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1
FUNDAÇÃOUNIVERSIDADEFEDERALDORIOGRANDE
PROGRAMADEPÓS-GRADUAÇÃOEMLETRAS
MESTRADOEMHISTÓRIADALITERATURA
THAISRUBIRACADAVAL
ACONSTRUÇÃODASPERSONAGENSFEMININASNAOBRAHÁUMINCÊNDIO
SOBACHUVARALA,DEVERAKARAM
Dissertaçãoapresentadacomorequisitoparciale
último para a obtenção do título de mestre em
Letras, área de concentração em História da
Literatura.
Profª.Drª.ElianeTerezinhadoAmaralCampello
Orientadora
Datadadefesa:
21/12/2007
Instituiçãodepositária:
NúcleodeInformaçãoeDocumentação
FundaçãoUniversidadeFederaldoRioGrande
RioGrande,dezembrode2007
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Livros Grátis
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2
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3
Com eterno amor, à minha filha Lívia, pela
compreensão de tantas ausências para esta criação.
Dedico-lhecadaumadestaspáginas.
4
AGRADEÇO
ÀminhafilhaLíviaRubiraCadaval,porquedásentidoàminhavidaepormeamar
independentementedeminhasausências.
Aos meus pais, Carmen Helena Sayão Rubira e Paulo Roberto Rubira pelo apoio
incondicional,carregadodeestímuloparaqueeuconseguisseconcluirestetrabalho.Deixo-
lhesmeumuitoobrigadaeomeureconhecimentoporcadapalavra,porcadagesto,portodoo
empenho!
Aos meus irmãos, Luciano, Juninho e Leandro, pela amizade infinita e incentivo
sempredemonstrados.
Aos meus demais familiares que, direta ou indiretamente, trouxeram alguma
contribuição.
ÀfamíliaCadaval.EspecialmenteàminhasograeamigaSoniaMariaSilvaCadaval,
que partiu em meio à realização desta dissertação, mas que sempre fora uma grande
incentivadora nos momentos de desânimo e uma grande companheira nos momentos de
conquista.
Àminhaqueridaorientadora,Profª.ElianeT.A.Campello,pelapaciência,interessee
sagacidade. Sem a sua orientação segura seria impossível chegar até aqui. Obrigada por
acreditarqueeueracapaz!
ÀIsisSaraivaPinto,LetíciaFariasCaetanoeatodos/asos/asamigos/asquesempre
estiveram ao meu lado, acompanhando este trabalho, oferecendo alento em diversos
momentos.
A todos/as os/as colegas do mestrado, pela troca de idéias e companheirismo. Em
especial aos amigos Márcia Klee e Paulo Sérgio Quaresma, pela amizade e por estarem
sempreprontosameescutar,dividindoangústiaseanseios.
ÀsprofessoraseprofessoresdocursodeGraduaçãoemLetrasdaFURG,porsempre
apostaremqueestefeitoseriapossível.
ÀsprofessoraseprofessoresdoProgramadePós-GraduaçãoemLetrasdaFURG,
especialmenteaoProf.CarlosAlexandreBaumgarten,àProfªRaquelRolandoSouza,àProfª
NéaCastroeaoProf.MauroNicolaPóvoas,quemeincentivameacompanhamaminhavida
acadêmicadesdeosprimeirosanosdagraduação.
À Gilda Neves Bittencourt, pela disposão em responder a meus e-mails e por
demonstrarsatisfaçãopelautilizaçãodeseunomenabaseteóricadestadissertação.
ÀAliceRacheFonseca,peladisponibilidadeeconfiançaemconferir-meseumaterial
referenteàVeraKaram.
ÀFabianeResende,pelaatençãonaformataçãodestetrabalho.
ÀprofessoraRosaMariaFernandesAlbernaz,pelagentilezaeatençãonarevisãofinal
dotexto.
ÀBancaExaminadora,peladisponibilidadeecontribuição.
ÀDireçãoefuncionários/asdaEscoladeEnsinoMédioAprendizagemeCidadania,
pelo incentivo. Em especial aosmeusalunos ealunas,por serem um dos motivos que me
levaramacrernaimportânciadestaespecializaçãoparameutrabalhodeeducadora.
ADEUS,portodaaforçaquepreciseidesempenharduranteestetrabalho.SemEle
nãoconseguiriasuperarasdificuldadesquesurgiramemmeucaminho.
5
Socorro,nãoestousentindonada
Nemmedo,nemcalor,nemfogo
Nãovaidarmaisprachorar
Nemprarir
Socorro,algumaalmamesmoquepenada
Meentreguesuaspenas
Jánãosintoamornemdor
Jánãosintonada
Socorro,alguémmedêumcoração
Queessejánãobatenemapanha
Porfavor,umaemoçãopequena,qualquercoisa
Qualquercoisaquesesinta
Temtantossentimentos,deveteralgumquesirva
Socorro,algumaruaquemedêsentido
Emqualquercruzamento,
Acostamento,
Encruzilhada
Socorro,eujánãosintonada
AliceRuizeArnaldoAntunes
6
RESUMO
EstadissertaçãovisaàanálisedoscontospresentesnaobraHáumincêndiosobachuvarala
(1999), da escritora gaúcha Vera Karam. Utilizo-me de postulados teóricos vinculados à
CríticaLiteráriaFeministaeàscategoriasdanarrativa,bemcomoaosconceitosdeironiaeao
sentidodotrágiconacontemporaneidade,paraverificardequeformaelessãocombinadosna
construção das personagens femininas. Essas bases conceituais encontram-se no primeiro
capítulo,intitulado"Diálogosteóricos:ateoriaaserviçodapráticatextual".Nestecapítulo,
abordooestudoOcontosul-rio-grandense:tradiçãoemodernidade(1999),daprofessorae
críticaGildaNevesBittencourt,poisatipologiapropostaampliaasfronteirasdeanálise,no
que diz respeiito às tendências temáticas e narratológicas do conto sulino contemporâneo.
Paraconceituarironia,oposicionamentodeLindaHutcheon,emTeoriaepolíticadaironia
(2000),servedeapoio,possibilitandoautenticarasdiversascircunstânciasdeusodestafigura
por Karam. A abordagem aos postulados teóricos acerca do sentido do trágico na
contemporaneidadeincluiosposicionamentosdeYvesStalloni(2002),EmilStaiger(1997),
Albin Lesky (1997) e principalmente de Gerd Bornheim (1975). Este conceito sustenta a
dicussão a respeito da presença deste traço nas personagens femininas, que é enfatizado
conformeospapéisqueelasdesempenhamnasociedade.Recorrotambémàsreflexõesacerca
degêneroformuladasporSusanaFunck(1994),JoanScott(1990),RitaTerezinhaSchmidt
(1994)eMartaGordoGarcía(2007),entreoutras,comofimdeexplicitaraperspectivade
uma leitura a partir deste conceito enquanto categoria de análise. No segundo capítulo,
intitulado "Um olhar sobre os contos de Vera Karam", realizo a análise das narrativas,
considerandoaconfluênciadeaspectos,taisquais,atipologiadoconto,aironiaeotrágico,
bem como as questões de gênero na construção das personagens femininas. Distribuo as
análises doscontosem dois subcapítulos: “A imagem refletida”e“A imagem construída”.
Três,dosoitocontos,estãoinseridosnaprimeiraparte,poisaquiasprotagonistasmostram-se
comosevêem.Elasseautodefinem,refletindo,portanto,suasprópriasimagens.Nosdemais
contos,aspersonagensodestituídasdevozprópria,esuasimagensresultamdavisãode
um/a narrador/a. Apesar dos modos diferenciados de narrar, Karam direciona seu fazer
artísticoparaaconstruçãoformaletemáticaedostatussocialdaspersonagensfemininas.Por
meio delasé queaautoraelabora e propõeadenúnciaeacrítica social,alémdeexplorar
possibilidadesdetransgressãodasmulheresàsnormasaelasimpostas.Ainegávelhabilidade
técnicadeVeraKaramassociadaapadrõesartísticos/estéticosdemonstradosemsuaécriture,
constituem-seemfortesfatoresdeterminantesparasuainserçãonahistoriografialiteráriasul-
rio-grandense.
7
ABSTRACT
This dissertation aims at analyzing the short stories in Há um incêndio sob a chuva rala
(1999),bythegaúchawriterVeraKaram.IusetheoreticalprincipleslinkedtotheLiterary
Feminist Criticism and the narrative categories, as well as concepts such as irony and the
sense of tragic in our days, in order to verify how they are mingled to build the female
characters. These fundamental concepts are in the first chapter, entitled “Theoretical
dialogues: theory yields to the textual practice”. In this chapter I focus on the study The
Southern shortstory:traditionandmodernity(1999),bytheteacherandcriticGildaNeves
Bittencourt, because the typology she proposes enlarges the borders of analysis in what
concernsthethematicandnarratologictendenciesofthecontemporarySouthernshortstory.
Inordertoconceiveirony,LindaHutcheon`sviewinTheoryandpoliticsofirony(2000)is
supportive,leadingtotheauthenticationofthevariouscircumstancesinwhichsuchafigureis
appliedbyKaram.Theapproachtothetheoreticalprinciplesonthesenseoftragicinourdays
includetheideasofIvesStalloni(2002),EmilStaiger(1997),AlbinLesky(1997)andmainly
of Gerd Bornheim (1975). Such a concept upholds the discussion on the presence of this
featureinthefemalecharacters,whichisstressedaccordingtotheroletheyplayinsociety.I
alsoinvestigatethereflectionsongenderbroughtbySusanaFunck(1994),JoanScott(1990),
Rita Terezinha Schmidt(1994)and Marta GordoGarcía(2007), amongothers, in order to
dealwithareadingperspectivebasedonthisconcepttakenasananalyticalcategory.Inthe
secondchapter,entitled“AglanceonVeraKaram´sshortstories”,Ireadthe narrativesby
takingintoaccounttheconfluenceofaspectssuchasthetypologyoftheshortstories,irony
andthesenseoftragic,aswellasthequestionsofgenderappliedtothefemalecharacters.I
dividetheanalysisintotwoparts:“Thereflectedimage”and“Thebuiltimage”.Threeofthe
eight short stories are in the first part, because here the protagonists appear as they see
themselves.Theyself-define,thereforetheyreflecttheirownimages.Intheothershortstories
theprotagonistsarenotgivenavoiceoftheirownandtheirimagesarebuiltastheresultofa
narrator´svision.InspiteofKaram´sdistinctmodesofnarrating,sheemphasizesherartistic
worktowardstheformalandthematicbuildingofthefemalecharactersandtheirsocialstatus.
The writer elaborates and poses denunciation and social censure throughout the female
characters,besidesexploringwomen’spossibilitiesoftransgressiontotherulesimposedon
them. Vera Karam´s undeniable technical ability, associated to artistic/aesthetical patterns
demonstratedinherécriture,arestrongdeterminantfactorsofherinsertionintheSouthern
literaryhistoriography.
8
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕESINICIAIS.........................................................................
-
9
1.DIÁLOGOSTEÓRICOS:ATEORIAASERVIÇODAPRÁTICATEXTUAL
..............................................................................................................................13
1.1–Ocontocontemporâneosulinoeastendênciastemáticasenarratológicas
..............................................................................................................................13
1.2–Aironiaestánadiferença;aironiafazadiferença..............................
-
22
1.3–Otrágicocontemporâneoesuasacepções.............................................
-
30
1.4–Literaturadeautoriafeminina:aquestãodogênero...........................
-
35
2–UMOLHARSOBREOSCONTOSDEVERAKARAM.......................
-
41
2.1–Aimagemrefletida....................................................................................
-
41
2.1.1–"Háumincêndiosobachuvarala"–DentrodemimTEMumdiadesol,
eutenhocerteza.....................................................................................................41
2.1.2–"Visitaàvovó"–TudoqueestiverACIMAdonormal,ouABAIXOdo
normal,enfim,queNÃOFORNORMAL,estáerrado.......................................54
2.1.3–"Avidaalheia"–Aausênciadesofrimentojáéalgumafelicidade
(talvezaúnicaquesepodealmejar)......................................................................64
2.2–Aimagemconstruída................................................................................
-
77
2.2.1–"Vinteequatrodedezembro"–AgorasófaltaoAnoNovoeavida
voltaànormalidadetriste,queduranteorestodoanoninguémestranha.............77
2.2.2–"Primeirodemaio"–Quandotupensasquesim,agoravai,fechaosinal
outravez...............................................................................................................88
2.2.3–"Tudonavidaépassageiro"–Algunsficaramemalgumaparada,por
ondeesseônibusnãopassava...............................................................................98
2.2.4–"AnoivadoCaí"–Nãoexistenadaespecial,ninguémtãooriginal
assimquenãopossasercopiado.........................................................................108
2.2.5–"Ursinhodepelúcia"–Agenteperdetantascoisaspelavida................
-
116
UNINDOASPONTAS.....................................................................................
-
127
REFERÊNCIAS................................................................................................
-
135
ANEXOI–TabelacomatipologiadeGildaBittencourt..................................141
ANEXOII–TabelacomatipologiadeLindaHutcheon...................................142
9
CONSIDERAÇÕESINICIAIS
EstetrabalhoconsistenaanálisedoscontospresentesemHáumincêndiosobachuva
rala(1999),daescritora,dramaturgaeatrizVeraKaram.AcontistanasceuemPelotas,nodia
20deoutubrode1959eformou-seemLetras,pelaPUCeemArtesDramáticas,pelaUSP,o
que,decertomodo,justificaasuahíbridaproduçãoemrelaçãoaosgêneros–escritorade
teatroedecontos.
Peloreconhecimentodeseutrabalhocomoescritoradramática(iniciadoem1992,com
oespetáculoQuemsabeagentecontinuaamanhã?),elarecebeMeãoEspecialdojúri,no
Prêmioorianos/93,comapeçaDona Otílialamentamuito.Em1996,levao1ºlugarno
ConcursoEstadualdeDramaturgiaQorpo-Santo,comapeçaAnonovo,vidanova,textoque,
posteriormente,forapublicadoevencenaCategoriaTextoDramático/97,oPrêmioAçorianos
de Literatura. Com a peça Maldito coração, Karam recebe três prêmios de melhor texto
dramático,entreelesoSATED,doSindicatodosArtistasdoRioGrandedoSul,eoprêmio
doFestivaldeTeatrodeSãoJosédosCamposem1997.Comocontista,Karamobtémo2º
lugarnoConcursoJosuéGuimarães,comocontoPrimeirodemaio.PelatraduçãodeAmorte
deIvanIlitch,deTolstói,ganhaoPrêmioAçorianosde1998.Aautoratambématuoucomo
diretoraeatrizdeteatro,participandoinclusivedoelencodeumfilmebrasileirodadécadade
80,intituladoApalavracãonãomorde.Alémdisso,foiprofessoradeinglêsecoordenadora
de"oficinasliterárias".Em2001,oespetáculoNestadataqueridarecebe,naCategoriaTexto
Dramático/2001, o Prêmio Açorianos de Literatura. Em 2006,a peça Maldito coração me
alegraquetusofras,semoutrosconcorrentesnacategoria,éconsagradacomapremiaçãode
melhor autor nacional do "34º Fenata" (prêmio póstumo). Além desse prêmio, a atriz Ida
Celina, por sua atuação, vence a categoria "melhor atriz". Essa mesma peça, em julho de
2006, é escolhida como o melhor espetáculo do "7º Festival Nacional de Monólogos", de
Marília.
A contística dessa escritora gaúcha, entretanto, não figura no meio acadêmico, fato
quemotivaarealizaropresentetrabalho.Alémdisso,aanálisedessasnarrativascurtaspode
contribuirparaainclusãodaobradeKaramemumatradiçãoliterária deautoriafeminina,
queédesenvolvidahámaisdedoisséculosnoRioGrandedoSul.
Acreditosernecessárioabordaraproduçãoliteráriafemininacomoumacontribuição
emtermosdearteedeliteratura,poisàmedidaqueexploroquestõessocioculturaisqueo
importantesnadiscussãodegênero,verificoqueasmulheressempreescreveram.Entretanto,
10
devido ao patriarcalismo
1
que as assombravam, elas, na grande maioria das vezes, não
passavamdevozesabafadas,anônimas,ou,quandomuito,devozesmenores.Sendoassim,
procurodarvozaotrabalholiterário,dogêneroconto,realizadoporVeraKaram.
Minhaanáliseenfocaaconstruçãodaspersonagensfemininas,comamparonaTeoriae
HistóriadaLiteraturaenaCríticaLiteráriaFeminista.Asquestõesnorteadoras,quepretendo
atendersão:
1)Emquemedidaotrágicocontemporâneoeaironiaserelacionamesemanifestam
na construção das personagens femininas nos contos de Há um incêndio sob a chuva rala
(1999)?
2) Como a tipologia sugerida por Gilda Bittencourt, em O conto sul-rio-grandense
(1999),ajusta-seaoscontosdeKaram?
3)Emquedimensãooestudodegênero–enquantocategoriadeanálise–contribui
paraacompreensãodaspersonagensfemininasdeVeraKaram?
Emconseqüênciadasquestõesacima,proponhoestetrabalhocombasenosobjetivos
seguintes:
1) Estabelecer as características formais e temáticas presentes nos contos de Vera
Karam,apoiadanatipologiasugeridaporGildaBittencourt.
2) Demonstrar que a ironia e o trágico contemporâneo presentes na contística de
Karamoelementosessenciaisparaaconstruçãodanarrativa,caracterizandoodiscursode
suaspersonagensfemininas.
3)Compreenderaconstruçãosemânticadeum incêndio soba chuva ralasob a
perspectivadegênero.
A metodologia utilizada compreende etapas distintas que procuram dar conta dos
aportes teóricos, bem como de sua aplicação nos procedimentos analíticos. Para esse fim,
dividoadissertaçãoemdoiscapítulos.
No primeiro capítulo, intitulado "Diálogos teóricos: a teoria a serviço da prática
textual",buscoconciliarpostuladosteóricosaparentementedistintosque,entretanto,quando
associados, resultam em uma base sustentável para a compreensão ampla das personagens
femininas. Nessa medida, correlacionoo trágico e o irônico com as vertentes temáticas, as
 
1
De acordo com MACEDO & AMARAL (2005), patriarcado "é o termo que descreve um sistema de
organizaçãosocial,formadoapartirdecélulasfamiliaresestruturadasdetalformaqueastarefas,asfunçõesea
noçãodeidentidadedecadaumdossexosestãodefinidasdeumaformadistintaeoposta,sendoestabelecido
queasposiçõesdepoder,privilégioeautoridadepertencemaoselementosmasculinos,quer[no]nívelfamiliar,
quer[no] velmais latodasociedadeno seutodo",de modo que"osprivilégios socialmente atribuídos aos
homenssignificamnecessariamente,aopressãodaquelesaquemosmesmosprivilégiosonegados,istoé,às
mulheres"(p.145).
11
consciências narrativas
2
e as questões de gênero que permeiam cada texto ficcional. Nos
Anexos I e II, para fins de ilustração, incluo tabelas com a representação esquemática da
distribuiçãodestascategoriasrelacionadasaoscontos.
Parauma melhororganizaçãodotrabalho,essecapítulo estásubdivididoemquatro
partes.
Com o subtítulo "O conto contemporâneo sulino e as tendências temáticas e
narratológicas"procuroexplicitaratipologiapropostapelaprofessoraecríticaGildaNeves
Bittencourt, em O conto sul-rio-grandense: tradição e modernidade (1999), acerca das
consciências narrativasedasvertentestemáticas.Essateoria amplia asfronteiras possíveis
paraainterpretaçãodotextoliterário,poisfornecebasesformaisetemáticasconsistentes,na
medidaemqueutilizaconceitosflexíveis.
Além dessa tipologia, explicito, na sua formulação teórica, outros conceitos
igualmenterelevantesparaaanálise,taiscomoodeironia,odetrágicocontemporâneoeode
gênero.
Aironia,essencialmente,évistanestetrabalhomedianteoestudodeLindaHutcheon,
Teoria e política da ironia (2000), no subcapítulo intitulado"A ironia está na diferença;a
ironia faz a diferença". A teórica demonstra que a ironia acontece nas mais variadas
circunstâncias e propõe o estudo deste tropo a partir de marcadores irônicos, ambientes
contextuaisecomunidadesdiscursivas,alémdeabordaraintençãoirônicaesuasfunções.
Em"Otrágicocontemporâneoe suasacepções",terceirapartedoprimeirocapítulo,
trato do posicionamentoteóricode Yves Stalloni (2001),deEmil Staiger(1997), de Albin
Lesky(1997)e,principalmente,deGerdBornheim,emOsentidoeamáscara(1975),noque
tangeàcompreensãodaperspectivatrágicadoindivíduonasociedadeemquevive,enquanto
explicitoasdiversasacepçõesqueotermocontempla.NoscontosdeKaram,evidenciopelo
discurso das personagens, queestes dois conceitos– o de ironiae o sentido dotrágico na
contemporaneidade–imbricam-senaconstruçãodofeminino.
 
2
A tipologia de Bittencourt (1999) referente às consciências narrativas recebe, nesta dissertação, quando
pertinente,acomplementaçãodosconceitosdeHughHolman(1981)edeRobertHumphrey(1976)noquetange
a compreensão de "monólogo", de "solilóquio, monólogo interior e descrição onisciente", respectivamente.
Quando o monólogo ocorre no interior da mente da personagem é chamado de "fluxo de consciência", que
segundo Humphrey (1976, p. 21), divide-se em quatro tipos: monólogo interior direto, monólogo interior
indireto,descriçãooniscienteesolilóquio.Oteóricoreservaotermo"fluxodaconsciência[naindicaçãodeum
sistema]paraaapresentaçãodeaspectospsicológicosdopersonagemnaficção"(p.1,grifonooriginal),sendoa
suautilização,portanto,"umatentativamodernaparaanalisaranaturezahumana"(p.6).Nessesentido,ainda
queosdiscursosdaspersonagensdeHáumincêndiosobachuvaralanãoapresentemaformacaracterísticado
fluxo deconsciência, porque sãopensamentosexteriorizados,o conteúdo decertas elocuçõesseaproximada
definiçãodeHumphreyepodemser,portanto,adaptados,comvistaàumamelhorcompreensãodossentimentos
eanseiosdaspersonagens,pontocrucialparaacompreensãoglobaldasmesmas
12
Para finalizar o capítulo teórico, discorro acerca do conceito de gênero enquanto
categoriadeanálise,relevanteatodotrabalhocrítico-literárioqueenvolveaescritadeautoria
feminina. É em"Literatura deautoria feminina: a questão do gênero" que seleciono,entre
outras, as reflexões de Susana Funck (1994), Joan Scott (1990), Rita Terezinha Schmidt
(1994)eMartaGordoGarcía(2007).
Aanálise dos contos tem início no segundo capítulo,intitulado"Umolharsobre os
contosdeVeraKaram",emqueprocuroevidenciar:asupremaciadaspersonagensfemininas,
as"vertentestemáticas"eas"consciênciasnarrativas"assumidasdentrodecadatexto,bem
como as nuanças trazidas a elas pela semelhança com algumas categorias do fluxo de
consciência,osentidodotrágicoedoirônicoequestõesdegênero.
Realizo uma subdivisão nesse capítulo,pois Karam apresenta suas protagonistas de
maneirasdistintas.Emalgunscontos"Háumincêndiosobachuvarala","Visitaàvovó"e
"Avidaalheia",elaspossuemvozprópria,falamdesimesmas,caracterizam-sedaforma
comosepercebem.Asnarrativasvêmanalisadasindividualmente,masreunidas,portanto,na
parte intitulada "A imagem refletida". A segunda parte deste capítulo, denominado "A
imagemconstruída",abrangeoscontos"Vinteequatrodedezembro","Primeirodemaio",
"Tudo na vida é passageiro", "A noiva do Caí" e "Ursinho de pelúcia"  em que essas
personagenssãomostradaspelo/anarrador/a.Sãomulheresvistaspeloolhardooutro,etudo
oqueépossívelsaberarespeitodelasvemdestavisãoexterna.
Ostítulosdossubcapítulosquecontêmaanálisedecadaumdoscontossãoseguidos
defrases-chaves,tematicamentesignificativas,transcritasdostextos.
Aleituraaquemeproponhoserealizamedianteacompreensãoeaverificaçãodos
postuladosteóricosquecompõemoprimeirocapítulo.Dessaforma,procurodemonstrarde
quemodotaisconceituaçõesselecionadassustentamainterpretaçãodestecorpus.
Esperoqueapropostadeleituradoscontosqueseencontranestapesquisasirvanão
sócomocontribuiçãoparaosestudosdaCríticaLiteráriaFeminista,comotambémàqueles
vinculadosàHistóriadaLiteraturadenossopaísedenossoEstado,demodoqueasquestões
objetivadaspossamauxiliaracompreensãodacontísticadeVeraKaram.
13
1–DIÁLOGOSTEÓRICOS:ATEORIAASERVIÇODAPRÁTICATEXTUAL
Para que a análise dos contos de Há um incêndio sob a chuva rala (1999)
3
tenha
argumentossustentáveis,faz-senecessáriaaapresentaçãodealgunspostuladosteóricos,não
sóparasustentaraleituradostextosficcionais,mastambémpelofatodeserumcorpusque
carecedefortunacrítica
4
.
Os/asnarradores/asdoscontossãoanalisados/aspormeiodeumcruzamentoentreas
"consciênciasnarrativas",as"vertentestemáticas",conformeexplicitadoporBittencourtem
Ocontosul-rio-grandense:tradiçãoemodernidade(1999)
5
,eograudeironiaetragicidadea
eles/as atribuído, poisé esse cruzamento que se constitui em um caminho possível para a
visualizaçãoecompreensãodaperspectivadegêneroqueKaramimprimeànarrativa.Nessa
medida,ateoriasetornaumaparatoessencialparaacompreensãodaspersonagensfemininas
presentesnessecorpus.
1.1–Ocontocontemporâneosulinoeastendênciastemáticasenarratológicas
OtrabalhodaprofessoraecríticaGildaNevesBittencourtvemaoencontrodemeus
objetivos, pois sua proposta teórico-crítica procura fugir de classificações unívocas e
fechadas,considerandoavariedadetemáticaecomposicionaldasnarrativascontemporâneas.
As constatações acerca de recorrências temáticas e formais que a estudiosa identifica nos
contosdos/asautores/asporelaanalisados,bemcomoospostuladosteórico-críticosdequese
vale,ajustam-seaoscontosdeKaram,namedidaemqueamaioriadas"vertentestemáticas"
e todas as"consciênciasnarrativas"estão presentes nessas narrativas. Portanto, aplicar sua
tipologiaaoconjuntodecontosdeHáumincêndiosobachuvaralafacilitaacompreensão
douniversodiegéticoedestacaoespaçodestinadoàspersonagensfemininas.
Bittencourt diz que seu estudo advém "da necessidade de investigar mais
profundamente as implicações da dicotomia autor/narrador na construção do universo
ficcional"(p.11),eissofazcomqueseexaminemaspreferênciasdequemconta,sejaem
 
3
Todasascitaçõesextraídasdestaobrapertencemàreferidaedição.
4
OúnicotrabalhoacadêmicorealizadoéadissertaçãodeMestradodeAliceRacheFonseca,intitulada"Maria
da Cunha e Vera Karam: diálogo de um século?", apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras –
Mestrado em História da Literatura da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, em junho de 2005.
Todavia,éumestudoquecontemplaadramaturgiadeKaram,enãosuacontística.Dissertaçãodisponívelem
<http://www.ppgletras.furg.br/disserta/alicerache.pdf>.
5
Todasascitaçõesextraídasdestaobrapertencemàreferidaedição.
14
relaçãoàstemáticasabordadas,sejapelomododenarrar.Paratanto,seucorpusabrangeum
conjuntodecontosquedatamdadécadade70doséculoXXporqueessefoio"períodoem
queocorreuumaverdadeiraexplosãodaproduçãoliteráriagaúchadecontos,reproduzindo,
aliás,umfenômenoqueaconteciatambémemnívelnacional"(p.12).
Oscontosselecionadospelateóricaapresentamalgunstraçoscomuns,principalmente
emrelaçãoaosaspectosculturaisesociais,aoperíodohistóricoemqueestãoinseridoseà
"ficcionalidadee[à]brevidadedashistórias"(p.13).Hátambémacentuadaheterogeneidade
temporal eespacial,gerandodiversidade nasconfiguraçõesinternas das narrativas.Noque
concerneàvariedadedocorpus,acríticaescolheonzeautores
6
,nascidosnoRioGrandedo
Sul, cujas obras têm uma importância significativa na década de 1970, sendo que alguns
dessestrabalhosforamproduzidosnosanos60.
A teórica realiza um estudo do conto inserido na história da literatura sul-rio-
grandense,salientandotraçosideológicos,culturais,sociaisehistóricospresentesnostextos
ficcionais,poisessesaspectossãooquedefinem,segundoela,aliteraturanoRioGrandedo
Sul. Os/as autores/as citados vão desde os considerados "tradicionais" (que escreveram na
décadade1920)atéos"renovadores"(queproduziramentreosanos50e60doséculoXX).
Alémdisso,hánarrativasqueseinserememuma"fasedetransição"(p.38),vistoque,apesar
deapresentaremumregionalismomelancólico,trazem"umaincipientenarrativaurbanaque
já vislumbra a problemática social, decorrente da desintegração da sociedade rural e do
crescimentodascidades"(p.38).
Paracategorizaroscontossulinosprocedentesdogrupodos"renovadores",aautora
apresentaquatro"vertentestemáticas"percebidasnasnarrativascurtasquedatamdofinaldo
séculoXXe que,portanto,possuem uma estrutura econteúdoinovador,condizentecomo
panoramahíbridosocioculturaldopovogaúcho.Esseestudofornece"umaidéiadosrumos
tomadospelocontobrasileiroedesuasdiferenteslinhastemáticas"(p.66),poisosdemais
trabalhos teóricos produzidos até então, são dotados de classificações muito "variadas e
heterogêneasemfacedanaturezadessemelhantedoscritériosadotados"(p.67).
BittencourtcomentaosestudosdeHermanLima,TemístoclesLinharesedeAntônio
Hohlfeldt.Sobreesteúltimo,elasalientaqueocríticoutilizaseiscategoriasparaclassificaros
contos(rural,alegórico,psicológico,deatmosfera,decostumesesociodocumental),masque,
 
6
Os/asautores/asselecionados/assão:MoacyrScliar,JosuéGuimarães,RubemMauroMachado,TâniaFaillace,
Sergio Faraco, Carlos Carvalho, Ieda Inda, Laury Maciel, Flávio Moreira da Costa, Flávio Aguiar e João
GilbertoNoll(p.12-13).Nosubcapítulointitulado"Asituaçãodocontobrasileirocontemporâneo"(p.59),a
autora cita oito contistas brasileiros/as e fornece elementos caracterizadores das narrativas curtas dos/as
mesmos/as. o eles/as: Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan, José J. Veiga, Rubem Fonseca, Autran
Dourado,LuizVilela,SamuelRaweteJoãoAntônio.
15
noentanto,elemesmoreconheceocruzamentonaclassificaçãodoscontos,comoexplicitam
aspalavrasabaixo:
Admite aintersecção de um tiponooutro,à medida quevai definindo os
agrupamentosaoiníciodoscapítulos:oscontosdeatmosferaconfundem-se,
àsvezes,comospsicológicos,enquantomuitosdosdecostumespoderiam
serincluídosentreossociodocumentais.Dessaforma,asseiscategorias,a
rigor,seriamquatro,devidoàsemelhançadosdoisparescitados.(p.68)
Aesserespeitoéqueateóricaserefereao"carátersubjetivodastipologias"(p.67),
umavezqueadiversidadedaproduçãonãopermiteumaclassificaçãofechadaemsieasua
tentativa embuscar novascategorizaçõespara os contosgaúchos,inclui, emcerta medida,
aquiloquejáfoifeitoanteriormente,pois"nãoexisteumaunanimidadenadesignaçãodaquilo
quesintetizaoconteúdototalouparcialdeumanarrativaoupoema"(p.71).Alémdisso,é
precisoconsiderarqueummesmoautor"trabalhaemlinhastemáticasdiferentes"(p.72),eas
vertentes do conto gaúcho não podem ser dissociadas do momento histórico em que as
narrativassãoproduzidas.
Veja-se,nesteexcerto,comosecaracteriza,fundamentalmenteavertente"social":
Análisedasociedadeemsuasmacroemicrorelações,abrangendodesdeas
queacontecemno interior dacélulafamiliar,ou nocontatoentre patrão e
empregado, até as grandes contradições do sistema capitalista, com as
diferençasbrutaisentreosseguimentossociais[...](p.73).
Osanos60e70proporcionaramàliteraturauminteressemaioremrelaçãoàsquestões
sociais, pois, devido ao êxodo rural, as cidades passam a ter uma nova estrutura, com o
aumento da pobreza e da marginalidade advindas da não adaptação dos ex-trabalhadores
ruraisaestenovomododevida:ourbano.
Oindividualismo,quecaracterizaasrelaçõespessoaisdasociedadegaúchadofinaldo
século XX, também deve ser levado em consideração em uma análise textual que busca
verificar a presença de vertentes temáticas que abordam questões sociais. Nessa medida, a
literaturagaúchadaépocarefletenostextosarepressãomilitar,devidoàditadurade1964.
Entretanto,éprecisoperceberqueessavertentepodeseapresentarsobdiversasmaneiras:
Arepresentaçãoliterária[varia],noentanto,deautorparaautor.Elapodeser
essencialmente realista, ou seja, verossímil, semelhante ao mundo real,
acentuando descrições que revelam detalhes ínfimos ou então grotescos,
seguindoumalinhatemporaledefinidaelocalizandoasaçõesemespaços
igualmentebemidentificados.Podesertambémqueelasemostredeuma
16
formacifradaou metafórica,na qualaligaçãocomarealidadesejamuito
tênue,predominandoouafeiçãooníricaefantasiosa,ouocaráteralegórico
oufantástico(p.75).
Avertente"existencial-intimista"ficaevidentenasnarrativasemqueointeriordoser
humano se revela em busca de sua auto-realização e/ou auto-afirmação, tanto no sentido
particular,quantonosentidosocial,dasuarelaçãocomosoutros,vistoque"aordenaçãoea
interpretaçãodavidasurgemdaprópriapersonagemcomoserindividual,nasuaconsciência,
nosseuspensamentosetambémnassuaspalavraseações"(p.93).
Essamodalidadeapresentaestilosdiferenciadosdeabordagemficcional,poispodeser
[...]umarepresentaçãodotiporealista,naqualháumencadeamentológico
deacontecimentos,unificadosporumavoznarrativaqueorientaosrumos
da história, mesmo que, em certos casos, ela seja interrompida por
monólogos interiores ou fluxos de consciência, ou que nela aconteçam
inversõesepausastemporais.Poroutrolado,oscontospoderãoganhar,por
vezes, um tratamento onírico e metafórico, devido, em grande parte, ao
imaginárioparticulardoescritor,quecoloreotextodeimagensfantasiosas,
sugerindomundosirreaisouentãoosprópriossonhos(p.94).
A vertente "memorialista ou da reminiscência infantil" é adotada por nossos/as
contistas desde o século XVIII e se estende até os dias atuais. São contos que possuem
"histórias ambientadas na infância, mas relatadas sob a ótica do adulto que revisita o seu
passado" (p.107), porém, o/a narrador/a pode também ser a própria criança. Assim, a
recorrênciaàmemóriaprovoca"alembrançadealgoaliarmazenado,nãocomoumasimples
regressãodopresenteaopassado,mas,aocontrário,progredindodopassadoaopresente"(p.
107).
Paraateórica,ogrupodecontistasgaúchosquecompõemseuestudovolta-semais
paraomemorialismoemrelaçãoàinfância,poisnessafasedavidahá
[...]umtempoidealizadoemitificado,noqualseabrigampureza,inocência,
ingenuidade,ossonhosmaisimportanteseosdesejosmaisverdadeiros,por
issomesmo,[é]palcodasgrandesdesilusõeseperdaselugardeorigemdos
mesmostraumatismospsicológicos(p.110).
A última vertente abordada por Gilda Bittencourt é a "regionalista" (p.122). Nos
contos da década de 1970, em que essa temática se faz presente, um herói diferente
daqueledosanosde1920.Emrelaçãoaisso,aestudiosaressalta:
17
O herói de agora já não é mais aquela personagem altiva, associada ao
cavalo e conhecida como
"
o centauro dos pampas", mas o homem
empobrecido, proletarizado, que vive numa nova ordem econômica que o
expulsou do campo obrigando-o a procurar modos alternativos de
sobrevivência, nem sempre citos e honrosos, que se apresentam como a
únicasoluçãoparacontinuarvivo(p.123).
Opassadoguerreirodogaúchoadquireumanovafeição.Aspersonagensdoscontos
demonstram um grande distanciamento da visão mítica dos pampas gaúchos, pois o
sentimento nostálgico "foi definitivamente suplantado pelo avanço do progresso que
introduziunovoshábitosemodificoucompletamenteavidacampeira"(p.123).Para que os
contossulinos sejam incluídosnessavertente,énecessárioqueelesselimitem"aocenário
rio-grandense,comseuscostumeselinguagemparticulares"(p.123).
OestudoacercadasvertentestemáticasécomplementadoporBittencourtmediantea
análise da estrutura interna do conto, pois a narrativa curta contemporânea se mostra
multifacetadaeheterogêneanoseumododerepresentação,sendopossívelsepará-laemduas
tendênciasdistintas:aquesegueosmodelostradicionaisdecomposiçãoeaquerenunciaà
estruturatradicional
7
.
É importante considerar que as estratégias narrativas sugerem a adesão ou não à
tradição por parte do/a autor/autora, pois a escolha do/a narrador/a "envolve também uma
atitudeouumaconsciênciaquepresideoatonarrativo."Essaseleçãopréviadasestratégias
narrativasdo/aautor/aimplicatantoainterferênciade
[...]componentesdeordemexternacomoaideologia,ocontextohistórico-
socialeculturaldomomento,comofatoresdeordemindividualligadosàs
idiossincrasiasdecadaautorouàssuasvisõesdemundo(p.172).

Pelofatodeo/aautor/aficarimplícito/anapessoado/anarrador/a,surgeanecessidade
deumestudoquedêcontadeapresentarpostuladosreferentesàposiçãodaquele/aquenarra,
maisespecificamenteemrelaçãoàsnarrativascurtassulinas.Nesseviés,ateóricaapresenta
oitomodalidadesde"consciênciasnarrativas"vislumbradasnocontogaúchocontemporâneo.
Eladefineconsciêncianarrativacomo
 
7
Oscontosqueseguemosmodelostradicionaispossuem"enredodefinido,seqüênciacronológicaecausalde
fatos, podendo criar um clima de tensão e conduzir a um desfecho; e aqueles que renunciam à estrutura
tradicional,[tendem]àdiluiçãodoenredo,aoaprofundamentodainvestigaçãointrospectiva,àexploraçãodos
estadosoníricos,fantasiososouinsanos,ouentãoàfragmentaçãoaleatóriadotexto,ouseja,osqueprocuram
destruira'ilusãorealista'"(BITTENCOURT,p.148).
18
[...] uma instância mediadora entre o autor e a obra (ou a narração
propriamente),pontodeorigemdoatonarrativoedaconstruçãodouniverso
narrado.Comoconsciência,elatambémadquireumadimensãohistórica,na
medida em que carrega em si as circunstâncias de seu tempo. Tal como
vemos, portanto, a
"
consciência narrativa" não implica somente uma
intenção individual a partir da qual a narrativa é construída, mas ela é
tambémproduzidapor determinadascondiçõeshistórico-sociaiseculturais
(p.178).
Aprimeiramodalidadeintitula-seconsciência"solidária"(p.180)eestápresentenas
narrativasemquearealidadeficcionaléconstruídaapartirdeumaperspectivainternaaela,
demodoqueanarraçãoéfeitapor"umnarradorheterodiegético,masafocalizaçãoestánuma
daspersonagens,deondeseirradiaapercepçãodomundodiegético"(p.180).
Nessetipodeconsciência,anarraçãoorigina-senocentrodeumaconsciênciainterna
aouniversoficcional.Adistânciaentreo/anarrador/aeapersonagemfocalizadoradiminui
substancialmentequandosetemodiscursoindiretolivre, e aumentaquando o/a narrador/a
emite pareceres, com comentários e observações acerca das personagens. Pelo fato de
descentralizaraperspectivadequemconta,elaéutilizadaemlargaescalapelos/ascontistas
contemporâneos/as,poisoindivíduonãopossuiumavisãoglobalizantedosacontecimentos,
dosoutrosenemdesimesmo.Nessesentido,"aóticainternaeavisãoparcialsãoasque
melhorcorrespondemàsexigênciasdasociedademoderna"(p.186).
A consciência "distante" (p. 186) caracteriza-se essencialmente pela distância do/a
narrador/aedomundonarrado.Essedistanciamentoéintencional,afimdequeo/anarrador/a
nãosejadramatizadoemnenhummomento.Ele/apodeserheteroouhomodiegético/a,masé
imprescindível que a narrativa obedeça a uma lógica interna. Bittencourt salienta que a
distância mantida entre o/a narrador/a e aquilo que se narra corresponde a duas ordens: a
espacial ea psicológica – percebidas geralmentepela ausênciadecomentáriosde parte de
quemnarra.
Na consciência "introvertida" (p. 192), o/a narrador/a é sempre homodiegético/a e
preferencialmente autodiegético/a: narra os fatos em profundidade, faz uma análise
introspectiva e torna, portanto, a auto-investigação o centro do relato. A esse respeito
Bittencourtrefere:
As narrativas em que predomina a consciência introvertida evidenciam
preocupações com o autoconhecimento, centralizando no
"
eu" todas as
derivaçõesdoatonarrativo,comooúnicoobjetivodocontar(p.196).
19
A consciência "empenhada" (p. 197) traz um compromisso firmado com uma
ideologiaouumconjuntodevaloresqueseopõemaosdeumsistemaestabelecido,istoé,são
posicionamentos que presidem a criação do universo ficcional. O/a narrador/a se distancia
daquiloquenarra,apesardeeleserintraficcional,poisele/acriticaarealidadequevislumbra.
Pelo motivo de certos contos serem ideologicamente empenhados e geralmente
possuíremumarepresentaçãounívocaeconservadora,demuitosdelesétiradaapossibilidade
de "perdurar à frente do momento histórico de sua produção, além de enfraquecer
sensivelmenteoseupotencialliterário"
8
(p.202).
Oscontoscomconsciência"concomitante"(p.202)sãoosqueapresentam
[...] uma concomitância entre o ato narrativo e a ação narrada,
presentificando-se através da fala do narrador, como se esse relatasse os
fatos à medida em que eles fossem sucedendo, ou valendo-se de outros
recursos (principalmente dramáticos) para representar essa simultaneidade
(p.202).
Afunçãotradicionaldo/anarrador/aemrememorarosacontecimentos,distanciando-
seesteticamentedaquiloquenarra,desaparece.Alémdisso,nessestextosgeralmenteháuma
interligaçãodosfatosefetivadapelavoznarrativa,quesegueumaordemtemporalecausal,
apesar do ritmo rápido das ações. Às vezes, a intenção de imediatez " [afeta] a própria
concatenaçãológicadosfatos,resultandonumtextofragmentário"(p.204).
Bittencourt salienta ainda que há uma coincidência entre os níveis psicológico,
ideológicoeespaço-temporal:
A voz narrativa adere emocionalmente ao eu narrado e o conteúdo
ideológico que o texto expressa nos chega pela própria voz de uma das
vítimas do sistema capitalista. O eu que narra é, assim
"
consoante" ao
narrado, sua percepção tem as mesmas lacunas de um olhar instantâneo e
estálimitadaaoseuângulodevisão(p.204,grifonooriginal).
Devido ao seu caráter de instantaneidade, algumas narrativas dotadas de uma
consciência "concomitante" rompem com os padrões tradicionais, no sentido de serem
desvinculadasdeumdevirtemporal.Essaconsciênciafaz-sepresentenoscontosquefingem
 
