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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO-SENSU EM PSICOLOGIA: ESTUDOS DA
SUBJETIVIDADE
LUCIANA KNIJNIK
CRIAÇÃO DE ARQUIVOS:
TESTEMUNHO E MEMÓRIA DA
EXPERIÊNCIA DA TORTURA NO BRASIL
Niterói
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO-SENSU EM PSICOLOGIA: ESTUDOS DA
SUBJETIVIDADE
LUCIANA KNIJNIK
CRIAÇÃO DE ARQUIVOS:
TESTEMUNHO E MEMÓRIA DA
EXPERIÊNCIA DA TORTURA NO BRASIL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Psicologia da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Psicologia.
Orientadora: CECÍLIA MARIA BOUÇAS COIMBRA
Niterói
2007
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3
Ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.
Pela vida pela paz, tortura nunca mais!
4
AGRADECIMENTOS
A todos que se fizeram presentes, neste percurso, fazendo deste texto e do vídeo
“Fala Corpo” uma polifonia.
A meus avós, Anita e Jacob, Paulina e José e a meus pais, Suzette e Flávio, que
tanto me possibilitaram. À Gabriela e Daniel, queridos irmãos, e Cristiane, com quem eu
conto na vida.
À Valéria, Ana Bursztyn, Baptista, Vera Vital Brasil, Clarissa, Vitor, Flávia, Rafael,
Fernanda, Zélia, Danichi, Raquel, Liane, Nicolau, Victória Grabois e Pedro, pela
camaradagem.
A equipe do Centro de Referência de Mulheres da Maré e, principalmente, às
moradoras do bairro, com quem tanto aprendi.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal Fluminense, por atiçarem o pensamento.
À Cecília Coimbra, parceira incansável, pela instigante presença e por ter me
apresentado o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.
À Felipe meu grande amor, por todos os momentos.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 09
TRILHAS DE ABERTURA: MODOS DE PESQUISA E MILITÂNCIA ........................ 09
Começar pelo meio...............................................................................................................09
Abram os Arquivos ............................................................................................................. 10
Flutuações............................................................................................................................ 11
Da esperança à invenção de nossos Marcos ....................................................................... 12
Encontros ............................................................................................................................ 14
Da paz ................................................................................................................................. 15
Lugar na roda ...................................................................................................................... 16
CAPÍTULO 1 ..................................................................................................................... 20
1 “FALA CORPO” ............................................................................................................ 20
1.1 Roteiro “Fala Corpo” ................................................................................................... 21
CAPÍTULO 2 ..................................................................................................................... 29
2 HISTÓRIA ENQUANTO POTÊNCIA DE DIFERENCIAÇÃO .................................. 29
2.1 Lucia e a magia de seus guardados.................................................................................30
2.2 Âmbar ........................................................................................................................... 36
2.2.1 Enquanto crianças amolam facas, cegos erram o alvo .............................................. 37
2.2.2 Quero conservar o Calhambeque ............................................................................ 40
2.3 Qual o destino do cachorro que corre atrás do próprio rabo? ...................................... 45
2.3.1 Heróis do silêncio ...................................................................................................... 47
6
2.3.2 No tribunal as estátuas não se movem ...................................................................... 47
2.3.3 Brasil, País de todos .................................................................................................. 49
2.4 Poderes ......................................................................................................................... 52
2.4.1 Práticas do aparato de segurança pública .................................................................. 54
2.4.2 Carlos Abel: algo restou da ditadura ......................................................................... 63
2.4.3 Na memória da boca, o gosto amargo de cobre ......................................................... 65
2.4.4 São Carlos, Morro Borel, eu subo e nunca estou no céu ........................................... 70
2.4.5 Pirâmides ................................................................................................................... 77
APONTAMENTOS FINAIS ............................................................................................. 80
PRODUZINDO UMA MEMÓRIA COM ASAS ............................................................... 80
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 83
7
RESUMO
A dissertação cria arquivos da experiência da tortura, tecendo conexões, entre a
violência de Estado, no período da ditadura militar, e a violência hoje. A produção do
documentário intitulado “Fala Corpo” é o método de pesquisa utilizado, abordando através
de depoimentos, a experiência da tortura no Brasil. O texto, por sua vez, é acionado pela
história dos personagens, colocando em cena a atualidade do passado e o silenciamento
ainda hoje vigente. Desta vivência, no corpo, desdobramos questões, como a produção da
memória, estratégias de poder e resistência. Experiências singulares e acontecimentos
históricos são destacados, trazendo em seu bojo a luta pela abertura dos arquivos da
ditadura militar.
Palavras-chave: tortura, memória, vídeo, corpo, testemunho.
8
ABSTRACT
The essay creates records of the experience of torture, weaving connections between
the violence of the state, in the period of the military dictatorship, and the violence
nowadays. The production of the documentary entitled “Fala Corpo” has been approached
through testimonies of experiences of torture in Brazil. The text is set in motion
by the
story of the characters
juxtaposing the reality of the past and the silence still in existence
today. Through this experience in the body questions are unfolded about the production of
the memory, power strategies and resistance. Singular experiences and historical events
stand out bringing with their weight the fight for the opening of the archives of the military
dictatorship.
Keywords: torture, memory, video, body, testimony.
9
INTRODUÇÃO
TRILHAS DE ABERTURA: MODOS DE PESQUISA E MILITÂNCIA
“O conhecimento é uma invenção e não tem origem”.
Michel Foucault
Começar pelo meio
Começamos pelo meio, na medida em que não há um ponto de partida. São muitos
os pontos que se cruzam, que se dispersam e que se chocam, mas que não se sucedem.
Neste mapa de inúmeros pontos em movimento, não há um eu que decida pela pesquisa,
mas um contexto que se fez assim, ou seja, a pesquisa foi-se fazendo!
Não há sujeito, ou objeto do conhecimento anterior à pesquisa, uma vez que estes se
constituem no mesmo momento, no mesmo processo. É deste encontro que surgem os
personagens. Eles não existiam antes desta pesquisa, eles foram inventados no processo
(BARROS, R. 1994).
Deste mapa difuso, pode-se destacar algumas constelações. Um termo quase exato.
Alguns significados da palavra constelação que constam no Dicionário: grupo de estrelas;
grupo de pessoas notáveis pela inteligência, cultura, etc., ou que para nós representam
10
muito sob o aspecto afetivo (Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa, 1988, p.
172).
Constelar no entorno das eleições era prática dos que depositavam parte de suas
crenças no Estado, acreditando que este detinha, não só poder, mas também, potência. Não
éramos de todo ingênuos, mas, após anos de militância, o Governo Lula é eleito;
finalmente, com o operário, chegamos lá. Não apostava em grandes revoluções, mas
acreditei que seria produzida alguma diferença visível em relação às políticas de Estado
vigentes.
No primeiro semestre de 2005, o “escândalo”. Nosso caro governo, eleito à custa de
muita militância, protagonista de esquemas de compra de votos, caixa dois... Em Porto
Alegre, cidade onde morava na época, fomos tomados, no início, pela revolta que foi se
transformando em apatia e resignação.
Abram os Arquivos
“[...] o poder não se dá, nem se troca, nem se
retoma, ele se exerce e só existe em ato”.
Michel Foucault, 2002, p.21.
Cecília Coimbra estampa a capa da revista Caros Amigos (2004): “Abram os
arquivos” afirma ela. Como pode tamanha ousadia? Enquanto nos perguntamos se o PT
acabou ela afirma: - “Abram os arquivos?!”. Surge no mapa a força do Grupo Tortura
Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ), que não foge à luta e sabe que o poder não é
dado, que ele está lá, onde ousamos exercê-lo.
Vislumbro outras estrelas e, de imediato, formam-se novas constelações. Assim me
deparo com a discussão em torno da abertura dos arquivos. Coloca-se a questão,
precisamos lutar pela abertura dos arquivos. Como as Loucas da Praça de Maio que
“querem os corpos de seus filhos desaparecidos” (SAIDÓN, 1991, p. 08) e bradam: - “Com
vida os levaram, com vida os queremos”, nós bradamos: - “Abram os arquivos”. E como
11
dar mais vida e força à luta? Não deixando desaparecer os ricos arquivos que temos. O
arquivo recheado de afetos
1
, de quem viveu a história.
A luta do GTNM/RJ é para que não sejamos vencidos pela apatia, nem pela
desesperança. Sabemos que “se se quer entristecer um corpo, há uma receita conhecida:
inocula-se nele a resignação” (SAIDÓN, 1991, p.08). Cara a cara com o vasto Cemitério
São João Batista afirmamos a vida. Haja o que houver, sempre haverá uma noite de
segunda-feira para os insanos afirmarem suas lutas
2
.
Flutuações
“Espaço do corpo é isto: você está imersa numa
grande banheira tomando banho, cai uma aranha sobre
a superfície da água perto de seus pés e você se
arrepia! Aquela aranha não lhe tocou, mas tocou. Ora,
a cada instante, nesse instante, você tem um espaço do
corpo: o seu corpo vai para além do corpo próprio,
para além dos limites do seu corpo”.
José Gil, 1997, p. 254
Colocamos ao lado mais uma constelação visível neste mapa celeste. Minha intriga
pelo corpo. Criei muitas interrogações, a partir de uma experiência, acompanhando um
grupo de mulheres com diagnóstico de câncer de mama. O efeito deste diagnóstico e do
tratamento subseqüente era para aquelas, no mínimo, arrebatador. Deparar-se como
portadora/produtora de um câncer é uma experiência que promove desestabilização,
configurando-se, como um tremor, ou, mesmo, um terremoto. E, quando este câncer está
localizado em uma região do corpo que envolve sentidos, mitos e, até mesmo, estereótipos
associados ao feminino, à maternidade, à sexualidade, chacoalham-se muitas certezas.
Intensidades que compartilhei me obrigavam a inúmeros questionamentos: como algo
1
Utilizamo-nos aqui da leitura Deleuziana de afecto proposta por Espinoza. Afecto não como um
sentimento, mas como “’paixão da alma’, pela qual o espírito afirma uma força de existir de seu
corpo maior ou menor do que antes. Situar, portanto, a dimensão afetiva no plano das intensidades
experimentadas no corpo, enquanto o movimento dos afetos em seu poder de afetar e serem
afetados (...)” (CZERMAK, 2003, P.358).
2
O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ se reúne todas as segundas-feiras, às 19h, em sua sede, que se
localiza na rua General Polidoro, em frente ao Cemitério São João Batista, em Botafogo.
12
vivido no corpo promove tamanho efeito no campo afetivo? De que modo uma mulher
pode passar a se reconhecer em um corpo mutilado? O que é um corpo?
Na época, a literatura à qual tinha acesso, à da psicossomática, fazia pouco sentido
para pensar esta experiência. Obedecendo a desmandos intuitivos, aproximei-me da
temática da tortura, não para responder a essas questões, mas para corporificá-las. Surgiram
outros corpos esquisitos, caricatos e, também risonhos.
Em um instante mágico arma-se a lona. Circo do possível e do imprevisível. Cadeira
cativa para as crianças que dizem sim, criadoras de si (NIETSZCHE, 1999). Um burro de
carga, carregador de fardos, dá lugar à trapezista, lançando seu corpo todo ao vôo.
Eis então que adentra um fio, a altura e um corpo. O equilibrista de passo firme e
preciso não olha para onde pisa. Em sua travessia, não é o olho que vê, mas o corpo todo.
Chamamos corpo tudo que exerce o poder de afetar e ser afetado. O corpo é
potência não limitada à carne. Assim, o pensamento é corpo, bem como a fala é corpo e as
imagens são corpo (DELEUZE, 2003).
Corporeidade que voa, vê e flutua, exalando certa intensidade corporal,
ultrapassando a carne. Passa por entre corpos que não são dados, não são um algo em si,
mas estão sempre acontecendo.
Nas arquibancadas, ficam mudos aqueles que desejam prever o movimento dos
corpos. Com seus agigantados olhos de burro atentam ao fio. Para eles, fio e equilibrista são
coisas distintas, cada qual como uma coisa em si, desafiando a gravidade.
Já as mencionadas crianças vibram na flutuação dos corpos. Percebem que, naquele
momento, fio e equilibrista são um corpo contínuo. Aos olhos dessas crianças o
equilibrista-fio dança a gravidade.
Da esperança à invenção de nossos Marcos
“A tomada do poder? Não, apenas algo mais difícil:
um mundo novo”.
Subcomandante Marcos (HUERTA, 1994, p. 53)
13
Colisões improváveis ocorrem. Barcos afundam, corpos são projetados no espaço,
abrem-se clareiras, segue o fluxo de constelações que se arranjam e desarranjam. Na
construção micropolítica do cotidiano exercemos nosso poder e intensificamos nossas lutas.
Desta forma, desejamos “contribuir para desarticular as diferentes formas com que os
totalitarismos e potências estatais inoculam em nossos corpos: a obediência, a resignação e
a falsa esperança” (SAIDÓN, 1991, p.08).
Assim, cabe perguntar, por que não criarmos nossos arquivos? E como fazer para
que esses arquivos possam circular? A partir dessas questões, surge a necessidade de
inventarmos outro modo de fazer pesquisa. Apostamos na produção de depoimentos, para
um vídeo, como um método a ser experimentado. Vale ressaltar que o método não se
restringe à gravação, pois compreende todo o processo, desde a pré-produção – com a
escolha dos entrevistados - até a edição final, construindo formas de apresentar uma
história.
Escolhemos dizer que produziremos depoimentos, já que acreditamos na pesquisa,
como máquina de produção e não de comprovação. Da ordem do experimento, a gravação
de um vídeo não serve, como um modelo pronto, que possa ser adotado em qualquer
circunstância, apenas mais um, em nosso catálogo de métodos acadêmicos, um novo must
científico. Assim, “coloca-se em questão os fundamentos da pesquisa científica e toda
tradição moderna que sustenta estes fundamentos como busca da constatação de fatos e
sustentação da verdade” (MAIRESSE, 2003, p. 259).
O documentário se configura como intervenção, sendo esta a afirmação de um ato
político, como apontam Rodrigues e Souza (1987). Cabe aqui trazer a idéia de pesquisa-
intervenção de Passos e Benevides (2000, p.73): "onde se atravessam clínica e política,
pesquisa e ação a palavra intervenção se junta à pesquisa, não para substituir a ação, mas
para produzir outra relação entre teoria e prática, assim como entre sujeito e objeto".
Como aponta Barros (1994), na pesquisa-intervenção, sujeito e objeto do
conhecimento se constituem no mesmo momento. Assim, o conhecimento acontece no
processo de produção de um campo de intervenção, ele não existia anteriormente, e será,
dessa forma, “apenas da ordem do resultado, do acontecimento, do efeito” (FOUCAULT,
1996, P.24).
14
A produção de arquivos difere de uma mera coleta de dados, não bastam
ferramentas pré-fabricadas. Transformações se operam no novo pesquisador que surge, na
composição com o objeto nasce como militante, absolutamente mergulhado no universo do
GTNM/RJ.
Encontros
No sertão, o que pode uma pessoa fazer de seu tempo
livre a não ser contar estórias?
Guimarães Rosa, 1983, p.03
Assumimos a tarefa de produzir um vídeo que se intitulou “Fala Corpo”. Este texto
é um de seus efeitos. Arriscamo-nos em campos virgens, mas nos campos nem tudo são
flores. Há uma tensão, quando a psicologia se põe a fazer cinema. Essa tensão se coloca no
ponto em que a psicologia se reconhece em um pensamento e não no pensamento. Nesta
pesquisa, faz-se necessário justificar que um texto pode ser um modo de fazer o
pensamento acontecer, tanto quanto uma imagem. Podemos situar diferenças entre texto e
imagem, mas afirmamos que o que interessa é o pensamento e ele não é garantido pelo
texto.
Pesquisamos para afirmar o pensamento. O pensamento que está para além de um
sujeito, é impessoal e sem forma pré-determinada. Assim, é o pensamento que pensa e não
o eu (NIETZSCHE, 1992).
Se há algum ineditismo nesta pesquisa, utilizamo-nos dele, para explicitar que
inventamos nossos objetos. Somos como detetives às avessas, ocupados na criação de
mistérios e esquecidos da necessidade de solucioná-los.
Decidimos pela gravação de um vídeo, como método de fazer pesquisa, apostando
na potência das imagens. Encontros forçaram o pensamento na produção dos depoimentos.
Brotaram intensidades que não antecipamos, “então, e, agora, que faremos?” pergunta Ana
Bursztyn
3
.
3
Trecho da entrevista de Ana Bursztyn em “Fala Corpo”.
15
Contamos histórias não como quem conta um romance. Pobres daqueles, adoradores
da verdade, que esperam por um final feliz. A resposta à pergunta de Ana não vem.
Sustentamos a aridez de um “então, e, agora, que faremos?”, para, quase às cegas,
escorregar em busca de ar fresco.
Da paz
“Era só mais uma dura
Resquício de ditadura
Mostrando a mentalidade
de quem se sente autoridade
neste tribunal de rua”.
Tribunal de Rua - O Rappa, 2000
É certo que, mesmo antes de vir morar no Rio de Janeiro, a cidade me habitava.
Conhecia os clichês da cidade maravilhosa mais badalados pela mídia. Os telejornais são
incansáveis, temas como carnaval, bala perdida e favela não saem de cena. O que de fato
me surpreendeu foi um modo de vida que compõe este cenário. Deparei-me com outras
formas de violência, menos ocasionais e mais silenciosas.
Há muita velocidade na cidade. Os ônibus voam e os passantes correm. Somos
tomados pela pressa, mesmo quando não temos lugar ao qual chegar. A imensa maioria das
cartas publicadas em jornais, nas sessões dos leitores, são recheadas de rigidez e
intolerância.
Seria tolo dizer que a violência está localizada na favela, mas, sem dúvida, lá o
“bicho pega”. A precária situação da segurança pública, aliada ao contingente de armas de
fogo, em poder de traficantes, leva a paisagem das favelas a protagonizar conflitos
extremos. O cotidiano da população é recheado de agressões, armas, tiros e mortes. É claro
que as chamadas políticas de segurança pública são, de fato, políticas militarizadas de
extermínio dos pobres, chamados de marginais, vagabundos, favelados (COIMBRA, 2001).
A corrupção da polícia produz acordos em que se fortalece o uso da violência por
parte do Estado. Assim, práticas que, no período da ditadura militar, eram voltadas contra
os militantes, na sua maioria, jovens estudantes, agora estão voltadas contra a população
pobre.
16
A evidência de que o terror exercido pelo Estado, nos tempos de ditadura, segue
como prática atualmente, levou-nos a pensar em abordar a ocorrência da tortura nos dias de
hoje. Salta aos olhos que alguns dispositivos, utilizados na ditadura, não desapareceram,
pelo contrário, hoje estão mais refinados e eficazes.
No curso dos depoimentos, as relações entre violência do Estado, no período da
ditadura, e a violência instituída hoje foram abordadas. Como disse Ana, em “Fala Corpo”:
- “Aí eu vou começar a falar de agora, mas faz parte”. Faz parte, porque no nosso dia-a-dia
o terror de Estado bate à nossa porta. Cotidianamente, são protagonizados tiroteios,
ofertadas sangrentas manchetes de jornais e o medo paira no ar: a concretude da violência
está em nossos corpos.
Lugar na roda
No curso da minha trajetória, na Universidade Federal Fluminense, um
questionamento ainda me perseguia: não tinha certeza do porquê do meu interesse pela
temática da tortura. O que tenho eu a ver com essa história? Poderia ter buscado outras
leituras, para ampliar minhas hipóteses sobre o corpo, na temática do câncer, mas havia
algo mais a me inquietar. Arriscava respostas, pensando na potência do encontro com o
GTNM/RJ, considerava, ainda, um certo desencanto com a minha cidade, Porto Alegre,
contrastando com a curiosidade pelo Rio de Janeiro, porém, nenhuma destas respostas me
satisfazia.
Sem achar uma solução convincente, passo a pensar sobre o que, até então, parecia
óbvio: que fios conectam corpo e tortura nesta pesquisa? Esta pergunta faz aparecer o
poder, já que suas tessituras passam pelo corpo. A alegria de convidar Michel Foucault a
participar deste texto é como a de reencontrar um velho amigo. Diz ele: “O corpo também
está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance
imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a
trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais” (FOUCAULT, 1987, p.25).
17
Foucault (1988) ocupa seu lugar na roda, para contar seus causos e a ele se junta
Gilles Deleuze. Ambos detetives às avessas, apaixonados pela invenção de mistérios e
esquecidos de solucioná-los. Buenas, vamos aos causos que remontam a antigos tempos,
quando imperava um poder soberano. Relações de poder, na gestão da vida e da morte, nas
quais o soberano é apontado como aquele que exercia o poder de causar a morte, ou de
deixar viver. Ou seja, o poder exercido pelo soberano sobre a vida advinha de seu poder de
matar.
A partir da época clássica, o Ocidente conhece transformações profundas nesses
mecanismos de poder. Agora, o poder se situa e se exerce no nível da vida, da espécie, da
raça e dos fenômenos de população, o foco do poder é deslocado para o fazer viver. Assim,
o velho direito de causar a morte, ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a
vida ou devolver à morte.
