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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO
CAMPUS DE BAURU
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
Lidiane Malagone Pimenta
CAMPANHA FOME ZERO:
A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO NA MÍDIA TELEVISIVA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, da área de concentração em
Comunicação Midiática, da Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação de Bauru, sob a orientação do Prof. Dr.
Maximiliano Martin Vicente.
Bauru
2005
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Lidiane Malagone Pimenta
CAMPANHA FOME ZERO:
A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO NA MÍDIA TELEVISIVA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da
área de concentração em Comunicação Midiática, da Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação de Bauru, sob a orientação do Prof. Dr. Maximiliano Martin Vicente.
Banca examinadora:
Presidente: Prof. Dr. Maximiliano Martin Vicente
Instituição: Universidade Estadual Paulista – UNESP Bauru/SP
Titular: Profa. Dra. Maria Inês Mateus Dota
Instituição: Universidade Estadual Paulista – UNESP Bauru/SP
Titular: Prof. Dr. Adolfo Queiroz
Instituição: Universidade Metodista de São Paulo – UMESP Piracicaba/SP
Bauru, 18 de novembro de 2005.
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AGRADECIMENTOS
Meus sinceros agradecimentos ao Batata, Darlene, Vanessa, Sandra e Magda pelas atenciosas
entrevistas e ao Sílvio e ao Helder, funcionários da Pós, por estarem sempre dispostos a
ajudar. Agradeço também ao meu orientador Max, professor e amigo, por me orientar,
acompanhar e por me deixar caminhar no meu passo. Agradeço a meus pais pelo apoio, como
por toda a vida. À minha amiga Mary e minhas irmãs Cristina e Bárbara, meu muito obrigada,
pelo carinho e pelas mãos saudáveis. Agradeço, em especial, ao Rodrigo, pela presença nos
momentos difíceis, por todo amor, dedicação e companheirismo.
PIMENTA, Lidiane M. Campanha Fome Zero: a construção do sentido na mídia
televisiva. 2005. 139 fls. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação, UNESP, Bauru, 2005.
RESUMO
A presente dissertação tem por finalidade analisar a campanha midiática do Programa Fome
Zero veiculada na televisão no primeiro semestre de 2003 e sua implementação num
município do interior paulista, a cidade de Bauru. Para avaliar o tema proposto, adotou-se
uma trajetória na qual se avalia a nova ordem internacional, suas contradições e a forma como
o Brasil acabou aderindo a seus princípios. Tal avaliação auxilia o posicionamento da mídia
na atualidade e, junto à análise do discurso da campanha em estudo e à pesquisa de campo
realizada em Bauru, onde foram aferidos seus acertos e equívocos, faz entender como tal
campanha caminha na contramão da proposta do Programa Fome Zero.
ABSTRACT
This dissertation aims at analyzing the Fome Zero Program media campaign broadcasted on
television during the first semester of 2003 and the Program implementation in the city of
Bauru, São Paulo. In order to assess the above mentioned theme, the strategy of analyzing the
new international order, its contradictions and the way Brazil adhered to its principles was
adopted. This analysis helps the assessment of the media’s perspective nowadays and, along
with the Fome Zero campaign discourse analysis and the field research carried out in Bauru
where its appropriateness and flaws were verified, provides an understanding of how this
campaign is contradictory with the Program’s purpose.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Estrutura do Programa Fome Zero: órgãos de apoio .................................. 69
Tabela 2: Apoio Empresarial ao Programa Fome Zero no 1º semestre de 2003 ........
78
Tabela A: Texto do primeiro filme .............................................................................. 97
Tabela B: Texto do segundo filme .............................................................................. 98
Tabela C: Texto do terceiro filme ............................................................................... 98
Tabela D:
Texto da música do primeiro filme ............................................................. 99
Tabela E:
Pontos do depoimento do vereador José Carlos Batata .............................. 112
Tabela F:
Pontos do depoimento de Darlene Têndulo ................................................ 115
Tabela G:
Pontos do depoimento de Sandra Fiordoliva e Vanessa Carbone .............. 119
Tabela H:
Pontos do depoimento com Magda Cruciol ............................................... 124
SUMÁRIO
Agradecimentos ............................................................................................................... 03
Resumo .............................................................................................................................. 04
Abstract .............................................................................................................................. 04
Lista de Tabelas ............................................................................................................... 05
Introdução ........................................................................................................................ 07
Capítulo 1 Nova ordem mundial: do global ao local ................................................ 11
1.1 O Brasil no mundo globalizado ....................................................................... 21
1.2 A pobreza no Brasil contemporâneo .................................................................. 29
Capítulo 2 A mídia e as campanhas de comunicação ................................................ 37
2.1 A mídia em tempos de globalização .................................................................. 37
2.2 Campanhas de comunicação .............................................................................. 44
Capítulo 3 O Programa Fome Zero ........................................................................... 58
3.1 Conceitos e políticas .......................................................................................... 58
3.2 Fome Zero em debate ....................................................................................... 73
Capítulo 4 Análise do Programa Fome Zero: do discurso à implementação ......... 88
4.1 A análise do discurso da campanha .................................................................. 89
4.2. O Programa Fome Zero em Bauru ..................................................................... 110
Considerações finais ...................................................................................................... 129
Referências ..................................................................................................................... 134
7
INTRODUÇÃO
Campanhas de comunicação aliadas a temas sociais sempre acompanharam a
trajetória acadêmica que aqui encontra mais um marco. Em virtude disso, antes mesmo de
iniciar os estudos da Pós-graduação em comunicação midiática, o tema de suas pesquisas já
havia sido escolhido: a campanha midiática do Programa Fome Zero, programa social do
governo federal, lançado em 2003, cujo objetivo é acabar com a fome no Brasil.
O contexto sócio-político da época também influenciou a escolha do trabalho a ser
desenvolvido. A Presidência da República foi assumida por Luís Inácio Lula da Silva. Seu
partido, o PT, que sempre fez oposição aos governos anteriores e se destacou por seu ideário
de justiça social, passaria a governar o país. Tempos de esperança, de expectativas por novos
rumos e mudanças, de despertar de temas como igualdade social e cidadania. Vislumbrava-se
a possibilidade de um Brasil melhor, mais justo, mais preocupado com as questões sociais.
Dados do IBGE mostravam que, no período de 1992 a 1999, a concentração de
renda e a desigualdade social no Brasil avançavam. Uma das conseqüências mais sérias desta
realidade é a fome e, diante disso, o Programa Fome Zero, constituindo-se de políticas e ações
destinadas a melhorar a qualidade, a quantidade e a regularidade de alimentos necessárias
àqueles que passam fome, mostrou-se como alternativa para solucionar o problema. Segundo
seus idealizadores, o sucesso do Programa dependeria da conjugação adequada entre suas
políticas e a participação popular. Todos estavam convocados a ajudar.
Para a grande maioria dos brasileiros, com exceção daqueles que participavam da
gestão do Programa, o Fome Zero passou a existir no momento em que conheceram sua
campanha veiculada na televisão, nos jornais, revistas, outdoors. A mídia deu visibilidade ao
8
Programa e foi usada para informar e convencer a população de que a luta contra a fome é de
toda a sociedade.
Contribuindo com informações e interpretações, a mídia auxilia na construção de
significados e, assim, influencia a vida das pessoas. E, dentre os meios de comunicação de
massa, a televisão, segundo Lima (2001), é o meio de maior audiência e credibilidade. Sendo
assim, o que cada indivíduo vê na televisão é, para ele, informação que usa para formar suas
opiniões e sonhos.
Por isso, o objeto de estudo desta dissertação é a campanha midiática televisiva do
Programa Fome Zero. O governo federal, por meio da campanha, deixou claro que sem a
participação de todos os cidadãos, não conseguiria acabar com a fome no país, sua meta.
Portanto, fez-se necessário conhecer também a opinião de cidadãos envolvidos com o
funcionamento e com a ajuda da população ao Fome Zero. Tomando como referência a cidade
de Bauru, localizada no Estado de São Paulo, onde é oferecido o curso de Pós-graduação ao
qual se vincula este trabalho, foi possível verificar, por meio de pesquisa de opinião, as
relações entre o Fome Zero, sua campanha midiática e a participação popular que evocava.
Descobrir se essa campanha foi capaz de persuadir seu público a participar do
Programa passou a ser o objetivo principal da presente investigação. Além disso, foi possível
averiguar se a campanha, por meio da sedução de seu público, colaborou para o objetivo do
Programa Fome Zero que é eliminar a fome no Brasil, mudando a vida de pessoas que não
têm condições sequer de se alimentar adequadamente.
Diante dessas questões, foi fundamental procurar compreender o mundo
contemporâneo, onde se enquadra o Programa, e a questão da mídia na atualidade, já que sua
campanha é objeto de estudo deste trabalho. Vale destacar que, levando em consideração que
determinado discurso ocorre em função de um contexto, parece fundamental explicitá-lo para
que as investigações propostas percorram um caminho delimitado. Sendo assim, os capítulos
9
apresentados a seguir constituíram-se com a finalidade de viabilizar a compreensão desse
contexto e da campanha midiática do Fome Zero.
No primeiro capítulo, encontra-se um panorama da atualidade, onde aparecem
comentários sobre a realidade sócio-político-econômica mundial e brasileira. Explica-se como
se dão as relações político-financeiras entre países, de acordo com a política neoliberal
vigente, e de que forma elas foram se constituindo no Brasil. As conseqüências das idéias
neoliberais para a questão social também são colocadas, em especial, para a problemática da
fome no país. Entretanto, compreender esse processo sem avaliar seu impacto no tocante à
comunicação midiática resultaria numa abordagem incompleta.
Por essa razão, o segundo capítulo traz um panorama mundial da mídia, dando
destaque aos processos de concentração das empresas de comunicação e entretenimento pelo
mundo e no Brasil. Encontram-se ainda considerações sobre a influência da mídia na
formação de movimentos sociais e sobre o alcance dos meios de comunicação de massa no
país, o que levou à escolha da campanha midiática televisiva para o estudo proposto neste
trabalho.
Nesse capítulo também é feito um apanhado teórico sobre campanhas de
comunicação, buscando definir a campanha midiática do Fome Zero e descobrir quais
técnicas de propaganda a constituem. Supondo que a campanha se enquadra na categoria de
campanha de construção social, por divulgar um programa de combate à fome que visa mudar
a vida de pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social, considerações são
feitas sobre as dimensões política e educativa desse tipo de campanha.
Porém, como o objetivo desta dissertação é verificar se o discurso da campanha
midiática do Fome Zero é capaz de colaborar com o Programa, ajudando a eliminar a fome no
Brasil, faz-se necessária uma investigação sobre sua dimensão retórica, bem como sobre sua
concepção, suas estratégias e políticas de combate à fome, sua estrutura de trabalho.
10
Tentando responder a tais indagações, o Programa Fome Zero é apresentado,
detalhadamente, no terceiro capítulo. Seu surgimento, seu papel na campanha eleitoral de
Lula à Presidência da República e seus idealizadores marcam o início da apresentação. Logo a
seguir, são explicitadas as ações propostas pelo Programa, suas políticas locais, específicas e
estruturais.
Comentários sobre como o Fome Zero aparece na mídia são feitos também nesse
capítulo, dando ênfase às críticas que o Programa recebeu no primeiro ano de funcionamento.
Vale a pena salientar também que o Programa Fome Zero constitui-se de um esforço, de
conteúdos e práticas que, de alguma forma, são contrárias às defendidas pelo modelo
neoliberal, cujos ideários e conseqüências são explicitados nos capítulos anteriores.
Se o terceiro capítulo privilegiou a concepção e estrutura do Programa Fome Zero,
no quarto e último a Análise do Discurso foi escolhida como ferramenta para análise do
discurso da campanha. Utilizando o estudo dos dêiticos e das modalidades, foi possível
compreender a campanha midiática do Fome Zero como produto da intenção do governo em
convencer seu público a participar do Programa por meio de doações de dinheiro e alimentos.
Ainda no quarto capítulo, encontra-se a pesquisa de campo realizada com o intuito
de conhecer a opinião de pessoas diretamente ligadas ao Programa Fome Zero em Bauru. Os
resumos dos depoimentos são acompanhados por comentários que destacam os pontos de
discussão fundamentais para as conclusões deste trabalho.
Nas considerações finais, são colocados os últimos apontamentos sobre os
aspectos relevantes da investigação proposta aqui. Após a análise do discurso da campanha
midiática televisiva do Fome Zero e das entrevistas que trataram da opinião pública sobre o
Programa, são feitas as considerações que delas surgiram.
11
CAPÍTULO
1 NOVA ORDEM MUNDIAL: DO GLOBAL AO LOCAL
A busca pelo lucro e a conquista de outros mercados sempre foram características
fundamentais do capitalismo. Há séculos, empresas davam vida ao capitalismo que já
revelava-se um modo de produção internacional. Ianni sustenta que:
mesmo sendo
sucessiva e simultaneamente nacional, regional e
internacional, juntamente com sua vocação colonialista e imperialista, o
capitalismo se torna no século XX um modo de produção não só
internacional, mas propriamente global (IANNI, 1999, p.137).
Após a Segunda Guerra Mundial, inicia-se um vasto processo de
internacionalização do capital com intensidade e generalidade jamais vistas. O capital perdia
parcialmente sua característica nacional. Ao predominar seus movimentos e formas de
reprodução em âmbito internacional, esse capital alterava as condições dos movimentos e das
formas de reprodução em âmbito nacional.
Enquanto agentes e produtos dessa internacionalização do capital, “as empresas
corporações e conglomerados transnacionais adquirem preeminência sobre as economias
nacionais” (IANNI, 1999, p.46). Dando sustentação ao processo, uma nova divisão
internacional do trabalho e a flexibilização dos processos produtivos surgiram, entre outras
manifestações do capitalismo, sempre em escala mundial.
Intensificou-se e generalizou-se o processo de dispersão geográfica da
produção, ou das formas produtivas [...] tudo isso amplamente agilizado e
generalizado com base nas técnicas eletrônicas [...] Globalizaram-se as
instituições, os princípios jurídicos-políticos, os padrões sócio-culturais e os
ideais que constituem as condições e produtos civilizatórios do capitalismo
(IANNI, 1999, p.47-48).
Construir aqui um retrato deste novo mundo não é uma tarefa fácil. A dificuldade
se acentua conforme aumenta a capacidade humana de refletir sobre o mundo e sobre a vida
em sociedade. Além disso, deparar-se com um mundo diferente a cada dia não é mais
instigador e complexo do que conhecer cada interpretação de que tal realidade é digna:
12
reflexos de um mundo globalizado. No entanto, as tentativas de compreendê-lo são louváveis
e servem de guia para novos entendimentos e discussões.
A construção do conceito “globalização”, segundo Held e McGrew (2001), conta
apenas com rótulos que tentam estabelecer linhas-mestras de argumentação sobre o tema, que
buscam dar conta do assunto. Porém, ainda não se esgotaram as discussões sobre a
globalização, tendo em vista a complexidade das diversas interpretações conhecidas
atualmente.
Facilitando a compreensão das discussões sobre a globalização, Held e McGrew
dividem os estudos em dois grandes grupos de pensamento: céticos e globalistas. Os
primeiros defendem a idéia de que a globalização não é diferente da transnacionalização, pois
ela não é total, não cobre todo o globo. Já os globalistas acreditam que a globalização parece
ser indeterminada porque é produto de forças múltiplas e dinâmicas, processo de inter-relação
nos campos político, econômico, cultural, militar, tecnológico, etc, e deve ser entendida fase a
fase, como uma mudança de longo prazo.
Os aspectos culturais da globalização neste trabalho não são, a priori,
fundamentais. Porém, vale o esforço de estudá-los para entender sua dinâmica, em busca de
uma maior compreensão deste movimento global. Céticos e globalistas, conforme Held e
McGrew, admitem o fortalecimento de um nacionalismo cultural, mas discordam sobre sua
força diante da exposição a outras culturas.
Os céticos apostam no vínculo entre as culturas nacionais e sua referência política,
pois as identidades nacionais foram criadas em virtude do Estado-nação, pelo sistema de
educação e da mídia. Tal sistema também consolidou a cultura popular na comunidade,
tornando-a forte o bastante para não ser desgastada por forças transnacionais.
Já os globalistas dizem que a escala, a intensidade, a velocidade e o volume de
comunicação entre países é tão grande que, além de aumentar significativamente a exposição
13
a outras culturas, rompe o elo do ambiente físico e a situação social, criando uma consciência
global emergente (tendo a ONU e o Greenpeace como exemplos práticos), formando as bases
culturais de uma sociedade civil global.
Compartilhando de uma visão ora globalista, ora cética, sobre os aspectos
culturais no mundo globalizado, Ianni (1999) acredita, primeiramente, que a cultura rompe
fronteiras geográficas e histórico-culturais, fazendo com que os povos encontrem novos
horizontes com a universalização da informação, provocando assim, a recriação das
singularidades de cada cultura. Porém, o autor destaca que as mesmas relações que promovem
a integração acabam suscitando o antagonismo, já que as diversidades e desigualdades são
colocadas frente a frente, podendo, sim, conforme Held e McGrew (2001, p.42)
, haver o
reforço da cultura local:
[...] embora os novos sistemas de comunicação possam dar acesso a
similares distantes, eles também geram uma consciência da diferença...
Conquanto essa consciência possa favorecer a compreensão cultural, muitas
vezes ela leva a uma acentuação do que é característico [...]. A consciência
do “outro” não garante, em absoluto, a concordância intersubjetiva [...].
Por outro lado, vale colocar que o acesso à cultura nacional, como já dito
anteriormente, é viabilizado tanto pelo Estado-nação e o sistema de educação, quanto pelas
empresas e mídia nacionais, enquanto o acesso a outras culturas se dá por meio de empresas
multinacionais, seja de produtos importados, seja de mídia e entretenimento. Apesar de não
estar isenta de interesses econômicos, a “máquina cultural” nacional fica, muitas vezes, em
desvantagem diante do poderio econômico internacional e se vê recriada, devido à integração
promovida pelo contato cultural ditado pela economia.
Conhecer o processo do relacionamento entre culturas nacional e transnacional
exige o estudo de muitas outras variáveis. Não cabe aqui promover uma discussão sobre o
assunto, mas fica claro que ambas as possibilidades (de reforço da cultura nacional e do
surgimento de uma global), defendidas por céticos e globalistas, podem acontecer, visto que,
14
conforme Santos (2002), a globalização afeta a vida econômica, política e cultural, as relações
interpessoais e até a subjetividade dos indivíduos, de uma maneira ou de outra.
Os meios de comunicação de massa assumem posição de ferramentas para todo o
movimento de globalização. A eles se atribui o dinamismo com que são vencidas fronteiras,
culturas, idiomas, religiões, regimes políticos, diversidades e desigualdades sócio-econômicas
e hierarquias raciais:
Em poucos anos, na segunda metade do século XX, a indústria cultural
revoluciona o mundo da cultura, transforma radicalmente o imaginário de
todo o mundo. Forma-se uma cultura de massa mundial, tanto pela difusão
das produções locais e nacionais como pela criação diretamente em escala
mundial. São produções musicais, cinematográficas, teatrais, literárias e
muitas outras, lançadas diretamente no mundo como signos mundiais ou da
mundialização (IANNI, 1999, p.94).
O papel da mídia no processo globalizante merece atenção especial. Suas inter-
relações com a globalização, aspectos ideológicos, econômicos e retóricos serão analisados
posteriormente, no capítulo 2. Entretanto, vale colocar aqui que, sem um sistema de mídia
global, estaria dificultada a construção das novas dinâmicas mundiais, sejam elas culturais,
políticas, sociais ou econômicas.
É sobre os aspectos econômicos, ainda segundo Held e McGrew, que as
diferenças entre o pensamento cético e globalista aumentam. Para os céticos, não há a
globalização da economia, mas sim, uma internacionalização em que os vínculos entre
determinados países se acentuam, excluindo outras nações; e não há um padrão de economia
global:
Até entre os Estados da OCDE, que são sem dúvida as mais interligadas de
todas as economias, as tendências contemporâneas sugerem apenas um grau
limitado de integração econômica e financeira. (Feldstein e Horioka, 1980;
Neal, 1985; Zevin, 1992; Jones, 1995; Garrett, 1998). Seja no tocante às
finanças, à tecnologia, ao trabalho ou à produção, os dados não confirmam a
existência ou a emergência de uma economia global única (Hirst e
Thompson, 1999). Até as empresas multinacionais, conclui-se, continuam
predominantemente cativas dos mercados nacionais ou regionais, ao
contrário de sua imagem popular de “capital móvel” (Tyson, 1991; Ruigrok
e Tulder, 1995) (HELD e McGREW, 2001, p.50-51).
15
As idéias globalistas, por sua vez, destacam que, se não houvesse interação
econômica, movimento de capitais e câmbio e comércio mundial instaurado, crises
econômicas localizadas não produziriam colapsos em todo o globo. Contra-argumentando o
pensamento cético, os globalistas defendem que a regionalização das economias dá
mecanismos aos Estados para que se insiram nos mercados globais. Além disso, acreditam
que não existe mais uma tríade econômica
1
como apontam os céticos, mas sim, uma era pós-
hegemônica em que “nenhum centro isolado pode ditar as regras do intercâmbio e do
comércio globais. (Amin, 1996; Bright e Geyer, 1995; Gill, 1992)” (HELD e McGREW,
2001, p.61).
Apesar de a ala globalista mais radical enxergar que os mercados globais escapam
efetivamente à regulamentação política, outros reconhecem o surgimento de um sistema de
gestão econômica multiestratificada e pluralista. Além dos órgãos regionais (Mercosul, União
Européia...) e da sociedade civil transnacional emergente (Câmara Internacional do Comércio,
campanhas por interesses comuns...), existem as instituições multilaterais de gestão
econômica global – de caráter público – como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o
Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio.
Vista por esse prisma, a política da gestão econômica global é muito mais
pluralista do que admitem os céticos, uma vez que as instituições globais e
regionais exercem considerável autoridade independente (HELD e
McGREW, 2001, p.67).
Parte dos teóricos globalistas defendem que as instituições multilaterais são locais
onde o controle das grandes potências é mediado e a globalização econômica é contestada
pelos Estados mais fracos e órgãos da sociedade civil organizada transnacional.
Porém, parte do pensamento globalista se aproxima do cético quando acredita que
tais instituições não têm autoridade independente quando adotam programas que ampliam o
controle do mercado global sobre a vida econômica nacional, como agentes do capital global
1
A tríade econômica, segundo os céticos, é formada por três grandes centros da economia global – EUA, Japão e
16
e dos países do G7. Para os céticos, a gestão da economia mundial ainda depende da
disposição dos Estados mais poderosos – na prática, os governos do G7 – policiarem o
sistema e são suas preferências e interesses que têm precedência.
Stiglitz (2002) concorda com a visão de céticos e globalistas de orientação social
democrata e proporciona uma visão prática de como a gestão da economia globalizada – por
meio das instituições multilaterais ditas independentes – atinge a autoridade política dos
Estados-nação, traçando o perfil dessas agências e de suas políticas e atividades.
O papel das instituições multilaterais assim se resume: a Organização Mundial do
Comércio regula e fiscaliza o comércio internacional; o Banco Mundial ajuda com
empréstimos os países em desenvolvimento a crescer com estabilidade, sustentabilidade e
reduzir a pobreza; e o Fundo Monetário Internacional (FMI) surgiu com o intuito de exercer
pressão sobre os países que não contribuem para o equilíbrio da economia mundial e de
fornecer liquidez na forma de empréstimos para que isso ocorra, quando necessário.
Ao criar o FMI, a cúpula de dirigentes das principais nações desenvolvidas do
globo acreditava na necessidade de pressionar os países para obter políticas econômicas mais
expansivas em benefício de todos. Entretanto, segundo Stiglitz, atualmente, o Fundo
Monetário Internacional concede recursos somente aos países que adotam as políticas
econômicas recomendadas por ele.
As políticas econômicas sugeridas pelo Fundo Monetário Internacional baseiam-
se no fundamentalismo de mercado – uma “verdade absoluta” entre os economistas do FMI –
que diz ser a demanda igual à oferta e os mercados auto-reguladores. Tal conjunto de
políticas, conhecido como neoliberalismo, apresenta-se como um melhoramento do
pensamento liberal, agora somado à tecnologia da informação e à conseqüente diminuição dos
custos de operações financeiras e comerciais entre países.
Europa – que exerceriam poder sobre as relações econômicas mundiais.
17
A doutrina neoliberal também se manifesta nas próprias idéias que sustentam a
globalização. Segundo Santos (apud LEITE, 1999), isso ocorre:
[...] atrás da própria produção e difusão das idéias, do ensino e da pesquisa.
Todos obedecem, de alguma maneira, aos parâmetros estabelecidos. [...] É o
chamado pensamento único. [...] É uma forma de totalitarismo muito forte,
insidiosa, porque se baseia em idéias que aparecem como centrais à própria
idéia da democracia – liberdade de opinião, de imprensa, tolerância –
utilizadas exatamente para suprimir a possibilidade de conhecimento do que
é o mundo, do que são os países, os lugares.
Um característico exemplar de um “protocolo” neoliberal é o Consenso de
Washington, um conjunto de políticas voltadas para solucionar os problemas da América
Latina durante as décadas de 1980 e 1990. Suas recomendações estavam alicerçadas na
austeridade fiscal, na privatização e na liberalização de mercado.
Tais políticas foram implementadas de maneira excessiva e muito rapidamente,
excluindo outras políticas que se faziam necessárias, gerando crises quase que imediatamente.
Stiglitz comenta as razões pelas quais o Consenso de Washington não deu certo, em virtude
da maneira como foi colocado em prática:
[...] a liberalização do comércio, acompanhada por altas taxas de juros, é
uma receita praticamente certa [...] para a criação de desemprego [...] a
liberalização do mercado financeiro sem o acompanhamento de uma
estrutura regulamentar apropriada é uma receita para a instabilidade
econômica [...] a privatização, sem o acompanhamento de políticas de
concorrência e a necessária supervisão para garantir que os monopólios
não se tornem abusivos, pode ocasionar a elevação de preços [...] a
austeridade fiscal, quando implementada às cegas, [...] pode levar a grande
desemprego e a um retalhamento do contrato social (STIGLITZ, 2002,
p.119-120). Grifos do autor.
Sem contar que, ainda para Stiglitz, o Consenso de Washington não tratou
devidamente de questões como distribuição de renda e justiça social. Na maior parte da
América Latina, depois de uma curta explosão de crescimento no início da década de 1990,
estabeleceram-se a estagnação e a recessão e, conseqüentemente, o aumento da desigualdade
social e da miséria. Assim, as instituições financeiras internacionais não garantiram a
estabilidade econômica global, não propiciaram o crescimento sustentável dos países em
desenvolvimento e não tiveram êxito em reduzir a pobreza.
18
Held e McGrew (2001) também destacam que a globalização econômica está
associada a uma defasagem acelerada entre os países ricos e pobres, o que começa a produzir
colapsos sociais em todo o globo. Mas sobre as causas da acentuação da desigualdade em
nível mundial, céticos e globalistas têm visões extremamente distintas, bem como são suas
interpretações sobre as conseqüências do tema para a governabilidade e solidariedade
nacional e internacional.
Sobre a governabilidade, Stiglitz (2002) coloca que a face econômica da
globalização, apoiada nas instituições internacionais, detém poder de decisão que se sobrepõe,
muitas vezes, à vontade de governos das nações em desenvolvimento. Caso um país não siga
as condições impostas pelo FMI, esse se recusa a emprestar-lhe dinheiro. Praticamente
forçados a adotar as políticas sugeridas, os países em desenvolvimento acabam por abrir mão
de parte de sua soberania, ficando expostos aos interesses do capital. Por esse e por outros
motivos, a globalização é vista como um sistema totalitário. Santos (apud LEITE, 1999)
aponta tal característica:
Eu chamo a globalização de globalitarismo, porque estamos vivendo uma
nova fase de totalitarismo. O sistema político utiliza os sistemas técnicos
contemporâneos para produzir a atual globalização, conduzindo-nos para
formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão, que
exigem obediência imediata.
A idéia de globalitarismo combina com o fato de que as políticas neoliberais não
reconhecem a necessidade de um governo atuante na gestão da economia de seus países. Para
os “homens” que regem a economia global, os mercados livres, desimpedidos, ‘liberais’
funcionam perfeitamente. Tendo seu papel de gestor econômico reduzido, o Estado atua com
dificuldades. Ianni aponta que:
Algumas das características “clássicas” do Estado-nação parecem
modificadas, ou radicalmente transformadas. As condições e as
possibilidades de soberania, projeto nacional, emancipação nacional,
reforma institucional, liberalização das políticas econômicas ou revolução
social, entre outras mudanças mais ou menos substantivas em âmbito
nacional, passam a estar determinadas por exigências de instituições,
19
organizações e corporações multilaterais, transnacionais ou propriamente
mundiais, que pairam acima das nações (1999, p.48-49).
Aí se encontram os entraves para o pleno exercício das políticas públicas nos
países que seguem o pensamento neoliberal e as recomendações do Fundo Monetário
Internacional. Entretanto, Stiglitz insiste no papel fundamental dos governos na escolha da
política a ser seguida e na promoção da estabilidade econômica:
[...] os países que mais têm se beneficiado são os que assumiram o controle
de seus próprios destinos e reconheceram o papel a ser desempenhado pelo
governo no desenvolvimento, em vez de permanecerem na dependência de
uma idéia de mercado auto-regulador capaz de solucionar os próprios
problemas (2002, p.299).
O Estado pode criar políticas alternativas às “recomendações” neoliberais e
procurar garantir justiça social. Nações que assim o fizeram, experimentam, hoje, crescimento
e estabilidade econômica e social. Dentre essas políticas, Stiglitz ressalta a promoção de uma
infra-estrutura institucional e legal para que os mercados funcionem eficazmente, além de
regular o setor financeiro, promover a tecnologia necessária e, principalmente, fornecer redes
de segurança e combate à miséria.
Globalistas de orientação neoliberal acreditam que a abertura de mercado é o
caminho para a geração de riquezas e a diminuição da pobreza (contando com o efeito em
cascata da prosperidade) e aceitam as desigualdades como ‘naturais’, acarretadas pela
intervenção multilateral dita necessária para corrigir as conseqüências da globalização
econômica desigual. Para os neoliberais, “tais diferenças desaparecerão com a modernização
conduzida pelo mercado” (Held e McGrew, 2001).
