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Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia - Departamento de Psicologia
Mestrado em Estudos da Subjetividade
Selma Eschenazi do Rosario
BRINCAR DE VIVER
Experimentações entre Winnicott, Deleuze e Guattari
Orientadora: Prof. Dra. Cristina Rauter
Co-orientador: Prof. Dr. Daniel Kupermann
Niterói
2007
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Selma Eschenazi do Rosario
BRINCAR DE VIVER
Experimentações entre Winnicott, Deleuze e Guattari
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia do Departamento de Psicologia, da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção
título de Mestre em Psicologia.
Niterói
2007
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Selma Eschenazi do Rosario
BRINCAR DE VIVER
Experimentações entre Winnicott, Deleuze e Guattari.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia do Departamento de Psicologia, da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a obtenção título de Mestre.
Em Psicologia.
Orientadora: Prof. Dra. Cristina Rauter
Co-orientador: Prof. Dr. Daniel Kupermann
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________________
PROF. DR. AUTERIVES MACIEL JUNIOR
UFF
___________________________________________________________________________
PROF. DR.CARLOS AUGUSTO PEIXOTO JUNIOR
PUC-RJ
Niterói
2007
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Dedico esses escritos aos meus pacientes queridos,
pelas mútuas contribuições que fizemos para o
enriquecimento de nossas vidas, através das vivências
compartilhadas que experimentamos.
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Agradecimentos
A Fernanda que me proporciona o exercício da maternagem e que me ensina, muito, sobre a
vida.
Ao William, companheiro de todos os momentos e de muitas experimentações, pela relação
compartilhada com amor.
Aos meus familiares, sempre próximos no coração e que souberam compreender a minha
ausência nos encontros familiares.
A Cristina Rauter, minha orientadora, uma descoberta afetuosa que muito contribuiu para o
enriquecimento desse trabalho, com a sua competência, respeito pela liberdade de expressão,
espontaneidade e delicadeza.
Ao Daniel Kupermann, meu co-orientador e amigo de muitos percursos, pela competência,
firmeza na condução intelectual, pela interlocução sensível e convivência amistosa.
Ao Auterives Maciel, pela disponibilidade generosa, sua característica marcante, descoberta
amistosa que nos conduz, com entusiasmo contagiante, a viagens filosóficas.
Ao Carlos Augusto Peixoto, pelas participações nas bancas de qualificação e de defesa,
trazendo contribuições enriquecedoras.
Aos professores do Mestrado de Psicologia da UFF, esse coletivo fantástico composto por
puras expressões diferenciais. Em especial, àqueles com os quais o convívio foi mais
próximo, pela generosidade e entusiasmo com que exercem a atividade de ensinar.
A Regina Camacho, pela cuidadosa tarefa de revisão do texto.
Aos meus amigos, sempre os amigos queridos, com quem venho compartilhando descobertas
em trajetórias diversas:
- amigos, companheiros de percursos na vida, encontros fortuitos e escolhas do
coração.
- amigos de turma do mestrado 2005, companheiros de viagem recente, e que
entraram, definitivamente, em minha vida.
- amigos, parceiros winnicottianos, dos encontros das sextas-feiras, pelo prazer da
convivência despojada e calorosa, pelas trocas afetivas e intelectuais.
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- amigos da Formação Freudiana, pelo incentivo, pelo intercâmbio intelectual e,
sobretudo, afetivo.
- amigos alunos e supervisionandos, que me oferecem a oportunidade de continuar
aprendendo, sempre.
- amigos dos grupos de filosofia, companheiros de novas descobertas.
- amigos do grupo Limiar, pelas interlocuções promissoras.
- amigos, companheiros de trabalho pelas experiências compartilhadas em diversas
trajetórias profissionais.
Àqueles amigos, especialmente, aos quais precisei recorrer, em algum momento dessa
trajetória pela disponibilização de textos, alguns inéditos; pela interlocução afetiva; pelo
empréstimo de livros e artigos; pela leitura dos escritos, o meu reconhecimento pela
generosidade e preciosa colaboração.
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Resumo
:
Brincar de Viver
Experimentações entre Winnicott, Deleuze e Guattari.
O estudo procura ressaltar a importância do ato de brincar, na clínica, pela via da
experimentação, que leva à descoberta pessoal, à criação. Um estilo de clínica que privilegia o
encontro afetivo entre paciente e terapeuta, como também o papel do sensível e da criação,
propiciado pela experimentação.
O objetivo desse trabalho é explorar o tema do brincar e seu uso na clínica
psicanalítica, tendo como referência o pensamento de D.W. Winnicott, em conexão com o
pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari. De Winnicott, faremos uso da sua teoria da
subjetividade e que serve como paradigma para a prática clínica. O fio condutor é sua
concepção sobre o uso do brincar como campo de experimentação na vida e no espaço
clínico, procurando explorar variações intensivas que resultem nas conexões investigadas. De
Deleuze e Guattari, selecionamos alguns conceitos filosóficos tais como: pensamento
rizomático, plano de imanência, devir, e linha de fuga, entre outros como meio de explorar
possíveis agenciamentos entre alguns elementos conceituais do pensamento desses
pensadores.
Palavras-chaves:
Brincar; clínica; compartilhamento; devir; espaço potencial; experimentação;
intervenção terapêutica; subjetividade.
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Abstract:
Playing of Living
Experimentations between Winnicott, Deleuze and Guattari
The study aims at underlining the importance of the act of playing, in the clinic, via
experimentation, which leads to personal discoveries, the creation. A style of clinic that
privileges the affective encounter between the patient and the therapist, the part of the
sensitive and the creation, propitiated by the experimentation.
The objective of this dissertation is to explore the theme of playing and it’s use in the
psychoanalytical clinic, having as a reference the thought system of D.W.Winnicott, in
connection with the thought systems of Gilles Deleuze and Felix Guattari. From Winnicott,
we will make use of his theory on subjectivity, that serves as a paradigm for the clinical
practice. The conducting thread is his conception on the use of the playing as a field of
experimentations in life and in the clinical space, seeking to explore intensive variations that
result in the investigated connections. From Deleuze and Guattari, we selected some
philosophical concepts such as: rhizomatic thinking, immanence level, coming-to-be and
some escape lines, amongst others, as a way of exploring possible agenciations between some
conceptual elements in the thought system of these authors.
Key-words:
Playing; clinic; sharing; come-to-be; potential space; experimentation; therapeutic
intervention; subjectivity.
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Sumário
Introdução
Inquietações de uma psicanalista à deriva. 11
Capítulo I
Sobre o pensamento de Winnicott e a criação de conceitos.
1 - Winnicott, um experimentador. 19
2 - O uso dos fenômenos e dos objetos transicionais. 23
3 - O conceito como criação. 27
3.1 - Pensamento arborescente, pensamento rizomático. 27
4 - Sobre os conceitos e o plano de imanência. 34
5 - Por que roubar e usar conceitos? 37
Capítulo II
O espaço para brincar de viver.
1 – Escrever como se brinca 45
2 – O gesto expresso pelo brincar. 46
2.1 - Brincar é experimentar ilusão. 49
2.2 – Brincar é fazer 51
3 – O gesto que acolhe o brincar 55
4. – O espaço para brincar de viver 66
4.1- área de repouso e de contágio 70
4.2 –solidão compartilhada e silêncio 76
4.3 - o espaço potencial e o virtual 79
- 10 -
Capítulo III
Brincar, experimentar, devir.
1 – brincar, experimentar, devir 86
1.1 – o brincar como conquista. 89
2 - brincar e devir 91
2.1 - Uma evolução chamada involução. 99
3 – O jogo do rabisco, uma cartografia. 103
3.1 – o jogo da espátula. 104
3.2 – o jogo do rabisco. 105
4 – O uso que a criança faz do brincar. 112
4.1 – clínica e experimentação 115
5 – O brincar e a vida . 120
Considerações finais
126
Referências Bibliográficas
1 – Obras citadas 135
2 – Obras consultadas 139
- 11 -
Introdução
Inquietações de uma psicanalista à deriva
.
Um indivíduo adquire verdadeiro nome próprio ao
cabo do mais severo exercício de despersonalização,
quando se abre às multiplicidades que o atravessam de
ponta a ponta, às intensidades que o percorrem.
Gilles Deleuze
- 12 -
Inquietações de uma psicanalista à deriva
.
Esse trabalho parte da clínica, das inquietações que só a sensibilidade, instigada pela
prática cotidiana com crianças, adolescentes e adultos, permite que essas inquietudes possam
emergir e ganhar consistência. Inquietações que põem em questão certos procedimentos
clínicos que costumam ser apresentados como verdades acabadas. Inquietações que brotam
dos desafios impostos pelas limitações de um agir que, um dia, foi revolucionário mas que, na
atualidade, muitas vezes é apresentado como modelo a ser seguido. Modelação que acaba por
dificultar ou impedir que o trabalho feito por um clínico possa sofrer desvios e se desdobrar
em novos rumos, sem que com isso seja preciso rejeitar a tradição.
Trata-se de uma experiência de desestabilização daquilo que é apresentado como uma
espécie de ‘porto seguro’ do proceder clínico e que nos faz acreditar que os psicanalistas,
ainda que não todos, desaprenderam de brincar, no sentido do termo com que estaremos aqui
trabalhando. Eis, então, uma tentativa de acompanhar uma experiência de desterritorialização
em que a reterritorialização
1
possa acontecer, não como uma mera mudança de um território a
outro, mas como possibilidade criadora.
Trata-se de uma tomada de posição a favor da resistência
2
, de uma resistência que
busca preservar o incômodo que precisa demarcar o instigante lugar ocupado por alguém que
1
O conceito de território e seus desdobramentos usados acima fazem parte daquilo que Deleuze e Guattari
chamaram de geofilosofia do pensamento que abordaremos mais à frente e se referem a modos de existência;
por ora, estamos nos referindo a movimentos de composição e de decomposição de territórios existenciais que
atravessam, também, o campo dos ofícios, das profissões.
2
A concepção de resistência, nesse contexto, não se refere ao termo conforme usado no debate psicanalítico, ou
seja, como resistência egóica à manifestação desejante. Aqui, essa resistência se refere a uma resistência
imanente ao próprio desejo, o que nos leva à afirmação de que estamos falando não de uma resistência ao
desejo, mas de um desejo de resistir.
- 13 -
se dispõe a escutar a dor de outrem. Por alguém que deseja manter preservada a crença de que
algo sempre pode ser feito pela via da experimentação compartilhada. Uma tomada de
posição para que se desmonte a perspectiva de um lugar instituído, apenas como suposto
saber, e para que o ocupante desse lugar possa usar a sua experiência como modo de cuidar e
de agir no espaço clínico. Alguém que, ao exercer esse tipo de atividade, possa manter
vibrante a chama do estranhamento e do encanto. De poder descobrir, sempre, que o que
importa é realçar a potência criativa que é inerente à vida.
É desse ponto de vista que procuramos desenvolver a temática escolhida para trilhar o
percurso dessa estrada mestranda, em um movimento que se manteve desejante ao longo de
uma trajetória profissional que se pautou pela prática clínica e pelo estudo da psicanálise,
especialmente aquela desenvolvida por Winnicott.
Percurso que agora se desdobra em uma aproximação da filosofia e tendo como
conseqüência a realização do curso de mestrado, pela afirmação de um desejo algumas vezes
adiado - posto no limbo, no sentido winnicottiano do termo - mas, nunca recalcado. Uma
experiência do mestrado que escolhe como tema a ser desenvolvido a questão do lúdico, sua
função na clínica e na vida, tal como Winnicott a postulou. O brincar como experiência
compartilhada que favorece a manifestação criativa, passível de ser manifesta por qualquer
vida humana. O brincar que serve como instrumental para um tipo de proceder clínico que
privilegia a escuta sensível e a intervenção afetiva, em contraste com a idéia do brincar que
costuma ser empregado como instrumento de decifração.
É um trabalho conceitual que procura apresentar o que entendemos por
experimentação compartilhada na clínica, fazendo uso de possíveis agenciamentos entre
alguns elementos conceituais do pensamento de Winnicott e outros do pensamento de
Deleuze e Guattari, a partir das inquietações já expostas. Sendo um encontro do campo
psicanalítico com o campo da filosofia, foi preciso delimitar o âmbito da ação investigativa
nos termos que descreveremos a seguir.
Do primeiro campo mencionado e, ainda que reconhecendo a importância da tradição
psicanalítica inspiradora para o autor que estamos estudando, abordaremos um tipo de
psicanálise que foi praticada e teorizada por Winnicott. Mesmo admitindo que existem
comparações que seriam pertinentes entre o estilo desse autor e os de outros pensadores da
psicanálise, resolvemos delimitar o nosso objeto de estudo, permanecendo com ele nesse
percurso, que não é nossa intenção tecer comparações críticas, a fim de saber com quem
está a verdade. Faremos uso de uma psicanálise tal como Winnicott a experimentou e como
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gostava de afirmar: ao seu próprio modo. Essa é uma escolha pessoal, embora algumas
conexões possam ser feitas durante o percurso dessa travessia. Em termos explícitos, no que
se refere à psicanálise, partiremos e ficaremos com Winnicott, sua clínica e sua teoria da
subjetividade, tomando, como fio condutor o conceito de brincar tal como ele o utilizou, para
criar variações intensivas que resultem em outras conexões com o segundo campo de estudo.
Desse segundo campo, ficaremos com a parte da filosofia contemporânea apresentada
por Deleuze e Guattari, trabalhando com alguns conceitos específicos formulados por esses
pensadores, aqueles que nos servem para pensar clinicamente com Winnicott e que irão
surgindo ao longo da escrita. E por que queremos fazer isso? Qual é o nosso propósito?
É fundamental esclarecer que não se trata de buscar filiações e, muito menos, de
provar que Winnicott seria deleuziano ou transformar Deleuze e Guattari em winnicottianos,
mesmo porque esses pensadores eram afeitos, não a filiações, mas ao uso de fontes de
inspiração como modo de apresentar o seu próprio pensamento sobre determinada temática. O
que queremos é dar sustentação ou, talvez, apenas um testemunho – a partir da nossa prática –
de que o brincar winnicottiano é ferramenta para a criação de mundos, tanto faz que seja na
clínica, na escrita, na vida, etc. e isso modifica o olhar sobre o estatuto do ato de brincar no
plano da clínica.
Quando falamos dos conceitos, é porque acreditamos que, com eles, também podemos
brincar, não no sentido de desconsiderar o que foi feito e está consolidado, mas no sentido
de experimentar aquilo que Deleuze e Guattari chamaram de devir do conceito, que não é
copiar e nem reproduzir, mas extrair de um conceito as derivações que surgem do seu uso, em
uma determinada composição. O devir do conceito não transforma o conceito do qual ele se
originou, mas admite outras possibilidades de experimentação do mesmo, uma ampliação do
seu uso, conforme pensam esses autores quando dizem que é mais interessante pensar a
história das idéias pela sua descontinuidade, sem buscar semelhanças ou filiações, uma
história que deveria “contentar-se em marcar os limiares que uma idéia atravessa, as viagens
que ela faz, que mudam a sua natureza ou seu objeto.” (DELEUZE E GUATTARI, 1997, p.
15).
Visto por esse prisma, ‘brincar com conceitos’ é abri-los à experimentação e à criação
para saber se eles consistem ou não nos agenciamentos engendrados. Desse modo, o nosso
propósito é fazer uso de elementos conceituais que possam dar consistência à questão clínica
que queremos explorar nesse estudo, que reafirmamos sob a forma de perguntas que
objetivam o foco de nosso olhar investigativo como, primordialmente, clínico: O que é o
- 15 -
brincar visto como operador clínico que emerge de uma experimentação que não pode ser
tomada como prévia? Como essa idéia de experimentação se viabiliza na prática clínica pela
via do compartilhamento? A partir da concepção winnicottiana de objeto transicional e mais
especificamente da noção de uso do objeto, o que é “usar o analista”, quando se pensa no
brincar como um acontecimento clínico?
Como fluxo a ser percorrido no primeiro capítulo, iniciamos pela apresentação dos
autores, como meio de contemplar o estilo de cada um deles, o modo como agiam para expor
e defender as suas idéias, para realçar as possíveis correspondências que antevemos nessa
conexão. O nosso intuito não é fazer uma comparação entre autores, mas pensar um com o
método de outrem, pelo agenciamento de alguns elementos conceituais, oriundos da clínica
winnicottiana com o pensamento de Deleuze e Guattari, mistura de caldeirão de bruxa, onde
podem surgir, ou não, composições factíveis. Nessa alquimia, partimos da noção
winnicottiana de “uso do objeto” - procurando realçar que a importância do termo não está no
objeto e sim no “uso da palavra uso” (WINNICOTT, 1994, p. 181) para fazer um
agenciamento com a concepção de conceito como criação, tal como é elaborada por Deleuze e
Guattari.
Esse nosso movimento se justifica para expor o método a ser utilizado na feitura da
dissertação e aproveitando a aproximação dessa concepção com a idéia de ‘uso’ proposta
por Winnicott. O que pretendemos apresentar é um texto escrito como uma cartografia e
explorar a noção de totalidade fragmentária que atravessa qualquer conceito, que provoca a
idéia de inacabamento e de apropriação que também caracteriza o que Winnicott denominou
fenômeno transicional. Apresentamos essa inflexão como meio de ressaltar a dimensão móvel
e criadora de alguns elementos conceituais, conforme as conexões possíveis. O que desejamos
é promover encontros, embaralhar as idéias, para traçar esse percurso tal como um rizoma, ao
mesmo tempo em que se procura dar consistência ao texto.
No segundo capítulo, procuramos investigar os conceitos de espaço potencial e a sua
importância para a temática do brincar. Vamos explorar o assunto a partir de outras
importantes formulações winnicottianas que sustentam a sua visão sobre os processos de
subjetivação e a importância disso para o tipo de clínica que o mesmo exerceu, como meio de
enfatizar o aspecto da experimentação compartilhada, conforme o nosso objetivo. Usando a
afirmação winnicottiana de que um bebê sozinho não existe, mas existe ele e alguém, um
encontro, pretendemos trabalhar essa noção pelas idéias de gesto que encontra cuidado
ambiental e se faz expressivo.
- 16 -
No terceiro capítulo, o tema brincar é apresentado na visão desenvolvida por
Winnicott que mencionava a necessidade de se ter um olhar investigativo especial no próprio
plano psicanalítico para se obter uma leitura teórica do tema. Nesse capítulo, ao trabalharmos
a questão do brincar, como experiência compartilhada, buscamos as conexões com a filosofia
de Deleuze e Guattari, através dos conceitos de linha de fuga e de devir. É nesse contexto que
desejamos situar a relevância do brincar como palco privilegiado do encontro afetivo entre
terapeuta e paciente que se pelo compartilhamento, para a concepção de uma clínica que
privilegia o papel do sensível e da criação e que a nosso ver, só é possível pelo plano
experimental. Uma abordagem especial será feita sobre o ‘jogo do rabisco’, ferramenta clínica
desenvolvida por Winnicott, um meio de pensar como esses elementos conceituais podem
servir, operacionalmente, a um tipo de clínica que privilegia o plano da experimentação, do
sensível e da criação. E como corolário, desejamos destacar a visão que Winnicott tinha a
respeito da experiência cultural e da criação artística.
Nessa nossa trajetória nômade, pretendemos compor uma trama em linguagem que
possa ser aceita como pessoal, a partir da problematização proposta que é a do agenciamento
da psicanálise winnicottiana com as idéias de Deleuze e Guattari, tomando como paradigma a
temática escolhida e a sua importância para a clínica. Um trabalho em que não pretendemos
provocar confrontos com a tradição, mas apenas pensar algumas possíveis interferências entre
essas leituras distintas, a fim de sabermos se é possível problematizar aquilo que já está posto,
dado como pronto e que precisa, de tempos em tempos, sofrer arejamentos.
Também, é importante mencionarmos que, embora esse seja um trabalho conceitual,
não desejamos formular o nosso pensamento tomando como referência, apenas, a teoria.
Como fonte de inspiração elegemos a experiência empreendida durante o nosso percurso
profissional, servimo-nos de exemplos oriundos da prática para apresentar a nossa visão
pessoal do que é o brincar na clínica, mas como algo que faz parte da vida, a fim de dar corpo
às idéias que estamos defendendo.
Na disposição para discorrerem sobre a obra de um autor, observamos que alguns
escritores dedicam-se a organizar aquilo que ele produziu, como tentativa de traçar um fio
condutor, indo em busca de uma sistematização do seu pensamento o que é bastante
meritório. Porém, é importante esclarecer, que não é esse o caso desse estudo porque o nosso
propósito é privilegiar uma outra via buscando, em Winnicott, as brechas que permitam a
produção de outras leituras.
- 17 -
Esse é o Winnicott que nos interessa estudar e, naturalmente, sem a pretensão de
preencher as linhas de fuga que surgem da sua escrita. O que faremos aqui é menos um
recorte da obra desse autor e mais uma tentativa de montar pequenas composições clínico-
teóricas, sempre guiadas pelo tema do brincar que já se apresenta a partir dessa escrita.
- 18 -
Capítulo I
Sobre o pensamento de Winnicott e a criação de conceitos
... qualquer avanço no trabalho científico conquista um
ponto de (...) chegada numa nova plataforma, a partir
da qual se pode sentir uma porção ainda maior do
desconhecido.
D. W. Winnicott
- 19 -
1 – Winnicott, um experimentador.
Donald Woods Winnicott foi um psicanalista que experimentou, intensamente, devir-
criança
3
e foi assim, brincante, mergulhando no jogo compartilhado da experiência clínica que
deixou um legado a respeito do tema da criatividade que envolve, para ele, o ato de brincar.
Em seus textos, encontram-se referências mais à criatividade inerente ao cotidiano - a
capacidade que todo ser humano tem para viver criativamente - do que ao processo de criação
artística, modalidades que não se excluem, mas que foram tratadas por ele de forma
diversificada. Essa preferência talvez tenha sido em razão do seu interesse estar
predominantemente voltado para a expressão criativa, tanto no que se refere à clínica como
em todo o modo da existência humana.
Escrevia de modo simples sem ser simplório, experimentando e colocando em prática
aquilo que chamou de viver criativo (WINNICOTT, 1999, p.23) - um movimento expansivo
que denota uma linguagem própria, sendo a expressão daquilo que é apreendido como
descoberta pessoal e que se potencializa através de outros gestos que venham ao seu encontro.
Em uma carta dirigida a Melanie Klein, em novembro de 1952, reivindicou o direito de poder
expressar as suas idéias de um jeito singular. Uma atitude que significava não submeter a sua
linguagem pessoal aos termos kleinianos, mas pleiteando acolhimento para o seu modo
singular de expressar aquilo que experimentava na prática e apresentava como teoria e
3
Devir-criança é um conceito forjado por Deleuze e Guattari para expressar algo que acontece quando um
adulto, por exemplo, experimenta um estado afetivo de infância. Esses autores concebem o devir não como
transformação de uma coisa em outra, mas como um acontecimento que surge das forças que se compõem em
uma experimentação. Devir–criança nunca é imitar a criança, mas é experimentar estados afetivos que surgem
no encontro entre o terapeuta e o seu pequeno paciente, é se deixar afetar pelas intensidades que surgem desse
encontro. Para entendermos melhor o que é o devir talvez seja preciso modificar a questão e, em vez de
perguntarmos o que é o devir, temos que perguntar então: o que se passa na experimentação e que se compõe
como devir ? Retornaremos ao conceito de devir no capítulo III.
- 20 -
esperando dela um movimento que viesse ao encontro de seu gesto, ainda que ambos
pudessem divergir em idéias:
... o que eu queria [...] era [...] que houvesse algum movimento da sua parte
para com o gesto que fiz naquele ensaio. Trata-se de um gesto criativo e não
posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier
ao seu encontro. (id. 1990, p. 30).
Seus textos denotam estilo peculiar, em linguagem marcada pelo empirismo, pela
experimentação e por isso mesmo, escritos inacabados no sentido de possibilitarem aberturas
para novos desdobramentos, conforme o trecho destacado na epígrafe que emoldura esse
capítulo. Usou e abusou da linguagem paradoxal, que preferia, ao invés da obrigatória
explicação lógica para descrever aquilo que observava e experimentava.
Sua obra deixa transparecer uma boa dose de ousadia e liberdade no tratamento que
dispensava às formulações psicanalíticas exatamente por causa do interesse instigante
despertado por questões oriundas diretamente da clínica. Esse procedimento pode ser
entrevisto na descrição de casos clínicos e na disponibilidade demonstrada para aprender com
os pacientes que atendia, especialmente com os chamados casos fronteiriços
4
, geradores de
impasses para a prática e a teoria vigentes no meio psicanalítico de então, cujo trabalho era
predominantemente voltado para o tratamento de pacientes neuróticos.
Nos escritos sobre essa temática, ele enfatiza a importância da função cuidadora do
ambiente, especialmente no início da vida psíquica, quando se busca entender os possíveis
motivos deflagradores dos sintomas fronteiriços ou psicóticos e que exigem atenção especial
quanto ao manejo da transferência no setting clínico. Nesses casos limites, não é possível
dimensionar os problemas que chegam à clínica pela via do desejo porque, antes disso, trata-
se de suprir necessidades ambientais que deixaram de ser fornecidas e que deveriam estar lá,
ao alcance do infante. Experiências que foram vividas como privação ou intrusão e reputadas
como forças inibidoras do gesto criativo e como tais, produtoras de sintomas. Em sua visão, o
sentido do trabalho terapêutico, sem a consideração desses aspectos ambientais,
especialmente nesses casos, está fadado ao fracasso. Fracasso atribuído muito mais ao analista
4
Winnicott faz o seguinte comentário a respeito desse termo: “Pela expressão ‘caso fronteiriço’, quero significar
o tipo de caso em que o cerne do distúrbio do paciente é psicótico, mas onde o paciente está de posse de uma
organização psiconeurótica suficiente para apresentar uma psiconeurose, ou um distúrbio psicossomático,
quando a ansiedade central psicótica ameaça irromper de forma crua”. (1975, p.122).
- 21 -
do que ao paciente, quando o primeiro se mostra incapaz de reconhecer as diferenças entre a
intervenção clínica nos casos de neurose e aquela que exige mais manejo cuidadoso do que
interpretação.
Esse era o olhar sensível e flexível que Winnicott reivindicava a alguns de seus pares
na British Psych-Analytical Society
5
. Para ele, o analista que se deixa aprisionar por dogmas
corre o risco de gerar uma linguagem morta
6
. Qualquer visão doutrinária que tendesse a
sacralizar a tradição seria impeditiva, tanto de criação de um estilo próprio no plano da
clínica, quanto de produção renovadora no plano teórico. Sobre a matéria, a visão de um
contemporâneo seu:
Ele era militantemente avesso a dogmas. Winnicott era não-conformista
desde o berço; nada era estabelecido ou absoluto. Cada qual deveria
buscar e definir a sua própria verdade. O que havia de estabelecido era o
espectro da experiência. Todas as suas energias foram empregadas na
tarefa de encontrar o sentido das realidades da clínica, com as quais se
defrontou durante tantos anos. (KHAN, 2000, p. 11-12; grifos nossos).
Essa característica que marca o seu estilo fez com que ele resistisse à apresentação do
conjunto de suas idéias como uma obra acabada, como se fosse o fundador de uma escola,
preferindo que fossem recebidas como contribuições, embora clamasse, sempre, pelo direito
de ter as suas idéias reconhecidas como algo pessoal. Por ocasião das famosas controvérsias
realizadas na Sociedade Britânica, entre os seguidores de Melanie Klein e os de Anna Freud,
foi um crítico ferrenho da dissociação que enxergava nesse conflito. O seu posicionamento
parece ter servido para que fosse “polidamente desdenhado”, conforme, mais uma vez,
atestou Khan (ibid, p. 14). Junto com outros colegas, que partilhavam desse ponto de vista
crítico, Winnicott fundou o “Middle Group”, também conhecido como “Grupo dos
Independentes”, formado por analistas que buscavam afirmar a liberdade necessária à criação
de estilos próprios de agir e de pensar.
Clínico dedicado, Winnicott foi, ao mesmo tempo e confessamente, um descuidado
articulador de suas teorias com as de seus colegas antecessores e contemporâneos, a ponto de,
na abertura de uma conferência, demonstrar despreocupação com possíveis fontes de pesquisa
inspiradoras de suas idéias. Essa atitude traduz uma escolha para apresentar aquilo que
5
Sociedade Britânica de Psicanálise.
6
cf. a já citada carta escrita para Melanie Klein.
- 22 -
descobria em termos próprios. Ao enunciar uma formulação existente, considerava que ela
precisava ser reinventada em uma linguagem pessoal. Essa tomada de posse, vai aparecer
claramente no seu postulado sobre os fenômenos e objetos transicionais, como veremos mais
adiante. Eis o seu comentário a respeito:
Não começarei por fazer um levantamento histórico e por mostrar o
desenvolvimento de minhas idéias a partir de teorias de outras pessoas
porque minha mente não trabalha desse modo. O que faço é juntar isto e
aquilo, aqui e acolá, concentrando-me na experiência clínica, formando
minhas próprias teorias e, então, depois de tudo, me interesso em descobrir
de onde roubei o quê. Talvez seja um método tão bom quanto qualquer
outro. (WINNICOTT, 2000, p.269).
Isso quer dizer que, em torno do referencial teórico no qual se baseava, definia-se
como caótico, como na ocasião em que Marion Milner
7
presenciou Winnicott dizer a um
estudante: “o que você arrancar de mim, terá que selecionar do caos” (apud GROLNICK,
1993, p. 23). E aqueles que se inspiram no seu modo de proceder compartilham a constatação
de que a leitura de sua obra evidencia clareza e consistência, tratando-se, sobretudo, de uma
escrita criativa em que predomina a linguagem poética, por exemplo, quando descreve o seu
estilo de trabalho: “... meu ofício consiste em ser eu mesmo. Que pedaço de mim mesmo
posso dar a vocês, e como posso lhes dar um pedaço sem parecer que perco a totalidade?
(WINNICOTT, 1994, p.42). Afirmação a qual acrescentaríamos a seguinte questão, como se
fosse ele a dizer: como posso inspirar possíveis seguidores que compartilham das minhas
idéias sem parecer que eu lhes roube a criatividade?
Em um possível reconhecimento das conexões efetuadas entre as suas formulações e
as de outrem, mais uma vez refere-se a esse estilo libertário, numa nota de agradecimentos
(id. 1982, p.7), ao considerar a impossibilidade de discernir entre aquilo que aprendeu a partir
da sua formação profissional e as contribuições teóricas que fez, uma vez que, no seu
entendimento, é possível apropriar-se de conceitos, a fim de serem especulados e trabalhados,
ainda que se verifique que o que está sendo criado havia sido descoberto antes. A esse
respeito é, ainda, Khan (2000, p. 12) que destaca em Winnicott a primazia do clínico sobre o
teórico, definindo-o a partir de sua presença corporal que denotava a afirmação de um modo
7
Marion Milner, psicanalista inglesa, contemporânea de Winnicott e sua interlocutora, interessava-se pela
aprendizagem e pela arte de forma geral, especialmente dança e artes plásticas, tendo escrito artigos e livros a
esse respeito. Sua obra não é muito conhecida e estudada no Brasil. Essas informações foram retiradas de um
pequeno trecho escrito por Gilberto Safra, disponível em: www.livrariaresposta.com.br, acessado em
23/4/2007.
- 23 -
pessoal de ser, ao mesmo tempo em que jamais impunha essa presença como fator inibitório
ao interagir com outrem.
Comecei, propositalmente por defini-lo por sua presença física, porque não
seria possível compreender o seu talento clínico sem primeiro entender que,
nele, a psique e o soma encontravam-se em perpétuo diálogo, e suas
teorias o simplesmente a abstração daquela constante pessoa que era
Winnicott, o ser humano e o terapeuta. E, novamente, Winnicott o homem e
Winnicott o clínico eram recíprocos um com o outro, formando um bloco
único, inteiriço. (grifos nossos).
A partir dessas especulações e do conhecimento da obra de Winnicott, reconhecemos,
nele, um estilo que nasce efetivamente da experimentação clínica com especial destaque para
as formulações que faz sobre a sua visão teórica de como a subjetividade se produz,
irremediavelmente ligada ao tema da criatividade. Essa afirmação nos faz ponderar que, no
exercício do pensamento psicanalítico, esse autor usava conceitos como apropriações, em seus
devires, geradores de desdobramentos singulares, ampliando não a compreensão da teoria,
bem como os dispositivos técnicos a serviço da prática, ainda que tenha sempre mantido essas
inovações circunscritas ao âmbito da psicanálise.
De acordo com essas premissas, faz-se necessário apresentar, inicialmente, o seu
enunciado sobre fenômeno transicional, para o desenvolvimento do que estamos propondo, ou
seja, a tomada de um conceito em sua dimensão de uso. Para facilitar a compreensão,
usaremos a expressão fenômeno transicional ao mencionar ação que envolva a concepção de
transicionalidade tal como Winnicott postulou e assim, quando estivermos falando de
fenômeno transicional o mesmo se aplicará ao termo objeto transicional.
2 - O uso dos fenômenos e objetos transicionais
Nas observações que fez sobre o comportamento dos bebês, Winnicott percebeu o
apego, destes, a determinados objetos. Tal atitude dos bebês evidenciava um investimento
incomum sobre os mesmos: brinquedos de pelúcia, uma chupeta especial, a ponta de uma
fralda ou cobertor, gestos e palavras, uma cantiga etc. São elementos que se tornam,
momentaneamente, indispensáveis e que suplantam o suposto caráter aplacador de ansiedade,
- 24 -
assumindo função relevante na construção do psiquismo e que foram designados como
objetos transicionais. É o que ele chama de primeira possessão ‘não-eu’, fenômeno que ocorre
numa área intermediária entre a realidade e a fantasia, distinguindo-a do que se reconhece, em
psicanálise, como relação objetal
8
. Os fenômenos transicionais possuem variação ilimitada,
sendo criações exclusivas que não podem ser impostas. Esses objetos/fenômenos eleitos pelo
bebê devem ser acolhidos sem quaisquer questionamentos, imposições ou proibições, pois os
sentidos atribuídos a esses fenômenos reportam-se exclusivamente ao infante, não cabendo
qualquer interpretação para esses gestos.
O termo objeto transicional destinou-se a conceber significância aos
primeiros sinais, no bebê em desenvolvimento, da aceitação de um símbolo.
Este precursor de ummbolo é, a um só e ao mesmo tempo, parte do bebê e
parte da mãe. Com freqüência este símbolo precursor é na realidade um
objeto, e a adicção do bebê a esse objeto real é reconhecida e admitida pelos
pais. Amiúde, porém, não existe materialização e, então, pode-se descobrir
mais tarde que certos fenômenos possuem a mesma importância tais como,
por exemplo, olhar, pensar, fazer distinção entre cores, exploração de
movimentos e sensações corporais, etc. (...) Em condições favoráveis, este
objeto gradualmente cede lugar a uma gama de objetos cada vez mais ampla
e à totalidade da vida cultural. (WINNICOTT, 1994, p.36, grifo nosso).
Winnicott vai atribuir maior importância ao uso que o bebê faz do objeto transicional
do que ao objeto em si, por se tratar de uma capacidade psíquica a ser conquistada que (...)
“não é o pano nem o ursinho que o bebê usa; não tanto o objeto usado quanto o uso do
objeto.” (id, 1975, p.10). Essa afirmação nos faz deduzir que a ênfase da proposta
winnicottiana não está nem no termo objeto, nem no termo fenômeno. Não se trata de um
fenômeno que ocorre de forma passiva. Quando ele acentua o usar, percebemos claramente o
aspecto transicional em questão, pois o usar implica um movimento que não é antes e nem
depois. O usar é o mesmo que experimentar e é nesse sentido que o termo se liga à criação. E
assim, no realce que queremos atribuir ao termo uso, as idéias de criar conceitos e usar
conceitos passam a ter uma correspondência, embora sejam postulados distintos.
Retornando a Winnicott, temos, portanto, a formulação de uso do objeto como um
processo fundamental na experiência da produção de subjetividade e que envolve o ato de
8
Relação de objeto ou objetal é uma expressão usada com muita freqüência na psicanálise para designar o
modo de relação do indivíduo com o seu mundo, relação que é o resultado complexo e total de uma
determinada organização da personalidade, de uma apreensão mais ou menos fantasmática dos objetos e de
certos tipos privilegiados de defesa. (LAPLANCHE & PONTALIS, 1986, p. 576).
- 25 -
pensar, ressaltando o paradoxo inerente a esse uso objetal. O paradoxo se refere à
possibilidade de se usar um objeto que está lá, posto, sendo apresentado e pronto para ser
usado, ao mesmo tempo em que tem que ser criado. Trata-se da capacidade que existe
potencialmente para a exploração do mundo e que precisa ser desenvolvida através das
experimentações que o bebê faz a partir do seu nascimento. Para que isso aconteça, é
importante que a ambiência esteja lá, pronta a fornecer o suporte necessário para a
concretização dessas experiências que podem ser variadas, mas necessitam ser repetidas com
certa constância. A isso ele denomina “apresentação de objeto”. Essa expressão refere-se “...à
introdução de todo o mundo da realidade compartilhada para o bebê e para a criança em
crescimento ...sendo que ...no início ...deve ser expressa em termos de apresentação que a mãe
faz de si mesma.” (DAVIS; WALLBRIDGE, 1982, p. 119).