O poder sobre a vida se desenvolveu, a partir do século XVII, em duas formas
principais. O primeiro se centrou no corpo como máquina; no seu adestramento, na
ampliação de suas aptidões, na extorsão e suas forças – tudo assegurado por procedimentos
de poder que caracterizam as disciplinas
4
. O segundo, formado em torno da metade do
século XVIII, centrou-se no corpo-espécie: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade,
o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem
fazê-los variar; tais processos ocorrem mediante uma série de intervenções e controles
reguladores: uma biopolítica da população. Assim, a função deste mecanismo de poder não
é mais matar, mas investir sobre a vida, tornando o corpo uma realidade biopolítica. A
velha potência de morte, em que se simbolizava o poder soberano, é agora recoberta pela
administração dos corpos e pela gestão calculista e mercadológica da vida.
Objetivando a sujeição dos corpos e o controle das populações, o biopoder foi
elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à
custa de inserção controlada dos corpos, no aparelho de produção, assim como por meio do
ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos.
4
As sociedades disciplinares se situam, nos séculos XVIII e XIX, atingindo seu apogeu no início do
século XX. O indivíduo passa de um espaço fechado a outro, da família para a escola, da escola
para a fábrica, podendo passar pelo hospital, ou pela prisão, meio de confinamento por excelência.
18
A vida, como um fim, justifica a morte como um meio. Guerras, genocídios,
terrorismo de Estado são legitimados em nome da manutenção da vida. Agora não serão
eliminados os adversários, mas os perigos para a população (PELBART, 2003).
O poder está em toda parte, conta-nos Foucault. Expresso em mecanismos de
disciplina, ou controle, está, por vezes, plenamente visível, por outro lado, porém, em
alguns campos, deixa apenas rastros. Nesta pesquisa, fizemos um longo percurso, para
torná-lo mais aparente e, assim, utilizamo-nos de sua força, produzindo novos contornos
para o pensamento.
Tomamos “Fala Corpo”, como dispositivo, para esta escritura, ou seja, vídeo e texto
são realidades distintas, um não explica o outro, nem se completam, ou se opõem. A partir
do percurso realizado, escolhemos dar vazão, em forma de texto, a eixos criados nesta
trajetória. Os personagens de “Fala Corpo” são apresentados, acrescentando outros
elementos às suas histórias. Estas são costuradas, com linhas diversas, como arte, tortura,
memória, poder e testemunho.
Desenhamos, ainda, um recorte histórico, acerca das práticas do aparato de
segurança brasileiro, destacando o período da ditadura militar. Valemo-nos de documentos,
relatos e observações cotidianas, para assinalar que tais práticas dialogam com mecanismos
de controle contemporâneos, os quais possibilitam a ocorrência da tortura hoje.
Vale ressaltar que desnaturalizamos a instituição da pesquisa, propondo que, parte
dela, seja a criação de seu próprio método. Dito de outro modo, compor a pesquisa é
inventar uma metodologia que lhe seja própria, sem que o método se sobreponha aos
problemas colocados, ou o contrário.
A pesquisa tem a potência de abertura, para os mais variados campos. Neste
percurso, o uso desta potência despertou, por exemplo, minha inesperada atuação na área
do cinema. A direção do trabalho não pôde ser determinada a priori e, nos diversos
encontros, como o ocorrido com um trabalho de artes plásticas, foram sendo trilhados os
caminhos. Assim, a confecção de um testemunho e memória da experiência da tortura no
Brasil aguçou meu olhar para os diversos modos da violência, hoje, e ao longo da história.
Os meios de confinamento tinham como objetivo concentrar; distribuir no espaço; ordenar no
tempo (DELEUZE, 1992).
19
Já a inserção no Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro foi fruto da militância
necessária, tanto à pesquisa, como à vivência das durezas e delícias do cotidiano carioca.
Ressaltamos que a pesquisa obra como os blocos. Não nos referimos àqueles duros e
impermeáveis, utilizados na construção de casas e prédios, obras regulares. Nossos blocos
não saem de uma forma, são delimitados por contornos e, em um piscar de olhos se
rearranjam. Sobem ladeira, descem ladeira, agregam um passante e refazem suas bordas.
Padre, andarilho, ou poeta, basta um adereço, um trejeito e está feito o personagem.
Entoam cantos e sua marcha não impõe a regularidade, mas a cadência. Inventando ritmos,
seguiram fluxos. Nunca é tarde, para que cheguem outros instrumentos, para novos ritmos.
A sandália gasta ficará pelo caminho. O percurso pode não ser extenso, mas é, sem dúvida,
intenso. Só não pode faltar alegria, e façamos da pesquisa uma folia.
Para além de preciosismos acadêmicos, assumimos o desafio de escapar ao
pessimismo, potente veneno, que tanto paralisa. A inoperância das queixas vazias é um dos
diversos mecanismos de captura que levam à depressão, ao consumismo e ao câncer. Se
Foucault, por um lado, disse que o poder está em toda parte, ele também afirmou que “lá
onde há poder há resistência” (FOUCAULT, 1988, p.91).
20
CAPÍTULO 1
1 “FALA CORPO”
“Essa exposição trouxe o Incertae Sedis, o
conceito. Em princípio o museu tem uma origem
iluminista, positivista, enciclopédica, o museu tem um
lado científico. E um paleontólogo traz o conceito
daquilo que não tem classificação, um museu não
admite nada sem classificação”.
Guilherme Vergara, “Fala Corpo”, 2006
Operação complexa é a construção de uma memória histórica, especialmente
quando nos referimos ao período da ditadura militar. Nesta circunstância faz-se necessário
e urgente forjar a construção da memória, já que os regimes ditatoriais, visando ao
silenciamento, têm como característica o uso de estratégias de controle que censuram, tanto
a produção, como a circulação da informação, deixando, assim, lacunas no imaginário
social.
Ainda dispomos de escassos registros acerca deste período. Para se protegerem os
próprios militantes precisaram desfazer-se de documentos, cartas de amor, fotos e poemas,
já que, como disse Lucia, “tudo comprometia alguém” (“Fala Corpo”, 2006). Os
documentos, em posse do Estado, por sua vez, seguem confinados a arquivos secretos,
sendo a população impedida de ter acesso à sua própria história.
21
Os efeitos da operação “cale-se
5
não têm prazo de validade, ou seja, não têm seu
fim determinado por decreto. O silenciamento não terminou com o fim do regime militar,
nem com o processo de anistia. Assim, como foi apontado por Walter Benjamim (1994),
em relação aos soldados que voltavam mudos da guerra, pobres em experiência
comunicável, no Brasil pós-ditadura muitos perderam a voz e se calaram.
Neste trabalho, a produção de um vídeo foi o método de pesquisa e intervenção
escolhido. Assim, não pudemos nos esquivar ao diálogo com o modo de produção
tradicionalmente acadêmico. Para Sarlo (2007), a boa história acadêmica não se restringe à
busca por certezas, estando, porém, atada a outros nós. Este modo de fazer história está
preso às suas próprias restrições formais e institucionais o que o faz estar voltado mais para
dentro do espaço acadêmico que para fora.
A história de massas, modalidade não acadêmica, por sua vez, necessita de interesse
e impacto público e é a partir destes orientada e legitimada. Tem maior alcance, mas pode
tornar-se escrava dos interesses públicos que exigem respostas, coerência e unidade.
Com o trabalho audiovisual, desejamos expandir as fronteiras da academia, muitas
vezes impostas pelo próprio texto, como única forma de acesso à produção. A história de
massas, por ela mesma, não resolve nossas questões, já que não estamos em busca de
bilheteria, compreensão, ou aplauso. Com “Fala Corpo” almejamos torcer, suavemente, os
métodos de uma boa história acadêmica, sem resvalar para a história de massas, serva do
público, como grande parte das produções hollywoodianas.
A dissertação é resultado da composição entre vídeo e texto. Por isso, avaliamos que
a transcrição literal das falas não pode suprir, mas minimizar a ausência das imagens, para
os que não tiverem acesso ao vídeo.
1.1 Roteiro Fala Corpo
ANA: Com Rufino, podemos repensar, transculturalmente... o papel da arte, o de
destilar, coletivamente, a experiência humana, ressignificando... “Calíope foi filha de Zeus
5
Referência à música Cálice de Chico Buarque de Holanda.
22
com a deusa Mnemosine, deusa da memória... Deu aos seres humanos a dádiva da arte, uma
benção que era particularmente apropriada, para alguém que reunisse o especial saber, das
experiências passadas, com um poder impressionante sobre o presente”.
GUILHERME: Essa exposição trouxe o Incertae Sedis, o conceito. Em princípio o
museu tem uma origem iluminista, positivista, enciclopédica, o museu tem um lado
científico. E um paleontólogo traz o conceito daquilo que não tem classificação, um museu
não admite nada sem classificação. E cada artista assume uma produção de novos fósseis,
novos futuros, novos protótipos de atitude, de percepção, de atmosfera.
LÚCIA: Não é uma pilha de escrivaninhas, montes de papéis colados
aleatoriamente, faz um sentido, o desenho é impressionante, impossível não lembrar um
corpo humano, ou os restos de um corpo, ossos.
GUILHERME: O que são as glândulas no nosso organismo? Você tem osso, pele...
as glândulas para muitos são os canais entre o corpo físico e o corpo etérico.
Meu nome é Guilherme Vergara, eu primeiramente sou professor do Departamento
de Artes da UFF, e atualmente estou como diretor Geral do Museu.
LÚCIA: Então você chega aqui, é um reboliço, isso flui, isso sai, aí você se
emociona. Algumas vezes eu vim aqui sozinha, eu chorei um pouco, é quase, bom, o meu
pai não foi enterrado, é quase como se isso fosse, o desenho seria o corpo e essa história
estaria aqui.
Os amigos da luta me conhecem como Lucia Alves porque meu pai era conhecido
como Mário Alves politicamente.
Ele é um revolucionário. Viaja muito, trabalha muito, tudo muito. O meu pai ficava
até 3hs da manhã lendo, escrevendo, produzia muito. Então ele morreu jovem, com 47 anos
ele foi trucidado...
Ele se interessava por absolutamente tudo, arte, cinema, todos os fins de semana ele
ia ao cinema com a minha mãe.
23
Depois que aconteceu o Golpe de 64 eu e minha mãe tivemos que ficar na
clandestinidade. Num primeiro momento, nós éramos seguidas porque eles achavam que
encontrariam ele por nosso intermédio, então ficou tudo difícil, a vida na escola, a minha
mãe no trabalho.
CARLOS: Eu sequer me defendi. Me limitei a apanhar e apanhar sem nem saber
porque estava apanhando. Em determinado momento que eu vi que iam me matar mesmo
eu falei “Por que vocês estão fazendo isso comigo, eu estou doente tenho 6 hérnias de
disco, eu tenho exame amanhã”. Eu tinha uma perícia médica no outro dia, estava me
aposentando por invalidez . E um deles, um dos agentes, o mais exacerbado, disse: “ah
você te
m 6 hérnias agora vai ficar com 12, desgraçado”.
Meu nome é Carlos Abel Dutra Garcia, tenho 50 anos, sou comerciante, sou ex-
petroleiro.
ANA: Eu entrei no Grupo Tortura Nunca Mais/RJ há um ano e meio, nunca me
aproximei. Nunca li um livro de companheiro daqui, eu leio livro do exílio porque não é
uma experiência igual a minha, é mais fácil de eu ler, livro com descrição, eu chego nas
livrarias, dou uma olhada assim, começo a ler, aquilo me toma de um jeito, aí eu tá tá tá, já
sei. É muito mais difícil.
Quando eu fui ver o filme Olga, eu vi com marido e filha. Já tinha lido sobre o filme
algumas críticas, umas falando que dava um certo glamour, eu falei, ah vai ser moleza, foi
tão antes de mim. Eu não passei por essa experiência, aquilo foi ditadura de Vargas, então
vou lá ver. Tu não acredita. Teve alguns momentos... uma foi elas indo, ela e a
companheira dela sendo deportadas, e a companheira dela, é elas estavam em campo de
concentração, e a companheira dela enlouquecendo, enlouquecendo. É muito difícil manter
a lucidez, eu vi gente enlouquecendo e soube de gente que enlouqueceu. Esse me abalou
muito. E o segundo parecia que eles tinham visto o que aconteceu com um companheiro
nosso, o Eduardo Leite, o Bacuri, quando eles retiraram a Olga da cela pra ela ser
deportada, quando retiraram o Bacuri de madrugada pra ser assassinado, nós estávamos lá,
24
nós sabíamos que iam retirar ele para ser morto. E nessa hora é bem parecido na hora que
tiram a Olga pra deportar, eu não agüentei, eu saí e fui lá pra fora chorar.
Esquecer não dá não, a gente tem que fazer aquilo que dizia lá, a gente tem que dar
um jeito de ressignificar, e de preferência é destilar coletivamente porque quando você fica
individualmente, não é legal, aquilo fica meio te comendo por dentro, é como se fossem
umas feridinhas, semi-abertas, que num momento uma dá uma sangradinha, aí fecha aqui,
aí outra dá uma sangradinha.
Meu nome é Ana, eu nasci Ana Bursztyn, Bursztyn em polonês quer dizer âmbar,
aquela pedrinha. Troquei de nome porque qualquer guardinha de esquina dizia, “mas eu já
vi esse nome em algum lugar”, então meu nome é hoje Ana de Miranda Batista.
GUILHERME: Havia arquivos metálicos, gavetas com aquilo tudo pesado,
guardados e intocados.
LÚCIA: Eu tenho um arquivo de aço né, aqueles de escritório, que toda uma gaveta
bem grande tem as coisas sobre o meu pai e outros companheiros mortos e desaparecidos
políticos.
Vivia com a minha mãe, nós fazíamos, aqui tem toda sorte de coisas que
escrevemos. Tem as primeiras denúncias que fazíamos de porta em porta porque nós não
podíamos ir ao jornal, e dizer “olha sumiram com o meu pai”. Minha mãe dizer “sumiram
com meu marido, assassinaram ele”. Não então nós escrevíamos. Morávamos mal, pobres,
escrevíamos batendo a máquina, com cópias, de carbono, então isso aqui são papéis
originais, alguns são cópia datilografadas. Então, escrevíamos a denúncia contando o que
fizeram com ele e colocávamos embaixo das portas, correndo risco, imagina se coloca
embaixo da porta de um torturador.
CARLOS: Mais ou menos de meia noite até umas 3 horas da manhã apanhei muito.
Depois me trancaram numa cela aonde tinham muitos pêlos de cachorro e fezes, mosquito
pra caramba. Saí todo mordido de mosquito. Me trancaram nessa cela e começaram a me
dar banhos porque já tinha chegado a advogada dizendo que tinha um habeas-corpus, e
queria me ver urgente porque ela imaginou que tivessem me matado.
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LÚCIA: É todo um revival. As pessoas vão olhar e vão ter uma idéia dessa história,
mas pra mim que vivi isso, eu quando passo por aqui eu não penso só no meu pai e na
minha mãe. Eu vejo os companheiros todos que foram e foram muitos.
ANA: Já em 69 a coisa começou a pesar muito e dali pra frente só pesou mais. Essa
quarta prisão foi em julho de 70 em São Paulo. Já tinham invadido a minha casa várias
vezes, já tinham prendido a minha mãe, a minha irmã de 14 anos, o meu irmão, então
surpresa foi eu ter sobrevivido... Mas não era uma birra né?! A ditadura militar não
melhorou a partir dali, quer dizer as causas que me levaram a atuar não tinham melhorado,
a injustiça ainda era enorme.
CARLOS: Capitão chegou e falou “Por que você está preso?” e eu disse “Eu
também não sei, dá para o senhor falar com o delegado”. O outro cara que estava comigo se
identificou, era pedreiro disse “olha aqui a minha mão cheia de calo, o senhor quer
documento melhor que esse?”. E mesmo assim sem ter nada que pudesse justificar uma
prisão eles ainda me levaram para Superintendência da Polícia Federal.
LÚCIA: Tudo muda. Você tem seu colégio, seus amigos, seu namoradinho e de
repente você não tem mais nada, não tem mais ninguém, você vai para outro lugar e sequer
pode começar tudo de novo porque você não pode dizer quem você é, isso é horrível. Por
muito tempo nem namorar eu conseguia, porque como você vai ter intimidade com uma
pessoa, você não pode dizer o que você pensa.
ANA: As condições objetivas não mudaram, pioravam. E com o AI-5, 13 de
dezembro de 68, para além das injustiças, quer dizer para manter essa situação de injustiça
social, com censura, no nosso caso como estudantes fecharam todos os diretórios, as
pessoas não poderiam mais se reunir, censura nos jornais, em todos os meios de cultura, ou
de mídia que pudessem haver. É a ditadura, imposição de alguns pelas armas sem
contestação.
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LÚCIA: Meu pai e minha mãe moravam num apartamento humilde no subúrbio, na
Abolição e foi aí que aconteceu. Em janeiro de 70, no dia 16 de janeiro ele saiu pra uma
reunião e essa reunião tinha sido denunciada e todos caíram. Ele foi preso e morto sob
tortura na mesma noite. Ele passou uma noite sendo torturado e depois nunca mais se viu
ele...
Quatro testemunhas depuseram em juízo e contaram sobre a tortura, sobre o que foi
feito, que viram ele saindo moribundo, morrendo mesmo. Mas isso sabemos porque quando
houve a abertura essas pessoas puderam falar. Eles combinaram que se saíssem vivos da
tortura contariam o que viram.
ANA: Isso aconteceu no dia, isso foi um presente da ditadura brasileira, foi no dia
em que eu fiz 21 anos, presente de maioridade. Eu tinha marcado com a minha mãe, e ela
era muito pontual, sempre chegava na hora, me levava um lanchinho, e ela não veio. Eu
estava a três quarteirões de casa, aí falei vou ligar pra ela, não, vou lá em casa. Aí eu fui
andando e a meia esquina lá de casa, quando eu atravessei a rua eu vi um orelhão, falei não,
vou ligar lá pra casa. Aí eu liguei e a mamãe falou, desaparece que a casa está cercada
desde às 7hs da manhã, eram 5 e pouco da tarde. E tinha gente dentro de casa quando ela
me telefonou, isso ela me disse agora, porque durante anos, foi um inferno, todo dia do meu
aniversário...
Ainda tem essa né, você se sente de alguma forma responsável por aquilo que
aconteceu com seus familiares, a minha irmã, a minha outra irmã, a minha mãe, o meu
cunhado, enfim, de uma situação que veio de uma violência do estado. Militante era eu, por
que a minha mãe foi presa, minha irmã foi presa e torturada, meu irmão foi preso,
perseguiam esses ou aqueles. É que essa parte é muito revoltante. O que eles são capazes de
fazer com uma menina de 14 anos. Eu nunca quis ficar contando detalhes disso, porque eu
acho que fica assim, um clima pesado, eu prefiro brincar, mesmo porque é difícil de
agüentar pra mim também, não é só para os outros, não sou tão altruísta assim.
Então e agora que faremos? Eu estou sentindo, esse ambiente me dá uma aflição. É
meio porão, limpinho, tudo bonitinho, não era assim não, mas dá uma sensação de
opressão. Ah, isso aqui é uma exposição, tinha esquecido...
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LÚCIA: Um belo dia a minha mãe apareceu com uma mala, com as últimas coisas
que ele tinha escrito e mais vocabulário de alemão e tivemos que queimar coisas e cartas e
fotos. E depois eu não me conformei de ter que me desfazer daquelas coisas, queimar, jogar
fora, mas tudo comprometia alguém.
ANA: E o sentimento coletivo que existia de construção de uma nova sociedade de
um novo homem né?! Era muito bom, era muito bom viver isso. Foi muito bom, foi muito
importante, isso, eu gostaria de recuperar esse sentimento. Se não tivesse havido tanto
sofrimento, tanta humilhação, tanta tortura, tanta morte, a nossa história teria sido, faltam-
me palavras, não é mais bela, porque bela foi. Mas foi bela a nossa história.
LÚCIA: O segredo continua porque os arquivos não são abertos e sem os arquivos
abertos não é possível esclarecer tudo.
ANA: Agora que eu vi que esse aqui que eu nunca mexi, tem cicatrizes na base, que
cicatrizaram sozinhas, é de porrada. Nós temos um companheiro que também teve com isso
e agora trinta anos depois ele está com insuficiência renal, ele perdeu, não tem mais, está
em fila de transplante fazendo hemodiálise, em conseqüência da tortura.
Eles batiam no rim, diziam que não ficava marcado. Você dá porrada e não marca.
Fica roxo, mas logo depois passa, só que aí internamente você pode não ter nada durante 30
anos.
CARLOS: Eu tenho pesadelos com isso, acordo à noite. Quando eu sofro alguma
coisa que eu sei que é por conta disso vem tudo à tona de novo, vem tudo na cabeça.
ANA: O doutor Amílcar Lobo, médico da PE, de triste memória, me examinou, eu
estava muito ferida, choques, me carregaram e ele me examinou e disse de forma gratuita,
“você tem o útero infantil e retrovertido, você nunca vai poder ter filhos”, eu tinha 21 anos.
Eu fiquei 4 anos achando que eu não poderia ter filhos, essas coisas me voltavam, eu sem
poder fazer exame, sem poder consultar o meu ginecologista. Então, eu tenho dois filhos,
28
um casal de filhos, isso me dá muita satisfação. É uma satisfação pessoal. Também não
deixa de ser uma pequena vitória, contra uma tentativa de destruição.
