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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
TEREZINHA FURTADO DE MENDONÇA
GESTÃO ESCOLAR
INTERCULTURALIDADE E PROTAGONISMO NA ESCOLA INDÍGENA
CADETE ADUGO KUIARE
CUIABÁ – MATO GROSSO
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
GESTÃO ESCOLAR
INTERCULTURALIDADE E PROTAGONISMO NA ESCOLA INDÍGENA
CADETE ADUGO KUIARE
TEREZINHA FURTADO DE MENDONÇA
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal de Mato Grosso
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Educação, na área de
concentração em Educação Cultura e
Sociedade, na linha de pesquisa Movimentos
Sociais Política e Educação Popular, sob a
orientação do Prof. Dr. Darci Secchi.
Cuiabá – Mato Grosso
2006
ii
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Ficha Catalográfica
Índice para catálogo sistemático
1. Escola Indígena
2. Gestão Escolar
3. Protagonismo
4. Interculturalidade
M539g Mendonça, Terezinha Furtado
Gestão escolar interculturalidade e protagonismo na
escola indígena Cadete Adugo Kuiare / Terezinha Furtado de
Mendonça. -- Cuiabá: UFMT/IE, 2006.
vii, 100 p.
Dissertação de mestrado apresentada á Banca de
qualificação do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de mato Grosso como requisito parcial
para a obtenção do título de mestre em Educação, na área de
concentração em Educação Cultura e Sociedade, na linha de
pesquisa Movimentos Sociais Política e Educação Popular,
sob a orientação do Prof. Dr. Darci Secchi.
Bibliografia: p. 96 – 100
CDU – 376.74 (= 87)
AGRADECIMENTO
Realizar este estudo considero um privilégio. Neste período tive oportunidade ampliar meus
horizontes no campo do conhecimento, na relação de amizade e na solidariedade aos
colegas que se encontravam na mesma trilha. Agradeço este momento que a vida me
proporcionou.
Obrigada,
Prof. Dr. Darci Secchi pela orientação durante a pesquisa, pelo estímulo para retornar à
Universidade e pelo seu exemplo de competência, responsabilidade e compromisso com o
trabalho.
Às profªs. Drªs. Rosa Helena Dias da Silva e Artemis Torres, por ter aceitado fazer parte da
banca de defesa e pela valiosa contribuição a este trabalho.
Ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Educação e todos os professores que
souberam partilhar conosco sua sabedoria e experiência acadêmica.
Aos professores e colegas do Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação, pelos
momentos preciosos de reflexão que muito contribuíram para aclarar as dúvidas e as
incertezas em relação à pesquisa.
Às minhas colegas do Tema de Pesquisa, Kátia, Solange, Dulcilene e Chikinha Paresi que
contribuíram com materiais, reflexões e experiências de vida, especialmente com a
amizade, carinho e solidariedade neste percurso.
Ao Mário Bordignon, mestre na cultura Boe-Bororo. Seus escritos foram fonte importante
para meu trabalho.
Aos professores indígenas Aldecir Arara e Filadelfo Umutina pelas informações sobre
experiências protagonistas, enriquecedoras a este trabalho. E a todos os amigos e colegas
que colaboraram de alguma forma com a pesquisa.
Ao Prof. Dr. Delarim Martins, pela sua atenção e delicadeza quando precisei da sua ajuda.
À SEDUC, em especial à professora Zileide Lucinda dos Santos pela sua compreensão e
companheirismo quando tive que me ausentar do trabalho. A Equipe da Merenda Escolar,
na pessoa de Layde E. da Costa Marques, pelo seu exemplo de gestora pública e respeito
com as escolas indígenas. A comissão Especial de Licença para Qualificação na pessoa de
Sônia Poseti, sem a liberação das atividades não teria conseguido concluir este estudo.
iii
À Equipe de Educação Escolar Indígena: Chikinha, Sueli, Wanda, Luzenira, Kátia, Ana
Paula, Zenir, , Erozina, Artema, Maristela, Orozina, Júnior, Berenice e Sebastião. Meus
colegas antigos e novos com quem experimentei momentos de grandes desafios, mas
também de alegrias e realizações. Com vocês aprendi a respeitar as diferenças na
convivência do trabalho, tudo valeu a pena e contribui com minhas reflexões.
Aos meus amigos queridos: Solange, Kátia, Jônia, Maristela, Paula Lopes, Gemaque,
Wemerson, Silas, Rosa, Artema, Luciana Rebelato, Luciana Ferraz, Tarcisio, Mônica, João,
Paula Vanucci, Iramy, Deusa, Euza, Dorinha, Tamene, Caetano, Francisquinho, Lucas,
Cecy, Luiza, Joana, Terezinha e Tuka, pelos momentos alegres e descontraídos em nossos
encontros.
Aos meus pais Dna. Amélia e Sr. Jerônimo, meus irmãos e sobrinhos, pelo amor de família
que nos une e por ter aprendido através destes laços a cultivar o afeto, a solidariedade, a
dedicação e a persistência. Valores que me ajudaram a concluir mais esta tarefa.
Às Catequistas Franciscanas da Província de Mato Grosso que muito contribuíram com a
minha formação humana, social e me despertaram para os valores da justiça e da eqüidade.
Ao Carlos Roberto, João Paulo, Selma e Ana Paula, pelo carinho, paciência e compreensão
nos momentos de minhas ausências.
A todos os professores indígenas de Mato Grosso e suas comunidades, que nesta trajetória
de trabalho e convivência, me trouxeram muitos desafios, mas também muito elã pela vida.
Ensinaram-me a valorizar e respeitar a alteridade.
Finalmente, um agradecimento especial aos Bororo da aldeia Córrego Grande, sem a
permissão e a colaboração desta comunidade o trabalho não seria realizado. Povo que
passei a admirar ainda mais, após conhecer um pouco sua história de luta. Agradeço
também a Sílvia Valentim, Aparecida Pinheiro e Ir. Maria Ossemer pelo apoio e acolhida
durante o trabalho de campo.
iv
Dedico este trabalho ao
Carlos Roberto e João Paulo
.
v
RESUMO
Esta dissertação trata da gestão escolar como uma prática pedagógica intercultural.
Tem como cenário a comunidade indígena Bóe-Bororo de Córrego Grande, localizada no
município de Santo Antonio do Leverger, em Mato Grosso.
A pesquisa procurou compreender e explicitar o sentido atribuído à escola pelo
povo Bóe-Bororo, bem como identificar os objetivos e as estratégias adotadas para
implementar um processo de gestão coletiva, caracterizada como uma experiência
inovadora no âmbito da educação escolar indígena.
Ao tratar da temática da gestão intercultural na aldeia Córrego Grande, percebemos
que os Bóe-Bororo atualmente consideram a escola como uma instituição prioritária e
essencial para o seu desenvolvimento e para a reafirmação do seu protagonismo.
A gestão intercultural da escola nasce no âmbito da comunidade e se expressa por
meio da decisão colegiada acerca da escolha de professores, pela elaboração coletiva do
projeto político pedagógico, pela eleição dos seus gestores e pela atuação do conselho
comunitário. Esse diálogo entre as organizações comunitárias e as instituições do poder
público contribui para a consolidação do protagonismo indígena no campo da educação e
de outros interesses da comunidade.
A metodologia utilizada para a realização deste trabalho priorizou a observação
dirigida, entrevistas e outras técnicas utilizadas em estudos de natureza etnográficas, como
as caminhadas horizontais, história de vida e pesquisa-ação.
Embora se trate de estudo de caso, a pesquisa pretende contribuir para a discussão e
disseminação de iniciativas de gestão consideradas culturalmente apropriadas e
administrativamente viáveis e que possam ser adotadas em outras realidades similares.
Palavras Chaves: Escola Indígena, gestão escolar, protagonismo,
interculturalidade.
vi
ABSTRACT
This dissertation deals with management pertaining to school as na intercultural
pedagogical pratie. It has scenery the indian com munity Bóe Bororo from Córrego
Grande, located at Santo Antônio do Leverger town, in Mato Grosso.
The research looked to understand and to explicit the sense attributed to the school
by the Bóe Bororo people, as well identifying the objetives and the strategies adapted to
implement a process of collective management, charaeterized as an innovative esperience
in extent of the indian school education.
When dealing with the thematic one of the intercultural management in the village
Córrego Grande, we perclive that Bóe Bororo nowadays consider the school as a priority
institution and essential for their development and for the reaffirmation of their
protagonism.
The intercultural management of the school borns in the community ´s extent and
expresses it self by means of the student body decision concerning the choice of professors,
for the cellctive preparation of the politician pedagogical project for the election their
manager and for the performance dialogue beturcen the communitariam organizations and
the institution of the public power contributes for the consolidation of indian protogonism
in the field of education and others interests of the community.
The methodology used for the accomplishment of this work prioritized the directed
comment entreviews and others techiniques used in studies of etnografy natures as the
horizontal walked ones, history of life an Action – research.
Although it deals with case study, the research intends to contribute with the
dicussion and administrativily vailable considered initiatives of management abd that can
be adopted in other similar realities.
Key word: indigen school, school management, protagonism, intercultural
exchange.
vii
RELAÇÃO DE SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS
ATIX – Associação Terra Indígena do Xingu
BIRD – Banco Interamericano de Desenvolvimento
CAIEMT - Coordenadoria de Assuntos Indígenas do Estado de Mato Grosso
CEB/CNE – Câmara de Educação Básica/Conselho Nacional de Educação
CEE – Conselho Estadual de Educação
CEI/MT - Conselho de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso
CIMI - Conselho Indigenista Missionário
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Educação
CTI - Centro de Trabalho Indigenista
DEIA – Divisão de Educação Indígena e Ambiental
DSEI – Distrito Sanitário Especial Indígena
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA - Fundação Nacional de Saúde
GPMSE – Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação
ISA – Instituto Socioambiental
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação
MEC – Ministério da Educação e Cultura
MMA – Ministério do Meio Ambiente
NEI - Núcleo de Educação Indígena
ONG – Organização Não Governamental
OPAN - Operação Amazônia Nativa
PADIC – Projeto de Apoio Direto as Iniciativas Comunitárias
PDE – Plano de Desenvolvimento da Escola
PIX - Parque Indígena do Xingu
PNE – Plano Nacional da Educação
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
viii
PPGE/IE – Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Educação
PPP – Projeto Político Pedagógico
PRODEAGRO – Programa de Desenvolvimento Agroambiental do Estado de Mato
Grosso
PUC - Pontifícia Universidade Católica
RCNEI – Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas Indígenas
SAEB – Sistema de Avaliação do Ensino Básico
SEDUC – Secretaria de Estado de Educação
SEMEC – Secretaria Municipal de Educação e Cultura
SIL - Summer Institute of Linguistics
SPI - Serviço de Proteção aos Índios
TCC – Trabalho de Conclusão de Curso
UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso
UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação
UNESP – Universidade do Estado de São Paulo
UNI – União das Nações Indígenas
UNICAMP - Universidade de Campinas
USP - Universidade de São Paulo
ix
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................... 1
1 Definição do campo da pesquisa........................................................ 2
2 Caminhos percorridos......................................................................... 5
3 O tema em debate............................................................................... 11
Capítulo I - UM OLHAR SOBRE A SOCIEDADE BOE-BORORO........ 14
1.1 O universo do povo Boe................................................................... 15
1.2 Aldeia Córrego Grande: uma volta ao passado................................ 23
1.3 Interpretação do presente.................................................................. 27
Capítulo II - TECENDO OS CAMINHOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
INDÍGENA........................................................................... 35
2.1 Um Sobrevôo na educação brasileira............................................... 36
2.2 Nas trilhas da educação escolar indígena......................................... 44
2.2.1 Antecedentes à década de oitenta............................................... 44
2.2.2 Perspectiva de mudança............................................................. 49
2.2.3 O percurso em Mato Grosso....................................................... 56
Capítulo III - GESTÃO INTERCULTURAL, AUTONOMIA E CONTROLE
SOCIAL.............................................................................. 64
3.1 Considerações gerais acerca da gestão escolar................................ 65
3.2.Caracterização da Escola Indígena Cadete Adugo Kuiare.............. 71
3.3 Desafios da gestão intercultural na Escola Indígena Cadete Adugo
Kuiare............................................................................................... 75
3.3.1 Retratos de antigamente............................................................. 75
3.3.2 O que os Boe-Bororo pensam da escola atualmente.................. 79
3.4 O Protagonismo indígena e o controle social na gestão escolar...... 86
3.5 Outras práticas de protagonismo intercultural em Mato Grosso..... 103
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................... 120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................... 125
ANEXO ...................................................................................................... 132
X
INTRODUÇÃO
Foto: Terezinha Furtado (Situações diversas na aldeia Córrego Grande)
O povo Bororo cedeu regiões inteiras de seu território, como Cuiabá,
Rondonópolis, Cáceres, Poxoréu, Barra do Garças, Alto Garças e Goiás.
Ajudou a defender Mato Grosso nas fronteiras, ajudou a construir as
linhas telegráficas e roubaram suas terras e não querem devolvê-las. São
injustiças históricas, não podemos esquecer a história assim, só por
causa do lucro. Os povos têm que ser respeitados em sua dignidade, na
sua história, no seu processo.
(Mário Bordignon, nov/2005)
A pesquisa aqui apresentada buscou compreender um pouco da história do povo
Boe-Bororo, num processo de constantes mudanças provocadas também pela perda de seus
territórios tradicionais. Evidenciou-se, portanto, a escola como um novo espaço social com
sentidos e olhares próprios da vida dos Boe-Bororo, sendo uma das estratégias adotadas
para garantir a continuidade de sua cultura como sociedade indígena.
1. Definição do campo de pesquisa
Muitas sociedades indígenas convivem com a instituição escolar desde a época de
contato com as frentes de colonização.
A partir da Constituição Federal de 1988 a educação escolar passou a ser
considerada um direito acessível a todas as comunidades, o que fez crescer
expressivamente a demanda pela regularização do ensino nas escolas das aldeias.
Atualmente o acesso ao ensino se constitui num direito assegurado pela legislação
mas, além disso, a instituição escolar é desejada e idealizada pelas comunidades indígenas.
Por seu intermédio são acessados os instrumentos de intercâmbio com a sociedade
nacional, tanto pelo domínio dos digos nacionais (língua portuguesa falada e escrita)
quanto por se tratar de um instrumento de defesa do patrimônio cultural e territorial. Por
essa razão as populações indígenas atualmente depositam na escola grande
responsabilidade pela manutenção de seus costumes e tradições. Disse Adelaide Abuiedo:
a escola nos ensina português, matemática e as leis, mas também ajuda a defender e
manter registrada a nossa cultura”.
Nesse contexto, a temática indígena vem despertando meu interesse desde meados
da década de 1980.
A minha atuação mais direta teve início com o povo Nambikwara, quando fazia
parte de uma organização não-governamental indigenista na região noroeste do estado. Na
época, atuava também nos movimentos sociais, especificamente com as comunidades
eclesiais de base e sindicato dos trabalhadores rurais de Comodoro.
A partir de 1990 passei a integrar o quadro de profissionais do serviço público na
Secretaria de Estado de Educação e atuar no setor responsável pela educação escolar
indígena. Inicialmente nosso trabalho se concentrou em assessorar as escolas, organizar
cursinhos de capacitação aos professores índios e construir, no interior da Secretaria, um
espaço de discussão da questão indígena. A iniciativa de diálogo com as lideranças do
estado e com as entidades de apoio ao índio resultou numa excelente parceria para a tomada
de decisões tanto para encaminhar as demandas advindas das aldeias quanto para
estabelecer as diretrizes para a implantação de políticas públicas.
Em 1991, a responsabilidade da educação escolar indígena foi transferida da
FUNAI para o Ministério de Educação e com isto a demanda por escolas nas aldeias
cresceu abruptamente. As instituições responsáveis pela educação, no Estado não se
encontravam preparadas técnica e financeiramente para assumir as demandas representadas
por trinta e oito povos indígenas com culturas e línguas tão distintas, por isso, os trabalhos
dos técnicos não obtiveram o êxito desejado.
As mudanças legais e administrativas foram avançando, mas a inclusão real das
escolas indígenas no sistema oficial continuou a ser um grande desafio, especialmente na
regularização das escolas e no reconhecimento dos estudos nelas realizados. Os programas
educacionais dirigidos especificamente aos índios se propagaram na mesma proporção dos
obstáculos. Um dos maiores problemas era de ordem operacional, isso é, encontrar técnicos
ou profissionais disponíveis e qualificados para assessorar essas escolas. Não se tratava de
efetivar os currículos utilizados nas escolas não indígenas, mas de tentar gestar uma
proposta curricular apropriada para as escolas das aldeias e de viabilizar as diretrizes
centradas no bordão específicas, diferenciadas, bilíngües e interculturais.
Foi no entusiasmo de experimentar novos desafios que iniciamos, junto aos técnicos
da Secretaria de Estado de Educação, o trabalho de acompanhamento às escolas indígenas.