8
Segundo Bittencourt, "a consciência empenhada no conto sul-rio-grandense corresponde a uma das
manifestaçõesliteráriasdoperíododeexceçãopós-1964,emqueoprotestocontraasrestriçõesdaliberdade,as
perseguiçõeseprisõespolíticasmarcaramaintelectualidadebrasileiraeparticularmenteosjovensdessageração.
Haviaumgrandeempenhoeumaimportantecruzadaentreescritoreseartistasemdenunciaroautoritarismoea
repressãodoregimemilitar"(p.201).
20
asimultaneidadedasações,verificada,porexemplo,nostextosemquenãoháaintervenção
de um/a narrador/a, de modo que a narrativa é construída inteiramente por diálogos.
Entretanto, a "concomitância pode existir numa narração no passado, em que o olhar do
narradoracompanhadepertoaação,comoseestivessejuntodaquiloquenarra"(p.205).
Pormeiodaconsciência"irônica"(p.207)vislumbra-seumasimulaçãodeatitudese
visãodemundocontráriasàsdo/aautor/aimplícito/a,eo/anarrador/a"[mostra]arealidadea
partirdesuaóticae[provoca]estranhamentonoleitor,quedesconfiadesuapalavra"(p.207).
Issoocorreporqueavoznarrativanãoautenticaaconfiabilidadedaquiloqueécontado,já
queelasurgeefazpartedoobjetocriticado.Nãohámaisodistanciamentoentreaquele/aque
narraeoquesenarra,"realçando,dessaforma,afeiçãoirônicadanarrativaeenriquecendo-a
literariamente" (p. 210). Por outro lado, Bittencourt afirma que a consciência "irônica"
relativiza"principalmenteopapeldonarrador,sobretudoquantoàsuaconfiabilidadeperante
oleitor,problematizandoassimareferencialidadeimediatadomundoficcional"(p.211).
Aconsciência"contraditória"(p.211)écaracterizadaviaodescompromissocomoato
denarraroucomosprocedimentosinerentesàinstâncianarrativa,queenvolve"adistância
temporaleespacialentreanarraçãoeonarrado,eanoçãodeduraçãoqueatravessatodoo
texto" (p. 211). Nessesentido, o/a narrador/aéo/a responsável pela organizaçãoverbal da
matériaficcionaleéele/aquemgaranteaveracidadedaquiloqueénarrado.
Nas narrativas dotadas de uma consciência "contraditória", o/a leitor/a fica
impossibilitado/adeexplicaromundoficcional,vistoqueanarraçãoestá
[...]repartidaousolapadaporfeitosdistintosepalavrascontraditórias,que
provocamestranhamentoequebramo"pactodeleitura".Onarradortorna-se
suspeito diante do leitor e "indigno de confiança", já que as normas
preestabelecidastacitamenteforamcontrariadas(p.211-212).
Osacontecimentosnãosãorelacionais,demodoquenãosecompreendeoporquêdas
mudançasespaço-temporais,oquegeraestranhamento.Hátambém,muitasvezes,ainvasão
doirrealedofantásticodentrodofluxorealdosacontecimentos.
Ateóricasalientaqueaconsciênciacontraditória
[...]projetanotextoumaintenção,inerenteaumtipodenarrativaromanesca
contemporânea, de desconstruir o relato centrado numa referência
privilegiada,unívocaouqueremetaaumaorigemabsoluta(p.216).
Por esse motivo, têm-se narrativas que refletem a segmentação do indivíduo
contemporâneo,queseencontradivididoeisolado,transferindo"aoprópriotextoamesma
21
descontinuidadeeincertezadasrelaçõesinterpessoaiseasmesmasperplexidadesdomundo
atual"(p.216).
A última consciência apresentada intitula-se consciência "mutável" (p. 217).
Amparada na terminologia de Bakhtin, a crítica encontra essa consciência em narrativas
"polifônicas",poisnãoháum/aúnico/anarrador/aque,demodocentralizador,vê,analisae
comentaomundonarrado.Sãonarrativasquepossuem
[...]narradoresdistintosquedãoversõesindividualizadasdomesmofato,ou
entãooquevariaéafocalização,podendoserdelegadaaváriaspersonagens
oualternaradonarradorcomadeumaouduaspersonagens,modificando
muitasvezesadistância(temporal,espacial,afetiva,moral,ética,etc.)que
separaafontenarradoradomundorepresentado(p.217).
Nessesentido,essamodalidadeimpedeaexpressãoprofundaecompletadosfatosou
daspessoas,poisaspercepçõesadvêmde"grandesalternânciasnomododecontar"(p.217),
explicaateórica.
Asconsciênciasnarrativasconferemaos/àsnarradores/asummodoparticularizadode
narrar, que variam entre a posição que assumem perante o relato e a distância em que se
colocam.Independentementedeseremhomoouheterodiegéticos,aposiçãoassumidadentro
danarrativaéquevaideterminarograudeadesãoàquiloqueénarrado.
As consciências que diminuem visivelmente essa distância o a "introvertida" e a
"concomitante",aopassoqueasconsciências"solidária","distante"e"empenhada"simulam
esteafastamentocomonarrado,poismuitasvezes talseparaçãoéapenasumasugestãode
neutralidade.Háaindaasconsciênciasqueoraevidenciamaadesãodo/anarrador/aaorelato,
orao/arepelem,comoocorrecomasconsciências"contraditória"e"mutável".
A consciência "introvertida" caracteriza-se pela diminuição dessa distância. Esse
arrefecimentonãodizrespeitoaosplanostemporaleespacial,masao"planoemocional"(p.
195), já que é uma consciência "voltada exclusivamente para si mesma" (p. 192). A
consciência"concomitante"tambémfavoreceadiminuiçãodadistânciaentreo/anarrador/ar
e o narrado, pois os fatos são apresentados de maneira concomitante ao que este/a vê.
Algumas vezes, essa distância diminui ainda mais, percebida nos textos construídos por
diálogos,emqueo/a narrador/anãointervém.Aconsciência"irônica"acentuaaadesãode
quem narra, pois "as idéias queexpressa ea própria integralidade do relato correspondem
àquiloqueotextoemseuconjuntodesejadenunciar"(p.210).
Narrativas dotadas de consciência "solidária" apresentam um/a narrador/a
"aparentementedistantedonarrado"(p.181),mas,emalgunsmomentos,asuaopiniãofica
22
evidentenotexto.Ograudeadesãodo/anarrador/a"podevariardeumaadesãomínima"até
uma"ligaçãomuitoíntimaequaseindissociável"(p.183),poiseste/apodetransferiratarefa
denarraraalgumapersonagem,oque"descentralizaaperspectivadequemconta"(p.185).A
consciência"distante""sugereumaneutralidadeouumaisençãodapartedonarrador",mashá
ocasiõesemqueadistânciadiminui,comonosmomentosemqueafocalizaçãoétransferidaa
umapersonagemouquandoo/anarrador/a"emiteumaobservaçãomaisindividualizada"(p.
187).Aconsciência"empenhada",aindaquesejaadotadaporum/anarrador/aintraficcional,
evidencia a distância entre este/a e aquilo que é narrado, pelo fato de estar "empenhada
ideologicamente[...],criticandoferozmentearealidadequevislumbra"(p.199).
A consciência "contraditória" está presente nas narrativas que se apresentam
segmentadase descontínuas, de modo que o/a narrador/a relata os fatos e "não[esclarece]
sobreosprecedentesouascausasdaquiloqueestásendodito"(p.213).Algumasvezes,asua
adesãoaoquenarrasetornamaior,masquandoafocalizaçãoestáemumadaspersonagens,a
distância aumenta para que haja uma desconstrução do "relato centrado numa referência
privilegiada,unívoca"(p.216).Aconsciênciamutáveltambémdescentraavoznarrativa,pois
otextooferece"váriosângulosedistânciasdouniversoficcional"(p.217).Comooatoda
enunciaçãoémúltiplo,adistânciavariadeacordocomquemnarraeoconteúdodosrelatos,
demodoquetudoémostradosob"aspectosesparsos,sobângulos,visõesevozesdiferentes"
(p.219).
1.2–Aironiaestánadiferença;aironiafazadiferença
Localizar e estudar a ironia em um texto literário proporciona uma leitura
diferenciada, pois quando se percebe que emcerto enunciadohá um sentido irônico, estão
sendo lançadas diversas questões para tal interpretação, sendo as relações de poder que a
ironiatrásemsi,umdosaspectosmaisimportantesparaacompreensãodotodotextual.Tais
relações implicam uma estratégia discursiva que, mediante o texto literário, envolve o/a
autor/a e o/a leitor/a. Partindo dessa premissa, encontro na abordagem teórica de Linda
Hutcheontodoorespaldodequenecessitoparaaanálisedoscontosemquestão,poiselanão
trataaironiacomoumtropoisolado,proporcionando-mebasesteóricasparaarealizaçãode
umaleituramaiscompletaacercadosdiscursosdaspersonagens.Percebendoasrelaçõesde
poderentreosinterlocutoresdasnarrativas,interpreta-seoqueestáeoquenãoestáditopara,
23
inclusive, discutir relações de gênero outro ponto importante para a compreensão do
universodiegético.
Hutcheon,emTeoriaepolíticadaironia(2000)
9
,porenfatizarquenãosepodetratar
aironiacomoumtropoisolado,considera-acomoumtópicopolíticoque,conseqüentemente,
"envolve relações de poder baseadas em relações de comunicação" (p. 17). Essas relações
funcionam a serviço de posições políticas, pois a ironia possui uma natureza
"transideológica"
10
(p.26).
Éimportanteressaltarque,paraexplicarcomoaironiafunciona,énecessário,antesde
tudo, distingui-la de outras práticas discursivas, denominadas pela teórica como "arestas",
vistoquesedevemdiscernirossignificadosquesãoaparentementepróximos.Paratanto,uma
primeiradisjunçãodeveserfeita:adenãoconfundirironiacomhumor,atémesmoporque
"poucasdessasironiassãoparticularmente'engraçadas'"(p.20,grifonooriginal).
Aironiaaconteceemtodosostiposdediscurso,easuaatribuiçãoounãodependerá
desuainterpretação.Aesserespeito,dizHutcheon:
[...]aironiaoéironiaatéquesejainterpretadacomotal–pelomenospor
quem teve a intenção de fazer ironia, se não pelo destinatário em mira.
Alguématribuiaironia;alguémfazaironia"acontecer"(p.22-23).
Seguindoalinhaderaciocínioexpostanacitaçãoacima,aironiaédefinidacomouma
estratégiadiscursivaqueoperanoníveldalinguagemverbaloudaforma,sejaelamusical,
visualoutextual.Porisso,deve-sesempre"levaremcontaasdimensõessociaiseinterativas
do [seu] funcionamento [...], quer a situação seja uma conversa, quer seja a leitura de um
romance"(p.27).
Apercepçãodosentidoirônicodeumtextofaz-semedianteaatribuiçãodesentidose
motivosespecíficosdo/aleitor/a. Otrabalhocomas"arestasavaliadoras" (p.29)da ironia
realiza-senoatodaleituraemumcontextoparticular,oupormeiodeinferênciassemânticas
e avaliadoras. Tal procedimento diferencia a ironia das demais formas que lhe são
semelhantes,comoametáfora,aalegoriaeostrocadilhos.
Osentidoirônico"nãoé,assim,simplesmenteosentidooditoeonãodito[sic]
nemsempreéumasimplesinversãoouoopostododito:eleésemprediferente–ooutrodo
 
9
Asreferênciassãotranscritasdestaediçãoeindicadasentreparêntesespelonúmerodaspáginas.
10
TermoutilizadoporWhite(1973)eexplicadoporHutcheoncomosendoreferenteà"vastagamadeposições
políticas,legitimandoousolapandoumagrandevariedadedeinteresses"(p.26-27).
24
ditoemaisqueele"(p.30,grifonooriginal)porqueoditoeonãoditocoexistemparao/a
leitor/a,eosentidoirônicoéextraídodessainteração.
A ironia sempre tem um "alvo", e muitas vezes ela é utilizada com o intuito de
destacaraarestacríticaqueenvolve,istoé,emprega-seaironiaparaenfatizarumasituação
deoposição,medianteasposiçõessociaisemqueseencontramosinterlocutoresdodiscurso
irônico.Entretanto,essacircunstânciadeoposiçãopodenãoserinterpretadacomotalporque
"nada nunca é garantido na cena politizada da ironia" (p. 34). Ainda assim, a sua função
transideológica está por trás de elocuções em que um produto do sistema énegativamente
ironizado.Quandoissoacontece,odiscursoacarretaumcaráter"excludente",poiso/aautor/a
–nopapeldeironista
11
–ficadefora,numaposiçãodepoder,poiséele/aquemdecidequem
e o quevai serironizado. Outro tipo de situação ocorre quando a ironia tem todo sistema
como alvo, que, segundo Hutcheon, é um significado irônico mais globalizante e
"construtivo."Sobreessaquestão,elaexplicaque,devidoaofatodeo/aautor/afazerparte
desse sistema,essetipodeironia permiteproduzirfinsdiferentes, pois tem comodesígnio
mudaros produtossociais. Dessa forma, asdimensõessemânticaesintáticadaironia"não
podem ser consideradas separadamente dos aspectos social, histórico e cultural de seus
contextos de emprego e atribuição" (p. 36), visto que "tudo depende de quem a está
usando/atribuindoeàscustasdequemseacreditaqueelaestáfuncionando"(p.34).
Umavezqueaironiaacontecedentrododiscurso,elaenvolve"questõesdeautoridade
epoder" (p. 36),e todaatividade discursivaéumaformadeatividadesocialrealizadapor
comunidadesprodutorasdedeterminadosdiscursos.
A respeitoda relação das comunidadesdiscursivas comaironia, Hutcheon enfatiza
queestanãocriaaquelas,massãoelasquetornamaironiapossível,poisascomunidadesjá
existemefornecemocontexto,"tantoparaoempregoquantoparaaatribuiçãodaironia"(p.
37).
Outropontolevantadopelateóricaérelativoaopoderdedesestabilizaçãodaironia,
vistoque"àsvezeseleémaisumatentativaindiretade'trabalhar'contradiçõesideológicase
não deixá-las se resolver em dogmas coerentes e, assim, potencialmente opressivos",
estabelecendoumaestratégiaque"desconstróiedescentradiscursospatriarcais"(p.56).
Hutcheon aborda questões que envolvem ironia e feminismo. Ela salienta que as
mulheres utilizam a ironia como um meio poderoso de criticar ou resistir às restrições
patriarcaissociaisouàspretensõesmasculinasdoqueéconsiderado"verdade"(p.57).Desse
 
11
TermoutilizadoporHutcheonpresentenaversãotraduzida.
25
modo,aironiapassaafuncionarcomorecodificadora"emtermospositivosoqueodiscurso
patriarcallêcomoumanegativa"(p.57).Oqueétidosocialmentecomoverdadeémuitas
vezes uma imposição social masculina, sendo que a mulher pode se apropriar "das
potencialidadestransgressoras,provocativasesubversivasdaironia"(p.62)paracontestaro
meioemquevive.
Aironiatemassuasarestas,poisé"assimétrica,desequilibradaemfavordosilencioso
edonãodito"(p.62),envolvendo,assim,umadimensãoafetivaporpartedo/aautor/aoudo/a
leitor/a,queavaliaejulgaasconstruçõesirônicas.Hutcheonprocuraesclarecerqueaironia
compreendenãosóumsignificado,masatitudeesentimento,poisemcadaelocuçãoirônica
háumtraçoavaliadorqueéinferidonomomentoemqueseestabelece"umrelacionamento
diferencialentreoditoeonãodito"(p.66).
Aironiatemalgumasfunçõesqueateórica definecomo uma"motivação operativa
atribuídaouinferida"(p.74).Otermo"motivação"éutilizadoporqueaenunciaçãoirônica
envolveumaatitudepropositalemdireçãoaoatodeironizar.Jáotermo"operativa"sinalizao
modocomoaironiaacontece,enquantoqueaexpressão"inferida"remeteaoentendimentode
queaironianemsempreéintencionalporpartedo/aautor/a,maselaésempreumcasode
interpretaçãoeatribuição.Otrabalhodateóricapossuiumapremissaqueelaafirmapossuir
duaspartes:
[...]primeiro,quemotivações(projetadas,inferidas)diferentesresultamem
razões diferentes para atribuir (ou usar) ironia e, segundo, que a falta de
distinção entre as múltiplas funções possíveis da ironia é uma das razões
paratantaconfusãoedesacordosobresuaapropriabilidadeevalor,paranão
falardeseusignificado(p.74).
Linda Hutcheon organiza um diagrama para demonstrar um movimento de carga
afetivanimadaironiaparamáxima.Noentanto,elaenfatizaqueasfunçõesabordadasnão
foram organizadas com a intenção de estabelecer uma hierarquia. As nove funções são:
reforçadora, complicadora, lúdica, distanciadora, autoprotetora, provisória, de oposição,
atacante e agregadora (p. 76-88). Elas são necessárias para o entendimento dos diferentes
modoscomoaironiaéconstruída.
Ao discutir a semântica da ironia, isto é, considerar que seu conceito é plural, é
reforçadaaimportânciado"papeldocondicionadordocontextoeasatitudeseexpectativas
tanto do ironista quanto do interpretador" (p. 89). O significado irônico possui algumas
característicassemânticasessenciais,denominadasde"relacional,inclusivoediferencial"(p.
90).Acaracterística"relacional"dizrespeitoaofatodeaironiaserumaestratégiaqueopera
26
entre "significados (ditos, oditos), mas também entre pessoas (ironistas, interpretadores,
alvos)" (p. 91), afim de quese criealgo novo dentro de uma dimensãosocial. O aspecto
"inclusivo" sugere que a ironia pode ser entendida semanticamente "por uma substituição
direta de significado" (p. 91), ao passo que o aspecto"diferencial" compreende a "relação
problemáticaentreironiaeoutrostroposeformastaiscomometáforaealegoria"(p.91).
Éimportanteverosignificadoirôniconãocomoumarejeiçãodosentidoliteralesua
respectiva substituição por outro significado – o irônico , mas sim como um terceiro
significado, criado a partir da união e do entendimento do dito e do não-dito, afinal, "o
significadoirônicoseformaquandosejuntamdoisoumaisconceitosdiferentes",quenãosão
"necessariamenteopostos"(p.98).
É pertinente destacar a diferença entre a ironia, a metáfora e a mentira. Os tropos
metáfora eironia são semelhantesno sentido de amboscaracterizarem-seporproporcionar
desvios semânticos nas elocuções. Entretanto, apesar de eles serem plurais, "a identidade
semânticabásicadaironiaseconstituiprincipalmenteemtermosdediferençaeadametáfora,
emtermosdesimilaridade"(p.99).Adistinçãoentreaironiaeamentiraestánaintençãode
quemaconstrói,quenãopretendequeo/aleitor/apercebaafalácia.Poroutrolado,osentido
irônico, para ocorrerouse completar, dependedo/a leitor/a,isso é,ele/a nota que há uma
diferençasemânticanodiscurso,masnãonecessariamenteumamentira.Sobreessaquestão,
Hutcheonexplica:"[...]pretende-sepermanentementequeasmentirassejamcontradições;os
significados irônicos, entretanto, se formam por meio de oscilações auditivas entre
significadosditosenãoditosdiferentes"(p.101).
Aironianemsempreacontecepeladecodificaçãodeumaúnicamensageminvertida,
poisoprocessosemânticoqueelaenvolverequerumacombinaçãodetempo,espaço,situação
socialeculturaldoautor/aedo/aleitor/a.Assim,"sãoprecisamenteoscontextosmútuosque
umacomunidadeexistentecriaquemontamocenárioparaousoecompreensãodaironia"(p.
136,grifonooriginal).
Adenominada"comunidadediscursiva"nãodeveserconfundidacom"comunidadede
discurso", pois a discursiva não é um construto sócio-histórico neutro, sem restrições de
tempo e espaço, ela possui algumas restrições. Para tanto, é preciso compreender que a
diferença está no fato de que esta reconhece as restrições habilitadoras de contextos
discursivoseressalta.
27
[...]asparticularidadesnãoapenasdeespaçoetempo,masdeclasse,raça,
gênero, etnia, escolha sexual – para não falar de nacionalidade, religião,
idade,profissãoetodososoutrosagrupamentosmicropolítiosnosquaisnos
colocamosousomoscolocadospornossasociedade(p.137-138).
Muitos estudos sobre a ironia apontam para a discussão do que os lingüistas
denominam "competência lingüística" (p. 141). Essa diz respeito à capacidade que os/as
leitores/as têm em compreender elocuções, cada um com um repertório particular de
conhecimento, seja esse conscienteouinconsciente.Talconhecimentoécompartilhadopor
umacomunidadediscursiva,oquelevaHutcheonapensaraironianãocomocriadoradessas
comunidades,"porqueosvaloresecrençascomunitáriosjáexistem"(p.142).Assim,aironia
envolvemuitomaisumarelaçãodesuposiçõescompartilhadasdoqueo"uso"decompetência
interpretativa.Sobreisso,afirmaateórica:
Mesmoparaamaissimplesdasironiasverbais,porexemplo,háqueexistir
acordomútuoporpartedeambososparticipantessobreestespontosbásicos:
que as palavras tenham significados literais; que as palavras possam,
entretanto, ter mais de um significado, especialmente em certos contextos
[...], que possivelmente haja alguns tipos de marcadores culturalmente
acordados na elocução e/ou no contexto enunciativo para sinalizar que a
ironiaestáfuncionandoecomosedeveinterpretá-la(p.142).
Dentrodeumacomunidadediscursivaéquesedesenvolveahabilidadededominare
organizaro tropo irônico.Essa mesmacomunidade pode ounãopraticar todos os tiposde
habilidades e pensamentos que a ironia envolve, pois a interpretação de uma referência
irônica requer, por parte do/a leitor/a – que pertence a uma comunidade discursiva ,
informações contextuais necessárias para que o sentido irônico seja percebido. Hutcheon
esclarece:
São as comunidades discursivas que são simultaneamente inclusivas e
excludentes–nãoasironias.Quantomaispróximaasuperposiçãocultural
oudiscursivadecontextos,tantomaisprováveisacompreensãodeironias
específicas e a aceitação da apropriabilidade da ironia em certas
circunstâncias(p.144,grifonooriginal).
Aexistênciadeumacomunidadediscursivanãoéoúnicopontoquesedevelevarem
contaaosereconhecerosentidoirônico.Leitores/aspodempertenceràmesmacomunidade,
istoé,partilharalgoemcomume,noentanto,nãoconcordarsobreapresençadosignificado
da ironia. Issoocorreporqueela"é umaquestãode'cumplicidade ideológica – um acordo
baseadoemumacompreensãopartilhadasobrecomoomundoé'"(p.148).Mesmocategorias
28
amplas como, raça, sexo, classe ou religião "não definem ou garantem necessariamente a
formação de umacomunidade discursiva: existem grandes diferençasideológicasdentrode
cadagrupamento–quesãocontestáveise,logo,mutáveis"(p.148).Pormaisessemotivose
percebeacomplexidadedarecepçãodaironia.
Hutcheontrazalgumaspremissasparasepensaraironia,poisosentidoirôniconão
estáemalgoqueédito,querendodizeroutro,é"umprocessodecomunicaçãoqueimplica
dois ou mais significados sendo jogados um contra o outro. A ironia está na diferença; a
ironiafazadiferença"(p.155).
De acordo com a teórica, "toda ironia acontece intencionalmente, quer a atribuição
sejafeitapelocodificador,querpelodecodificador.Ainterpretaçãoé,numsentido,umato
intencional porparte dointerpretador" (p. 171). Com base na noção intencionista se pode
compreendermelhoradiferençaentreaironiaeamentira.Estatemafinalidadedeenganar,
enquantoqueaquelavisaadissimularatravésdeumaintençãotemporáriaourestrita.
Paraentenderaintencionalidadeirônica,éprecisoampliaraatividadedequemproduz
aironia,bemcomoados/asleitores/as,demodoa
[...] permitir juntar três linhas diferentes e geralmente distintas dentro da
teoriadaironia:oquegeralmentesechamadeposiçãointencionista(sópara
ironistas),aposiçãoinversadequetodaironiaéumafunçãodeleitura(só
para interpretadores) e a posição de que há uma responsabilidade
compartilhada(paraambos)nousoenaatribuiçãodeironia(p.173).
Sãotrêsasfunçõesdaintençãoirônica:ética,semântica,epsicoestética.
A posição "ética" refere-se à responsabilidade que o/a criador/a da ironia tem em
garantiracompreensãodestaporpartedequemlê,vistoqueo/aleitor/adecodificaráeusará
as suposições codificadas em formações contextuais quelhe ofornecidas. Além disso, é
precisodebateraintençãodaironiaporque
[...]s
ema responsabilidadequepode vir com aintencionalidade,aironia
podesignificarnuncater dedizerqueéissomesmoquevocêquerdizer.
Obviamente, pode-se ver o potencial para evasão por meio apenas de
afirmaçãotácitacomoalgonegativo(p.174-175).
A função "semântica" é aquela que garante o significado da ironia, visto que há
semprealguém"real"(p.174)portrásdecadaenunciadoirônico.Portanto,deve-selevarem
consideraçãoo fatode leitores/aspressuporem o que o/aautor/a provavelmentequisdizer,
29
masissonãopodeservistocomoalgocertoeóbvio,poiséumaquestãode"reconstrução"de
significadospossíveis.
Otermo"psicoestético""refere-seàopiniãodequeaintençãoagecomoagarantiade
controleconsciente–emtermosquerdepsicologia,querdearte"(p.173).Dessemodo,não
podemserconsideradosacidentaisouinconscientesosefeitostextuaistidoscomoirônicos.
Mesmodefinindoasfunçõesatribuídasàintençãodaironia,Hutcheondestacaque,na
prática,háumagrandedificuldadedesaberseháintençãoirônicaecomoavaliá-la.Salientaa
teórica:
Quer a intenção seja ou não algo derivado de marcadores no texto em
questãoou de evidência extratextual tais comodeclarações do ironista, as
dificuldades empíricas de estabelecer intenção nunca desaparecem. Às
vezes, as pessoas até dão interpretações contraditórias de suas próprias
intenções(p.175-176).
Acomunicaçãoirônicaésemprepartilhadaentreleitores/aseautores/aseminteração
social.Éimportantedestacarqueo/aautor/apodeterumpúblicointencionadoquenãosejao
real,gerando,àsvezes,arejeiçãodosignificadoirônico,ouessemesmopúblicopode"achá-
loinadequadooucensuráveldealgummodo;elepodesimplesmenteoptarpornãoverironia
numadadaelocução"(p.179),oquetornaoefeitoirônicoumaresponsabilidadedeambasas
partes.
Hutcheondefinetrêstiposdeambientescontextuaisemqueaironiaocorre.Sãoeles:
circunstancial, textual,e intertextual. Paraa teórica,quandoseinterpretaaironia é porque
pelo menos três elementos foram considerados: "as circunstâncias ou situação de
elocução/interpretação,otextodaelocuçãocomoumtodoeoutrosintertextosrelevantes"(p.
206).
O contexto "circunstancial" envolve a comunicação, a enunciação, tornando as
significações possíveis da ironia. Desse modo, a "'situação de enunciação' do dito, então
proporcionaocontextocircunstancialparaaativaçãodonãodito[sic]:quemestáatribuindoo
quê,aquem,quando,como,porquê,onde?"(p.206).
Ocontexto"textual"abarca"oambientetextualimediatoeaobracomoumtodo"(p.
207). Isso demonstra que, muitas vezes, o sentido irônico não é apreendido de maneira
imediatapelo/aleitor/aemumcontextoquelheéapresentado,poisaironiaaconteceatravés
do encadeamento de elementos – textuais, visuais, auditivos, sensoriais – em diferentes
contextos,demaneiracrescente.
30
Porfim,ocontexto"intertextual"édefinidocomoaquelequeé"compostodetodasas
outraselocuçõesrelevantesqueserelacionamcomainterpretaçãodaelocuçãoemquestão"
(p.207).Dessaforma,o/aleitor/asóteráoseucontextodeinterpretaçãoalteradoseperceber
os"outrosdiscursosqueforamintroduzidosnoqueestavasendointerpretado"(p.208).Essa
alteraçãoéapercepçãodaironia.
Linda Hutcheon afirma que os contextos irônicos muitas vezes são sinalizados por
marcadores. Estes são alguns sinais de que o/aautor/a se vale para sugeriros contextos e
marcar o efeito irônico, funcionando "como gatilhos para sugerir que o interpretador deve
estarabertoaoutrossignificadospossíveis"(p.221).
Osmarcadoresirônicosda ironiaverbalsão"paralingüísticos"(p.222)epodemser
"gesticulatórios", "fônicos" e "gráficos". Para a literatura, os sinais gráficos são os mais
evidentes,poisnotextoescritofreqüentementeencontram-se"aspasduplasesimples,itálicos,
diacríticos,pontosdeexclamação,pontosdeinterrogação,travessões,elipses,parênteses"(p.
223).Essessinaissimbolizamaironiadentrodeumcontextoespecífico,pois,paraaironia
acontecer,acomunidadediscursivaprecisareconhecerosmarcadorescomosendoirônicose
entãointerpretaroseusentidoemumcontextoparticular,afinal,"nadaéumsinalirônicoem
sieporsisó"(p.227).
Hutcheonreflete acerca da difícil tarefa de se teorizar sobre isso, porque o sentido
irônico não é percebido por receptores/as passivos/as, já que eles/as são agentes
interpretadores.Nessesentido,aironiaéalgomuitocomplexo,tantoparaquemaconstrói,
como, por exemplo, o/a autor/a, quanto para o/a leitor/a que a interpreta, sendo mais
complicadoaindaparao/ateórico/aqueseaventuraadesvendara"interseçãomomentâneado
'dito'edo'nãodito'"(p.285).
1.3–Otrágicocontemporâneoesuasacepções
A acepção do termo "trágico" tem sido uma preocupação constante entre os/as
teóricos/as da literatura, cujo propósito é a sua elucidação na contemporaneidade. A
concepçãodotrágicosofreualgumasmodificaçõeseadaptaçõesherdadasdatragédiaclássica
grega, no século V a.C. Por essa razão, busco algumas considerações teóricas específicas
sobreosentidodotrágico,medianteosestudosdeEmilStaiger(1997),YvesStalloni(2001),
GerdBornheim(1975)eAlbinLesky(1976),jáqueemsuasobrasapreocupaçãomaiorse
31
situajustamentenesteponto:aperspectivatrágicavivenciadapeloindivíduonasociedadeem
queestáinserido.
Ébastanterecorrenteaaproximaçãosemânticadostermos"trágico"e"tragédia"com
ogênero"dramático",namedidaemqueoparadigmaparaoentendimentodetaisconceitosé
a tragédia grega clássica. O estudo de Emil Staiger, Conceitos fundamentais da poética
(1997),apartirdadistinçãodosgênerosedesuasmarcassubstantivaseadjetivascontribui
paraaoesclarecimentodeaspectosfundamentaisenvolvidosnacaracterizaçãodotrágicona
contemporaneidade.Paraele,ossubstantivoslírica,épicaedramasãoclassificaçõesrelativas
àforma;aadjetivaçãolírico,épicoedramáticobuscaumadefiniçãoquantoàessência,ao
estilo da obra. Com a perspectiva filosófica acerca da linguagem, Staiger defende a
possibilidadedeumtextoliterárioparticipardeumneroliterárioporsuaespecificidadee,
deoutro,porsuaatmosfera.
Uma das características da arte moderna pauta-se na miscigenação dos gêneros,
havendoa predominânciadetraçosestilísticos deumdeterminadogênerosobre outro.Há,
pois,umaintercomunicaçãodosgêneros.Dessaforma,oteóricocontestaateoriaclássicados
gênerosliteráriosaoafirmarquenãoexiste
[...]empartealgumaumaobraquesejapuramentelírica,épicaoudramática.
Nossosestudos,aocontrário,levam-nosàconclusãodequequalquerobra
autênticaparticipaemdiferentesgrausemodosdostrêsgênerosliterários,e
dequeessadiferençadeparticipaçãovaiexplicaragrandemultiplicidadede
tiposjárealizadoshistoricamente(p.15).
Arespeitodoestilodramático,EmilStaigerdestacaque"oheróideumdramadeve
ser ativo; um herói passivo não é dramático" (p. 139), além de esse estilo manifestar "a
compreensão no sentido de um fato existencial" (p. 173). O gênero dramático está em
constantesintoniacomotrágico,demodoqueesteésempreumresultadopossíveldaquele.
Emrelaçãoaosentidodotrágico,Staigerprocuraesclarecerasdiferentesacepçõesdapalavra
"trágico".Apropósitodaquestãorefere:
A nova definição do conceito procura libertar-se de tal limitação. Não é
trágica,apenas,acrisedomundoidealistamasdequalquermundopossível,
antigo,burguês,cristãoougermânico.Ecomissonãonosreferimosapenas
à crise, mas a um fracasso irrecorrível, um desespero mortífero que não
visualizasalvação(p.148).
Paracomplementaraidéiaacima,elesalientaquenemtodaobraintitulada"tragédia"
pode ser considerada"trágica",poisosentidodotrágicoimplica, porpartedapersonagem
32
envolvida,avivênciadeuma"situação-limiteemqueserompemtodasasnormaseanula-sea
realidadehumana"(p.148).
ArelaçãodogênerodramáticocomatragédiaépontoelucidativotambémnaobraOs
Gênerosliterários,(2001),deYvesStalloni,aindaque,paraele,oestatutododramapossua
"umaestéticaespecífica"(p.65),eatragédiasejaaforma"quemaispareceaderiràsregras
donero"(p.72).Oautorconcluisuareflexãoafirmandoque"reconhecerogênerodeuma
obraé,inevitavelmente,recolocá-laaumsótemponaperspectivadahistórialiteráriaeda
críticaanalítica"(p.184),sendoimprescindível,portanto,experimentarasdiversasformasde
discursoparaacompreensãodasentrelinhasdeumaobraescrita.
Bornheim, em O sentido e a máscara (1975)
12
, discute no capítulo "Breves
observaçõessobreosentidodotrágicoeaevoluçãodotrágico"(1975),asorigensdotrágico,
sua evolução e conceituação na era moderna. Ele salienta que, para entender o
desenvolvimento do fenômeno trágico, é preciso estudar e entender a tragédia clássica,
discernindotrágicodetragédia:
Paraqueseutilizeapalavratragédia,bastaqueocorraumevento,mesmo
exterioràesferahumana,dotadodeumacertaintensidadenegativa.Assim,a
morteouumterremotosãosempretragédias.Tudosepassa,portanto,como
se o trágico tendesse a perder sentido, se tornasse difuso através de sua
dissolução,enquantoatragédiapropriamenteditapermanecerelegadaaorol
dascoisasamorfas(p.71).
Atragédia,então,nãodeveservistacomoumacontecimentodotadodeintensidade
negativa,mascomoalgoqueexpõesempreumasituaçãohumanalimite.Deve-se levar em
conta a dimensão trágica da realidade humana, pois "o homem como homem, em sua
condição,nãoétrágico"(p.72),masháalgumascoisasemsuaessênciaquepossibilitama
suavivência,comoasuafinitude,imperfeiçãoelimitaçãodosseres.Estesvalorespodemou
nãoservividosdemaneiratrágica,oqueemparteexplicaaexistênciadealgumasépocas
estaremespecialmenteatentasàmanifestaçãodotrágicoedeoutraspermaneceremcegasà
suarepresentatividade.
Um pressuposto fundamental da tragédia é a presença do herói/heroína trágico/a,
apesardenãoseresseoúnicopontoaelucidá-la,vistoqueéprecisoconsiderar"osentidoda
ordemdentrodaqualseinscreve"apersonagem.Sendoassim,nãoéoserhumanoporsisó
queseencontraderepenteemumasituaçãotrágica,énecessáriolevaremcontao"sentido
 
12
Aspáginasdascitaçõesaparecementreparêntesesesãotranscritasdestaedição.
33
queformaohorizonteexistencialdohomem"(p.73).Aãodevesercompreendidaapartir
doembatedoindivíduocomomundoeé"nomomentoemqueestesdoispólos,deummodo
imediatooumediato,entramemconflito,[que]temosaaçãotrágica"(p.74).
OutrofundamentodotrágicocomentadoporBornheiméaordempositivadoreal.O/a
herói/heroínatrágico/aviveentredoisextremos:averdadeeamentira."Odesenvolvimento
daaçãotrágicaconsistirianaprogressivadescobertadaverdade"(p.79),istoé,apersonagem
édestituídadesuaaparência,eaverdadeéreveladaapartirdosequívocosdesuasituação
mundana.
Paraoteórico,oconflitotrágicoderivadofatodeahumanidadeviverentreajustiçae
ainjustiça,entreosereaaparência.Asuaevolução,portanto,éadescobertadaaparênciaea
conquista conseqüente do ser. Toda tragédia procura demonstrar "qual é a medida do
homem",alémdeverificarseestaéencontrada"emsuaparticularidadeouseelaresideem
algo que o transcende" (p. 80), e o trágico acontece quando a medida, ou o equilíbrio
transcendeasuanatureza.Dessamaneira,"otrágicoresidenomodocomoaverdade(oua
mentira)dohomemédesvelada"(p.80),poisatragédiasurgesempre"condicionadaporcerta
situaçãohistórica"(p.82).
Segundo Bornheim, a tragédia moderna é essencialmente subjetiva, apesar de o
subjetivismo repeli-la. O trágico na contemporaneidade ocorre quando "a verdade do
indivíduonãoestánelemesmo,masnasubstânciatotalquenelesemanifesta"(p.84).Isso
acontecequandooserhumanoentraemconflitocomasuamedidatranscendente,demodo
que"ailusãoemqueviveoheróirepousanumdesconhecimentodesuaprópriarealidadeou
nateimosiadoparticular,comoindivíduo"(p.85).Énotranscendentequesevêamedida
do/a herói/heroína, no momento em que "o conflito trágico deixa de existir ou se torna
imperceptívelpara[ele/a]" (p.90).Oteóricoexplicaqueasociedademodernaédominada
pelo niilismo,em que oerro, portanto,não está somentena personagem trágica,afinal, "o
própriomundoéumescândalo"(p.89).
Para compreender o sentido do trágico na modernidade deve-se levar em conta
também o fato de a personagem estar envolvida em uma tragicidade cósmica e "todo seu
esforçoparasaberqualéasuaculparesultaemabsurdo"(p.90).Aspersonagensdemonstram
grandepreocupaçãoemseauto-afirmaremparavenceremesseabsurdo,afinal,apassagemda
desmedida para a medida acontece pelo estabelecimento do conflito trágico entre o ser
humanoeomundo.
Lesky,emAtragédiagrega(1976),complementaaidéiadeBornheinaodizerqueo
termo"trágico"continua"indicandoalgoqueultrapassaoslimitesdonormal"(p.22),ainda
34
que,apartirdoséculoXIX,"odesenvolvimentodatragédiaburguesapôsfimàidéiadeque
osprotagonistasdoacontecertrágicodeviamserreis,homensdeEstadoouheróis"(p.26).
Dessemodo,énecessárioconsideraro
[...]pontodevistamaishumanonumsentidomaistranscendente.Eemlugar
daaltacategoriasocialdosheróistrágicos,coloca-seagoraoutrorequisito
[...]: o que temos de sentir como trágico deve significar a queda de um
mundo ilusório de segurança e felicidade para o abismo da desgraça
iniludível(p.26).
UmdoscritériosapontadosporLeskyparaaconstituiçãodotrágicodizrespeitoao
impactoqueaapreensãodestedevecausarno/aleitor/a,queprecisaseinteressarpeloquelêe
ser, de certo modo, afetado/a. O teórico reforça essa situação com a idéia de que a
personagem
[...]emseutrágicodestino,nãopodefazeroutracoisasenãogritar,nãose
lamentarnemsequeixar,masgritaraplenospulmõesaquiloquenuncafoi
dito, aquilo que antes talvez nem se soubesse, e para nada: somente para
dizê-loasimesmo,paraensinar-seasimesmo(p.27).
O término de uma tragédia o necessita necessariamente coincidir com um final
aniquilador,emquenãosetenha"ummodofeliz"ouuma"reconciliação"(p.30).Asituação
trágicapodeterumsentidodereconciliação,aindaqueestejaem"contrastecomumavisão
absolutamentetrágicadomundo"(p.31),poisoimportanteéqueapersonagemconsigase
libertardadoredosofrimento.Dessemodo,"aconcepçãodaessênciadotrágicoéaomesmo
tempoumaboadosedevisãodemundo"(p.44).
Osentidodotrágicotemestadopresentenohorizonteartísticodahumanidade,desde
osprimórdios atéacontemporaneidade,justamenteporenvolver oque Leskyaponta: uma
visãodemundo.Entretanto,asvisõessãoalteradascomopassardotempo,fazendocomque
osentidodotrágicotambémsemodifique,ouao menos,sejaadaptado.Diferentementedo
conceitoadvindodoséculoV,otrágicopodeserverificadoemumaobracontemporâneasem
havernecessariamenteumherói–masculinodecaráterelevado,quecaiemerrotrágicopor
causadeseudestinointransponível,pois"o subjetivismo modernotornaapossibilidadedo
trágicoextremamenteproblemática"(BORNHEIM,1975,
p.89).
Asituaçãotrágicapodeservivenciadaporpersonagensdetodosostiposepercebida,
porexemplo,peloisolamentoesolidãoemqueseencontramaspessoas,oupelaexploração
doserpeloser,adecadênciadasordensfamiliares,religiosas,enfim,pordiversasquestões
35
que desestabilizam a visão de mundo que fora preconcebida no imaginário coletivo da
humanidade.
1.4–Literaturadeautoriafeminina:aquestãodogênero
A análise das personagens femininas dos contos de Karam é uma proposta que se
ampara naperspectiva degênero. Nessa medida,recorrofundamentalmenteaosestudos de
SusanaFunck(1994;2002),JoanScott(1990),RitaTerezinhaSchmidt(1994),MartaGordo
García (2007) e Maria Consuelo Campos (1997) pelo fato de estas teóricas discutirem a
conceituaçãodacategoriadegêneroesuaaplicaçãoàapreciaçãoliterária.
O gênero adquire várias perspectivas com a consolidação da Crítica Literária
Feministaapartirdosanos60doséculoXX.Maisprecisamentenadécadade1980,"coloca-
se em xeque o conceito de 'mulher'como uma categoria homogêneae questionaa mulher
brancaedeclassemédiacomorepresentaçãohegemônicadestacategoria"(FUNCK,2002,p.
94).Apartirdessaconcepção,otermo"gênero"passaasignificararelaçãoentrehomense
mulheres,que,segundoSusanaFunck(2002),foiumconceitodifundidonoBrasilatravésda
traduçãodoartigo"Gênero:umacategoriaútildeanálisehistórica"(1990),dahistoriadora
JoanScott,queovêcomoumaconstruçãosocialdossexos.
Nesseartigo,Scottquestionaosmotivosquelevamasmulheresapareceremsujeitos
históricosinvisíveis, quenuncaparticiparamdoseventosdahistóriahumana.Um modode
tentarrecuperarestasvozesfemininasabafadaséjustamenterepensaradefiniçãodegênero,
queateóricadivideemduaspartesconstituídasdediversassubpartesinterligadas:
Onúcleoessencialdadefiniçãorepousasobrearelaçãofundamentalentre
duasproposições:ogêneroéum elementoconstitutivoderelações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um
primeiromododedarsignificadoàsrelaçõesdepoder(p.14).
A questão de gênero acarreta mudanças nas representações de poder, de modo a
suscitar mais de um sentido possível aos textos literários em que tais representações são
tematizadas.Apolaridadeentrehomensemulheresdávisibilidadeàsrelaçõesdepoder,oque
levaasereconhecerocaráternegativoreferenteà"exclusão"eà"subordinação"femininas,
politicamentetraduzidascomo"discriminaçãodegênero"(MACEDO&AMARAL,2005,p.
36).
36
Scott acredita que essa categoria, pelo fato de ser um elemento constitutivo das
relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas pelos indivíduos, envolve quatro
elementos, que estão interligados. O primeiro diz respeito aos "símbolos culturalmente
disponíveisqueevocamrepresentaçõessimbólicas(ecomfreqüênciacontraditórias)"(p.14),
comoarepresentaçãooposicionalentreEva–pecadoraeimpura–eMaria–santa,resignada
e sofredora. O segundo elemento, integrado ao primeiro, coloca "em evidência as
interpretaçõesdosentidodossímbolos",geralmentepara"limitarecontersuaspossibilidades
metafóricas"(p.14).Arelaçãobináriadasoposiçõesqueossímbolosassumemépropagada
pelasinstituiçõessociaisesãoelesque,portanto,definemoqueémasculinoefeminino.
Ateóricasalientaqueaposiçãodominante–quetembasenosvaloresmasculinos–
relativaaogêneroévistacomoaúnicapossívelecorreta.Nessesentido,comumenteprocura-
sedifundiroqueamulherpodeeoquenãopodefazerdentrodasociedadeemquevive,mas
a nova pesquisa histórica tem o papelde desconstruirestes paradigmassociais tidoscomo
corretoseestanques.AspalavrasdeMacedoeAmaral(2005)ajustam-seaoposicionamento
deScottnoquetangeaodesconstrucionismodepensamentosconvencionaisqueconsideram
"omasculino/homemcomolegitimadoreasuasexualidadecomonorma,eofeminino/mulher
esuasexualidadecomovariação"(MACEDO&AMARAL,p.32).Todapesquisahistórica,
portanto,precisa"revelarascontradiçõesinerentesaodiscursopatriarcal"(p.32),afimde
que fique evidenciadoqueas mulheressão"capazes de ascenderàcondição desujeito,de
escrevertextosoudeadquirirasuaprópria'assinatura'"(p.32,grifonooriginal).
Sobreanovatarefadapesquisahistóricaacercada"diferença",Scottargumenta:
Odesafiodanovapesquisahistóricaéfazerexplodiressanoçãodefixidez,é
descobriranaturezadodebateoudarepressãoqueproduzemaaparênciade
uma permanência eterna na representação binária de gênero. Este tipo de
análise deve incluir uma noção política bem como uma referência às
instituiçõeseàorganizaçãosocial(p.15).
Essa"noçãopolítica",oterceiroelemento,dizrespeitoaaspectostaiscomoomercado
de trabalho, a educação e o sistema político, pois tais fatores, além de fazerem parte da
construçãosocial,agemde"maneiraamplamenteindependentedoparentesco"(p.15).Nessa
dimensão,"ousodacategoria degênero"nãoserefereapenas"ao sistema deparentesco",
que vê somente o universo doméstico e a família como únicos elementos que fundam a
organizaçãosocial.
O quarto elemento, a identidade subjetiva, refere-se à propagação da identidade de
gênero"unicamenteeuniversalmentefundadasobreomedodacastração",enquantoque"a
37
pertinênciadoquestionamentoénegada"(p.15),issoé,amulherévistacomonaturalmente
submissaao homem e não podesequerquestioná-lo. Maisuma vez o aporte deMacedo e
Amaral é oportuno, uma vez que elas esclarecem, de acordo com os estudos de Freud, o
complexo de castração está no inconsciente feminino, principalmente pela hostilidade
"reforçada pelasrestriçõesqueacultura impõe"(MACEDO & AMARAL,2005, p.16)às
mulheres, que acabam internalizandocertos conceitos referentesà sexualidade e à família.
Nesse sentido, reconhecer o complexo que envolve o "medo da castração" requer o
entendimentodeque
[...] a mulher irá ser considerada hostil à cultura, na medida em que esta
exigeodomínioearecusaaosdesejos,algoparaqueestaráescassamente
dotada. Por outro lado, sendo-nos descrita como a representante dos
interesses da sexualidade e da vida familiar [...], essa hostilidade ver-se-á
reforçadapelasrestriçõesqueaculturaimpõenessesdoisdomínios(p.16).
AsegundapartedoestudodeScottvisaàteorizaçãodogênero,paraquem,"ogênero
éumaprimeiramaneiradedarsignificadoàsrelaçõesdepoder[...]éumprimeirocampono
seiodoqual,oupormeiodoqual,opoderéarticulado"(p.16).
Osconceitosdepoderenvolvemogêneronamedidaemque,atravésdele,épossível
"decodificar o sentido" e "compreender as relações complexas entre diversas formas de
interaçãohumana"(p.16)emqueaspessoasestãoinseridas.
DevidoaofatodeScottdiscutirogênerosoboviéshistórico,seuestudovolta-seà
esfera política para exemplificar como as relações de poder são construídas ao longo dos
tempos,porsociedadesvárias.Nessaperspectiva,éprecisoverobinômiohomememulher
como"categoriasvaziasetransbordantes,poisque, quando parecemfixadas,elasrecebem,
apesardetudo,definiçõesalternativas,negadasouoprimidas"(p.19).
Para que o estudo de gênero seja realmente satisfatório, não basta reproduzir os
paradigmasqueonaturalmenteimpostosaossexos.Éprecisoanalisarosmotivossociais
que caracterizaram esses modelos, a fim de que os textos ficcionais tenham novas
perspectivas de análise, dotadas de uma visão política e social igualitárias para homens e
mulheres,incluindotambém"aclasseearaça"(p.19).
Autilizaçãodacategoriadegêneroacopladaànoçãodeclasseeraçapossibilitaaos
estudos literários uma ampliaçãonão só dotermo,como também um alargamento teórico-
semânticoarespeitodoqueé"sermulher".Nessesentido,aCríticaLiteráriaFeministapassa
a considerar o comportamento dos indivíduos, de modo a calcá-lo em aspectos culturais,
sociais e psicológicos, utilizando a palavra gênero "com o sentido de categoria sexual
38
socialmente construída" (MACEDO & AMARAL, 2005, p. 88) e o como uma
determinaçãobiológicaoucomoumaidentidadeestável.
Éprecisocompreenderaconcepçãodapalavra"mulher",acomodandosemelhançase
diferençasadvindasdoscontextoshistóricosdísparesaquecadapessoapertence.Ogênero,
portanto, é que organiza socialmente essas diferenças. Schmidt, no ensaio intitulado "Da
ginolatriaàgenologia:sobreafunçãoteóricaeapráticafeminista"(1994),vaiaoencontroda
segunda parte do trabalho de Scott, porque ela também reitera que a identidade política
comumimpõeàsmulheres"aconsciênciadadiferença"(p.23,grifonooriginal)emrelação
àquiloqueéfeitopeloshomens.Poressarazão,nãosepodeconcordarcomofatodequeo
discurso literário hegemônico masculino seja neutro, visto que todo sujeito, ao "conferir
significação ao real e autoconstruir-se no processo" (p. 25), traz as suas marcas de
subjetividade,quedevemserlevadasemconsideraçãopelo/aleitor/a.Alémdisso,emtermos
de crítica literária também não isenção ideológica, uma vez que "se houver uma
neutralizaçãodoagente,ocríticoacabarápercebendooseuobjeto(inclusiveotermoautor)
comoumaentidadeobjetivadaenãocomoresultadodeumaconstruçãooudeumprocesso
históricoexistencial"(p.27,grifonooriginal).
Sobreaidéiaanterior,Schmidtsalientaqueumdosfundamentosdacríticafeministaé
a"aberturaparaojogodediferençasnoníveldosujeitoenoníveldoobjeto,jogoesseque
interpenetra o processo de significação/interpretação/conhecimento" (p. 28) para com a
análise literária. Nessa medida, fica evidente que os interesses do sujeito "[determinam] a
formadoconhecimento"(p.29),eissoimplicainteressesespecíficosdos/asprodutores/asdo
discurso,quevariamseaposiçãoassumidaémasculinaoufeminina.
Paraacompreensãodogênerocomocategoriadeanáliseliterária,épertinentenãosó
a percepção diferenciada dos/as produtores/as do discurso ficcional, como alude Schmidt,
como também a averiguação dos diferentes modos de representação simbólica que cada
produção literária traz no âmbito diegético, a fim de verificar como estão construídas e
trabalhadastaisrelações.MartaGordoGarcía,emseuartigo"Géneroylibertad",explica:
Naredesimbólicaqueestabeleceosentidosocial,amulherseconverteem
umobjetocujoseréumserpercebido.Adominaçãomasculinatemoefeito
decolocarasmulheresemumestadopermanentedeinsegurançacorporal,
oumelhordizendo,dedependênciasimbólica(traduçãolivre).
13
 
