando uma pessoa
especial, o símbolo constrói uma relação com seu objeto, por meio de uma idéia na
mente do intérprete
24
.
Diferentemente do ícone e do índice, o símbolo é um signo que estabelece
uma relação com seu objeto por meio de uma mediação, ou seja, as idéias presentes
no mbolo e em seu objeto se relacionam a ponto de fazer com que o mbolo seja
interpretado como se referindo àquele objeto, isto é, fazendo com que o símbolo
represente algo que é diferente dele. Assim, o símbolo se relaciona com seu objeto
devido a uma idéia presente na mente do usuário, um hábito associativo, uma lei,
chamada por Peirce de interpretante lógico. Este, como mostra Santaella (2005:
264), corresponde à lei ou regra interpretativa que “guia a associação de idéias
ligando o símbolo a seu objeto”.
Assim, um signo funciona como mbolo se, em relação ao objeto que ele
representa, for um legi-signo, ou seja, uma lei que é um signo.(Santaella, 2005:
262). Sobre o conceito de lei, a autora diz que:
A lei funciona, portanto, como uma força que será atualizada, dadas
certas condições. Por isso mesmo, a lei não tem a rigidez de uma
necessidade, podendo ela própria evoluir, transformar-se. Contudo, em si
mesma, a lei é uma abstração. Ela não tem existência concreta a não ser
através dos casos que governa, casos que nunca poderão exaurir todo o
potencial de uma lei como força viva.
Santaella (2005: 262) diz que a lei de interpretação já está contida no próprio
signo, permitindo que produza um signo interpretante ou uma série de signos
interpretantes. Dessa forma, o signo é interpretado como sendo signo devido à lei,
porque o legi-signo funciona como uma regra que determinará seu interpretante.
A autora ainda cita a linguagem verbal como um exemplo claro de legi-signo.
No momento em que fazem parte do sistema de uma língua, as palavras são
24
Idéia esta que Peirce chama de interpretante, sobre a qual discorri com mais profundidade na segunda parte
do primeiro capítulo.
69
interpretadas de acordo com as leis desse sistema. Assim como todos os tipos de
legi-signos, as palavras, por exemplo, possuem existência concreta através de
suas manifestações, chamadas por Peirce de réplicas.
Para Santaella & Nöth (1999: 65), sem o ícone, o símbolo nada significaria e,
sem o índice, perderia seu poder de referência. Assim, o símbolo contém dentro de
si elementos de iconicidade e elementos de indicialidade.
De fato, o símbolo em si mesmo, não mostra sobre o que está falando. Para
que o símbolo, tipo geral, se aplique a um caso específico e conseqüentemente se
conecte ao seu objeto, ele necessita de um índice. Como mostra Santaella (2005:
268), o poder de referência, poder indicativo do símbolo vem de seu ingrediente
indicial”. Quando se refere à palavra anel, por exemplo, o objeto dessa palavra é um
tipo geral que nenhum caso especial de anel pode englobar por completo.
Diferentemente, no instante em que se diz anel élfico, a designação élfico indica a
procedência do anel e, portanto, refere-se a um caso ao qual o geral se aplica
(embora élfico dependa do ícone mental daqueles que utilizam a palavra).
Embora forneçam todo o poder de referência que um símbolo possui, os
índices não são capazes de significar, razão pela qual o símbolo necessita de um
ícone. A parte exclusivamente simbólica de um símbolo (conceito ou sentido)
corresponde ao hábito geral, que precisa ser atualizado pelo ícone que integra o
símbolo, produzindo significado. Santaella (2005: 269) ilustra tal concepção com
um exemplo claro. Ela diz que “[...] nossa idéia geral, digamos, de um gato, por
exemplo, seria a fusão resultante de imagens decorrentes das situações repetidas de
experiências sensórias mais determinadas e muito diferenciadas de gatos
particulares”.
Com base nesses princípios, percebe-se que a idéia geral corresponde à forma
ou unidade imediatamente percebida, ou seja, o ícone, qualidades que atualizam o
conceito ou hábito geral que é o símbolo.
De fato, o símbolo, em si mesmo, não possui existência concreta. Peirce
(apud Santaella & Nöth, 1999: 64), ilustra tal idéia com o exemplo da palavra
70
“estrela”. Para o autor, ao escrevermos ou pronunciarmos “estrela”, estamos apenas
produzindo uma réplica da palavra. Embora se refira a algo real, a palavra em si
mesma não possui existência concreta. Consiste em uma seqüência de sons, ou
representamens de sons (Santaella, 2005: 262), que se torna signo por meio de um
hábito ou lei que faz os intérpretes a compreenderem como significando uma estrela.
Desse modo, ao escrevermos a palavra, não a estamos criando. Igualmente,
no momento em que a apagamos, não a estamos destruindo. Ela permanece viva no
espírito dos que a usam, mesmo que estejam adormecidos.
No momento em que não se apóia na concepção peirceana de mbolo como
lei ou legi-signo (uma regra que o permite ser interpretado como se referindo a um
certo objeto), Nasser (2003: 6) contraria tal visão, ao falar em destruição de um
símbolo. Para a autora, no instante em que um símbolo perde sua função de
representar, ele morre. Do contrário, para Peirce (apud Santaella & Nöth, 1999: 64):
[...] mesmo que a palavra não esteja mais viva, em uso por seus falantes,
como é o caso das línguas mortas, nem assim ela perderá seu poder de
denotar e significar, pois este poder lhe é dado por seu caráter de lei, num
sistema de leis que é a língua de que ela é parte.
O objeto representado por um mbolo é tão abstrato quanto ele. Para
Santaella & Nöth (1999: 64), o objeto corresponde a uma idéia a que a palavra está
ligada. Tomemos, por exemplo, a sucessão de sons e representação escrita de sons
anel. Cada manifestação concreta e diferente de anel, seja ela oral ou escrita,
inclusive esta que acabo de escrever, será apenas uma réplica da palavra enquanto
lei. E é no cerne dessa lei que reside a forma abstrata da imagem. Portanto, podemos
até apagar uma imagem ou palavra que produzimos para simbolizar algo, mas, ao
fazê-lo, não estaremos de forma alguma destruindo as formas abstratas que
correspondem ao símbolo e seu objeto.
Assim, a relação entre símbolo e objeto, de caráter convencional, advém do
legi-signo que determina o interpretante. A associação de idéias que se realiza,
através de regra interpretativa, na mente do intérprete, forma o interpretante, que é o
71
responsável pela conexão entre o signo e seu objeto. Entretanto, Santaella (2005:
266) mostra que, ao interpretar um determinado legi-signo simbólico, nenhum
intérprete é capaz de esgotar sua generalidade. Decorre daí a aptidão do símbolo
para mudanças, decorrentes, por exemplo, de alterações no hábito interpretativo de
certo mbolo, visto que os interpretantes lógicos podem ser modificados. Vê-se
então que, embora um mbolo dependa de uma convenção, o seu significado pode
variar com o tempo e de acordo com a perspectiva através da qual se analisa, uma
vez que é, como afirmou Short (apud Santaella, 2005: 266), um signo em
crescimento nos interpretantes que ele gerará”.
72
3. A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA DE O SENHOR DOS
ANÉIS
A primeira parte deste capítulo apresenta os procedimentos metodológicos
adotados para a análise do corpus. A segunda e última parte almeja discutir as
estratégias utilizadas pelo diretor e sua equipe para realizar a tradução do livro O
Senhor dos Anéis para o cinema. Além disso, procura destacar como a obra de
Tolkien e sua tradução cinematográfica se relacionam na construção do símbolo
Anel.
3.1. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
3.1.1. CONSTITUIÇÃO DO CORPUS
O corpus é constituído principalmente pelo livro O Senhor dos Anéis
25
, de
J. R. R. Tolkien (1954), e por sua tradução cinematográfica, dirigida por Peter
Jackson (2001 – 2003). Para maiores referências, também fiz uso dos livros O
Hobbit
26
e O Silmarillion
27
, ambos também escritos por J. R. R. Tolkien.
3.1.1.1. O LIVRO DE J. R. R. TOLKIEN
O Senhor dos Anéis foi escrito por J. R. R. Tolkien em 1954, após mais de 12
anos de trabalho atento, e é um dos vários livros que tratam da mitologia pelo autor
criada. Embora a intenção original de Tolkien fosse publicá-lo como um livro,
sua editora, a Allen & Unwin, optou por três volumes separados (A Sociedade do
25
TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis. Tradução de Lenita Maria moli e Almiro Pisetta. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
26
TOLKIEN, J. R. R. O Hobbit. 2ª ed. Trad. Lenita Maria Rímoli e Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
27
TOLKIEN, J. R. R. O Silmarillion. 2ª ed. Trad. Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
73
Anel, As duas torres e O retorno do Rei), devido ao preço do papel no pós-guerra e
por achar o livro, de mais de mil páginas, extenso demais para ser publicado em um
único volume.
Na Inglaterra, O Senhor dos Anéis somente perde em popularidade para a
Bíblia e, numa enquete realizada pela livraria virtual amazon.com, obteve o primeiro
lugar na lista dos melhores livros do século XX. Além disso, a obra de Tolkien
influenciou a música, os jogos de RPGs, os desenhos animados e até mesmo a
Internet, com centenas de websites dedicados a sua obra.
O livro narra a história do hobbit Frodo, que, com a ajuda de alguns
companheiros, é o responsável pela destruição do Anel de poder criado pelo Senhor
da Escuridão, Sauron, para controlar outros anéis mágicos que havia dado a alguns
povos da Terra-Média. Enquanto Sauron recupera sua força, Frodo deve destruir o
Anel, lançando-o no fogo da Montanha da Perdição, para que Sauron não
reconquiste o mundo.
Tolkien criou um novo mundo, seu povo, sua própria história e geografia
mitos que parecem reais. Quando ele escreve, pensamos que tudo é autêntico, pois
usa muitos adjetivos e descreve os personagens e principalmente o cenário
minuciosamente.
A obra é repleta de símbolos, dentre os quais se destaca o Anel, elemento que
permeia toda a história, sendo, por muitos, considerado um personagem na trama.
Dentre os vários anéis criados por Tolkien em sua vasta obra, o Anel de Sauron é a
representação do mal que destrói e corrompe a mente e o coração humanos, o que o
torna uma ameaça à felicidade da Terra-Média. Ao se associar a outros mbolos, o
Anel de poder compõe diversos significados que fundamentam os valores e
ensinamentos construídos ao longo da obra.
74
3.1.1.2. O FILME DE PETER JACKSON
Entre 2001 e 2003, o filme O Senhor dos Anéis, dirigido pelo diretor
neozelandês Peter Jackson e financiado pela New Line Cinema, foi lançado no
cinema em forma de trilogia, embora tenha sido filmado por completo e
ininterruptamente em dezoito meses na Nova Zelândia. A produção do filme exigiu
quase oito anos da vida de Peter Jackson e quatro anos da vida dos atores e equipe
técnica, já que todo o trabalho só foi concluído com a versão especial em DVD de O
Retorno do Rei, quase dois anos após sua estréia. Para sua produção foram
necessários cerca de 114 personagens com fala, 20 mil figurantes e 2.400 pessoas
trabalhando na equipe técnica.
Com roteiro de Peter Jackson, Philippa Boyens, Stephen Sinclair e Frances
Walsh, música de Howard Shore, fotografia de Andrew Lesnie e efeitos especiais da
Weta Digital, o filme teve o difícil trabalho de traduzir para milhões de fãs em todo
o mundo uma das obras mais cultuadas de toda a literatura, tendo, desde sua estréia,
no final de 2001, um lucro acima do normal e incluindo-se entre as dez maiores
bilheterias da história do cinema.
3.1.2. ANÁLISE DOS DADOS.
Partindo do pressuposto de que a tradução lmica de uma obra escrita produz
signos que traduzem os signos literários cinematograficamente, acrescentado outras
marcas, a presente pesquisa, de caráter analítico-descritivo, abordará as teorias de
tradução com enfoque no processo tradutório, não no produto. A análise não levará
em conta aspectos relacionados à equivalência ou fidelidade, comumente associados
aos estudos tradicionais de tradução.
Para fundamentar a postura adotada nesta pesquisa, basear-me-ei em algumas
linhas teóricas. A concepção de adaptação como sinônimo de tradução se
fundamenta nos estudos de tradução intersemiótica de Jakobson (1991) e Plaza
75
(2001). Para analisar a tradução, basearei as discussões nos Estudos Descritivos de
Tradução, cujos teóricos são Lefevere (1992), com o conceito de reescritura; Toury
(1995), que defende um estudo da articulação entre o texto original e a tradução
segundo sua função; e Cattrysse (1992), com a idéia de que a adaptação não deve ser
subordinada ao texto tido como original.
Para não ficar restrito à análise verbal do livro, mas compreender a natureza e
a capacidade referencial dos signos literários e cinematográficos, além de entender o
seu funcionamento, utilizar-me-ei de conceitos da semiótica, através das abordagens
de Joly (2002), Peirce (1975 e 1983), Perez (2004), Pignatari (1987), Pinto (1987),
Santaella e Nöth (1999), Santaella (1985, 1995, 2002 e 2005) e Santana (2005). As
questões sobre o cinema se fundamentarão em teóricos da linguagem
cinematográfica, como Aumont et al. (1995) e Martin (2003), e em críticos que
abordam a questão da adaptação de obras para o cinema, Macfarlane (1996) e Stam
(2000 e 2005).
Para fundamentar questões ligadas à literatura de Tolkien, à obra O Senhor
dos Anéis, bem como à simbologia do anel nas culturas e o estudo do simbólico em
geral, utilizarei Chevalier (1993), Colbert (2002), Cirlot (1984), D’alviella (s/d),
Eliade (1991a e b), Grimal (2000), Lurker (1997), Riffard (1993) e Salem (2001).
Também revisarei alguns estudos já realizados que também abordam questões
ligadas à tradução de obras literárias para o cinema: Alves (2004), Diniz (1998),
Mascarenhas (2006), Oliveira (1999), Santana (2005) e Silva (2002).
Para analisar os mecanismos utilizados pelos produtores do filme para
traduzir aspectos ligados ao mbolo anel, primeiramente farei um levantamento
acerca dos diversos contextos em que a palavra anel aparece na obra escrita.
Tentarei, através de uma análise interpretativa, destacar as diversas significações a
que se remete o símbolo Anel no decorrer da narrativa escrita, podendo fazer relação
com algumas das imeras referências que a literatura em geral traz sobre esse
símbolo e seus significados culturais e religiosos.
76
Em relação à análise do filme, farei uma descrição detalhada das seqüências
de plano, da movimentação de câmera, do som e da iluminação das cenas que fazem
referência à simbologia do Anel. Em seguida, através da confrontação entre os dois
materiais, identificarei como livro e filme constroem a simbologia do Anel e quais as
estratégias utilizadas pelos produtores do filme para traduzir tais significados do
livro de Tolkien.
3.2. A CONSTRUÇÃO DO SÍMBOLO ANEL NA OBRA O SENHOR
DOS ANÉIS: UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA
Quando Tolkien, na década de trinta, começou a escrever as aventuras do
personagem de O Senhor dos Anéis, Bilbo Bolseiro (ainda no livro que precede O
Senhor dos Anéis, O Hobbit), ele não tinha em mente uma história cujo elemento
principal era um anel. No início, o anel de Bilbo não desempenhava um grande
papel na história e foi apenas algo valioso encontrado pelo hobbit e que prolongou
os anos de sua vida. Sabendo que anéis mágicos são normalmente relevantes em
histórias desse tipo, Tolkien não queria que O Senhor dos Anéis se resumisse às
aventuras de um hobbit em busca de riquezas, portanto começou a imaginar o anel
de poderes mágicos como centro das atenções.
Enquanto O Senhor dos Anéis narra histórias do final da Terceira Era, O
Silmarillion relata acontecimentos de um passado muito anterior, porém ligado à
obra em estudo. Quando O Senhor dos Anéis foi publicado, em 1954, as histórias de
O Silmarillion já existiam pelo menos meio século, em suas versões originais,
escritas por Tolkien em velhos cadernos, às vezes às pressas e a lápis. Apenas quatro
anos após sua morte, em 2 de setembro de 1973, aos 81 anos de idade, seu filho
Christopher editou e publicou O Silmarillion.
Entre outras histórias, O Silmarillion conta acerca dos anéis de poder, que
foram feitos por Celebrimbor, neto de Fëanor e o maior dos artífices de Eregion,
77
uma terra fundada pelos noldor
28
, cujo líder era o próprio Celebrimbor. Não obstante
as advertências de Gil-galad
29
e Elrond
30
, os Gwaith-i-Mídain (artesãos de Eregion)
aceitaram a ajuda de um estrangeiro chamado Annatar, o Senhor dos Presentes. Com
a sua instrução, os Anéis do Poder começaram a ser forjados, por volta de 1500 da
Segunda Era (SE). A fabricação dos anéis continuou nas décadas subseqüentes,
também com o auxílio do estrangeiro, até que em 1590 SE, os Três Anéis foram
completados: Narya, o anel do fogo; Nenya, o anel da água e Vilya, o anel do ar.
Com os anéis, os elfos almejavam retardar a ação do tempo, apostando que,
desse modo, preservariam os locais onde viviam, já que, devido à imortalidade,
sofriam bastante ao ver o perecimento daqueles que amavam. Annatar (Sauron
disfarçado) desejava a dominação e escravização de todos. Por esse motivo, em
Mordor, no fogo da Montanha da Perdição (Orodruin), forjou o Um Anel, onde pôs
parte de sua própria essência. O Um Anel controlava todos os outros anéis e ainda
permitia a escravização mental de seus portadores.
Quando Sauron o colocou pela primeira vez, os Elfos perceberam a sua
intenção, tiraram e esconderam seus próprios Anéis. Como conseqüência, Sauron
em fúria, com um exército devastou Eregion e matou Celebrimbor, reivindicando a
posse de todos os Anéis. Conseguiu vários deles, exceto os Três que já haviam sido
enviados para longe, nos quais Sauron jamais tocou. Dos anéis capturados, nove
foram dados aos homens (que se tornaram seus servos, os nove Nazgûl), e sete
foram dados aos Anões, que se mostraram mais resistentes e não sucumbiram à
vontade de Sauron.