É isso que a tortura faz. Para além de te fazer falar, denunciar teus companheiros, eu
acho que é uma tentativa de te destruir como pessoa.
CARLOS: Completam-se 10 anos agora em agosto. Não pode ser que em 1996, de
84 pra 96 são 12 anos e isso esteja acontecendo. Agora em 2002 aconteceu isso com o
Antônio de Abreu e tantas outras pessoas.
ANA: Como é que um povo pode repensar a sua história ou mesmo planejar daqui
pra frente se ele não pode saber o que aconteceu?! A impressão que dá é que o que se
produz como história oficial é o esquecimento, é não saber.
LÚCIA: Eu já tenho 58 anos e sou filha única. Quem vai contar isso?
ANA: Porque senão fica difícil pensar, por que existe tanta violência? Aí vou
começar a falar de agora, mas tá bem, faz parte. O Estado é absolutamente impune. É a
história da polícia nos morros, o Caveirão que assusta a população. E essa violência está
pior hoje. Um dos motivos pelos quais eu acho que está pior é porque a gente não consegue
discutir, o que é a violência do Estado.
É preciso trazer essa história à tona, não porque ela é feia, pelo contrário, ela tem
partes belíssimas na minha opinião, mas porque ela faz parte do que nós somos hoje.
29
CAPÍTULO 2
2 HISTÓRIA ENQUANTO POTÊNCIA DE DIFERENCIAÇÃO
“A história designa somente o conjunto das condições,
por mais recentes que sejam, das quais desvia-se a fim
de ‘devir’, isto é, para criar algo novo”.
Gilles Deleuze
Neste capítulo, abriremos outros campos de discussão a partir de “Fala Corpo”.
Lançamos mão do vídeo, para disparar o pensamento, que acontece aqui como texto. O
registro documental nos permite a liberdade de transformar aqueles que oferecem seus
depoimentos em personagens, que não estão presos à pele dos entrevistados. Habitamos a
tênue fronteira entre documento e ficção neste texto, já que não estamos preocupados em
ser fiéis à história factual de cada um. Deslocamos o excesso de pessoalidade que os
depoimentos podem carregar e, assim, seguimos dialogando com eles, como se adquirissem
vida própria, em outros corpos. Como personagens criados pela literatura, pelo cinema, ou
pela música, estes corpos prescindem da carne, para ganhar vida, e, neste texto, falam
desenvoltos.
Mas, afinal, de que nos vale esta estratégia de transformar pessoas, aparentemente
reais, em personagens? Buscamos escapar à estreiteza da verossimilhança. A necessidade
de comprovação dos fatos empobrece e aprisiona na permanente busca por coerência. Não
almejamos produzir uma reconstituição do passado repleta de verdades e respostas.
30
Tomamos a história, como “objeto de construção a partir de uma concepção de tempo
voltada para um presente em relação transformadora com o passado. Isto é, um presente
que rompe com as falsas continuidades da tradição” (MURICY, 1995, p.39).
Ampliamos nosso campo, para que, assim, incluam-se as dissonâncias, os desvios, o
sussurro dos vencidos. Produzimos, coletivamente, uma memória que resiste, entendendo
resistência, não como o que vem se contrapor a algo posto, mas como o que vem afirmar.
2.1 Lucia e a magia de seus guardados
“Quatro testemunhas depuseram em juízo e contaram
sobre a tortura, sobre o que foi feito, que viram ele
saindo moribundo, morrendo mesmo. Mas isso
sabemos porque quando houve a abertura essas
pessoas puderam falar”.
Lucia Alves, “Fala Corpo”, 2006
Nota-se que discussões acerca da memória estão em voga, atualmente, atravessando
diversos campos, como a neurociência, história, filosofia e, até mesmo, a arte. Como a
memória está presente em diversos debates, sendo abordada sob variados aspectos,
consideramos pertinente atentarmos, para certos estatutos a ela concedidos hoje. Muitos
ainda se referem à memória, como lugar onde guardamos cacarecos velhos e ditos inúteis.
Baú antigo e poeirento, em um sótão qualquer para uns, museu, como é considerado por
outros. Perguntamos: - Porque insistimos em guardar cacarecos ditos inúteis? E por que um
museu seria lugar para isso?
Lançamo-nos na aventura de dialogar com o vasto e rico campo das artes. Aliamo-
nos a arte, na direção da imanência da vida e, de início, tomamos algumas precauções. Aos
desavisados, a reflexão sobre arte reserva alguns perigos:
O perigo de toda reflexão sobre a arte é o didatismo. Explico-me: a obsessão em
apontar o que significa determinado trabalho, vai sempre limitar seu modo de ser,
a possibilidade de gerar e revelar novos sentidos para o público. Mas alto lá! Será
que as obras devem ser deixadas à deriva, sem uma palavra acolhedora que a
traga mais perto de quem se aproxima? Qual o estatuto da reflexão diante de uma
obra? Respondo: pensar com e a partir da obra, jamais pensar sobre ela (Osório,
2001).
31
O perigo, citado pelo autor, aponta para uma relação transcendente com a arte.
Neste modo de operar, o sentido está fora da obra e fora do sujeito, é algo a ser buscado,
uma meta. O didatismo pedagógico-ortopédico restringe as possibilidades da obra a uma
interpretação correta e verdadeira. Assim, esta verdade equivale a um horizonte
vislumbrado, um local aonde nunca se chega.
Para Saramago (2005, p.05), a utopia, se entendida como meta, como algo que não
se sabe onde está, como aquilo que não podemos ter agora, mas que um dia acontecerá, é de
pouca valia. No lugar de um futuro longínquo, apraz-lhe mais a idéia de um amanhã,
estando este ao nosso alcance. Diz ele:
Colocar num tempo e num lugar que não se sabe onde está, nem quando aquilo
que são os sonhos e as aspirações e a satisfação das ansiedades da humanidade
hoje, parece-me, francamente, um ponto de vista, muito suspeitável e,
evidentemente não estou a dizer que não, mas lhe tiro daí nenhuma vantagem,
não parece um ponto de vista construtivo e parece sim que o que pode ter alguma
importância é a ação contínua.
Convocamos um artista/paleontólogo, para nos ajudar a trilhar alguns caminhos. A
exposição Incertae Sedis, de José Rufino, foi o local escolhido, para disparar os
depoimentos de “Fala Corpo”. Percebemos, na intensidade do trabalho, que aborda,
diretamente, a temática da ditadura militar e da tortura, mais que um pano de fundo, para os
entrevistados relatarem histórias. Assim, instalamo-nos no Museu de Arte Contemporânea
de Niterói e chamamos, para conversar, envolvidos, diretamente, com a exposição, bem
como dois militantes que foram presos e torturados, tanto no período da ditadura, como na
década de 90.
Um dos entrevistados foi Guilherme Vergara, diretor do Museu e curador da
exposição. Lúcia Alves, filha do desaparecido político Mário Alves
6
, foi quem contribuiu
6
Mário Alves de Souza Vieira nasceu em 1923 na Bahia e desapareceu, em 1970, aos 47 anos, no
Rio de Janeiro. Desde estudante secundarista, em Salvador, participou da política, ingressando
nos anos 40 no PCB (Partido Comunista Brasileiro). Foi membro do Comitê Estadual e Central.
Com o golpe de 1964, iniciou sua oposição à linha preconizada pelo PCB e, em 1968, junto com
outros companheiros, fundou o PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), continuando a
atuar clandestinamente. Em janeiro de 1970, saiu de casa, para uma reunião, e não retornou mais.
Preso pelo DOI/CODI – RJ foi morto sob tortura, tendo sido visto por vários outros companheiros.
Seu corpo foi ocultado e, até hoje, seus familiares procuram seus restos mortais (Dossiê dos
Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964, 1995).
32
com documentos, para a realização de esculturas em Niterói. Ana Bursztyn é militante do
Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, foi presa e torturada no período da ditadura.
Carlos Abel foi preso e torturado, em 1996, nas dependências da Polícia Federal no Rio de
Janeiro. Infelizmente, não foi possível entrevistar o próprio artista, por falta de verba, para
cobrir seu deslocamento de João Pessoa para o Rio de Janeiro.
José Rufino nasceu na Paraíba, em 1965, iniciou sua carreira em 1980 e, desde
então, expôs no MAM – Bahia, Espaço Cultural Sérgio Porto – RJ, Bienal Internacional –
SP entre outros espaços nacional e internacionalmente reconhecidos.
Em outubro de 2005, Rufino aporta no requintado Museu de Arte Contemporânea
de Niterói (MAC – Niterói). O Museu, projetado em 1991 pelo arquiteto brasileiro Oscar
Niemeyer, foi encomendado pelo então prefeito de Niterói, Jorge Roberto Silveira. Este
local tem uma concepção arquitetônica que põe em questão a relação destes espaços
consagrados e cultuados, com o que pode não estar legitimado como arte, inundando o
Museu com o mundo externo às suas paredes. Localizado à beira mar, é todo envidraçado e,
inevitavelmente, coloca o visitante em posição de apreciar, não só os trabalhos expostos no
museu, mas, também, a belíssima vista da Baía de Guanabara e da cidade do Rio de Janeiro
que de lá se tem. Somente habitar aquele espaço pode provocar diversas reflexões, tais
como, por exemplo, a relação entre o que está nos espaços tradicionais de arte e o que está
fora, a potência de interferência da arte e o compromisso político destes locais.
Por vezes, quando queremos nos referir a algo que não mais tem utilidade, dizemos
que é peça de museu. O MAC não se ajusta à idéia de museu, como depositário de
quinquilharias ditas inúteis, que só precisam de um lugar de abrigo. Este é um espaço
público que conta com um número vasto de visitantes, entre brasileiros e estrangeiros. Lá o
pó não se acumula.
É neste local que Rufino compõe um de seus trabalhos intitulado Plasmatio, parte da
exposição Incertae Sedis (nome científico para aquilo que não tem classificação
taxonômica definida). Este acontece, utilizando-se, como suporte, cartas, diários e outros
documentos originais, trocados entre parentes e amigos de exilados e desaparecidos
políticos, no período do regime militar brasileiro (1964-1985), assim como entre moradores
do local onde se realiza a exposição. Neste suporte são realizadas monotipias (gravuras de
33
impressão única), no estilo Rorscharch
7
, e estas se compõem com mobiliário antigo, a
saber: mesas, cadeiras e escrivaninhas.
Plasmatio agrega o material produzido, para outras exposições, ao trabalho
realizado em Niterói, a partir dos documentos de familiares do desaparecido político Mário
Alves. Nesta exposição, podemos encontrar peças produzidas em diversos estados
brasileiros.
Com suas monotipias, Rufino interfere em documentos, gravando algo que, para
muitos, assemelha-se a um corpo. As imagens, rastros de memória, são como impressões de
corpos desaparecidos. Neste processo, escolhe, como suporte, algo que tem um caráter
clandestino e que, por questões concretas de sobrevivência, precisou ficar muito bem
guardado e escondido.
O aparato de repressão utilizava documentos dos próprios militantes, para obter
informações sobre eles. Muitos foram presos, torturados e mortos por terem seus nomes em
documentos confiscados pela repressão. Hoje, poucos documentos restam, em posse de
militantes e de seus familiares, já que grande parte foi destruída pelos próprios, para evitar
que o Estado ditatorial tivesse acesso a essas informações.
Familiares de militantes relatam, em depoimentos, a dor de queimar documentos,
cartas, fotos, ou anotações de seus parentes. Compulsoriamente, transformam em cinzas
objetos afetivamente valiosos. Diz Lucia, em “Fala Corpo” (2006): “Um belo dia a minha
mãe apareceu com uma mala, com as últimas coisas que ele tinha escrito e mais
vocabulário de alemão e tivemos que queimar coisas e cartas e fotos. E depois eu não me
conformei de ter que me desfazer daquelas coisas, queimar, jogar fora, mas tudo
comprometia alguém”.
7
“Técnica descoberta acidentalmente pelo médico alemão Justinus Kerner (1786-1862), que viveu
no século XIX. A tinta aplicada em apenas um lado de uma folha de papel que ao se dobrar e
desdobrar assumem configurações simétricas bastante curiosas, descobertas como acidentes sem
controla da intencionalidade. Ao longo do século XX se tornaram conhecidas como Rorscharch,
devido a Hermann Rorschach, que desenvolveu teste psicanalítico baseado na interpretação
destas manchas” (Vergara, 2005).
Este teste foi largamente utilizado por alguns profissionais psi durante a ditadura militar com o
objetivo de traçar um perfil psicológico dos militantes. Esta pesquisa foi encomendada pelo
Exército brasileiro sob o nome de “Perfil Psicológico do Terrorista Brasileiro”. Sobre o assunto
consultar Coimbra (1995).
34
Alguns destes objetos que restaram estão no trabalho de Rufino. Em cartas, receitas,
textos, escritos à mão, ou datilografados, ele grava novas marcas. Curiosamente, a força do
trabalho não vem pelo conteúdo dos textos escritos nos documentos, mas pela maneira com
que suas imagens se compõem com as manchas e com os móveis onde estão colocados. As
manchas velam e revelam o conteúdo do texto produzindo novas imagens.
A iluminação da exposição produz, igualmente, efeito curioso. Quando nos
aproximamos do trabalho, no intuito de ver mais de perto, ou de ler o texto, nossa sombra
se projeta. Assim, é o corpo do visitante que se coloca e interfere no trabalho.
Rufino torna público e coletivo o que estava e poderia continuar em âmbito
individual e privado, em baús e gavetas empoeiradas. O que ele destaca são afetos,
lembranças, retalhos de todos nós brasileiros. Histórias do nosso País que, por vezes,
tentamos esquecer, mas que insistem em se fazer presentes. Ele escolhe colocar em cena
mesas e gavetas, mas não velhas e empoeiradas, apenas antigas. Antigas e lustrosas, como
lembranças, cuidadosamente guardadas, atualizadas e potencializadas.
Uma visão linear de história fica aquém da experiência proporcionada pela
exposição, já que a sucessão dos fatos não coincide com a força dos acontecimentos. Neste
espaço, não há linearidade, ou cronologia possível, mas “luta contra o fluxo nivelador da
história oficial” (GAGNEBIN, 2001, p. 98), que planifica a multiplicidade, provendo
explicações tão fechadas a ponto de tornarem-se verdades.
Validamos a história a partir de problemas colocados no presente. Voltamos ao
passado para com ele estabelecer uma nova relação. Assim, este não é mais visto
linearmente, como um ponto a partir do qual tudo evolui. Aproximamo-nos da idéia de
origem, apresentada por Benjamin, não como identidade preservada, mas, como “um salto
para fora da sucessão cronológica niveladora à qual uma certa forma de explicação
histórica nos acostumou. Pelo seu surgir, a origem quebra a linha do tempo, opera cortes no
discurso ronronante e nivelador da historiografia tradicional” (GAGNEBIN, 2004, p. 10).
Interessamo-nos pela história, como potência de diferenciação, uma vez que o
passado presentificado não é igual. Uma formação histórica, seja ela mais próxima, ou mais
distante, é analisada pela sua diferença (DELEUZE, 1992). Permitir a diferenciação é
provocar um desvio no plano que chamamos de história oficial, na medida em que essa
operação exige alguma dose de abertura. Vale ressaltar que a potência de diferenciação não
35
está em oposição à historiografia tradicional. Não há uma essência na história oficial e,
tampouco na diferença, assim também não há separabilidade absoluta. Se entendemos que
esses planos estão em movimento, não possuindo uma natureza fixa e imutável, a dimensão
da abertura, por sua vez, não será um estado inerente, mas uma potência.
Plasmatio é um coletor das sobras do discurso que a história oficial deixou para trás.
A partir do trabalho, podemos voltar ao passado, não para nos reconciliarmos com ele, mas
para estranhar o próprio presente. Como aponta Benjamin (1994, p.224): “articular
historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal como relampeja no momento de um perigo”.
Lúcia Alves, filha de Mário Alves, foi quem forneceu documentos para a criação de
mais uma escultura para o conjunto Plasmatio. Rufino utiliza uma longa mesa de madeira
escura e, no tampo, decalca um conjunto de documentos da família Alves. A gravura
impressa nos documentos faz com que a mesa, que outrora foi utilizada para fins
terapêuticos, agora se assemelhe ao mobiliário do Instituto Médico Legal.
Lucia conta que ter aceito o convite de Rufino lhe levou a reencontrar seus arquivos,
e ficou em choque: “eu tenho tudo isso”, espantou-se. Talvez o contato com as lembranças
surpreenda nesse sentido, ainda há muito guardado, há muito silenciado.
Em nosso passeio pela exposição, Lucia nos fala de sua experiência com o trabalho.
Conta que, quando está sozinha em frente àquela mesa, “é só dor e saudades”, mas quando
tem a oportunidade de falar de sua experiência, para as outras pessoas, isso se transforma.
Dessa forma ela traz o efeito da coletivização dessa experiência em sua vida. No momento
em que essa deixa de ser sua história pessoal algo se produz. Para Coimbra (2004, p.12): "a
fala, a denúncia, o tornar público, nos retiram do território do segredo, do silêncio, da
clandestinidade. Com isso, podemos sair do lugar de vítima fragilizada, despotencializada e
ocuparmos o da resistência, da luta".
Percebemos que a demarcação oficial do fim da ditadura, em 1985, não condiz com
esta experiência que ainda vibra. Passam-se os anos e a insistência das saudades, das dores
no corpo e dos pesadelos, apontam que, de fato, essa história não está enterrada.
Acompanhando Lucia, que nos fala dos documentos, transformados em escultura,
por Rufino, experimentamos a vivacidade desta história. Durante nossa conversa, ela diz,
repetidamente: - “Isso é vivo” e, enquanto conta, faz brotarem personagens de sua história:
36
a mudança na caligrafia da mãe, após ter sofrido um acidente, os companheiros de luta;
todos estão vivos naqueles documentos. - “Essa história não está enterrada”, diz ela. Se,
como lembra Gagnebin (2006), as inscrições funerárias são os primeiros rastros de signos
escritos, a experiência de Lucia reitera que memória, escrita e morte são inseparáveis.
O ato de retirar esses documentos de arquivos privados possibilita que os
acontecimentos ultrapassem e desafiem, até mesmo, a própria morte. A memória pessoal,
quando coletivizada, passa a ser história, é viva e não se restringe a um passado, não está
presa ao presente.
2.2 Âmbar
“É preciso trazer essa história à tona, não porque ela é
feia, pelo contrário, ela tem partes belíssimas na minha
opinião, mas porque ela faz parte do que nós somos
hoje”.
Ana Bursztyn, “Fala Corpo”, 2006
Lucia, filha de um desaparecido, segue reclamando pela sepultura que lhe é de
direito. O corpo sem vida de Mário Alves não pertence mais, somente à sua família, pois
ele guarda uma história que não termina com a sua morte. O que é denunciado por Lucia, a
ausência de sepultura, é o avesso de outra ausência, a de palavra (GAGNEBIN, 2006).
A interdição à palavra está colocada na fala de Ana Bursztyn no vídeo “Fala
Corpo” (2006). Ela explicita a dificuldade de falar desta experiência e de, ao mesmo tempo,
encontrar quem a ouça. Ela não quer falar para o espelho e supõe que nem todos suportam a
intensidade do que viveu. A gravação do vídeo, ou seja, o momento em que as entrevistas
foram realizadas, demonstrou que, ao contar essas histórias, afetos agudos se produzem,
não só para quem fala, mas, também, para quem ouve.
Em algumas passagens dos depoimentos o ar ficou denso. Como testemunhas,
pudemos ser aquele que fica, que consegue ouvir a narração insuportável do outro, “não por
culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida
apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado
37
pode nos ajudar a não repetir infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a
inventar o presente” (GAGNEBIN, 2001, p. 93).
Passeamos por entre as ruínas lapidadas ao longo do nosso encontro. Nenhum
glamour a esta intensidade produzida, já que “a uma só vez destrutora e salvadora, faz ruir
a ordem das palavras e das coisas – porque, se algo puder ser salvo, só o será sobre essas
ruínas” (GAGNEBIN, 2004, p. 97-98). Operamos fracionamentos, divisões, multiplicações
e subtrações, permitindo que alguns territórios consolidados possam implodir na relação
com o novo. Escapando à obsessão de preservar e somar, encontramos esta intensidade
destrutora e, ao mesmo tempo, salvadora.
2.2.1 Enquanto crianças amolam facas, cegos erram o alvo
A privação de palavra a que nos referimos pode ser uma operação explícita de “cale-
se”, ou uma estratégia velada de silenciamento e, portanto, de produção de esquecimento.
Mesmo que variem os métodos, os efeitos são devastadores, “aniquilar um homem é tanto
privá-lo de comida como privá-lo de palavra” (GAGNEBIN, 2004, p. 109).
Em nossa cultura o nome é um instrumento de passagem. Simbolicamente,
transmite um legado familiar. O mesmo nome que faz passar é o que fixa, na medida em
que, com ele nos identificamos ao longo de nossa vida. Ana se viu obrigada a mudar de
nome. Seu sobrenome Bursztyn, que significa âmbar, em polonês, deu lugar ao “de
Miranda Batista”. Abandonou o âmbar de seu nome, porque este a colava a uma história
produzida.