O idealismo era maior que a experiência, mas com responsabilidade assumimos o trabalho
e aos poucos fomos aprendendo com as comunidades indígenas, a lidar com as diferenças.
A cada mudança de governo retomava-se a luta e a incansável persistência para
convencer os administradores do estado a dar continuidade aos trabalhos e a considerá-los
como expressão de uma política pública permanente (uma política de Estado e não apenas
de Governo).
Após longas jornadas nessa caminhada, passamos a atuar diretamente na
implementação de projetos de educação escolar nas comunidades indígenas. Como chefe do
setor de educação escolar indígena na SEDUC, coordenamos em parceria com a equipe da
Coordenadoria de Assuntos Indígenas o Projeto Tucum (Projeto de Formação de
Professores Indígenas para o Magistério) e atuamos na criação do Conselho de Educação
Escolar Indígena CEI/MT e na organização da Conferência Ameríndia de Educação e
Congresso Brasileiro de Professores Indígenas, eventos que deram origem à elaboração do
Projeto do Terceiro Grau Indígena, atualmente desenvolvido pela UNEMAT.
Após uma longa experiência de atuação com as escolas indígenas consideramos
oportuno adotar um afastamento estratégico das atividades de administração pública e da
militância indigenista para incorporar a elas uma abordagem científica, dirigida à reflexão
acerca dos caminhos utilizados até aqui e os próximos passos para a construção de uma
instituição escolar convergente com os interesses e necessidades das populações indígenas.
Acreditamos na contribuição da academia para a qualificação e o aperfeiçoamento
profissional, razão pela qual procuramos o Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Mato Grosso.
Desde o início a intenção foi desenvolver um projeto de pesquisa que possibilitasse
um olhar crítico sobre as experiências vivenciadas neste percurso. A gestão escolar
apropriada às escolas indígenas é uma tarefa desafiadora e recente no sistema de ensino,
portanto torna-se urgente encontrar os caminhos apropriados.
Na escolha do tema a ser investigado consideramos as diferentes realidades vividas
pelas escolas indígenas atuais. Algumas estão empenhadas no sentido de construir novos
parâmetros e lutam por uma escola coerente com a realidade do povo; outras vão
sucumbindo ante aos “modelos” vigentes e reproduzem a cantilena curricular de outrora.
A legislação que ampara a educação escolar indígena proporciona liberdade para a
comunidade escolar optar por estar vinculada a um sistema de ensino, estadual ou
municipal. Os “modelos” de gestão escolar nas aldeias são determinados pelo tipo de
vinculação ao sistema. Por exemplo, se a escola indígena for ligada à Secretaria de Estado
de Educação será organizada conforme as orientações desse órgão, ou seja, a partir dos
princípios da gestão democrática.
1
O mesmo se se estiver sob a responsabilidade das
Secretarias Municipais de Educação. Cada órgão distintamente tem suas normas próprias de
“gerenciar” sua rede de ensino.
No decorrer deste período, percorremos uma longa jornada para aproximar o
sistema estadual de ensino ao sistema tradicional das sociedades indígenas. O desejo era
1
Na rede estadual, a gestão democrática foi introduzida deste 1987 através da Lei 5109/87. Nesta ocasião,
período que vai até 1990, ainda não se tem o PDE, mas tem-se a eleição de diretores, com arcabouço legal e,
também, conselhos deliberativos e projeto político pedagógico, então denominado plano global escolar. Para
maior aprofundamento, conferir ABICH, Lourivaldo. A organização dos professores e a implantação da
gestão democrática nas escolas estaduais de Mato Grosso. 1987 a 1990 – Dissertação de Mestrado.
tornar democrático o princípio da gestão, de maneira que as escolas indígenas fossem
contempladas em suas diferenças.
Hoje verificamos que as conquistas são cíclicas e que dependem em grande soma da
tendência política dos governos estaduais e municipais e do seu compromisso para com as
sociedades excluídas, mas de alguma forma dependem do profissionalismo dos técnicos das
respectivas secretarias, que assumem a coordenação da educação escolar indígena, junto a
estes órgãos. E ainda, do poder de pressão dos grupos organizados: associações e conselhos
indígenas e entidades de apoio a esta causa.
2. Caminhos percorridos
O ingresso no mestrado foi um processo desafiador, porém, ainda assim, menos
aflito do que o verificado no decorrer do curso, a começar pela readaptação pessoal ao meio
acadêmico.
A condição de aprendiz, o aprofundamento em temas teóricos e a reflexão diária
provocaram muitas mudanças no meu modo de perceber a realidade escolar, especialmente
porque a nossa prática cotidiana estava centrada em atividades administrativas e
burocráticas próprias da rotina dos órgãos públicos. Trilhar os caminhos do mestrado foi
um processo doloroso e de relutância, contudo, interessante e prazeroso. O distanciamento
da militância indigenista e das responsabilidades profissionais se tornaram condições
fundamentais para conseguir a concentração e o aprofundamento que o estudo demanda.
Estes procedimentos exigiram esforço, decisão, disciplina e momentos de avaliação das
práticas individuais e das relações com as políticas de educação escolar indígena
atualmente em curso.
2
O rompimento pessoal com as rotinas e com as tendências da atual administração
pública possibilitou realizar a pesquisa com um olhar dirigido para uma proposta de ações
2
A falta de continuidade e o descompromisso com as políticas públicas por parte do governo do estado nos
últimos anos está causando um marasmo coletivo que se resume no exercício de funções técnicas e no
cumprimento de rotinas burocráticas provenientes das decisões dos gestores hierarquicamente superiores.
diferenciadas e que consideram os diferentes contextos em que se encontram as escolas
indígenas.
Outro momento desafiador vivenciado neste período diz respeito a problematização
da pesquisa. A falta de clareza sobre o seu aspecto central, sobre o que seria relevante ou
prioritário e sobre as eventuais contribuições que dela poderia resultar, foram também
motivos de permanente preocupação.
Embora acredite que o presente trabalho poderá contribuir para o estabelecimento
de parâmetros no campo da gestão de diferentes escolas indígenas, tenho a sensação de que
ele é ainda bastante incompleto, que existem lacunas e que o tempo não foi suficiente para
o aprofundamento desejado. O mesmo ocorre quando avaliamos o período de trabalho de
campo, o convívio com a comunidade Bororo e os resultados obtidos no levantamento de
dados de fontes secundárias e de trabalhos já produzidos sobre aquela sociedade.
Embora não tivesse dúvidas de que a pesquisa seria relacionada à experiência
profissional da pesquisadora, a definição do local de pesquisa também foi motivo de
incerteza e insegurança. No momento da elaboração do Projeto, delimitamos duas escolas
de diferentes sociedades indígenas, Bororo e Xavante. No decorrer do curso e nas
discussões em torno do objeto de pesquisa, foram sendo evidenciadas as dificuldades de um
trabalho com dois povos diferentes, considerando a diversidade cultural de ambos e o
período de tempo disponível.
Diante das ponderações, a melhor opção recaiu sobre uma escola Xavante localizada
no município de Barra do Garças. Tratava-se de uma escola de grande porte, com
aproximadamente 400 alunos Xavante. Além disso, tinha a vantagem de estar numa aldeia
estrategicamente interessante, do ponto de vista da autonomia política. Esta comunidade foi
formada a partir de divergências políticas entre dois caciques, quanto à atuação da Missão
Salesiana. O grupo liderado por um dos caciques organizou uma nova aldeia.
Com a redefinição do objeto, começamos a levantar dados, refazer o projeto para as
apresentações no seminário de pesquisa. Sentia a satisfação de “ver o trabalho andando no
caminho certo”. A surpresa estava reservada no levantamento de dados sobre o
funcionamento legal da escola. Ocorreu que, os gestores indígenas não souberam
administrar os recursos financeiros e não realizaram as prestações de contas conforme as
exigências legais da instituição oficial. Este fato resultou num processo de intervenção
administrativa a mando da Secretaria de Estado de Educação e abalou a frágil tessitura
social que se recompunha. Tratava se de um caso simples e passível de recorrência se
considerada a complexidade burocrática nos trâmites legais do órgão público estadual e a
pouca experiência dos gestores indígenas com o “mundo dos papéis”, porém o ingrediente
político local, especialmente da SEDUC, lhe deu grande visibilidade.
Em tais circunstâncias não foi mais possível prosseguir com a pesquisa naquela
escola. Ela poderia ser vista como uma forma de diligência ou de fiscalização e não
contaria com a tranqüilidade e com necessário envolvimento da comunidade. Diante desse
fato, voltamos ao ponto inicial e passamos a considerar como campo de pesquisa uma
escola do povo Bororo.
Em virtude do trabalho realizado no âmbito da SEDUC, tivemos muita facilidade e
trânsito livre em diversas comunidades e a permissão de pesquisa na aldeia Bororo de
Córrego Grande foi uma tarefa fácil e de grande satisfação para todos.
Com essa nova decisão, deixamos para uma outra oportunidade a pesquisa na escola
Xavante e passamos a atuar com a Escola Indígena Cadete Adugo Kuiare, localizada na
Terra Indígena Tereza Cristina, município de Santo Antonio do Leverger,
aproximadamente a 180 km de Cuiabá,
3
conforme mostra o mapa abaixo.
3
O acesso principal para a aldeia é dado pela rodovia BR 364 em direção a serra de São Vicente. Após a
Escola Agrícola, entrada à direita em estradas vicinais, a 100 km aproximadamente.
Fonte: FUNAI, 2006.
Estudar qualquer aspecto de uma sociedade culturalmente diversa é sempre um
desafio e exige um mergulho na história do povo, em seus costumes, tradições e tudo que
envolve aquela sociedade. Nesta perspectiva, a investigação sobre a relação da comunidade
indígena Boe-Bororo com a educação escolar foi trilhada pelos caminhos da etnografia.
Ressaltamos que este trabalho está fundamentado nos procedimentos da pesquisa
qualitativa de cunho etnográfico e tem como principais inspiradores no campo da educação
os trabalhos de André (1995), Peirano (1995), Mattos, (2001) dentre outros.
Para Mattos (2001) a etnografia como abordagem de investigação científica traz
contribuições importantes para o campo das pesquisas qualitativas, especialmente àquelas
que estudam as desigualdades sociais e os processos de exclusão. Afirma que fazer
etnografia implica em:
Preocupar-se com uma análise holística ou dialética da cultura
entendida; introduzir os atores sociais com uma participação ativa e
dinâmica e modificadora das estruturas sociais; preocupar-se em revelar
as relações e interações significativas de modo a desenvolver a
reflexividade sobre a ação de pesquisar. A etnografia é um processo
guiado preponderantemente pelo senso questionador do etnógrafo. Deste
modo, a utilização de técnicas e procedimentos etnográficos, não seguem
padrões rígidos ou pré-determinados, mas sim, o senso que o etnógrafo
desenvolve a partir do trabalho de campo no contexto social da
pesquisa. (MATTOS, 2001, p. 2).
As técnicas de que Mattos fala devem ser construídas conforme a realidade do
trabalho a ser desenvolvido no campo. Neste sentido, o processo de pesquisa será
determinado pelas questões propostas pelo pesquisador. Os atores sociais têm uma
participação ativa e dinâmica no processo da pesquisa. Deve-se considerar que a cultura ao
ser estudada não pode ser vista como um mero reflexo de forças estruturais da sociedade,
mas como um sistema de significados mediadores entre as estruturas sociais e a ação
humana”. (MATTOS, 2001, p.1).
para André (1995) a principal preocupação da etnografia é com o significado das
ações e dos eventos para as pessoas ou para os grupos estudados. Alguns significados são
expressos pela linguagem outros pelas ações. Em todas as sociedades as pessoas utilizam
sistemas complexos de significados para organizar seu comportamento, para entender a si e
os outros, para dar sentido ao mundo. Esse sistema de significado constitui sua cultura, o
conhecimento adquirido é usado para interpretar experiências e gerar comportamentos.
Neste sentido, a pesquisa pode ter um conjunto de técnicas de coleta de dados sobre
os valores, hábitos, crenças, práticas e comportamentos de um grupo social e também pode
ter o sentido de relato escrito, resultado das técnicas aplicadas. Por isso, o interesse do
etnólogo é o registro e a discussão sobre a cultura, enquanto que o dos educadores é o
processo educativo.
Consideramos esta abordagem metodológica mais oportuna ao enfatizar os aspectos
subjetivos da sociedade em foco. Não pretendemos, porém, desenvolver um estudo
etnográfico sobre a sociedade Bororo. Procuraremos dar relevância a alguns aspectos
necessários à compreensão dos elementos culturais que configuram o seu processo
educativo, ou, dito de outra forma, compreender um pouco mais a relação dos Boe-Bororo
com a educação escolar.
Dessa decisão resultam outros desdobramentos tais como:
a) o significado atribuído à instituição na vida diária e nos projetos de futuro do
povo;
b) o modo de compreender o exercício da gestão escolar identificando as relações
entre os valores culturais da educação tradicional e valores apropriados por meio da
educação escolar;
c) a iniciativa inovadora no campo da gestão escolar que tem presente o diálogo
intercultural e o protagonismo indígena;
d) as estratégias e procedimentos metodológicos utilizados para envolver a
comunidade no quotidiano da gestão daquela escola.
Dito isso, passaremos ao relato do trabalho de campo,
4
deixando registrado mais
uma vez que um trabalho similar poderia ter sido realizado em muitas outras escolas
indígenas do estado, mas que, dadas às circunstâncias descritas, a escolha recaiu sobre a
comunidade indígena Boe-Bororo de Córrego Grande.
Como ressaltamos, a realização da pesquisa foi precedida de uma consulta prévia
à comunidade. Para tanto, foram convidados os professores, o chefe de posto, o cacique e
algumas pessoas disponíveis, onde expressamos nosso desejo de realizar uma pesquisa
naquela aldeia. Foi discutida com os presentes a necessidade e a importância da
participação de todos no trabalho e constatamos uma aceitação consensual e a
predisposição em colaborar. Todavia, o grupo presente solicitou que houvesse uma
colaboração recíproca. Ao mesmo tempo em que contribuíssem com a pesquisa,
pudéssemos orientá-los nas questões administrativas e pedagógicas da escola. E firmado o
acordo obtivemos a legitimidade para desenvolver o trabalho. E com o ritual de interação
coletiva consumado, determinamos datas para o retorno à aldeia.
O processo de coleta de dados deu-se por meio de entrevistas semi-estruturadas,
utilizando como instrumento o Diagnóstico Rápido Participativo, história oral gravada em
fita k7 e conversa informal com anciãos da aldeia. Estas dinâmicas foram realizadas em
etapas, através de várias visitas àquela comunidade.
Uma das etapas para a coleta de dados foi realizada em abril de 2005, constituída de
visitas informais às famílias, começando pela residência do cacique. Na seqüência, à casa
4
O instrumento utilizado para coleta dos dados da pesquisa, consta em anexo.
do Bari
5
, com uma longa conversa sentada na esteira, admirando a habilidade de sua
esposa, Amelinha Agowa Cêreudo, ao trançar as fibras de buriti para cobrir as frestas da
parede. Fizemos outras visitas a dezenas de residências. Em seguida iniciamos as
entrevistas com os professores, lideranças, jovens estudantes e velhos. A partir das questões
elaboradas previamente, gravamos as experiências dos entrevistados, observando a
realidade e a disponibilidade de cada um.
Em outra etapa, ocorrida em julho de 2005 continuamos a coleta de dados do
diagnóstico, mais especificamente com os professores e algumas lideranças que apresentam
maior facilidade com a escrita. Realizamos uma consulta ao arquivo da escola, onde
encontramos vários documentos importantes, como: Atas de Reuniões da comunidade,
Decretos de Criação da escola, Projeto Político Pedagógico, Censo Escolar e outros. Todos
estes documentos foram dados fundamentais para o trabalho.
Numa outra etapa, ocorrida em novembro de 2005 foram concluídas as entrevistas
gravadas e realizada uma ampla reunião com a comunidade. Naquela ocasião foi possível
sanar as dúvidas que restavam, ouvir alguns depoimentos importantes para complementar
os dados.
A reunião de cerramento da coleta de dados foi muito importante no sentido de
firmar nosso compromisso de continuidade do trabalho, no acompanhamento e orientações
a escola. Ao mesmo tempo proporcionar oportunidade a comunidade para fortalecer suas
concepções sobre os valores da educação escolar e as expectativas em relação à escola
indígena Cadete Adugo Kuiare. Relacionamos a seguir alguns dos depoimentos colhidos
naquela ocasião:
“A escola é necessária, mas tem que funcionar na aldeia. Se eu tivesse filho
pequeno para estudar, nunca iria mandar pra cidade, lá tem muita ‘malandragem’, o
contato com esta realidade pode trazer sofrimento para a aldeia” (Álvaro Koriga).