Um objeto que é apresentado não para ser meramente reconhecido, mas para ser
criado. Essa constância da qual Winnicott nos fala pode ser expressa pela preservação e
sustentação de um ambiente cuidador simplificado, ou seja, que não seja complexo em
demasia de modo que o infante possa expandir, gradativamente, o alcance de suas
experiências. A isso o autor vai caracterizar como o mundo sendo fornecido em pequenas
doses. (WINNICOTT, 1982, p.76). O que é importante destacar, aqui, é o estatuto que o
termo experimentação ganha nesse processo. Aquilo que é fornecido pela ambiência, vai ser
experimentado como criação pessoal, pois se trata de uma experiência de posse, de uma
apropriação daquilo que é apresentado e que será percebido como uma invenção. Em
Winnicott esse processo de apreensão da experiência recebe o nome de apercepção, que faz
contraste com o fenômeno da percepção, conforme nos explica Dias (2003, p. 224):
A palavra ‘apercepção’ é usada por Winnicott com o sentido de assimilação
de novas experiências e como o oposto de ‘percepção’. Refere-se ao olhar
criativo, próprio do mundo subjetivo. Está ligada à palavra ‘criar’, no
sentido de ‘trazer existência’, ao fato de alguém ser capaz de continuar a
‘ver tudo como se fosse pela primeira vez’.
A apercepção refere-se à possibilidade de olhar e experimentar o mundo como
invenção singular, e isso envolve o termo usar. Essa concepção de uso de objeto que o autor
reputa como diferente de relação de objeto envolve certa desconstrução do objeto, que, na
linguagem winnicottiana, será representada por outro paradoxo, aquele em que a
agressividade primária resulta em criação. O que o autor postula como agressividade
- 26 -
primária
9
(WINNICOTT, 1995, p.96) é o mesmo que motilidade, sendo vista como o
movimento necessário à expressão dos gestos de expansão e criação de universos existenciais.
Sobre a distinção mencionada, vejamos o ponto de vista do autor:
Quando falo do uso de um objeto ...tomo a relação de objeto como evidente
e acrescento novas características que envolvem a natureza e o
comportamento do objeto. Por exemplo, o objeto, se é que tem de ser
usado, deve ser necessariamente real, no sentido de fazer parte da
realidade compartilhada, e não um feixe de projeções. É isso, penso
eu,que contribui para estabelecer a grande diferença existente entre
relacionar-se e usar. (id, 1975, p. 123-124).
Ao avançar teoricamente com a sua concepção de fenômeno transicional, Winnicott
confere consistência ao fator ambiental como elemento constitutivo na produção de
subjetividade. Em outros termos, o uso implica a apreensão daquilo que se encontra no real
em comunhão com o impulso vital e isso se pela via da experiência de compartilhamento.
O que está em jogo nessa colocação winnicottiana é uma afirmação que desejamos fazer para
estabelecer a diferença entre experiência de compartilhamento e experiência intersubjetiva e
isso é essencial quando pensamos, por exemplo, na instituição do chamado espaço clínico. Na
clínica, a diferença entre a experiência intersubjetiva e a experiência compartilhada reside no
fato de que, na experiência intersubjetiva, o que se ressalta é que ela acontece entre dois
sujeitos. No compartilhamento não interessa um sujeito aqui e outro ali; isso não é o mais
importante. O que importa é a experiência do compartilhamento em si e o que pode surgir
nessa experimentação. Desse modo, fazer clínica deixa de ter como objetivo modificar o
paciente, porque não se trata de um sujeito com a função de promover mudanças em outro.
Seguindo uma outra perspectiva, poderíamos dizer que aquela experimentação feita em
compartilhamento é suscetível de provocar novas modalidades de subjetivação, o surgimento
de novos horizontes existenciais. E, assim, é possível conceber a experiência compartilhada
em um espaço comum aberto a todos, um espaço inclusivo, coletivo, de onde se derivam
subjetividade e objetividade.
Em um brevíssimo artigo escrito em 1968, denominado “O uso da palavra uso”, (id,
2000, p.181), Winnicott deixa antever que, quando podemos usar um objeto, é porque
adquirimos a capacidade de lidar com esses objetos de modo não idealizado, ou seja, ele não
9
Abordaremos com mais detalhes o tema da agressividade primária na retomada da questão do uso, vinculada a
questão da clínica e do brincar, no capítulo III.
- 27 -
precisa ser preservado como se fosse um modelo intocável. Mais adiante, no capítulo três,
voltaremos a essa questão do uso e sua importância para a clínica. Por enquanto, basta
afirmarmos a aproximação que queremos fazer dessa noção de uso com a idéia de criação de
conceitos conforme pensam Deleuze e Guattari. Aproximação que nos parece ser menos a
problematização de uma obra e mais a sustentação da idéia de que é possível brincar com
conceitos, no sentido de abri-los à experimentação e à criação. Um procedimento que coloca
esses autores em um mesmo plano de pensamento. Autores que lutaram cada um a seu modo e
na sua esfera de atuação, contra a sacralização de conceitos.
3 - O conceito como criação.
Vejamos agora o que pensam Deleuze e Guattari a respeito dos conceitos. Pensadores
que apresentam a filosofia, não mais como um saber reflexivo em busca da verdade do
conhecimento, mas como uma filosofia da criação, produtora de pensamentos originais. Antes
disso, faz-se necessário mencionar, sinteticamente, o que entendemos como concepção
filosófica do pensamento clássico, apenas para fazer contraponto às formulações defendidas
por essa dupla de pensadores que tomaram para si a tarefa de apresentar aquilo que se
conhece como a “nova imagem do pensamento”. Nossa intenção visa, apenas, introduzir o
pensamento desses autores sobre o que é um conceito filosófico para estabelecer uma conexão
com a idéia winnicottiana de transicionalidade, o que significa pensar o conceito em sua
dimensão de uso. Em outros termos, brincar e usar conceitos para afirmar a originalidade do
pensamento winnicottiano como uma metodologia que escapa aos modelos pré-estabelecidos
e se inscreve no plano da experimentação.
3.1 - Pensamento arborescente – pensamento rizomático
Na concepção do pensamento representacional, o ato de pensar aparece como atributo
de determinado sujeito visando à aquisição de uma verdade concernente a um objeto. Trata-se
daquilo que se conhece como a imagem clássica do pensamento e que consiste em fazer do
pensador aquele que traduz em uma idéia a imagem dos objetos, havendo sempre uma
imagem anterior a ser revelada por aquele que pensa. O sujeito sendo prévio à experiência de
- 28 -
pensar, aquele que reflete e representa e o objeto o que tem uma substância percebida e
reconhecida como pensamento. Visto dessa forma, pensar coincide com conhecer e
reconhecer. Uma experiência privativa que visa trazer à tona aquilo que seria a essência do
objeto, como se houvesse, para esse, uma matriz a ser desvelada e, por fim, representada. O
pensamento seria, então, o atributo natural de um sujeito dotado de capacidade para tal e
estaria remetido ao interior de alguém que contempla, observa, percebe e reconhece a
representação abstrata do objeto. Por se encontrar hierarquizado, é também denominado de
pensamento arborescente pois, para se chegar a uma compreensão de determinada matriz,
seria preciso um procedimento classificatório funcionando como julgamento por semelhanças
e diferenças, num critério reducionista e hierarquizante, a fim de se atingir a tal unidade
primordial - matriz representacional.
Nessa modalidade de pensamento, tanto o sujeito quanto o objeto são concebidos
como condições à experiência; cada um distinto do outro. Entre sujeito e objeto, o
pensamento aparece como representação que, como uma ponte ligaria aquilo que o sujeito
percebe ao que é reconhecido como objeto. Essa concepção está na base do pensamento
cartesiano que confere ao ser pensante a idéia de que o sujeito está encerrado nele mesmo,
podendo estar em interação com os objetos, mas que, dele, não fariam parte. Temos, assim, a
imagem clássica do pensamento, modelo que privilegia a representação, operacionalizada
através de princípios universais, que se pretendem organizadores da realidade exterior, uma
vez que o pensamento concebido dessa forma se dá no plano de uma interioridade.
Considerando as
críticas empreendidas ao modelo de pensamento representacional,
Deleuze e Guattari apresentam em seus escritos inicialmente em o “Antiédipo” (1976) e,
posteriormente, em “Mil Platôs” (1995), como quebra desse paradigma filosófico, aquilo
que eles postulam como nova imagem do pensamento. A partir de “Mil Platôs”, eles vão
apresentar as suas formulações como platôs e sugerem que a leitura dos mesmos possa ser
feita de qualquer ponto e não mais como capítulos organizados e em seqüência. Em vez de
mera aquisição de saber, convidam o leitor a ler o livro como experimentação, em um
agenciamento singular com os textos, sendo esta a própria proposta de pensamento rizomático
que enunciam.
Deleuze e Guattari apresentam um antimodelo para o pensamento, aquele que não
possui imagem prévia e que irão denominar Rizoma, expressão que importam da botânica,
transformando-a em conceito filosófico. Esse modo de pensar é visto como um sistema
radicular que se expande mais na superfície, sem que haja pontos determinados de
- 29 -
convergência; as conexões ‘brotando’ de um ponto indefinido a outro qualquer. O que é o
Rizoma, então, pergunta Maciel Jr. (2006), ao mesmo tempo em que oferece uma resposta:
É um sistema de pensamento que se constrói passo a passo a partir da
experimentação, sistema que se interessa pelos agenciamentos que
constituem efeitos de pensamento, onde as conexões não estão devidamente
organizadas ou subordinadas a uma organização hierárquica, que despreza a
idéia de origem e de finalidade. Sendo possível viver assim, o será isso
que produz o novo em nós?
O pensamento rizomático não se propõe a traçar metas, nem a criar padrões
hegemônicos. Para os autores, só se começa a pensar, quando se rompe com o senso comum e
o bom senso que retira do pensamento a condição de emergir. se começa a pensar a partir
de um problema. Inevitavelmente, é um pensamento que rompe com as barreiras do modelo
da recognição. Pensar é criar, é estar voltado para o novo, a partir de encontros contingenciais,
produtores de singularidade. O pensamento é construído a partir da experimentação, ou seja,
as condições que possibilitam o pensar emergem da própria experiência, fruto dos encontros,
dos acontecimentos. Deleuze e Guattari sintetizam da seguinte forma o pensamento
rizomático:
... diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto
qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete
necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de
signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se
deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo ... Ele não é feito de unidades,
mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Não tem começo nem
fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e transborda. (DELEUZE e
GUATTARI, 1995, p.32).
No pensamento sem imagem, repetimos, a ênfase é atribuída à experimentação que
surge a partir de encontros contingenciais. Experimentação de onde emergem antiprincípios
que desconsideram qualquer modelo padronizado de pensamento que classifica, reconhece e
julga a partir de semelhanças e diferenças e que define os objetos pela sua essência. Mesmo
sem ser apresentado como um método, ainda assim o pensamento rizomático é descrito como
regido por elementos que o caracterizam mais como antiprincípios do que como princípios;
sendo eles:
- 30 -
- conexão com abolição do verbo ser, característico das identificações, pois não se
trata mais de perguntar ‘o que é isso ou aquilo’, uma vez que a substituição pelo conectivo ‘e’
implica na mudança da interrogação para: o que se passa entre isso e aquilo e mais aquilo
outro e mais ...;
- heterogeneidade no lugar de padrão homogêneo e classificação por semelhanças;
- multiplicidade, que não se define pelo número dos termos que a compõem, sendo
impossível atingir uma totalidade e nem reduzi-la ao uno, pois a relevância reside no espaço
intervalar entre os elementos que a compõem. As multiplicidades sendo absolutamente
impessoais operando tão somente por relações de forças, fluxos e intensidades, através de
agenciamentos
10
;
- ruptura a-significante, as conexões estabelecendo-se em qualquer ponto rizomático,
a partir de rupturas e desvios que transbordam em linhas de fuga, elas próprias derivando do
rizoma, e que se remetem umas às outras, levando a novas conexões em produções
heterogêneas.
O sistema rizomático não se apresenta, então, como um modelo estrutural, que
inexiste eixo genético ou estrutura profunda. A ênfase é para o que acontece em um plano
potencial, intervalar, e que possibilita a permanente criação de processos de subjetivação. Na
visão desses dois pensadores, a experimentação destaca-se, não como algo inerentemente
subjetivo e privado, mas como o plano emergencial da externalidade e dos processos de
individuação para cada ser.
Partindo desse novo paradigma criado para a imagem do pensamento, podemos
compreender que, para Deleuze e Guattari, filosofia não é aquisição de conhecimento, sendo
muito mais do que isso. Filosofia, para eles, é criação de conceitos originais, da mesma forma
que a ciência cria funções e a arte cria agregados sensíveis (MACHADO, 1990, p.4). Três
modalidades, planos do pensamento distintos, porém, inseparáveis ou imanentes. Ainda que
reivindiquem para o plano filosófico a função de criar conceitos, o que esses pensadores
valorizam na concepção conceitual é o aspecto conectivo entre domínios heterogêneos do
10
agenciamento: “noção mais ampla do que as de estrutura, sistema, forma, ... e que comporta componentes
heterogêneos, tanto de ordem biológica, quanto social, maquínica, gnosiológica, imaginária”. (GUATTARI e
ROLNIK, 1986, p.317).
“... um agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo outro de expressão. De um lado ele é
agenciamento maquínico de corpos, de ações, e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros;
de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas
atribuindo-se aos corpos. ... um agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou reterritorializados,
que o estabilizam e pontas de desterritorialização que o impelem”. (apud. ZOURABICHVILI, 2004, p. 20).
- 31 -
saber que estão em exterioridade com a filosofia, mas que produzem, igualmente,
pensamento. Para eles, é justamente no encontro desses planos filosófico, científico e artístico
que residem as sementes da criação prestes a brotar nas interferências e ressonâncias
produzidas pelas conexões estabelecidas. É possível pensar as sementes da criação para além
dos planos filosófico, científico e artístico e considerar que a criação emerge da força dos
encontros entre quaisquer elementos que produzem subjetividade.
Sem reivindicarem qualquer primazia de um plano sobre os outros, Deleuze e Guattari
fizeram uso das mais diversas articulações com outros pensadores filósofos, escritores,
artistas, cineastas, matemáticos, psicanalistas, etc. - em sua produção conceitual, promovendo
o arejamento da compreensão do que significa pensar pela proposição de um novo estilo de
pensamento não mais atrelado ao modelo representacional. Fazendo menção especificamente
a Deleuze em análise do estilo adotado pelo mesmo, MACHADO (1990, p.5) diz que:
Por um lado, a interferência, a repercussão dos saberes, as ressonâncias entre
atividades de criação em que não se pode assinalar prioridade de uns sobre
os outros e em que , especialmente, a filosofia não tem pseudoprimado nem
inferioridade de criação; os conceitos são exatamente como sons, cores ou
imagens, e é isso que faz com que a filosofia esteja em estado de aliança
ativa e interna com outros domínios. Por outro lado, a especificidade dos
saberes, no sentido em que cada um responde as suas próprias questões ou
procura resolver por sua própria conta e com seus próprios meios um
problema semelhante ao colocado por outro.
Dito isto e tomando como referência a diferença entre “pensamento arborescente e
pensamento rizomático”, observamos que o conceito pode ser concebido de duas maneiras:
como representação, tal como no modelo clássico de pensamento, traduzido como idéia
fechada, encerrada em si mesma, com senso já definido e que diz respeito mais à obtenção de
saber do que à possibilidade criadora; ou, como algo que surge de uma problematização.
Tomando em consideração essa nova imagem do pensamento, percebemos que o conceito
pode emergir a partir de um problema que é aquilo que clama, de modo incessante, pela sua
renovação, sendo possível, desse modo, pensar o conceito em sua dimensão criadora.
A sustentação para essa afirmação deleuziana está em Diálogos (1998, p.9) ao dizer
que as questões precisam ser fabricadas com múltiplos elementos oriundos de diversos planos
para surgirem como composições de linhas heterogêneas, mas inseparáveis. Questões que
- 32 -
brotam no espaço intervalar, surpreendendo o pensamento com a afirmação de um problema,
pois do contrário não há muito o que dizer.
Isso significa que na perspectiva do pensamento rizomático, qualquer conceito
comporta uma multidão, é composto por parcialidades, fragmentos de outros componentes.
Seu contorno é dado por corte, cruzamento e superposição, o que vai dar ao mesmo um
aspecto irregular. Visto desse modo, o conceito constitui-se como uma totalidade
fragmentária, aberto a linhas de fuga, elementos desviantes prestes a operar novos
agenciamentos. Assim, é o conceito em sua dimensão disruptiva e impessoal que produz a
emergência de questões em busca de novas composições e que surgem da própria
experimentação. O conceito, sendo simultaneamente absoluto em sua dimensão de totalidade
e relativo na sua dimensão fragmentária. Assim como a concepção winnicottiana de objeto
transicional, esses autores pensam o conceito como algo parcial, ou seja, fragmentário e
inacabado. Sobre isso, eles dizem:
Os conceitos, como totalidades fragmentárias, não são sequer os pedaços de
um quebra-cabeça, pois seus contornos irregulares não se correspondem .
Eles formam um muro, mas é um muro de pedras secas e, se tudo é tomado
conjuntamente, é por caminhos divergentes. Mesmo as pontes, de um
conceito a um outro, são ainda encruzilhadas, ou desvios que não
circunscrevem nenhum conjunto discursivo. São pontes moventes. Desse
ponto de vista não é errado considerar que a filosofia está em estado de
perpétua digressão ou digressividade.(DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.
35-36).
Se o conceito está sempre afeito a conexões, é pertinente que apresente aberturas
desviantes, justamente para permitir a expansão que o faz derivar em novas criações. Para
que um conceito se mantenha ‘vivo’, é preciso que seja móvel, pois estar em movimento não
é o mesmo que mudar de um território a outro. Estar em movimento é estar em devir. E se o
conceito está sempre em devir, é preciso que apresente uma força intensiva que possibilita a
diversificação, ao mesmo tempo em que preserva a sua consistência, justamente quando
devém como questão.
Na linha de pensamento que estamos aqui desenvolvendo, o conceito ganha o estatuto
de acontecimento. A partir da filosofia dos estóicos, em “Lógica do Sentido”, Deleuze (2003,
p. 152) apresenta a noção de acontecimento, pensamento como efeito de superfície. O
acontecimento, como o efeito incorporal produzido nos encontros que se dão entre os corpos é
postulado em oposição à idéia de que é o sujeito que produz o acontecimento. “... O brilho, o
- 33 -
esplendor do acontecimento é o sentido. O acontecimento não é o que acontece (acidente), ele
é no que acontece o puro expresso que nos sinal e nos espera”. O acontecimento possui,
simultaneamente, uma atualidade e uma virtualidade, estado de coisas e posição de devir,
características que lhe conferem a plasticidade necessária para desestabilizar qualquer
pretensão de ser um enunciado portador de uma verdade absoluta. Se o conceito é
acontecimento, não é o conceito que suscita os problemas, mas ao contrário. É da
problematização que surge um conceito, expresso pela própria potência criadora, força
disruptiva que possibilita o seu desmonte para que novos arranjos se estabeleçam. Dito de
outra forma: força disruptiva e consistência como processos que ocorrem simultaneamente.
Como surge de um problema, o conceito pode ser considerado uma ferramenta que
contribui para a operacionalização do pensamento constituído a partir de realidade factível,
idéia que desconsidera a visão ortodoxa de uma separação entre um psiquismo afeito a uma
realidade interna povoada de fantasias e que seria distinta de uma realidade externa. A
respeito dessa formulação do conceito como ferramenta para a construção do pensamento,
Passos e Barros (2000) postulam:
Não indiferença no trabalho com os conceitos quando sabemos que são
operadores de realidade. Nesse sentido eles nos chegam como ferramentas.
Um conceito-ferramenta é aquele que está cheio de força crítica. Ele está,
portanto, cheio de força para produzir crise, desestabilizar. (...) Cada
conceito se relaciona a um determinado conjunto de forças, ele é parte de um
plano onde fluxos diversos se atravessam. O que se pode fazer em relação a
um determinado conceito é percorrer suas linhas de constituição, as relações
que foi estabelecendo com as variações dos movimentos.
Dessa forma, entendemos que todo pensamento em sua expressão conceitual precisa,
então, ser fabricado e, nesse sentido, a ênfase recai na capacidade para criar. Deleuze e
Guattari, também, afirmam que todo conceito tem uma história que, no entanto, está sempre
prestes a se desdobrar em mundos possíveis. Esses autores parecem se servir do histórico de
dado conceito, para com ele trabalhar em outro plano, em um agenciamento da história com a
geografia, agenciamento esse que vai se caracterizar como uma geofilosofia, porque o que
passa a importar são as cartografias possíveis de serem construídas, à medida que se vai
usando tal conceito.
- 34 -
Numa palavra, dizemos de qualquer conceito que ele sempre tem uma
história, embora a história se desdobre em ziguezague, embora cruze talvez
outros problemas ou outros planos diferentes. Num conceito, há, no mais das
vezes pedaços ou componentes vindos de outros conceitos que respondiam a
outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, que
cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser
reativado e recortado. (DELEUZE e GUATTARI, 1997, pp. 29/30).
4 - Sobre os conceitos e o plano de imanência
Deleuze e Guattari fazem uma distinção entre conceito e plano de imanência, uma vez
que não consideram esse último uma conceituação, pois se trata de algo mais abrangente,
sendo o plano de imanência imagem do pensamento. Quando dizem que a filosofia tem como
função criar conceitos e traçar um plano, isso envolve movimentos e velocidades. Eles vão
dizer que o plano de imanência é o horizonte dos acontecimentos e que, em relação aos
conceitos, situam-se como o reservatório dos últimos (ibid, p.51). Trata-se de um horizonte
absoluto, impessoal, não dependendo de qualquer observador a fixar-lhe um ponto prévio para
a observação, sendo um horizonte intensivo que se remete aos acontecimentos, ao mesmo
tempo em que, pelos acontecimentos, sofre derivações. Não um observador a observar o
horizonte; fazemos parte do horizonte, nós o compomos, desde o plano de imanência, em
movimentos pendulares, que se dobram e se desdobram tal como as ondas do mar que se
repetem e afirmam a sua diferença.
O plano é o que está sempre pelo meio, é o que permite que linhas de fuga e
desterritorializações se constituam para comporem novos conceitos, a partir de fragmentações
que rompem com qualquer tentativa de totalização. O plano compõe os limiares que existem
entre os conceitos e que nunca se encaixam simetricamente. Nessa concepção, é possível,
então, criar estando no plano de imanência a partir, sempre e a cada instante, de sua própria
criação. O que queremos enfatizar é que esse plano não pré-existe ao conceito e precisa ser
traçado, tal como se abre uma trilha para que se possa caminhar sem que se tenha um destino
definido a ser atingido. Uma trilha nomádica, vacilante, errante, pois ... “o plano não consiste
num programa, num projeto, num fim ou num meio” (ibid, p.58). Ao utilizarem a imagem de
se terem nadadeiras na criação dos conceitos, ao mesmo tempo em que se instaura o plano,
esses autores nos levam a dizer que, ao se nadar no oceano infinito do plano de imanência,
braços-nadadeiras criam o caminho. Abertura de caminho entre as águas que, imediatamente
- 35 -
após a passagem, recompõem-se como oceano, desfazendo o caminho que se faz quando
trilhado.
O plano de imanência é um plano de superfície, sem que nada esteja por trás, na
profundidade e não se trata de algo que se revela por substitutos, porque tudo está posto lado a
lado mas, nunca previamente como algo a ser descoberto. O colocar-se lado a lado tem que
ser percorrido, sendo conexões alinhavadas pelos acontecimentos e que podem, também,
romper novamente com o alinhavo, desdobrando-se em linhas de fuga. O alinhavo, podemos
chamá-lo de desejo, cuja costura intensiva poderá dar, ou não, consistência aos encontros, aos
acontecimentos. Essa possibilidade de consistência, só sendo possível em meio ao que é
vivido, ou seja, em meio a experimentações.
Se o fio condutor da construção da vida e desse plano de imanência chama-se desejo,
que se apresenta como intensidade e mola propulsora do processo de produção, operador de
criação justamente pelo seu transbordamento, perguntamos, então: o que, fundamentalmente,
o desejo produz? O desejo produz agenciamentos em meio a acontecimentos. O desejo produz
experimentações, desejo visto como processo de produção. Conforme nos diz Scherer (2002,
p.14):
...o desejo conduz, produtivamente, a associações novas, simbioses com
seres e coisas, reinos diferentes. Essas passagens em direção ao outro são
devires: devir mulher, criança, animal, planta, fundir-se nos elementos ou
devir imperceptível ... [e continua ] ... devir, desejo, agenciamento são
aspectos de uma mesma realidade, tomados em diferentes perspectivas, sob
ângulos diversos. O desejo jamais acontece sem um agenciamento. O desejo
e seu agenciamento, eis a verdadeira fórmula.
Percebemos que, das categorias de sujeito e objeto, esses pensadores abrem mão para
falarem, então, de subjetividades, singularidades, individuações e hecceidades processos de
individuação sem sujeito, porque não se trata mais de desvelar um sujeito oculto,
transcendente, mas de um sujeito inexistente, sem substância, volátil. Em seus escritos,
desconstrução e dispersão dessas categorias que podem existir como breves apreensões,
territorializações seguidas de desterritorializações. No lugar de sujeito, multiplicidades e
diferenças. Essa subjetividade é produzida ...“nos encontros quando os entes são transmutados
em ocorrências, retidos numa percepção ou lançados no intensivo” (ABBÊS, 2002, p. 87)
- 36 -
Entendemos que, no pensamento da imanência, não é o sujeito que atravessa a vida,
fazendo ou traçando o seu percurso, é a vida que se compõe e se decompõe em modos de
subjetivação - os acontecimentos indo ‘ao encontro de’ ou ‘de encontro à’. Eis o plano de
imanência em operação, um jogo que se na imanência, “... mas na imanência entre uma
vida e a vida” (ibid, p. 95).
Na consulta feita a alguns escritos de Deleuze e Guattari e de outros autores que
abordaram o assunto
11
, percebemos que, apesar da inteligibilidade dispensada ao tema e do
recurso às imagens descritas, um escape da apreensão do mesmo. Apreensão que se
num instante para, logo depois, fugir à compreensão racional e transcendente sobre o que é o
plano de imanência. Isso porque, estranhamente, o plano de imanência aparece vivo, presente
nos escritos, ao mesmo tempo em que escapole, parecendo estar, o tempo todo, brincando,
‘pregando uma peça’ em escritores e leitores, como se fosse um saci
12
. Aquilo que se
manifesta, nos textos consultados, parece ter sido produzido no próprio movimento
característico da imanência, uma ‘escrita vai-vem’, ziguezagueante, que faz o pensamento
configurar-se para, logo depois, evanescer. Uma escrita que se apresenta em um tempo
intensivo. Para falar do plano de imanência, estando no plano de imanência, sendo essa
experiência absolutamente singular, daí a aparente dificuldade de compreensão do termo,
porque não existirá, para o plano de imanência, um único entendimento preciso e universal.
sim, múltiplas compreensões, próximas, postas lado a lado, mas heterogêneas,
absolutamente singulares, pensamentos produtores do novo e da diferença.
Assim, é necessário reafirmar que não é possível falar da imanência. Só é possível
falar na imanência, “pegando carona na cauda de um cometa”. Plano de imanência!
Fundindo-se a ele, ou seja, estando imanente ao plano, dissolvendo as amarras egóicas,
produzindo uma espécie de escrita libertária, de relato nômade, para fazer passar uma vaga
idéia do que se quer dizer. A esse respeito, a linguagem poética, que possibilita a
desconstrução, o brincar com as palavras, a criação de termos. Essa é a ferramenta, por
excelência, que favorece a tal expressão. A imanência, portanto, diz respeito a
acontecimentos, experimentações, só. A imanência, como plano pré-individual, impessoal,
indeterminado e não numérico. Plano que diz respeito a múltiplas e infinitas possibilidades de
criação. Em seu último escrito, Deleuze radicaliza falando de uma imanência absoluta: “A
11
Conforme bibliografia consultada e utilizada, descrita ao final do trabalho.
12
Recorremos ao nosso folclore brasileiro que diz que os sacis são conhecidos, popularmente, como entidades
fantásticas, com poderes mágicos e que adoram armar ciladas aos humanos.
- 37 -
imanência absoluta está nela mesma: ela não está em qualquer coisa, ela não depende de um
objeto e não pertence a um sujeito (...) Diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e
nada mais”. (cf. DELEUZE, 1997-a, p.16)
5 - Por que roubar e usar conceitos?
Retomando nosso argumento na conexão que estamos propondo entre elementos
conceituais tão distintos, entendemos que o estilo winnicottiano de exercer a sua capacidade
de pensar e criar teoria, sempre fazendo uso de uma enorme liberdade de expressão, o
aproxima de Deleuze e Guattari, uma vez que são pensadores que utilizam os paradoxos como
instrumentos instigantes a fim de tirarem o máximo proveito dessa estilística para produzirem,
em suas respectivas áreas de atuação, conhecimento no plano da vida, plano de imanência, em
vez de postulados representativos de um determinado campo de saber.
Na concepção do pensamento filosófico que estamos contemplando, o conceito o
pode ter autoria nem identidade, porque ele não é produto de um “eu”, embora tenha um
criador. Conforme afirma Deleuze (cf. FOUCAULT, 1979, p.70). em sua conversa com
Foucault, quem fala e age é “... sempre uma multiplicidade, mesmo que seja na pessoa que
fala ou age” O conceito não emerge de uma instância interiorizada, ao contrário, é produto
coletivo e impessoal, que, tomado na sua dimensão de acontecimento, irá propiciar os mais
diversos agenciamentos e, nesse sentido, ele está ao alcance de qualquer um que queira usá-lo.
Vejamos, também, o que diz Deleuze (cf. DELEUZE E PARNET, 1998, p.15), em Diálogos,
sobre roubo e captura de conceitos:
... sequer algo que estaria em um, ou alguma coisa que estaria no outro,
ainda que houvesse uma troca, uma mistura, mas alguma coisa que está entre
os dois, fora dos dois, e que corre em outra direção. Encontrar é achar, é
capturar, é roubar, mas não método para achar, nada além de uma longa
preparação. Roubar é o contrário de plagiar, e copiar, de imitar ou de fazer
como. A captura é sempre uma dupla-captura, o roubo, um duplo-roubo, e é
isso que faz, não algo de mútuo, mas um bloco assimétrico, uma evolução a
- paralela, núpcias, sempre “fora” e “entre”.
- 38 -
Não se trata de reivindicar autoria, mas de se deixar contagiar por aquilo que é criação
de outrem, devindo ladrão de conceito. Um contágio que pode “... atiçar intensidades, uma
nomatividade que vai gerando coisas, que deflagra devires” (PASSOS, 2006). Nessa
modalidade de pensamento, os conceitos são apropriações momentâneas, a serviço de
determinada conexão. Podemos dizer, também, que é preciso desterritorializar um conceito a
partir de sua história, para reterritorializá-lo, dar-lhe outras consistências e colocá-lo no
mundo, na vida, a fim de que qualquer um possa fazer o mesmo se assim o desejar. Guattari
(1992, p.23), também defende essa postura quando menciona que não considera as
formulações de seu pensamento como doutrinas científicas, convidando os seus leitores a,
livremente, adotarem ou rejeitarem os seus conceitos.
Podemos sintetizar o que estamos enunciando, pela afirmação de que usar o conceito
na dimensão aqui descrita é poder pensá-lo, igualmente, na sua intensão
13
transversal-
transicional. No sentido winnicottiano do termo, trata-se da possibilidade de brincar com o
mesmo, poder transformá-lo em conceito nômade, móvel, para devir em outras criações. O
que estamos propondo é a possibilidade de fazer conexão entre o entendimento do que é um
conceito para Deleuze e Guattari e a noção de uso do objeto proposta por Winnicott, uma vez
que usar o objeto é tomar posse, apropriar-se, para desmembrá-lo e atribuir-lhe novos rumos,
ao mesmo tempo em que permanece preservado em sua composição, mas aberto às
derivações.
Trata-se do paradoxo winnicottiano em que a criação devém da destrutividade, mas
uma destrutividade que não aniquila, mas somente uma espécie de desmonte em que aquilo
que se desmonta apresenta-se como não-integrado, desconectado, diferentemente de um gesto
de desintegração. Uma não-integração que se expressa, por exemplo, no prazer que uma
criança demonstra ao brincar com uma torre de blocos de armar, quando o derruba inúmeras
vezes para depois voltar a erigi-la e, nesse sentido, não se trata de uma atitude defensiva, mas
ao contrário, criativa. (WINNICOTT, 1975, p. 90). Na modalidade que estamos apresentando,
usar o conceito é, então, tomá-lo em sua dimensão de paradoxo, como uma criança faz com
um objeto transicional em que o conceito está lá, sendo apresentado como tal, para ser
agenciado em diversos planos possíveis, pois se assim não o for, para que serviria, então, um
conceito?
Voltamos à nossa pergunta: por que roubar e usar conceitos? Na tentativa de oferecer
uma resposta - entre inúmeras possibilidades, já que se trata de uma pergunta introdutória sem
13
Usado no sentido de intensidade.
- 39 -
resposta prévia e por isso mesmo aberta a problematização pensamos que, quando um
psicanalista precisa usar conceitos da filosofia para pensar a sua função, sempre é de questões
oriundas da clínica que esse desejo se manifesta. Nesse caso, a clínica é o foro de onde as
inquietações emergem a partir da experiência vivida, pois os pacientes ‘impõem’ desafios que
nenhuma teoria pronta conta, plenamente, daquilo que se presentifica no setting. Porém, é
preciso não esquecer que aquilo que se apresenta na clínica provém da vida; por isso,
roubamos conceitos de vários domínios, uma vez que os conceitos da clínica são parte da
complexa experiência do viver, que nos chega por aquilo que as pessoas expressam, quando
vêm em busca de ajuda.
É da problematização de impasses constatados no cotidiano dos atendimentos clínicos
que surge, então, a necessidade da pesquisa que poderá resultar em novas formulações
conceituais. Não basta saber bem, difundir e aplicar uma teoria tida como pronta. É preciso
muito mais do que isso. É preciso reinventá-la sempre e, nesse sentido, um conceito-
ferramenta imbuído de força crítica torna-se indispensável para a realização desta tarefa. Os
conceitos vistos como ferramentas para a realização de um trabalho que produz subjetividade,
modos singulares de sentir, pensar e agir, tal como um artesão utiliza a sua ferramenta; um
escultor, o seu martelo; um pintor, o pincel, a tinta, a espátula, a tela e o mundo. Os conceitos
vistos como operadores de realidade, para darem expressão à sua criação. O objeto de nosso
interesse é explorar aquilo que, na função do clínico, diz respeito a um agir como artesão e
assim, talvez, possamos nos autorizar a falar da experimentação que inerente ao espaço
clínico.
Talvez seja essa a consistência que desejamos reivindicar para o trabalho clínico,
embora não saibamos exatamente como fazê-lo, até porque não é o caso de se seguir um
modelo pronto a ser imitado. Sabemos, porém, que essas inquietações não cabem mais apenas
no plano circunscrito pela teoria e pela prática clínica. Daí a necessidade de se recorrer a
outros instrumentos, estabelecendo novos agenciamentos, percorrendo outros mares nunca
dantes navegados em um percurso que, no entanto, estará sempre retornando à clínica como
um ritornelo
14
.
14
“O ritornelo vai em direção ao agenciamento territorial, ali se instala ou dali sai. Num sentido genérico,
chama-se ritornelo todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em
motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motrizes, gestuais, ópticos, etc.)”. O sentido que
queremos ressaltar, quando usamos, nesse contexto, o termo é: “o grande ritornelo ergue-se à medida que
nos afastamos de casa, mesmo que seja para ali voltar, uma vez que ninguém nos reconhecerá mais quando
voltarmos”. (apud, ZOURABICHVILI, 2004, p.94).
- 40 -
Partir sempre da intensidade, daquilo que surge, não de um sujeito, mas das forças
capazes de provocar desdobramentos que permitam a expansão do que pode ser considerado
como função de qualquer terapeuta: acolher, cuidar, provocar mudanças, liberar fluxos, etc.
Conforme dizem Deleuze e Guattari sobre as profissões: “a profissão,o ofício, a especialidade
implicam atividades territorializadas, mas podem também decolar do território, para
construírem em torno de si, e entre profissões, um novo agenciamento” (DELEUZE e
GUATTARI, 1997, p.135).
Sendo sempre uma via de mão dupla, a questão é saber se, em determinado
agenciamento, é possível haver a problematização gerada pela inquietude instigante. Na
verdade, a pergunta a respeito dos conceitos apenas inaugura um espaço para a
problematização, que é preciso percorrer na medida de sua própria feitura, tal como vimos
anteriormente na menção feita ao plano de imanência. É isso o que estamos nos propondo a
fazer.
O que nos instiga é saber se é possível, a partir do ponto de vista que estamos aqui
delineando, problematizar determinados enunciados de pensadores que se inscrevem em
planos distintos, mas inseparáveis como a psicanálise e a filosofia. Trata-se de considerar que
são ligações que ocorrem, segundo a lógica da experimentação, sendo preciso dimensionar
questões que resultam desses encontros e saber onde as interferências entre Winnicott,
Deleuze e Guattari podem, ou não, ser viáveis. Não é o caso aqui, de se propor um mero
cotejamento entre pensadores que militaram em planos tão distintos a fim de se verificar o que
de semelhante ou de diferente existe entre eles. É mais do que isso. O que pretendemos é
verificar a possibilidade de sustentar as formulações winnicottianas na linha do pensamento
rizomático proposto por Deleuze e Guattari, com o intuito de mostrar a sua viabilidade no
plano da clínica e para isso a nossa escrita propõe-se a experimentar o pensamento tal como o
Rizoma e procurando a expressão de uma linguagem pessoal, conforme disse Winnicott.