Os globalistas de orientação social-democrata defendem que a globalização é
responsável direta pelo aumento das disparidades em todo o planeta, sob três aspectos:
[...] a segmentação da força de trabalho mundial entre os que ganham e os
que perdem com a globalização econômica; a crescente marginalização dos
perdedores da economia global; e o desgaste da solidariedade social das
nações, uma vez que os sistemas de assistência social não podem ou os
governos não querem arcar com os custos de proteger os mais vulneráveis
(Castells, 1997; Cox, 1997; Dicken, 1998; Gray, 1998; Lawrence, 1996;
Scharpf, 1999) (HELD e McGREW, 2001, p.72).
20
De acordo com Held e McGrew, tais fatores acabam por dividir as nações e
desgastar a base da solidariedade social, tanto nos países de economias avançadas – onde a
competitividade global enfraquece as coalizões sociais e inibe a aplicação de políticas
eficientes de proteção social – quanto no mundo em desenvolvimento – onde “os programas
de assistência social supervisionados pelo FMI e pelo Banco Mundial restringem severamente
os gastos públicos com o bem-estar social” (HELD e McGREW, 2001, p. 73).
Para os autores, há a necessidade de uma nova negociação global entre países
ricos e pobres. Isso implicaria em um repensar da democracia enquanto projeto nacional, não
esquecendo de que as nações devem estar inseridas num sistema de gestão global que
combine eficiência econômica com segurança humana:
A reconstrução de um projeto social democrático exige a busca coordenada
de programas nacionais, regionais e globais que regulem as forças da
globalização econômica – a garantia, em outras palavras, de que os mercados
globais comecem a servir às populações do mundo, e não o inverso. Estender
a democracia social para além das fronteiras também depende de fortalecer
os laços de solidariedade entre as forças sociais, nas diferentes regiões do
mundo, que procuram contestar ou resistir aos termos da globalização
econômica contemporânea. Assim como o sistema de Bretton Woods criou
uma ordem econômica mundial conducente à busca da democracia social
nacional, faz-se necessário um novo pacto (social democrático) global,
afirmam muitos globalistas, para domar as forças da globalização econômica
e criar uma ordem mundial mais justa e mais humana (HELD e McGREW,
2001, p.73-74).
Para isso, o Estado-nação precisa assumir o controle da política econômica e
social e, como explicitado anteriormente, buscar soluções para garantir justiça social, algo que
o processo de globalização até hoje não promoveu. Por todo o globo, é possível encontrar
inúmeros exemplos do aumento da concentração de renda e da desigualdade social e de
muitas outras conseqüências das ações e políticas da doutrina neoliberal. No Brasil, isso não é
diferente.
21
1.1 O Brasil no mundo globalizado
Buscar compreender como o Brasil se coloca diante da globalização faz com que a
atenção se volte para a sua história político-econômica recente. Forças internas e externas
compõem a dinâmica com a qual o país se envolve e é envolvido na ‘nova ordem mundial’.
Tais forças merecem ser estudadas com um pouco mais de interesse para que seja possível
conhecer ‘os porquês’ do Brasil de hoje.
O papel ativo do Estado na busca do desenvolvimento econômico, a política
comercial protecionista, as estruturas estatais regulatórias e a criação de empresas públicas
marcaram o modelo desenvolvimentista que veio evoluindo na história do Brasil desde o ano
de 1930. Este ano se destaca, na história brasileira, como o ano de construção do modelo
desenvolvimentista de implementação de políticas públicas. O modelo tinha apoio dos grupos
industriais, dos sindicatos e da classe média.
Para dar sustentação econômica ao modelo, criou-se uma estrutura capaz de dar
conta de seus aspectos econômicos, político-administrativos e sociais. Órgãos para reger a
produção, incentivar a indústria e fornecer serviços básicos de infra-estrutura, aliados a
“escritórios políticos”
2
regionais e a fundos de aposentadoria e seguridade social – forma de
tutelar a população implantada na década de 1940 – marcaram a trajetória do
desenvolvimentismo no Brasil.
Vale destacar que uma outra característica desenvolveu-se de 1930 a 1950,
períodos, conforme Castro e Carvalho (2002), de centralização da estrutura política (1930 –
1937) e de ditadura civil (1937 – 1945). Em meados do ano 1960, ainda segundo os autores, o
2
Os “escritórios políticos”, de acordo com Castro e Carvalho (2002), são escritórios regionais do Departamento
Administrativo do Serviço Público (DASP) que serviam para fazer valer, muitas vezes politicamente, as ações
presidenciais.
22
uso político da administração macroeconômica por parte do governo brasileiro toma a forma
de um populismo macroeconômico
3
em que a ênfase da política econômica se concretizou nas
práticas de patronagem e clientelismo.
Já no período da ditadura militar, de 1964 a 1985, ainda de acordo com os autores,
tais práticas foram reprimidas e absorvidas pela interação das novas medidas de política
macroeconômica e das decisões dos agentes econômicos. No final da década de 1970, o
Presidente Geisel adotou o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, que visava
substituir as importações e tomar empréstimos externos.
O ambiente econômico internacional dos anos de 1970 até a década de 1980,
segundo Castro e Carvalho, era desfavorável, devido à crise do petróleo, ao aumento das taxas
de juros norte-americanas, à crise da dívida externa latino-americana e à internacionalização
da indústria bancária. As políticas desenvolvimentistas, que se apoiavam em gastos públicos
para promover o crescimento, não tinham um cenário positivo para atuar e a estratégia de
Geisel promoveu desequilíbrio econômico e aumento significativo da dívida.
[...] no mesmo momento em que a política externa brasileira ganhava
consistência e ímpeto suficientes para efetivamente complementar a política
interna de crescimento industrial, as condições econômicas e políticas
mundiais mudaram drasticamente (CASTRO & CARVALHO, 2003, p.119).
Já na década de 1980, segundo os autores, em reação às crises da dívida dos países
subdesenvolvidos e à recessão, as pressões internacionais se impuseram por meio da
introdução de ajustes estruturais em contrapartida para a assistência financeira internacional,
restringindo a autonomia das políticas econômicas nacionais. No Brasil, a opção por ceder às
pressões externas dividiu as elites do poder: parte se opôs à estratégia do governo da época,
considerando possível a adoção de planos alternativos para a política econômica, e parte
aderiu a uma variante do neoliberalismo.
3
“[...] é o uso político da administração macroeconômica em que a ênfase preferencial da política econômica
recai sobre o crescimento e a redistribuição da renda, em detrimento de preocupações com tendências
inflacionárias e constrangimentos externos” (CASTRO & CARVALHO, 2002, p.113).
23
A eleição presidencial parecia dar rumo à política econômica dos anos 1980.
Tancredo Neves tinha como orientação econômica um “nacional-desenvolvimentismo
renovado” (SALLUM JR., 2003) que prometia combinar crescimento econômico e uma
política de redistribuição de renda. De fato, a Constituição de 1988 aumentou a estabilidade
dos trabalhadores, assegurou benefícios à população e ainda ampliou as restrições ao capital
estrangeiro, deu mais espaço às empresas estatais e aumentou o controle do Estado sobre o
mercado.
Neste momento, segundo Sallum Jr., a ideologia liberal ganhava dimensão
mundial devido ao colapso do socialismo de Estado. Com o contexto externo adverso –
marcado por diminuição de empréstimos e a elevada evasão de capital nacional por meio do
pagamento de débitos – e com a situação social interna desfavorável – caracterizada por
instabilidade econômica, luta de diversos movimentos sociais pela satisfação de suas
carências e falta de articulação política –, o país não conseguiu dar continuidade à estratégia
desenvolvimentista.
Aos poucos, apesar da proteção do mercado interno, as taxas de crescimento e de
investimento diminuíram e a instabilidade provocou queda drástica no desenvolvimento do
país. Tais dificuldades estimularam a busca por um novo projeto político para o Brasil,
fazendo com que as idéias liberais que se espalhavam pelo mundo começassem a ter sentido
para a elite brasileira que, ao final do governo Sarney, começou a demonstrar interesse em
assumir uma postura tida não só como tendência, mas como único caminho viável em todo o
globo: seguir a “doutrina” das instituições financeiras internacionais e adotar suas políticas
neoliberais.
Ao mesmo tempo em que as recomendações do Consenso de Washington são
implementadas, provocando espasmos de crescimento não só no Brasil como na América
Latina, as classes dirigentes brasileiras passam a “confrontar o intervencionismo do Estado
24
exigindo desregulamentação, melhor acolhida para o capital estrangeiro, privatização das
empresas estatais, etc” (SALLUM JR., 2003, p.07), o que caracterizou o início da prática
neoliberal no Brasil, prática esta que se consolida na década de 1990.
A eleição de Fernando Collor de Mello para a Presidência da República em 1989,
que fez rupturas importantes com o ideário desenvolvimentista, marcou o impulso básico para
a liberalização econômica. Conforme coloca Sallum Jr., no governo Collor, o quadro
institucional nacional-desenvolvimentista foi danificado e a sociedade brasileira redirecionada
em um sentido antiestatal e internacionalizante:
Durante o período Collor, as licenças e as barreiras não tarifárias à
importação foram suspensas e as tarifas alfandegárias foram redefinidas,
criando-se um programa para a sua redução progressiva ao longo de quatro
anos. Ao mesmo tempo, programou-se a desregulamentação das atividades
econômicas e a privatização das companhias estatais que não estivessem
protegidas pela Constituição, a fim de recuperar as finanças públicas e
reduzir aos poucos o papel do Estado no incentivo à indústria doméstica
(SALLUM JR, 2003, p.09).
Ainda segundo ao autor, para estabilizar a moeda, no governo Collor, preços
foram congelados, dinheiro confiscado e a riqueza das classes médias e empresariais reduzida.
Além disso, o governo tentou exercer poder de forma dissociada da classe política
4
, reduziu as
despesas do Estado demitindo funcionários e desorganizando a administração pública.
Para Castro e Carvalho, a administração Collor mudou os padrões de intervenção
estatal na economia. Tais reformas tiveram conseqüências a longo prazo e concentraram-se na
privatização e na liberalização comercial. A política de comércio exterior deixou de fomentar
a indústria e passou a buscar o ajuste do balanço de pagamentos. As políticas externas de
Collor foram consideradas como “movimentos bruscos”, instituindo ampla abertura e
liberalização, mas sem promover vantagens para o país:
[...] seu governo falhou no controle da inflação e na articulação de uma
política externa abrangente, que conduzisse a uma inserção internacional
afirmativa do Brasil e favorecesse o crescimento nacional sustentado [...]
(CASTRO & CARVALHO, 2002, p.121).
4
Essa forma de fazer política – acima de partidos e do legislativo e ignorando as negociações características das
instituições democráticas – levou Collor a ser submetido a um processo de impeachment e renunciar em 1992.
25
Para Cano (1995), o governo Collor marca, assim, o início de uma nova era de
recessão e falta de credibilidade perante o mercado internacional. Com tudo isso, nem Collor,
nem Itamar Franco (que assumiu o governo após o impeachment de Collor) conseguiram
vencer a crise do Estado que tivera início nos anos 1980. Apesar disso, o contexto externo se
tornava, ano a ano, mais favorável, em virtude do elevado volume de aplicações financeiras,
da renegociação da dívida externa e do aperfeiçoamento da política de liberalização
econômica nos países periféricos, vividos nos primeiros anos da década de 1990.
Então, a elite brasileira se reorganiza entre partidos de centro e de direita e dá
continuidade às reformas liberais. Conforme Sallum Jr. (2003), a aliança política e o
lançamento do Plano Real que, num primeiro momento, provocou estabilidade monetária,
após dez tentativas frustradas em 11 anos, corroboraram um projeto de tomada do poder e
reconstrução do Estado em uma perspectiva liberal.
Com a mudança do padrão monetário, conforme Roio (2003), houve um salto
qualitativo na promoção do pensamento neoliberal no Brasil. A busca da estabilidade
monetária permitiu, com o advento do Real, o controle da inflação, alcançado às custas de
uma abertura irrestrita do mercado brasileiro e de grande endividamento externo
5
. Dessa
forma, das quatro metas de uma política econômica – estabilidade de preços, crescimento
econômico, pleno emprego e distribuição eqüitativa de renda – apenas a primeira meta se
cumpre, em detrimento das demais.
Com o “sucesso” do Plano Real, seu articulador e Ministro da Fazenda, Fernando
Henrique Cardoso, coloca-se como candidato à Presidência da República. Elegendo-se em
1994, apóia-se no discurso da inevitabilidade de ajustes na economia nacional para acabar
com o déficit público e conseguir revitalizar o desenvolvimento econômico e social do país.
5
Em 1998, por exemplo, de acordo com Stiglitz (2002), o Brasil fez um empréstimo com o FMI de 50 bilhões de
dólares para manter as taxas cambiais a níveis supervalorizados e estabilizar o Real.
26
Em 1995, ele assume o governo com ampla maioria no Congresso e nos estados,
constituindo a representação do novo sistema hegemônico de poder, levando à consolidação
do ideário neoliberal no Brasil, cujas principais características assim se resumem:
[...] o Estado deveria transferir quase todas as suas funções empresariais para
a iniciativa privada; teria que expandir suas funções reguladoras e suas
políticas sociais; as finanças públicas deveriam ser equilibradas e os
incentivos diretos às companhias privadas seriam modestos; haveria também
restrição aos privilégios existentes entre os servidores públicos, e o país
deveria intensificar sua articulação com a economia mundial (
SALLUM
JR,
2003, p.11).
Ainda segundo o autor, aprovando quase todos os projetos de reforma
constitucional e infra-constitucional submetidos ao Congresso, o governo Fernando Henrique
Cardoso solapou alguns dos fundamentos legais do Estado nacional-desenvolvimentista,
diminuiu a participação do Estado nas atividades econômicas, regulamentou concessões de
serviços públicos à iniciativa privada e privatizou estatais. A estabilização monetária, que foi
sustentada por políticas de câmbio sobrevalorizado, juros altos e ajuste fiscal brando,
produziu elevações significativas das dívidas externa e interna e desequilíbrio econômico
externo.
Para combater o desequilíbrio, o governo optou por limitar a apreciação cambial e
elevar ainda mais os juros, refreando a atividade econômica e as importações, diminuindo o
déficit comercial e, assim, atraindo capitais estrangeiros para “ancorar” o Real. Mas tal
estratégia, além de provocar o endividamento crescente do Estado, aumentou a fragilidade
financeira externa e prejudicou o desenvolvimento da economia do país:
Em todas essas situações críticas o país perdeu uma grande quantidade de
reservas internacionais e o governo agiu de forma semelhante, ou seja,
manteve a estabilidade da moeda elevando drasticamente os juros para
preservar as reservas e refrear tanto a atividade econômica interna como o
desequilíbrio externo. Essas medidas conseguiram preservar o valor da
moeda em relação ao dólar e manter a inflação em nível muito baixo,
embora não reduzissem a fragilidade financeira externa do país, pois
aumentavam a dívida pública e não reduziam o déficit de transações
correntes com o Exterior. Além disso, elas restringiram muito o crescimento
do produto nacional bruto e elevaram bastante as taxas de desemprego
(SALLUM JR, 2003, p.13).
27
Como notado, para manter a moeda estável, o governo de Fernando Henrique
Cardoso recorria a empréstimos, elevando a dívida pública e a dependência do capital
internacional. Conseqüentemente, o Estado brasileiro perde em termos de decisão, pois
qualquer medida que viesse a ser tomada fora dos padrões propostos pelas instituições
financeiras internacionais, poderia “assustar” os capitais indispensáveis à estabilização da
moeda.
Tal pragmatismo macroeconômico
6
fez com que o Brasil, aprisionado ao
pagamento da dívida e à busca de credibilidade perante à comunidade financeira
internacional, contasse, ao final do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, com
margens financeira e política muito pequenas para investimentos em políticas públicas. Os
superávits dos últimos anos, exigidos pelo FMI, não são suficientes para pagar sequer os juros
da dívida que se eleva sistematicamente, ao contrário da economia, que só cresceria com os
investimentos.
Com tudo isso, o governo de Cardoso não enfrentou a situação de pobreza do
Brasil. Castro e Carvalho (2002) afirmam que a área social nunca passou por transições e que
tanto o populismo macroeconômico quanto o pragmatismo macroeconômico não diminuíram
os altos níveis de desigualdade social no país.
Vale ressaltar ainda que, segundo Sallum Jr. (2003), a política econômica não era
consenso entre os partidos aliados, provocando o surgimento de duas correntes dentro do
bloco hegemônico vigente. A primeira, denominada liberal fundamentalista, estava
comprometida em prover uma economia de livre mercado e em manter a estabilidade
monetária. A segunda, liberal desenvolvimentista, se preocupava em combinar a estabilização
6
Para Castro & Carvalho (2002), o pragmatismo macroeconômico brasileiro se traduz como uma política
econômica com ênfase no controle de tendências inflacionárias e atenção aos constrangimentos externos, em
detrimento do crescimento, emprego e redistribuição de renda.
28
monetária com o crescimento competitivo da economia do país, com alguma intervenção do
Estado.
Com a perda do controle sobre a política econômica e a ascensão de enormes
dificuldades nessa área, mesmo com o “apoio” do FMI, o governo perde força política e
capacidade de aprovar leis no Congresso. As divisões internas do bloco hegemônico
persistiram e acompanharam a desvalorização da moeda e a perda de confiança no poder do
governo em manter a estabilidade e promover a retomada do crescimento econômico. Com
isso, deu-se margem ao fortalecimento dos partidos de oposição que, segundo Sallum Jr.
(2003), sofreram mudanças e passaram a ser mais permeáveis às idéias liberais.
Nas eleições de 2002, nenhum candidato – seja situacionista ou oposicionista –
defendeu o fundamentalismo de mercado. Tanto Luís Inácio Lula da Silva quanto José Serra e
demais candidatos pregavam a necessidade de mais controle do Estado sobre o mercado e
sobre a proteção social e mais incentivos estatais para a produção. A vitória de Lula para a
Presidência da República promoveu mudanças na coalizão política governamental, mas não
rompeu a hegemonia liberal construída até então.
Sallum Jr. (2003) coloca que, adotando uma agenda liberal-desenvolvimentista, o
atual governo visa estimular o desenvolvimento privado e buscar a igualdade social.
Entretanto, ainda que haja vontade política em adotar programas de combate à miséria e à
pobreza, não existem possibilidades de mudanças drásticas na redistribuição de renda, já que
não houve grandes alterações na gestão macroeconômica.
Após dois anos de governo Lula, é possível olhar para os dois lados de uma
moeda. Com a severa política fiscal, crescimento econômico, controle sobre a inflação e o
dólar, queda da relação PIB-dívida, pagamento sustentado da dívida, boa balança comercial se
tornaram realidade. Porém, com o aumento lento da oferta de empregos e com a ausência de
29
políticas de redistribuição de renda, o trabalho pelo alívio do caos social brasileiro não se
mostrou significativo.
1.2 A pobreza no Brasil contemporâneo
Mesmo em países desenvolvidos, o crescimento econômico não se difundiu por
toda a sociedade, o que dificulta a eliminação da pobreza. Por sua vez, em países
subdesenvolvidos, as desigualdades sociais também são crescentes, muitas vezes em virtude
do próprio processo de expansão econômica. Para entender, entretanto, as diferenças entre as
“pobrezas” de cada grupo de países, Rocha (2003) propõe uma classificação que considera a
relação renda per capita x pobreza, dando ênfase à possibilidade da execução de políticas
públicas, concebendo três grupos.
No primeiro grupo, encaixam-se os países cuja renda nacional é insuficiente para
garantir o mínimo indispensável aos cidadãos. Aí, a pobreza absoluta
7
é inevitável, pois a
renda per capita é baixa. No segundo grupo, estão os países desenvolvidos onde a renda per
capita é elevada e a desigualdade de renda entre os cidadãos é compensada por transferências
de renda e pelo acesso a serviços públicos de qualidade. Já no terceiro grupo, estão os países
de situação intermediária, onde a renda per capita é suficiente para garantir o mínimo ao
cidadão, mas devido à má distribuição de renda, a pobreza absoluta persiste.
O Brasil se enquadra no segundo grupo, onde a elevada renda per capita e
desigualdade em sua distribuição
8
servem de cenário para as políticas de transferência de
7
Pobreza absoluta está vinculada ao não-atendimento das necessidades mínimas de sobrevivência.
8
“Na verdade, a renda per capita de quase R$3.600,00 ao ano é bem superior a qualquer valor que possa ser
realisticamente associado à linha de pobreza, de modo que a persistência de pobreza absoluta no Brasil decorre
da forte desigualdade na distribuição do rendimento” (ROCHA, 2003, p.178).
30
renda, comumente adotadas no país. É interessante, entretanto, mais que classificar o Brasil
com relação à sua situação de pobreza, conhecer o processo histórico que construiu o
panorama atual.
No período de crescimento econômico brasileiro na década de 1970, a rápida
modernização demandou mão-de-obra qualificada, aumentando a desigualdade de renda na
época, o que foi visto como um fenômeno inevitável e passageiro. Já na década de 1980,
houve drástica redução do ritmo do crescimento, inclusive da renda, acirrando os conflitos
distributivos, com a vinda da inflação.
De um modo geral, a proporção de pobres – indicador mais usual e de simples
entendimento acerca da pobreza enquanto insuficiência de renda
9
– apresenta um forte
declínio no período do “milagre econômico”, entre 1970 e 1980. Nessa época, apesar da
queda sistemática da proporção de pobres em todas as regiões do país, independente de suas
particularidades, o rápido crescimento provocou efeitos concentradores: a renda dos não-
pobres sofreu elevações bem maiores que a renda da população pobre. Além disso, fica clara a
maior participação dos estados do sul e sudeste no crescimento econômico do período. O
efeito regional revela uma potencialização localizada do desenvolvimento nessas regiões em
detrimento das demais.
[...] as maiores reduções de pobreza absoluta em termos do número de
pobres durante a década se deram nas áreas onde a incidência de pobreza já
era menor em 1970. Assim, a desigualdade crescente se manifesta não
somente entre ricos e pobres em cada área, mas também entre áreas no que
concerne à repartição do número de pobres no país, tendo como parâmetro
de referência a repartição da população total (ROCHA, 2003, p.92).
Ainda segundo a autora, a proporção de pobres oscila ao longo da década de 1980
em função dos movimentos de expansão e retração econômica típicos do período, o que
9
“Onde a economia é essencialmente monetária, como no Brasil, a pobreza pode ser entendida, pelo menos
como ponto de partida, como insuficiência de renda. [...] Já que a satisfação de necessidades básicas,
principalmente, no âmbito do consumo privado, depende da renda monetária” (ROCHA, 2003, p.77).
31
permitiu, no entanto, alguma redução do indicador.
Em 1983, ano em que ocorreu pela segunda vez queda do produto real
nacional, o ajuste recessivo teve efeito evidente sobre a proporção de pobres,
que atingiu o nível mais elevado da década, 41,2%. [...]. Em 1986, a
implementação do programa de estabilização monetária – o Plano Cruzado –
teve efeitos importantes sobre os índices de pobreza daquele ano, seja pela
estabilização em si, que tende a permitir maiores ganhos de renda na base da
distribuição de rendimentos, seja por medidas associadas ao programa como
o abono salarial e o reajuste do salário mínimo acima das perdas
inflacionárias. Como conseqüência, a proporção de pobres que já vinha
declinando em função da retomada do nível de atividade desde 1984 caiu
mais fortemente, de 35%, em 1985, para 23,7%, em 1986, no país como um
todo (ROCHA, 2003, p.101-102).
A proporção de pobres para o país como um todo se situa em torno de 30%, entre
o final da década de 1980 até antes do Plano Real. O período de 1992 a 1999 merece destaque
por ser marcado pela forte queda da pobreza no Brasil, devido ao plano de estabilização de
1994 – o Plano Real. A redução foi de 30 para 20%, entre 1993 e 1995, em todas as regiões.
O impacto do Plano Real, segundo Rocha (2003, p.107), se deu em todo o espectro de pobres,
com ganhos mais fortes na base da distribuição, com um aumento de 100% na renda das
pessoas que estavam “no décimo mais baixo da distribuição de rendimentos”.
Ainda de acordo com Rocha, o Plano Real foi, de imediato, bem sucedido no
tocante à redução da inflação e à estabilização monetária, o que trouxe mudanças: o aumento
do nível de renda e a melhoria da distribuição de rendimentos a partir de 1995. Essa evolução
se deu em virtude de três fatores básicos. O primeiro fator foi o comportamento moderado dos
preços dos produtos alimentares, proporcionando às camadas mais pobres maior acesso a eles.
Outro fator residiu na evolução do setor de comércio e serviços, que não era
afetado pelo grande movimento de importação da época, o que marcou positivamente o
rendimento dos seus trabalhadores, em especial os mais pobres. E, finalmente, o terceiro fator
foi o aumento de 42% do salário mínimo em 1995 que também teve efeitos positivos,
principalmente, sobre os benefícios previdenciários e assistenciais. Depois de 1995, a
proporção de pobres se manteve estável até o final da década.
32
Porém, já em 1996, ainda segundo a autora, o nível de pobreza estagnou devido ao
esgotamento da dinâmica positiva com relação à renda e sua distribuição. Os efeitos
redistributivos do Plano Real, em nível nacional, já tinham se esgotado em setembro, e a
proporção de pobres se estabiliza em 34%.
A impossibilidade de a pobreza absoluta continuar a se reduzir após 1995
esteve ligada à situação macroeconômica delicada, que resultava de uma
taxa de câmbio sobrevalorizada e de déficits públicos crescentes. [...] A
evolução observada revela que as perdas em termos de postos de trabalho e
de rendimentos recaíram sobre os indivíduos com menor escolaridade, tendo
por si só um efeito provável de aumento da pobreza absoluta e da
desigualdade (ROCHA, 2003, p.125).
Vale destacar também que a pobreza no Brasil tem um forte componente regional,
uma vez que sua incidência, quaisquer que sejam os indicadores utilizados, é mais elevada no
Norte e Nordeste. E, apesar da redução da pobreza do ponto de vista da renda, entre 1992 e
1999, as principais características estruturais da pobreza no país se mantiveram.
Barros, Henriques e Mendonça (2000) apontam que o Brasil possui uma das
estruturas mais desiguais em comparação com outros países com mesma renda per capita e
que, em 1999, o país apresentava o mais elevado grau de desigualdade dos últimos vinte anos,
com os 10% mais ricos se apropriando de 50% do total da renda das famílias e, os 50% mais
pobres, de 10% da renda.
Conforme Fiori (1998), o governo de Fernando Henrique Cardoso não teria mais
poder sobre o campo macroeconômico, pois esse estaria sendo governado por “outros
poderes”. Logo em seguida, a própria opção pelo neoliberalismo eliminou o espaço das
políticas industriais e/ou comerciais, políticas públicas voltadas para a produção. Pouco
espaço sobraria então para o exercício das políticas públicas sociais já que, além de pagar a
dívida pública, o país ainda arca com os custos da estabilização do Real, da perda de
arrecadação do mercado interno, do desemprego, etc.
O governo brasileiro, ainda de acordo com Fiori (1998), ao seguir as
recomendações das instituições financeiras internacionais, hierarquiza e baliza as políticas
33
públicas a ponto de, a médio prazo, submeter os próprios objetivos nacionais do Estado aos
objetivos contábeis da política econômica.
As influências internacionais sobre a questão social no Brasil não se limitam à
diminuição do poder e da vontade do Estado em promover crescimento sustentável. O Banco
Mundial, que auxilia governos de países em desenvolvimento a combater a miséria com
empréstimos, “recomenda” metas numéricas para o desenvolvimento social, que funcionam
como condições para a inserção da nação nos programas de apoio financeiro.
Em virtude disso, os programas e políticas sociais no Brasil mostraram avanços
durante as últimas décadas. Contudo, avanços apenas quantitativos. Dados do IBGE, no
período de 1992 a 1999, apontam melhorias pontuais como, por exemplo, diminuição da
mortalidade infantil, do analfabetismo e aumento da taxa do saneamento básico. Porém, a
concentração de renda e a desigualdade social no Brasil continuaram avançando, como
argumenta Rocha:
É de amplo conhecimento que os índices de desigualdade de renda no Brasil
são elevadíssimos e, o mais alarmante, que a tendência tem sido a de
agravamento. Sabe-se, outrossim, que a persistência da pobreza absoluta ao
nível de renda per capita atingido no país se deve à desigualdade. Apesar
dessas evidências e das reiteradas declarações de todos os seguimentos
sociais quanto ao combate à pobreza como prioridade nacional maior, há, na
prática, enorme resistência à implementação de medidas que operem, direta
ou indiretamente, no sentido da redução da desigualdade de renda (2003,
p.39).
Ainda segundo a autora, a extrema desigualdade na distribuição de rendimento é
reconhecida e tem-se mantido tanto em períodos de expansão econômica, na década de 1970,
por exemplo, quanto em conjunturas recessivas (inflacionárias ou não). Tal diagnóstico
levaria ao óbvio planejamento de políticas públicas no Brasil que considerariam de forma
explícita a componente distributiva.
Essa realidade mostra como é evidente a contradição entre as políticas de ajuste e
estabilização econômica adotadas nos últimos anos e a implantação de políticas sociais que
promovam o verdadeiro desenvolvimento social. Conforme Soares (2004), a extrema
34
concentração de renda se dá em virtude da financeirização da economia e de uma estrutura
tributária regressiva, não podendo assim atribuir somente à política social, a responsabilidade
de reduzir a gigantesca desigualdade social brasileira.
As políticas econômicas acabam potencializando o colapso social brasileiro, pois,
segundo Rocha, as oportunidades de crescimento econômico no Brasil são, em sua maioria,
concentradoras. Tais políticas promovem desemprego, diminuem a renda do trabalhador e
provocam cortes de recursos destinados à área social, como aponta Cohn (1999, p.194), pois
os compromissos com as agências financeiras devem ser honrados:
Na atual conjuntura, [...] é exatamente a área social aquela que se revela,
novamente, a mais vulnerável às restrições orçamentárias. E esses cortes –
que vêm ocorrendo com assustadora freqüência sobretudo a partir da
maxidesvalorização do real, em janeiro do corrente ano – [...] atingem, no
geral, exatamente aqueles setores sociais com menos capacidade de fazer
valer seus direitos [...].