A discussão em torno da contribuição da escola na difusão da cultura indígena,
principalmente a língua materna, ocupou grande parte do tempo. Disseram que o futuro da
próxima geração depende dos conhecimentos adquiridos dentro e fora da aldeia. Aqueles
5
José Kadagare é o Bari da aldeia, ou seja, o Pajé. Chefe da cultura Bororo.
que tiveram oportunidade de estudar na cidade deram depoimentos das dificuldades
encontradas.
“Quando estudei fora da Aldeia senti muita dificuldade nos estudos, mas o que
mais me incomodava eram os preconceitos dos colegas. Eles não me chamavam pelo nome,
só falavam, índio” (Fernando Kudoro).
“A escola é importante porque a geração futura não será tão dependente dos
brancos, pois hoje o índio fica muito dependente de saúde, educação e da parte
burocrática dos não-índios” (Fátima Korau).
“Criança estudar na cidade é um risco, eles aprendem os costumes dos não-índios,
fica gostando daquelas coisas de e não retornam para a aldeia. A escola dentro da
comunidade, além de formar os jovens com a nossa política, estamos nos fortalecendo”
(Ismael Atugoreu).
O convívio com a comunidade e os depoimentos colhidos por ocasião das visitas àquela
comunidade veio confirmar a expectativa de que a interação aldeia e escola é uma realidade
em Córrego Grande.
A opção pelo tema da educação escolar na Aldeia Córrego Grande está ancorada em
diversos fatores, dentre os quais destaco a grande afinidade, o bom relacionamento e a
simpatia que tenho por esse povo; a aceitação e a colaboração da comunidade para a
realização da pesquisa; o trabalho de assessoria pedagógica que venho realizando na escola
como parte das ações da Secretaria de Estado de Educação/SEDUC, dentre outros.
3. O tema em debate
Com o resultado da implementação das leis que asseguram um sistema educacional
apropriado às escolas indígenas, começaram a surgir experiências inovadoras em diversos
estados. As proposições e o exercício de uma educação intercultural nascem das
comunidades, do movimento indígena e das organizações de professores. As lideranças
indígenas e os representantes desses grupos organizados procuram ampliar o diálogo com
os órgãos oficiais e com outras organizações da sociedade civil, de forma a dar maior
visibilidade aos assuntos indígenas e a ampliar o seu protagonismo nos campos da
educação formal, saúde e alternativas econômicas.
O movimento dos professores indígenas tem demonstrado a cada dia, ousadia no
sentido de enfrentar os desafios tanto nas relações entre as diversas etnias, quanto nas inter-
relações com a cultura ocidental. No trabalho criativo dos professores entende-se que o
saber ultrapassa fronteira e se reconstrói sempre. Para Silva (1998, p. 207-208) “O
conhecimento é visto então como forma de ampliação do mundo, reafirmando
primeiramente a própria cultura, sem se fechar em suas experiências”.
A gestão intercultural das escolas indígenas se consolida nesse contexto e passa a
ser entendida como uma possibilidade concreta de intercâmbio com as práticas
educacionais tradicionais.
No âmbito da sociedade Boe-Bororo a educação das gerações é transmitida por
meio da oralidade, pelos anciãos e pelos rituais praticados no Baíto
6
. A escola Cadete
Adugo Kuiare adota a prática de integrar ao seu currículo, os momentos de aprendizagem
da cultura especialmente por meio dos rituais e das cerimônias. A interculturalidade na
escola é entendida como diálogo, como uma relação recíproca entre os valores culturais do
povo Boe-Bororo e os valores apropriados pelas demais instituições atualmente existentes
na comunidade.
Na pesquisa realizada na escola indígena Cadete Adugo Kuiare, tivemos
oportunidade de identificar as iniciativas inovadoras de gestão educacional que se
mostraram culturalmente apropriadas e administrativamente viáveis. Algumas dessas
medidas poderão servir como inspiração a outras realidades similares.
No nosso trabalho de pesquisa foi possível conciliar o diálogo entre a cultura Bororo
(por meio dos seus líderes e professores) e os autores que tratam da temática educacional e
antropológica. Tal exercício resultou numa melhor compreensão do seu universo cultural
como também das concepções que alicerçam as práticas educativas contemporâneas.
Os resultados da pesquisa foram organizados em três capítulos, a saber:
No capítulo primeiro é apresentada uma abordagem etnográfica da sociedade Boe-
Bororo, (povo, tempo e espaço sociocultural) e apontados alguns marcos do seu contato
com a sociedade ocidental. Traz ainda algumas informações sobre a situação de suas terras
e a sua forma de organização nos dias atuais.
No segundo capítulo são discutidas idéias sobre a educação brasileira contemporânea
com ênfase na educação escolar indígena. São evidenciados aspectos do seu percurso
histórico e as conquistas obtidas por ocasião da promulgação da Constituição Federal atual.
Discutimos também o percurso da educação escolar indígena em Mato Grosso, o seu
apogeu e o período atual.
6
Chamado também de casa dos homens, lugar onde acontecem as cerimônias tradicionais do povo.
Por fim, o capítulo terceiro trata especificamente do campo de estudo. Faremos uma
abordagem sobre a gestão escolar no contexto da educação, seus fundamentos e suas
características. Faz-se uma caracterização da escola indígena Cadete Adugo Kuiare (aldeia
Córrego Grande), especialmente no que diz respeito a sua forma de gestão democrática e
colegiada. Procura-se traçar o itinerário percorrido pela comunidade escolar desde a
implantação da escola até os dias atuais, apontando os principais desafios e as soluções
encontradas para consolidar a gestão intercultural. São apresentados também alguns
indicadores que ilustram o que os Boe-Bororo pensam sobre a escola e o protagonismo
indígena construído pela comunidade como forma de controle social.
O protagonismo indígena no contexto das relações interculturais tem em foco uma
dupla dimensão: a capacidade de ocupar os espaços e a de interferir nas políticas propostas
pelo Estado. Protagonismo intercultural é entendido aqui com um duplo enfoque: enquanto
uma atitude de rompimento com as relações de tutela e submissão e, enquanto o exercício
qualificado do diálogo e da práxis intercultural.
Nas considerações finais retomaremos as discussões de cada capítulo, uma síntese dos
resultados obtidos e proposições para a construção de uma política de educação escolar
indígena voltada ao atendimento dos seus interesses e necessidades.
Isso posto, espero que a presente pesquisa possa ser mais uma contribuição para a
consolidação de uma proposta de gestão escolar indígena ancorada na participação
comunitária, na valorização dos professores e no envolvimento do poder público com a sua
proposição, execução e avaliação. Vale dizer, para a consolidação do protagonismo
intercultural.
CAPÍTULO I
UM OLHAR SOBRE A SOCIEDADE BOE-BORORO
A perspectiva que parece ser mais pertinente neste
trabalho, o é apenas focalizar os fenômenos
culturais resultantes dos confrontos entre grupos
distintos, mas também ver como cada um destes
grupos elabora uma representação deste outro e de
si próprio, e incorpora esta representação em
termos de uma atuação política concreta.
Sylvia Kaiuby Novaes (1993).
1.1 - O Universo do povo Boe
Como afirma Bordignon (2001, p. 15), o povo Boe ou Bororo muito tempo, vem
despertando a atenção e o interesse de cientistas sociais e de missionários. Trata-se,
seguramente, de um dos povos indígenas mais estudados atualmente no Brasil. São
diversos os trabalhos
7
que procuram ressaltar algum aspecto da sua riqueza cultural, do seu
modo peculiar de conceber a vida e a morte.
Eu também, como tantos outros que me precederam, tenho a intenção de tratar nesta
dissertação de um tema que julgo relevante no contexto das relações interculturais a que
está submetido o povo Bóe.
Diferentemente de trabalhos anteriores não pretendo produzir um estudo etnográfico
acerca de determinados aspectos da cultura tradicional dos Boe. Sem desconsiderar
nenhuma das características fundamentais deste povo, dedicarei atenção especial à temática
da educação escolar, cuja categorização principal estará sendo discutida no Capítulo III
deste trabalho.
Esta pesquisa está diretamente relacionada à escola. Para apresentá-la de forma mais
sistemática, será necessário proceder a uma breve retrospectiva histórica de maneira a situá-
la no tempo e no espaço sociocultural dessa complexa sociedade.
Faz-se necessário, portanto, neste primeiro Capítulo trazer à tona aspectos da
organização social e cultural dos Boe de um modo geral e, mais especificamente, da
população da Aldeia Córrego Grande.
Embora não sendo a etnografia o único caminho trilhado na pesquisa, utilizo seus
passos para mergulhar no universo simbólico e trazer informações específicas do jeito Boe
de pensar e viver, além de aspectos sobre seu território, sua demografia e suas relações de
contato.
Bordignon (1986, p. 7), relata que o contato dos bandeirantes com o povo Boe se
deu por volta do século XVII. Foi uma história marcada por agressões e insultos desde o
início. Os colonizadores entrando no território mato-grossense vieram a procura de índios
para comercializar como o de obra barata e os Boe-Bororo foram os seus principais
alvos. Conta-se que quando os caçadores de índios se depararam com o primeiro grupo de
“gentios” no meio da mata, era um momento em que o grupo entoava um canto ritual, o
que chamou bastante a atenção dos caçadores, por não entenderem as palavras
7
Especialmente ALBISETTI & VENTURELLI. Enciclopédia Bororo. Volume I e II, 1962; LÉVI-
STRAUSS. Tristes trópicos. 1996; BORDIGNON. Os Bororo na história do Centro Oeste Brasileiro, 1986;
NOVAES. Jogo de espelho, 1993; VIERTLER. A refeição das almas, 1991; OCHOA. Pequeno dicionário
Bororo-Português, 1997, ISAAC. Educação Escolar Indígena Boe-Bororo: alternativa e resistência em
Tadarimana. UFMT/IE, 1997; AGUILERA. “Mano” Currículo e Cultura na Escola Indígena Bororo.
UFMT/IE,1999 e outros.
pronunciadas. Por mais que tentassem decifrar, ouviam um som muito confuso com as
palavras: bororo e bororó. Quanto mais ouviam, mais certeza tinham de que pronunciavam
tais palavras. A partir daquele momento, os índios das margens do rio São Lourenço
passaram a ser chamados pelos bandeirantes de bororo ou bororó, nominação que perdura
até os dias atuais.
Segundo o povo, trata-se de uma denominação equivocada e que não corresponde a
nenhuma autodenominação, por exemplo:
Bororo é o pátio da aldeia, pátio das danças, pátio interditado às
mulheres e às crianças; praça, aldeia; ato de executar alguma
representação. Para os Boe, os membros das outras tribos são
considerados e chamados de Barége ou Marége. Os civilizados são
baráe e os negros são tabáe.
8
Para os bandeirantes os Bororo não eram apenas “gentios exóticos”, mas “os
maiores índios até agora conhecidos, é um tipo esbelto, forte, elegante e bem formado,
atingindo por vezes proporções agigantadas. beis seguidores de rastros de pessoas ou
animais” (BORDIGNON, 1986, p.03). Mais tarde Lévi-Strauss (1996, p.204), definiu da
seguinte forma a aparência física dos Boe:
Os Bororo são os índios mais altos e corpulosos do Brasil. Sua cabeça
redonda, sua face comprida com feições regulares e vigorosas, seus
ombros de atleta lembram algum tipo patagônico aos quais talvez se
deva vinculá-los do ponto de vista racial. Esse tipo harmonioso
encontra-se
raramente entre as mulheres, em geral menores,
mirradas e com traços irregulares. Desde o
primeiro contato, a
jovialidade masculino fazia um contraste singular com a atitude
rebarbativa do outro sexo. Apesar das epidemias que devastavam a
região, a população impressionava por seu aspecto de saúde.
8
Esta definição consta na Enciclopédia Bororo (1962, p. 281; 516), Vol. I.
Além de destacarem a sua aparência física, outros pesquisadores buscaram
descobrir o local de origem desses índios e o trajeto percorrido para chegarem a Mato
Grosso. Alguns dizem que teriam vindo da Bolívia, no entanto esta hipótese não foi
comprovada, apenas verificou-se uma semelhança dos adornos dos Boe com os adornos
dos índios bolivianos e não se chegou a uma conclusão definitiva. Segundo Álvaro Koriga
9
o povo Boe veio do Leste. O que eu sei do Orari-Mogodoge, nome do Boe antigamente, é
que veio de onde o Sol Nasce, marigudu, marigudu
10
”. A única certeza dos pesquisadores é
que eram muitos e espalhados por quase todo o Centro Oeste Brasileiro. Estimava-se em
dez mil índios ocupando uma área de 48 milhões de hectares. Desde o Oeste da Bolívia até
o Sul de Goiás, alcançando a Leste o Triângulo Mineiro, indo ao Norte pelas cabeceiras dos
Rios das Mortes e ao Sul até a cabeceira do Rio Coxim e Rio Negro.Bordignon (1986, p.
05).
Atualmente a área total de domínio dos Bóe corresponde a pouco mais de 140 mil
hectares e está dividida em cinco Terras Indígenas descontínuas. Algumas áreas
tradicionais ficaram fora da demarcação, como por exemplo, Jarudori, um antigo território
de moradia e de cemitérios. As demarcações das áreas não contemplaram grande parte dos
territórios e deixaram de incluir as faixas de maior fartura de pesca, caça e coleta, bem
como as áreas apropriadas para o cultivo agrícola, fontes de sobrevivência do Boe-Bororo.
Nos dias atuais, mesmo com seus direitos garantidos na Constituição Federal de
1988, as terras são constantemente invadidas, o que tem gerado graves conflitos entre
índios e invasores.
Com a perda de parcela substancial do território e submetidos às interferências
externas da FUNAI, dos missionários e de outras instituições, os Boe foram forçados a se
adaptar a novas condições de vida e de ambiente. Foram assim estimulados a adquirir
outras práticas culturais, como: uso de ferramentas, armas de fogo, cultivo do milho, arroz,
feijão, cana-de-açúcar e frutas diversas, o que interferiu em sua cultura tradicional. No
contexto destas mudanças destaca-se a alteração na dieta alimentar original, substituída em
grande parte por produtos industrializados ricos em carboidratos causando problemas
dentários, diabetes e outras enfermidades.
9
Álvaro faz parte do grupo dos velhos conselheiros da aldeia Córrego Grande. Este depoimento foi gravado
no dia 23/04/05. E em novembro do mesmo ano, faleceu de um derrame cerebral.
10
Marigudu na língua do Bóe-Bororo quer dizer muito tempo atrás.
Do ponto de vista da política da integração, sempre foi objetivo dos governos
sedentarizar os Boe para facilitar o acesso das frentes de ocupação às terras agricultáveis.
De hábeis pescadores e caçadores os Boe foram transformados em cidadãos sedentários,
trabalhadores do campo, agricultores de média escala. Com o propósito de retirá-los do
“paganismo”, impuseram-lhes os padrões morais cristãos voltados para o puritanismo e
para as relações matrimoniais monogâmicas, valores estranhos a sua cultura.
Antes da imposição da política integracionista, os Boe eram seminômades,
costumavam sair das aldeias e acampar em novos ambientes a procura de peixe, caça e
frutos. Como diziam os antepassados, “Bóe é orári-mógodóge, isso é, aqueles que
preferem morar na região dos rios em que abundam peixe pintado”.
11
Enquanto
realizavam as viagens coletivas (as magúru)”, não deixavam de celebrar os seus ritos
culturais, como os cantos fúnebres, danças, festas, cerimônia de perfuração de orelha e
atribuição de nomes aos recém-nascidos.
A adaptação forçada dos Boe-Bororo a uma política da “paz”, trazida pelos
ocidentais, provocou a alteração na sua ordem social tradicional. Os chefes mais velhos não
conseguiram administrar com eficiência aspectos fundamentais da vida coletiva, como a
organização do trabalho por gênero, a inserção dos jovens no mundo “civilizado”, a
prestação de serviço em troca de alimento e objetos industrializados e outros. A relação
com o mundo dos “brancos”, transformaram gradativamente os costumes Boe. Começaram
a criar animais domésticos, especialmente cachorros; consumir carne de gado; cultivar
roçados maiores e árvores frutíferas, considerando que o cerrado não oferecia fruto
suficiente para as coletas.
As práticas predatórias dos ocupantes externos, localizados ao redor da área Bororo,
provocaram a escassez dos recursos naturais do povo, especialmente de peixes, caça e
algumas aves. Atualmente é raro encontrar em suas terras a onça pintada, o gavião real e a
arara vermelha. A falta destas três espécies e de outros recursos culturais tradicionais
dificulta a realização de alguns rituais, mas não impede a sua prática. O povo está
constantemente buscando o fortalecimento da identidade e descobrindo novos
procedimentos para resignificar a cultura. Quando não encontram arara vermelha, por
exemplo, costumam pintar outros tipos de pena com as mesmas cores para enfeitar os
11
Enciclopédia Bororo, Vol. I
instrumentos cerimoniais. Quando não encontram uma onça para realizar o ritual do
funeral, utilizam apenas o couro deste animal que é cuidadosamente guardado para esse fim
e que é fundamental para a realização das atividades culturais.