Mas é preciso lembrar, também, que as conexões aqui apresentadas como problemas
não se referem a objetos de estudo estáticos, rigidamente circunscritos por premissas que
visam a verdade. O que desejamos é que sejam vistos como encontros com a multiplicidade,
pois é essa perspectiva que suscita o nosso interesse questionador, manifesto na proposta
transdisciplinar de pensar esses encontros teóricos como acontecimentos e que vão nos
fornecer a medida, ou a desmedida, de como é que os conceitos se articulam no plano da
experimentação na clínica. Isso porque, em nossa percepção, é possível pensar a obra de
Winnicott, tal como ele mesmo postulou, tomando-a como objeto de estudo em sua extensão
- 41 -
de uso, isto é, numa dimensão transicional que viabiliza o apossamento dos termos, para que
ganhem novos sentidos singulares, produzindo novas territorializações conceituais. A esse
respeito, LINS (1998, p.13) define o uso que pode ser feito da teoria nos seguintes termos:
A teoria é também um objeto transicional porque o conceito de objeto
transicional deve ser recriado por quem dele se apodera. Sua aplicação à
clínica deve fomentar sempre novas teorias e novas práticas psicanalíticas. É
o que Winnicott parece pedir e esperar (...) que os analistas brinquem com as
teorias.
Um último comentário se faz necessário para definir a linha de trabalho
empreendida desde o início e que pretendemos dar continuidade. Trata-se, aqui, de ir
percorrendo um fluxo que aponta mais para uma dimensão estética do que aquela que é
determinada por um modelo cientificista. Seguir uma linha de pensamento tal como postula
Guattari (1993) em seu livro “As três ecologias”, quando apresenta a concepção de um novo
paradigma para a operacionalização de um trabalho conceitual que privilegia a visão ético-
estética, para se pensar os processos de subjetivação.
Algo como um plano de composição, à moda dos artistas, em que a assepsia é posta
de lado livrando-se das precauções que impedem que os desvios aconteçam. Um impedimento
que surge do receio de se distanciar demais dos “paradigmas pseudocientíficos” (ibid, p.18).
Para esse pensador, “... no registro das práticas ‘psi’ tudo deveria ser sempre reinventado,
retomado do zero, pois do contrário, os processos se congelam numa mortífera repetição...”
(ibid, p. 22), o que nos faz lembrar da tal “linguagem morta” que tanto incomodava Winnicott
e à qual nos referimos no início desse capítulo. Guattari, com grande propriedade, faz uma
intimação aos seus colegas de atuação profissional , para que retirem “os seus invisíveis
aventais brancos que carregam na cabeça” (ibid), e invistam nessa postura mais ético-estética,
livrando-se de um “ideal de cientificidade” que, em sua opinião, já está caduco.
Assim, recebemos essas recomendações como um convite provocador para mergulhar
na experimentação de uma escrita que pretende privilegiar a movimentação suscitada pelo ir e
vir textual, nos agenciamentos engendrados entre os pensadores protagonistas dessa nossa
pesquisa, ao mesmo tempo em que pretendemos dar sustentação a esse discurso por uma via
mais poética. Poesia que, no nosso entendimento, aparece com fluidez no método rizomático
que colocamos em prática nessa dissertação. Surge, daí, a nossa justificativa para o
atravessamento textual que fazemos em alguns momentos da escrita, “quebrando” o que seria
- 42 -
o esperado em um encadeamento lógico, ao explicar o que estamos querendo dizer e também
quando apresentamos fragmentos de experiências clínicas e de outras que se apresentam na
vida. O pretendido é a feitura de um trabalho que procura “tratar a escrita como um fluxo e
não como um código” conforme nos diz Deleuze (1992, p. 15), o que significa, para nós,
poder dizer algo em nome próprio e para afirmar, junto com esse autor:
... o gosto para cada um dizer coisas simples em nome próprio, de falar por
afectos, intensidades, experiências, experimentações (...) em um exercício
de despersonalização ... (que) ... se abre às multiplicidades que o atravessam
de ponta a ponta, às intensidades que o percorrem. (ibid).
Do mesmo modo, Guattari (1993, p.27) nos instiga a trilhar um percurso que segue
essa lógica diferente, mais afetiva e intensiva procurando dimensionar a conceituação
proposta a partir de uma prática experimental e partindo daquilo que ela desperta, o que
significa percorrer uma trilha nomádica. Atitude que está implicada no seu modo de conceber
o que chama de ‘ecosofia mental’ e que ‘concerne aos sujeitos humanos (corpos totalizados),
mas também aos objetos parciais (psicanálise), aos objetos transicionais (Winnicott) aos
objetos institucionais (...) aos rostos, as paisagens, etc.”.
Em termos estritos, entendemos que é preciso retirar os conceitos de suas redomas
esterilizadas e sujá-los, contaminá-los em meio a novos agenciamentos. É preciso embaralhar
os conceitos promovendo as devidas interferências que surgem dos encontros suscitados no
plano da experimentação. É preciso correr certo risco quando se pretende sustentar uma
linguagem pessoal a partir daquilo que já foi consolidado. Essa é a escolha que fazemos a fim
de experimentar e dar consistência ao que for “descoberto”, inventando novos
posicionamentos clínico-teóricos e que envolvem , inevitavelmente, o ato de brincar.
Assim, tomando o devido cuidado para não dogmatizar as abstrações de Winnicott
oriundas de sua experiência clínica e para não incorrer no erro de distorcer o seu estilo de
pensamento (KHAN, 2000, p.17), o pretendido é dar continuidade à nossa escrita trabalhando
com alguns conceitos desses pensadores e que estamos misturando com as nossas questões
e as de comentadores do tema, procurando explorar essas formulações com o propósito
especial de provocar encontros entre elementos heterogêneos, a fim de elaborar uma
concepção sobre o ato de brincar que implica criação no plano da clínica, em sua radicalidade
de processo de experimentação.
- 43 -
Reafirmamos que o nosso desejo não é montar um quebra-cabeças, com peças
predefinidas, que se encaixam perfeitamente para formar um todo, mas produzir bricolagens
15
pois assim também entendemos os processos de subjetivação, o trabalho que pode ser
realizado por um clínico e também a feitura de uma escrita. Estamos de acordo com Rauter
(1998), quando diz que a proposta de fazer bricolagem na escrita e na clínica não significa
descartar outros saberes acumulados, mas é poder dirigir às teorias consolidadas outros
olhares, visadas estrangeiras que permitam o seu uso como ferramentas provisórias, sempre
prestes a constituírem novas experimentações, conforme a seguinte citação:
Na verdade, para nós a clínica não deve se constituir num corpo estável de
conhecimentos ela é antes uma bricolage. A vantagem que vemos nesta
instabilidade é que possibilita a experimentação constante e impede a
generalização de procedimentos singulares.
O que queremos dizer com isso é que as questões precisam formar-se como
composições, elementos que conectam e se desconectam com os desdobramentos necessários
para que se configurem como problemas e não como pensamentos que estejam ligados à
astúcia. E para que seja assim, é preciso suportar que essas questões se configurem pela
apropriação de múltiplos componentes (clínicos, conceituais, experimentais, poéticos, etc.)
provenientes de qualquer lugar da vida, conforme estamos fazendo desde o início de nossa
escrita. Passemos então a falar do conceito de brincar tal como Winnicott o postula e a sua
íntima ligação com o tema da criatividade e da experimentação.
15
Conforme referência feita por Deleuze e Guattari à definição de bricolage proposta por Lévi-Strauss e da qual
esses autores se apropriam para explicar, no Anti-édipo”, a noção de desejo como uma questão de fluxo,
corte e produção: “Quando Lévi-Strauss define o bricolage, ele propõe um conjunto de características bem
ligadas: a posse de um estoque ou de um código múltiplo, heteróclito e, apesar disso, limitado; a capacidade
de introduzir os fragmentos em fragmentações sempre novas, do que decorre uma indiferença entre o produzir
e o produto, do conjunto instrumental e do conjunto a realizar. (...) a regra de produzir sempre o produzir, de
enxertar o produzir sobre o produto é a característica das máquinas desejantes ou da produção primária:
produção de produção. [Claude Lévi-Strauss, La Pensée sauvage, Plon, 1962, pp.26 e seg.]” (1976, p. 22),
(apud RAUTER, 1998).
- 44 -
Capítulo II
O espaço para brincar de viver.
Em algum lugar do esquema de coisas pode haver espaço
para que alguém viva criativamente. Isso envolve
preservar algo de pessoal, talvez algo de secreto, que é
inconfundivelmente você mesmo. Tente respirar pelo
menos – é algo que ninguém pode fazer por você.
D. W. Winnicott
- 45 -
1 – Escrever como se brinca.
A partir da nossa narrativa anterior, é inegável a percepção de que Winnicott produzia
teoria do mesmo modo que uma criança faz uso do brincar, ou seja, experimentando modos
de viver e de estar no mundo. O brincar e a poesia como elementos indissociáveis de um
estilo de trabalho que implica fazer mais prática psicanalítica teorizada do que teoria
psicanalítica praticada (Lannes, 2005). O estilo winnicottiano não está, certamente, isento
de possíveis questionamentos, mas, conforme disse Green (1986, p. 290), esse é um
pensamento que “... reflete, sobretudo, antes um experimentar abundantemente vívido que
uma esquematização erudita..." E isso faz toda a diferença quando se quer pensar o ato de
brincar pela via da experimentação. A menção a esse modo de produção é pertinente
porque Winnicott, conforme mencionamos, partia do caos, o que significa que procedia
a partir da experimentação clínica. Essa dimensão estética pode ser vista como um modo
de construir formulações onde o movimento de ir e vir é aquilo que fornece,
simultaneamente, a densidade e a fluidez necessárias ao alcance do que se quer comunicar.
Nesse capítulo, as principais articulações serão feitas entre os próprios conceitos do
autor procurando ressaltar a sua teoria numa concepção mais estética
16
e deixando para trás
uma via desenvolvimentista, que é o modo como ele costuma ser reconhecido e
apresentado. Sabemos da possibilidade de interpretar a teoria de um autor de vários modos
e o que desperta o nosso interesse é poder estabelecer uma leitura distinta desse modelo
convencional. Para isso, iremos apresentar as idéias que Winnicott desenvolveu sobre a
importância do brincar como se fosse um arranjo e não como conceitos que se sucedem
hierarquicamente. Fazem parte desse arranjo, as suas formulações conceituais sobre gesto
16
Compartilhamos essa visão com comentadores de Winnicott, por exemplo, Gondar (2005), Kupermann
(2005), Lannes (2005), Luz (1989) e Safra (1999), entre outros.
- 46 -
espontâneo, ilusão, não-integração, fenômenos transicionais, cuidado ambiental, solidão
compartilhada e espaço potencial, formulações que iremos, aqui, privilegiar. Em termos
mais explícitos, neste capítulo nós nos ocuparemos de elucidar alguns elementos
conceituais da teoria de Winnicott e que nos servirão para fazer agenciamentos com os
conceitos de Deleuze e Guattari no capítulo seguinte, muito embora alguma conexão
possa ser feita nessa leitura que estamos propondo.
O Winnicott que desejamos ressaltar é um experimentador; alguém que entende
produção de subjetividade como processo de criação permanente e ousamos dizer - que
concebe o nascimento psíquico do bebê em um plano de imanência, quando afirma que um
bebê, sozinho, não existe porque há um e entre ele e o mundo, uma concepção que
privilegia a relação do bebê com o ambiente como um encontro. Partimos, então, dessa
psicanálise experimentada por Winnicott, para a feitura de um texto que toma o próprio
tema do brincar como fio condutor, procurando dar um tom lúdico a nossa escrita. Escrever
como se brinca com palavras, fazendo uma espécie de “jogo do rabisco”
17
, uma espécie de
miscelânea, compilação de textos heterogêneos como se fosse uma pintura com os dedos,
conforme as crianças adoram fazer, misturando tintas para descobrir novas composições de
cores e texturas.
2 - O gesto expresso pelo brincar
Ao ser convidado para falar a respeito do gesto criativo, Winnicott (1967, p.25) iniciou
dizendo que poderia ir ao dicionário buscar as melhores definições que caracterizassem a
distinção entre viver criativo e criação artística. Se assim o fizesse, teria o sentimento de
deixar de ser criativo. Assim, preferia aventurar-se a falar sobre o assunto como se tivesse
partindo do nada, embora soubesse que a definição poderia estar lá, para ser prontamente
encontrada nas enciclopédias, evidenciando o axioma de que não se cria do nada, mas com
base na tradição. Em outra ocasião, ao descrever a importância da experiência cultural, com
ênfase para o termo experiência, lançou um questionamento aos seus pares, sobre um tema
que considerava não ter sido, até então, tratado com a devida relevância: “temos que enfrentar
17
O ‘jogo do rabisco’ é um jogo sem regras, um instrumento criado por Winnicott para facilitar a sua
comunicação com as crianças, nas primeiras entrevistas. No capítulo III, abordaremos mais detalhadamente
esse assunto.
- 47 -
a questão de saber sobre o que versa a vida (...) pois a ausência de doença psiconeurótica pode
ser saúde, mas não é vida” (id. 1975, p 137-8). Sobre o que versa a vida, então? Podemos
tentar responder, ao menos parcialmente, com as próprias idéias daquele que levantou a
questão.
Em sua concepção um traço constitutivo da subjetividade é o ímpeto criador ao qual se
referia, também, como gesto espontâneo, manifesto na exploração do mundo e que vai
gerando autoconfiança na mesma medida da aceitação ambiental. Assim, é possível a
aquisição de uma visão singular de si e do meio, aquilo que o autor chama de criatividade
primária e que faz com que toda descoberta seja empreendida como inovadora. Esse gesto,
como expressão de potência, dirigido para a vida e produzido a partir do encontro bebê-
ambiente, é experimentado, inicialmente, como onipotência e se converte em manifestação
criativa com a entrada em cena dos fenômenos e objetos transicionais. Winnicott (1982, p.56)
fala em “breve experiência de onipotência”, ressaltando a sua característica experimental que
não é o mesmo que sentimento de onipotência, que este está referido apenas ao plano da
fantasia. A onipotência experimentada como sendo aquela que se estende para abranger
objetos no meio ambiente imediato e envolve corpo e psique, aquilo que Winnicott chamou de
psicossoma, assim mesmo, sem dissociar o corpo do psiquismo.
Winnicott vai dizer que uma transição que acontece quando o bebê experimenta o
“controle onipotente dos objetos externos”. Transição essa que promove o gradativo
abandono desse controle até que “se chegue ao reconhecimento de que existem fenômenos
que se acham fora de nosso controle pessoal”. Esse é o momento da posse, momento em que o
bebê se capacita para reconhecer o paradoxo da distinção do que é inseparável. Em outros
termos, reconhecer que o objeto é distinto e simultaneamente indissociável do self. O
fenômeno transicional e o brincar fazem parte desse processo. Nesse novo arranjo, Winnicott
(1994, p. 45) diz: “O objeto transicional que faz parte tanto do bebê quanto da mãe adquire
uma nova condição a que damos o nome de posse". O bebê vai acumulando experiência e isso
faz com que ele se capacite para lidar com a ilusão que era, inicialmente, delírio e passa a ser
meio de criação. Ou seja, aquilo que poderia ser somente devaneio, é, também, ação. Na
leitura que estamos fazendo, a experiência de onipotência que tem início a cada gesto
espontâneo é possível porque o bebê, ao chegar ao mundo, está entrelaçado ao plano do
universo, sendo, justamente, nos encontros do bebê com a ambiência que se viabilizam modos
de individuão que irão distingui-lo, mas não separá-lo do universo. A seguinte afirmação
nos fornece a medida do pensamento winnicottiano a esse respeito:
- 48 -
... A partir desta experiência de onipotência inicial o bebê torna-se capaz de
poder experimentar a frustração e até mesmo de um dia chegar ao outro
extremo da onipotência, ou seja, de adquirir um sentimento de ser uma gota
d’água no oceano, um oceano que existia antes mesmo dele ser
concebido .(id, 1994, p. 90 – grifo nosso).
O que é, então, o gesto espontâneo? É o movimento da criança em direção à
exploração do mundo, que está para ser descoberto, paradoxalmente, como criação
singular. Em outras palavras, não se descobre o mundo, cria-se através do gesto que constrói a
partir da tradição. Para Winnicott, o ato de brincar é indissociável da espontaneidade e ele
insiste nisso ao discriminar o jogo articulado e com regras (game) do brincar intuitivo
(playing), uma vez que, nessa última modalidade, as regras e metas desaparecem ou deixam
de ter importância. É nesse sentido que o autor elege o brincar como paradigma dos processos
de criação. É por meio do gesto espontâneo que a criança coloca em prática a sua criatividade.
Embora essa espontaneidade possa sugerir uma condição natural, sabemos que não é
disso que se trata, pois seria preciso admitir uma naturalidade que se encontra atravessada
pelos diversos elementos que compõem o que chamamos de cultura. A espontaneidade da
qual falamos é, na visão do autor, a condição para que se viabilizem modos de existência
como um estilo próprio de ser e estar no mundo. Assim sendo, ela não é dada previamente,
pois se trata de algo que vai ganhando consistência à medida que o gesto é experimentado e
aceito como ação singular. Algo intrínseco à própria experiência da descoberta, simples ato de
criação. O que queremos dizer é que nascemos com a possibilidade criar, conforme as
experiências engendradas em meio ao ambiente, gerando referências próprias. Entendemos
que essa capacidade não é ofertada prontamente, precisando ser construída e trilhada, por
meio de experimentações mútuas, engendradas entre bebê e ambiência. As condições
ambientais estando aliadas ao potencial e permitindo a emergência do gesto criativo apesar
das adversidades sofridas, as quais nenhum de nós escapa. Assim, o sentido da vida está em
vivê-la na intensidade produzida pela composição do ambiente com o gesto espontâneo, mas
quando o padrão ambiental deixa de fornecer cuidado ou domina a cena, induzindo à
adaptação e não aceitando o gesto como criador, este passa a ser submisso ou reativo. O que é
importante destacar é que essa espontaneidade produzida e afirmada pela própria
experimentação não parte de um sujeito, mas emerge nos encontros e assim, temos um outro
paradoxo, o da espontaneidade que precisa ser criada, sendo isso que fornece consistência ao
gesto. Trata-se da possibilidade de experimentar o mundo sem que determinadas
interferências ambientais inibam esses gestos, impondo um padrão de subjetivão. Falamos
- 49 -
de uma espontaneidade manifesta pelas experimentações onipotentes da criança, uma
experiência ilusória que a faz criar o mundo em vez de descobri-lo, apenas.
2.1 - Brincar é experimentar ilusão.
A positividade que o autor confere ao termo ilusão retirando-lhe a sua face enganosa
diz respeito ao valor da experimentação. A ilusão é importante atividade psíquica, pois
operacionaliza modos de subjetivação e vincula a experiência de onipotência à criatividade
primária, algo bem diferente do pensamento mágico. Não se trata de um estado passivo, mas
da experimentação necessária que inclui vivências de ilusão e desilusão que vão criando e
ampliando um espaço para agir e pensar, reconhecidos, gradualmente como realidades
internas e externas. No processo gradativo de descoberta e criação do mundo, a onipotência
passa a ser relativa e não mais absoluta, exatamente pela mediação entre o subjetivo e a
objetividade.
Se, por um lado, essa descrição pode sugerir que são etapas que se sucedem, é preciso
esclarecer que, aqui, suceder não é o mesmo que ultrapassar, mas é estar lado a lado num
movimento de ampliação gradual do âmbito de interesses (id. 1975, p.17), processo que
queremos pensar, também, como instauração de territórios na vida, tomada de posse no
mundo. Essa idéia de instauração de territórios é um agenciamento que estamos fazendo entre
os modos de pensar a produção subjetividade propostos por Winnicott, Deleuze e Guattari.
Assim, é necessário situar, brevemente, o que esses últimos postulam como processos de
territorialização, desterritorialização e reterritorialização. No apêndice publicado em
“Cartografias do Desejo”, Guattari (cf. GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 31) apresenta uma
espécie de verbete que nos a medida concisa dessas expressões e que nos servem como
orientação para o uso que faremos, em alguns momentos, dessas expressões:
...os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os
articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser
relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do
qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação,
de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das
representações nos quais vai desembocar (...) toda uma espécie de
comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais,
culturais, estéticos, cognitivos. O território pode se desterritorializar, isto é,
abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir.
- 50 -
(...) a reterritorialização consistirá numa tentativa de recomposição de um
território engajado num processo desterritorializante.
Retomando o nosso percurso sobre o que entendemos a respeito de produção de
subjetividade no agenciamento dessas duas concepções, o tom que estamos imprimindo é o de
um processo constante que não é de transformação como amadurecimento, mas de um
psiquismo em expansão em que essas posições situam-se em contigüidade como platôs,
conforme Deleuze e Guattari preferiam denominar esses estratos. Talvez, possamos usar a
imagem em que planos se sucedem implicando a feitura de uma cartografia que estamos
aproximando da terminologia winnicottiana, denominada linha de continuidade da existência,
construída a partir da própria trilha percorrida. Uma linha que deve ser entendida, na leitura
que estamos fazendo como aquilo que flui. Fluxos que dizem respeito menos a um ser
substancial e mais a um ‘seguir sendo’ (LANNES, 2005), um fazer e desfazer caminhos.
Imagem que reconhecemos nas idéias desses pensadores e queremos exemplificar com a
seguinte poesia que traduz muito bem, aquilo que estamos querendo dizer com a expressão
“seguir sendo”:
Cântico negro
18
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
e cruzo os braços,
e nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
com que rasguei o ventre à minha mãe
não, não vou por aí! Só vou por onde
me levam meus próprios passos...
se ao que busco saber nenhum de vós responde
por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
redemoinhar aos ventos,
18
Essa é uma poesia de autoria de José Régio, pseudônimo literário do poeta português José Maria dos Reis
Pereira, que nasceu em 1901 e morreu em 1969. Licenciado em Letras em Coimbra, foi um dos fundadores
da revista Presença, sendo um dos mais importantes poetas do chamado ‘Segundo Modernismo Português
(disponível em: www.culturabrasil.pro.br, acessado em 29/4/2007).
- 51 -
como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
a ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
só para desflorar florestas virgens,
e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
e vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
tendes jardins, tendes canteiros,
tendes pátria, tendes tetos,
e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
e sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
mas eu, que nunca principio nem acabo,
nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
ninguém me peça definições!
ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
é uma onda que se alevantou,
é um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
não sei para onde vou
sei que não vou por aí!
2.2 - Brincar é fazer.
Sobre a questão da criação e ampliação do espaço psíquico, Winnicott (1975, p. 63)
vai afirmar que “para controlar o que está fora, que se fazer coisas, não simplesmente
pensar ou desejar, e fazer coisas toma tempo. Brincar é fazer”. Quando a criança brinca, está
construindo para si territórios existenciais e para que essa feitura seja exeqüível não pode
haver supremacia do dentro sobre o fora e o inverso é igualmente verdadeiro. Se a realidade
interna prevalece, o risco é o refúgio na neurose ou na psicose, estados psíquicos que
aprisionam e paralisam, impedindo o fluxo da vida.
A esse respeito, Deleuze (1997, pp. 12/13) também vai dizer algo que vai ao encontro
do pensamento winnicottiano quando afirma que a doença neurótica ou psicótica são estados
em que somos capturados quando interrupção do fluxo existencial, um processo
- 52 -
colmatado que inviabiliza desvios e tanto faz se é neurose ou psicose, pois ... “pecar por
excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa”.
Da mesma forma, diz Winnicott (2000, 285), quando a realidade externa predomina, o
preço é o empobrecimento da vida psíquica pois “ficamos muito pobres quando podemos ser
apenas sãos”. Uma assertiva que nos faz deduzir que uma dose de loucura não só é inevitável
como esperada quando a criança faz uso do objeto transicional. dissemos que, no caso do
bebê, a onipotência não é somente pensamento mágico, mas ação. Aqui, o paradoxo
winnicottiano indica uma espécie de alucinação experimentada no real, havendo, na primeira
infância, certa dose de loucura manifesta no modo como explora, inicialmente, a ambiência e
que tem continuidade com os primeiros atos de brincar. São os chamados momentos de
ilusão, sendo por meio dessa vivência, que o bebê constrói a realidade. Para Green (1986,
p.52), não se trata de uma loucura qualquer, mas de uma ‘loucura pessoal’, termo que esse
que o autor utiliza ao afirmar que a loucura pessoal estará lá, para nos encontrar com mais
freqüência do que supomos e quando nós a reconhecemos, podemos contar com ela.
Nessa mesma linha de pensamento, encontramos em Guattari (1992, p.16) o
entendimento da subjetividade como conjugação polifônica, de múltiplas vozes, tal como
pode ser constatado por diferentes tipos de produção, como a onírica, a delirante, amorosa,
enfim qualquer produção na vida e, por isso mesmo, podendo ser encontrada tanto na
psicose como em todas as formas de qualquer coisa que se considere como normalidade.
Voltando a Winnicott, este descreve um processo em que é tido o agenciamento de
forças que se compõem para promover o encontro que produz, pela experiência repetida,
subjetividade. Quando a ambiência ‘permite’ ao infante experimentar a ilusão de onipotência
cria-se uma base para que ele possa ser, e isso significa vivenciar, efetivamente, aquilo que
experimenta como algo singular. Quando isso não ocorre, a noção de realidade fica
enfraquecida, como se faltasse consistência a essa possibilidade de ‘sentir-se existindo’ que é
o mesmo que o ‘seguir sendo’, mencionado. Sobre isso, Dias (2003, p. 124) comenta o
pensamento winnicottiano:
pessoas que não encontraram, no início, uma base para ser, por não lhes
ter sido permitida a ilusão de onipotência; nelas o sentido de real é tão
debilitado que, não importa às vezes pelas quais passam por determinadas
situações, tudo sempre se desrealiza, e elas têm de voltar sempre a começar,
como se nada tivesse acontecido. Registram o fato numa memória de
arquivo, mas nada, nelas, foi afetado ou se modificou. Diz-se, em geral, que
- 53 -
essas pessoas não aprendem com a experiência, mas, talvez, seja ainda mais
exato dizer que elas não são capazes de viver experiências.
Em suma, nesse encontro de forças que se agenciam, “há um momento de ilusão, uma
experiência que o bebê pode tomar, ou como alucinação sua ou como algo que pertence à
realidade externa”. (WINNICOTT, 2000, p. 279). Esse encontro de vetores que se
sobrepõem em algum instante, repete-se inúmeras vezes, fazendo coincidir a experiência de
percepção com a de criação, que proporciona ao bebê a ilusão de que criou aquilo que estava
ali, aguardando para ser criado. Um encontro de caráter assimétrico, que permite criar
sentido próprio para o que se descobre. Isso significa a visão pessoal que cada um de nós
poderá ter do mundo com a possibilidade de se inventarem novos universos de referência,
sempre que for possível conjugar o desejado com o real. Para Winnicott é preciso que o
ambiente tolere a experiência ilusória que conjuga o que é desejado com o que é real,
aceitando-a como um paradoxo engendrado nas fronteiras existentes entre a percepção e a
criação. Paradoxo que não deve ser solucionado, porque estamos ‘pisando’ em território
existencial marcado pela impessoalidade que se configura como zona de fronteira, entre a
sanidade e a loucura, conforme diz o autor:
Entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido existe uma terra de
ninguém, que na infância é natural e que é por nós esperada e aceita. O bebê
não é desafiado no início, não é obrigado a decidir, tem o direito de
proclamar que algo que se encontra na fronteira é ao mesmo tempo criado
por ele e percebido ou aceito no mundo, o mundo que existia antes da
concepção do bebê. Alguém que exija tamanha tolerância numa idade
posterior é chamado de louco. (id, 1990, p.127).
Sendo inevitável que a criança passe por esse processo, uma opção é poder atribuir
sentidos para o universo que a cerca e aprender a mediar a sua busca de satisfação com as
condições derivadas da realidade. Outra, é quando o meio ambiente se impõe de uma forma
implacável e a criança acaba sendo submetida a uma realidade dada como pronta. Como se
os eventos a serem vividos estivessem lá, previamente estabelecidos, induzindo a um
modo de subjetivação, com padrão inibitório dos modos criativos de expressão e que levam
somente à cópia de modelos. Com Winnicott, repetimos, a ilusão é fundamental para o
processo criativo da qual a fantasia faz parte. O que é percebido como ‘fora’ entra na feitura
da própria fantasia, porque aquilo que é fora faz parte do dentro, não havendo dois planos
separados. O autor afirma que:
- 54 -
... na fantasia, as coisas acontecem por mágica: a fantasia não tem freios e
tanto o amor quanto o ódio podem ter efeitos alarmantes. A realidade
externa possui freios e pode ser estudada e conhecida e, de fato, se pode
tolerar a fantasia total quando a realidade objetiva é bem apreciada. O
subjetivo tem um valor enorme, mas é tão alarmante e mágico que pode
ser fruído paralelamente à realidade objetiva. A fantasia não é, portanto, algo
que o indivíduo cria para lidar com as frustrações da realidade externa. Isso
se aplica ao fantasiar. A fantasia é mais primária que a realidade e o
enriquecimento da fantasia com as riquezas do mundo, depende da
experiência da ilusão. (id. 2000, p.280).
Por essa ótica, a experimentação é fator preponderante na concepção da fantasia que
surge nos encontros entre forças expressivas e ambiente cuidador. Enquanto o devaneio está
submerso no mundo interno como projeção defensiva de angústias manifestas, permanecendo
isolado e em estagnação (id. 1975, p.45), a ilusão é um componente psíquico que se situa em
território nebuloso e indiscernível. Uma zona de transitoriedade e de composição de sentido
espaço-temporal, onde se situa a experiência do brincar. uma ênfase sobre esse aspecto
urdido pela ilusão, entre fantasia e realidade, sendo difícil estabelecer comparações e
diferenças marcantes como se fossem dois campos distintos, conforme assinalou o próprio
Winnicott. A fantasia pode ser concebida em meio à experimentação lúdica, ou seja, um
fenômeno transicional que sustenta, pela sua porção real, esse lugar do fora de onde devém a
produção psíquica.
Em outros termos, a fantasia não precede a experiência, porque é sempre possível
compartilhar a experiência na zona de ilusão, onde não se separam o dentro e o fora. Aqui,
surge a temática do espaço potencial, com que estamos trabalhando nesse capítulo. O que
existe é um tipo de experiência que pode ser nomeada como fantasia e isso fica bem claro ao
pensarmos, por exemplo, na produção onírica. Em Winnicott a fantasia não é uma
propriedade do bebê, mas a manifestação de uma potência em um meio onde é possível
fantasiar, entre tantas outras experimentações. É o fator de transicionalidade que vai dar
suporte à produção da fantasia como algo que se compõe numa posição limiar, uma posição
de passagem que pressupõe indefinição entre o que é real e imaginário, aspecto crucial do
qual depende a brincadeira criativa, o playing. O brincar, entendido como a ferramenta
criadora, é o instrumento que vincula a experiência de onipotência ao real, e ainda que o ato
de brincar contemple certa dose de excitação, é a possibilidade de entrega ao que é criado
ilusoriamente que garante à brincadeira o seu teor criativo. O que Winnicott nos ensina é que,
no plano da ilusão, é possível experimentar um pouco de cada coisa, sem que isso represente
uma ameaça de aniquilamento, seja fantasmaticamente ou pelo peso da concretude da
- 55 -
realidade, pois quando uma ameaça desse tipo surge e persiste, a brincadeira acaba e deixa de
ser jogo criativo.
Podemos pensar o objeto transicional como uma bricolagem, porque é composto como
um arranjo inteiramente singular feito de fragmentos de realidade e de fantasia que estão
longe de propiciar um encaixe perfeito de “peças”. Em vez disso, é a precariedade desse
arranjo que dá, ao mesmo, certo colorido e intensidade e que deixa aberta a possibilidade de
desvios para a feitura de novos arranjos. A imagem de um caleidoscópio nos serve,
parcialmente, como exemplo, mas, não totalmente, porque essas peças passíveis de
composições não podem estar aprisionadas num número determinado de composições. Se
assim fosse, não haveria a possibilidade de variação infinita da qual nos fala Winnicott,
quando define o fenômeno da transicionalidade, porque a variação está nas possibilidades de
composição. E o que vai definir a finitude, igualmente necessária, são os componentes reais
que dão sustentação à fantasia para que ela não seja apenas delírio. É o chamado holding
winnicottiano, porque infinitude, necessariamente, não liberta, mas pode ser aprisionante
como algo que se dispersa e não consiste, como por exemplo, a sensação de estar em um
labirinto sem saber como é que dele se sai. Para concluir esse segmento, entendemos que, no
objeto transicional, o mais importante não é nem um objeto imaginado, tampouco um objeto
concreto, mas a composição que surge entre os afetos provocados pelos encontros, sendo isso
que o autor nomeia como ‘uso do objeto’. O bebê pode eleger, por exemplo, objetos duros ou
macios e a relevância desse aspecto, está no fato de poder usar a maciez ou a dureza de
objetos, criando a partir de referenciais desse tipo, além de outros como ritmo, sonoridade,
etc. Vejamos agora o que nesse encontro surge como sustentação, vista como cuidado
ambiental.
3 - O gesto que acolhe o brincar.
Na abordagem winnicottiana, o ato de brincar, entendido como capacidade a ser
adquirida a partir de experiências empreendidas, é algo vinculado ao cuidado ambiental. Em
seus escritos, esse cuidado recebe o nome de maternagem, o que pode levar a uma
compreensão da sua teoria como algo datado, pelo realce que o autor deu a um modelo
materno que não condiz com a figura da mãe contemporânea e é disso que falaremos
inicialmente, procurando defender a atualidade de suas idéias.
- 56 -
Mesmo após tornar-se psicanalista, Winnicott nunca deixou de exercer as suas atividades
como pediatra e psiquiatra infantil e isso numa época
19
em que a concepção de família era
muito diferente da que conhecemos hoje, um modelo familiar com papéis bem definidos, em
que as tarefas de acolher e educar eram atribuídas, essencialmente, à mãe. Esse aspecto nos
parece importante para a introdução do que estamos tratando como função cuidadora do
ambiente, porque nos deparamos com uma questão que tem sido motivo de críticas à teoria
winnicottiana: a ênfase dada à figura materna por ser, usualmente, o primeiro elo do mundo
com o bebê. Ao ser lido por uma ótica simplista, o autor costuma ser acusado de fazer uma
proposta clínica em que o acolhimento seria algo como se o analista adotasse uma posição
complacente, tomando como modelo a figura da mãe boazinha que não frustra e acolhe
incondicionalmente com uma atitude ‘materna’. Mas aquele que se dispõe a conhecer,
efetivamente, a proposta winnicottiana vai perceber que não é disso que se trata. Mesmo
porque, o autor era avesso a sentimentalismos que, em seus próprios termos, é algo
“clinicamente inútil” (WINNICOTT, 1990, p.19), porque é o tipo de afeto que não deixa
espaço para manifestações de ódio ou de agressividade e o uso que pode ser feito dele na
clínica
20
, conforme abordaremos mais adiante. Assim, o que ele chama de mãe devotada não
é uma manifestação sentimental, mas algo que inclui amor e ódio, afetos que podem estar
presentes em qualquer relação estabelecida. A esse respeito, Winnicott diz ainda:
... As pessoas muitas vezes pensam que estou falando de mães pessoas
reais que têm bebês -, como se elas fossem perfeitas ou como se
correspondessem à “mãe boa” que é parte do jargão kleiniano. Na verdade
sempre falo sobre a “mãe suficientemente boa ou a “mãe que não é
suficientemente boa”, pois no que diz respeito ao que estamos discutindo, ou
seja, a mulher real temos consciência que o melhor que ela tem a fazer é ser
boa o suficiente. (ibid, p.26)
É importante esclarecer que, quando o autor usa a expressão “mãe suficientemente
boa” para explicar o que entende como os primeiros cuidados ambientais, não está elevando a
figura materna a uma condição idealizada. Nesse contexto, a expressão ‘suficiente’ refere-se
ao gesto que, ainda que esteja lá para cuidar, permite que as falhas ocorram num nível
suportável para o bebê, de modo que a ambiência não seja demasiadamente persecutória
(MACEDO, 1999, p.11), pois, de alguma maneira e em algum momento, o ambiente o será.
19
Seus escritos teóricos oscilam entre os anos de 1931 até 1971, ano de sua morte.
20
Sobre isso, ver o seu artigo “O Ódio na Contratransferência” ([1947] 1995)
- 57 -
Essa dimensão do cuidado com o outro, que, em Winnicott, recebe também o nome de
holding ou sustentação tem uma função de acolhimento em uma condição ‘trans-subjetiva’.
Se não se trata de um cuidado intersubjetivo, mas trans-subjetivo “é porque esse outro que
cuida não é um indivíduo, mas um ambiente que exerce essa função na condição de
acolhimento, hospitalidade e nutrição." (FIGUEIREDO, informação verbal)
21
. Esse outro, o
ambiente que é aquele que cuida e sustentação, é o que garante a experiência de
continuidade da vida da qual Winnicott nos fala.
Quando Winnicott (2000, p. 492) diz que existem dois modos básicos pelo qual o
ambiente se manifesta, nomeados como ambiente não suficientemente bom “que distorce o
desenvolvimento do bebê – e como o ambiente suficientemente bom - que possibilita ao bebê
alcançar, a cada etapa, as satisfações, ansiedades e conflitos inatos e pertinentes”, podemos
deduzir que, na realidade, o autor se refere a modos de expressão da ambiência. Winnicott não
está tratando aqui de atribuir valores universais ao ambiente, o que incorreria em situar aquilo
que ele pensa a respeito desse cuidado ambiental, na categoria de bem e mal como se
houvesse verdades pré-estabelecidas a esse respeito. No nosso entendimento, Winnicott está
sendo espinosano, porque o que ele está dizendo é que existem bons e maus encontros na
relação bebê-mãe ou bebê-ambiência. Se a parcela que é inevitavelmente vivida como
persecutória não for força dominante na relação, temos um bom encontro, uma composição de
forças, uma potência que se expressa pelos afetos engendrados por aquilo que se experiencia.