As políticas sociais implementadas até o governo de Cardoso não possuem um
caráter politizado, promotor de desenvolvimento e cidadania. São medidas emergenciais
improvisadas para dar conta de problemas estruturais e complexos. A concepção segmentada
da questão social faz com que o governo passe a conceber a vida social, cada vez mais, como
uma série de “problemas sociais” a serem enfrentados de forma isolada e desarticulada entre
si.
Ainda segundo Cohn (1999), as políticas sociais que vêm sendo implantadas
desde a metade da década de 1990 – em conseqüência da tradição desenvolvimentista das
políticas do Estado e da privatização (ou substituição) da esfera pública – traduzem ações de
alívio da pobreza e não de sua superação.
Duas tendências marcaram as políticas de combate à fome no governo de
Cardoso, de acordo com Belik, Graziano e Takagi (2001): o predomínio de políticas
compensatórias localizadas, de caráter focalizado e geridas pelos municípios, e a transferência
35
de renda. Para os autores, tais políticas não tinham um acompanhamento adequado e não
previam formas de emancipação dos dependentes.
Já no governo Lula, o desafio de retomar o desenvolvimento, redistribuir a renda,
criar empregos e enfrentar os graves problemas sociais brasileiros continua esbarrando no
modelo neoliberal. “O ajuste estrutural na natureza neoliberal não apenas deixou de resolver
os antigos problemas sociais como gerou novos, em especial no que diz respeito ao mundo do
trabalho, com uma precarização e um desemprego crescentes” (SOARES, 2004, p.40).
A política adotada por Lula legitima a herança do modelo neoliberal. De acordo
com Benjamin (2004), seu governo não mudou acordos, deu continuidade às chamadas
“reformas estruturais”, aplicou a política macroeconômica dos governos anteriores em todas
as frentes. Apesar de ter conseguido conter a inflação, controlar a fuga de capitais e manter a
balança comercial em aumento, a produção industrial caiu, o desemprego e a precarização do
trabalho se elevaram, ao contrário da renda média dos trabalhadores, que continuou em queda.
Apesar disso, as propostas do governo Lula para a área social parecem se
diferenciar das políticas desarticuladas adotadas anteriormente, como a simples transferência
de renda. O Programa Fome Zero, tema do capítulo 3, exemplifica o tipo de trabalho dedicado
à área social do governo do PT. Será possível ver que o conjunto de políticas proposto é
interessante no que diz respeito à interdisciplinaridade das necessidades básicas da população.
Contudo, dificilmente vislumbram-se resultados em termos macrossociais, quando
o Estado assume a política econômica vigente. Para Boff (2004), o vetor econômico ainda é
prioridade sobre a degradação social:
[...] dados do Relatório dos Direitos Humanos no Brasil 2004 são
assustadores. Quase todos os itens negativos ou se mantiveram ou pioraram:
degradação do ganho real dos salários, violência no campo e na cidade,
trabalho escravo, demora na demarcação de áreas indígenas, morosidade na
reforma agrária e desmobilização política dos movimentos.
A análise crítica tem mostrado que a crise social é, em parte, o preço a ser
pago pelo sucesso econômico. Mas que adianta crescimento econômico sem
desenvolvimento social? Os ganhos da economia não são repassados na
36
forma de benefícios sociais para as grandes maiorias empobrecidas e
excluídas. Quem ganhava, ganha agora muito mais (BOFF, 2004).
O Estado brasileiro, agora sob a administração Lula, não demonstra ter vontade e
capacidade de alterar o modelo neoliberal ou, pelo menos, de mudar a maneira de lidar com
ele, a favor dos interesses do país. É possível notar que as características mais relevantes do
protocolo neoliberal se mantêm e que não existem indícios de que políticas redistributivas
possam vir a ser implementadas.
Fica claro o consenso de que a necessidade de construção de um projeto mais
eficaz de enfrentamento das desigualdades sociais na sociedade brasileira é urgente. Projeto
esse que articule tendências internas e externas para dar conta dos interesses sociais, políticos
e econômicos do país, que possibilite uma distribuição de renda justa e, acima de tudo,
promova a verdadeira cidadania.
37
CAPÍTULO 2 A MÍDIA E AS CAMPANHAS DE COMUNICAÇÃO
2.1 A mídia em tempos de globalização
No capítulo anterior, o fenômeno da globalização e sua manifestação mais nefasta,
a pobreza, mereceram considerações. Passa-se agora a apontar uma das conseqüências desse
processo globalizante no âmbito da mídia: a concentração dos meios de comunicação. Da fala
à escrita, das antigas formas de impressão à comunicação eletrônica, das pequenas empresas
aos oligopólios, a mídia sempre atuou no desenvolvimento das sociedades. Em todas elas, o
homem produziu, difundiu e recebeu informações, conteúdo simbólico.
As formas de comunicação foram adquirindo recursos, dinamismos e alcances
maiores. Com as novas tecnologias, Ianni aponta para a capacidade dos meios de
comunicação de massa ultrapassarem fronteiras culturais e desigualdades socioeconômicas e,
já na segunda metade do século XX, transformar radicalmente o imaginário de boa parte do
globo: “Forma-se uma cultura de massa mundial, tanto pela difusão das produções locais e
nacionais como pela criação diretamente em escala mundial. São produções [...] lançadas
diretamente no mundo como signos mundiais ou da mundialização” (IANNI, 2001, p.94).
Porém, compreender a mídia em tempos de escalas globais é também reconhecê-
la como processo político, econômico e ideológico que vem sofrendo significativas mudanças
desde as décadas de 1980 e 1990. A busca pelo lucro, característica que marca o capitalismo,
ajudou a trilhar novos caminhos para a economia global, como já tratado no capítulo 1. O
movimento de globalização, tal como ali descrito, foi possibilitado pelas evoluções
tecnológicas e estratégias de consumo viabilizadas pela mídia.
38
A globalização econômica e cultural seria claramente impossível sem um
sistema de mídia comercial global para promover os mercados globais e
encorajar os valores de consumo. A própria essência da revolução
tecnológica é o desenvolvimento radical da comunicação digital e da
informática (MCCHESNEY, 2004, p.217).
É fundamental aqui esclarecer como a mídia auxilia no processo globalizante.
Primeiramente, avanços na tecnologia de comunicação tornaram possível a formação de
verdadeiros oligopólios da mídia. Thompson (2002, p.74) acrescenta que o “crescimento e
consolidação assumem cada vez mais um caráter multimídia à medida que grandes
corporações vão adquirindo participação crescente nos vários setores das indústrias da mídia”.
De jornais impressos à veiculação televisiva, de livros e revistas à produção e distribuição de
filmes, os conglomerados se formam, enquanto muitas organizações menores da mídia foram
engolidas por empresas maiores, vendidas ou forçadas a fusões.
Da década de 1980 até meados dos anos de 1990, os sistemas de mídia se
caracterizavam pela composição doméstica, nacional. Apesar da importação de filmes,
programas de TV, música e livros, os interesses comerciais locais predominavam. Contudo,
esta realidade sofreu mudanças rápidas. Conforme Mcchesney (2004), a desregulamentação
proposta pela doutrina neoliberal eliminou barreiras à exploração comercial e à propriedade
concentrada de meios de comunicação, abrindo caminho para a concentração da atividade.
O poder das grandes empresas de mídia em influenciar a desregulamentação do
mercado de mídia também é reconhecido por Silverstone (2002, p.18): “a debilitação
correlativa e progressiva de governos nacionais em controlar o fluxo de palavras, imagens e
dados dentro de suas fronteiras nacionais são profundamente significantes”.
Thompson (2002) considera que a diversificação de seus produtos e área de
atuação em escala global permite que as grandes corporações de mídia se expandam de modo
a evitar restrições ao direito de propriedade em muitos contextos nacionais, permitindo-lhes
usufruir até da concessão de subsídios.
39
Ainda segundo McChesney (2004), várias entre as maiores empresas do sistema
de mídia global têm acionistas comuns, possuem partes uma das outras ou até diretorias que
se sobrepõem, demonstrando que a competitividade nem sempre faz parte de seu cotidiano.
Tal coordenação faz dos gigantes da mídia lobistas políticos muito eficazes, influenciando a
criação ou alteração de leis que regularizam o setor.
Em toda parte do mundo é a mesma coisa, e as corporações têm a vantagem
adicional de controlar os próprios meios de comunicação, que seriam os
veículos nos quais os cidadãos esperariam encontrar críticas e discussão de
políticas de mídia numa sociedade livre. O registro histórico mostra que as
corporações usam seu domínio dos meios de comunicação em beneficio
próprio, cimentando assim sua vantagem política” (MCCHESNEY, 2004,
p.231).
Com este poder, as poucas e poderosas empresas de mídia operacionalizam a
globalização, sendo veículo principal de pensamentos que são de seu interesse. De acordo
com Moraes (2004), do ponto de vista da enunciação e do discurso, a mídia legitima o ideário
global, transformando-o no discurso social hegemônico:
A chamada grande mídia fabrica o consenso sobre a superioridade das
economias abertas, insistindo que não há saída fora dos pressupostos
neoliberais. O eixo ideológico consiste em enquadrar o consumo como valor
universal, capaz de converter necessidades, desejos e fantasias em bens
integrados à ordem da produção. O “pensamento único” – expressão usada
por Ignacio Ramonet ao se referir à matriz ideológica que subordina os
direitos sociais dos cidadãos à razão competitiva dos mercados financeiros –
oculta, intencionalmente, a carga atômica de desigualdades e exclusões que
viceja nos espaços e subespaços socioeconômicos planetários (MORAES,
2004, p.188).
Enquanto agentes econômicos, os gigantes da mídia corroboram ideológica e
praticamente a política neoliberal, regente dos mercados mundiais, que acaba por favorecer a
liderança também econômica e ideológica dos países mais ricos
10
. Tornando-se fortes
economicamente, também fortalecem seu poder de interconectar o mundo e de estruturar
simbolicamente a mesma política.
10
“Os Estados Unidos ficam com 55% das receitas mundiais geradas por bens culturais e comunicacionais; a
União Européia, com 25%; Japão e Ásia, com 15%; e a América Latina com apenas 5%” (MORAES, 2004,
p.207).
40
Conforme Lima (2001), profundas transformações nas comunicações do Brasil
ocorreram desde o início do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. A Lei do Cabo
passou a permitir a participação estrangeira em até 49% do capital das concessionárias,
enquanto a quebra do monopólio estadual das telecomunicações era garantida pela Emenda
Constitucional nº 8, de agosto de 1996. A Lei Mínima permitiu a entrada de capital
estrangeiro nas áreas de telefonia celular e de telecomunicações via satélite e a Lei Geral de
Telecomunicações autorizou o poder Executivo a estabelecer quaisquer limites à participação
estrangeira no capital de prestadora de serviços de telecomunicações, apesar de que, em
relação às empresas jornalísticas e de radiodifusão, a Constituição brasileira ainda impede a
propriedade por parte de estrangeiros.
Segundo Moraes (2004), o domínio da produção simbólica no Brasil tem como
exemplo o impacto da oligopolização cinematográfica. Apesar do crescimento da produção de
filmes a partir da década de 1990, graças a leis de incentivo ao audiovisual, a participação do
cinema brasileiro no mercado interno caiu de 30%, número da década de 1980, para os atuais
10%, em conseqüência do receituário neoliberal adotado pelos governos de Fernando Collor e
Fernando Henrique Cardoso.
O domínio da produção simbólica no Brasil também pode ser visto claramente no
mercado de publicidade. Dentre as 15 maiores agências do Brasil em 2001, apenas quatro são
de capital nacional, enquanto as demais vinculam-se a empresas transnacionais. Tal mercado
não só é reflexo da política econômica global da atualidade como acaba por sustentá-la. Como
as grandes empresas sempre investem em publicidade para gerar consumo e obter lucro, o
sistema de mídia comercial assume papel fundamental para sobrevivência dos mercados, já
que, sem a transmissão da publicidade, pouco se comercializaria em caráter mundial. Com
isso, as empresas de mídia se tornam cada vez mais poderosas
11
.
11
Segundo Mcchesney (2004), três quartos da receita global com publicidade terminam nos bolsos de apenas
vinte grandes empresas de mídia.
41
Para Ramonet (2004, p.246), a mídia, a comunicação, a cultura de massas e a
publicidade convivem sem fronteiras, possibilitando as megafusões que corroboram dois
poderes:
O primeiro é o poder econômico e financeiro. E o segundo é o poder
midiático. Porque o sistema midiático, da maneira como o defino, é o
aparato ideológico da globalização. É o sistema que, em certa medida,
constitui o modo de inscrever, no disco rígido de nosso cérebro, o programa
para que aceitemos a globalização. Esse sistema ideológico, esse aparato
ideológico global, é o aparato midiático em seu conjunto.
Outro aspecto a ser destacado são as parcerias entre os mercados nacionais de
mídia com o mercado global. Conforme McChesney, as potências nacionais ou regionais,
chamadas de segundo escalão no mercado de mídia, dificilmente se opõem ao sistema global.
Formado por seis ou sete dezenas de empresas, o segundo escalão tem vínculos extensos e
joint ventures com as principais multinacionais da comunicação.
[...] na América Latina as empresas de segundo escalão trabalham em
conjunto com os gigantes norte-americanos que dividem entre si o bolo da
mídia comercial. O que a Televisa ou a Globo podem oferecer à News
Corporation, por exemplo, é a ascendência sobre os políticos locais e a
impressão de controle de suas joint ventures. E, como as empresas de
segundo escalão do resto do mundo, também estão estabelecendo operações
globais, especialmente em nações que falem o mesmo idioma
(MCCHESNEY, 2004, p.228).
No Brasil, a área da programação de TV é cenário desta negociação. Conforme
Lima, os principais grupos brasileiros de TV aberta e paga têm parcerias e joint ventures com
os maiores conglomerados mundiais de entretenimento para o preenchimento de sua
programação. Porém, o autor destaca que as empresas de mídia nacionais não mudaram de
“mãos”:
A despeito da emergência de novos global players e do padrão universal de
concentração da propriedade, sobrevivem no Brasil a velha estrutura da
propriedade familiar, o renovado vínculo com as elites políticas locais e/ou
regionais e crescente presença das igrejas no setor de comunicações. Além
disso, fortalece-se e se consolida a presença hegemônica de um grupo
nacional no sistema brasileiro de comunicações: as organizações Globo
(LIMA, 2001, p.111-112).
42
A produção simbólica, acompanhada pelo comércio, onde a informação é
considerada essencialmente uma mercadoria, gira em torno da perspectiva comercial: “vende-
se informação com o objetivo de obter lucros” (RAMONET, 2004, p.247). A transmissão da
informação se acelerou e se tornou, aparentemente, gratuita. Ainda segundo Ramonet (2004,
p.248) a informação na realidade é paga pela publicidade: “antes podíamos dizer que uma
empresa jornalística vendia informação aos cidadãos. Hoje uma empresa midiática vende
consumidores a seus anunciantes”.
As mesmas características retóricas são percebidas no discurso das grandes
empresas midiáticas. Discurso rápido, artigos e frases curtas, títulos de impacto, muita
simplicidade para que todos possam entender e um certo grau de espetacularização, para
utilizar o lado emotivo do consumidor/receptor. Ramonet (2004) acredita que o discurso é
infantilizante, pois exatamente assim se fala às crianças: brevemente, com simplicidade e de
maneira emocional.
Junto da concentração de propriedade, caminha outro aspecto central para este
trabalho. A mídia constrói a realidade por meio da representação que faz da vida humana.
Lima (2001) defende que a maioria das sociedades contemporâneas depende da mídia, mais
do que da família, da escola, das igrejas, dos sindicatos, dos partidos etc, para a construção do
conhecimento público que possibilita a tomada cotidiana de decisões. Por isso, dar
importância apenas à transmissão de informações torna míope o estudo da mídia, já que ela
constrói significados. A concentração da propriedade e do controle das comunicações é uma
questão que ultrapassa a dimensão econômica, chegando à simbólica.
Todas as estratégias retóricas usadas pela mídia fazem com que ela faça parte da
vida humana e Thompson (1995, apud Gohn, 2000) também colabora para a construção deste
argumento. O autor defende que, nos dias de hoje, grande parte das pessoas obtém o
43
conhecimento dos fatos que acontecem além de seu meio social imediato por meio da
recepção das formas simbólicas vindas da mídia.
Contudo, o espaço de influência midiática não está delimitado apenas entre as
relações intra, interpessoais e grupais. A partir dos anos 90, é possível perceber que o papel da
mídia e sua importância nas relações sócio-político-econômicas tomaram outras proporções.
Para Lima (2001), como citado anteriormente, a mídia chega a substituir instituições
tradicionais na formação da opinião pública, como os partidos, o governo, os sindicatos, etc.
Atualmente, a mídia passa, de certa forma, a colaborar com os movimentos
sociais, quando sua produção se incorpora estratégica e politicamente aos movimentos. Gohn
assim comenta:
No novo contexto sócio-político, a força e a expressividade de um
movimento são dadas mais pelas imagens e representações que elas
conseguem produzir e transmitir via mídia do que pelas conquistas, vitórias
ou derrotas que acumulam (2000, p.23).
Com as representações simbólicas que o movimento constrói por intermédio da
mídia ou que a mídia constrói sobre ele, a opinião pública é formada e pode ser motivada a
participar, construindo ações coletivas. Neste trabalho, as representações simbólicas
referentes à campanha do Programa Fome Zero (cuja mobilização social pretendida se
configura como movimento social de solidariedade) são objeto de discussão do último
capítulo.
Porém, faz-se necessário estudo prévio da campanha do Programa Fome Zero
enquanto esforço de comunicação. Assim, será possível averiguar, sabendo dos vínculos
estreitos da mídia global com a conformação dos imaginários sociais, como o governo federal,
instituição que comanda a produção e veiculação dos bens simbólicos referentes ao Programa
Fome Zero, trabalhou retoricamente para conquistar a adesão de cidadãos brasileiros à sua
causa.
44
2.2 Campanhas de comunicação
Atos comunicativos organizados para ganhar o assentimento do público-alvo são
chamados de campanhas de comunicação. A palavra “campanha” provém das atividades de
ação militar e, dessa forma, Halliday (1996) coloca que uma campanha de comunicação pode
ser vista como um instrumento de poder – não de poder coercitivo, mas sim, de um poder
exercido pela força da argumentação.
Campanhas de comunicação, também chamadas de campanhas de persuasão, são
criadas a partir de uma necessidade e planejadas para seu melhor aproveitamento. Na fase de
planejamento, são definidos o público de interesse, o discurso a ser adotado, recursos
humanos e financeiros, cronogramas e responsabilidades e a melhor estratégia de divulgação,
entre outros pontos. Estudando a maneira mais eficaz de levar a campanha ao conhecimento
do público, definem-se as mídias adequadas, massivas e/ou dirigidas
12
.
Porém, somente a partir de 1970 e 1980, começaram a ser feitos estudos sobre as
campanhas, o que deu início à profissionalização na área. Planejar, discutir falhas das
campanhas anteriores, tentar identificar a audiência, avaliar as mensagens e seus efeitos,
escolher estratégias e meios de comunicação cada vez mais apropriados foram ações que
passaram a dinamizar o uso de campanhas de comunicação:
Durante anos, desenvolvimentos teóricos e estimativas das campanhas
efetivas mostraram que as chances de sucesso são aumentadas através da
pesquisa (avaliando necessidades, identificando audiências relevantes, falhas
nos programas e avaliando mensagens e efeitos contínuos) e do
planejamento sistemático (especialmente desenvolvendo estratégias de
mensagens e considerando os fatores sociais externos) [...] (RICE e ATKIN,
1990, p.7-8, tradução da autora).
12
Mídia massiva corresponde aos meios de comunicação de massa, enquanto a mídia dirigida é aquela
desenvolvida para atingir um público restrito e estabelecer uma relação mais próxima entre emissor e receptor,
utilizando canais e códigos, por vezes, conhecidos de ambos.
45
Já em tempos de sofisticação das técnicas de comunicação, diversos autores se
dedicaram ao estudo de campanhas de comunicação, unindo conhecimentos das áreas de
publicidade e propaganda, jornalismo, relações públicas e todas aquelas ligadas à mídia,
capazes de colocar em prática seus interesses e estratégias persuasivas. Para aquelas
campanhas que usam dos meios de comunicação de massa, ou seja, da mídia para atingir seu
público, pode designar-se o tratamento de campanhas midiáticas.
Aqui, vale a pena delimitar o campo de atuação de tais áreas, com o intuito de
esclarecer seus papéis no esforço de comunicar-se com o público. Primeiramente,
diferenciam-se as tarefas de jornalismo e relações públicas que assumem a responsabilidade
de informar o público que as imaginam, muitas vezes, sem caráter persuasivo (como se a
comunicação de uma organização, seja ela pública, privada ou do 3º setor, pudesse estar
isenta dele).
Enquanto o jornalismo leva informação ao público pela grande mídia, as relações
públicas estudam as melhores maneiras de se comunicar diretamente com seu público de
interesse por meio de instrumentos de comunicação dirigida. Como tais estratégias e
instrumentos não são objetos de estudo deste trabalho, não serão aprofundados aqui.
Diferenciam-se também as atividades de publicidade e propaganda, apesar de
serem comumente tratadas como sinônimas. Porém, Sant´anna trata de diferenciá-las:
Vemos, pois, que a palavra publicidade significa, genericamente, divulgar,
tornar público, e propaganda compreende a idéia de implantar, de incluir
uma idéia, uma crença na mente alheia.
De todos os conceitos tiramos as seguintes conclusões:
a) que a publicidade é um meio de tornar conhecido um produto, um serviço
ou uma firma;
b) que seu objetivo é despertar, na massa consumidora, o desejo pela coisa
anunciada, ou criar prestígio ao anunciante (2005, p.76).
Então, entende-se por publicidade qualquer forma de divulgação de produtos ou
serviços, atendendo a objetivos comerciais como lançar novo produto, vender e cultivar a
46
preferência pela marca. Já a propaganda tem o objetivo de difundir idéias, crenças, princípios
e doutrinas. É “o conjunto de técnicas e atividades de informação e persuasão destinadas a
influenciar, num determinado sentido, as opiniões, os sentimentos e as atitudes do público
receptor” (PINHO, 1990, p.22).
O autor ainda define tipos de publicidade:
publicidade de produto (divulga um produto),
publicidade de serviços (divulga serviços),
publicidade de varejo (divulgação feita por responsáveis pela venda ao
consumidor final),
publicidade comparativa (compara com concorrentes para evidenciar a
superioridade),
publicidade cooperativa (produto ou serviço divulgado pelo fabricante e
lojista),
publicidade industrial (direcionada àqueles que encaminharão os produtos para
o consumidor final),
publicidade de promoção (divulga nos meios de comunicação de massa).
Sobre a propaganda, Pinho (1990) também faz uma classificação:
propaganda ideológica (forma opiniões e incute ideologia para manter a
sociedade como está ou transformá-la em sua estrutura econômica, regime político
ou sistema cultural),
propaganda política (difunde ideologias políticas, programas e filosofias
partidárias),
propaganda eleitoral (conquista votos para determinado candidato a cargo
eletivo),
47
propaganda governamental (cria, reforça ou modifica a imagem de um
determinado governo),
propaganda institucional (compõe a imagem da empresa perante a opinião
pública),
propaganda corporativa (quando a propaganda institucional objetiva informar
ao público as políticas, funções e normas de uma companhia para adquirir
confiabilidade),
propaganda legal (publicação obrigatória de balanços, atas de convocação e
editais),
propaganda religiosa (dissemina a mensagem evangélica),
propaganda social (difunde a aceitação de uma idéia ou prática social de um
público-alvo).
Com base nos tipos de publicidade e propaganda e, muitas vezes, em sua
experiência profissional, os autores começaram a tentar classificar os esforços de
comunicação, o que acaba facilitando o estudo e ensino de campanhas, pois atribui certa
didática à transmissão de informações a seu respeito.
As campanhas, para Lupetti (2004), podem ser de sete tipos: institucionais, de
publicidade e propaganda, guarda-chuva, de promoção, de incentivo, de promoção de vendas
e cooperadas.
As campanhas institucionais são aquelas que conceituam uma empresa, trabalham
para a formação da boa imagem da organização, com o intuito de fazer estabelecer ou
reconhecer sua marca.
Já as campanhas de publicidade e propaganda objetivam divulgar um produto,
informando seus benefícios e atributos, levando o consumidor à compra. Muito usada para
lançamento de produtos e para sustentar sua venda, mantendo-o em evidência. É possível
48
perceber aqui que a autora une a publicidade e a propaganda em um único tipo de campanha,
como se não houvesse diferenças conceituais significativas entre elas.
O que Lupetti (2004) chama de campanha guarda-chuva ou campanha de linha de
produtos trata-se de um esforço de comunicação que tem as características da campanha
institucional e as da campanha de publicidade e propaganda. Conceitua a empresa, fixa sua
imagem e informa sobre sua linha de produtos.
A interatividade com o consumidor é característica da campanha de promoção.
Uma estratégia comum desse tipo de campanha é solicitar algo ao consumidor, dando-lhe
alguma coisa em troca, como o sorteio de prêmios feito com os códigos de barra do produto
enviados pelo cliente. É capaz de acelerar as vendas, manter contato direto com o público,
bloquear a ação da concorrência e reativar um produto. Bastante dinâmica, ainda divulga o
produto, torna a marca conhecida e leva o consumidor à ação de compra.
Os vendedores e lojistas são públicos da campanha de incentivo que objetiva
aumentar as vendas entre os vendedores de empresas e os lojistas-clientes. Campanhas como
essas são utilizadas por empresas de bens de consumo que detectam nos vendedores e lojas
responsáveis por seus lucros um público que deve estar sempre motivado.
A campanha de promoção de vendas é, consideravelmente, diferente da campanha
de promoção. “Enquanto a campanha de promoções divulga o produto, torna a marca
conhecida, interage com o público solicitando-lhe algo e dando-lhe alguma coisa em troca, a
campanha de promoção de vendas volta-se à redução do preço [...]” Lupetti (2004, p.119).
Nesse tipo de campanha o esforço de comunicação limita-se a chamar a atenção do
consumidor, mas não a definir os preços.
O último tipo de campanha apontado por Lupetti é a campanha cooperada, usada
pelas empresas de varejo que vendem os produtos de seus fornecedores, e anunciam os
produtos, concorrentes ou não, e a si mesmas em jornais e encartes.
49
Dividindo as campanhas de comunicação de maneira mais generalizada, Halliday
(1996) aponta para quatro tipos. Cada categoria tem, geralmente, um único tema e tônica
argumentativa, o que permite seu agrupamento. Contudo, as categorias não são excludentes e,
muitas vezes, sua classificação se torna difícil, devido à proximidade de suas características.
As campanhas de publicidade comercial procuram influenciar o comportamento
de indivíduos em sua relação de consumo com um produto ou serviço. O público de interesse
desse tipo de campanha pode variar tanto quanto variam os produtos e serviços existentes no
mercado atual. As características desse público, como dados pessoais, geográficos,
econômicos e culturais, não interferem na classificação da campanha publicitária. Porém, vale
lembrar que, seu público de interesse é sempre visto como consumidor.
Outro tipo de campanha comumente realizada atualmente, por quaisquer
organizações públicas, privadas ou do 3º setor é aquela guiada por propagandas
institucionais. A campanha de propaganda institucional busca difundir idéias, valores ou
eventos que contribuiriam para objetivos organizacionais. Percebe-se que, até então, os tipos
de campanhas de Halliday (1996) acompanham conceitualmente o que Pinho (1990) e
Sant´anna (2005) colocam, já que a autora separa nitidamente a publicidade e a propaganda.
As campanhas políticas também objetivam influenciar o comportamento de um
público qualquer, bem como as demais campanhas. Entretanto, o público das campanhas
políticas é tratado como cidadão, com direito de voto e voz numa democracia. Tais
campanhas são utilizadas nas eleições para a escolha de um candidato, para apoiar ou rejeitar
uma medida jurídica, ou ainda para auxiliar na tomada de decisões administrativas de
interesse público.
A última campanha classificada por Halliday (1996) tem o intuito de mobilizar
seu público para que ele adote individualmente uma idéia ou comportamento de impacto
coletivo. A campanha de construção social tem como público de interesse a população de uma
50
comunidade ou região determinada, que deverá auxiliar na solução de um problema pela ação
pessoal, mas que será de benefício também coletivo e/ou organizacional.
Ainda é possível perceber na conceituação dessas campanhas alguma correlação
com os tipos de publicidade e propaganda propostos por Pinho, o que pode indicar seu
embasamento teórico. Porém, tal coincidência não é sistemática. Talvez isso demonstre a
influência da experiência prática de cada autor em seus apontamentos conceituais, o que
contribui para uma diversidade de classificações nesta área. Por isso, são citados aqui apenas
os autores Lupetti (2004), Pinho (1990) e Halliday (1996), cujos critérios usados para
classificar campanhas mais se aproximam do objetivo deste trabalho.
Os tipos de publicidade e propaganda também não devem gerar automaticamente
tipos de campanha, mesmo porque, uma campanha pode ser composta por diferentes tipos de
publicidade e/ou propaganda, além de técnicas e estratégias de outras áreas da comunicação.
Isso acontece na campanha do Programa Fome Zero, em que podem ser detectadas
características de tipos diferentes de campanhas e de propaganda.
Traços de propaganda ideológica, política, governamental, institucional e social,
conforme a classificação de Pinho, constituem a campanha midiática do Fome Zero. Por
objetivar incutir idéias para mudar a sociedade e formar opinião sobre um programa que
segue a filosofia partidária do PT, a campanha tem características de propagandas ideológicas
e políticas. Por reforçar a imagem do governo federal perante a opinião pública, a campanha
se aproxima conceitualmente das propagandas governamentais e institucionais. E,
obviamente, a campanha do Fome Zero usa estratégias de uma propaganda social, já que
difunde a aceitação da idéia de ajudar as pessoas que têm fome.
A campanha do Programa Fome Zero, em primeiro lugar, por utilizar veículos de
comunicação de massa, pode ser considerada uma campanha midiática. É possível perceber
que na campanha existem características de campanhas institucionais, segundo Halliday
51
(1996) e Lupetti (2004). A campanha em estudo colabora para a formação da boa imagem do
governo e difunde idéias, valores e ações que corroboram seus objetivos.