Na década de 1970, Ana vivia em São Paulo, na clandestinidade, desenvolvendo
suas atividades de militância e tentando viabilizar um exílio no exterior. No dia 15 de julho
de 1970, ela precisou passar o tempo, aguardando o horário marcado para um ponto
8
. Como
estava próxima a uma grande loja de departamentos paulista, pegou alguns cosméticos,
colocou em uma sacola e se dirigiu ao caixa para pagar. Uma fiscal da loja a acusou de ter
8
Na época, era chamado de ponto o encontro entre militantes que tentavam driblar o cerco da
repressão.
38
furtado a sacola. Levada à sala do chefe da segurança, ela tentou desfazer o engano, mas
quiseram revistá-la. Ela portava uma arma na bolsa, o que seria suficiente para incriminá-la
e levá-la, novamente, à tutela das equipes do aparato repressivo. Tentando fugir, atingiu,
acidentalmente, o chefe de segurança da loja. Na época, foi presa sem direito a julgamento
e torturada nos moldes da OBAN
9
. Seu nome estampou páginas de jornal como a “ladra
terrorista” (CARVALHO,1998).
O modo como os fatos foram noticiados, apresentando Ana Bursztyn como “ladra
terrorista”, obtiveram eco na época. Hoje, um grupo intitulado TERNUMA
10
(Terrorismo
Nunca Mais) em seu sítio www.ternuma.com.br
(consultado em 14/01/2007), criou o
“Memorial 1964”, para homenagear os que foram, segundo eles, mortos por militantes
contrários ao regime ditatorial. Diz o grupo TERNUMA:
O clamor das manifestações públicas e sociais do início de 1964 desaguou no
Movimento Democrático de 31 de março, marco imorredouro da evolução
política nacional, quando as forças democráticas, lideradas pelas Forças Armadas
e em defesa da nossa Soberania, impediram que o comunismo internacional
tomasse o poder. Eterna homenagem aos que lutaram em prol da Democracia e da
Liberdade.
O sítio é composto por artigos escritos por militares, tecendo elogios e apoio aos
mesmos. Aos atos bárbaros cometidos por agentes do Estado, alguns se referem como
9
A pouca eficiência dos DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social),
burocratizados e contaminados por práticas corruptas, como extorsão de dinheiro, criou condições
para a iniciativa de instalação de uma entidade centralizadora na luta contra-revolucionária. A
Operação Bandeirantes (OBAN), fundada em 1969, em São Paulo, tinha caráter extralegal já que
não constava de nenhum organograma do serviço público. Manteve-se com recurso de órgãos já
existentes e com farta contribuição de grandes empresas brasileiras e multinacionais. Graças ao
êxito alcançado, em setembro de 1970, a OBAN foi integrada ao organograma legal, sob a
denominação de DOI/CODI II (Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações
de Defesa Interna do II Exército). Foi, portanto, a unificação de todos os serviços vinculados à
“inteligência” e repressão, como as Forças Armadas, o DOPS, a Polícia Militar, o Corpo de
Bombeiros e a Polícia Federal, sob comando do Exército, funcionando em cada região militar do
Brasil. Em São Paulo, no início dos anos 70, sob o comando do major do Exército, Carlos Alberto
Brilhante Ustra, a tortura se tornou “uma prática orientada e metódica, friamente executada”
(GORENDER, 1987, p.157).
10
O TERNUMA surge, após as denúncias públicas apresentadas pelo GTNM/RJ, contra
torturadores que ocupavam cargos públicos, em especial no governo do estado do Rio de Janeiro
(gestão do então governador Leonel Brizolla) e contra médicos legistas do Rio de Janeiro e de São
Paulo, que oficializavam as torturas, através de seus laudos, atestando que as mortes eram
causadas por atropelamento, suicídio e outros e não por assassinato, ou em conseqüência da
brutalidade das práticas instituídas pela repressão.
39
“defesa da nossa Soberania”. Estes que, fardados, torturaram e mataram são homenageados,
porque, para alguns, “lutaram em prol da Democracia e da Liberdade”.
O coronel reformado do Exército Carlos Brilhante Ustra, por sua vez, está
recebendo moções de apoio neste sítio. Ele comandou, em São Paulo, as operações do DOI-
CODI de setembro de 1970 a janeiro de 1974. Neste período, houve 502 denúncias de
torturas praticadas por homens, sob o seu comando, e por ele diretamente. Ustra é o
primeiro acusado de tortura, ocorrida durante a ditadura, a ser julgado no País. A família
Teles
11
iniciou, em 2007, uma ação cível declaratória, ou seja, pede que a Justiça o declare
torturador, neste período, e reconheça que ele causou danos morais e à integridade física
dessas cinco pessoas. Neste caso, não há, portanto, responsabilização criminal de Ustra,
pela prática da tortura, ou pelos cerca de 40 assassinatos decorrentes da violência dos
interrogatórios ocorridos no DOI-CODI de São Paulo (www.cartamaior.org.br
,consultado
em 14/01/2007).
Edson é um dos cinco integrantes da família Teles. Ele foi preso aos quatro anos,
juntamente com sua irmã Janaína, de cinco anos, e de sua tia Criméia, na época grávida de
sete meses. Provocado pelo artigo de Jarbas Passarinho
12
, intitulado "A tortura e o
terrorismo" (Folha de S. Paulo - 28/11/2006), Edson escreve no jornal Folha de São Paulo
uma carta na qual relata parte de sua história. Em um trecho ele diz:
Já dentro do DOI-Codi, fui levado a um lugar onde pude ver meus pais já
torturados. Por uma janelinha, a voz materna que meus ouvidos estavam
acostumados a escutar me chamava. Porém, quando eu olhava, não podia
reconhecer aquele rosto, verde/arroxeado pelas torturas que o oficial do Exército,
coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, havia infligido à minha mãe. Era ela, mas
eu não a reconhecia. Essa cena eu não esqueço, não porque arquitete uma
vingança imaginária contra o coronel Ustra.
Ela não é uma informação da qual disponho, mas uma marca que talvez só por
meio da terapia de meu testemunho público possa acalmar, deslocar para espaços
periféricos de minha memória (Tortura - Folha de S. Paulo - 29/11/2006).
O coronel Jarbas Passarinho desconhece a potência desta história. Sua cegueira não
lhe permite ver que suas palavras farão as crianças de outrora falarem. Edson diz sentir-se
11
César, Maria Amélia, Criméia Almeida (irmã de Maria Amélia), Edson e Janaina (filhos de César
e Maria Amélia).
12
Jarbas Passarinho é coronel da reserva. Foi governador do Pará (1964-65) e senador por aquele
Estado em três mandatos (1967-74, 1975-82 e 1987-95), além de ministro da Educação (governo
Médici), da Previdência Social (governo Figueiredo) e da Justiça (governo Collor).
40
obrigado a “prestar um testemunho de infância” (Tortura - Folha de S. Paulo - 29/11/2006)
e justifica o uso do termo. Escreve por obrigação, visto que, para ele, é imensa a dificuldade
de rememorar e de expor seus sentimentos. O senhor Jarbas Passarinho, em um trecho de
seu artigo, pergunta:
E por que endossam versões falsas, como a de que crianças foram encarceradas e
torturadas, quando, na verdade, presos os pais em casa, não havendo babás, uma
policial se ofereceu para levá-los para a sua própria casa até chegarem os parentes
moradores em outro Estado? Foram entregues sãos e salvos.
Como apresenta Foucault (1979), alguns fazem da história aquilo que conserva,
agrupando em uma totalidade lacrada sobre si mesma, a diversidade. Construindo uma
identidade, esta modalidade, formatadora de história, pretende propiciar um feliz encontro
com o passado, agora apreendido em suas facetas demarcadas.
O encontro de Edson com Jarbas Passarinho racha sua meta-estabilidade e,
abruptamente, irrompe um testemunho. Aqui, o sentido histórico aparece como produção de
rupturas. Perspectivista, como um sistema aberto, abarca os desvios e não visa à
acumulação. Assim, o “saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar
(FOUCAULT, 1979, P.28).
Sempre é tempo para amolar a faca. Em poucas palavras, Edson nos apresenta uma
vivência quase irreal para uma criança de quatro anos: “era ela, mas eu não a reconhecia”.
Mesmo sabendo que estava junto de sua mãe, aquele menino não podia associar a voz dela
àquela imagem quase não humana que lhe aparecia. Tomando para si a obrigação de
produzir um testemunho, abre caminhos para suavizar suas marcas.
2.2.2 Quero conservar o Calhambeque
13
13
Trecho da música “O Calhambeque” de Roberto Carlos. Esta canção foi um dos
expoentes da “Jovem Guarda”, chamada “juventude alienada”, em oposição ao Movimento
Tropicalista e às “canções de protesto” (ver mais em COIMBRA, C.M.B. Guardiães da Ordem: uma
viagem pelas práticas psi no Brasil do milagre. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995).
41
Denominamos testemunho aquilo que não resulta da ação de um sujeito. Derivado
de um encontro, corte ou acontecimento, é impessoal, pois faz referência a algo não
limitado a algum ser nominado, tendo a experiência como condição. Nesta dimensão,
coloca-se a narração, inscrevendo a experiência em um tempo, não necessariamente
correspondente ao acontecer de fato. O comunicável, por sua vez, está presente na
linguagem que “liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de
seu esquecimento” (SARLO, 2007, p. 24).
Se há necessidade do testemunho ser assinado e datado é na mesma medida da
condição de ultrapassar histórias individualizadas. Nesta pesquisa, estes não assumem o
lugar de verdade reveladora. Tampouco ressaltamos o aspecto subjetivista, entendido aqui
como um centramento no indivíduo, um voltar-se para um interior, dirigindo-se a algum
recôndito da real experiência.
A história carrega a marca da incompletude, operando em permanente estado de
abertura. Encontros que não cessam de acontecer podem produzir novidades e, em um
descuido, o que estivera plenamente estabelecido deixa de estar. A história “jamais poderá
ser totalmente contada e jamais terá um desfecho” (ibid).
Certos depoimentos, prestados durante a ditadura, têm caráter de testemunho. Neste
período, a maior parte das falas registradas sobre o assunto foram compulsórias, realizadas
nas Auditorias Militares
14
, onde, apesar das torturas, muitos as denunciaram, assim como
os assassinatos de companheiros que foram presenciados. As exceções ocorreram,
eminentemente, dentre o grupo de exilados no exterior. Em 1974, na cidade de Roma, o
Tribunal Bertrand Russell II
15
se constitui, com o objetivo de julgar, moralmente, crimes
contra a humanidade no Brasil. Na fase preparatória, o objeto do Tribunal se estendeu às
violações de direitos humanos ocorridas no Chile, Uruguai e Bolívia. Este Tribunal não
possuía nenhum poder institucionalizado, mas era tido, pelos brasileiros, como um espaço
14
A Lei n° 1802, de 05 de janeiro de 1953, definia os crimes contra o Estado e contra a ordem
política e social, ficando seu trâmite a cargo da justiça comum. A partir do Ato Institucional n° 2, os
crimes previstos nesta Lei passaram para competência exclusiva do Foro Militar. As Auditorias
Militares compunham a primeira instância da Justiça Militar (Arquidiocese de São Paulo (org.),
1985).
15
Em maio de 1967, reuniu-se em Estocolmo, o Tribunal Bertrand Russell I, presidido por Jean-
Paul Sartre. Este ambicionava a condenação dos crimes de guerra dos Estados Unidos ocorridos
no sudeste da Ásia (Vietnã).
42
de ação política na luta contra a ditadura. Carmela Pezzuti
16
esteve entre os dez brasileiros
convocados a prestar testemunho neste Tribunal.
Sentada, depois de identificar-se, Carmela começou, pausadamente, a contar à
imensa platéia o calvário dos filhos e o seu próprio suplício nos cárceres da
ditadura militar brasileira. À medida que prosseguia no seu relato, observava
muitas das pessoas sentadas nas primeiras cadeiras a enxugarem as lágrimas. Foi
ao detalhe na descrição dos horrores que se praticavam nas prisões brasileiras. E
encerrou as suas palavras com o pensamento voltado para os companheiros que,
no Brasil e no Chile, ainda passavam por semelhantes horrores nas prisões [...]
(PAIVA, 1996, P. 173).
As Auditorias Militares coletaram, oficialmente, numerosos depoimentos. Nesta
circunstância, militantes denunciaram, em juízo, a violência utilizada pelo Estado.
Detalhadamente, relataram os métodos empregados pelo aparato da repressão, a tortura
sofrida e os assassinatos testemunhados, citando, inclusive, os nomes dos responsáveis.
Este material serviu de base, para a pesquisa realizada pela Arquidiocese de São
Paulo, intitulada Brasil: Nunca Mais (BNM). Para a pesquisa, foram microfilmados e
analisados documentos sobre a repressão política no Brasil no período de abril de 1964 a
15 de março de 1979. Quase todos os processos políticos, formados na Justiça Militar,
foram utilizados, priorizando-se aqueles que chegaram ao Supremo Tribunal Militar
(STM)
17
, totalizando 707 processos que ultrapassam um milhão de páginas. A pesquisa
organizou, ainda, um arquivo reunindo 10.170 documentos, tais como: panfletos,
periódicos, textos de discussão teórica e outros.
16
Carmela Pezzuti participou, ativamente, na resistência ao regime militar brasileiro, juntamente
com seus dois filhos, Ângelo e Murilo. Foi presa e torturada em 1970, até que, em 14 de janeiro de
1971, é incluída na lista dos presos a serem exilados no Chile, como condição para libertação do
embaixador suíço, seqüestrado por um grupo de militantes. Com o golpe no Chile, em 11 de
setembro de 1973, Carmela e seus filhos, bem como outros exilados, são obrigados a buscar asilo
em outros países. Ela vai à Itália, onde permanece por mais tempo, morando também na França,
almejando melhores condições de vida. No exterior, enfrenta inúmeras dificuldades, mas segue
militando contra a ditadura e, posteriormente, pela anistia ampla, geral e irrestrita. Em 1979, com a
anistia, Carmela retorna ao Brasil, após oito anos de exílio. Seu filho Ângelo havia morrido em um
acidente automobilístico na França. Murilo, seu outro filho, suicida-se alguns anos após seu retorno
ao Brasil. As feridas da tortura não cessaram de sangrar. Sobre Carmela Pezzuti ver mais em
PAIVA, M. Companheira Carmela: a história de luta de Carmela Pezzuti e seus dois filhos na
resistência ao regime militar e no exílio. Rio de Janeiro: Mauad, 1996.
17
Das decisões tomadas pelas Auditorias, cabe recurso ao STM, que corresponde à segunda
instância da Justiça Militar. O STM é composto por 15 ministros vitalícios, sendo 10 generais e 5
civis, todos indicados pelo presidente da República (Arquidiocese de São Paulo (org.), 1985).
43
Concluído em 1985, o Projeto Brasil: Nunca Mais resultou em 12 tomos. Este
material é a maior fonte histórica de pesquisa que, até hoje, temos sobre aquele período.
Com base nesses dados, foram realizadas cassações de, registro profissional de apenas
alguns dos muitos médicos envolvidos, diretamente, no aparelho repressivo, como, por
exemplo, o médico aspirante à psicanalista Amílcar Lobo
18
. Denúncias de que torturadores
ocupavam cargos públicos, realizadas por entidades de direitos humanos
19
, também foram
formalizadas, a partir de informações contidas nesta pesquisa e nas pesquisas efetuadas
pelo GTNM/RJ, nos arquivos do Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, em 1992. Até
mesmo alguns processos, na Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, em Brasília, e
nas Comissões de Reparação
20
, criadas em alguns estados, foram legitimados por esses
dados.
No texto de apresentação do livro Brasil: Nunca Mais (1985), versão resumida da
pesquisa BNM, são colocadas algumas dificuldades e riscos que envolveram o estudo.
Dentre elas, chama atenção a vivacidade da experiência, recentemente ocorrida, ter sido
incluída no campo das dificuldades e/ou riscos. Está dito que:
[...] os traumas do período anterior, marcado pela tortura rotineira, pelas mortes e
pelos desaparecimentos, ainda estavam bastante vivos nas consciências,
inspirando temores e exigindo cautelas. Não se tinha, sequer, a certeza de que a
pesquisa conseguiria atingir o seu final, nem se sabia se um dia seria possível
publicá-la (Arquidiocese de São Paulo (org.), 1985, p.23).
18
Citado por Ana Bursztyn em “Fala Corpo”, como “médico da PE de triste memória”, integrou a
equipe de médicos torturadores durante a ditadura militar. A função destes profissionais era avaliar
a resistência dos prisioneiros, para saber o quanto agüentavam, evitando, assim, que morressem
antes de fornecer as informações almejadas pela repressão. Além disso, cuidavam dos presos,
após as sessões de tortura, a fim de recuperá-los para serem novamente torturados.
Amílcar Lobo teve seu registro médico cassado, em 1988, como resultado do processo aberto pelo
próprio Conselho de Medicina do Rio de Janeiro. O GTNM/RJ contribuiu no processo, fornecendo
depoimentos e enviando testemunhas (COIMBRA, Médicos e Tortura, www.dhnet.org.br).
Ver mais
em COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Guardiães da Ordem: uma viagem pelas práticas psi no
Brasil do milagre. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.
19
O Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro surge em 1985 e um de seus objetivos, na
época, era impedir que torturadores ocupassem cargos públicos.
20
Resultado da luta de diversas entidades de direitos humanos, familiares de mortos e
desaparecidos, militantes e alguns parlamentares, foi a assinatura do governo brasileiro, em
dezembro de 1995 da Lei n° 9.140/95. Esta prevê condições, para reparação financeira de
pessoas mortas e desaparecidas por motivos políticos, bem como reparação financeira a seus
familiares. Reconhecendo de imediato como mortos 136 desaparecidos políticos, criou uma
Comissão Especial, para analisar outras mortes de causas não naturais, por motivação política,
ocorridas em “dependências policiais ou assemelhados” entre 02 de setembro de 1961 e 15 de
agosto de 1979 (COIMBRA, Resquícios da Ditadura no Brasil, www.dhnet.org.br
).
44
A experiência crua, ainda sem o efeito do tempo, impôs-se como um possível limite.
Em 1985, data da publicação do livro, o terror estava próximo, por um lado, e, por outro, o
clima de “jovem guarda” era mais sugestivo, para apagar as dores do que para produzir
história. Foi preciso deixar a poeira baixar, esquecer em parte o horror vivido, para
continuar existindo.
Hoje, muitos desconhecem, e outros ainda negam a violência do Estado ocorrida no
período da ditadura militar. Os documentos tornados públicos pelo BNM, produzidos pelas
próprias autoridades, dão prova da legalidade do método adotado pelo Estado, ao contrário
do que alguns afirmam, dizendo que houve acontecimentos isolados de violência, por
excessos individuais e não como política de Estado. O coronel Ustra, em entrevista ao
jornalista César Baima, do Portal da TV Globo, diz: - “Minha função era a de comandante
do DOI/CODI do 2
º
Exército. Muitos afirmam que existiram excessos no tratamento dos
terroristas presos. Mas, se existiram foram poucos. Não foi a regra constante”
(www.g1.com.br
, publicado em 04/02/2007).
Desconhecemos outras ações do grupo TERNUMA, além do que consta no sítio. É
possível supor que os poucos autores a assinarem matérias estão, de algum modo,
vinculados, atuando, diretamente, ou compactuando com o posicionamento deste “grupo-
fantasma”. Partindo do nome do grupo, fica evidente a intenção de opor-se a organizações
que atuam, na direção da luta pela garantia dos direitos humanos, como, por exemplo, o
Grupo Tortura Nunca Mais. Porém, se analisarmos alguns efeitos das estratégias adotadas
pelo TERNUMA, observamos que o embate se fortaleceu.
A ocorrência da tortura, durante a ditadura militar, está, ainda que de maneira
tímida, na pauta de discussões. A partir da publicação do artigo de Jarbas Passarinho, em
um jornal de grande circulação, por exemplo, atingidos pela violência do Estado, que até
então não haviam-se manifestado, publicamente, deram seu testemunho. O embate se
ampliou, não está restrito ao campo das idéias, mas está tramitando na justiça, com a ação
declaratória promovida pela família Teles.
Ação é o nome apropriado para o movimento da família Teles. No território da
micropolítica, propagação e contágio são mecanismos de reverberação e proliferação dos
acontecimentos. Ações afirmativas, com freqüência, acionam estes mecanismos,
45
desencadeando outras ações. Sendo a ação acionada por propagação e contágio, não há
linearidade, nem tampouco previsibilidade possível, a ordem é a do acaso.
Além dos Teles, muitos outros familiares e militantes teriam questões para serem
discutidas no âmbito jurídico. Novamente, o grupo TERNUMA nos fornece exemplos,
visto que em seu sítio inclui o nome de Ana Bursztyn na lista dos que chamam de
“terroristas assassinos”. No “Memorial 1964”, Isidoro Zamboldi, guarda de segurança, foi
“morto pela terrorista Ana Bursztyn durante assalto à loja Mappin”. Até o presente
momento, não há provas de que o referido segurança tenha sido morto. Ana, presa diversas
vezes e submetida a variados métodos de tortura, vem sendo acusada de matar alguém que
pode até mesmo estar vivo.