Conforme Lévis-Strauss (1996, p. 220):
Quando morre um índio Bororo, a aldeia organiza uma caçada coletiva
[...], uma expedição contra a natureza. Esta atividade tem por objetivo
abater uma grande caça, de preferência uma onça, cuja pele garras e
presas constituirão o móri - vingança, recompensa, retribuição ou
pagamento - do defunto. Toda vez que um índio morre, não só seu
próximo, mas toda a Sociedade são lesados. O dano que a natureza
causou à sociedade faz com que tenha que pagar uma dívida.
A escassez de recursos singulares da cultura estimula a introdução de outras
alternativas similares. No caso dos enfeites, as mulheres são muito criativas na descoberta
de algo novo, de forma que a cultura material está sendo resignificada e com os mesmos
valores para o povo.
Estas mudanças culturais ocorridas em sociedades minoritárias e tradicionais,
especialmente as sociedades indígenas são explicadas no campo da antropologia. nesta
área uma diversidade de abordagens que não vamos aqui definir nenhuma delas.
Do ponto de vista do funcionalismo clássico, a “aculturação”, ou outras situações
decorrentes do contato, podem resultar na extinção de sociedades inteiras, como
aconteceu em alguns casos. É verdade que a convivência intersocietária resulta na mudança
de hábitos e costumes das sociedades, mas isso o anula o caráter da cultura original,
como afirma Caiuby (1993, p. 40):
[...] a perspectiva funcionalista, a sociedade como uma totalidade
integrada por partes interdependentes, onde umas tem uma importância
na manutenção do todo maior do que outras. [...] A mudança social não
se dá, como um processo que vai, mecanicamente, substituindo
elementos da cultura original por outro da cultura dominante, de tal
modo que a cultura original gradualmente se extinga ou fique
completamente descaracterizada.
Nesta perspectiva, presenciamos atualmente várias mudanças nas sociedades
indígenas brasileiras, mas não a extinção ou descaracterização de sua singularidade social.
Não dá para negar que o processo de contato tenha sido trágico em várias situações,
chegando à extinção de inúmeras sociedades indígenas, mas como diz Caiuby, (1993, p.
41): a cultura não é um produto acabado, um estoque de traços culturais que, a
semelhança de estoque genético, é passada como herança social às gerações mais jovens”.
Caso fosse assim, estas sociedades teriam desaparecido todas, com o efeito do contato e da
dominação ocidental. Ao contrário dessa realidade, o que se verifica no momento presente
é um revigoramento cultural de diversas sociedades indígenas, e não uma decadência em si.
A reformulação e resignificação dos elementos culturais externos, através do
processo de contato e convivência intercultural, trazem para as sociedades novo dinamismo
de vida, como continua afirmando Caiuby (1993, p. 42):
Esta perspectiva permite perceber a situação de contato não como a
destruição de modo tradicional de vida, mas como um processo que leva
a construção de um novo estilo de vida, com novas estratégias e
alternativas, onde a cultura tem uma dimensão essencialmente dinâmica
e adaptativa [...]. Cultura não é apenas comportamento aprendido, o
que a transforma em fenômeno estático, a estrutura social não implica,
necessariamente, um padrão equilibrado de interação onde não haja
espaço para o conflito.
A situação de conflito nas relações interculturais esteve presente no decorrer da
história Boe, no entanto, eles aprenderam a transformá-lo em convivência tolerável. As
mudanças socioculturais provenientes destas relações proporcionaram um reaprendizado na
organização política e nos espaços que lhes restaram. Não pretendemos sugerir que a
atitude tolerante do povo Boe frente à dominação tenha diminuído a sua indignação perante
a covardia dos colonizadores. Em várias situações históricas, eles expressaram este
sentimento de revolta, um exemplo pode ser visto no poema de Txibae Ewororo.
12
12
Poema de Txibae Ewororo, ou Lourenço Rondon Bororo - “OS ÍNDIOS QUEREM VIVER”. Publicado no
livro de SIQUEIRA, Elizabeth Madureira e outros. O Processo Histórico de Mato Grosso (1990, p. 267).
O homem branco, aquele que diz civilizado, pisou duro o na terra,
mas na alma do meu povo e os rios cresceram e o mar se tornou mais
salgado porque as lágrimas da minha gente foram muitas. [...] queremos
ser tratados como seres humanos e não como coisa. Como vamos mudar
o caminho de nossa história? Tomando as armas e enfrentando os
brancos como eles nos enfrentaram? Não, fazer isso seria igualar-se a
eles e as armas não resolvem os problemas. As armas são os argumentos
dos covardes. Nós não queremos imitar os brancos naquilo que eles mais
teriam de se envergonhar: O uso de armas para matar seus semelhantes!
Vamos nos unir.
Na época, os bandeirantes paulistas chegaram às terras de Mato Grosso com muita
ganância. No primeiro momento, queriam encontrar índios para suprir a mão de obra na
plantação de cana-de-açúcar. Depois exploraram a abundância de recursos vegetais e
minerais, como: madeira, poaia e pedras preciosas e começaram a comercializar no
mercado europeu. Bordignon (1986, ps. 07-10) relata que os bandeirantes utilizavam
estratégias astuciosas para envolver os Boe e facilitar a sua captura. Uma delas consistia em
trazer consigo “índio pacificado” e negros escravos de outras regiões do país para realizar o
contato e o aprisionamento dos “gentios”. A captura de índios foi um negócio lucrativo até
meados do século XVIII, quando o descobrimento de jazidas auríferas passou a ser o
principal alvo do processo de exploração. Inaugurava-se assim uma nova fase da história de
Mato Grosso.
Siqueira (1990, p. 11) aponta que os bandeirantes paulistas estavam à procura de
índios e, acidentalmente encontrou ouro nas barrancas do rio Coxipó”. A partir daquele
momento as bandeiras começaram a se instalar na região. Naturalmente esta invasão de
estranhos gerou conflitos para os moradores tradicionais da terra. Diversas batalhas foram
travadas entre “brancos” e índios e provocaram muitas mortes de ambas as partes. “E
assim, entre ouro e morte, infligidas pelos índios em defesa de seus territórios, nascia
oficialmente o Arraial de Cuiabá. Era o dia 8 de abril de 1719”,(BORDIGNON, 1986,
p.12). A ascendência do ouro fez Cuiabá se tornar uma das cidades mais populosas do país
e a de maior conflito entre “brancos” e índios. O resultado foi que “Em 1809, dos 600
guerreiros Bororo e suas famílias, ficaram alguns, misturando-se ou desaparecendo
junto aos demais”
13
.
Álvaro Koriga
14
lembra este período e conta como os Boe reagiram contra essas
frentes de ocupação.
Boe lutou muito, era bravo e forte, pois comia muito milho. andava
com flecha na mão para brigar. A guerra começou quando encontrou
invasores em suas terra. “Branco” queria acabar com os índios,
prepararam uma cerca para prender os Bóe, deixavam sem comida e
dava muita cachaça para beber. Mas os pajés fizeram “trabalhos” para
cair à cerca e afastar os brancos. Boe fugiu para a mata e foi
aumentando e se espalhando pelas aldeias, próximas ao Rio Coxipó.
Os conflitos perduraram por mais de um século, sem que ninguém atentasse para a
dizimação dos índios. Essa situação de conflito se tornava a cada dia mais onerosa para as
bandeiras, pois resultava em elevados gastos com armas e munição. Mas como negociar a
“paz”? Uma das estratégias adotadas foi utilizar os próprios índios estabelecidos na cidade
como intermediadores. Os laços de parentescos, somados aos presentes dos militares
abrandavam e convenciam os gentios” de que o confronto não trazia benefícios nem para
os índios nem para os colonizadores. Foi assim que no dia 16 de junho de 1886 o primeiro
grupo de Boe entrou pacificamente no povoado de Cuiabá entregando suas armas de
guerra. Sucessivamente outros grupos tomaram a mesma iniciativa. Em seguida os Bororo
foram conduzidos à presença do bispo e receberam o batismo. Para os moradores do
pequeno povoado, o poder do sacramento religioso teria trazido a “paz tão almejada”.
Iniciava-se assim uma nova fase. A domesticação” antes tentada pela força das
bandeiras e dos militares cedia lugar a uma nova estratégia de conquista capitaneada pelos
“soldados do evangelho”. Segundo Caiuby (1993, p.43), os missionários de Dom Bosco
receberam convite do governo mato-grossense para evangelizar os “selvagens bravios da
região, pois eram sem pudor, sem moral, ingênuos, supersticiosos, não gostavam de
trabalhar e viviam na miséria”. Diante deste convite não tardou para a igreja européia
enviar o padre Giovanni Balzola à Colônia Tereza Cristina com a missão de salvar as
13
Ibidem.
14
Representante do Conselho Comunitário e do grupo dos anciãos.
“almas perdidas’. E aqui, a missão salesiana começou reproduzindo os mesmos objetivos e
estratégias adotadas por Dom Bosco na Itália, cristianizar os “seres endemoniados”,
libertando-os das “crendices do paganismo”.
Silvia Caiuby (1993, 141) descreve a nova fase dos Boe-Bororo:
Esta imagem forjada de índios infantilizados, pouco aptos ao trabalho,
de verdadeiros seres endemoniados, permite que se legitime, aos olhos
dos salesianos, a relação de poder, dominação e tutela que sobre os
Bororo os missionários passam a exercer. “Ver triunfar o reino de
Cristo sobre o reino de Satanás”, (como afirma Dom Balzola em seu
diário) é, exatamente, exercer, na visão salesiana, esta ação
civilizatória.
Essa representação negativa da sociedade Boe falsificada no passado foi reafirmada
de geração em geração e perdura até os nossos dias. Conduta intolerante e preconceituosa
que configura as relações da sociedade não indígena com o povo, em várias situações.
1.2 - Aldeia Córrego Grande: Uma volta ao passado
Uma vez concluída a “pacificação” pelas bandeiras, os Boe foram reunidos em duas
colônias militares: Colônia Isabel, na confluência do rio Corrente com o rio São Lourenço e
Colônia Teresa Cristina, na confluência do São Lourenço com o rio da Prata.
As colônias indígenas, idealizadas por Couto Magalhães e organizadas pelos
militares, tinham a intenção de integrar os índios no sistema econômico nacional. No
entanto, esta iniciativa não trouxe os resultados esperados, pois os índios não eram
habituados ao trabalho, na agricultura. Causava-lhes estranheza trabalhar a terra para
garantir o sustento, enquanto a natureza podia oferecer tudo o que necessitavam.
O ideário do “enraizamento na terra” imaginado pelos colonizadores não poderia
dar certo numa cultura seminômade. Durante a temporada de caça e coleta, a aldeia inteira
arribava pelos cerrados e abandonava os trabalhos agrícolas.
O sistema de colônia para os Boe-Bororo foi mantido pelos missionários salesianos
entre os anos de 1895 e 1898. A partir da expulsão desses missionários, da Colônia Tereza
Cristina o sistema implantado pelos militares começou a desmoronar. Desfez-se aquela
organização “idealizada” e eles se espalharam novamente em pequenas aldeias.
Os Boe ainda estavam em processo de readaptação quando foram novamente
abordados, pela implantação da linha telegráfica ligando Corumbá à Cuiabá. A comissão
chefiada pelo General Antonio Ernesto Gomes Carneiro (nome do ao atual Posto Indígena
da aldeia Córrego Grande) teve como engenheiro principal, o militar Candido Mariano da
Silva Rondon, que mais tarde viria se tornar o “sertanista defensor” dos índios Boe-Bororo.
A implantação da linha telegráfica foi cercada de toda espécie de privações e de
doenças que dizimaram trabalhadores e índios.
Com o grupo de militares cada vez menor, Rondon não viu outra saída se não pedir
ajuda aos índios Boe da região do rio São Lourenço e do rio Itiquira. Diante da convocação
de Rondon, dois grupos se apresentaram para o trabalho: “um grupo chefiado pelo pajé
Baruréu da aldeia Okóge E-iáo, com 120 pessoas; o outro chefiado pelo cacique Oarine
Aribo Ekureu da aldeia Kejári, com 150 pessoas”.
15
Rondon confiou nos chefes Boe e teve
grande sucesso. Em pouco tempo a estação telegráfica do Itiquira foi inaugurada com muita
festa, cantos e danças tradicionais. A inauguração se deu no dia 21 de abril de 1901.
O trabalho do sertanista Candido Rondon não foi apenas o de implantar as linhas
telegráficas. Sua importância para os Bororo é especialmente o fato de ter demarcado um
importante território para o usufruto do povo.
Em seu Memorial Descritivo consta que o trabalho topográfico na Colônia Tereza
Cristina iniciou em 09 de novembro de 1895, com o levantamento hidrográfico de
reconhecimento do “Córrego Grande”, partindo da foz pela margem esquerda do rio São
Lourenço, em direção a cabeceira até a Serra dos Coroados. O Memorial indica um
território rico em hidrografia no período chuvoso e seco no verão.
16
O trabalho de
demarcação foi árduo e demorado, terminando somente em 27 de janeiro de 1897. A sua
homologação foi dada pelo então governador de Mato Grosso, Antonio Correia da Costa.
Sobre o território Bororo, Rondon descreveu em seu Memorial que “A Área Tereza
Cristina, pertencente aos índios Bororo, [...] ocupa grande parte do Rio São Lourenço,
15
Bordignon, (1986, p. 27).
16
Atualmente alguns afluentes do Córrego Grande não resistem o período da seca e desaparecem
prejudicando o principal fornecedor de água da aldeia.
este território é tradicionalmente dos Bororo e compreende sua região natural de
extensão”.
17
Segundo Rondon, o seu trabalho não seria concluído se não houvesse a permanente
contribuição dos Boe. Esta afirmação encontra-se no trabalho de conclusão de curso Koriga
e Kodureu (2000, p.9):
Parti para a Colônia no dia 7, [...] tomando informações diversas dos
índios que forneceram detalhadamente, sobre toda extensão da área [...]
que, foi feita com aproximação e não com rigor porque o Estado não
dispunha de recurso para mandar executar o levantamento completo.
Ressalvo assim a minha responsabilidade de engenheiro, confessando
que a área medida é aproximada, grosseiramente e não rigorosa.
Terminada a demarcação da Terra e criado o SPI - Serviço de Proteção ao Índio em
1910, a coordenação deste órgão organizou a área em três Postos Indígenas: “General
Gomes Carneiro”, “Presidente Galdino Pimentel” e Piebaga”.
Os Postos passaram a ser administrados pelos funcionários do SPI, que teriam a
responsabilidade e os cuidados necessários para a proteção do território contra os
interventores da região.
No entanto, a área sequer foi registrada. A partir de 1950 a 1964, os governadores
de Mato Grosso concederam gradativamente títulos de propriedades a terceiros, da terra
que pertencia aos Boe-Bororo, chegando ao absurdo de exceder o total da área demarcada
por Marechal Rondon.
Esta situação de escândalo serviu de alerta aos funcionários do SPI que, junto a
Inspetoria Regional, encaminharam vários protestos formais aos governadores da época.
Tais documentos foram ignorados com a justificativa de que os funcionários eram
incompetentes e não conheciam a Constituição Federal.
Não havendo nenhum encaminhamento jurídico a favor do povo, em junho de 1966
o governador Pedro Pedrossian, com o consentimento do ministro da agricultura, Ney
Braga, firmou um Convênio fraudulento entre posseiros e índios de forma que os posseiros
17
Daniel Koriga e Sebastião Akire Kodureu. Terra Indígena Tereza Cistina Trabalho de Conclusão de
Curso do Projeto Tucum. (2003).
receberiam o título das terras e os índios somente 100 novilhas, 10 reprodutores e um trator
de pneus. Com este Convênio os Bororo perderam 35.000 ha. das terras mais férteis da
área. Conforme Relatório de Dra. Edir Pina de Barros e Ms. Mário Bordignon,
18
“Em 03 de
agosto de 1966 o Convênio’ foi ratificado pela lei estadual nº. 2.630. [...] Em 22 de
janeiro de 1969 o Decreto nº. 64.018 assinado pelo presidente Costa e Silva oficializou o
Convênio”.
Com a criação da FUNAI em 1967, o então administrador Hélio Jorge Buker, tomou
ciência do Convênio e encaminhou à Procuradoria do Estado, novas denúncias apontando a
ilegalidade por se tratar de terras da União. Novamente os protestos do órgão indigenista
não surtiram efeito. O Convênio continuou vigorando e até o presente momento encontram-
se instaladas dentro da terra dos Boe, duas fazendas agropecuárias uma delas inclusive,
ocupa a cabeceira do Córrego Grande, o principal fornecedor de água desta aldeia. Situação
que trás muita tristeza ao povo, por se tratar de uma região demarcada por Rondon e pela
fartura de caça e pesca.
A última tentativa dos Bororo e seus parceiros, de recuperação da área invadida
pelos fazendeiros, foi a abertura de novo processo de desapropriação. Este processo tramita
no Ministério Público e aguarda as determinações finais para que os índios reintegrem a
posse de suas terras e ao mesmo tempo recebam uma indenização pelos danos causados a
esta área.