Durante uma batalha contra homens e elfos, ao tentar conquistar todos os
territórios da Terra-média, Sauron foi vencido, e o anel foi cortado de seus dedos
pelo filho do rei, Isildur. Este teve a chance única de destruí-lo, lançando-o no fogo
28
Os elfos-profundos, a segunda leva dos eldar (elfos das famílias vanyar, noldor e teleri).
29
Elfo e último Rei Supremo dos Noldor na Terra-média. Com Elendil, foi líder da Última aliança entre
homens e elfos, e morto com ele em combate contra Sauron.
30
Elfo, filho de Eärendil e Elwing, que permaneceu na Terra-média até o fim da Terceira Era.
78
da Montanha da Perdição. Entretanto, dominado pela ganância e pelo poder que o
anel possivelmente lhe traria, ele se recusou e escolheu ficar com o objeto.
Algum tempo depois, o anel de poder então escorregou do dedo de Isildur
quando ele nadava no rio Anduin. Em seguida, Isildur foi morto a flechadas em uma
emboscada de orcs, e o anel se perdeu no rio e foi esquecido. Quase 2.500 anos
depois, durante uma pescaria, o hobbit Déagol o encontrou, sendo morto em seguida
por seu amigo Sméagol, tomado de inveja e provavelmente sob a influência do
anel. Sméagol apropriou-se do anel e o manteve consigo por cerca de cinco séculos,
ganhando longevidade muito acima do normal, embora seu corpo e seu espírito
tenham sido corrompidos.
Em uma de suas aventuras, narradas no livro O Hobbit, Bilbo Bolseiro
encontrou o anel na caverna de Sméagol (que o havia perdido) e o carregou consigo
durante suas aventuras. O objeto conferia invisibilidade e longevidade a Bilbo, que,
sem saber que aquele se tratava do anel forjado por Sauron, permaneceu com ele até
seu aniversário de cento e onze anos, quando decidiu ir embora e viajar pelo mundo.
Ele então o deixou como herança para seu sobrinho Frodo Bolseiro, que também
comemorava aniversário, trinta e três anos. então se inicia a história de O Senhor
dos Anéis.
Ao descobrir a origem do anel e o perigo que Frodo corria em carregá-lo, o
mago e amigo Gandalf explicou-lhe que tal objeto precisava ser destruído na
Montanha da Perdição, onde havia sido criado. Agora a alma de Sauron começava a
recuperar sua força e ele queria o Anel de volta para reconquistar a Terra-Média.
Restava a Frodo deixar o Condado onde vivia em busca de seu objetivo. Junto com
outros oito companheiros, ele formará a Sociedade do Anel e partirá nesta viagem
em busca da salvação da Terra-Média.
É sabido que muitos anéis existentes na literatura possuem espírito ou alma.
Colbert (2002: 14) cita a lenda do folclore judaico, segundo a qual o arcanjo Miguel
deu um anel mágico ao rei Salomão para aprisionar as almas dos gênios maléficos.
79
Salomão fez os gênios construírem um grande templo e depois os lançou no Mar
Vermelho.
Em O Senhor dos Anéis, o poder do Um Anel estava ligado à natureza
maligna de Sauron, embora ele se manifestasse de diferentes maneiras de acordo
com seu portador. De fato, em algumas passagens, Tolkien deixa claro que Sauron
está representado pelo Anel por ele criado, como vemos na fala do personagem
Gollum: Espectros! gemeu ele. Espectros com asas! O Precioso é o mestre
deles. Eles enxergam tudo, tudo. Nada pode se esconder deles. Maldita Cara Branca!
E eles contam tudo para Ele”. (Tolkien, 2002: 662).
Ao observar os espectros do Anel, servos de Sauron, Gollum afirma que estes
são controlados pelo Um Anel, a quem ele chama de Precioso. Eles sentem, a todo o
momento, a presença do Anel.
Em um momento anterior, Frodo, de posse do Anel, sente até mesmo a mão
de Sauron buscando seu objeto de desejo:
- Por que, por que não foi destruído? – gritou Frodo. – E como aconteceu
ao inimigo perdê-lo, se era tão forte e o considerava tão precioso?
Apertou o Anel em sua mão, como se enxergasse dedos escuros se
estendendo para tentar tomá-lo. (Tolkien, 2002: 53).
Como vemos, o Anel era como uma parte vital de Sauron: ele precisava do
Anel para continuar vivo e manifestar todo o seu poder; se ele fosse destruído, o
espírito de Sauron também o seria.
Em suas narrativas, Tolkien deixa transparecer que o Um Anel possuía, a
certo ponto, vontade própria, e era sempre atraído pela vontade de seu criador. O
portador do Anel, não importasse sua índole, se sentiria atraído a conduzí-lo de volta
a seu Mestre. É o que observamos na passagem subseqüente, em que Gandalf fala a
Frodo sobre o Anel:
- Esse foi o acontecimento mais estranho em toda a história do Anel até
agora: a chegada de Bilbo exatamente naquela hora, e o fato de ter
colocado a mão sobre ele, cegamente, no escuro.
80
- Havia mais que um poder em ação, Frodo. O Anel estava tentando
voltar para seu mestre. Tinha escorregado das mãos de Isildur e o traíra;
depois, quando houve uma chance, pegou o pobre Déagol, e este foi
assassinado; e depois disso Gollum, e o Anel o devorou. Não podia mais
fazer uso dele: Gollum era pequeno e mesquinho demais, e enquanto
permanecesse com ele o anel jamais deixaria o lago escuro. Então nesse
momento, quando seu mestre estava novamente acordado e enviando seu
pensamento escuro da Floresta das Trevas, ele abandonou Gollum. Para
ser apanhado pela pessoa mais improvável que se poderia imaginar:
Bilbo, do Condado. (Tolkien, 2002: 57).
Assim, ao observarmos a fala de Gandalf, vemos que o Anel parecia ter alma,
vontade própria, visto que, com o intuito de voltar para seu mestre, traiu Isildur,
“pegou o pobre Sméagol”, o devorou e, por fim, o abandonou. O Anel é, de certa
forma, personificado.
Tanto no livro O Hobbit, como no início de O Senhor dos Anéis, a palavra
anel é grafada com “a minúsculo, pois sua identidade não é conhecida dos
personagens até que Gandalf descobre que se trata do Anel de Sauron. O próprio
Tolkien percebeu a importância do anel com o decorrer da história.
No filme A Sociedade do Anel (excluindo-se o prólogo, quando se conta a
criação dos anéis de poder), o anel também assume a mesma postura: ele passa a ser
o Um Anel a partir do momento em que Gandalf descobre a sua origem. Na
seqüência em que Frodo e Gandalf conversam, logo após a partida de Bilbo, pela
primeira vez o anel, aparentemente simples, deixa transparecer para Frodo
características especiais, habilidades próprias de um ser humano, como acordar,
ouvir e, até mesmo, falar: um olhar mais atento à cena é capaz de nos mostrar o
momento em que os dois amigos ouvem o Anel sussurrar a palavra Isildur e se
espantam.
81
FIGURA 1: o Anel personificado
Gandalf: Sim. Por sessenta anos o Anel permaneceu em silêncio com Bilbo, prolongando sua
vida, adiando sua velhice. Mas não mais, Frodo. O mal está se agitando em Mordor. O Anel
despertou. Ele ouviu o chamado de seu mestre.
Frodo: Mas ele foi destruído, Sauron foi destruído.
Ring: (sussurros) Isildur...
(ambos Gandalf e Frodo olham para o Anel)
31
32
31
As figuras referentes às cenas do filme são acompanhadas do roteiro de Peter Jackson, Philippa Boyens e
Fran Walsh, cuja versão primeira se encontra em nota de rodapé.
32
Gandalf: Yes. For sixty years the Ring lay quiet in Bilbo's keeping, prolonging his life, delaying old age.
But no longer Frodo. Evil is stirring in Mordor. The Ring has awoken. It's heard its master's call.
Frodo: But he was destroyed. Sauron was destroyed.
Ring: (whispers) Isildur…
82
Nesse caso, atribuir a um objeto inanimado uma característica inerente aos
seres humanos, personificando-o, foi o recurso utilizado pelo diretor do filme para
traduzir iconicamente a inserção da letra maiúscula “A”, visto que, dentre os seus
vários usos, letra maiúscula iniciando palavra pode nomear substantivos próprios. O
“A”maiúsculo utilizado por Tolkien se assemelha às qualidades do Anel, isto é,
recupera analogicamente a qualidade de personagem que lhe é atribuída e,
funcionando como ícone, é capaz de “excitar na mente receptora sensações análogas
às que o objeto excita”, (Santaella, 2005: 296) nesse caso, remetendo ao poder que
emana do Anel e que o personifica.
No início de seu diálogo (cena anterior à da figura 1), Frodo e Gandalf atuam
em uma cena cuja decomposição mostra planos americanos
33
. Tal tipo de plano
apresenta ao espectador qualidades que passam despercebidas, visto a quantidade de
detalhes intricados existentes, que chegam aos olhos de quem assiste ao filme
continguamente. Do contrário, posteriormente, no instante em que sussurra (imagem
a), o Anel é visualizado em close-up. Como mostra Xavier (1983: 91):
Close-ups geralmente são revelações dramáticas sobre o que está
realmente acontecendo sob a superfície das aparências. Podemos ver um
plano médio de uma pessoa, sentada e conversando calma e friamente. O
close-up, entretanto, revelará os dedos que tremem nervosamente
apalpando um pequeno objeto-signo de uma tempestade interna.
Deste modo, por se tratar do tema discutido por Frodo e Gandalf, o Anel tem
sua presença enfatizada pelo uso do close-up. Martin (2003: 39) diz que, através de
tal recurso, “a tela pode fazer viver sob os nossos olhos os objetos inanimados”.
Dick (1990: 32) mostra que Alfred Hitchcock também utilizou o Primeiro plano
(both Gandalf and Frodo stares at the Ring)
33
Xavier (1984: 19), ciente de que não há regras rígidas para a delimitação entre um tipo e outro, classifica os
planos no cinema em: Plano geral (utilizado em cenas localizadas em lugares amplos; a câmera mostra todo o
espaço da ação); Plano Médio ou de Conjunto (utilizada principalmente em ambientes internos; a câmera
mostra o conjunto de elementos envolvidos na ação); Plano americano (as figuras humanas são mostradas até
a cintura aproximadamente, em função da maior proximidade da câmera); Primeiro plano ou close-up (a
câmera, próxima à figura, apresenta apenas um rosto ou outro detalhe qualquer que ocupa a quase totalidade
da tela).
83
como forma ideal para enfatizar objetos importantes para a compreensão de uma
determinada cena, como, por exemplo, um copo suspeito de leite (em Suspeita,
1943), um envelope caído de um agente nazista (em Sabotador, 1942), ou uma
garrafa de vinho cheia de minério de urânio (em Interlúdio, 1946).
No filme em estudo, o close-up foi utilizado como suporte direto ao enredo,
visto que a visualização do Anel em primeiro plano coincide com o momento em
que ele sussurra, chamando a atenção do espectador para a personificação que é
atribuída ao Anel e causando espanto em Frodo e Gandalf. Na seqüência, ao
ouvirem e observarem assustados o Anel, os dois personagens também são
visualizados em close-up (imagens b, c, d, f). Para Dick (1990: 32), tal recurso pode
revelar uma emoção particular para a qual, dentro das circunstâncias, uma tomada
longa (plano médio, por exemplo) teria sido inapropriada. O autor ainda cita o
exemplo do diretor Griffith, em seu filme Lírio Partido (1919): o medo da
personagem Lucy (interpretada por Lillian Gish), ante a denúncia de seu pai, é
caracterizado na cena por meio de um close-up, que revelava e dava dramaticidade
ao seu sentimento.
Tolkien criou Sauron como um ser de força superior a qualquer outra
conhecida pelos integrantes da sociedade. Uma prova disso são as palavras de
Gandalf a Thorin em O Hobbit: ele é um inimigo acima dos poderes de todos os
anões juntos” (Tolkien, 2003: 25). Por ser parte de Sauron, parte esta cortada de sua
mão, O Anel se constitui como expressão do poder, sinal de superioridade. Lurker
(1997: 28) lembra a entrega do anel a Jopelo faraó, que documenta a transmissão
de toda plenipotência, narrada na Bíblia, no livro de Gênesis 41: 42 – 43:
Então tirou Faraó o anel de sua mão, e o pôs na mão de José, e o fez
vestir de roupas de linho fino, e o pôs um colar de ouro no seu pescoço. E
fê-lo subir no segundo carro que tinha, e clamavam diante dele: Ajoelhai-
vos. Assim o pôs sobre toda a terra do Egito.
84
O autor ainda cita o anel episcopal que é, desde o séc. VII, sinal da união com
Deus e com o cargo por ele outorgado, expressão do poder daí resultante e selo de
fé, chamado signaculum fide.
Como dito, em O Senhor dos Anéis, o Anel de poder seria destruído no
fogo da Montanha da Perdição, onde havia sido feito, e Sauron, seu senhor, só seria
destruído caso tal proeza acontecesse. De fato, Sauron crê que seus poderes e
talentos são maiores do que os demais espíritos criados pelo deus Ilúvatar e orgulha-
se disso. Ele, entretanto, esquece que todos os poderes que possui derivam do
próprio Ilúvatar, cujas habilidades são muitos superiores. A soberba de Sauron vai
longe demais e, como afirma Colbert (2002: 139), ele se sente no lugar de Deus.
Humphrey Carpenter (2006: 233 234), mostra a carta escrita ao poeta W. H.
Auden por Tolkien, em que este comenta suas críticas ao livro O Retorno do Rei.
Tolkien diz que:
Em O Senhor dos Anéis, o conflito não é basicamente sobre “liberdade”,
embora ela esteja naturalmente envolvida. É sobre Deus e Seu direito
único à honra divina. Os Eldar e os menóreanos acreditavam n’O
Único, o Deus verdadeiro, e consideravam a devoção a qualquer outra
pessoa uma abominação”.
Dessa forma, Sauron, representado como um único olho (como veremos mais
adiante), e cujo poder máximo era o Anel, desejava ser um Rei-Deus, e era assim
considerado por seus seguidores. O Anel não está associado a poderes divinos
apenas na mitologia de Tolkien. Entre os Assírios e na Pérsia aquemenídica
34
, por
exemplo, o sol era por vezes representado por um anel dotado de asas e associado às
imagens dos deuses Assur e Ahuramasda, como mostra Lurker (1997: 28). O autor
ainda cita as imagens dos deuses dos germanos setentrionais, que possuíam anel
dourado no braço, como sinal de sua santidade e poder.
Por diversas vezes, referências à força viva presente no Anel, referências
estas normalmente associadas ao olho de Sauron e ao elemento fogo. Primeiro
34
Dinastia persa, fundada em 550 a.C. por um descendente dos Aquêmenes, Ciro I, e extinta após a morte de
Dario III, último soberano aquemênida, em 333 a.C.
85
discutirei acerca do símbolo olho e sua relação com o Anel. Posteriormente,
abordarei em minhas análises a relação entre o Anel e o elemento fogo.
Sauron, não tendo ainda recuperado a sua forma física completa, aparece
como um único Olho, sem pálpebras, que tudo e sente, como vemos na fala de
Aragorn, abaixo transcrita:
- O Senhor do Escuro já sabia demais, e seus servidores também; e
Grishnákh evidentemente enviou alguma mensagem para o outro lado do
Rio depois da briga. O Olho Vermelho estará olhando na direção de
Isengard. (Tolkien, 2002: 591)
Em muitas lendas, deuses e demônios são apresentados como seres de um
olho, como o deus egípcio do sol Rá, que era dotado de um único olho
incandescente, mbolo da natureza ígnea” (Chevalier, 2001: 655); Nas lendas
celtas, o deus Balar tinha um olho único de fogo que podia destruir exércitos
inteiros; O deus germânico Odin era tão ávido de conhecimento que, em troca dele,
deu um olho ao gigante Mimir”; “Os humanistas usam um único olho para
representar Deus”. (Lurker, 1997: 497).
Embora o olho único, sem pálpebras, seja um símbolo da condição sub-
humana (como no caso dos ciclopes da mitologia greco-romana), por outro lado, ele
é o mbolo da Essência e do Conhecimento Divino, como mostra Cirlot (1984: 427
- 428):
A posse de dois olhos expressa a normalidade física e seu equivalente
espiritual; por isso o terceiro olho é símbolo de sobre-humanidade ou
divindade. No caso do olho único, seu significado é ambivalente; por ser
menos que dois (normalidade), expressa infra-humanidade, mas por sua
posição na fronte, acima do lugar disposto pela natureza, parece aludir a
poderes extra-humanos [...].
Embora a seguinte passagem de O Senhor dos Anéis:
A breve luz bateu num enorme vulto sentado, parado e solene como os
grandes rei de pedra dos Argonath. Os anos o haviam corroído, e mãos
violentas o tinham mutilado. A cabeça se fora, e em seu lugar estava
86
colocada em arremedo uma pedra redonda e áspera, rudemente pintada
por mãos selvagens à semelhança de um rosto sorridente com um grande
olho vermelho no meio da testa. (Tolkien, 2002: 739).
descreva o momento em que parte da Sociedade do Anel encontra a cabeça
da estátua do rei substituída por uma cabeça com olho vermelho
35
, Sauron existia
apenas como um olho, vermelho, que, fantasticamente, não fazia parte de uma
cabeça ou qualquer outro conjunto, nem coincidia com o olho de sua antiga estrutura
anatômica. Sobre tal aspecto, Cirlot (1984: 428) diz que:
Os olhos heterotópicos, quer dizer, deslocados de seu lugar anatômico e
transladados a diversas partes do corpo em figurações fantásticas,
angélicas ou divindades (nas mãos, asas, torso, braços), diferentes lugares
da cabeça, aludem ao correlato espiritual da visão, quer dizer, à
clarividência.
Na obra em estudo, o Olho se mostra um personagem extremante astuto e
atilado. Sua perspicácia provém desde a época em que ainda possuía forma física
definida, quando, usando o nome Annatar (Senhor dos Presentes), ele tenta persuadir
os elfos aos seus serviços. Apesar da recusa de Gil-Galad (o último rei dos noldor na
Terra-média), uma sociedade de artífices em Eregion, chamada de Gwaith-i-Mírdain
(Povo dos Joalheiros), passa para o seu lado, recebendo ensinamentos secretos de
Sauron acerca da produção de anéis mágicos, como já foi dito no início do capítulo.