Pinçamos alguns elementos da história de Ana e nos permitimos transitar por uma
rede que passa, invariavelmente, pelo GTNM/RJ, suas bandeiras de luta, seus entraves e
suas ações. A inserção de Ana, no Grupo, foi vital para ela, que se movimenta na direção
indicada por Edson, quando, em seu texto, aponta modos de suavizar as marcas. À imagem
das mãos calejadas dos que lutam, Edson nos presenteia com a suavidade. Habitando o
paradoxo de, através da luta reencontrar a suavidade da pele de criança, escapa ao fatalismo
de acumular calos. O ato de suavizar as marcas não equivale a apagá-las, permitindo que
devenham rastros.
No território da memória, a imagem do rastro explicita a tensão entre presença e
ausência (GAGNEBIN, 2006). Enquanto a imagem da marca sugere uma permanência, o
rastro, por sua vez, ocupa o limite perene do próprio desaparecimento. Parte do processo de
reconciliação com o passado é o reconhecimento de que o rastro é a lembrança de uma
presença que não existe mais.
2.3 Qual o destino do cachorro que corre atrás do próprio rabo?
Ana, Edson, Lucia e tantos outros não querem voltar à infância, mas fazer brotar a
vida na pele, que pode estar sempre se renovando. Foucault, comentando um dos grandes
trabalhos dos filósofos Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia
46
(1972), resume alguns princípios que acompanham o livro, definido por ele como “arte de
viver, contrária a todas as formas de fascismo” (FOUCAULT, 1972, p.83). No quarto
princípio, ele diz: “não imagine que precise ser triste para ser militante, mesmo se a coisa
que combatemos é abominável. É o elo do desejo à realidade [...] que possui uma força
revolucionária” (ibid).
A militância do GTNM/RJ, com seus percalços, é repleta de alegria, na medida em
que aposta na afirmação da vida. Sua potência está em dobrar as durezas que surgem ali
mesmo, no próprio Grupo, e assim reverberar no âmbito da micropolítica. É na capacidade
de analisar os próprios movimentos que reside a força revolucionária. É inútil lutar contra
um inimigo externo, enquanto nossas práticas, cegamente, reproduzirem sua lógica de
funcionamento.
Uma situação interessante foi suscitada por um artigo publicado no jornal trimestral
do Grupo. O artigo intitulado O Outono do Torturador (Jornal do Grupo Tortura Nunca
Mais/RJ, 2006) abordava a ação movida pela família Teles contra o coronel Ustra. O que de
fato provocou polêmica não foi o conteúdo do artigo, mas seu autor.
Celso Lungaretti foi, aos 19 anos de idade, dirigente da VAR-Palmares (Vanguarda
Armada Revolucionária – Palmares), organização de luta armada contra a ditadura militar.
Preso e terrivelmente torturado protagonizou, nessas condições, um auto-de-fé e
arrependimento público veiculado pelos mais abrangentes meios de comunicação da época.
Seu depoimento foi exibido aos militantes presos, mais um método utilizado, para dizimar
qualquer vestígio de força que ainda houvesse, para resistir à repressão e à tortura. Além
disso, por muitos anos, pesou sobre ele a acusação de ter delatado seu grupo, informando a
localização do campo do Vale do Ribeira
21
, sendo assim responsável pelas quedas na
organização. Recentemente, veio a público o modo como o aparato repressivo obteve
acesso a essas informações, contrariando o “julgamento” feito, por muitos anos que
imputava a Celso esta responsabilidade (LUNGARETTI, 2005).
A publicação do artigo de Celso, no jornal, provocou uma reação barulhenta,
permeada pela raiva e pelo ressentimento, por parte de alguns militantes. Neste contexto, o
tema foi posto em discussão na plenária do Grupo. O debate foi da ordem do
21
Em 1969, em Jacupiranga, no Vale do Ribeira, a 200 km de São Paulo, foi instalado pela VPR
(Vanguarda Popular Revolucionária) um campo de treinamento, para guerrilha armada,
comandado por Carlos Lamarca.
47
acontecimento, fazendo irromper intensidades imprevistas. Vale destacar três aspectos do
acontecimento Lungaretti:
- o atravessamento da moral, no campo dos direitos humanos, criando bons e
maus;
- algo fez falar e jorrar intensidade;
- o mandato ainda vigente de que “o melhor é não falar”.
2.3.1 Heróis do silêncio
O atravessamento da moral surge com toda a força, quando entra em pauta o debate
sobre a resistência à tortura. Foram mais fortes os que não falaram nada aos torturadores?
Observamos que, sutilmente, alguns mitificam os que resistiram. Assim, os que puderam
calar, ainda hoje, são considerados heróis por alguns, tendo por isso mais valor.
A discussão, no âmbito da moral, gerou pouco movimento, algo como o movimento
incessante e cansativo de correr atrás do próprio rabo. Alguns pretendiam descobrir, ou
definir, se Celso era, ou não, agente infiltrado da repressão, ou um “cachorro”
22
. Questionar
as ações de um companheiro, nas circunstâncias sabidas, quais sejam, preso e submetido a
toda a sorte de tortura e ameaças fizeram instalar no Grupo, virtualmente, um clima de
tribunal. Eduardo Passos, no Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (março/2007),
aponta: “como querer buscar o sujeito da traição onde a força da violência se impunha
como experiência geradora de exceção? Só há excepcionalidade quando a violação dos
direitos humanos suspende todas as regras e se impõe como fato totalitário, absoluto e
inegociável”.
2.3.2 No tribunal as estátuas não se movem
22
Eram chamados de cachorro os que passavam a colaborar com a repressão. Neste debate a
terminologia volta a ser utilizada.
48
Por outro lado, na freqüência do acontecimento a plenária falou. Muitos contaram
suas experiências, a força da militância, o sofrimento da tortura e a dor pela perda de
familiares e amigos. Algo vivo e pulsante presentificou a história, fazendo com que ela
pudesse surgir na atualidade do instante. Uma rede foi sendo tecida, encadeando as falas e
criando um corpo para o que até então fora indizível.
No terreno da moral, as falas estavam centradas no julgamento de um indivíduo,
personalizando as questões. Neste momento, habitou-se a ilusão de que poderíamos obter
um veredicto sobre Celso. A solução estava próxima, bastava descobrir a verdade dos fatos,
atingindo assim a essência de Celso Lungaretti. Com este procedimento, surgiria a resposta
e a consciência dos “juízes” estaria finalmente aliviada. A responsabilização individual,
calcada na busca pela essência, é uma operação típica do sistema capitalista
contemporâneo. A este respeito Coimbra e Leitão (2006, p.07) afirmam:
Cria-se a falsa noção de sujeito autônomo, do livre arbítrio, e que se dá sempre no
plano individual, respaldado pela crença na democracia representativa. Produz-se
a reificação do indivíduo. Neste modo de ser e de estar no mundo, tudo será
responsabilidade e atributo do sujeito. Entretanto, esta é apenas uma das formas
possíveis de subjetividade em nosso mundo. Ela expressará uma característica
cara ao modo de funcionamento capitalista: a meritocracia onde tudo depende da
capacidade e da eficiência individual. Cada um passa a ser responsável pelo que é
e pelo que consegue fazer. Hoje, no neoliberalismo, exige-se que esse homem
seja cada vez mais flexível. O fracasso e o sucesso são, então, considerações
individuais associadas ao Bem e ao Mal.
Os testemunhos, por sua vez, deslocaram as individualizações. A vontade de chegar
a uma verdade cedeu lugar a uma pluralidade de histórias. No tribunal, o eixo da discussão
era sobre quem ocuparia cada lugar e por quê. Assim, surgiram réus, juízes, testemunhas e
condenados. Desativado o tribunal, passa-se a avaliar, não mais a ocupação dos lugares,
mas os próprios lugares instituídos pelo grupo.
Dissolvida a atmosfera de julgamento, com seus modelos rígidos, ganham corpo
afetos singulares. As experiências coletivizadas nos relatos, em plenária, deixam de ser
fardos a serem carregados, exclusivamente, por quem as vivenciou.
Um dos temas mais debatidos foi o que significava falar, ou não falar, durante a
tortura. Muitos disseram que o melhor era não falar, para não entregar os companheiros.
49
Nota-se, pelos depoimentos, que quem calava se sentia mais forte e livre de culpa,
novamente no movimento que individualiza as ações, criando representantes da força, ou
heróis, e da fraqueza. O mandato de não falar e o martírio que envolveu aqueles que
abriram alguma informação acompanham esta história, até hoje fortalecendo barreiras, para
transmissão da experiência.
Os três aspectos apontados, envolvendo a publicação do artigo de Lungaretti, não
aconteceram em ordem cronológica. Os movimentos foram sobrepostos, notando-se
avanços e recuos.
2.3.3 Brasil, País de todos
23
O Grupo faz convergir, em suas lutas, diversas linhas de tempo. O tempo intensivo
torna o passado atual. Assim, encontramos uma variedade de histórias, ações e
acontecimentos que demonstram, explicitamente, a amplitude do que a sociedade brasileira
pode produzir, a partir de sua história, em grande parte, ainda confinada a arquivos secretos
do período da ditadura militar. Nosso Estado, dito democrático, tem o dever de reparar o
Brasil com sua própria história já que, de fato, nosso acesso à informação nunca deixou de
ser censurado.
Alargando nosso horizonte, fatalmente nos deparamos com o silenciamento a que
estamos submetidos. Esta operação de silenciamento é hoje mais sutil e, por isso, pode não
ser percebida. O controle exercido pelo aparato de repressão, durante a ditadura, era mais
concreto, evidente e visível. Mesmo que nem toda a população tivesse conhecimento disso,
havia órgãos responsáveis por avaliar e autorizar quais idéias e informações poderiam
circular publicamente.
Um documento “confidencial” do Centro de Informações e Segurança da
Aeronáutica
24
(CISA) é ilustrativo. O CISA sugere que o Serviço Nacional de
23
Slogan do Governo Lula (eleito em 2002 e reeleito em 2006).
24
O CISA está ligado a muitas prisões, realizadas pelo contingente da Aeronáutica. Os presos
eram recolhidos à unidade da base aérea do Galeão, na qual militantes foram torturados até a
50
Informações
25
(SNI) e o Ministério da Justiça busquem a cooperação dos órgãos de
imprensa, “no sentido de evitar as palavras "Organização” e "Ação”. Segundo consta no
documento, o termo organização denota que o “bando terrorista” seja “coisa organizada,
solidificada, baseada em filosofia”. Por isso, o uso do termo organização deve ser
substituído por bando, que sugere banditismo, ilegalidade, amoralidade. No lugar da
palavra ação, por sua vez, devem ser utilizados termos como “assalto, crime, roubo,
chantagem, assassinato”, dando idéia depreciativa do ocorrido (COIMBRA, 2001, p.55).
A censura incidia, direta, ou indiretamente, em produções culturais, na imprensa,
nas escolas, e, até mesmo, em rodas de amigos, já que qualquer um poderia denunciar
supostos subversivos, acarretando em provável prisão, tortura, e até mesmo, em morte, para
aqueles taxados como contestadores do regime. Qualquer ato, entendido como
questionamento ao modelo imposto, era visto como crime, sem direito a julgamento. Em tal
contexto, surge o slogan difundido pelos que comandavam a nação e adotado por parte da
população: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Hoje, os mecanismos que fazem calar são mais discretos. A grande mídia, em
especial a televisão, é acessada, em quase todos os lares do nosso País, mas o poder de
decidir sobre o conteúdo a ser veiculado segue nas mãos de poucos. O que vemos é a
tentativa, muitas vezes bem sucedida, de massificação do pensamento, o chamado
pensamento único. Os espaços de fala, como ação, na direção coletiva e pública, tornam-se
a cada dia mais escassos. Podemos chamar a isso de liberdade de expressão? No chamado
mundo globalizado, com toda a parafernália tecnológica, está sendo criada a ilusão de que
estamos informados. Ao mesmo tempo, a população segue sendo impedida de saber o que
consta nos arquivos secretos da ditadura.
Assim, cabe perguntar: quem o Estado brasileiro está protegendo, sonegando estas
informações? A luta pela abertura dos arquivos engaja diversos segmentos da sociedade. Os
morte, a exemplo do estudante Stuart Edgar Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985).
25
Criado por lei, em 13 de junho de 1964, foi definido pelo general Golbery do Couto e Silva, seu
fundador, como Ministério do Silêncio. Destinava-se a “superintender e coordenar em todo território
nacional as atividades de informação, em particular as que interessem à segurança nacional”
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, P. 69). De 1964 a 1981, a dotação orçamentária das
oito agências do SNI cresceu 3.500 vezes, sendo criadas com 200 mil cruzeiros e chegando a um
orçamento de 700 milhões.
51
movimentos sociais afirmam, publicamente, suas posições, sublinham seus nomes e
mostram seu rosto. Por outro lado, os defensores do “sigilo eterno”
26
estão mascarados.
A atualidade do debate não está restrita à especificidade dos envolvidos, direta, ou
indiretamente, com a ditadura militar. Tortura, ocultação de cadáver, extorsão e execuções
são apenas alguns exemplos de ações, praticadas por agentes do Estado, que caracterizaram
nosso regime ditatorial e, até hoje, continuam ocorrendo
27
. Com o apoio explícito das elites
dominantes, permanece, também, a impunidade, haja vista que a maioria dos casos,
envolvendo agentes do Estado, sequer vão a julgamento.
Não há como negar a existência de eficientes mecanismos de controle e dominação.
Mas, será que, como afirmam alguns, está tudo dominado? Ao contrário do que muitos
crêem, o brasileiro não pode ser caracterizado pela resignação. Povo que concebeu revoltas,
levantes, greves e ocupações mostra que não há um exercício unilateral de poder. Focos de
resistência são mutantes, assim como as engrenagens de massificação e mortificação.
Movimentos que afirmam a vida, inventam novas armas e meios de ocupar espaços, furar o
cerco, romper as grades.
A força de militantes, como Mário Alves e muitos outros, é maior que sua própria
vida e esta jamais será plenamente capturada. Um pouco de atenção basta, para encontrar
muitos que se recusam a aceitar a resignação e, mesmo a missão, como únicas alternativas.
Seja em expressões como o jongo, criado pelos escravos, ou no rompimento de grades,
26
O Decreto n° 4.850, de 02/10/2003, amplia os prazos de segredo de todas as categorias de
documentos públicos – reservado, confidencial, secreto e ultra-secreto – permitindo, ainda, que
aqueles considerados ultra-secretos tenham sigilo aumentado, por prazo indefinido, “de acordo
com o interesse da segurança da sociedade e do Estado”.
Além de contrariar a Lei de Arquivos (Lei nº 8.159 de 1991), que fixa o prazo máximo de 60
anos, para o sigilo de documentos referentes à segurança da sociedade e do Estado, aquele
decreto também contraria a Constituição Federal de 1988, que determina que “todos têm direito a
receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou
geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas
cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” (grifo meu).
O referido decreto ampliou, ainda, o número de autoridades com o poder de classificar os
documentos como “ultra-secretos”, antes restritos aos Presidentes da República, do Congresso e
do Supremo Tribunal Federal (STF). Atualmente, os ministros de Estado e os comandantes do
Exército, da Marinha e da Aeronáutica também passam a deter esse poder (Disponível em:
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/Noticias.asp?Codigo=99
).
27
Estas práticas que, na ditadura militar, eram direcionadas aos militantes que ousavam
questionar o regime imposto, agora tem como foco moradores de bairros populares. O principal
alvo da polícia tem sido jovens do sexo masculino, negros e pobres. Sobre o assunto consultar
Coimbra (2001).
52
impostas por quem tem a chance de colocá-las, é visível que, até hoje, nem tudo foi
dominado.
Operadores da história oficial se ocupam dos feitos dos vencedores, imortalizam
seus atos, tornando-os heróis. Já os que não buscam eternizar e glorificar fatos seguem os
rastros dos vencidos, exumam seus restos, interrogando o que já estava dado como
sepultado, permitindo que, em territórios áridos, persista a plasticidade para inventar.
Assim, “ouvir o apelo do passado significa também estar atento a esse apelo de felicidade e,
portanto, de transformação do presente, mesmo quando ele parece estar sufocado e ressoar
de maneira quase inaudível” (GAGNEBIN, 2006 p. 12).
2.4 Poderes
“Acreditar no mundo significa principalmente
suscitar acontecimentos”.
Gilles Deleuze
A presentificação do passado é efeito da realidade do acontecimento, tornando
aquilo que poderia ter passado, o contínuo de um passando. A atualidade do tempo
histórico também é confirmada por práticas que não cessam de acontecer, repetem-se,
mutam-se, ampliam-se, ou se sofisticam por longos períodos.
Tecendo um mapa que apresenta alguns pontos de conexão entre a violência de
Estado, no período da ditadura, e a violência estatal instituída hoje, assistimos o futuro
repetir o passado, como canta Cazuza. A situação vivida por Carlos Abel, apresentada em
“Fala Corpo”, poderia ter acontecido em diversos momentos dos últimos 500 anos de
história do Brasil. Na montagem do vídeo, houve uma dose de intencionalidade ao não
deixar, demasiadamente demarcado, que o acontecimento se deu em 1996, propiciando,
assim, uma reflexão sobre o acontecimento da violência no decorrer da história.
Em Microfísica do Poder (1979), Michel Foucault estabelece crítica contundente a
figuras que ele chama de historiadores, fiéis representantes do paradigma científico. Para
ele, “os historiadores procuram, na medida do possível, apagar o que pode revelar, em seu
53
saber, o lugar de onde eles olham, o momento em que eles estão, o partido que eles tomam
– o incontrolável de sua paixão” (ibid, p. 30). Diferenciamo-nos desses historiadores, visto
que, no momento em que destacamos nossas intenções na montagem, evidenciamos que
jamais buscamos uma posição neutra.
É necessário explicitar que, como pesquisadoras, inevitavelmente, ocupamos
algumas posições e, a partir delas, estabelecemos nossa análise. Maurício Paiva,
apresentando o livro que conta a trajetória de Carmela Pezzuti revela: “Não espere o leitor,
neste livro, um relato imparcial. Não falseio os fatos, não os deformo, não os invento. Mas
vejo-os a partir da perspectiva que me é dado vê-los: a da minha trincheira” (PAIVA, 1996,
p. 09). Não nos entrincheiramos para atacar algum inimigo, ou para melhor defender nossas
posições, como em uma guerra. Inspiramo-nos na trincheira, como um ponto estratégico,
que permite ampliar o campo de análise e ação.
De nossas trincheiras, avistamos que a violência exercida pelo Estado não se
intensificou, exclusivamente, no período da ditadura. Escolhemos entrevistar Carlos Abel,
porque não pudemos nos furtar às evidências de que a violência de Estado hoje,
especialmente no Rio de Janeiro, vem assumindo proporções assustadoras.
As mais diversas expressões de violência estão tão incorporadas em nosso cotidiano
que, por vezes, naturalizamos sua ocorrência. Porém, não podemos perder de vista que
estas são produções sociais datadas historicamente. Se a realidade é resultado de uma
produção histórico-social, não podemos analisar a violência apartada da sociedade que a
está produzindo. Por isso, não podemos dizer que exista um único indivíduo, responsável
sozinho, por atos violentos. Apontamos aqui, para o risco da psicologização dos conflitos,
observada em muitas análises, que descontextualiza e personaliza os fatos.
Colocamos em foco algumas práticas datadas do Estado, no que se refere à
segurança pública. Desse modo, não almejamos conhecer, ou reconstituir toda a história das
polícias e das Forças Armadas brasileiras, o que seria uma ilusão. Pretendemos, a partir de
um recorte histórico, dar visibilidade aos alicerces, onde estão calcadas algumas das atuais
práticas de segurança pública, já que “cada prática, ela própria com seus contornos
inimitáveis de onde vem? Mas, das mudanças históricas, muito simplesmente, das mil
transformações da realidade histórica, isto é, do resto da história, como todas as coisas.”
(Veyne, 1982, p.159).
54
Algumas perguntas mantêm acesa nossa curiosidade: como o Estado foi se
constituindo como um violador de direitos? Estas práticas estão a serviço do quê, ou de
quem? A memória é ainda uma questão, ou está superada com a aparente liberdade
democrática? Existem ainda impedimentos para que histórias sejam contadas?
2.4.1 Práticas do aparato de segurança pública
Em nosso percurso, seguimo-nos espantando com acontecimentos que, para alguns,
se tornaram corriqueiros, parte do cotidiano. Hoje, as práticas do aparato de segurança
estatal se assemelham, em alguns aspectos, às observadas no período da ditadura.
Atualmente, o inimigo das políticas de segurança é outro, mas as práticas dos órgãos de
segurança mudaram muito pouco. Se houve alguma modificação, certamente foi
implementando uma maior sofisticação.
Ampliamos as cenas colocadas em foco, lançando nosso olhar para algumas
políticas de segurança, na história de nosso País, quando ainda não eram assim intituladas,
mas já esboçavam as práticas que seriam perpetuadas ao longo dos tempos. Traçando um
corte em um período histórico, buscamos agregar elementos que proporcionem uma visão
um pouco mais abrangente sobre o fenômeno da violência, visto que o saber nasce,
inclusive, de práticas sociais (FOUCAULT, 1996).