Porém, como será observado no capítulo seguinte, por se tratar de uma campanha
elaborada para um programa cuja essência é a vontade de mudar uma situação social –
eliminar a pobreza e a fome no país – tende-se a pensar que ela se encontra nos moldes de
uma campanha de construção social. Portanto, há necessidade de aprofundar as colocações
sobre marketing e campanhas pertinentes ao tema.
A evolução do marketing
13
está intimamente ligada à evolução das campanhas de
comunicação. Quando o foco delas era o produto, todas as estratégias de marketing de uma
empresa se voltavam para ele. Trata-se de uma época em que as campanhas usavam apelos
racionais, chamada por Pringle e Thompson (2004) como a “primeira onda” do marketing, na
qual se priorizavam as informações técnicas e características físicas do que se apresentava ao
público.
Ainda segundo os autores, na década de 1960, iniciou-se a “segunda onda”, a
emocional. Neste momento, percebeu-se que a mensagem enviada ao receptor era filtrada por
sua percepção e emoção. Então, as campanhas de comunicação passaram a destacar não os
benefícios concretos dos produtos e serviços, mas como poderiam satisfazer o público
emocionalmente.
Ao entrar nos anos 1990, a “terceira onda” acompanhou, segundo Pringle e
Thompson (2004), o sentimento de falta de realização pessoal, apesar das necessidades de
consumo saciadas pela classe consumidora. O avanço da mídia auxilia na formação de um
novo clima coletivo que, diante de guerras e desigualdades sociais, pede um mundo melhor. A
13
O moderno conceito marketing, para Sant´anna, envolve todas as atividades comerciais relacionadas a
mercadorias e serviços desde sua produção física até o seu consumo final e implica “conhecer o que o
consumidor necessita ou deseja; implica estudar a produção dessa necessidade, produzi-la, distribuí-la ao
consumidor, ensinado-lhe, ao mesmo tempo, como consumir esse produto” (2005, p.16).
52
chamada “onda espiritual” prioriza posturas éticas e dá base para a ascendência de conceitos
como responsabilidade social e marketing social.
Incorporando um conceito de Maslow (apud PRINGLE e THOMPSON, 2004), a
pirâmide das necessidades humanas pode estar relacionada com a evolução das campanhas de
comunicação que, além de usar estudos, técnicas e estratégias cada vez mais modernas,
acompanha as necessidades do seu público, promovendo e sendo influenciada pelas três
ondas.
A base da pirâmide é composta pelas necessidades fisiológicas e de segurança,
que seriam necessidades primárias, ou ainda, para a sobrevivência. Logo acima estão as
necessidades sociais e de estima, como o amor e o status, respectivamente. Já não são
indispensáveis à vida por seu prisma físico, mas à vida social. No topo da pirâmide, estão as
necessidades de autodesenvolvimento e realização que, apesar de não serem indispensáveis à
vida, são absolutamente desejáveis e comportam a evolução humana. Pringle e Thompson
(2004, p.79) relacionam tais necessidades com a evolução do marketing:
À medida que os consumidores superaram as necessidades de subsistência,
ascenderam na pirâmide, passaram para níveis superiores e exigiram que
suas marcas refletissem essa progressão. Agora que tantos consumidores
chegaram aos níveis de auto-estima e auto-realização, queriam que as marcas
que eles compravam os acompanhassem.
Com tudo isso, o marketing social ganha força. Em conseqüência, as campanhas
de comunicação para tal objetivo acompanharam o movimento nos últimos anos. Atendendo
segmentos muito significativos do mercado atual, elas podem ter nuances comerciais,
institucionais e políticas. Porém, somente podem ser consideradas campanhas sociais se
ligadas, de alguma forma, às posturas éticas e práticas de responsabilidade social das
organizações as quais divulgam.
Vale a pena buscar outro conceito intimamente ligado ao tema exposto: o
marketing para causas sociais. Conforme citam Pringle e Thompson (2004, p.03), o marketing
53
para causas sociais (MCS) é “uma ferramenta estratégica de marketing e de posicionamento
que associa uma empresa ou marca a uma questão ou causa social relevante, em benefício
mútuo”.
É possível expandir o conceito à medida que o MCS seja uma ferramenta que
pode ser utilizada não só por empresas, mas por quaisquer organizações, tendo em vista que
todas possuem uma marca
14
. O MCS pode ser praticado por empresas de qualquer ramo, por
ONG´s e outras entidades e, até mesmo, pelo Estado, cujo principal propósito deveria ser de
lutar pelas causas sociais. Porém, a questão vai além do ato de fazer algo pelo cidadão e chega
ao ato de dizer que está fazendo, ou melhor, de divulgar o que faz por meio de campanhas de
comunicação, recebendo assim seus benefícios.
A campanha midiática do Programa Fome Zero se enquadra no conceito de
marketing para causas sociais. O governo federal, quando se coloca como mentor do
Programa Fome Zero – modelo na luta contra a fome – atribui a si mesmo a boa imagem que
essa luta ajuda a construir. Ganham, portanto, os dois lados: aqueles que passam a ter acesso
às atividades do Programa divulgadas pela campanha e também o governo. Tal benefício
mútuo, de acordo com Pringle e Thompson (2004), caracteriza o marketing para causas
sociais.
Os autores ainda colocam que divulgar o que é feito com cunho social auxilia a
formar uma boa imagem perante o público, principalmente por ser na época da “terceira
onda”. A campanha midiática do Fome Zero fala de valores amplamente difundidos
atualmente para um público que espera e aprova as ações de responsabilidade social. Com
isso, as possibilidades de sucesso na busca da participação popular aumentam
consideravelmente.
14
Segundo Sant´anna (2005) marca é uma figura que possibilita uma identificação simples e imediata de um
produto ou organização. Porém, muitos autores defendem que a marca vai além disso, carregando em si a
imagem do que está representando. Para Pringle e Thompson (2004), as boas marcas oferecem ao consumidor
mais do que esperam em termos funcionais e emocionais.
54
Isso se torna fundamental à medida que as campanhas de construção social
procuram constituir uma nova situação social com a participação de seu público. Para tal,
deve convencê-lo de que o problema precisa ser solucionado com seu apoio e que a obtenção
deste bem será melhor para todos; o que faz retoricamente:
Ao construir simbolicamente a realidade, isto é, argumentar com palavras,
sons e imagens, o retor institucional pretende que a sua definição da situação
motive o público alvo a aderir a padrões de comportamento considerados
importantes para o funcionamento harmonioso do grupo ou sociedade onde o
público alvo é membro e co-construtor (HALLIDAY, 1996, p.20).
Como é possível perceber, a obtenção de melhorias sociais que dependem de
mudanças ou de novos comportamentos, necessitam – além de uma legislação, de verbas e
administração – da qualidade da retórica institucional para convencer seu público a colaborar
com os objetivos da campanha.
Como já dito anteriormente, o Programa Fome Zero tem o intuito de acabar com a
fome no Brasil, usando para isso, conforme exposto no capítulo seguinte, além de doações de
alimentos, programas de alfabetização, qualificação profissional, geração de renda entre
outros. Vale dizer então que ele pode construir uma nova situação social. Porém, o que deve
ser observado aqui é se a campanha midiática do Programa segue os mesmos propósitos e se
pode ser chamada de uma campanha de construção social.
As investigações sobre campanhas de construção social podem abranger suas três
dimensões – a educativa, a política e a retórica – apontadas por Halliday (1996). Os aspectos
educativos são percebidos por meio de valores e normas que auxiliam no processo de adoção
e/ou mudança de comportamentos. O ato político se coloca com o patrocínio da campanha –
necessária e/ou vantajosa para a coletividade –, buscando a eficácia e a legitimidade da
organização. E, por fim, a dimensão retórica apresenta-se na construção do discurso utilizado
para o convencimento do público da campanha.
Com relação à dimensão educativa das campanhas de construção social, Halliday
(1996, p.21) afirma:
55
Toda campanha de construção social está articulada com algum
aspecto/elemento educativo. Isto porque, desenvolvendo-se dentro de uma
realidade socialmente construída, tal campanha a reconstrói, ou a consolida
através do fornecimento, acréscimo ou extinção de valores, idéias, hábitos e
crenças que a fundamentam.
Por essa razão, tais campanhas são chamadas de construção social e não de
“campanhas educativas”. A educação é um processo permanente e, além disso, pressupõe um
acompanhamento sistemático e constante de aprendizagem. Campanhas são transitórias, têm
caráter de urgência e utilizam os conhecimentos prévios adquiridos pela educação para
persuadir seus públicos, como informações, valores e hábitos.
De certa forma, a campanha midiática do Programa Fome Zero tem uma dimensão
educativa ao buscar incutir e destacar, por exemplo, a solidariedade. Assim, a campanha tem
condições de provocar a mudança ou consolidação da realidade de seu público, que passa a
lidar com a idéia de solidariedade. A campanha representa mais uma oportunidade de
recepção deste valor.
Além de levar informações e valores a seus públicos, as campanhas de persuasão
têm sua dimensão política. Halliday considera que os atos comunicativos – especialmente as
campanhas de construção social – também são atos políticos porque, como já colocado
anteriormente, contribuem para a legitimidade e/ou eficácia do poder organizacional ou
governamental:
Tanto a eficácia quanto a legitimidade dependem da interação
governo/governados e organização/públicos relevantes. Esta interação, na
construção social de benefícios públicos (que é, também construção
econômica e cultural) é uma interação simbólica, isto é, medida por palavras
e outros símbolos. Nesta interação simbólica, governos e governados,
organização e públicos organizacionalmente relevantes negociam o exercício
do poder do primeiro em troca de vantagens ou bem estar para o segundo
(HALLIDAY, 1996, p.27).
Então, é possível colocar que campanhas de construção social são legitimizantes,
já que uma organização ou governo precisa mostrar-se socialmente útil, por meio das
transformações sociais de benefício coletivo, para legitimar-se. Atingindo seu objetivo, a
56
campanha atribui eficácia à organização ou ao governo responsável por sua criação e
execução.
Numa primeira análise, a campanha midiática do Programa Fome Zero é capaz de
legitimar o governo federal, pois mostra suas ações para o bem do povo brasileiro,
principalmente para aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Porém,
de acordo com Halliday (1996), a capacidade de legitimar o governo federal apenas poderá
ser afirmada caso o objetivo da campanha seja alcançado.
A dimensão retórica das campanhas de construção social é o objeto de estudo
deste trabalho. Para tratar da dimensão retórica da campanha do Fome Zero, faz-se necessário
esclarecer o conceito de retórica, com o qual o presente estudo se realiza. Entende-se retórica
como:
[...] o uso intencional que um comunicador faz da linguagem e de outros
símbolos para influenciar ou persuadir públicos selecionados a fim de que
ajam, creiam e sintam, em situações problemáticas, da maneira como o
comunicador deseja (CATHCART, 1981 apud HALLIDAY, 1996).
As campanhas de construção social, segundo Halliday, geralmente surgem de
situações problemáticas que o comunicador tenta solucionar. Como estratégia de solução, ele
busca, por meio do discurso, o envolvimento e a cooperação de um determinado público,
fazendo prevalecer a sua maneira de resolver o problema. E, com o estudo da dimensão
retórica das campanhas de construção social, torna-se possível analisá-las como produtos
dessa intenção.
Neste caso, será averiguada qual maneira de solucionar o problema da fome foi
escolhida pelo governo federal e como ela foi trabalhada na dimensão retórica da campanha.
Com isso, será possível verificar se o discurso adotado dá condições para que o objetivo da
campanha seja viabilizado e também se o objetivo do Programa Fome Zero pode ser
alcançado com a campanha.
57
Contudo, algumas considerações já podem ser feitas. Mesmo sabendo que a
globalização e a concentração da mídia deixam dúvidas quanto ao papel dos meios de
comunicação como instrumentos de avanço democrático e de participação cidadã, é possível
sugerir que o tema desta dissertação, teoricamente, ficaria imune a essa situação. Justamente
por ser uma campanha de caráter governamental, veiculada nacionalmente, poderia
conscientizar e gerar ações de sentidos diferentes daqueles propostos pelo ideário neoliberal.
Abordar questões como essas é o que se pretende nos capítulos seguintes, razão
pela qual considera-se importante conhecer o Programa Fome Zero com mais profundidade,
fornecendo informações que não foram veiculadas em meios de comunicação de massa. Além
disso, propõe-se averiguar como se deu a construção do sentido de sua campanha midiática e
sua repercussão em Bauru.
58
CAPÍTULO
3 O PROGRAMA FOME ZERO
3.1 Conceitos e políticas
Em meados do ano 2001, o Instituto Cidadania – entidade dita independente e
apartidária e coordenada por Lula – deu início a discussões em diversos seminários pelo país
que colaboraram para a elaboração do Projeto Fome Zero. Junto a José Graziano e Walter
Belik, idealizadores do Fome Zero, o projeto reuniu uma equipe de mais de 50 pesquisadores
e colaboradores, entre os maiores especialistas do Brasil em políticas sociais, alimentação,
nutrição e saúde.
Incluído entre as propostas da campanha eleitoral do PT, o agora denominado
Programa Fome Zero foi uma das principais bandeiras de Lula, anunciado como prioridade
do governo federal. O projeto recebeu críticas e contribuições de diversas entidades do país.
Reformulado, o Programa Fome Zero começou a ser implantado logo nos primeiros meses de
governo. Seu objetivo é combater a fome, a miséria e suas causas estruturais, além de garantir
a segurança alimentar – alimentação com regularidade, quantidade e qualidade necessárias à
manutenção da saúde física e mental – de 44 milhões de brasileiros.
Pensando nas prescrições constitucionais relacionadas com o direito à vida, à
dignidade da pessoa humana e à justiça social, o governo propõe-se a articular as políticas de
inclusão social, de garantia de direitos de cidadania e desenvolvimento social e econômico.
Diante disso, a Secretaria de Coordenação Política de Lula coloca:
O Brasil precisa de políticas públicas integradas, estratégicas, formuladas e
implementadas por meio de ações intersetoriais com foco no território,
evitando a dispersão e a fragmentação, buscando sempre cooperação entre os
59
governos, nas suas três esferas, e parcerias com os diversos segmentos,
entidades e movimentos sociais
15
.
Para isso, o Programa Fome Zero reúne políticas públicas que envolvem todos os
níveis de governo: o federal, o estadual e o municipal, contando ainda com o apoio da
sociedade civil organizada. Articulam-se aí três conjuntos de políticas, tendo como foco a
segurança alimentar: as políticas estruturais, as específicas e as locais.
A conjugação entre as políticas estruturais voltadas à redistribuição de renda, ao
crescimento da produção, à geração de empregos, à reforma agrária, entre outros, e as ações
emergenciais do Fome Zero é fundamental para o sucesso do Programa:
Limitar-se a estas últimas quando as políticas estruturais seguem gerando
desemprego, concentrando a renda e ampliando a pobreza [...] significa
desperdiçar recursos, iludir a sociedade e perpetuar o problema [...].
Também não é admissível o contrário. Subordinar a luta contra a fome à
conquista prévia de mudanças profundas nas políticas estruturais
representaria a quebra da solidariedade que é dever imperativo de todos
perante os milhões de brasileiros hoje condenados à exclusão social e à
insuficiência alimentar (INSTITUTO CIDADANIA, 2001 apud SOARES,
2004, p.29)
Com descrição baseada em dados da Cartilha de Mobilização do Fome Zero
redigida por Frei Betto e no site oficial do Fome Zero, tais políticas serão detalhadas nas
páginas seguintes.
A) Políticas estruturais
As políticas estruturais voltam-se para as causas profundas da fome e da pobreza e
o seu desenvolvimento está sob a responsabilidade do poder público. Tais políticas têm como
base a geração de emprego e renda, o acesso à saúde e educação, a previdência social
15
SECRETARIA DE COORDENAÇÃO POLÍTICA E ASSUNTOS INSTITUCIONAIS. Fortalecimento da
Federação e dos Municípios. Um desafio do tamanho do Brasil. 2ª ed. Brasília: Presidência da República, 2004.
p.21
60
universal, o incentivo à agricultura familiar, a intensificação da reforma agrária, os programas
de transferência de renda e a segurança e qualidade dos alimentos.
A participação em cursos de alfabetização é uma das contrapartidas para a família
receber o benefício do Cartão Alimentação, programa de transferência de renda, e faz parte
das políticas estruturais do Programa. Nas cidades-piloto do Fome Zero, Guaribas e Acauã
(PA), 494 jovens e adultos foram alfabetizados no primeiro ano do Programa. A educação de
jovens e adultos, em áreas de reforma agrária, também faz parte desta política.
O projeto “Convivência com o Semi-Árido” já possibilitou a construção de 22.040
cisternas no semi-árido em 2003, gerou um investimento de R$32,5 milhões e a utilização de
mão-de-obra e material local aqueceu a economia do lugar. A meta do governo é construir 1
milhão de cisternas familiares para coletar água da chuva
16
. O projeto propõe ainda o
fortalecimento da agricultura familiar, a descentralização das políticas e dos investimentos, de
modo a permitir a interiorização do desenvolvimento, a priorização de investimentos em
infra-estrutura, estímulo à instalação de unidades de beneficiamento da produção e
empreendimentos não-agrícolas, e a regulação dos investimentos, com base na harmonização
entre eficiência econômica e sustentabilidade ambiental e social.
O incentivo à formação de Consórcios Intermunicipais de Segurança Alimentar e
Desenvolvimento Local (Consads) em todo o país também vale ser destacado, bem como o
registro civil gratuito para milhares de pessoas em todo o Brasil, fazendo com que o acesso a
vários programas sociais não seja mais impedido.
Outro projeto importante é o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura
Familiar (PAA), que integra o Plano Safra da Agricultura Familiar, garantindo a compra da
produção. Criado por meio do artigo 19 da Lei 10.696, de 2 de julho de 2003, o Programa
permite ao poder público comprar, sem licitação e seguindo uma tabela oficial de preços,
16
Em geral, as cisternas comportam 16 mil litros de água, obtidos no período das chuvas, suficiente para o
consumo familiar (cozinha e higiene) de, em média, 5 pessoas, durante oito ou nove meses.
61
produtos alimentícios originários da agricultura familiar, em limite de até R$2.500,00/
agricultor/ ano. Em 2003 e 2004, foram empregados R$320 milhões no PAA, beneficiando
160 mil agricultores e 3,2 milhões de famílias. Com a compra de feijão, arroz, milho, trigo,
farinha de mandioca e leite em pó, faz-se cestas de alimentos para populações específicas ou
atingidas por calamidade. Por meio da compra local, os produtos destinam-se ao “consumo
institucional”, merenda escolar, hospitais, creches etc. Estima-se, por exemplo, que o sistema
de compra de 775 mil litros diários de leite desses produtores seja responsável pela
preservação e criação de 12 mil empregos, segundo o Governo.
A elaboração do Plano Nacional de Reforma Agrária 2004-2005 possibilitou a
disponibilização de R$7 bilhões em crédito rural para os agricultores familiares e assentados
da reforma agrária. Os recursos são 30% superiores aos R$5,4 bilhões oferecidos no ano-safra
anterior e atenderão cerca de 1,8 milhão de famílias em todas as regiões do país. Além disso,
em 2003, o Pronaf-B aumentou o valor de financiamento para agricultura familiar de
R$500,00 para R$1.000,00 para investimento, custeio e assistência técnica.
Outra ação do Fome Zero ligada à agricultura são os bancos de sementes. No Alto
Sertão da Paraíba, existem 89 bancos de sementes comunitários que movimentam quase 30
mil quilos de sementes, sobretudo de milho. O trabalho envolve cerca de 2.460 famílias,
organizadas em associações comunitárias e sindicatos de trabalhadores rurais. No sertão
nordestino, 15 bancos de sementes, em oito municípios, mobilizam 988 famílias que plantam
milho, feijão, fava, arroz e algodão.
Outra parceria, esta entre o Ministério da Defesa e o Ministério do Trabalho e
Emprego, também colabora para a geração de empregos no país. Com o Programa Soldado
Cidadão, voltado para a ocupação e capacitação profissional dos jovens de baixa renda, serão
criadas, de acordo com Betto (2004), a partir de agosto de 2004, mais 30 mil vagas para
recrutas nas Forças Armadas, completando o total de 100 mil postos de trabalho.
62
Para facilitar o acesso da população mais carente ao crédito, políticas de
Microcrédito Solidário foram estabelecidas. Em dezembro de 2003, foi criado o Banco
Popular do Brasil que ofereceria, inicialmente, a conta corrente simplificada, com uma linha
de crédito de R$50,00 a R$300,00, com juros de 2% ao mês, e os serviços de recebimento de
contas, cartão de crédito, seguro e fundos de investimentos. A Conta Caixa Aqui também
obteve boa aceitação. Seis meses após o seu lançamento, em junho de 2004, já atendia 1
milhão de correntistas, o dobro da meta traçada inicialmente pela Caixa Econômica Federal
para esse tipo de serviço. Do total de correntistas Caixa Aqui, quase 510 mil já têm aprovado
um crédito de R$200,00, a juros de 2% ao mês.
Com relação à política de transferência de renda, o Fome Zero adota o Programa
Bolsa Família. Lançado em outubro de 2003, unificou os programas de transferência de renda
então existentes (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e Auxílio Gás). A
implementação do Programa foi discutida com o poder público municipal, negociando-se,
inclusive, com prefeituras que já possuíam programas próprios de transferência de renda.
Segundo Betto (2004), a transferência de renda para o cidadão promove o acesso à
alimentação e tem conseqüências positivas para toda a economia do país:
Se os 56 milhões de brasileiros e brasileiras ameaçados pela fome tiverem
renda, aumentarão o consumo e, portanto, a produção de alimentos. Isso
significará a geração de aproximadamente 350 mil novos empregos na
agricultura familiar. São mais de 10 milhões de famílias em estado de
carência alimentar. Se elas tivessem acesso ao consumo de alimentos isso
representaria, hoje, um aumento de cerca de R$2,5 bilhões na arrecadação de
impostos. Enfim, mais consumo, mais produção e, também, mais empregos.
O que significa um Brasil mais desenvolvido.
O Programa Bolsa Família trabalha com dois tipos de benefícios: o básico e o
variável. O benefício básico, de R$50,00, é concedido às famílias em situação de extrema
pobreza, ou seja, com renda per capita mensal de até R$50,00. No valor de R$15,00, o
benefício variável atende todas as famílias com renda mensal per capita de R$50,01 a
R$100,00 que tenham filhos de 0 a 15 anos, gestantes e nutrizes, variando assim, de R$15,00
63
a R$95,00. Os valores médios recebidos pelas famílias passaram de R$24,00 para R$73,00
num período de menos de dois anos.
Para receber o benefício, as famílias têm de se enquadrar em algumas
condicionalidades, como manter crianças e adolescentes em idade escolar nas redes de ensino,
manter em dia o calendário de vacinação, participar dos exames de pré-natal. O dinheiro é
entregue mensalmente às famílias mais pobres por meio de cartão magnético emitido pela
Caixa Econômica Federal, agente operador do Programa.
Até setembro de 2004, o Programa Bolsa Família atendeu 5 milhões de famílias.
Segundo o governo, a meta era chegar a 8,7 milhões em 2005 e, em 2006, a 11,2 milhões,
atingindo todas as famílias pobres do País. Em 2005, o Programa recebeu recursos da ordem
de R$6 bilhões, distribuídos da seguinte forma: 53,7% para o Nordeste, 24,2% para o Sudeste,
9,4% para o Sul, 8,6% para o Norte e 4% para o Centro-Oeste.
B) Políticas específicas
Já as políticas específicas tratam de atender diretamente às famílias carentes,
promovendo o acesso ao alimento. Podem ser desenvolvidas pelos governos dos estados, dos
municípios e pela sociedade civil organizada. Dentre as ações planejadas, destacam-se a
doação de cestas básicas emergenciais, o combate à desnutrição materno-infantil, a criação de
cozinhas comunitárias, bancos de alimentos e restaurantes populares, a ampliação da merenda
escolar, o Programa de transferência de renda, a ampliação do PAT (Programa de
Alimentação do Trabalhador), a manutenção de estoques de segurança, educação para o
consumo e educação alimentar e, novamente, a segurança e qualidade dos alimentos.
Em 2004, o governo investiu R$3 milhões nos bancos de alimentos, beneficiando
quase 900 mil pessoas e 2 mil entidades assistenciais, gerando mais de 200 novos postos de
64
trabalho. Nos restaurantes populares, foram investidos R$19 milhões e 27 restaurantes
atenderam 10 milhões de pessoas com refeições que variam de R$1,00 a R$2,80. Já os
investimentos nas hortas comunitárias chegaram a R$12 milhões, beneficiando meio milhão
de pessoas.
Nesse grupo de políticas entra a distribuição de cestas básicas em caráter
emergencial aos acompanhamentos dos sem-terra, às comunidades indígenas e aos
quilombolas. Em 2003, foram distribuídas cestas alimentares a 243 mil famílias acampadas,
20 mil famílias indígenas e 15 mil famílias quilombolas.
O Banco de Alimentos, em parceria com o Sesc – Serviço Social do Comércio –
também se configura como política específica do Programa Fome Zero. Em 2003, implantou-
se o Mesa Brasil SESC para formar uma rede nacional de solidariedade em 30 cidades dos 27
estados, com 31 unidades que funcionam como bancos de alimentos não-perecíveis e como
centros receptores de colheita urbana – a coleta diária de alimentos frescos.
Neste período, foram arrecadados 4,8 milhões de quilos de alimentos,
180.691 pessoas atendidas por dia e 1.185 entidades assistidas
permanentemente. Realizaram-se 536 ações educativas mobilizadas por uma
equipe de 23.876 multiplicadores treinados (BETTO, 2004, p.19).
A educação alimentar também é preocupação do Fome Zero, pois aumentam os
problemas de saúde ligados à má qualidade da alimentação. O governo federal promove ações
direcionadas às crianças do ensino fundamental e outras para o público em geral para difundir
bons hábitos alimentares, estimulando o consumo de frutas e verduras, valorizando os
produtos regionais, aproveitando integralmente os alimentos, oferecendo informações de
composição de alimentos que permitam montagem de cardápios adequados. São
disponibilizados materiais impressos e audiovisuais para uso em programas municipais de
educação alimentar. Os custos de ações como essa giraram em torno de R$15 milhões em
2004.
65
Um Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), considerado o maior do
mundo, faz parte das políticas do Fome Zero. O PNAE atende a 37,8 milhões de alunos de
creches, pré-escolas, ensino fundamental e comunidades indígenas, com investimento de
R$1,025 bilhão. Já no primeiro ano, o governo reajustou em 116% o valor per capita da
merenda escolar da pré-escola, que era de R$0,06 por aluno/dia e passou para R$0,15.
Em novembro de 2003, o MEC repassou R$1,2 milhão ao Projeto Segundo
Tempo, do Ministério do Esporte, para garantir reforço alimentar a 108,6 mil alunos de 543
escolas públicas do ensino fundamental. Tiveram prioridade escolas localizadas em áreas
urbanas de risco, que oferecem atividade física aos estudantes.
O Programa Escolas-Irmãs é outra ação que compõe as políticas do Fome Zero,
configurando-se como importante vertente da mobilização social do Programa, dirigida
especialmente ao segmento estudantil. Visando o intercâmbio cultural entre escolas de
diferentes partes do país, que vivam diferentes realidades sociais, levam melhorias concretas
aos ambientes de aprendizagem.
A primeira ação é a troca de correspondência entre os alunos, professores e
funcionários das duas escolas parceiras. Na correspondência, além de
informações sobre o cotidiano e o fazer pedagógico de cada uma das escolas,
são expostas as reais necessidades daquelas escolas, explicitadas não por
observadores remotos, mas por aquelas pessoas que vivem o dia a dia da
escola. A partir disso, um plano de atuação é traçado (BETTO, 2004, p.29).
A parceria com empresas públicas ou privadas também é importante para as ações
do Fome Zero. Bem como qualquer instituição ou entidade que queira ajudar o Programa, as
empresas são cadastradas e realizam-se estudos para conhecer as melhores formas de
colaborar com ele. Tais empresas recebem um certificado do Governo Federal e os produtos
ou serviços doados são isentos de impostos. Entre grandes e pequenas empresas de vários
segmentos, a colaboração vai da doação financeira e de alimentos até a prestação de serviços
necessários ao Programa.
66
Ação para o envolvimento empresarial no Fome Zero, a Parceria Empresa
Município (PEM) estabelece relações entre uma empresa, escola ou universidade e um
município, aldeia indígena, comunidade quilombola, favela, uma população que vive ligada a
algum lixão ou grupo de assentamento rural. Conforme Betto (2004), a parceria é oferecida à
prefeitura local e, junto com a empresa e os apoiadores, desenvolverá um projeto, com base
em diagnósticos, que tratarão três blocos específicos:
preservação e manutenção da vida: cuida da população em risco nutricional ou
de saúde;
agregação de capacidades: dar conhecimentos profissionais aos chefes de
família para que tenham uma profissão;
geração de oportunidades de trabalho, emprego e renda: busca reativar a
economia local e gerar emprego.
As empresas podem ajudar também investindo nos jovens, reforçando a política
do primeiro emprego. Em maio de 2004, foram feitas alterações no Programa Nacional de
Estímulo ao Primeiro Emprego para aumentar a adesão de empresas. Dentre essas alterações
está o aumento do valor do repasse à empresa para R$250,00 e a aceitação do contrato de
trabalho por prazo determinado.
C) Políticas locais
A serem implementadas por governos, prefeituras e pela sociedade civil
organizada em cada município e de acordo com as necessidades da região, as políticas locais
contam com conjuntos de ações voltadas para cada realidade e coincidem, muitas vezes, com
as políticas específicas. Além de hortas urbanas e do incentivo à compra de alimentos da
agricultura local, os bancos de alimentos e restaurantes populares também se aplicam.
67
Nas pequenas e médias cidades, o Fome Zero dá apoio a parcerias com varejistas
para doação de alimentos, organiza feiras do produtor, e promove a modernização dos
equipamentos. Já nas grandes cidades, mais do que as ações citadas acima que se aplicarem,
há a intenção de buscar um novo relacionamento com supermercados para que estes
participem do combate à fome.
Sejam para geração de empregos, acesso à renda ou doação de alimentos, sejam
estruturais, específicas ou locais, todas as ações do Programa Fome Zero exigem estrutura de
trabalho e equipes organizadas e capacitadas para sua aplicação. Tal estrutura conta com
órgãos que promovem e facilitam a participação de todos.