Enquanto comentador das teses espinosanas, Deleuze menciona que é preciso fazer
uma diferenciação entre os conceitos de ‘bem e mal’ e os de ‘bom e mau’ para que se possa
distinguir o que se refere a uma moralidade do pensamento daquilo que diz respeito a uma
atitude ética. Bem e mal são valores pré-estabelecidos de forma generalizada, modalidades
absolutas sobre o que seria certo e errado. Deleuze (2002, p. 28-29) demonstra que Espinosa
faz essa distinção ao considerar que bem e mal são formas de julgamento de valor
provenientes do socius que avalia, moralmente, atitudes de obediência ou desobediência. Em
contrapartida, vai dizer que o bom e mau são conceitos que estão vinculados a uma diferença
qualitativa de modos de existência. Ainda que não seja o caso aqui de nos estendermos nas
teorias de Espinosa, é preciso dizer que, para esse filósofo, a essência do ser está nas relações,
nos encontros entre os corpos, formados por partículas infinitas que se compõem, ou não, com
outros corpos, relações de forças, entendidas como potência de agir e de pensar.
21
Comunicação feita por Luiz Claúdio Figueiredo em 05-12-2006 no evento “Ética e Cuidado no
Contemporâneo”, realizado pela Universidade Federal Fluminense, Niterói, em dezembro de 2006.
- 58 -
Quando um corpo “encontra” outro corpo, uma idéia, outra idéia, tanto
acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais
potente, quanto que um decompõe o outro e destrói a coesão das suas partes.
Eis o que é prodigioso tanto no corpo quanto no espírito: esses conjuntos de
partes vivas que compõem e decompõem segundo leis complexas. A ordem
das causas é então uma ordem de composição e de decomposição de relações
que afeta infinitamente toda a natureza. (ibid, p.25)
Para o que nos interessa aqui ressaltar, bom e mau são dois sentidos atribuídos aos
modos de ser do homem. O bom refere-se à possibilidade dessa força ganhar consistência pelo
aumento da potência produzida no encontro entre corpos, uma relação que produz alegria.
Conforme Deleuze, “o bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o
nosso, e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa” (ibid).
Correlacionamos essa visão com aquilo que Winnicott designou como a possibilidade
de ver o mundo com os olhos do encantamento e poder agir criativamente, pela expressão de
um self autêntico ou espontâneo. O self entendido não como uma substância oculta encoberta
por uma camada defensiva que seria o falso-self.(WINNICOTT, 1982, p.128) Na concepção
que estamos lhe dando, o verdadeiro-self (ibid) ganha a versão de ser força que se expressa
pela experimentação, fluxos a serem trilhados e percorridos. Já o falso-self, visto como força
reativa aos fracassos ambientais advindos de experiências intrusivas ou evasivas.
Quando o encontro entre corpos não se compõe como relação de potência, uma
inibição de forças que acaba manifestando-se como sentimento de tristeza. Nesse caso, aquilo
que nos afeta é o que Espinosa chamou de paixão triste, algo que nos mantém dissociados da
nossa potência para agir. Deleuze vai dizer que as paixões tristes serão sempre impotência e,
ao nos referirmos a uma ética, temos que pensar necessariamente em uma ética da alegria, se
desejamos que a mesma seja transposta em ação. Assim, se quisermos pensar em uma ética do
cuidado, ela traz em si a idéia de força que se expande em alegria e se transmuta em ação e,
no espaço clínico, isso se pela via da experimentação compartilhada. Quando padecemos
de paixões tristes, ficamos impedidos de agir e quando padecemos de paixões alegres, pelo
aumento de nossa potência, somos suscetíveis de agir e descobrir o mundo.
Retomando a terminologia winnicottiana, é o próprio autor que faz a aproximação do
termo ‘mãe suficientemente boa’ com a noção de ‘ambiente provedor’ o que parece relativizar
essa nomenclatura materna, permitindo a concepção de uma ‘mãe suficientemente boa’,
menos como uma entidade substancializada ou como função interiorizada e mais como a
expressão de forças que operacionalizam encontros capazes de engendrar experiências
- 59 -
subjetivantes. O que queremos enfatizar é que Winnicott, por ser um clínico que prioriza a
experimentação, acaba, por vias indiretas, atribuindo essa expressão ‘suficientemente bom’ ao
gesto cuidador, quando diz que:
... a mãe suficientemente boa depara-se com a onipotência do bebê e, de
algum modo, a aceita. (...) a mãe que não é suficientemente boa não é capaz
de instrumentalizar a onipotência do bebê e, por isso, sempre fracassa em
reconhecer os gestos do bebê; em vez disso, ela modifica os seus próprios
gestos a fim de dar sentido à submissão do bebê. (WINNICOTT , 1982, p.
133)
uma diferença qualitativa nos modos de subjetivação, quando esse encontro é
engendrado por relações estabelecidas em ambiente cuidador. Uma provisão ambiental desse
tipo significa experimentar a onipotência inerente aos processos de criação, mas também as
limitações impostas pela realidade sem que essas limitações sejam vivenciadas como
imposições que submetem e impedem a expressão criadora. Winnicott não vai falar de
sentimento, mas de experiência de onipotência e o sentido do termo, nesse contexto, não é de
pensar nem de imaginar, pois aqui ela é indissociável da experimentação, é potência de agir,
para cartografar e explorar o espaço:
... a experiência de onipotência é mais do que o controle mágico, e quero
incluir no termo o aspecto criativo da experiência. (...) O latente
experimentando onipotência sob a tutela do ambiente facilitador cria e recria
o objeto e o processo gradativamente se forma dentro dele e adquire um
apoio na memória. (id. p. 164)
Mesmo considerando que experimentar a onipotência é fundamental, para que o bebê
crie o mundo, a sua manutenção permanente não é impossível como seria desastrosa e
aprisionadora para o ser em formação, acarretando um fechamento sobre si próprio,
impedindo a criação. Nesse caso, é a própria criança, que, em seu processo de criação,
promoverá, com auxílio do ambiente facilitador, o abandono desse estado de onipotência
incondicional, ao considerar as limitações impostas pelo mundo real.
Para uma criança seria muito aborrecido continuar vivenciando uma situação
de onipotência quando ela já dispõe de mecanismos que lhe permitem
conviver com as frustrações e dificuldades de seu meio ambiente. Viver um
sentimento de raiva que não se transforma em desespero, pode trazer muita
satisfação. (id. 1994, p 5/6)
- 60 -
Como o bebê aprende a lidar com as limitações da realidade, o estado de onipotência
em vez de estar restrito a um plano fantasmático – onde a onipotência é vivida como ilimitada
e, por isso mesmo, como ameaçadora e paralisante pode ser experimentado como parte
integrante do mundo. É na experimentação provocada pela onipotência que os limites se
processam, não necessariamente, como impedimentos previamente estabelecidos, mas como
constatações a partir da própria experimentação. Um fazer que vai “se fazendo” e que permite
que o próprio fazedor” possa estabelecer medidas de alcance para aquilo que experimenta
sem se posicionar como se estivesse numa gangorra entre a onipotência e a impotência. É
somente pela experimentação que se podem compreender as medidas, os graus de alcance das
forças que compõem determinado agenciamento. Experimentar limites, repetimos, é diferente
de ser subjugado por limitações impostas. Um exemplo disso é a realização do desmame, que
quando bem sucedido, parte de uma conjugação de interesses com necessidades que partem
tanto da mãe quanto do bebê. Quando é a própria criança que promove o desmame ou se esse
é feito gradativamente pela mãe, a criança vivencia isso como algo produzido por ela própria,
mas se essa interrupção é feita de forma abrupta, vivencia como imposição.
O que podemos perceber é que a experiência de onipotência é ilusória. Sendo a ilusão
vivida em compartilhamento, podemos depreender que: ‘no encontro de linhas superpostas’
conforme diz Winnicott, é preciso que a ilusão seja sustentada pelo cuidado ambiental,
embora apareça como se fosse somente estado de onipotência do bebê. Os fenômenos
transicionais surgem dessa zona de ilusão de onipotência. Conforme o bebê amplia o seu
espaço vivencial, vai experimentando processos de desilusionamento que é algo diferente do
que uma decepção. Na desilusão há, igualmente, um processo compartilhado, pois é algo que
se produz na relação entre bebê e ambiência. É o desilusionamento que promove
modificações graduais na onipotência, mas, é importante frisar que aquilo que fica para trás,
“não é a ilusão básica, que permanecerá se houver saúde, mas a ilusão de onipotência”.
(DIAS, 2003, p. 28).
Sobre o agir clínico ao qual estamos nos referindo nesse trabalho, pensamos esse
plano, o da clínica, definindo-o nas suas duas dimensões distintas e, ao mesmo tempo,
inseparáveis; uma, designada como a dimensão do cuidado e outra como a do desvio. Ao
pensarmos em desvio e cuidado a imagem que nos ocorre é a da Banda de Moebius
22
que
22
Uma banda ou fita de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita,
após efectuar meia volta numa delas. Deve o seu nome a August Ferdinand Möbius, que a estudou em 1858.
(disponível em http://pt.wikipedia.org ; acessado em 25 de junho de 2007)
- 61 -
ilustra com precisão a idéia paradoxal de distinção do que é inseparável. Nessa distinção, a
face do cuidado refere-se ao gesto que se impõe na prática terapêutica, a partir da etimologia
da palavras terapia e clínica, tal como apresenta Ceccim (2004, p. 262), quando enfatiza a
função de cuidar como uma das funções do exercício clínico, tomando como referência o
gesto de acolhimento que surge no ato de escutar a queixa daquele que procura ajuda em
busca de alívio e resolução para os problemas que lhe fazem sofrer.
Terapia (therapéia) significa trato cuidadoso, auxílio que habilite para a
cura, guia para a autonomia e qualidade de vida, tratamento. (...) A clínica
como conhecimento sistematizado de sinais e sintomas e como experiência
de atendimento em situações de adoecimento, nasce, justamente, à beira do
leito (klinê) isto é, indica a prática do ato de assistir à beira do leito, por
isso ato dedicado de tratar/cuidar/escutar).
A outra face, a do desvio, tomada a partir do conceito epicurista de clinamen
23
, tal
como o utilizam Passos e Benevides, quando afirmam o ato psicoterapêutico como “produção
de desvio”, que surge no encontro de forças afetivas a partir da relação engendrada entre
terapeuta e paciente – passível de produzir a desestabilização necessária que rompe as cadeias
do hábito [entendido aqui como formação sintomática] para a constituição de novos modos de
existência.”
24
Nesse contexto em que fazemos uso dos termos cuidado e desvio, importa entender de
que forma essa atitude de acolhimento, o cuidado - que em Winnicott é chamado de
maternagem, mas que não é o mesmo que agir tal como uma mãe boazinha - contribui para a
possibilidade de criação de desvios (clinamen). Mas, talvez seja preciso retirar a ênfase na
intersubjetividade que caracteriza, habitualmente, o ato de cuidar como relação estabelecida
entre dois sujeitos, um que cuida e outro que é cuidado, situação aonde a atitude de cuidar fica
marcada, apenas, por uma intenção egóica. Entendemos que a intenção de cuidar até pode
existir previamente, mas não se sustenta sozinha a partir de uma disponibilidade que parte de
um sujeito. Ainda que o terapeuta tenha a consciência de que o cuidado é necessário, não se
trata de estabelecer um código de conduta que preceitua recomendações a respeito do assunto
23
Conceito da filosofia grega que designa o desvio que permite aos átomos, ao caírem no vazio em virtude do
seu peso e da sua velocidade, se chocarem, articulando-se na composição das coisas. Essa cosmogonia
epicurista atribui a esses pequenos movimentos de desvio a potência de geração do mundo. É na afirmação
desse desvio, do clinamen, portanto, que a clínica se faz. (Passos e Benevides, 2001).
24
ibid.
- 62 -
para que sejam postas em prática. O que está em jogo é o encontro entre forças afetivas
manifestas na situação de cuidar e ser cuidado. Assim sendo, podemos considerar o cuidado
como algo impessoal que emerge do acontecimento clínico. O que queremos dizer é que
mesmo sabendo que é preciso haver disponibilidade para cuidar, esse ‘estar disponível para’,
por si só não basta. Trata-se entender o que se passa entre essas duas dimensões de um mesmo
plano, ou seja, o que acontece nessa experiência em que o cuidar comparece,
simultaneamente, como acolhimento e desvio.
Sobre essa questão da impessoalidade, Deleuze (1997, p.75) defende a idéia de que
“...o inconsciente não lida com pessoas e objetos, mas com trajetos e devires...” e, por isso
mesmo, não se trata de interpretar lapsos e atos falhos, mas de detectar trajetórias que podem
servir como indicadores de novos universos de referência. E prossegue, em um outro ensaio
(2006, p. 322), na crítica aos métodos clínicos que traduzem em fantasmas a produção
subjetiva que ele como “objetos parciais com suas explosões e seus fluxos” e que
denomina como “estados vividos, intensamente vividos”. Ao mencionar Winnicott como
alguém que se manteve à margem desse tipo de abordagem e empreendendo uma prática
clínica que escapa da função codificante, Deleuze afirma que é preciso acolher e compartilhar
o sofrimento (cuidar) e experimentar derivações existenciais (desvio). Deleuze diz:
A esse respeito, um psicanalista como Winnicott mantém-se
verdadeiramente no limite da psicanálise, porque tem o sentimento de que
esse procedimento não convém mais num certo momento. um momento
em que não se trata mais de traduzir, de interpretar, traduzir em fantasmas,
interpretar em significados ou em significantes, não, não é isso. Há um
momento em que será necessário compartilhar, é preciso colocar-se em
sintonia com o doente, é preciso ir até ele, partilhar seu estado. Trata-se de
uma espécie de simpatia, empatia ou de identificação? (ibid).
Para essa idéia de compartilhamento em que se experimentam derivações, o único
equivalente que ele considera concebível, “seria, talvez, ‘estar no mesmo barco’” (ibid).
Pensar na relação terapêutica como “duas pessoas que remam juntas” (ibid), para se chegar a
um destino que ainda precisará ser traçado à medida que se experimenta ou navega, em
movimento de deriva, sendo preciso fazer fluir as intensidades, vibrar os estados vividos que
nos levam a experimentações nômades. Mas também é Deleuze que menciona que os fluxos,
que necessitam ser liberados em seus deslocamentos, encontram uma espécie de ancoragem
momentânea sobre um corpo pleno e em nomes próprios (ibid, p. 325). Movimentos de
- 63 -
desterritorialização e territorialização que consistem no atravessamento de forças “sempre
exteriores umas as outras” (ibid), encontros produtores de novos sentidos.
Dando continuidade a essa discussão, vejamos como Ferenczi
25
trabalhou, ao seu
modo, questões que dizem respeito a essa ética do cuidado pela via da empatia. Ferenczi foi
um psicanalista precursor desse tipo leitura em seu campo de atuação, antecedendo a
Winnicott e sendo ambos, vistos como empreendedores de uma prática clínica pautada pelo
acolhimento sensível. Psicanalistas que, ao enfatizarem a necessidade de cuidado
promoviam, com isso, uma atitude desviante no próprio agir clínico vigente. A partir das
observações feitas de casos em atendimento e também pelo estudo sobre a importância do
cuidado acolhedor no plano da vida, alguns escritos desses dois autores focalizam os cuidados
ambientais dispensados aos seus pacientes. Para eles, a falta da provisão ambiental,
especialmente no que diz respeito aos afetos, inviabiliza a aquisição da confiança necessária
para a exploração do mundo. Confiança capaz de sustentar as forças que fazem com que se
tenha vontade de viver e perceber o mundo com os olhos da descoberta e da criação. Essa
falha acarreta perda da condição de saúde, produzindo sintomas vistos como interceptadores
desses fluxos.
Temos, então, em Ferenczi, alguns indicativos da importância do tema do cuidado que
aparece, implicitamente, em seus escritos através de expressões como, por exemplo, “crianças
acolhidas com rudeza e sem carinho”, atitude vista como o “mau acolhimento da criança”
(FERENCZI, 1992, p. 47-51), com as conseqüências que isso pode acarretar ao longo da vida
retirando daquele, para o qual falhou a recepção hospitaleira, o brilho da vida. O antídoto
estaria expresso pela ação adaptativa da família às primeiras necessidades da criança e não o
inverso (id.p. 1-13). É interessante ressaltar, mais uma vez, que essas conclusões a que ele
chega surgiram das observações clínicas com os chamados pacientes difíceis ou inanalisáveis
que, para ele, acima de tudo e antes de qualquer tipo de interpretação para os seus sintomas,
precisavam receber um tipo especial de atenção. Em um artigo recente a respeito desse
posicionamento, Kupermann (2006) faz a seguinte referência:
25
Sandor Ferenczi, psiquiatra e psicanalista húngaro (1873-1933), clínico talentoso, discípulo preferido de Freud
e que teve importante participação na história do movimento psicanalítico, deixando um legado teórico e
propondo idéias inovadoras assim como críticas dirigidas ao dogmatismo psicanalítico. (cf. Roudinesco,
1998, p. 233-235).
- 64 -
Mas, justamente a partir de “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte”,
Ferenczi inaugura um estilo clínico apoiado menos na ética da
responsabilização do que no podemos chamar de ética do cuidado.
Seguindo essa inspiração, concebe-se que não é possível a emergência de
processos criativos sem a aposta no encontro afetivo, sendo que a promoção
de um espaço propício para a experiência compartilhada talvez seja o
principal desafio do psicanalista.
Vemos, então, que, na clínica ferencziana, o cuidado aparece como ‘tato clínico’
(FERENCZI, 1992, p. 25-36), necessário ao acolhimento desse tipo peculiar de clientela. O
tato, tal como Ferenczi o apresenta seria a faculdade de ‘sentir com’ o paciente os afetos
vividos durante o processo terapêutico, capazes de mobilizar as forças indicativas do
momento certo da intervenção clínica a fim de que esta se efetue de modo sensível e eficaz.
Aspecto que insere no setting clínico a dimensão de mutualidade permitindo uma
maleabilidade nos procedimentos clínicos ao deixar, quando preciso,..."o paciente agir como
uma criança ... e desfrutar ... pela primeira vez a irresponsabilidade da infância, o que
equivale a introduzir impulsos positivos de vida e razões para se continuar existindo" (ibid).
Trata-se de analisar o adulto com a sensibilidade clínica que costuma ser destinada às
crianças, colocando em análise a face infantil expressa pelo adulto (id. p. 69-83) o que
significa considerar a afetividade engendrada pela experiência de compartilhamento.
Para Winnicott, tanto nas suas concepções sobre a produção de subjetividade, quanto
nas descrições que fez sobre o seu proceder clínico, ele afirma o ato de cuidar como algo que
faz parte da vida, e por isso mesmo, como um gesto fundamental para a concepção de modos
de existência. Ao se reportar à visão que tem do recém-chegado ao mundo, Winnicott (1994,
p.59) insiste na afirmação da impossibilidade de se olhar para um bebê isoladamente pois
“esse olhar sempre um bebê que está sendo cuidado”. O que ele enfatiza é exatamente a
função cuidadora atribuída ao ambiente que cerca o infante e assim, a vida para ir adiante,
vista como potência de criação, não pode prescindir dessa provisão cuidadosa. O que
queremos dizer é que Winnicott traduziu esse viver e fazer criativo em termos de
acontecimento primordial que se dá desde o primeiro encontro do recém-nascido com alguém.
Esse alguém que, na maioria das vezes é personificado pela própria mãe, pode ser qualquer
um, ao mesmo tempo em que não se trata de qualquer um. Ou seja, pode ser qualquer um,
desde que seja alguém que cuide. É a provisão ambiental que vai fornecer a confiança
necessária a fim de empreender a sua jornada que, mais tarde, irá desdobrar-se na atitude de
relativa autonomia e que o fará capaz de cuidar de si e compartilhar essa vivência com o
mundo que o cerca.
- 65 -
Na concepção winnicottiana, portanto, a experiência de subjetivação que contempla o
gesto espontâneo é possível, nesse momento da vida, nas condições descritas, pois o ser
humano é, desde sempre, capaz de experimentar. Mas para que essa capacidade possa ser
posta em prática, como gesto exploratório e criador, é preciso que a provisão esteja como
facilitadora desse processo. Em Winnicott, a atitude de cuidar corresponde ao acolhimento
que permite a provisão ambiental não intrusiva (em demasia, porque, conforme já dissemos,
alguma intrusão sempre ocorrerá, inevitavelmente) e necessária à produção de sentido. Toda
essa concepção refere-se a uma ética do cuidado voltada para a vida e que pauta, igualmente,
o proceder clínico, sendo a função holding o principal atributo do setting clínico que também
aqui, tal como em Ferenczi, se institui plasticamente como um campo de experimentação que
inclui afetos, gestos, ritmos, tom de voz, palavras... . Assim, cada intervenção não é
prerrogativa de um, nem de outro, mas devém como criação compartilhada que surge no fazer
clínico. O ‘recurso’ explorado por Winnicott para que o acontecimento clínico se pela via
do sensível, reside no aspecto lúdico que envolve o proceder terapêutico e, aqui, retomamos o
nosso tema do brincar. O jogo lúdico estando presente nessa abordagem que favorece a
diluição de fronteiras e a instituição de um espaço potencial, de modo que o non sense e o
absurdo (1975, p. 82), possam ser acolhidos nessa dimensão cuidadosa e possam funcionar
como operadores de processos de subjetivação.
Para concluir essa temática, vimos que tanto o cuidado como o desvio são expressões
de potência, manifestas como forças em ação na clínica, parte do plano da vida. Vimos,
também, que não se trata de cuidado de um sujeito para que outro possa desviar. E ainda, que
cuidado e desvio fazem parte de um mesmo plano de forças que pode ser manifesto, por
exemplo, no espaço da clínica. Também mencionamos que, se a atitude é cuidadosa, há, nessa
mesma atitude, a possibilidade de que forças desviantes possam se manifestar, quando não
imposições. Em outros termos, não é um cuidado manifesto por alguém que deseja ser
bonzinho e nem por alguém que deseja impor um padrão de comportamento tido como
correto. Se estamos pensando em um plano de composição, são forças afetivas que estão em
jogo, em determinado encontro, que promovem cuidado e desvio simultaneamente. A atitude
cuidadosa é por si mesma produtora de desvios de um tipo de conduta clínica. Autores
como Ferenczi e Winnicott ultrapassaram as fronteiras do que se conhece como o enquadre
psicanalítico convencional porque acreditaram que o que pode ser chamado de enquadre ou de
setting é um acontecimento clínico, uma espécie de moldura elástica, modulada pelos
encontros que naquele espaço são engendrados. Só por isso já se posicionaram como analistas
- 66 -
desviantes, transgressores de qualquer procedimento que pudesse ser estabelecido com base
em regras rígidas, aprisionadas em modelos pré-estabelecidos. Entendemos que aquilo que
estamos denominando de plano do cuidado com o sentido de ‘inclinar-se sobre’ (klinikós) -
é indissociável daquilo que é capaz de produzir os ‘desvios’ (clinamen) necessários à criação
de novos modos de existência em meio às experiências engendradas como ‘arranjo’ de forças
e o que se produz não são apenas encontros entre duas pessoas, mas especialmente encontros
com o mundo, que privilegiam o plano da vida.
4 - O espaço para brincar de viver
Uma dificuldade encontrada para conceituar sistematicamente o espaço potencial é
estabelecer definições bem separadas e estanques para algumas formulações winnicottianas.
Isso porque são postulados imbuídos de tamanha mobilidade que, quando falamos de um,
estamos falando de muitos. Assim, para falar de espaço potencial será inevitável fazer
referência a elementos conceituais que já abordamos ou ainda iremos abordar e a imagem que
nos serve nesse momento é a de uma flor. Se fosse preciso descrever uma flor para alguém,
que nunca viu uma, ficaríamos muito distantes do que ela traduz, ao descrevê-la pétala por
pétala. Embora pareçam iguais, cada uma delas não poderia fornecer a dimensão do arranjo
existente entre as pétalas e sendo assim, a referência a cada uma, se remeteria às outras para a
captação do sentido daquela composição, que não é feita de um somatório de pétalas mas
do que percorre esse entre. O que queremos destacar nessa noção de espaço que existe entre
elas, é essa idéia de vazio que preenche e separa, onde a continuidade convive com a
descontinuidade, um outro ponto importante na concepção winnicottiana de subjetividade.
Para Winnicott é preciso manter a linha de continuidade da existência e, ao invés de
lhe atribuir uma característica evolutiva, o que implicaria um início precário até o atingimento
de uma maturidade finalizada, preferimos referir essa linha de continuidade a uma força
mobilizadora, ativa, que difere de um modelo existencial definido por uma predominância
reativa. Winnicott (1975, p.140) vai dizer - e isso é significativo, quando se fala em produção
de subjetividade - que “a linha de continuidade de ser” é mantida ao mesmo tempo em que
dela derivam espaços contíguos, onde a continuidade cede lugar à contigüidade. Essa
assertiva é importante, porque a linha de continuidade a ser mantida, admite intervalos. São os
momentos em que acontecem experiências não-integradas. A continuidade diz respeito aos
- 67 -
estados de integração que sustentam a experiência egóica e os intervalos dizem respeito às
vivências não-integradas, referidas aos desvios e favoráveis aos processos intuitivos e à
criação. Podemos pensar, então, em experiências postas lado a lado, de modo a dar uma
continuidade, mas que não é o mesmo que uma totalidade acabada. Há uma totalidade
fragmentária, havendo um ‘e’ entre essas experimentações, um espaço para o devir, para a
brincadeira, para o objeto transicional, para a experiência cultural. Quando falamos de objetos
transicionais, criatividade, ilusão, etc., em todos esses postulados, podemos vislumbrar
aquilo que é nomeado como espaço potencial. Esse nos parece ser um conceito fluido que
percorre os demais, ou seja, que preenche e cria brechas de onde surgem as linhas de fuga de
onde surgem devires. Vejamos como Winnicott (1994, p. 161) define o espaço potencial.
Postulei a existência de um espaço potencial entre o bebê e a figura materna
que é a localização do brinquedo. Este espaço potencial vem a ter
importância em resultado da experiência viva do bebê. Ele não é herdado; o
que é herdado pode ou não resultar na conquista de um lugar para a
experiência do brinquedo no caso de qualquer bebê vivo.
Esse enunciado demonstra o valor da experimentação para a concepção winnicottiana
da subjetividade, pois o que é herdado, embora seja importante, por si não basta, ficando
evidente que o espaço potencial é constituído pela experiência viva do bebê. Para Winnicott
(1997, p. 47), o bebê surge na cena ambiental em um estado de indiferenciação e o momento
em que a criança pode fazer essa distinção entre dentro-fora é aquele em que percebe “...
que existe algo na margem e que este algo é ela própria”. Eis a lógica de um espaço que
traz em si o paradoxo de surgir como algo que distingue duas zonas do psiquismo, ao mesmo
tempo em que são constituídas. Essa idéia de ser um processo que se situa na margem nos
interessa para pensar o espaço potencial, não como uma instância e sim como um
movimento de travessia, processo incessante que pode ter a sua ação intensificada ou
enfraquecida, conforme as contingências dos encontros. Nessa aproximação que estamos
promovendo, o espaço potencial seria uma espécie de “terceira margem”, termo que
tomamos de empréstimo de Ceccim (2004, p.264), para descrevê-lo como lugar de
travessias, de passagens, um espaço híbrido para produção de subjetividade onde sujeitos
não são pontos centrais, mas, sendo aquilo que pode derivar da travessia.
Essa experimentação que gera acontecimento é o que desejamos aproximar da noção
winnicottiana de fantasia porque, o conceito de fantasia, nesse autor, está vinculado à idéia
- 68 -
de “experiência viva”, em contraposição ao devaneio que é vivido na mente, havendo,
nesse caso, uma dissociação entre psique e soma. Para Winnicott, viver é experimentar.
Experiência viva é ter a sensação que existimos, agimos, sofremos, rimos, choramos,
sonhamos, fantasiamos e deliramos, de modos diversos. E isso pode ser vivido como
experiências integradas, não-integradas e desintegradas. A doença está em não existir, na
sensação de não-existência. No documentário Estamira
26
, temos um belo exemplo dessa
concepção. Estamira, é alguém que escapa a uma normatização, a um padrão estabelecido do
que se entende como bem viver. Estamira é alguém especial porque, em meio a sua
“loucura” mantém a sua autonomia, resistindo à submissão imposta por determinados
padrões estabelecidos. Winnicott diz que o saudável é viver criativamente e que a submissão
é aquilo que constitui uma base doentia para a vida. Sob esse ponto de vista Estamira é
muito mais saudável porque consegue extrair de uma situação de miséria material, do lixo do
mundo, a resistência que sustenta a complexidade de sua existência. Conforme as suas
palavras, ela própria fabrica a sua existência.
Para o que nos interessa ressaltar, a respeito da construção da fantasia como
experimentação, descrevemos, a seguir, um episódio que, também, exemplifica o que
entendemos como ‘experiência viva da criança’, fato que testemunhamos no cotidiano de
uma breve “viagem” em um elevador.
Um episódio no elevador
Uma criança entra no elevador, acompanhada de sua avó e o que logo atrai a atenção é
que a menina, de mais ou menos, dois anos de idade e com uma chupeta na boca, traz uma
fralda dobrada sobre o seu pequenino ombro esquerdo, a qual parece segurar de modo
cuidadoso. Ao perceber o discreto interesse despertado, sua avó diz que é uma boneca que a
neta está carregando, embora ali tenha pano. Se olhamos para aquele objeto apenas com o
olhar da objetividade, isso torna limitado o alcance de qualquer experimentação. Todavia,
26
Filme brasileiro, gênero documentário, dirigido por Marcos Prado no ano de 2004. Sinopse: A Estamira que dá
nome ao documentário tem 63 anos. Com problemas mentais, ela trabalha no Aterro Sanitário de Jardim
Gramacho, no Rio de Janeiro. O filme traça um perfil dessa interessante mulher, colocando em pauta assuntos
como a saúde pública, a vida nos aterros cariocas e a miséria brasileira. (disponível em:
http://br.cinema.yahoo.com/filme/13933, acessado em 3 de julho de 2007).
- 69 -
quando conseguimos ver “por detrás das órbitas”
27
enxergamos o mundo pelo olhar do
encantamento e da descoberta e podemos habitar, ainda que por instantes, territórios
inexplorados onde a lógica da explicação e do bom senso certamente não têm boa acolhida.
Voltando ao episódio do elevador, podemos concordar com ambas que sustentam,
na sua cumplicidade de neta e avó, que o que ali estava era uma boneca. O brincar
compartilhado encontra-se, portanto, presente no uso que a menina faz de seu objeto
transicional. Observando a menina, é fácil deduzir que provém de uma família que pode
supri-la com muitas bonecas, mas acontece que aquela ali, concebida da maciez de uma fralda
dobrada, é absolutamente singular, porque foi a criança que a criou a partir de prováveis
experimentações empreendidas em sua jovem existência. Temos que reconhecer como
fundamental o gesto de aceitação plena de sua avó, que poderia ser de qualquer outro, para
que a experiência de criação seja bem sucedida. Isso quer dizer que houve a produção de um
grau de confiança na criança em relação ao ambiente, ou seja, que este não lhe faltou quando
ela precisou dele. Nesse reconhecimento, desejamos ressaltar que é preciso, especialmente
para a criança pequena, que alguém não somente a ame e cuide dela, mas que acolha o seu
gesto como potência e dádiva, gesto que a criança expressa pelo brincar, sendo relevante que
o adulto esteja lá para receber aquilo que a criança oferece. Em outras palavras, não basta que
o adulto esteja lá pronto a dar, através do fornecimento da provisão ambiental, mas que esteja
igualmente disponível para receber a produção da criança em termos de dádiva. Essa
receptividade se configura como o acolhimento que não se faz de modo intrusivo e que
permite que a criança se expresse nos seus próprios termos. Essa breve ilustração da criança
no elevador nos inspirou para introduzir a afirmação winnicottiana de que o brincar está na
base das experiências de criação do mundo, que se encontram logo ali, nas vivências do
cotidiano e por extensão e em contigüidade com as experiências culturais e sticas, sendo
preciso enxergar e valorizar esse feito.
O ato de brincar é importante para a vida porque permite que qualquer um possa
enlouquecer ao mesmo tempo em que permanece ancorado à razão. O brincar situa-se nessa
zona em que acontece a experimentação ilusória e que ganha consistência no instante em que
fralda e boneca não se distinguem mais. Um gesto de fusão-separação contido, em um breve
momento, naquele brincar proposto pela criança e de tal modo que o ambiente que compõe
27
Em “Diálogos” , Deleuze (id,1998, p. 59) cita o escritor Henry Miller: “... vejo que por detrás das órbitas
desses olhos se estende um mundo inexplorado, mundo das coisas futuras , e desse mundo qualquer lógica está
ausente...”
- 70 -
aquela cena aceita o gesto como criação.Essa área da ilusão, “terra de ninguém” e zona de
passagem que se presentifica entre o dentro e o fora, sendo os dois, ao mesmo tempo, e não se
reduzindo a nenhum deles, é o espaço potencial que o autor nomeia também área
intermediária da experiência, a morada do brincar.
4.1 – Área de repouso e de contágio
Winnicott apresenta o espaço potencial como área de repouso, onde a produção
criativa acontece em meio a uma condição psíquica que ele postula como estado de não-
integração. Esse estado não integrado é descrito pelo autor como a condição necessária ao
nascimento psíquico do bebê que alterna momentos de relaxamento e tensão e, talvez,
possamos dizer de produção criativa e produção reativa, fatores inerentes a todo processo
existencial. Vivemos assim, agindo e reagindo, mas o que favorece a manifestação criativa é o
retorno que empreendemos a esse estado não-integrado. Nessa circunstância, não existem
metas prévias a serem atingidas, e o afeto que predomina é a intuição que ‘brota’ de uma
condição de desligamento, de sentimento de liberdade, de poder ser inconseqüente e ter
vontade de ousar. Lins, como comentadora desse autor, menciona que esse estado não-
integrado, essencial ao ato criativo, é aquele “em que o indivíduo fica sem orientação
determinada, capaz de flutuar, de existir sem ter que agir ou reagir” e que, na clínica, o
surgimento desse estado não-integrado da mente refere-se a “uma atmosfera especial que
leva o analista e seu paciente a ficarem juntos sem experimentar a irritante busca dos fatos ou
do sentido”. (LINS, 1997, p.21)
Para Winnicott, a linha de continuidade da existência que mencionamos, é
produzida pela alternância de: estados de integração, que nos dão a sensação de ser um
indivíduo distinto dos demais; com estados de personalização, que nos dão a noção de
corporeidade; e com a experiência de estar conectado ao mundo, processo que ele chama de
realização. Na concepção estética que estamos imprimindo à visão winnicottiana, temos uma
subjetividade que se produz em meio a esses elementos que se alternam sem que a passagem
por um desses estados represente a finalização de um processo.
Antes de seguirmos adiante, é importante destacarmos a fundamental diferença que
Winnicott faz sobre o que ele conceituou como estado de não-integração do que se conhece
em psicanálise como temor à desintegração, estado que faz parte, igualmente, da nossa
- 71 -
existência. O autor distingue a ‘não-integração’ daquilo vivido como ‘angústia de
desintegração’ que é um estado psíquico em que a angústia predomina como reação defensiva
do ego a possíveis falhas ambientais. Para ele, é sempre em razão das falhas ambientais que
essas defesas se manifestam. Em uma experiência de desintegração, o que é experimentado
como ameaçador é a possibilidade de interrupção da linha de continuidade da existência,
temor esse vivido pela sensação de que um desmoronamento psíquico (ou da própria vida,
quando provocado por algum acontecimento real) está prestes a acontecer ou aconteceu.
Nesse caso, a pessoa adoece efetivamente e vive o sentimento de estar perdendo as suas
mínimas referências existenciais e sente-se paralisada. Na linguagem aqui explorada,
podemos dizer que isso significa um estado de interrupção de fluxo das forças vitais que
sustentam essa sensação de ser, daquilo que chamamos de ‘seguir sendo’, algo que também
chamamos de self
28
. Para Winnicott, quando essa condição predomina não é possível brincar e
nem criar porque um padrão reativo se impõe ao self, para que ele não sucumba.
Retornemos ao estado de não-integração, razão do nosso interesse momentâneo. É a
partir dessa concepção teórica que surge a noção de espaço potencial. Uma área do psiquismo
onde o autor localiza a matriz da criatividade. Essa dimensão psíquica apresenta considerável
plasticidade expansiva para funcionar, ao longo da vida, como: reservatório de experiências
mágicas; da descoberta e da criação do mundo; de toda a ação lúdica; das artes, da cultura e
das experiências místicas. Modalidades de experimentar a vida que apresentam uma conexão
direta com o ato de brincar de nossa primeira inncia. Uma outra definição para o espaço
potencial é apresentada pelo autor nos seguintes termos:
...constitui uma área intermediária de experimentação, para qual contribuem
tanto a realidade interna quanto a vida externa. Trata-se de uma área que não
é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que
ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua
tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que
inter-relacionadas. (WINNICOTT, 1975, p.15).