Desde o período colonial, as Forças Armadas Brasileiras vêm servindo aos
interesses das classes economica e politicamente dominantes. Nos três séculos de
dominação portuguesa, a missão das forças militares foi assegurar a colonização, tomando
posse e garantindo o território já conquistado, além de angariar novas terras.
Para manter-se no poder, Portugal introduz as milícias, uma organização militar
repressiva, que contava com pessoal de confiança do governo nos cargos de comando.
Entre 1789 e 1817, são reprimidas três importantes manifestações, em Minas Gerais, Bahia
No item 2.4.1, deste capítulo, será usado, como referência bibliográfica, o tomo intitulado
O regime militar, do Projeto Brasil Nunca Mais (1985).
55
e Pernambuco. Como saldo dos conflitos, temos um grande número de fuzilamentos,
enforcamentos, degolas e esquartejamentos.
O processo de independência do Brasil, que tem como marco o ano de 1822, não
pode ser considerado uma revolução, mas um grande acordo. Foram mantidas as relações
de dominação econômica, perpetuando os grandes latifúndios e a escravidão
28
.
A organização militar passou a existir, oficialmente, a partir da Constituição de
1824, sob o comando de Dom Pedro I. Foi mantida, praticamente intacta, a estrutura que já
operava na fase colonial. O Exército, remunerado, encarregava-se da defesa contra os
inimigos externos. As milícias, por sua vez, não contavam com remuneração e ficavam
encarregadas da manutenção da ordem pública nos limites das comarcas. As Guardas
Policiais, assim como as milícias, eram forças auxiliares e não pagas, responsáveis por
perseguir e prender criminosos. Como a conexão entre as províncias poderia ser feita
somente pelo mar, o Império organiza, com urgência, a Marinha, com o objetivo de evitar
tentativas de restauração colonial favorecidas pelo isolamento geográfico.
As diferentes manifestações de resistência da população eram reprimidas,
violentamente, para impor a centralização e o fortalecimento do poder monárquico. O
temor de que as Forças Armadas pudessem corromper-se com os ideais rebeldes, leva o
governo a solicitar o auxílio de mercenários estrangeiros. Repetir-se-á, ao longo da história,
este movimento, no qual, “altos comandos militares nacionais se aliam a militares
estrangeiros para garantir a repressão contra movimentos populares” (ARQUIDIOCESE
DE SÃO PAULO, 1985, p.05).
A pouca eficácia da Guarda Municipal, no enfrentamento das manifestações
populares, leva à criação da Guarda Nacional, em 1831, sendo esta, oficialmente, força
auxiliar do Exército. Assim, são extintas, além da Guarda Municipal, também as
Ordenanças e as Milícias. As atribuições da Guarda Nacional são relativas à repressão a
revoltosos internos; já o Exército fica responsável pela defesa contra as agressões externas.
A Guarda Nacional assume papel de destaque, na organização militar, relegando o Exército
a um papel secundário, opondo-se a este e sendo um instrumento dos latifundiários. Nota-se
28
Dom João VI, ao voltar para Portugal e deixar, no Brasil, o Príncipe Regente Dom Pedro, disse:
“Pedro, se o Brasil se separar de Portugal antes seja para ti que me hás de respeitar do que para
algum desses aventureiros”.
56
aí um embrião de disputas internas, por espaço e reconhecimento, no próprio aparelho do
Estado.
Com a ascensão da burguesia e a sutil decancia dos latifundiários, no final do
século XIX, a Guarda Nacional também perde espaço. O Exército, por sua vez, ganha
visibilidade, com a guerra contra o Paraguai, ocorrida entre 1864 e 1870. Esta tem como
característica o uso extremo da violência, por parte do Exército, na disputa por territórios.
Os arquivos oficiais, daquele período, até hoje permanecem inacessíveis à população
brasileira, como aponta Ana Burzstyn em “Fala Corpo”.
O reconhecimento, a estabilidade e a organização interna, obtidos na Guerra,
propiciam ao Exército que passe a intervir em questões políticas. A rivalidade com a
Guarda Nacional, identificada com os interesses dos latifundiários, confere ao Exército, por
determinado período, uma aproximação com certas lutas progressistas, como, por exemplo
com a abolição da escravidão. Esta aproximação não pode ser confundida com defesa de
interesses da população desfavorecida economicamente, já que o progressismo é relativo
“às oligarquias monarquistas, e repressivo frente às camadas mais pobres que se
levantavam em descontentamento e em luta contra o poder central” (ARQUIDIOCESE DE
SÃO PAULO, 1985, p.07).
Expressão do caráter violentamente repressivo do Exército foi a reação à revolta de
Canudos em 1897. No sertão da Bahia, movidos pela necessidade de terra, os camponeses
vencem três expedições do Exército. A resistência só é sufocada, com a mobilização de um
majestoso contingente militar, que massacra, praticamente, toda a população, com
bombardeios, degolas e fuzilamentos. Reação similar ocorre no Contestado, dirigida a
camponeses, lutando por terras, no Paraná e em Santa Catarina, entre 1912 e 1926.
Atualmente, os movimentos de trabalhadores rurais, que lutam por terra, seguem
sendo violentamente reprimidos. São compelidos a enfrentar, diretamente, grandes
proprietários de terra que se utilizam de força bruta para ameaçar, agredir e expulsar os
“invasores”. A Polícia segue apoiando latifundiários e protagoniza verdadeiros massacres,
contra comunidades inteiras que buscam um local para desenvolver seu trabalho, preservar
sua cultura e garantir seu sustento. Entre 2000 e 2005, foram registrados 223 assassinatos
em decorrência de conflitos no campo (Disponível em www.mst.org.br
). Tratadas pelo
próprio Estado como criminosas, estas famílias, de parcos recursos, compõem um dos
57
maiores e mais organizados movimentos sociais no Brasil, com reconhecimento em nível
mundial.
Voltando na história do Brasil, após 1922, agravam-se as divergências internas ao
próprio Exército. A oposição se dá entre setores de bases militares, sob a direção dos
tenentes e generais aliados a altos oficiais. O grupo liderado por tenentes apresenta lutas
consonantes com os interesses das classes médias urbanas, tais como: moralidade política,
democratização do voto e dignidade nacional, ficando conhecido como Movimento
Tenentista. Já generais e altos oficiais se mantinham aliados aos latifundiários, perpetuando
esquemas corruptos que provocaram a cisão.
Em 1930, é criada a Aliança Liberal, com o objetivo de suprimir essa agitação
tenentista e lançar Getúlio Vargas à presidência da República. Segue um período de
violenta repressão, voltada, inicialmente, contra os revoltosos de 35
29
e, posteriormente,
contra as organizações comunistas, ou qualquer outra manifestação progressista.
Nos anos seguintes à deposição de Vargas, verifica-se crescente mobilização
popular. A gestação do golpe de 64, por sua vez, já está em andamento, no retorno de
Vargas em seu governo constitucional de 1950 a 1954. Porém, o golpe de Estado é inibido
com o suicídio de Getúlio.
Alguns anos mais tarde, com a mobilização popular ganhando volume, configura-se
o momento preciso para a ação golpista obter êxito. Nos primeiros meses de 64, a
propaganda anticomunista, disseminada por organismos financiados, diretamente, com
verba norte-americana, já havia garantido o apoio da classe média e de setores importantes
dos trabalhadores. A igreja católica também tem papel de destaque nas manifestações
contra o governo constitucional.
29
Em março de 1935, foi criada a organização de influência comunista Aliança Nacional
Libertadora (ANL), que defendia propostas nacionalistas e tinha como uma de suas bandeiras a
luta pela reforma agrária. Conseguiu reunir os mais diversos setores da sociedade e se tornou um
movimento de massas.
Apenas alguns meses após sua criação, a ANL foi posta na ilegalidade. Em agosto, a organização
intensificou os preparativos, para um movimento armado, com o objetivo de derrubar Vargas do
poder e instalar um governo popular chefiado por Luís Carlos Prestes. Iniciado com levantes
militares, em várias regiões, o movimento deveria contar com o apoio do operariado, que
desencadearia greves em todo o território nacional.
O levante, ocorrido em apenas três cidades, e sem contar com a adesão do operariado,
foi rapida e violentamente reprimido. A partir de então, uma forte repressão se abateu,
não só contra os comunistas, mas contra todos os opositores do governo (PANDOLFI,
2007).
58
No golpe militar, assistimos à internacionalização dos interesses capitalistas que
vão-se estruturando. O pacto com países economicamente desenvolvidos e o apoio de
industriais não deixa dúvidas quanto aos interesses que seriam garantidos. Enquanto os
militares pretensamente protegem a nação da ameaça comunista, a economia se pauta pela
“desnacionalização e aumento da dependência externa no ângulo do comportamento do
capital, e por forte concentração da renda e achatamento dos salários” (ARQUIDIOCESE
DE SÃO PAULO, 1985, p. 22).
O Brasil ganha potencial para o investimento estrangeiro, graças à sua mão-de-obra
barata, aliada a um Estado repressivo, que descarta a possibilidade de mobilização social.
Assim, o desenvolvimento econômico se funda nas desigualdades econômicas e na
ascensão da dívida externa.
Permanece a lógica escravagista de exploração de mão-de-obra, aliada a um
poderoso mecanismo de controle social. No período colonial e imperial de nossa história,
os escravos eram cerceados, em sua liberdade de ir e vir, como objetos, ou animais, eram,
portanto, propriedade de algum senhor que detinha todo o poder sobre suas vidas. Já no
capitalismo, não há um senhor, ou seja, os trabalhadores servem a um senhor sem rosto,
não há contra quem rebelar-se. Crêem possuir a tão almejada liberdade sem perceber o
quanto se aprisionam na rede do capital.
Aliado aos movimentos da economia ocidental, mesmo não tendo assumido posição
central no golpe, Castello Branco assume o primeiro governo militar com uma proposta
para a sociedade. Esta proposta foi sendo estruturada, a partir da década de 50, na Escola
Superior de Guerra (ESG) e passou a ser conhecida como Doutrina de Segurança Nacional.
A Escola Superior de Guerra, fundada por decreto em 1949, sob jurisdição do
Estado Maior das Forças Armadas, data do período em que a Força Expedicionária
Brasileira atuou nos campos da Itália, sob o comando dos Estados Unidos, durante a II
Guerra Mundial.
Com o fim da guerra, todo o contingente de oficiais começou a freqüentar cursos
militares americanos. Mais tarde, o General Golbery do Couto e Silva declararia: “A Força
Expedicionária Brasileira (FEB) não foi importante só pela ida à Itália. Possivelmente ainda
59
mais importante foi a visita da (FEB) aos Estados Unidos da América (...). Eu fui e foi um
grande impacto” (ibid, p. 54).
Lá, os militares brasileiros aprenderam que o tempo de proteger a nação contra
eventuais ataques externos havia passado. Atualmente, estava em voga a defesa contra um
inimigo interno.
Supervisionada, no princípio, por uma Missão Militar Americana, a Escola Superior
de Guerra (ESG) tem, dentre suas funções básicas, segundo o tenente-coronel Idálio
Sardenberg (ibid, p. 54): “alvitrar exemplos de soluções adaptadas pelos Estados Unidos
para problemas similares e indicar meios que poderão servir para maior esclarecimento do
problema”.
A Escola Superior de Guerra, em 1954, apóia o movimento constituído para depor
Getúlio Vargas, que insinua alguma resistência à penetração dos monopólios
multinacionais. De 1954 a 1964, a ESG se desenvolve, rapidamente, elaborando uma teoria
para a intervenção política no País.
A partir do golpe, funciona, também, como formadora de quadros para o novo
regime. Freqüentam o Curso Superior de Guerra 2365 pessoas, dentre civis, e parte do
corpo das Forças Armadas. Vale ressaltar que a maioria dos alunos é constituída de civis,
totalizando 1334.
A Doutrina de Segurança Nacional, agora, estabelece como inimigo as “forças
internas de agitação” e não mais aquele que possa ameaçar atacar nossas fronteiras. A
Doutrina cinde, também, o mundo entre o bem, identificado com os Estados Unidos, e o
mal, associado À União Soviética.
Estabelecendo paralelos entre segurança e bem-estar social, a Doutrina prega que a
segurança deve ser priorizada em detrimento do bem-estar social. Em relação à liberdade,
Golbery adverte que nem sempre o seu sacrifício garante a segurança e, exemplificando,
diz que “os escravos não são bons combatentes” (ibid, p. 61).
A ESG influi, diretamente, na elaboração de diversas Leis de Segurança Nacional.
Um dos principais eixos do regime militar, o Serviço Nacional de Informações (SNI),
igualmente, produto da Escola Superior de Guerra.
60
Em 13 de junho de 1964 é criado por lei o SNI. Sua função é “superintender e
coordenar em todo território nacional as atividades de informação, em particular as que
interessem à Segurança Nacional” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 69).
Outorgado de plenos poderes, pelo Conselho Nacional de Segurança, instância
máxima presidida pelo general presidente, o SNI se torna uma das peças fundamentais na
máquina repressiva. A descrição de seu fundador, o general Golbery do Couto e Silva, que
define o SNI como Ministério do Silêncio, é ilustrativa de seu funcionamento. Aquele que
tudo sabe e nada revela se estrutura de modo capilar, ampliando sua rede, munida de
tentáculos, que apreendem o que encontrarem em seu caminho. Este foi o silêncio que se
impôs e não mais nos abandonou. Hoje, passados 22 anos que o último militar, o general
Figueiredo, esteve no poder é vetado o direito da população brasileira de romper o silêncio
e conhecer sua história.
No período da ditadura, os órgãos que atuam, diretamente, na repressão estão
vinculados a cada uma das três armas, sendo eles o Centro de Informações do Exército
(CIE), o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e o Centro de Informações e
Segurança da Aeronáutica (CISA).
O movimento do regime, por ora verificado, de buscar a integração entre os órgãos
visa a aumentar a eficácia dos mecanismos repressivos. A integração não desconstitui a
supremacia do Exército que conta com maior contingente, além de estar em posição de
destaque dentro da Doutrina de Segurança Nacional, visto que a guerra é contra um inimigo
interno e envolve, em maior grau, forças terrestres do que aéreas, ou marítimas.
A integração dos órgãos é testada, em 1969, em São Paulo. Com o decreto do Ato
Institucional n°5
30
, medida que institui, legaliza, regulamenta e fortalece o terrorismo de
Estado, grupos de oposição ao regime se viram obrigados a desenvolver formas ilegais de
ação política.
30
O Ato Institucional n° 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, não continha vigência
limitada de tempo. Dentre seus principais artigos, destacamos o 2°, que outorga ao Presidente da
República fechar o Congresso Nacional em quaisquer circunstâncias, o 7°, que suspende garantias
constitucionais e o 10° que elimina a garantia de habeas-corpus “em casos de crimes políticos
contra a segurança nacional, a ordem econômica e social” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO,
1985, p. 29).
61
A pouca eficiência dos DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e
Social), burocratizados e contaminados por práticas corruptas, tais como: extorsão de
dinheiro, cria condições, para a iniciativa de instalação de uma entidade centralizadora na
luta contra-revolucionária. A Operação Bandeirantes (OBAN), fundada em 1969, tem
caráter extralegal, já que não consta de nenhum organograma do serviço público. Manteve-
se com os recursos de órgãos já existentes e com farta contribuição de grandes empresas
brasileiras e multinacionais, como o Grupo Ultra, Ford e General Motors.
Composta por equipe de busca, equipe de interrogatório e equipe de análise, a
OBAN atua 24 horas. Conta com efetivos do Exército, Marinha, Aeronáutica, polícia
política estadual, Departamento de Polícia Federal, Polícia Civil, Força Pública e Guarda
Civil.
Estar fora da estrutura oficial do Estado garante mobilidade e impunidade ao
organismo que se tornou conhecido e temido por suas práticas de requintada crueldade.
Exerce, exemplarmente, suas funções de torturar, interrogar, assassinar e ocultar cadáveres,
reprimindo, assim, qualquer possível ação oposicionista.
Graças ao êxito alcançado, a OBAN serve de inspiração, para o surgimento de
organismos oficiais, chamados de DOI/CODI (Destacamento de Operações de
Informações/Centro de Operações de Defesa Interna), instalados em cada região militar do
País. Em São Paulo, a OBAN é integrada ao organograma oficial como DOI/CODI II em
1970.
Os DOI/CODIs aperfeiçoam o modelo de funcionamento da OBAN, contando com
similar contingente de organismos de policiamento e segurança, agora integrados e
chefiados por oficiais de alto escalão do Exército.
As Polícias Militares dos Estados atuam, diretamente, no aparato repressivo
comandado pelo CODI. Em 1969, pelo Decreto-Lei 667, reorganizam-se as Polícias do País
que, a partir de então, passam a estar sob o comando do Estado Maior do Exército e não
mais do governo do Estado.
Durante o governo do general Geisel (1974-1979), inicia-se o movimento de
abertura, sempre amparado por práticas repressivas que mantêm o controle. Os órgãos de
repressão optam por não mais assumir as prisões e mortes, evitando, assim,
questionamentos, em relação às sucessivas versões de morte por atropelamento, suicídio, ou
62
tentativa de fuga. Nesse período, cresce o número de “desaparecimentos”, dentre cidadãos
detidos, o que mobiliza denúncias, engajando alguns órgãos de imprensa, um pouco menos
controlados pela censura.
A necessidade de aparentar alguma preocupação com os direitos humanos causa
divergências entre diferentes grupos militares. O governo, por sua vez, não faz veemente
oposição às áreas de segurança. Frente à mobilização de familiares de desaparecidos e à
articulação com alguns setores da imprensa, o ministro da Justiça informa, através da
própria imprensa, que “aquelas pessoas desaparecidas jamais tinham sido detidas pelos
órgãos de segurança” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p.41).
Em 1975 e 1976, o assassinato de Vladimir Herzog e de Manoel Fiel Filho causam
grande repercussão. O acontecimento que marca a necessidade de coibir excessos é a
invasão de uma residência, em dezembro de 1976, onde se reuniam dirigentes do Partido
Comunista do Brasil, assassinando Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. O restante do grupo é
levado a interrogatório e João Batista Franco Drumond tem sua morte anunciada, como
tendo sido vítima de atropelamento durante tentativa de fuga.
Desde então, durante os interrogatórios, não se registram mais assassinatos. Nesse
momento, ganham expressão ações de terrorismo sem autoria assumida, ou assinadas por
grupos, como Comando de Caça aos Comunistas (CCC), notoriamente vinculadas aos
órgãos de segurança. Ataques contra entidades, ameaças, bombas, espancamentos e
seqüestros são ações destes grupos. Surgiram, naquele período, organizações, até então
desconhecidas, a saber: Falange Pátria Nova, Vanguarda Anticomunista e Ação
Anticomunista Brasileira. Essas, possivelmente, funcionam como disfarce para as ações de
agentes do Estado repressivo.
Como um aprimoramento desta estratégia de não vinculação do Estado às torturas e
mortes, estas passam a ser praticadas em propriedades isoladas
31
. Nestes locais, são
realizados interrogatórios, submetendo os presos a tortura e assassinato. Segundo relato de
militantes em Auditoria Militar, utilizando siglas não oficiais, como “Braço Clandestino da
Repressão”, os mesmos torturadores, que levam os presos até estes locais e executam tais
práticas, entregam-nos aos órgãos oficiais de repressão.
31
Alguns destes locais foram, posteriormente, identificados pelos sobreviventes, como a “Casa dos
Horrores”, no Ceará, a “Casa da Morte”, em Petrópolis e a “Fazenda 31 de Março” em São Paulo.
63
Esta modalidade foi adotada, igualmente, em outros países da América Latina, onde
o terrorismo de Estado se implantou. Em julho de 1977, no exílio, Flávio Tavares é
seqüestrado, em pleno aeroporto de Montevidéu, quando embarcava para a Argentina. De
olhos vendados, é levado para um local ermo, onde é interrogado por longas horas. Em
duas ocasiões, os seqüestradores dão a Flávio a sentença de morte, ordenando que ele
caminhe para ser morto e disparam as armas sem acertá-lo. A experiência da certeza da
morte, nos dois fuzilamentos simulados, é, para ele, como se de fato tivesse morrido.
No Brasil, as suspeitas de que agentes do Estado estavam envolvidos em ações
terroristas, realizadas de forma clandestina, são confirmadas em 30 de abril de 1981.
Naquela data, uma bomba explode, quando iria ser acionada por dois agentes do
DOI/CODI, em um show de música, promovido por uma entidade, em comemoração ao 1
o
.
de maio, no Rio de Janeiro. Um sargento morre e um capitão fica gravemente ferido.
2.4.2 Carlos Abel: algo restou da ditadura
“Eu tenho pesadelos com isso, acordo à noite. Quando
eu sofro alguma coisa que eu sei que é por conta disso
vem tudo à tona de novo, vem tudo na cabeça”.
Carlos Abel, “Fala Corpo”, 2006
Como demonstram diversos estudos
32
, os agentes do Estado, responsáveis por
garantir os direitos dos cidadãos brasileiros são, ainda hoje, os maiores transgressores da
legislação que deveriam preservar. Em tais situações, impera a não responsabilização, já
que a maioria desses casos não são denunciados e, quando são, raramente vão a
julgamento.