Apesar de toda luta, até o momento não obtiveram nenhum resultado concreto, por
parte do Ministério Público. A morosidade e a burocracia lhes deixam impacientes, mas
não perderam a expectativa de conseguirem retomar o que lhes pertence.
A área hoje denominada Terra Indígena Tereza Cristina se localizada nos
municípios de Santo Antonio do Leverger e Rondonópolis, entre o rio São Lourenço e rio
da Prata. Ali se localizam apenas duas aldeias: Piebaga e Córrego Grande.
O mapa a seguir mostra a Terra Indígena e sua região de localização:
18
Conferir: Relatório dos Estudos Antropológicos para Revisão de Limites da Terra Indígena Tereza Cristina
(MT): Bororo (2003, p. 01).
Fonte: FUNAI, 2006.
1.3 - Interpretação do presente
Atualmente Córrego Grande é uma das maiores aldeias dos Boe-Bororo com
aproximadamente 320 pessoas e 47 residências familiares. Novas casas continuam sendo
construídas. Além dos Boe-Bororo, mora na aldeia uma amazonense, ligada ao CIMI
Conselho Indigenista Missionário que, colabora com os trabalhos da escola e como
professora de língua portuguesa. Foi convidada pela comunidade e reside a mais de três
anos. O chefe de Posto da FUNAI também mora próximo há aldeia, como funcionário deste
órgão, colabora com a comunidade.
O processo das frentes de ocupação trouxe várias influências na vida do povo
Bororo e resultou em grandes mudanças de seus costumes. Segundo Bordignon (2001, p.
36), as mudanças se tornaram mais acentuadas com a atuação do SPI. Na época, foram
obrigados a aprenderem atividades braçais e a profissão de radiotelegrafista, vaqueiro e
agricultor. Com a implantação do cultivo da cana-de-açúcar aprenderam a fabricar rapadura
e a consumir muito doce. Hábito alimentar que prejudicou a saúde, especialmente bucal.
Uma das conseqüências desastrosas é verificada hoje, no grande mero de pessoas com
problemas dentários.
Uma parcela da mão de obra masculina foi e continua sendo ocupada em fazendas
da redondeza. O trabalho é especulativo e o ganho irrisório. A ausência dos homens,
especialmente dos jovens, prejudica as atividades culturais. O longo período fora da aldeia
e a falta do convívio comunitário resultam num ambiente de tristeza e solidão, tanto para os
que estão longe, quanto para as mulheres e as crianças que ficam na aldeia. Como disse
Fátima Korau: “Quando os homens vão trabalhar fora, a aldeia fica muito triste”.
A introdução do dinheiro na aldeia provocou a substituição de vários elementos da
cultura material do povo Boe-Bororo, por exemplo: a fabricação de objetos domésticos, de
artesanatos tradicionais, como: a cerâmica, o arco, a flecha, a peneira e outros. Hoje se
compra na cidade: panela de alumínio, arma de fogo, bacia de plástico, anzóis e tantos
outros. Estas mudanças foram ocorrendo num processo de evolução, considerando a
escassez dos recursos naturais e a influência consumista da sociedade capitalista.
Atualmente dependem dos produtos industrializados e com energia na aldeia, os
eletrodomésticos ganharam destaque.
Um aspecto relevante nesta comunidade é que apesar das mudanças provocadas por
situações de fora da aldeia, eles mantém suas práticas culturais. Estão num processo de
reconstrução e resignificação da cultura, conscientes da necessidade de implementarem
constantemente estratégias de organização, para se manterem fortes como sociedade
indígena.
Esse dinamismo cultural e identitário encontra-se fortemente arraigado em suas
práticas rituais e nas ações de defesa do seu território, consideradas espaços prioritários das
atividades socioculturais. Enquanto trilharem por esse caminho, acreditam que não deixarão
de ser Boe, mesmo com as constantes interferências e ameaças impostas pelos agentes
externos.
Nesse sentido, a afirmação de Neide Jereguinha
19
torna evidente a necessidade de
manter as terras indígenas livres dos grandes plantadores de soja, cujas pressões chegam às
aldeias com a sutileza e habilidade próprias do capitalista moderno.
Um dos grandes problemas da comunidade é o veneno jogado na soja
que vai para a cabeceira do Córrego Grande, contaminando a água que
nós usamos. Quando o reservatório coletivo da aldeia seca, as mulheres
utilizam água do Córrego para todas as necessidades de casa. E logo as
crianças começam com diarréia e vômito. Outro problema é a poluição
do ar, o vento traz o veneno das plantações das fazendas, causando
gripe forte, bronquite e até pneumonia nos adultos e crianças. Quando a
pneumonia é muito brava as crianças e os velhos não agüentam.
Estes e outros problemas são corriqueiros na relação dos Boe com a sociedade
envolvente. Se por um lado o contato trouxe o conforto e outras vantagens da modernidade,
por outro, causaram-lhes danos em diferentes aspectos.
Indagando aos moradores de Córrego Grande sobre as mudanças positivas ocorridas
na aldeia nos últimos dez anos, obtivemos as seguintes informações:
a) a nova construção da escola;
b) o Posto de Saúde e os auxiliares de enfermagem;
c) ter professores da própria aldeia;
d) a chegada da energia elétrica, fornecida através da Rede;
e) a venda do artesanato, aumentando a renda familiar;
f) a aposentadoria dos velhos, os salários dos professores e de outros funcionários;
Continuando as indagações sobre os aspectos que se agravaram nesse período,
apresentaram as seguintes constatações:
19
Professora da Educação Infantil e aluna do 3º. Grau Indígena, na UNEMAT.
a) a burocracia e a morosidade para conseguir o retorno da área que abrange a cabeceira
do Córrego Grande;
b) a diminuição da caça e da pesca;
c) a falta de alternativas de sobrevivência, obrigando os homens a trabalhar nas
fazendas da redondeza;
d) a perda de alguns velhos, inclusive de “Bari” (pajé);
e) a incidência de doenças nas crianças e velhos;
f) o alcoolismo que afeta parcela da comunidade causando descaracterização física e
moral das pessoas.
Mesmo com a perda de alguns Bari, a comunidade continua mantendo aspectos
culturais que são fundamentais na manutenção da tradição Boe. Estevão Bororo, um dos
professores do Ensino Fundamental destaca um dos momentos mais fortes e relevantes para
o povo:
Primeiro é o Funeral Bororo, ele mexe com a vida social da aldeia,
todos da comunidade se envolvem e participam. Mobiliza também outras
aldeias vizinhas. A morte para o Bororo é o ponto central da vivência da
cultura. Este é o grande momento de igualdade. O Funeral une todos os
clãs, uma reciprocidade total em torno do finado. Se outra festa
prevista e morre um Bororo, suspende tudo em função da morte.
A ênfase atribuída por Estevão é confirmada também pelas pesquisas
antropológicas. A riqueza do funeral é a expressão da identidade étnica do povo. Segundo
Viertler (1991, p. 57), “O funeral constitui um modo de restabelecer a ordem doméstica e
comunitária, a harmonia social e a integridade física dos enlutados. É, portanto, neste
ritual que os Bóe encontram o sentido de suas vivências”.
Outros aspectos destacados como de grande importância é a Festa da Onça Pintada,
um evento cultural marcado pela alegria. Todos dançam, as mulheres cantam e fazem
comidas típicas para celebrar. Pintam o guerreiro que caçou a Onça Pintada”.
20
20
Fátima Korau, representante da comunidade.
O Canto Ritual é outra manifestação cultural muito freqüente. “Para cada tempo
um canto próprio: o da tristeza, da alegria, do silêncio... Isto ajuda a manter a união da
comunidade. É bom o povo ficar sempre animado e contente. A alegria faz bem à saúde”.
21
Numa determinada época do ano a comunidade realiza a Festa da Subida do Peixe
22
,
fato tradicional muito significativo. É o momento em que os velhos cantadores ensinam os
cantos rituais para as crianças. “Na cantoria de pesca todos se juntam no centro da aldeia e
participam, envolvem crianças, rapaziada, velhos, mulheres e homens”.
23
As tradições culturais são mantidas também através da língua original dos Boe. Os
velhos têm um papel fundamental na manutenção da língua, eles são os grandes
motivadores da educação tradicional. Neide afirma que: a língua é algo de muito valor na
comunidade. Nunca vamos perder ou deixar de falar nossa língua materna. Os velhos
incentivam as crianças a falarem na escola e em casa também”.
24
Outra cerimônia de muito valor em Córrego Grande é o batizado das crianças.
Acontece após dois a três meses do seu nascimento. A professora Sandra Aroe
25
descreve
esse ritual e chama a atenção especialmente para a complexidade de cada fase e para o
requinte dos adornos utilizados pela criança. São pelo menos três dias entre preparação e
realização da festa. A criança recém nascida recebe o nome pertencente ao clã da mãe. Nas
vésperas do cerimonial, o pai ou um parente seu, fabrica o kiogwaro,
26
com o distintivo do
clã da criança que será acomodado na sua cabeça. As mulheres do lado paterno
confeccionam o boe etao bu,
27
ele é formado com penas pequenas e coloridas de acordo
com as características clânicas. Depois, providenciam o nonogo
28
, que será utilizado para
desenhar a pintura simbólica do clã, no rosto da criança. E desta forma cada etapa do ritual
expressa uma riqueza de significados e simbolismos, disse Sandra: “Não podemos deixar
de repassar a nossa tradição para as crianças, por isso, fiz este trabalho. Ele está à
disposição como material didático que vai contribuir na formação das futuras gerações”.
21
José Jerego, Cacique recém eleito.
22
Não foi possível identificar se é época da piracema ou não.
23
Valdina Togokiareudo, representante da comunidade.
24
Neide Jereguinha é professora da Educação Infantil.
25
Sandra Florize Aroe é professora em outra aldeia Bororo e aluna do 3º. Grau Indígena. Trabalho de
Conclusão de Curso do Projeto Tucum – Formação de Professores Indígenas para o Magistério, (2003, p. 13),
cujo título do trabalho é: Boe Eiedodu Nominação.
26
Buquê de penas coloridas de diferentes tamanhos.
27
Conjunto de enfeites com cinco peças.
28
Semente de urucum.
A exemplo dos rituais mencionados acima, são realizados muitos outros ao longo do
ano. A cada época corresponde um ritual, de maneira que os Bóe do rio São Lourenço
encontram sempre bons motivos para festejar.
Os eventos que promovem o envolvimento coletivo são expressões de auto-
afirmação, valorização das características próprias e estratégia pedagógica de educação das
crianças e jovens, na tradição dos Boe. Repassar os conhecimentos e manter vivos os
costumes é o principal objetivo dos velhos da aldeia. Desta forma o ensino o se
somente na e pela escola, mas também comunitariamente, na vida cotidiana da aldeia e
obedece a normas, tempos e espaços próprios.
O Baíto
29
ou Casa dos Homens é o lugar primordial onde a vida grupal acontece. A
estrutura arquitetônica original das aldeias é composta por casas que se dispõem em ordem
circular, em volta do Baíto, mais ou menos com a mesma distância entre si. É dividida em
duas metades, conforme o pertencimento de cada clã. É este o formato simbólico de
igualdade e complementaridade na organização social dos Boe”. Como disse Estevão
Bororo, em entrevista durante a pesquisa.
A aldeia de Córrego Grande conserva a estrutura tradicional. Ao lado Sul do Baíto
estão os Tugarege
30
e ao Norte, se localiza os Ecerae.
31
“Cada metade compreende quatro
clãs, e cada clã vários sub clãs. Cada um tem seu lugar marcado, suas obrigações nas
cerimônias, seus adornos, seus nomes e seus cantos”.(BORDIGNON, 2001, p. 48).
Esta divisão simbólica não provoca divergências ou atritos nas relações entre os
clãs, ao contrário, cada metade ao mesmo tempo em que é devedora, é credora da outra
metade. é permitida à metade Tugarege casar-se com a Ecerae e vice-versa. O funeral
de uma metade só pode ser realizado pelos membros da outra. De maneira que as atividades
culturais são celebradas em forma de complementaridade entre as duas partes.
De acordo com Viertler (1991, p. 160), a estrutura física da aldeia é o reflexo do
interior do Baíto, nos momentos de cerimônias sagradas ou não, pois os lugares são
ocupados de acordo com o prestígio social de cada membro participante”. O chefe de
29
Casa Grande localizada no centro da aldeia, com a porta de entrada voltada para a nascente do sol. Ao lado
desta casa há um grande pátio, onde também realizam as cerimônias. Este é o centro da vida cultural dos Bóe.
Bordignon (1986).
30
Homens e mulheres da metade exogâmica, do lado sul da aldeia Bororo. OCHOA, (1997, p. 232).
31
Membros da metade exogâmica do lado norte, da aldeia Bororo. OCHOA, (1997, p. 95).
maior importância no cerimonial, por exemplo, se acomoda no centro da casa e os sub-
chefes e demais membros do grupo, sucessivamente.
Se naquele espaço os homens têm maior prestígio, na organização familiar a mulher
é a autoridade. Por se tratar de uma sociedade matrilinear, elas são chefes e determinam as
ordens da casa. Os filhos pertencem ao seu clã e os homens depois de casados sempre
voltam à casa da mãe, pois lhe devem obediência e se sentem mais à vontade do que junto à
própria esposa. Elas não interferem nas atribuições que dizem respeito ao Baíto, onde os
meninos passam a morar, na fase da adolescência. Lá permanecem até atingir a maturidade.
Neste período os homens adultos, especialmente os velhos, repassam os conhecimentos da
tradição e da moral, único bem que um Bororo deixa depois da morte, pois seus pertences
são todos queimados após o funeral” (BORDIGNON, 1986, p. 43).
Manter esta organização social com a mesma complexidade continua sendo o
princípio fundamental da vida dos Boe da aldeia Córrego Grande. “Eles têm plena
consciência de que é apenas como índios que têm condições de figurar como grupo, sem se
perder na massa da população brasileira”. (CAIUBY, 1993, p. 245).
Essa sociedade faz questão de evidenciar suas características essenciais. Organiza-se
respeitando os processos coletivos e democráticos no que diz respeito aos interesses da
aldeia. A escolha do cacique, por exemplo, continua tendo a participação de todos e ele
permanece na função durante dois anos ou até que a comunidade permita. Caso vacile em
sua missão e não corresponda aos interesses de todos, é substituído. Esta é a regra geral.
Um outro aspecto que chama atenção nesta aldeia é a valorização da medicina
tradicional, exercida pelo seu curador, xamã ou pajé. Mesmo com idade avançada e quase
sem forças físicas, José Kadagare é sempre procurado para benzer e curar algumas doenças
que somente ele tem o remédio certo na hora exata. Apesar do Posto de Saúde, com os
médicos da FUNASA e os Auxiliares Indígenas de Saúde, estarem de prontidão para o
atendimento emergencial, o xamanismo e a ervas tradicionais têm seu espaço privilegiado.
Um dos temores atuais na aldeia é a perda de Kadagare, pois é o único “Bari”
32
, sábio e
curador que a comunidade possui. O pajé Brasil, seu companheiro dos rituais, faleceu no
ano passado. Segundo o depoimento do Cacique Jerego, a habilidade de curador não se
32
Xamã dos espíritos Bororo, origem, poderes, funções ou xamã das almas. (OCHOA, 1997, p. 59).
adquire com o tempo como ler e escrever, por exemplo. Pajé nasce pronto, vai se
desenvolvendo e se aperfeiçoando ao longo da vida”.
Para Caiuby (1993, p. 246), a religiosidade está entranhada na vida social do Boe,
eles vivem em função dessa prática, é por isso que podem utilizá-la para suas
reivindicações políticas, em busca de padrões mais flexíveis ou mais justos. Nesta constante
procura de mecanismos de autonomia econômica, financeira e cultural, esta sociedade está
descobrindo a cada dia o significado do que é ser Boe-Bororo ao longo dos séculos.
A escola é tida por eles como uma estratégia de fortalecimento social e cultural,
contribuindo com a formação coletiva e com o fortalecimento do povo organizado, frente
aos desafios que se avolumam.
Os velhos colaboram com a escola na transmissão dos conhecimentos tradicionais
para as crianças e os jovens, na esperança de que sejam no futuro, homens e mulheres
conhecedores e praticantes de seus valores morais e comportamentais como sempre foram
ao longo da história. Para Bruno Tawie, diretor da escola, “Em tempos passados a escola
teve influência negativa na cultura do Boe. Hoje ela tem uma nova postura política,
contribui na reafirmação de nossos valores e na interação com a sociedade não indígena”.
CAPITULO II
TECENDO OS CAMINHOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
O objeto da pedagogia não é ensinar matérias
específicas, mas desenvolver a capacidade de
aprender do sujeito aprender a aprender,
aprender a descobrir, aprender a inventar.