13
Original:"Enlaredsimbólicaqueestableceelsentidosocial,lamujerseconvierteenunobjetocuyoseresun
ser percibido. La dominaciónmasculinatieneel efecto decolocar alas mujeresenunestadopermanentede
inseguridad corporal o, mejor dicho, de dependencia simbólica." Disponível em
<http://www.ucm.es/info/especulo/numero19/genero.html>.
39
Não só na literatura, mas também nela, a mulher freqüentemente é vista como
dependente do homem, principalmente pelo dado biológico, pois o corpo feminino acaba
sendo considerado sob o binômio objeto/reprodutor. A partir desse ponto, instaura-se a
relaçãodesubmissãofeminina,queenraízaoimagináriocoletivodosindivíduosarespeitodo
queésermulheremoposiçãoaoqueéserhomem.Dessemodo,àmulhercabeareprodução,
ocuidadocomosfilhosecomomarido,bemcomoozeloemrelaçãoaoambientedoméstico.
Ao homem, cabe a tarefa de prover o lar e proteger a mulher. Nessa relação socialmente
construída estão imbricadas relações de poder e dominação. O que se verifica nosestudos
críticos contemporâneossão discursos que conflitam o papel da mulher e o do homem na
sociedade,aindaqueemtermosdematériaficcionalesteembatesempreforarealizado.
Devidoaofatodemuitasmulheresestarempresasaindaàsuacondiçãode"fadado
lar",resignadascomoseumodoprivadodeviver,osdiscursosovariados,demodoquese
vislumbra,muitasvezes,umamulherdivididaentreopapelquelheforaimpostoeaqueleque
desejadesempenharouquedefatoexerce.Sobreaassunçãodogênerocomoumacategoria
fundamentalparaosestudosliterários,MariaConsueloCampos(1997)salientaqueocânone
ocidentaléformadoporestereótiposfemininosdicotomizantes,queoravêemamulhercomo
um ser angelical, ora como bruxa má. Esse cânone, até o momento da crítica feminista
pontuarseusconceitos,nãoeraquestionado,e,comisso,muitasmulheresnãofiguravamnos
estudosliterários.Nessamedida,passa-seaterumadesnaturalizaçãodessespapéis.Veja-seo
registro:
Dando voz aos silêncios, procedendo a "arqueologias" de obras e autoras
perdidas no tempo, resgatando do "esquecimento" e da exclusão, obras e
autorassejadesconhecidasatéentão,sejaobjetosdeclichêsedeapreciações
sumárias(p.129,grifonooriginal).
Ao tratar da categoria de gênero, Campos faz referência ao cânone literário
tradicionalmenteconstruídonoocidente.Essecruzamentoadquiresentido,namedidaemque
elaconsiderateroconceitodegêneropassadoporumarevisãonofinaldoséculoXX,oque,
conseqüentemente,levouasproduçõesliteráriaspublicadasatéentãoasofreremessemesmo
processo,demodoque
[...]aparticipaçãofemininaébastanteampliada,emnúmerosabsolutos,mas
tambémsãofeitasdescobertas,reediçõesdeobraspioneiras,etc,resultando
num ganho não apenas quantitativo (a entrada massiva da mulher na
literatura) mas, sobretudo, qualitativo, com tais resgates, reavaliações e
40
revisões.Abre-se,comisto,espaçoparaquesepossacolocaraquestãode
umatradiçãoliteráriafeminina(p.130).
A respeito dos estudos de gênero, no campo literário, há um conjunto de
posicionamentos críticos que se refere ao estabelecimento de uma estética feminista,
considerando o processo escrita/leitura uma totalidade: grande parte desses enfatiza a
produção.Porém,hátambémtrabalhoscujatônicarecaisobrealeitura.Nessesentido,Eliane
Campello(2003)refere:"Essessãodeparticularimportância,umavezqueconcorremcom
metodologiasou,pelomenos,comsugestõesdeformasdeajustarosinstrumentosdisponíveis
àanalise,parasepercorrer,commaioradequação,osveiosdotexto"(p.61).
UmadascríticasquepropõealgumassoluçõesviáveisdeleituraéNancyMiller,para
quem é preciso ler "contra o tecido da indiferenciação, para descobrir a incorporação na
escritaumasubjetividadegendrada,pararecuperardentrodarepresentaçãoosemblemasde
suaconstrução"(apudCAMPELLO,2003,p.61).Essemodelocríticobaseia-senapráticado
overreading(leralém),afimdequesedescubramneleasmarcasdaculturadegênero.
Nessamesmalinhadepensamento,PatrocínioSchweickartafirmaqueénaatividade
de leitura que se realiza uma práxis da literatura. Ao articular seu modo de leitura com o
paradigmadaleitoraqueinterferefundamentalmentenoprocessohermenêutico,tempor
objetivoarecuperaçãoeodesenvolvimentodaculturadamulher(apudCAMPELLO,2003,
p.61-62).
Em outras palavras, a leitura na perspectiva de gênero pode desvelar uma nova
configuraçãodaspersonagensfemininasnaliteraturadeautoriafeminina.
41
2–UMOLHARSOBREOSCONTOSDEVERAKARAM
2.1–Aimagemrefletida
OscontosdeHá umincêndio sob a chuva ralaapresentamafigurafemininacomo
centrodorelatooucomoelementofundamentalparaaconstruçãodasnarrativas.Nostextos
que passo a analisar individualmente, encontro mulheres que possuem voz própria, que se
mostram comosevêeminteriormente, queexpõemsuas característicase pensamentos sem
queissosejafeitoporoutro/a.
2.1.1 –"Há umincêndio sob achuva rala" – DentrodemimTEM umdia de sol,eu
tenhocerteza
Ocontointitulado"Háumincêndiosobachuvarala"(p.9
-
21)trazàtonaumairônica
históriaentredoisvizinhos. 
A narrativa inicia com a narradora dirigindo-se ao vizinho do apartamento em que
mora, dando-lhe"bom dia" (p. 9). Entretanto, não se estabeleceum diálogo entre os dois,
comoseespera,poisohomemnãorespondee,mesmoassim,elaseguefalando:
Será que o senhor poderia? O senhor é mudo? É surdo? Não... com essa
coleçãodediscosaí,surdoéqueosenhornãodeveser.Tudobem,osenhor
nãoquerfalar.Estánoseudireito.Masentãofaçagestosaomenos(p.9).
Aprotagonistaafirmaquefalacomum"senhor",enãocomum"moço"eaospoucos
descrevealgumascoisasquevisualizanointeriordoapartamentodovizinho,comoacoleção
de discos. A mulher,quenãoénomeada,exigedele umarespostaàssuasperguntas,pede
gestos, ao menos, ironizando que ele seja mudo. Ela demonstra querer apenas uma
informação: "O senhor pode me informar se daqui da sua área..." (p. 9). De repente, a
protagonistamudaorumodaconversaecomeçaafalardesuavida.
O que parece apenas uma história comum de um vizinho novo apresentando-se ao
outro,torna-seummonólogo
14
,nosentidogeraldotermo,emqueéreveladooíntimodoser
humano. Por meio da figura da vizinha (protagonista) percebem-se diversos problemas
 
14
Otermo"monólogo"estásendousado,aqui,deacordocomHughHolman(1981,p.276),queafirmasero
monólogo "uma composição, oral ou escrita, que apresenta o discurso de um único falante. Um solilóquio.
Qualquer discurso ou narrativa apresentada por uma pessoa somente" (tradução livre). Aproxima-se do
"monólogodramático",do"monólogointerior"edo"monodrama".
42
enfrentadospelaspessoas,comoosentimentodesolidãoedeisolamento,queela,deforma
implícita,expõe:"Porqueéqueninguémnuncaquerfalarcomigo?[...]eunãotenhocom
quem dividir nada, não é só o aluguel, não" (p. 10). Logo, aparecem outras dificuldades
enfrentadas por ela, que são relatadas incessantemente, como um desabafo de alguém que
precisacontarosseusproblemasaoutrem,semseimportarseooutroquerounãoouvir.O
tom de sua fala está carregado de um sentimento de autodepreciação, conferindo-lhe um
sentidoqueseaproximadotrágico.Alémdisso,afunção"autoprotetora"daironiaestápor
detrásdessaenunciação,queaprotagonistanãoselamentaapenascomoum"mecanismo
de defesa" (HUTCHEON, p. 80), pois sua "autodepreciação pode ser fingida" (p. 80), na
medida em que se mostra – ao final do conto – uma mulher que não tem a intenção de
reclamar da vida e ficar mergulhada em seus problemas, ao contrário, a sua ironia
"insinuante"ésubstituídaporumgesto"agressivo",afimdeconcluira"jogadadefensiva"(p.
80,grifonooriginal)quepropõeaovizinho.
Asquestõesrelatadasporelareforçamatragicidadeenvolvidanasituaçãoemquese
encontra: extrema solidão. Seu discurso, irônico, revela a mulher comum, seus defeitos,
falhas,bemcomoseusdesejosesonhos.Osquestionamentospessoaisqueelamesmasefaz
apontam para alguns traços comuns também à mulher contemporânea, como a solidão, a
ausênciadanoçãodefamília,afaltadeamoreaautocomiseração.Bornheimesclarecequea
açãotrágicanamodernidadesecaracterizaporuma"progressivadescobertadaverdade"(p.
79), sendo que, nesse conto, a heroína busca descobrir os motivos que determinam seu
comportamentopresente.
Esse processo de reflexão por que passa a personagem é apresentado de maneira
semelhante ao"solilóquio", na medidaem que ela não tem necessariamente a intenção de
estabelecerumdiálogo,mostrando-seinteressada,nãoemconheceromundo,masapenasasi
própria.Dessaforma,odiscurso,oatodafaladaprotagonistapareceficaremsuspenso,em
algunsmomentos,paramostraroquesepassaemsuamente.Quandoavizinhaafirmaque
não tem com quem dividir nada (p.10), ela reflete sobre a sua condição humana de ser
solitário,combinandoessa"consciênciainteriorcom[a]açãoexterior"(HUMPHREY,1976,
p.34),representadapelapropostadedividiralinhatelefônicacomovizinho.
43
A narradora autodiegética
15
 conta ao senhor que, antes de se mudar para aquele
apartamento,moraracomostios.Porém,eladesconfiaraqueelesnãoestavamgostandando
dasuapresençanacasa,devidoaofatodeelapreferirficarsozinhaafazercompanhiaaeles:
Vou contar um segredo para o senhor: eles não gostavam, não senhor.
Estavammefazendoumfavor.Queriamumapessoamais alegreeeusou
maisdogêneroparada,gostodeficarlendoasminhasrevistas,ouvindoo
meurádionoquarto.Eu,freqüentemente,nãotenhoassuntoeelesqueriam
certamente uma pessoa que desse um pouco de colorido às suas vidas já
descoloridaspelotempoeeutendomaisparaoopaco,osenhorconsegue
compreender?(p.10-11).
Aocontar"seusegredo",avizinharefleteacercadasuarelaçãocomostiosesobresi
própria.Oadjetivo"descoloridas"dáàfaladanarradoraumtomdeprejulgamentoacercada
velhice,nosentidodequenãohávida,nemgraçaquandoseéidoso/a.Entretanto,elamesma
seautodefinecomoumapessoacomtendênciaparao"opaco",assemelhando-seaostiosem
relaçãoaocomportamento,aindaquesejamaisjovemqueeles.Nessepontoperceboaunião
dotrágicocomoirônico,vistoque,quandoelaseintitula"opaca",aironiaficaevidentepela
interaçãoentre oqueestáexplícitoeoquenãoestá.SegundoHutcheon,osentidoirônico
"nãoé,assim,simplesmenteosentidonãoditoeonãodito[sic]nemsempreéumasimples
inversãoouoopostododito:eleésemprediferente–ooutrododitoemaisqueele"(p.30,
grifo no original). A narradora ironiza a sua situação aomesmo tempo em quevivencia o
trágico,poisdeixaimplícitaumavisãoamargaacercadesuavidaeadostiosidosos;todos
solitários.
Verifico tambémnapassagem citadaanteriormenteapresença dafunção"ética" da
ironia,denominadaporHutcheon,pois,quandoaprotagonistafornecetaisinformaçõessobre
os tios, ironiza a si própria. Essa função é a que garante a necessidade da personagem
feminina em "coordenar suposições sobre códigos e informações contextuais a que os
decodificadores terão acesso e que provavelmente usarão" (p. 174) para posteriormente
compreenderoseudiscurso.Os"decodificadores"podemserovizinhoeo/aleitor/a.
Nacontinuidadedoassuntosobreostioseladizaovizinhoquenotaraquandoelesjá
nãoqueriammaissuapresençanacasa,porém,nãotomaranenhumaatitudedevidoàfaltade
condições financeiras. Esse é um momentoimportante da narrativa, pois elaassume ter se
aproveitadodasituação,mesmopercebendoquesuapresençaeraindesejada.Alémdisso,ela
 
15
 Segundo Reis & Lopes (1987), "Designa a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa
específica:aquelaemqueonarradordahistóriarelataassuasprópriasexperiênciascomopersonagemcentral
dessahistória"(p.251).
44
demonstrasentir-setristeecansada,oquenãosóreforçaosentidodotermo"opaca",como
qualsedefine,comotambémcomprovaosentimentotrágicovivenciado.Talopacidadediz
respeito ainda à sua falta de iniciativa em mudar-se de residência, transferindo aostios as
característicasquesãodelamesma:"Elesestavamcontandoosdiasparaqueeufosseembora,
paraqueeuosdeixassenasuaprópriatristezaecansaço,oprecisavamdeajudaparaisso"
(p.11).
A protagonista fala rapidamente sobre seus amigos através de perguntas diretas ao
vizinho. Um dos pontos abordados por ela é o namoro:"Namorado?" (p. 12), pergunta ao
vizinho,comosereforçasse umaindagaçãoquelhetiverasidofeita.Aprotagonistaafirma
quetiveraumnamorado,maselereclamaraqueelafalavademaiseeramuitoexigente.Logo
a narradora retoma a posição de isolamento em que se encontra, dizendo que não tem
ninguémequeirámorarsozinhanaqueleapartamento.
Em meio àconversa elapede ao vizinho para ir atéa áreade serviço,voltando ao
motivo inicial da visita, porém interrompe a própria fala para perguntar-lhe se ele está
ouvindoumamúsicaquevemdelonge.Elagrita:"SERÁQUEDASUAÁREA..."(p.13),
mas a música ra, e ela também interrompe a frase, exigindo que o homemdiga alguma
coisa,quesecomportecomoumvizinhocomum,quesejaintrometido,segundoela,comoa
maioria:
Por favor, responda alguma coisa. Ou pergunte alguma coisa. Meta-se na
minha vida! Tenha curiosidade de saber quem é a nova vizinha do
apartamento de baixo! Seja um vizinho xereta! Intrometa-se! Reclame do
barulhodafuradeirahojedemanhã!Vamos!(p.13).
Asolidãodanarradoraécomprovadaporsuasreações,poisdemonstraternecessidade
deservistapelooutro,sentindo-sealijadaemrelaçãoàspessoascomquemconvive.
O telefone da protagonista toca e ela diz que deve ser engano. Logo ela oferece a
divisão do aluguel da linha telefônicaparao vizinho, que, se desejasse, poderiafazeruma
extensãodoapartamentodela.Anarradoraaparentementedemonstramaisumavezencontrar-
seemumestadodeprofundasolidão,poisafirmaquenãoseimportariaemouvirotoquedos
telefonemas dele, porqueera um meiodeela,pelomenos,ouviracampainhadoaparelho.
Sobreotelefoneseralugado,elareflete:"NADAémeu.Nuncanadafoimeu."(p.14).Essas
afirmativas reforçam a idéia da mulher solitária, despossuída, ou seja, o tem nada
substancial(coisasepessoas)quedemonstreasuaexistência.
45
A protagonista fala das utilidades que vê em ter um telefone em casa, citando o
exemplo de alguém querer desesperadamente falar com ela, porém diz que essa situação
nuncaacontecera,poiselanãoeradotipoque"levassealguémaodesespero"(p.14).Verifico
queaironiadesuafaladáinícioaosentidotrágicomaisagudodoconto,expressonofinalda
narrativa,emqueambasaspersonagensvivemummomentodeprofundatensão,sendoque
ela é quem percebe que "o trágico reside no modo como a verdade (ou a mentira) [...] é
desvelada"(BORNHEIM,1975,
p.80).Napassagem,"[...]Ninguéminterferenaminhavida,
[...]ninguémquertirarminhaliberdade,NINGUÉM.Souabsolutamentedonadomeunariz,
atéporqueninguémmaisseinteressouporele"(p.14,grifonooriginal),apersonagemfaz
questão de evidenciar que ela não deve satisfações de sua vida a ninguém, porque é
independente, parecendo lidar com esta situação de liberdade como uma condição
privilegiada.Entretanto,seudiscursopossuiumsentidotrágico-irôniconamedidaemqueela
afirma desfrutardessa situação porqueninguémmaisseinteressara por ela. Taldeclaração
evidenciaqueaprotagonistasesentefrustradaemrelaçãoaoamor,vistoqueelajátiveraum
namorado,masnopresenteestádescomprometida.
Otrágicomanifesta-seporqueelaenfrentanãosó"aquedadeummundoilusóriode
segurança e felicidade"(LESKY, 1976, p. 26), mas depara-se com "o abismo dadesgraça
iniludível" (p. 26).  A repetição do termo "ninguém", tendo este inclusive sofrido uma
alteraçãonaescrita–destacadoemcaixaalta–,éummarcador"gráfico"e"fônico"daironia,
pois ela se dirige supostamenteao seu ex-namorado, relação sugerida somente ao final da
narrativa. Dessa forma, o sentido irônico da elocução fica mais evidente se o contexto
"textual" já for de domínio do/a leitor/a. Para Hutcheon, todos os marcadores são apenas
"gestos de visibilidade" (p. 221) do sentido irônico, de modo que se não inferência do
contextointertextualdequeeleseramnamorados,nãoháironiaatribuída.
Anarradoracontinuaexigindoumareaçãodovizinho,queseguesemdizernada,sem
aomenosolhá-la.Mesmoassim,eladizquevaicontartodaavidadelaequeelepodefazero
quequiser,comoseelarealmentenãoestivesseali,afinal,elajáestavaacostumadacomo
desinteressedosoutrosehabituara-seafalarsozinha.
Aprotagonistapedequeovizinhonãoaabandonedepoisdeelaseapegaraele,nem
queparaissoelaprecisemudarseujeitodeser:
Eupossoserdiferente,seissofacilitarascoisas.Ésóeuteracerteza–seo
senhormedergarantiasmesmo–dequenãovaimeabandonardepoisdeeu
meapegaraosenhor–eumudo,eumeamoldo,eumeajeito,eumeadapto,
masnãováemboraantesdemedarumachance(p.17).
46
Ao dispor-se a adaptar seu comportamento ao do outro, ela ironiza a condição da
mulher perante o sexo masculino, pois faz um apelo ao vizinho, suplicando que não a
abandone.EssapassagemevidenciaoqueHutcheondefinecomo"característicarelacional"
da ironia. Diz respeitoaofato de aironia ser umaestratégia que opera entre"significados
(ditos,nãoditos),mastambémentrepessoas(ironistas,interpretadores,alvos)"(p.91),afim
dequesecriealgonovodentrodeumadimensãosocial.Nessesentido,aironiadaelocução
em questão revela e denuncia o trágico, que aqui se manifesta mediante a posição de
submissão e adaptação da mulher dentro do sistema patriarcal em que vive. Sobre essa
questão,esclareceHutcheon:
O significado irônico ocorre como conseqüência de uma relação, um
encontroperformativo,dinâmico,dediferentescriadoresdesignificado,mas
tambémdediferentessignificados,primeiro,comopropósitodecriaralgo
novoe,depois,[...]paradotá-lodaarestacríticadojulgamento(p.91).
Essaarestacríticaperfazafunçãoirônica"deoposição",poisodiscursodanarradora
demonstra "habilidade de contestar bitos mentais e de expressão dominantes"
(HUTCHEON,2000,p.83).Hutcheonexplicaqueessafunçãoenvolvegênero,raça,classee
sexualidade:
Paraaquelesposicionadosdentro deumaideologia,essacontestaçãopode
servista comoabusivaouameaçadora; paraaquelesmarginalizadoseque
trabalham para desfazer aquela dominação, ela pode ser subversiva ou
transgressora, nos sentidos mais novos, positivos, que essas palavras
tomaramemtextosrecentes[...](p.83,grifonooriginal).
A ironia no discurso da protagonista faz-se mediante a função de "oposição", pois
contesta uma ideologia patriarcal que vê a possibilidade de realização pessoal apenas no
relacionamentoamoroso,istoé,afelicidadefemininaadvémdohomem.
Ficaclaroqueamulherseencontranointeriordoapartamentodovizinho,quandoela
diz: "Mas o que é aquilo atrás daquela porta? Um jardim! Que lindo! E essas flores... Eu
adoroflores!..."(p.17,18).Eladizgostardefloresporque,diferentedecriançasebichos,as
plantasnãoprecisamgostardela.Maisumavezapersonagemfemininadeixaimplícitoseu
sentimento de solidão e alijamento em relação às pessoas que a cercam, pois se intitula
"sombria",sinônimoaproximadode"opaca".Entretanto,desnudandoseuinterior,elaafirma
categoricamente:
Ninguémacredita,masàsvezeseuficohorasolhandoparaoverdedeuma
árvore encostada no azul de um dia bonito. Eu sei que ninguém acredita
47
porqueeu sousombria,masdentro demimTEMumdiadesol,eutenho
certezadequetemumdiadesol!(p.18,grifonooriginal).
Nessetrechoépertinentefazerumaleiturasimbólicaparacompreenderosentidodos
vocábulos"sol"e"azul".Leia-seoqueafirmaMariadeMedeirosCosta(1996)arespeitodo
assunto:
Aleituradessemundoinconscientenãopodedeixardeladoossímbolos,por
seremeleslugaresondeseescondemossegredos.Ossímbolosmantêmuma
estreitaligaçãocomoreprimidoe,portanto,caracterizamosentidoocultoda
relaçãoentreoquesemanifestaeoqueestálatente(p.22).
Anarradora,aoafirmarqueàsvezesficaencostadanoazuldeumdiabonito,remete
o/a leitor/a à "idéia de eternidade tranqüila e altaneira, que é sobre-humana ou inumana"
(CHEVALIER&GHEERBRANT,2003,p.1007),demonstrandosuaatraçãoparaoinfinito,
comoseelaevadisseemalgunsmomentosedeixasseseussentimentosnegativoseamargos
de lado. Entretanto,acorazul"em certaspráticasaberrantes, podeatémesmosignificar o
cúmulo da passividade e da renúncia" (p. 109). Isso é o que ironicamente o seu discurso
aponta,vistoqueaprotagonistanãotemcomocaracterísticaapassividade,aocontrário,ela
busca vingar-se. Arepetição do verbo "tem" é umsinalestrutural da ironia, marcadopelo
contrastedapalavra"sol"comoqueelarealmentefazeé.Essaelocuçãonãopossuisomente
um marcador "gráfico", pois, segundo Hutcheon, há marcadores que "têm o potencial de
funcionartantometaironicamente,dessamaneira,comoestruturalmente[possibilitandoquea
ironia]aconteçaemtermossemânticoseavaliadores"(p.223).
AteóricaMariaHelenaMendonça(1991),calcadanosconceitosjungianos,esclarece
queosol,porserum
[...]elementoredondo,estariarelacionadocoma"mandala"(círculomágico)
doshindus:umcírculodivididoemquatro,portantoumsímboloquádruplo
que designa simbolicamente o "átomo nuclear" da psique humana [que
representa]atãodesejadaintegraçãopsicológica(p.32,grifonooriginal).
Osímbolodosolparaaprotagonistadestanarrativaaparececomoalgodesconhecido
ainda,nãohavendoessaintegraçãopsicológica,masasuabusca.Mesmoelaafirmandoter
certeza de que dentro dela há um dia de sol, isso não a torna completamente integrada
psicologicamente, pois demonstra uma visão amarga da vida em virtude da
incomunicabilidadequeacerca,preferindonãorelacionar-secomaspessoase,quandoisso
acontece,elapensaquea"ouviriamporpena"(p.17):"Sóparaeuterailusãodequeestou
48
me dirigindo a outro ser humano e não às habituais paredes do meu quarto" (p. 15). Seu
discursoeavisãoqueosoutrostêmdelacorroboramofatodeasuaimageminteriortornar-se
momentaneamente ensolarada, embora seja geralmente sombria. Realizo essa leitura com
basenasimbologiadasombra,jáqueseus"atosimpulsivoseincontrolados"(CHEVALIER
& GHEERBRANT, 2003, p. 843) estão presentes em suas ações e comportamentos
assumidosparacomovizinho.
Aprotagonistacontaqueforaapaixonadaporumvizinho–aparentementeumaoutra
pessoa,distintadoseuinterlocutor–eque,naépoca,muitonervosa,foraaomédico,quelhe
receitouumansiolítico.Destasituação,elaconclui,ironicamente:"oamoracabacommeia
dúzia de caixinhas de tarja preta." (p. 19). A impossibilidade de realização amorosa, uma
característica talvez da contemporaneidade, parece estar evidenciada nessa passagem. A
ironia da frase acarretaum sentidotrágico implícito à condição submissa da mulher, pois,
afinal,"asregrasdojogosocial,[...]vitimizamamulher,querepresentasempreoladofraco"
(XAVIER, 1998, p. 66). Além disso, é possível perceber a ironia imbricada ao trágico,
quandoumrelacionamentoévistocomoalgodescartável.Essesentimentoédestacadopela
figuramasculina–médico–,reforçandoaquestãodegênero.Aoreproduzirafaladomédico
comcomprimidosdetarjapretaoamoracaba,anarradorareforçatambémaidéiadeque
a ausênciade um relacionamentoamorosopode levaramulher aum estadodedepressão,
entretanto, para o homem, essa questão é vista de maneira simplista, aparentemente sem
sofrimento.
Nodecorrerdanarrativa,ovizinhodirige-seaobanheiroeaprotagonistapedequeele
nãoentreláporquequercontinuaraconversa:
Ondeéqueosenhorvai?Não...aíeunãopossoentrar.Mastomeseubanho
descansado, eu espero aqui, eu não tenho nada para fazer hoje: é ponto
facultativo.Eu espero... euestouacostumada aesperar,principalmentedo
ladodefora.
Nemimaginooqueéqueeuvousentirnodiaemqueme
deixarementrar.Serárealmentetãobomquantoeuimagino?(p.19).
Asituação,apesardehilária,encerraumaspectocentraldodramadaprotagonista.Ela
reafirma sua passividade frente a normas e impedimentos sociais, além de sua exclusão.
Porém,maisdoqueisso,nessapassageméenfatizada,simbolicamente,aidéiadequeelaestá
fora – de lugares, bem como dos pensamentos e dos sentimentos das pessoas com quem
convive.Ojogosemânticoqueseestabeleceentreo"estarfora"eo"medeixarementrar"
reforçaafaltadeaceitação,seuvaziointeriore,conseqüentemente,suaânsiaemseraceitae
49
amada,talvez.Porisso,essacenaseencerracomaexplicitaçãodeumdesejo(queadeixem
entrar),quepodeserimaginado,poisaindaénão-vivido.
Devidoaofatodeelanãopoderentrarnessecômodo,logomudadeassunto.Emum
cantodoapartamentoelaencontraumabarataedizaosenhorquehápoucosdiasencontrara
umanoapartamentodela,masnãoquismatá-laporqueaviacomoumacompanhia.Comesse
comportamento aparentemente absurdo, a vizinha demonstra um profundo sentimento de
isolamento.Paraela,oimportanteéestarcercada poralgumacoisaquetenhavida, quese
mova,ajudando-aadisfarçarasolidãoprofundaemqueseencontra.Essacenapodeservista
como um intertexto do romance de Clarice Lispector, intitulado A paixão segundo G. H.
(1998), pois, ainda que de modos particularizados, ambas as protagonistas dividem a
companhiacomumabarata.Sendoassim,odiscursodaprotagonistade"Háumincêndiosob
achuvarala"adquireumafeiçãoirônicaestabelecidamedianteo"ambienteintertextual",em
que"outrosdiscursosforamintroduzidosnoqueestavasendointerpretado"(HUTCHEON,
2000,p.208)apenascomotrágico.
No final da narrativa, o vizinho surge bem vestido e a protagonista diz estar lhe
reconhecendo.Elaassumequeolharaáreadeserviçoforaumpretextopara"puxarassunto",
afinal,"novosvizinhosestãosemprequerendofazeramizadeeparaissoperguntamqualquer
coisa[...]"(p.20).Derepente,elamudaaconversaeconclui:"Masnósnãotemostempo,não
émesmo?Avidamodernaémesmoumaloucuraeocorre-correnãonospermiteolharpara
quemestádolado,oulogoali,literalmentebatendonanossaporta"(p.20-21).
Odesfechodanarrativaocorrequandoanarradorarevelaasuaidentidadeaovizinho,
emmeioaumareflexãopessoalsobrea"vidamoderna"(p.21),que,paraela,éaresponsável
pornãoconsiderarmososoutrosdemaneiraafetiva,mesmoqueaspessoasestejampedindo
ajuda:
A não ser, é claro, que essa pessoa resolva tomar medidas drásticas para
chamar nossa atenção, ou então, como foi o caso agora, descubra-se que
essa, que até então julgávamos desconhecida, é aquela mesma pessoa que
fizemos de boba quando era mocinha e não queríamos nos comprometer
porqueumacoitadadessas, vindadeondeveio, sempai nemmãe,sónos
atrapalhariaavidaequandonosdamoscontadequeméquetemosànossa
frente,sónosrestapedirsocorro,paraversealguémnosouveenoslivra
dessalouca(p.21).
Quandoanarradorarevelaasuaidentidade,anarrativaintensificaotomdesuspense,
que vai até as últimas palavras da protagonista. Não se tem mais uma história entre dois
vizinhos, mas uma história entre dois ex-namorados, em que a mulher fora abandonada.
50
Porém, com a situação posta às claras, é possível que "daqui pra frente, exista uma nova
trajetóriaasercumpridaporumnovoser,agoraidentificado"(MENDONÇA,1991,p.37).O
sentidoirônicododiscursodaprotagonistaémarcadoporcomentáriosmetalingüísticosque
reforçamseutomdedebocheemrelaçãoaovizinho.Umexemploéaexpressão"éclaro",
quepor"solicitarabertamenteainferênciadeironia"(HUTCHEON,2000,p.223),intensifica
tambémasuafunção"agregadora",jáqueapersonagemfemininaestáagoraemumaposição
depodereautoridade.
Alguns pressupostos vêm à tona ao final do conto como, por exemplo, o
comportamentoestranhodealguémnãoresponderanenhumaperguntaemumasituaçãoem
quedeveriaseestabelecerumdiálogodireto.Umaleiturapossíveléqueafaltadeconversa
entre os dois interlocutores ocorre porque o vizinho desde o início reconhece a narradora
como a sua ex-namorada e o quer contrariá-la. Essa visão somente pode ser obtida nas
últimaslinhasdotexto,quandoeladizquemé.Portanto,aidentidadereveladaéapeçachave
paraoentendimentodahistória.Ovizinho,porsuavez,apenasaguardaapreensivamenteo
desenrolardosfatos.
O final do conto fica em aberto, pois não está explícito se ela atira no vizinho
(possívelex-namorado),seaarmaestárealmentecarregada,ouseéatémesmodebrinquedo.
Oquenãoépossívelsaberéseela,desdeoiníciodoencontro,mostraaarmaqueportaouse
isso ocorre somente no momento derradeiro da conversa. Essas possibilidades não são
esclarecidas porque nãoimplicamaconstruçãodapersonagemfeminina.Saberquemé,de
fato, o vizinho e o queacontece no final do encontro oaltera o estado de abandono da
protagonista:elaéofoco.Dessaforma,ovizinhopodeaindaserumarepresentaçãodafigura
masculina, no sentido universal, despossuído de uma única identidade, ou seja, pode
simbolizartodososhomens.Oquerestaexplicitadoéodesejodevingançadessamulhereo
trágicovividoporela,trabalhadoscomironiaparasuscitaradúvidaeareflexãodequemlê.
O final ilustra um dos traços modernos deste conto, pois ele "não conduz à resolução do
problema" (BITTENCOURT, 1999, p. 155). São mostradas apenas ascausas que levam a
narradoraaagirdetalmaneira,masoseuúltimoatoeasconseqüênciasadvindasdelesão
deixadasemaberto,justamenteparao/aleitor/aconcluiroquepossateracontecidoepoder
refletiracercadasrelaçõesdegêneronacontemporaneidade.
Épossívelperceber,doinícioaofimdoconto,asupremaciadapersonagemfeminina,
poisasaçõeseasfalasestãosobseudomínio.Ovizinhonãodizumapalavradurantetodaa
narrativa,talvezporquereconheceraamulher,e,defato,havialhecausadoummal,como
sugereestapassagememqueelaafirma:"[...]ouentão,comofoiocasoagora,descubra-se
51
que essa, queaté então julgávamos desconhecida, é aquela mesma pessoa que fizemos de
bobaquandoeramocinha..."(p.21).
Nesteconto,amulher,vítimadarigidezdasrelaçõesdegênero,buscasuaidentidade
existencial
16
.Elatemconsciênciadoqueé,doquefoinopassado,doqueestáfazendoeas
conseqüências de seus atos presentes. A ironia serve também para suavizar as impressões
impactantantesdo/aleitor/a,confundindo-o/aaomesmotempo,poisnestejogointerpretativo,
ela éachave da narrativa, que abre as portas paraumfinaltrágicoerevelador,tantopara
quem,quantoparaovizinho,queaospoucosdescobreoverdadeiromotivodaquelavisita:
avingança.
Aprotagonistade"Háumincêndiosobachuvarala"relatasuaproblemáticapartindo
deumuniversofragmentado.Estepodeserpercebidonãosópeloconteúdodoseudiscurso,
mas pela formaque ele adquire, pois emalguns momentosas idéiasimbricam-se umas às
outras pela profundididade psicológica que o discurso assume. Esse tipo de discurso
possibilita a inclusão deste conto na vertente temática intitulada por Gilda Bittencourt de
"existencial-intimista", pois "a ordenação e a interpretação da vida surgem da própria
personagem comoser individual,na sua consciência, nos seus pensamentos e também nas
suaspalavraseações"(p.93).Alémdisso,estavertentecaracteriza-seinclusivenoscontos
emque"osdiálogossão,naverdade,monólogos,poisoqueumapersonagemfalanãotem
nadaavercomarespostadointerlocutor,agindocomosefossemsurdos"(p.106).
O discurso da protagonista assume essa configuração na medida em que ela busca
mostrar-see se autoconhecer. É através de suas divagaçõese reflexões que o texto ganha
consistência.Pode-sedizerque"nãoháuma'história'sendocontada,massimumconjunto
fragmentáriodeminitextos,constituindoumverdadeiromosaico"(p.170),demodoque,do
inícioaofimdanarrativa,o/aleitor/ajuntaaspeçasparaconstruirumuniversoqueéformado
pelosvaloresdofeminino,sendopermeadopelobinômio:solidãoversusvingança.
Além dessa vertente,há tambema"social", poisé explorada a relação humana nas
maisvariadasformas:afamiliar,aamorosaeaindividual.Essastrêsesferasoabordadas
sob umaperspectiva histórica, "dotada de uma visão crítica aguçada" (p. 74)da sociedade
contemporânea.Dessaforma,a competitividade,aincomunicabilidadeeaasolidãosãoos
motescentraisdanarrativa.
 
16
Otermo"identidade"é utilizadodiversasvezesao longodestadissertação,sendoentendido nãocomo um
conceitoisolado,"masem relaçãoaoconceitodediferença",vistoqueimplica"nanecessidadede deixarem
abertoaquestãodadiferençasexualenquantoprodutoculturalmenteconstruído",enfatizando"acontradição,a
deslocaçãoeamudança"(MACEDO&AMARAL,2005,p.101).
52
A vertente "existencial-intimista" corrobora a utilização de uma consciência
"introvertida", pois a narrativa volta-se para si mesma, na medida em que a narradora
autodiegéticafazumaanáliseintrospectiva,buscandoaauto-investigação.Bittencourtexplica
que essa consciência ocorre quando o/a narrador/a é "preferencialmente autodiegético,
relatando,comopersonagemcentral,umaexperiênciaqueanalisaemprofundidade,emseus
mínimosdetalhes"(p.192).
Aconsciêniaintrovertidadanarradoraestáemumestágiointermediárioemrelaçãoà
distância"entreosdois'eus'[danarrativaintrospectiva]"(p.195),poisaprotagonistaligaseu
"eu"dopassadoao"eu"dopresentediegético,demonstrando,assim,asmesmasinquietações
deoutrora."Somentenofinaldámostrasdeestabelecerumcertodistanciamento"(p.196),
porquerevelasuaposturadetransgressora,indodeencontroaoseujeitopacíficoeporvezes
submisso,mantidoemseupassado.Essecomportamentoindicaapresençadeoutrotipode
consciência:a"contraditória",poiséaprotagonistaquemorganizaamatériaficcional,éela
quem "[liga e integra] num só conjunto fatos dispersos" (p. 211), e é a sua palavra que
"[certifica] o leitor sobre a veracidade daquilo que é narrado" (p. 211). Sendo assim, é
possívelperceberquesetratadeumaconsciênciatambém"irônica",poisumsinaldeironiaé
adesconfiaado/aleitor/aemrelaçãoafrasesduvidosasdo/anarrador/a.
Nestetextoháinúmerasmarcasqueocaracterizamcomoportadordeumaconsciência
"irônica"
17
.Umfatorimportanteéquenãoháumdesenvolvimentocausalelinear,devidoàs
interrupçõesdanarradora,quecontaaovizinhofatosdeseupassado.Entretanto,essaspausas
nãoestãoforadecontexto,elasseguem–namentedaprotagonista–,umalinhaderaciocínio
que não deixa o texto prejudicado em sua lógica interna.Tais pausas são as lembranças e
reflexõesqueaprotagonistaincluiemseudiscurso,comoumtipodediálogoemqueháa
presençadeumeueumtu,poisestáclaroqueseudiscursoéconstruídoapartirdodiscurso
dooutro:
E o senhor pode continuar fazendo a barba, arrumando os discos – que
coleção,hein?–,passandoassuascamisas,tudocomoseeunãoestivesse
aqui.Issoénormalnaminhavida.Aspessoasmedeixamfalarecontinuam
bembelasnosseusafazeres.Sabeaquelafamosafrase:"vaifalandoqueeu
tôteouvindo",queaspessoassempredizemquandonãoestãoprestandoa
mínimaatenção?(p.15-16,grifonooriginal).
 