Muitos agentes públicos acreditam que exercer a violência seja parte de suas
atribuições. Caso ilustrativo é o do Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro, o BOPE. O grupo, inicialmente composto por 150
homens, foi treinado para ser a melhor tropa de guerra urbana de todo o mundo. Em seus
32
Ver mais em “Relatório Rio: Violência Policial e Insegurança Pública”. LYRA, Diogo Azevedo...
[et al.] (org.). Rio de Janeiro: Justiça Global, 2004.
64
exercícios diários, para manter a forma, fazendo cooper pelo bairro de Laranjeiras, na
cidade do Rio de Janeiro, cantam:
“Homem de preto,
qual é sua missão?
É invadir favela
e deixar corpo no chão.”
“Você sabe quem eu sou?
Sou o maldito cão de guerra.
Sou treinado para matar.
Mesmo que custe minha vida,
a missão será cumprida,
seja ela onde for
- espalhando a violência, a morte e o terror" (SOARES, 2005, p. 09).
Os seletos cantos da corporação mostram que a adoção da violência, como método
de trabalho, não é escolha de indivíduos isolados. A população pede por segurança e paz
em campanhas, protestos e “slogans”, mas de que segurança e de que paz falam? As trilhas
do BOPE dão pistas do que consideram as origens das mazelas e o modo apropriado de
combatê-las (BAPTISTA, 2004). Os exemplos são fartos e não estão restritos ao Brasil,
mostrando que essa política de segurança se globaliza.
Carlos Abel, como muitos outros brasileiros, foi “condenado”, sem direito a
julgamento. Segundo seu depoimento, foi preso nas dependências da Polícia Federal e
torturado por agentes públicos daquela instituição. No dia vinte de agosto de 1996, ele foi
ajudar seu amigo, Rosaldo Teixeira
33
, a retirar algumas ferramentas de uma residência,
onde Rosaldo trabalhava, que, recentemente, havia sido arrombada. Da residência
perceberam que estavam sendo seguidos. Pararam o carro nas proximidades de um posto de
gasolina, por ser aquele um local iluminado e movimentado. Desceu do outro carro o
33
Morto em estranho acidente de carro em 2006, no interior do Espírito Santo onde vivia com
Carlos Abel. Ambos saíram do Rio de Janeiro porque passaram a ser ameaçados de morte depois
que Carlos Abel abriu processo – posteriormente arquivado – contra seus torturadores.
65
senhor Roberto Prel, delegado da Polícia Federal, gritando e apontando uma pistola
engatilhada para Carlos.
Promovendo uma seqüência de agressões, incluindo até mesmo disparo de tiros para
o alto, o delegado solicitou reforços. Com a chegada de uma viatura e de um camburão,
Carlos e Rosaldo foram levados à Superintendência da Polícia Federal, onde receberam
violentos chutes e socos, além de serem agredidos verbalmente.
Carlos foi liberado, após a chegada de sua advogada, e, ao sair da Polícia Federal,
fez exame de corpo de delito, denunciando as agressões, bem como o abuso de autoridade.
A ação penal, encaminhada pelo Ministério Público Federal, contra os policiais envolvidos,
não recebeu decisão de mérito, sendo suspensa por questão técnico-jurídica: o Ministério
Público não pode desempenhar funções investigativas.
No vídeo “Fala Corpo”, Carlos esclarece que desconhecia as razões pelas quais
estavam sendo presos e agredidos. O filme deixa, no espectador, a incompreensão acerca
dos motivos que geraram os acontecimentos descritos por ele, já que nem mesmo os presos
sabiam do que estavam sendo acusados.
Segundo Foucault (1987), no período da inquisição, embora os suplícios fossem
públicos, o processo criminal não era de conhecimento da população, tampouco do
acusado. Hoje, observamos o inverso, os julgamentos passam a ser públicos, a punição
velada e a tortura praticada às escusas.
2.4.3 Na memória da boca, o gosto amargo de cobre
Quando falamos em tortura, muitos ainda se remetem, exclusivamente, ao período
da ditadura militar, porém Carlos não é um caso isolado. Atualmente, milhares de pessoas
são torturadas e mortas e o medo se espalha como doença contagiosa. O acelerado
recrudescimento da violência aciona, em muitos brasileiros, um pessimismo generalizado.
Os atingidos pela violência de Estado, atualmente, não publicam livros. São, em
sua maioria, um enorme contingente de jovens, negros e pobres que, sequer aprenderam a
ler e a escrever. Foram “cuspidos para fora” do sistema educacional, que não suporta os
66
rotulados, tais como: os que têm dificuldade em aprender, os agressivos, ou os que são
parte de uma família “desestruturada
34
”. Este grupo experimenta, de igual forma, uma dose
de silenciamento, tanto pela escassez dos espaços de fala, como pelo amordaçamento, fruto
da ameaça explícita, ou velada, que envolve denunciar policiais, ou aqueles que praticam
atividades ilícitas e, freqüentemente, moram na casa ao lado. Sua visão de mundo não está
nas cartas do jornal O Globo, não só por não serem letrados, mas porque sua expectativa de
vida não ultrapassa, em média, os 16 anos.
Contamos aqui com as vozes dos jovens da década de 1960 que escolheram lutar
por um mundo que acreditavam possível e, sem poder evitar, caíram nas malhas do terror
de Estado. Anos mais tarde, escreveram e publicaram seus livros e, assim, fizeram-se
vozes, escritores e leitores, para compartilhar acontecimentos de uma época.
A tortura foi descrita por Álvaro Caldas (1981), como um ato de desesperada
solidão. O beco de estar entregue à brutalidade daqueles que eram agentes da lei. Na
solidão da companhia dos torturadores, não há a quem apelar e, por isso, muitos invocaram
um Deus que, até então, supunham inexistir, outros costearam, ou adentraram territórios
insanos.
Em uma das experiências mais marcantes relatadas por Flávio Tavares (1999), ele
também estava só e, ao mesmo tempo, invadido por outra presença:
O cadáver no piso a minha frente, em diagonal sobre o colchão, é de Roberto
Cietto. As lâmpadas continuam apagadas e nas celas vizinhas o silêncio é total.
Tudo é como se fosse uma tumba e eu também fosse um morto, não apenas uma
testemunha da morte. Sento-me quase sobre mim mesmo no cantinho da cela e
começo a sentir frio. Tento rezar, mas o frio impede que eu me concentre (...).
Para me aquecer tenho tão-só o corpo frio e morto de Simão, como nós o
chamávamos pelo nome de guerra que ele próprio escolhera. Tirito de frio e
transpiro, ao mesmo tempo, e o suor goteja sem calor, como gelo que derretesse
dentro de mim (TAVARES, P. 105).
A tortura imprime sensações inusitadas, criando um novo corpo. O suor de Flávio
Tavares não é causado por calor excessivo, como na maioria das situações cotidianas, mas
por outro excesso intensivo que faz o corpo gélido suar.
34
Educadores, psicólogos e diversos outros profissionais, freqüentemente, utilizam este adjetivo,
para famílias que não se enquadram nos padrões burgueses instituídos como família.
67
Interessa-nos os mistérios deste corpo que não prescinde mas ultrapassa o biológico.
Suplícios físicos e psicológicos atingem a carne e não só ela. A tortura atua em duas
dimensões: a do corpo carne e a do corpo intensivo.
José Gil, em sua pesquisa junto à dança
35
, aponta para a emergência deste outro
corpo, chamado por ele de virtual. É o corpo virtual e não o de carne que dança, ou melhor,
“o corpo de carne dançando atualiza o virtual, encarna-o e desmaterializa-o ao mesmo
tempo” (2004, p.24).
A dança contemporânea tem, em Merce Cunningham, um de seus marcos, uma
ruptura no que, até então, estava estabelecido. Em suas coreografias, ele introduz o acaso,
recusa formas expressivas e torna a música e o movimento independentes. Desse modo, a
dança se liberta das amarras da representação e o corpo deixa de traduzir as emoções de um
sujeito. Os bailarinos não são mais regidos por princípios organizativos que fazem dos
corpos um todo orgânico, cujos movimentos se dirigem para um fim. Assim, tende a
desaparecer a noção de sujeito, já que o movimento, efeito do acaso, não parte de um centro
intencional, de alguém exprimindo sentimentos. Introduzindo o acaso Cunningham, faz ruir
a idéia, cara ao ballet, de corpo, como totalidade fechada, suscitando, assim, a eclosão de
inusitados movimentos (GIL, 2004).
O bailarino que cria outro corpo o faz em suas experimentações, nos movimentos
dançados, desestabilizando naturalizações, para fazer do corpo substância artística. A
supressão de arranjos, previamente definidos, é condição para que, nos movimentos do
bailarino, sejam possíveis novos agenciamentos. Operando a desmontagem das estruturas
pré-definidas do corpo orgânico, fazendo coexistir gestos heterogêneos, surge algo de
disparatado ou mesmo de monstruoso, beirando o inumano, eis o corpo virtual.
Mais uma vez, Cunningham opera uma inversão, quando, em suas coreografias, o
corpo não é mais mera expressão de emoções. O primado das emoções cede lugar ao
primado do movimento. Destituído o sujeito da dança, resta o dançar, operando outros
deslocamentos: o sentido do movimento se torna movimento do sentido.
Tecemos, aqui, aproximações, entre as teses do corpo na dança, propostas por José
Gil, com experiências do corpo atravessado pela experiência da tortura. Ao passo que o
35
Utilizar-nos-emos das proposições de José Gil, para o corpo, a partir da dança, para fomentar a
reflexão sobre o corpo, tendo em vista a experiência da tortura.
68
bailarino suprime seus arranjos previamente definidos, o torturado, por sua vez, é
conduzido ao esvaziamento que, quando não leva à morte orgânica, ou à loucura, faz
emergir outro corpo. São aniquilados arranjos subjetivos e, na emergência de corpos
virtuais, afetos se produzem. O suplício, nesta circunstância, gera afetos que ficam
associados às sensações corporais. Assim, nos corpos emergentes, “as sensações dissolvem
as identidades já estabelecidas na variabilidade caótica e possibilitam a formação de novos
planos de composição, novos territórios” (CZERMAK, 2003, P. 367).
Quanto à geografia, as tradicionais categorias de exterior ou interior, não servem
para o corpo. Seu espaço não é fixo, podendo retrair-se, ou expandir-se, como, no exemplo,
citado anteriormente, da queda de uma aranha na banheira em que estamos imersos, dilata-
se o espaço. O corpo pode ”tornar-se um espaço interior-exterior produzindo então
múltiplas formas de espaço, espaços porosos, esponjosos, lisos, estriados” (GIL, 2004,
p.56).
A seu modo, os fluxos de abertura e fechamento não cessam de acontecer, tanto em
relação ao espaço, como aos outros corpos. Fluxos mais atrelados à pele que à existência de
orifícios anatômicos, como boca, ânus ou vagina. Como diz Gil (2004, p.62), “a pele não é
uma película superficial, mas que tem uma espessura, prolonga-se indefinidamente no
interior do corpo”.
Na tortura, a pele é colocada em seu lugar de profundidade por excelência. Seu
campo sensível, atingido brutalmente, viola o corpo em diversas dimensões. A magnitude
da carga energética envolvida leva o torturado a experenciar o limite. A vida deixa de ter
permanência e se torna um estado precário, instala-se o flerte com a morte. Beirando a
loucura e a morte, a sobrevivência ganha novos sentidos, exige outro corpo e este, de algum
modo, faz-se mesmo que pelo forçado esvaziamento. Neste outro corpo, freqüentemente
uma potência afirmativa se aciona.
Há potência no corpo, mesmo beirando o aniquilamento. Há plasticidade no corpo,
mesmo quando os arranjos aparentam estar totalmente determinados. Um corpo múltiplo
“que se abre e se fecha, que se conecta sem cessar com outros corpos e outros elementos,
um corpo que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma e pode ser atravessado
pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um corpo humano porque pode devir animal, devir
69
mineral, vegetal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro movimento” (GIL, 2004,
p.56).
Ainda hoje, passados 22 anos do fim do período da ditadura, é escasso o material de
pesquisa de que dispomos acerca da tortura no Brasil. Uma das razões, para tal fato, tem
sido, a contínua posição do Estado, que sonega essas informações. Além disso, observamos
que os atingidos pela violência do Estado guardam, na medida do possível, para si estas
histórias. A intensidade desta experiência que ainda vibra nos atingidos, por vezes, aparece
como um impedimento de falar, ou como desejo de apagar as dores. As barreiras, na
transmissão da experiência, não podem ser explicadas, exclusivamente, por impedimentos
individuais. Ocorre que, quando o tecido social não é poroso o suficiente, para absorver
estas intensidades, as experiências ficam encarceradas em âmbito privado.
Flávio Tavares (1999), rumo ao exílio no México
36
, relata:
O cadáver na cela não se desprende de mim, mas não quero pensar com a
memória para não voar com ele em direção a um país e a um futuro que não
indago como será. Quando me amarram ao assento de lona e dói o braço e todo o
lado direito dói, não sofro porque doa. Sofro por tudo o que esta dor constante me
traz como lembrança (TAVARES, P. 121).
A experiência, ainda viva, permanece colada à concretude de um som, uma dor no
corpo, um sabor. Um barulho que remete ao ruído que faziam as chaves dos agentes,
quando iam retirar alguém da cela para ser torturado, ainda faz o corpo tremer. O passado
nem sempre retorna como libertação. A lembrança, por vezes ressurge, como a alma penada
que puxa o dedão do pé, capturando o presente dos vivos.
A ardilosidade da lembrança está em escapar ao controle da vontade, assim “propor-
se não lembrar é como propor não perceber um cheiro, porque a lembrança, assim como o
cheiro, acomete, até mesmo quando não é convocada” (SARLO, 2007, p. 11). Para alguns,
hoje cessaram as descargas elétricas do Doutor Volts
37
, mas restou o gosto amargo de cobre
na boca daqueles que foram emaranhados em fios desencapados. Flávio Tavares, rumo ao
36
Flávio compôs o grupo de 15 militantes trocados pelo embaixador norte-americano, seqüestrado
em 1969 pelos grupos MR-8 e ALN. Ver sobre o tema o filme “Hércules 56” (2007) de Sílvio Da-
Rin.
37
Membros da repressão chamavam a máquina de eletrochoque de Doutor Volts. Nesta destaca-
se a inscrição “ Donated by the people of United States” (TAVARES, 1991).
70
exílio, não quer carregar consigo a presença do cadáver na cela; um pouco de esquecimento
é necessário para nascer em liberdade.
2.4.4 São Carlos, Morro Borel, eu subo e nunca estou no céu
38
Em passagens históricas, procuramos grifar que o poder não é um estado
permanente, mas uma relação de forças. Tanto no plano micropolítico, de engendramento
das palavras e das coisas (Passos & Benevides, 2001), como no nível da macropolítica, não
há exercício unilateral de poder. Desse modo, o poder está em todos os lados.
Sendo o poder uma composição de forças, uma força estará sempre em relação com
outras forças e estas, tanto afetam, como são afetadas. Podemos visualizar esta fricção de
forças, no embate entre os movimentos de lutas populares e o aparato de segurança, bem
como em relatos de experiências singulares, pouco harmoniosas, que desassossegam.
Deleuze (2005), em seu texto sobre o trabalho de Foucault, apresenta, a seu modo,
parte da pesquisa do Autor sobre o poder. Ele retoma que o poder se exerce, ou seja, não
está dado, não é intrínseco a determinados lugares. Por isso, quando colocamos em análise
as práticas do aparato de segurança, não podemos dizer que este detém o poder, restando
aos descontentes aceitar, ou protestar.
O período que chamamos de repressão ultrapassa este termo. A ditadura não só
reprimiu, mas produziu subjetividade. Analisando o poder, nas sociedades disciplinares, a
partir das proposições de Michel Foucault, Passos & Benevides (2001, p. 94) chamam
atenção para: “uma alteração da análise do poder que deixa de ser entendido como
repressivo para ser produtivo, isto é, um poder não só de gerência, mas de geração dos
indivíduos”.
38
Trecho da música “Cruel”, de Sérgio Sampaio, na voz de Luiz Melodia (1997).
71
Polarizaram-se os indivíduos entre bons e maus, sendo os últimos identificados
como comunistas, terroristas e subversivos. Todos se tornavam suspeitos e a delação se
instituiu como prática corriqueira entre vizinhos, amigos e colegas de trabalho, afirmando
lugares como o do delator e o do provocador.
Atualmente, vivemos em um regime dito democrático. Podemos dizer que o aparato
de segurança, com suas diversas forças, sejam elas as polícias, as Forças Armadas e grupos
marginais ao Estado abandonaram as estratégias utilizadas na ditadura para, a partir de
1985, utilizarem outras? Foi o terrorismo de Estado, na ditadura, um lapso, ou esta prática
encontra ressonâncias em outros momentos históricos do Brasil? De que maneira as forças
de segurança vêm agindo atualmente?
Após alguns ensaios, na aula de 17 de março de 1976, Foucault (FOUCAULT,
2002), em seu Curso, no Collège de France, apresenta um problema: o racismo de Estado.
Para compreender o fenômeno de “estatização do biológico”, o Autor retoma à teoria da
soberania.
O soberano é aquele que tem o direito de vida e de morte, ou seja, pode fazer morrer
e deixar viver. Assim, o Autor nos aponta que viver e morrer não são apenas fenômenos
naturais, mas, também, políticos. O soberano tem poder sobre a vida, porque pode matar e,
assim, exerce seu direito sobre ela.
Nestas sociedades, o poder era exercido pela subtração, como instância de confisco,
direito de apropriação. O poder era “direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos
e, finalmente da vida” (FOUCAULT, 2001, p. 128)
A partir do século XIX, ao direito de soberania outro modo é entrelaçado.
Configura-se - não de súbito, mas em processo - o poder inverso, o de fazer viver e deixar
morrer.
Nos séculos XVII e XVIII, instalam-se técnicas de poder centradas no corpo, como
a distribuição espacial dos corpos individuais e a tecnologia disciplinar do trabalho, que
visava a aumentar a força útil, por exemplo.
Já, na segunda metade do século XVIII, surge uma nova tecnologia de poder, que
não se sobrepõe à disciplinar, mas abarca novas dimensões. Enquanto a tecnologia
disciplinar se dirigia ao homem-corpo, a biopolítica se volta para o homem-espécie. Assim:
72
[...] a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa
multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser
vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova
tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida
em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao
contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios
da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença,
etc. (FOUCAULT, 2002, p. 289).
O campo de saber e de intervenção da biopolítica está atrelado à idéia de população,
aos seres humanos, como espécie, trazendo para o cenário questões com abrangência
global, tais como: mortalidade, natalidade e epidemias; assim, faz-se um novo corpo.
O modelo soberano de exercício de poder sobre o corpo se torna insuficiente, para
reger o corpo, frente à explosão demográfica e ao processo de industrialização reinantes a
partir do século XVII. De início, a disciplina se encarregava da docilização dos corpos
individuais, enquanto que, mais à frente, os fenômenos globais e de população ficarão a
cargo da biopolítica. A este poder que se encarregou do âmbito do corpo e da população
Foucault chamou biopoder.
O racismo de Estado opera, delimitando o que deve viver e o que deve morrer. A
população se torna uma mistura de raças e o contínuo biológico a que se volta o biopoder é
cortado, fragmentado em subgrupos. No biopoder, tirar a vida é admissível, quando o
objetivo é eliminar o perigo biológico, relativo à eliminação da própria espécie, ou da raça.
Assim, o “racismo é a condição de aceitabilidade de tirar a vida” (FOUCAULT, 2002, p.
306).
Como já foi dito, no biopoder, seguem operando estratégias disciplinares. A família,
a escola e a fábrica se apresentam como emblemáticas máquinas de moldagem de corpos.
Porém, a disciplina não é suficientemente eficaz para todos. Corpos-limo
39
não aderem a
estas instituições, para operar a necessária passagem de uma a outra. A falência das
instituições disciplinares faz ver outras modalidades de engendramento de poder.
Aliada à disciplina, comparece outra estratégia de moldagem e controle. Agora, o
poder deixa de ser um agente externo, para se tornar auto regulado, internalizado pelos
próprios indivíduos. A sociedade de controle, como aponta Deleuze (1992), é o horizonte
vislumbrado por Foucault.
39
Utilizamo-nos desta imagem, para designar uma modalidade de produção subjetiva
contemporânea.
73
O imperativo do capital está posto. A produção de desejo e, não mais de produtos,
sustenta o mercado. Nas sociedades de controle, a empresa ocupa o lugar da fábrica, na
medida que não mais se compra matéria-prima, mas serviços. Grifes vendem estima e, nas
flutuações da bolsa de valores, máquinas moldam novos corpos, agora, as tatuagens são de
henna.
Pode o corpo-limo escorregar por toda a existência? É sabido que não. Há que se
aderir, mesmo que ao permanente movimento. Mas o corpo-limo não cabe na fábrica,
tampouco na empresa. Se o homem da disciplina é o homem confinado e o homem do
controle é o homem endividado, o homem do limo é o homem do limbo. Para Deleuze:
[...] o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da
humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o
confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras,
mas também a explosão dos guetos e favelas (1992, p. 224).