Durante muitas passagens do livro, Frodo, Bilbo, e até mesmo Gandalf, sentem ou
vêem o olho maligno de Sauron ao tentar pegar ou ao utilizar o Anel, como fica
claro na passagem abaixo:
Bilbo passou a mão sobre os olhos. Sinto muito! disse ele. Mas me
senti tão estranho. E apesar disso seria de certo modo um alívio não ter
mais de me preocupar com ele. Ele cresceu na minha mente nos últimos
tempos. Às vezes eu sentia que ele era um olho me vigiando. (Tolkien,
2002: 35).
35
Servidores de Sauron (talvez orcs) trocaram a cabeça dos reis por cabeças dotadas de um olho vermelho,
como forma de representar seu mestre e de mostrar a superioridade de Sauron e sua vontade de reinar como
absoluto na Terra-média.
87
Vê-se que, em diálogo com Gandalf, Bilbo demonstra que o Anel já o domina
de tal forma que o faz vê-lo como um olho, o Olho de Sauron: se o Anel é parte de
seu mestre, é provável que ele sinta sua presença. Ao utilizar tal metáfora, Tolkien
traça um paralelo entre o caráter representantivo do signo (nesse caso, o Olho) e
algo diverso dele (que é o Anel). Como mostra Peirce (apud Santaella, 2005: 304),
as metáforas são definidas como “signos que representam o caráter representantivo
de um representamen [signo] por apresentarem um paralelismo com algo mais”. Na
passagem da obra, é graças à metáfora do discurso de Bilbo que o leitor pode
visualizar imageticamente a semelhança que permite o ícone representar seu objeto.
No livro, temos ainda outras referências ao Olho: Frodo o olho de Sauron no
espelho de Galadriel, e os orcs, seres hediondos e servidores de Sauron, sempre se
referem a ele, como O Grande Olho.
No filme, a visualização do Anel como olho se apresenta também por
similaridade. Porém, isso se observa em efeitos de mera e sobreposição de
imagens. Por exemplo, na cena de A Sociedade do Anel em que, após a despedida de
Bilbo, Gandalf tenta pegar o Anel do chão e o olho de fogo de Sauron, o diretor
utiliza a mera subjetiva
36
(imagens a, b, d). Neste caso, em contre-plongée
37
, a
câmera mostra o ponto de vista do objeto, e não o de Gandalf, dando a idéia de que o
Anel é que está olhando para ele, não o contrário. Assim, temos a noção de que o
Anel é o próprio olho de quem o criou.
36
Como mostra Dick (1990: 35 36), enquanto “uma tomada objetiva representa o que a câmera vê; uma
tomada subjetiva (às vezes chamada de câmera subjetiva) representa o que o personagem vê”. [An objective
shot represents what the camera sees; a subjective shot (sometimes referred to as a subjective camera)
represents what the character sees].
37
Na contre-plongée, o tema é fotografado de baixo para cima, ficando a objetiva abaixo do nível normal do
olhar. (Martin, 2003: 41)
88
FIGURA 2: câmera subjetiva e a relação Anel-Olho.
“Gandalf volta para dentro, olha para o Anel no chão, se abaixa e põe sua mão sobre ele como se
para pegá-lo. Antes que ele possa tocá-lo, ele um flash do olho de Sauron, surpreso ele o deixa.
Gandalf senta no escritório no Interior de Bolsão, fumando. Ele parece estar pensando
profundamente.”
38
No instante em que possui forma semelhante ao Olho, o Anel o representa e
faz referência à sua origem, ao seu criador, sendo portanto um ícone. Ele é uma
representação que mantêm uma relação de analogia qualitativa com seu referente. O
38
“Gandalf goes back inside, he stares that the Ring on the floor, bends down and puts his hand over it as if to
pick it up. Before he can even touch it, he sees a flash of the Eye of Sauron, surprised he leaves it. Gandalf
sits in the study inside Bag End, smoking. He seems to be in deep thoughts”. (The Lord of the Rings: the
Fellowship of the Ring - Movie Transcript – page 11).
89
formato, a cor dourada e a procedência que caracterizam o Anel retomam as
qualidades formais do Olho: formas, cores e proporções, permitem reconhecê-lo. Tal
referencialidade ocorre devido à similaridade entre signo e objeto (seu nível de
primeiridade), o que, por um instante, nos faz ter a consciência de que o signo Anel é
o próprio referente, visto o estatuto do ícone depossibilidade ainda não-atualizada”
(Santaella, 2005: 194).
É certo que, por se tratar de uma imagem e indicar algo do mundo visível, os
dois signos ainda adquirem um proeminente nível de indexicalidade (seu nível de
secundidade). O Anel é também um índice no instante em que aponta para o seu
objeto por ser uma parte deste: em determinada cena do filme, Gandalf diz a Frodo
que o Anel é parte de seu mestre (Sauron). Assim como o Olho, o Anel é parte de seu
criador e estabelece uma relação de fato (concreta) com seu objeto, já que é afetado
por ele. Percebe-se que “a semelhança cede lugar ao índice”, proporcionando à
imagem a força da própria coisa”, provocando no espectador o esquecimento de
seu caráter representativo” (Joly, 2002: 40). Assim, o que era uma simples
possibilidade se atualiza na mente do intérprete, e a montagem realizada pelo diretor
reforça o entendimento da relação entre Anel e Olho por parte do espectador.
Todavia, embora esteja ligado a seu objeto por características icônicas e
indiciais, o signo Anel apresenta certos significados que apenas podem ser
compreendidos por aqueles que dominam o sistema de convenções culturais a partir
do qual as figuras se relacionam, atribuindo a tais figuras um acentuado caráter
simbólico. Estão incluídos a relação do Anel com o poder, a agressividade, a
destruição, a união, entre outros, como veremos no decorrer da análise.
Uma outra análise pode ser realizada observando-se a cena de O Retorno do
Rei, em que Gollum decepa o dedo de Frodo e toma-lhe seu objeto de desejo,
conquistando finalmente o seu único e obsessivo objetivo:
90
FIGURA 3: O Anel entra na mente de Gollum através do olho
DENTRO DA FENDA DA PERDIÇÃO
CLOSE: GOLLUM ergue de forma triunfante o ANEL no ar.
DESLUMBRADO!
39
A criatura se vangloria e ergue o Anel: a câmera deixa o espectador ver a
expressão triunfante de seus olhos através do artefato dourado (imagem a), e o
39
INT. CRACK OF DOOM - DAY
CLOSE ON: GOLLUM triumphantly HOLDS the RING ALOFT . . .
ECSTATIC!
91
movimento de distanciamento
40
(zoom out) usado pelo diretor permite o Anel
emoldurar o olho direito de Gollum (imagem e), como forma de simbolizar e
reproduzir o desejo ambicioso que existia em seu espírito, que, segundo Lurker
(1997: 497), o olho é o “espelho da alma”, “a cobiça”
41
. Assim, o desejo do
personagem é exteriorizado: no início a criatura parece olhar para o espectador,
como que para informá-lo de sua sorte, e, em seguida, mostra o motivo de todo
regozijo.
Na obra de Tolkien, ainda uma forte relação entre os símbolos Olho, Anel
com o sol e o fogo. Em algumas passagens, Sauron, normalmente representado por
um olho sem pálpebras, é mostrado por Tolkien como o sol:
- Mas quando abaixou os olhos, viu à sua frente, distantes, os topos das
Montanhas Sombrias, de onde vinha o riacho. E de repente pensou:
“Debaixo daquelas montanhas deve ser um lugar fresco e de muita
sombra. O sol não poderia me olhar ali. As raízes dessas montanhas
devem ser raízes de verdade; deve haver grandes segredos enterrados
que não foram descobertos desde o início.” (Tolkien, 2002: 55).
Gollum evita o sol e a lua porque lembram o olho de Sauron, como vemos no
seguinte diálogo entre Samwise Gamgi e Frodo:
- O senhor acha que ele consegue nos enxergar? – disse Sam.
- Não sei disse Frodo baixinho -, mas acho que não. Mesmo para olhos
amigos é difícil enxergar essas capas élficas: eu não posso vê-lo na
sombra, mesmo a apenas alguns passos de distância. E ouvi dizer que ele
não gosta do sol e da lua. (Tolkien, 2002: 644).
Como mostra Chevalier (2001: 656), o símbolo Olho é culturalmente
associado ao sol. O próprio termo irlandês para olho, sul, corresponde ao nome
Bretão do Sol. Em gaélico, o sol é chamado metaforicamente, “olho do dia(Ilygad
40
Movimento em que a câmera abre o foco, enquadrando sem corte, um maior número de personagens e/ou
objetos na tela.
41
CHEVALIER (2001: 656) cita algumas culturas que compartilham a mesma concepção de olho, dentre as
quais posso citar a dos Bambaras (povo do grupo Mande, cuja maior parte vive em Mali e Senegal), para
quem a visão que o olho confere simboliza o desejo.
92
y dydd). Diversas moedas gaulesas apresentam uma cabeça de herói com o olho
desmesuradamente aumentado, como referência ao sol.
Em inúmeras culturas, o sol era o grande deus, com diversos nomes: Amon,
e Atón no Egito; Surya ou Savitri na Índia védica; Apolo na Grécia. (Thiollier,
s/d.: 329). Para Cirlot (1984: 535), o sol representava o olho de vários deuses: na
Índia, o sol Sûrya é o olho de Varuna; na Pérsia, o de Ahuramasda; na Grécia,
Hélios é o olho de Zeus (como Urano). No Egito é o olho de Rá, enquanto no Islã é
o olho de Alá.
Cirlot (1984: 427) faz um comentário deveras relevante explicando a relação
análoga entre os olhos dos deuses e o sol:
Sendo o sol foco da luz e esta, símbolo da inteligência e do espírito, o ato
de ver expressa uma correspondência à ação espiritual e simboliza, em
conseqüência, o compreender. Por isso, o “olho divino”, assim chamado
pelos egípcios, impunha-se como signo determinativo, Quadza,
simbolizando “o que alimenta o fogo sagrado ou a inteligência no
homem”, quer dizer, Osíris. É muito curiosa a concepção analítica do
olho, ou melhor, do círculo da íris, centralizado na pupila como “sol da
boca” (verbo criador).
Na citação, o autor introduz o elemento fogo como referente à inteligência.
Ora, sabe-se que para a maior parte dos povos primitivos, o fogo é um demiurgo e
procede do sol, é sua representação sobre a terra” (Cirlot, 1984: 258). Logo, a
analogia entre o sol e o olho se explica no instante em que o olho divino,
representado pelo sol, é o que alimenta o fogo sagrado.
Na seguinte passagem de O Senhor dos Anéis, Frodo vê uma estrela vermelha
que brilha no céu como um olho atento que queima:
A Lua do Caçador se exibia redonda no céu noturno, fazendo inveja a
todas as estrelas menores. Mas abaixo, no sul, uma estrela brilhava
vermelha. A cada noite, conforme a lua minguava de novo, ela brilhava
mais e mais. Frodo podia vê-la de sua janela, profunda no céu,
queimando como um olho atento que resplendia sobre as árvores na beira
do vale. (Tolkien, 2002: 285).
93
Nesta outra, o sol ganha uma tonalidade de sangue:
Embaixo, no horizonte, as saliências das montanhas brilhavam vermelhas
dos dois lados. Uma fumaça parecia subir e escurecer o disco do sol até
atingir a tonalidade do sangue, como se tivesse incendiado a relva ao
passar para baixo da superfície da terra. (Tolkien, 2002: 528)
Ao citar e descrever o sol nas duas passagens, percebe-se que, além de
associá-lo ao “Olho”, Tolkien atribuiu a tal objeto as tonalidades “vermelha” e
“sangue”, assim como utilizou termos como “brilhava” e “queimando”.
No primeiro caso, as qualidades “vermelha” e “sangue” fazem lembrar o
Olho em chamas vermelhas de Sauron. São descrições indicativas, no instante em
que são um tipo de representação que aponta imediatamente a mente do receptor
para o objeto em questão, o Olho vermelho do criador do Anel, cuja vontade maligna
de aniquilar todas as criaturas que a ele se opuserem também está representada nas
qualidades vermelha” e “sangue” das passagens do livro anteriores. Como veremos
a seguir, o vermelho está culturalmente associado à agressividade, ao sangue a ao
fogo.
Das cenas do filme que se seguem (figura 4 e 5), percebemos como aspectos
qualitativos da imagem, como a cor vermelha, podem ser compreendidos em sua
dimensão simbólica. Primeiramente, temos a seqüência de A Sociedade do Anel em
que Frodo olha no Espelho de Galadriel (figura 4):
94
FIGURA 4: Frodo olha no Espelho de Galadriel
Frodo se aproxima do espelho e uma olhada. Ele observa e nada , com exceção de seu
reflexo. Então, de repente, o espelho clareia e mostra a visão de Legolas, Merry e Pippin, e então
Sam. Ele Bolsão, queimadas na Vila dos Hobbits, a escavidão dos Hobbits e a destruição do
Condado. Então, repentinamente, o Olho de Sauron preenche todo o espelho. O Anel pendurado no
pescoço de Frodo o inclina em direção à água. Vapor começa a subir da bacia, ao mesmo tempo
em que Sauron fala a Frodo na Língua Negra. Assustado, ele agarra o Anel e afasta-se, lançando-se
e caindo com as costas na grama.
42
Como mostra Dick (1990: 75), embora a cor possa ser simplesmente “parte
da maneira como um filme é feito”
43
, ela “pode ser utilizada criativamente por
aqueles que pensam criativamente”: ela pode embelezar, sugerir, caracterizar, e
forjar conexões simbólicas; assim como podem os filmes em preto e branco”
44
(Dick, 1990: 76).
A esse respeito, Joly (2002: 100) diz que:
A interpretação das cores e da iluminação, assim como a das formas, é
antropológica. Como qualquer percepção, sua percepção é cultural, mas
talvez nos pareça mais “natural” que qualquer outra. No entanto, é essa
mesma “naturalidade” que pode nos ajudar, afinal, a interpretá-las. De
fato, a cor e a iluminação têm um efeito psicofisiológico sobre o
42
(Frodo steps up to the mirror to take a look. He peers down and sees nothing but his reflection. Then
suddenly the mirror clears and shows a vision of Legolas, Merry and Pippin, then Sam. He sees Bag End, then
the burning of, the enslavement of the Hobbits and the destruction of the Shire. Then suddenly the Eye of
Sauron fills the entire mirror. The Ring hanging from Frodo’s neck pulls him closer to the water. Steam
begins to curl up from the basin as Sauron speaks to Frodo in Black Speech. Terrified, he grabs the Ring and
jerks back, throwing himself off the step and landing on his back on the grass)
43
“Color can be simply part of the way a film is made or it can be used creatively by those who think
creatively” (Dick, 1990: 75).
44
“Color can embellish, suggest, characterize, and forge symbolic connections; so can black and white”.
(Dick, 1990: 76)
95
espectador porque, “percebidas oticamente e vividas psiquicamente”,
colocam o espectador em um estado que “se assemelha” ao de sua
experiência primordial e fundadora das cores e da luz. Luz oblíqua, da
manhã, da tarde ou de inverno e os humores vinculados a ela. Luz zenital
e as impressões do verão. Sol ou fogo, lâmpada ou projetor. Força e
violência do vermelho do sangue e do fogo, azul aéreo do céu ou verde
apaziguante dos brotos das folhas.
Para a autora, essas várias referências são, com um pouco de memória,
“reativadas pelas escolhas feitas pela imagem, é claro, com seus ajustes
socioculturais”. As associações que envolvem a cor vermelha são fortemente
induzidas pelos próprios signos a elas relacionados. Se a cor vermelha das imagens
mostradas tivesse sido utilizada em outras circunstâncias que não encarnada no
símbolo do Olho ou relacionada ao Anel (por exemplo, em um coração que ilustra
um outdoor sobre o Dia dos namorados ou em uma campanha para incentivar a
doação de sangue), estabeleceria outros tipos de associações.
Na seqüência, percebemos que, ao olhar no Espelho de Galadriel e ver o Olho
em chamas de Sauron, Frodo muda o seu semblante: seu rosto se ilumina de
vermelho, reflexo da imagem do Olho presente na água do Espelho e símbolo de seu
medo diante da agressividade do Olho.
Para explicar a carga emocional da cor vermelha, que torna a dramaticidade
da cena ainda maior, recorro à explicação sica feita por Guimarães (2002: 114), ao
dizer que:
[...] o vermelho, na física da luz, corresponde a um comprimento de onda
de, aproximadamente, 630 a 760 milimícrons (mµ); esse dado, somado a
outros da fisiologia do olho humano, revela que o vermelho está no limite
entre a cor visível, derivando daí parte da agressividade de caráter
hipolingual, ou seja, dos códigos primários, biofísicos, que, somada à
identificação da cor com o elemento mitológico fogo, como cor da
proibição, do não poder tocar (porque queima), e com a cor do sangue, da
violência, faz com que o vermelho também seja construído por sistemas
de códigos hiperlinguais, ou seja, códigos terciários, os digos da
cultura [...]
96
Na curva do espectro que determina a luz visível, temos os limites de 380 a
760 mµ, aproximadamente: nem raios luminosos abaixo de 380 mµ (os ultravioletas)
e nem os acima de 760 (os infravermelhos) são visíveis ao olho humano. A
sensação de agressividade provocada pelo vermelho deve-se, portanto, ao fato dessa
cor estar no limite das cores visíveis, que corresponde a 760 mµ. Daí então deriva o
aspecto cultural, o código hiperlingual, como define o autor, que está ligado a idéias
de sentimentos extremos, como paixão, violência etc.
Na figura 4, o semblante de Frodo foi iluminado pela luz azul provinda do
Espelho. Tal luz variou de acordo com o que Frodo viu no Espelho, e o que ele viu
modificou, inevitavelmente, sua feição. Logo, as cores azul (imagem a) e vermelho
(imagem c), utilizadas, têm forte relação com a expressividade do personagem.