17
Como todos os contos de Vera Karam analisados nesta dissertação possuem forte feição irônica e,
conseqüentementeconsciênciasirônicas,esseaspectoseráanalisadocombasenospostuladosteóricosdeLinda
Hutcheon(2000).
53
Aconstruçãodopensamentodaprotagonistafaz-semedianteaconclusãoaquechega
acerca do relacionamento humano. Calcada na indiferença do outro, ela constrói uma
cosmovisãoestritamente pessimista, ao mesmo tempo em que ironicamente demonstra não
ver uma solução para os problemas, que de tão freqüentes parecem ser considerados
"normais",afinal:"Éassimqueaspessoassão"(p.16).
Éimportantefrisarquepelofatodeanarradoraservistaemseumovimentointerior,
elaestávinculadaàhistóriasocialeculturaldesuaépoca,oumelhor,estáatreladaaosideais
da mulher brasileira, de classe média, que busca firmar-se nesta sociedade competitiva e
individualistadofinaldoséculoXX.Issoédemonstradonodecorrerdetodaanarrativaenão
terminacomofinaldoconto,poisestapersonagemnãoestáacabada,masemprocessode
autoconstrução,lutandoparanãosedeixarmodelarereprimirpelarealidadequeacerca.Sua
luta pessoal é permeada pela tragicidade de sua condição humana, encarada por ela com
ironia.
Apersonagemfemininade"Háumincêndiosobachuvarala""[sabe]queoamornão
é tudo na vida", pensamento ironicamente implícitoem alguns momentos de seu discurso.
Mascomofora"[criada]paraamareservir,éprecisoempreenderaduraaprendizagemda
independência, que não exclui o amor, mas lhe a sua verdadeira dimensão" (XAVIER,
1998,p.62-63).
Essa dimensão, paraa protagonista,apresenta-sedemaneira dupla, pois ela"viveo
drama damulher libertada na sociedadecontemporânea",quejá podemorarsozinha,optar
pornãoterfamília,terseuemprego.Dessemodo,aprotagonistaprocuratambém"viverseu
'destino de mulher' e realizar sua 'vocação de ser humano', ambição esta tornada possível
graçasàevoluçãodoscostumes"(p.63).Porém,afigurafemininao"[aceita]asregrasdo
jogo, porque são sufocantes e repressoras; [quer] viver plenamente e [acaba condenada] à
solidão"(p.63).Éesseosentidotrágicoqueexperencia:umimpasseentreseroquedesejae
aquilo que lhe é permitido. Portanto, resta-lhe a violência, pois a agressãoé o modo mais
extremo que a protagonista encontra para tentar impor o que pensa, requerendo a sua
individualidadeeodireitodeserfeliz.
Essadualidadeestáexpressanotítulodoconto,"Háumincêndiosobachuvarala"
18
,
que remete à visualização de uma cena: um incêndio debaixo de um céu chuvoso. A
aproximação de dois termos antitéticos
fogo e água
explica a própria imagem que a
 
18
Otítulodestecontoéumversodamúsica"Bluesdapiedade",deCazuza.Essacançãoéumafaixadoálbum
Ideologia, lançado em 1988 pela Polygram. Letra disponível em:
<http://www.cazuza.com.br/sec_discogra_letra.php?language=pt_BR&id=25>.
54
protagonistareflete:"Euseiqueninguémacreditaporqueeusousombria,masdentrodemim
TEMumdiadesol,eutenhocertezadequetemumdiadesol!"(p.18).
A"chuva rala"podeserumarepresentaçãodaaparência dapersonagemfeminina.
No conto, está implícito que ninguém gosta da protagonista, ninguém se importa com ela,
visto que a sua aparência é sombria. Entretanto, a sua essência, marcada pela presença
simbólicado"diadesol"edo"incêndio",podesugerirarepresentaçãodeumamulhermeiga,
sensível e até alegre, que está pronta para amar e ser amada. É por meio do discurso da
protagonistaqueKaramimprimeumaltograudepoeticidade,pois,quandoanarradoraafirma
quefica"[...]olhandoparaoverdedeumaárvoreencostadanoazuldeumdiabonito[...]"(p.
18)porquedentrodelaháum"diadesol",suafalaquebraotomásperoevingativodetodoo
conto. É neste ponto que a protagonista deixa aflorar sua essência, que ela semostra "por
dentro",queelaespelha,refleteaimagemdeseuinterior,aserdescobertaainda.Porisso,ao
mesmotempoemqueelaparecegritar,pedelicençaparaentrarnoapartamentodosuposto
vizinho, e essa atitude, metaforicamente, corresponde a implorar ao outro que se aproxime
delaeaconheça,paraqueelapossadesvelaresse"sol"abafadodentrodela.
2.1.2–"Visitaàvovó"TudoqueestiverACIMAdonormal,ouABAIXOdonormal,
enfim,queNÃOFORNORMAL,estáerrado
Atramade"Visitaàvovó"(p.29-38)
envolveoambientefamiliar,istoé,revelacertos
valores hipócritasde uma família declasse média. A narrativa écentrada nas personagens
femininas:umaavópaterna,umamãe/noraeumafilha/neta.
Noiníciodocontoanarradoraautodiegética(mãe)perguntaàfilhaMariaLaura(que
estátrancadanobanheiro)seelaestáprontaparairemvisitaraavópaterna.Amãe,dolado
deforadobanheiro,falaininterruptamentecomamenina,que,porestarmorta,nãoresponde.
Instaura-se,nesse momento, um monólogoconduzido pela protagonista, que pede pressa à
filha,justificando-secombasenocomportamentodaavó:"Tuestáscansadadesaberquea
tuaavódetestaatrasos.Elatemhoracertaparaalmoçarenãotoleraquandoascoisassaemdo
lugar"(p.29).
No decorrer das explanações da narradora é possível perceber que se trata de uma
famíliadeclasseprivilegiada,poiselas–mãeefilha–possuemumaempregadadoméstica,
chamada "Zeni" (p. 29)e um motorista particular chamado"Seu Carlos" (p.32). Além de
terem empregados, ambas freqüentam salões de beleza, como verifico nesta passagem:
55
"Quando foi aúltima vezque tu foi aocabeleireiro?FazerumBOMtratamento,euquero
dizer.Tupodiasmuitobemteridoontemcomigo"(p.30,grifonooriginal).
Anarradorafalacomafilhacriticando-aaolongodetodooseudiscurso.Reclamado
jeito como se veste, do modo como cuida do cabelo e do corpo e lhe recomenda sempre
moldar-seaosgostosdaavó:"Depoisatuaavóreclamadatuaaparênciaeeuficocomcara
detacho"(p.30).
NotrechoemqueamãecomentaqueopesodeMariaLauraestáacimadonormal,há
umaquebrananarrativa,poisanarradorafazumapausaparaumareflexãogeneralizante:"E
tudo que estiver ACIMA do normal, ou ABAIXO do normal, enfim, que NÃO FOR
NORMAL,estáerrado"(p.30,grifonooriginal).Alémdecriticarafilha,elaexpõesuavisão
acercadascoisasqueencara como"normal",demonstrando,ironicamente, queasociedade
contemporânea usa do relativismo quando tem de estabelecer valores de certo e errado, e
geralmenteapontaoqueéerradonasoutraspessoas.Interpretandodessamaneira,amãepode
servistacomoumametáforairônicadessasociedadecaóticaehipócrita,jáquesuasatitudes–
como as de tantas pessoas são sempre justificadas, encaradas como corretas e normais.
Porém,ocomportamentodafilhaedasdemaispessoaséerradoporquenãosão"normais",
fogem a uma convenção social. A ironia torna-se mais evidente pelo uso dos marcadores
irônicos "gráficos", que são também "fônicos". Os termos destacados em caixa alta
expressam, na oralidade, um aumento notom davozda narradora, considerando que "[...]
nadaéumsinalirônicoemsieporsisó"(p.227),conformedestacaHutcheon.Otomdevoz
elevadoéumsinalirônicodemarcadodentrodessasituaçãoespecífica,emqueodiscursoda
narradorabalizaumasituaçãopermanentedecríticaeinsatisfação,eotomaltivodesuafalaé
umaconseqüênciapossíveldeseuestadodeinquietude.
A citação marcada graficamente parece, em primeira instância, apresentar a função
"reforçadora" da ironia, que serve apenas "para destacar alguma coisa, digamos, na
conversaçãocotidiana"(p.77).Porém,essafunçãocarecede"muitaagudezacrítica"(p.77),
e o discurso da narradora se configura justamente por ser ambíguo, exercendo a função
"complicadora".Essa "pode incluir uma modalidade reflexiva, emitindo um 'chamado para
interpretação'"(p.78).O/Aleitor/aéconvidado/aarepensarosvaloresdasociedadeemque
vive,refletindoacercadosparâmetrosde"normalidade"queomeioimpõe.
Aprotagonista,aoreferir-seaopesodafilha,escolhearoupaqueestadeveusarpara
visitaraavó,determinandoqueMariaLaurauseumvestidoxadrez,poisele"ébomporque
emagrece"(p.29).Apreocupaçãoéasogranãopensarqueanetaestágrávida,e,comroupas
mais justas, isso poderia ser sugerido, ainda que não seja esta a situação. Um possível
56
comentáriodessetipodesestabilizariaanarradora,poiselaafirmaqueaavó"temumolhopra
issoqueDeusquemeperdoe.Eumorrodemedodaqueleolho[...]".Eladizquesemprefora
alvodecríticadasogra,jáqueseudiscursopassaaserconstruídocomoverbonopretérito
imperfeito,caracterizandoumasituaçãoaindanãoconcluídanopresente:"Elameanalisava
decimaabaixocomaqueleolhãodela..."(p.30-31).Nessapassagem,alémdeoolhoseruma
metonímiadasogra,elerepresentasimbolicamenteo"terceiroolho",istoé,"seosdoisolhos
físicoscorrespondemaoSole àLua,oterceiroolhocorrespondeaofogo.Seuolharreduz
tudo a cinzas" (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2003, p. 654). A simbologia do olho
condizcomaposturadasogra,poiselacriticatudoetodos,deformaaprovocarmedonas
pessoas queacercam, principalmentenanora/narradora que, porreceio de ser"reduzidaa
cinzas"(ficarsemdinheiro),procurafazersempre"milmalabarismos"(p.31)paraevitaruma
reprovaçãoquegereasuspensãodamesadadadapelasogra.
AsconvençõessociaissãopostasemxequeporVeraKaramnesteconto,acomeçar
por subverter a ordem comumente aceita de que é o homem quem deve manter
financeiramenteafamília.Ouniversoficcionalde"Visitaàvovó"émarcadopelaausênciado
pai e pela desestruturação familiar. A partir daí decorrem muitos conflitos entre as
personagensfemininas:avópaterna,mãeefilha.Elasrepresentammetonimicamenteacrise
dosvaloresdasociedademoderna,emqueorelativismoéusadoparajustificarasrelaçõesde
poder.
Para anarradora,ocasamentopor conveniênciaparece gerarmais conflitos do que
satisfação,jáqueelaassumeviverumavidasobpressão,tantodomarido,quantodasogra:
Oteupaimediziaqueasoutrasnamoradasqueelelevouláantesdemim
não abriam a boca. Morriam de medo dela. Aí, é claro que ela não
respeitava.Porisso,gostoudemim.Euenfrentava.Deigualparaigual.Mas
é claro que eu conhecia os meus limites e não ia além deles. Mostrava
respeito,consciênciadomeulugarali.Masnuncamedo.Oteupaitambém
meorientousempre.Diziaoqueeupodiaeoquenãopodiafalar(p.33).
Os papéis tradicionais da família patriarcal estão invertidos, visto que o pai é
consideradoumfracassado,enquantoqueasmulheresassumem,decertaforma,aliderança.
Aavóéamantenedora,poiscomumamesadasustentaafamíliadofilho:"Eeladiziaassim
mesmo: MESADA, que era para ficar mais humilhante. Podia dizer 'rendimentos', por
exemplo.Masdizia'mesada'"(p.35,grifonooriginal).Odestaquedadoaotermo"mesada"é
ummarcadorirônico"gráfico"utilizadoparademonstrarqueaposiçãodehumilhaçãoquea
sograimpunhaànoraépercebidaporela,poisreproduzessediscursodandoênfaseaessa
57
palavra,orapelagrafiaemmaiúscula–marcadortambém"fônico",poisdenotaelevaçãono
tomdavoz–,oracomarepetiçãodotermodestacadoentreaspas.
Anarradorademonstra-seambíguaemrelaçãoaoseucomportamento,oraseintitula
independente,oramostra-secomoalguémquesedeixaoprimir.Suaindependênciaémantida
somente até o momento do namoro com o pai de sua filha, pois ela morara sozinha e se
sustentava:"[...]eutrabalhavaforanaquelaépocae ganhavamais oumenosbem"(p. 31).
Entretanto, quando ela começa a namorar, vislumbra no casamento uma possibilidade de
ascensãosocial,aindaqueseusustentosejaprovidopelasogra.Paraconseguiresseobjetivo,
elaacataasordens,manias,críticasehumilhaçõesdasogra.
A protagonista deixa implícito que avalia as pessoas pelo aspecto exterior e pela
posiçãosocialqueocupam,istoé,peloqueelaspossuemmaterialmente.Aofalaràfilhaque
opai–falecido(cometerasuicídio)foraumfracoequenuncatrabalhara,eladiznãosaber
queeleeraassimeexplica:"Comoéqueeupodiasaber?Umapessoacomaquelesobrenome,
comaquelamãe...e...comaquelamesada..."(p.34).Seudiscursoevidenciaapreocupação
comostatussocial,poiselaseimportacomosobrenomedafamíliadomarido,muitomais
doquecomonome,comosvaloresindividuaisqueelepossui.Dessamaneira,nemela,nem
omaridoenemasograsãonomeados,possivelmenteporque"onome,aonomearaspessoas,
lhesconfereidentidade,eosobrenomecomplementaessaidentidadecomaherançafamiliar"
(XAVIER,1998,p.93).Essastrêspersonagenssão,emcertamedida,seresdesprovidosde
identidade, no sentido de serem manipuláveis, pois"o próprio anonimato das personagens
evidencia a sua exemplaridade como tipos representativos da sociedade burguesa
contemporânea"(BITTENCOURT,1999,p.102).Emoposição,apersonagemMariaLaura,
por ser nomeada, adquire uma identidade, que lhe é única e suas atitudes denotam essa
individualidade:elatemumestiloprópriodevestir-se,deportar-se,enfim, demonstrauma
insubmissãoàideologiadominante.
AleituradonomeMariaLauraépertinenteparaacompreensãodaimportânciadessa
personagem no desenvolvimento da narrativa. Seu primeiro nome significa "força vital e
vontade de viver"
19
. As mulheres quecarregamessenome"por vezes sãoforçadasa pedir
auxíliopararesoluçãodosmuitosproblemasquetêmdeenfrentarnavidaeparaagüentara
dor". "Laura" designa aquelas "pessoas que se deixam dominar por sentimentos
contraditórios"e"àsvezesumaradicalsolidãoasdetém".Onomedaadolescente,portanto,
revela,demaneirairônica,oseucomportamento,porqueosignificadodoprimeironomevai
 