28
Os termos ego, ‘eu’ e self se revezam de forma indiscriminada nos relatos winnicottianos, provocando certa
confusão quanto ao seu uso, embora no tratamento que em outros momentos ele parece distingui-los com
mais clareza. Um dos mais respeitados comentadores de sua obra no Brasil, Gilberto Safra propõe uma
distinção entre esses termos e que transcrevemos, a seguir para estabelecer a diferença entre o uso dos
mesmos: “Diferencio o self do ‘eu’. Compreendo o self como uma organização dinâmica que possibilita um
individuo a ser uma pessoa e ser ele mesmo. Trata-se de uma organização que acontece dentro do processo
maturacional com a facilitação de um meio ambiente humano. A cada etapa deste processo há uma integração
cada vez mais ampla decorrente de novas experiências de vida. O ‘eu’ seria, para mim, um campo
representacional que possibilita ao indivíduo uma identidade nas dimensões do espaço e do tempo. É
importante ressaltar que nem o self e nem o ‘eu’ confundem-se com o ego que uma das instâncias
intrapsíquica de caráter funcional, articulador das demandas do id, do superego e da realidade” (SAFRA,
1999, p. 37)
- 72 -
Para alguns, essa área de repouso é entendida como campo neutro, porque não
prevalência do interno sobre o externo e vice-versa. Para Macedo (1999, p.130), “o espaço
transicional é esta zona neutra em relação às realidades interna e externa e também em
relação à excitação pulsional”. Embora reconhecendo que essa afirmação ganha sentido nos
termos relacionais que esse autor menciona, gostaríamos de problematizar essa questão da
neutralidade a fim de saber se, mais do que neutra, essa não seria, também, uma área de
interferências. O paradoxo estaria justamente no seu caráter transicional, porque é concebida,
ao mesmo tempo, como: zona neutra e de contágio; lugar de repouso e tensão; espaço de
quietude e atividade; área precária e consistente, um espaço onde se experimentam estados de
razão e desrazão. O que queremos dizer é que, no espaço lúdico, todas essas modalidades de
experimentação são possíveis, porque são vividas como paradoxos e não como contradições.
O nosso pensamento é de que a palavra neutralidade, empregada nesse contexto,
parece não dar conta da idéia de precariedade que Winnicott lança sobre as experiências do
brincar, e por extensão, as experiências criativas, de que falamos anteriormente. Para nós, esse
processo se configura mais como um equilíbrio sustentado por uma mobilidade e por isso
mesmo precário - que permite que aquilo que é produzido no espaço da transicionalidade se
componha em arranjos heterogêneos que prevalecem na medida do tempo necessário ao
seu uso, vivências que permanecem no limbo e que podem ressurgir em outras
experimentações. O termo limbo é usado pelo autor para dizer qual é o ‘destino’ do objeto
transicional, que não é recalcado, tampouco dissociado. O seu destino o é virar lembrança
ou fantasia, pois o que ocorre é um desinvestimento do objeto que permanece no limbo.
Limbo que, aqui, propomos aproximar da noção de virtual, tal como é mencionado por
Deleuze (id, p. 178) em “Diálogos”, quando afirma que aquilo que é virtual coexiste com o
atual, não sendo oposto ao que é real: “pois, como mostrava Bergson, a lembrança não é uma
imagem atual que se formaria depois do objeto percebido, mas a imagem virtual que coexiste
com a percepção atual do objeto”.
Com isso, queremos dizer que uma determinada composição de fatores se apresenta
em dado momento para, num tempo seguinte, não mais vigorar, desfazendo-se e dando lugar a
novos arranjos sem que haja subordinação de uns sobre outros. Algo como uma fieira de
pássaros, onde um toma a dianteira, indicando o fluxo a ser seguido, conduzindo o bando em
uma determinada organização espacial. Mais adiante, será outro elemento do grupo que
assumirá aquela condução. Nenhuma hierarquia irá prevalecer e os territórios são
estabelecidos e desfeitos ao sabor do vento, conforme as circunstâncias – velocidade e direção
- 73 -
do vento, clima, luminosidade. Um do próprio bando conduz a passarada e pode ser qualquer
um, desde que assuma, por um tempo, a função de condutor. A ‘troca de turno’ se dá, então,
por contágio, porque é preciso dar prosseguimento à revoada e, enfim, aquilo que corre entre
muitos é o que prepondera. Assim também pode ocorrer com os modos de existir e de estar no
mundo, ainda que seja entre dois - como costuma ser, no caso dos atendimentos na clínica
individual – algo que pode ser vivenciado como o que corre entre muitos.
Essa questão do contágio, do modo como está sendo apresentada, não diz respeito a
um sujeito que contagia o outro. O contágio é trabalhado, aqui, como algo impessoal, algo da
ordem da propagação que acontece em meio às experimentações. Trata-se de uma “unidade
mínima a ser imitada” que funciona como disparador da “formação de um tecido coletivo”,
uma idéia que Lancetti (1994, p.161) retira do pensamento de Gabriel Tarde
29
, para afirmar
que a imitação e a invenção são os elementos mínimos e fundamentais para a formação do
tecido coletivo. O contágio, nessa modalidade, não pode ser entendido como um processo
intersubjetivo porque, nessa condição, não tem sujeito e nem liderança fixa. Se
observarmos bem o exemplo mencionado, quando os pássaros se posicionam em formação de
asa delta, na realidade, eles não estão sendo conduzidos por um, ou seja, não estão sendo
submetidos a uma liderança. Trata-se de uma formação que é feita coletivamente no
aproveitamento do deslocamento de ar que é provocado por todos. Ou seja, tanto aquele que
se posiciona como vértice, como todos os outros que compõem os dois vetores da formação
em asa são fundamentais, para aquela empreitada e isso tudo é que é o disparador do coletivo.
Se o contágio é imitação, não é para produzir cópias, mas, ainda segundo Lancetti, para
produzir invenções, algo que se repete de maneira diferente. Processos que esse autor
observou no trabalho feito em grupo, com pacientes psicóticos e que o fez deduzir que essa
experiência de contágio, mais do que produzir fantasmas, pode funcionar como “atrator
mutacional”
30
, provocar mudança por contágio. Vejamos o que Lancetti (ibid) diz:
29
Filósofo, sociólogo e psicólogo francês (1843-1904).
30
Lancetti (1992, pp. 175-6) faz referência a um termo usado por Guattari no texto “Restauração da cidade
subjetiva” (GUATTARI, 1992, p. 167) que, ao escrever sobre o espaço urbano, afirma que: “experimentação
social visa espécies particulares de ‘atratores estranhos’, comparáveis aos da física dos processos caóticos”.
Uma ordem objetiva ‘mutantepode nascer do caos atual de nossas cidades e também uma nova poesia, uma
nova arte de viver. Essa ‘lógica do caos’ pede que se examinem bem as situações em sua singularidade. Trata-
se de entrar em processos de re-singularização e de irreversibilização do tempo; Além disso, trata-se de
construir não apenas no real mas também no possível, em função das bifurcações que ele pode incitar.
- 74 -
Essas unidades mínimas em constante transformação que possibilitam as
simpatias, as ressonâncias, são os componentes do campo de forças ou de
afetos, a matéria dos vínculos. Nesses devires de intensidade pré-
significantes, anteriores à transferência, fundamenta-se a potência grupal.
Daí a importância dos ritmos e da velocidade corporal.
Essas mudanças de velocidade, intensidade e ritmo, as imitações que
operam como atratores mutacionais são os componentes fundamentais da
grupalidade entendida como produção de subjetividade e não como simples
manifestação de uma organização já dada.
No caso da fieira de pássaros, temos algo que pode ser vivenciado mas, que não é a
experiência de um que contagia os demais e sim, o que se passa entre eles e os mantém como
bando. uma impessoalidade na experiência, porque sendo de todos, resulta na experiência
do bando. A fieira se compõe como experimentação contagiante naquele vôo coletivo cuja
condução pode ser de qualquer um do bando, que dela se aproprie. Falamos de uma
experiência de propagação que corre entre margens, como dissemos, mas que não adere a
nenhuma delas, porque é fluxo. A experiência é o que se situa em ‘meio a’, não sendo nem
uma margem e nem outra e sendo parte das duas ao mesmo tempo.
Após esse desvio, para elucidar o uso do termo contágio nesse contexto, voltamos à
Winnicott, para dizer que, na leitura que estamos fazendo do espaço potencial, pensamos que
falar de uma neutralidade, marcada pela falta de contágio, nos remeteria a uma
homogeneização da pretensa criação, retirando da mesma o seu caráter irruptivo e expressivo.
Essa noção de alternância que estamos chamando de “troca de turno” é importante, porque, na
perspectiva winnicottiana, aquilo que será reconhecido como self, deriva das experiências de
repouso e de atividade que se alternam produzindo arranjos que o autor concebe como
acúmulos de experimentações e que é, para ele, uma construção silenciosa. Embora o autor
use a palavra somatório, propomos que não seja entendido como um somatório em série, em
que uma experiência sucede a outra, superando-a. É por isso que ressaltamos, nesse autor, a
idéia de arranjo precário em sua concepção da subjetividade, plástica, com um ego que não é
inteiro, porque a idéia de parcialidade persiste.
Aqui, ‘ego’ equivale a um somatório de experiências. O eu individual tem
como início um somatório de experiências tranqüilas, motilidade espontânea
e sensações, retornos da atividade à quietude, e o estabelecimento da
capacidade de esperar que haja recuperação depois das aniquilações;
aniquilações resultantes das reações contra as intrusões do meio ambiente.
(WINNICOTT, 2000, 405)
- 75 -
A área de repouso ou de quietude é importante, especialmente na clínica, por relação
ao seu aspecto rítmico, uma ritmicidade que é acompanhada de pausas. Temos, aqui, a não
integração manifesta em ações de quietude e repouso, sem que isso seja compulsoriamente
interpretado como retraimento, porque esse último seria um processo defensivo deflagrado
por temor à desintegração, conforme explicamos. Estamos nos referindo às pausas
necessárias para a manutenção de um ritmo respiratório, como podemos observar, por
exemplo, os intervalos que um bebê produz ao sugar o seio, mamadeira, chupeta ou até
mesmo os próprios dedos. Na visão winnicottiana, esse movimento intervalar que acompanha
a respiração, visto como criação, pode se configurar como um fenômeno transicional, ou seja,
respirar pode ser um gesto criativo, conforme citação feita como epígrafe desse capítulo. Um
outro exemplo de ritmo que produz subjetividade é o embalo do bebê ao ser ninado no colo
materno ou no próprio berço, modulações rítmicas que aparecem tão claramente nos jogos
que a criança desenvolve, e que merecem ser registradas como criações singulares.
Observações desse tipo nos remetem a uma passagem descrita por Deleuze que, da
mesma forma, menciona as manifestações silenciosas como pausas necessárias a novas
modalidades de percepção. Sobre isso, Deleuze (1992, p. 162)
diz:
De modo que o problema não é mais fazer com que as pessoas se exprimam,
mas arranjar-lhes vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas
teriam, enfim, algo a dizer. As forças repressivas não impedem as pessoas de
se exprimir, ao contrário, elas as forçam a se exprimir. Suavidade de não ter
nada a dizer, direito de não ter nada a dizer; pois é a condição para que se
forme algo raro ou rarefeito, que merecesse um pouco ser dito. Do que se
morre atualmente não é de interferências, mas de proposições que não tem o
menor interesse.
Deleuze (ibid, 151), inclusive, vislumbra, nesses estados de aparente neutralidade,
praticamente “sem reação possível”, outros modos de expressão. Sendo justamente nesses
momentos, onde os movimentos não funcionam mais como “ponto de alavanca”, que haverá
lugar para a expressão de “situações ópticas e sonoras puras, que engendrarão modos de
compreensão e de resistência de um tipo inteiramente novo”. O silêncio descrito como modo
de expressão e sendo uma afirmação totalmente compatível com o estilo winnicottiano de
fazer clínica que não considera a situação silenciosa manifesta nesse espaço, como
necessariamente constrangedora ou vista como defesa. A quietude, compartilhada e
- 76 -
sustentada como estado não-integrado, pode ser vivenciada como momento propício a
produção de sentidos, captados em uma dimensão da linguagem que é diferente do discurso.
4.2 –Solidão compartilhada e silêncio
Solidão e silêncio são temas recorrentes na obra de Winnicott que, talvez, tenha sido o
primeiro psicanalista, senão o único de sua época, a ressaltar a importância do estado de
solidão compartilhada no setting clínico. Novamente, temos aqui, o tema do encontro. Em seu
artigo “A capacidade para estar só” (1982, p. 31), descreve a necessidade que a criança tem de
experimentar o paradoxo que é estar sozinho na presença de alguém, uma experiência de
solitude que vem acompanhada de uma presença não intrusiva e que faz com que alguém se
sinta único ao mesmo tempo em que se encontra em meio a uma multidão. Isso significa estar
em imanência com o universo sem, que haja prevalência de nenhum dispositivo egóico. É
poder tomar posse de um estado de autonomia, sentir-se só e acompanhado ao mesmo tempo,
em plena coexistência com o mundo que o cerca. uma positividade nessa concepção de
solidão compartilhada, nos momentos em que a criança brinca em estado de relaxamento,
sozinha, porém em conexão consigo mesma e com o mundo. Trata-se de um movimento
regressivo
31
ao estado não integrado da mente, como possibilidade de criação, mediado pelo
brincar. Essas ocasiões especiais são vistas pelo autor como a criança estando em um estado
de entrega, favorável à criação. Percebemos que a questão do cuidado comparece nessa
leitura, porque a capacidade de estar só obtida a partir de um cuidado dispensado por outrem,
do cuidado ambiental, leva o indivíduo a ser capaz de cuidar de si próprio.
Também no setting clínico, esses momentos de solidão compartilhada se manifestam,
sendo preciso que o analista possa diferenciá-lo das situações de retraimento defensivo. Se
aquilo que o analista tem a oferecer, nesses momentos, é a sua presença sensível, essa postura
favorece a vivência de estar como um estado de comunhão. Às vezes, é somente isso de
que o paciente necessita. Mesmo porque existem afetos que se manifestam, mas que não
podem ser expressos por palavras e não dispositivo interpretativo que conta dessas
interpretações. Muitas vezes precisamos usar novas estratégicas clínicas para lidar com aquilo
que está para além do que é da ordem do não dito, porque são situações tidas como indizíveis.
31
A regressão winnicottiana é um conceito que difere do tradicional conceito de regressão em Freud. Nesse, a
regressão refere-se ao retorno, por fixação a uma das fases evolutivas da sexualidade infantil. No caso de
Winnicott, a regressão é ao estado de dependência incondicional ou ao estado de não-integração. Ou seja, não
é necessariamente uma regressão defensiva.
- 77 -
Nessa linha de pensamento, Rozenthal (informação verbal)
32
, afirma que há ocasiões em que,
o que está em jogo ...
... não é o território do não dito e que poderia ser dito. O que está em jogo é
o território do indizível. Daquilo que não teria como ser dito porque não é
da ordem da representação. O indizível, que surge na clínica não pode ser
falado e nem escutado (...) é um clima é uma sensação, ... [algo] que toma o
corpo do analista e do analisando ao mesmo tempo.
Assim, para que o silêncio seja experimentado em compartilhamento, é preciso que a
solidão seja uma conquista e não uma ameaça. Poder ficar é uma aquisição que fazemos
nos primórdios de nossas vidas, que é diferente do medo da solidão manifesta pelo silêncio
defensivo que se instaura por uma atitude de retraimento. Na clínica, isso só é possível de ser
alcançado pelo paciente se o terapeuta souber, também, sustentar a solidão que a sua função
impõe. Caso contrário, a sua angústia se sobressai e, inadvertidamente, quebra esse momento
de silêncio vivenciado em mutualidade.
O que Winnicott parece dizer é que não podemos tomar o silêncio, a priori, como uma
experiência defensiva, de resistência ao tratamento, porque essa quietude poderá estar
representando a conquista de uma solidão vivida em estado de compartilhamento. Assim,
percebemos que, não é preciso respeitar o direito de não se comunicar, como pensar no
silêncio como possibilidade de criação e, no âmbito da clínica, esse aspecto é relevante,
porque requer do terapeuta uma boa dose de habilidade no manejo de situações em que o
silêncio predomina, conforme ilustramos, a seguir, com o relato de duas experiências clínicas,
sendo que a primeira foi considerada como mal sucedida por um dos protagonistas da história.
Silêncio! Preciso parar!
Um paciente chega ao consultório no seu horário habitual, cumprimenta discretamente
o analista, deita-se no die, sem falar nada, aquieta-se. O analista espera e percebe que o
paciente não dorme, não está inquieto, apenas está calado, aparentemente sem vontade de
falar, de se comunicar. O que pensa o analista? Este sim, um pouco inquieto, remexe-se na
cadeira e pergunta-se a si mesmo o que deve fazer. Intervir, fazendo menção ao silêncio ou
32
Comunicação feita por Eduardo Rozenthal em 5 de dezembro de 2006 no evento “Ética e Cuidado no
Contemporâneo” realizado pela Universidade Federal Fluminense, Niterói, em dezembro de 2006.
- 78 -
aguardar o transcurso dos acontecimentos? Em um dado momento, o terapeuta intervém
dizendo ao paciente que era preciso trabalhar, afirmando que, quando se vai à análise, é para
trabalhar alguma questão.
Algumas informações a respeito desse paciente revelam que se trata de alguém que
precisou imprimir à sua vida pessoal e profissional um alto grau de auto-suficiência, sem o
qual acreditava que sucumbiria. Era uma pessoa que se queixava da sua dificuldade para
relaxar e ficar ociosa, necessitando estar, o tempo todo, com a mente ocupada. Durante as
sessões, experimentava um estado de conforto, quando permanecia quieta, podendo entregar-
se ao silêncio, mesmo por um breve tempo, desde que alguém estivesse ali para cuidar para
que nada de ruim acontecesse. Podia, assim, usufruir desse estado de relaxamento, porque um
outro ficaria em alerta em seu lugar.
Esse recorte já basta, para que nos aproximemos da cena descrita. Parece que o agir do
paciente dependia, naquele momento, da possibilidade de aceitação do seu gesto pelo analista.
Uma intervenção, fora do tempo preciso, poderia ser desastrosa e dar como perdida a
oportunidade do paciente desfrutar essa experiência de quietude que poderia remetê-lo a uma
experiência de repouso, se quisermos usar a nomenclatura winnicottiana a um estado de não-
integração. Posteriormente, essa pessoa se deu conta que aquilo que poderia ter sido vivido
como um momento mágico foi quebrado com a intervenção feita pelo analista, pois voltou a
sentir-se ‘ligada’, como se fosse uma corda esticada.
O que depreendemos desse episódio é que a intervenção inoportuna terminou por
remeter o paciente ao mesmo posicionamento que adotava diante de seus problemas e da vida
e do qual parecia querer escapar, traçando linhas de fuga que permitiriam que pudesse
experimentar novas posições, ou novos estados afetivos para as questões que o afligiam. Com
uma intervenção desse tipo, considerada intrusiva, é possível que se perca o momento mágico
do desvio no encontro. Aquilo que é percebido como sintoma pelo analista pode ser uma linha
libertária para o cliente. O analista expressa, nesse exemplo, a sua cronicidade provavelmente
mantida pelas lentes científicas que o cegam da rica experiência sensível.
Podemos ir sem pressa!
Uma outra experiência que diz respeito, igualmente, à necessidade de experimentar
certa calmaria diante dos problemas do dia a dia: uma paciente vem se queixando de um
- 79 -
cotidiano extremamente corrido tanto em sua vida profissional quanto na pessoal, fato que
tem provocado um extremo cansaço e reações estressantes (sic) produzindo a sensação de que
a qualquer momento vai “pifar”. Esse ritmo desenfreado, provocado por uma carga excessiva
de afazeres faz com que ela se atrase, recorrentemente, para as sessões de psicoterapia. Em
uma das sessões, chegou bastante atrasada, quando faltavam uns dez minutos para o término
do tempo estipulado e após as justificativas habituais, iniciou uma fala rápida, porque trazia
uma série de assuntos que desejava abordar, procurando reduzir em poucas palavras o que
queria dizer a fim de ser breve e não ocupar, além do estabelecido, o tempo do seu ouvinte.
Nesse caso, o terapeuta pode ser sensível, para perceber a dinâmica psíquica que ali se
instaurava como uma repetição do ritmo acelerado que a paciente vinha imprimindo em sua
vida e pode intervir sinalizando para que fizesse o seu relato com calma porque havia
disponibilidade para isso, naquele dia “podemos ir sem pressa” - e deixou que a sessão
transcorresse por um tempo bem maior que o usual, na tentativa de oferecer uma acolhida que
poderia resultar na experimentação compartilhada de um estado de calmaria, tão caro à vida
dessa pessoa naquele momento.
Como vimos, a partir do que expomos do pensamento desses autores, o repouso e a
quietude são acontecimentos que deflagram devires, porque há momentos em que não há nada
a ser dito e sim sentido, conforme mencionamos. São ocasiões em que o repouso e a
quietude precisam ser respeitados como sendo, às vezes, únicos modos de expressão possível
daquilo que é indizível. Em linguagem deleuziana, talvez seja através de “vacúolos de
solidão” que as pessoas tenham, enfim, algo a dizer, porque é preciso garantir a “suavidade de
não ter nada a dizer, direito de não ter nada a dizer; pois é a condição para que se forme algo
raro ou rarefeito, que merecesse um pouco ser dito.” (Deleuze,1992, p. 162)
4.3 – o espaço potencial e o virtual.
Após seguirmos os desvios produzidos pelo nosso pensamento, e que nos levaram a
fazer essa diversidade de considerações, chegamos a uma concepção pessoal para o que
Winnicott denominou espaço potencial. Algo como um plano de forças, de intensidades
prestes a serem expressas pelo indivíduo e recebidas pelo mundo. Espaço potencial, visto
como uma “... área disponível de manobra, [...] terceira maneira de viver, [...] produto de
experiências individuais” (WINNICOTT, 1975, p. 148). Tal como o plano de imanência, o
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espaço potencial é constituído à medida que vai sendo usado. O caminho é traçado pela
experimentação, da mesma forma em que se abre uma trilha no meio de um matagal, ou se
singram mares nunca dantes navegados. O espaço potencial não existe previamente à
experiência, é algo que vai se fazendo a partir das experimentações produzidas pelos
encontros.
Esse é o espaço que, ao mesmo tempo, liga e separa bebê e mundo e que se engendra a
partir de uma posição do ambiente provedor que ali está e se apresenta com certa constância
para que seja, ilusoriamente, criado. O bebê promove a diferenciação, preenchendo o espaço
potencial com o brincar criativo. O bebê não reconhece, nem reproduz o ambiente. Mesmo
que seja uma revisitação, sempre é uma nova experiência, sendo, por isso mesmo, um ato de
criação. A preocupação que cerca essa proposição é conceber a criatividade por uma vertente
que descentraliza uma possível localização interiorizada, pois, é um espaço em meio aos
encontros, abrangendo múltiplos componentes. O espaço potencial , repetimos, é aquele
existente entre infante e mundo e que precisará, sendo plano de imanência, ser constituído e
trilhado, sem que se saiba previamente aonde esse caminho vai.
Em uma conexão da noção de espaço potencial com o tema da virtualidade, surge uma
questão: quando Winnicott diz que a subjetividade é processada pela sobreposição daquilo
que é concebido subjetivamente com aquilo que é percebido objetivamente, não poderíamos
pensar em termos de realidade virtual imanente ao ser que se atualiza em estado de coisas?
Em um texto em que aborda essa conexão, Luz (2000) afirma que o conceito de
espaço potencial contempla, em sua composição, as noções de “experiência ilusória,
transicionalidade e ação lúdica” e que o termo “potencial” não é usado, por Winnicott, com o
significado único de uma potência que se realiza. A expressão “potencial”, nesse contexto, faz
referência a um virtual que se atualiza, porque o espaço potencial traz, em si, o duplo sentido
de ser um espaço onde se constituem, experimentalmente, tanto a subjetividade
psicossomática quanto a objetividade de um mundo compartilhado”. Quando Luz menciona
que a noção de experiência ilusória é componente do conceito de espaço potencial,
entendemos que outro componente conceitual é a noção de virtualidade. Esse autor propõe
um agenciamento do espaço potencial com a noção de virtual, porque essa zona transicional é
um lugar de passagem onde se “joga o jogo livre das forças” que transitam em modalidades
diversas de realidade. O espaço potencial, visto como plano de virtualidade, “é o lugar de
instauração e de trânsito de uma relação aberta de possíveis, relação criadora dos pólos que
- 81 -
ele põe em relação: e bebê, força vital e meio ambiente, gesto espontâneo e formação
social, realidade subjetiva e realidade objetiva.”.
Atual e virtual não se excluem; ao contrário, fazem parte de um plano existencial e
essa é uma afirmação deleuziana, desenvolvida a partir de Bergson. Para Deleuze, o virtual
não se opõe ao real, porque ele é imanente ao real. A distinção estaria entre virtual e atual,
ainda que façam parte do mesmo plano. O virtual não é o imaginário, algo que uma mente
imagina. O virtual é algo que coexiste com o atual e se o virtual é parte do real, ele é parte da
experiência. Se o acontecimento é virtual, ele ganha corporeidade quando se atualiza. Em
todo processo, há sempre uma dimensão atual e virtual e aquilo que se atualiza diz respeito ao
visível. Se o atual ganha visibilidade na experiência, o virtual se apresenta, igualmente, porém
não é visível ou dizível. Ele é sentido, conforme mencionamos. Isso é fundamental para a
clínica, do modo como a estamos apresentando. Deleuze usa o tema da virtualidade para falar
do inconsciente. Isso que é real e não atual, porém virtual, na linguagem deleuziana, é puro
sentido. Essa idéia de inconsciente como produtor de sentidos significa dizer que toda
realidade é virtual.
Em “Diferença e Repetição”, Deleuze (2006, p. 148-149) fornece um exemplo de
como a dimensão virtual está presente na experimentação das crianças, quando elas aprendem
a andar, demonstrando que o que está em jogo é um movimento de alternância entre virtual e
atual, na relação com a mãe. Uma alternância que ele chama de “dualidades do foco infantil”.
Duplo que aparece na relação, como experiência especular e não como imaginário. Deleuze
afirma que, quando uma criança começa a andar, os movimentos que ela faz estão para além
das excitações endógenas.
Nunca se andou de maneira endógena. Por um lado, a criança ultrapassa as
excitações ligadas em direção à posição ou à intencionalidade de um objeto,
a mãe, por exemplo, como alvo de um esforço, termo ao qual se procura
ativamente reunir-se ‘na realidade’, termo em relação ao qual a criança
mede seus fracassos e sucessos. Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, a
criança constitui para si um outro objeto, um outro tipo de objeto, objeto ou
foco virtual que vem regrar e compensar os progressos, os fracassos de sua
atividade real: põe vários dedos na boca, envolve este foco com outro braço
e aprecia o conjunto da situação do ponto de vista desta mãe virtual.
Winnicott parece dizer algo semelhante quando discorre sobre a amamentação, em que
também se vislumbra uma experiência especular, na alternância entre o que é virtual e atual.
Momentos em que o bebê estabelece as primeiras comunicações com sua mãe. Uma
- 82 -
comunicação pré-verbal, feita de gestos, sons e ritmos, balbucios e choros e, também, de
quietude e silêncio, que se instauram nos intervalos das mamadas. Esses são encontros
privilegiados nas experimentações engendradas entre bebê e mãe.
Para Winnicott, o que a mãe reflete é o bebê experimentando e descobrindo o mundo.
Tudo é experimentação: fitar a mãe nas pausas da mamada, colocar o seu dedinho na própria
boca ou na boca da mãe. Tudo isso acontece em alternância. Como observadores, poderíamos,
talvez, dizer que o bebê brinca de dar comidinha para ele mesmo e para a mamãe. Experiência
relacional “criadora de pólos”, vivida sob o ponto de vista da “dualidade do foco infantil”.
Um jogo de vai-vem, que começa muito cedo. Esse movimento de ir e vir, de expansão e de
retração faz com que se amplie o plano da experimentação, descrito por Winnicott como
espaço potencial. Pela ótica que estamos privilegiando, não é a mãe o agente primordial dessa
experiência e, tampouco, o bebê. O primordial é o que acontece nessa zona de
experimentação. São acontecimentos que vão permitir, ou não, que agenciamentos se
engendrem. Essa zona de indiscernibilidade, na linguagem winnicottiana, seria o espaço
potencial.
Podemos, então, dizer que o bebê winnicottiano nasce em meio a essa zona de
indeterminação. Seu nascimento psíquico é simultâneo à experimentação, da qual derivam
subjetivações. Por essa ótica, não diríamos que o bebê winnicottiano é a mãe, ou que a mãe é
o bebê. Winnicott chamava esse processo de “estado de preocupação materna primária”
33
,
uma devoção materna de tamanha intensidade que parece que a mãe sofreu um apagamento
de si. Mas, talvez, possamos pensar esse peculiar estado materno como experiência de
dissolvência egóica, que cria o paradoxo da ilusão criadora, uma noção importante
desenvolvida por esse autor. A mãe, fundamental como provedora de cuidados, precisa se
dissolver enquanto figura real, para permitir que o bebê a crie. Isso é algo que acontece entre,
em meio aos encontros, às experimentações. Esse entre, é o que Winnicott postula como
terceira zona do psiquismo, o espaço potencial, onde acontecem experiências ilusórias,
transicionais e lúdicas, produtoras de fantasia e de realidade.
A concepção de virtualidade associada ao espaço potencial também é defendida por
Gondar (2006), quando afirma que o conceito de espaço potencial, embora referido a um
33
Preocupação materna primária é o estado de sensibilidade elevada que a mãe vivencia a partir do final da
gravidez, que se estende até algumas semanas após o parto e que faz com que fique devotada aos cuidados do
bebê como se estivesse em um estado de retraimento, quase uma perturbação, caso não estivesse referido a
esse momento da gestação e parto. È uma condição psíquica especial na qual a mãe se encontra e da qual se
recupera ao término desse tempo. É esse estado que permite que a maternagem seja exercida como
suficientemente boa (WINNICOTT, 2000, p. 399).
- 83 -
lugar, contempla a noção de tempo. Ainda que Winnicott não tenha se referido, diretamente, à
questão temporal nesses termos diretos, a autora considera que uma radicalidade
processual na temporalidade que aparece na concepção winnicottiana de linha de continuidade
da existência. O que acontece nesse espaço temporalizado não é a realização de algo
previamente estabelecido, mas algo da ordem da criação. Trata-se de um movimento criativo,
porque a dimensão potencial-virtual é “aquilo que se atualiza, no presente, e que condensa
todo um campo de virtualidades, de potencialidades e abre um novo campo de possíveis para
a vida” (ibid). O self winnicottiano ao qual estamos nos referindo como um “seguir sendo”,
conforme foi dito, é concebido como fluxo. Ou seja, para Winnicott, a constituição do self
implica constância e continuidade. Na conexão proposta, não seria possível pensar, também,
que esse “seguir sendo” implica duração e movimento? Embora não seja possível nos
estendermos, aqui, sobre esse posicionamento teórico levantado por Gondar, importa
registrarmos que, para ela, Bergson é o filósofo que melhor expressa a dimensão temporal
contemplada no conceito de espaço potencial, porque Winnicott também trabalha com a
noção de intervalo de tempo que produz subjetividade. O que é tempo para Bergson é o que
Winnicott trata como espaço, conforme palavras de Gondar (2006):
Esse espaço vai ser pensado, de início, na relação entre a mãe e o bebê,
como condição para a passagem da dependência a autonomia, ou seja, como
condição de diferenciação. Mas Winnicott vai também valorizar este espaço
na vida adulta, como espaço de experiência cultural e da criatividade. Eu
diria que se trata, curiosamente, de um espaço temporalizado, um espaço
construído sob uma lógica temporal, mais do que espacial. O que nele está
em jogo é a continuidade do ser, a diferenciação, a criação, a
experimentação, a potencialidade, todas elas dimensões ligadas ao tempo.
Se entendemos que o virtual não é aquilo que se realiza como algo que estaria dado
previamente, porque a virtualidade é algo que assume a dimensão atual, a partir da
experimentação, perguntamos: não é desse modo que o espaço potencial se institui, no setting
clínico, pela experimentação compartilhada entre analista e paciente?
O espaço potencial é aquilo que se atualiza em meio ao que extravasa e se expressa na
relação estabelecida.
Concluímos esse segmento com Winnicott, para reconhecer a importância do espaço
potencial como o espaço-tempo propício ao brincar, na clínica e na vida. Na idéia do brincar
winnicottiano que valoriza o jogo sem regras, essa dimensão virtual-potencial está presente,
- 84 -
porque é uma experiência que acontece como fluxo. Para Winnicott, o setting clínico, embora
configurado, em parte, por elementos concretos
34
, é instituído como campo de
experimentação e, nesse sentido, ele é fundamentalmente virtual. Winnicott (1975, p.151)
valoriza o brincar e a experiência cultural, porque “são coisas que vinculam o passado, o
presente e o futuro, e que ocupam tempo e espaço" (grifo do autor). O espaço potencial é o
intervalo temporal, o vazio que é preenchido pelo brincar criativo. É pela confiança
conquistada pelas experimentações que a criança promove a distinção daquilo que é
inseparável. A criança conquista a capacidade para se sentir um ser único, no mundo,
simultaneamente à capacidade para explorar novas possibilidades de existência.
34
Referência à noção de moldura ou enquadre que configura o setting psicanalítico com a adoção de horário,
número de sessões, honorários, etc.
- 85 -
Capítulo III
Brincar, experimentar, devir.
Em minha casa tenho reunido brinquedos pequenos e
grandes, sem os quais não poderia viver. A criança que
não brinca não é criança, mas o homem que não brinca
perdeu para sempre a criança que vivia nele e que lhe
fará muita falta. Tenho edificado minha casa também
como um brinquedo e brinco nela de manhã à noite.
Pablo Neruda
- 86 -
1 - Brincar, experimentar, devir.
Neste capítulo, pretendemos dar continuidade às idéias, pela apresentação mais
sistemática do enunciado teórico e o uso clínico que Winnicott fazia do brincar, buscando um
agenciamento desse tema com a idéia de experimentação compartilhada e com os conceitos de
molar e molecular, linha de fuga e devir, em Deleuze e Guattari. Como essa conexão será feita
gradativamente à medida que os desdobramentos da temática forem surgindo, iremos brincar
de “jogo da amarelinha”, numa escrita em que colocaremos um pé, ora num campo o da
clínica winnicottiana; ora no outro – o da filosofia de Deleuze e Guattari e jogando o seixo ao
acaso pois, assim, a cada jogada, saberemos quantos passos e quantas casas vamos poder
avançar ou ter que recuar. Nesse percurso, novamente, algumas idéias de outros comentadores
também nos servirão como complemento, além de ilustrações clínicas que iremos expor, a fim
de sustentarmos as idéias que estamos defendendo.
Como podemos constatar a partir do pequeno trecho biográfico do poeta Pablo
Neruda, a epígrafe na abertura desse capítulo, o brincar é um tema que tem sido abordado,
com certa recorrência, por poetas, escritores, filósofos, músicos, educadores e psicanalistas,
entre outros, com diferentes conotações. O senso comum parece entender que, especialmente
no caso do adulto, brincar significa apenas diversão, algo que não é levado muito a sério e que
se opõe às tarefas produtivas ligadas ao trabalho e à sobrevivência econômica. Uma atividade
que, geralmente, tem hora e lugar estipulados para acontecer, entendida mais como momentos
de relaxamento e entrega a uma ação que é socialmente reconhecida como necessária. Uma
espécie de reparação e de reabastecimento de energia física e mental, para o retorno ao
trabalho e à produção. Visto dessa forma, o ato brincar é considerado como mero passatempo
e aí, trata-se de um brincar que é, usualmente, desvalorizado. Ou, então, é utilizado como uma
meta, algo a serviço da educação ou de qualquer outro processo de desenvolvimento. Um
- 87 -
brincar enquadrado em normas, em regras que pressupõem o alcance de objetivos definidos.
Quando o ato de brincar escapa dessas concepções, pode não encontrar reconhecimento para o
seu real valor, o de força criadora que contribui para o enriquecimento da existência. A esse
respeito, Safra (2006, p. 12) ressalta que:
Em um mundo regido pelo capital a produção de bens é vista como
fundamental. Neste contexto, todos os elementos que não significam
produção de bens são desvalorizados e desqualificados. Vemos esse
fenômeno ocorrer principalmente com a arte, com o brincar e com a
religiosidade. Uma característica do brincar é que nada produz. O brincar é
apenas um modo de ser e estar em uma situação. O brincar, freqüentemente,
é desqualificado por nada produzir e por estar sempre colocado na categoria
do infantil, então é algo sem muita importância.
No caso da criança, é mais aceita a idéia de que o brincar é um fator importante no seu
desenvolvimento, pois permite a utilizão de recursos imaginativos para experimentar e criar
uma representação de si e do espaço que a cerca, mas como dissemos, na vida adulta, o
brincar não costuma ser visto como força criadora. Se a importância do brincar fica restrita
apenas a essa visão de infância, corremos o risco de reduzir o brincar a um mero ato de
preparação da criança para a vida adulta e, nesse caso, o ato de brincar seria apenas entendido
como investimento necessário à formação daquele que será, amanhã, o adulto bem sucedido.
A criança que brinca e que é vista somente por essa perspectiva se encaixa naquele modelo
que Deleuze e Guattari (1997, p. 92) chamaram de “criança molar da qual o adulto é o
futuro. Para esclarecer o que querem com isso, será preciso distinguirmos as noções de
molar e molecular, na leitura que esses autores fazem sobre as diferenças concebidas entre os
dois modos de pensar e que já foram apresentados no primeiro capítulo, que são o pensamento
arborescente e o pensamento rizomático.