Não cessam tentativas de produzir aderência aos homens-limo. No vácuo das
políticas públicas, o próprio Estado financia ONGs, para limpar o limo e evitar escorregões.
Igrejas oferecem seu lugar para quem, ali, em seu território fixo, couber. E ainda há o que
escorregue.
Aos que, ainda assim, persistem corpo-limo, um lugar, aquele que só o aparato de
segurança acessa. Alvo de campanhas políticas, centro das manchetes, cercado por uma
aura, quase um fetiche. Á rede ilícita, associada ao tráfico de drogas, muitos aderem.
Nesta rede, a oferta não poderia ser mais sedutora, ou melhor, não poderia estar em
maior consonância com a lógica do capital.Em tal grupo, o valor está nas potencialidades
de cada um e o garoto “cuspido para fora” da escola, porque não decorou a tabuada,
negocia altas quantias na boca
40
. O trabalho é ainda muito bem remunerado, alimentando a
ilusão de acesso a bens, que resultariam em reconhecimento social.
Retomamos aqui questões já postas. Em diversas práticas do Estado, ao longo da
história, encontramos ressonâncias de estratégias utilizadas na ditadura. Atualmente,
40
“Boca de fumo” é o termo utilizado por muitos, para designar os pontos de venda de drogas.
74
dirigidas aos pobres, em especial aos homens-limo, propagam-se, pelo tecido social,
ampliando seu raio de alcance. Novamente, a resposta do Estado é a violenta repressão.
A idéia, ainda vigente, de que estamos em guerra e de que há um inimigo interno a
ser combatido, remonta à ditadura militar. Naquele período, o inimigo eleito era o opositor
ao regime, hoje, o inimigo é o pobre. Associando pobreza e criminalidade, todo pobre se
torna um inimigo em potencial. Em tempos de guerra, toda a ação, por mais violenta e fora
da lei que seja, está plenamente justificada.
A política terrorista segue sendo implementada pelo Estado e solicitada pela
população. Assim, como se a violação dos direitos humanos fosse um efeito inevitável, o
Estado “faz agora, não o serviço ‘sujo’ para a ditadura, mas o serviço ‘duro’ de
enfrentamento da criminalidade e proteção do patrimônio” (FILHO, 2004, p. 257).
As execuções perpretadas, por agentes do Estado, são maquiadas, para que estes não
sejam responsabilizados, assim como na ditadura. A versão oficial é fornecida pela polícia
que chama os assassinatos de “morte em tiroteio”, “atropelamento em tentativa de fuga”,
“resistência à prisão” e, até mesmo, “suicídio”. Para evitar exames de perícia no local, os
cadáveres são levados para emergências de hospitais, com a justificativa de que o policial
não saberia avaliar se a pessoa já estava morta (COIMBRA, 2001). Nos laudos e nas
manchetes de jornais, todos, inocentes ou não, viram bandidos. Provas também são
forjadas, colocando armas e drogas, nos corpos sem vida, que serão fotografados, para as
próximas capas dos jornais. Estratégias nada inovadoras, pois
[...] adotadas pelos ‘aparatos de repressão’ durante o período da ditadura militar
em nosso país. Muitos opositores políticos, após serem presos, torturados e
mortos, eram levados para a rua onde se encenava o ‘teatrinho’ de reação à
prisão; outros eram encaminhados já mortos para hospitais, como forma de não
fazer perícias no local (COIMBRA, 2001, p.153).
Em um estado de suspensão da ordem jurídica, generalizado durante a ditadura e,
em parte instalado hoje, poderíamos cair na armadilha de patologizar os representantes da
lei que violam direitos. Para que algum movimento seja possível, precisamos perguntar,
através de quais “dispositivos jurídicos e políticos seres humanos puderam ser privados de
seus direitos e prerrogativas a ponto de que qualquer ato cometido contra eles deixou de
aparecer como delituoso” (PELBART, 2003, p. 64).
75
A pesquisa intitulada “Relatório Rio: Violência Policial e Insegurança Pública”
(LYRA, 2004), realizado pelo Centro de Justiça Global, com a colaboração de diversas
entidades, traz dados contundentes. Observamos que alguns procedimentos, apresentados
no relatório, utilizados pelo aparato de segurança, hoje, são similares aos empregados pela
repressão no período da ditadura.
Os chamados “autos de resistência” são documentos utilizados pela polícia e teriam
o objetivo de registrar situações de resistência armada. Atualmente, no Rio de Janeiro,
qualquer morte resultante de uma ação policial tem sido registrada nesses moldes, tendo a
vítima resistido, utilizando arma, ou não. Modo eficaz de evitar a responsabilização dos
agentes. Assim, “os ‘perigosos’ são, legalmente mortos, sob a justificativa de ‘reação à
prisão’” (COIMBRA, 2001, p.151).
O mandado de busca e apreensão genérico é outro mecanismo, criado pelo Estado,
para perpetuar a repressão e o controle a determinados grupos. Esse tipo de mandado é
formulado de modo abrangente e inespecífico, permitindo, assim, que a polícia esteja
autorizada a invadir qualquer moradia e a realizar revista a qualquer morador, antes mesmo
da realização de um inquérito policial. Não é necessário dizer que estes mandados são
expedidos, somente, para buscas e apreensões em favelas.
O artigo 14, da Lei n° 6368/76, sobre o crime de associação ao tráfico, também foi
distorcido. A partir de uma determinação, datada de 1° de março de 2004, do então
Secretário de Segurança Pública do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Anthony
Garotinho, delitos como depredação de ônibus, ou ocupação de avenidas e túneis, durante
manifestações de residentes das favelas, devem ser enquadradas no Código Penal, como
crime de associação ao tráfico. Essas manifestações, geralmente, ocorrem após violentas
incursões policiais nas favelas. Os manifestantes são, em sua maioria, mães e familiares dos
atingidos que, quando enquadrados nesta modalidade, ficam presos, aguardando sentença,
visto que o crime é inafiançável (LYRA, 2004).
Estas são ações estatais concretas e a elas podemos acrescentar outras, como
ocultação de cadáveres, ameaças e torturas. A defesa destes métodos é feita, ainda hoje, por
agentes do alto escalão do Estado, em arena pública. Recentemente, o tenente-coronel
Antônio Borges Germano, do comando do Batalhão de Policiamento de Vias Especiais do
Rio de Janeiro, em discurso, para sua tropa, “fez uma defesa da tortura e da volta da
76
ditadura” (Jornal O Dia, 29/05/2007, p.09) como forma de punição. Disse ele à tropa: “(...)
minha vontade, se está na ditadura militar, é botar tomando choque elétrico a noite inteira
(...) choque e porrada (...) de manhã ele tava enquadrado (...). O meu sonho é voltar essa
ditadura” (Jornal O Dia, 28/05/2007, apud Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ,
junho/2007).
Alguns efeitos destas práticas são claramente visíveis, outros nem tanto, mas nem
por isso menos concretos, perversos, ou dolorosos. O silenciamento segue vigente, tendo o
medo como seu aliado. Enquanto os maiores atingidos pela violência do Estado forem os
taxados de berço, como potenciais criminosos, situações desta ordem não virão a público
pelas suas próprias vozes.
É sabido que os movimentos sociais sempre foram reprimidos com brutalidade e
violência no Brasil. A novidade está na criminalização atualmente em voga. O GTNM/RJ,
por exemplo, foi condenado a reparar, a título de danos morais, os policiais federais
Roberto Prel Júnior, Luiz Oswaldo Vargas de Aguiar, Luiz Amado Machado e Anísio
Pereira dos Santos.
A condenação se deu em virtude do texto, contido no sítio do GTNM/RJ, no qual a
entidade tornou pública a denúncia feita por Carlos Abel sobre a violência sofrida. O
Judiciário entendeu que o Grupo teria extrapolado no relato dos fatos, acusando os policiais
federais da prática de tortura sem que estes tenham sido condenados. Os lugares são
invertidos e a entidade é condenada por fazer a denúncia
41
.
41
Este processo traz à reflexão algumas questões que cercam os casos de denúncias de
violência, perpetrada por policiais em serviço. Sabe-se que, em muitos casos, as investigações são
feitas pela própria instituição a que pertencem os policiais suspeitos da prática dos atos de
violência. Em alguns casos, a investigação fica a cargo de colegas que mantêm convívio diário
com os policiais suspeitos. Surgem, então, dúvidas, quanto à isenção na apuração desses fatos.
Carlos Abel levou ao conhecimento do Ministério Público Federal as agressões sofridas, tendo sido
constatadas marcas da agressão, no laudo de exame de corpo de delito a que se submeteu. A
partir disso, o MPF ingressou com Ação Penal contra os policiais federais. No entanto, esta ação
penal não prosseguiu, em virtude do habeas corpus concedido aos policiais. A discussão técnico-
jurídica se deu em relação ao fato do Ministério Público estar, ou não, habilitado, para presidir as
investigações que precedem a propositura da Ação Penal.
Dessa forma, lamentavelmente, sob o aspecto penal, o caso em questão deixou de ter os
esclarecimentos necessários, sobre as graves acusações que pesam contra os policiais federais.
Assim sendo, Carlos Abel ingressou com ação de reparação contra a União Federal. A sentença
deste processo reconhece que (...) “embora o Estado brasileiro seja signatário da Convenção
contra a Tortura desde 1989, é fato notório que agentes estatais continuam a valer-se deste
expediente infame de forma lamentavelmente recorrente, incentivados pela certeza da impunidade.
Trata-se de ilícito geralmente praticado a portas fechadas, sendo extremamente difícil a sua
comprovação”. No entanto, julgou improcedente o pleito de Carlos Abel, por entender que o
77
Tornar o suposto agente da lei em um legitimado contraventor tem sido uma eficaz
estratégia de controle e submissão da população. Atualmente, não é mais necessário fechar
o Congresso, amordaçar a imprensa, ou sobrepor Atos Institucionais à Constituição
Nacional. Como assinala Deleuze (1992, p. 213), “não há Estado democrático que não
esteja totalmente comprometido nesta fabricação da miséria humana”.
3.4.5 Pirâmides
As práticas mostram que a minuciosa sofisticação das artimanhas do poder torna,
em determinados momentos, desnecessária a repressão direta, já que ela está internalizada.
O controle, que outrora vinha maciçamente de fora, agora é exercido pelos próprios
indivíduos. Na era digital, surgem novas máquinas e os modos de produção de violência
também são reinventados.
A soldada americana Lynndie England protagonizou um caso de violação de
direitos humanos que ficou mundialmente conhecido. Foram veiculadas, na internet, fotos
nas quais ela segurava uma coleira que prendia um preso de Abu Ghraib
42
, no Iraque. O
presídio é para seres humanos, mas o exército americano dispensa um tratamento que
assemelha os presos a animais.
O soldado Charles Graner era parceiro de Lynndie nas sessões de tortura e
humilhação. Ele enviou as fotos, para sua família, pela internet, e o material terminou
ganhando domínio público. O vazamento de informações desta ordem é permitido pelas
novas máquinas em uso atualmente. Charles está preso, cumprindo 10 anos de pena.
Lynndie ficará presa por 36 meses na Califórnia.
Em entrevista à jornalista Tara McKelvey (Marie Claire, fevereiro de 2007), ela diz
que os oficiais estavam envolvidos e sabiam o que acontecia. O prisioneiro Hussein
Mohssein Mata Al-Zayiadi, por sua vez, testemunhou que foi espancado e obrigado a subir
mesmo não fez prova de ter sido torturado” (http://www.torturanuncamais-rj.org.br).
42
Prisão americana no Iraque.
78
em uma pirâmide humana. A imagem dessa pirâmide era usada como fundo de tela em um
dos computadores da prisão.
A prisão de Lynndie e Charles Graner pode ter tranqüilizado a opinião pública, mas
sabemos que os dois soldados executaram práticas fomentadas, autorizadas e legitimadas
por seus colegas e superiores. A punição daqueles, diretamente envolvidos, não garante que
essas práticas não irão se repetir, o que não parece ser preocupação do governo norte-
americano.
Nas prisões brasileiras, a situação não é diferente. Como mostra a nota “Abu Ghraib
é aqui” do Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (junho/2007), em 09 de maio de 2007,
a Ordem dos Advogados do Brasil – seção do Rio de Janeiro – denunciou que graves
violações de direitos humanos estão sendo cometidas no Presídio Evaristo de Moraes.
Segundo testemunhas, os presos foram constrangidos a ficar despidos, próximos uns aos
outros, de modo a ter contato direto com suas genitálias. Dentre outras práticas, também
foram forçados a rastejar e a se alimentar de lixo, tendo ainda que emitir sons e gestos
típicos de animais.
Atualmente, são utilizados, em larga escala, principalmente pelo exército norte-
americano, métodos de tortura que não deixam marcas na carne. Os presos, sob custódia do
governo, são expostos a temperaturas extremas, obrigados a permanecer, por horas, em
posições desconfortáveis e têm violadas suas normas culturais. Na ausência de marcas
visíveis, está colocada a paradoxal concretude dos meios de exercício de poder, que
alcançam os mais íntimos recônditos, sem produzir hematomas.
Em Guantánamo, prisão norte-americana localizada em Cuba, os presos ficam em
celas gradeadas que medem, em média, 2 por 2 metros, expostos às intempéries do tempo.
Como descreve Shafiq, que ficou no presídio, por mais de dois anos, sem acusação, ou
julgamento, as celas são “como uma jaula de zoológico” (Caros Amigos, 2007, p.20).
Relata, ainda, que uma das práticas em Guantánamo
43
é retirar a barba dos presos, já que a
barba faz parte da religião para os muçulmanos. Não faltam exemplos de práticas que
buscam separar o que há de humano no homem, arquitetando, assim, sua aniquilação.
43
Sobre o tema ver o filme de Michael Winterbottom e Matt Whitecross “Caminho para
Guantánamo”.
79
Os métodos de tortura, empregados em Abu Ghraib, Guantánamo, e, no Presídio
Evaristo de Moraes, são ícones do biopoder contemporâneo que faz viver, gerindo a vida e
produzindo modos de ser. Giorgio Agamben (2002) acrescenta que o biopoder cria
sobrevida, operando uma cisão entre homem e não-homem. Reduz a vida humana à sua
nudez íntima, relega a vida humana a seu mínimo biológico, e eis que surge a vida nua, ou
zoe, conforme a definição utilizada pelo Autor. Agamben precisa dois sentidos para a vida,
utilizando-se da distinção grega entre zoe e bios. Zoe se refere ao simples fato do viver,
comum a todos os seres vivos, a chamada vida nua. Já a bios é a vida como forma
específica de viver, a vida qualificada de um indivíduo.
A produção da vida nua não está localizada, apenas, nas carceragens, está em nosso
cotidiano. São manchetes de jornais, políticas públicas e estilos arquitetônicos, a
sociedade de controle é a forma de ordenamento político-social em que o poder se
explicita como biopoder, incidindo sem mediação, sobre as potencialidades da vida”
(JÚNIOR, 2005, p.53).
Se o biopoder incide sobre as potencialidades da vida é porque há potência na vida.
A aparente redundância é necessária. É preciso sublinhar que não só a política repressora e
violenta do Estado ecoa em períodos diversos da história. Lá e cá pululam incontroláveis
acontecimentos que resistem, produzindo desvios à ordem prevista. A proposição
foucaultiana de biopoder, como gerência dos processos biológicos que afetam a população,
em um processo de inversão, é alargada. Assim, se o objeto de exercício do poder é a vida,
ou seja, se ele se faz biopoder, “interessa então pensar uma biopolítica, enquanto forma de
resistência ao assujeitamento” (PASSOS & BENEVIDES, 2001, p.95). Dito de outro
modo, a biopolítica se refere, não ao poder sobre a vida, mas a potência da vida.
Diz Deleuze (1992, p. 220), em sua argüição sobre os modos controle/disciplina:
“não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um
deles que se enfrentam as liberações e as sujeições”. A despeito das diversas tentativas de
captura, movimentos de resistência nascem, se propagam e encarnam a potência da
transformação. Seu alcance limitado e finito garante sua força instituinte que nunca será
plenamente dominada. Como já foi dito, “lá onde há poder há resistência” (FOUCAULT,
1988, p.91).
80
APONTAMENTOS FINAIS
PRODUZINDO UMA MEMÓRIA COM ASAS
“Uso a palavra para compor meus silêncios”.
Manoel de Barros
A vitalidade da pesquisa está em abrir passagem para que transitem fluxos. Desviar
do heroísmo autoral é permitir que os encontros aconteçam. O movimento está colocado,
basta puir os sentidos, para percebê-lo e deixar-se levar.
Orquestração de muitas vozes, em tons diversos, harmônicos, dissonantes, ecoando,
sussurrando, reverberando. Nesta arena, aberta para a fala, dialogam pensadores, militantes,
Estado, artistas, favela e historiadores. Ao silenciamento, respondemos com o vazamento
de histórias. Histórias com vida longa - não para a glória do passado - mas para atitude no
presente.
Se fosse possível congelar o movimento, haveria um distanciamento, para o traçado
prévio de caminhos, a observação e a contemplação, posições caras à ciência e adequadas à
assepsia de renomados museus. Fracassamos no campo das métricas. Passa que “a
importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com
barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que
a coisa produza em nós” (BARROS, M., 2007, IX). Já que a importância não é um dado
pronto, aguardando verificação, mas efeito de um encontro, a direção tomada foi dada pelo
encantamento, rumos imprevisíveis.
81
Petrificar os fluxos é decretá-los à morte. Em nossa produção artesanal de arquivos,
conectamo-nos com o que há de pulsante nas experiências. Em um universo de baixezas,
avesso ao glamour, houve brotamentos. Transitamos por entre diversas histórias, atentando
para a relevância da produção de uma memória com asas, que não fique encarcerada,
aprisionada a mitos, museus, ou arquivos empoeirados, alimento para traças.
Mergulhando no universo dos relatos, experimentamos uma dimensão do tempo que
não segue em linha reta. Nesta modalidade histórica, passado, presente, ou futuro não
fazem parte da natureza das coisas, não são estados eternos, mas condições transitórias.
Assim, as modulações do tempo se colocam na pesquisa, como relação de forças em estado
de permanente ebulição.
Através dos tempos o corpo se fez presente. O corpo torturado foi um dos elementos
utilizados em nossa artesania. Massa inorgânica que, enquanto um acontecimento aponta
para dimensões diversas, racha certezas e invade territórios, podendo ter um peso metálico,
ou a potência de um nascimento, como uma emergência, nasce em um plano. Buscamos dar
visibilidade ao mapa das forças que compõe esses planos e, assim, aparecem linhas
heterogêneas, duras, flexíveis, que perpetuam estados vigentes, ou a eles escapam.
É preciso envergadura, para deixar-se afetar pela vivência da tortura, já que o
pesquisador não está alheio à intensidade da experiência. Estar misturado aos relatos, tomar
parte na militância, viver estas intensidades, no próprio corpo, é condição deste trabalho
que cria palavras e imagens para afetos até então cuidadosamente resguardados. Na
inseparabilidade entre sujeito e objeto da pesquisa, inevitavelmente somos transformados.
Assim, no percurso do trabalho, faz-se mais uma militante do Grupo Tortura Nunca
Mais/RJ.
Com o artifício das imagens, rompemos com o paradigma absolutista da palavra,
como senhora do pensamento. Afirmamos que na criação de um vídeo, também é possível
produzir pensamento, revigorando o universo da pesquisa realizada na universidade. Sem
receitas prontas de métodos a varejo, apenas o encantamento como guia e a coragem para
lançar-se em vôo de pluma que flutua e toma partido da brisa.
Salvar os arquivos da fúria silenciosa das traças, eis um desafio. Mas, como pode
um mero pesquisador enfrentar famintas traças? É preciso atenção para captar sussurros.
Amplificar tímidas vozes é devolver à dimensão coletiva histórias individualizadas. Só
82
estará à altura da sagacidade das traças o pesquisador que disponibilizar todo o seu corpo
intensivo, sendo assim a testemunha que não vai embora. Desse modo, falam os arquivos e
a vitalidade sacode a poeira acumulada. É preciso persistência para criar a situação,
espreitar o acontecimento ali, onde é imprevisto e, até mesmo, certa insensatez, para
perguntar à traça “você tem fome de quê?”. Arquivos ganham vida e traças descobrem
novos apetites, eis o exercício de um ofício, um fazer psicologia.
Assim, como começamos pelo meio, também é no meio que terminamos.
Encerramos sem chegar a um fim, revelar verdades, profundezas, ou interiores. Ficam
registros desta trajetória de trabalho, fragmentos de processos, sendo a escrita um dos
campos para criar, pensar e resistir. Mas não cessará o movimento: a abertura para os
fluxos impõe porosidade permanente. Os impasses estão sempre se renovando, dessa forma,
é preciso desapego dos métodos manjados para inventar novas ferramentas de análise e
intervenção. Brotam novos problemas, desenham-se caminhos, armam-se barreiras, e o
movimento segue; “não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas” (DELEUZE,
1992, p. 20). A vitalidade da pesquisa, com seus detetives às avessas, está em colocar,
incansavelmente, novas questões.
83
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