19
Os significados dos nomes que estão entre aspas foram transcritos do site www.mulhervirtual.com.br.
/nomes/nomes.htm,consultadoem20ago.2007.
58
de encontro ao segundo. É o nome "Laura" que mais se ajusta ao comportamento dessa
personagem,poiselasesuicidapornãoagüentarseusproblemas,poraparentementeviverna
solidão, principalmente no âmbito familiar, no contato com a e e com a avó. A ironia
atribuída ao nome da filha é percebida se o contexto "intertextual" – responsável pelo
significado universal desse nome – for de conhecimento do/a leitor/a, de modo que é
necessáriorelacionaroqueeledenotadentrodocontexto"textual",parapercebersignificados
notododiegético.
Évisívelquerelaçõesdepodereopressãoseestabelecemnesteconto,masnãosetrata
deumpodermasculinosobreumaesferafeminina.Sãoasmulheresquedisputamaliderança
efazempartedeumasociedadeemqueopodereacompetitividadepermeiamasrelações
humanas.Odiagramaaseguirilustraessaquestão.
OcentrododiagramaelucidaqueMariaLauraéoprimidapelaavóepelamãe,sendo
considerada por esta como alguém que representa o lado fraco e decadente da família. A
narradoraexplicaqueelaédiferente,poisdiz:"Ecompetênciafoioquenuncamefaltou.Eu
pensei,tinhaesperanças,quetufossepuxaramim.o:puxouaele.Quedecepção"(p.34).
Aspalavrasdamãeoprimemafilha,masocomportamentoqueanarradoramantémexplicita,
poroutrolado,suacondiçãodeoprimida:aavó/sograéquemtempodersobreanora.Nessa
escalahumana,éaavóqueocupaotopo,poissuasordensrecaemsobreasduaspersonagens
femininas. Entretanto, a avó que oprime também se sente acuada pela sociedade – que
igualmenteimpõeleiseestabeleceparadigmasdecomportamentoparahomensemulheres.
Acriseexistencialdafilhaémarcadaporumaprofundasensaçãodeperda.Alémde
elanãotermaispai,vêqueseumododeserestásendomodificadopelasimposiçõesdamãee
da avó. Isso é evidente porque Maria Laura não pode falar o que pensa, afinal, ela deve
obediência à mãe, e, conseqüentemente à avó, que "é a dona de tudo!" (p. 32).Não pode
sociedade
avó/sogra
mãe/nora
filha/neta
59
sequer se vestir como deseja, com "jeans rasgado" (p. 29), nem usar "esmalte marrom ou
unhaspostiças"(p.31).
Areferênciaàsunhasdaadolescenteéumaimportantepistaparaacompreensãode
suaposiçãonanarrativa.Anarradorarevelaqueafilharóiasunhas,ouusapostiças.Ambas
as situaçõessão consideradas reprováveis,poisa avó"detestatantounha comprida quanto
unharoída"(p.31).Dentremuitassimbologiasatribuídasàsmãos,éelucidativaapassagem
queasliga"aoconhecimento,àvisão,poiselastêmcomofimalinguagem"(CHEVALIER&
GHEERBRANT,2003,p.592).Aalusãoàsunhaspodeserumasimbologiadosentimentode
alijamentodapersonagem.Aoroê-las,demonstraqueosepreocupacomaaparência,com
avaidade,aopassoqueaoutilizarunhaspostiçasretomaessafeminilidade,masdemaneira
temporária,comoumempréstimo,jáqueasunhasnãosãonaturais.
Essesentimentoderevoltacomospadrõessociaisfemininosnaturalizadostambémse
manifestaemMariaLauraatravésdeseu"cabelotododesgrenhado"(p.30),poistalimagem,
"demodogeral,parecetratar-sedeumarenúnciaàs limitaçõeseàsconvençõesdodestino
individual, da vida comum, da ordem social" (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2003, p.
153).
Outro momento em que verifico o silenciamento forçado vivido pela adolescente
ocorrequandoelarealizaumaborto,supostamentepressionadapelamãe.Issoseevidenciana
passagememquea narradora dizàfilhaqueaavóperguntouporqueelaengordaratanto,
vistoqueestranharaocrescimentodesuabarriga(p.36).Ainiciativadefazeroabortoparece
serdamãe,jáqueelaafirmaqueumdiaafilhairálheagradecer:"Achouestranhaaquela
barriguinha...Bom,masnisso,felizmente,nósjádemosjeito.Empoucotempojáiacomeçar
adarnavista.Tuaindavaimeagradecer"(p.36).
Apartirdessarevelaçãosurgeoutra:paiefilhapossuemos"nervosfrágeis"(p.36).A
narradoradeclaraqueoabortofoiasoluçãodeumproblema,porémnãoesperavaqueisso
fossedeixarMariaLauracomabalospsicológicos,aindamaisqueopaisesuicidaraapóso
aborto.Elagostariadequeomarido"tivesseumpoucomaisdeiniciativa"(p.36)emrelação
a isso, mas ele se suicida, ato que revela não só o lado fraco do pai, como o declínio do
patriarcado. A iniciativa exigida do marido é o fato de ele se impor com a mãe sobre a
gravidezdafilha,assumindotodasascríticaseconseqüênciasqueaavópossivelmentefaria.
Entretanto,ironicamentesevêumpaisemautoridade,commedodamãe.Aironiaaquise
evidenciaquandoanarradorapersonagemdizqueaexigênciaaomaridoforaatendida:"[...]
teveainiciativadedarcabodaprópriavida.Foiaprimeiracoisaqueeledecidiuemmaisde
quarentaanosdeexistência.Eaúltima"(p.36).
60
Maria Laura vive o drama da adolescente liberada na sociedade contemporânea;
divididaentreviverseudestinodeobediênciaàmãe,àavó,àsconvençõescomportamentaise
moraisdasociedadeerealizarasuaprópriavontade,queéterpoderdedecisãosobreseus
atosegostos.Pornãoaceitarcertasregrasrepressoras,afilhaélevadaàmortenofinalda
narrativa,comoseosuicídiofosseaúnicamaneiradesalvação.
Nestecontoestáevidenteapresençadeummatriarcado,emqueafiguramaternalda
avó/sogra"determinaalinhadedescendência"(MACEDO&AMARAL,2005,p.126),eas
ações das demais personagens, principalmenteda nora e da neta, demonstram que há uma
microsociedadesendolideradapormulheres,emoposiçãoàsituaçãodesignadapelotermo
"patriarcado".Nesteuniverso,centradonaspersonagensfemininas,háinúmerosconflitosque
envolvemanarradora/noraeafilha/neta.Aavóéaúnicapersonagemqueaparentementenão
sofrenenhumabalo,vistoquenãohárevelaçõesacercadeseuspontosfracos,decepçõese
tristezas. Entretanto, ela também sofre com as regras do jogo social, que vitimizam os
indivíduos.
É possível concluir que "Visita à vovó" busca "na estrutura familiar as raízes do
passado[...]paraaíassinalarocotidianofeminino"(COSTA,1996,p.16),masaquelesque
procuraram transgredir o queé comumenteaceito pela sociedade,muitas vezes pagam um
preçoaltodemais.Opaitransgridequandosubmetesuafamíliaàsvontadeseaosustentoda
mãepormaisdequinzeanos,fatocondenávelemumasociedadepatriarcal.Afilhatransgride
quando desobedece à mãe em relação à sua aparência. Ambos não agüentam a pressão
familiar e social e se suicidam, enquanto que a avó e sua nora mantêm-se aparentemente
inabaláveis. Porém, a narradora, que tem o objetivo de manter uma vida financeiramente
estável através do casamento, vê, aos poucos, que seu empreendimento foi se esvaindo.
Primeiro, o marido – herdeiro direto da mãe rica – morre e, por fim, sua filha, também
herdeira,sesuicida,deixandoamãenasolidãoenamiséria,jáquenãoterianinguémmais
quealigasseàavó.Sobreestaúltimanãoéreveladoodestino,apenasestásugeridoqueela
nãomantémumarelaçãosinceracomseusfamiliares,devidoaoseujeitoautoritáriodeser,
descritopelanora.
É importante destacar que o discurso da narradora, construído através de um
flashback,oservesomenteparaelacontarsobresuavidaàfilha,masprincipalmentepara
elaterumaoportunidadedeautoconhecimento,ficandoevidentequeanarradorasemprese
utilizaradedissimulaçõesparaconseguiroquequeria.Aofalaràfilhasobreaépocaemque
era namorada de seu pai, ela revela uma idéia dupla de simesma: mostra-se submissa ao
mesmotempoemquesedizindependenteedonadesuasvontades:
61
Cadavezqueialá[...]Elameanalisavadecimaabaixocomaqueleolhão
dela,masnãoconseguiaencontrarumdefeito.[...]Oteupaimeorientava
direitinho:essablusanão![...]Láiaeuremexernoguarda-roupa,tudooutra
vez(p.30-31).
Essa passagem demonstra que, no passado, a protagonista ocupara a posição de
oprimida, vítima das ordens do marido e do autoritarismo da sogra. No presente – tempo
diegético–,asituaçãoinverte-seeelaassumeolugardeopressora,namedidaemqueobriga
afilhaasesubmeteràsvontadesdaavó,comoelamesmafezefaz,apesardeironicamente
admitirqueéinteresseirasomenteàfilhamorta.OaportedeHutcheonilustraessaquestão,
pois,segundoela,àsvezesaironiademonstraumaoposiçãorelacionaldealguémqueseacha
opressivodentrodeumsistema.Nessesentido,anarradora,porassumiropapeldacriadora
da ironia, fica de fora, em uma posição de poder para com a filha.Além disso, o próprio
sistemaemqueaprotagonistaseinseretrazosentidoirônico,emrelaçãoàvisãopatriarcalde
mundoqueasociedadetem,sendonecessário,portanto,considerarasdimensõessemânticae
sintáticadaironianoqueserefere"aosaspectossocial,históricoeculturaldeseuscontextos
deempregoeatribuição"(HUTCHEON,2000,
p.36).Dessaforma,aironiasefazpormeio
deumaintenção"psicoestética",poisestamodalidade"refere-seàopiniãodequeaintenção
agecomoagarantiadecontroleconsciente–emtermosquerdepsicologia,querdearte"(p.
173),sendoodiscursodaprotagonistaaltamentecontrolador,assimcomoodasogra.
O reconhecimento da submissão da narradora à sogra está ironicamente marcado
quandoserevoltacomofatodeomaridonãoteragidodeforma diferente,isto é,nãoter
impedidoasituaçãodesubordinação porquepassaraafamília.Aoafirmarqueeleeraum
fracoeoassumiraseupapeldeprovedor,aprotagonistaironicamenteadmiteessaposição
deusurpadora,afimdedesfrutardasbenessesqueodinheirodasogralheproporcionaria.
O sentido do trágico nesse conto não está na morte física das personagens, mas na
anulação identitária, pois a narradora vivencia a perda de sua identidade ao longo de suas
ações,quesãocomentadascomafilha.Elaperdepartedesiquandopáradetrabalharese
moldaaoscaprichosdesuasogra.Resta,então,umamulhersolitária,desprovidadefamília,
detrabalhoedebensmateriais,quevive"entregueaoconflitoquederivadoentrelaçamento
doseredaaparência"(BORNHEIM,
1975,p.78).
Costuma-se atribuir o sentido do trágico somente àquilo que acontece com o/a
herói/heroína, mas a ação trágica moderna faz-se também por meio deste/a. Em "Visita à
vovó", a narradora/heroína é a geradora dos conflitos e, de certa forma, a causadora das
62
mortes do marido e da filha. Portanto, o sentido do trágico é experenciado por todas as
personagens, mas conduzido pelas ações da protagonista. Ao encontrar a filha morta no
banheiro,amãeviveasituaçãomaisextremadeseusentimentoganancioso.Anarradoradiz:
MeuDeusdocéu...quehorror!Essasmanchas...opisonovinho...nãofaz
nemum mêsquefoicolocadoessepisobranquinho...eu tinhacismacom
pisoclaro,porcausadele...reluteiemcolocarbrancoeagora...MeuDeus...
Vaificarmanchadodevermelhoprasempre...prasempre...prasempre!Eo
queépior...équeatuaavónunca,masnunca,nuncavaimeperdoar(p.38).
É possível perceber que, ao preocupar-se com o "piso novo", ela desconsidera o
suicídiodafilha.Assim,"amorteédiscutidacombanalidadeoqueampliaograudeemoção
edecompromissoassociadoàironia"(FONSECA,2005,p.64).Quandoanarradoraafirma
queopisovaificarmanchadodevermelhoparasempre,elaestátambémesclarecendoqueo
maridosesuicidaranobanheiro.Entretanto,oqueparaelaparecesermaisproblemáticoé
que a sogra não a perdoará, e isso significa a perda total de seu sustento. O descaso
demonstradopelaprotagonistapodeservistocomofrutodeumavidaemqueosvaloresestão
deturpados.Anecessidadedecontrolarafilhaedesedeixarcontrolarpelasograéquelevaa
narradoraateressecomportamentofrioecalculistadiantedosuicídiodeMariaLaura.
Todas as considerações feitas pela protagonista sustentam a presença da vertente
"existencial-intimista", pois a narradora busca a sua autorealização (em termos materiais,
somente)tantonoaspectoparticular,quantonogeral.Eladesejausufruirdoconfortoqueo
dinheiro da sogralhe proporciona, não sópara garantir o seusustento,comotambémpara
assegurarumaposãoprivilegiadanasociedadeemquevive.
Devidoaofatodeatramaemergirdasreflexõeseaçõesdanarradora,essavertente"se
confirma [também] por haver uma subjetividade posta em evidência" (BITTENCOURT,
1999,p.95).Nessamedida,observa-se"aanálisedesimesmo,noesforçodeinvestigaras
mínimas reações diante dos fatos, e a busca incessante do autoconhecimento" (p. 95) são
percebidas em "Visita à vovó", mediante a inversão das funções de gênero habitualmente
aceitas, isto é, "[...] ao homem se atribui a dominação, a iniciativa, a racionalidade, a
independência; à mulher cabem a submissão, a dependência, a emotividade e,
conseqüentemente,ainferioridade"(p.100).
Atribuo também a esse conto a vertente "social", pois as representações de poder
manifestam-seemtermosparticularesesociais:afamíliaéamicrosociedadequereproduzos
valores da macro sociedade. As relações humanas demonstram estar desgastadas na
63
contemporaneidade,demodoquesevêemindivíduosmarcadospor"problemasdoexercício
dopoder,darepressão,dasliberdadesindividuaisdocidadão,etc."(p.74).Sendoassim,há
[...] um desencanto generalizado quanto à sinceridade das relações
interpessoais;aamizadeeatéoamorsãopostossobsuspeitanamedidaem
queointeressepessoal,aambiçãoeaganânciaestãosempreàfrente(p.78).
Aconsciêncianarrativaéessencialmente"introvertida",poisosfatossãonarradosem
profundidade pela narradora autodiegética, que, por ter preocupações com o
autoconhecimento, centraliza "no 'eu' todas as derivações do ato narrativo, como o único
objetivodocontar"(p.196).Dessaforma,tudooqueéreveladoacercadouniversoficcional
edasoutraspersonagenssefazmedianteasuavisão.
Ao tematizar a crise da instituição familiar e a falsa imagem dessa estrutura, a
narradorade"Visitaàvovó"temcomo
[...]únicaobsessão[aconstruçãode]umafamíliasólidaeindestrutível,de
identidadeconhecidaereconhecidaportodaasociedade.Éessaidentidade
queelaperseguecomoumaformadesalvação:dandooritmodacasaeda
família, estaria salvando a aparente integridade [desta] e a si própria
(COSTA,1996,p.48).
O discurso da protagonista tem também a presença de uma tênue consciência
"contraditória", pois, por meio de sua fala, ela organiza verbalmente a matéria ficcional e
autenticaaquiloqueédito.Tudooquesesabevemdessaconsciência,demodoque,através
da ironia, ficam implícitas algumas contradições da narradora. Essas dizem respeito
principalmenteàsordensquedáàfilha,instruindo-aparafazeroqueaavódeseja.Poroutro
lado,aprotagonista,quesedizindependente,faztudooqueasograespera,comaintençãode
nãoperderamesadaqueasustenta.Todaanarrativaépermeadaporidasevindastemporais,
afimdequeopassadodanarradoraesclareçaoseucomportamentonopresente,bemcomoo
dafilha.
Recuperar a sua integridade e garantir o seu espaço é o objetivo mais explícito da
narradora. É manipulandoseu discurso que procura atingir seusobjetivos individuais, com
vistaaformarasuaprópriaimagem,aindaqueestanãoasatisfaça.
64
2.1.3–"Avidaalheia"–Aausênciadesofrimentojáéalgumafelicidade(talvezaúnica
quesepodealmejar)
Anarradoranãonomeadade"Avidaalheia"(p.63-71)éaprotagonistadanarrativa,
que relata sua vida, desde quando morara em um convento, quando criança, até seu
casamento. A narrativa desenvolve-se em um tempo passado, baseada nas memórias da
protagonista,que,aoremontarassituaçõesdesuavida,procuradesnudarasimesma.oé
possívelsabersuaidadequandocomeçaosrelatos.Porém,depreende-seque,quandovivera
noconvento,eramaltratadaeconsideradaempregadadasfreiras,"emtrocadeestudo,uma
cama(dura)ecomida(contada)"(p.63).Pelofatodeelaserórfãenãoteroutrolugarpara
morar,acreditavaterdeaceitaraquelascondições.
Anarradoraautodiegéticarelataqueforaadotadaporumafamíliacompostadepai,
mãe eduasirmãsdamesmafaixaetáriadela.Aosairdoconventoelanãosedespededas
freirasporque,apesardeelaslheteremdadoabrigo,faziam-nasofrerconstantemente, pois
havia"sempreashumilhações,oscastigos,adívidaexposta" (p.64).Elarememoraalguns
momentosemqueviveracomanovafamíliaantesdecasar-se.Suaslembrançassãoexpostas
a um interlocutor oidentificado, de modo que o passado revisitado funcionacomo uma
reflexãoacercadeseucomportamentoeodeseusfamiliares.
A protagonista assume uma posição externa,jáque podeanalisar os fatos passados
comumavisãomaisamadurecida,dealguémquenãomoramaiscomafamíliaequeno
presentediegéticoseencontracasada.Entretanto,asconsideraçõesqueexpõeemseudiscurso
são cuidadosamente selecionadas, pois, ao final do conto, é possível compreender em que
medidaalgunsfatosmarcaramodesenvolvimentodesuapersonalidade.Aironiapresenteem
seudiscursoconstitui-seemumelementonorteadorqueenriqueceahistóriaeforneceabase
paraasuacompreensão.
Voltada à época em que morara com o pai, a mãe e as duas irmãs adotivas, a
protagonistade"Avidaalheia"refletesobreessetempo,considerando-sefeliz,aindaqueisso
sejarelativizado.Diferentementedeseusentimentoparacomasfreiras,emrelaçãoàfamília
adotivaelasesentegrata,poisnão"levavareguadanasmãos"(p.64)eoprecisavamais
"ajoelharparalavaroslongoscorredoresdoconvento"(p.65).Afelicidadeparaelaconsiste
emosofrer,idéiaconformistaquecarregaparaavidainteira,comoseverificanaseguinte
passagem:"[...]achoquedatadestaépocaaidéiaquecomeçouaseformaremmimdequea
ausênciadesofrimentojáéalgumafelicidade(talvezaúnicaquesepodealmejar)"(p.65).
65
Orelacionamentodanarradoracomseusfamiliareséexpostodemaneiracifrada,pois
naaparênciadodiscursoháumamulhersatisfeitacomavidaquetiveraquandosolteira,mas
nas entrelinhas percebe-se a presença de uma mulher marginalizada em sua relação com
distintos grupos sociais. Essa distinção entre o dito e o implícito atesta a ambigüidade da
protagonistaque,aovoltar-seàssuasmemórias,expõeotipoderelacionamentoquetivera
comasduasirmãs–AnaeMarcinha–,comamãe–chamadaporelade"Madrinha"ecomo
pai–o"SeuCardoso".Emtomresignadoelarelataarotinadafamília:
Estavabom:euouviamúsicacomoasoutrasduas,liaosgibisqueelasme
davam depois de lerem, ia ao supermercado com a Madrinha e era tão
divertido;elamefaziaconfidências,tínhamossegredossónossosenessas
horasnãoimportavaseasoutrasduaseramfilhasdeverdadeounão,porque
eusabiadecoisasqueelasnemsonhavam(p.65).
Percebo na passagem acima que o discurso da narradora é irônico ao se referir ao
convívio familiar, porque entre os ditos e os não-ditos – parafraseando Hutcheon – está a
configuração de uma felicidade aparente, pois a personagem é destituída de um
relacionamentoigualitáriodentrodafamília,vistoqueosdireitosquetemcomofilhaeirmãa
colocamemumaposiçãodiferenciada,denotandoinferioridade.Terodireitodeouvirmúsica
e de ler os gibis das irmãs é um exemplo de que a protagonista não é tratada em pé de
igualdade,poisessessósãolidosporelaapósasmeninasnãoosquereremmais.Porém,o
fatodeamãefazer-lheconfidênciasconfereànarradoraumaposãoprivilegiadadentroda
casa,poiselaseconsideraimportanteeúnica,jáque asfilhasbiológicasodesfrutamas
intimidadesdamãe.
Alguns sinais textuais presentes em seu discurso funcionam estruturalmente para
marcar"umsignificado'real'intencionadopeloironista"(HUTCHEON,2000,
p.227,grifo
nooriginal).Umexemploéarepetiçãodaexpressão"asoutrasduas",referenteàsirmãsda
narradora.EssetipodeênfasetextualéchamadoporHutcheondecategoriade"repetição"ou
"mensão ecoante"(p.224)ecaracteriza-sepelodestaque dado a uma palavra ou fraseque
deseja apontar para um sentido irônico. Comumente se atribui a essa categoria a única
maneirapossívelparaaformaçãodaironia;porém,ateóricaexplicaqueestaéaformamais
utilizada, pois repetirpropositalmente uma expressão chama a atenção do/aleitor/a parao
sentidoqueestásendopostoemevidência.Referir-seàsirmãscomo"asoutrasduas"temum
aspectodeexclusãomomentânea,comoseelasironicamentenãofizessempartedafamília.
Parareforçaraidéiadequeelasesentemembrodafamília,aprotagonistacontacomo
sãoasnoitesdebadoemqueasirmãssaemparafestas,eelaficaemcasasozinhacomos
66
pais.Esseéummomentomuitoespecialporqueelaimaginaserfilhaúnica,atéahoraemque
asirmãsretornam,eafantasiatermina:
Eusabiaqueaquelasnoitesentrenóstrêsnãoeramarealidade:eunãoera
filha única (como eu ficava imaginando até as meninas chegarem e tudo
ficarevidente);nemfilhadeleseuera,masnãofaziamal(p.66).
Asirmãsaconvidamparairàsfestas–aindaquenãoinsistam–,maselanãoaceitao
convite porque"não [sabe] dançarjunto.E[prefere] mesmo ficar em casa vendotelevisão
comaMadrinhaeoseuCardoso"(p.65).Elanãotemumavidasocialcomoadasirmãs,
MarcinhaeAna.Suarotinaresume-seemficaremcasa,iraosupermercadocomamãeeter
momentosrarosdelazer,queoocompartilhadoscomasirmãs.Umaocasiãoquelheé
significativaocorreaossábadosànoite,emquenãoficacomossobejosdasirmãs,poissevê
tratada com igualdade. Nesse dia da semana, quando as irmãs vão para festas noturnas, a
protagonista e os pais fazem pizza emcasa, conversam bastante e assistem à televisão, de
modoquequemficacomassobrassãoMarcinhaeAna.Eladescreveessasensação:
Erammomentosroubados,vamosdizerassim,eramumaespéciedesegredo,
porque os outros podiam até saber que nósficávamos os três lá e víamos
televisão e comíamos pizza, que eu e a Madrinha fazíamos (e sempre
deixávamosumpedaçoparaelascomeremnavolta),masnãosabiamcomo
era,nãosabiamoqueeusentiaeimaginavanaausênciadelas(p.67).
A observação da narradora acerca de deixar um pedaço de pizza para as meninas
revelaumestadodeglória,poiséumaformadesesentirúnicaesuperior.Aindaqueessa
atitudenãosejaalgotãograndiosoassim,paraelasignificaarecuperaçãomomentâneadesua
dignidade que lhe devolve, mesmo que por pouco tempo, a alegria de se sentir parte
integrante,defato,daquelafamília.
Apassagemdaadolescênciaparaavidaadultadastrêsfilhasénarradaemumritmo
acelerado.Porocasiãodocasamentodasirmãs,elainterrompeosestudosporque"tinhaque
ajudaraMadrinhanospreparativos"(p.67).Novamenteanarradorasecolocaemsegundo
plano, poisse priva deestudar para fechar-se cada vez mais no ambiente privado da casa,
envolvidanastarefasdomésticas.
Asirmãsengravidam,eumadelas–Ana–ficaanêmica.Apreocupaçãodamãecom
o bem-estar e a saúde da filha biológica está ironicamente marcada pelas palavras da
narradora,quereproduzafaladaMadrinha:"('Ana,minhafilha,tecuida!Pensamaisemti!')"
(p. 67). A frase incorporada ao discurso da narradora traz marcas da diferença no trato
67
dispensado às filhas biológicas e à adotiva. As aspas são "sinais de pontuação gráficos"
(HUTCHEON, 2000, p. 223) que direcionam a personagem que está falando e também
acionamafunção tica" da intenção irônicadaprotagonistafrente à diferençacom que é
tratada,demodoquea"fusãodointelectualedomoral"permeiaseudiscursoimplicitamente
denunciatório.OconselhoàAnadenunciaisso,poisafilhaadotivanuncapodepensaremsi.
Suas vontades, desejos, planos e atividades não são prioridades, e os pais aparentemente
demonstramindiferençaemrelaçãoaisso. Tantoamãequantoaprotagonistaparecemver
com naturalidade os papéis que desempenham, que são restritos ao lar e à doação aos
familiaresemváriosaspectos.Sobesseenfoque,citoRocha-Coutinho(1994):
Oscomportamentosdesubordinaçãofemininosficam, então,emaranhados
nocotidianodestasmulherescomoforma"natural"deorganizaçãodesuas
vidasdiárias,semquemuitasdelastomemconsciênciadestefato,ou,sea
têm,lheoutorgamconsensoexatamenteporquesão"naturais"(p.39,grifo
nooriginal).
Uma das tarefas femininas "naturais" presentes neste conto é a atitude da mãe em
relaçãoàsfilhasnoquetangeaorelacionamentoeaodiálogodelascomopai.Maisumavez,
oaportedeRocha-Coutinho(1994)éoportuno,poisseverificanamãeapresençadeuma
outra atitude que naturaliza as mulheres: "Parte de seu papel era também servir de
intermediáriaentreomaridoeo(s)filho(s),contribuindoparaobomrelacionamentoentre
eles"(p.100,grifonooriginal).
O pai é descrito pela narradora como um homem fechado, mas que trata as filhas
muitobem.Paraaprotagonista,"tratarbem"ésinônimodeperguntarsobreosestudos,sorrir
devezemquando,conversar, –aindaquecomaemissãodemínimoscomentários–edar
mesada. A protagonista demonstra sentir-se acolhida com igualdade pelo pai adotivo, mas
ironicamentedizque,narealidade,seumododeagirresume-senaprópriaindiferença,visto
que ele se manifesta "com o mesmo silêncio com que [tratava] as filhas: nem mais, nem
menos, pois só se [comunicara]mesmo [...] através da madrinha – ela [é] uma espécie de
porta-vozdele"(p.66-67).Combasenessapassagemverificoqueaironiaocorre,portanto,
dentro de um contexto "circunstancial" que proporciona "a ativação do não dito [sic]"
(HUTCHEON,2000,p.206),istoé,anarradoranãodizqueamãeésubmissaaomarido,mas
expõe o modo como ele se comporta para ironizar essa condição (feminina) de porta-voz.
Dessemodo,aironiapodeseratribuídapelafunção"deoposição",poisanarradora,dotada
de uma "personalidade agressiva passiva" (p. 83), contesta ironicamente uma ideologia
dominante, ainda que não consiga, em seu dia-a-dia, reverter a sua própria situação de
68
silenciamento. Tanto a protagonista quanto a e, vistas soba perspectiva de gênero, são
pessoas marginalizadas que pertencem ao mesmo sistema. Sendo assim, ao ironicamente
criticar o comportamento da Madrinha, ela contesta o sistema ideológico ao qual também
pertence:ouniversofeminino.Poroutrolado,aocomentarqueopaiofalacomasfilhas,
emcertamedida,deseja"desfazeraqueladominação[masculina],[...][demodoqueaironia
funcionatambémcomo]subversivaoutransgressora,nossentidosmaisnovos,positivos"(p.
83,grifonooriginal).
É pertinente destacar que a posição de isolamento da narradora dentro da casa é
semelhante à vivida no convento, com a diferença de que, sendo membro da família, ela
parece não sofrer fisicamente. Por outro lado, a sensação de estranheza e imobilidade
permanece aliada à mesma condição de empregada de outrora. Isso se explica porque a
protagonistarepresentaas
[...] mulheres obsessivamente acorrentadas à imagem recorrente de uma
culpacristãequaseatávica,queasconduzàobediênciaecumprimentode
umdestinoprévio,traçadoàsuarevelia.Seuuniversojamaiséarua,maso
confinamento do lar vivido como exílio numa situação limite, sempre
ameaçada pelo eterno retorno à mesmice de sua condição reclusa, que se
repete(HELENA,1990,p.96).
A personagem Ana representa o extremo dessa situação limite referida por Lúcia
Helena.AnarradoracontaqueAnacasa,temtrêsfilhoseétraídapelomarido.Dessarelação
extraconjugal surge um filho. Apesar de Ana ser atraiçoada pelo cônjuge, não se divorcia
imediatamente,masquandoafamíliaaconvencedequeémelhordeixar"aquelecafajeste",
elavoltaamorarnacasadospais.Ocasamentodesfeitoéaparentementeacausadamortede
Ana,queaospoucosfora"definhandodetristeza"(p.68).Otrágicovividopelapersonagem
desenha "o perfil de uma mulher arquetípica" (HELENA, 1990, p. 91). A sua trajetória é
relatadademaneirasintéticapelanarradora:
Acentuaumasubterrâneaedifíciltransformaçãodemundo–adapassagem
de uma sociedade regida pelos laços ainda telúricos da experiência e da
tradição torna-se pouco a pouco uma outra, movida pelo choque, pela
fragmentação,pelospleencorrosivoemelancólico(p.91,grifonooriginal).
AatitudedeAnaemseparar-sedomaridoéumadassituaçõesemqueosentidodo
trágico está mais explícito, pois ela se encontra dividida: aceita a traição do marido ou
divorcia-sedele.Continuarcasadatalvezacarreteumcomportamentonaturalmentesubmisso
69
eresignadodapersonagem,aopassoqueoptarpelodivórcioéumasituaçãoquesubverteas
regrasdasociedadeemqueelaestáinserida,queaindaconsideraesseatocomoalgoerrado,
poisomatrimônioévistocomoindissolúvel,eamulheréquemtemdeabdicardetudoem
proldoesposo.EsseimpassevividoporAna,baseadoempressupostosextradiegéticos,faz
comqueelamergulheemumadepressãoprofunda,proporcionandoavivênciadotrágiconão
só porque é levada à morte, mas principalmente por demonstrar estar dividida
existencialmente:oquedesejafazereserversusoqueasociedade ditaparaamulher.De
acordocomBornheim,aaçãotrágicaocorreno"momentoemqueestesdoispólos,deum
modoimediatooumediato,entramemconflito"(p.74).
O destinoda outra irmãda narradoraé diferente. Marcinha,que se casara antes de
terminar os estudos, após a morte de Ana, vai morar em outra cidade, pois o marido
conseguiraumnovoemprego.Aolongodocontonãoháreferênciaacercadavidadocasal,
sabe-seapenasqueamãenãosimpatizacomogenro.QuandoMarcinhacomeçaonamoro,a
narradoraafirmasaberoquesuamãeadotivapensa:
"[...]PreferiaqueaMarcinhaterminasseosestudosantesdecasar,maselaé
teimosa",ou"OmeusantonãocruzacomodoÊnio,eleéumbomrapaz,eu
sei,masétãotosco,nãomeconvenço,oqueéqueeuvoufazer?[...]"(p.67,
aspasnooriginal).
Um dos casamentos que parece ser feliz é justamente aquele que tem uma mulher
decidindo os rumos da sua vida, sem se preocupar com convenções, casando-se antes de
concluirosestudosecomumhomemquenãoédoagradodae,queoconsideratosco,
grosseiro.Essaquestãodeixaimplícitaaidéiadequeasmulheresqueousamtomaratitudes
pensandoemsimesmasprimordialmente,podemserfelizes.Marcinhaacompanhaomarido
que fora transferido para o Mato Grosso, embora não haja o relato de sua vida privada e
profissionalporlá.Oimportanteéqueindíciosdapossibilidadederealizaçãomútua,o
quecolocaempédeigualdadehomememulhernasociedadecontemporânea.
O destino da protagonista muda, quando seu pai adotivo começa a ter problemas
cardíacos.Elepassaaconsultarseguidamentee,emalgumassituações,chamaodicoem
casa.Comafreqüênciadasvisitasmédicaseligaçõesparasaberseo"SeuCardoso"estábem
de saúde, o interesse deste profissional recai sobre a protagonista, que passa a agradar o
médico com "cafezinho, doce, compota" (p. 69). O relacionamento profissional entre o
médicoLeopoldoeafilhaadotivadeseupacienteganhanovasdimensões,queeladescreve
emtomacelerado:
70
[...] o médico me levando para jantar, eu indo em restaurantes quenunca
imaginei,melevandoparaosítiodairmã,euindoparaapraianosferiados,
com medo de deixar os velhos sozinhos, mas indo, e eu deixando de ser
virgemnessaidade,imagine!(p.69).
Anarradoratemumrelacionamentoamorosocomomédico,quelheproporcionauma
vida social bem diferente da que sempre teve. São descritos momentos de lazer e de
intimidadevividospelosnamorados.Comopassardosanos,Leopoldoapedeemcasamento,
argumentando que eles o podem mais "ficar nesse chove o molha", que ele quer "ter
família" (p. 70). A protagonista é convencida, mas aceita o pedido a contragosto, pois
considera que ainda não conhece o noivo muito bem. Ela se questiona não só acerca da
possibilidadedecasar-se,comotambémdasopçõesqueestanovavidapodelheproporcionar
emtermosderealizaçãopessoal:
E eu indo: indo sem saber direito como é que eu tinha deixado as coisas
chegaremaesseponto(nãoquero,nãoconheçodireitoessehomem,sósei
quegostadecafépassadonahora,umamesabempostaedomeudocede
laranja),masindo(p.70).
Essa passagemassemelha-seao"solilóquio",pois ela expõe osseus sentimentosde
maneira mais íntima, mediante o diálogo que estabelece consigo mesma, exposto entre
parênteses. Ao dizer que conhece o futuro marido apenas em situações estritamente
superficiais,aprotagonistacomunicaemoçõeseidéiasqueserelacionamàtrama,namedida
emquefornecepistasao/aleitor/aemrelaçãoaoqueestáimplícito:suafuturacondiçãode
serviçal do esposo. Em outras palavras,ela define, ironicamente,os papéis femininos e os
masculinos.NessasituaçãotambémépossívelaplicaraspalavrasdeLúciaHelena(1990),no
artigo"Perfisdamulhernaficçãobrasileiradosanos80",umavezqueacircunstânciaem
queanarradorade"Avidaalheia"seencontra,assemelha-seà"Doutora",personagemcentral
doromanceExílio(1987),deLyaLuft:
[...] [a] protagonista que sequer é nomeada – se debate na angustiosa
tentativadeconstruirumnovorumopara seudestino,[demodoque]esta
dimensãodoamor[...]veminundadademedo,deansiedade[...],jáquea
personagem,comoasedefender,argumenta,tolhidapeloreceiodeousaro
passodelibertação(p.89-90).
ElódiaXavier(1998),aocomentaracercadaconfiguraçãodafamílianoimaginário
feminino,salientaaimportânciadestainstituiçãoparaamulher,poisesseespaçoprivadoé
71
"ondeasrelaçõesdegênerossãoaprendidasetransmitidas"(p.65).Énoambientefamiliar
que se aprendea sermulher. Em"A vidaalheia", repetindoXavier,"as personagensestão
mergulhadasem um contexto familiar sufocante, cuja ordem patriarcal, embora decadente,
aindadestróiqualquerformaderealização"(p.65).
As palavras de Xavier ajustam-se à condição da narradora, que, quando casa,
aparentementenãoconseguefugiràsuacondiçãodeentedominado,excluído,poisdurantea
suavida,tantonoconvento-sendolevadaàcondiçãodeempregadadoméstica–,quantona
famíliaadotiva,elaviveraapenassensaçõesmomentâneasdeindividualização,jáque"eram
momentos roubados" (KARAM, 1999, p. 66). No decorrer de sua vida conjugal, a
protagonista, apesar de livre das repressões do convento e da coibição da família, passa à
condiçãodeempregadadomésticadomarido,esuafunçãoeimportânciaseresumemaisso.
Assim, dentro do casamentoaparentemente promissor,sua"identidadenão foi resgatada,a
persona assumida pela imposição das práticas sociais anulou qualquer possibilidade de
individuação"(XAVIER,1998,p.67,grifonooriginal).
Aofalararespeitodeseucasamento,anarradoradestacaqueasuafunçãodelavar,
passaretomarprovidências(p.70)justifica-sepelaprofissãodomarido.Emumaconversa
comairmãdeLeopoldo,ficamevidentesosestereótiposdeumaideologiaalienante,demodo
que o autoritarismo patriarcal se manifesta através do conceito de que os homens,
principalmente os muito ocupados profissionalmente, precisam de alguém para fazer as
tarefas domésticas, e a esposa é a pessoa escolhida para isso. O pensamento dacunhada é
reproduzidopelanarradoraemmeioaoseudiscurso:
Etendoaminhacasa,oumelhor,adoLeopoldo,earrumandoelavandoe
passando e tomando providências. (O Leopoldo é um médico importante,
precisa de alguém que tome conta dessas coisas práticas, menores, mas
necessárias,medisseairmãdele.Eviuemvocêapessoaideal.Àsvezesdá
maiscertoassim:paixãonocasamentosóatrapalha)(p.70).
Cuidar da casa para que o esposo tenha tudo em ordem passa a ser a tarefa da
protagonista.Elaexplicaqueeleéummédicomuitorequisitadoe,demonstrandoconcordar
comacunhada,resigna-seàsfunçõesdolar.DevidoàsinúmerasviagensqueLeopoldofaz
paraatenderàsuavidaprofissional,oconvíviodocasaltorna-secadavezmaissuperficial,
poisficampoucotempojuntos.Eleviveparaotrabalho,eelaparaomarido,acasa,demodo
queospapéissociaisatribuídosaossexossãoevidentes.Sobreessaquestão,Rocha-Coutinho
(1994)destacaasdiferençasentreosgêneros,quesãoperfeitamenteajustáveisaesteconto:
72
[...] obrigando moralmente as mulheres a ser paraos outros e através dos
outros, lhe é negada a possibilidade de serem elas mesmas. Elas são,
portanto,confinadasnestemundoprivadomarcadopelasentimentalizaçãoe
considerado socialmente como subalterno, de retaguarda, local onde as
características de produtividade, poder organizacional e potencialidade
cognitivadomundopúblicoestãoausentes(p.33-34).
Asentimentalizaçãoàqualserefereaensaístaestáexemplificadanaúltimafraseda
cunhada da narradora:não há possibilidadede realização afetiva dentro do matrimônio. A
visãodairmãdeLeopoldoacercadocasamentoécolocadaempráticapelaprotagonista,que
sepreocupasomenteemmanteracasaemordem,atendendoaosgostosdomaridoporque
essaéasuaúnicafunção:"[...]eeufazendocompras,aprendendoacompraraquelascoisas
finas que o Leopoldo gostava" (p. 71). Nessa passagem está ironizada a importância da
esposa,queconsegueaprender,evoluir,tomariniciativa,comandar.Essesatributos,porém,
sósãopossíveisdentrodaesferafamiliar,eaprotagonistaéumexemplodeque"asmulheres
deveriamteropoderdedecisãoecontroleapenasnaquelasáreasemqueoshomenshaviam
renunciado a ele" (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 103). Sendo assim, a mulher pode "se
encarregardocardápiodafamília,daeducaçãodascriançasedadecoraçãodacasa,maseste
cardápio[deve]serorganizadoemfunçãodosgostosepreferênciasdeseumarido"(p.103).
Odesfechode"Avidaalheia"culminanessaquestão.Anarradoracontasobreuma
outrafunçãoquelheéatribuída dentrodacasa:receber"aquelesmédicose suasadoráveis
esposas"(p.71)emjantaresoferecidosporLeopoldo.Eladizqueemumdessesencontros,
umadasesposaselogiaramuitoasua"comida,acasa,ocapricho,orequinte"(p.71),como
se estivesse valorizando a sua função naturalizada de esposa. Entretanto, a ironia se faz
presente para aparentemente enaltecer a situação por que passa a protagonista, visto que a
convidadaouaconfundecomaempregadadomésticadomédicoouindiretamenterevelaque
ela é apresentada como tal. A narradora reproduz a fala da convidada em que essa
pressuposiçãoestáevidenciada:
[...]e,emumjantar,umadelas[...]dizendoquequandooDoutorLeopoldo
não me quisesse mais, ela me contrataria imediatamente, que eu não
precisavamepreocupar,semempregoeunãoficaria(p.71).
Otomirônicodapalavra"emprego"sinalizaereforçaopapelfemininode"rainhado
lar".AsidéiasdeRocha-Coutinho(1994)corroboramesseestigma:
Esperava-se que a mulher soubesse como bem entreter sócios, chefes ou
pessoasinteressantesparaosnegóciosouaprofissãodomarido,bemcomo
oajudassedetodasasformasnasuacarreira.Implícitonestepapelestavao
73
fatodequeasmulheressó alcançavamvalorsocialatravésdocônjuge(p.
100).
Embora
aensaístasalientequeessasituaçãoeracomumnasociedadedosanos50e60
doculoXX,nofinaldoséculo,quandoKarampublicaoconto,esseimpasseparecenão
estarresolvido(talvez,oestejanemnosdiasatuais),vistoqueaindaexistemmulheresque
encaram como obrigação servir ao marido porque é um modo de elas ascenderem
socialmente.
A protagonista, "aparentemente satisfeita com seu 'destino de mulher'" (XAVIER,
1998,p.69,grifonooriginal),entraemcriseporocasiãodaspalavrasdaesposadoamigo
médico. Seu olhar "pedindo socorro, pro Leopoldo" (p. 71) demonstra que a condição de
empregada doméstica assumida perante o marido tem um único valor: ser uma serviçal
exemplar.Talsituaçãoimplicitamentenãoévistaporelacomoúnicaqualidadedemulher,
poisaincomodaofatodetersidocomparadaouatémesmoconfundidacomaempregadado
esposo. Seu olhar de súplica explicita a esperança de que o marido esclareça a situação:
assumindo a personagem como esposa, ou exaltando outros valores seus. Entretanto,
supostamente, resta-lhe a condição de submissão, de rebaixamento, pois quando ela pede
socorroatravésdoolhar,emtalsituaçãodeconstrangimento,omarido"nãodissenada"(p.
71).
AtravésdaatitudedesilenciamentodeLeopoldo,pressupõe-sequeparaeleopapelda
esposa é somente o de cuidar da casa, ao passo que nem a elogia, como se os afazeres
domésticosfossemumaobrigaçãodiária,umarotinanaturaldamulher.
A falta de palavras entreo casal evidenciaum pactode silêncio entreeles,ficando
ironicamentesubentendidoqueaprotagonista"nãosabecomoagirparasetornarsujeitode
seuprópriodestino"(XAVIER,1998,p.85).Alémdisso,odesfechodocontodemonstraa
visãocríticadeVeraKaramacercado
[...] espaço histórico-estórico no qual a mulher se torna receptora de um
sistema ideológico que a destitui do discurso com o qual poderia exercer
com amplitude e liberdade o ato de ser sujeito. Por outro, ela demarca a
consciênciadequeépelapalavraquesepodemtecerasrupturasquedarão
vidaaumanovapráxissocial(SCHMIDT,1990,p.221,grifonooriginal).
A vivência do trágico para a narradora faz-se, em parte, mediante a sua falta de
iniciativaparamudaracondiçãodeoprimidaemquesemprevivera.Durantetodaasuavida
elanuncaforavalorizadadeummodoquenãofosseodeserumaserviçal.Suacondiçãode
subalterna, de diferente, vem desde o convento, estendendo-se ao convívio com a família
74
adotivaatéculminarnocasamentocomomédico.CombasenosconceitosdeLesky(1976)
acercadoentendimentodotrágicomoderno,verificoqueaprotagonista,aofinaldanarrativa,
encontra-seemumasituaçãolimite,poisoimpassequeviveilustra"aconcepçãodaessência
dotrágico[queé]aomesmotempoumaboadosedevisãodemundo"(p.44),ouseja,elase
vê incapaz de ir contra uma cosmovisão patriarcal firmada não porque se acomoda, mas
porqueestábaseada"numacontradiçãoirreconciliável"(p.25).
Essa visão social desigual e trágica por que passam as personagens femininas,
principalmente a narradora, proporciona à narrativa a inserção nas vertentes "social" e
"existencial-intimista".
Avertente"social" docontoéfortementeapreendida,namedidaemqueépossível
perceber uma análise da "sociedade contemporânea
em suas macro e micro relações"
(BITTENCOURT, 1999, p. 73, grifo no original), visto que Karam explora, ainda que de
modo sutil,"as diferenças brutais entre os segmentos sociais" (p. 73). Tais segmentos são
representadospelaquestãodegênero,queincluiaclassesocialdaspersonagens.Anarradora
representa a classe baixa, dos/as excluídos/as, tanto por pertencer ao gênero feminino,
enquantocategoriasexual, quantopor sua condiçãosocial.O maridomédico, por sua vez,
simbolizanoplanoextradiegéticoaclassemaisabastada,quemuitasvezesoprimeaspessoas
ao seu redor apenas para manter as aparências. A protagonista, portanto, não ascende
socialmente, ainda que seja esposa de um marido que provavelmente desfrute confortável
posiçãosocial.
Verifico que a vertente "existencial-intimista" se faz presente em "A vida alheia"
porqueéumtextoqueapresentaarelaçãodamulher
[...] com o mundo circundante ou consigo [mesma, refletindo, atravésda]
consciênciaindividual[daprotagonista],ascondiçõesdevidadasociedade
contemporânea, envolvendo os problemas de solidão, do desacerto ou
inadaptaçãoaomundo,daincomunicabilidade,dadesilusão,dasperdas,da
ruínadossonhos,etc.(p.92).
As questõesapontadasporBittencourt são claramentepermeadas pela ironia e pelo
trágico,poisanarradoraanalisaasuaposiçãodentrodetrêsesferas: oconvento,afamília
adotivaeocasamento.Quandoelafazreferênciaàsuavidanoconvento,criticandoasfreiras
edemonstrandoumdesejodeindependência,asuareflexão,convertidaemcrítica,ébastante
direta. Em relação à família adotiva, ela não reflete abertamente sobre o seu papel, mas a
ironiaemseudiscursoevidenciaalgunsmomentosdedescontentamento.Omatrimônio,que
poderiaserumapossibilidadeúltimadelibertação,vaideencontroàssuasexpectativas,pois
75
ofinaldanarrativaémarcadopelafaltadepalavrasdocasal,demonstrandoassimaincerteza
dodestinodaspersonagens.
Percebo,nestaanálise,aexploraçãodasseguintesconsciênciasnarrativasintituladas
por Bittencourt: a "introvertida" e a "empenhada". Entretanto, no conto em estudo essas
consciênciasassumemummodoparticularizadoquedevesersalientado.
Aintroversãodanarradoraautodiegéticamanifesta-sepelocomportamentoreflexivo
acercadesuavida,desdequandoforaabandonadapelamãeemumconvento,atéomomento
diegéticopresentedasuavidaconjugal.Osrelatossobreasdemaispersonagenssãofrutosda
visãoqueanarradoratemsobresiesobreaspessoase,mesmoquandoeladáavozaalgumas
delas,odiscursodo/aoutro/aficaintegradoaoseu.AspalavrasdeSchmidt(1990)reforçame
explicitamessaconsciência"introvertida",poisateóricafrisaque"naverdade,acamuflagem
dodiscursodooutrovisa[sic]preservaraautonomiaeacentralidadedavoznarrativa,aqual
imprimenotextoaimportânciavitaldaenunciaçãocomoprerrogativaeatividadedoEu"(p.
219).
Éatravésdessediscursoformadopelo"eu"epelo"outro"queseformaaconsciência
"empenhada", que, permeada pela ironia, caracteriza um discurso tendencioso, marcando
diferençasdegêneroemváriosaspectos,demodoque
[...]oplanopsicológicotambémseinterligacomoideológiconamedidaem
que todo o sentimento de rejeição, desprezo e abjeção daquele que narra,
quantoaocomportamentoevalores[...][sociaissãoexpressos]emfunção
datendênciaideológica(BITTENCOURT,1999,p.200).
O que permeia a narrativa é a crítica à ideologia patriarcal que está registrada no
imaginário coletivo dos indivíduos, assinalando a presença dessa consciência. Essa
modalidadediscursivacorroboraadenúnciamaisexplícitadasdesigualdadesentreossexos,
demodoqueamaioriadaspersonagensfemininas,principalmenteanarradora,nãoencontraa
felicidade,earealizaçãopessoalsóépossívelquandosãoexaltadasapenasassuasqualidades
ligadas aos afazeres domésticos. Isso abre espaço para a discussão da mulher vista sob o
emblema de"fada do lar", pois em"A vida alheia", a narradorapossuiumacaracterização
típicadeum"serangélico,cristalizandoummodelodeabnegação,dedicação,auto-sacrifício,
passividade e silêncio" (MACEDO & AMARAL, 2005, p. 63, grifo no original). A sua
imagemangelicalnãosemanifestasópeloseucomportamentosubmissoemrelaçãoàstarefas
domésticas,mastambémpeloseujeitodeser,deseportarperanteosoutros.
76
Suaimplícitapurezaestámarcadapelavirgindade.Essaéreveladapelanarradoraem
tom irônico, pois como uma mulher adulta pode nos dias de hoje ainda ser virgem? Ela
ironiza a sua situação quandocomeça a namorar Leopoldo: "e eu deixando de ser virgem
nessaidade,imagine!"(p.69).
Essefatoetodaahistóriadevidadanarradoraproporcionamumaaproximaçãodeste
contocomahistóriada"GataBorralheira",poisestapersonageminfantiléimportanteporque
nãosórepresentaosconflitosdaprotagonista"mastambémpelaformaquelidacomeles,a
meninadescobrindo-se,amulherdespertandodesuapassividade,emborapartedelasustente
umpadrão,ondeofemininodevesemanterpassivo"(SILVA,2007).
AssimcomoaGataBorralheira,aprotagonistade"Avidaalheia"écriadaporuma
mãe que oéabiológica,possui duas irmãs ecasa-secomum"príncipe encantado".Ela
viveparaafamília,sempreemposiçãomarginal,sendoqueodesenlaceamorosoinfelizé
disfarçadonocontoinfantil,aopassoque nanarrativadeKaramtudoficaironicamenteàs
claras:nãohápríncipeencantado;quandosecasaafelicidadetermina,earotinadoméstica
acabacomossonhosdeoutrora.Aironiarevelaotrágico.
Lucila Silva explica que o arquétipo da moça resignada, dócil e passiva da Gata
BorralheiraéextremadonaversãodePerrault.Elaesclarece:
Sendoservilàmadrastaeàsirmãs,elaésempreeficienteemedrosa,oque
se espera de uma menina bem criada e educada. O modelo de
comportamento apregoado é o da dona de casa submissa às situações
nefastasqueavidaimpõe.Borralheiranãotemamigos,apenasosanimais
domésticossãoseuscompanheiros,suavidasocialénula,relacionar-secom
outraspessoasforaamadrastaeasirmãsseriaomesmoqueestarempéde
igualdade com os outros e a figura da Borralheira está sempre em uma
posiçãoinferior(SILVA,2007).
A diferença mais evidente da protagonista do final da década de 90 no Brasil e a
personagemdocontodefadaséavisãosocialqueosoutrostêmacercadessecomportamento
femininopadrãomoralmenteaceito.AGataBorralheiraapósocasamento,aindaque
[...] suja de cinza, rodeada por abóboras, ratos e utensílios domésticos, é
aceitasocialmente,afinalelaéumaprincesaquecompetiucomsuasirmãs
comoescudodapassividadeedobomcomportamento,armautilizadapelas
mulheresquecompetemcomoutras(SILVA,2007).
AnarradoradeKaram,porsuavez,nãotemesseprivilégio,poisaparentementenão
desfrutadenenhumprestígiosocialporseresposadeummédiorequisitado.Alémdisso,é
77
humilhadaem umjantarsocialoferecidoemsuacasa,demodo que sofrecomaspalavras
irônicasdaesposadeumdosamigosdomarido,oquetornaevidentequenemsempre"ser
certinhaédefendidocomoposturaperfeitaparaamulher"(SILVA,2007,grifonaversãoda
internet).
"A vida alheia" questiona ironicamente a tradicional idéia de que "por trás de um
grandehomemexistesempreumagrandemulher"(ROCHA-COUTINHO,1994,p.103),ao
passoqueseinterrogamcertospadrõespreestabelecidospelasociedadeacercadoquevema
ser"essegrandehomem"e"essagrandemulher".Comoofinaldanarrativaestáemaberto,
ficatambémessaquestão.
É pertinente destacar que a narradora vê a sua imagem refletida, pois expõe
cuidadosamente aquilo que deseja evidenciar e revelar ao/à leitor/a. Em contrapartida, as
demaispersonagensfemininassãoconstruídasporseuolhar,nãosãoelasquesevêem,quese
definem. Dessa forma, criam-se diferentes pontos de vista que conferem à narrativa uma
diversidadeconceitualacercadavisãocontemporâneadamulher.
2.2–Aimagemconstruída
O segundo grupo de contos de Há um incêndio sob a chuva rala é composto por
personagensfemininasque são mostradaspeloolhar do outro. Tudo oqueésabidoacerca
destas mulheres está sob o domínio de um/a narrador/a que constrói a sua imagem. As
protagonistasnãosevêem,nãosedescrevem,nãotêmvozprópria,entretanto,sãoocentro
dosrelatos.
2.2.1 – "Vinte e quatro de dezembro" – Agora só falta o Ano Novo e a vida volta à
normalidadetriste,queduranteorestodoanoninguémestranha
Narrado em terceira pessoa,o conto"Vintee quatro dedezembro"(p. 56-62),cuja
protagonistasechamaMarcela,trazahistóriadeumapersonagemquebuscacompanhiapara
passaranoitedeNatal.Otuloremeteadoisuniversosquecostumamservistosdemaneira
interligada:oreligioso(fundamentadononascimentodeJesusCristo,naSagradaFamília)eo
familiar(baseadonoambientefraterno,dafamíliareunidaparaaceianatalina).Entretanto,
estanão éumahistóriaemocionante, repletadesentimentos puros e grandiosos, típicosda
vésperadeNatal;aocontrário,éumanarrativaqueenvolvetristeza,solidãoeprincipalmente
hipocrisia.
78
Oprimeiroespaçoemqueaaçãosedesenvolveéoshopping.Onarrador,quenãoé
identificadoemrelaçãoaogênero,contaqueaprotagonistaMarcela,navésperadeNatal,vai
aesselocalfazercompras,assistiraumfilmee,derepente,avistaumhomemcomroupade
Papai Noeltrês horas antes da meia-noite. Ambosse olhamcomo sefossem conhecidose
começamaconversar.Aprotagonistainiciaoassuntodizendoquenãotemumalembrança
muitonítidadele,eoPapaiNoel,porsuavez,apenaslhepergunta:"–Comovaiavida?"(p.
57).Marcelacontaaohomemquenoanoanterior"Mário"ea"menina"morreramemum
acidente, por isso elaseencontra sozinhana véspera de Natal.É possívelpressupor quea
meninaéasuafilhaequeMárioéseucompanheiro,masotextonãoforneceinformações
sobre o tipo de relacionamento que o casal mantém; podem ser namorados, casados ou
amantes,nãoestandoevidentetambémapaternidadedafilhadeMarcela.
Amortedameninaedocompanheironãoéaceitapelaprotagonista,que,aosprantos,
desabafa com Papai Noel: "–Por que isso foi acontecercomigo outra vez?" (p. 57). Nessa
passagem,onarradoresclareceodiscursodeMarcela,queparececonfusodevidoàexpressão
"outravez":"[...]–elaperguntou,soluçando,nãomaisamãequeperderaafilha,masa
filha
quenuncativeraumamãe"(p.57).Arevelaçãodonarradordemonstraoestadodeorfandade
emqueseencontraapersonagem,oqueintensificaaindamaisasolidão
vivenciada
porela.
FrenteaocomportamentoaparentementedeprimidodeMarcela,PapaiNoelficasem
saber oquefazere oquedizer,apenaspensa queteveum diamuitocansativo, abraçando
diversascriançase"tudooquequeriaagoraeraumbanho,comidaecama"(p.58).
Aos poucos o narrador vai esclarecendo o relacionamento entre as personagens. O
PapaiNoelassumeumaposiçãodeinsensibilidadefrenteàslamúriasdaprotagonista:
Não imaginava ter que consolar uma mulher de seus quarenta anos, que
agora, chorando, parecia ter a idade de todas aquelas meninas que o