No primeiro ano do governo Lula, como já dito anteriormente, foi criado o
Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome. Em virtude da reforma
ministerial, feita ao final de um ano de mandato, os ministérios da área social foram
unificados, o que aconteceu também com os programas sociais de segurança alimentar e de
transferência de renda do governo (Bolsa Família, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação,
Bolsa Escola, Auxílio Gás e Programa de Erradicação do Trabalho Infantil). O novo “super”
Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome é chefiado atualmente, abril de
2005, pelo ministro Patrus Ananias.
O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) é responsável
pela coordenação do Programa Fome Zero e tem por missão acompanhar a implementação da
Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e dos programas de transferência de
renda, além de promover a articulação entre as políticas e programas dos governos federal,
estaduais e municipais e as ações da sociedade civil ligadas à alimentação no país.
Além de Patrus Ananias, que assumiu tal posição e responsabilidade após a
primeira reforma ministerial, o governo Lula contou com três “homens-fortes” para o
68
Programa: José Graziano, que ocupou o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e
Combate à Fome e os dois assessores especiais da Presidência, Oded Grajew e Frei Betto.
José Graziano é formado em agronomia, tem mestrado em Ciências Sociais e
doutorado em Economia, além de dois pós-doutorados: um sobre estudos latino-americanos,
na Universidade de Londres, e outro sobre Desenvolvimento Regional, na Universidade da
Califórnia. Companheiro de mais de duas décadas do presidente, José Graziano era
considerado, segundo Costa (2002), um dos homens mais influentes entre as relações de Lula.
Porém, não obteve o sucesso esperado como Ministro do Fome Zero.
Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Betto, conforme
Junqueira (2004), é frade dominicano, autor de 48 livros, e conhece o presidente Lula desde
os anos 70. Estudou jornalismo, filosofia e teologia, auxiliou na fundação da CUT (Central
Única do Trabalhador) e foi assessor de movimentos pastorais e sociais, entre eles o MST
(Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). Ajudou na elaboração do Programa Fome Zero e
trabalhou como Assessor Especial da Presidência da República para assuntos relativos ao
Programa até novembro de 2004.
Oded Grajew exerceu a mesma função que Frei Betto até novembro de 2003.
Segundo informações do site do grupo Ethos, Grajew é pós-graduado pela Escola de
Administração de Empresas da FGV, fundador e presidente do Instituto Ethos de Empresas e
Responsabilidade Social, conselheiro da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do
Adolescente e membro do Comitê Organizador do Fórum Social Mundial. Além disso, atua
como coordenador nacional da Cives (Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania) e
como membro do Conselho Consultivo do Global Compact, programa desenvolvido pelo
secretário-geral das Nações Unidas, Koffi Annan.
Altamente qualificados, Graziano, Frei Betto e Grajew atuaram na implantação do
Programa Fome Zero. Apesar disso, atualmente, nenhum deles pertence ao quadro de
69
colaboradores do MDS, embora ainda trabalhem com o projeto em outras esferas da
sociedade.
No ano de lançamento do Programa, Graziano se ocupou do maior número de
declarações públicas e esclarecimentos sobre o Fome Zero. O orçamento para o Ministério de
Combate à Fome para 2003, por exemplo, foi divulgado por ele. Segundo Graziano (apud
Agência Estado, 2003), o orçamento era de R$1,8 bilhão, mas todos os outros ministérios
envolvidos com o Programa também tiveram orçamento para executar ações que o integram:
“Se todo o governo estará envolvido, se todas as ações levarão em conta o combate
intransigente à fome e à miséria, muito mais recursos e esforços estarão envolvidos para
cumprir os objetivos”.
É importante destacar o papel de outros órgãos fundamentais da estrutura do
Programa Fome Zero. A seguir, a tabela 1 detalha o papel de cada um desses órgãos.
Tabela 1: Estrutura do Programa Fome Zero: órgãos de apoio
ÓRGÃO DESCRIÇÃO E OBJETIVOS
MDS – Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome
Coordena as políticas nacionais de
desenvolvimento social, de segurança
alimentar e nutricional, de assistência social
e de renda da cidadania. Torna ainda
possível as articulações entre as esferas
governamentais
CONSEA – Conselho Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional
Composto pela sociedade civil (2/3 dos
membros) e pelo governo (1/3 dos
membros), o CONSEA nacional estabelece
diretrizes da Política de Segurança
Alimentar, enquanto as unidades estaduais e
municipais cuidam da gestão das políticas
em suas esferas de atuação. Aí concentra-se
a representatividade e a participação da
70
sociedade no Programa Fome Zero. Todos
os estados da federação já têm CONSEA
17
Comitê Fome Zero Formado por 2/3 de membros da sociedade
civil e 1/3 do governo, ajuda o poder público
a fiscalizar a execução dos programas de
transferência de renda e promove a
integração de órgãos diversos para o
combate à fome. Contribui para a melhoria
do cadastro único, de forma que as pessoas
efetivamente mais necessitadas recebam os
seus benefícios
COPO – Conselho Operativo do Programa
Fome Zero
O Copo é responsável por receber,
armazenar, preservar e distribuir donativos.
Formado por representantes da sociedade
civil e do poder público, cabe a ele
credenciar as entidades e as famílias que
serão beneficiadas. Estabelece ainda
parcerias com instituições, empresas
privadas e voluntários
PRATO – Programa de Ação Todos pela
Fome
Grupos de voluntários que organizam coletas
e doações e, com a coordenação e orientação
dos COPO’s, encaminham a ajuda para as
entidades que trabalham com as famílias
beneficiárias
SAL – Agente de Segurança Alimentar e
Nutricional
Os agentes formam mutirão para ajudar nas
ações do Fome Zero e ainda acompanham as
condições de saúde e de nutrição das
famílias carentes, em especial com mães
gestantes e crianças de zero a seis anos de
idade
17
Nos municípios, o CONSEA e o Fundo de Segurança Alimentar – fundo obrigatório para que os municípios
recebam verbas do MDS – implantam e gerenciam o Programa Fome Zero. Cada município, de acordo com sua
disponibilidade e vontade de seus governantes, deve criar seu CONSEA, desde que amparados em modelos
previamente fornecidos pelo MDS. Apesar da maciça participação dos estados, ao final de 2003, haviam sido
instalados apenas 52 municipais.
71
TALHER Equipe de capacitação para a educação
cidadã que prepara monitores para
capacitarem quem participa e trabalha nos
COPO’s, PRATO’s ou atua como SAL e, até
mesmo, outros TALHERES. Em 2004, já
haviam 27 talheres estaduais, totalizando
540 membros que coordenaram equipes
municipais
CONSAD – Conselho de Segurança
Alimentar e Desenvolvimento Local
São uma forma de associação entre
municípios, com a participação de sociedade
civil e poder público, para facilitar as ações
de geração de trabalho e renda, promovendo
o desenvolvimento local. Ao final de 2004,
já haviam sido instalados 40 CONSAD´s que
atendem a 576 cidades e cerca de 10 milhões
de pessoas
Fontes: www.fomezero.gov.br, 2004
Betto, 2004.
De acordo com o governo, a implantação do Programa está sendo feita de forma
gradativa. Mas, superando as expectativas, até o final de 2003, conforme informações do site
oficial do Programa, o governo federal atendeu a um milhão e seiscentas mil famílias pelo
conjunto de políticas adotadas pelo Fome Zero.
As áreas prioritárias na implantação do Programa foram os municípios do semi-
árido nordestino, incluindo o Vale do Jequitinhonha, em Minas, os acampamentos e
assentamentos rurais, a população que vive dos e nos lixões, áreas de remanescentes de
quilombos e aldeias indígenas em estado de insegurança alimentar. As periferias das grandes
cidades também são consideradas áreas prioritárias, devido ao cinturão de pobreza formado
por favelas, vilas e palafitas. Segundo Graziano (apud Agência Estado, 2003), o problema em
cada região tem suas peculiaridades e será enfrentado com diferentes iniciativas.
72
As famílias beneficiadas devem envolver-se na gestão participativa do Programa.
O governo acredita que, com sua participação, as famílias compreenderão e ajudarão as
políticas tratadas na seção anterior com o bom uso do Cartão-Alimentação, o combate à
desnutrição, à mortalidade infantil, ao analfabetismo. “Construirão, em mutirão, cisternas e
unidades sanitárias populares, bem como ajudarão a reformar moradias em estado precário; e
se empenharão em atividades que favorecem a geração de emprego e renda
18
”.
O movimento de doações, seja de alimentos, dinheiro, ou serviços, recebe o nome
de Mutirão contra a Fome. Considerada fundamental pelo governo, a solidariedade de todos
os brasileiros atende, emergencialmente, comunidades em estado de insegurança alimentar,
aqueles que sofrem com a fome e não podem esperar pelos resultados das políticas estruturais
que demandam mudanças profundas nas estruturas econômicas e sociais.
Entretanto, para o governo federal, o ato de doar vai muito além do que a oferta de
alimentos ou dinheiro e, por isso, destaca a importância do envolvimento da sociedade nas
ações do Programa que buscam eliminar as causas estruturais da fome e da pobreza, como a
Alfabetização Solidária, por exemplo. Ajudando no desenvolvimento da economia local e
proporcionando acesso à educação e ao trabalho, as pessoas não precisarão mais das doações
no futuro.
Em virtude dessa situação, o governo coloca que o mutirão contra a fome é parte
essencial do Fome Zero; é um grande movimento nacional de solidariedade voltado para
aqueles que sofrem todos os dias com a falta de alimentos. A idéia do governo é que esses
mutirões contra a fome possam envolver toda a sociedade, por meio dos grupos de trabalho
citados na tabela 1 e que servem como base para o bom funcionamento do Programa.
Tais grupos, criados com o objetivo de colaborar com a arrecadação e viabilizar a
redistribuição de alimentos, promover um correto cadastramento de famílias e realizar
18
http://www.coepbrasil.org.br/downloads/fomezero.pdf, 2004.
73
diversas outras ações junto às populações que necessitam das doações, acabam por
protagonizar o desejo do governo em criar um movimento de solidariedade e parceria com o
trabalho do cidadão.
O Programa Fome Zero, então, conta com as doações de todo o país, seja em
dinheiro, alimentos ou serviços, para amenizar o lado emergencial da problemática da fome
no Brasil. Apesar das políticas e ações estruturais para combater a pobreza e a fome – que são
problemas estruturais – o governo, por meio da mídia, dá ênfase à face assistencialista do
Fome Zero, contribuindo para que as doações sejam vistas como as ações mais importantes do
Programa.
O tratamento dado ao Fome Zero pela mídia é assunto da próxima seção. Além
das características assistencialistas do Programa, muitas outras observações e debates foram
traçados.
3.2 Fome Zero em debate
Considerada a “menina dos olhos” do ainda candidato à Presidência da República,
Luís Inácio Lula da Silva, o até então Projeto Fome Zero ajudou Lula a conquistar a simpatia
dos brasileiros. Desde sua inserção no plano de governo da frente petista nas eleições de 2002,
o Fome Zero ganhou espaço na mídia.
“Se ao final do meu mandato cada brasileiro puder se alimentar três vezes ao dia,
terei realizado a missão de minha vida”. A frase de Lula, já como presidente eleito, tomou
proporções internacionais. Segundo Costa, o anúncio provocou reação imediata da ONU e das
principais instituições financeiras globais:
74
O secretário-geral da ONU, Kofi Anan, ligou para Lula na quinta-feira 31,
dizendo que vai colaborar com o projeto para aplacar a desnutrição. O relator
da ONU para a fome, Jean Ziegler, vai convidar Lula para uma reunião, em
dezembro, onde combinará estratégias contra a miséria [...]. O presidente do
BIRD, James Wolfensohn, e do BID, Enrique Iglesias, enviaram mensagem
de apoio ao petista. São sinais mais que promissores (COSTA, 2002, p.41-
42).
Em 2003, o governo contou com recursos de um Fundo de Combate à Pobreza,
cuja verba foi de R$4,5 bilhões. As notícias provocaram uma onda de otimismo. E como
muito se comentou sobre o Fome Zero desde a campanha eleitoral, criou-se grande
expectativa em torno do mandato de Lula, bem como para a rápida execução e excelente
desempenho do Programa.
Em janeiro de 2003, a mídia estava atenta aos movimentos do novo governo e, em
especial, ao Fome Zero. Mesmo antes da posse do novo presidente, a mídia já veiculava que
algumas propostas do Programa eram alvo de críticas por parte de entidades sociais. José
Graziano propunha o uso de cupons-alimentação que, segundo ele, garantiriam que a
população só trocaria o benefício por alimentos. Eduardo Suplicy, senador do PT, argumentou
contra a estratégia, como outros governistas. Contudo, abandonaram a idéia em virtude do
reconhecimento de que os cupons também seriam alvo de corrupção, já que nem sempre a
necessidade da família no momento é o que o cupom permitiria comprar.
Segundo Graziano (apud Agência Estado, 2003), esta não foi a única mudança do
projeto criado pelo Instituto Cidadania. Este sofreu alterações ainda com a equipe de transição
do governo:
O projeto original do Fome Zero está sendo modificado desde que o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito. A equipe de transição iniciou
a transformação do projeto, lançado pelo Instituto Cidadania em 2001, para o
programa de governo. Hoje já temos aproximadamente 60 ações. E esse
número pode crescer mais à medida em que outros ministérios vão definindo
sua participação. Pretendemos observar o desempenho das primeiras
experiências do Fome Zero e aparar possíveis arestas para gradativamente
darmos escala ao programa.
Após anunciar a criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e
Combate à Fome e o nome de seu responsável, José Graziano, as dificuldades encontradas
75
pelo governo continuaram a ter presença na mídia. O Fome Zero, principalmente em todo o
primeiro semestre do ano, foi alvo de olhares atentos, de comparações, de piadas e
brincadeiras, de manifestações de apoio e de críticas.
Mesmo antes de ser lançado, o Programa mereceu destaque na mídia nacional. De
maneira sucinta, os principais assuntos referentes ao Fome Zero discutidos na mídia estão em
tópicos a seguir.
A) A morosidade da implantação do Programa
Com o crivo de quem esperava um Programa de combate à fome estruturado e em
pleno funcionamento já em janeiro de 2003, a mídia passa a dar destaque ao que o Fome Zero
“ainda não era”. Ao tentar doar um cheque para o Programa, a modelo Gisele Bündchen
protagoniza a primeira grande crítica ao Fome Zero: não havia ainda sequer uma conta para os
depósitos das doações. O episódio pressionou o governo para que lançasse logo o Programa, e
fornecesse informações para que a sociedade civil pudesse ajudar.
Por outro lado, a mídia tratou de destacar as atividades em Guaribas, que
começaram antes do lançamento oficial do Programa, cujo papel na cidade não se resumiu à
distribuição de alimentos. O Governo Federal incentivou a safra local de feijão (safra esta que
foi considerada a maior de todos os tempos), promoveu a alfabetização e a construção de
cisternas, além de incentivar o trabalho habitacional na cidade.
A escolha das cidades de Guaribas e Acauã, no Piauí, para desenvolver o projeto
piloto do Fome Zero encontra justificativa nas palavras do ministro Graziano:
As primeiras experiências do cartão [cartão-alimentação] ocorrerão em
Guaribas e Acauã, no interior do Piauí, duas das cidades com IDH entre os
mais baixos no país. Essa proposta consiste em dar um cartão de saque para
os beneficiários para que possam retirar R$ 50,00 [...]. Esse modelo de
cartão de alimentação foi desenvolvido para pequenos municípios em
situação de emergência e pretende atender a região do Semi-Árido.
76
Aproximadamente 1000 municípios estão em estado de emergência nessa
região (GRAZIANO, apud Agência Estado, 2003).
Em fevereiro, Frei Betto, assessor da Presidência da República para o Fome Zero,
dá uma pequena previsão das atividades do Programa e confirma a idéia do governo de
priorizar o Nordeste: “[...] devem ser atendidos 180 municípios do semi-árido até julho, com
meta de chegar a mil até o final do ano” (CONSTANTINO, 2003, p.17).
B) O lançamento do Programa
O apelo à sociedade civil para colaborar com o Fome Zero vem com a ajuda de
Duda Mendonça, marqueteiro da campanha de Lula rumo à Presidência e um dos
responsáveis pela criação da marca do Programa. Anunciada na mesma semana de seu
lançamento, no final de janeiro, a campanha de comunicação do Fome Zero que, segundo o
governo, foi feita sem ônus para os cofres públicos, foi ao ar somente no dia 12 de março,
mesmo antes da devida estruturação do Programa. Quanto a isso, Torquato (2005) faz crítica
pertinente:
[...] o ícone nasceu antes do programa, cometendo aquela barbaridade, que é
a de se criar a propaganda antes do produto esboçado. Foi um erro. Não
havia programa, não havia estrutura, não havia sistema logístico, nem
mesmo havia o dado estatístico e geográfico para marcar a territorialidade do
programa.
A campanha contou com três filmes para TV e peças para anúncios em jornais,
revistas, sites, outdoors e spots para rádio. De acordo com o Portal 1ª Leitura (2003), todas as
veiculações das peças da campanha também ocorreram de forma gratuita. Os meios de
comunicação de massa mais importantes do país veicularam a campanha. Por vezes, as redes
de televisão chegaram a veicular os filmes até em seu horário nobre. Tema central desse
trabalho, a campanha de comunicação do Programa Fome Zero será tratada e discutida
detalhadamente nos próximos capítulos.
77
C) Críticas aos gestores
Já em março de 2003, surgem novas críticas. Líderes do próprio governo
chegaram a discordar e criticar o Programa em diversos pontos. A princípio, os
questionamentos, como já citado anteriormente, se voltaram para a demora do início das
atividades. Com tais pressões, o governo lança o Fome Zero em clima de improviso. As
contas para os depósitos das doações e a central telefônica estruturada para dar informações à
população por meio de ligações gratuitas só foram divulgadas dias após o lançamento do
Programa.
Apesar dos pedidos de doações, o ministro José Graziano admitiu, conforme
Arruda (2003), que para reduzir a fome e a miséria de forma real, e não apenas imediata, a
economia precisava tomar rumos certos nos próximos anos, com a retomada do crescimento
econômico e o aumento da geração de empregos. Com tal declaração, o ministro pode ter
diminuído a credibilidade do Programa.
Ainda em março, conforme site oficial do Fome Zero, José Graziano apresentou o
Programa para prefeitos de todo o país num evento promovido pelo governo. Porém, como já
colocado anteriormente, não só de bons exemplos compôs-se a história de José Graziano
frente ao Ministério responsável pelo Fome Zero. Graziano, além de ser considerado
“inoperante do ponto de vista gerencial” pelo Portal Primeira Leitura, em 2003, foi autor de
frases infelizes como a que culpou o grande número de nordestinos pela falta de segurança em
São Paulo.
A repercussão das declarações foi negativa e veio acompanhada de especulações
sobre o afastamento de José Graziano da frente de divulgação do Fome Zero. Essa equipe
seria gerenciada, a partir de então, por Frei Betto e Oded Grajew.
78
D) Apoio empresarial
Mesmo com tantas intempéries, o envolvimento de grandes empresas com o Fome
Zero, logo no 1º semestre de 2003, merece ser destacado. O apoio durante os 5 primeiros
meses de veiculação da campanha de comunicação contou com diversas delas, conforme
tabela a seguir.
Tabela 2: Apoio Empresarial ao Programa Fome Zero no 1º semestre de 2003
MÊS/ANO EMPRESA APOIO
Março/2003 Caixa Econômica Federal,
BNDES, Embrapa, Infraero,
Grupo Pão de Açúcar,
Volkswagen, Banco do Brasil,
Nestlé e Abras – Associação
Brasileira de Alimentos
Doações em dinheiro e
alimentos
Abril/2003 Forças Armadas, Empresa
Brasileira de Correios e
Telégrafos e Febraban
Apoio logístico à distribuição,
à coleta de doações e à
construção de cisternas no
Piauí, respectivamente
Maio, junho e
julho/2003
FORD Campanha relacionada à venda
de veículos
Fonte: www.fomezero.gov.br, 2004.
E) Admitindo tropeços
O presidente Lula faz o primeiro pronunciamento em rede nacional de televisão
em abril de 2003. Entre os temas escolhidos pelo Presidente, que tratou de avaliar os
primeiros meses de seu governo, destacou-se o desempenho do Fome Zero. Lula admite
tropeços até o momento, mas pede ajuda à população para que o Programa tenha sucesso. O
79
discurso também é adotado no relatório de prestação de contas do Governo, disponível na
internet:
No início, não foram poucos os problemas para sua execução. Não só pela
extensão da situação enfrentada, mas também pela complexidade, que não se
restringe a uma área, mas envolve vários setores e influencia todo
município
19
.
Durante os meses de maio e junho de 2003, a mídia televisiva ajuda a esclarecer
algumas características do Fome Zero que não aparecem em sua campanha de comunicação,
como a parceria com universidades. A mídia, porém, continua a dar maior destaque à grande
participação popular, ao apoio de empresas e da sociedade civil organizada para doações.
F) Repercussão internacional
Além das notícias de apoio ao Programa, logo após a eleição de Lula, já citadas no
início da seção, segundo informações oficiais encontradas no site do Fome Zero, o Papa João
Paulo II, bem como a Itália, manifestam seu apoio ao Programa Fome Zero, o que repercute
positivamente em todo o mundo. A Itália, primeiro país a manifestar apoio, foi seguida por
diversas nações do mundo.
A FAO, Organização das Nações Unidas pela Agricultura e Alimentação, elogia o
Fome Zero dizendo ser uma iniciativa corajosa do governo brasileiro. No entanto, com base
em dados divulgados pela ONU sobre a miséria no país, a FAO comenta que os programas
sociais dos governos anteriores começaram a mudar a situação da fome no Brasil.
G) A criação do MDS
No final do mês de agosto de 2003, o governo anuncia a criação de uma super
19
www.brasil.gov.br/prestandocontas/2004_2.pdf, 2005.
80
secretaria de projetos sociais e começa a tentar unificar os programas da área. Porém, só
conseguiu dar forma ao que buscava em janeiro de 2004, ocasião da primeira reforma
ministerial, como já apresentado anteriormente. O assunto repercutiu consideravelmente na
mídia de massa que mais discutia a “dança das cadeiras” entre os ministérios do que as
mudanças na área social, prioridade do governo. Com a promessa de um orçamento de R$14
bilhões, conforme publicado na revista Veja, de 28 de janeiro de 2004, Patrus Ananias assume
o novo Ministério do Desenvolvimento Social. O Programa Fome Zero fecha o ano de 2003
sendo alvo de mais críticas: o cadastramento dos beneficiados, agora com os programas
unificados, se torna lento e atrapalha o desempenho da área social do governo Lula.
H) Abusos e continuidade política
Dentre as críticas que menos repercutiram, estão as de que o Fome Zero gastou
muito com consultores, viagens e hospedagens de luxo para os ocupantes de alguns de seus
cargos. Tudo isso em um contrato de cooperação técnica com a Unesco, feito com o intuito de
acompanhar a criação de comitês gestores nas mil cidades onde o Fome Zero seria implantado
durante o ano de 2003.
No entanto, ao contrário dos abusos cometidos ao dar comodidade a seus
consultores, muito se discutiu sobre a relação do Fome Zero com programas sociais da gestão
de Fernando Henrique Cardoso:
Como coração de mãe, o Fome Zero foi então acomodando e aglutinando um
amontoado de ações governamentais, transformando-se num guarda-chuva
para programas os mais variados, desde a conhecida merenda escolar, até a
alfabetização de jovens, ou o registro civil gratuito. [...] Virou uma colcha-
de-retalho, um programa onipresente, cosmopolita. Aliás, sem muita
criatividade: dos 26 programas que engloba, 17 foram herdados da chamada
rede de proteção social construída durante o governo Fernando Henrique.
[...] Aquilo que, antes, era justificado para atender às famílias carentes frente
à seca, agora se justifica em nome da segurança alimentar. Espremendo bem,
conclui-se que o petismo copiou seu maior desafeto (GRACIANO, 2004).
81
Pessoas consideradas importantes no cenário da assistência social no país, como
Zilda Arns, também compartilharam da idéia, enfatizando, por sua vez, uma dimensão
positiva:
Uma coisa boa foi a continuidade dos projetos. Quando muda o governo,
principalmente de partido diferente, acaba tudo, tem de começar de novo,
precisa batizar com outro nome. Tiveram a maturidade política de continuar
o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimentação (unificados no Bolsa-Família), o
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, o auxílio aos idosos, que
começaram no governo passado (ARNS, apud CONSTANTINO, 2004).
I) Irregularidades na transferência de renda
Denúncias de irregularidades no cadastramento dos beneficiados do Programa
Bolsa-Família, que integra as políticas específicas e de caráter emergencial do Fome Zero,
receberam da mídia tratamento digno de nota em 2004. Cadastros em duplicidade e famílias
“fantasmas” foram encontradas quando dada atenção à distribuição dos benefícios.
O governo, em parceria com o Ministério Público (MP) e outros órgãos,
intensificou então a fiscalização em relação aos benefícios concedidos e cobra dos conselhos
municipais de assistência social e dos comitês gestores a correta aplicação das verbas do
Programa, evitando corrupção e fraude. O cadastro único das famílias beneficiadas foi revisto,
culminando na exclusão, em apenas 11 meses, de quase 29 mil famílias por alteração na
renda, duplicidade de benefícios e irregularidades confirmadas no cadastramento.
Segundo o diretor de Gestão de Transferência de Renda da pasta, Sérgio Paganini,
o cadastro único tem sido revisto com freqüência. “A atualização permanente evita fraudes e
melhora a qualidade do programa
20
”.
20
http://www.clipping.planejamento.gov.br/notícias, 2005
82
J) Provocando debates
Como foi possível observar, o Programa Fome Zero pautou intensamente a mídia
durante o ano de 2003. Nunca se falou tanto sobre solidariedade e combate à fome no Brasil.
Independente de grupos e veículos de comunicação, doações e ações solidárias (sem vínculos
com o Fome Zero) foram noticiadas por todo o país, bem como as intenções de organismos
internacionais de combater a fome e a miséria no mundo.
O Programa possibilitou a retomada do debate sobre a fome, promoveu sua
discussão no cotidiano das pessoas, fazendo com que elas se posicionassem sobre o assunto.
Pesquisa do Datafolha, publicada em 09/04/2003, mostrou que 22% da população consideram
a fome ou a miséria o principal problema do país. Em setembro de 2002, essa porcentagem
era de 15%. Além disso, matéria da Folha Online, de 15/04/2003, afirma que "o site do
FOME ZERO
é o mais acessado do governo federal, com média de 4.500 visitantes por dia".
Apesar de demonstrar o aumento do interesse da população brasileira pela
problemática da fome, dados como os citados acima não explicitam “como” se dá a
participação efetiva desta sociedade que começa a debater as mazelas sociais um pouco mais
freqüentemente. Como se envolverão na questão e o quanto apoiarão o Programa Fome Zero
dependerá muito de como o tema é debatido na mídia e como as campanhas de comunicação
trabalham para informar e conscientizar (por que não persuadir?) as pessoas.
Mais do que alvo de críticas ou de uma ação corajosa por parte do governo
brasileiro, o Fome Zero se colocou como um “motivo” para que a sociedade refletisse sobre o
problema da fome ou para que, pelo menos, se lembrasse dele. Positiva também foi a
oportunidade que o Programa e sua veiculação deram à população de “olhar” para o governo
e, quem sabe, começar a politizar-se.
83
Saber se tais “utopias” foram alcançadas não é uma tarefa fácil e nem mesmo
objetivo deste trabalho. Mas, por este prisma, as discussões sobre o Programa Fome Zero
contribuíram tanto para sua melhoria, quanto para a diversidade de informações recebidas
pela população, público-alvo da própria campanha pelo mutirão contra a fome.
Ao final de um ano, apesar de o governo insistir que o Fome Zero é o mais
ambicioso projeto de combate à pobreza já feito em nosso país, mas que não é um Programa
assistencialista, a arrecadação e a distribuição de alimentos têm, consideravelmente, mais
destaque na mídia brasileira do que ações estruturais que gerariam emprego e renda nas áreas
atendidas, incentivariam a agricultura familiar, as cooperativas, dariam crédito, alfabetização
e a reforma agrária.
Contudo, por investir em propaganda e contar com a mobilização social antes de
estar devidamente estruturado e poder dar suporte à sociedade civil organizada, bem como
mostrar resultados à imprensa, o Programa perdeu espaço na mídia. Em 2004, o governo não
apostou em outra campanha nacional de comunicação para manter os debates e as doações.
Com tantas críticas e sem nenhum esforço de comunicação para respondê-las
(talvez por evitar cometer o mesmo erro do lançamento do Programa, comunicando sem ter o
‘produto’ pronto, ou seja, não tendo como solucionar os problemas apontados), o Fome Zero
perdeu credibilidade. Não conseguindo alcançar tamanhas expectativas, o Programa sai da
mídia, quem sabe, para fazer a opinião pública esquecer o assunto. A fome volta a ser tratada
na mídia, desde então, esporadicamente, e o Programa Fome Zero não é mais destaque, mas
assunto secundário.
A segunda etapa da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002/2003 do
IBGE, que traz informações sobre a dieta alimentar e o estado nutricional dos brasileiros, foi
divulgada no último mês de dezembro de 2004 e aponta uma problemática que, à primeira
vista, está na contramão das políticas públicas de combate à fome no país. A POF destaca que
84
o índice de desnutrição no Brasil é menor que o índice de obesidade. Há 38,8 milhões de
brasileiros com 20 anos ou mais acima do peso, sendo 10,5 milhões obesos e apenas 3,8
milhões desnutridos
21
.
A constatação provocou discussões sobre a metodologia de diagnóstico e
planejamento do governo federal com relação ao Programa Fome Zero, “carro-chefe” de suas
ações sociais. Schwartzman (apud JN, 2004) coloca que não foi feita uma pesquisa adequada
sobre a nutrição dos brasileiros antes do lançamento dos programas sociais. A possibilidade
de considerar a nova POF para reorientar as políticas do governo é defendida por Rocha (apud
JN, 2004). A economista da Fundação Getúlio Vargas coloca que a POF é um valioso
instrumento para auxiliar a criação de políticas públicas.
Para a realização da POF, os pesquisadores permaneceram 9 dias na casa de cada
família, observando o que comem, como comem e vivem os moradores
22
. Segundo JN (2004),
o governo utilizou, para a elaboração de suas políticas, uma pesquisa feita há 7 anos que,
inclusive, já alertava para o problema da obesidade e para a necessidade de investimentos em
educação alimentar.