Guimarães (2002: 114) diz que:
[...] o vermelho predominante no campo visual formaria uma imagem
mais forte, pois o ponto de convergência dos raios vermelhos estaria atrás
da retina, enquanto o azul predominante teria o ponto de convergência
um pouco à frente da retina. Assim trabalham os pintores, criando planos
de distância-profundidade. O resultado seria, portanto, a agressividade
para o vermelho e a tranqüilidade para os matizes azul e cyan.
A luz azulada no rosto de Frodo (imagem a), enquanto este , no Espelho,
seus amigos Legolas, Merry, Pippin e Sam, cede lugar à tonalidade vermelha, para
simbolizar o terror vivenciado pelo personagem no momento seguinte, visto a
agressividade do Olho em chamas.
Patoureau (apud Gonçalves, 2002: 117) diz que, na história das civilizações,
culturalmente, o vermelho está quase sempre associado ao sangue e ao fogo”. Para
ilustrar tal visão, temos a seguinte seqüência de A Sociedade do Anel que narra a
criação do Anel de poder por Sauron (figura 5):
97
FIGURA 5: a criação do Anel por Sauron
Na Terra de Mordor, no fogo da Montanha da Perdição, o Senhor do Escuro Sauron forjou em
segredo um anel mestre, para controlar todos os outros. E nesse Anel, ele pôs toda a sua crueldade,
malícia e vontade de dominar todo o mundo.
45
Vemos que a Montanha da Perdição (imagem a), em cujo fogo Sauron forjou
o Anel, é marcada pelo vermelho, e o Anel (imagem d) tem em si inscrições que, se
expostas ao fogo, adquirem uma coloração avermelhada.
O Anel e sua inscrição em vermelho (imagem d) são a representação da
soberba de Sauron e de sua revolta contra Deus e contra todos os povos da Terra-
Média. Ali ele pôs toda a sua crueldade, sua malícia e seu desejo sanguinário de
destruir todos os seus opositores. Até uma simples qualidade monádica, como a cor
vermelha, pode funcionar como signo, no momento em que produz na mente do
intérprete um sentimento e indica o ódio que gera sangue. A faculdade imaginativa
da inscrição no Anel (imagem d), por exemplo, é dada por seu elemento de
primeiridade: a cor vermelha, semelhante ao sangue derramado na guerra do Anel. Já
45
In the land of Mordor, in the fires of Mount Doom, the Dark Lord Sauron forged in secret a master ring, to
control all others. And into this Ring, he poured his cruelty, his malice and his will to dominate all life.
98
a sua referencialidade se através do elemento da secundidade: a cor vermelha das
letras provém do fogo onde o Anel fora criado, assim como o conteúdo das
inscrições remetem ao propósito sanguinário de Sauron: “Um Anel para a todos
governar; Um Anel para encontrá-los, Um Anel para a todos trazer; e na Escuridão
aprisioná-los” (Tolkien, 2002: 264).
Na seguinte seqüência do filme As duas torres, ao pressentir que Merry e
Pippin poderiam morrer, Legolas vê o sol avermelhado, como forma de simbolizar o
possível sangue derramado:
FIGURA 6: o sol vermelho – sangue derramado
[Os três caçadores ainda estão procurando os Uruk-hai. Nascer do sol.]
Legolas: [Para e olha para cima] Nasce um sol vermelho. Sangue foi derramado esta noite.
46
Gonçalves (2002: 120) lembra do vermelho como cor de Marte e, portanto,
dos guerreiros. O fogo, cuja imagem possui um tom avermelhado, é utilizado para a
forja de armas, que são utilizadas em guerras. Abaixo, temos a imagem capturada da
cena de O retorno do Rei em que a espada de Isildur é reconstruída.
46
[The Three Hunters are still chasing after the Uruk-hai. It is dawn.]
Legolas: [Pauses and looks up] A red sun rises. Blood has been spilled this night.
99
FIGURA 7: a reconstrução da espada Narsil, agora chamada Andúril
aí também uma forte relação entre a guerra e o sangue e destes dois com a
cor vermelha. Patoureau (apud Gonçalves, 2002: 120) mostra que:
O vermelho é cor do manto de São Jorge. A sua relação com o sangue
derramado faz deste vermelho a representação do crime, da violência e
da guerra. Até o século XIX, foi a cor de muitos uniformes militares e
liga-se a todos os tabus sobre sangue herdados da Bíblia. É o vermelho
da carne impura, dos crimes de sangue, dos homens revoltados contra o
seu Deus ou contra os outros homens. É o da cólera, da mancha e da
morte.
Na cena em destaque na figura 6, a simples qualidade avermelhada do sol e
seu efeito nas nuvens conseguem simbolizar uma idéia abstrata como a morte. Como
mostra Martin (2003: 23), tal “generalização se opera na consciência do espectador,
a quem as idéias são sugeridas com uma força singular e uma inequívoca precisão
pelo choque das imagens entre si”.
No livro, várias passagens em que o mbolo Anel está intimamente ligado
ao fogo (como na China, onde corresponde ao trigrama li
47
, que é o do sol e do
fogo). Thiollier (p. 145) diz que o símbolo fogo é freqüentemente considerado como
o símbolo da alma: fala-se de faísca divina”. Por este motivo, segundo o autor, na
iconografia búdica, uma chama sai, por vezes, da protuberância craniana de Buda.
Na obra de Tolkien, como dito, Sauron aparece como um olho de cor
semelhante ao fogo, enquanto o Anel é portador de uma força viva e provém do
47
Trigramas são a representação chinesa básica dos fenômenos da natureza. Seus desenhos correspondem às
oito possibilidades de combinação de Yin e Yang em três linhas e compõem o livro Chinês chamado Ching.
100
fogo. Na passagem do livro abaixo, por exemplo, o Anel é visto por Frodo como
uma roda de fogo, referência à Montanha da Perdição:
- Agora o senhor não tem alguma esperança?
- Bem, não muita, Sam suspirou Frodo. Aquilo está acontecendo
longe, além das montanhas. Estamos indo para o leste, não para o oeste.
E estou tão cansado! E o Anel pesa tanto, Sam. E começo a vê-lo em
minha mente todo o tempo, como uma grande roda de fogo. (Tolkien,
2002: 974).
Tal representação lembra a caracterização do anel como um círculo de
chamas que circunda Shiva
48
como dançarino cósmico. (Cirlot, 1984: 78).
FIGURA 8: Shiva circundada por um anel em chamas.
Assim como Sauron e o Anel, mas em uma conotação inversa e positiva,
Shiva está intimamente associado ao fogo, pois, na religião Hindu, tal elemento
representa a transformação. Nada que tenha passado pelo fogo, permanecerá o
mesmo: o alimento vai ao fogo e se transforma, a água se evapora, os corpos
cremados viram cinzas. Assim, Shiva convida os adeptos a se transformar através do
fogo do Yoga. Segundo os seguidores, o calor físico e psíquico que essa prática
produz auxilia a transcender os próprios limites.
48
Na tradição hindu, Shiva contém em si o poder da criação e da destruição, o que o torna ao mesmo tempo
atraente e terrível. Destrói o que foi criado e preservado, para que Brahma possa então criá-lo novamente.
101
Em O Senhor dos Anéis, todo o mal acabaria com a destruição do Anel no
fogo onde fora criado. Durante a jornada em busca do extermínio do Anel, Frodo
passa por um processo de transformação, como veremos posteriormente. E, com o
fim do Anel de poder, ao final da saga, dá-se uma mudança completa na Terra-
média: os povos passam a viver em paz e livres de qualquer ameaça das forças de
Sauron.
Da mesma forma, Cirlot (1984: 258) mostra que os alquimistas conservam
em especial o sentido dado por Heráclito
49
ao fogo, como “agente de
transformação”, pois todas as coisas nascem do fogo e a ele retornam. Cirlot faz uma
observação muito importante, que condiz com a análise aqui exposta:
As pesquisas antropológicas deram duas explicações para as festividades
ígneas: magia imitativa, destinada a assegurar a provisão de luz e calor
do sol (Wilhelm Mannhardt) ou finalidade purificatória e de destruição
das forças do mal (Eugenio Mogk, Eduardo Westermack).
Para o autor, “o triunfo e a vitalidade do sol (espírito do princípio luminoso) é
vitória contra o poder do mal (as trevas)”; a purificação é o meio sacrifical
necessário para que esse triunfo se possibilite. Tal visão se assemelha ao que temos
em O Senhor dos Anéis: a humanidade se torna livre do mal através do sacrifício, a
destruição de algo perigoso, mas, ao mesmo tempo, muito especial e valioso. O fato
de virgens cuidarem freqüentemente do fogo sagrado (vestais na Roma Antiga;
mulheres do templo no império inca; filhas de chefes entre os hererós
50
), está ligado
à pureza que lhes é atribuída. Lurker (1997: 275) mostra que:
O grego pyr = fogo e o latim purus = puro são etimologicamente cognatos. Devido ao seu poder
purificador, o fogo é um apreciado meio de penitência; através da queima, são eliminadas todas as
escórias (impureza) da oferenda de sacrifício.
49
A idéia de Heráclito, do fogo como agente de destruição e renovação, encontra-se nos Puranas da Índia e
no livro do Apocalipse.
50
Tribo africana austro-ocidental, pertencente à raça Banto.
102
A. Van den Born (1971: 601) diz que, enquanto o fogo tem poder de
destruição, o termo também é usado para indicar algum grave perigo. A ira de Deus,
repetidas vezes, é representada como um fogo, como se percebe nas seguintes
passagens bíblicas:
Até quando, ó Senhor? Esconder-te-ás para sempre? Até quando arderá a
tua ira como fogo? (Salmos 89: 46)
.......
Senhor, a tua mão está exaltada, mas nem por isso a vêem. Vê-la-ão,
porém, e confundir-se-ão por causa do zelo que tens do teu povo; o fogo
reservado para os teus adversários os devorará. (Isaías 26: 11)
A ira de Deus, representada pelo fogo, purifica e limpa, tornando-se assim, o
meio para separar o impuro do puro ou destruir eventualmente o impuro. A. Van den
Born (1971: 601) mostra como, na Bíblia, o fogo é apresentado como o instrumento
de punição e do juízo de Deus:
O nosso Deus vem, e não se calará; diante dele um fogo consome, e
grande tormenta ao redor dele. (Salmos 50: 3)
.......
E se o teu olho te escandalizar, lança-o fora. Melhor é entrares no reino
de Deus com um olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo
do inferno, onde o seu verme não morre, e o fogo nunca se apaga.
(Marcos 9: 47 – 49)
Esse sentido do símbolo fogo como elemento destruidor é claro em O Senhor
dos Anéis. No livro, diversas referências ao fogo como elemento ameaçador,
aterrorizante:
- Ach! Sss – não! Não! Hobbits tolos, sim, tolos. Não devem fazer isso!
- Não devem fazer o que? – perguntou Sam surpreso.
- Fazer as nojentas línguas vermelhas chiou Gollum. Fogo, fogo! É
perigoso, é sim. Queima, mata. E vai atrair inimigos, vai sim. (Tolkien,
2002: 687)
Na passagem, Gollum se sente atordoado diante da iniciativa de Frodo e Sam
de fazer uma fogueira. O pavor causado pelo fogo não se deve exclusivamente à sua
103
condição de elemento que queima ou que mata, mas indicia o destino que Gollum,
inevitavelmente, teno final da saga: a morte no fogo da Montanha da Perdição,
causada pelo desejo doentio de possuir o Anel.
Ainda na obra escrita, durante o Conselho de Elrond
51
, enquanto todos
discutem o destino do Anel, Frodo se sente completamente apavorado:
“Todo o Conselho se sentava com os olhos para baixo, pensando
profundamente. Um grande pavor o dominou, como se estivesse
aguardando o pronunciamento de alguma sentença que ele tinha previsto
havia muito tempo”. (Tolkien, 2002: 281).
Tal pavor foi traduzido para o cinema com a utilização do elemento fogo. Em
A Sociedade do Anel, Frodo, no mesmo momento do enredo, a imagem de todos
refletida no Anel ser coberta por fogo, que é provavelmente uma referência à
Montanha da Perdição, onde ele foi forjado. (figura 9)
51
Conselho promovido pelo semi-elfo Elrond, em que será decidido o futuro do Anel.
104
FIGURA 9: O pavor de Frodo e a relação Anel-fogo
“Frodo observa o Anel, as figures zangadas do conselho estão refletidas na sua superfície. De
repente, chamas emergem, cobrindo a superfície do Anel.”
52
Os membros do Conselho divergem em opiniões acerca de qual destino o
Anel deve ter, e, consequentemente, discutem, de forma que ninguém consegue se
entender. Consciente de que apenas uma coisa a ser feita, Frodo se sente
assustado ao presenciar a discórdia causada pelo Anel. O fogo que cobre o reflexo
dos membros do Conselho no Anel (imagens e, f) é simbólico, já que remete à morte
de todos os seres, caso o Anel não seja destruído, causando o pavor e a angústia de
Frodo naquele momento, que são registrados na expressão do personagem (imagem
b).
A seguinte passagem da obra escrita também deixa transparecer o medo
caudado pelo fogo nos membros da Sociedade do Anel:
“Depois da refeição, a Comitiva se aprontou para partir outra vez.
Apagaram a fogueira e todos os vestígios dela”. Depois, saindo do vale,
retomaram a estrada. Não tinham ido muito longe quando o sol afundou
atrás dos picos no Oeste, e grandes sombras avançaram por sobre as
encostas das montanhas. (Tolkien, 2002: 350).
Como mostram as palavras de Tolkien, por várias vezes, ao abandonarem
determinados lugares, os membros da Sociedade do Anel apagam as fogueiras, que
52
“Frodo watches the Ring, the angry figures of the council reflected on its surface. Suddenly, flames flare
up, engulfing the surface of the Ring”. (The Lord of the Rings: the Fellowship of the Ring - Movie Transcript
– page 34).
105
tornam suas localizações facialmente identificáveis e, consequentemente,
representam perigo diante dos inimigos.
Embora de maneira menos direta, a seguinte cena do filme A Sociedade do
Anel, em que Gandalf e Bilbo fumam e soltam baforadas de fumaça (inexistente no
livro), faz alusão ao Anel de poder e a sua relação com o fogo:
FIGURA 10: Anel de fumaça
“Bilbo sopra um anel de fumaça. Gandalf sorri e sopra um navio de fumaça, navegando através do
anel de fumaça que Bilbo fez.”.
53
Na cena, a fumaça expelida por Bilbo tem o formato de um anel, que é
perpassado pelo barco formado pela fumaça de Gandalf. Pode-se dizer que, a
imagem do barco (imagem c) antecipa o final da história, em que o portador do Anel
será recompensado, tendo a chance de ir de barco para as Terras Eternas com os
elfos, por ter consegui cumprir sua missão. A figura do anel de fumaça expelido por
53
“Bilbo blows a ring of smoke. Gandalf smiles and blows a ship of smoke, sailing trough the smoke ring that
Bilbo made”. (The Lord of the Rings: the Fellowship of the Ring - Movie Transcript)
106
Bilbo (imagens b, d) é uma reprodução do Anel de poder. Sua identificação se
não apenas por meio de fatores relativos à configuração da forma (sua qualidade de
primeiridade), mas principalmente, como diz Santaella (2005: 227), “sob efeito do
reconhecimento da similaridade da aparência do objeto representado com a
percepção que se tem daquele tipo de objeto no mundo visível”.
Assim, o círculo de fumaça de Bilbo tem qualidades que são referenciais, ou
seja, denotam algo que está fora do signo, permitindo ao intérprete (através de seu
poder de reconhecimento e identificação que pressupõem a memória e a antecipação
no processo perceptivo), identificá-lo como tal. A representação da fumaça fabricada
pelo fogo do cachimbo de Bilbo é de caráter indicial, pois aponta para o fogo em
que o Anel foi criado, permitindo o universo da ficção adquirir coerência e
verossimilhança.
No livro, a relação entre o mbolo fogo e o perigo proveniente do Anel é
também nítida quando observamos que aquele dominado pelo Anel tem os olhos
“faiscando”, traduzindo o desejo maligno de possuí-lo. É o que podemos observar na
passagem abaixo, em que Boromir demonstra sua obsessão pelo objeto:
Ah! O Anel disse Boromir, com os olhos faiscando. O Anel! Não é
um destino estranho nós sofrermos tanto medo e dúvida por uma coisa
tão pequena? Uma coisa tão pequena! E eu o vi apenas por um instante
na Casa de Elrond. Poderia vê-lo um pouco outra vez? (Tolkien, 2002:
416).
Faramir, o irmão de Boromir, mesmo sabendo que o irmão sucumbira diante
do domínio do Anel, não deixou de mostrar seu desejo em possuí-lo, embora tenha
depois se mostrado forte e resistido:
- Então esta é a resposta a todos os enigmas! O Um Anel que se acreditava desaparecido do mundo.
E Boromir tentou tomá-lo à força? E você escapou? E correu todo o caminho até mim! E aqui,
nesta região deserta, tenho vocês: dois pequenos, e um exército de homens s minhas ordens, e o
Anel dos Anéis. Um belo lance de sorte! Uma chance para Faramir, Capitão de Gondor, mostrar seu
valor! Há! – Ficou de pé, muito altivo e grave, os olhos cinzentos faiscando. (pág. 716)
107
Faíscas nos olhos é a marca da cobiça pelo Anel, que domina até mesmo
Saruman, derrotado, mas que ainda tenta uma última cartada, ao tentar convencer
a todos de que ainda poderia ser útil, mesmo depois de ter servido a Sauron:
- Paz! Disse Saruman, e por um momento fugaz sua voz ficou menos
suave, e uma luz faiscou em seus olhos para depois desaparecer. Não
estou falando com você ainda, Gimli, filho de Glóin – disse ele. (Tolkien,
2002: 606)
A. Van den Born (1971: 601) mostra que, de uma maneira geral, o símbolo
olho (incluindo o de Deus) reflete, segundo a Bíblia, a vida da alma. O autor cita o
livro de Salmos 11: 4 – 5, que diz:
O Senhor está no seu santo templo; o trono do Senhor está nos céus. Os
seus olhos estão atentos, e as suas pálpebras provam os filhos dos
homens. O Senhor prova o justo, mas a sua alma aborrece o ímpio e o
que ama a violência.