Molar e molecular são conceitos que esses autores retiram da química inorgânica para
aplicá-los na compreensão filosófica do que significa pensar. São duas políticas, concepções
diferentes para que se entendam os processos de subjetivação, ou seja, são modos distintos de
pensar, de agir e de perceber o mundo. São macropolíticas e micropolíticas que estão
implicadas diretamente nos nossos modos de existência. Um deles privilegia o plano das
formas e das imagens plano molar. o outro, o plano molecular, é mais imperceptível e se
refere a um plano de composição de forças, aquilo que percorre e que atravessa as
experimentações, algo que se institui não como formatação, mas como algo que faz fluir e que
- 88 -
pode, ou não, consistir nessas experimentações. Esses planos, molar e molecular, são planos
que se entrelaçam, são processos que coexistem, não havendo primeiro um plano molar e
depois um outro, molecular. Vejamos a definição dada por Guattari (id. 1986, p. 321) sobre
esses conceitos:
Os mesmos elementos existentes nos fluxos, nos estratos, nos
agenciamentos, podem organizar-se segundo um modelo molar ou segundo
um modelo molecular. À ordem molar correspondem as estratificações que
delimitam objetos e sujeitos, representações e seus sistemas de referência. A
ordem molecular, ao contrário é a dos fluxos, dos devires, das transições de
fases, das intensidades. Essa travessia molecular dos estratos e dos níveis,
operada pelas diferentes espécies de agenciamento, será chamada de
“transversalidade”.
Quando nos referimos ao plano molar, é de um plano extensivo que estamos falando,
enquanto que o molecular, onde qualquer tipo de forma é abolida, diz respeito a um plano
intensivo. O molecular é aquele plano de onde brotam as linhas de fuga e por onde se operam
os movimentos de desterritorialização. Planos, o tempo todo, atravessados um pelo outro,
sendo essa a idéia de transversalidade que Guattari lhe atribui. Para os movimentos de
territorialização que ocorrem no plano molar, haverá sempre a possibilidade de alguma ponta
de desterritorialização no plano molecular, em meio à qual algo devém. Enfim, são planos que
não estão separados embora sejam distintos um do outro, pelos quais transitamos o tempo
todo e ... “não paramos de reconstituir um no outro, ou de extrair um do outro.” (DELEUZE e
GUATTARI, 1997, p.59).
O ato de brincar pode ser visto, então, pela ótica do plano molar ao mesmo tempo em
que pode ser percebido no plano molecular, sendo preciso que exista uma disponibilidade
sensível para isso. Seguindo essa linha de pensamento que privilegia o brincar em sua
concepção molecular, podemos dizer que, quando a criança brinca, ela constrói o mundo e,
nesse sentido, brincar é uma atividade que pode ser considerada um dos operadores de
subjetividade, processos que perduram por toda uma existência, isto é, nunca cessam de ser
produzidos. Se é produção para uma vida inteira, podemos dizer que, tanto para a criança
como para o adulto, brincar é ser capaz de explorar o espaço que a cerca, a fim de descobrir,
construir e transformar o mundo.
Um bom exemplo de que as crianças são ótimas artífices de mundos próprios é o
gosto que cultivam ao brincar de inventar histórias. As crianças adoram inventar histórias. A
- 89 -
história inventada pelas crianças, não tem a ver, necessariamente, com o resgate de memória
do que foi vivido. As crianças, como os poetas, sabem que as memórias podem ser inventadas
e com elas formam blocos que percorrem outros caminhos, viram nômades sem saírem do
lugar.
“Tudo que não invento é falso”, é assim que o poeta Manoel de Barros (2003) inicia o
relato de suas “Memórias Inventadas A Infância”. Uma afirmação categórica de que é
possível reconhecer como verdadeiro aquilo que é vivido como criação pessoal. Em meio a
um devir-criança o poeta põe-se a narrar a sua infância inventada:
Cresci brincando no chão entre formigas. De uma infância livre sem
comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um
orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua
árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e
oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um
paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa
visão oblíqua vem de eu ter sido criança em um lugar perdido onde havia
transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos.
Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.
1.1 - o brincar como conquista
No capítulo três do seu livro “O Brincar e a Realidade”, Winnicott (1975) apresenta
alguns comentários que parecem justificar o seu interesse pelo desenvolvimento do tema
brincar, a partir das suas próprias observações clínicas. Embora reconhecesse que outros
psicanalistas
35
haviam se dedicado ao estudo desse assunto, para ele, a psicanálise ainda
estava devendo uma produção teórica sobre o brincar que partisse do seu próprio campo de
trabalho, isto é, da prática clínica, onde o brincar poderia ser tomado como um tema por si só.
Até que ele desenvolvesse as suas considerações a respeito do assunto, o brincar era
utilizado, nessa modalidade de clínica, como forma de acesso ao mundo interior da criança,
funcionando como suporte para o tratamento. Dessa forma, o analista acabava participando
mais como um espectador, evitando entrar no jogo lúdico ali estabelecido, como se esse
aspecto fosse transgressor da neutralidade exigida dentro do espaço analítico.
35
Winnicott se refere à contribuição de Melanie Klein e de outros colegas contemporâneos como Marion
Milner, Masud Khan e René Sptiz. (cf . 1975, p. 60 – 61).
- 90 -
na proposição winnicottiana, o brincar é considerado como fio condutor do
tratamento. Uma espécie de trilha, aberta e percorrida com o desenrolar da atividade. Um
brincar que, por si só, é potência, visto muito mais como produtor de subjetividade do que
instrumento de desvelamento. O que podemos depreender desse tipo de observação é que, na
sua visão, o brincar não poderia ser estudado apenas como um elemento clínico secundário,
mas que deveria ser considerado pela sua grande importância, não para a clínica, como
para a vida.
Foi o que ele se dispôs a fazer, estudando o tema a partir do que experimentava
profissionalmente e afirmando que os estudos desenvolvidos sobre os fenômenos e objetos
transicionais deram ao seu trabalho um “novo colorido”, especialmente quanto ao uso do
elemento lúdico. Na apresentação dos seus postulados, o autor parece levantar questões e
buscar respostas sobre o assunto, atribuindo maior importância ao ato de brincar do que ao
brinquedo ou ao conteúdo da brincadeira. O que Winnicott percebe e valoriza é o uso que a
criança faz do brincar. O brincar ao qual se refere é aquele que é vivenciado como criação
pessoal, o brincar sem regras, que acontece no espaço potencial, em meio a experiências de
não-integração. Essa experiência é a das crianças quando estão em pleno exercício da
ritornelização das suas existências: repetem, repetem e modulam em diferentes tons o seu
processo de existir. Nesse tipo de experimentação brincante, é a atitude do terapeuta que
muda diante da criança. Quando esse dispositivo é usado como coadjuvante, busca-se suporte
na brincadeira estabelecida como um suplemento para a linguagem verbal infantil, ainda sem
domínio pleno. Já no caso em que o brincar é trilha a ser percorrida, o terapeuta entra no jogo
junto com a criança, pela experiência compartilhada que se institui no setting clínico. Para ele,
embora não se deva desprezar o que a criança produz em termos de conteúdo da brincadeira, o
importante é a ação, uma espécie de força potencial expressa na atividade empreendida, pleno
ato de criação.
É nesse sentido que podemos dizer que o ato de brincar é uma conquista. Winnicott
considera a capacidade de brincar como uma conquista no desenvolvimento emocional de
todo bebê. Uma trajetória que delineia o processo de simbolização, decisivo para que a
criança possa se reconhecer como distinta e, simultaneamente, em interação com o universo.
Sendo uma capacidade a ser conquistada, é possível a constatação de que alguns pacientes
nunca a tenham adquirido ou, então, a tenham perdido. O que o autor afirma é que nem
sempre o paciente está em condições de brincar, sendo preciso conduzi-lo para o alcance
dessa condição. A disponibilidade para o analista se deixar usar tal como um objeto
- 91 -
transicional, torna possível essa aquisição. Quando não há essa disponibilidade afetiva, o
trabalho a ser realizado estará fadado ao fracasso. O instrumental teórico que Winnicott
dispõe ao desenvolver a sua teoria do brincar nos serve, nesse agenciamento proposto, para
pensarmos uma clínica que experimenta novos modos de escuta e de intervenção terapêutica.
Quanto à proposta que estamos perseguindo de um agenciamento entre o pensamento de
Winnicott e de Deleuze e Guattari, é necessário fazer um recorte a respeito de quais elementos
conceituais desses dois iremos abordar.
2 – brincar e devir
Na abordagem de possíveis conexões entre o pensamento de Deleuze e Guattari e o
campo psicanalítico, Gondar (2005) destaca conceitos filosóficos desses autores que, no seu
entendimento, podem servir como ferramentas úteis para o trabalho realizado na clínica, ao
menos para um determinado modo de pensar e de fazer psicanálise. A autora assinala que é
preciso considerar os desdobramentos do próprio campo psicanalítico, lembrando que alguns
desses profissionais, diante de desafios impostos por impasses clínicos, para os quais os
procedimentos vigentes não eram eficazes, não criaram conceitos novos como provocaram
transformações no próprio agir clínico. Entre eles, situa-se Winnicott, definido como um
psicanalista de conotação empirista que não estava preocupado com qualquer fundamento
transcendente exterior à subjetividade, cuja constituição, para ele, vai passar, inevitavelmente,
pela imanência da experiência. Em sua análise da questão, destaca três conceitos extraídos do
pensamento de Deleuze e Guattari que considera úteis para o estudo de uma teoria da clínica
que privilegia a via afetiva. São eles os conceitos de maior e menor, de linha de fuga e de
devir. Conceitos cujo entendimento se faz em bloco, isto é, em um agenciamento entre eles
próprios, os quais, abordaremos, em seguida.
No livro que escreveram sobre Kafka, Deleuze e Guattari (1977), apresentam a idéia
de maior e menor quando concebem a produção de subjetividade como algo que se no
entrelaçamento dessas duas dimensões. Na verdade, são dois modos de olhar e conceber a
existência do mundo e isso se aplica a qualquer área do conhecimento. A dimensão
majoritária diz respeito às formas, às representações, aos sujeitos constituídos, percebidos e
tratados a partir dessa visão integral, ou seja, aquilo que diz respeito ao que é facilmente
visível. Na dimensão minoritária, não prevalência das formas, nem de conteúdos. São
- 92 -
partículas, fluxos, intensidades, forças, que se desterritorializam e que se conjugam com
outros fluxos, produzindo territorializações e assim por diante. São conjugações de elementos
minoritários, parcialidades que produzem modos de subjetivação.
Essa forma de conceber a subjetividade se aproxima daquilo que Winnicott postulou
como estado de não-integração primária, e que nos referimos no capítulo anterior. Em outros
termos, é sempre em meio a um estado de não-integração que o bebê inicia a sua jornada
existencial, e o que será reconhecido como self é visto como uma composição de elementos
minoritários múltiplos. dissemos que uma visão de self assim, flexível, mutante, afeito a
modificações refere-se a uma subjetividade constituída ao sabor dos encontros e que ganha
consistência como individuações, ou seja, o que costumamos reconhecer como algo próprio
de cada um, aquilo que consiste na experiência como um ‘si mesmo’, como experiência
singular.
Clinicamente, Winnicott vai fazer uma diferença entre modos de subjetivação
constituídos em meio a um estado não-integrado e modos de subjetivação vivenciados como
estado de desintegração. No primeiro caso, a experiência diz respeito à expressão do gesto
criativo. No segundo caso, em vez de expressão criativa, temos reação defensiva a algum tipo
de falha na provisão ambiental e essa defesa é manifesta por submissão, angústia e/ou temor
ao colapso (WINNICOTT, 1994, p. 70). O estado de desintegração refere-se a situações em
que a vivência predominante é a de uma ameaça à própria integridade do self. Estamos
fazendo menção a modos de produção psíquica que atravessam qualquer subjetividade. Se
quisermos usar a terminologia winnicottiana, diremos que os modos de subjetivação se
constituem no entrelaçamento de experiências de não-integração, experiências de integração e
experiências de desintegração. O que vai determinar se uma modalidade de subjetivação
predomina em dado momento e em dado contexto, são as variações quanto à intensidade das
experiências constituídas pelos encontros com a ambiência: um ambiente que provê, acolhe,
frustra, submete, invade e priva.
Esses aspectos minoritários ganham relevância, especialmente no trabalho realizado
com os chamados casos fronteiriços, que não se enquadram em qualquer estrutura clínica pré-
definida. O limítrofe costuma ser visto como o anormal, quando a concepção sobre o que é
saúde ou doença, é feita a partir de afirmações hegemônicas a respeito do assunto. Em
Winnicott encontramos essa relativização do que seria ‘um estado de saúde normal’, quando
ele afirma que ter saúde é algo que, por si só, não garante a vivacidade da existência. Na
- 93 -
verdade, para ele, a tentativa de um enquadre compulsório em uma espécie de normalidade
convencional, adaptacionista pode até representar empobrecimento para a vida psíquica.
Os pacientes considerados limítrofes são aqueles cujas sintomatologias, sequer,
permitem situar os motivos do seu sofrimento e essa indefinição costuma levá-los a uma
busca incessante, a uma peregrinação por diversas especialidades, com acúmulo de
diagnósticos incertos, porque são feitos à luz de uma concepção majoritária e isso é
facilmente observado nos chamados sintomas psicossomáticos, ou sofrimento difuso
(VALLA apud LACERDA, 2004, p. 91). Não nos estenderemos sobre esse aspecto, mas é
importante frisar que Winnicott (1994, p.82) foi enfático, ao defender a imanência entre
psique e soma, afirmando que as manifestações psicossomáticas são organizações defensivas
que ocorrem, quando “forças em funcionamento”, ao reagirem a “determinantes poderosos”,
adquirem tal grau de intensidade que provocam “dissociações múltiplas”, ou seja, algo que
pode levar a um estado de pulverização desse psicossoma e que é vivido como ameaça de
desintegração do self , aquilo que se reconhece como “si mesmo”.
Na linha de pensamento que estamos seguindo, cabe-nos dizer que uma experiência de
singularidade que se desterritorializa é uma experiência não-integrada. E isso é muito
diferente de uma experiência que ameaça a desintegração daquilo que é constituído como esse
“si mesmo”. No caso da desintegração, algo impede que haja um mínimo de consistência na
experimentação, como se nada do que foi vivido na experiência pudesse perdurar como
apropriação, tomada de posse, criação pessoal, como um meio para que se possa produzir a
continuidade da existência. Qualquer coisa nessa experiência que se queira chamar de self, é
pulverizada e isso não é desterritorialização. Isso é aniquilamento. Não é pulverização de um
sujeito, é aniquilamento de uma sensação de existir, é ruptura da linha de continuidade da
existência. A busca infindável, mencionada no caso dos sintomas psicossomáticos, ocorre,
porque a visão médica, habitualmente dialética, costuma reproduzir essa cisão entre
psiquismo e corpo. O que estamos dizendo é que, quando o olhar diagnóstico é,
habitualmente, aquele que visa à dimensão majoritária, induz a essa busca incessante.
Vejamos o que Winnicott (1994, p. 82) diz a respeito:
Esse estado de doença no paciente é, ele próprio, uma organização de defesa
com determinantes muito poderosos, e, por esta razão, é muito comum que
médicos bem-intencionados e bem-informados, e até mesmo
excepcionalmente bem-preparados fracassem em seus esforços para curar
pacientes que tenham um transtorno psicossomático.
- 94 -
Foram essas manifestações limítrofes no campo da clínica que receberam dele atenção
especial, fazendo-o perceber que o acolhimento desses pacientes demandava um tipo
específico de cuidado onde cabe mais manejo do que interpretação. São casos em que não se
trata mais de lidar com conflitos entre instâncias, porque são situações psíquicas que se
apresentam dispersas, sem possibilidade de qualquer ancoragem territorializante, a fim de que
se possa “seguir sendo” nômade na vida. Estamos nos referindo a uma produção psíquica que
desliza com possibilidade mínima de consistência, ou seja, algo que parece disparar uma
produção incessante de angústia e que leva à sensação de colapso, citada. Nesse conceito
clínico de colapso, aparece também, a distinção entre uma visão molar e molecular a respeito
das doenças, embora Winnicott não tenha usado esses termos. Ele vai fazer a diferenciação
entre um tipo de colapso que atingiria aqueles que se percebem como ‘pessoas inteiras’ (e
estariam as neuroses) e um outro, ao qual se dedica a explicar, que seria o colapso que ocorre
bem no início da constituição psíquica em decorrência de fracassos na provisão ambiental.
U
tilizei intencionalmente a expressão ‘colapso’ por ser bastante vaga e por
poder significar diversas coisas (...) e isso nos conduz ao significado mais
profundo do termo, uma vez que precisamos utilizar a palavra ‘colapso’ para
descrever o impensável estado de coisas subjacente à organização defensiva.
... na área das psiconeuroses é a ansiedade de castração que jaz por trás das
defesas, nos fenômenos mais psicóticos que estamos examinando é um
colapso do estabelecimento do self unitário. O ego organiza defesas contra o
colapso da organização do ego e é esta a organização ameaçada. Mas o ego
não pode se organizar contra o fracasso ambiental, na medida em que a
dependência é um fato da vida. (id. p. 71)
O que queremos dizer com isso é que a força desses elementos minoritários que se
conjugam de modos diversos é determinante para o entendimento do que se considera,
majoritariamente, como subjetividades limítrofes, para que possamos pensar essa questão de
um outro jeito, ou seja, não mais referida a sujeitos, mas como experiências limítrofes. E isso
Deleuze e Guattari fizeram muito bem, quando trabalharam com a concepção de uma
subjetividade “esquizo”, inevitavelmente fragmentada. Assim, essa noção de limítrofe, em
Deleuze e Guattari, recebe uma outra conotação, porque não é de um sujeito que eles falam,
mas de um fenômeno que ocorre em uma zona limiar, sendo exatamente dessas experiências
de borda que surgem os modos de subjetivação. Esses autores denominam essa posição de
- 95 -
borda como posição anômala, termo que tomam de empréstimo de Canguilhem
36
. Essa
posição anômala é o que acontece em uma zona de vizinhança, sendo “... aquilo que designa o
desigual, o rugoso, a aspereza, a ponta de desterritorializão”. (DELEUZE e GUATTARI,
1997, p.26). O anômalo é uma posição de fronteira, onde o que por ali flui torna-se
indiscernível. O anômalo é fenômeno que possibilita a diferença que não é a das formas, mas
a das variações intensivas. A posição anômala, sendo fenômeno de borda, é aquela em que
não se está dentro nem fora, em que não se sabe mais o que é de um ou de outro e, nesse
sentido, é experiência de desterritorialização.
nos referimos à importância da implicação do terapeuta na experimentação mútua.
Isso requer sensibilidade aguçada para captar nuances, sutilezas quase imperceptíveis que
resvalam “entre” o que é produzido no encontro clínico. Quando alguém adoece e procura
ajuda de um psicoterapeuta, mais do que um diagnóstico, deseja ser acolhido e ser
compreendido naquilo que o faz padecer. Embora essas situações de sofrimento possam ser
compartilhadas, quem sabe mais sobre a intensidade do sofrimento, ou seja, o quanto ‘dói’, é
aquele que sofre
37
, porque essas são experiências pessoais, singulares. Mas a procura pela
ajuda de um outro aponta para uma dimensão coletiva dessa situação. Por isso insistimos na
proposição de um compartilhamento que, especialmente nesses casos de borda, precisa ir
além de uma relação interpessoal, porque é de fluxo e de intensidade que estamos falando.
Melhor dizendo, o terapeuta não vivencia o sofrimento pelo outro e sim, experimenta a
intensidade nos “estados vividos”.
Essa é a dimensão de jogo que caracteriza o trabalho winnicottiano. A noção de
espaço potencial atende a uma clínica concebida desse modo. Quando Winnicott menciona
que é preciso entrar no jogo junto com o paciente, talvez fosse dessa posição anômala que ele
estivesse falando, embora tenha feito isso, em termos absolutamente originais, a respeito do
uso do brincar. Se o espaço potencial é algo que se institui pela operação dinâmica de
realidades em uma ambiência ilusória
38
, o posicionamento clínico já está descentrado. O
36
Deleuze e Guattari se inspiram em Canguilhem, no seu livro “O Normal e o Patológico” (1982) em que faz
uma crítica à postura adaptacionista da medicina, ciência que toma como base, para definir o que é
normalidade, a aferição estatística. Para Canguilhem, quando a normalidade é avaliada conforme dados
estatísticos que demonstram a distribuição normal da população, passa a ser normatividade. Para esses
autores, o anômalo é uma posição dita excepcional, aquilo que foge da norma.
37
Essa noção de sofrimento a qual estamos nos referindo, inclui também um tipo de padecimento muito comum,
hoje em dia; uma queixa referida a um anestesiamento do sentir, ou seja, a vida pode ser bem sucedida em
termos materiais, de saúde física etc. Mas ela parece ter perdido o sentido, e a queixa é para que se volte a
sentir.
38
Lembramos que a palavra ilusão deriva do termo latino ludere, que diz respeito também ao lúdico.
- 96 -
compartilhar já é estar em deriva, pois quando o analista se dispõe a trabalhar por essa via
afetiva, é uma posição anômala que ele ocupa, diante de um centramento clínico que
privilegia a estabilização de um setting previamente concebido como neutro. Quando o
analista se coloca afetivamente no setting tem um desvio da própria posição do analista,
porque o que acontece nesse espaço é experimentação compartilhada.
Quando o analista deixa de ocupar uma posição de poder, o setting é desviante por
si mesmo, porque o que se compartilha não é algo entre dois, mas entre muitos, pois o
território no qual se pisa, diz Winnicott, é habitação de uma “terra de ninguém”. Decorre daí a
posição anômala do clínico que entra em devir quando o encontro se realiza em condições
próximas ao que foi descrito. A posição anômala permite o descentramento da clínica e no
espaço potencial essas experiências desterritorializantes e cartográficas são sustentadas pelo
brincar. Eis aqui, novamente os temas da loucura, da fantasia, do cuidado e do desvio em
sintonia com o setting clínico que não será mais o centro, mas uma zona permeável que se
instaura em meio à política dos encontros. Nessa produção de agenciamentos, se for possível
pensar em uma atitude clínica que assume essa posição anômala, a ênfase não recai sobre a
busca de respostas verdadeiras, mas sobre a experimentação que pode produzir saídas
possíveis, em meio ao que se compartilha; em outras palavras, quando se traçam linhas de
fuga.
A linha de fuga é uma desterritorialização que é diferente de um movimento de
autodestruição. A linha de fuga, aquilo que permite a desorganização de algo que se encontra
rigidamente organizado como reações defensivas. Linha de fuga, vista como zona de
passagem que permite a conjugação de fluxos desejantes, sem que isso represente ameaça ao
que oferece consistência aos modos de subjetivação. Na clínica, o que pode ser vivido como
linha de fuga (uma vez que toda forma é atravessada por linhas de fuga, tudo está em
transformação constante ou em devir) nos ajuda a perceber que, se a linha desorganiza o que
se encontra organizado, talvez seja possível, nessa desorganização, encontrarmos saídas para
a resolução das situações que levam ao sofrimento. Entendemos que as linhas de fuga não são
traçadas previamente e, na clínica, essas linhas serão engendradas pela experiência
compartilhada. Linhas de fuga são os caminhos do devir, pois através das pontas de
desterritorialização, das dissolvências das formas, é possível a expressão dos devires.
Deleuze e Guattari (1997) dedicam um capítulo inteiro em “Mil Platôs” aos devires.
Esse é um conceito importante para a conexão que estamos propondo. Sobre o uso que a
criança faz do brincar, o conceito de devir desperta o nosso interesse para dar sustentação a
- 97 -
proposta de pensar o brincar nessa dimensão experimental que contempla transversalidades
entre o que é molar e molecular. O conceito de devir deriva da idéia filosófica mais
tradicional que o entende como “vir a ser”, que, nesse caso, estaria ligado mais a uma
concepção evolutiva. Já, na concepção do pensamento rizomático, essa idéia de devir é
subvertida por esses pensadores que partem das idéias espinosistas e nietzscheanas para
criarem o conceito de devir conforme eles o entendem e o próprio conceito de devir, ao
ganhar consistência, surge como devir conceitual. E o que são os devires?
... os devires são geografias, são orientações, direções, entradas e saídas (...)
devir é jamais imitar, nem fazer como, nem se ajustar a um modelo, seja ele
de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual
se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam (...) os
devires não são fenômenos de imitação, mas de dupla captura, de evolução
não paralela , núpcias entre dois reinos. (DELEUZE E PARNET, 1998,
p.10)
Devir, eles vão dizer, é a extração de uma partícula qualquer, um termo minoritário de
uma variável majoritária. Devir não é transformação mas também não é algo que ocorre
imaginariamente. A experiência do devir é real. Uma realidade vivida no plano das relações
que, por sua vez, não são relações definidas entre um e outro, porque é um fenômeno que
provoca a dissolvência das formas macro. Esse percurso do devir que acontece em zona de
borda, de vizinhança é, segundo os autores, da ordem do contágio, que é o que provoca a
dissolução das formas estabelecidas, conforme desenvolvido anteriormente.
Devir é invenção. Invenção de quê? De modos de vida e esses modos podem ser
inventados em meio ao que se experimenta e nunca a partir daquilo que é imaginado. O plano
do devir é aquele que corre feito um rio entre imaginário e real - planos distintos, mas
inseparáveis. No nosso entendimento, isso se aproxima da noção que Winnicott construiu para
descrever o espaço potencial, conceito trabalhado no capítulo anterior. No brincar ocorrem
devires, uma vez que os devires são acontecimentos que surgem das experimentações.
Devires são acontecimentos, são o conteúdo do desejo, são experiências-limite do
desejo. Por serem experimentações que percorrem as bordas, não estão nem em um plano e
nem em outro, percorrem e alinhavam todo um plano de experimentação, fazem parte do
clima que se estabelece naquilo que conhecemos como setting. O conceito de devir permite
que entendamos que é possível sair do campo onde algo a ser analisado e sempre e
ingressar no plano em que sempre existe algo passível de ser inventado. O que tem que ser
- 98 -
inventado? Novos modos de existência, mas, para isso, é preciso que haja, insistimos,
disponibilidade sensível do analista. Os devires são gatilhos, são elementos disparadores e é
função do terapeuta oferecer suporte, ou seja, cuidar para que esses desvios produzidos a
partir de devires, consistam como invenções, criações de novos modos de viver. E isso faz do
devir um conceito profundamente clínico.
Processos de devir, que são processos oportunizáveis, o acionados a
gatilhos. O clínico tem que ter sensibilidade para os gatilhos do devir. Isso é
o que caracteriza a atividade clínica-política que se explica pela capacidade
de escuta dos gatilhos do devir, isso que dispara processos de criação,
processos de heterogênese, de criação da diferença ou processos de
diferenciação, gatilhos do devir que são de uma estranha natureza, estando
estranhamente localizados, entendendo o devir como o processo de
desmanchamento das formas... (PASSOS, 2006)
Quando falamos de devir-criança, estamos nos referindo à possibilidade de se
experimentarem estados afetivos, uma intensidade afetiva que nos remete à infância, mas não
como resgate de uma história infantil. Deleuze e Guattari mencionam que não se trata de
lembranças de infância mas da criação de blocos de infância. São forças que se compõem pela
experimentação e que extraem das relações estabelecidas as partículas produtoras de um
devir-criança. No devir-criança não se trata de um adulto que se transforma em criança, mas a
pergunta seria: o que se passa em um encontro que surge como devir-criança?
Devir-criança ou devir-animal, qualquer devir são movimentos de desterritorialização.
É a possibilidade de experimentar estados afetivos que nos remetem a estados “crianceiros”
ou a uma animalidade, sem que isso signifique se transformar em criança ou em animal.
Ninguém escolhe devir isso ou aquilo. O devir é que nos escolhe. Devir não é a metamorfose
que transforma a lagarta em borboleta, mas é a percepção fugaz que alguém pode ter, por
exemplo, de que a vida, aquilo que se vivencia, se arrasta como uma lagarta ou, ao contrário,
perceber-se tendo uma experiência, devir-animal de borboleta, um borboletear aqui ou ali. No
filme intitulado “Três Irmãs”
39
, um personagem fornece uma ilustração interessante de uma
experiência devir-animal, ao relatar a relação de animosidade que trava com a irmã: -“com ela
eu sou inseto, eu a estou espetando o tempo todo em que estamos juntas”.
Se o que entendemos por subjetividade diz respeito ao múltiplo, o efeito obtido desse
experimentar outras intensidades afetivas é resposta em bloco. O que é criado no espaço
39
Trata-se de um filme cujo título original é “La Büche”, produzido na França, em 1999, dirigido por Daniele
Thompson conforme informação disponível no site http://webcine.com.br, acessado em 24 de maio de 2007.
- 99 -
“entre” são conjugações em que um não subsume o outro; por isso que é dito que os devires
acontecem em bloco, porque o devir acontece em área indiscernível, descrita como zona de
forças em coexistência.
Na leitura que estamos fazendo é necessário que o analista se deixe levar pelos devires
que surgem, provavelmente pelo clima instituído e que lhe propicia embarcar numa viagem.
Uma trajetória que, não sendo a sua, passa a ser a de todos que por ela são afetados, ou seja,
por aquilo que o convoca na relação que ali se constitui. É preciso que o terapeuta se deixe
contagiar pela experiência empreendida pelo brincar, poder extrair do brincar variáveis
menores, acontecimentos que deflagram devires.
2. 1 – Uma evolução
40
chamada involução.
Quando Winnicott diz que a psicoterapia se na superposição de duas áreas, a do
paciente e a do terapeuta, entendemos essa assertiva como composição de forças que se
manifestam nessa zona fronteiriça que ele chama de espaço potencial, onde o indiscernível
comparece. Uma área de experimentação lúdica, plano propício aos devires. Dando
continuidade à nossa exploração do pensamento winnicottiano, vamos apresentar uma
situação clínica descrita por ele mesmo e que pretendemos examinar à luz dessa visão que
privilegia o brincar como processo de experimentação. Para fazer isso, recorremos a um
exemplo retirado da própria experiência de Winnicott a fim de demonstrar que aquilo que ele
desenvolveu na clínica, a respeito do brincar, pode ser compreendido como uma operação nos
moldes de uma produção de sentido que estaria remetida ao nível molecular, sem estar restrito
a esse olhar.
Nesse exemplo, percebemos como os devires surgem nas relações estabelecidas no
setting clínico. Do plano molar, podemos extrair partículas em movimento que apontam para
uma outra dimensão da escuta e da intervenção. Situações que podem ser captadas se o
terapeuta entra no jogo junto com a criança, experimentando estados afetivos que surgem do
encontro e deixando-se afetar pelas intensidades que surgem. Ser sensível àquilo que se passa
na experimentação e que se compõe como devir.
40
O termo essendo usado por derivação de sentido: “qualquer série de movimentos desenvolvidos contínua
e regularmente, ger. completando um ciclo harmonioso.” (cf.). Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua
Portuguesa (Serial:DHS-21564589):
- 100 -
A partir de um exemplo descrito por esse autor, queremos descrever como esse seu
“olhar colorido” um devir-pintor colorista - capta nuances no brincar de uma criança. Um
olhar especial que percebe sutilezas que estão para além das interpretações convencionais,
para além da leitura simbólica do conteúdo da brincadeira. Embora o próprio Winnicott não
abra mão desse tipo de leitura interpretativa, como componente auxiliar do seu trabalho – uma
interpretação que guarda para si - fica muito claro que o seu interesse investigativo percorre,
também, outros rumos, na leitura que estamos fazendo, indo do plano molar ao plano
molecular.
Sucintamente, vejamos como ele descreve uma experiência clínica observada,
enquanto entrevistava uma mãe em presença de uma criança de dois anos e meio de idade e
que apresentava dificuldades relativas à fala. Em seu relato, o autor destaca toda uma
dinâmica própria presente na criança que procurava explorar aquele espaço clínico a fim de
situar-se e participar, ao seu modo, da experiência compartilhada, aquilo que fluía entre
aqueles três personagens.
Winnicott conta que a criança, ao chegar, pergunta logo pelos brinquedos sendo essa a
sua única comunicação verbal: ‘onde estão os brinquedos?Depois passou a juntar peças de
um trenzinho e fazia, também, com um cordão, uma espécie de ‘ligação’ na perna de sua mãe,
estabelecendo, em ato, uma conexão com a mesma através de uma “perna-tomada.” Como
não é o caso de descrever o caso em sua totalidade
41
, eis aqui os fragmentos que temos
interesse em realçar (cf. grifos nossos) em três momentos do relato da experiência:
Edmund colocou algumas partes de um trenzinho sobre a mesa e começou a
dispô-las, fazendo-as juntar-se e relacionar-se. Ele estava a meio metro de
distância de sua mãe. Logo subiu a seu colo e teve seu pequenino momento
de bebê. (...).
Depois o menino desceu espontaneamente e voltou a brincar na mesa. ...
[novamente] deixou de lado os brinquedos com toda a naturalidade, subiu no
divã, rastejou como um animal na direção da mãe e aninhou-se em seu
colo. A mãe reagiu [mais uma vez] com naturalidade e sem exagero. A
criança ficou assim uns três minutos, depois se desaninhou e retornou aos
brinquedos.
(...) Depois de agarrar a mãe mais uma vez e retornar aos brinquedos, estava
pronto para ir. [nesse movimento de exploração espacial, o menino]
comunicara existir nele o movimento de maré montante e maré vazante,
a afastar-se da dependência e a ela retornando.(WINNICOTT , 1975, p.64).
41
A descrição completa do caso encontra-se no capítulo IV do livro “O brincar e a realidade”. (1975, pp. 63-66).
- 101 -
É, portanto, no próprio Winnicott que encontramos a ilustração desse jeito diferente de
fazer clínica e lidar com o brincar. E o que desperta a nossa atenção é o ‘movimento de maré
montante e maré vazante’ que ele observa no menino quando oscila entre a mãe e os
brinquedos num movimento em que está demarcando territórios existenciais, constituindo
uma cartografia naquele espaço em que habita, provisoriamente, uma habitação nomádica,
quem sabe, para a determinação momentânea de uma referência, conforme dizem Deleuze e
Guattari (1997, p. 117) a respeito do ritornelo: “nas linhas motoras, gestuais, sonoras que
marcam o percurso costumeiro de uma criança, enxertam-se ou se põem a germinar ‘linhas de
errância’, com volteios, nós, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes”
Vista desse modo, a experiência que estamos chamando de evolutiva não é a de um
desenvolvimento que vai de um ponto a outro ou de uma regressão a um ponto inicial, pois a
conotação que queremos dar a esse movimento é a mesma que caracteriza os passos de um
dançarino. Assim, no exemplo que tomamos emprestado de Winnicott para fazer uma leitura
pessoal ao enxergamos, mais uma vez, ‘por trás das órbitas’, o que vemos através do nosso
olhar, também colorido, é uma espécie de dança que o menino estabelece, evoluindo de um
espaço para outro.
O menino evolui tal como um partner dança em torno da bailarina e que, por sua vez,
entra na dança com o seu bailar. Uma imagem poética que nos ocorre, por ser bem familiar à
nossa cultura, é a da evolução presente nos movimentos do bailado de um mestre-sala com a
sua porta-bandeira. Um mestre-sala-menino em torno de sua porta-bandeira-mãe, onde o
realce não está nem em um e nem em outro, mas na dança, no ritmo, nos fluxos, nos devires
percorridos durante a experiência compartilhada. Os passos, embora possam ser ensaiados,
são indeterminados. Uma imagem que nos serve para falarmos da função do analista na
relação instituída entre ele e o paciente. um preparo técnico necessário, para o exercício
desse tipo de atividade? Sim, mas ninguém sabe de antemão os passos que surgirão naquela
dança, não se sabe previamente o que ocorrerá naquele encontro diferencial de forças, ou seja,
a la Espinosa, podemos dizer que são forças que podem se compor como elementos
produtores de diferenças.
Consideramos importante ressaltar essa passagem do relato winnicottiano, porque ela
demonstra como o espaço potencial se constitui no setting clínico, o que poderia ser em outro
lugar, também sem a presença de alguém, como diz o próprio psicanalista. Assim,
examinamos esse fragmento à luz das idéias que estamos aqui apresentando e com isso dando
- 102 -
a nossa conotação pessoal, ao mesmo tempo em que destacamos esses pontos importantes
para se entender o que é o brincar na concepção desse autor.
E embora ele faça, no relato do seu exemplo, referência a elementos simbólicos
conotativos de união-separação na experiência empreendida entre o menino e sua mãe, é
necessário observar que Winnicott registra o movimento regressivo da criança para além de
uma suposta defesa sintomática que suprime a sua fala. O que se delineia nesse uso que a
criança faz do brincar é um ritmo que lembra o movimento das marés pela seguinte
composição: experimentar um “pequenino momento de bebê” aninhando-se no colo materno,
um devir-criança da própria criança, compondo-se com um devir animal ao “rastejar-se como
um animal na direção da mãe”, relações agenciadas com um devir-criança ao se afastar da
mãe e retornar aos brinquedos. O brincar, desse modo, configura-se como um ato de
composição da experiência em fluxo do viver. O brincar como experimentação de mundos
possíveis na variação entre ser bebê, animal e criança ao mesmo tempo.
O que desejamos destacar nesse relato feito pelo psicanalista é que a atenção do seu
olhar também em movimento de maré montante e maré vazante, uma vez que a sua atenção
oscilava entre a conversa estabelecida com a mãe do menino e a dinâmica empreendida por
esse esteve voltada para os devires agenciados pela experimentação da criança em
movimentos de territorialização e desterritorialização, nos instantes em que traçava aquela
cartografia. Assim é o brincar winnicottiano, um brincar que deflagra devires.
Retomando o conceito de devir, para Deleuze e Guattari, o devir nunca é evolução por
filiação, ou seja saída de um ponto para chegada a outro, não havendo igualmente a idéia de
uma regressão de um estado indiferenciado para chegada a um outro mais organizado.