Cornelius Castoriadis
2.1 – Um sobrevôo na educação brasileira
Refletir sobre a educação é mergulhar no contexto social e histórico, relacionando-
os com as características específicas dos diferentes momento e espaços vivenciados pela
sociedade. Ao abordarmos a temática da Educação temos presente que estamos lidando
com um conceito bastante amplo.
É sabido que o processo educativo não se restringe apenas ao âmbito escolar ou
como afirma Pinto (2005, p. 29): “Na pedagogia clássica a educação só é entendida na fase
da infância e da juventude do ser humano”. Essa ponderação, por certo já bastante
evidenciada em trabalhos acadêmicos, nos será especialmente útil ao tratarmos da
educação escolar desenvolvida no âmbito das sociedades indígenas, dada a sua condição
de prática social recentemente incorporada naquele contexto cultural.
Ao longo da história foram formuladas dezenas de proposições sobre as
características, a amplitude e a abrangência do ato educativo. Não pretendemos aqui tomá-
las como objeto de estudo. Tomaremos como referência básica às conceituações propostas
por Álvaro Vieira Pinto
33
e Moacir Carneiro
34
por considerá-las adequadas à análise em
foco.
Para Pinto (2005, p. 29) “a educação é o processo pelo qual a sociedade forma seus
membros à sua imagem e em função de seus interesses”. Portanto, a sociedade atua
33
Álvaro Vieira Pinto é professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na cadeira de
História da Filosofia.
34
Moacir Alves Carneiro é ex-professor de Organização da Educação Brasileira na UFPB e na UnB. Fez
especialização na Universidade de Nova York e Doutorado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais
da Universidade de Paris. Consultor do PNUD/PROMED/MEC.
constantemente sobre o desenvolvimento da pessoa, com a intenção de formá-la e integrá-
la no meio social, conforme os valores vigentes num determinado tempo.
Por se tratar de um processo de natureza histórica antropológica, o ato educativo
desenvolve um conjunto de características individuais e coletivas, assim formuladas por
Pinto.
a) Fato Existencial – caracteriza a essência real, social e transcendental da realidade
humana;
b) Fato Social – determina a integração do cidadão no meio social, nas relações
econômicas, na ciência, nas instituições, etc. É um processo em que a sociedade se auto-
reproduz;
c) Fenômeno Cultural – transmite integralmente a cultura, conforme as possibilidades
e modelos existentes na sociedade;
d) Atividade Teleológica – tem por objetivo formar o indivíduo para o social, conforme
os interesses do grupo dominante;
e) Modalidade de Trabalho Social – educa os membros da comunidade para
desempenhar funções no meio social;
f) Fato de Ordem Consciente – suscita no ser humano a consciência individual e real
do mundo;
g) Processo Exponencial – nunca termina, é uma sucessão de aquisição e produção de
conhecimento, ao mesmo tempo.
Carneiro (2000, p. 32), corrobora com as perspectivas anteriores ao considerar
que a educação é “uma prática humana eivada de subjetividade e de ações
intencionalizadas que focam a construção histórica e coletiva da humanidade”.
Sem dúvida, enquanto uma ação educativa ela expressa o princípio da
reciprocidade entre nós e os outros; é uma construção na interação, no diálogo
compreensivo e nas relações de alteridade em que a aprendizagem e a formação da
cidadania acontecem, independentemente do espaço e do tempo (CARNEIRO, p. 35).
A educação em sua dimensão social e humana tem por finalidade possibilitar a
humanização dos indivíduos. Por isso tem um sentido de continuidade, de permanência e
transformação. Busca, permanentemente, as condições para o desenvolvimento e a
sobrevivência digna dos sujeitos na sociedade.
Se considerada sob a perspectiva legal, a educação brasileira passou a incorporar
nas últimas décadas um conjunto de atributos considerados até então de pouca relevância.
Para Carneiro (2000, ps. 21-22), “a Constituição de 1988 significou a reconquista
de cidadania sem medo. Nela, a educação ganhou lugar de altíssima relevância. O País
inteiro despertou para a causa comum”.
Para ele, a participação popular teve grande influência na conquista da educação
como direito de todos e com possibilidade de transformação da realidade. Os seus
princípios fundamentais foram assim sintetizados nos Artigos 206, 207 e 208 da
Constituição Federal de 1988:
I - igualdade e condições para o acesso e permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de idéias e concepções pedagógicas e coexistência
de instituições públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V – valorização dos profissionais do ensino, garantindo, na forma
da lei, planos de carreira para o magistério público, com piso
salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso
público de provas e títulos, assegurado regime único para todas as
instituições mantidas pela União;
VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII – garantia de padrão de qualidade.
O texto constitucional assegurou os meios necessários para os cidadãos se
tornarem sujeitos plenos e atuantes na sociedade em que vivem. Porém, Carlos Abicalil
35
em sua avaliação sobre a educação nacional
36
nos últimos governos, aponta um
distanciamento crescente entre os direitos sociais reconhecidos na Constituição Federal e
a conquista real de uma vida mais digna. Ele expressa indignação ao afirmar que a
definição de políticas e programas e as reformas propostas pelos governos (especialmente
a tributária), são no mínimo contraditórias se considerados os objetivos educacionais e os
princípios federativos expressos na Constituição: “A educação, direito de todos e dever do
estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
35
Deputado federal
e
ex-presidente da CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação.
36
Artigo intitulado: Avaliação, Direito e Democracia. In: Retrato da Escola no Brasil (2004).
o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e do
trabalho”
37
.
Ao comentar sobre a Lei de Diretrizes e Base, Carneiro (2000, p. 32), destaca que
a educação escolar ao se referir ao mundo do trabalho e à prática social apresenta quatro
conceitos estruturantes do mapa da escola, enquanto palco principal do processo
educativo. São eles: “Prática Social, Mundo do Trabalho, Movimentos Sociais e
Manifestações Culturais”. Passaremos a um breve comentário sobre cada um destes
conceitos.
a) Prática Social atividade proveniente da comunidade escolar envolvendo ações
que contribuem na sociabilidade dos indivíduos;
b) Mundo do Trabalho a escola é o local propício de preparação para a
cidadania, para a convivência com responsabilidade na sociedade e na luta pela
vida com dignidade;
c) Movimentos Sociais a escola é o ambiente que pode contribuir nas ações
coletivas e na construção de novos espaços alternativos, visando uma sociedade
mais igual;
d) Manifestações Culturais espaço propício às manifestações da diversidade
cultural brasileira presente na escola, devendo ser também um ambiente de
fortalecimento das identidades próprias.
Carneiro (2000, p. 35), aponta ainda que a mesma lei no artigo 3º, ao tratar dos
princípios e fins da educação nacional”, estabelece que o ensino na escola deve ser
ministrado com base nos seguintes princípios:
37
Conferir: Artigo 205 da Constituição Federal do Brasil.
I. Igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola;
II. Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura,
o pensamento, a arte e o saber;
III. Pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas;
IV. Respeito à liberdade e apreço à tolerância;
V. Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
VI. Gestão democrática do ensino público;
VIII. Garantia de padrões de qualidade;
IX. Vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas
sociais;
.
Como pode ser visto, a sociedade caminhou com sucesso na garantia legal dos
direitos individuais e coletivos, mas a educação escolar, até aqui, ainda não foi
plenamente universalizada.
38
Luiz Augusto Passos (2004, p. 49)
39
destaca dentre os dados do Sistema de
Avaliação do Ensino Básico - SAEB a seguinte realidade:
A pesquisa [...] mostra um dramático desajuste de gestão, pessoas,
profissionais, infra-estrutura material e subsídios necessários à
implementação do processo pedagógico, gerando frustração
pessoal e contradição entre o que a educação anuncia e o que ela
38
O Mapa do Analfabetismo no Brasil, do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira, mostra que em 2001 o Brasil tinha uma população de 12,4% de analfabetos, de 15 a 60
anos. Conferir: http://www.inep.gov.br/estatisticas/analfabetismo/
39
Retrato Bem Temperado da Cultura Escolar Brasileira. In: Retrato da Escola no Brasil (2004).
faz. Difícil é o professor defender autonomia, ideais de promoção
humana, profissional e social via escolarização, quando o cotidiano
mostra que o sistema não ratifica essa mensagem explícita da
educação. Paralisações, greves, meses sem receber salários [...],
enfim, e é duro dizer, a instituição se desqualifica ao marginalizar
e perder seus melhores quadros e fazer sofrer nas suas malhas de
controle burocrático as melhores iniciativas, os educadores mais
criativos, compreensivos e apaixonados pelo que fazem.
Seguindo esta análise, o autor revela que a escola possui um envolvimento
histórico com interesses medíocres, situações inconseqüentes ao sistema educacional. Não
é raro ela servir de “curral eleitoral”, local de disputa de cargos e trocas de favores. A
legalidade dos direitos não garante a prática dos dirigentes políticos, inclusive na
valorização profissional dos educadores. Tanto a escolha como a qualificação destes
profissionais, são elementos fundamentais para a educação brasileira, porém sem uma
política séria instituída.
A realidade vulnerável da escola abre espaço para a manipulação, o silenciamento
e o descompromisso profissional dos educadores. A arbitrariedade, a inconseqüência, a
interferência política, a instabilidade dos dirigentes da escola e outros fatores, além de
repercutir na qualidade precária do ensino público, gera fragilidade no sistema
educacional e falta de credibilidade na instituição escolar.
Outro agravante apontado na avaliação do SAEB, segundo o autor é a
discriminação das redes escolares nos diferentes estados do País. A situação de
precariedade da educação, em todos os níveis, se evidencia com mais ênfase nas regiões
norte e nordeste se comparada ao sul e sudeste do Brasil.
Passos (2000, p. 47) enfatiza que:
O triste panorama de abandono, em que se faria necessária uma
ação de empenho muito maior [...], para buscar equalizar
conhecimentos, informações e condições, não parece dirigir-se
nesta direção. Ao contrário, há uma cultura da prepotência, aquela
ponteada por caciques políticos, que utilizam a manutenção da
extrema penúria para que as pessoas acabem por vender a alma.
Isso revela que a melhor educação é oferecida onde as populações apresentam
maiores condições econômicas. O círculo vicioso da pobreza já perdura por longas
décadas, embora os órgãos oficiais da educação continuem anunciando investimentos na
área e propagando a criação de redes, programas e projetos educacionais.
40
Castoriadis (2000, p. 96) parece cético quanto à possibilidade de que políticas de
seriedade, de compromisso e transformação social, venham a existir de fato no contexto do
capitalismo atual:
40
“Há que se considerar que o patamar brasileiro de investimento público em educação é muito baixo: em
torno de 4% do PIB (Produto Interno Bruto). As vinculações constitucionais de recursos resultantes de
impostos de 18% para a União e de 25% para Estados e Municípios, no mínimo, raramente se cumprem, o
controle social é ineficiente e as contas automatizadas com repasse decendial não se efetivaram”. ABICALIL,
Retrato da Escola no Brasil. (2004: p. 26).
O que até agora chamamos política foi quase sempre uma mistura
na qual a parte da manipulação, que trata os homens como coisas a
partir de suas propriedades e de suas reações supostamente
conhecidas, foi dominante. O que chamamos política
revolucionária é uma práxis que se dá como objeto a organização e
a orientação da sociedade de modo a permitir a autonomia de
todos, reconhecendo que esta pressupõe uma transformação radical
da sociedade. [...] Concordaremos facilmente que uma tal política
nunca existiu até hoje. Como e por que poderia existir agora?
Sobre o que poderia apoiar-se?
Para o autor, a política capaz de mudar as estruturas só será possível quando os
cidadãos se sentirem livres, participantes, responsáveis e encamparem ações autônomas
com objetivo de construir uma sociedade com equidade e justiça. Esta autonomia não
acontecerá simplesmente a nível pessoal, mas através de uma rede complexa de relações.
Esta rede permitirá gradativamente, a instauração de um poder coletivo com capacidade
de expandir, organizar e transformar a sociedade.
Finalmente, retomamos a reflexão sobre a finalidade da educação ao apresentar
algumas questões discutidas no Relatório Jaques Delors (2003). Este Relatório indica Os
quatro pilares da educação contemporânea: Aprender a Conhecer; Aprender a Fazer;
Aprender a Conviver e Aprender a Ser. Ele foi “formulado por um grupo de personalidades
mundiais da educação, coordenado por Jaques Delors a pedido da UNESCO, que surge
como mapa e bússola para orientar os educadores”.
Segundo o seu ponto de vista, a educação desenvolvida no espaço escolar tem a
responsabilidade de formar integralmente o indivíduo, preparando-o para o exercício da
cidadania, para a independência, moral, intelectual, profissional e afetiva. Os Projetos
Pedagógicos da escola deverão ser rotas de navegação num mundo em constantes
transformações.
Um dos pilares da educação proposto no Relatório Delors é Aprender a Conhecer,
pois “as instâncias educativas tem pela frente o desafio de pensar não só o que ensinar, mas
como ensinar, [...] para despertar o desejo de aprender e estimular a aquisição de
aprendizagens significativas, formando base sólida para a expansão de conhecimento”.
Portanto, a maior preocupação da escola não deve ser o volume de conhecimento
acumulado, mas o despertar de interesse, de prazer e de curiosidade intelectual no
educando. Desse modo, os indivíduos não ficariam estagnados no tempo, pois as
motivações assimiladas lhes dariam estímulos para a busca constante de novas idéias e
para o desenvolvimento de suas potencialidades.
O Relatório Delors aponta ainda, a necessidade da proposição de uma nova
pedagogia para a educação, de forma que os seus quatro pilares - conhecer, fazer,
conviver e ser - sejam o alicerce que fundamenta a formação do cidadão. Assim a
aprendizagem não se limitaria à preparação para o mundo do trabalho, mas, sobretudo ao
desenvolvimento das relações humanas. De acordo com o Relatório é fundamental:
Capacitar as pessoas a por em prática os seus conhecimentos e a
enfrentar a diversidade do mundo do trabalho. No mundo
globalizado em que a tecnologia avança excessivamente, não basta
o aperfeiçoamento exclusivo e individualizado. É necessário
desenvolver competências cognitivas, produtivas, relacionais e
pessoais. (2003, p. 3).
Nessa perspectiva, o educador deverá ser um profissional flexível e criativo em
suas ações. A concepção de educação no mundo pós-moderno demanda um espaço
propício à preparação para a convivência entre as pessoas, as organizações e os
diferentes povos.
Como foi dito no início deste capítulo, a educação tem uma ampla dimensão que
ultrapassa o ensino ofertado na escola. É através da ação educativa, seja na família, na
comunidade, na sociedade ou em outro ambiente, que o indivíduo desperta suas
potencialidades de ser humano e constrói seu universo de valores. A escolha e a decisão de
cada cidadão podem contribuir com a mudança dos padrões de justiça e de direito. Ainda
que a educação apresente várias contradições em sua prática, nosso compromisso é
vislumbrar, a partir dela, um futuro de possibilidades. Ou nas palavras de Edgar Morin
(2003, p. 75).
Podemos igualmente confiar nas possibilidades cerebrais do ser
humano ainda em grande parte inexplorada; a mente humana
poderia desenvolver aptidões ainda desconhecidas pela
inteligência, pela compreensão, pela criatividade. Como as
possibilidades estão relacionadas com as possibilidades cerebrais,
ninguém pode garantir que nossas sociedades tenham esgotado
suas possibilidades de aperfeiçoamento e de transformação e que
tenhamos chegado ao fim da História. Podemos esperar progresso
nas relações entre humanos, indivíduos, grupos, etnias, nações.
Isso posto, passamos a discutir a seguir, os caminhos propostos para a educação
escolar indígena tendo presente que a escola é um elemento cultural externo e está sendo
progressivamente incorporado ao quotidiano das aldeias. Como tal, a escola pode ser
configurada tanto como uma instituição promotora de dependências e do enfraquecimento
cultural, como um instrumento gerador de autonomia.
2.2 - Nas Trilhas da Educação Escolar Indígena
2.2.1 - Antecedentes à década de oitenta
No capítulo anterior vimos que a educação das crianças e dos jovens Bóe ocorre
no quotidiano por meio dos rituais, das histórias narradas pelos velhos e dos ensinamentos
compartilhados no âmbito social e familiar. “Nas sociedades iletradas não existe saber
graficamente conservado pela escrita e, contudo, há transmissão do saber pela prática
social, pela via oral e, portanto, há educação”. Pinto (2005, p. 31).
A escola constitui-se em apenas mais um lugar de aprendizagem, um espaço físico
e simbólico que viabiliza um saber específico até então indisponível para essas sociedades.
Como um elemento cultural externo, demanda a instituição de espaços, tempos e condições
apropriadas para o seu desenvolvimento. Mas será que esses requisitos foram, até aqui,
devidamente equacionados? Será que a escolarização indígena se deu de forma adequada
e compatível com os interesses e necessidades dessas comunidades?