Para o autor, este é o motivo pelo qual muitas vezes são atribuídos aos olhos
determinados afetos como desejo: “Os nossos olhos desfaleceram, esperando em vão
por socorro; das nossas torres olhamos para uma nação que não podia salvar” (Livro
das Lamentações 4: 17), ou brutalidade: Os olhos que zombam do pai, ou
desprezam a obediência da mãe, corvos do vale os arrancarão, e filhotes da águia os
comerão” (Livro dos Provérbios 30: 17).
Nas três passagens do livro mostradas anteriormente, as faíscas nos olhos de
Boromir, Faramir e Saruman demonstram o seu desejo ardente pelo Anel de ouro.
E esta avareza é marca da posse do Anel, que fornece poder a quem o usa,
porém se apodera de quem o possui (como é o caso de Bilbo), enfeitiça quem o
deseja (como é o caso de Saruman e Boromir), domina e transforma quem o carrega
(como é o caso de Frodo) e corrompe quem o adora, até torná-lo escravo (como
ocorreu com Gollum). A esse respeito, Gandalf fala a Aragorn, no livro O Senhor
dos Anéis:
108
[...] Apesar disso, uma arma traiçoeira é sempre perigosa para quem a
empunha. Saruman também desejava apossar-se do Anel, para uso
próprio, ou pelo menos capturar alguns hobbits para seus propósitos
malignos. (Tolkien, 2002: 520)
Bilbo viveu por cinqüenta anos com o Anel, que lhe trouxe riquezas e
rejuvenescimento. Ao decidir abandonar Bolsão, deixaria tudo para Frodo, mas, ao
ser questionado por Gandalf sobre a possibilidade de deixar o Anel para o sobrinho,
Bilbo demonstra claramente sua vontade de permanecer com o objeto:
- Eu acho, Bilbo disse ele baixinho -, que você deveria deixá-lo para
trás. Você não quer?
- Bem, quero – e não quero. (Tolkien, 2002: 33 e 34)
........
- O Anel se apoderou de você e isso foi longe demais. Largue dele! E
então você poderá ir também, e ser livre. (Tolkien, 2002: 34).
Bilbo não percebia, mas estava aprisionado pelo Anel, e ter que se livrar dele
seria uma difícil decisão. O Anel dominava sua mente de tal forma, que fazia o
hobbit se confundir sobre seu desejo de deixá-lo para Frodo ou de levá-lo consigo
em suas viagens, como vemos na passagem seguinte:
- Onde está ele?
Num envelope, se quer saber disse Bilbo impacientemente. Ali na
lareira. Não! Aqui no meu bolso. Ele hesitou. Não é estranho isso,
agora? disse calmamente para si mesmo. Afinal de contas, por que
não? Por que ele não deveria ficar ali? (Tolkien, 2002: 33).
Diferentemente de Bilbo, Boromir viu a possibilidade de utilizar o Anel em
benefício próprio, utilizando seus poderes contra as forças de Mordor, sem saber que
somente seu mestre, Sauron, seria capaz de controlá-lo de forma completa. Como
vimos anteriormente, tal vontade é expressa em seus olhos, como uma espécie de
feitiço:
[...] O direito não é seu, exceto por um acaso infeliz. Podia ter sido
meu. Devia ser meu. Dê-me o Anel!
Frodo não respondeu, mas se afastou até que a grande pedra plana ficasse
entre eles. – Vamos, vamos, meu amigo! disse Boromir numa voz mais
109
suave. Por que não se livrar dele? Por que não se libertar de sua dúvida
e de seu medo? Você pode colocar a culpa em mim, se quiser. Pode dizer
que eu sou forte demais e o tomei à força. Porque eu sou forte demais
para você, pequeno gritou ele, e de repente subiu na pedra e saltou
sobre Frodo. Seu rosto belo e agradável estava terrivelmente
transformado; um fogo feroz lhe queimava os olhos. (Tolkien, 2002: 418)
No caso de Frodo, desde os primeiros contatos que teve com o Anel, o hobbit
deixa transparecer a força do objeto controlando suas ações, como vemos abaixo:
Sentiu o peso do Anel em sua mão, hesitando, e se forçando a lembrar de
tudo o que Gandalf tinha lhe contado; então, com um grande esforço de
vontade fez um movimento, como para tirá-lo longe - mas percebeu que
o havia colocado de volta no bolso. (Tolkien, 2002: 62)
Embora Frodo estivesse cônscio de que não deveria usar o Anel, pois Gandalf
o havia aconselhado de que, ao fazê-lo, atrairia o inimigo, o objeto dominava Frodo
de tal forma, que ele sentia um desejo intenso de usá-lo, como mostrado nas
passagens abaixo:
Estou sempre sentindo vontade de colocá-lo e desaparecer, sabe...E me
perguntando se ele está a salvo, e tocando nele para ter certeza. Tentei
trancá-lo, mas descobri que não podia descansar sem ele no bolso.
(Tolkien, 2002: 35).
........
Mais uma vez, o desejo de colocar o Anel se apossou de Frodo; agora
mais forte que antes. Tão forte que, sem perceber o que estava fazendo,
sua mão já tateava o bolso. (Tolkien, 2002: 81)
No livro O Senhor dos Anéis, os momentos em que Frodo tenta colocar o
Anel ou o está segurando são normalmente repletos de tensão e uma conseqüente
gradação, visto o momento conflituoso por que passa o portador:
Um medo repentino e insensato de ser descoberto tomou conta de Frodo,
que pensou no Anel. Mal ousava respirar, e mesmo assim a vontade de
retirá-lo do bolso se tornou tão forte que sua mão começou lentamente a
se mover. Sentia que era colocá-lo, e ficaria a salvo. O conselho de
Gandalf parecia absurdo. Bilbo tinha usado o Anel. ‘E ainda estou no
Condado’, pensava ele, no momento em que sua mão alcançou a corrente
em que estava o Anel. (Tolkien, 2002: 77).
110
Tal tensão foi traduzida com a utilização de recursos sonoros. De fato, a
atuação do Anel no filme é marcada pelo som e pela música. Como se sabe, o
recurso sonoro também contribui para a formação da atmosfera do filme e é
responsável por uma importante riqueza perceptiva. Sobre essa influência no
espectador, Martin (2003: 25) afirma que “a música, com seu papel sensorial e lírico
ao mesmo tempo, reforça o poder de penetração da imagem”.
Músicas, ruídos e falas são elementos que compõem a trilha sonora de um
filme. A música, no instante em que ao expectador a sensação impressa na cena
ou seqüência, adquire um papel importante na criação da atmosfera desejada. Tal
aspecto fica claro ao observarmos o filme de Steven Spielberg, Tubarão (1975), cuja
música se tornou a representação da ameaça dos tubarões na natureza. Além de se
relacionar com as sensações e emoções, a música pode criar uma imagem mental e,
conseqüentemente, sugerir algum sentimento ou expressão, adquirindo portanto um
caráter indicial.
No filme O Senhor dos Anéis, os momentos em que Frodo tenta colocar o
Anel são acompanhados pela diminuição na velocidade dos seus movimentos
(câmera lenta) e pela ausência da música. Frodo, de posse do Anel, parece entrar
numa espécie de transe, como vemos na descrição do roteiro do filme, feito por
Peter Jackson e sua equipe:
O Nazgúl aparece em um cavalo grande e negro, e os Hobbits tentam se
esconder o melhor possível embaixo de uma árvore. O Nazgúl desce e se
inclina procurando os hobbits. Ele começa a farejar ao redor. Frodo cai
em um transe e, vagarosamente, segura o Anel, tenta colocá-lo. Sam bate
nele, e ele sai do transe. Merry joga um saco de vegetais em outra direção
para distrair o Nazgúl, que corre. Os hobbits aproveitam a chance e
descem correndo a montanha.
54
54
“The Nazgúl appears on a great, black horse, and the Hobbits try to hide themselves as good as possible
under the tree. The Nazgúl dismounts and bends over to look for the hobbits. It starts to sniff around. Frodo
falls into a trance, and slowly grabs the Ring, intending to put it on. Sam hits him, and he wakes up from the
trance. Merry throws a bag of vegetables in another direction to distract the Nazgúl, who whirls around. The
hobbits take the chance and run off down a hill”. (The Lord of the Rings: the Fellowship of the Ring - Movie
Transcript)
111
Sobre a ausência da sica como forma expressiva do cinema, Martin (2003:
114 – 115) diz que:
O silêncio é promovido como valor positivo, e sabemos o papel
dramático que ele pode desempenhar como símbolo de morte, ausência,
perigo, angústia ou solidão. O silêncio, melhor do que a intervenção da
música, é capaz de sublimar com força a tensão dramática de um
momento [...]
No filme em estudo, o silêncio enaltece assim a tensão por que passa Frodo
ao tentar colocar o Anel. Diante do perigo que o personagem corre (nos momentos
em que Frodo coloca o Anel, Sauron e os Nazgûl sentem a sua presença e
identificam a sua localização), a conservação da música que acompanha
inicialmente a cena não causaria um maior efeito no espectador. Ao contrário, sua
ausência sugere o transe do personagem, no instante em que tal efeito sonoro remete
a significados mais amplos, refere-se a algo que está além dos significados da
imagem e de sua aparência: o momento conflituoso em que Frodo é tentado a
colocar tudo a perder.
De fato, embora Frodo tenha desperdiçado a chance que teve de destruir o
Mal, o hobbit se mostrou forte ao reagir às constantes investidas do Anel e a seus
impulsos de colocá-lo
55
. Entretanto, durante a jornada, o personagem muda de tal
forma que podemos ver nitidamente a força do objeto agindo sobre o seu corpo:
Frodo parecia estar cansado, cansado a ponto da exaustão. Não dizia
nada, na verdade dificilmente falava alguma coisa; e também o
reclamava, mas caminhava como alguém que carrega um fardo cujo peso
está constantemente aumentando; arrastava-se cada vez mais devagar, de
modo que Sam freqüentemente precisava pedir a Gollum que esperasse e
não deixasse seu mestre para trás. (Tolkien, 2002: 662).
Bem como sobre sua mente, como vemos nas passagens abaixo, transcritas
do livro:
55
Já que conseguiu chegar até a Montanha da Perdição e ver seu objetivo realizado.
112
Sam lhe fez uma careta e chupou os dentes; mas teve a impressão de
sentir que havia algo estranho sobre a disposição de seu mestre e que o
assunto estava acima de qualquer discussão. Mesmo assim, ficou
assustado com a resposta de Frodo. (Tolkien, 2002: 646)
........
Sam lançou para seu mestre um olhar de aprovação, misturado com
surpresa: havia uma expressão em seu rosto e um tom em sua voz que ele
nunca percebera antes. (Tolkien, 2002: 673)
E, quanto mais próximos Frodo e Sam estavam do fogo da Montanha da
Perdição, mais o Anel sentia a presença de seu mestre e maior era o domínio que
exercia sobre seu portador:
À medida que se aproximava das grandes fornalhas onde, nas
profundezas do tempo, o Anel fora forjado e moldado, seu poder crescia
e ficava mais cruel, não podendo ser controlado a não ser que houvesse
alguma vontade poderosa.
[...] O Anel o tentava, devorando sua vontade e raciocínio. Fantasias
loucas despertavam, e ele via Samwise, o Forte, Herói de seu Tempo,
caminhando a passos largos com uma espada flamejante através da terra
escurecida [...] (Tolkien, 2002: 953).
“Fantasias loucas despetavam” na mente de Frodo e faziam com que a
vontade de destruir o Anel e o desejo de possuí-lo coexistissem, a ponto de Frodo
desconfiar do próprio companheiro Sam:
- Você está com ele? disse Frodo ofegante. Está com ele aqui? Sam,
você é um prodígio! Então o tom de sua voz mudou de forma rápida e
estranha. Passe-o para mim! gritou ele, levantando-se e estendendo
uma mão trêmula. Passe-o para imediatamente! Não pode ficar com
ele!
56
(Tolkien, 2002: 965)
No filme, a dominação que o Anel exerce sobre seu portador é vista em
diversas cenas, através de vários recursos do cinema utilizados pelo diretor Peter
Jackson. Na análise das três cenas seguintes (figuras 11, 12 e 13), percebe-se como
tal dominação cresce à medida que o Anel se aproxima de Sauron, levando Frodo à
completa cegueira física e psicológica. Na primeira cena, de As duas torres, temos o
56
Por pensar que Frodo estava morto, Sam havia tomado o Anel de seu corpo, para evitar que fosse capturado
pelos orcs.
113
momento em que Frodo, refém de Faramir, Osgiliath sendo atacada pelos
Nazgûl:
FIGURA 11: elipse do som
Sam: Senhor Frodo!
Frodo: O Anel o está atraindo, Sam. O seu Olho está quase me encontrando.
Sam: Aguente firme, Sr. Frodo… Você vai ficar bem...
[Frodo vê que Sam está falando com ele, mas nada escuta. Seus sentidos são tomados.]
Faramir: Leve-os até o meu pai. Diga-o que Faramir envia um grande presente. Uma arma que
mudará nossos rumos nesta Guerra.
57
Frodo olha para Sam (imagem a) e, em suas palavras, demonstra todo o seu
desespero diante da ameaça que a atração do Anel causa. Em seguida, o medo que
sente é tão intenso, que Frodo o consegue mais ouvir a voz de seu companheiro
quando este tenta lhe acalmar (imagem b). A elipse do som, de que faz uso o diretor,
permite que as palavras encorajadoras de Sam (cujo conteúdo pode ser facilmente
identificado) sejam cobertas pelo silêncio, e, em seguida, pelos ruídos provindos dos
Nazgûl, ampliando a tensão da cena.
57
Sam: Mr Frodo!
Frodo: It’s calling to him, Sam. His eye is almost on me.
Sam: Hold on, Mr. Frodo… You'll be alright...
[Frodo sees that Sam is speaking to him but he hears nothing. His senses are overcome.]
Faramir: Take them to my father. Tell him Faramir sends a mighty gift. A weapon that will change our
fortunes in this war.
114
Como forma de enfatizar o transtorno psicológico por que passa Frodo
(imagem a), Peter Jackson faz uso do primeiro plano. Como mostra Martin (2003):
[...] é no primeiro plano do rosto humano que se manifesta melhor o
poder de significação psicológico e dramático do filme, e é esse tipo de
plano que constitui a primeira, e no fundo a mais válida tentativa de
cinema interior. (pág. 39)
........
O primeiro plano corresponde (salvo quando tem um valor simplesmente
descritivo e funciona como uma ampliação explicativa) a uma invasão do
campo da consciência, a uma tensão mental considerável, a um modo de
pensamento obsessivo. (pág. 40)
Assim, o esquadrinhamento da fisionomia de Frodo (imagem a) traduz o seu
drama interior, sugerindo, portanto, uma forte tensão mental do personagem e,
aliado aos efeitos sonoros, determina a emoção da cena.
Dominado pelo Anel e pelo medo que ele acarreta, Frodo não apenas deixa de
ouvir, mas também passa a não ver Sam, tendo seus olhos cheios de loucura e ria.
Na seqüência seguinte de As duas torres, percebemos (através da descrição do
roteiro) que, além da ausência de música para expressar a dominação do Anel, Peter
Jackson também fez uso de câmera lenta:
115
FIGURA 12: Câmera lenta
Sam: O que você está fazendo? Onde está indo?!
[CÂMERA LENTA]
[Frodo sobe alguns degraus e pára em uma ponte. Um Nazgûl em uma Besta Alada emerge em
frente dele. Frodo olha para o Nazgûl, de forma fixa. Sentindo o chamado do Anel, ele ergue-o.
Faramir assiste à cena descrita de baixo. No instante em que Frodo intenciona colocar o Anel no
dedo e o Nazgûl voa em sua direção, Sam sobe correndo e empurra-o. Faramir lança uma flecha e
acerta a Besta Alada. Frodo e Sam rolam pela escada. Ao atingirem o chão, Frodo domina Sam
para matá-lo, grita e aponta Ferroada para sua garganta, seus olhos estavam cheios de loucura e
ódio, diante da ameaça de lhe tomarem o Anel.]
Frodo: Aaarrgghh!!!
Sam: [Com lágrimas correndo em seu rosto] Sou eu. É o seu Sam. Você não reconhece o seu Sam?
[A loucura se esvai e o reconhecimento volta aos olhos de Frodo. Ele percebe o que quase fez e
supera. Afastando-se, ele se bate contra o muro e Ferroada cai no chão com um tinido. Sam se
levanta vagarosamente.]
58
58
Sam: What are you doing? Where are you going?!
[SLOW MOTION]
[Frodo walks up some stairs and stands on a bridge. A Nazgûl on a Fell beast emerges in front of him. Frodo
stares at the Nazgûl, fixated. Feeling the call of the Ring, he holds it up. Faramir watches the unfolding
tableau from below. As Frodo moves to put the Ring on his finger and the Nazgûl flies closer and closer, Sam
runs up and knocks Frodo over. Faramir releases an arrow and shoots the Fell Beast. Frodo and Sam
roll down the stairs. As they come to stop at the bottom, Frodo holds Sam in a death grip, yells and points
Sting at his throat, his eyes livid with madness and anger that someone would try to take the Ring away].
Frodo: Aaarrgghh!!!
Sam: [With tears running down his face] It’s me. It’s your Sam. Don’t you know your Sam?
[The madness fades and recognition returns to Frodo’s eyes. He realizes what he nearly did and is overcome.
Stumbling backwards, he collapses against a wall and Sting falls to the ground with a clang. Sam gets up
slowly.]
116
Enquanto um movimento rápido de câmera pode sugerir sentimentos como
impaciência ou euforia
59
, a câmera lenta pode imprimir à cena uma atmosfera de
tensão. Frodo parece meio hipnotizado ou entorpecido, a ponto de se sentir induzido
a usar o Anel (imagem b). A lentidão da câmera propõe movimentos semelhantes a
um transe. Ao tentar impedir Frodo, que se encontra de olhos fechados em
decorrência da dominação, (imagem c), Sam é por ele ameaçado (imagem d). A
raiva na expressão de Frodo é detalhada pelo primeiro plano (imagem d) e mostrada
sob o ponto de vista de Sam (contre-plongée), que a visualiza como marca do
domínio incontrolável e superior que o Anel acarreta. Para Martin (2003: 41), a
contre-plongée pode, de fato, produzir “uma impressão de superioridade, exaltação e
triunfo, pois faz crescer os indivíduos e tende a torná-los magníficos”.