A divulgação da pesquisa incentivou os debates sobre a questão da fome e da
desigualdade social no Brasil: “Os dados da pesquisa do IBGE sobre orçamentos familiares
escancaram a verdade: não há fome no Brasil. Há pobreza e pobres e a distribuição de renda e
da riqueza é muito desigual entre nós” (AURELIANO, 2005, p.09).
Em cartilha de mobilização para o Fome Zero, Betto apresenta o argumento:
“Segundo o Mapa do Fim da Fome II, da Fundação Getúlio Vargas, no Brasil, são
21
Cresce número de obesos. Estado de Minas, Belo horizonte, 17 dez 2004. Caderno Nacional, p.5.
22
Segundo Rocha, a principal vantagem é a possibilidade de derivar a cesta alimentar mínima adequada, pois se
estabelece a linha de pobreza a partir do consumo observado e as necessidades nutricionais são reconhecidas. “O
estabelecimento do valor da renda familiar per capita, abaixo do qual as pessoas seriam consideradas pobres
(linha de pobreza, associada ao valor de todas as despesas) ou indigentes (linha de indigência, associada à
despesa alimentar) deve se basear, no Brasil, no consumo observado” (ROCHA, 2003, p.175).
85
consideradas pobres aquelas pessoas que têm uma renda mensal de, no máximo, R$79,00. São
56 milhões ou 11,4 milhões de famílias, compostas em média por 4,7 pessoas.” (2004, p.03)
Independente de significados e estatísticas, os responsáveis e os idealizadores do
Programa Fome Zero defendem o trabalho do governo. Ananias (apud JN, 2004) coloca que
as metas do Bolsa-Família para 2005 são atingir 8,7 milhões de famílias, destacando também
que todas as ações do Fome Zero são corroboradas pela ONU e que nada mudará nos
programas sociais do governo.
Belik (apud ANDRADE, 2005) considera que o problema da insegurança
alimentar e da desnutrição não pode ser visto como superado em virtude do grande número de
obesos no Brasil. E, por outro lado, os temas se correlacionam complexamente:
Uma pessoa que foi subnutrida na sua infância e na sua adolescência tem
uma tendência muito grande à obesidade, porque o organismo está
acostumado a trabalhar com um número de calorias muito baixo. Quando
esta pessoa começa a consumir alimentos muito calóricos, como por
exemplo, refrigerantes, frituras, há uma tendência muito grande à obesidade,
ela não consegue eliminar rapidamente essas calorias. Ela se transforma num
obeso, mas que tem resquícios de subnutrição.
Condizente com a política do governo em adotar programas de transferência de
renda, o autor esclarece:
Já se sabia que o número de desnutridos no Brasil estaria em torno de 4% a
5%. O Brasil, de fato, não tem problemas de fome crônica, não é um país
que sofre de problemas de carência alimentar crônica. Pelo contrário, o
Brasil é um grande produtor de alimentos, então não temos problema de
oferta, não falta comida no Brasil. O que falta é dinheiro para comprar
comida. Então, grande parte dos problemas de desnutrição, se referem à
pobreza.
O Fome Zero, ainda conforme Belik, baseia-se numa estimativa da população
vulnerável à fome em função da renda disponível. Assim sendo, o governo Lula construiu um
Programa com diversos tipos de ação e entre elas estão aquelas destinadas a combater a
desnutrição. Werneck (2004) esclarece que os dados utilizados para a elaboração de tal
política pública do governo são da PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios –
feita pelo IBGE em 1999 e atualizados pela versão de 2001. Ainda segundo a autora, o
86
cálculo da linha de pobreza no Brasil, adotado pelo Banco Mundial e adaptado para a
realidade brasileira, chega ao valor de R$71,53 mensais por pessoa, o que indica a existência
de 46 milhões de pessoas pobres.
Com tantos números desencontrados, talvez em virtude da adoção de
metodologias e parâmetros de pesquisa diferentes por parte dos diversos órgãos, Belik ainda
comenta as polêmicas discussões geradas a partir da divulgação da POF:
[...] não há nenhuma contradição entre os números apresentados. Pelo
contrário, uma leitura mais atenta do documento reforça o argumento de que
há um contingente significativo de pessoas que não tem renda suficiente para
consumir a quantidade mínima de calorias encomendadas pela FAO/ONU,
de forma a garantir uma vida saudável (apud ANDRADE, 2005).
O documento "A Segurança Alimentar e Nutricional e o Direito Humano no
Brasil" (IPEA, 2002) ressalta que não é possível falar de um número "verdadeiro" de pobres e
indigentes porque cada instituição utiliza a linha de pobreza que lhe parece mais adequada.
Além disso, o uso de palavras como “fome”, “pobreza” e “desnutrição”, tanto pelos órgãos
oficiais quanto pela mídia, se tornou confuso. Rocha coloca que, na imprensa, é freqüente a
associação de pobreza e fome e que, na maioria das vezes, a associação é incorreta, haja vista
que o número de pobres é definido pela renda e o número daqueles que passam fome, pela
situação nutricional.
Assim, embora os indigentes sejam definidos como aqueles cuja renda
familiar per capita é insuficiente para aquisição de uma alimentação
adequada, eles não são necessariamente subnutridos. Utilizar a linha de
indigência para delimitar a população que passa fome significa, felizmente,
superestimar o tamanho do problema (ROCHA, 2003, p.173-174).
O fato é que a pobreza não pode ser definida de modo indiscutível e universal. O
mais importante é que cada pesquisa utilize a mesma linha de pobreza no tempo. Desse modo,
a crítica de que o Programa Fome Zero estaria trabalhando com um número de pobres acima
do "real" é absolutamente estéril. Além disso, o público a ser contemplado pelo Programa
Fome Zero – de 44 milhões de pessoas muito pobres que ganham menos de R$ 80,00 por mês
– é superado, por exemplo, pelos estudos apresentados no trabalho do IPEA (2002) citado
87
acima: usando linhas de pobreza regionalizadas, o trabalho avalia que seriam 54 milhões de
pessoas pobres no país.
Em defesa dos programas sociais do governo, Betto (2005) também argumenta
que há sim muita fome no Brasil.
Num país em que 40% da população não tem renda per capita superior a
R$5, não vamos dizer que isto dá para ter uma boa qualidade de vida. Basta
ver os índices da mortalidade infantil para constatar lamentavelmente que o
Fome Zero merece ser a prioridade do governo.
O assunto foi tratado pela mídia nacional por uma semana em jornais, revistas e
também na televisão. Esgotados os comentários, a problemática da fome e o Programa Fome
Zero aguardam novas ocorrências para pautarem a mídia. Enquanto isso, nenhuma outra
campanha midiática fora realizada.
88
CAPÍTULO 4 ANÁLISE DO PROGRAMA FOME ZERO: DO DISCURSO À
IMPLEMENTAÇÃO
Uma campanha de construção social é caracterizada por buscar o consentimento
de um determinado público para uma causa social, provocando atitudes individuais, mas de
impacto coletivo. Para que pessoas se mobilizem e tomem a decisão de se engajarem em
algum movimento, é preciso que compartilhem valores e visões de mundo semelhantes.
Como a campanha do Programa Fome Zero é para todo o Brasil, seu público-alvo
conta com segmentos distintos e diferenças regionais marcantes e que, por isso, dificilmente
compartilha de cotidianos e valores muito próximos. Para conseguir o consenso necessário ao
sucesso do Fome Zero, a campanha utiliza meios de sedução para alcançar seus objetivos,
como a propaganda.
Os mecanismos de persuasão utilizados pelo discurso, por intermédio de sua
linguagem e artifícios administrados inteligentemente para influenciar o receptor, compõem o
tema deste capítulo.
A campanha midiática em questão contou com peças para os meios televisivos,
impressos, radiofônicos e eletrônicos. Dentre eles, destacam-se outdoors, anúncios para
revistas, jornais e rádios de todo o país, banners para internet e, além desses, a princípio, três
filmes veiculados na televisão, mídia a ser estudada neste trabalho.
A mídia televisiva foi escolhida devido à sua posição no contexto da publicidade e
da propaganda no Brasil, conforme comenta Carvalho (2000):
Enquanto nos países desenvolvidos 65% da produção são baseados na língua
escrita (anúncios, revistas e periódicos, mala direta etc) e 35% veiculados
pela televisão, aqui é exatamente o inverso: 70% da publicidade brasileira
são feitos para a tevê - portanto, utilizando como canal a língua oral e a
imagem; apenas 30% são veiculados pela língua escrita (em revistas e
periódicos).
89
Em virtude dessa realidade, é possível considerar os filmes produzidos para a
televisão, a mola propulsora de toda a campanha midiática. A televisão, tendo alto poder de
penetração nos lares de todas as camadas sociais, é vista como o instrumento de maior
transmissão de mensagens e canal difusor de informação e conhecimento no Brasil.
Portanto, o discurso da campanha televisiva do Programa Fome Zero,
particularmente, de três filmes veiculados no primeiro semestre de 2003, entra aqui em
análise. Seu objetivo é perceber como se deu a construção do sentido em toda a campanha
midiática, já que os principais textos usados nos outros meios de comunicação são iguais.
4.1 A análise do discurso da campanha
A linguagem, seja ela verbal ou não-verbal, é um processo inerente à vida
humana. A convivência, a intermediação, a vida em sociedade e a participação do ser humano
– sujeito da realidade – são conquistas impensáveis sem a linguagem. É por meio do contato
ocasionado por ela que o sujeito social co-participa do entendimento do mundo.
Não servindo apenas como instrumento de comunicação ou suporte de
pensamento, a linguagem é um modo de produção social. Além disso, na medida em que
expressa opinião, vontade ou interesse de quem a usa, a linguagem não é neutra, manifestando
sempre certa ideologia. Linguagem se constitui, assim, em discurso.
Por isso, a opção por estudar o discurso da campanha do Programa Fome Zero:
compreender a vontade e o interesse de seu emissor, expressados por meio da linguagem de
suas peças midiáticas. Entra aqui a Análise do Discurso que é capaz de auxiliar no
apontamento de tais interesses.
90
Segundo Brandão (1996), as bases da Análise do Discurso surgiram com o
trabalho “Discourse Analysis”, em 1952. A obra vai além das análises puramente frasais que
marcaram as investigações anteriores ao aplicar procedimentos de análise da língua ao
enunciado. Fazendo fronteira com diversas outras ciências, a teoria conquistou diversos
estudiosos que acabaram levando suas investigações por caminhos diferentes.
De acordo com Brandão, duas são as grandes correntes que abarcam as teorias da
Análise do Discurso. Uma delas é a americana, que estuda a questão do sentido situado no
interior da língua. Posteriormente, os analistas franceses começaram a fazer reflexões sobre as
condições sócio-históricas da produção dos discursos, inaugurando uma nova maneira de
pensar e estudar o discurso.
Essa corrente francesa é marcada, segundo Orlandi (1986), por “uma relação
necessária entre o dizer e as condições de produção desse dizer” (apud BRANDÃO, 1996,
p.16). Brandão ainda comenta que a Análise do Discurso (AD), adotada pela corrente
francesa, busca no exterior do discurso seu entendimento, tendo:
[...] a exterioridade como marca fundamental. Esse pressuposto exige um
deslocamento teórico, de caráter conflituoso, que vá recorrer a conceitos
exteriores ao domínio de uma lingüística imanente para dar conta da análise
de unidades mais complexas da linguagem (1996, p.17).
Um dos fundadores da Análise do Discurso francesa é Michel Pêcheux. Sua
contribuição gira em torno da tríade básica da teoria da AD que se constitui dos conceitos de
“condições de produção” de sua autoria, “formação ideológica”, utilizando as idéias sobre
ideologia de Althusser e “formação discursiva”, baseado nas idéias de Foucault sobre
discurso.
O conceito “condições de produção” foi primeiramente utilizado por Pêcheux
(1969) para designar a maneira como o discurso é produzido e o lugar que ocupam os sujeitos
no discurso. Para o autor, não é possível analisar um discurso como um texto fechado, mas
sim, a partir de uma realidade onde ele foi criado. Ele afirma que entre emissor e receptor não
91
há somente transmissão de informação e sim, transmissão de “efeitos de sentido”, ou seja,
posições, valores e interpretações passadas pelos sujeitos.
Além disso, Pêcheux também coloca que emissor e receptor estão em “lugares
determinados na estrutura de uma formação social”, ou seja, papéis que as pessoas podem vir
a representar na sociedade. Esses “lugares” estariam representados nos processos discursivos:
O que funciona nos processos discursivos é uma série de formações
imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada uma a si e ao
outro, a imagem que eles próprios de fazem de seu próprio lugar e do outro
(Pêcheux, 1969, p.82).
Essa formação de imagens existe por parte de todos os interlocutores do discurso e
vai se construindo à medida que se constitui o próprio discurso. Em outras palavras, o sujeito
não é livre para dizer o que quer, a própria opção do que dizer já é em si determinada pelo
lugar que ocupa no interior da formação ideológica à qual está submetido.
A ideologia é um dos campos externos onde a AD busca compreender o discurso.
O conceito de ideologia assume significações diversas, mas o termo utilizado na AD é
baseado nas idéias de Althusser, expostas em sua obra “Ideologia e Aparelhos Ideológicos do
Estado”. O autor defende a idéia de que, para manter a sua dominação, a classe dominante
gera mecanismos de perpetuação ou de reprodução das condições materiais, ideológicas e
políticas de exploração.
É aí então que entra o papel do Estado, que por meio dos Aparelhos Ideológicos (a
religião, a escola, a família, a política, a cultura, etc), força a classe dominada a aceitar a sua
condição de exploração. Para ele, então, a existência da ideologia é material e é refletida nos
atos humanos. O discurso seria, então, uma das instâncias em que a materialidade ideológica
se concretiza.
Já a terceira base da tríade de Pêcheux constitui-se com a contribuição de Michel
Foucault, que utilizou o termo “formação discursiva” para mostrar como poderia ser
caracterizada a formação de um discurso. Para o autor, o discurso é formado por elementos
92
que estabelecem um princípio de unidade nas chamadas “formações discursivas”. Assim, os
elementos que constituem um discurso são regidos por certas “regras de formação”.
Posteriormente, teóricos da AD atribuíram à disciplina justamente a função de descrever essa
“dispersão”, estabelecendo regras que tentassem explicar a formação desses discursos.
Além do conceito de “formação discursiva”, outras idéias abordadas por Foucault
contribuíram mais tarde para a Análise do Discurso. De acordo com Brandão (1996), Foucault
aponta para a necessidade de articulação da concepção de discurso com outras práticas não
discursivas, a diferenciação dos conceitos (enunciação, marcada pela singularidade, pois
jamais se repete em outro discurso e enunciado, unidade lingüística básica que ocorre toda vez
que alguém emite um conjunto de signos, podendo ser repetida) e a idéia de que o discurso é
um lugar gerador de poder, pois sempre representa um ponto de vista.
Baseando-se nas idéias de Foucault, teóricos da AD acrescentaram novas idéias ao
conceito de “formação discursiva”, que passou a ser utilizado para designar o lugar onde se
articulam discurso e ideologia. Assim, o que passa a ser relevante é o lugar ideológico de
onde enuncia o sujeito, e não mais o sujeito em si. Os sentidos que um discurso pode assumir
não existem antes dele, mas se constituem simultaneamente, levando em consideração as
formações discursivas, posições ideológicas e condições de produção do discurso.
Tudo isso faz da escola francesa de Análise do Discurso (AD) a melhor opção
para os objetivos deste trabalho. Por permitir trabalhar em busca dos processos de produção
do sentido, a AD foi escolhida como ferramenta para a investigação proposta. As categorias
elementos dêiticos e modalidades possibilitarão o estudo.
A análise da linguagem verbal da campanha é realizada então em duas etapas: o
estudo dos dêiticos, dando destaque a processos de polifonia e assujeitamento e o estudo das
modalidades, fazendo referência às posturas do locutor perante seu enunciado. Além disso,
93
observações relevantes sobre a linguagem não-verbal utilizada nos filmes da campanha, ou
seja, as imagens das propagandas, são feitas aqui.
Para a compreensão da ferramenta de análise da campanha, faz-se necessária uma
objetiva explicação sobre os suportes teóricos que a embasam que vem a seguir.
A) Os Dêiticos
Toda enunciação supõe alguém que fala, para quem se fala, de quem se fala, num
determinado momento e lugar. Esses são os elementos constitutivos da linguagem enquanto
enunciação, comunicação. Por meio dos elementos “eu”, “tu”, “ele”, “agora” e “aqui”, sujeito
e objeto estão representados e localizados no discurso, estão referenciados na situação de
comunicação.
Tais referências são chamadas de referências dêiticas, ou seja, locutor, alocutário,
delocutário, espaço e tempo são elementos dêiticos, responsáveis por dar significado à
enunciação de acordo com a situação de comunicação. São elementos que assumem papéis
diferentes de acordo com cada sujeito, não-sujeito e interesse do discurso.
Em resumo, os dêiticos são as palavras que designam os elementos constitutivos
de cada enunciação exclusivamente: cada “eu” só pode designar aquele que fala; cada “tu”
designa aquele a quem o “eu” se dirige; cada “ele” designa aquele de quem “eu” fala para
“tu”; “aqui” e “agora” só podem designar o lugar e o tempo onde o enunciado ocorre. Por
isso, fica impossibilitada a análise do enunciado se não são conhecidos seus atores, espaço e
tempo, se tal enunciado não está inserido num contexto sócio-histórico conhecido.
Sobre as referências espaço-temporais vale dizer que os advérbios e as expressões
adverbiais, de acordo com Benveniste (1966, apud BRANDÃO, 1998), estabelecem as
relações espaciais e temporais em torno do sujeito tomado como ponto de referência. Porém,
94
não apenas os advérbios “agora”, “hoje” e outros tantos que designam o presente da
enunciação compreendem a dêixis temporal. Todo verbo conjugado no enunciado expressa
temporalidade, tem como ponto de referência o momento da enunciação.
A.1) Polifonia e assujeitamento
Como estratégia de persuasão, o locutor pode falar não só por si mesmo, mas pode
fazer com que, de forma simples, alocutário e até delocutário falem junto com ele. Utilizando
palavras e expressões correspondentes à primeira pessoa do plural (“nós”, “a gente”, “nosso”),
em vez de usar na primeira pessoa do singular (“eu”, “meu”) e assumir sozinho o que diz, o
locutor traz o alocutário para a posição de locutor.
O significado de “nós” pode ser “eu + você” (locutor + alocutário). Contudo, em
propagandas, o locutor (organização responsável por elas) usa de outro locutor (quem fala na
propaganda) para transmitir sua mensagem. Nesse caso, de acordo com Brandão (1998), o uso
do “nós” pode significar “eu + ele” (locutor responsável + locutor que pronuncia). Então, de
acordo com seu interesse, o locutor pode incluir ou excluir o alocutário. Usando o “nós” para
incluí-lo, o locutor dispõe de uma ferramenta de aproximação:
[...] trazendo o alocutário para a esfera do locutor, este passa a falar do lugar
daquele, produzindo representações nas quais o alocutário se vê refletido. Ao
fazer isso, demarca-se entre locutor e alocutário, um espaço comum em que
crenças são compartilhadas (BRANDÃO, 1998, p.55).
Brandão (1998, p.55) aponta o caráter polifônico do discurso e a pluralidade do
locutor como estratégia autoritária de persuasão:
[...] o locutor, procurando envolver o alocutário não experimenta, mas, na
verdade, apossa-se do lugar do outro porque fala não da perspectiva do
outro, e sim da sua própria.
Tal multiplicidade de lugares em que o locutor se coloca faz com que todas as
vozes se transformem em uma única voz. Orlandi & Guimarães (1986, apud BRANDÃO,
95
1998) apontam para o processo de monofonização da polifonia enunciativa. Nesse efeito
monofonizante, todas as vozes falam de uma única perspectiva: o interesse de quem é
responsável pela mensagem.
Outra forma de envolver o alocutário também pode ser detectada no texto por
meio de marcas lingüísticas como “você”, por exemplo. Brandão (1998, p.53) coloca que
“você” “ganha uma ilusória identidade no processo de alocução [...] porque sob a máscara de
um tratamento personalizante, o ‘você’ da propaganda visa a um interlocutor anônimo”.
Dessa forma, o “você” assume a importante função de interpelar mais diretamente
e, inclusive, ideologicamente, o alocutário. Por meio de tal interpelação, Althusser (1970,
apud BRANDÃO, 1998) defende que se dá o processo de assujeitamento, onde o alocutário,
com toda sua singularidade, passa a indivíduo assujeitado, pois se identifica ideologicamente
com a voz do locutor.
Movimento de interpelação dos indivíduos por uma ideologia, o assujeitamento é
condição fundamental para que o indivíduo torne-se sujeito do seu discurso ao submeter-se às
condições de produção impostas pela ordem superior estabelecida, embora tenha a ilusão de
autonomia.
B) As modalidades
Ponto de vista do locutor sobre seu enunciado, atitude do sujeito que fala em
relação ao que fala e a quem fala. Essa é uma rápida definição de modalidade. As operações
de modalização envolvem a escolha de formas, estruturas gramaticais e palavras que tenham
valor modal ou performativo para a construção do sentido de um enunciado.
Por meio da operação de modalização, o locutor opina, julga, expressa sua
vontade, sua percepção, seu “estado de espírito” naquilo que diz, sempre tomando uma
96
posição referente ao enunciado. É por isso que Culioli (apud DOTA, 1994) considera que
todo enunciado é modalizado, pois não há como alguém dizer algo sem se posicionar sobre o
dito.
A operação de modalização, segundo Dota (1994), dá-se por meio de um
elemento modalizado (um predicado), de um operador lingüístico da modalização (palavra ou
oração que indica o posicionamento) e de um locutor (origem do julgamento, da intenção, da
modalização). Conforme Culioli (apud DOTA, 1994), são quatro os tipos de modalidade,
expostos a seguir.
Modalidade 1
Com asserção: o locutor afirma (modalidade afirmativa) ou nega (modalidade
negativa) o predicado, colocando-o como verdadeiro ou falso.
Com interrogação: é utilizada em casos onde o locutor quer validar o que diz, mas
não é capaz de fazê-lo. Trata-se de uma asserção disfarçada, pois o locutor não afirma nem
nega, mas dá ao alocutário o poder de decisão
23
.
Com injunção: o locutor recorre à súplica, ordem, pedido ou sugestão que
geralmente encontram-se em formas imperativas.
Com o hipotético: facilmente detectada em virtude do uso da palavra “se”.
Modalidade 2
Chamada de modalidade epistêmica, a modalidade 2 também trabalha com a
ausência de certeza por parte do locutor com relação ao que diz. Porém, se difere da asserção:
trata-se de uma incerteza quantitativa, que vai do menos provável ao mais provável. Nessa
operação de modalização, o locutor supõe o que seu alocutário pensa.
23
Isso também faz com que a interrogação assuma um valor subjetivo, podendo revelar-se como uma
modalidade assertiva ou intersubjetiva.
97
Modalidade 3
Já a modalidade apreciativa é essencialmente qualitativa. Por meio dela, o locutor
qualifica a relação predicativa, avaliando seu conteúdo como bom ou ruim, feliz ou infeliz etc.
Modalidade 4
A modalidade intersubjetiva é assim chamada, segundo Culioli (1976, apud
DOTA, 1994), porque diz respeito às relações entre sujeitos, sujeito locutor e sujeito do
enunciado e não entre locutor e predicado. Tal operação de modalização dá-se por meio da
persuasão do locutor para com o sujeito do enunciado.
Apesar dessa classificação, uma operação de modalização pode pertencer a mais
de um tipo. No texto, as modalidades podem se imbricar e, juntas, auxiliar na construção do
sentido que o locutor quer dar a seu enunciado.
Os textos dos três filmes publicitários em estudo, utilizados na campanha do
Programa Fome Zero, foram colocados num único quadro para facilitar sua análise, visto que
várias marcas lingüísticas semelhantes podem ser encontradas. Os textos A, B e C
correspondem aos filmes da série, na ordem em que foram veiculados na mídia. O texto D é a
letra da música usada no primeiro filme.
Tabela A: Texto do primeiro filme
A1 Fome Zero.
A2
Está começando o maior e mais completo programa contra a fome já feito em nosso
país.
A3
O desafio de acabar com a fome no Brasil é enorme e já estava mais do que na hora
da gente entrar nesta guerra.
98
A4 Esta sim é uma guerra que vale a pena.
A5 Ligue zero oitocentos sete zero sete dois mil e três e participe.
A6 Fome Zero: o Brasil que come ajudando o Brasil que tem fome.
Tabela B: Texto do segundo filme
B1
Para acabar com a Fome no Brasil o novo governo criou o Fome Zero: o maior e
mais completo programa contra a fome já feito em nosso país.
B2 O Fome Zero não é somente a distribuição de alimentos, isso é apenas um começo.
B3
A sua parte mais importante são as ações estruturais como a reforma agrária,
ampliação da agricultura familiar, a produção de alimentos mais baratos, micro
crédito, a geração de empregos nas áreas mais pobres e tantas outras ações que serão
desenvolvidas pelo governo nos próximos quatro anos.
B4
O objetivo é que neste país nunca mais ninguém precise de doação de cesta básica
para se alimentar decentemente.
B5
O desafio é grande, mas já estava mais do que na hora da gente enfrentar esta guerra,
não é verdade?
B6 Participe.
B7 Ligue zero oitocentos sete zero sete dois mil e três.
B8 Essa sim é uma guerra que vale a pena.
B9 Fome Zero: o Brasil que come ajudando o Brasil que tem fome.
Tabela C: Texto do terceiro filme
C1
Para participar do programa Fome Zero e ajudar o Brasil a vencer a fome você pode
doar dez toneladas de feijão, vinte toneladas de arroz ou apenas um quilo.
C2 Você pode doar um milhão ou apenas um real.
C3
Não é o tamanho da sua doação que vale, o que vale mesmo é o tamanho de seu
coração.
C4 Participe.
C5 Ligue para zero oitocentos sete zero sete dois mil e três.
C6 A nossa guerra é contra a fome.
C7 Fome zero: o Brasil que come ajudando o Brasil que tem fome.
99
Tabela D: Texto da música do primeiro filme
D1 Todo mundo tem direito de plantar
D2 Todo mundo tem direito de colher
D3 Todo mundo tem direito a trabalhar
D4 Para todo mundo ter direito de comer
D5 Todo mundo tem direito de doar
D6 Todo mundo tem direito a receber
D7 Todo mundo tem direito de ajudar
D8 Para todo mundo ter direito de comer
D9 Todo mundo tem direito de sonhar
D10 Todo mundo tem direito de querer
D11 Todo mundo tem direito de ajudar
D12 Pra todo mundo ter direito de comer
D13 Todo mundo tem direito de ajudar
D14 Pra todo mundo ter direito de comer
A) Dêiticos
Para iniciar a análise do discurso da campanha televisiva do Programa Fome Zero,
procurou-se sublinhar os elementos dêiticos presentes, ou seja, quem fala (locutor), para quem
fala (alocutário), de quem se fala (delocutário) e instâncias espaço-temporais que designam
onde e quando se fala.
É possível detectar nos textos em estudo: um locutor que “assina” as propagandas,
no caso o governo federal, chamado de L
0
; um locutor responsável pela fala nos filmes,
chamado de L
1
; um alocutário, marcado explicitamente no terceiro filme (texto C) onde é
chamado de “você”, mas presente em todos; e três delocutários (governo federal, Programa
Fome Zero e o alocutário).
100
Nos textos A e B, o delocutário é o Programa Fome Zero, pois é o tema da fala.
Porém, em B1, detecta-se, junto ao Fome Zero, o governo federal em posição de delocutário:
“[...] o novo governo criou o Fome Zero
”. Em B4 também é possível perceber esta
duplicidade: “[...] tantas outras ações que serão desenvolvidas pelo governo
[...]”. Há aí um
desdobramento do locutor que, ora é L
0
, ora é delocutário.
Em A3 e em B5 encontra-se uma marca de tripla voz: “na hora da gente
entrar
nessa guerra”, onde “gente” é uma forma popular, aproximativa e quase íntima de dizer “nós”.
O termo “gente” significa aqui “eu+você+ele”, ou seja, é um “plural inclusivo”. L
1
fala do
“lugar” de L
0
e do alocutário, compartilhando a ação do enunciado, no caso, a
responsabilidade de lutar contra a fome no Brasil.
O mesmo acontece em todo o texto D, com a expressão “todo mundo
”. L
0
(governo federal) fala na voz de L
C
(locutor-cantor da música) e inclui todos, inclusive o
alocutário e delocutário (governo federal) nas ações que trazem benefícios “pra todo mundo
”,
expressão que novamente traz a voz do alocutário e delocutário para o enunciado. Nesse caso,
não há separação entre “o Brasil que come” e o “Brasil que tem fome”. O locutor não fala
para dois alocutários diferentes, mas sim, para um único Brasil, um único alocutário, que se
verá igual a todos.
24
No filme em que o ator Antônio Fagundes atua (texto B), fica claro a tripla
posição do locutor, na expressão de cumplicidade em seu rosto, “chamando” ou “assumindo”
a voz do alocutário. O mesmo efeito se repete em A2, B1 e C6 onde encontram-se os
pronomes possessivos no plural “nosso
país” e “nossa guerra”.
A voz do alocutário, que está implicitamente presente em boa parte do texto da
campanha, traz vantagens para sua sedução, como já exposto anteriormente. Estando L
0
em
24
Vale ressaltar que as expressões “todo mundo” e “pra todo mundo” isentam a propaganda de distinções e
particularizações, o que colabora para o objetivo da campanha.
101
três “lugares” (nas instâncias delocutário, alocutário e L
1
ou L
C
) tenta, dessa forma, conduzir
o alocutário a assumir a atitude de ajudar o Programa Fome Zero.
Com as palavras e expressões “nosso”, “nossa”, “da gente”, “todo mundo” e “pra
todo mundo” (A2, B1, C6, de D1 a D14), promove-se a monofonização do discurso que está
na redução das três vozes a uma só perspectiva: a perspectiva do governo federal, de quem
assina a campanha, quem mandou fazer as propagandas, aprovou-as e deu conta de sua
veiculação. Com um discurso monofonizante, o locutor tenta conduzir o interlocutor a
determinada conclusão, que sugere assim ser a opinião da maioria.