abraçaram o dia inteiro. Com a diferença de que de tarde havia sido
contratadoparafingireagoraestavasendopegodesprevenido(p.58).
Pormeiodeumdiálogodireto,MarcelaePapaiNoelfalamsobreoquesupostamente
acontecera no passado. A conversa se estabelece a partir da resposta do homem à
protagonista, o que se resume em duas palavras: "–Isso passa" (p. 58). Logo, Marcela
respondecomumanegativa:"–OtioAlfredo,irmãodamamãe,lembra?,medisseamesma
coisaquandoosenhorfoiembora–eladissefungando.–Enuncapassou"(p.58).
Apartirdesseponto,anarrativaparecetornar-semaisesclarecedoraacercadaligação
das personagens: um suposto reencontrodeumpai comsuafilha. Após alguns pedidos de
79
desculpasefrasesqueservem"paraqualquerassunto"(p.59),MarcelaconvidaPapaiNoel,
paracearememseuapartamento,jáqueeleiriacomerumsanduíchenoshopping.Eleaceita
oconvitedizendo:"–Claro,claro,minhafilha.Masquemsabeeumudoderoupaantes?"(p.
59).Onarradorinduzàidéiadequeela,aopensarnapossibilidadedeperderocontatocomo
painovamente,nãoadmitequeeletroquederoupa,afinal,"conheciaaquelemedo,nãoqueria
passarporele"(p.59).ÉonarradorquemconstróiaimagemdeMarcela,queaparentemente
émostradanaformadeumamulherfrágiledeprimida.
Oespaçomudadolugarpúblicoparaoprivado:oapartamentodeMarcela.Aqui,ela
preparaaceiademaneiracuidadosa,enquantoeledeitanosofá.Marcelautilizaoquetemde
melhor,ofereceaseuconvidadoumperuechampagne,presenteando-lhecomuma camisa
quehaviacompradoparaoMário,noNataldoanoanterior.Apósojantaraspersonagens
[...] conversaram até tarde, contando, principalmente ela, o que lhes tinha
acontecidodesdeaúltimavezemqueseviram,anosantes,quandoelafoi
mostrarameninarecém-nascidaaumavôdistanteeamargo(p.60).
Elaoconvidaparamoraremjuntose,quandoacordamnodiaseguinte,tomamcafée
ele lhe agradece "por aquele Natal" (p. 61), mas não comentam acerca do fato de ambos
residiremnaqueleapartamento,pois"concordavam,mesmosemfalar,quetinhamidolonge
demais"(p.61).
QuandootravestidoPapaiNoelvaiembora,onarradoresclarecequeestenãoéopai
de Marcela e que ela própria sempre soubera disso. Até aqui, o/a leitor/a vai sendo
conduzido/aaumahistóriaquepareceserverdadeira,ondepaiefilhaquesofrerammuitono
passadoesedesencontraram,agorasereencontramemclimadereconciliação,envoltospelo
sopromágicoqueoNataltendeaproduzirnocoraçãodetodos.
O narrador também faz parte dessa dissimulação entre Marcela e Papai Noel, pois
somentenofimdocontoficaesclarecidoqueovelhinhodoshoppingsefezpassarporpaida
moça para tirar proveito da situação, como bem o demonstra seu pensamento: "Coitada,
pensou.Essanãoencontramaisoeixo.Maspelomenosmerendeuumaboajanta"(p.62).
Marcela,porsuavez,tambémestácientedequeovelhinhonãoéseupai:
Ela,láemcima,olhavaafotodopai,quederaumjeitodeesconderassim
que o escolhido entrou no apartamento, que só um louco confundiria
(mesmodando-seosdescontosdos anosquehaviampassado)com aquele
PapaiNoelalquebradoquetrouxeraparacasananoitedeNatal,arriscando-
secomosósearriscamaquelesquenãoseimportamcomavida(p.62).
80
Durantetodaanarrativaficaevidenteojogodeaparênciasmantidoentreonarradore
aspersonagens.Atravésdodiscursodecadaumatramaseconstróicomoseestarevelasse
uma situão comum,em que uma filhareencontra o pai quehámuito temponãoviae o
convidaparapassaranoitedeNatal.Entretanto,aarmautilizadanestejogoverbaléaironia,
que está colocada de modo sutil, principalmente quando o domínio da palavraestá com o
narrador. Algumas passagens ilustram tal situação, como a que mostra Marcela avistando
PapaiNoel.Onarradordescrevesuaatitude:"Olhou-onosolhosereconheceuaqueleolharjá
sem brilho" (p. 56). O verbo no pretérito perfeito denota a certeza de Marcela em ter
encontradoalguémconhecido,aindaquenãosejapossívelsaberograudefamiliaridadeentre
elaePapaiNoel.Areaçãodovelhinhodoshoppingfrenteàatitudedaprotagonistaérevelada
demaneiraindiretapelonarrador,quejustificaaposturadisfarçadadePapaiNoeldevidoao
olhar de Marcela. O narrador explica: "Ele parou, como teria parado qualquer um diante
daquelesolhosinsistentes"(p.56).Parareolharpodeserumsinaldeironiaseconsiderarque
tais ações são marcadores "gesticulatórios".  O olhar insistente de Marcela é irônico, na
medidaemqueelasimulaumsentimentodesúplicaaPapaiNoel,que,porsuavez,também
fingeterumcomportamentosolidário,ironicamentedestacadopelocontexto"circunstancial"
em que a ação acontece: a véspera de Natal e a função desempenhada pela personagem
masculina.
É possível perceber que a expressão "qualquer um" é uma ironia à atitude da
protagonista. AreaçãodePapaiNoelnãotrazaaparentecertezade Marcela,poiseleteria
tido essa atitude frente a qualquer pessoa, ainda que desconhecida. Entretanto, é possível
depreender pelo tom dodiscurso donarrador também umaatitudede aparentebondade de
PapaiNoel,principalmenteseoseutrabalhoforconsiderado.Comoasuafunçãoédeparare
conversarcomqualquerpessoanaépocadoNatal,falarcomMarcelapodeserreflexodeuma
posturameramenteprofissional:"Comadiferençadequedetardehaviasidocontratadopara
fingir e agora estava sendo pego desprevenido" (p. 58). Ainda assim, o que é importante
perceberdizrespeitoàsrelaçõesdegêneroexpostasnesteconto.Pormeiodoscomentáriosdo
narradorestáevidentequeaatitudedeMarcelaécondenável,poiséelaquemtemaintenção
primeiradeenganar.Suaposturaécriticadaabertamente,poisasúltimaspalavrasdonarrador
reforçamessaantipatia.Paraeste,aprotagonistaéalguémquenãosepreocupacomavida–
fatovistosomenteporesseviés.Poroutrolado,PapaiNoelpassaaseravítima,alguémque
deseja apenas uma ceia de Natal gratuita. É o grau elevado de ironia nos discursos do
narrador,deMarcelaedePapaiNoelquetornapossívelinferirosdisfarcesdaspersonagens.
Juntamentecomotomirônico,asituaçãodefaz-de-contaqueenvolveaprotagonistaePapai
81
Noel constrói-se sobre uma base trágica que se insinua na aparência do texto. O sentido
irônicoestápresentedesdeasprimeirasfrasestrocadasporambasaspersonagens.Pormeio
de um diálogo direto, o Papai Noel pergunta à Marcela como vai a sua vida, e ela lhe
responde:"–Indo.otãobemquantoeuhaviaplanejado.Osenhorvê;euestousozinha,na
vésperadeNatal"(p.57).Arespostadaprotagonistafornecealgumaspistasdequeelaéuma
pessoaqueprovavelmentenãotemfamília,poisécomumnestediaaspessoasestaremcom
seusfamiliares.Dessemodo,ironicamente,PapaiNoelrebateemtomgeneralizante:"–Onde
estãoosoutros?"(p.57).Amulhercontasobreoacidentequeenvolveraasupostafilhaeo
companheiroMário.Porseportardemaneiradesesperadora–talvezirônica–,indiretamente
forçaseuinterlocutoraumareaçãoqualquer.Apartirdessepontoaironiaconfunde-secoma
mentira,poisambosparecemaceitarasregrasdojogoiniciado,demodoque,frenteàreação
lamuriosa da protagonista em afirmar que Papai Noel a abandonara, ele responde
categoricamentequenãotiveraculpa.
AsfrasesgeneralizantesdePapaiNoelfuncionamcomoironiapararevelarasituação
defingimentoimplicitamenteacordadaporeles,poisapersonagemmasculina"estavaprestes
aesgotarseuestoquedefrasesqueservemparatudo"(p.58).ÉpossívelpressuporquePapai
NoelnãodesejaqueMarcelapercebaqueelementira,pois,aofinaldoconto,ficaevidente
queeleseaproveitadasituaçãoembaraçosaemqueseenvolvera,porquefingirlhe"rendeu
umaboajanta"(p.62).Dessemodo,aintençãodePapaiNoelemmentirparaMarcelatem
comoconstructoaironia,vistoqueatravésdoseudiscursoamploeleocorreoriscodese
contradizer. Provavelmente ela também tivera a intenção de mentir, já que deseja uma
companhiananoitedeNatal.Porém,onarradorreforça que as simulaçõesdaprotagonista
nãoestãoligadasaosacontecimentosdesuavida,contadosaPapaiNoel,massimaopapel
queatribuiaele,porqueelamenteapenasqueeleéseupai.Asinformações referentesao
companheirorioeàfilhaparecemserverdadeiras,poisémencionadoqueelacozinhara
paramaispessoas(p.60)equeoapartamentotemdoisquartos,talvezumdocasaleooutro
dafilha.
Estabelece-seneste conto afunção"provisória" da ironia, poisocarátertemporário
dasinformaçõesfornecidaspelaspersonagensepelonarradorrevelaações desaprovadoras,
comoahipocrisia,duplicidadeelogros.Onarrador,"[...]entreopostos[...]nãotempressade
tomar partidoechegaraalguma decisão"(HUTCHEON,2000, p. 82),porque seu papelé
dissimular.Porém,nãoésomenteisso,jáqueasuaironia"éumaformadeevasãodafala
comprometida"(p.82),vistoquedefendeapersonagemmasculinaeseescondeportrásde
uma neutralidade sexual. Dessa forma, a função "provisória" de seu discurso irônico
82
apresenta-se"comoummeiodeneutralizarqualquertendênciadeassumirumaposiçãorígida
oucategóricade'Verdade'"(p.82,grifonooriginal).
A relação estreita entre mentira e ironia deve ser compreendida com base nas
intençõesdousodecadauma.Aesserespeito,dizHutcheon:
[...] pretende-se permanentemente que as mentiras sejam contradições; os
significadosirônicos,entretanto,seformampormeiodeoscilaçõesauditivas
entresignificadosditosenãoditosdiferentes(p.101).
A contribuição da teórica em relação à compreensão da ironia e da mentira faz-se
fundamental;osdiscursosarticuladosem"Vinteequatrodedezembro"sãoirônicos,porque
internamenteelesnãosãocontraditórios,aindaqueaofinaldanarrativafiqueevidentequeas
personagensdesdeoiníciomentemumaparaaoutra.Noplanoextradiegético,umasituação
comoaapresentadaparece ser um tantocontraditóriaeilógica,masofatode umamulher
levarparadentrodesuaresidênciaumhomemdesconhecidoparaapenasterasensaçãode
nãoestarsozinhananoitedeNatal,revelaoladotrágicodorelacionamentohumano,emque
"afragilidadedasrelaçõesinterpessoaisexpostasdurantetodoodesenrolardatramaéfruto
de uma rotina destrutiva e de descontentamentos" (FONSECA, 2005, p. 56) típicos dos
indivíduosnacontemporaneidade.
Portrásdaironiaquepermeiatodaanarrativahámuitoselementosquecaracterizam
demaneiramaisexplícitaapresençadotrágico.Oacidentequeenvolveocompanheiroea
filha da protagonista tem naturalmenteesse sentido, mas o que sedestaca neste conto é a
tragicidadedosindivíduosemviveremsozinhos,aindaqueprocuremdriblaressesentimento.
Dessemodo,
VeraKaramexibeotrágiconasdoresdodia-a-dia,[atravésda]amargurade
duaspessoasque[emcertamedida]compartilhamsofrimentoereagemcom
formas peculiares de silêncio e subentendidos, marcas também de
sentimentosuniversaisepermanentes(FONSECA,2005,p.59).
Asreaçõese atitudes daprotagonistasão ocentrodetodooconto,deformaqueé
possíveldepreenderdiversossignificados,algunsexplícitos,outrosimplícitosdasuaconduta.
A morte da filha e do companheiro, a suposta mágoa que tem do pai ausente e a sua
necessidadedecompanhiaeatençãoestãoevidentesnotexto,poiséaprópriaMarcelaquem
falasobreisso.Porém,seupoderdedissimulaçãoparaconseguiroquedeseja,comoludibriar
umapessoaparanãoficarsozinhananoitedeNatal,sófiguranotextodemaneiraimplícita,a
partirdasconsideraçõesdonarrador.
83
Outro ponto acerca do comportamento de Marcela, o qual o narrador procura
indiretamenteevidenciar,dizrespeitoàincapacidadedaprotagonistadeviversemaproteção
dafamília,estadodecarênciaagravadonavésperadeNatal,devidoaosignificadoqueadata
implica.Porém, é precisopercebernasentrelinhasquea atitude audaciosa daprotagonista,
aliada ao discurso engenhado reproduzido muitas vezes pelo narrador, corroboram a
subversão de sua posição feminina ligada à fragilidade, à ingenuidade, pois ela não se
preocupa com asconseqüências do jogo que arma, afinal,convidar um desconhecido para
cearemsuacasaéumaatitudedealguémmuitocorajoso,considerandoaalarmanteviolência
dostemposatuais.Asuainiciativanãoéencaradademaneirapositiva,aocontrário,gerauma
outrainterpretação paraonarrador,quedizaofinaldanarrativaqueMarcelaarrisca-seao
trazerumdesconhecidopradentrodesuacasa.
A atitude da protagonista é encarada pelo narrador como sendo um descaso com a
vida. Porém, é preciso considerar que uma outra questão está por trás do aparente
comportamento contraditório de Marcela: por que uma mulher, que demonstra ser o
indefesa, dotada de tanto sentimentalismo não avalia os riscos de levar um homem
desconhecido para dentro de sua residência? Esse comportamento ambíguo pode ser
respondido com base nas considerações de Cláudio Carvalho, em "A mulher no vão da
escada: algumas reflexões sobre 'A obscena Senhora D.', de Hilda Hilst" (1999), que se
aplicamtambémaocontodeKaram:
Amulherdivididadotextoanalisado[...]apresentaumainteressantetensão
entreumaenunciaçãoquerompecomostrâmitesdiscursivosdopatriarcado
eumenunciadoqueexplicitaofracassodeumamulherquenãoconsegue
viversemaproteçãodomarido,dopai[...](p.111).
Reconheço,fundamentadanaspalavrasdoteórico,queMarcela,aotransferiraoPapai
Noel do shopping a identidade de seu pai, ela demonstra um sentimento de desamparo
familiar e"a necessidadede proteçãode uma figura masculina poderia serencarada como
fazendopartedodestinodemulherdapersonagemnasociedadepatriarcal"(p.120,grifono
original).
Odestinodemulher,referidoporCarvalho,apresenta-sedivididoparaMarcela,pois
aomesmotempoemqueobservoapossibilidadedetransgressãoaosprincípioshegemônicos
masculinos, vejo queapersonagem, por outrolado, representaas mulheres quese deixam
influenciar"pelasociedadetradicional–queastreinoudurantesuainfânciaparapensar,agir
84
esentirdemaneiraapropriadaasuasfunçõesdedona-de-casa"(ROCHA-COUTINHO,1994,
p.62).
AposiçãodeRocha-CoutinhoelucidaapassagememqueMarcelapreparaaceiapara
o suposto pai: ela organiza tudo enquanto ele fica deitado no sofá. A protagonista parece
sentir-serealizadacomessasituação,pois"[saboreia]asensação,hámuitotempoausenteda
suavida,decozinharparamaisalguémalémdesiprópria"(p.59-60).Talsituaçãolheexige
pôr"amesacomcuidado,usandooquetinhademelhor"(p.60).Depoisdojantarelaservea
sobremesae,nodiaseguinte,quandoeleacorda,amesadocaféjáestáposta.Depoisdeeleir
embora,Marcela"foiparaacozinhalavaralouça,quehojeeramuita"(p.62).
As situações que envolvem os momentos de refeição demonstram que Marcela se
comportacomoumaempregadadePapaiNoel,poiselenãoaauxiliaemnada,esperandoque
elalhesirva,aindaqueasuaajudanãosejasolicitada.Poroutrolado,otododiegéticorevela
a postura de uma mulher que não se submete às generalidades sociais, que tendem a
considerarosexofemininocomonaturalmentepassivoeindefeso.Aocontrário,asuaatitude
em dissimular uma situação demonstra, ainda que de forma trágica, uma postura
extremamenteaudaciosa,típicadealguémquepensaantesnoseuinteresseedepoisnodos
outros.Elanãosecomportademaneirasubmissaporquenãoestáobrigadaaisso,afinal,éela
quem "oescolhe"e toma a iniciativa de servirao PapaiNoel, para, inclusive,completar a
atitudeirônicadedissimulaçãoaquesepropusera.
AolongodetodaaanálisefocalizoespecificamenteapersonagemMarcelaporqueé
elaquemmoveasações,quemousa,quemseexpõe,enquantoqueapersonagemmasculina
funcionaapenascomoumjogueteemsuasmãos.Essasatitudesambíguasemrelaçãoaoseu
papel de mulher no cotidiano doméstico, a sua interioridade, solidão e fingimento, são
perfeitamente explicáveis pela ensaísta Vera Lúcia Kauss (1999), pois esta personagem
femininademonstraestarmarcadapelo
[...]altopreçoquemuitasmulherespagarampelaopçãodemudar,semsaber
aindaorumocertoaseguir.Aocontráriodealgumaspersonagensdosanos
90, que mostraram haver encontrado o caminho de conciliação entre os
valoresdopassadoeumanovaordem(p.107-108).
Está implícito que a protagonista de "Vinte e quatro de dezembro" não consegue
conciliaressesvaloresreferidosporKauss,poisela,aindaqueporumdia, demonstrauma
aparentenecessidadedeproteçãomasculina,alémdedeixartransparecerafaltaquesenteem
terumafamíliaepoderservi-la.Poroutrolado,percebe-seatentativadeumamudança,visto
queelaseassumecomoumapessoasolitária,quesupostamenteduranteoanotodovivebem
85
sem a presençafamiliarem seu dia-a-dia. Além disso, sua atitude audaciosacaracteriza-se
tambémpelainiciativaemreverterasituaçãodesolidãoemqueseencontrananoitedeNatal,
aindaqueissocoloqueemriscoasuaprópriasegurança.
O trágico é reforçado quando, ao final da narrativa, com os papéis encenados
esclarecidos,avozdonarradormistura-seàdaprotagonista:"Masoimporta,pensou.Pelo
menosoNataljásefoi.AgorasófaltaoAnoNovoeavidavoltaànormalidadetriste,que
durante orestodoano ninguémestranha"(p.62).Verificouma profundamelancolianessa
passagem,querevelaasolidãohumanaeafaltadecompaixãoquepermeiaocotidianode
todososindivíduos,pois
[...]osentimentodedesamparonãodesaparececompletamente.Somosseres
incompletos e buscamos no outro a completude que nos falta. Mas essa
completudeésempreprovisória.Nocentrododesejo,moraomaiscompleto
vazio(CARVALHO,1999,p.117).
Éprecisolevaremcontaadimensãotrágicadarealidadehumana,demodoafrisar
que"ohomemcomohomem,emsuacondição,nãoétrágico"(BORNHEIM,1975
,
p.72),
masasuaessênciamarcada pelafinitude,imperfeiçãoelimitaçãopossibilitaestavivência.
Nesta narrativa está manifestada a necessidade que as pessoas têm de ludibriarem as suas
tristezas interiores, afinal, a rotina as obriga a isso. Essa questão é evidenciada quando a
protagonistaagecomnaturalidadeaodecidirlavaralouça,ironicamentesereferindoaoAno
Novo que está por vir – outra data em que as pessoas tendem a priorizar o convívio
harmonioso com seus próximos. Para Bornheim, o conflito trágico deriva do fato de as
pessoas viverem entre a justiça e a injustiça, entre o ser e a aparência. A sua evolução,
portanto,éadescobertadaaparênciaeaconquistaconseqüentedoser.Essefatoépercebido
porMarcela,pois,quandolavaalouça,onarradorretiraamáscaradeMarcelaerevelaasua
face. O trágico manifesta-se justamente por ela saber que a sua condição é a de um ser
solitário.Essesentimento,porém,oestácolocadonotextodemaneiramelancólica,poisa
ironiaamenizaasituação,demodoqueaatitudeemlevarumdesconhecidoparaaresidência
provavelmenteserepetiránavésperadeAnoNovo.
É importante frisar também que a figura de Papai Noel está ligada diretamente ao
mundo da fantasia infantil, sendo essa analogia apresentada de forma irônica. Ambas as
personagens vivem uma experiência fantasiosa na véspera do Natal, mas não com a
ingenuidadedeumacriança,poisumausaaoutraemseufavor,afimdetirarasvantagens
queassatisfazem:oimportanteéocarpediem.
86
DeacordocomasvertentestemáticasapontadasporBittencourt,verificonestecontoa
configuração da vertente "social" no que concerne ao âmbito familiar, principalmente a
relaçãoentre pai efilha, eo envolvimento entre as pessoascomo membros individuais da
sociedadecapitalistacontemporânea,poisémostrada"averdadeira facedasrelaçõesedos
papéissociais"(p.75-76).
As experiências trágicas e pessoais que envolvem a protagonista e a personagem
masculinatêmumdestaqueespecialaolongodetodaanarrativa.Entretanto,otrágicooé
explorado estritamente em um nível existencial, particularizado (ainda que isso aconteça),
poisseevidenciaumapreocupaçãodirigida"àcríticasocialeàanálisedasrelaçõeshumanas"
(p.79)emquemuitasvezesaspessoas"sedeixamdominartotalmentepelarotinaalienante
do dia-a-dia, contentando-se com uma existência medíocre, opaca e voltada aos interesses
próprios"(p.81).
Avertente"existencial-intimista"adquireumaimportâncialigadaaosocial,comoum
suporte para demonstrar essas relações. Afirmo isso porque se trata de uma narrativa que
enfatiza "os mistérios que se escondem no interior do ser humano, revelando seus desejos
ocultos ou até mesmo percorrendo os subterrâneos nebulosos, às vezes enigmáticos e
perturbados da [...] mente" (p. 92). Essa consideração de Bittencourt está evidente no
comportamentoinusitadodaspersonagensde"Vinteequatrodedezembro",principalmente
noquetangeàcondutadeMarcela,poisassuasaçõesdissimuladoras"aomesmotempoem
que deturpama realidade, criando imagens fantasiosas econtrariando a percepção 'normal'
dosoutros",revelam,aofinaldanarrativa,"umaanáliselúcidadosfatos"(p.95)edoseu
próprio comportamento, que contraria os parâmetros de "normalidade" definidos pela
sociedade. É preciso perceber que Marcela possui uma "capacidade interna de resolver
problemas que [a] diferencia e [a] coloca num plano superior" (p. 100). A vertente
"existencial-intimista"emcomunhãocoma"social"evidenciaqueela"peranteasimposições
do sistema,[desenvolve um comportamento] que normalmente não [faz]parte dospadrões
femininosaceitospelasociedadepatriarcal"(p.100).
Pelo fato de o conto ser dotado de um narrador heterodiegético que constrói a
realidade ficcional a partir de uma perspectiva interna a ela, é que verifico a presença da
consciência "solidária". De acordo com Bittencourt, esse tipo de consciência marca um
narradoraparentementedistantedaquiloquenarra,masemalgunsmomentosficaevidente"a
sua presença, emitindo opiniões e julgamentos sobre o que mostra" (p. 181). Uma das
passagensemqueonarradoremitepareceresacercadoquenarraéquandocomentaamaneira
comoPapaiNoelrespondeàsprimeirasperguntasdeMarcela:
87
Olhaparamim.Vocêachaqueparamiméfácil?
E percebeu que era a primeira frase que, mesmo servindo para qualquer
assunto,saía-lhecomumasinceridadedolorosa.Não;paraelenãoerafácil
(p.58-59).
QuandoPapaiNoelperguntaàMarcelaseelaachaqueparaeleéfácilterseafastado
dela,éapersonagemquesemanifestanodiscurso.Entretanto,ocomentáriofeitoaseguiré
do narrador, que toma uma postura de defesa em relação à aparente sinceridade de Papai
Noel.
O narrador também opina sobre o gosto da protagonista para com os utensílios
domésticos.AoprepararaceiadeNatal,acenaédescritainicialmentecomimparcialidade
pelonarrador:"Pôsamesacomcuidado,usandooquetinhademelhor,emboraessemelhor
nãopassassedepeçassimples,queimitavamlouçasfinas"(p.60).Nofinaldeseudiscurso
ficaevidente o seujulgamento,poiselecriticaedebochadoesmerodeMarcelaparacom
suaslouças,nãosóporserempeçassimples,masporqueo"deumgostoatéquestionável"
(p.60).
Onarradornãoparticipadasões,ele secolocaemumaposiçãoextradiegética.A
suaconsciêncianarrativapodesertambémconsiderada,emcertamedida,"distante"porqueé
marcadapelos comentários subjetivosque faz, mas em muitos momentosele deixa que as
personagens dialoguem diretamente, e a "isenção que deliberadamente adota, além de
eliminaros comentários pessoais, acaba por omitirinformaçõesquepoderiamesclarecer a
situaçãoaosleitores"(p.187).Somentenofinaldanarrativaéesclarecidoqueaspersonagens
de"Vinteequatrodedezembro"nãoseconhecem,eaomissãodessainformaçãoservepara
criar"umclimadeexpectativaquepermaneceatéofinal"(p.188).
A atmosfera de suspense criada em torno dos diálogos entre as personagens e dos
pareceresinsinuantesdonarradorconferemaocontoumairônicaaparênciadeincoerência.O
comportamentoconsiderado incongruente de Marcela simbolizao que ocorre com diversas
mulheresnacontemporaneidade,poismuitasaindaestão"cambiantesentreocumprimentode
seupapeldemulher,sempreimposto,eachancedecumpriroseupapeldesujeitopensante,
navivênciaabertadeseupoderdedesejar"(ABREU,1999,p.126).Apersonagemfeminina
destecontofazmuitomaisdoquedesejar.Ela,aindaqueporumdia,constrói-secomosujeito
ativo,buscandoaquiloqueatornafelizecompleta,àesperadeoutrasituação:oAnoNovo.
88
2.2.2–"Primeirodemaio"–Quandotupensasquesim,agoravai,fechaosinaloutra
vez
O conto "Primeiro de maio" (p. 22-28) não tem um espaço definido, e a narrativa
inicia com um homem (o narrador autodiegético) explicando a um interlocutor que a sua
"função" é a de zelar pelo bem-estar dos/as passageiros/as: "Eu tenho de fazer isso, é
obrigaçãominhaverificarsetodosospassageirosestãoacomodados,osenhormeentende?"
(p.22).
O narrador dirige-se a alguém cuja identificação não é explicitada, sendo possível
saber apenas que se trata de um homem, pois ele o chama ora de senhor, ora de doutor.
Porém,pode-sepressuporqueonarradorestáfrenteaumdelegadodepolíciaprestandoum
depoimento,porqueelediz"–Etemaqueleshomens(comoqueeutôenrolando?Osenhor
nãopediuparaeudaromeudepoimento?Eeutôfazendooquê?Sódeixaeucontarmais
essa)"(p.26).Alémdessaevidência,eleafirmaquetemos"nervosfracos"(p.27),coma
finalidadedejustificarocrimequecometera.
Nesteconto,percebonovamenteumdiscursoemquesomenteafaladonarradorfica
evidenciada. O interlocutor – possível delegado de polícia –, ainda que questionado, o
responde e o conto assume a forma de um monólogo. O narrador delineia algumas
personagens que tipificam o povo em geral e revela sua irritação ao deparar, durante suas
"viagens" de ônibus, com certos comportamentos extravagantes, que, para ele são
característicosdosusuáriosdetransportepúblico.Seudiscursoéeivadodeironiaparaemitir
juízosdevaloracercadessestipos.Onarradordescrevealgunscasosquedizterpresenciado,
masodiálogonãoseestabeleceentreeleeoseuouvinte,umavezqueafaladesseúltimosó
seconcretizaviaodiscursodoprimeiro:
[...]équeumavezumasenhoratodaarrumada,daquelasquetêmnojo de
estaraliandandodeônibus,masnãotêmdinheiroparaandardetáxi[...](p.
23). E aqueles que começambrigando por dois centavos [...] (p. 24). [...]
entãotemosgordos,aquelesquenãotêmculpadeocuparmaisespaçoque
osoutros,mastambémosoutrosnãotêmculpadeelesseremgordoseterem
queocupardoislugares[...](p.25).
Na medidaem que o narrador expõe ocaso, ele revela suaprópria personalidadee
constrói as imagens dos passageiros e das passageiras. Nesse sentido, as personagens
femininasquecirculamnocontosãorepresentaçõesadvindasdoolhardestenarrador.
89
Algumas questõesde gênero são evidenciadas nessa fala do narrador. A primeira é
quandoelerememoraacenada"senhoraarrumada".Essapersonagemnãoénomeadaporele,
elaéapenasidentificadapelosparâmetrosdegêneroeclasse,deslocandoassim,asuaposição
deserindividualparaumarealidadecoletiva:asmulheresdeclassemédiaquepossuemcerto
graudeintelectualidade.Essesatributosfemininosdesestabilizamouniversomasculino,que
namaioriadasvezesévistocomosuperior,principalmentenosaspectosintelectualecultural.
Onarradordeixaexplícitooseudesconfortoerevoltaaosaberqueamulhertem"duas
faculdades". Ele demonstra seu despeito, qualificando-a de "nojenta" simplesmente por ela
estar reclamando do troco, como se alguém que aparente ter uma condição financeira
favoráveltivessedeserdesprovido/adesensodejustiça.
Emoutropontododiscurso,eledizaoseu interlocutorqueamulherreagiracontra
ele, xingando-o e repetindo que tinha "duas faculdades". O fato de a mulher enfrentar o
narrador o incomodaraa pontode ele,ao contaro fato, adjetivá-la com palavras de baixo
calãopararebaixá-la:
Duasfaculdades,erepetiaissocomosefosseumaputa,desculpe,umabaita
deumavantagempracimademim,eeudisse(desculpe,doutor,nãoédo
senhor que eu tô rindo, mas da cara daquela vadia nojenta) [...] o senhor
acreditaqueelanãoconseguiupensaremnenhumaresposta,aquelasafada?
(p.23
-
24).
Asdenominaçõesqueonarradordelegaàsenhoraéumamaneiradedemonstraroseu
sentimento de revolta por ter de admitir, mesmo que de maneira inconsciente, que uma
mulher,alémdeterumgraudeintelectualidademaiorqueodele,enfrenta-o.Entretanto,tais
adjetivosnãoforamditospessoalmenteaela,elesficaramguardados,durantecertotempo,no
interior do homem, que, ao expor suas emoções a outro do mesmo sexo, deixa tais
sentimentos aflorarem e desabafa com um palavreado bastante chulo, que é altamente
discriminatório.Ostermosdebaixocalãoutilizadosparanomearapersonagemsóoditos
dessaformaprovavelmenteporqueointerlocutortambémédosexomasculino,demonstrando
assim um comportamento social comumente aceito de que "não se [deve] fazer uso de
determinados termos ou injúrias na frente de mulheres e crianças" (ROCHA-COUTINHO,
1994,p.30).
Ao lembrar a situação o narrador ri, o que habitualmente caracteriza a cena como
irônica. Entretanto, é preciso destacar que a ironia não pode ser vista simplesmente pela
presençadoriso,poisoqueéirôniconãoénecessariamenteengraçado.Hutcheonesclarece
ainda que a ironia tem as suas "arestascortantes",e isso implica -lacomo "assimétrica,
90
desequilibradaemfavordosilenciosoedoodito[sic]"(p.62),alémdeenvolveratitudes
avaliadorasejulgadorasporpartedacomunidadediscursivaemqueosentidoirônicosefaz
acontecer. Desse modo, o narrador, demonstrando seu sentimento machista, utiliza uma
linguagemcarregadadeexpressõesque,emprincípio,sópodemserditasentreentesdosexo
masculino. Todavia, o "doutor" ao qual ele conta a história silencia e não compartilha a
mesmaidéia,causandoestranhezaaonarrador:
Oqueéqueissotemdetãoengraçado?Como,entãoosenhornãoachaisso
engraçado?Équeosenhor não estava láparaver a caraqueelafez e os
outros passageiros rindo dela [...] Olha doutor, seosenhorestivesse lá, o
senhoriarir,eupossogarantirprosenhorqueosenhoriarir(p.24).
Nessa passagem é difícil distinguir quais são os elementos meramente cômicos ou
meramente trágicos, visto que eles se fundem: são tragicômicos, uma vez que o riso
implicitamenteemitidopelonarradorpodeserinterpretadocomoumaatitudedenunciatória
defraqueza,queestáreforçadapelafunção"lúdica"daironia,poisessa"évistacomoaironia
afetuosa de provocação benevolente[...] [e] pode ser interpretada comouma característica
valiosadajocosidade[...]"(HUTCHEON,2000,p.78,grifonooriginal).Deacordocoma
teoria clássica do riso de Hobbes, "rir muito dos outros é um sinal de pusilanimidade"
(HOBBES, apud SKINNER, 2002, p. 69), além de ser "uma estratégia para enfrentar
sentimentosdeinadequação"(SKINNER,2002,p.79).
CombasenoconceitodeHobbes,épossívelpresumirqueosentidodotgicoestáno
fatodeonarradorsesentirinadequado,nãosóporadquirirconsciênciadesualimitaçãocomo
pessoa, mas principalmente como homem. Esse sentimento implícito está evidenciado
inclusivenotrechoemqueeledizqueasenhoraestava,nagíria,tirando"umabaitavantagem
pracima"(p.23)dele.Onarrador,porsuavez,ironicamenteconcordacomofatodequea
mulher,emprincípio,sabemuitomaisdoqueele,masjustificasuafaltadeestudoporser
cobrador de ônibus e diz que quem trabalha nesta profissão "vê a vida toda de lado". É
pertinenteacercadessaelocuçãofazerumaassociaçãoespaço-temporalcomaposiçãoqueo
cobrador ocupa noônibus. Suavisão"de frente" é para o interior do veículo e não para o
exteriordesse.Os/aspassageiros/assãoaextensãometonímicadarua,davidaláfora,sãoo
universodeconhecimentodocobrador.O"verdefrente",entretanto,nointeriordoveículo,
também se iguala a"verde lado". A posiçãoque o narradorocupara no ônibus justifica a
visãolateralquetemdaprotagonista,afinal,elenãoavêdefrente,demaneirainteira,global.
Aposição"delado"podesignificartambémqueelenãoconsegueencararasuaprópriavida
91
"defrente",istoé,estáimpossibilitadodevencerbarreiras,medos,frustrações,tabus,enfim,
nãoconseguetranscenderàsimposiçõessociais.
Uma leiturasimbólica do espaço em quesedesenrolam as açõesé válida porque o
ônibus, por ser um veículo público, "simboliza o contato forçado com o social"
(CHEVALIER&GHEERBRANT,2003,p.102).Essasituaçãoterminaemmortenoconto,
poisosupostoex-cobradormataumapessoapossivelmentenointeriordoônibus,sinalizando
otrágicodasrelaçõeshumanas.Talveículotraztambémumaidéiaopostaao"isolamento,ao
egocentrismo"(p.102),jáquetodosqueestãonestelugardevemsubtrair-seàvidacoletiva.
Entretanto, através da ironia, o que se vê éexatamente ooposto, poisonarrador agecom
violênciae,aparentementesemummotivoqueexpliquetalcomportamento,vaideencontro
àsregrassociaisecontrariaatémesmoumdospreceitoscristãos:nãomatar.
Após a narração das situações presenciadas por ele, há uma pausa, uma quebra na
seqüênciadanarrativa,poisonarradorfazumaobservaçãodizendoqueaculpadetudoédo
motoristadafrente,quearrancaepáraatodoomomento:"[...]equandotupensasquesim,
agoravai,fechaosinaloutravezeassimvaiodiatodo,todososdiasdavida"(p.26).O
discursoépermeadopelosentidoirônicoporqueonarrador,aosereferiraomotoristaeao
movimento do ônibus, realiza um discurso metafórico para refletir acerca da vida, que
implicitamente é o modo como conduz a sua. Como seus projetos são freqüentemente
interrompidos,éprecisosempreparareretomá-losdopontodeondeestagnaram.Essaidéia
seconfirmaporqueele,referindo-seaocondutordoônibuscomooculpado,alémdenãose
ver dirigindo, isto é, conduzindo a sua própria vida, demonstra um "complexo que [está]
determinadosimbolicamentepelapersonalidadedomotorista,aqualnadamaisédoqueum
outro aspecto da personalidade dele próprio" (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2003, p.
102,grifonooriginal).
Damesmaformaqueoônibuspáraecontinua,onarradorvoltaanarrarosepisódios.
Elecontaocasodosquebrigampordoiscentavosedepoisdizemquenãovãoguerrearpor
tãopouco,daspessoasgordasqueocupammaisdametadedoassentodoônibuseocasodos
homensquesentamcomaspernasbemabertas,ocupandooespaçodequemestádolado.
Apóscitaressesexemplos,onarradorfazoutrapausaparajustificarquetaissituações
vão"acabandocomosnervosdeumapessoa"(p.25),acrescidasaoestressedasbuzinaseàs
reclamações dos outros motoristas, que tendem a dizer que a culpa pelo trânsito estar
congestionado é do motorista que está a sua frente. Sobre este último ponto, o narrador
utiliza-sedeironiaparamaquiarotrágicovivenciadoporele,vistoqueemseudiscursoaflora
um profundo sentimento pessimista em relação à vida, que é disfarçado no discurso como
92
sendo um defeito dos outros – e não dele – em culpar sempre o próximo: "E os outros
motoristasreclamandoeachandoqueaculpadetudoédomotoristadafrenteearrancaepára
[...]"(p.25).
Como é possívelperceber,a falta de otimismo do narrador é atribuída não às suas
falhas, mas às dos outros. Além disso, o trágico também se manifesta por incidentes que
ocorrem na vida das pessoas e que independem de vontade própria, sendo o ser humano
obrigado a resignar-se, como se verifica na menção ao semáforo fechado:"[...] quando tu
pensasquesim,agoravai,fechaosinaloutravezeassimvaiodiatodo,todososdiasda
vida"(p.25-26).Essapassagem,mesmoqueemitidaverbalmente,assemelha-seàtécnicado
"solilóquio",poisonarradordesviaoassuntoparaexporumestadopsíquico,defrontando-se
consigo mesmo, experenciando o trágico: seus desejos não se concretizam porque estão
irremediavelmente interrompidos pelo sinal vermelho. Por esse motivo, ele "[comunica]
emoçõeseidéiasqueserelacionamaumatramaeação"(HUMPHREY,1976,p.32).
Outrassituaçõescontadasporeleproduzemimagensgrotescaseirônicas,comoocorre
com a velhinha que fica furiosa ao derrubar uma sacola de bergamotas quando o ônibus
arranca,eapassagememqueacriançavomitaeaspessoasolhamparaocobradorexigindo-
lhe uma atitude (p. 26). De acordo com Maria Osana Costa (1996), tais situações são
grotescasaomesmotempoemquecarregamumtomdesátira"porqueessasimagenssãoum
lugardedeformaçãoerebaixamento"(p.20).Sendoassim, verificoogrotesco no caso da
velhinha que derruba as bergamotas porque essa personagem enfrenta uma situação de
humilhação frente às outras pessoas, "fazendo emergir daí um discurso de denúncia e
ridicularizaçãodasinstituiçõessociaisedavidatrágicadamulher"(p.20).Dessaforma,a
ironia assume a função "atacante", pois funciona como uma forma de "ridicularizar – e
implicitamentecorrigir–osvícioseasloucurasdahumanidade"(HUTCHEON,2000,p.84).
Além dessa cena, presenciar uma criança vomitando é um episódio comum, mas se isso
ocorrenointeriordeumônibuspassaasergrotesco,poiscausarepulsaemalgumaspessoas,
já que elas não têm como sair imediatamente daquele lugar. Afinal, para ser grotesco "é
precisoqueaquiloquenoseraconhecidoefamiliarserevele,derepente,estranhoesinistro"
(KAYSER,1986,apudCOSTA,1996,p.37).
Umoutrocasocontadoporeleéodoshomensque"[...]quandooônibustá muito
cheio eeles vão de pé,eles encostam[...]o'membro'noombrode alguma moçaqueestá
sentada" (p.26).Arespeitodesseexemplo,épreciso destacar o duelo entre os gêneros. O
homem, dotado de virilidade, toma uma atitude de desrespeito ao sexo feminino,
considerando uma ação típica de sua própria essência, como se "o fato da sexualidade
93
masculinasermaisdesenvolvidadoqueafeminina"(MACHADO,1997,p.178)justificasse
tal ação. Um discurso estritamente dominador estaria atrelado a esse acontecimento se a
mulher,àqualonarradorserefere,nãoreagisse.Entretanto,ficaimplícitaaatitudededefesa
da figura feminina:"[...]noinício,elasnãose dão conta,masdaqui a pouco,doutor... Eu
queria que o senhor visse..." (p. 26).Seu espanto lacunar em relação à possível atitudede
revide da moça evidencia que o narrador se surpreende por não ver nessa personagem o
estereótipo da mulher carinhosa, menos hostil do que o homem, pois "qualquer tipo de
comportamento mais agressivo [...] [é] proibido à mulher, uma vez que, por fugir às
expectativas esperadas, seria avaliado como inadequado" (ROCHA-COUTINHO, 1994, p.
127).Areaçãoquedemonstraaopolicialnãosecaracterizadamesmaformadequandofala
da"senhoraarrumada".Sãoduaspersonagensfemininasquetomamumaatitude,mas,como
aúltimasituaçãodescritanãoenvolvediretamenteonarrador,eledeixatransparecerquenão
sesenteprejudicado,ofendido,apenasrelataocasocomoumfatoengraçado.
Noúltimoparágrafodotextoéreveladoqueonarrador"temosnervosfracos"(p.27)e
quefora"encostado".Quandosurgeessarevelação,o/aleitor/aatento/acomeçaadesconfiar
daquelesrelatoscomunsesepreparaparaofinalreveladordahistória.Ohomemafirmaao
seuinterlocutorqueresolveuterafunçãodesupervisionarobem-estardospassageirospara
não passar uma imagem negativa à família, dando bom exemplo de pai trabalhador. Ele
explica:
Masoqueéqueeuiaficarfazendodentrodecasaodiatodo?Prosmeus
filhosficaremouvindolánobairroqueopaidelesnãoservepranadaeque
éamãequesustentaacasa?Pradarmauexemplo?Não.Entãoeusaiode
casatodososdiasnamesmahoraquesaíaantesevoulápropontofinal(p.
27).
Comapassagemacima,ficaevidentequeapreocupaçãodonarradoremtrabalharnão
ésomenteparadarbonsexemplosaosfilhos,comoelepróprioafirmaemseudiscurso,mas,
principalmente,paraconcorrercomamãe,jáqueelatambémtrabalha.Elepensaemdisputar
funções,nãoadmitindoficaremumasituaçãoinferioràdaesposa.Nessesentido,paraele,
umafamílianãopodesersustentadaporumamulher,comoafirmaCynthiaSarti(1997):
Osentidodotrabalhoparaohomemestánapossibilidadede,atravésdele,
cumprir o papel familiar de provedor. Este papel atribui um significado
singular ao trabalho para o homem, associado ao destino de seus
rendimentos:proverafamília(p.158).
94
Oqueaensaístadeclarasobreopapeldomaridovemaoencontrodoqueonarrador
pensasobresimesmoeasuafunçãodentrodafamília.Pelofatodeamulherestarmaisligada
àidéiadacasa,istoé,aoespaçoprivado,cria-seumahierarquizaçãodegênero,cabendoao
homemocuparoespaçopúblico.Alémdisso,aqui"otrabalhovalenãosóporseurendimento
econômico, mas por seu rendimento moral, [ou seja,] a afirmação, para o homem, de sua
identidademasculinade'homemforteparatrabalhar'"(p.157).
É na penúltima frase do texto que o narrador esclarece que ele supostamente está
afastadodoserviçodecobradorportermatadoum/apassageiro/anoferiadodeprimeirode
maio,devidoaofatodeste/anãotermantidoaordemeaharmonia,referidasporele:
Eaminhafunção,eulhedigo,doutor,éademanteraordemdetodosos
passageiros, nem que para isso, doutor, eu tenha que matar, como,
lamentavelmente,ocorreunesseferiadodeprimeirodemaio(p.28).
É imprescindível considerar que todos os exemplos aparentemente bobos e comuns
citados pelo narrador/assassino funcionam para justificar o seu ato grotesco de matar uma
pessoa,provavelmentenointeriordeumônibus,porestaterinfringidoaordemcontrolada
porele.Dessemodo,aimagemdeumassassinoconfessofrenteaumpolicial,justificando
seucrimeatravésdecasoscomooscontados,éumasituaçãoirônicaetrágicaporexcelência,
pois matar um ser humano é sempre trágico, ainda mais se for por motivo fútil como o
narrador alega. Isso demonstra queas pessoas estãoem um nível de incomunicabilidade e
violência bastante crítico, em que se tira a vida dealguém sem piedade e ironicamentese
"lamenta"oocorrido.
Hátambémapossibilidadedeonarradornãoserumapessoaperturbadamentalmente,
edefato,nãoterrealizadootrabalhodefiscaldobem-estardos/aspassageiros/as,masque
issotivesse sidoapenasumamaneira de debochardo papel da políciano momentodesua
confissão.
Atravésdadatadoassassinato,queéoprópriotítulodoconto,épossívelrelacioná-lo
àsituaçãodeestressequeum/atrabalhador/asofreemsuarotina.Adatageralmenteévista
pelasociedadesomentecomomotivodecomemoração,masaquielaestásendoreferidapara
revelarironicamenteotrágico.Aobrigatoriedadedotrabalho,somadoàsperturbaçõesdavida
contemporânea,podeferirosbriosmasculinosapontodeconduziraspessoasaumestado
profundodedesequilíbrio.
Em relação às vertentes temáticas apresentadas por Gilda Bittencourt, verifico
essencialmentenestecontoapresençadeduasvertentes:a"social"ea"existencial-intimista".
95
Avertente"social"éaqueestámaisevidentenanarrativa,devidoaoscomentáriosdo
narradoracercadasociedadeemquevive,jáqueelefaz,duranteasuaprofissãodecobrador
deônibus,umapanhadodetipossociaisqueencontrara.Observo,portanto,queháapresença
deumamicroestruturasocialsendodescrita,poisestestiposrepresentam,emgeral,aclasse
maisdesfavorecida,queseutilizadoônibuscomomeiodetransportenoseudia-a-dia.
Além dessa caracterização social, há uma tênue crítica em relação ao trabalho,
apresentadasobumpontodevistaestritamentenegativo,principalmenteporsetratardeuma
atividade que não tem prestígio social. Neste conto, a profissão de cobrador de ônibus
representaamicroestruturadosoutrostiposdeempregosqueestãoàmargem,oquegeraao
narradore àspessoasemgeral um desconfortoeumestressemuitogrande. Além disso,a
visão que expõe das personagens, principalmente das femininas, revela as diferentes
cosmovisõesdasociedadecontemporânea.Nessamedida,assimseexpressaBittencourt:
Avertentesocialéamaisextensaevariada,poiscompreendetodosaqueles
textoscujaidéiaprimordialéaanálisedasociedadeemsuasmacroemicro
relações,abrangendodesdeasqueacontecemnointeriordacélulafamiliar,
ou no contato entre patrão e empregado, até as grandes contradições do
sistemacapitalista,com asdiferençasbrutaisentreossegmentossociais,a
perversa distribuição de renda, os valores/comportamentos dos setores
privilegiados, os problemas do exercício do poder, da repressão, das
liberdadesindividuaisdoscidadãosetc.(p.73
-
74).
Estáimplícitaem"Primeirodemaio"adenúnciadasdesigualdadesepreconceitosdas
pessoasumascomasoutras,principalmentenoquetangeàrelaçãodohomemcomamulher,
poisoscasoscontadosdestacamoconflitoentreaspersonagensmasculinasefemininas.
Outroaspectotemáticodiz respeitoà uniãoda"vertentesocial"coma"existencial-
intimista" no que concerne à liberdade individual das pessoas. No momento em que o
narrador relata suas ações ao longo das histórias que conta, essas são justificadas como
mantenedoras da ordem e da liberdade de todos os/as passageiros/as. Todavia, com o ato
criminoso(assassinato)praticado,eleimpedeoexercíciodaliberdade(deviver)deumser
humano. Essa questão gera uma mescla entre o sentido "social" da ação com seu aspecto
"existencial-intimista",pois o narrador busca a sua auto-realização e/ou auto-afirmação, na
medidaemqueoaceitaasuacondiçãodese"encostar"(p.27),poisestápreocupadocom
ascríticasdavizinhança:opainãoservepranada,éamãequesustentaafamília.
A vertente "existencial-intimista" é explorada através das pausas do narrador,
medianteasreflexõesquefazaonarraroscasos.Aocontarparaseuinterlocutoroexemploda
"senhoraarrumada"–queocasionaseudescentramentoemrelaçãoaela–,elerefleteacerca
96
de sua posição na sociedade. Questiona-se em termos existenciais, em busca de
autoconhecimentoedesuasrelaçõesfamiliares,queideologicamentesubsumemrelaçõesde
poder.
Ainstâncianarrativade"Primeirodemaio"envolvetambém,segundoatipologiade
Gilda Bittencourt, uma consciência "empenhada", percebida pela alusão a determinados
conjuntosdevalores diferenciados,comoosqueremetemàquestãodegênero.Onarrador
"coloca-seàdistânciadaquiloquenarra,criticandoferozmentearealidadequevislumbra"(p.
199), comentando o comportamento das personagens, principalmente as femininas. Ele as
caracteriza com ênfaseno"ridículoe [no] grotesco" (p. 199), como se fossem caricaturas.
Sendo assim, todos os acontecimentos são "[mostrados] a partir do olhar tendencioso
fornecidopelaconsciênciaempenhada"(p.199).
Aposiçãodistanciadaqueonarradorassumeimplicaoutraconsciência:a"distante".
Onarradorhomodiegéticonarra"oquesepassanoslimitesdoseucampodevisão"(p.190)e
orelatoéfeito"nopresente,simulandoumacontemporaneidadeentreãoe narração"(p.
190),justamenteparaproporcionarmaiorveracidadeaosargumentosexpostos.
Verifico neste conto uma mescla de diversos tipos de consciência. Há, além da
"empenhada" e da "distante", a presença de outras duas consciências, a "irônica" e a
"introvertida".Aconsciência"irônica" proporcionaaonarrador a possibilidade deexporas
suascríticasdemaneiramaisdescomprometidae,emalgumaspassagens,osrelatosassumem
umtomdehumor:"Oqueéqueissotemdetãoengraçado?Como,entãoosenhoroacha
isso engraçado? É que o senhor não estava lá para ver a cara que ela fez..." (p. 24). A
consciência "introvertida" caracteriza-se pela presença de um narrador autodiegético, mas,
diferente do que comumente ocorre em outras narrativas, o centro do relato não está
exclusivamentesituadono"eu"quenarra,aindaquesetratedeumprováveldepoimento.O
foco, por vezes, é direcionado às demais personagens, sendo a consciência "irônica" a
responsável pela produção deste efeito descentralizador. Quando o narrador comenta, por
exemplo, o caso da "senhora arrumada", ele desvia seu depoimento focalizando essa
personagem,comoquemdesejadisfarçaradesestabilizaçãoquetalsituaçãolhecausa,istoé,
oabalodaestruturadoseuuniversopatriarcal.Essedesconsertoseassemelhaàconsciência
"mutável",poisalémdeanarrativaseconstituirdepequenosfragmentos,cadacenadescrita
apresenta,mesmoquepormeiodavozexplícita de um único narrador, "o posicionamento
ideológicoeemocionaldoseuemissor"(p.219).
97
O relato é feito em primeira pessoa, mas o narrador é apenas uma
testemunha que apreciou a distância, com ar zombeteiro e irônico, tudo o
que acontecia à sua volta; assim, seu discurso contém observações
sarcásticas, comentários irônicos e tiradas divertidas sobre o "espetáculo"
presenciado(p.221).
Em "Primeiro de maio", a violência da sociedade contemporânea desequilibra o
narradoretransforma-oemumassassino.Aconstruçãodasfigurasfemininasdá-sepelavisão
dooutro(onarrador),vistoqueelasnãotêmvoz,nãosemanifestam.Dessaforma,épossível
afirmarqueeleasociedadenos/aspassageiros/as,eseuolharcríticoconstróiumuniverso
marcadopelaironiaepelotrágico.
Paraaspersonagensfemininas,otrágicoestánassituaçõeshumilhantesdodia-a-dia,
pelas quais são obrigadas a passar. A mulher com duas faculdades, "anda de ônibus [...]
[porque]nãotemdinheiroparapagarumtáxi[...]"(p.23);asoutraspassageirasqueestão
sentadassofremumassédiosexualostensivonosônibusquandoesteestálotado,oqueéum
sinaldeviolência,poiselasnãotêmmeiodereagir,commedodeoshomens,"queencostam
seu'membro'noombro[delas]"(p.26),revidaremagressivamente.Essassituaçõestrágicas
estãoimplícitas,maspodemservistasdessaformanamedidaemqueoônibuscomseus/uas
passageiros/asrepresentaumacamadadasociedade.Aironiafuncionacomoumdisfarcede
seussentimentosmaispreconceituososeobscuros,servindotambémparacaracterizaros/as
outros/asatravésdeseudiscurso.Paratanto,énecessárioqueoambiente"circunstancial"do
ônibus seja levado em consideração, pois só haverá ironia se o/a leitor/a estabelecer uma
"situação 'enunciativa' complexa" (HUTCHEON, 2000, p. 207) que envolva não só o
ambiente em que as ações se desenrolam, como também o conjunto de expectativas do
narrador edas demais personagens, bem como a situação de fala, depoimento,em que ele
provavelmenteseencontra:aconfissãodeumcrime.
É preciso perceber que o olhar masculino do narrador sugere situações e
comportamentosdaspersonagensfemininascommaiorênfase,aindaqueoexpliciteisso.
Sãopraticamentedezcasosnarrados,eamaioriadelesenvolvepersonagensfemininascom
idades distintas. São moças, senhorase velhas; todas sem contar as suas histórias, as suas
versões.Aindaassim,sãomulheresquetomaminiciativa,queocupamoespaçopúblico–o
ônibus–eenfrentamosexoopostodeigualparaigual.
Aúltimapersonagemfemininareferidapelonarradoréaesposa.Elanãofazpartedo
grupodaspassageiras,masnãoestátrancafiadanoespaçoprivadodolar,poistrabalhapara
ajudarnosustentodafamília.Umaleiturapossíveldocomportamentoextremistadonarrador,
98
emmataralguémporquedeseja"manteraordem"noônibus,podeserjustamenteumaforma
encontrada para impor a reestruturação do universo patriarcal já desgastado. Devolver a
ordem pode ser, portanto, calar as mulheres, deixando-as sem voz na sociedade, mas
concedendo-lhesodireitodeseremsoberanasemseuslares,esomenteneles.
2.2.3–"Tudonavidaépassageiro"–Algunsficaramemalgumaparada,porondeesse
ônibusnãopassava
Em"Tudonavidaépassageiro"(p.39-44),oespaçonãoéidentificado,eonarrador
homodiegéticofazdesuasreminiscênciasatramadahistória.Elecontaauminterlocutornão
identificado,a história de uma mulher que conhecera e que por ela se apaixonara quando
aindaexerciaaprofissãodecobradordeônibus,hámaisdevinteanos.Osexodointerlocutor
nãoéevidenciado,poisaúnicapassagememquesedirigediretamenteàpessoacomquem
falaéaquediz:"[...]euestoutecontandotudoisso,porquemeaposentei"(p.43).Pelofato
deointerlocutornãosemanifestar,anarrativaadquireaformadeummonólogo,demodo
queosposicionamentosassumidostêmumaúnicavisão.Onarradorrelataahistóriaemum
tempopassado,dizendoque,naépoca,amoçautilizaraoônibusdiariamenteemsuarotina,
sendoumapassageiraassídua.Erasempreomesmohorário,omesmomeiodetransporteeo
mesmodestino:
[...]oônibusfaziatodososdiasomesmotrajeto,demodoqueeusemprea
via,namesmahora,nomesmoponto–queeraoquartopontoemfrenteà
PadariaUniverso–edesciaseteparadasdepois,doladodaPharmáciaSete
Vidas, que ficava embaixo do escritório de um advogado onde ela
trabalhava:eradatilógrafa(p.40).
Pormais de duasdécadas, ele cultiva um "amorplatônico
20
" pela personagem,mas
jamais revela seus sentimentos, apenas a observa todos os dias e imagina que ela lhe
corresponde. Por acompanhar diariamente alguns instantes da sua rotina, vê que dois anos
depoisdeconhecê-laelasecasacomo"alemão"(p.40)eemseguidaocasaltemgêmeos.O
 