Na última análise desse domínio exercido pelo Anel sobre seu portador,
temos a cena de O Retorno do Rei que narra a decisão final de Frodo:
59
Martin (2003: 53) cita como exemplo o filme Aurora (Murnau), em que, quando o homem vai encontrar-se
à noite com a estrangeira por quem se apaixonou, a câmera primeiro o acompanha longamente, para
posteriormente abandoná-lo e, ao avançar de forma rápida através do campo enluarado, mostrar a mulher, que
espera, antes que o homem a tenha encontrado. Para Martin, “duração e a audaciosa complicação do
movimento sublimam a importância desse encontro (onde vai ser decidida a morte da jovem esposa) e a
pressa da câmera traduz a impaciência do homem em reunir-se a sua amada”.
117
FIGURA 13: o Anel cresce na mente de Frodo
Frodo está à beira da Fenda da Perdição...um profundo abismo de lava, no coração das antigas
forjas de Sauron, o maior da Terra-Média.
[A luz laranja poderosa do abismo transforma Frodo em uma silhueta negra...tensa e quieta. Frodo
segura o Anel em sua mão...ele o levanta, agarrando-o sobre a lava borbulhante abaixo.]
Sam: (gritando) Destrua-o, vamos! Lance-o no fogo!
Close: Frodo…uma expressão estranha em seu rosto...
Sam: O que está esperando? Apenas solte-o!
Na trilha sonora: a batida do Anel cresce mais e mais! Frodo puxa o Anel para perto do seu corpo,
ao voltar-se para Sam. Frodo olha para Sam, o Anel finalmente o tomou.
Frodo: O Anel é meu.
Sam grita no instante em que ... Frodo coloca no dedo o Anel! Ele desaparece!
60
Diante da larva da Montanha da Perdição, Frodo é visualizado em plano geral
(imagem b). Sobre tal recurso cinematográfico, Martin (2003: 38) diz que:
60
Angle on: Frodo is standing on the edge of the Crack of Doom. . . a deep lava filled chasm, in the very
heart of ancient Sauron's forges, the greatest in Middle-Earth.
[The raging orange glare from the chasm turns Frodo into a black silhouette . . . standing tense and still. Frodo
holds the ring in his hand . . . he raises it, holding it over the bubbling lava far below.]
Sam: (yelling) Destroy it - go on! Throw it in the fire!
Close on: Frodo . . . a strange expression on his face . . .
Sam: (cont'd) What are you waiting for? Just let it go!
On the soundtrack: the hum of the ring grows louder and louder! Frodo pulls the ring close to his body as he
turns to Sam. Frodo looks at Sam, the ring has finally taken him.
Frodo: The ring is mine.
Sam screams as ... Frodo puts the ring on! He vanishes!
118
[...] reduzindo o homem a uma silhueta minúscula, o plano geral o
reintegra no mundo, faz com que as coisas o devorem, “objetiva-o”; d
uma tonalidade psicológica bastante pessimista, uma ambiência moral
um tanto negativa, mas às vezes também uma dominante dramática de
exaltação, lírica ou mesmo épica.
Na cena de O retorno do Rei, temos um plano geral que integra Frodo a uma
paisagem que o devora e o absorve, retratando assim a impotência do personagem e
a possibilidade de uma conseqüente fatalidade, visto a insignificância de sua forma
face ao imenso cenário, símbolo da enormidade da tarefa a ser cumprida.
O Anel crescia na mente de Frodo, e, no último momento, sua pressão
alcançaria seu máximo, levando-o a desistir de cumprir o seu desígnio. No livro,
Tolkien descreve os seus sentimentos à beira da Montanha:
Então Frodo se mexeu e falou com uma voz clara, na realidade com uma
voz mais clara e poderosa do que Sam jamais o ouvira usar, e que se
erguia acima da pulsação e dos abalos da Montanha da Perdição,
retumbando no teto e nas paredes. (Tolkien, 2002: 1001).
A dominação do Anel de poder, marcada no livro pela voz de Frodo, que se
erguia acima da pulsação” da Montanha, foi traduzida para o filme através de
recursos sonoros e de câmera. Como se no roteiro que descreve a cena (figura
13), o Anel literalmente pulsava na mente de Frodo, e o espectador é capaz de ouvir
os batimentos aumentando progressivamente. Além disso, o zoom
61
utilizado na
cena (imagens d, e, f) traduz de forma expressiva o crescimento progressivo do
objeto na mente do hobbit, mostrado por Tolkien no decorrer de toda a obra.
O Anel criado por Tolkien foi influenciado pelo Anel dos Nibelungos.
Segundo a mitologia germânica, os Nibelungos eram habitantes do norte gelado de
Niflheim e possuíam um anel, que era a garantia de seu poder, mas que fora retirado
deles com um golpe da lança de Wotan. Na lenda, o anel simboliza a ligação
entre o ser humano e a natureza, como mostra Chevalier (2001: 56):
61
Técnica em que a câmera não se move, mas, graças a uma lente ajustável, a impressão de aproximação
ou afastamento de um determinado personagem ou objeto.
119
[...] tal anel, na mão do homem, assinala a dominação do homem sobre a
natureza, tornando-o, ao mesmo tempo, servo de turbilhões do desejo e
das conseqüências dolorosas que o exercício desse poder acarreta. O
homem que acredita dominar sente-se aprisionado. É uma figura do
desejo de poder.
Por não querer que nenhuma de suas criaturas lhe supere em poder, a
divindade Wotan toma de volta seu anel das mãos do homem. Posteriormente, o
guerreiro Siegfried e Brunhilde, a filha do deus, tornarão a jogar no rio o anel, como
sinal de abnegação ao poder, para que a infelicidade seja suprimida do mundo e
substituída pela consciência dos poderes do amor
62
.
No século XIX as narrativas ligadas aos Nibelungos despertaram o interesse
de escritores, que lhe deram nova configuração. Deve-se mencionar o drama de
Fouqué Der Held des Nordens (1808-1810) e a triologia dramática de Friedrich
Hebbel Die Nibelungen (1862). A obra mais notável dentro desta tradição é a
tetralogia dramático-musical de Richard Wagner Der Ring des Nibelungen (1863),
cuja execução completa do ciclo dura cerca de 15 horas.
Em A República, Platão nos narra a história do anel de Giges, que possui
semelhanças com a obra de Tolkien. Giges era um pastor que encontrou um anel de
ouro numa caverna. Usando no dedo por acaso este anel, ele descobre que o objeto
tem o poder de torná-lo invisível, sendo esta a origem de sua fortuna.
Encontrado no corpo de um morto, em circunstâncias também bastante
excepcionais (durante um terremoto e dentro de um cavalo de bronze), o anel não
pode deixar de ser senão um dom das forças ctonianas: transmitirá a qualquer ser
vivo deste mundo os mais altos poderes. Graças ao poder da invisibilidade, Giges
teria podido então matar o rei, seduzir a rainha e ocupar o trono. Platão usa a história
como exemplo de que só nos comportamos com justiça por estarmos presos às
conseqüências dos nossos atos e que, com garantia de impunidade (que Giges obtém
com o anel mágico), não teríamos tais preocupações.
62
O assunto foi tratado em várias obras medievais, das quais sobressai o Nibelungenlied, poema épico escrito
em cerca de 1200 e também as obras nórdicas Thidrekssaga, Ältere Edda, Völsungasaga e Jüngere Edda.
120
A magia do anel de Giges, porém, funciona quando ele gira o engaste do
anel para o lado de dentro de sua mão, como vemos nas palavras de Platão (1983:
57):
Estando ele, pois, sentado no meio dos outros, deu por acaso uma volta
ao engaste do anel para dentro, em direção à parte interna da mão, e, ao
fazer isso, tornou-se invisível para os que estavam ao lado, os quais
falavam dele como se tivesse ido embora. Admirado, passou de novo a
mão pelo anel e virou para fora o engaste. Assim que o fez, tornou-se
visível. Tendo observado estes factos, experimentou, a ver se o anel tinha
aquele poder, e verificou que, se voltasse o engaste para dentro, se
tornava invisível; se o voltasse para fora, ficava visível.
Ao utilizar tal analogia, o filósofo nos fala que as verdadeiras forças estão
presentes em s mesmos, e que a invisibilidade dada pelo anel de Giges coincide
com o retirar-se do mundo exterior com o intuito de encontrar as lições essenciais,
aquelas provenientes do mundo interior, como mostra Chevalier (2001: 56):
No caso de Giges, o anel simboliza o plano mais elevado da vida interior,
e talvez mesmo a própria mística. Mas a bipolaridade do símbolo
encontra-se no interior de cada um de nós: o poder do anel pode conduzir
às conquistas místicas, mas também, por causa de sua perversão mágica,
a vitórias criminosas e a um domínio tirânico. E é o que acabará
acontecendo na história de Giges.
Assim, na história de Platão existe o dilema moral e a possibilidade de
escolha entre agir justa ou injustamente. Para Tolkien, a questão é parecida: o
próprio Anel funciona como um agente de grande poder de corrupção, pervertendo
facilmente aquele que dele se utilize. O enredo gira em torno da luta do bem contra
o mal, e a escolha deixa de ser sobre o que fazer com o poder do Anel e passa a ser
entre resistir ou não à sua tentação.
No instante em que Frodo que Boromir fôra possuído pela cobiça, ele
utiliza o Anel para se tornar invisível e se livrar da ameaça que o atormentava
121
naquele momento. Tolkien descreve a sensação de Frodo após colocar o objeto em
seu dedo:
No início, conseguiu ver pouca coisa. Parecia estar num mundo de névoa
no qual só havia sombras: o Anel agia sobre ele. Então, aqui e ali a névoa
cedeu e ele viu muitas imagens: pequenas e nítidas como se estivessem
sob seus olhos numa mesa, e ao mesmo tempo remotas. Não havia sons,
só imagens claras e vívidas. Parecia que o mundo tinha encolhido e
silenciado. (Tolkien, 2002: 418)
Até Samwise teve a oportunidade de utilizar o objeto de poder, e sua sensação
foi a descrita por Tolkien nas linhas abaixo:
Então Sam colocou o Anel no dedo. O mundo mudou, e um único
momento de tempo se encheu de uma hora de ponderação.
Imediatamente Sam percebeu que sua audição se aguçara, enquanto a
visão ficara obscurecida, mas de modo diferente do obscurecimento
ocorrido na toca de Laracna. Agora todas as coisas ao seu redor não
estavam escuras, mas difusas; enquanto ele mesmo estava lá, num mundo
cinzento e enevoado, sozinho [...] (Tolkien, 2002: 774).
Como se pode observar, ao utilizar o Anel, tanto Frodo como Sam tiveram
seus sentidos transformados e se viram em um mundo diferente, traduzido por Peter
Jackson da forma como vemos nas imagens a seguir, em A Sociedade do Anel:
122
FIGURA 14: Frodo põe o Anel de poder
Os Nazgûl batem na espada de Sam e o espurram. Ele bate em uma pedra e cai esparramado no
chão. Merry e Pippin percebem que os Nazgûl estão atrás de Frodo e do Anel, e ficam diante dele,
tentanto protegê-lo. Dois Nazgûl os agarram e os lançam em cada direção. Frodo se afasta ,
derruba sua espada e então cai para trás. Ele ouve o sussuro do Anel, e o tira do bolso. O Rei-bruxo
“vê” isso e então empunha sua espada e anda em sua direção. Frodo tenta se arrastar para trás, mas
o muro o faz parar. O Rei-bruxo se aproxima e quase o fere, quando então Frodo coloca o Anel. O
seu mundo se transforma em uma névoa fosca, e ele vê como os Nazgûl são. O Rei-bruxo estende a
mão em direção à mão de Frodo, mas Frodo se esguia, e então o Rei-
bruxo fere com sua espada
seu ombro esquerdo. Frodo grita, então o Rei-bruxo puxa a espada e avança em direção ao Anel
novamente. De repente, uma sombra vinda da esquerda é vista e o Rei-bruxo se afasta. Frodo tira o
Anel e aparece de volta no mundo “real”.
63
Chevalier (2001: 55) mostra que, de uma maneira geral, apoderar-se de um
anel é, de certo modo, abrir uma porta, entrar num castelo, numa caverna, no Paraíso
63
(The Nazgúl hits Sam’s sword, then throws him aside. He hits a stone hard, and lies in a huddle on the
ground. Merry and Pippin realize that the Nazgúl are after Frodo and the Ring, and stand in front of him,
trying to guard him. Two Nazgúl grab them and throw them in each direction. Frodo backs off, drops his
sword, and then falls backwards. He hears the Ring whisper, and takes it out of his pocket. The Witch King
“sees” this, draws his dagger and walks towards him. Frodo tries to crawl backwards, but the wall stops him.
Trapped in a corner, the Witch King comes closer, and almost stabs him, when Frodo puts on the Ring.
His world changes to a whirling mist, and he sees the Nazgúl for what they are. The Witch King reaches for
Frodo’s hand, but Frodo draws it back, and so the Witch King stabs him in his left shoulder with his dagger.
Frodo screams, then the Witch King drags out the dagger and reaches for the Ring again. Suddenly, a shadow
from the left is seen and the Witch King backs off. Frodo manages to take of the Ring and appears back in the
“real” world)
123
etc”. C. S. Lewis (2000), na obra integrante da série As crônicas de Nárnia, O
sobrinho do mago, escrita em1955, por exemplo, o anel amarelo criado por Andrew
Ketterley dava acesso à Floresta entre os mundos (The Wood between the Worlds),
enquanto o anel verde permitiria a saída.
Como Giges, ao utilizar o Anel, Frodo tornava-se invisível para os que
estavam ao seu lado. Porém, em O Senhor dos Anéis, da mesma forma que podia ser
encontrado com facilidade por Sauron e os Nazgûl, Frodo conseguia distinguir as
formas e características dos espectros do Anel (imagens c, d e f). Além disso, o
domínio exercido pelo objeto era tão intenso, que muitas vezes impedia Frodo de
notar e identificar seus companheiros, como já destaquei anteriormente.
Frequentemente, o hobbit passava pela difícil provação de ter que resistir ao
desejo de utilizá-lo e desfrutar dos possíveis poderes que o objeto traria única e
exclusivamente para si. Para Jung, o mbolo do círculo é uma imagem arquetípica
da totalidade da psique, o símbolo do self(Chevalier, 2001: 254). A resistência à
tentação traria um benefício ainda maior, porém não para Frodo em especial, mas
para a humanidade inteira. E este é o conflito que o poder do Anel gera na mente do
personagem. A reflexão de Tolkien sobre tal poder incontrolável é extremamente
relevante:
O Anel de Sauron é apenas um dos vários tratamentos ticos da
colocação da vida ou poder de alguém em algum objeto externo, que
assim fica exposto à captura ou destruição, com resultados desastrosos
para si mesmo. Se eu fosse “filosofar” esse mito, ou pelo menos o Anel
de Sauron, eu diria que ele era um modo mítico de representar a verdade
de que a potência (ou talvez, melhor dizendo, potencialidade), se for ser
exercida e produzir resultados, tem de ser externada e dessa forma, por
assim dizer, sai, em um grau maior ou menor, do controle direto do
indivíduo. Um homem que deseje exercer “poder” deve possuir
subordinados, que não são ele mesmo. Mas ele então depende deles.
(Carpenter, 2006: 266)
Assim, enquanto na narrativa de Giges, observamos que as possíveis
implicações das nossas atitudes modelam a maneira como agimos, e a certeza da
124
impunidade nos deixa despreocupados, na obra de Tolkien, vemos que as
conseqüências que gerariam benefícios apenas para o portador se sobressaem em
relação àquelas que acarretariam um bem para toda a Terra-média. A perversão
mágica do Anel individualiza Frodo, a ponto de fazê-lo decidir ficar com o objeto,
mesmo sabendo que apenas sua destruição traria o bem. Não estou, com isto,
afirmando que Frodo fracassou. Quando Gollum cai no fogo da Montanha da
Perdição, e o Anel é para sempre destruído, a longa e tenebrosa jornada de Frodo
chega a um final feliz.
Embora Frodo não apresente características comumente atribuídas a um
herói
64
, são suas qualidades interiores que salvam a Terra-média. Sua misericórdia
para com Gollum (mesmo tendo diversos motivos para perder sua empatia com a
criatura e matá-la), por exemplo, é marca da humildade do personagem. Segundo
Tolkien, em resposta aos comentários de uma leitora sobre um possível fracasso de
Frodo em não destruir o Anel nas Fendas da Perdição (1963):
Frodo empreendeu sua demanda por amor para salvar o mundo que
conhecia do desastre ao custo de si próprio, caso pudesse; e também em
completa humildade, reconhecendo que ele era totalmente inadequado
para a tarefa. Seu compromisso real era apenas fazer o que pudesse,
tentar encontrar um caminho e ir o mais longe na estrada que sua força de
mente e corpo permitisse (CARPENTER, 2006: 311).
Entretanto, qualidades como o discernimento, adquirido com o sofrimento e
a experiência (e possivelmente o próprio Anel)
65
(CARPENTER, 2006: 184)”, foram
essenciais para a superação das tentações de usar o Anel. Em carta (1956) a Michael
Straight, editor do New Republic (CARPENTER, 2006: 224), Tolkien acha que a
passagem do Pai-Nosso que diz Perdoai as nossas ofensas, assim como nós
perdoamos aqueles que nos têm ofendido. Não nos deixei cair em tentação, mas
64
Frodo assusta-se facilmente com o perigo; põe o Anel de forma tola e denuncia sua identidade, minutos
depois de entrar no Pônei Saltitante; não apresenta bom porte físico; é tímido e parece mais afeito aos livros.
65
Tolkien, em carta a Peter Hastings, gerente da livraria católica Newman, em Oxford - 1954.