O alocutário também se faz presente por meio do uso do “você”, no 3º filme da
campanha, texto C. “Você”, como já colocado anteriormente, é uma entidade autônoma que,
apesar de se dirigir a um alocutário qualquer, coloca-se como um tratamento personalizante.
Por isso, faz com que ele se aproxime, se sinta parte daquilo que está sendo dito. O
telespectador que vê na TV o filme em que a atriz Paloma Duarte com tom de voz doce e
cúmplice se dirige a ele (“Você pode doar...”) estará mais propenso a pensar que realmente
pode doar algo e ajudar o governo a acabar com a fome no país. O mesmo efeito ocorre com o
uso de “sua” e “seu” na frase “Não é o tamanho da sua
doação que vale, o que vale mesmo é o
tamanho de seu
coração”. Não é a doação de todos ou o coração de qualquer um, é a doação e
o coração do alocutário, telespectador que ouve a mensagem.
As referências espaciais no texto são facilmente percebidas nas palavras “Brasil
”,
“país
” (A2, A6, B1, B9, C1 e C7). Por meio dessas duas marcas lingüísticas que se repetem
nos textos A, B e C, o “lugar” da enunciação está colocado e designa, implicitamente, a
presença do alocutário que, por ser brasileiro, deve identificar-se com o locutor, mais uma
vez. “Brasil” e “país” significam mais do que um espaço geográfico e politicamente definido,
pois é onde o alocutário vive, a nação da qual ele faz parte. A expressão “nosso país”, onde o
102
‘nós inclusivo’ se une à idéia de pátria, ajuda a imbuir o alocutário da mesma idéia patriótica
e cidadã de ajudar o Brasil a vencer a fome.
Já o tempo é marcado no texto de duas formas distintas. Poucas são as alusões ao
passado com as expressões “já feito
” (A2 e B1), “criou” (B1) e “já estava” (A3 e B5). Para
construir o sentido de inovação do Programa Fome Zero, o tempo presente é dominante: “é
(A3, A4, B2, B8 e C3), “são
” (B3), “está” (A2), “come”, “tem fome” (A6, B9, C7), “pode”
(C1 e C2). O gerúndio da expressão “Está começando
” (A2) dá a sensação, a idéia de um
processo, de algo que ocorre e ocorrerá. Da mesma forma, a noção de tempo futuro se
encontra em: “serão” (B3), “nunca mais” (B4), “ajudar o Brasil a vencer
” (C1), “enfrentar
esta guerra” (B5), deixando implícito que o Programa continua e que tem um “futuro”.
B) Modalidades
A análise que se segue relaciona as modalidades encontradas junto com as marcas
lingüísticas que as apontam, procurando conhecer a posição do locutor e conseqüente
construção do sentido da campanha.
O nome e slogan do Programa Fome Zero, encontrados no texto em análise,
merecem ser os primeiros pontos do estudo. “Fome Zero
” é categórico: quer zerar, eliminar a
fome. O slogan que acompanha a logomarca estabelece as personagens e seus papéis na
composição do Programa. Ao colocar “o Brasil que come
”, o texto engloba todo e qualquer
indivíduo que se alimente, não fazendo distinções de idade, sexo, classe social, raça, credo,
nível de escolaridade etc. O mesmo acontece quando o texto “o Brasil que tem fome
” se
refere a todas as pessoas que não têm condições de se alimentar.
A relação entre “os que comem” e “os que têm fome” é estabelecida pela palavra
“ajudando
”, quando o discurso aponta para uma responsabilidade de todos para com todos os
103
outros. A forma verbo-nominal escolhida carrega a idéia de uma ação contínua, “sempre
ajudando”, diferente de “ajudou”, “ajuda”, “ajudará”.
As modalidades assertiva afirmativa e intersubjetiva fazem parte do slogan “O
Brasil que come ajudando o Brasil que tem fome”. O locutor afirma que um Brasil ajuda o
outro (caracterizando operação de asserção), persuadindo o “Brasil que come
” – sujeito do
enunciado – a ajudar.
A mesma modalidade assertiva afirmativa percorre todo o texto D, onde o locutor
repete as expressões “todo mundo tem direito
” e “para todo mundo ter direito”. A primeira
carrega a idéia de que todos podem
lutar por algo e, a segunda expressão, de que todos
poderão
comer se a ação da primeira for cumprida. Então, implicitamente, aparece a
modalidade assertiva hipotética, ao mesmo tempo em que o locutor diz a seu alocutário que a
responsabilidade de proporcionar comida a todos também é dele.
Em A2 e B3, o texto coloca em evidência a idéia de que um projeto como o Fome
Zero, de tamanha grandeza e complexidade, nunca foi feito, ninguém tentou realizar algo tão
difícil antes. Os enunciados contam com as palavras “maior
”, “mais completo” e “mais
importante”, que caracterizam a modalidade apreciativa com a qual foram construídos. As
noções de dificuldade e grandeza permanecem em A3, procurando fazer entender que o
“desafio
” de acabar com a fome é “enorme”. O caráter emergencial (“já estava mais do que na
hora”) e a partilha da responsabilidade (“da gente”) também estão em A3 e B5. Tais marcas
atribuem um valor positivo ao Programa Fome Zero.
A escolha dos modalizadores apreciativos no texto em estudo vem ao encontro do
que Pinto (1999) considera sobre a sedução, que consiste em marcar as pessoas, coisas e
acontecimentos dos enunciados com valores positivos ou eufóricos e negativos ou disfóricos,
podendo até demonstrar uma reação afetiva favorável ou desfavorável a eles.
104
Além disso, a mensagem inicia-se com o esclarecimento sobre o Programa Fome
Zero: o que é, para que serve e quem o criou, atribuindo objetivo e responsável por ele. O fato
de começar o texto com “Para acabar com a Fome no Brasil” dá certo tom de objetividade à
mensagem e o Programa Fome Zero é logo apresentado em B1 como solução para o problema
da fome, previamente colocado (“Para acabar com a Fome no Brasil o novo governo criou o
Fome Zero”).
Como é possível perceber, a modalidade assertiva predomina no texto. A
“certeza” é fundamental para a propaganda, que não pode deixar espaço para dúvidas,
questionamentos e inquietações por parte de seu público-alvo. No caso da campanha do
Programa Fome Zero, onde o objetivo é fazer com que todos acreditem nele e o apóiem, os
conteúdos das relações predicativas são, predominantemente, afirmativos.
São exemplos: “Está começando”; “O desafio de acabar com a fome no Brasil é
enorme e já estava”; “Esta sim é uma guerra que vale a pena.”; “o Brasil que come ajudando o
Brasil que tem fome.”; “o novo governo criou o Fome Zero”; “A sua parte mais importante
são as ações estruturais”; “outras ações que serão desenvolvidas pelo governo nos próximos
quatro anos.”; “para ajudar o Brasil a vencer a fome você pode doar”; “o que vale mesmo é o
tamanho de seu coração.”; “A nossa guerra é contra a fome”.
É possível encontrar apenas dois casos de modalidade assertiva negativa: “O
Fome Zero não é somente a distribuição de alimentos” e “Não é o tamanho da sua doação que
vale”. Ambos os casos presentes em B2 e C3 são seguidos de afirmações, comportando-se
assim como seu complemento, tendo, enfim, uma idéia positiva.
Em C2 e C3, ocorrem duas operações de modalização assertiva, mas também
epistêmica, onde é feita uma avaliação quantitativa da relação predicativa que oscila entre
pouco e muito. Nesse caso, o locutor abre um leque de possibilidades para o alocutário,
dizendo que, seja qual for sua doação, ela será válida: “Para participar do Programa Fome
105
Zero e ajudar o Brasil a vencer a fome você pode doar dez toneladas de feijão, vinte toneladas
de arroz ou apenas um quilo.”, “Você pode doar um milhão ou apenas um real.”.
Ao colocar medidas tão discrepantes para possíveis doações, o texto cria um
universo de participação grande o suficiente para que “o Brasil que come” colabore com o
Programa Fome Zero. O discurso é incentivador, pois participar, ajudar o próximo e ter bons
sentimentos e valores para fazê-lo é mais importante do que o valor da doação: “Não é o
tamanho da sua doação que vale, o que vale mesmo é o tamanho de seu coração.”. Essa frase
também põe à prova a capacidade do receptor em ser bondoso o suficiente para doar,
corroborando um discurso ético e moral, que ninguém pode negar.
Com a interrogação utilizada em B5, o locutor quer que o alocutário valide o
conteúdo do que ele diz. Acredita-se que “não é verdade?
” seja uma asserção disfarçada, pois
assume o sentido de algo como “não concorda comigo?”, presumindo assim que a posição do
locutor já está tomada: ele já sabe que o conteúdo da relação predicativa em B5 é verdadeiro.
Benveniste (1989) ainda coloca que a interrogação é uma enunciação construída para suscitar
uma resposta e, em B5, uma resposta positiva.
Em A5, B6 e B7, C4 e C5, os verbos estão no imperativo: “participe
” e “ligue”.
Recorrendo à ordem ou ao pedido, a voz imperativa reforça o apelo a cada cidadão e
caracteriza uma operação de modalização intersubjetiva. O locutor incide sobre o sujeito do
enunciado (e não sobre a relação predicativa), exercendo pressão sobre ele com uma ordem.
Para dar conta de amenizar o caráter filantrópico que tomou a imagem do
Programa Fome Zero, adquirida em aproximadamente 90 dias de governo (época em que a
campanha começou a veicular na televisão), quando somente as doações aconteceram, o texto
traz clara e diretamente uma resposta em B2. Com a palavra “começo”, o texto deixa o
telespectador atento para ouvir o restante, o “meio” e o “fim”, ou seja, o que o Programa
106
Fome Zero realizará. As demais ações são citadas e destacadas em B4 como mais importantes
que a doação de alimentos, justamente por serem ações estruturais.
A responsabilidade por elas é assumida pelo governo e este tem quatro anos para
implantá-las, o que sugere que não se deve esperar que tudo seja feito de uma só vez e em um
curto espaço de tempo. O objetivo das ações estruturais é que, quem tem fome consiga se
auto-sustentar e não precise mais das doações, sendo esta uma situação idealizada pelo
Programa.
Vale a pena destacar também algumas estratégias utilizadas na campanha
televisiva do Programa Fome Zero que, apesar de não serem o principal objeto de estudo
deste trabalho, têm papel fundamental na persuasão de seu público-alvo.
Primeiramente, é possível perceber certo apelo à sonoridade. Para Breton (1999),
ritmos convincentes e uma sonoridade agradável criam um sentimento de evidência quando
da recepção do texto. A repetição da palavra Brasil e a rima “fome/come” dão ao texto o
caráter sonoro agradável citado acima. O número do telefone é dito de maneira clara e de fácil
memorização, sendo dividido em três partes: “zero oitocentos/ sete zero sete/ dois mil e três”.
A campanha midiática televisiva colocou seus três filmes em ordem
estrategicamente persuasiva. O primeiro filme chama a atenção da população e desperta a
curiosidade para uma ação do governo que será “o maior e mais completo programa contra a
fome já feito em nosso país”. O segundo filme fala ao telespectador de forma racional,
explicando o que é o Programa, qual seu objetivo e ações do governo. Já o terceiro se
apresenta marcado de apelos emocionais, fazendo com que, depois de ficar curioso e receber
informações, o público tome a decisão de participar do Fome Zero.
As imagens também são ponto importante da estratégia persuasiva adotada na
campanha do Programa Fome Zero. Abaixo, segue uma descrição das imagens dos três filmes
107
publicitários em estudo e algumas observações feitas com o intuito de colaborar para a
compreensão da construção do sentido de toda a campanha.
O primeiro filme se passa num lugar gramado, com dia claro, onde pessoas de
faixas etárias e raças diferentes, vestidas de branco e descalças correm juntas e sorridentes.
Carregam acima de suas cabeças um imenso tecido retangular verde e o estendem no chão.
Por cima deste, outras pessoas carregam e estendem um tecido amarelo em forma de losango
e, logo por cima deste, homens carregam e estendem da mesma forma um prato azul de
dezoito metros de diâmetro e um garfo e uma faca de cinco metros de comprimento, que
colocam sobre o prato.
Fazendo isso, as pessoas se aproximam em clima de satisfação. Em seguida, todas
elas se juntam a outras centenas em torno da gigantesca figura formada no chão. Tal figura,
que parece ser uma mesa posta para uma refeição, assemelha-se à bandeira brasileira e é
cercada pela massa de pessoas que comemoram e vibram.
As personagens são das mais variadas idades e raças, mostrando que todos, sem
distinções, participam da ação no filme e, portanto, podem participar do Programa Fome Zero.
Elas estão sorridentes, felizes em estar ali. Unidas, se ajudam a carregar os tecidos, prato e
talheres que formam a imensa figura da bandeira brasileira. Os objetos são enormes, fazendo
uma alusão ao tamanho do “desafio” de acabar com a fome. Somente com tantas pessoas
ajudando é possível montar a mesa para uma refeição para o Brasil. Após conseguir preparar a
mesa, centenas de personagens comemoram por alcançarem seu objetivo.
O aparecimento da logomarca, que traz os talheres em posição que representa uma
refeição feita, fecha o filme. Em suma, o discurso é de que a participação de todos é condição
sine qua non para que o Programa dê certo, pois há muito o que fazer.
O segundo filme conta com a participação do ator Antônio Fagundes, que está em
primeiro plano à frente de um fundo branco. Também vestido de branco, Fagundes, que é
108
filmado da cintura para cima, fala gesticulando levemente. O foco se aproxima lentamente do
rosto do ator no decorrer do filme.
Ao pedir para que a população participe, o número do telefone o substitui no
primeiro plano sobre o fundo branco. Ao retornar, Fagundes abre a camisa branca e mostra
uma outra usada por baixo, contendo a logomarca do Programa Fome Zero, com a seguinte
mensagem: “Nossa guerra é contra fome”. Ao fazer isso, Fagundes diz: “Essa sim é uma
guerra que vale a pena”. Para encerrar o filme, a logomarca com o slogan da campanha surge
em primeiro plano e é feita a sua leitura pelo narrador.
Passando por um período de muitos trabalhos na televisão e cinema brasileiros,
Fagundes tem uma imagem popular e seu talento tem sido amplamente reconhecido. Destaca-
se entre seus trabalhos recentes sua participação em “Carga Pesada”, seriado da TV Globo em
que atua como pessoa de ‘bom coração’ e seu papel de Deus, no filme “Deus é Brasileiro”,
lançado no início de 2003 e assistido por milhares de pessoas em todo o país. O ator empresta,
então, sua imagem positiva e respeitável à mensagem e, conseqüentemente, ao Programa
Fome Zero, por ser um de seus “garotos-propaganda”.
Por estar vestido de branco à frente de um fundo também branco, a atenção do
receptor se concentra no rosto do ator, aumentando as chances de focalizar sua atenção ao que
Fagundes diz. Com voz serena, o ator fala enquanto a câmera se aproxima lentamente de seu
rosto, “aproximando-o” também do telespectador e vice-versa. Quando a câmera se afasta,
Fagundes abre a camisa e mostra a camiseta que usa com a logomarca e slogan da campanha,
sugerindo que ele “vestiu a camisa”, defende e participa, “carregando no peito” a causa do
Programa Fome Zero.
Como o ator Antônio Fagundes, Paloma Duarte está vestida de branco, não usa
jóias e enfeites e se encontra à frente de um fundo branco no terceiro filme em análise. Da
mesma forma, o foco se aproxima lentamente do rosto da atriz no decorrer do filme. Ao pedir
109
para que a população participe, o número do telefone a substitui no primeiro plano sobre o
fundo branco. Ao retornar, a atriz abre a jaqueta branca e mostra a camiseta com a logomarca
do Programa Fome Zero e a seguinte mensagem: “Nossa guerra é contra a fome”. Ao fazer
isso, Paloma Duarte pronuncia a mensagem da camiseta.
De maior apelo emotivo que os demais, este filme destaca como qualquer pessoa
pode ajudar, conforme suas possibilidades. A análise das imagens é muito semelhante à
análise do filme anterior. Porém, a imagem de uma mulher de voz doce e suave tem maior
identificação com a mensagem que pede doações para ajudar as pessoas, dando ênfase à
capacidade e importância de se ter bons sentimentos pelo próximo.
É possível perceber, no decorrer das análises, que o caráter ambíguo do discurso
da campanha televisiva – que é polifônico, mas se “faz” monofônico – colabora para que o
telespectador se sinta convencido, seduzido a participar do Programa Fome Zero. Por meio de
informações e pedidos feitos com carisma e solicitamente, verdades e valores são colocados
como inquestionáveis: o apelo se mostra assim autoritário.
Dessa forma, o discurso não deixa espaço para o interlocutor. Mas não é esse
mesmo o papel da propaganda? A modalização também colabora para a construção do
significado, do sentido de todo o discurso que permeia a campanha: o governo é corajoso e
inovador, promove uma ação muito grande e precisa da ajuda de todos para colocá-la em
prática.
Essa ajuda é quase obrigatória, pois é moral, coloca em questão que o ideal de
justiça social é para o bem de todos. Todos vão participar porque ter um coração bom, ajudar
e amar o próximo são valores do ser humano, valores de um povo cristão, fazendo alusão
aqui, à ética católica, principalmente. Fazer doações é um ato de amor e responsabilidade pelo
próximo.
110
Investigadas as mensagens midiáticas que compõem a campanha do Fome Zero,
abarcou-se uma parte do processo de comunicação: o esforço do emissor, chamado aqui de
locutor, em induzir o receptor a seu favor. Porém, não só as estratégias adotadas pelo emissor
são responsáveis pelo processo de significação, que acaba de ser instituído no momento da
recepção.
Por isso, vale a pena procurar conhecer a opinião do receptor, tratado por
alocutário, para tornar mais completa a análise final proposta neste trabalho: a campanha do
Programa Fome Zero atingiu seus objetivos; criou uma solidariedade e participação cidadã?
Para averiguar a recepção da campanha e o conseqüente envolvimento com o Fome Zero,
foram escolhidas pessoas que, do ponto de vista estratégico do Programa, são peças
fundamentais para a formação da opinião pública.
4.2 O Programa Fome Zero em Bauru
Em uma campanha de construção social, Halliday (1996) destaca a importância da
qualidade da retórica institucional para convencer seu público a colaborar com os objetivos da
campanha. No item anterior, foram estudadas as estratégias lingüísticas da propaganda do
Fome Zero. Agora, faz-se, por meio de uma pesquisa de campo, uma análise do discurso
daqueles que lidam com a implementação do Programa na cidade de Bauru/SP. Dessa forma,
pretende-se obter informações sobre o Fome Zero na cidade e, mais do que isso, verificar se o
discurso destes formadores de opinião se equivale ao da campanha e se, de acordo com sua
experiência, podem dizer se a população se sente persuadida por ela.
Em 2004, um ano após o lançamento da campanha midiática do Fome Zero, foram
escolhidos para a entrevista o vereador do PT, José Carlos de Souza Pereira, a Secretária
111
Municipal de Bem-estar Social, Darlene Martin Têndulo, a gerente de treinamento e
desenvolvimento dos Correios Regional Bauru, Sandra Fiordoliva, a coordenadora do
Comitê de Voluntariado e Cidadania dos Correios – Regional Bauru, Vanessa Carbone, e
outra funcionária da mesma empresa, Magda Cruciol.
Responsável pela oposição ao governo na Câmara Municipal, onde era o único
representante do partido do Presidente Lula, o vereador José Carlos de Souza Pereira, mais
conhecido como José Carlos Batata, pode ser considerado o porta-voz do Fome Zero na
cidade. Parte dele a iniciativa de criar o Consea e o Fundo de Segurança Alimentar
municipais, respectivamente gestor e armazenador do dinheiro para o Fome Zero em Bauru.
Atribuiu-se a responsabilidade de conhecer a realidade social de Bauru àquele que
ocupa a Secretaria Municipal de Bem-estar Social. Seu papel englobaria as ações de
distribuição das doações na cidade, com apoio logístico e informacional, e a participação em
órgãos como o Consea – Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional – que
cuida da gestão das políticas do Programa na cidade. Por isso, a Secretária Darlene Têndulo
foi entrevistada.
Já Sandra Fiordoliva e Vanessa Carbone organizaram, junto com uma equipe dos
Correios, uma grande campanha de arrecadação de alimentos em apoio ao Fome Zero. Essa
iniciativa foi tomada por várias regionais da empresa e, em Bauru, contou com auxílio de
mais de 400 funcionários voluntários. A campanha “Carteiro Solidário” percorreu, no
domingo 27 de julho de 2003, um terço da cidade e arrecadou 17 toneladas de alimentos.
Voluntária dessa campanha de arrecadação em prol da população bauruense,
Magda Cruciol, a quarta entrevistada deste trabalho, teve contato com o público em duas
ocasiões importantes: na coleta dos alimentos, quando os moradores dos bairros atingidos pela
campanha faziam suas doações, e na entrega dos alimentos às entidades que deles
necessitavam.
112
A técnica utilizada para a pesquisa foi a entrevista em profundidade semi-
estruturada. Um esquema de perguntas serviu de roteiro para a entrevista, mas deu chance aos
entrevistados para comentarem sobre assuntos pertinentes. Para facilitar o estudo das
entrevistas, que foram longas em virtude da repetição de algumas informações, encontram-se
no quadro abaixo as principais colocações dos entrevistados, aquelas que expressam e
resumem as idéias sobre a fome no Brasil, o Programa Fome Zero, o Fome Zero em Bauru, a
campanha midiática do Programa e a participação popular.
Com o intuito de averiguar se houve acontecimentos determinantes com relação
ao Fome Zero em Bauru, de 2004 a 2005, os entrevistados foram novamente procurados.
Foram questionados sobre o andamento do Programa na cidade e sobre a participação popular
no período. Responderam as entrevistadas Magda Cruciol e Vanessa Carbone. Os pontos
principais desta segunda pesquisa encontram-se junto aos dados da primeira, na mesma
tabela, porém, sendo evidenciados em virtude da coleta realizada em 2005.
Tabela E: Pontos do depoimento do vereador José Carlos Batata
E1
“Uma das idéias centrais do programa de governo do PT na campanha é erradicar a
miséria, a pobreza, a fome no Brasil como um todo, o que ainda é objetivo nosso.
E2
O Programa Fome Zero criou condições para dar comida para quem está com fome
mas, ao mesmo tempo, dá oportunidade para quem estiver desempregado seja
encaminhado para um emprego, quem não tiver qualificação entre num programa de
qualificação para ir para o mercado de trabalho.
E3
Diminuir a diferença entre ricos e pobres para as pessoas viverem melhor, essa é a
nossa política, melhor distribuição de renda.
E4
Acham que é só arrecadar e distribuir alimento, mas não é só isso, ele vai muito mais
além.
E5
Bauru não recebeu no ano passado um recurso do governo federal porque não tinha
o Conselho de Segurança Alimentar criado na cidade e, enquanto isso, quem sofre é
a população.
113
E6
Nós criamos no ano passado em Bauru o Conselho de Segurança Alimentar e,
acoplado ao conselho, o Fundo de Segurança Alimentar, que é justamente para
começar a receber recursos do governo federal e de doações que porventura venham
da cidade.
E7
As pessoas que têm mais consciência ideológica, cobram mais, não querem que o
Fome Zero seja apenas uma política compensatória, que não é o que queremos.
E8
Estudantes nos procuram para saber como podem ajudar, mas não sabem como.
E9
O Fome Zero precisa ser mais implementado, agilizado: houve muita propaganda,
mas o programa patinou.
E10
Houve muitas doações porque tem a participação da sociedade civil e por ser a fome
uma necessidade imediata. A pessoa tem que comer, senão ela morre.
E11
Não me recordo das propagandas com artistas, eram vários, mas não me lembro. Foi
há muito tempo.”
Demonstrando coerência com os pressupostos ideológicos de seu partido, o PT,
Batata destaca que erradicar a fome e a pobreza é objetivo também dele (E1). Espera-se tal
postura de um partidário petista que assume a responsabilidade de ser o articulador político do
Programa Fome Zero na cidade de Bauru.
É possível averiguar que o vereador defende todas as políticas do Programa Fome
Zero (E2). Conhece os planos do Programa, pois sabe da importância de se estabelecer
políticas públicas de geração de emprego e renda, mas não deixa de considerar fundamentais
as políticas emergenciais, implementadas por meio das doações.
O vereador assume posição de apoio à campanha do Fome Zero que pede à
população que doe alimentos e dinheiro para matar a fome de quem não tem sequer condições
de se alimentar (E10). Porém, enfatiza que as políticas compensatórias não são o objetivo do
Programa, nem de seu grupo político (E7).
Sobre a opinião pública em geral, o vereador diz que esta acredita que o Programa
Fome Zero é constituído, basicamente, pelas políticas emergenciais de doação (E4). Apesar de
114
deixar claro que existem muitas outras ações, a idéia de que as doações se sobressaem é fato e
preocupa o entrevistado.
José Carlos Batata ainda afirma que as doações foram volumosas na cidade. Ele
acredita que a população sabe da urgência necessária ao ajudar aqueles que passam fome, pois
o ato de doar é imediato e dá conta de uma situação que deve ser solucionada imediatamente.
Por isso, diz que a sociedade civil bauruense é bastante participativa, elevando o número de
doações (E10).
Procurando lembrar o cerne das políticas sociais do PT, o vereador enfatiza que a
melhor maneira de acabar com a fome é uma melhor distribuição de renda (E3),
demonstrando mais uma vez estar de acordo com as idéias de seu partido e ter certa
consciência sócio-política.
Apesar do apoio ao Fome Zero, José Carlos Batata fez também algumas críticas
ao Programa. Tais críticas coincidem com aquelas apontadas no capítulo 3, veiculadas na
época na grande maioria dos meios de comunicação de massa. A falta de uma melhor
implementação e a lentidão com que as ações são efetivadas destacam-se entre as
preocupações do vereador (E9).
Sobre a campanha midiática do Fome Zero, o entrevistado aponta para a
intensidade com que propaganda foi veiculada (E9). De acordo com a maneira como se
expressa, é possível concluir que o vereador acredita que, com tanta propaganda, era para o
programa ter dado certo; mas isso não aconteceu.
Ao mesmo tempo em que destaca a intensidade e a quantidade de propagandas
usadas pelo governo, José Carlos Batata afirma que os estudantes que o procuram com o
intuito de ajudar o Programa não têm informação suficiente para isso, o procuram para se
informar (E8). Com isso, cabe dizer que as propagandas não informaram adequadamente a
população.
115
Ainda sobre as propagandas do Fome Zero, o entrevistado afirmou não se lembrar
delas (E11). Atribuindo a razão disso ao tempo que havia passado entre a campanha midiática
e o momento da entrevista, José Carlos Batata evidencia outro ponto importante: a campanha
foi veiculada por um curto período e não houve, por parte do governo federal, outra iniciativa
capaz de manter o tema em evidência na mídia e na vida das pessoas.
Com relação à implementação do Fome Zero em Bauru, o vereador alerta para o
fato da cidade já ter perdido recursos do Programa disponibilizados pelo governo federal e diz
que a iniciativa que o legislativo devia tomar, já havia sido concretizada, que era criar o
CONSEA e o Fundo de Segurança Alimentar (E5 e E6).
Além disso, fica claro que a população de Bauru precisa dos resultados do
Programa, que existem pessoas na cidade que se encontram em situação de vulnerabilidade e
risco social. O vereador não faz colocações com relação à imagem do governo municipal ou
federal quando toca nas falhas do Programa, mas sim, no sofrimento da população que ainda
não recebeu os benefícios (E5).
Tabela F: Pontos do depoimento de Darlene Têndulo
F1 “A população está cada vez empobrecendo mais.
F2
No Brasil, há uns anos atrás, nós tínhamos 32 milhões de pobres, agora nós temos 52
milhões.
F3
Se não houver uma mudança, em 2025 nós teremos metade da população do mundo
passando fome.
F4
O governo Fernando Henrique disse que combateu isso e combateu aquilo. De 32
milhões, ampliou para 52 milhões. Então, do meu ponto de vista, não combateu nada.
Uma política esmagatória de gente, estou falando de gente sendo esmagada.
F5
Muitos aspectos do Programa Fome Zero precisam ser melhorados. A
operacionalização não é tão simples assim.
F6
O Programa em si tem um efeito extremamente positivo, mas precisaria ser melhor
agilizado, mas como tudo que se cria precisa de ajustes para que possa dar certo, eu
116
espero que realmente dê.
F7
O governo federal, no meu ponto de vista, falhou aí também, na operacionalização.
Não subsidiou totalmente as prefeituras e não deu nenhuma verba para a
operacionalização. Com nenhuma verba, depende muito da vontade política de todos
os envolvidos na questão social em querer fazer, em driblarmos a dificuldade para
que a população tenha esse atendimento.
F8
[...] a população reclamava por uma emergência do atendimento e estava correta.
Tem o direito de receber imediatamente.
F9
O impacto da televisão foi grande, disponibilizou os telefones, o que ajudou na
divulgação de um lado positivo, mas, como não explicou bem, causou um certo furor
na população porque ela não sabia muito bem o que estava acontecendo.
F10 A campanha despertou a população, as pessoas começaram a discutir o assunto.
F11
O programa gera a oportunidade do conhecimento, não é um programa fechado onde
só o governo diz o que tem que fazer, a população se manifesta, participa da gestão
do programa no município. Isso faz com que avancemos sobre o conhecimento da
pobreza.
F12
Ao fazer uma campanha, o público-alvo do seu atendimento, muitas vezes, não será
atendido imediatamente e isso causa um certo transtorno para quem tem que
operacionalizar, porque você não tem exatamente aquilo a ser oferecido do jeito que
está sendo colocado.
F13 Bauru é uma cidade muito solidária.
F14
Nós temos os parceiros de sempre, mas vêm se somando outros novos, além de
empresas, cidadãos, até aquelas pessoas com dificuldade acabaram oferecendo
ajuda.”
A Secretária Municipal de Bem-estar Social mostra conhecimento sobre a
problemática da fome no país e no mundo ao citar números e a evolução do quadro de
pobreza nos últimos anos. Compartilha da idéia de que algo precisa ser feito para que a
situação social que encontra hoje não se agrave ainda mais (F1, F2 e F3).