Não pretendo nesse trabalho exaurir os aspectos relevantes da história da Educação
Escolar Indígena (o que tem sido feito satisfatoriamente por diversos pesquisadores)
41
. Meu
propósito principal é evidenciar o surgimento, a consolidação e o declínio do paradigma
colonial, ao tempo de indicar o afloramento de uma nova perspectiva de escolarização
pautada nos interesses e necessidades dos próprios índios.
Para iniciar o debate ressaltamos um depoimento do professor Estevão Bororo, que
julgamos emblemático para ilustrar os dois contextos. Diz o professor: Hoje a educação
escolar indígena oferece oportunidades para o povo construir e reconstruir sua história,
sua política e ensina a gente a conviver com outras sociedades. Em outros tempos não era
assim”.
42
Esta constatação nos remete à segunda metade do século XVI, quando os
missionários jesuítas iniciaram a escolarização para os índios no Brasil. De acordo com os
registros, o projeto de colonização de D. João VI associava a conversão dos “gentios” ao
catolicismo e, para tanto, as escolas jesuíticas seriam os seus principais instrumentos.
Entre os séculos XVI e XVIII a coroa portuguesa instaurou uma “parceria
educativa” com o objetivo de civilizar e catequizar os indígenas. Para consolidar tal projeto
catequético convocou diferentes instituições, dentre elas a Companhia de Jesus e outros
religiosos católicos, os soldados da milícia colonial e até mesmo pessoas e grupos leigos
interessados nessa santa cruzada
43
.
Conforme Secchi (2002, p. 65), entre o final do século XVII e início do século
XVIII, Sob a influência do padre Antonio Vieira [...] consolidou-se um modelo escolar
centrado no binômio conversão à cristã e preparação para o trabalho’, que
disponibilizou mão-de-obra interna e externa”.
41
Darci Secchi; Márcio Silva; Luis Donisete Grupione; Mariana K. Leal; Rosa Helena Dias da Silva; Edir
Pina de Barros e outros.
42
Entrevista gravada com o professor Estevão Bororo, na aldeia Córrego Grande, no dia 05/11/05.
43
Maria Paula Vanucci, Relatório de Avaliação do Projeto Inovador de Curso para Indígenas (2003, p 38)
Durante todo o período colonial a política de educação escolar foi marcada por
práticas educativas de aniquilamento da cultura nativa, negação da identidade e integração
à sociedade nacional.
A prática integracionista operacionalizada pela escola se valeu da alfabetização em
língua portuguesa e da proibição de utilização da língua materna. Esta tática, além de
favorecer a imposição do cristianismo, promoveu a fragilização das instituições sociais e da
organização política e familiar das comunidades.
O apoio de governos da época favoreceu a presença de religiosos em atividades
catequéticas e educacionais. Uma de suas primeiras providências foi aglomerar os índios
em grandes aldeamentos e construir internatos e escolas para facilitar os trabalhos. Foi por
meio da alfabetização e do convívio quotidiano que a ngua portuguesa e o modo de vida
ocidental foi progressivamente se consolidando no interior das escolas. “Introduziram a
história e os valores da sociedade dominante, promovendo uma mudança de caráter
conflitivo não em relação às condições reais de reprodução da vida dos grupos, como
também ao nível da representação que fazem de si”.(FERREIRA, 1992, p. 167).
Este modelo de educação, associado à ideologia católica, trouxe conseqüências
danosas na ordem social e na visão de mundo dos indígenas. Diversos povos foram
obrigados a se juntar e se organizar conforme a lógica da moral e dos ideais dos
missionários religiosos”. O convívio de povos com tamanha diversidade lingüística causou
uma verdadeira babel. Segundo Carneiro apenas os grupos de língua parecem ter
ficado imunes a esses conglomerados multilingüísticos”. (CARNEIRO, 1998, p. 12).
A política da homogeneização consolidada ao longo de todo o século XIX perdurou
até a década de 80, do século XX.
Além dos danos no campo da cultura, os grandes aldeamentos foram responsáveis
pela proliferação de males que afetaram fisicamente a população indígena. Conforme a
afirmação de Carneiro (1998, p. 13):
Particularmente nefasta foi a política de concentração da população
praticada por missionários e pelos órgãos oficiais, pois a alta densidade
dos aldeamentos favoreceu as epidemias, sem, no entanto garantir o
aprovisionamento. O sarampo, a varíola, a coqueluche, a catapora, a
gripe, o tifo, [...], assolaram as aldeias [...] fizeram os índios morrerem
tanto de doenças quanto de fome, a tal ponto que os sobreviventes
preferiam vender-se como escravos a morrer a mingua.
Segundo a autora, a mortandade indígena deveu-se também a outras causas além
dos aglomerados e do contato com os microorganismos causadores da epidemia. Ocorreram
também confrontos violentos entre índios “reunidos” e índios “hostis”. Após os combates
sucedia a escassez de alimentos e a fuga para regiões desconhecidas ou desprovidas de
recursos. Os grupos que sobreviveram a tantas tragédias encontram-se, quinhentos anos
depois, lutando pelo ressurgimento das suas culturas e pela reconstrução do seu projeto de
vida.
A história demonstra que a introdução da escola e, conseqüentemente da escrita, nas
culturas indígenas, foi uma experiência sofrida e desagregadora. A educação tradicional e a
pedagogia de cada povo, raramente foram consideradas. No imaginário dos colonizadores
não residia a idéia de que os índios tinham a capacidade de pensar e educar seus filhos de
maneira adequada. Segundo Freire (2004), os missionários se escandalizavam com o modo
de relacionamento entre adultos e crianças. A forma com que corrigiam os erros causava
espanto aos ocidentais, tanto na escola, quanto no aprendizado cotidiano com os pais, com
os velhos e com toda a comunidade.
No século XVI, o princípio educativo indígena mais criticado foi aquele
detectado por um missionário jesuíta, quando registrou, surpreso, que
pais e mães indígenas amam os filhos extraordinariamente, lamentando,
porém, que nenhum gênero de castigo têm para os filhos, nem pai
nem mãe que em toda a vida castigue nem toque em filhos.
(CARDIM
apud FREIRE, 2004, p.16).
Passado este período, a educação escolar para os índios encaminhou-se no sentido
da sua “integração na sociedade nacional”. No início do século XX, através do Decreto nº.
8.072 de 20 de junho de 1910, criou-se o Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos
Trabalhadores Nacionais SPI. A partir daí todos os assuntos indígenas passaram para a
responsabilidade do governo federal através do Ministério da Agricultura.
Segundo Ferreira (1992, p. 167).
A criação do SPI, em 1910, serve de marco para a segunda fase da
história da educação para os índios do Brasil. Após quatro séculos de
extermínio sistemático das populações indígenas, o Estado resolveu
formular uma política indigenista menos desumana [...]. Houve a
preocupação, pelo menos expressa, com a diversidade lingüística e
cultural dos povos indígenas do país.
Esta preocupação não dizia respeito propriamente às diferenças étnicas dos vários
grupos, mas ao tempo de contato com os “brancos”.
E a partir de 1953, os missionários iniciaram a adoção de nova estratégia de
educação escolar em que deixaram de priorizar maciçamente o ensino da religião para
investir na formação profissional dos indígenas. Estava posta uma nova forma de colonizar.
A preparação dos índios para o trabalho (especialmente a lidar com o gado, com a
agricultura e com outros serviços domésticos) viria a facilitar a sua integração na sociedade
nacional. A meta desejada era transformar os índios em trabalhadores a serem assimilados
pelo mercado regional.
Como forma de atrair a clientela à escola e amenizar a sua característica impositiva,
o SPI criou um programa de adaptação dos prédios escolares, transformando-os em “casa
dos índios”. Nesses locais passaram a morar diversas famílias e nas oficinas construídas
junto às casas eram ensinadas práticas agrícolas para os meninos e lides domésticas para as
meninas.
Desta forma, não os prédios escolares foram ajustados à nova proposta, mas
também os seus currículos sofreram modificações, ainda que a preocupação em atender a
diversidade lingüística e cultural nunca tenha sido considerada. Esta tentativa de
profissionalização dos indígenas durou até aproximadamente a década de sessenta e foi
progressivamente abandonada com a extinção do SPI e a criação da FUNAI.
Em 1967 o governo brasileiro criou Fundação Nacional do Índio FUNAI e deu
início a uma fase de atendimento escolar, desta feita, com a preocupação com o ensino
bilíngüe e com a diversidade cultural dos povos. (FERREIRA, 1992).
A criação do Estatuto do Índio, (Lei 6001/73), veio a reforçar as propostas da
FUNAI, tornando obrigatório o ensino das línguas indígenas nas escolas. Iniciou-se então,
um investimento na capacitação dos próprios índios, para que eles pudessem assumir as
funções educativas em suas comunidades.
Com esta iniciativa a FUNAI estaria colocando em prática um dos princípios da
Convenção 107, realizada em Genebra em 1957, no que diz respeito aos direitos
lingüísticos: “Será ministrado às crianças pertencentes às populações interessadas, ensino
para capacitá-las a ler e escreverem sua língua materna, ou, em caso de impossibilidade,
na língua comumente empregada pelo grupo a que pertençam”. (FERREIRA, 1992, P.
168).
O propósito da FUNAI de preparar profissionais indígenas para assumirem o ensino
das línguas recebeu o apoio do Summer Institute of Linguistics (SIL),
44
que desejava fazer
pesquisa lingüística concomitante a atividades religiosas nas aldeias.
O modelo lingüístico adotado pelo SIL era constituído da descrição técnica das
línguas indígenas para a elaboração de escrita que se aproximasse da análise
empreendida por lingüistas altamente especializados”. (FERREIRA, 1992, p. 170). Este
modelo tinha a intenção de inviabilizar o ensino da língua por profissionais que não fossem
do SIL e pelos próprios membros da comunidade indígena. Esta estratégia garantia a sua
permanência nas aldeias, aliciando e doutrinando os índios à religião evangélica. Desse
modo, foram mantidos os interesses civilizatórios do Estado brasileiro, promovido por
outras agências catequéticas voltadas para a integração dos índios na comunidade nacional.
2.2.2 – Perspectivas de mudança
Estamos num momento importante da Educação Escolar Indígena, num
período de transição entre a escola para índios imposta desde a
colonização e a nova escola indígena construída pelos índios
45
.
Francisca Novantino - professora Paresi
44
Agência missionária protestante norte-americana que tem vinculação com centros universitários que
pesquisam línguas nativas, criada por William Cameron Townsend. In: Relatório de Avaliação do Projeto
Inovador de Curso para Indígenas, (VANUCCI, 2004, p. 10).
45
In: GRUPIONE, Luis Donisete. Um Território Ainda a Conquistar. Publicação do Ibase. (2004, p. 33).
A partir da década de 1980
46
multiplicam-se as organizações governamentais e não
governamentais de apoio aos índios. Nasceu também a primeira organização indígena de
âmbito nacional, a UNI, a partir da qual se formaram outras organizações regionais e locais.
Foram ampliados também os Encontros de Educação Escolar Indígena, promovidos
pelas Organizações Não Governamentais, Movimentos Indígenas e pelos Órgãos Públicos
de Educação, em que foram produzidos documentos de reivindicações em favor da
denominada “escola diferenciada”.
47
Iniciava-se, assim, um longo processo de mobilizações
sociais e políticas, de estudo e de reflexões críticas, não apenas por parte da sociedade civil
organizada, mas, sobretudo, dos povos indígenas e de suas organizações.
A presença forte e marcante das lideranças indígenas nos cenários nacional e
internacional resultou, pela primeira vez, na aprovação de um quadro jurídico que
regulamentou as relações do Estado com as sociedades indígenas contemporâneas. A
Constituição de 1988 e a legislação subseqüente reconheceram os direitos dos índios às
suas nguas, organizações, costumes, crenças, tradições e ao domínio das terras que
tradicionalmente ocupam.
A tentativa promovida pelo SPI e pela FUNAI de integrar os índios à sociedade
nacional não se concretizou. Ao contrário, eles sobreviveram e retomaram o processo de
fortalecimento cultural e lingüístico e consolidaram uma atitude contrária aos propósitos de
integração dos órgãos tutores.
Hoje, o Brasil possui uma das Constituições mais avançadas em relação aos direitos
indígenas. Este é realmente um marco diferencial em relação às políticas integracionistas
que vigoraram até quase o final dos anos de 80. Ela abriu aos povos indígenas a
perspectiva de afirmação e reafirmação de seus valores culturais, língua, tradições e
crenças”.
48
Além da Constituição Federal, existe um conjunto de leis, decretos e normas que
estabelecem procedimentos administrativos e disciplinares de reconhecimento e proteção
46
ALBUQUERQUE, Judite Gonçalves. Políticas Indigenistas na base das relações Estado
Brasileiro/Sociedades Indígenas: uma breve retrospectiva histórica. [artigo digitado].
47
Dentre os principais documentos, conferir a Declaração de Princípios dos Professores Indígenas do
Amazonas, Roraima e Acre, publicada no RCNEI (1988, p. 29).
48
Referenciais Curriculares para as Escolas Indígenas RCNEI (1998, p. 32). Publicado pelo Ministério da
Educação e Cultura – MEC.
dos direitos indígenas. Essa Legislação foi elaborada com base na Constituição Federal e na
Lei Federal nº 6001/ 1973 conhecida como Estatuto do Índio.
Com relação à educação, atitudes “civilizatória, colonialista e proselitista” sempre andaram
juntas no Brasil (SILVA e AZEVEDO, 1995, p. 149).
A partir da década de 80, essa relação começou a dar lugar a uma atitude de respeito
e legitimação para com os direitos indígenas.
Depois dos anos 90, a educação ganhou um novo impulso, quer no âmbito federal
quanto nos estados e municípios. As novas palavras desta feita seriam, conforme afirmação
de Secchi (2001, p.16):
Educação bilíngüe e intercultural, currículo específico e diferenciado,
processos próprios de aprendizagem. Todos esses termos precisavam ser
materializados no cotidiano das escolas. Porém, o poder público não
estava preparado técnico e administrativamente para assumir essa
tarefa como também não existia legislação específica para tais
orientações.
Segundo este autor, foi a partir de um “vazio legal”, das pressões dos próprios
índios e de seus órgãos de apoio, que o governo federal e o Ministério da Educação - MEC
tomaram a iniciativa de adotar algumas medidas que resultaram na “atual arquitetura
jurídica e administrativa para as escolas indígenas”.
A primeira medida de impacto foi decorrente do Decreto Presidencial nº. 26/91, que
passou a responsabilidade da educação escolar indígena para o MEC atribuindo às
Secretarias Municipais e Estaduais de Educação, a competência de incluir no sistema de
ensino regular, todos os níveis e modalidades. Após o Decreto 26, a Portaria
Interministerial 559/91 definiu as ações e os programas a serem implementados nas ou
pelas escolas indígenas.
Ao mesmo tempo foi criado no MEC o Comitê Nacional de Educação Escolar
Indígena, para subsidiar a elaboração dos planos de ão dos estados e municípios. Esse
Comitê elaborou as “Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena” que
veio a definir os princípios da ação educativa nessas escolas. A partir de 2001 este Comitê
foi substituído pela comissão Nacional de Professores Indígenas.
Com a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional 9394/96, a educação escolar
para os povos indígenas ganhou um novo reforço, e passou a ser preconizada em dois dos
seus Artigos (78 e 79) das “Disposições Gerais”.
Outro instrumento importante foi à publicação dos Referenciais Curriculares
Nacionais para as Escolas Indígenas RCNEIs, publicação do MEC de 1998, que deu um
novo perfil a proposta de escola diferenciada. Atualmente as normas de funcionamento das
escolas se ancoram em todas essas leis, além do Parecer 14/99 e da Resolução 03/99 da
Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional. O Plano Nacional de Educação Lei
10.172/2001- traça os objetivos e metas para a educação escolar indígena e estabelece
prazos para a sua execução. Além disso, valoriza os conhecimentos e saberes milenares do
povo indígena e define uma nova função social para as suas escolas.
No que trata da atenção aos profissionais da educação, o MEC lançou em 2002 os
Referenciais para a Formação de Professores Indígenas, com a finalidade de orientar a
formação no magistério intercultural, isto é: aos professores em serviço, serão
possibilitadas a complementação da educação básica e, ao mesmo tempo, a formação em
nível médio. Um dos objetivos dos cursos é: Ser instrumento de interlocução entre os
saberes da sociedade indígena e a aquisição de outros conhecimentos: pontilhão de dois
caminhos, lado a lado, de conhecimentos indígenas e não-indígenas”.
49
O novo perfil para
estes profissionais foi discutido por diversos povos indígenas e apreciado por antropólogos,
lingüistas e outros profissionais que atuam no campo da educação diferenciada.
50
Embora as leis que estabelecem mudanças na educação escolar indígena sejam de
um amplo horizonte, os desafios para que sejam cumpridas, ainda é muito grande.
Francisca Novantino,
51
chama a atenção dos “parentes”, dizendo: “Precisamos conhecer as
leis e os direitos indígenas, porque nós temos o direito de ter uma educação
49
Conferir: TAUKANE, Darlene. In: Referenciais para a Formação de Professores Indígenas/MEC (2002, p.