Considerando os processos de subjetivação que ocorrem no plano molecular e todo devir é
molecular nesse registro o que ocorre não é regressão. Para esses autores trata-se de um
processo de “involução criadora”:
Preferimos chamar de “involução” essa forma de evolução que se faz entre
heterogêneos, sobretudo com a condição de que não se confunda a involução
com uma regressão. O devir é involutivo, a involução é criadora. Regredir é
em direção ao menos diferenciado. Mas involuir é formar um bloco que
corre seguindo sua própria linha, “entre” os termos postos em jogo, e sob as
relações assinaláveis. (DELEUZE E GUATTARI, 1997, p. 19)
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Para eles, a involução é algo que se faz entre heterogêneos, ou seja, produz diferença
ressaltando que não se trata de desenvolvimento em que se parte de um ponto indiferenciado a
um ponto mais diferenciado ou o contrário, que corresponderia a um movimento regressivo.
No caso aqui, a evolução não corresponde a nada, não havendo correspondência entre termos,
sendo uma involução. Movimento que nos faz lembrar aquilo que Winnicott apresenta como
estado de não-integração ao qual se remetem os processos de criação. Para concluir esse
segmento, levantamos uma questão: no caso de Edmund uma experiência que podemos
chamar de regressiva? Provavelmente sim, mas também “outras possibilidades
contemporâneas” (ibid, p. 65) que não são lidas como regressões, mas como involuções
criadoras, por exemplo, no momento em que o menino rasteja como um animal, devir-animal,
que são devires que “... testemunham ‘uma inumanidade vivida imediatamente no corpo
enquanto tal,’ núpcias antinatureza ‘fora do corpo programado’. Realidade do devir-animal,
sem que, na realidade, nos tornemos animal.” (ibid, grifos dos autores)
3 - O jogo do rabisco, uma cartografia.
Na linha de trabalho adotada para o exercício da sua atividade clínica, Winnicott
reinventou procedimentos. Não foi ele o pioneiro na utilização de jogos e brinquedos como
instrumento auxiliar no atendimento de crianças, devendo-se à Melanie Klein esse tipo de
aprendizado. Porém, ao usar o que aprendeu, ele o fez de modo inteiramente pessoal, criando
instrumentos e utilizando-os de um jeito livre. Procedimentos que eram inventados conforme
as circunstâncias dos atendimentos, sem a preocupação de estar infringindo regras pré-
estabelecidas. Winnicott tinha o hábito de fazer dobraduras com papel e oferecê-las às
crianças que as levavam, ao final da consulta, se desejassem. Não havia, da parte dele,
preocupação de que isso pudesse representar transgressão a qualquer procedimento técnico.
O próprio instrumental teórico clínico passava por reinvenções. É como se ele tivesse
ao seu alcance uma caixa com “ferramentas”, que iam sendo ajustadas conforme a
necessidade do uso. Foi pela experimentação clínica e pesquisa teórica que o autor chegou a
surpreendentes formulações, como os mencionados conceitos de fenômeno transicional e
espaço potencial. Conceitos que usava como uma espécie de bússola, não para desvendar
sintomas ocultos, mas para fazer com que o paciente pudesse ser o feitor de suas próprias
trilhas, usando o analista e seus métodos para fazer as suas descobertas.
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Para ele, a atividade interpretativa não era o aspecto mais importante. Na realidade, o
seu interesse se concentrava na possibilidade de fornecer um setting flexível, adaptável às
necessidades de cada paciente. Ele afirmava que as muitas variedades de psicoterapia não
deveriam depender das diferentes visões dos terapeutas, mas, fundamentalmente, das
necessidades do paciente e dizia também que só levava adiante um tratamento psicanalítico ao
perceber que era aquilo que o paciente precisava, senão fazia apenas o que era necessário ser
feito. Também, a partir do material que tinha no consultório e observação das reações das
crianças, acabou desenvolvendo modos de brincar, que funcionavam como instrumentos
terapêuticos no trabalho empreendido com crianças. O jogo da espátula e o do rabisco foram
instrumentos inventados por ele que facilitavam a sua interação com as crianças,
possibilitando o estabelecimento do vínculo transferencial.
3.1 – o jogo da espátula
O jogo da espátula surgiu a partir das observações feitas no atendimento de crianças
que estavam na faixa etária entre cinco e treze meses e que se interessavam por uma espátula
colocada à beira da mesa, ao seu alcance. Nesse procedimento, havia um comportamento
típico e recorrente em várias crianças numa seqüência de três estágios. O autor fez uma
correlação do afastamento desses estágios com a hipótese de que algo não ia bem no
desenvolvimento da criança. Funcionava como instrumento de avaliação e forneceu
informações para que o Winnicott (2000, p. 112) desenvolvesse idéias para a sua teoria do
brincar e do objeto transicional, entre outras formulações. Isso foi bem no início de sua
carreira e os pormenores desse trabalho podem ser verificados em um artigo escrito, a
respeito, em 1941.
Um aspecto interessante nessa pesquisa foi perceber que as crianças demonstravam,
em determinado momento, certa hesitação para dar continuidade à atividade que estavam
desenvolvendo, ou seja, segurar e deixar cair a espátula que lhe era oferecida. Esse pormenor
foi entendido como a possibilidade de cada criança empreender um ritmo próprio até que se
sentisse em um ambiente confiável. A partir da aceitação ambiental para os seus gestos, a
criança prosseguia. Essa observação acabou por tornar-se um valioso instrumento clínico,
porque Winnicott percebeu que esse tipo de hesitação ocorria também com pacientes adultos,
especialmente no início do processo terapêutico. Isso era visto como movimento de pausa, um
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tempo de espera que deveria ser respeitado pelo clínico até que o paciente retomasse o fluxo
comunicativo. Essa perspectiva ampliou a compreensão do manejo da resistência na clínica
que em vez de ser vista, invariavelmente, como uma reação defensiva ao tratamento, passou a
ser considerada, conforme a situação experimentada, como a espera de um tempo para a
aquisição da confiança no analista e também como manifestação de um ritmo, que permite ao
paciente, num tempo que é seu encontrar, criar as suas interpretações.
3.2 – o jogo do rabisco
Quanto ao jogo do rabisco, esse foi um dispositivo criado para ajudar nas “consultas
terapêuticas”. Uma modalidade de atendimento muito usada, por ele, em instituições
hospitalares para atender a uma clientela numerosa que, nem sempre, apresentava uma
demanda específica para tratamento psicoterápico. Winnicott (1994, p. 230) usava esse nome
para diferenciá-lo de outras modalidades de tratamento, fosse psicoterapia ou psicanálise. Era
a possibilidade de fornecer algum tipo de ajuda efetiva, em um número limitado de encontros.
Esses casos, geralmente atendidos em instituições ou encaminhados por outros colegas para
uma consulta suplementar, diziam respeito a uma clientela formada primordialmente por
crianças, cujos pais buscavam ajuda para aliviar o sofrimento dos pequenos. Funcionava um
pouco como diagnóstico, porém não era um trabalho caracterizado como uma anamnese
clássica. Eram consultas que se apoiavam na idéia do jogo sem regras, uma atividade lúdica
que tinha pronta aceitação pela grande maioria das crianças atendidas. Surgiu, assim, o jogo
do rabisco.
Nesse jogo, muito simples, ele convidava a criança a desenhar junto com ele. Um
complementava o rabisco feito pelo outro, favorecendo a utilização de uma linguagem
acessível à expressão da criança. Um jogo de compartilhamento em que, naturalmente,
importava mais o ato de brincar e desenhar, do que decifrar o seu significado. Embora os
desenhos pudessem trazer informações a respeito dos sintomas, o foco era posto no
estabelecimento de uma relação de confiança, sem a preocupação do analista esconder-se
numa suposta neutralidade.
Winnicott resistiu, durante muito tempo, aos apelos para publicar dados sobre esse
instrumento, receando que alguém pudesse sistematizar esse jogo como se fosse um teste
projetivo, atitude que poderia desvirtuar a concepção que tinha dessa ferramenta. O jogo dos
- 106 -
rabiscos é um bom exemplo de como o espaço compartilhado entre o paciente e o analista
tinha relevância para Winnicott, pois ele desenhava junto com a criança, colocando-se ao seu
alcance, estabelecendo, realmente, uma parceria.
Ao analisarmos esse instrumento, vemos que o autor fazia uso do jogo do rabisco
como uma criança usa um objeto transicional. Nesse jogo, não há imposições de qualquer
natureza. O terapeuta convida a criança a jogar e se ela aceita o convite, há o estabelecimento
de uma situação em que o terapeuta é parte desse jogo, pois ele sai de uma posição de mero
observador e brinca efetivamente com a criança. O aspecto mais importante é o uso que a
criança pode fazer daquela experiência e o que se instaura é, então, uma zona de
indiscernibilidade que, na sua nomenclatura, é a instituição do espaço potencial. Nessa
vivência, é possível extrair das formas, termos, elementos minoritários e ambos embarcam em
uma experiência em que o traço de um se confunde com o do outro; o traço de um deflagra os
modos de expressão de outro. É um colocar-se em movimento. A partir dos movimentos
instituídos, é possível perguntar: o que se passa, o que se produz naquele encontro? A
produção vai se sucedendo e nela podem ser introduzidas variações, de modo que é freqüente
a criança introduzir inovações no “métodoque não tem um objetivo revelador, mas visa
facilitar o brincar e a expressão criativa.
O jogo do rabisco tem uma função catalisadora da expressão infantil. Nessa atividade
lúdica, o tempo, o ritmo são fornecidos pela criança, cabendo ao terapeuta acompanhá-los.
Embora o conteúdo do material que vai sendo produzido seja passível de revelar a
problemática que traz a criança à consulta, a interpretação não é feita. O mais importante é a
possibilidade da criança poder expressar, seja pela atividade ou até por meio de palavras, algo
que a atemoriza, algo que ainda não encontrou um lugar para ser expresso. É como se a
criança estivesse sendo encorajada em sua potência para exprimir algo que não era possível
até então. O analista tem a função não de conduzir, mas de sustentar a experimentação e o que
importa nesse jogo, conforme afirma Lins (1989, p.54), “não é tanto o sentido do conflito
expresso nos desenhos, ou o que estes simbolizam, mas a capacidade de instauração de um
espaço de experiência” porque aquilo que o jogo do rabisco põe em evidência é que “o que é
terapêutico não é a interpretação, mas a experiência”, afirmação que a faz deduzir que esse é
um método que “repousa sobre a arte de não-interpretar.”
Em suma, é um jogo em que a regra é não ter regras; é uma atividade lúdica que
precisa ser reinventada pelo próprio terapeuta que a usa; é um colocar-se em movimento; é
um modo de se comunicar, de promover um encontro com a criança. Um procedimento que
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promove a instauração de um espaço potencial, uma abertura para que a criança possa se
expressar de modo espontâneo, desde que o terapeuta faça o mesmo. Aquilo que é desenhado
refere-se a fragmentos retirados da realidade compartilhada. A avaliação possível é verificar
se a criança mantém preservada a sua capacidade para brincar que, por si só, é potência de
vida. Essa atividade convoca o analista a compartilhar a experiência num mesmo plano e isso
quer dizer que convoca o analista em seu devir-criança.
O jogo do rabisco não é um espaço neutro, assim o entendemos. É um espaço de
contágio onde desenhos e associações se misturam. O que um desenha pode suscitar algo no
outro. Grolnick (1993, p.134) também descreve esse procedimento como contágio e considera
que é possível extrair algo vantajoso desse tipo de experiência:
O rabisco, jogo mútuo bilateral, encontra-se numa esfera do discurso
diversa da técnica de livre associação. O rabisco verbal, a interação de
palavras e imagens do terapeuta para a construção de um significado entre
elas, possui, de imediato, sabor impuro, isto é, as reações do paciente são
diretamente contaminadas pelas associações do terapeuta . Que espécie de
ciência é esta? Resposta difícil de dar se o teórico, ou o leitor, possuem
uma visão rigorosa da ciência, a inovação, então, pode não satisfazer.
Entendemos que paciente e terapeuta entram nesse jogo em estado de parceria, mas é
preciso dizer, também, que as posições que ocupam são assimétricas. Naturalmente, o fato de
ser uma experiência de contágio pressupõe uma ética que podemos denominar como ética do
cuidado. Embora desenhem juntos, as posições o diferentes, porque os desenhos do analista,
depois de usados pela criança, são, naturalmente, descartados.
No jogo do rabisco, às vezes, o trabalho se desdobra em um tipo de produção feita
somente pela criança. Ou seja, ela faz o rabisco e decide complementá-lo com um desenho
próprio, gesto que demonstra a força da atividade como uma criação inteiramente pessoal.
Outras vezes, a criança algo no rabisco, sem sentir a necessidade de complementá-lo. Os
desenhos podem ser colocados lado a lado sobre a mesa ou até mesmo no chão formando uma
espécie de exposição. Às vezes, a criança retoma um desenho anterior e nele insere um
detalhe. Outras vezes, usa a produção para contar histórias, ou para desenhar aquilo que
costuma sonhar, rabisca detalhes do seu cotidiano, elementos, pessoas, qualquer coisa que
faça parte de sua vida. Seus problemas e sintomas surgem também dos rabiscos. Essa
atividade pode ser entendida como algo que propicia expressar, pela experimentação, algo que
a atemoriza ou a perturba. A atividade costuma despertar variações afetivas. As eventuais
- 108 -
interpretações do analista não são comunicadas à criança, em termos de algo oculto a ser
revelado. Mas, comentários costumam ser feitos sobre o que é produzido e isso permite que a
criança se refira a qualquer desses aspectos, em ambiente sustentável. Winnicott considera
que o essencial, nessa experiência, é explorar junto com a criança a sua capacidade para
descobrir o que já havia nela mesma.
Jogar o jogo do rabisco é favorecer a criação de cartografias e temos, então, um novo
agenciamento entre o uso clínico do jogo do rabisco e a proposta rizomática de Deleuze e
Guattari. O jogo do rabisco, visto como experiência cartográfica, é um brincar que coloca em
circulação a experiência do devir, do desdobramento de outros modos de existência. O que é
cartografar nos termos de uma operação clínica? Quem nos a pista é Rolnik (2006, p.23),
que define cartografia assim:
Para os geógrafos, a cartografia – diferentemente do mapa: representação de
um todo estático – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo que os
movimentos de transformação de paisagem.
Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse
caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo em que o desmanchamento de
certos mundos - sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que
se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os
universos vigentes tornaram-se obsoletos.
Se o termo cartografia é usado para percorrer paisagens psicossociais, podemos
afirmar que os traçados compartilhados no brincar do jogo do rabisco são traçados
cartográficos. Esse instrumento, como foi proposto por Winnicott, favorece, exatamente, a
produção de trajetórias intensivas que “dão língua para os afetos” (ibid). Sendo vivência
compartilhada, entendemos que o cartógrafo não se reduz ao analista e nem à criança, porque
ele surge na experiência, mas ainda que não seja essa a proposta do analista, é possível
observar a criança em seus movimentos cartográficos. Qualquer jogo, mesmo o jogo do
rabisco, pode ser jogado burocraticamente, daí os receios de Winnicott. Por isso, o aspecto
mágico na idéia winnicottiana é que essa dimensão de jogo sem regras em que as mesmas
são fabricadas a cada passo, pela experimentação é extensiva a todas as modalidades do
brincar. Embora o próprio autor tenha situado o jogo do rabisco como instrumento de auxílio
das “consultas terapêuticas”, é possível perceber, na descrição de seus casos clínicos, essa
dimensão cartográfica que aparece no modo como brinca ou observa o brincar infantil,
- 109 -
mesmo quando deixa de fazer uso do jogo do rabisco. O caso descrito do menino Edmund é
uma demonstração desse uso que a criança faz do brincar.
Ao escrever sobre a expressão e a linguagem infantil, Deleuze refere-se a uma
cartografia que é traçada pela criança na exploração dinâmica que faz do mundo que a cerca.
Também não lhe parece que o imaginário e o real sejam instâncias separadas, pois desenvolve
a idéia de que fantasia e realidade são trajetórias que se superpõem, traçando o que ele chama
de mapas intercambiantes. Ele nos apresenta uma criança cartógrafa, capaz de trilhar
percursos criativos e diferenciados, sem que, necessariamente, esteja fadada a reproduzir
passivamente os modelos que a ela são impostos. Essa concepção de criança cartógrafa,
também, está presente no seu pensamento quando, em “Crítica e Clínica(DELEUZE, 1997,
p. 71), escreve a respeito do papel dos genitores nos agenciamentos engendrados com os
filhos. Deleuze defende que os pais possam assumir uma posição made. Ou seja, que
possam agir como catalisadores dos fluxos traçados pelas crianças, sem que estejam fixados,
apenas, como referenciais representativos de uma origem e de uma finalidade a ser atingida.
Em outros termos, pais como produtores de vida e não como fazedores de cópias, conforme
diz Deleuze (ibid, p.74):
Os próprios pais são um meio que a criança percorre com suas qualidades e
potências e cujo mapa ela traça. Eles tomam a forma pessoal e parental
como representantes de um meio num outro meio. Mas é errôneo fazer como
se a criança, primeiro, estivesse limitada a seus pais e só chegasse aos meios
depois. O pai e a mãe não são as coordenadas de tudo o que o inconsciente
investe. Não existe momento algum em que a criança não esteja
mergulhada num meio atual que ela percorre, em que os pais como pessoas
desempenhem a função de abridores ou fechadores de portas, guardas de
limiares, conectores ou conectores de zonas. Os pais estão sempre em
posição num mundo que não deriva deles. Mesmo no caso do bebê os pais se
definem em relação a um continente-cama como agentes nos percursos da
criança.
Esse deslizamento tão característico das crianças é comumente potencializado pela
atividade lúdica que fornece o suporte necessário para a exploração de novos espaços e a
constituição de novos territórios existenciais ou, se quisermos usar a linguagem deleuziana,
pelo traçado de cartografias. Na clínica, essa perspectiva do brincar como operador de novas
conquistas existenciais ganha importância sobre a conotação interpretativa atribuída à função
do brincar. Recorremos a dois outros fragmentos clínicos, a fim de elucidarmos aquilo que
- 110 -
relevo a essa função do brincar como ferramenta que facilita o deslizamento de fluxos e
permite novos traçados cartográficos.
Um analista brincalhão
O primeiro deles extraímos do próprio texto winnicottiano que relata a intervenção
feita por ele a respeito do uso dos brinquedos por uma criança de cinco anos, ocasião em que,
ao brincar com dois bichinhos de pelúcia, ela os deitou num leito construído no espaço
potencial instituído durante a sessão e espalhou outros brinquedos sobre a cabeça daqueles
que estavam sendo cuidados como seus filhos. Trata-se de uma experiência clínica que
transcrevemos parcialmente
42
, na medida necessária para a compreensão do que estamos aqui
defendendo. Assim, ao interagir com a criança na cena lúdica, Winnicott (1975, p. 67-68)
comenta:
... Na brincadeira que Diana e eu fizemos juntos, um brincar sem terapêutica
em si, pude sentir-me livre para ser brincalhão. As crianças brincam com
mais facilidade quando outra pessoa pode e está livre para ser brincalhona.
(...)
Durante a brincadeira, Diana decidiu que o ursinho e o cordeirinho eram
seus filhos (...). Depois, colocou-os dormindo juntos, pacificamente, sobre o
leito improvisado. Afastou-se, então e apanhou uma porção de brinquedos
num balde e em algumas caixas. Sobre o assoalho, em torno da parte de
cima da cama, dispôs os brinquedos e com eles brincou; o brincar era
ordenado e havia diversos temas diferentes, os quais desenvolvia, mantendo
cada um deles separado do outro. Intervim, novamente, com uma idéia
minha. Disse: Oh, olhe só! Você está espalhando no chão, em volta das
cabeças dos bebês, os sonhos que eles estão tendo, enquanto dormem(...) a
idéia intrigou-a, ela a aceitou e continuou a desenvolver os diversos temas,
como se sonhasse para os bebês os sonhos deles .
Quando o psicanalista diz “que pode se sentir livre para ser brincalhão, (...) um brincar
sem terapêutica em si”, refere-se a um brincar, que está para além de um objetivo terapêutico
a ser atingido. O que desejamos ressaltar é o modo como o terapeuta interveio, entrando no
jogo com a criança, propondo, até mesmo leituras pessoais, estando, porém, totalmente
inserido no jogo, tão brincante quanto a criança e de tal forma que a interferência produzida
não soa como intrusão. Um exemplo que flagra Winnicott em seu devir-criança em uma
42
A descrição do caso em sua íntegra encontra-se no capítulo III do livro “O Brincar e a Realidade” ,
denominado O brincar – uma exposição teórica (WINNICOTT, 1975, p. 66 a 70).
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atitude “brincalhona” e que permitiu que um agenciamento infantil entre ambos se instaurasse
como espaço potencial, fornecendo possibilidade para a produção de desvios, um tipo de
intervenção que abre caminhos e não aprisiona em códigos.
Uma criança cartógrafa
o segundo exemplo trata-se de um caso acompanhado em supervisão. Uma criança
de oito anos iniciou um tratamento psicoterápico como suporte à recuperação física de um
grave atropelamento que sofreu, fazendo com que fosse submetida a várias cirurgias em uma
das pernas. Esse fato traumatizante fez com que sua mãe e todos que a cercavam redobrassem
os cuidados a ela dirigidos e que eram, evidentemente, necessários, mas, de certa forma,
impediam a retomada do cotidiano de sua vida. Percebia-se que a criança era mantida em uma
posição de fragilidade, fato que parecia estar retirando de si a confiança devida para acreditar
que podia voltar a se movimentar fisicamente a exercer as atividades que fazia anteriormente
ao acidente. Esse cuidado especial, também, era exercido pela escola onde os professores
acabavam contribuindo para a manutenção de uma atitude superprotetora. Em uma das
sessões, o menino contou um episódio vivido na escola que o deixou triste e alegre ao mesmo
tempo. Triste, porque não poderia participar do campeonato dos jogos envolvendo atividade
física promovidos pela escola, dos quais costumava participar habitualmente, e um pouco
alegre, porque a professora havia arranjado um modo dele participar, segurando o cartaz que
anunciava as partidas, uma espécie de prêmio de consolação. Nessa ocasião, durante as
sessões clínicas, sua terapeuta propôs o brincar com jogos lúdicos que acabou configurando-
se como uma espécie de campeonato e que provocou uma reação inusitada da parte do
menino, pois, quando vencia aquele ‘campeonato’, comemorava a sua vitória, atirando-se no
chão como fazem, por exemplo, alguns atletas que simulam um mergulho em águas
imaginárias, algo impensável para quem apresenta restrições à sua movimentação física. A
princípio, sua terapeuta levou um susto por recear que ele pudesse se machucar, quando
“mergulhava” na piscina virtual em que se transformava o piso do consultório, mas,
felizmente, pode conter o seu ímpeto para impedi-lo de agir assim, mantendo-se igualmente
cuidadosa, mas permitindo a sua livre manifestação sem que qualquer interpretação fosse
emitida para explicar o seu gesto.
Trabalhando juntas no caso supervisionado, foi possível perceber que o gesto do
menino parecia ser uma atitude de retomada da confiança que havia perdido e que, com a
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ajuda sensível de sua terapeuta, o menino poderia estar ali, procurando superar as dificuldades
que o levaram àquele espaço clínico. A atitude terapêutica, nesse caso, consistia em permitir o
deslizamento do menino, pela experimentação empreendida no espaço potencial estabelecido
no setting clínico, onde o terapeuta atuou em meio à experiência, ou seja, fazendo parte dela e
entrando no jogo junto com a criança, deixando-se usar como um meio a ser percorrido pela
criança “com suas qualidades e potenciais e cujo mapa ela traça” (DELEUZE, 1997, p. 73).
Uma atitude clínica que favorecia a reconquista do território existencial momentaneamente
perdido.
Retomamos a afirmação deleuziana, agora agenciada com o pensamento winnicottiano
para dizermos que não se trata de traduzir o brincar em significados e significantes e nem de
interpretar fantasmas inconscientes, mas de acolher o ato de brincar em suas intensidades de
fluxos, que escapam a uma codificação prévia. Isso significa aceitar o ato de brincar em seu
paradoxo de ação simultânea, mágica e real, dando a esse ato o estatuto de fenômeno
transicional. Trata-se de uma proposta em que se entra num jogo compartilhado - terapeuta e
paciente implicados numa nova experiência, a cada vez que o encontro clínico acontece um
ato inaugural, promotor da diferenciação, exercício de alteridade.
4 – o uso que a criança faz do brincar
Winnicott enuncia a sua tese procurando descrever a experiência lúdica como inerente
à vida, uma atividade que é, naturalmente, promotora de “liberdade de criação” (1975, p. 79).
Ele é claro ao dizer que o brincar é da vida e, como tal, é forma de comunicação que pode ser
utilizada no espaço clínico. Ao fazer esse enunciado de uma teoria da brincadeira, recorre às
observações feitas à díade bebê-mãe para mencionar como esse processo é empreendido. O
bebê precisa de um anfitrião hospitaleiro que o apresente ao mundo, geralmente, a sua própria
mãe, porque a ambiência participa ativamente dos processos de subjetivação.
O autor toma como premissa o ponto de vista que, supostamente, o bebê tem do
mundo, um olhar subjetivo que é “quase alucinação” (ibid p.77) e que não provém de um
despertar instintual. mencionamos que essa operação é própria do interjogo, que acontece
entre o que é subjetivamente concebido e o que é objetivamente percebido. A “quase
alucinação” surge justamente nos encontros. Surge daquilo que é apresentado pelo ambiente
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que está ali para ser encontrado e criado. O papel da ambiência provedora é fundamental na
alternância entre ser aquilo que o bebê encontra para ser criado e ser a própria ambiência.
Esse movimento permite ao bebê experimentar magicamente essas aquisições dentro-fora, que
são experiências alternadas de ilusionamento e desilusionamento.
É importante reafirmarmos esse posicionamento teórico, porque Winnicott faz uma
distinção entre “relação de objeto” e “uso do objeto”. Ambos são processos importantes para a
produção psíquica mas envolvem procedimentos diferentes na prática clínica. Para o autor, a
relação de objeto está referida à realidade interna e o objeto é um feixe de projeções, investido
fantasmaticamente. Para chegarmos ao estado de uso do objeto, precisamos adquirir
capacidade para tal e a condição está no encontro, nas combinações possíveis entre o que é
criado subjetivamente e o que é percebido objetivamente.
Esses esclarecimentos são relevantes quando estamos pensando em uma clínica que
prioriza a experiência compartilhada e não somente o relacionamento intersubjetivo. Quando
falamos em “relação objetal” na nomenclatura winnicottiana, essa relação é “... descrita em
termos de sujeito como ser isolado” (ibid, p.123). Na clínica, são os momentos em que o que
prevalece é a relação intersubjetiva. Já na concepção de uso do objeto, esse tem que ser real e,
ao mesmo tempo, fazer parte da realidade compartilhada, porque o objeto criado coincide com
o objeto apresentado.
Para o autor, o uso do objeto, tem que ser descrito em função da aceitação da
existência independente do objeto e sua propriedade de estar sempre ali. A capacidade para
usar o objeto depende de uma ambiência propícia. O uso implica que o objeto faça parte da
realidade externa e ao mesmo tempo da realidade interna. Esse enunciado winnicottiano
confere um valor positivo ao que ele considera como destrutividade. O que era onipotência
passa a ser experimentação de potência: poder usar, experimentar. Winnicott vai afirmar que
“neste ponto do desenvolvimento [...] o sujeito está criando o objeto no sentido de descobrir a
própria externalidade e [ ...] que essa experiência depende da capacidade do objeto
sobreviver” (ibid, p. 127). A importância desse fenômeno para a clínica é a mudança que se
na posição que ocupa o analista entre ser apenas um feixe de projeções ou fazer parte da
experiência compartilhada, podendo ser usado como um objeto transicional.
Por serem vivências com alto grau de complexidade devem ser gradativas e contar
com a anuência ambiental, ou seja, a aceitação do gesto espontâneo. Se essas experiências são
vividas como bons encontros (não intrusivos, ou sem traumatismos e privações) o que se
instaura é um aumento da confiança. Um aumento de potência que resulta em conjugação de
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forças criadoras de um “playground intermediário” (ibid). É o início da brincadeira. O brincar
é um interjogo caracterizado pela precariedade entre o que é mágico e o que é real. Por isso, o
autor afirma como lugar-tempo do brincar o espaço potencial.
Quando a criança brinca, habita uma área que não pode ser facilmente abandonada.
Tampouco, admite intrusões, a não ser que se aceite compartilhar, entrando no jogo e sendo
igualmente capaz de brincar, sem a imposição de padrões. Se a criança mantém a sua
capacidade de brincar e, portanto, simbolizar, ainda que esteja doente, mantém as condições
de elaborar as suas dificuldades. A criança que não brinca está impossibilitada de agir como
nômade, explorando e cartografando novos territórios, de modo a propiciar a expansão de
suas conquistas, de seu universo. Quando uma criança brinca e interrompe a brincadeira, sem
que, necessariamente, haja um desfecho para a mesma, a brincadeira pode ser dada como
finalizada, porque se tornou enfadonha. um desinvestimento espontâneo e, muitas vezes,
inicia-se nova brincadeira. A fim de ilustrar esses pontos de vista, um breve relato de
observações feitas sobre a brincadeira de esconde-esconde, protagonizada por uma criança:
Brincar de esconder para ser encontrado
O episódio envolve um menino de cinco anos que, ao chegar para as sessões de terapia
em companhia de sua babá, costumava tocar a campainha e aguardar a terapeuta atrás de uma
pequena pilastra, de tamanho insuficiente para servir-lhe de esconderijo embora esse aspecto,
para ele, fosse irrelevante. Sempre que a porta era aberta, um jogo se estabelecia, com a
acompanhante informando que, daquela vez, viera só, o que levava a terapeuta a lamentar a
“ausência” do menino e convidar a acompanhante a entrar para brincar, no lugar do menino.
Era nesse momento que a criança surgia de trás da pilastra, sempre buscando surpreender,
gesto que evidenciava o seu prazer em ser descoberto e cuja atitude era saudada com
demonstração de alegria pela sua presença e que despertava, nele, o prazer de ser encontrado.
Uma brincadeira que já se iniciava na porta do consultório e sendo essencial o fato de ter sido
proposta por ele, sem que nenhuma combinação tivesse sido feita previamente. Entretanto, em
uma única ocasião, uma outra pessoa acabou por atender a porta e o jogo habitual não pode
ser engendrado, provocando reação de choro, irritação e recusa para entrar. Foi preciso, então,
reiniciar o jogo costumeiro, fechando-se a porta, para que a campainha pudesse ser novamente
acionada e a porta reaberta e a terapeuta pudesse ser “surpreendida” pelo menino e saudá-lo
como sempre era feito, para que ele, então, pudesse aceitar o convite para entrar.
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Esse episódio nos dá a medida da importância do brincar visto como agenciamento das
relações compartilhadas não no espaço clínico, mas também nas atividades cotidianas de
uma criança. Sabemos que as crianças adoram brincar de “esconde-esconde”; a graça parece
estar em serem encontradas em algum momento e mais exatamente no instante em que elas
permitem que isso aconteça. Quando isso não ocorre, é uma lástima, pois, em lugar do júbilo
pela descoberta, há decepção pelo fato de não ter sido compreendida em seu gesto e a
brincadeira se estraga. O que era contentamento pode dar origem à frustração e o que era ação
pode virar reão. O exemplo em questão serve para mencionarmos a questão da dádiva e da
importância da aceitação, pela ambiência, do gesto expresso pelo brincar. O brincar não
precisa passar por protocolos e regras pré-estabelecidas, pois, sendo assim espontâneo, se
apresenta quando menos se espera e, talvez, as atitudes dessas crianças denotem,
simplesmente, a vontade de explorar o ambiente, experimentar movimentos, cartografar
espaços e estabelecer relações.
4.1 – clínica e experimentação
A idéia de criação atravessa toda a obra em Winnicott e ganha consistência com a
realização de seu último livro, “O Brincar e a Realidade”, em que o autor expõe a sua
argumentação definitiva sobre a importância do viver criativo. Para Winnicott, o esperado é
que se possa viver criativamente e isso inclui doses de nonsense , experimentações que nos
levem para além dos padrões estabelecidos e esperados, porque “... o absurdo organizado
constitui uma defesa, tal como o caos organizado é uma negação do caos” (1975, p. 82).
Embora tenha partido da prática clínica para chegar a sua concepção do brincar, o
autor não o situa, teoricamente, apenas pela via operacional clínica. O brincar é uma atitude
inerente à vida. Ele apenas comparece na clínica, quando comprometimento no viver.
Quando há sofrimento, busca-se a clínica. Enquanto clínicos, o que nos cabe fazer é restituir à
vida o que é da própria vida. A função da clínica é operar passagens, travessias, sendo essa a
dimensão de cura que está implícita nesse tipo de proposta. Assim, o brincar, visto como
fenômeno transicional, fenômeno de fronteira, visa produzir experimentações na clínica, a fim
de resgatar a potência de viver. Winnicott menciona:
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A pessoa a quem estamos tentando ajudar necessita de uma nova
experiência, num ambiente especializado. A experiência é a de um estado
não intencional , uma espécie de tiquetaquear, digamos, assim, da
personalidade não integrada. (ibid, p. 81)
Como é que podemos pensar o uso do analista como promotor de experimentações,
descentralizando-o de sua tarefa interpretativa? Pensar a experimentação no espaço clínico é
pensar na possibilidade de abrir mão de um modelo hegemônico em que se privilegia é a
busca de uma gênese, uma história pregressa que expliquem as causas dos sintomas atuais.
Embora esses dados sejam relevantes, são tomados como elementos de uso dessas
experiências como possibilidade transformadora. Temos aqui, novamente, a noção de
experimentação compartilhada, para que seja possível pensar o encontro clínico desse modo.
Para Winnicott o analista assume a posição de se deixar usar pelo paciente tal como
uma criança usa um objeto transicional. O uso do analista, descrito pelo autor, não pode
prescindir da experiência de compartilhamento. O uso não diz respeito a uma fantasia
atualizada na figura do terapeuta, porque “...o objeto, se é que tem que ser usado, deve ser,
necessariamente, real, no sentido de fazer parte da realidade compartilhada e não um feixe de
projeções” (ibid,p. 123). Esse uso é o que vai permitir ao paciente colocar o analista fora da
sua área de controle onipotente e perceber que a destrutividade empregada, aqui, também, é
um ato de criação. Esse é mais um paradoxo winnicottiano, porque o objeto para o qual a
destrutividade é direcionada, precisa manter-se íntegro. É o que o autor chamou de
sobrevivência do analista.
A clínica winnicottiana, insistimos, é uma clínica em que a intervenção privilegia o
brincar. Se o brincar é fazer e não, simplesmente, imaginar, estamos no plano da
experimentação. O autor vai afirmar que a psicoterapia se efetua na sobreposição de áreas
lúdicas, naquilo que é produzido pelo encontro entre paciente e terapeuta que, para Winnicott,
brincam juntos. Se esse brincar, juntos, se no espaço potencial, diríamos, também que o
brincar acontece entre, ou seja, na zona de indiscernibilidade instituída pelo espaço potencial.
É preciso que o analista reconheça a existência desse lugar, que conduz à confiança. Aquele
em que a brincadeira pode ser iniciada. (ibid, p. 143).
Como pensar a abordagem clinica tomando como referência a perspectiva da
experimentação que se dá num espaço de mutualidade? Sobre o eu, podemos dizer que não
está presente desde o início. O eu é apenas uma cristalização, uma estratificação do processo.
Para além do eu, sempre um processo que se à revelia dele. O eu não pode ser pensado
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como um agenciador, mas como algo que surge nos agenciamentos. Assim, quando a análise
se processa pela experiência, não está subordinada ao eu e nem a uma meta, sendo preciso
pensar o fluxo desejante percorrendo a experiência. Por essa perspectiva, quando pensamos
no plano da clínica, não é sujeito e nem objeto que predominam, porque eles estão diluídos ou
não têm tanta importância. O que importa é a relação em que, sujeito e objeto se
constituem, simultaneamente.
A ênfase passa a ser na experimentação, na descoberta, na criação, sem que isso seja
um ensinamento moral e nem um deciframento de algo que se passou e que se atualiza. Se a
tônica é a experimentação, é preciso estar atento para que a área intermediária da brincadeira
não seja invadida por interpretações provindas da própria imaginação do terapeuta. O que
vem da ambiência precisa ser recebido como uma criação pessoal, senão abre caminho para
um processo persecutório e defensivo. Na terapia com crianças e com adultos, Winnicott diz
que “o momento significativo é aquele em que a criança se surpreende a si mesma e não o
momento da minha arguta interpretação” (ibid, p.75). Quando a criança está capacitada a
brincar e o terapeuta também, o brincar flui. O jogo não é didático, porque não mais um
sujeito sabedor que instrui o outro; há criação.
Deleuze diz que é próprio das crianças “explorar os meios, por trajetos dinâmicos e
traçar o mapa correspondente”. Há um movimento que a gente pode chamar de devir-criança,
devir mulher, devir animal e que faz com que o analista entre no jogo junto com o paciente.
As crianças adoram deslizar por entre as coisas, criando trajetos e devires, adoram traçar
trajetórias cartográficas e isso é muito fácil de ser observado nas brincadeiras populares, de
caráter coletivo. Deleuze (id. 1998, p.42) lembra que “as crianças são rápidas porque sabem
deslizar entre”. As crianças correm, mudam de lugar, demarcam e abandonam territórios com
muita rapidez e, nem sempre, esses movimentos são aceitos como um modo de explorar o
espaço. Quando situamos o brincar, como produtor de devires, essa ótica propicia outras
leituras para esses movimentos. Um fragmento clínico fornece a ilustração para o que estamos
dizendo.