20
Entende-seporamorplatônico,naacepçãomoderna,"todaarelaçãoafetuosaemqueseabstraioelemento
sexual,idealizada,porelementosheterossexuaisdegênerosdiferentes–comonumcasodeamizadepura,entre
homememulher.Estadefinição,contudo,diferedaconcepçãomesmadoamoridealdePlatão,ofilósofogrego
daAntigüidade,queconceberaoAmorcomoalgoessencialmentepuroedesprovidodepaixões,aopassoem
[sic] que estas são essencialmente cegas, materiais, efêmeras e falsas. O Amor, no ideal platônico, não se
fundamenta num interesse(mesmoo sexual),mas na virtude".(Grifona versãoda internet). Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Amor_plat%C3%B4nico>.
99
cobrador escreve aos seus familiares dizendo que a mulher, a "ruivinha" (p. 41) como se
refere,ésuanamoradaeimaginainclusivequeeleéopaidascrianças.
Onarradormorasozinhoemumapensão,longedesuafamília,queresideemoutra
cidade – não explicitada no conto. Quandoele escreveaos parentes, conta que a moçado
ônibusésuanamorada,masquenãoalevaparaelesconheceremporqueéumamulhermuito
tímida.
Comonascimentodosgêmeos,aprotagonistaficaumtemposemutilizaroônibus,e
onarradorconfessaestaransiosoparavê-laretomaràrotina:observá-laembarcardiariamente
noônibusemqueeletrabalha,rumoaoseuempregodedatilógrafa.Quandoelavoltaaandar
no ônibus, algumas situações já não o como antes, pois seu marido o mais a leva na
parada,eelaagorapossuiumarsério,preocupado,nãosemostrandomaissorridentecomo
outrora.
Onarradorcontaque,passadosalgunsanos,aruivinhadescetrêsparadasdepoisda
habitual–noescritórioondetrabalha–,poistemquedeixarosfilhosnaescola.Emrelação
aocomportamentodelacomosfilhos,oex-cobradorcontaque"elaeramuitocarinhosacom
elesenuncaperdiaapaciência, masàsvezessedistraíae osolhosficavamtãotristesque
pareciaatéquetinhammudadodecor"(p.42).
Osfilhosgêmeoscomeçamanamorareatrabalhar"comunsquinze,dezesseisanos"
(p. 43) e logo casam. Eles também utilizam o mesmo ônibus para irem ao serviço, assim
comoamãe,porém,depoisdeumtempo,somenteumdelesévistopelonarrador.Amãe,
com o passar do tempo, demonstra estar cada vez mais triste. A aparência melancólicada
personagemintensifica-se,eonarradordescreveessasmudançasemtomsubjetivo:
A aliança tinha sumido do dedo, ela estava mais gorda e os cabelos
branquearamdeumahoraparaoutra.Elapareciaterficadovelhaderepente,
mas continuava bonita, com aqueles olhos às vezes azuis, às vezes cinza.
Ela,agora,estavasemprecomumacapapretaqueeunãogostava(p.43).
Aprotagonista,jácomaresenvelhecidos,éaindaobservadapelonarrador.Elenota
queseuitinerárionãomudadesdeotempoemqueavirapelaprimeiravez,pois,apesardeo
prédioondeelatrabalharatersidodestruído,elacontinuavaadescerali,"anãoserquandose
distraíaeiaatéofimdalinha"(p.43).
Somente no último parágrafo é possível compreender o porquê dos relatos, e o
narradoréquemorevela.Eledizestarmuitotristeporversuaamadaentrarpelafrenteno
100
ônibus,contandoahistóriadesuavidaaosdemaispassageirosepassageirasqueaignoram.
Elausaosmesmosvestidosdevinteanos,
[...] sujos e remendados, falando coisas que ninguém entendia, como dos
filhosquetinhamidoparaocolégioouparaafábricaeque,quandoelafoi
buscar,sóentregaramum,maseramdois(iguais,masdois–eladizia),eque
aculpaeradoalemãocomaquelaloiradapadaria(p.44).
Todavezqueelacontaessahistóriaaos/àspassageiros/as,onarradorpercebequeas
pessoas ora riem dela, ora a olham com um "olhar de mplice" (p. 44). A cumplicidade
referidaporelepossivelmenteéemrelaçãoàtraiçãoqueelasofrera,demodoquealgumas
pessoaspodemsaberdofato,masnãocomentam.Esse"olhar"podesertambémumareação
desilenciamentodaspessoasfrenteaosrelatosdaprotagonista,"comosefazdiantedeum
louco"(p.44),dequemosedevediscordar.Essassuposiçõesoinduzidaspeloolhardo
narrador;portanto,éprecisodesconfiardesuapalavra.Aaparênciatextualdoseudiscurso
marca uma irônica crítica ao comportamento da personagem feminina, pois de maneira
simplistaeleadefinecomo"louca",dizendoqueterseaposentadoevoltarparaasuacidade
natal é umalívio, poisogosta de vera sua amadafalandocoisas semsentidoe usando
roupas sujas, remendadas e velhas.Naúltimafrasedocontoonarradorexpõe,demaneira
sintética,odestinodaprotagonista:"Umavelhalouca,aminharuivinha"(p.44).
É importante perceber que o adjetivo dado a essa personagem carrega uma visão
masculina extremamente preconceituosa, pois ela é descrita como "louca" apenas por sua
aparênciaeporprocurardesabafarcomaspessoas.Sendoassim,énecessáriopressuporque
taisdefiniçõesdequemnarranãosão
exatamentefiéisaoqueapersonagempossaser,afinal,
elanãocontadiretamenteasuahistóriadevida,nemtemaoportunidadedefalarsobreseus
sentimentos. Possivelmente, se isso acontecesse, a conclusão seria outra, e a "loucura"
referidaporelepoderiaseroumcomportamentoquefogeaospadrõesestabelecidospela
sociedade, mas a representação de um sentimento trágico, vivenciado de modo intenso,
marcadoprincipalmentepeladordaperdadeumfilho.
Paraumamelhorcompreensãodotextoéimprescindívelverificarapresençadaironia
relacionadaaosimbólico,poisosentidoirônicoestáportrásdealgumasobservaçõesfeitas
pelo narrador e também em alguns termos utilizados como, por exemplo, a repetição do
número"sete"eaeleiçãodoslugaresemqueaprotagonistacircula.
Notrechoemqueonarradorcriticaotrânsitoatual,comparando-oaodeantigamente
há a presençadaironia:"O trânsitonãoeraessaloucuraqueéhoje, mas tambémnãoera
101
nenhumamaravilha"(p.40).Aexpressãocoloquial"nenhumamaravilha"revesteodiscurso
de sentido irônico, pois o/a leitor/a participa, de certa forma, da mesma comunidade
discursiva deste, isto é, atuam em ummesmo tempo e, portanto, estão igualmenteaptos a
fazer uma comparação crítica entre a contemporaneidade e o passado. Por esse motivo,
estabelecem"umacumplicidadeideológica",porqueosentidoirônicoestána"compreensão
partilhadasobrecomoomundoé"(HUTCHEON,2000
,
p.148).Nesseviés,ficaevidentea
função"distanciadora"daironia,poisodiscursodonarradorpossuiaparentementeumtomde
"indiferença"(p.79,grifonooriginal),porqueaparentementenãoháumcomprometimento
acercadoqueelepensadefatosobreotrânsitoeaspessoas.Poroutrolado,éjustamentepor
"essareservadistanciadora[queseabreespaço]paraumanovaperspectivaapartirdaqualas
coisas podem ser mostradas, e,assim, vistasde maneira diferente[...]" (p. 79-80,grifono
original).
A palavra "trânsito" assume duas conotações que se entrelaçam, pois esse termo é
utilizadonosentidodeafluênciadeveículosepedestres,comotambémmudançadeestado,
decondição.Eleafirma:"[...]nãogostodapalavra'trânsito'.Apesardaminhaprofissão,eu
nãogostomuitodessacoisadeestarsempreindoevoltando.Sempresonheiterumavidaem
queeutivesserealmentechegado"(p.40,grifonooriginal).Atravésdojogointerpretativo
feito com o termo, percebo a ironia imbricada no trágico, porque o narrador revela um
sentimentodedesilusãofrenteaosrumosdesuavida,istoé,quandoafirmanuncaterchegado
a lugar algum, o que, metaforicamente, significa que ele não concluíra seus objetivos e
desejos.Essareflexãoéumaespéciedesínteseacercadoenredodoconto,percebidaatravés
docontexto"circunstancial"emqueosentidoirônicoestásendoinferido,poisaolongoda
narrativaestáevidenciadooqueonarradorquedizercom"nuncaterchegado".Eleimagina
viverumavidaquenãotem:idealizaumanamorada,depoisumaesposa,osfilhosquetem
comela,enfim,tudoseconcretizaapenasemsuamente,fantasiandoumahistóriaquenãoéa
sua. Esse comportamento de desacerto com o real o está por ele definido, apenas
implicitamentecolocado,aocontráriodoquefazcomsuaamada.Mesmosemsaberoquese
passacomela,julga-aecaracteriza-acomo"louca",possivelmenteparadesviaraatençãode
seupróprioestadodealijamento,vistoqueelenãoconsegueterumrelacionamentoamoroso
concretoe,portanto,aceitocomo"normal".
Éevidentequetodasasinformaçõessãoobtidaspelavisãodonarrador,masofocoda
narrativaestánacaracterizaçãofísicaepsicológicaatribuídaàpersonagemqueama,sendo
possível, portanto, vislumbrar que, por vezes, a presença dos
trechos semelhantes ao
"solilóquio"sãoimportantesparaodesnudamentodaprotagonista,a"ruivinhadoônibus".
102
Ofatodeaprotagonista não sernomeadarefleteumadistânciaaindamaiorentreo
narradoreasuaamada,poiselenemaomenossabeoseunome,nãoconversam,nãotêmum
eloafetivo,nemumcontatoquetorneorelacionamentoconcreto.
Quandoeleavêpelaprimeiravez,descreve-acomoumapessoaalegreesimpática,
masquecomotempo,"foificandocadavezmaisséria"(p.42)etriste.Onarradorpressupõe
queumdosmotivosdessatristezaéodivórcioouofalecimentodomarido,porqueeleassocia
amudançadecomportamentodaprotagonistaàobservaçãodeque"aaliançatinhasumidodo
[seu]dedo"(p.43).Émaisprovávelqueelatenhasedivorciadoaoinvésdeficarviúva,já
queomaridoatrai,eessefatoémencionadoantesdamudançadecomportamentodela.A
tristeza da mulher se configura também pela perda do contato com um de seus filhos. O
narrador apenas menciona que os gêmeos casam, que trabalham e provavelmente moram
pertodacasadospais,"poiscontinuaramapegaroônibusparatrabalhar".Entretanto,como
tempo, o narrador começa "a ver um só" (p. 43). Não é possível saber a causa do
desaparecimentodogêmeo,quepodeserpordiversosmotivos:ofilhopodeteridomorarem
outrolocalenãomaisutilizar-sedoônibusemqueonarradortrabalharacomocobrador;pode
termudadoderesidência,oupodeaindaterfalecido.Todavia,écertoapenasqueestesfatos–
a separação/traição do marido e principalmente a perda de contato com um dos filhos –
causamumsentimentodedorprofundanaprotagonista,quepassaaterumavidasolitáriae
marginal,queembarcadiariamentenomesmoônibusdeanosatrásedescenaparadade
quando trabalhara e os filhos ainda eram crianças, reproduzindo no tempo presente uma
situaçãopassada,comoquembuscaasoluçãoparaosproblemas.Onarradorexplicaotrajeto
daprotagonista:embarcarnoônibustodososdiasnomesmohorárioenomesmoponto,em
frenteà"PadariaUniverso–edescerseteparadasdepois,doladodaPharmáciaSeteVidas
[...]"(p.40),poistrabalhavacomodatilógrafaembaixodesseprédio,nodoescritóriodeum
advogado.
O comportamento da "ruivinha" a conduz para um estado de inquietude que lhe
proporcionaailusãodeviverumavidaquejánãoémaiscomoantigamente,demodoque
repetir o trajeto pode representar para ela uma busca ou uma forma de entendimento dos
sofrimentos vividos no passado. No caminho repetido dia a dia, ela desabafa com
passageiros/asdesconhecidos/asnoônibuseexpõeasuadecepçãoamorosa,fazendoquestão
defalarquecertodiaosfilhosforamparaaescolaouparaafábricaenomomentoemque
forabuscá-losentregaram-lhesomenteum,e"queaculpaeradoalemãocomaquelaloirada
padaria"(p.44).
103
Ofatoqueaprotagonistacontanopresentenãoocorrera,poisosfilhoscomeçama
trabalhar–possivelmentenafábricaqueelamencionaemseudiscurso–quandoonarrador
percebeaausênciadeumdeles.Alémdisso,comosfilhosadultos,elajánãomaisosbusca
na escola, nem sequer no trabalho, o que configura o aparente estado de desequilíbrio da
personagem. A confusãoque faz entreas informações édestacada pelo narrador, poisé o
único momento em que a voz da personagem feminina figura na narrativa. Através do
discurso indireto livre, o narrador reproduzos pensamentos da amada, a fim de reforçar e
justificaracaracterizaçãoquelheéatribuída:"umavelhalouca".
Noprincípio,tudoéaparentementeharmônicoefelizparaa"ruivinhadoônibus":ela
éjovem,bonita,ruivadeolhosazuis,casacomalguém que supostamenteaama,temdois
filhos, trabalha, enfim, parece ser uma mulher feliz, realizada como esposa, mãe e
profissional.Comopassardotempo,tudosemodifica,acomeçarpelaperdadajovialidade,
expostapelonarrador:"Elapareciaterficadovelhaderepente,mascontinuavabonita,com
aquelesolhosàsvezesazuis,àsvezescinza"(p.43).Avaidadetambémédeixadadelado,na
medidaemquepassaausarumacapapretasobreosvestidosvelhoserasgados.Alémdisso,
ocasamentosedesfaz,elaperdeocontatocomumdosfilhoseotrabalhamais:"oprédio
da farmácia tinha sido destruído" (p. 43). Todas essas mudanças fazem com que ela se
entregueaumestadodedorintensa,queaconduzaumasituaçãotrágica:amarginalização.
Comodesfechodanarrativaficaevidenteque
[...]exerceropapeldeesposa–cabernasdefiniçõesaceitasdefeminilidade
–édemonstraçãosuficientedesanidademental,[aopassoque]aloucuraé
umadasformasdeexplicitarainjustiçaeairracionalidadedeumasociedade
que divide e hierarquiza seus membros de acordo com seu gênero
(SCHWANTES,1995).
As considerações deSchwantes corroborama leituradoconto soba perspectiva de
gênero,poisháumnarradormasculinoqueolhaumapersonagemfeminina.Sendoassim,é
preciso sopesar que por trás de suas considerações está uma visão social, que vê no
patriarcalismo a única forma de se ter comportamentos corretos. A sanidade mental da
protagonista passa a ser colocada sob suspeita a partir de seu desligamento das funções
naturalizadas:exerceropapeldemãeedeesposa.Éapartirdaíqueapersonageméjulgada,
ao passo que ir de encontro a esses padrões ainda pode levar as mulheres ao exílio, pois
transgredirparecenãoserpossívelemumasociedademachistaeconservadora.
A protagonista de "Tudo na vida é passageiro" representa as mulheres que estão
"cambiantesentre o cumprimento de seu papel de mulher, sempreimposto, e a chance de
104
cumprir o seu papel de sujeito pensante" (ABREU, 1999, p. 126). Estão, desse modo,
divididas entre os seus valores humanos e aquilo que é tido como o ideal de felicidade:
somente conseguir ser feliz no casamento e viver em torno dos filhos. Esta personagem
"acabatrilhandoumcaminhosemvolta,quealevacadavezmaisparaasolidão,odesespero"
(KAUSS,1999,p.100).Éesseosentidodotrágicovividopelaprotagonista,comoseobserva
naspalavrasabaixoregistradas:
A experiência trágica conterá sempre a essência humana e suas virtudes.
Umaobradramáticajamaiséunicamenteotalentodeseuautor,elaexpressa
tambéma visão domundo,do ser, e as inquietações que seescondemno
espíritodeumadeterminadaépoca(FONSECA,2005,p.59).
Nesteconto,VeraKaram,entreoutrasabordagens,demonstraasrelaçõesdesgastadas
emqueseapóiaocasamento,poisháumapersonagemfemininaquesupostamenteétraída
porummaridoquedissimulaumapaixãoporela,jáquetodoodiaaacompanharaatéoponto
deônibus,deixando-a"aosbeijos,eficavaolhando,esperandoelasubireria,todoposudo,
como se tivesse o rei na barriga" (p. 40). Entretanto, mesmo com esse comportamento
aparentemente livre de qualquer suspeita, surge a infidelidade, sarcasticamente denunciada
peloespaço:opontoemquearuivinhaembarcaselocalizaemfrenteàPadariaUniverso,ea
amantetrabalhajustamentenesselocal,éa"loiradapadaria"(p.44).
A leiturasimbólica da narrativa contribui paraapercepçãodaironia, poisfunciona
"como gatilhos para sugerir que o interpretador deve estar aberto a outros significados
possíveis"(HUTCHEON,2000,
p.221).
Algumas vezes o número sete é mencionado no conto: "sete paradas depois",
"Pharmácia Sete Vidas" (p. 40) e balas "sete belos" (p. 42). Essa "repetição [...] (intra)
textual"(HUTCHEON,2000
,
p.227)configura"umadascategoriasmaiscomunsparaofim
[irônico]" (p. 226). De acordo com Chevalier & Gheerbrant (2003), o número sete "é o
símbolo universal de uma totalidade, mas de uma totalidade em movimento ou de um
dinamismototal"(p.827)e"possuiemsimesmoumpoder,éumnúmeromágico"(p.828).
Dessemodo,essenúmerorepresentaironicamenteavidadaprotagonista,queaodescer"sete
paradasdepois"aoladodeseulocaldetrabalho,denotaessatotalidade,poisnessemomento
aindaéumapessoacompleta,sendootrabalhoumpontoqueelucidaessaquestão.Osentido
irônicoestájustamenteno fatodeque,quandoelanãotrabalhamais,continuaafazero
mesmo trajeto em busca justamente desse significado simbólico da totalidade, ligada ao
movimento,aodinamismoqueo"sete"representa.
105
O nome "Pharmácia Sete Vidas" traz também um significado irônico porque a
protagonista trabalhaem um escritório localizadoem cima dafarmácia, e a palavra "sete"
adquireumsentidodepoderderessurgimentoligadoàvida,àsaúde,eoqueacontececom
elaapósodesenlacedosfatostemumduplosignificado.Pensoque,pelofatodeelacontinuar
a descer nesse local já destruído, está buscando a recuperação, o renascimento, mais uma
chancedeentenderoqueaconteceudetrágicoemsuavida.Alémdisso,afarmáciaéumlocal
emqueseprocuraacuraparaosmalesdocorpoedamente,portantoésimbólicoeirônico
tambémporqueelabusca,emcertamedida,tratarasuadorrevivendooseutrabalho,visto
queoescritórioemquetrabalharasituava-seemcimadafarmácia.Dessemodo,épossível
inferirquequandoosprédiossãodestruídos,elavive"umaansiedadepelofatodeque[osete]
indicaapassagemdoconhecidoaodesconhecido"(p.828),istoé"setevidas"podeseruma
simbologiadosdiversosprocessosdemorteporquepassaapersonagemfeminina,sendoum
delesaperdadoempregodedatilógrafa.
Adescriçãoqueonarradorfornecedaprotagonistafuncionacomopistaqueindiciao
estado interior da amada que ele deseja revelar. Dessa forma, o narrador constrói a
personagem feminina através de sua capacidade onisciente de descrevê-la por
aproximadamenteduasdécadas.Essaonisciênciasemanifestanamedidaemqueele,apesar
de ocupar uma posição homodiegética, não dialoga com essa personagem, não a conhece,
apenas imagina e idealiza situações as quais comenta. No princípio, ainda com uma vida
aparentementeestabilizadaemocionalmente,elaédescritacomoalguémalegre,quetemos
olhos azuis e os cabelos ruivos. A cor azul "sugere uma idéia de eternidade tranqüila e
altaneira,queésobre-humana–inumana",alémdeser"acordaverdade"(CHEVALIER&
GHEERBRANT,2003,p.107-108). Porém,quandoonarradornotaqueelanão estámais
comaaliançanamãoesquerdaenãovêmaisumdeseusfilhos,elapassaateros"olhosàs
vezesazuis,àsvezescinza"(p.43).Demodosimbólico,épossívelassociaramudançana
tonalidade dos olhos e cabelos com o interior da personagem, pois ocinza exprime "uma
intensador"eocabelo,querepentinamenteficaragrisalho,"dáumaimpressãodetristeza,de
melancolia,deenfado"(CHEVALIER&GHEERBRANT,2003,p.248).
Aironiaestáaquiassociadaaotrágico,jáqueacorazul,aomesmotempoemque
representa o período de felicidade vivenciado pela protagonista, pode ser considerada
simbolicamente,comoalgo"inumano",restandoaelaentão,viveremsolidão,sentirdore
sofrercomasperdasecomaexclusãosocial.
Sermãedegêmeoséumpontoimportantenoquetangeàsignificaçãosimbólica,pois
"osfilhosgêmeos,[sãoa]imagemdointerior"(XAVIER,1998,p.67-68)daprotagonista,
106
sendoapalavra"gêmeos"arepresentaçãodoser"divididoemsimesmo"(CHEVALIER&
GHEERBRANT2003,p.465).
Noconto, umdosgêmeosdesaparece,restando ooutro. Tal situaçãopodeservista
comoamortedeumdosladosinterioresdapersonagem,aquelequeatornamãecompleta,
realizada,esposa,trabalhadora.Essasfunçõescombinadasmarcamseuladotransgressor,pois
elatentaconciliardiversastarefas.Quandoomundodaprotagonistacomeçaaserabalado,
elapassaautilizarumacapapretasobreosmesmosvestidinhosdequandoerajovem,oque
reforçaseuestadodepobreza,tristezaedesilusão.ChevaliereGheerbrant(2003)explicam
que a capa é "símbolo das metamorfoses por efeitos de artifícios humanos e das
personalidades diversas que um homem pode assumir" (p. 589); portanto, utilizar-se dessa
vestimenta remete a personagem a uma situação de transformação, já que ela busca algo
diferente,desejadarumnovosentidoparaasuavida.Poroutrolado,éumapessoaquevolta
aopassadoparaentenderereviveroseupresente,debaixodacapapreta,quedenotapelacor
sersinal"deluto"(p.740),elausaseusvelhosvestidos"sujoseremendados"(p.44).Éo
lutocontraovelho,oquepassou.Éamarcadadorsofrida.
O fato de seus vestidos estarem sempre sujos remete à simbologia da mancha, no
sentidode"degradação,deumaanomalia,deumadesordem".Asroupasmanchadastambém
expressamque"tudopassacomoumanuvem"(CHEVALIER&GHEERBRANT,2003,p.
585),sendopossívelperceber,portanto,umaalusãoaoprópriotítulodoconto,"Tudonavida
épassageiro".Aaparênciadaprotagonistaéusadapelonarradorcomoumamarcaquereflete
uma essência caótica e desordenada. Entretanto, outro significado é possível, porque, na
medidaemque"[ostentar]suasmanchassignificaassumirospróprioserros,asuacondição
detransgressora"(COSTA,1996,p.138),sempreocupar-secomaopiniãodosoutros,mas
consigomesma.
Emrelaçãoàvertentetemáticade"Tudonavidaépassageiro",perceboapresençada
"existencial-intimista", pois o narrador relata a vida da personagem feminina sob uma
"perspectivasubjetiva[...],revelandoseusdesejosocultos,[...]percorrendoossubterrâneos
nebulosos,àsvezesenigmáticoseperturbados,dasuamente"(BITTENCOURT,1999,p.92),
namedidaemquenutreumamorplatônicoporela.
Incluo este conto nessa vertente também porque "a palavra vem sempre de uma
personagemquemonopolizaanarração"(p.104).Onarradorhomodiegéticotemopoderde
contarahistóriadaprotagonistasemqueelasemanifestediretamentee,mesmoaofinalda
narrativa, quando ela emite a sua fala aos/às demais passageiros/as do ônibus, isso é
"[filtrado] pela subjetividade do narrador-personagem" (p. 104), ao afirmar que ela falara
107
coisasqueninguémentendiaeindiretamenteajulgaporusarroupasdeantigamente,sujase
remendadas.
O julgamento que faz da aparência da mulher torna possível o enquadramento da
narrativa na vertente "social", pois o olhar de quem narra, bem como os/as demais
passageiros/assimbolizamasociedadeemsua"macrorelação".Éumacríticaaopreconceito,
éumaamostragemdoisolamentoedaincomunicabilidadehumana,poisaspersonagensnão
conversam, simplesmente há o monólogo do narrador. Essa vertente estámarcada também
pela análise social em sua "micro relação", representada pela família. Recai uma crítica à
instituiçãodocasamento,vistocomofalidoporcausadafaltadesinceridadeentreospares.
Ainstâncianarrativaquemaissedestacanestecontodizrespeitoaumadasvertentes
temáticas presentes: a"existencial-intimista". Está evidente a presença de umaconsciência
"introvertida", pois além de o narrador ser homodiegético, a narrativa apresenta uma
focalização que "éinterna, [pois]tudo o que o leitor sabe vem atravésda percepçãodeste
narradorvoltadoaoseuinterior,sendorestritaàsuasubjetividade.Comoelenãotemcerteza
denada,acabaporpassaramesmadúvidaaoleitor"(p.194-195).Oqueaconteceem"Tudo
na vida é passageiro" são apenas suposições, pois o narrador, por somente observar a
protagonista, passa a interpretar arbitrariamente algumas mudanças psicológicas da mesma
combasenoqueelepodeapenasdeduzirdoseuexterior.Umexemploéquandoelejulgao
estado interior da personagem feminina simplesmente por notar a falta da aliança na o
esquerda e a ausência do marido no ponto de ônibus. Essa instância narrativa favorece a
leiturasobumângulodiferentedoqueémostrado,jáqueonarradoréalvodedesconfiança
porserassim,estritamentesubjetivo.Nessesentido,traçosdeumaconsciência"distante",
poisavidadaprotagonistaéacompanhadapelonarrador,quefazpartedouniversoficcional,
masporterumavisãodefora,seuolhardeveservistocomolimitado.
Este contodeKaramapresentaa essênciado trágicocontemporâneo aliada à ironia
dasconstruçõessimbólicas,revelandoumuniversodiegéticonoqual,paraaprotagonista
[...] o que antes era desígnio, agora é conseqüência ou acidente. Embora
possa haver variações na natureza do trágico, ele permanece constante
porque éfonte econseqüênciade interpretações gerais ediversificadasda
vida(FONSECA,2005,p.59).
Com baseno quediz Fonseca, nesta narrativa estáevidente quea protagonista não
vivenciaotrágicoporqueesseéoseudestino,sendoaperdadofilhoprovavelmenteamaior
causa.Estádemonstradoqueessapersonagemnãopodeaceitarosfatosdemaneiraresignada,
108
épreciso,portanto,fazerescolhasnavida,mesmoqueessasacarretemdoreisolamento.O
importanteéteremmenteque"Tudonavidaépassageiro".
2.2.4–"AnoivadoCaí"–Nãoexistenadaespecial,ninguémtãooriginalassimquenão
possasercopiado
Oconto"AnoivadoCaí"(p.45-49)apresentaahistóriadeumamulherquesobrevive
deseutrabalhotirandoxeroxemumlocalpúblico,ondeháuma"secretaria"(p.45)euma
"biblioteca"(p.46).Onarrador,quenãoparticipadahistóriacomoumapersonagem,coloca-
se na posição de observador, fazendo com que a cena inicial descrita por ele pareça estar
acontecendo pari passu ao tempo da leitura do conto. Essa impressão de simultaneidade
sugereimagensqueconvidamo/aleitor/aaparticipardosmovimentosdaprotagonistacomo
se fosse por trás de uma câmera que, neste caso, é o próprio olhar de um narrador
heterodiegético:"Sãoduashorasdatardeeelapodeservista,ali,naesquina,vindodaparada
de ônibus. De vestidinho floreado, rabo de cavalo e uma sombrinha, uma inacreditável
sombrinhanamão"(p.46).
As primeiras frases da narrativa conferem ao texto esse caráter observável da cena
descrita, de modoqueotermo "ali" demonstraqueonarradorestájuntodoquenarra.Ao
descrever a protagonista, ele interpreta seus movimentos e analisa a sua caracterização
exteriordemaneirasubjetiva,procurandodefinirseucaráter:
Sentimentos ambíguos deve ter essa mulher: quem sai de casa para um
passeiodebarco,acreditaquenãovaichover,emprincípio.Asombrinha,no
casodeestarenganada.Umamulherquenão quer ser pegadesprevenida.
Nãopelasegundavez(p.45).
No final de sua observação percebo uma semelhança com o queHumphrey(1976)
definecomoatécnicada"descriçãoonisciente",poisonarradorheterodiegéticodescreveum
estado psíquico da personagem aomesmo tempoem quenarra a história, fornecendo uma
importantepistaparaacompreensãodatrama.Aodizerqueapersonagemnãoseprevenira
em uma primeira vez, significa que algum fato  acontecido determina sua atitude. A
primeiravezqueapersonagemépegadesprevenidajáédeconhecimentodonarradoreao
longodocontoessasituaçãoéexplicada.
No segundo parágrafo uma mescla no tempo, de modo que as ações são
intercaladas:umas, em um tempo presente(a rotina do trabalhoda protagonistaanônima);
109
outras,emumtempopassado(vidapregressadapersonagemfeminina,naversão/visãodeum
narradorquetambémnãoénomeado).
A falta de identificação do narrador e da protagonista contribui para a ausência de
"consistênciaeindividualidade[deambos]comosereshumanos"(BITTENCOURT,1999,p.
80).
O narrador conta que a protagonista ganhara um walk-man no amigo secreto da
secretaria.Quandonãotemqueatenderninguémelasedistraiouvindomúsica,eumadasque
ouveseintitula"Talvezfossemelhorquenãovoltasses"(p.45).Onomedamúsicaaponta
paraumsentidoirônicoqueaindanãopodesercompletamentecompreendido,masaofinalda
narrativaépossívelassociarasaçõesdapersonagemaessetítulo.Dizeronomedacançãoé
um sinal irônico usado "para sugerir que o interpretador deve estar aberto a outros
significadospossíveis"(HUTCHEON,2000
,
p.221)eapontar"contrastesentreaaparênciae
realidade" (MUECKE, 1995, p. 54). A ausência de explicação do título é irônica também
porqueo"significadorealdeveserinferidooudoquedizoironistaoudocontextoemqueo
diz"(p.54),demodoquecitaronomedamúsicademonstraqueonarradornãodesejaque
seusignificadoseja"imediatamenteapreensível"(p.54),pois,seassimfosse,odesfechodo
contoseriaantecipadamenteexpostoao/àleitor/a,quebrandootomdesuspensedaleitura.A
ironia, portanto, só é atribuída ao título dessa música se o contexto "textual" (p. 207) for
considerado, pois a obra ficcional como um todo é que fornece o enquadramento para a
inferência
dosentidoirônico.
Arotinadetrabalhodescritaéinterrompidapeladescriçãofísicadaprotagonista,feita
pelonarradordemaneiratendenciosa,mediantecomentáriosirônicosquebeiramodeboche:
Ovestidinho, orabinhodecavaloeotalWalk-mancompõemumafigura
que de longe se diria que era uma adolescente; um pouco mais de perto
alguémnemtãojovemassim,edebemperto,fica-sedesconcertado:nãoé
nem sequer uma mulher que faz de tudo para parecer mais jovem. Não.
Trata-se de alguém que tem de si uma idéia completamente diferente da
realidade(p.46).
Segundoonarrador,omodocomoaprotagonistaseveste,usaocabeloeoacessório
quecarreganãoestádeacordocomaidadequeelatem.Paraele,usar"vestidinho","rabinho
de cavalo" e escutar música em um "walk-man" são próprios para pessoas jovens.  Seu
comportamentoeaparênciaaexcluemdospadrõespreestabelecidossocialmente,queditam
regrasparacadaidadeesexo.Essespadrõesestão,portanto,ilustradosnasconsideraçõesdo
narrador.
110
Emmeioàdescriçãoeaojulgamentoquefaz,elecomentaqueécomumaspessoas
criticaremumasàsoutras,assimcomoénaturalquealguémaalertassesobreofatodefora
dessespadrões.
Entretanto,issonãoocorrecomela"porqueninguémseimportaosuficiente
comissoeatéporque,naverdade,ninguémseimportaosuficientecomessamulher"(p.47).
Atravésdessecomentário,anarrativapassaaumestágiodemaioresclarecimentoacercado
íntimodaprotagonista,poisonarradorexplicitaacondiçãodeisolamentodamesma,aliada
aos sentimentos de desilusão que carrega. Ele explica: "Que de tanto tirar xerox, talvez,
acostumou-secomaidéia dequenãoexistenadaespecial,ninguémtãooriginal assimque
não possa ser copiado" (p. 47). Nessa passagem o narrador utiliza seu conhecimento
onisciente para descrever os sentimentos
da personagem feminina e antecipar seu maior
segredo: elamata o noivo como supostamentevêemalgumanovela, afinal, tudopode ser
copiado.
Há novamente uma subversão no tempo e a narrativa volta ao ponto de onde
começara,dotempopresente:"Essaéamulherquevemvindoalinaesquinaesãoduashoras
datardeeelaestávindoparapegarobarco'ANOIVADOCAÍ'"(p.47,grifonooriginal).O
narradorrevelaquetodososbadosamoçafazesteprograma:passearnessebarcoevoltar
paracasa.Porém,obarcosósaiàstrêshoras,eelasemprechegaumahoraantes.Omotivo
paraoadiantamentodaprotagonistanãoérevelado,intensificandoosuspensequepercorre
todooconto.
Outras características da protagonista são expostas, como o fato de alguns não
gostaremdelaporconsiderarem-natímida.Onarradorsalientaquenãosetratadeelaseruma
pessoaacanhada,apenasnãogostadediscorrersobresuavida,masquandoissoéinevitável,
ela fala em novelas antigas, inclusive em algumas "que ninguém se lembra de ter visto,
havendo mesmo a hipótese de essas novelas serem todas inventadas" (p. 48). Após essa
afirmação,onarradorcitaoexemplodeumanovelaqueaprotagonistacontaraaalguémem
um determinado momento. A história relatada envolve uma moça noiva, que prestes a se
casar,descobrequeonoivotemoutrafamíliaemumacidadepróxima,possuifilhosevive
muito bem financeiramente.Essa noiva traídaleva-opara passearde barco"ali mesmono
gazômetro[sic]"(p.49)eoatiranaágua;onoivo,pornãosabernadar,morreafogado.
É possível perceber coincidências entre a história contada indiretamente pela
protagonistacomasuaprópriavida.Otermo"ali"associadoaopasseiodebarcouneasduas
personagensfemininas.Dessemodo,éinduzidopelonarradorqueambasvivenciamamesma
situaçãoeatuamnomesmoespaço:oGasômetro.Sóépossívelperceberqueoespaçorealéo
mesmodofictícioporqueonomedobarcoqueaprotagonistautilizatodosossábadosestá
111
explicitadoironicamenteemcaixaalta:"[...]eelaestávindoparapegarobarco'ANOIVA
DOCAÍ'"(p.47,grifonooriginal). O destaqueaonome do barco éummarcadorirônico
"gráfico". Hutcheon enfatiza que os sinais gráficos "também têm funções que não são
irônicas, e por isso dependem completamente do contexto para um enquadramento
apropriado" (p. 223). Sendo assim, para compreender o sentidoirônico de toda a situação
descrita é necessário saberque o Gasômetro,localizado geograficamenteem Porto Alegre,
tem como atrativoturístico"um passeio debarcopelo Guaíba. O barco'NoivadoCaí'faz
passeiospelorioquesaemdoancoradouroaoladodaUsina"
21
.Apardessasinformações,
verificoqueaironiaérealizadapor"analogia",poiscomoexemplificaMuecke(1995),"oque
pareceserumarevelaçãodeAénaverdadeoutambémumarevelaçãodeBcujasemelhança
com A tem de ser inferida" (p. 84). Se essa inferência é feita, mediante o contexto
"intertextual"emqueaironiaéapreendida,passa-seaconsiderarqueanovelacontadapela
protagonistaé igual àsuaprópriavida.Paraqueessasuposiçãosejaconfirmada,épreciso
fazer uma associação com a palavra "ali" presente em ambas as situações: a que
possivelmenteocorrenavidadelaeacircunstânciadanovela.
Aocorrênciadoassassinatodonoivoéindiretamentejustificadapelonarrador,poisse
referindoànoivadanovela,etambémàdoconto,eleadesignade"mocinha",mesmoela
sendoumaassassina,enquantoqueonoivoéchamadode"cafajesteededesgraçado":"como
estavanubladoenãotinhaquaseninguémnobarco,amulher,amocinhadahistória,atirouo
cafajestenorioeodesgraçadonãosabianadar"(p.49).
A citação acima denota uma reflexão acerca do comportamento da protagonista. O
fatodeelaterassassinadoonoivonãoévistocomoumaatituderepreensiva.Oquesedeseja
evidenciaréque"arupturacomoselosfamiliaresecomospreconceitossociais[trouxe-lhe]
amarginalizaçãoeoexílio"(COSTA,1996,p.179).Nessesentido,verificoapresençado
trágico no que tange às relações sociais da contemporaneidade,em que as pessoas, por se
sentirem marginalizadas, rejeitadas, agem de maneira brutal como se isso fosse natural e
justificável.Oassassinatonãotrazapuniçãoparaaprotagonista,poiscomosevê,ocorpodo
noivo jogado na água não foi encontrado, e a noiva assassina segue sua vida livremente,
trabalhando,bemlongedodestinocomumdaquelesquepraticamumcrime:acadeia.Além
disso,onarradordemonstraestarafavordapersonagemfeminina,poisacercadesseatonãoa
condena,istoé,nãoajulgacomofazemrelaçãoaoseumododevestir-se.
 