Demonstrando certa consciência sócio-política, (F4) Darlene Têndulo toma
postura crítica diante do governo de Fernando Henrique Cardoso que, segundo ela, não soube
117
combater a fome e a miséria no Brasil, já que as estatísticas comprovam o aumento
significativo do número de pobres no país. Ao usar o termo “gente sendo esmagada”, a
entrevistada permite uma interpretação: além do envolvimento profissional com a população
em situação de risco social que seu cargo exige, parece estar envolvida emocionalmente com
tal realidade, mostrando indignação diante dela.
Então, Darlene Têndulo reconhece o direito do cidadão em obter os benefícios do
Programa Fome Zero com agilidade, tendo em vista a urgência com que suas necessidades
devem ser atendidas (F8). Diz que o cidadão que precisa do atendimento está certo em exigir
rapidez.
Porém, a Secretária Municipal aponta alguns problemas que inviabilizaram esse
atendimento imediato. Faz críticas diretas ao governo federal quanto à operacionalização do
Programa Fome Zero, que precisa das prefeituras para dar certo. Diz ainda que faltaram
subsídios e, com nenhuma verba, as ações ligadas ao Programa foram efetivadas com as
verbas já existentes no município dedicadas à área social (F7).
A entrevistada destaca ainda que a vontade política do governo municipal, de
todos ligados ao Fome Zero e, de maneira geral, à questão social em Bauru, foi fundamental
para vencer todas as dificuldades da operacionalização do Programa na cidade. Dificuldades
essas constituídas por falta de planejamento do governo federal que não orientou e subsidiou
adequadamente as prefeituras (F7).
A Secretária Municipal de Bem-estar Social admite que o Fome Zero tem efeitos
muito positivos, mas não se mostrou apática diante das falhas que verifica, como já apontado
anteriormente. Além dos problemas de operacionalização do Programa, Darlene Têndulo
demonstra preocupação com a expectativa criada pela campanha midiática do Fome Zero. Ela
diz que, ao ver as propagandas, a população que necessita dos benefícios do Programa
procura imediatamente o poder público para recebê-los. Por causa da falta de planejamento do
118
governo federal, essas pessoas não encontraram o que a propaganda dizia que estava sendo
oferecido a eles(F12).
Ainda sobre a campanha, Darlene Têndulo aponta o poder da televisão, sendo esse
o único meio de comunicação de massa citado por ela. Considera ainda que foi bom divulgar
os telefones para as doações e mostrar à sociedade os aspectos positivos do Fome Zero.
Porém, destaca que o grau de informação da campanha midiática não foi o ideal. Produziu o
impacto, provocou a curiosidade, mas não forneceu as informações necessárias para o
esclarecimento da população, principalmente, daquela que necessita do Programa (F9).
Por outro lado, a entrevistada coloca que a campanha levantou o debate sobre a
problemática da fome. Despertando a atenção da sociedade para o assunto, Darlene Têndulo
acredita que a campanha midiática do Programa Fome Zero favorece a luta contra a fome no
Brasil (F10).
Apesar de fazer críticas ao Programa, a Secretária Municipal de Bem-estar Social
de Bauru evidencia o caráter participativo do Fome Zero. Sua opinião é de que o governo
federal fez com que a gestão do Programa contasse com a participação da sociedade civil,
além da esfera pública. Para ela, isso faz do Fome Zero um programa aberto a sugestões e
debates, o que propicia discussões importantes para o conhecimento e combate à fome (F11).
Darlene Têndulo reforça ainda que a população de Bauru é muito solidária, muitos
são os parceiros no combate à fome na cidade. Em virtude do movimento de solidariedade
que encontra evidenciado nas campanhas de arrecadação, a entrevistada diz que até mesmo
aqueles que passam por dificuldades acabam ajudando. Por esses motivos, campanhas de
doação dão certo na cidade (F13 e F14).
Enfim, Darlene Têndulo acha que o Programa Fome Zero é uma iniciativa
positiva e necessária. Consegue visualizar suas falhas, diz que ele precisa de ajustes e de
agilidade. Porém, tem esperança e deseja que o Programa dê certo (F6).
119
Tabela G: Pontos do depoimento de Sandra Fiordoliva e Vanessa Carbone
G1
“Estamos só minimizando uma situação de pobreza decorrente de problema de
educação, de falta de emprego, de saúde, que é um problema que tem a ver com uma
política governamental.
G2
O Fome Zero, basicamente, não saiu do papel, em termos de programa de governo,
não atingiu nada, a gente não viu resultado.
G3
No ano passado, a gente estava vivendo um momento no país um pouquinho
diferente, então, a gente ainda conseguiu sensibilizar a população para o projeto. Esse
ano, eu já não saberia te dizer se a gente consegue sensibilizar tanto.
G4
Precisa tomar cuidado porque esse tipo de ação tem que estar desvinculada de
qualquer ato ou ação política.
G5
No Programa Fome Zero, as agências dos Correios já são postos de arrecadação. Só
que a gente achou que isso era muito pouco, que deveria estar ampliando essa
participação. Essa campanha surgiu em função do programa do governo, Fome Zero.
Os Correios, como empresa cidadã, não poderiam ficar isentos dessa participação.
G6
Mais fácil do que a pessoa vir até as agências dos Correios e entregar o alimento é
alguém passar na sua porta e recolher. Por isso, fizemos a campanha “Carteiro
Solidário”.
G7
A gente já vem desenvolvendo alguns trabalhos de campanha de arrecadação de
alimentos há alguns anos, só que eram ações isoladas.
G8
Como já havia sido entregue o folder falando que iria passar naquele dia, naquele
horário, as pessoas já tinham tudo pronto, já estava o alimento em sacolinha, tinha
gente esperando na porta. Foi muito interessante o envolvimento, o
comprometimento da população. Chegamos a arrecadar quase 17 toneladas de
alimentos.
G9
Se a gente fizer campanhas de arrecadação, em períodos muito próximos, aqui em
Bauru a gente acaba não tendo a adesão que a gente teve da primeira vez.
G10
Hoje, o povo está sendo muito solicitado a participar de campanhas, a ser voluntário,
a se engajar; então se você começa a ter várias ações na mesma cidade, próximas, aí
há o desgaste. O pessoal compra a idéia, as pessoas se envolvem; mas a gente só
precisa ter esse cuidado de não desgastar.
120
G11
As doações na agência estão diminuindo, no começo nós tivemos um “boom” de
arrecadação.
G12
Responsabilidade social faz com que você saia dessa zona de conforto, não é mais eu
trazer o dinheiro ou um quilo de alimento, mas é eu mudar a minha postura, mudar
minha atitude, ter uma participação muito mais efetiva na sociedade e na própria
empresa em que a gente trabalha.”
Em 2005
G13
“Já realizamos outra campanha em Bauru, no dia 14/08/2004, arrecadando 6.845
quilos de alimentos.
G14
Acredito que o Programa Fome Zero já caiu no esquecimento por parte da população.
E isso é culpa do próprio governo, porque não tem divulgado o Programa na mídia e
também não tem trabalhado as outras frentes de atuação do Programa.
G15
O governo tem feito algo a respeito, como a Farmácia Popular do Brasil, Bolsa
Família, Restaurante Popular, entre outros. Mas não vejo a vinculação desses
Projetos com o Programa Fome Zero.
G16
As arrecadações nos postos permanentes de coleta de alimentos das nossas agências
diminuíram. Em 2003, arrecadamos em Bauru 119.910 quilos de alimentos e, em
2004, apenas 39.408. Em Bauru, as arrecadações caíram consideravelmente. Esse
ano, o número é ainda menor. Até 31/06/2005, em Bauru, arrecadamos 28.099 quilos
de alimentos.
G17
Ao meu ver, as pessoas participam dessas ações pelo sentimento de solidariedade que
possuem. Contudo, não diria que as pessoas fazem as doações pela visão política e
crítica da realidade do nosso município e da sociedade como um todo.
G18
Como não há muitas ações, não há divulgação e não havendo divulgação, não há
como a população conhecer e formular sua opinião crítica e politizada a respeito da
fome e da pobreza no município.”
Como responsáveis pelas ações sociais dos Correios, Sandra Fiordoliva e Vanessa
Carbone demonstram estar atentas às razões estruturais às quais se pode atribuir as situações
de risco no Brasil (G1). Ao dizer que as campanhas de arrecadação que realizam apenas
minimizam os problemas enfrentados pela população que delas necessitam, as entrevistadas
parecem ter conhecimento da realidade social do país e dos fatores que implicam na
121
manutenção dessa realidade, apontando, inclusive, a responsabilidade que tem o governo
diante dela. Fica claro aí que, na opinião de Sandra Fiordoliva e Vanessa Carbone, o governo
deveria dar conta dos problemas sociais e que, acima de tudo, o trabalho que elas realizam
não os resolve, mas apenas ajuda.
Com relação ao Programa Fome Zero, as profissionais fazem críticas, mas sem se
aprofundar no assunto. Porém, com a declaração encontrada em G2, é possível entender que,
para elas, o Programa Fome Zero não deu certo enquanto política governamental. Mas fica
implícito que, enquanto campanha de arrecadação, que exige a participação da sociedade, algo
tem sido feito.
Também chamam atenção para o aspecto político do Programa, dizendo que a
possibilidade de sucesso de ações de sensibilização popular aumentam caso estejam
desvinculadas de assuntos políticos. Acredita-se que Sandra Fiordoliva e Vanessa Carbone
referiam-se ao sentido eleitoreiro que porventura a campanha possa vir a tomar. Vale lembrar
que o Fome Zero começou a ser divulgado justamente na campanha de Lula à Presidência da
República, ligando o Programa à eleição, o que não seria positivo, na opinião das
entrevistadas, se voltasse a acontecer (G3 e G4).
As entrevistadas destacam que a empresa é uma organização cidadã (G5 e G7),
pois já realizava campanhas de arrecadação de alimentos. Eram ações isoladas, mas que não
deixavam de fazer com que os Correios se considerassem uma empresa cidadã.
Porém, a participação dos Correios no Programa Fome Zero foi destaque no
depoimento. Como empresa pública, os Correios já participavam do Programa. Nas unidades
espalhadas por todo o país, haviam postos de arrecadação de alimentos. Porém, impulsionada
pelo Fome Zero, a empresa decidiu fazer um pouco mais, realizando grandes campanhas de
arrecadação de alimentos em diversas cidades (G5).
122
A visão de empresa cidadã vem acompanhada da idéia de que é mais fácil doar
quando não é necessário se deslocar para fazê-lo (G6). Tudo isso fez com que os Correios
realizassem a grande campanha “Carteiro Solidário”.
A organização da campanha é evidente (G8). A população foi comunicada e
incentivada a participar e tinha informações sobre a campanha, pois sabia quando a coleta
seria realizada. As entrevistadas também fizeram considerações sobre a participação da
população na campanha “Carteiro Solidário”, onde puderam presenciar atitudes de
solidariedade e vontade de participar, quando encontraram muitas pessoas esperando para
entregar os alimentos. O depoimento mostra ainda que as pessoas puderam se organizar,
empacotando a doação.
Sandra Fiordoliva e Vanessa Carbone enfatizam que têm sucesso nas campanhas
de arrecadação na cidade (G8), manifestando opinião semelhante aos outros entrevistados,
José Carlos Batata e Darlene Têndulo. Entretanto, colocam uma ressalva: desde que
campanhas como essas não sejam realizadas em períodos de intervalo curtos. As entrevistadas
dizem que a população está sendo muito solicitada atualmente. Isso aponta para a crescente
organização e participação da sociedade civil em movimentos em prol das comunidades
carentes. Parece que a opinião das entrevistadas é de que a população não pode ajudar com
tanta freqüência. Então, afirmam que campanhas como essa não podem ser feitas
repetidamente, sem intervalos de tempo capazes de não fazer com que a população desanime
de contribuir (G9 e G10).
Comprovando essa idéia, Sandra Fiordoliva e Vanessa Carbone informam que o
número de doações entregues nos postos de arrecadação das agências é menor em 2004 do
que em 2003 (G11). Apresentam os dados completos que provam essa queda (G16) que é
ainda maior em 2005. Outro dado que se ajusta à idéia de desgaste da participação da
população se refere à segunda campanha que a empresa realizou em apoio ao Fome Zero.
123
Enquanto a primeira arrecadou aproximadamente 17 toneladas de alimentos (G8), a segunda
campanha, realizada em 14/08/04, não chegou a arrecadar 7 toneladas (G13).
Essa queda pode ser atribuída ao desgaste apontado pelas entrevistadas e também
a um momento diferente: em 2003, a mídia mantinha o Programa Fome Zero em evidência. A
campanha midiática televisiva e toda a cobertura jornalística do Programa faziam com que as
pessoas estivessem sempre em contato com o assunto, a população estava “ouvindo falar”
dele, o que possibilitava a discussão da problemática da fome. Para Vanessa Carbone, o Fome
Zero não é mais lembrado atualmente (G14) por duas razões: falta de campanhas de
sensibilização e divulgação do governo, e a forma inadequada de trabalhar na mídia as outras
frentes de trabalho do Programa, referindo-se às suas políticas estruturais.
Sobre esse aspecto, Vanessa Carbone diz ainda que algumas das políticas
estruturais do Fome Zero estão sendo viabilizadas, mas aparecem na mídia como ações
isoladas do governo. São ações do Programa Fome Zero e, no entanto, deveriam estar
vinculadas a ele na ocasião de sua divulgação. Mas, de acordo com a entrevistada, não é isso
o que acontece (G15).
Vanessa Carbone destaca novamente o papel da mídia ao colocar que, sem ações
de combate à pobreza por parte do governo e sem sua devida divulgação, a população não
recebe informações sobre o assunto. Conseqüentemente, não pode discutir o problema da
fome, menos ainda, formar uma opinião politizada sobre ele (G18). Ao tomar conhecimento
de ações sociais, a população talvez tivesse condições de promover o debate necessário para
formar tal opinião.
As entrevistadas ainda fazem uma alusão ao conceito de responsabilidade social e
como ela pode fazer parte da vida das pessoas, como é importante a participação dos
cidadãos. Elas acreditam que essa consciência não é provocada pela doação, mas sim
124
caracterizada por uma mudança de postura diante dos problemas que a sociedade enfrenta
(G12).
Vanessa Carbone diz que a solidariedade é o sentimento pelo qual as pessoas
participam de campanhas pelo bem do próximo. Entretanto, afirma que ao fazer doações, a
população não tem, necessariamente, uma visão politizada e crítica da realidade em que se
encontra (G17).
Fica claro também que, na efervescência do tema, época da campanha midiática
do Programa Fome Zero, as doações aconteceram. Porém, com o tempo, a mídia deixou de
destacar o Fome Zero e as doações diminuíram. Pode ficar aqui caracterizado o poder da
mídia e a influência da campanha midiática do Programa, analisada no presente trabalho.
Tabela H: Pontos do depoimento com Magda Cruciol
H1 “Fiquei sabendo sobre o Fome Zero pela TV e depois pelo site.
H2
Me lembro da campanha do Programa Fome Zero que passou na televisão; vamos
ajudar o Brasil que tem fome, acho que era mais ou menos isso.
H3
Os voluntários, quando questionados sobre a campanha, sempre tinham uma história
alegre para contar; diziam que as pessoas agradeciam a iniciativa dos Correios,
convidava-os para tomar café, sendo, a maioria, solícita e pronta a atender ao pedido.
H4
As áreas mais abastadas não atendiam, ou diziam que não tinham nenhum alimento,
enquanto as pessoas que moravam em casas mais simples, estavam sempre dispostas
a ajudar.
H5
A campanha de arrecadação que fizemos foi uma ação que envolveu as pessoas,
fazendo com que as mesmas questionassem as possíveis soluções para o problema da
fome, mas se torna inviável uma campanha como essa ser alternativa para acabar com
a fome.
H6
Toda ação que envolve solidariedade tem seu peso e sua influência, mais em uns,
menos em outros, mas não deixa de ser uma alternativa para a mobilização e
conscientização das pessoas.”
Em 2005
125
H7
“Na minha opinião, a maioria das pessoas está longe de ter uma opinião consistente
sobre o problema da fome.
H8
Sobre o que tem sido feito, não se trata de uma campanha e sim de atividades
isoladas.
H9
É fácil sentir-se solidário a uma situação, é até necessário, pois você pensa: poderia
ser comigo, e acaba aí. Não há uma reflexão sobre o problema da miséria e sua
solução.
H10
Há uma ajuda que mantém a situação num nível controlável, um prato de comida
soluciona aquela situação que presenciamos, mas sobre a solução definitiva, as
pessoas pensam que não cabe a elas.
H11 A prática é assistencialista, pouco articulada e não vejo resultados concretos.
O que diferencia Magda Cruciol dos demais é o fato de ser uma voluntária e ter
vivido momentos de arrecadação e doação na campanha “Carteiro Solidário”, realizada em
apoio ao Fome Zero em Bauru. A entrevistada teve o primeiro contato com a campanha
midiática do Programa Fome Zero pela TV, da qual consegue se lembrar de parte do slogan,
demonstrando que a campanha pode ter alcançado seu objetivo de influenciar a população
(H1).
Porém, o depoimento de Magda Cruciol corrobora a opinião dos demais
entrevistados no tocante à falta de informações na campanha midiática. Ao ter seu interesse
despertado pela campanha, Magda Cruciol precisou procurar o site oficial do Programa Fome
Zero para obter mais conhecimento sobre ele (H2).
Sobre a ocasião da campanha de arrecadação dos Correios, Magda Cruciol faz
comentários que evidenciam o lado solidário de grande parte da área atingida pela campanha
(H3), destacado o bom relacionamento dos carteiros com a comunidade e atitudes de
agradecimento e cortesia da população para com eles.
A entrevistada ainda destaca que a população de maior renda apresentou menor
disponibilidade de ajudar na campanha “Carteiro Solidário” (H4), enquanto as pessoas que
126
moravam “em casas mais simples”, onde se supõe que residam famílias com uma faixa de
renda menor, estavam mais dispostas a participar.
A entrevistada destaca que uma campanha de arrecadação de alimentos não pode
ser considerada como alternativa para solucionar o problema da fome, mas que a campanha da
qual ela participou envolveu de fato as pessoas, fazendo, inclusive, com que elas pensassem
sobre o assunto (H5).
Ao ser questionada sobre a possibilidade de ações voluntárias como esta serem
uma oportunidade para provocar uma consciência sobre a problemática da fome no Brasil,
suas causas e conseqüências, Magda Cruciol coloca que toda ação que envolve atitudes de
solidariedade acaba sendo uma alternativa para tal conscientização, apesar de ter efeitos
diferentes em pessoas diferentes (H6).
Porém, após um ano, a entrevistada declara que essa conscientização está longe de
alcançar a maioria das pessoas (H7). Vale lembrar que, durante esse ano, não houve outra
campanha midiática sobre o Fome Zero, o Programa não se evidenciou na mídia brasileira e
as campanhas de arrecadação de alimentos em Bauru, onde Magda Cruciol reside, não
tiveram o mesmo sucesso alcançado em 2003. Além disso, a entrevistada deixa claro que o
que tem sido feito na cidade são apenas ações isoladas de solidariedade (H8).
Magda Cruciol afirma que uma reflexão sobre a problemática da fome e da
miséria no país não existe e que a participação das pessoas em campanhas de arrecadação se
dá em virtude de um pensamento, onde elas se imaginam passando pela situação por que
passam as famílias carentes (H9).
Esse tipo de reflexão, que não acontece, poderia viabilizar a formação de uma
opinião politizada sobre o assunto e, no mínimo, despertar o interesse da população que
procuraria se informar sobre as causas e conseqüências da situação social do Brasil e de sua
comunidade.
127
A entrevistada ainda considera que as ações de solidariedade, onde há doação de
alimentos, mantêm controlado o problema da fome e da miséria, pois soluciona a fome que o
indivíduo está sentindo no momento (H10). Assim, é possível constatar que Magda Cruciol
compartilha da opinião de que a face assistencialista do Fome Zero, que incentiva e promove
as doações, não acaba com a fome no Brasil, como supõe a campanha midiática do Programa.
Sobre a solução definitiva para a fome no país, a voluntária pensa que a população
não se sente responsável por encontrá-la (H10). Levando em conta tal declaração, é possível
sugerir que a população dá ao governo a missão de eliminar definitivamente a fome no país e
não se vê capaz de participar ativamente desse processo. Isso pode ser um reflexo da própria
campanha midiática do Fome Zero que convocou a população a colaborar apenas por meio
das doações, apesar de, no gerenciamento local do Programa (no Consea), a sociedade civil
ter espaço garantido.
Ainda sobre a ação popular, Magda Cruciol defende que o assistencialismo marca
as manifestações de solidariedade, dando mais uma declaração que se correlaciona ao objetivo
da campanha midiática do Fome Zero, que estimulou as doações. Quando diz que as ações são
pouco articuladas, é possível apontar como causa o fato de não haver reflexões sobre a
problemática da fome, como a entrevistada mesmo já colocou. Como resultado disso, Magda
Cruciol afirma não conhecer resultados concretos no combate à fome (H11).
É possível perceber que muitos são os pontos dos depoimentos cujas opiniões dos
entrevistados coincidem. As críticas ao Programa Fome Zero giram em torno da falta de
agilidade e da necessidade de uma melhor implementação. Todos concordam em outro ponto:
a televisão tem grande poder de divulgação, mas a campanha, apesar de dizer que o Programa
Fome Zero existe, não consegue informar devidamente a população. A sociedade bauruense
também é considerada por todos solidária e participativa.
128
Porém, sobre as políticas estruturais do Programa, apenas aqueles ligados ao
governo (vereador José Carlos Batata, pelo partido, e Darlene Têndulo, pela relação de
trabalho na Secretaria Municipal de Bem-estar Social) conseguem visualizá-las. As demais
entrevistadas, que tomam conhecimento do Fome Zero através da mídia, delimitaram suas
palavras à política emergencial de doação de alimentos.
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Traçar um panorama da realidade sócio-político-econômica da atualidade, dando
destaque ao pensamento neoliberal no Brasil e suas conseqüências para a questão da miséria e
da fome no país, foi essencial para que contextualizássemos a discussão proposta neste
trabalho.
Também foi destacada a influência das empresas de comunicação, comentando
sobre a formação de oligopólios de mídia e como isso se deu no Brasil, o que possibilitou
conhecer o mercado midiático nacional e escolher a mídia adequada para análise neste
trabalho, a televisão.
Feito isso, o Programa Fome Zero foi apresentado detalhadamente. Além de sua
trajetória desde a campanha eleitoral de Lula à Presidência, suas políticas e ações de combate
à fome, comentou-se sobre as críticas que o Programa recebeu e como a mídia deu destaque a
ele, principalmente no primeiro ano de funcionamento.
Localizadas nesse contexto, foi possível iniciar as discussões sobre a campanha
midiática do Fome Zero, partindo das escolhas conceituais, que definiram tipos de campanhas
de comunicação, até encontrar na Análise do Discurso da campanha e na pesquisa de campo
as respostas para a investigação aqui proposta.
Enquanto uma campanha de construção social, a campanha midiática do Fome
Zero deve ser lembrada em suas dimensões política, educativa e retórica. Por evidenciar uma
ação governamental cujo intuito é promover melhorias por todo o país, a campanha poderia
sim legitimar o poder do governo federal se essas melhorias fossem realizadas e se a
população fosse informada. Contudo, conforme a pesquisa de campo realizada, atualmente as
pessoas ou não se lembram do Fome Zero ou não vêem seus resultados, o que leva a crer que
130
tal legitimação não foi obtida. Por outro lado, a dimensão educativa foi confirmada, pois o
valor “solidariedade” foi evidenciado nas entrevistas e vivido pela população durante os
movimentos de arrecadação, que coincidiram com o momento da campanha midiática.
Até então, a campanha do Fome Zero pode ser classificada como uma campanha
de construção social. E quanto à sua dimensão retórica? Analisando-a como produto de uma
intenção, verificou-se que seu principal objetivo foi fazer com que a sociedade civil ajudasse
nas políticas emergenciais do Programa por meio de doações de alimentos ou dinheiro,
auxiliando o governo a exercer seu papel de mudar a realidade daqueles que se encontram em
situação de vulnerabilidade social.
Levando em consideração que o discurso da campanha midiática tinha a intenção
de persuadir seu público a participar do Programa Fome Zero por meio de doações, foi
possível averiguar, por meio das entrevistas comentadas no capítulo 4, que os objetivos da
campanha foram alcançados.
Os dados permitiram comprovar que a população colaborou com a política
assistencialista do Fome Zero, na época da campanha midiática. Entre as arrecadações da
campanha “Carteiro Solidário”, realizada pelos Correios em apoio ao Fome Zero, e dos postos
de coleta também nas agências dos Correios em Bauru, o volume de doações em alimento
chegou a quase 137 toneladas no ano de 2003.
Todos os entrevistados neste trabalho destacam que a população bauruense é
solidária. Entretanto, apesar disso, em 2004 e 2005 as doações diminuíram
consideravelmente. Se a solidariedade do cidadão bauruense se sobressaísse, mesmo durante
esses anos quando não houve outra campanha midiática pedindo ajuda ao Programa, o volume
de alimentos arrecadados não cairia para aproximadamente 47 toneladas em 2004 e 28
toneladas de janeiro a junho de 2005.
131
Porém, fica aqui outro ponto fundamental a ser esclarecido. Apesar de assumir a
propriedade de impacto coletivo para o bem da comunidade, característica de campanhas de
construção social, a campanha busca convencer o público somente a fazer doações, a
colaborar com as políticas emergenciais do Programa Fome Zero e deixa claro que as ações
locais, específicas e estruturais são de responsabilidade do governo. De acordo com as
informações sobre o Programa Fome Zero, é possível afirmar que caberia a essas políticas
mudar a situação dessas pessoas.
Como o Programa propõe uma verdadeira mudança social ao eliminar a fome no
país, parece óbvio que sua principal campanha deveria corresponder conceitualmente a ele. A
primeira e maior estratégia de comunicação do Programa, que usa o meio de comunicação de
massa de maior alcance no Brasil (a televisão) e de todas as outras mídias de massa
disponíveis, deveria destacar sua importância e suas políticas locais, específicas e estruturais.
Assim, a sociedade civil conheceria seus planos para acabar com a fome no país de uma
maneira gradativa, mas definitiva, e talvez pudesse se organizar de outras formas para
maximizar os resultados dessas políticas.
Porém, não foi essa a escolha do governo federal, que optou por usar a força
popular para apoiar as ações emergenciais do Fome Zero. Contudo, fazendo doações, ao
contrário do que propõe o Programa, a população ajuda a manter a situação de pobreza
daqueles que as recebem. Não havendo uma devida implementação de políticas de educação,
saúde, de geração de emprego e renda, a população carente não encontra outros caminhos
para mudar sua situação social e vê nas doações a única maneira de saciar a fome de sua
família. Não há como descartar o lado positivo de matar a fome de pessoas, mesmo que
momentaneamente. Entretanto, comprovou-se que uma cultura de dependência, prejudicial a
planos e intenções de mudança, muitas delas propostas pelo próprio Programa Fome Zero, foi
incentivada.
132
Fica claro, então, que o objetivo da campanha midiática do Fome Zero diverge do
objetivo do Programa. Enquanto a primeira diz o que é o Fome Zero e pede à população que
faça doações, o segundo busca acabar com a fome no Brasil por meio de políticas
emergenciais, mas também locais, específicas e estruturais, promovendo mutirões para
construção de cisternas, apoiando a produção agrícola, dando cursos de reeducação alimentar,
alfabetizando comunidades, facilitando acesso a crédito, criando empregos, entre outras.
Contrariando as expectativas iniciais, conclui-se que a campanha midiática do
Fome Zero, por ser capaz de provocar a participação popular apenas no tocante à política
emergencial de doação de alimentos e dinheiro, não é uma campanha de construção social.
Como exposto no presente trabalho, a campanha pode ser considerada uma campanha de
marketing para causas sociais porque está ligada à imagem institucional do governo federal
que se mostra preocupado com a questão social no Brasil e engajado no objetivo de
transformá-la. Além disso, é fundamental para o governo Lula demonstrar tal preocupação, já
que corrobora a história de luta do PT por uma sociedade mais justa. No entanto, por si só, a
campanha midiática do Programa Fome Zero não constrói uma nova situação social.
Apostando na participação popular apenas através das doações, talvez o governo
tenha tentado evitar debates em massa, já que, por meio dos Consea´s, a sociedade civil tem
voz ativa no Programa. Ou ainda pode ter adotado as doações como tema central de sua
principal campanha por pensar ser a forma mais fácil de ajudar, pois são poucas as pessoas
que disponibilizariam mais tempo para as reuniões e responsabilidades que as ações mais
complexas exigem.
O governo federal poderia ter usado a mídia para trabalhar conceitos e idéias para
que a sociedade civil se organizasse e criasse mecanismos de superação da fome e
desenvolvimento sustentável. Porém, isso pode não ser interessante para ele. Geração de
emprego e renda, por exemplo, são atividades que dão credibilidade ao agente organizador,
133
legitimariam o poder de outras instituições que não são o governo. Além disso, essa opção
daria à sociedade civil oportunidade de conhecer maneiras de desenvolver localidades e de
compreender como deveriam se comportar as políticas públicas, o que poderia gerar
consciência política suficiente para formar movimentos de cobrança de eficiência do Estado,
não apenas de doações.
Usando o tema “doação”, o governo federal limita a compreensão popular ao
voluntariado, o que apresenta vantagens. Aquele cidadão que se sente parte do Programa
Fome Zero porque fez sua doação, tende a apoiá-lo, maximizando o apoio ao governo. Além
disso, o governo desloca a atenção da população que, convencida de que sua responsabilidade
foi cumprida com as doações, pode não se atentar à implementação das demais ações do
Programa e, inclusive, a questões de ordem macro-social, como a política econômica adotada
por ele.
De fato, as entrevistas comprovaram que a doação é um momento que pode fazer
com que a população pense no problema da fome, mas nenhum entrevistado se arrisca a dizer
que essa participação gera consciência crítica sobre ele. Como já citado anteriormente, a
população acha que a solução definitiva para a fome no Brasil cabe ao governo e não procura
entender suas causas. O discurso da campanha midiática do Fome Zero reforça essa maneira
de pensar.
Não é possível apontar com precisão a razão pela qual o governo federal adotou
tal estratégia de comunicação. O que é possível afirmar diz respeito aos resultados dessa
escolha. Na contramão das intenções do Fome Zero, sua campanha midiática não ensinou a
sociedade brasileira a pescar, mas apenas a dar o peixe.
134
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