Uma experimentação pessoal
Uma mãe vem conversar a respeito de si e de seu filho de quatro anos, sem saber,
ainda se é ela ou o filho que necessita de atendimento. Na conversa estabelecida, relata que se
sente exausta porque não consegue acompanhar a velocidade de seu filho. Conforme vai
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expondo a sua inquietação, se surpreende, ao perceber um vínculo de sua queixa com
lembranças de sua própria infância. Conta que, quando pequena, era vista como uma criança
muito calma e discreta, fato que era enaltecido por sua mãe. Ela era aquele tipo de criança que
era “esquecida pelos outros, em um canto da sala”. No momento em que resgata essa
lembrança, o afeto que comparece é a sensação de incômodo que isso lhe causava. Incômodo
que a fez desejar ter um filho que não fosse uma criança a ser esquecida, como ela foi. A
vivacidade do filho, no entanto, parece ter extrapolado as suas expectativas, porque ela se
exaure com isso, sem conseguir contê-lo, ainda que constate, no menino, um jeito de ser
diferente do seu, compatível com as suas expectativas.
Ao atender a criança ela deixa transparecer, de imediato, um modo intenso de
interagir. O menino denota um jeito próprio de viver e experimentar o mundo. É um menino
que mantém um interesse marcante por animais. Bastante comunicativo, chega falando de seu
bichinho de estimação e foi por aí que iniciamos a nossa conversa. Mesmo sendo bem jovem,
foi proposto jogar o jogo do rabisco, que ele aceitou, de pronto e, assim, iniciamos por essa
atividade. Desenhamos vários animais, quase todos propostos por ele, que foi conduzindo a
tarefa e propondo inovações. Desenhou, com garatujas, pássaros, peixes e outros animais. Em
dado momento, assumiu a posição de modelo, deitando de bruços no sofá, esticando pés e
mãos e erguendo a cabeça, fazendo uma expressão zangada. Solicitou que eu desenhasse um
tubarão feroz que ele encarnava” pelas posturas e gestos que fazia. Depois, propôs, em
alternância, que eu, por ser grande, personificasse uma baleia para que ele pudesse desenhá-la.
No uso do material disponível - papel, lápis pretos e coloridos - configurações
familiares iam surgindo, na junção, em grupos, de lápis maiores, com menores: lápis maiores
que eram pais e os menores, filhos. Em outra ocasião, repetiu o tema da composição entre
elementos grandes e pequenos: na caixa de brinquedos, descobriu carrinhos e pequenos
animais selvagens, de plástico. Carrinhos que formaram, novamente, grupos familiares
conforme situações retiradas, provavelmente, de seu universo infantil. Elementos suficientes
para a criação de histórias que fomos contando em parceria. Uma questão que preocupa a sua
mãe é o tema da morte, que ele começa a descobrir, ao constatar a finitude dos seres vivos,
fato que o faz sofrer, receando perder a mãe. Essa temática também aparece, em dado
momento na brincadeira: ao manusear um dos carrinhos, uma peça soltou-se, fato que ele
associou à morte. Mas não se angustiou e resolveu deixá-lo, assim, morto. Logo se
desinteressou e buscou outra atividade. Nessa brincadeira havia o carro-pai, o carro-mãe e o
carro-filho e aquele que havia “morrido”, foi nomeado como o carro-avô, que por ser o mais
- 119 -
velho, ele deduziu como sendo aquele morreria primeiro. Essa sua percepção é compatível
com a versão que sua mãe lhe deu para morte: morremos quando estamos mais velhos.
Com os animais selvagens, o movimento difere porque resolve organizar um
zoológico. Espalha os brinquedos no espaço do consultório, demarcando territórios para os
animais. E assim, ele vai alternando as experimentações, ora recorrendo ao seu universo
familiar, ora expandindo-se por outros mundos. Quando brincamos com os animais, às vezes,
uiva, porque, nesses momentos, é lobo; urra, porque, agora, é leão; ou pia em seu devir-
pássaro. Experimenta variações de peixes e de pássaros que parece conhecer, razoavelmente.
Em outro movimento, brinca de ser o seu animal de estimão e alterna a brincadeira entre ser
o pássaro ou o seu cuidador. Novamente, aparece o movimento de ser grande ou pequeno e de
estar remetido a um universo familiar ou a explorar mundos. Posicionamentos que
experimenta em alternância na sua descoberta de novos espaços e novas funções. Cuida para
que o pássaro seja alimentado, tome banho e coloca-o em uma caminha, que inventa para que
possa descansar. Em outra ocasião ele se experimenta como aranha e, então, conta um
segredo: ele é o homem-aranha.
O que se passam nessas experimentações? Devires. Ele me convida a entrar nos jogos
com ele convocando-me em devires diversos: devir-criança, devir-animal; devir-mulher;
alguém que possa dar sustentação aos seus movimentos. Da parte da terapeuta os movimentos
também se alternam conforme a necessidade de posicionamento, ora entrando, ora saindo do
jogo; movimentação que o menino acolhe conforme a circunstância. Nenhum problema
quanto a entender que, naquele espaço, existem limites. Isso é expresso pela aceitação de que
temos hora para começar e terminar; hora para mexer nos brinquedos e para guardá-los.
Entretanto, quando sua mãe chega para buscá-lo, já não é devir, mas transformação da
sua pessoa. De algum modo, ele sabe que tem a mãe capturada, que exerce certo domínio
sobre a mesma e ele se transforma na criança que a mãe não consegue controlar. Basta ele
saber que é a e que toca a campainha para vir buscá-lo, para que o seu comportamento se
modificasse, sendo essa a questão pregnante na escuta que estamos desenvolvendo. É o
momento em que aparece, no comportamento materno, a sua ansiedade. Um episódio
incidental permitiu que, enquanto terapeuta, fosse possível experimentar a ansiedade materna.
Ao perceber que sua e tocara a campainha, o menino deixou o que estava fazendo e subiu
nos braços de uma bergère, procurando se equilibrar na mesma. Isso provocou um estado
apreensivo no terapeuta, que também interrompeu a brincadeira, preocupado com uma
possível queda do menino que estava sob a sua responsabilidade. O que aconteceu com o
- 120 -
terapeuta foi que ele, nesse momento, deixou de compartilhar o brincar tal como uma criança
e passou a experimentar algo semelhante ao que a mãe relatava. De um devir criança passou a
experimentar um devir materno. Ao solicitar que o menino descesse, ele não o fez, repetindo
com o terapeuta o modo costumeiro de agir diante de sua mãe.
Esse trabalho vem sendo realizado em alternância entre sessões lúdicas com o menino
e outras, realizadas, ocasionalmente, com sua mãe, como modo de acompanhar essa trajetória.
Sem a intenção de fechar, aqui, um diagnóstico, entendemos que uma questão na relação
estabelecida entre eles a ser trabalhada. Segundo o relato materno, o menino demonstra
interesse pela continuidade de nossos encontros. Quando esse tipo de experiência não mais o
interessar, certamente, ele, de algum modo, sinalizará e será respeitado em sua decisão. O
movimento terapêutico, nesse caso, se desdobra em duplo movimento de sustentação: da mãe
e do filho, atendidos, em consultas alternadas, acompanhando o pedido de acolhimento inicial
que foi feito, desse jeito, difuso. Para a terapeuta, também se trata de experimentação.
5 – O brincar e a vida
Qual a diferença entre o brincar na clínica e o brincar na vida? A questão não é
encontrar a diferença, mas atribuir ao brincar a sua real relevância para o viver criativo. O
brincar está para além da clínica, porque é da capacidade de experimentar ludicamente o
mundo que surge a possibilidade de dar continuidade a essas experimentações em termos
culturais. Na clínica, o brincar comparece como instrumental ou como um modo de operar.
Quando não se sabe brincar ou se desaprendeu de brincar - o que parece ser o caso daqueles
que não encontram motivos para vibrar com a vida - o espaço clínico pode ser a arena
privilegiada para essa experimentação. Talvez, apenas na medida suficiente para o resgate
dessa capacidade e isso significa livrar-se dos emperramentos impostos pela doença que
impedem a expansão do potencial criativo. Não como avaliar o viver criativo pelo
conteúdo do que se faz porque, na realidade, trata-se de um modo de agir e interagir com o
mundo. Quando podemos manter a capacidade de nos surpreender, estamos no plano do viver
criativo.
Essa é a grande inovação promovida por Winnicott como clínico renomado e
estudioso da natureza humana. Quando o autor diz que é preciso despertar essa capacidade
para brincar é porque considera que uma estreita ligação entre as experiências de
- 121 -
transicionalidade do início da vida com o uso que a criança faz do brincar, de onde se
derivam, diretamente, as experiências ligadas ao plano cultural e que, para o autor, são a
ampliação dos fenômenos transicionais e da brincadeira. Dito de outra forma, a capacidade
para usufruir os objetos da cultura, depende da aquisição e expansão da capacidade para
brincar. Daí a importância do brincar para a vida porque a experiência cultural é um derivado
da brincadeira.
Winnicott foi um psicanalista que não demonstrou interesse em estender a
interpretação psicanalítica para além das fronteiras da clínica, tal como interpretar a obra de
arte a partir da personalidade do artista ou buscar o entendimento da subjetividade do artista a
partir das suas criações. No artigo A Criatividade e suas Origens (1975, p.95) o autor faz uma
crítica à posição psicanalítica que se ocupou de tentar decifrar a obra de arte traçando
paralelos entre a produção do trabalho artístico, ou entre a vida e a personalidade dos artistas.
Isso nos faz concluir que essa visão tradicional acaba por distorcer o propósito da criação
artística, uma possível negação da força disruptiva que a obra de arte pode conter, no sentido
de afetar e se deixar afetar pelo contexto em que se situa. Ao afirmar esse ponto de vista, o
autor revela o cuidado de não impor interpretações invasivas nem à obra de arte, e muito
menos à pessoa do artista.
Inevitavelmente, esses estudos tendem a irritar os artistas e as pessoas
criativas em geral, e isso se prende ao fato de que, parecendo estar chegando
a algo e aparentemente capazes de explicar por que aquele homem foi
grande e aquela mulher conseguiu tanto, sempre desviam a indagação para o
lado errado. O tema principal, o do próprio impulso criativo, continua sendo
contornado. A criação se ergue entre o observador e a criatividade do artista.
(ibid, p. 100)
Nessa leitura winnicottiana que pensa a arte como afirmação de potência, uma objeção
poderá surgir. Podemos conjecturar que essa forma de pensar é uma posição equivocada
porque, aparentemente, há uma recusa do mal estar como componente na crião artística. Em
outras palavras, nessa concepção em que aparentemente a arte é feita de bem estar, o
haveria lugar para o mal estar na criação artística? Se aquilo que estiver sendo considerado
referir-se a uma equivalência entre a noção de bem-estar e a de prazer, temos que afirmar que
a arte não pode ser feita de prazer ou bem-estar. Mas também será preciso desmembrar a
concepção de prazer como se estivesse atrelada a uma outra e até confundindo-se com ela,
que é a noção de desejo.
- 122 -
Mesmo em Freud desejo não é o mesmo que prazer, porém um está atrelado ao outro.
O que queremos dizer é que, em Freud, o desejo tem uma meta, a busca de realização embora
inalcançável, encontrando em seu lugar uma satisfação que nunca atinge a completude. O que
Freud enuncia a partir da experiência de satisfação é que o operador psíquico é o princípio do
prazer. A pulsão busca encontrar o objeto da satisfação na tentativa de obter o prazer, ou
melhor, evitar o desprazer, que possibilita descarregar a tensão acumulada no psiquismo.
Mas aqui estamos tratando ‘desejo’ pela vertente postulada por Deleuze e Guattari que
vão desatrelar desejo de prazer, colocando o desejo no plano de imanência, como motor da
própria vida, quando no “Anti-Édipo” desenvolvem uma nova concepção filosófica de desejo,
conforme já mencionamos. Dessa forma, o que é preciso ressaltar é que prazer não é o mesmo
que desejo. Quando dizemos que arte é afirmação de potência não estamos partindo da noção
de desejo como faltoso, atrelado a uma necessidade de completude, mesmo que inalcançável.
O desejo, aqui, é produção desejante, sempre coletiva e impessoal e não uma faculdade
atribuída a um sujeito. Produção desejante produz qualquer coisa, bem estar e mal estar,
dependendo dos agenciamentos que são engendrados.
Guattari (1986, p. 215) propõe denominar desejo “a todas as formas de vontade de
viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade,
outra percepção de mundo, outros sistema de valores", todos os modos de produção são
modos desejantes. Ou seja, não há espontaneísmo, o desejo precisa ser produzido. A questão,
então, é saber sobre o que se passa em um agenciamento, de que desejo se trata e não qual
seria o seu objetivo. O interesse recai sobre os agenciamentos que podem ser construídos a
partir de uma posição de desejo. No vídeo intitulado “Abecedário”, Deleuze vai dizer, com
propriedade, que desejo não tem a ver com espontaneísmo. Ao se apresentar como força
disruptiva, a partir de acontecimentos, será preciso que ele ganhe consistência, determinada
sustentação, para que se afirme como posição de desejo. É nesse sentido que a criação
artística é desdobramento do viver criativo, mas nunca como uma conseqüência naturalizada
desse viver. A criação artística sendo produzida a partir de acontecimentos, encontros que
geram tensões, inquietudes, desejos que colocam em movimento uma intensividade que pode
ser expressa como arte.
Na visão winnicottiana qualquer um, sendo ou não artista, poderá fazer uso criativo
das experimentações na vida, tomadas como matéria-prima de criação, e em especial, por
aqueles que se sentem instigados à expressão pelas vias da arte. Também para o espectador, a
proposta parece ser a de se deixar afetar pela produção artística, ser por ela interpretado, ser
- 123 -
levado pela experiência intensiva ao interagir com o trabalho artístico, como acontecimentos
que se dão em diferentes planos estéticos, tais como: experimentar agenciamentos rítmicos e
sonoros de uma música; ou ser conduzido para outros mundos pelas palavras de uma obra
literária e de uma poesia; ser possuído pelas cores e texturas de uma pintura, entre outros
elementos.
Para um pintor, o pintar tem vida própria e a tensão que existe não está na tela e nem
no pintor, ela existe, ou melhor, surge nos encontros entre o pintor e a pintura, e poderá surgir
também entre o espectador e a obra de arte. Na experimentação o que está em jogo é uma
conjunção de fatores que determina a ação, ou o movimento que leva, por exemplo, a uma
pincelada única, que imprime uma marca singular tal como uma impressão digital. Um artista
(informação verbal)
43
descreve o ato de olhar a tela em branco do seguinte modo: “espera-se
a onda onde os acidentes se manifestam, pois pintar é, sobretudo, trabalhar com acidentes.”
Diríamos, no caso, que ainda que se tenha um projeto ao início do trabalho artístico, o artista e
o trabalho artístico são passíveis de serem atravessados por acontecimentos que produzem
desvios, a cada olhar, a cada pincelada, a cada gesto.
Como pesquisadora dessa temática, Rolnik cartografa o trabalho realizado pela artista
plástica Lygia Clark que experimentou modos interativos de criação, diluindo fronteiras entre
o artista, o espectador e o crítico. Nesse estudo, Rolnik (2001, p. 4) faz ver que, para a arte
contemporânea, novos modos de interação se fazem presentes nos encontros vivenciados
entre o artista e a arte que produz. Essa pesquisadora destaca a diferença essencial que existe
entre o ato de interpretar e o de decifrar, elegendo o segundo como aquilo que caracteriza o
artista na modernidade. Isso porque não se trata de encontrar explicações, tanto para a obra,
quanto para o artista e nem para o uso que se faz da arte. Inventar um sentido para o signo é
operar transmutações no plano da vida. Nessa concepção, o artista contemporâneo é aquele
que radicaliza mais ainda a sua proposta de problematização quando passa considerar
qualquer matéria do mundo como fonte do seu trabalho para inventar arte. Assim, para Rolnik
Fica mais explícito que a arte não se reduz ao objeto que resulta de sua
prática, mas ela é essa prática como um todo: prática estética que
abraça a vida como potência de criação em diferentes meios onde ela
opera. Seus produtos são apenas uma dimensão da obra e não “a” obra:
um condensado de signos decifrados que introduz uma diferença no
mapa de realidade.
43
Depoimento pessoal feito pelo artista plástico William Gonzalez, no Rio de Janeiro, em 15-08-2006.
- 124 -
Com essas considerações, o que desejamos ressaltar é a idéia winnicottiana de que a
arte faz parte do viver criativo, sendo uma de suas dimensões e que pode ser agenciada com
qualquer coisa na vida não estando, assim, divorciada da dimensão clínica. Winnicott não vai
condicionar o viver criativo e nem a criação artística a um estado de saúde normatizado,
estabelecido previamente como aquilo que deve ser reconhecido como saudável. Ao contrário
disso, reivindica a aceitação do paradoxo típico da criação, mantendo-a indecifrável.
Tampouco é possível interpretar qualquer obra artística a partir da história pregressa
do indivíduo, considerada em termos de projeções fantasmáticas. A distinção entre viver
criativo e arte é feita pela mesma perspectiva paradoxal que o autor usa para pensar a
produção de subjetividade. Trata-se do mesmo paradoxo de separação-união, continuidade-
contiguidade que aparece no seu pensamento a respeito do assunto, pois, embora a criação
artística seja desdobramento da criatividade primária, não há causalidade, nem primado e nem
subordinação de processos psíquicos, mas apenas deslizamentos de fluxos, possibilidades de
criações heterogêneas, produção de diferença. Esse é um tipo de pensamento que concebe a
arte como “experiência de afirmação de vida e não a forma invocatória de um compromisso
entre a ausência irremediável e a presença imaginária” (LUZ, 1989, p. 92).
algo de inviolável no modo como Winnicott concebe o conceito de self, da mesma
forma que algo de inviolável na criação artística, algo de secreto que precisa ser
preservado. Quando Winnicott descreve ‘a capacidade para estar só’, vai dizer que a criança
experimenta um estado de solidão compartilhada em que é possível mergulhar na brincadeira,
na fantasia, ao mesmo tempo em que se mantém ali, ancorada ao meio ambiente cuidador, que
com ela compartilha esse estado de solidão. O correlativo no artista seria essa necessidade de
recolher-se em sua solidão compartilhada com o universo; uma retorno a um estado de não-
integração para que o processo criativo possa fluir.
Tal como as crianças que adoram brincar de se esconder para serem encontradas,
assim é o artista, deseja ser descoberto, ser encontrado. E isso difere do ato de ser
interpretado, que pode representar uma invasão a essa privacidade do self, a qual nos
referimos. O artista deseja ser encontrado e, ao mesmo tempo, manter o caráter secreto das
experimentações. Além disso, qualquer trabalho de interpretação da obra artística revela-se
insuficiente porque não dá conta daquilo que foi experimentado como ato criador. Nessa linha
de pensamento, o que importa não é aquilo que advém da produção artística de um sujeito. O
que nos levar a pensar sobre o que se passa em dado fazer artístico ou em dada contemplação
- 125 -
e interação, capaz de produzir novos modos de subjetivação. O interesse recai nos devires que
uma obra de arte pode levar qualquer um a experimentar.
- 126 -
Considerações finais
Sempre esperamos que nossos pacientes terminem a
análise e nos esqueçam: e descubram que o próprio
viver é a terapia que faz sentido.
D. W. Winnicott
- 127 -
Considerações finais
Tendo como proposta a expansão de nossos procedimentos clínicos, iniciamos esse
percurso pesquisando o tema do brincar, tal como se apresenta no pensamento de Winnicott,
para empreender possíveis conexões com o pensamento rizomático de Deleuze e Guattari.
Essa pesquisa não teve como objetivo tecer comparações entre os autores estudados e muito
menos buscar algum tipo de filiação entre os mesmos. O nosso intuito foi o de promover
aproximações para pensar um, com o método dos outros. Uma trajetória que procuramos
explorar de modo peculiar. A idéia foi a de percorrer uma trilha que deveria ser “aberta” pelos
próprios trilhamentos. Aproveitarmos as “linhas de fuga” que iam surgindo das leituras feitas
para a composição de um texto pessoal. O resultado obtido nos leva a afirmar que foi um
percurso em que nos sentimos, efetivamente, compartilhando idéias com Winnicott, Deleuze e
Guattari.
Tal como Deleuze (1998, p.25) relata sua experiência com Guattari: “não trabalhamos
juntos, trabalhamos entre...”, para produzir algo que ia muito além das idéias de cada um. O
que perpassa entre, são forças com diferentes intensidades e velocidades de modo que não é
mais de um ou de outro e também não é dos dois, mas de muitos. Um tipo de produção
múltipla que permite brechas, linhas de fuga, devires, produção de diferença, em meio aos
encontros porque “é sempre possível desfazer dualismos de dentro, traçando a linha de fuga
que passa entre os dois termos ou os dois conjuntos” (ibid, p. 45).
- 128 -
No capítulo I, fizemos a apresentação dos autores estudados pela exposição dos estilos
intelectuais que caracterizam a trajetória desses pensadores. Nessa tarefa, buscamos,
inicialmente, agenciar a formulação conceitual winnicottiana de “uso do objeto” com o modo
como Deleuze e Guattari postulam a criação de conceitos. Isso, como forma de demonstrar
que são pensadores que privilegiam a experimentação compartilhada, na escrita, na clínica, na
filosofia e na vida. No capítulo II e III, demos continuidade à nossa experimentação, tendo
como fio condutor a temática do brincar, para apresentar os principais conceitos
winnicottianos que sustentam a nossa hipótese. Procuramos desenvolver o nosso pensamento
de modo rizomático, para aproveitar as conexões que o texto suscitava que, certamente, não
são os únicos agenciamentos possíveis entre esses pensadores. Ao chegarmos ao final desse
percurso, desejamos apresentar, abaixo, os nossos últimos comentários procurando deixar em
aberto as possíveis conclusões, para que surjam outros pontos de interesse, outras linhas de
fuga a serem retomadas, por nós e por outrem. São comentários que visam sintetizar o que foi
tratado ao longo desses escritos. Se o leitor for afetado pelo que leu, é possível que surjam
novas questões, a serem elaboradas em linguagem pessoal.
Ainda é comum que o psicanalista esteja mais interessado no conteúdo da brincadeira
do que em compartilhar o espaço com a criança que brinca. A proposta de Winnicott é para
que o analista se inclua no jogo e isso significa entrar e sair do jogo, experimentando devires.
Quando o brincar não é game - jogo com regras e, sim playing - experimentação
indeterminada, o brincar é movimento, é expressão, é criação. Se o brincar diz respeito à vida,
a psicoterapia pode ser vista como um modo especializado de brincar, conforme diz
Winnicott. uma proposta que parte da ambiência favorável. Estabelecido o clima de
confiança, faz-se o convite: vamos brincar! Os rumos são traçados pela própria
experimentação.
Para uma clínica que se propõe a provocar mudanças nos estados afetivos, mais do que
traduzir sintomas, reafirmamos que o trabalho terapêutico pode ser inspirado no brincar,
ocorrendo a ação nessa área de convivência simultânea de ilusão e de realidade. O foco é a
experiência do encontro, porque é no entremeio que algo acontece. O acontecer se sobrepõe a
uma mecanização da cnica porque é a experimentação que determina o seu uso. Isso vale
para a vida e também para a clínica. Para isso, deve haver um bom encontro, entre forças
expressivas e que se potencializam pela experimentação. Esse encontro, agenciado pelo
brincar, não é um encontro qualquer.
- 129 -
Nessa modalidade de prática clínica, percebemos que a ênfase é colocada,
efetivamente, na ação lúdica, sendo possível brincar com qualquer coisa, independente do
brinquedo ser algo simples ou sofisticado. Qualquer material pode ser usado, desde uma tira
de barbante, uma folha de papel até um brinquedo estruturado. O mais importante é que ele
possa ser inventado durante a sessão analítica. A relevância está na dinâmica do jogar e não
no brinquedo propriamente dito. O brinquedo se define pelo ato de brincar, construído pela
brincadeira, uma criação peculiar inerente a cada criança.
O brincar proporciona ao paciente a experiência da descoberta, oferecendo-lhe a
oportunidade de construir as suas próprias interpretações, e isso depende da sensibilidade do
terapeuta, para realizar intervenções que sejam oportunas. Ao brincar, o terapeuta é mais do
que um intérprete das fantasias inconscientes, ele é um catalisador das manifestações afetivas.
As intervenções devem ser econômicas, no tempo certo, evitando-se demonstrações de
domínio intelectual. A “regra de abstinência” pode ser usada para impedir interpretações
argutas, que inibem a liberdade de criação do paciente. Nesse modelo de reciprocidade, as
falhas são consideradas como experimentações. Winnicott uma positividade às falhas do
analista, desde que sejam genuínas, porque permitem que o paciente compreenda os limites de
alcance de suas intervenções. A sensibilidade do analista pode criar outras possibilidades de
intervenção. O analista sensível trabalha com afetos. Aquilo que é escutado precisa ser
acolhido de múltiplos lugares para que se produzam, igualmente, saídas diversificadas.
A experimentação é inseparável de certo desregramento. Às vezes, é preciso não saber
para deflagrar algo. O excesso de saber, quando está a serviço de demonstrações, embota a
vida. É importante que o terapeuta não ceda a tentação de ser um mestre, sendo essencial que
possa sustentar, silenciosamente, com a sua presença, os momentos em que o paciente,
discorre sobre algo sem nexo. Um silêncio que é experimentado em comunhão, em estado de
solidão compartilhada. Quando o ambiente é bom o bastante, possibilidade de entrega, de
relaxamento, de desconexão. Essa é a confiança à qual Winnicott se refere que, instituída na
relação compartilhada, proporciona “seqüências de pensamento aparentemente desconexas as
quais o analista fará bem em aceitar como tais sem presumir a existência de um fio
significante (1975, p. 82)”.
É possível postular o brincar como acontecimentos inerentes à vida, acontecimentos
que dizem respeito aos primeiros atos criativos. Um bebê não mama somente para se
alimentar e não chora somente quando há um incômodo. O ato de mamar e o de chorar, entre
inúmeros outros gestos, podem ser modos de brincar e, consequentemente, são criações
- 130 -
pessoais. O jogo lúdico também pode ser de palavras, de atos, gestos, tons e posturas. Pode
ser feito de movimentos, ritmos, pausas e silêncios, inflexões de voz e senso de humor. Na
experimentação que se no espaço clínico, todos esses aspectos são modos pregnantes de
expressão, especialmente, na psicoterapia com adultos, porque são modos de brincar.
Esse é um tipo de clínica que concebe o setting de um modo diferente, criado e
compartilhado a cada encontro. Todos os elementos do setting servem como suporte ao
brincar, porque ele é composto em mutualidade. uma flexibilidade presente nessa idéia de
setting, que é produzido a cada sessão, como espaço potencial, onde há lugar para a fantasia e
também para o reconhecimento de que o que ali acontece é real. O setting entendido como
espaço potencial, em permanente processo de produção, é o lugar para que as experiências
paradoxais possam ser acolhidas e toleradas sem que tenham que ser desvendadas. Nessa
modalidade de setting o tempo funciona mais como tempo intensivo, que orquestra as
intervenções. Intervenções que seguem os ritmos mais apropriados para cada momento das
sessões e do tratamento. Uma ritmicidade que expressa, muito possivelmente, o que foi vivido
nos primeiros encontros com a ambiência provedora. Um modo de exercer a clínica em que o
interesse terapêutico recai mais no cuidado do que na cura, porque “a afinidade empática entre
terapeuta e paciente é mais importante do que a aplicação correta da técnica de ajuda
profissional” (PHILLIPS, 2006, p. 50).
Atualmente, podemos observar, a partir da nossa experiência, que é comum alguns
pais adentrarem os consultórios preocupados com a hiperatividade diagnosticada pelos
professores e psicopedagogos. As escolas, com raras exceções, estão com seus métodos
pedagógicos ultrapassados e não sabem o que oferecer como atrativo, como algo efetivamente
inovador. As aulas viram um tédio - os adolescentes nos dizem isso todos os dias porque a
linguagem utilizada dificilmente escapa dos modelos pré-estabelecidos e que funcionam mais
como palavras de ordem do que estímulo à descoberta e à criação. O que parece passar
despercebido é que essa hiperatividade é, muitas vezes, produzida pelos dispositivos do meio
ambiente onde a criança está inserida.
Os pais, talvez, pressionados pelos padrões impostos pelo mundo contemporâneo
repetem as exigências aos quais também são submetidos para que sejam bem sucedidos em
tudo que fazem. Uma imposição para que se tenha um desempenho criativo, de ser bem
sucedido em todas as áreas da vida e, assim, a criação vira um ditame. Quando isso é recebido
como palavra de ordem, a criança não pode desacelerar, porque precisa dar conta de agendas
abarrotadas de atividades: aula, natação, judô, balé, inglês, informática, psicólogo,
- 131 -
fonoaudiólogo, etc. Isso tudo para que fique hiper-preparada para o futuro, o que a
impossibilita de viver o presente de uma forma mais solta, mais descompromissada. Não tem
o direito de experimentar e errar. E se não há mais espaço para o erro, não pode mais aprender
com a experiência, “quebrar a cara”, “levantar, sacudir a poeira” e “dar a volta por cima”!
O que é que uma criança submetida a esse tipo de exigência faz? Reage, fracassando
na escola ou em alguma área onde essa exigência de desempenho é cobrada e, incrivelmente,
isso pode ser uma expressão criativa porque, pelo menos isso, esse sintoma, é somente dela.
Melhor dizendo, isso parece ser única coisa que ela consegue fazer para escapar desse
hipercontrole. Quando pode, cria pontos de resistência. A criança fracassa em algum lugar,
para não sucumbir ao desejo imperativo que a cerca e que teima em subjetivá-la de um modo
maciço e dominante, sem permitir que possa expressar-se por si mesma. O que fazem os pais?
Queixam-se porque o filho não pára, é irrequieto, não tem concentração, etc. E os pais, ainda
que imbuídos de boas intenções, procuram ajuda terapêutica como se procurassem uma
oficina de consertos e parecem dizer: “meu filho está ‘batendo pino”, será que você pode dar
um jeito nele? E quando isso termina? Eis a pressa dos pais!
Aquele que trabalha com clínica de crianças percebe que, quando chega ao
consultório, ela desenha, brinca, modela etc. Porém, se tudo isso acaba sendo referido apenas
ao tradicional modelo papai-mamãe-criança, o trabalho a ser feito consiste apenas em
promover um rebatimento, no mesmo lugar em que as coisas já se encontram. Tocar sempre
na mesma tecla significa não permitir que a diferença se instaure e que algo de inusitado
aconteça. Esse rebatimento implica a infantilização da criança e até mesmo do adulto e isso
pode ser pernicioso. Em vez de procedimento padronizado, é possível um agir diferenciado,
como por exemplo, fazer uso do elemento infantil que se apresenta naquele espaço. É bom
ressaltar que infantilização é algo diferente do uso do infantil, de fazer uso do brincar e do
humor. Um terapeuta que não esteja sensivelmente atento para essas questões, pode contribuir
para reforçar esses modos de subjetivação, em vez de permitir que a criança faça as suas
próprias descobertas e redirecione fluxos desejantes.
A criança está sempre prestes a surpreender aqueles que estão ao seu redor. Se o
terapeuta oferece uma escuta sensível, permitindo que ela faça uso do setting, do qual ele
também faz parte, a criança vai tirar-lhe do eixo centrado no qual, muitas vezes, ele se coloca.
Descentramento que parece ser fundamental para que o terapeuta entre no jogo junto com a
criança e abra mão das suas certezas teóricas, estando aberto aos desafios que o levam a novas
construções.
- 132 -
A criança opera, basicamente, por afetos e nesse sentido, opera muito mais no plano
molecular do que no plano molar, porque experimenta estados vividos, linhas de fuga,
devires. A coletividade é experimentada pela criança ainda antes de saber que está inserida em
grupos molares. Na brincadeira, espaço para ser múltiplo e experimentar modos inusitados
de existência. A criança junta tudo, “alhos com bugalhos”, fazendo conexões e desconexões,
apesar da vida contemporânea chegar até ela cada vez mais pronta, acabada, condensada,
compactada, como algo que só suscita o tédio.
A criança aposta sempre no novo, na inquietude da descoberta e da criação. Brincar é
juntar tudo e desfazer logo a seguir. Um bom exemplo disso podemos encontrar nos versos de
Chico Buarque
44
: “agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês, a noiva do caubói era
você além das outras três... agora eu era o rei, era bedel, era também juiz...”. Uma referência
aos fluxos afetivos, às experiências brincantes de territorialização, desterritorialização e
reterritorialização.
O objetivo da clínica é resgatar a vivacidade da vida. E isso significa estar vivo como
possibilidade de experimentar outras modalidades de existência que não sejam os modelos
impostos. Isso pode ser um ato de resistência às submissões impostas que, reconhecemos, são
inevitáveis. Mas, quando resistimos, há a possibilidade da mediação entre um gesto de
onipotência - achar que pode tudo, e um gesto de submissão - achar que não pode nada. Essa
mediação significa poder agir criando possibilidades, abrir caminhos frente às trincheiras da
vida.
Winnicott sempre foi avesso à apresentação do trabalho que realizou e, sobretudo,
experimentou, como uma obra fechada, recusando-se a fazer escola. Talvez preferisse que
suas idéias fossem apresentadas como contribuições, abertas ao questionamento, com a marca
do inacabado, da dúvida e do instigante, induzindo-as à expansão, tornando-se um desafio
para aqueles que desejam beber nessa fonte winnicottiana, criar o seu próprio estilo de agir e
pensar. O processo que escolhemos foi esse, produzir experimentações entre os modos de
pensar a clínica e a vida, de Winnicott, Deleuze e Guattari. Processo que resultou nessa
produção que é, ao mesmo tempo, coletiva e inteiramente pessoal porque percorremos os
fluxos que brotaram no entremeio das idéias desses autores com o nosso pensamento.
44
Versos da composição “João e Maria” de Sivuca e Chico Buarque, ano de 1977, conforme informação
disponível no site: http://chicobuarque.uol.com.br/letras, acessado em julho de 2007.
- 133 -
Essa idéia de inacabamento, de totalidade fragmentária, como vimos, está presente na
vida e como tal, no brincar, no clinicar, no escrever e na criação artística. Picasso
45
disse
uma vez que não existe obra acabada e que supor uma finalização para a obra artística é
simplesmente uma bobagem. Deleuze (1997, p. 11), de forma semelhante, diz sobre a
literatura e a vida que “... escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de
fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma
passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”.
Essas últimas considerações que dizem respeito ao viver e para o qual a clínica deve
estar a serviço, colocam em evidência que o mais importante é preservar a capacidade para
criar. Assim, podemos concluir que criar é construir o que está lá, pronto para ser construído.
Uma obra ou a vida, que se apresenta sempre como precária, com as necessárias aberturas que
a possibilitem à produção permanente de novos modos de existência.
A nossa proposta foi a de promover experimentações, usar o texto como um espaço de
compartilhamento, agindo como as crianças nos ensinam: experimentando, brincando com os
conceitos, fragmentando-os e, depois, embaralhando tudo, criando zonas de indiscernibilidade
que permitam novos questionamentos e que nos levem à expansão daquilo que pensamos
sobre o trabalho que realizamos. Na linha de trabalho que estamos defendendo, consideramos
o encontro clínico como aquele espaço constituído em meio a certa dissolvência das formas
estabelecidas, que se mantém, o mínimo necessário, para que a experimentação se entre
aquilo que é indiscernível e aquilo que difere. Mesmo quando é entre dois, é algo que
acontece como uma espécie de concerto lúdico. O Brincar é a música, ou melhor, o musicar,
produzido pelo encontro.
Depois de tudo o que foi dito, resta perguntar: para que serve um psicoterapeuta?
Segundo Winnicott, serve para ser usado como um objeto transicional. E o trabalho
terapêutico cumpre o seu papel quando esse “objeto” é desinvestido, colocado no limbo. Uma
criança esteve em atendimento durante três anos e um dia, quando demonstrava ser capaz
de superar a situação traumática que a levou ao tratamento, disparou a seguinte pergunta para
a terapeuta: “Pra que você serve? Após se recuperar da pergunta surpreendente a
45
Cuando has visto un cuadro terminado? Ni un cuadro ni nada. Pobre de ti el día que se diga que está acabado.
Terminar una obra? Acabar um cuadro? Qué tonteria! Terminar algo quiere decir acabar com ello, matarlo,
quitarle alma, darle la puntilla. El valor de una obra de arte está en lo que no está. (Apud., GILI &
O’DONNEL, 1979, p. 105). "Quando viste um quadro terminado? Nem um quadro nem nada. Pobre de ti o dia
que se diga que está acabado. Terminar uma obra? Acabar um quadro? Que bobagem! Terminar alguma coisa
significa acabar com ela, matá-la, arrancar-lhe a alma, dar o último nó na costura. O valor de uma obra de arte
está no que não está." (Apud., GILI & O’DONNEL, 1979, p. 105) (tradução de Carlos Alberto Lugarinho).
- 134 -
psicoterapeuta resolveu devolver a pergunta ao pequeno paciente: “Pra que você acha que eu
sirvo?” E o menino respondeu: “Acho que você serve para não deixar que eu esqueça as
coisas”. Terminada a sessão, o incômodo permaneceu, ao menos para a terapeuta que, em um
primeiro momento se sentiu descartada. Mas logo entendeu que aquela pergunta poderia ser
um pedido do menino para ir embora. Talvez tivesse chegado a hora dele colocar no limbo
algumas experiências e descobrir, que já estava em condições, de descobrir e criar, com
autonomia, o seu próprio universo existencial. Parafraseando Winnicott, foi bom perceber que
o menino podia terminar a análise, nos esquecer e descobrir que “... o próprio viver é a terapia
que faz sentido” (1975, p.123).
- 135 -
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