125
livrai-nos do mal” pode ser exemplificada pelo drama de Frodo: o hobbit releva as
intenções malignas de Gollum e tem comiseração pela criatura, além de resistir
forte, mas inutilmente ao poder do Anel. Tais situações eram chamadas pelo autor de
“sacrificiais”, ou seja:
[...] posições nas quais o “bem” do mundo depende do comportamento de
um indivíduo em circunstâncias que exigem dele sofrimento e resistência
muito além do normal até mesmo, pode acontecer (ou parecer,
humanamente falando), demandam uma força de corpo e mente que ele
não possui: ele está, de certa forma, fadado a falhar, fadado a cair em
tentação ou a ser destruído pela pressão contra sua “vontade”: isto é,
contra qualquer escolha que ele poderia fazer ou faria desimpedido, não
sob a coerção. (CARPENTER, 2006: 224)
Frodo encontrava-se em tal situação, uma armadilha aparentemente completa,
Porém, uma pessoa mais poderosa do que Frodo possivelmente não teria resistido
por tanto tempo à atração causada pelo poder do Anel. O próprio Gandalf recusou a
possibilidade de carregar o Anel, ciente de que, ao fazê-lo, poderia adquirir poderes
que nem mesmo ele seria capaz de controlar e que o dominariam e o levariam ao
fracasso.
Tolkien deixa claro que Frodo sente a influência do Anel mesmo depois de
cumprida a sua missão, como um ferimento que jamais cicatrizaria. Na verdade, o
hobbit “não se desfez do Anel por um ato voluntário: ele estava tentado a lamentar
sua destruição e ainda a desejá-lo” (Carpenter, 2006: 312). Prova disso é a fala do
hobbit no final da saga, quando despertou de sua enfermidade em 1420: “Foi-se para
sempre, e agora tudo está escuro e vazio”.
Por último, temos a figura de Gollum, que é o retrato de destruição física e
psicológica que o apego aos bens materiais causa a qualquer ser e que se vence
com a virtude do desprendimento, que não faltou, principalmente, a Sam. Tolkien se
refere claramente a tal apego através da fala de Aragorn ao hobbit Pippin:
126
- E aqui também está seu broche, Pippin disse Aragorn. Guardei-o a
salvo, pois é um objeto muito precioso.
- Eu sei disse Pippin. Foi um sofrimento separar-me dele; mas que
mais eu poderia fazer?
- Nada mais – respondeu Aragorn. – Alguém que, numa necessidade, não
consegue jogar fora um tesouro está acorrentado. Você fez a coisa certa.
(Tolkien, 2002: 590).
O apego de Gollum ao Precioso
66
se iniciou com o assassinato do amigo
Déagol. O Anel então retardou os efeitos do tempo sobre a pobre criatura e
consumiu-a por 500 anos, de tal forma que foi a causa de sua própria morte. Tolkien
(2002: 56 57) diz que, de fato, “a coisa estava devorando sua mente, é claro, e o
tormento já era quase insuportável”. Tal corrupção chega ao limite extremo quando
Gollum paga com a vida para impedir que um outrem se apodere do seu precioso
objeto. No filme O retorno do Rei, temos a expressão sorridente da criatura, mesmo
caindo em direção à morte inevitável:
FIGURA 15: a morte de Gollum
INTERIOR DA FENDA DA PERDIÇÃO
SAM vê horrorizado FRODO e GOLLUM desaparecerem no ABISMO! Ele cambaleia...
CÂMERA LENTA: GOLLUM cai na FENDA DA PERDIÇÃO...
INSTANTANEAMENTE é coberto pela LAVA AGITADA!
67
66
Maneira como Gollum chamava o Anel.
67
INT. CRACK OF DOOM
SAM watches in HORROR as FRODO and GOLLUM ... disappear into
the CHASM! He staggers over . . .
SLOW MOTION: GOLLUM falls into the CRACK OF DOOM . . .
INSTANTLY engulfed in the CHURNING LAVA!
127
O Anel escraviza Gollum de tal forma que o abraço feliz dado naquele
instante (imagem b) representa a conquista pessoal da criatura, e o faz esquecer até
mesmo da morte fatal. A plongée utilizada pelo diretor tende a apequenar o
indivíduo, a esmagá-lo moralmente”, além de fazer dele um objeto preso a um
determinismo insuperável, um joguete da fatalidade”. (Martin, 2003: 41). O próprio
ator que interpretou Gollum, Andy Serkis, chegou a comparar o Anel a uma droga, e,
Gollum a um viciado que dela depende totalmente, apesar de seus efeitos malignos.
É certo que, no instante em que utilizam o objeto, hobbits, homens ou elfos
adquirem poderes inimagináveis, poderes que, por não serem próprios dessas
criaturas, não podem ser por elas controlados. O Anel que pertencia a um único
senhor, chamado Sauron, não poderia ser utilizado por um simples hobbit do
Condado, nem por qualquer outro ser da Terra-média. E por que então o Anel havia
chegado até as mãos de Frodo, se nem mesmo ele poderia utilizá-lo contra as forças
de Mordor?
Em uma de suas cartas a Stanley Unwin, presidente da editora londrina Alen
& Unwin, Tolkien deixa bem claro em sua obra que tudo é movido por uma força
maior, que nada acontece por acaso:
É possível fazer do Anel uma alegoria de nossa própria época caso se
queira: uma alegoria do destino inevitável que espera por todas as
tentativas de derrotar o poder do mal com poder. Mas isso ocorre
unicamente porque todo poder mágico ou mecânico sempre trabalha
desse modo. Não se pode escrever uma história sobre um anel mágico
aparentemente simples sem que isso acabe surgindo, caso realmente se
leve esse anel a sério e faça acontecer coisas que aconteceriam se tal
objeto existisse. (CARPENTER, 2006: 120)
Não estava nos planos de Frodo ser portador do Anel, assim como não estava
nos planos de Bilbo encontrá-lo na caverna onde Gollum vivia, como mostra a
passagem do livro:
128
[...] e então aconteceu que Bilbo ficou perdido por um tempo nas escuras
minas de orcs sob as montanhas, e ali, quando tateava em vão no escuro,
ele pôs a mão sobre um anel que estava no chão de um túnel. Colocou-o
no bolso. Na hora, isso pareceu mera sorte. (Tolkien, 2002: 11 – 12)
Bilbo encontrou o anel no escuro, e tal achado pareceu mera sorte, apenas
pareceu. Posteriormente, Gandalf, em conversa com Frodo, deixa clara a maneira
como Tolkien vê os acontecimentos ligados ao Anel:
- Por trás disso havia algo mais em ação, além de qualquer desígnio de
quem o fez. Não posso dizer de modo mais direto: Bilbo estava
designado a encontrar o Anel, e não por quem o fez. Nesse caso você
também estava designado a possuí-lo. E este pode ser um pensamento
encorajador. (Tolkien, 2002: 57)
Se Frodo estava designado a encontrar o Anel, talvez também estivesse em
suas mãos a proeza de destruí-lo. Chevalier (2001: 55) nos fala acerca do mito grego
de Polícrates, que muito se assemelha à análise em questão. Segundo a lenda, a
fortuna do rei Polícrates não parava de crescer. Certo de que tal condição
privilegiada não poderia durar, ele resolveu sacrificar espontaneamente qualquer
objeto precioso que lhe fosse caro e, então, do topo de uma torre, lançou no mar seu
anel, adornado com uma maravilhosa esmeralda. O anel foi comido por um peixe
que, por sua vez, foi apanhado por um pescador. Este, achando o anel, devolveu-o
ao rei Polícrates.
Em seu ponto de vista, o autor mostra que:
Este anel fora destinado a conjurar a sorte em seu círculo mágico; daí a
oferenda ter sido rejeitada pelo mar. O anel simboliza o destino, do qual
o homem não pode se livrar. Polícrates quis dar seu anel como oferenda
compensatória, mas os deuses aceitam somente aquilo que eles mesmos
já decidiram tomar.
Simplesmente abdicar-se de um bem material não seria suficiente para fazer
os deuses mudarem seus planos para o rei Polícrates. Mais importante seria o
sacrifício interior, que é a aceitação do destino. Para Tolkien, em O Senhor dos
Anéis, o fim não seria determinado pelo destino, mas as histórias parecem ser
129
impelidas por uma mão condutora. Ilúvatar, o deus da Terra-média, apenas une os
elementos e observa as conseqüências: testa Frodo e os demais, ficando as escolhas
sob responsabilidade dos personagens. Prova disso é, como já mencionei, a recusa
do Anel por parte de Gandalf e da rainha élfica Galadriel, conscientes de que, em
suas mãos, aquele objeto exerceria um poder inimaginável.
De fato, ninguém que havia participado do Conselho de Elrond tinha dúvidas
sobre o que deveria ser feito com o Anel. A questão era: quem o levaria até o local
onde fora criado e o destruiria? Quem resistiria aos exércitos de Mordor? Quem
suportaria o poder do Anel? Frodo decidiu, de forma espontânea, carregar tal fardo,
mas receberia o apoio de oito companheiros. Estava formada então a Sociedade do
Anel, e o Anel fora o motivo pelo qual seres de diversas raças se uniram.
Anéis são comumente tidos como instrumentos de união infinita,
representada pelo seu formato geométrico, sem início e sem fim. Um exemplo disso
é o anel nupcial no dedo dos cônjuges, que indica compromisso eterno entre ambos,
livremente consentido. Segundo a tradição, durante a celebração do casamento, os
noivos devem permutar entre si os anéis, o que significa que uma relação se
estabelece duplamente entre eles, que se tornam amo e escravo um do outro.
Podemos citar como outro exemplo os cinco anéis olímpicos, criados no ano
de 1913 por Pierre de Coubertin:
FIGURA 16: Os anéis olímpicos
Os arcos representam todos os continentes (Oceania azul; Ásia amarelo;
África preto; Europa verde; América vermelho), e a ligação entre os anéis
representa a união dos povos através do esporte.
130
Segundo Chevalier (2001: 55), em diversas lendas, contos e canções
irlandesas, o anel simboliza uma força de união, um laço que não se rompe, mesmo
que o anel se perca ou que seja esquecido. Segundo a lenda irlandesa, na história da
segunda Batalha de Moytura, uma mulher chamada Eri, filha de Delbaeth, teve uma
aventura amorosa com um desconhecido, que chegara numa barca maravilhosa. Ao
se separarem, ele diz o seu nome, Elada, filho de Delbaeth (os dois são irmãos) e
entrega à mulher um anel, que fará com que o filho seja reconhecido pelo pai. O anel
representará um laço de união entre pai e filho.
No livro e filme O Senhor dos Anéis, o Anel é símbolo de união, posto que é a
razão pela qual é formado a Sociedade do Anel. No primeiro filme da trilogia, ao
discutirem o destino do Anel e quem fará parte da comitiva que partirá na busca por
sua destruição, todos os membros do Conselho de Elrond se posicionam em cadeiras
dispostas em formato circular, remetendo iconicamente ao formato do Anel:
FIGURA 17: O Conselho de Elrond
(Na manhã seguinte, o Coselho de Elrond. Gandalf e Frodo com um grupo de homens, elfos e
anões estão
sentados em um círculo ao redor de um pedestal de pedra).
68
68
(Following morning, the Council of Elrond. Gandalf and Frodo along with a group of Men, Elves and
Dwarves sit in a circle around a stone pedestal).
131
Neste caso, a forma como os membros o apresentados, análoga à do Anel,
traduz a união entre diversos povos e o porquê de estarem ali reunidos. Como
mostra Santaella (2005: 331):
[...] a narrativa é ambientada em um espaço que tem por finalidade
cumprir uma função simbólica. O espaço da história, que a narração põe
em cena, não é um espaço qualquer, mas um símbolo do conteúdo
narrado.
Assim, o espaço não deve ser compreendido em sua literalidade, mas como
representação de determinados valores culturais, que podem ser apreendidos por
meio do acesso ao repertório de significados de que o mbolo se nutre” (Santaella,
2005: 331).
No livro O Senhor dos Anéis, no início da demanda do Anel, é nítido o
sentimento de união e a confiança que Frodo deposita em seus companheiros, como
vemos em seu diálogo com Aragorn:
- Passolargo! – disse Frodo.
- Sim disse ele com um sorriso. Peço novamente permissão para ser
seu companheiro, Frodo.
- Eu teria implorado que viesse comigo disse Frodo -, mas pensei que
você iria para Minas Tirith com Boromir. (Tolkien, 2002: 287)
Embora o Anel se constitua como mbolo de união, a cobiça e poder por ele
gerados são a causa da desestruturação da Sociedade e seu conseqüente fim, fazendo
lembrar, como mostra Chevalier (2001: 53), a relação dialética amo-escravo.
A imagem do falconeiro a aprisionar com uma argola o falcão que, a
partir desse instante, não caçará senão para ele, pode ser aproximada da
imagem do Abade, substituto da divindade, a enfiar o anel nupcial no
dedo da noviça que, assim, se torna a esposa stica de Deus, a serva do
Senhor.
As próprias inscrições presentes no Anel e visíveis, se este for colocado ao
fogo, indicam claramente o poder que o objeto tem de unir, bem como o alto preço
132
que se paga pelo apego ao artefato: “Um Anel para a todos governar; Um Anel para
encontrá-los, Um anel para a todos trazer; e na Escuridão aprisioná-los” (Tolkien,
2002: 264). No filme A Sociedade do Anel, por se recusar a seguir Sauron e optar
pela luta em busca da destruição do mal, Gandalf é aprisionado em uma torre, da
qual a fuga é impossível, o que traduz assim o caráter aprisionador das inscrições do
Anel.
À medida que se aproxima de Mordor, o Anel carregado por Frodo tende a se
tornar mais poderoso, como vemos na passagem abaixo:
De fato, a cada passo que dava na direção dos portões de Mordor, Frodo
sentia o Anel na corrente em volta de seu pescoço ficar mais difícil de
carregar. Começava agora a senti-lo como um verdadeiro peso que o
atraía para o leste. Mas muito mais que isso, ele estava preocupado com o
Olho: era esse o nome que lhe dava quando falava consigo mesmo. Era
isso, mais que o peso do Anel, que o fazia se curvar e se abaixar
conforme caminhava. O Olho: aquela horrível sensação crescente de uma
vontade hostil que lutava com grande força para penetrar todas as
sombras de nuvens, e a terra e a carne, para vê-lo: para cravá-lo sob seu
olhar mortal, nu, imóvel. (Tolkien, 2002: 662)
Seu poder de persuasão torna-se tão intenso e maléfico, que a cobiça por ele
gerada determina o fim da Sociedade. A força presente no Anel é tão dominadora e
geradora de desunião, que atinge até mesmo quem não faz parte da Sociedade,
transformando uma possível ajuda em obstáculo. Em vez de reunir seus exércitos
para auxiliar na luta contra as forças de Sauron e Saruman, o regente Denethor se
recusa a ajudar: o homem imagina que o desejo de Gandalf seria se apossar do Anel
e utilizá-lo para destroná-lo, como vemos em suas palavras ao mago:
- Pois continua alimentando esperanças! disse rindo Denethor. Então
não te conheço, Mithrandir? Tua esperança é governar em meu lugar,
ficar atrás de todos os tronos, do norte, do sul ou do oeste. Li tua mente e
suas políticas. Achas que não sei que tu ordenaste a este Pequeno que
ficasse calado? Que tu o trouxeste aqui para ser um espião em meu
próprio aposento? (Denethor desconfia de Gandalf o Anel gera
desunião, ira...)
133
Além disso, como já mostrei anteriormente, tanto no livro como no filme,
Boromir, não resistindo ao desejo de possuir o objeto, tenta tomá-lo de Frodo, que
põe o Anel, desaparece e corre assustado, para não ser mais visto pelos membros da
sociedade (com exceção de Sam, que o acompanha) até o mal ser destruído.
Em determinada seqüência do filme, após fugir da tentativa frustrada de
Boromir de tomar-lhe o Anel, Frodo, não mais confiando em ninguém e já em parte
dominado pelo Anel, sente-se meio perdido, a ponto de se afastar de Aragorn (a
quem antes implorou que o acompanhasse), com medo que este pudesse ter a mesma
atitude de Boromir.
De fato, tanto no filme como na obra escrita, o Anel de poder é o motivo da
criação da sociedade que objetivava sua destruição, mas, ao mesmo tempo, o poder
por ele concebido é a causa maior da separação dessa sociedade.
O Senhor dos Anéis se constitui em uma verdadeira jornada em busca da
destruição do maligno Anel. No livro, em todas as viagens da sociedade em busca do
seu objetivo, Tolkien fotografa tão realisticamente, que nos faz ver a comitiva
andando por entre florestas sem tempo a perder, preocupada com os possíveis
efeitos do Anel criado por Sauron. Um elemento marcante durante as viagens de
Frodo e seus companheiros no filme é a referência feita ao Anel pelo uso de câmera
panorâmica
69
, como vemos nas seguintes imagens de A Sociedade do Anel (figura
18).
69
Para Martin (2003: 51), “a panorâmica consiste numa rotação da câmera em torno de seu eixo vertical ou
horizontal (transversal), sem deslocamento do aparelho”.
134
FIGURA 18: Câmera panorâmica
(A Sociedade deixa Valfenda. Após viajar por planícies abertas, subir e descer encostas, eles
descansam
sobre uma montanha).
70
Ao fazer uma analogia ao formato do Anel, a câmera panorâmica é
expressiva
71
, pois, ao acompanhar os membros da comitiva circularmente, remete
iconicamente àquilo que não sai de suas mentes e que é a causa de toda a jornada: o
Anel. Além disso, a panorâmica faz referência ao tempo, germe da criação dos Anéis
de poder pelos elfos, como veremos a seguir.
No livro, Tolkien faz tal referência icônica ao Anel no momento em que
descreve o vôo dos Nazgûl, como vemos a seguir:
Os nazgûl vieram de novo, e, agora que o Senhor do Escuro crescia e
exibia sua força, da mesma forma as vozes deles, que expressavam
apenas a sua vontade e malícia, se encheram de maldade e horror. Faziam
círculos acima da cidade, como abutres que aguardam sua parcela de
carne humana destinada a morrer. (Tolkien, 2002: 81)
........
- Cavaleiros Negros! murmurou Pippin. Cavaleiros Negros do ar!
Mas veja, Beregond! exclamou ele. Com certeza estão procurando
algo. Veja como eles fazem círculos e mergulham em vôos rasantes,
sempre descendo na direção daquele ponto ali. (Tolkien, 2002: 855)
70
(The Fellowship is leaving Rivendell. After traveling over open plains, up and down hillsides, they take a
rest on a hill)
71
Martin (2003: 51) estabelece três tipos principais de panorâmicas: as puramente descritivas (almejam
explorar um espaço, tendo geralmente um papel introdutório ou conclusivo), as expressivas (emprego da
câmera destinado a sugerir uma expressão ou idéia, como uma panorâmica circular que sugere embriagues,
vertigem, pânico ou agitação) e as panorâmicas dramáticas (desempenham um papel direto na narrativa).