21
Informaçãoretiradade<http://www.riogrande.com.br/turismo/capital11.htm>.
112
O encarceramento da protagonista é interior, visto que fica detida ao passado, e a
aparência e a incomunicabilidade social que demonstra em seu local de trabalho também
denotamsuaprisão.Nessamedida,étrágicaasituaçãodessapersonagemporqueelaviveem
ummundoaparentementeprotegido,quemesclaarealidadecomaficçãoe"ailusãoemque
vive[...]repousanumdesconhecimentodesuaprópriarealidadeounateimosiadoparticular,
comoindivíduo"(BORNHEIM,1975
,
p.85).
Odesfecho da história ésugeridojá noinicio da narrativa, porque toda a descrição
físicaepsicológicaqueonarradorfornecearespeitodaprotagonistajustificaoseujeitode
ser;simbolicamente,asuaaparênciaexterioreasatitudescotidianasservemparacaracterizar
asuaconsciência.Onarradordescreveoquevê:"Devestidinhofloreado,rabodecavaloe
umasombrinha,umainacreditávelsombrinhanamão"(p.45).Notextoestáimplícitoquea
personagemcarregaesseacessório,nãosócomaintençãodeproteger-se,pois,alémdisso,o
narrador afirma que ela não quer ser pega desprevenida pela segunda vez. Portar uma
sombrinha é um sinal simbólico de que "ela tende para a interioridade" (CHEVALIER &
GHEERBRANT,2003,p.843),poisofatodeelatodosossábadoschegarumahoraantesde
obarcosairpodeservistocomoumanecessidadedequemdesejarefletirsobreoacontecido,
istoé,pensarsobreseusatoseasuaprópriavida.Oscabelossemprepresoséumsinalda
"reserva deuma mulher" (CHEVALIER&GHEERBRANT,2003, p. 155) e mantê-los do
mesmo jeito que no passado revela "quase uma vontade de fazer sobreviver o estado da
pessoaaquemessescabelospertenciam"(p.153).Combasenosignificadosimbólico"dos
cabelos",verificoqueaprotagonistamantémamesmaaparênciadaépocaemqueénoiva,
aindaqueissopossacausarestranhezanaspessoas,afinal,elaé"umamulherquepensaque
temumrostoetemoutro,quepensaquetemumcorpoquejánãotemmais"(p.46).Ela
pareceviveremummundoàparte,queafazconvivercomumarealidadequelheéinterior:
Nesta regressão, a personagem feminina se defronta com algo que parece
permanecer para ela obscuro e velado, um mundo interior arcaico e
inconsciente, na qual as dimensões do tempo e do espaço se fundem e
confundem.Sãoidentidadesembuscadesimesmas,corposqueprocuram
arrebentar os limites de uma repressão que neles está impressa como um
recalque(HELENA,1989,p.107).
As considerações de Lúcia Helena servem para ampliar a compreensão do
comportamentodaprotagonistade"AnoivadoCaí",poissuaaparência,bastanteenfatizada
pelo narrador, abre possibilidades novas de interpretação de seu corpo. Nessa abordagem,
pode-se chegaraoentendimento dosfatos edo íntimodanoivatraída.Tempo e espaço se
113
fundem, e a exterioridade da personagem feminina reflete essa questão. Desse modo, o
narrador trabalha "[...] a problemática do corpo, o enquanto entidade biológica, mas
enquantoimagempsicologicamente construídaque oferece alocalizaçãoe a imagética dos
processosdoinconsciente,dodesejoedafantasia"(MACEDO&AMARAL,2005,p.25).
A respeito do corpo da protagonista é evidenciado somente aquilo que tem um
significadoligadoaoinconscientedamesma.Ofatodeelausaroscabelospresosoestá
destacado no texto simplesmente como uma diferenciação entre o sexo feminino e o
masculino, mas como uma imagem que remete ao mundo fantasioso em que ela vive,
mediante os significados simbólicos que podem ser apreendidos, isto é, a necessidade de
reviveroseupassado.
Éimportantefrisarquenestecontoháumamarcabemespecíficadoespaço:acapital
gaúcha,PortoAlegre,Karam,aosituaraspersonagensnesteespaçodefinido,
[...] de certa forma cinge sua obra à apreciação regional. [Porém], não há
maneira de conceber Vera Karam como uma escritora regional, mas é
impossível abstrair o fato de que ela identificou suas personagens
geograficamente(FONSECA,2005,p.58).
Nãosetemumavertente"regionalista"simplesmenteporqueestanarrativapossuiuma
localizaçãosulinaexplícita,pois,segundoBittencourt,umcontoqueapresentaessavertente
devepromoverumembateentreavidacampeiraeaurbana:
Osentimentoquedominaessegaúchodeagoraéodadesterritorialização,já
queperdeutodasassuasligaçõesereferenciais:comaterra,comacultura,
comoscostumes,comopassadoguerreiro,[demodoque]aconsciênciada
impossibilidade de refazer os antigos liames com a terra e a cultura é,
freqüentemente,onúcleodoconflitovivenciadopelaspersonagens(p.123).
Oquesedestacaem"AnoivadoC",então,éabuscadaidentidadefeminina,ao
passo que o cenário gaúcho é apenas um pano de fundo para o desenrolar das ações da
protagonista. Desse modo, a vertente que se destaca é a "existencial-intimista" aliada à
"social",porque"apreocupaçãosedetémnumnívelexistencial"pararevelaraspectossociais
emqueessapersonagemestáenvolvida,comoaexploraçãodesuasdecepçõesíntimas,"os
processosdeauto-afirmação,osdeslumbramentosdapaixão,asliberaçõesdospreconceitose
tabus,osconflitosdo'eu',consigoecomomundo,asperdasafetivas,aruínadamente"(p.
82).
As críticas do narrador acerca da aparência da protagonista e de seu modo
introspectivo de ser corroboram a exploração da vertente "social", pois, reforçada pelo
114
anonimatodapersonagem,oconto tem"intençãodecriticarosistemacomoum todoede
analisar a situação precária do homem na sociedade contemporânea" (p. 89). O fato de a
protagonista e o noivo não serem nomeados proporciona a eles a configuração de "tipos
representativosdesetoressociaisdoqueindivíduos,ecujaidentidadeseperdeu"(p.89).Pelo
fatodeorelacionamentohumanonãopriorizara"sinceridade[nas]relaçõesinterpessoais"(p.
78),atraiçãoéumamarcadessahipocrisiaentreosseres.
Avertente"social",muitasvezes,funcionacomoumsubsídioparaaformaçãodeum
tipodenarradorquejulgaasociedade,assumindoumaposturaexternafrenteaoquerelata.
DeacordocomBittencourt,aconsciência"distante"donarradormanifesta-senosentidode
que ele está em um plano "extradiegético, colocado, portanto, fora do universo ficcional,
[mas] percebe-seemalgunstrechos asuapresença através de comentáriosereflexões"(p.
186).Essasinferênciaspessoaissãoevidentes,porexemplo,nosmomentosemqueonarrador
pressupõe o motivo de a protagonista carregar sempre uma sombrinha em seu passeio de
barco,ouquandoeleacaracterizaindiretamente,bemcomofazcomonoivo:elaéamocinha
eseuparocafajeste,odesgraçado.
É importante destacar que, por possuir essa consciência, há momentos em que o
narrador deliberadamente adota uma postura de isenção, aliada à sua feição irônica, como
quem deseja confundir propositalmente as interpretações do/a leitor/a, que não tem a sua
onisciência. Um exemplo que marca esse desvio interpretativo
é feito quando ele conta a
novelainventadapelaprotagonista,reforçandoeconfundindoosfatosqueocorreramnavida
dapersonagemdocontoeosquesãodanovela,comosepercebenestapassagem:"Porquea
moça, a mocinha, no caso, levou-o para dar um passeio de barco [...] e foi um acidente
comentadíssimonaépoca,istoé,nanovela[...]"(p.49).
Por ser umanarrativa em que o tempo presente prevalece, é possível caracterizá-la
também como portadora de uma consciência "concomitante",
pois há, de forma simulada,
"umaconcomitânciaentreoatonarrativoeaaçãonarrada,presentificando-seatravésdafala
do narrador, como se esse relatasse os fatos à medida que eles fossem sucedendo"
(BITTENCOURT, 1999, p. 202). Para ilustrar essa consciência destaco as passagens
referentesaomomentoemqueaprotagonistachegaaoGasômetroparaseupasseiodebarco,
comoseoolhardonarrador"estivessejuntodaquiloquenarra"(p.205):
Sãoduashorasdatardeeelapodeservista,ali,naesquina,vindodaparada
deônibus(p.45).
Essaéamulherquevemvindoalinaesquinaesãoduashorasdatardeeela
estávindoparapegarobarco[...](p.47).
115
Principalmente nesses trechos,"a focalização do texto, que nesse caso é interna ao
mundo narrado, age como uma espécie de câmera que acompanha pari passu os
acontecimentos, simulando um verdadeiro flash de realidade" (BITTENCOURT, 1999, p.
203,grifonooriginal)
,
oquediminuiaseparaçãoentreonarradoreouniversodiegético,pois
nãohádistânciatemporalentreeles.
Por meio dos comentários do narrador acerca do desfecho do conto e
conseqüentementedanovela,ficaimplícitaumaopiniãoumtantotendenciosadesuaparte,
porqueomodocomoeleconduzodiscursodeixatransparecerqueamortedonoivoéumfato
brutalquevaicontraaideologiadominante,aqualtendeanaturalizarospapéisfemininose
osmasculinos.Essadistribuiçãopredeterminadadepapéiscomportamentaisimpõeaidéiade
queatraiçãodohomemdeveserconsideradademaneiradiferentedadosexooposto,visto
queaspessoascostumamaceitarsomenteapromiscuidademasculina,aopassoqueamulher
deveinclusiveresignar-sefrenteatalsituação.Nesteconto,essavisãopatriarcaltemalgumas
nuances que se diferenciam do que é freqüentemente aceito. A protagonista, ainda que
assassina,assumeopapelde"mocinha",eoatodatraiçãonãoficaimpune.Aohomem,tero
direitodetrairecomquantasmulheresquiser,évistonestanarrativacomironia:"porqueo
corpo,aquelecorpodisputadoporduas–esabe-selámaisquantas,quenessescasostudoé
possível–nunca,masnuncafoiencontrado"(p.49).Osentidoirônicodaexpressão"nesses
casos tudo é possível" abre espaço para uma inferência acerca da naturalização do
comportamentoinfieldonoivo,masaatitudedaprotagonistaemrelaçãoaissoéderejeiçãoe
revolta, transgredindo assim os paradigmas femininos socialmente construídos. A posição
cifradadonarradorconfiguraafunção"provisória"doseudiscursoirônico,masestadeveser
"interpretada como uma alternativa não dogmática a pronunciamentos autoritários"
(HUTCHEON,p.82,grifonooriginal)quesãoligadosaouniversomasculino,demodoque
talposiçãoévaliosaporqueé"desmistificadora"(p.82,grifonooriginal).
A transgressão da personagem feminina é parcial, pois, por parar no tempo com o
mesmojeitodeoutrora,cabelos,roupas,enfim,podedenotarquetalatitudederevoltatomada
porela,nãoestábemresolvidaemseuinterior.Verificoessaquestãoporqueelaserefugiaem
um mundo que é só seu, localizado nointerior da sua imaginação, "para referenciar [uma
mulher que carrega] ofardodo seupassado, da suahistória" (COSTA,1996, p. 19). Vera
Lúcia Kauss (1999) reforça essa questão interior cifrada por que passa a protagonista,
explicando:
116
Enquanto não se conseguir uma conciliação entre o que passou a ser
considerado o antigo tradicional e o novo que está surgindo com as
reivindicaçõesdosgruposminoritários,muitossesentiramsemreferênciase
partiram para uma radicalização que, em alguns casos, significou um
mergulhonaangústiaenatransgressãosemlimites(p.100).
Atécnicanarrativade"AnoivadoCaí"émuitobemelaboradaporVeraKaram,pois
não está especificado em momento algum do texto que há uma imbricação das histórias
apresentadas,istoé,avidadaprotagonistaécontadapelonarradornotempopresente,como
seeleestivessevendoascenas,aopassoqueahistóriadapersonagemfemininadanovelaé
narrada em um tempo passado, justamente para disfarçar as coincidências das tramas.
Portanto,tudoéinsinuado,demodoqueaironiafuncionacomouminstrumentochaveque
abreasportasparaoentendimentodanarrativa:oháduashistóriasdistintas,masumasó,
com adiferença de que todosestão cientesde quea personagemda novela mata onoivo,
enquantoqueaprotagonistadocontonãoseassumediretamentecomoassassina.
A transgressão da personagem feminina é marcada por uma atitude extremista:
assassinar o noivo. Karam coloca à disposição do/a leitor/a o passado e o presente da
protagonista para que o final seja por ele/a construído. Dessa forma, vislumbra-se uma
narrativaemqueasaçõeshumanasestãodispostascomaintençãodequesereflitaacercadas
relações interpessoais vividas na contemporaneidade. Assassinato, traição, dissimulação,
solidãoeincomunicabilidadesãoquestõesqueseinterligamnãosomenteparaconfigurara
tramadouniversodiegético,masparadesmascararasrelaçõessociaise,portanto,revelara
facedotrágico.
2.2.5–"Ursinhodepelúcia"–Agenteperdetantascoisaspelavida
Oconto"Ursinhodepelúcia"(p.50-55)envolveahistóriadeumjovemrapazedesua
família.Estenarraasuavidadesdeainfância,focalizandoadoençaeasinternaçõesdesua
mãe,ocorridaslogoapósoseunascimento,demodoquealembrançadafiguramaternaedos
fatosqueaenvolvemsãoapreendidosapartirdosdoisanosdeidadedonarrador.
Anarrativafuncionacomoumaespéciedemeditaçãoedesabafodeumfilho,agora
adulto,querevivetodaasuainfânciaeadolescênciaparatentarcompreenderoquedefato
aconteceracomasuamãe.Poucodepoisdonascimentodomenino,amãepassaatercertas
criseseaserinternadafreqüentementeemuma"clínicaparanervosos"(p.54),atéchegaro
117
momento de ela nunca mais voltar para casa. Pelo fato de a narração ter esse aspecto
introspectivo, o monólogo do narrador, por vezes, se aproxima de um "solilóquio", pois
quando o centro de alguns relatos é o seu estado psíquico, ele mantém um discurso
organizado ao descrever a sua consciência, "[supondo] uma platéia formal e imediata"
(HUMPHREY,1976,p. 32): o/ leitor/a, provavelmente. O narrador autodiegético organiza
sua fala cuidadosamente, ao articular seus pensamentos com base nas observações do
comportamentodamãeeprocuraroautoconhecimento,mesmoquedisfarçadopelaironiae
pelotrágico.Elecontaahistóriadamãe,eolugardeondeemiteseudiscursoéointeriorde
seuquarto,conformeseverificanoiníciodoconto:
Elesvierambemcedobuscá-la.Quandoviomeupaientrandoaquinomeu
quartocomaescadaepegandoaquelamaletinhaqueelesguardamnaparte
de cima do meu armário, senti aquele suor nas mãos e aquela dor de
estômagoeentenditudo(p.50).
O narrador revela que desde criançaacostumara-se com as internações da mãe. Ele
destacaodiaemqueestádormindoepercebeseupaipegandoumamaleta,queéumindício
daimediatainternaçãodamãe,edisfarçanãotê-lovisto,fingindoadormecer.Assensações
de pânico, por sabero que viria pela frente, são descritas com muitosdetalhes,ainda que
voltadoaumtempodistante:osseusdoisanosdeidade.Elecontaqueacordou,porqueopai
tropeçaraem seuurso depelúcia, mas, mesmoqueissonão tivesse acontecido,onarrador
possivelmentedespertaria,"jáque,naquelacasa,todomundoviviasobressaltado,esperando
queumanovacriseviessetirartudodofrágillugaremqueestava"(p.50).
Pelodiscursodonarradornãoépossívelsaberexatamentequalacrisequeafligiraa
suamãe.Eleafirmaapenasqueaprimeiravezocorreu"depoisqueogurinasceu"(p.52),isto
é,apósoseunascimento.Essainformaçãoofazpensarqueaculpaésua.Easuamemória
abrange as crises da mãe que vão desde quando eleé criança até o momento presente da
narração,emqueéadulto,comaproximadamentevinteanos.Asuaidadepodeserapreendida
porque ele afirma ter "uns dois anos quando aconteceu pela primeira vez" (p. 52), e aos
"dezesseisanos"(p.54)équelhedizem"queelanãovoltariamais"(p.54)."[Alguns]anos
depois"(p.54)elerecebeumtelefonemadaclínicaequandochegaaolocalavisamqueamãe
estámorta.Provavelmenteessas"crises"sejamoresultadodeumadepressãopós-parto,fato
comum ocorrido após o nascimento de um bebê. Essa doença não é mencionada
explicitamente,talvezporqueomarido,osparenteseavizinhançadaprotagonistaconfundem
seuestadodepressivocom"loucura".ÉimportantedestacartambémquenestecontoKaram
118
estendeaomáximoasituaçãotensa,conflituosadamãe,quandoadeixavivendoestacriseaté
omomentodesuamorte.Emgeral,adepressãopós-partoduraumtempocurto,masissonão
ocorrenestanarrativa,talvezporquenãoreconhecemodistúrbiocomotaletambémporque
sedesejaevidenciarumacrisebilateral,queatingemãeefilho.
Oquartodojovemtemimportâncianãosóporseroambientedeondeeleemiteasua
narração, mas também por ser o espaço central de suas memórias, pois tudo o que ele
presenciadamãeévistodedentrodeseuquarto.Essecômodo,portanto,refleteumambiente
familiar, e, além disso, tem uma simbologia ligada à intimidade, à privacidade e à
introspecção.Aodescreverumadassituaçõesdecrisedamãe,elecontaqueficaranoquarto
sozinho,ouvindotudooqueosfamiliaresfalavam,semsemanifestarporpenadeseupai.Em
umadessassituações,enquantoesperaansioso,onarradordescreveareaçãodosadultos–o
pai,otioeavó–presentesnasala.Eleprocuraescutarasconversasdaspessoasparasabero
queaconteceriacomamãe.Simultaneamenteaisso,elereza
[...] para que fosse tudo bem depressa desta vez, para que não houvesse
gritos,choradeirasevizinhosbatendonaporta(sobretudovizinhobatendo
naporta),perguntandooquetinhaacontecidoe sepodiamajudar,mesmo
sabendo que tinha acontecido o de sempre e que nunca ninguém poderia
ajudar(p.51).
Todavezqueamãetemumacrise,asuaúnicareaçãoéconservar-seemseuquarto,
poisacreditaestaremumaposiçãodeimpotência.Onarradorpartedopressupostodequese
nem os adultos têm como ajudá-la naquela situação, uma criança, portanto, menos ainda.
Nessemomento,háumaquebrananarrativa,devidoàmudançanomodoverbal–depretérito
imperfeitoparaperfeito–,comoseosfatosestivessemacontecendoemconcomitânciacomo
presente. Essa atualização temporal ocorre apenas no interior da mente no narrador e se
manifestaquando ele reflete que a "empregada chegou" (p. 51) e que "[e]ra a terceiraem
menosdeseismeses"(p.51),portanto,nãoseafeiçoaramaisanenhumadelasparanãosofrer
comas repentinas partidas.O pretéritoimperfeito,o perfeitoe oinfinitivosemisturam no
monólogo como uma forma de revelar o seu sentimento e revolta frente às separações
forçadasporquepassaranainfância:
"Deviaterfeitoomesmocomela.Seeusoubessequeiasersempreassim,
nãodeveriatê-laamado,nemdeveriaestranharsuasausências",penseicom
raiva,poistinhamedoqueDeusmecastigasseaindamais(p.52,aspasno
original).
119
Mãeefilhoencontram-seemumaposiçãoquenecessitadeamparo.Ela,segundoo
narrador,porestaracometidadeumadoença,supostamentediagnosticadacomoumdistúrbio
psicológico,requercuidadosmédicoseele,porserumacriançaquenãotemamãeporperto,
necessitadealguémparaprotegê-loecuidá-lo.Essavisãodedesamparomútuopresenteno
contofundamenta-senomitodainfânciaedafeminilidade,aqueRocha-Coutinho(1994)faz
referência:
O mito dainfância encontra,assim,um paralelo no mito da feminilidade,
isto é, tanto as mulheres como as crianças foram consideradas frágeis,
delicadas,assexuadase,portanto,nãosómaispurasqueoshomens,como
tambémseresquenecessitamdasuaproteção(p.30).
Verifico em"Ursinho de pelúcia" a presença do sentidoirônico em relação a esses
mitos.Aprotagonista,aindaqueassistidapelomaridoepelafamília,nãoconseguecurar-se,
porqueaajudaexternanãoresolveseuproblema,pois,comopassardosanos,vemafalecer.
A ironia frente à impotência masculina pode ser percebida não só pelo significado
globalizantedanarrativa,masporalgumasinferênciasdonarradoremrelaçãoaopai.Quando
eleserefereàsreaçõesdestehásempreumtomirônicodepiedadeemseudiscurso.Aoinvés
dessesentimentoestarligadoàmãedoente,opaiéquemerecedó,afinal,éelequemtem"um
olharderrotado"(p.54),eéo"coitado"(p.54).
Afirmo haver também a presença da ironia por associar o discurso do narrador ao
desfechodanarrativa,queculminacomamortedaprotagonista,quandoeletemumpouco
mais de "dezesseis anos" (p. 54). O sentido irônico só é percebido porque considero o
contexto"textual"(HUTCHEON,2000
,
p.207)detodooconto,istoé,omodocomoamãe
donarradormorre,ascircunstânciasemqueofatoocorreeaspossíveiscausasdamorte.Ele
contaquenessaépocarecebeumtelefonemaurgentedaclínicaemquesuamãeestáinternada
e quando chega ao local recebe a notícia deque ela está no banheiro caída e que não foi
possívelfazernadaparaimpedirasuamorte.Aparentementesetratadeumsuicídio,porém,o
narradorafirmaemtomirônicoesuspeito:"Ocintoqueelausoueradomeupaienãosesabe
muitobemcomoeleforapararlá,comofoiqueeleoesqueceraláemumadesuascadavez
maisrarasvisitas"(p.55).Ofatodeaarmadocrimeseroprópriocintodomaridointrigao
narrador,queparecedisfarçarapossibilidadedeamãetersidoassassinadapeloesposo/pai.O
narrador,queéadulto,portantocapazdeentenderosfatosdemaneiramaiscompleta,foge
deumareflexãoprofundaacercadamortedamãe,afirmandoquetambémnãosabecomoo
cintofoideixadonaclínica.Umapossibilidadedeleituraéadequeomaridoemumadesuas
120
rarasvisitaspossatermantidorelaçõessexuaiscomaesposa,porissoesqueceraocintolá.
Dessemodo,elateriautilizadooacessórioparaseenforcar.
Ocaráterirônicododiscursodenunciatóriodonarradorsefortalecequandoelediz:"A
genteperdetantascoisaspelavida.Eu,porexemplo,nãotenhonemidéiadeondefoipararo
meuursinhodepelúcia"(p.55).Omenino,queantestapavaacabeçaparanãoouviroque
acontecia na infância, agora parece vendar os olhos para não ver que o pai pode ser o
assassinodesuamãe.Talvezporinteresse,ouporoquerersedecepcionar,masnãopor
ingenuidade;afinal,elejáperderaseuursinhodepelúcia:símbolodainocência.Aironiaaqui
é percebida mediante a intenção do narrador, que aparentemente se refere a seu urso de
maneira acidental. Entretanto, a função "psicoestética" aponta para a possibilidade de tais
palavras serem"conscientesedeliberadas"(HUTCHEON,2000
,
p.173),proporcionandoa
compreensãodomodomaquiadodeserdonarrador.
Onarradorcarregadesdeosdoisanosesseobjeto,quesimbolizaouniversoinfantil:
umuniversoseguro,ingênuoe alegre.Asimbologiadourso,porém,étotalmenteavessaà
situaçãoemqueomeninosemprevivera,poisseumundosemprefoirepletodeangústia,dor,
sofrimento,medoehipocrisia.Oursinhorepresentaparaelemuitomaisdoqueumbrinquedo
infantil, que é seu único companheironos momentosdeaflição. Esse objeto o ajudana
construçãodesuaidentidade,umavezquepareceatuarcomoseucúmplicenoperíododa
infância.Mendonça(1991)esclareceque"édesdeumestágioprimitivoinfantilqueapsique
doindivíduosedesenvolve;eapresençamaternaésemprefundamentalparaseestabelecer
umabasedeidentidade"(p.37).Dessamaneira,oursorevela"umaformadeseestabelecero
elo partido", pois o narrador, toda vez que abraça o brinquedo, busca "uma tentativa de
resgatedestaidentificaçãoprimordialcomamãe"(p.37)que,emboraviva,estáausente.
Na fase adulta, ele perde definitivamente tudo, pois a mãe morre, e o ursinho de
pelúcia desaparece. Entretanto, a perda do objeto aparentemente funciona para o narrador
comoalgocomum.Éumfatotranqüiloporquenãoocorrenainfância,masnafaseadulta.
Sobreessaquestãoaindaépossíveldepreenderumsentidotrágicopresentenaúltimafrasedo
conto,poisaomesmotempoemqueodiscursodonarradorestá,decertomodomarcadopor
um amadurecimento interior, visto que eleaparentemente demonstraadministrar melhoras
perdas,essesentimentobeiraodescaso.Elenãomanifestapreocupaçãoemsaberondeestá
seu ursinho de pelúcia, nem tampouco procura saber os detalhes da morte da mãe,
demonstrando,portanto,umsentimentodeindiferençaemrelaçãoàspessoaseàquilodeque
gosta.
121
Destacoapassagememqueonarradorfazmençãoaoseubrinquedoprediletologo
apóscomentaramortedesuamãe,poisaordemadotadanodiscursoremeteaquestõesde
gênero.Sendoeledosexomasculino,deve,portanto,dissimularsuafragilidadeaoperdera
mãe, já que aos homens não é permitido um comportamento sentimentalizado. Esse
estereótipomasculinopodesercomparadoaosumiçodeseuursinhodepelúcia.Onarrador
parece ser indiferente aisso porque "nãoé esse o papel que[lhe]é exigidona sociedade"
(SILVA, 1999b,p.220). Poroutrolado, há umdiscurso irônicoemrelaçãoaestes papéis
socialmenteconstruídos,vistoqueonarradordemonstrafragilidadeaonecessitarrecorrera
umobjetoparaacalmar-se,sendoestejustamenteumursinhodepelúcia,queéumbrinquedo
infantil geralmente
destinado às meninas. Desse modo, a ironia em relaçãoà dependência
emocional do urso funciona como recodificadora "em termos positivos o que o discurso
patriarcallêcomoumanegativa"(HUTCHEON,2000
,
p.57),pois"tem-seamasculinidade
ironizadadeformasutil,comaexposiçãodafragilidaderealdeumsexoqueosensocomum
considerousempreforte"(SILVA,1999a,p.206).Alémdisso,aausênciadoursinhosignifica
paraeleperderainocênciadainfância.Porisso,agora,adulto,nolugardeinocente,seuolhar
sobreosfatosécríticoeavaliativo,apontodesugerirapossívelparticipaçãodopainamorte
damãe.
Tanto a maternidade quanto a infância são vistas neste conto de uma maneira
desmistificada. Esta "se apresenta despida daqueles atributos paradisíacos com que os
românticoscostumavampintá-la"(XAVIER,1998,p.87)eaquela
[...]éumaexperiênciadolorosaeestádesvinculadadaimagemsacralizada
(mãe–protetora–afetuosa–amiga) que ainda persiste no imaginário popular
[de modo que o] trágico e o dramático caracterizam esse momento tão
sublimadonavidafeminina[...](SILVA,1999b,p.224).
A maternidade da protagonista é trágica, porque ela é impossibilitada de manter
contato com ofilho, visto que as crises que sofreraacontecem após o parto, e a suavida
alternaentreaclínicaeacasa.
Oaparenteestadodedebilidade
dapersonagemfemininanãoéexplicado.Onarrador
apenasesclarecequea"primeiracrise"
(p.52)ocorreudepoisqueelenasceu.Sendoassim,
não se pode concluir que ela seja louca simplesmente porque o filho afirma que ela fora
internada em uma clínica, pois o termo é bastante complexo e relativo. Para um maior
esclarecimento, acerca da palavra "loucura", recorro ao Dicionário da Crítica Feminista,
organizadoporMacedoeAmaral(2005).Paratanto,procurooentendimentodotermosemos
aprofundamentosmédico-científicosqueadefinemcomo"umadaspatologias[...]dentroda
122
área da psicologiae psiquiatria",afinal,oquecontribuipraacompreensãodapersonagem
feminina deste conto diz respeito ao seu "sentido mais lato e corrente, [que] depende de
preconceitosdominantesnumadadacultura,numdadomomentodasuahistória"(p.116).
Com base em Macedo e Amaral, saliento que muitas vezes alguém é considerado
"louco",foradonormal,porircontraaideologiadominantedasociedade.Oquecomumente
évistocomoumdesviopatológicopodeseroresultadode"umapressãosocialcujoobjetivo
écontrolarepadronizarcomportamentosfemininos"(p.116).Notextonãoestáexplicitadoo
termo"loucura",masaprotagonistaantesdemorrerforaacometidade"crises"einternadana
"clínicaparanervosos"(p.54).Oestigmadaloucuraem"Ursinhodepelúcia"acarretaum
sentido grotesco,vistoqueapersonagem femininaélevadaaoisolamento,enquantopassa
maisdequinzeanosentreacasaeaclínica.LúciaCastelloBrancoeRuthSilvianoBrandão
(1989,apudCOSTA,1996)corroboramesseentendimento:
O encontro com a loucura é como uma das percepções primigênias do
grotesco que a vida nos impinge. Nas suas representações do grotesco o
romantismo e a arte moderna serviram-se deste motivo com notável
freqüência. Mas, ao mesmo tempo, tal fenômeno nos transporta para a
"poéticadacriação"(p.36,grifonooriginal).
Amorte dapersonagemfemininatambémé grotesca.Ela,misteriosamente, aparece
mortanobanheirodaclínica.Seacausaforumenforcamento,épossívelinterpretarquetal
imagem provoca "algumas propriedades do grotesco, como permutações de alto e baixo,
traduzidaspelaqueda"(COSTA,1996,p.37).Casoelatenhaseenforcadocomocintodo
marido,acenasimbolizaasuaimpossibilidadedeascensão,poisseucorpoestápolarizado
parabaixo.Essaleituraremeteàcriticaaouniversomasculino,sobopontodevistacastrador,
sendotalvezomotivopeloqualofilho–dosexomasculino–disfarceasuasuspeita.
ODicionáriodeSímbolos,organizadoporChevaliereGheerbrant(2003)fazmenção
aoenforcamento,considerandoasuasignificaçãonascartasdeTarô.Aexplicaçãodadapara
arepresentaçãodacartado"Enforcado"(grifonooriginal)assemelha-seàposturadafigura
maternadesteconto,conformesepodeverificar:
O Enforcado [representa] a renúncia [...]; o pagamento de dívidas, a
punição, o ódio da multidão e a traição; [...] a escravidão psíquica e o
despertar liberador, as correntes de todas as espécies, os pensamentos
culposos,os remorsos,odesejode selibertardeumjugo;[...]oatodese
desinteressar,oesquecimentodesimesmo[...],oamornãocompartilhado
(p.371,grifosnooriginal).
123
Épossíveldepreenderoutrossentidosdamortedapersonagemfemininarelacionando-
acomasimbologiadacartadoEnforcado.Asuamorte,seprovocadapelomarido,funciona
comoumapuniçãoparaumamornãocompartilhado,jáque,comoafirmaonarrador,filhodo
casal,opaiamavaamãe,masesteamornãoeracorrespondido.Eleexplicaoporquê:
Vi o meu pai com aquele olhar derrotado que sempre tinha nessas horas:
olhar de quem ama demais uma pessoa e sabe que esse amor não tem
nenhumaserventia,nãoadiantapranada,poislánesselugarondeviveessa
pessoa,emummundosódela,nadapodeserabsorvido(p.54).
Por outro lado, ter morrido enforcada, independentemente de ser um suicídio ou
assassinato, faz com que simbolicamente a personagem feminina se liberte de sua prisão
psíquica,deseusofrimento,domundorepressorqueacondenaraaoisolamento.Aquiocorpo
feminino fala de maneira ambígua,poisao mesmo tempoem que amorte adquireares de
libertação,trazaimagemdamulhervítimadasrelaçõesdegênero,emqueasuaposiçãopara
baixodenunciaahierarquizaçãomasculina.
Essaquestãodegêneroéreforçadaaindamaispelaarmadocrime:ocintodopai.Não
é explicado como o acessório fora deixado na clínica, apenas é revelado que nos últimos
meses raramente o pai visitara aesposa. Oimportante é que a armautilizada éum objeto
ligadoaomarido.Ocintopossuialgumassignificaçõessimbólicasquecorroboramparaque,
emcertamedida,sejamdenunciadasasrelaçõesconjugais:
Preso em torno na cintura por ocasião do nascimento, o cinto religa a
unidadeaotodo,aomesmotempoqueligaoindivíduo.Todaaambivalência
desuasimbólicaresume-senessesdoisverbos.Aoreligar(atar,ligarbem)o
cintotranqüiliza,conforta,dáforçaepoder;aoligar(apertar,prender),ele
leva, em troca, à submissão, à dependência e, portanto, à restrição –
escolhida ou imposta – da liberdade (CHEVALIER & GHEERBRANT,
2003,p.245,grifonooriginal).
A morte da protagonista caracteriza-se ou por um suicídio, ou por um homicídio.
Considerandoasegundapossibilidade,omarido,dotadodepoder,aoenforcaramulhercom
oseucinto,ironicamentelheproporcionaconforto,poisadeixalivredosofrimentomundano,
emqueamorteéaúnicasaída.Aesposa,associadaà submissão,àdependênciaconjugal,
passa a um estágio de liberdade, ainda que esta seja determinada pelo esposo. A cena da
mulherenforcadaremontatodaavisãodedenúnciadasdesigualdadesentreossexos,poiso
acessóriopodeservistocomoumasimbologiadohomem,queimpedeapersonagemdese
pronunciar,derespirar,levando-aàmorte.Seaprimeiraopção–suicídio–forconsiderada,
124
quempassaaterpoderéamulher,nosentidodequeeladecideatéquepontoasuavidaeseu
sofrimentodevemcontinuar.
A vertente temática mais evidente em "Ursinho de pelúcia" é a que segue a linha
"memorialistaoudareminiscênciainfantil",poisanarraçãosefazpormeiodeumnarrador
autodiegético "que relembra um acontecimento de quando era criança" (BITTENCOURT,
1999,p.115),eahistóriaé"[relatada]sobaóticadoadultoquerevisitaoseupassado[...]"
(p.107).
Omododepercepçãodosfatospassadoséresultadodeumavisãomaisamadurecida
"que acumulou vivências e saberes capazes de propiciar uma avaliação madura do
acontecimentorememorizado"(p.108).Entretanto,essamaturidadeéironicamentedisfarçada
aofinaldoconto,nomomentoemqueonarradorpareceignoraramortebrutaldesuamãe.
SegundoBittencourt(1999),oscontosqueremontamouniversoinfantil
[...] referem-se, sobretudo,àsexperiências traumáticas, àsprimeiras
perdas e àqueles momentos de passagem quando aconteceram as
iniciaçõesàvidaadulta,ouotrânsitoentreainfânciaeaadolescência
(p.110).
Nanarrativaemquestãoháduasperdassignificativasparaonarradoraolongodesua
infância:adafiguramaternaeadoseuursinhodepelúcia.Omeninoforacriadopraticamente
semmãeduranteasuainfânciaeadolescência,masénavidaadultaqueaperdaseconcretiza,
culminandocomamortefísicadapersonagemfeminina.Emrelaçãoaoursonãoháumdado
precisoquedateaseparaçãodeambos,sabe-seapenasqueelesimbolizaum"passado[que]
ficou para trás, com suas alegrias e decepções, como algo irremediavelmente perdido que
jamaispoderáserrecuperado"(p,122).
Asconsideraçõesquefazacercadesuavidaedocomportamentodamãepodemser
vistascomoummeiodereflexão,mesmoqueaironiadisfarceessaintenção.Nessesentido,é
possíveltambémperceberapreseadavertente"existencial-intimista",vistoqueanarração
de "Ursinho de pelúcia" se faz por meio de uma consciência "introvertida", em que o
narrador,aorelembrarosfatostraumáticosquemarcaramasuainfância"vêoseujovemeu
retrospectivamente"(p.194,grifonooriginal),centralizandoneste"eu""todasasderivações
doatonarrativo,comooúnicoobjetivodocontar"(p.196).Porém,elenãorefletesobreasua
posiçãonopresente,istoé,nãoconfrontaosfatosdainfânciacomosdavidaadulta.Quando
eledescreveosmomentosdeaflições,dúvidaseausências,gerados,decertaforma,pelamãe,
"onarradornãoavalianemcomentaoseusignificadonavidafutura,etambémnãomostraas
125
conseqüênciasnaformaçãodasuapersonalidade"(p.113).Aindaassim,épossívelsuporque
seformouumadultoindividualista,quecolocaseusinteressespessoaisacimadetudo,pois
ele disfarçaorealmotivoda mortedagenitora,provavelmentepara nãoircontraopai ou
paraseeximirdeumapossívelculpa,caracterizandotambémumaconsciência"distante",já
queomiteessadesconfiança.
Um resquício de sua formação infantil pode ser, desse modo, percebido, porque
quando a mãe está em crise, ele não a ajuda, fica em silêncio, trancado no quarto e não
aparece na sala onde os familiares estão, tendo, portanto, na fase adulta, o mesmo
comportamento de isolamento, imparcialidade e fingimento da infância. Essa conduta
proporciona a inclusão do conto em outra vertente: a "social". As relações familiares
contemporâneas estão postas em xeque na narrativa, pois a hipocrisia e os interesses
individuais de cada membro se sobrepõem ao bem comum. Essa questão pode ser
exemplificadacomapassagememqueonarrador/filhodeixaimplícitooseuindividualismo.
Emrelaçãoaumadascrisesdamãeelediz:"Porpenadomeupai,epornãoquererparticipar
dafunção,fingiqueestavadormindoecomeceiarezarbaixinho"(p.50).
Há também uma concomitância entre os tempos passado, presente e futuro,
caracterizando o que Bittencourt denomina de consciência "concomitante". Uma das
passagensemqueissoseevidenciaocorrequandoonarrador,queestáemseuquartodiz:
Ouçobarulhosdexícaras–aempregadadeviaestarfazendoumcaféparao
meupai,que,comosempre,aindanãolembraraqueeratambémeleumser
humano e como tal tinha que se alimentar. Em seguida ouvi alguém
chorandoemetapeicomoacolchoadoatéacabeça,porquesabiaquelogo
em seguida ouviria gritos e as pessoas tentando convencê-la de que era
melhorparaelair(p.53).
O verbo "ouvir" apresenta-se em diferentes tempos e modos verbais dentro de um
mesmodiscurso,deumamesmasituação.Tem-seotempopresentedoindicativo–"ouço",o
pretéritoperfeito–"ouvi"eofuturodopretérito"ouviria". Essamesclatemporal dotao
narradordeumaconsciênciaqueohabilitaanarrarosfatossobváriasperspectivastemporais,
utilizando-se da "técnica literária da instantaneidade inspirada, portanto, nas artes
cinematográficasdaatualidade"(BITTENCOURT,1999,p.206,grifonooriginal),emquea
rapidezeasimultaneidadeestãosemprepresentesnodiscurso.
"Ursinho de pelúcia" é um conto em que Karam expõe o trágico das relações
contemporâneas familiares, apontandoa figura femininacomo o centroirradiador de tudo.
Apesardeanarrativaserfeitasobaperspectivadeumnarradormasculino,asaçõescentram-
126
se nafigura da mãe, e é por causa dela que ele expõe seus pensamentos. A sua visão de
mundo é gerada com base nas experiências que teve na infância, momento marcado pela
perdamaterna.Dessemodo,elevivenciaotrágiconãosópelaperdadae,mastambém
porqueéumadultoqueprocuradissimularseussentimentosatravésdaautoproteção,oque
caracteriza o o comportamento típico das relações familiares, mas as sociais na
contemporaneidade. Para a personagem feminina, o sentido do trágico não se faz apenas
medianteasuamorte,masprincipalmentepormeiodesuaexclusãofamiliaresocial.Essa
morte,portanto,nãoésomentefísica,causadapeloenforcamento,maséaqueimpossibilita
essamulherdeconviveremsociedadepornãoserconsideradapsicologicamentesaudável.
127
UNINDOASPONTAS
AanálisedoscontosdeHáum incêndio sobachuvarala(1999)éimportantepara
quesevislumbrearelevânciadapersonagemfemininanaficçãodeVeraKaramesepossa
avaliar em que medida ela contribui para o alargamento das fronteiras da literatura
contemporâneasul-rio-grandense.Váriosaspectossãoevidenciadosaolongodasnarrativas
analisadas,sendoqueemtodaselasaironiaeotrágico,aliadosàsvertenteseaostiposde
consciência narrativa, compõem uma rede relacional para que discussões de gênero sejam
apreciadas.Paratanto,odiscursodasesobreaspersonagensfemininasfuncionacomomola
propulsoradosprocedimentoshermenêuticosadotados.
Por meio do cruzamento entre ironia, trágico, temáticas, consciências narrativas e
gênero é que busco responder às questões norteadoras desta dissertação. A confluência e
interligação dessas categorias teóricas, expostas no primeiro capítulo, intitulado "Diálogos
teóricos:ateoriaaserviçodapráticatextual",équepossibilitaaleituradoscontosemqueos
estudos de Gilda Bittencourt, Linda Hutcheon, Gerd Bornheim, Joan Scott, Rita Terezinha
SchmidteMariaConsueloCamposconstituem-senasprincipaisfontesparaacompreensão
dosaspectosestruturaisdoscontosedosmecanismosartísticosempregadosnaconstruçãodas
personagensfemininas.
O segundo capítulo – "Um olhar sobre os contos de Vera Karam" – exige uma
subdivisãoquecomporteadequadamenteosoitocontosdeHáumincêndiosobachuvarala,
na medida em as personagens femininas são ora as narradoras/protagonistas dos textos, e,
portanto, movem os discursos e se mostram como se vêem, ora são as protagonistas,
funcionandocomoobjetosdonarradoemostradaspelavisãodequemnarra.Dessaforma,as
suasconstruçõespodemserapreendidasemduasvias:asquepossuemvozprópria,easque
resultamdoolhardooutro.Apartirdessestartingpoint,verificoanecessidadedereuniras
narrativasemdoisgruposdistintos,afimdedarcontadasespecificidadesencontradas.
Os contos "Há um incêndio sob a chuva rala", "Visita à vovó" e "A vida alheia"
compõem o primeiro subcapítulo, intitulado "A imagem refletida". São textos em que as
personagens femininas exercem a função de narrar os fatos, além de serem elas que se
descrevem,organizandoassimosseusdiscursos.
Nos contos analisados em "A imagem refletida" verifico que há personagens
femininasqueexperienciamumsentimentodedesestabilizaçãoqueaslevamaosuicídio.Esse
ato pode ser visto não como um comportamento fracassado, mas como uma forma de
128
resistência e revolta contra uma situação que está sendo imposta a essas mulheres. A
personagem Maria Laura, de "Visita à Vovó", por se sentir acuada pela mãe e pela avó
paterna,suicida-senobanheirodesuaresidência.Omotivodesseatoadvém,certamente,do
fatodeelanãopoderserdojeitoquegostaria,istoé,serumaadolescentequetemvontade
própria,quevisaàliberdadedeexpressãoedecomportamentodentrodasociedadeemque
vive. Oconto"A vidaalheia"apresenta a personagem Anacomoumamulherquedefinha
apósodivórcio,queacontecerapelatraiçãodomarido,cometendoumaespéciedesuicídio:
elasedeixamorrer.Em"Háumincêndiosobachuvarala",aindaquenãoocorraumamorte
emcena,elaésugerida,poisanarradorapareceameaçarovizinhocomumaarmadefogo.
Issodemonstraqueapersonagemdepara-secomsituaçõesque,aparentemente,nãoconsegue
resolverdemaneiraplenaoupelomenospacífica.Elavivenciaotrágicoenquantodesconstrói
avisãodemundopatriarcalqueasociedadecontemporâneaapontacomoparadigmaparao
comportamentodamulher:nãolheépermitidoreivindicardireitosnemalcaa-lospormeio
daagressividade.Anarradoradesteconto,vitimizadapelasrelaçõesdegêneroou,emoutros
termos, de poder, experiencia o trágico não só por ter sido abandonada pelo suposto ex-
namorado/vizinhoouporlevarumavidasolitária,mastambémporbuscarvingar-sedele.
Pelo fato de serem personagens femininas que enfrentam conflitos existenciais
advindosdeumcontextosocialrepressor,asvertentessocialeexistencial-intimista,propostas
por Bittencourt, figuram nesses três contos, o que implica a preferência pela consciência
introvertida. Em "A vida alheia", além dessa consciência também a empenhada, pois a
narradora, ao comentar sobre si e sobre as demais mulheres que fazem parte do universo
diegético–principalmenteamãeadotivaeasduasirmãs–carregaoseumonólogodeum
tomcrítico,denunciandoqueaideologianumasociedadepatriarcalédesfavorávelàmulher.
Sua consciência está, portanto, empenhada em apontar de maneira mais explícita as
desigualdadesentreossexos,demodoqueamaioriadaspersonagensfemininasreferenciadas
nãoencontraafelicidadeearealizaçãopessoalsóépossívelquandosãoexaltadasapenasas
suasqualidadesligadasaosafazeresdomésticos.Aprotagonistadestecontovê-seduplamente
marginalizada: por ser mulher e por lhe ser imposto um papel de submissão nos círculos
sociaisemqueseinsere.Asrelaçõesdenerosobreasquaisseerigemasdepoder,neste
caso,sãoclaramentetrazidasàtonaparadiscussão.Primeiro,aprotagonistaserveasfreiras,
sendoinclusiveseviciada,depois,afamíliaadotivae,porfim,omaridoeseusconvidados.
Embora esposa,éconfundida comumaempregada doméstica.Nodesfechoda narrativa,o
silênciodeLeopoldo–onão-dito–marcanãosóaironiadasituação,comotambémdenuncia
queapersonagemfeminina,apóslevarumavidainteiradeprivações,continuaimpedidade
129
sersujeitodeseusatosedesuaprópriavida.Aelaéreservadoapenasodireitodeviverem
funçãode"vidasalheias".
As consciências adotadas pelas protagonistas destes três contos corroboram a
utilizaçãodenarradorasautodiegéticas,pois,namedidaemqueseutilizamdomonólogopara
refletirem as suas imagens, elas falam consigo mesmas, ainda que haja a presença de um
interlocutor.Esse,podeseroutrapersonagem,comoocorreem"Visitaàvovó",emqueamãe
fala com a filha morta, ou o/a próprio/a leitor/a, a exemplo de "A vida alheia", pois a
narradoraórfãfaladesuavidaaalguémquenãofazpartedouniversodiegético.Entretanto,
há passagens em que tais discursos m como objetivo maior destacar o estado psíquico
dessasmulheres,havendoassim,umasemelhançacomatécnicadosolilóquio.Em"Háum
incêndiosobachuvarala"mesmocomapresençatácitadeuminterlocutor–ovizinho–,há
momentos em que a narradora se comporta como se ele o estivesse ali, defrontando-se
consigomesmaeemitindoseuspensamentosdemaneiramaisdesordenada.Umexemploé
quandoelalamentaque,setivesseumtelefone,dificilmenteeletocaria,masaindaassimela
teriamedodenãoestaremcasaparaatender,poisalguémpoderiadesesperadamentequerer
falarcomela.Aspassagensemqueaspersonagensfemininasdessescontosfazemusodeum
discurso assemelhado ao solilóquio são extremamente importantes na definição de suas
imagens, pois elas entram mais profundamente em suas consciências, revelando desejos,
anseios e pensamentos. Quando os monólogos seguem uma linha causal e temporal mais
definida,aprotagonista,geralmente,estáconscientedapresençadeuminterlocutor,oquese
evidenciapelaelaboraçãopréviaeintençãoirônicadasidéiasexpressas.
A ironiaé vistanão só nessastrês narrativas,mas em todososcontos de Há um
incêndio sob a chuva rala, de modo que as categorias de análise propostas por Hutcheon
(2000)sãoaplicadasemsua totalidade,conforme severificanoAnexoIIdestadissertação
(p.142). Entretanto, para as narrativas inseridas no subcapítulo intitulado "A imagem
refletida" destaco a presença maciça do marcador irônico gráfico nos discursos das
narradoras.Esseosóenfatizaaocorrênciadodito/não-dito,doimplícito/explícitonojogo
elocucional irônico, como também denota um aumento no tom da voz de quem narra,
característicodomarcadorfônico,visívelem"Háumincêndiosobachuvarala"e"Visitaà
vovó". Pelo fato de essas duas narrativas terem um interlocutor posto dentro do universo
diegético–osupostovizinhoeafilhamorta,respectivamente–,odiscursoirônicoprovoca,
em alguns momentos, conflitos bastante fortes, de modo que Vera Karam reproduz essa
situaçãomedianteautilizaçãodetermosemcaixaalta,conferindoaosmonólogosumtomde
extrematensão:aprotagonistanãosófala,masgrita.
130
Otrágicosemanifestacomoumatentativairreconciliáveldemudarumacondição
queestásendoimposta.Dessemodo,aspersonagensfemininasrefletemseussentimentosde
desacerto,oramarcadopelarevolta,orapelodescaso,orapelaimobilidade.Anarradorade
"Háumincêndiosobachuvarala"vivenciaotrágicoquandosedefrontacomoquedesejaser
efazer–vingar-seportersidoabandonada–ecomoque,defato,lheépermitido–viverem
profunda solidão. Além disso, passa por um conflito interior entre o que aparenta
simbolizadopelaaparênciasombria–eoqueéasuaessência–marcadapelodiadesol.Essa
simbologiaatestatambémaironia:elaoconseguequealguémseinteresseporela,quelhe
dê a oportunidade de revelar este interior, poético e brilhante. Dizendo de outra forma,
embora ela se esforce desesperadamente para mostrar-se de forma positiva, não encontra
respostanooutro.Em"Visitaavovó",osentidodotrágicoémarcadopelaganânciaepelo
excesso de individualismo: a mãe, ao encontrar a filha morta, preocupa-se com o piso do
banheiro manchado de sangue e com a perda das benesses proporcionadas pela sogra. A
narradora de"A vidaalheia"depara-secomosentimentotrágico daimobilidade dentro do
casamento,poisnãoconseguetransgredirasregrassociaisqueavalorizamsomentedentrodo
espaçodolar,comoumaserviçaldomarido.
Os contos agrupados no subcapítulo "A imagem construída" trazem personagens
femininas que estão impossibilitadas de mostrarem as suas faces. Em "Vinte e quatro de
dezembro","Primeirodemaio","Tudonavidaépassageiro","AnoivadoCaí"e"Ursinhode
pelúcia",verifico queasprotagonistassão construídasapartirdeumolharexterno: deum
narrador masculino ou de uma entidade disfarçadamente neutra. Como o podem se
manifestar, expor o que desejam nem dizer como se sentem, elas muitas vezes são vistas
comopessoasquetêmumcomportamentoquefogeaospadrõesdenormalidadeditadospela
sociedade,emqueavisãopatriarcalestáimbuídanoimagináriocoletivo.
Essaspersonagensrecebemumtratamentodiferenciadonoquetangeàrepresentação
denero.Muitasdasqueconseguemtransgredir,ofazemmedianteoscomportamentosque
beiram o absurdo. De acordo com a visão do/a narrador/a, isso ocorre via loucura, que,
geralmente,nãoconsiderataisaçõescomoumaformadetransgressão,poisnãoadmitequea
mulherpossasecontraporaosconceitospatriarcais,reivindicandoseuespaço,impondoseu
pensamento. A incompreensão dessas ações contestatórias enfatiza a exclusão sofrida. Por
outro lado, também existem aquelas protagonistas que ficam presas a uma ideologia
dominante e não conseguem a tão almejada libertação, enfrentando situações de extrema
solidãoetristeza;vivenciandootrágicosobdiferentesaspectos.Nessamedida,verificoque
esse comportamento oblíquo das personagens femininasratifica quemuitas mulheres estão
131
divididas entre o papel que devem e o que podem assumir, pois a incansável busca da
identidadeenvolve,deumlado,apressãodosmodelosmasculinosedeoutro,odesejodese
construircomoumsujeitoativo.
Aleituranaperspectivadegêneroéaquemepermiteconsiderarqueaspersonagens
transgressoras de Vera Karam não devem ser vistas como seres dotados de fraqueza, nem
tampoucocomopessoasquemumcomportamentoforadospadrõesdenormalidade.Pelo
contrário,aotomarematitudesdrásticas,estasmulheresganhamforçaàmedidaquebuscam
resolver uma situação aparentemente irreversível. Para exemplificar, cito o comportamento
arredio da passageira de "Primeiro de maio," que discute de igual para igual com o
narrador/cobrador.Essecomportamentocausaestranheza e desconcerta a figuramasculina,
principalmentepelofatodeelaocuparumaposiçãosocialmaisprivilegiadaqueadele.Em
"Tudo na vida é passageiro" a aparente loucura volta à cena como a única saída para a
protagonista,quesevêdesnorteadacomaperdadeumdosfilhos,vivendoemumestadode
profundo desespero. Processo semelhante ocorre com a mãe do narrador de "Ursinho de
pelúcia", que misteriosamente aparece enforcada no banheiro da clínica onde estava
internada. Os motivos pelos quais essa fatalidade acontece nãoficam bem esclarecidos ao
longo da narrativa, mas sabe-se que problemas psicológicos são enfrentados por esta
personagem após o nascimento do filho/narrador. Desse modo, por serem personagens
femininas que não têm como contar as suas próprias histórias, muitas vezes não são
compreendidas e as suas imagens o construídas sob este estigma: a loucura. É preciso
considerar que este estado de aparente falta de lucidez, é, na perspectiva de gênero, uma
maneiradecompreenderosprocessosdetransgressão.Poresseviés,épossívelveraloucura
como ummeio criativo quepermite a busca e oencontro de soluções, a ultrapassagemde
barreiras e a resolução de problemas. Além disso, deve-se considerar que os contos
possibilitamdoisníveisbásicosdeleitura:um,dizrespeitoàhistóriaqueo/anarrador/aconta
e queproporciona umentendimento superficial,já que a visão de foradá contaapenas da
aparência da protagonista; o outro, principalmente devido à malha irônica que perpassa a
narrativa,conduzàcompreensãodoseuinterior.Nessamedida,noscontosincluídosem"A
imagemconstruída",comoelasotêmvoz,nãosemostram,háummovimentodevaivens
significativos entre aparente/oculto, dito/não-dito e implícito/explícito. Cabe ao leitor e à
leitoradescobrir,desvelareinterpretar,ressignificandootexto.Maisainda,aleituraapartir
daperspectivadegêneroauxiliaatranssignificar,parausarumtermodaHutcheon,oditoeo
não-dito. Isso é possível, quando se considera as informações que o/a narrador/a fornece
acerca das personagens femininas, acrescidas àquelas que cada leitor ou leitora constrói
132
duranteoprocessointerpretativo,recuperandodentrodarepresentaçãoficcionalosemblemas
desuaconstrução.
As vertentes temáticas encontradas nestes cinco contos são as mesmas do grupo
anterior, a existencial-intimista e a social, sendo que em "Ursinho de pelúcia" verifico
também a presença da vertente memorialista ou da reminiscência infantil. Nesse conto, o
narradorrememoraosfatosdesuainfância,demodoqueostraçosexistenciais-intimistasse
fazempresentesnamedidaemqueseconsideraqueocentrodanarrativaéamãedonarrador
e que o relato indiretamente focaliza a preocupação do filho com questões existenciais
referentes a ela, bem como a si próprio, ainda que de maneira disfarçada pela ironia,
implicandoquestõessociais.Elefingenãosaberacausadamortedamãeporquenãoquerir
contraopai,istoé,concluirqueelepossaterassassinadoaesposa.Dessaforma,asrelações
familiares contemporâneas estão postas em xeque na narrativa, pois a hipocrisia e os
interessesindividuaisdecadamembrosobrepõem-seaobemcomum.
As consciências narrativas são apresentadas de maneira variada, pois cada narrador
escolhe a posição que deseja assumir frente ao que relata das personagens femininas, de
acordo com o que desejaexpor em cada passagem. Entretanto, é importante destacar que,
todos os contosdessegrupoapresentama consciênciadistante,poissão narradores/asque,
assumindoumaposiçãoextraouintradiegética,narramosfatosdentrodoseucampodevisão,
sugerindo neutralidade. Esse posicionamento é, muitas vezes, aparentemente neutro, pois
quando o narrador emite e/ou omite comentários acerca das personagens femininas e do
universodiegético,adotaumaposturaintencionada.Dessemodo,aconsciênciairônicaatua
comoresponsávelporestesdesviosde leitura,modalidadepresente, inclusive,emtodosos
contosdeHáumincêndiosobachuvaralaequeexige,portantoumapráticadeleituraque
váalémdoexplícito(overreading).Nesseaspecto,aconfluênciaentreaironia,otrágicoea
abordagemaotextoficcionalembasadanacategoriadegêneroevidencia-se.Essacorrelação
aponta para objetivos justapostos: o da escritura de Karam e o da leitura proposta neste
trabalho.Ambascorremnamesmadireção:apersonagemfeminina.
Independentemente de terem as suas imagens refletidas ou construídas, é visível a
supremacia das personagens femininas em Há um incêndio sob a chuva rala. São
protagonistas que vivenciam conflitos em que os elementos irônicos e trágicos participam
efetivamente da luta existencial. Vera Karam o aponta soluções para os problemas, não
procuradefinirnemodestino,nemopapeldesuasheroínas,apenasrompeaferida,comuma
linguagem coloquial que imprime veracidade e fluidez aos discursos, dispensando
comentáriosexaustivosesupérfluos.Atémesmoasdescriçõesfísicasdasprotagonistassão
133
feitasdemaneirapontual,issoé,sóostraçosqueinteressamdiretamenteàtramaéquenos
são revelados. Possivelmente, a escritora vise à, por meio de suas personagens femininas,
externalizarumaleituradospapéisdasmulheresnasociedade.Paratanto,aquiloqueédito
deveseracrescidodeumadimensãosimbólicaquepermitaodesnudamentonãosódointerior
dapersonagem,comotambémdeproblemasdegênero,ocampoprimárioemqueopoderse
articula.
Os finais abertos dos contos confirmam que todas as situações ficcionalizadas
permanecem como eternas perguntas, proporcionando ao/à leitor/a interagir com a obra, à
medida que faz suposições acerca do destino das personagens. Os contos caracterizam-se
comonarrativasessencialmenteurbanascentradasnainstituiçãofamiliar.Essamicroestrutura
nãosódenunciaqueasprotagonistassãomulheresconflituadas,devidoàmarginalizaçãoe
exclusão, como provoca a reflexão acerca da desordem e do preconceito que marca a
sociedade contemporânea. Solidão, reações violentas e modos vários de superar uma vida
antagônicasãopontostragicamenteexpostosnostextosdeVeraKaram.
A autora habilmente confronta aspectos distintos para construir as narrativas e as
protagonistas, suscitando momentos de tensão proporcionados pelo entrecruzamento da
ironia,dotrágico,dogênero,dasvertentestemáticasdistintasedasconsciênciasnarrativas.
Todas essas questões não só nos conduzem a dimensões mais profundas do texto, como
também atestam a sua qualidade literária. É preciso retirar a máscara de cada texto para
encontrar orosto quecada um esconde: umaface demulher. São rostos múltiplos, alguns
nomeados,outroso,justamenteparadestacarocaráteruniversaldasprotagonistas.Essas
personagens representam mulheres comuns, que circulam, muitas vezes, por ambientes
correlacionados ao cotidiano, como o espaço privado da casa. Nos textos em que elas
transitamporespaçospúblicos,essessãoorafechados–comoointeriordeumônibus–ora
locais que não interferem diretamente no comportamento das protagonistas – como o
shoppingde"Vinteequatrodedezembro",quefuncionacomopanodefundoparaoencontro
deMarcelaePapaiNoel.
CadacontodeHáumincêndiosobachuvaralaabordaumdramahumano,demodo
que,nocentro,estáumamulher,quecarregaacenadramáticaemsi,ouseráalvodessa.Essas
narrativas assemelham-seao gênero dramático não pela forma,em que as cenas muitas
vezes parecem emergir de um palco, mas também no que diz respeito à construção das
personagens femininas.Elas se formammediante a junção da ironia comotrágicoeesses
dois pontos entrecruzados manifestam-se em suas ações através de seus discursos. Desse
modo,évisívelalinguagemdramáticautilizadaporesobreessasmulheres,constituída,na
134
maioria das vezes, por monólogos que proporcionam às personagens enfrentar ocasiões de
dilaceramentospsicológicos–momentoscentraisdoespetáculo.AmaestriacomqueKaram
maneja essa cnica narrativa imprime um caráter original aos textos dentro da contística
gaúcha, de modo que esses embates interiores expostos ao/à leitor/a são permeados por
elementosdosuspenseedomistério,gerandoatensãonarrativa.Estaprovocaumestadode
angústiacrescentenoânimodequemestálendo,poisodesfecho,conduzidopelosuspense,
nãoencerraosquestionamentos.
Ainda que meu trabalho se caracterize pelo ineditismo, acredito que, pela riqueza
literáriainegáveldeHáumincêndiosobachuvarala,outrosestudossesomarãoaeste,oque
proporcionará diferentes possibilidades de análise. Dessa forma, a leitura realizada nesta
dissertação propõe trazer à tona a contística de Vera Karam e incluir seu nome na série
literáriario-grandense,àmedidaquetaistextosforemsendoestudadosnoâmbitoacadêmico.
Além disso, as abordagens literárias aplicadas ampliarão as pesquisas relativas à autoria
feminina,sobopontodevistadaCríticaLiteráriaFeminista.
135
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Florianópolis:UniversidadeFederaldeSantaCatarina,1994.p.23-32.
_____.Mulhereseliteratura:(trans)formandoidentidades.PortoAlegre:Palloti,1997.
_____.Recortesdeumahistória:aconstruçãodeumfazer/saber.In:RAMALHO,Christina
(org.). Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro:
Elo,1999.p.23-40.
_____. Um Jogo de Máscaras: Duplicidade em Nélida Piñon e Mary McCarthy. In:
GAZOLLA,AnaLúciaAlmeida(org.).Amulhernaliteratura.BeloHorizonte:Imprensada
UniversidadeFederaldeMinasGerais,1990.p.207-222.
SCHWANTES,Cíntia.Avozdalouca,avozdaOutra.In:Lybris:estudosfeministas,2005.
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10jul.2007.
SCOTT,Joan.nero:umacategoriaútildeanálisehistórica.Educaçãoerealidade.v.16,n.
2,jul-dez.1990,p.5-22.
SILVA, Geysa. A subjetividade feminina entre o humor e a memória. In: RAMALHO,
Cristina(org.).Literaturaefeminismo:propostasteóricasereflexõescríticas.RiodeJaneiro:
Elo,1999a.p.203-214.
SILVA, Regina lia Andrade da. Muito além dos estereótipos: Patrícia Bins: uma
arqueóloga das almas. In: RAMALHO, Cristina (org.). Literatura e feminismo: propostas
teóricasereflexõescríticas.RiodeJaneiro:Elo,1999b.p.215-226.
SILVA,LucilaCosta.BrancadeNeveeBorralheira:acompetiçãoeodespertardofeminino.
Disponível em: <http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno09-06.html>. Acesso em:
18mai.2007.
SKINNER. Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso. Trad. de Alessandro Zir. São
Leopoldo:EditoraUNISINOS,2002.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Trad. de Celeste Galeão. Rio de
Janeiro:TempoBrasileiro,1997.
STALLONI,Yves.OsGênerosLiterários.Trad.deFláviaNascimento.RiodeJaneiro:Difel,
2001.
XAVIER,Elódia.Declíniodopatriarcado:afamílianoimagináriofeminino.RiodeJaneiro:
Record,1998.
_____.Reflexõessobreanarrativadeautoriafeminina.In:XAVIER,Elódia(org.).Tudono
feminino: a presença da mulher na narrativa brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:
LivrariaFranciscoAlves,1991.
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140
<www.mulhervirtual.com.br./nomes/nomes.htm>.Acessoem:20ago.2007.
<
www.riogrande.com.br/turismo/capital11.htm
>
.Acessoem:12set.2007.
<www.cazuza.com.br/sec_discogra_letra.php?language=pt_BR&id=25>.Acessoem:6jul.
2007.
<www.bluesdapiedade.cassiaeller.letrasdemusicas.com.br>.Acessoem:6jul.2007.
<www.socorro.cassiaeller.letrasdemusicas.com.br/>.Acessoem:6jul.2007.
141
ANEXOI
TIPOLOGIADEGILDABITTENCOURT
CONTOS
CONTOSCONTOS
CONTOS
vertente
vertente vertente
vertente
social
socialsocial
social
vertente
vertente vertente
vertente
existencial
existencialexistencial
existencial-
--
-
intimista
intimistaintimista
intimista
vertente
vertente vertente
vertente
memorialista
memorialistamemorialista
memorialista
vertente
vertente vertente
vertente
regionalista
regionalistaregionalista
regionalista
consciência
consciência consciência
consciência
solidária
solidáriasolidária
solidária
consciência
consciência consciência
consciência
distante
distantedistante
distante
consciência
consciência consciência
consciência
introvertida
introvertidaintrovertida
introvertida
consciência
consciência consciência
consciência
empenhada
empenhadaempenhada
empenhada
consciência
consciência consciência
consciência
concomitante
concomitanteconcomitante
concomitante
consciência
consciência consciência
consciência
irônica
irônicairônica
irônica
consciência
consciência consciência
consciência
contraditóri
contraditóricontraditóri
contraditória
aa
a
consciência
consciência consciência
consciência
mutável
mutávelmutável
mutável
"Háum
incêndio
soba
chuvarala"
X X X X X
"Visitaà
vovó"
X X X X X
"Avida
alheia"
X X X X X
"Vintee
quatrode
dezembro"
X X X X X
"Primeiro
demaio"
X X X X X X X
"Tudona
vidaé
passageiro"
X X X X X
"Anoiva
doCaí"
X X X X X
"Ursinho
depelúcia"
X X X X X X X
142
ANEXOII
TIPOLOGIADELINDAHUTCHEON
CONTOS
CONTOSCONTOS
CONTOS
função
funçãofunção
função
re
rere
reforçadora
forçadoraforçadora
forçadora
função
função função
função
complicadora
complicadoracomplicadora
complicadora
função
função função
função
lúdica
lúdicalúdica
lúdica
função
função função
função
distanciadora
distanciadoradistanciadora
distanciadora
função
função função
função
autoprotetora
autoprotetoraautoprotetora
autoprotetora
função
função função
função
provisória
provisóriaprovisória
provisória
função de
função de função de
função de
oposição
oposiçãooposição
oposição
função
função função
função
atacante
atacanteatacante
atacante
função
função função
função
agregadora
agregadoraagregadora
agregadora
intenção
intençãointenção
intenção
ética
éticaética
ética
intenção
intençãointenção
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semântica
semânticasemântica
semântica
intenção
intençãointenção
intenção
psicoestética
psicoestéticapsicoestética
psicoestética
"Háum
incêndio
soba
chuvarala"
X X X X X
"Visitaà
vovó"
X X X X
"Avida
alheia"
X X X
"Vintee
quatrode
dezembro"
X X
"Primeiro
demaio"
X X X
"Tudona
vidaé
passageiro"
X X
"Anoiva
doCaí"
X X
"Ursinho
depelúcia"
X X X
143
CONTOS
CONTOSCONTOS
CONTOS
contexto
contextocontexto
contexto
circunstancial
circunstancialcircunstancial
circunstancial
contexto
contextocontexto
contexto
textual
textualtextual
textual
contexto
contextocontexto
contexto
intertextual
intertextualintertextual
intertextual
marcador
marcadormarcador
marcador
gesticulatório
gesticulatóriogesticulatório
gesticulatório
marcador
marcadormarcador
marcador
gráfico
gráficográfico
gráfico
marcador
marcadormarcador
marcador
fônico
fônicofônico
fônico
"Háumincêndiosob
achuvarala"
X X X X
"Visitaàvovó" X X X X
"Avidaalheia" X X
"Vinteequatrode
dezembro"
X X
"Primeirodemaio" X
"Tudonavidaé
passageiro"
X
"AnoivadoCaí" X X X
"Ursinhodepelúcia" X
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