135
Se o movimento de câmera ou até mesmo a descrição adquirir certo
significado convencional, dentro de um determinado contexto, ambos podem
também ser dotados de um caráter simbólico
72
. Como afirma Joly (2002: 40):
Se essas representações são compreendidas por outras pessoas além das
que as fabricam, é porque existe entre elas um mínimo de convenção
sociocultural, em outras palavras, elas devem boa parcela de sua
significação a seu aspecto de símbolo, segundo a definição de Peirce.
A apreensão dessa correspondência entre a panorâmica e o formato do Anel
obviamente exige um espectador atento, alerta aos detalhes que os recursos
cinematográficos são capazes de criar.
Sobre tal significado convencional do movimento circular, que remete ao
formato do Anel, Chevalier (2001: 250) mostra que ele “é perfeito, imutável, sem
começo nem fim, e nem variações; o que o habilita a simbolizar o tempo”, que
este corresponde a “uma sucessão contínua e invariável de instantes, todos idênticos
uns aos outros”. O autor ilustra tal visão com exemplos:
Os babilônios utilizaram-no para medir o tempo: dividiram-no em 360º,
decomposto em seis segmentos de 60º; seu nome, shar, designava o
universo, o cosmo. A especulação religiosa babilônica daí retirou, mais
tarde, a noção do tempo infinito, cíclico, universal, que foi transmitida na
Antiguidade – à época grega, por exemplo – através da imagem da
serpente que morde a própria cauda. (CHEVALIER, 2001: 252)
Além da representação grega da Uróboro, como uma serpente que morde a
própria cauda, simbolizando um ciclo de evolução encerrado nela mesma, podemos
citar também o círculo como mbolo da eternidade (o tempo que não passa), na
iconografia do cristianismo. Chevalier (2001: 252) ainda lembra do círculo
simbolizando o tempo entre os indígenas da América do Norte: Alexander (apud
72
Por outro lado, se levarmos em consideração que a imagem materializa um instante do objeto ao qual se
remete, em um registro fotoquímico do “real”, podemos afirmar que tal imagem é rastro desse objeto e,
portanto, índice. (Xavier, 1984: 11).
136
Chevalier, 2001: 252) relata a explicação do Chefe Espada, Xamã Dakota, ao dizer
que “o tempo noturno e as fases da Lua são círculos por cima do mundo, e o tempo
do ano é um círculo em volta da extremidade do mundo”.
Em O Senhor dos Anéis, o Um Anel de Sauron, assim como os três anéis
criados pelos elfos tinham uma forte relação com o tempo. Embora pareçam jovens,
os elfos de Tolkien são extremamente velhos, alguns com milhares de anos, devido à
sua imortalidade. Intencionado observar como as raças se comportariam em relação
à temática vida e morte, o deus da obra, Ilúvatar, criou homens que invejam a
imortalidade élfica, e, ao mesmo tempo, elfos que percebem a fadiga de se viver
eternamente (vendo as coisas que amam morrerem) e que invejam os homens pela
sua coragem de guerrear, mesmo cônscios de sua vida breve. Em carta
(provavelmente escrita no final de 1951) ao editor da editora londrina Collins,
Milton Waldman, que se mostrava interessado em publicar O Senhor dos Anéis e O
Silmarillion, o próprio Tolkien afirmou que:
O principal poder (igualmente de todos os anéis) era a prevenção ou
retardamento da decadência (isto é, da “mudança” vista como uma coisa
lamentável), a preservação do que é desejado ou amado, ou de sua
aparência esse é mais ou menos um motivo élfico. (CARPENTER,
2006: 148)
Assim, os elfos de certa forma invejam a fuga do tédio do tempo que é
oferecida, através da morte, aos humanos. Almejando deter o tempo e,
consequentemente, retardar a deterioração das coisas ao seu redor, criam os anéis.
Entretanto, Tolkien mostra que assumir o controle sobre o mundo e modificar a
natureza das coisas é feito possível apenas para um Deus. O Anel Mestre, por sua
vez, prolonga os anos de vida do portador, como ocorreu com Bilbo e Gollum.
Em uma outra análise que também trata da relação entre o Um Anel e o
tempo, percebe-se que, em O Senhor dos Anéis, a linguagem se volta sobre si
mesma, transformando-se em seu próprio referente, como metalinguagem: o próprio
enredo da obra se remete à forma circular. Em carta (escrita em julho de 1947) a
137
Stanley Unwin, presidente da editora londrina Allen & Unwin, Tolkien mostra que,
muitas vezes, se referia ao próprio livro como O Anel:
Fiquei surpreso por receber de volta a parte do Anel tão rapidamente. Ele
pode ser um livro grande, mas evidentemente o será longo demais na
leitura para aqueles que possuem o apetite. (CARPENTER, 2006: 119).
........
[...] O público que até agora acompanhou O Anel, capítulo a capítulo,
leu-o e clama por mais, é composto de uma gente singular de gostos
literários similares, tais como C.S. Lewis, o finado Charles Williams e
meu filho Christopher [...] (pág. 121).
Tolkien escolheu o dia 25 de dezembro (data em que se comemora Natal)
para o início da jornada de Frodo, e o dia 25 de março (data em que outrora se
celebrava o que hoje comemoramos como Sexta-Feira Santa) para o fim de Sauron.
A saída do portador do Anel representa esperança única de se acabar com todo o
mal, e a destruição do Anel representa a possibilidade de tempos melhores. Além
disso, embora não tenhamos a forma de um círculo delineada na trajetória percorrida
por Frodo desde o Condado até Mordor e deste de volta ao Condado, este último é,
ao mesmo tempo, ponto de partida e de chegada da demanda do hobbit: a própria
narrativa em si faz referência ao seu conteúdo.
138
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Senhor dos Anéis é uma obra que retrata com claridade como o mal se
dissemina no coração das pessoas. Embora Sauron nunca apareça fisicamente, ele
sempre está presente, através dos cavaleiros Nazgûl, das nuvens escuras que
dominam a paisagem da Terra-Média ou por meio do próprio Olho em chamas. O
mal ainda está encarnado em Gollum, Saruman, nos monstros Balrog e Laracna e no
próprio personagem Anel, que tenta os inocentes com suas falsas promessas de
poder absoluto.
Alimentado por um denso rigor de detalhes e um profundo conhecimento
sobre história medieval, Tolkien não criou uma obra que tem semelhanças com a
atualidade. O próprio autor deixava claro sua insatisfação com interpretações
ideológicas que comparavam seus livros com questões históricas, políticas ou
culturais. Tolkien criou um universo que não diz respeito a uma ou outra
determinada época, mas um mundo cujos valores (humildade, coragem,
misericórdia, senso de lealdade e amor ao próximo, desapego às coisas materiais,
entre outros) levam o ser humano a refletir sobre si mesmo em qualquer momento de
sua vida.
Desde a sua origem, o livro gerou milhões de fãs incondicionais por todo o
mundo. O sucesso do filme de Peter Jackson obviamente instigou uma outra geração
a ler a obra, mas é interessante lembrarmos que o livro O Senhor dos Anéis tinha
mais de 100 milhões de leitores antes mesmo da tradução cinematográfica. Grande
parte do sucesso do filme se deve exatamente ao contexto de enorme interesse no
texto-fonte.
Para a elaboração do filme, Jackson e sua equipe tiveram de reinventar
algumas técnicas, desenvolver novas tecnologias (como o personagem Gollum, que
foi criado através de uma mistura entre animação tridimensional e captura de
movimentos e expressões do ator Andy Serkis, que também faz a voz do
139
personagem). Determinadas cenas (como a Batalha dos Campos de Pelennor)
combinam efeitos visuais magníficos com belas partituras de Howard Shore.
Ao invés de atribuir significados políticos e culturais à obra de Tolkien,
através de conjecturas que relacionam aspectos do livro com figuras ou situações da
época em que o autor viveu, ou tentar identificar possíveis equivalências para tais
referências no filme traduzido, a presente análise cinematográfica está ligada à
concepção de tradução como diferença e à idéia de Peirce de que o interpretante é o
leque de interpretações que um signo permite, a partir do qual o tradutor estabelece
o seu próprio interpretante. O ato tradutório, assim, está ligado ao interpretativo e,
portanto, é “uma” leitura possível da obra-fonte.
Justapondo várias interpretações, sem tentar uma redução que correria o risco
de ser arbitrária, o estudo aqui desenvolvido apresentou alguns dos diversos
significados do símbolo Anel na obra em estudo, significados estabelecidos a partir
da constituição do próprio mbolo dentro da obra, de várias associações com outros
elementos relevantes e através de interpretação pessoal, fruto dos interpretantes
atualizados em minha mente.
Sem o intuito de esgotar, nem ao menos relativamente, nenhum dos domínios
relacionados ao conceito de representação simbólica, a pesquisa destacou, dentre os
aspectos expostos, a personificação do Anel (como um objeto com vontade própria);
a associação do símbolo Anel com o Olho (tido como um símbolo de sobre-
humanidade) em chamas de seu criador, com a cor vermelha (o que faz do objeto
uma alusão ao sangue por ele derramado) e com o fogo onde fora forjado (o que o
torna uma fonte de pavor, destruição e tentação. Sua destruição no fogo, porém,
indica purificação); a influência que o Anel exerce sobre todo aquele que o deseja ou
possui em troca do poder que oferece (Bilbo é dominado, Saruman e Boromir são
enfeitiçados, Frodo é transformado, e Gollum é corrompido e escravizado); o Anel
como símbolo da união entre diversas raças (que almejavam destruir o mal); a
relação do Anel (objeto que gerava longevidade acima do normal ao seu portador)
com o tempo.
140
Tendo como pressuposto a idéia de tradução como uma forma de recriar, que
obrigatoriamente modifica o texto de partida, e a idéia de que as transformações
geradas ao se adaptar uma obra literária para o cinema são indispensáveis (visto as
alterações exigidas pela mudança do sistema semiótico, a interpretação da obra por
parte dos tradutores, bem como o seu envolvimento com a obra escrita), o estudo da
tradução cinematográfica de O Senhor dos Anéis veio mostrar também como,
inspirado na obra de Tolkien e dotado de criatividade e do aparato tecnológico
avançado do cinema, o diretor Peter Jackson reforçou significados do símbolo em
estudo.
Para recriar tais sentidos do símbolo Anel no cinema, o posicionamento de
Peter Jackson teve que diferir de outras escolhas feitas por ele mesmo. Em certos
momentos, o diretor e sua equipe optam por se aproximar mais do texto de partida;
em outros, preferem, com as inúmeras cnicas cinematográficas de que dispõem, se
afastar, reduzindo ou ampliando as idéias da obra literária.
Ao estudar semioticamente a tradução do símbolo Anel, a proposta aqui
apresentada procurou desconsiderar a possibilidade de tradução completa” do
texto-fonte, mas optar por observar estratégias de tradução que permitam recriar
componentes do texto, transformá-los, bem como estabelecer novos elementos no
texto-alvo. No instante em que uma obra é traduzida para as telas, algumas decisões
tomadas pelo diretor e sua equipe obviamente não são evidentes para o espectador.
Em alguns casos, nem mesmo o tradutor é consciente das opções que elege, que
podem ser detalhadas em análises como algumas das desenvolvidas no presente
trabalho.
Um simples anel apresentado no cinema permite, com certeza, associações ou
interpretações por parte do espectador, mas estratégias bem sucedidas e recursos
expressivos bem utilizados aumentam a possibilidade de atualização dos
interpretantes, responsáveis pela interpretação dos significados aplicados ao símbolo
Anel. Em cada análise, ao decompormos o símbolo Anel traduzido para o cinema,
primeiro encontramos a imagem do objeto em si, abstraído de qualquer relação; em
141
segundo lugar, observamos o objeto relacionado a sua função utilitária, a sua
realidade concreta no mundo. Por último, encontramos características que, ao se
relacionar com tal objeto, instituíram a sua função simbólica. Tais características
advieram das escolhas feitas pelo diretor-tradutor.
Dentre as estratégias utilizadas e seu efeito em cada cena, destacam-se o
close-up, como forma de fazer viver sob os nossos olhos um objeto inanimado como
o anel; a câmera subjetiva, utilizada para reforçar a personificação do Anel de poder;
o zoom out, que permite o Anel emoldurar o olho direito de Gollum, como forma de
simbolizar e reproduzir o desejo ambicioso que existia em seu espírito; aspectos
qualitativos da imagem como a cor vermelha, que, refletida no rosto de Frodo, por
exemplo, pode sugerir o pavor do personagem diante do que vê no espelho de
Galadriel; efeitos especiais, que permitiram, por exemplo, a figura do Anel ser
representada por um círculo de fumaça expelido por Bilbo, cuja identificação se
por meio de fatores relativos à configuração da forma (sua qualidade de
primeiridade), e “sob efeito do reconhecimento da similaridade da aparência do
objeto representado com a percepção que se tem daquele tipo de objeto no mundo
visível” (Santaella 2005: 227); a elipse do som como forma de enaltecer a tensão
pela qual Frodo passa ao tentar colocar o Anel no dedo; o uso do primeiro plano,
para esquadrinhar, por exemplo, a fisionomia de Frodo e traduzir o seu drama
interior, sugerindo, portanto, uma forte tensão mental do personagem; a câmera lenta
como um artifício capaz de imprimir à cena uma atmosfera de tensão, transe,
hipnose ou entorpecimento; a contre-plongée utilizada com o intuito de produzir
uma impressão de superioridade de Frodo (de posse do Anel) em relação a Sam; o
zoom in, como mecanismo para traduzir forma expressiva, por exemplo, o
crescimento progressivo do Anel na mente de seu portador; a plongée que foi usada,
por exemplo, para apequenar e esmagar moralmente Gollum, tornando-o preso a um
destino intransponível; a disposição circular das cadeiras no Conselho de Elrond
como forma de traduzir a união entre diversos povos, ocasionada pelo Anel; a
utilização de câmera panorâmica, que, ao acompanhar os membros da comitiva
142
circularmente, faz referência ao Anel e ao tempo, germe da criação dos Anéis de
poder pelos elfos.
Concluiu-se que os recursos cinematográficos de que fez uso a equipe de
produção de O Senhor dos Anéis foram bastante expressivos e importantes para a
compreensão de aspectos relacionados ao símbolo Anel e sua significação, na
medida em que forneceram elementos que proporcionaram às cenas um alto grau de
detalhes. Outros estudos podem aprofundar as concepções de tradução
cinematográfica como recriação da obra literária, diversificar as análises
(envolvendo, por exemplo, outros sistemas semióticos, como as novelas, as músicas
e os jogos de vídeo-game) e, até mesmo, ampliar os estudos acerca dos símbolos
presentes em outras obras de Tolkien ligadas a O Senhor dos Anéis.
143
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FILMOGRAFIA
JACKSON. P. O Senhor dos Anéis: a sociedade do Anel. Filme, 2001.
Direção: Peter Jackson.
Elenco: Elijah Wood (Frodo), Ian McKellen (Gandalf), Liv Tyler (Arwen), Viggo
Mortensen (Aragorn), Sean Astin (Sam), Cate Blanchett (Galadriel), John Rhys-
Davies (Gimli), Billy Boyd (Pippin), Dominic Monaghan (Merry),Orlando Bloom
(Legolas), Christopher Lee (Saruman), Hugo Weaving (Elrond), Sean Bean
(Boromir), Iam Holm (Bilbo) e Andy Serkis (Gollum).
Roteiro: Peter Jackson, Philippa Boyens e Fran Walsh,
Fotografia: Andrew Lesnie.
Trilha sonora: Howard Shore.
Montagem: John Gilbert.
Efeitos especiais: Weta Digital,
Duração: 178 minutos.
Distribuição: Warner Home Vídeo.
JACKSON. P. O Senhor dos Anéis: as duas torres. Filme, 2002
Direção: Peter Jackson.
Elenco: Elijah Wood (Frodo), Ian McKellen (Gandalf), Liv Tyler (Arwen), Viggo
Mortensen (Aragorn), Sean Astin (Sam), Cate Blanchett (Galadriel), John Rhys-
Davies (Gimli), Bernard Hill (Théoden), Billy Boyd (Pippin), Dominic Monaghan
(Merry),Orlando Bloom (Legolas), Christopher Lee (Saruman), Hugo Weaving
(Elrond), Sean Bean (Boromir), Iam Holm (Bilbo), Andy Serkis (Gollum), Miranda
Otto owyn), David Wenham (Faramir), Brad Dourif (Grima) e Karl Urban
(Eomer)
Roteiro: Peter Jackson, Philippa Boyens, Stephen Sinclair e Fran Walsh,
150
Fotografia: Andrew Lesnie.
Trilha sonora: Howard Shore.
Montagem: Michael Horton.
Efeitos especiais: Weta Digital,
Duração: 179 minutos.
Distribuição: Warner Home Vídeo.
JACKSON. P. O Senhor dos Anéis: o retorno do Rei. Filme, 2003.
Direção: Peter Jackson.
Elenco: Elijah Wood (Frodo), Ian McKellen (Gandalf), Liv Tyler (Arwen), Viggo
Mortensen (Aragorn), Sean Astin (Sam), Cate Blanchett (Galadriel), John Rhys-
Davies (Gimli), Bernard Hill (Théoden), Billy Boyd (Pippin), Dominic Monaghan
(Merry),Orlando Bloom (Legolas), Christopher Lee (Saruman), Hugo Weaving
(Elrond), Sean Bean (Boromir), Iam Holm (Bilbo), Andy Serkis (Gollum), Miranda
Otto (Éowyn), David Wenham (Faramir), Brad Dourif (), Karl Urban (Eomer) e
John Noble (Denethor)
Roteiro: Peter Jackson, Philippa Boyens e Fran Walsh,
Fotografia: Andrew Lesnie.
Trilha sonora: Howard Shore.
Montagem: Jamie Selkirk.
Efeitos especiais: Weta Digital,
Duração: 200 minutos.
Distribuição: Warner Home Vídeo.
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