25).
50
Em Mato Grosso, por exemplo, os professores indígenas tiveram a oportunidade de realizarem estas
discussões em algumas etapas do curso do Projeto Tucum Formação de Professores Indígenas para o
Magistério. E ainda durante os cursos de capacitação sobre os Referenciais Curriculares Nacionais, realizados
pela SEDUC/MT, de 1999 a 2000.
51
Índia Paresi, educadora e representante indígena no Conselho Nacional de Educação por 4 anos.
Atualmente é presidente do Conselho de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso.
diferenciada”,
52
esta frase confirma a necessidade de viabilizar na prática aquilo que as leis
garantem, desde 1988.
Um dos principais desafios a ser superado diz respeito à qualificação profissional
dos agentes governamentais e dos atores pedagógicos envolvidos no processo de
institucionalização da escola indígena”.
53
Não se trata somente de criar leis e de outorgar
direitos. É necessário implementar as políticas na prática cotidiana das aldeias para que
esses direitos sejam de fato acessados.
Recentemente o MEC realizou uma pesquisa entre os órgãos oficiais de educação
do país com o propósito de averiguar a aplicabilidade da lei e a implementação das escolas
indígenas, a partir da Resolução 03/99, da CEB/CNE
54
.
Para tanto, tomou como referência dois aspectos fundamentais da Resolução:
Definições da estrutura e funcionamento da Escola Indígena com normas e ordenamentos
jurídicos próprios” e “Garantia da especificidade da Formação dos Professores
Indígenas, paralelamente a sua escolarização e formação em serviço”. O estudo constatou
que esses dois itens não foram regulamentados na maioria dos estados e municípios.
55
Em
alguns casos foram apenas produzidos os atos jurídicos (decretos, normas etc.) e em outros,
nem mesmo o processo de regularização foi concluído. Ainda que os professores indígenas
sejam a maioria nas escolas das aldeias, os órgãos responsáveis por sua titulação não
investiram o suficiente para suprir a demanda de sua formação
56
. Outro grande desafio
apontado pela pesquisa foi o de ampliar a publicação de materiais didáticos e construir
currículos próprios para as escolas
57
.
A experiência com trabalho de assessoria às escolas indígenas, tem mostrado que a
falta de aproximação entre o direito legal e a prática cotidiana vem gerando desgaste cada
52
Conferir: Grupioni, (2004, 45).
53
Programa de Formação em Educação Escolar Indígena para Técnicos Governamentais. MEC, 2001.
54
Relatório intitulado: Novos Caminhos para a Educação Escolar Indígena no Brasil. Pesquisa realizada,
através de questionário encaminhado pelo MEC, às Secretarias Estaduais e Municipais de Educação do país.
Esta pesquisa foi sistematizada pelo consultor, Luís Donisete Benzi Grupioni, USP. Brasília (2000). (Ainda
que tenham passados cinco anos, a situação não se alterou substancialmente).
55
Segundo o estudo de Grupione, atualmente existem no Brasil, 23 Estados que desenvolvem atividades de
Educação Escolar Indígena.
56
Das vinte e três Secretarias com escolas indígenas, menos de dez possuem programas específicos para a
formação de professores, a maioria realizam apenas cursinhos de capacitação metodológica. Conforme o
Relatório citado acima.
57
O Relatório de Grupioni aponta ainda que apenas a metade das Secretarias respondeu que publicam ou que
publicaram materiais próprios, somente um Estado disse que possui proposta curricular para as escolas
indígenas.
vez maior na relação das comunidades indígenas com as instituições. O modelo do sistema
educacional idealizado para as escolas de “branco”, não consegue absorver as diferenças e
as especificidades das sociedades indígenas. São muitos entraves dificultando a inclusão
das escolas indígenas nesse sistema. Além do excesso de normas burocráticas, as
instituições públicas contam com poucos técnicos especializados para atuar com a
especificidade destas escolas.
Persiste ainda um preconceito arraigado em nossa sociedade de que os índios
estão civilizados” e não necessitam mais de escolas diferenciadas.
A educadora Nietta Monte (1996, p. 38), em sua reflexão sobre currículos, ao
abordar a natureza institucional das escolas indígenas, afirma que elas não são tratadas
com o devido respeito. [...] Neste sentido assistimos, num misto de indignação e surpresa,
a transferência mecânica dos currículos oficiais inteiramente em português, próprio às
escolas rurais – para as aldeias [...]”.
Os povos indígenas querem escolas diferentes, não porque conquistaram esse
direito, mas, especialmente, por se reconhecerem como sociedades com costumes, culturas
e modos diferenciados de perceber o mundo.
Bartomeu Meliá em seu livro Educação indígena e alfabetização (1979), afirma que
entre a educação indígena e a educação escolarizável para os índios, uma diferença
significativa. Para o autor, o processo educacional na aldeia, não se de forma isolada,
mas dentro de uma comunidade educativa. Os conhecimentos que um indivíduo adquire
são para atender os interesses coletivos. Educar é um processo contínuo, uma rotina da vida
diária, um aprender fazendo, um ato integrador da cultura.
Ao contrário, em nossa sociedade a transmissão do conhecimento é muitas vezes
estanque e compartimentada, pois se organiza de forma disciplinar, seriada e classificatória.
Os currículos já são determinados pelo órgão oficial de ensino e os conhecimentos dos
velhos não são considerados. Estas seriam algumas das características que diferenciam a
educação nas sociedades indígenas que apresentam sistemas coletivos e comunitários e em
sociedades que incentivam o individualismo e a competição.
Na mesma linha de reflexão a antropóloga Aracy Lopes
58
considera a educação
tradicional dos mais velhos um importante meio de controle social do grupo. É um
processo pelo qual a sociedade internaliza em seus membros sua maneira de ser, garantindo
sua sobrevivência e continuidade enquanto sociedade diferenciada.
A educação escolar para os povos indígenas veio percorrendo caminhos diversos.
Passou pelos jesuítas, transitou pela FUNAI, pelas Organizações Não Governamentais e
chegou às instituições oficiais de educação, sempre vinda de fora para dentro e coordenada
por agentes externos às comunidades indígenas. Nesse contexto tanto as escolas pensadas
como instrumento de colonização quanto às demais iniciativas, resultaram na negação da
diversidade indígena.
Após tantos momentos conturbados que caracterizaram o percurso da educação
indígena no Brasil, hoje é possível vislumbrar algumas experiências de educação específica
e diferenciada.
O que se percebe atualmente, ouvindo relato das comunidades indígenas é que a
escola está sendo entendida pelos índios, como um instrumento que leva à compreensão e à
avaliação crítica da realidade em que vivem essas sociedades. Nesse sentido, começam a
despontar componentes políticos da educação, tais como a participação das lideranças
indígenas e das comunidades na definição de seus currículos.
A escola indígena para os diferentes povos, cada vez mais toma uma dimensão de
projeto de futuro e resistência étnica. Os próprios índios vão construindo coletivamente
seus projetos. A expectativa em relação à educação escolar intercultural é exatamente poder
acessar os conhecimentos, de forma a satisfazer seus interesses e necessidades. Neste caso,
o processo de ensino e aprendizagem deve transitar pelos saberes da cultura tradicional e da
ciência do mundo não indígena.
Do ponto de vista da construção coletiva, as experiências vivenciadas pelas escolas
indígenas do Acre são referências pioneiras no país. Assessoradas por Nietta Monte
59
, as
propostas curriculares das escolas indígenas são construídas continuamente pelas
comunidades educativas (professores, pais, estudantes) e têm como horizonte o projeto de
vida (presente e futuro) de cada povo ou comunidade.
58
Conferir: Relatórios do Encontro Nacional de Trabalhadores sobre Educação Indígena/Comissão Pró-Índio.
São Paulo (1981).
59
Escolas da Floresta – entre o passado oral e o presente letrado. Nietta Monte (1996).
O currículo não é um programa estabelecido a priori, mas se constrói
durante todo o processo educativo, a partir da identificação de centros
de interesses, das áreas temáticas e das necessidades priorizadas pelas
comunidades [...]. O processo de aprendizagem e, portanto, o currículo,
deve ser constituído pelos conhecimentos tradicionais das comunidades
indígenas e conhecimentos relevantes das outras culturas.
60
Compreendendo a coletividade como estratégia peculiar das comunidades
indígenas, a autora mostra que a construção dos currículos escolares extrapola os limites da
sala de aula. Desta forma, ampliam-se as discussões e as atividades em torno desta
construção e a língua indígena, oral ou escrita, ganha uma função importante.
Na escola indígena acreana, em seus primeiros anos, já se definiu uma
função social para os atos de escrita: a confecção de livros, onde
registram e resgatam para si e para os outros (os diversos grupos
indígenas acreanos e brasileiros, ou mesmo os não índios), muitos
aspectos da sua cultura. Registros escritos em ngua portuguesa e/ou
indígenas, moldam e dinamizam um currículo em permanente
construção. (MONTE, 1996, p. 49)
Este formato metodológico contribui na definição de um projeto político
pedagógico que abrange todas as áreas do conhecimento e determina a extensão de uma
política de educação escolar para os povos indígenas.
Rosa Helena da Silva (1998, p. 164) observa, por sua vez, que “o movimento dos
professores indígenas [...], articula o sonho (dos ideais) com a realidade possível,
mostrando que olha o futuro a partir de uma perspectiva viável, assumindo uma postura
ativa, no presente”. Entende que é preciso mirar um alvo, idealizar uma situação e
aperfeiçoar os caminhos que o movimento indígena e suas comunidades estão dispostos a
percorrer, diz a autora.
60
Documento do Seminário sobre Currículo – Centro Mari. In: (MONTE, 1996, p. 39).
Neste sentido, percebe-se que o envolvimento dos povos indígenas com as escolas
das aldeias está crescendo. A aprendizagem não é mais tarefa dos professores, mas de
toda uma comunidade escolar. E a gestão da escola é exercida pela coletividade, as
decisões não partem somente do diretor ou do coordenador e dos professores, mas existe
um colegiado na aldeia para decidirem o percurso da escola. (SILVA, 1998, p.167), afirma:
Os professores indígenas têm tido muita clareza quanto a importância
de ter o poder na escola. Esse poder é entendido enquanto serviço,
algo que se coloca a favor dos próprios interesses da comunidade.
Aprenderam na vivência de sua prática diária que é fundamental
poderem decidir e acompanhar esse processo que está intimamente
ligado ao patrimônio cultural dos povos indígenas.
Outras experiências alternativas, especialmente aquelas impulsionadas por
organizações civis e pelos próprios índios, são sinais de avanços na prática pedagógica das
escolas indígenas em todo país. No entanto, “as mudanças tiveram até aqui maior alcance
nos aspectos operacionais e metodológicos e o significaram um rompimento conceitual
que alterasse o modelo escolar anterior”. (SECCHI, 2002, p. 71).
O reconhecimento da escola indígena como uma categoria autônoma no interior
dos sistemas de ensino é uma ão fundamental que necessita ser viabilizada. Esse desafio
deve envolver todos os atores que lidam com educação escolar indígena. Será um longo
caminho!
2.2.3 – O Percurso em Mato Grosso
61
A educação escolar para índios em Mato Grosso teve início na década de 1890, com
o povo Bororo da Colônia Tereza Cristina
62
. O governador da época e o bispo D. Carlos
61
Este histórico terá por base Secchi (2002, ps. 114 a 132); Mendonça e Souza (1998, ps. 89 a 101).
62
Hoje, denominada Terra Indígena Tereza Cristina, no município de Santo Antonio de Leverger. Limita-se
com o Sul do município de Rondonópolis. Funcionam duas escolas, uma na aldeia “Piebaga”, outra na aldeia
Córrego Grande. Ambas em vel de Primeiro Grau, ainda mantidas pelo município, mas em processo de
estadualização.
d’Amour solicitaram a vinda dos padres salesianos para Mato Grosso, com a finalidade de
“civilizar” os índios.
Mais tarde, empolgados com a tarefa de alfabetizar e profissionalizar os índios, os
salesianos fundaram em 18 de janeiro de 1902 a missão dos Tachos”, hoje Terra Indígena
de Meruri, município de General Carneiro. Permaneceram por mais de dez anos ensinando-
lhes as lições do evangelho, a cultivar as roças e a ler e escrever. Nesta época
conseguiram alfabetizar vários Bororo.
Em 1906 os salesianos fundaram outra missão às margens do rrego
Sangradouro
63
, junto ao povo Xavante. Em 1923, devido a uma grande epidemia na região,
os Bororo foram transferidos dos “Tachos”, para a Colônia de “Meruri”, terra vizinha dos
Xavante. Esta aproximação gerou muitas rixas, combates e mortes de ambos os lados, por
se tratar de povos historicamente rivais.
Na mesma década os militares de Rondon, criaram escola para os Paresi, na estação
telegráfica Ponte de Pedra, mais tarde transferiu-os para o internato de Utiariti
64
, onde
reuniram rias crianças indígenas de diversas etnias, até mesmo de povos historicamente
inimigos.
As escolas jesuíticas da Missão Anchieta iniciaram seu trabalho em terras mato-
grossenses, nos anos de 1930, aproximadamente. A Missão se expandiu ao Médio Norte do
Estado, na cabeceira do rio Juruena, junto aos povos: Kayabi, Apiaká, Rikbaktsa, Enawene
Nawe, Nambikwara, Myky, Irantxe e Paresi.
65
Outra ação missionária se deu com os índios Tapirapé a partir de 1952 com a
chegada das Irmãzinhas de Jesus. Após quase vinte anos de convívio destes índios com as
irmãzinhas, a partir de 1973 alguns indigenistas missionários, encaminhados pela Prelazia
de São Félix do Araguaia, iniciaram o trabalho escolar com os adultos da comunidade. Em
1988, foi criada a Escola Indígena Estadual “Tapirapé”, a primeira no Estado a ter um
currículo específico e diferenciado
66
, aprovado pelo Conselho Estadual de Educação. Foi
63
Hoje, denominada Escola Indígena Estadual “São José de Sangradouro”. Está localizada no município de
General Carneiro e atende a mais de trezentos alunos Xavante no ensino fundamental e médio.
64
Esta escola continua funcionando para o povo Paresi, nas séries iniciais do ensino fundamental. Atualmente
é mantida pelo município de Sapezal.
65
Atualmente, quase a totalidade dos 38 povos indígena de Mato Grosso tem escolas funcionando em suas
aldeias.
66
O que diferenciou naquela época e continua atualmente diferenciado no Currículo da Escola Tapirapé é a
avaliação descritiva, o calendário adequado à comunidade, a organização das atividades por temas de
considerado um grande avanço, pois precedeu as diretrizes que viriam ser consagradas pela
LDB. A experiência bem sucedida desta escola tem sido inspiração para outras escolas
indígenas do País.
67
Os missionários evangélicos também “demarcaram seu território” junto aos índios
de Mato Grosso. Na década de 1950 os missionários-lingüistas do Summer Institute of
Linguistics SIL se instalaram em diversas aldeias com a justificativa de salvaguardar a
cultura, especialmente as línguas indígenas. Esta estratégia foi considerada uma maneira
astuciosa de realizar suas pesquisas, traduzir a Bíblia e “converter” os índios ao
cristianismo. A partir desse trabalho vários indígenas se transformaram em pastores e
ampliaram o espectro de atuação do SIL.
Na década de 1960 houve uma profusão de instituições e grupos religiosos
católicos, evangélicos, pesquisadores e organizações civis, espalhadas por quase todas as
aldeias do Estado. A presença de tantas “frentes de escolarização” resultou na difusão do
trabalho escolar no interior de inúmeras aldeias. Na medida em que adentravam as
comunidades, cada grupo conquistava seu espaço e procurava atuar de maneira a ganhar
confiança dos índios. Desta forma, poderia atingir seus interesses particulares, além de
ensinar a ler e escrever.
A atuação de tantas agências com ideologias e interesses diversos, trouxe conflitos
de várias ordens para as comunidades. O resultado dessa babel não poderia ser outro que “a
fragmentação dos trabalhos e a total ausência de instâncias de interlocução
interinstitucional” (SECCHI, 2000).
Na segunda metade de 1980 começou a surgir um novo panorama na educação
escolar indígena de Mato Grosso. As instituições perceberam que para pensar a educação
nas comunidades seria necessário renunciar as disputas e o controle sobre eles. O trabalho
avançou quando os órgãos oficiais e as demais instituições decidiram discutir as ações
em conjunto. Entenderam que a atuação em parceria poderia ser uma forma mais adequada
para implementar e gerir a educação escolar nas comunidades.
estudo partindo da cultura e da ngua Tapirapé e do ciclo social da aldeia, que por sua vez está bastante
relacionado ao ciclo da natureza. (informações do professor Luiz de Paula Gouveia, um dos primeiros
indigenistas que começou o trabalho escolar com os índios Tapirapé, em 1973).
67
Atualmente existem duas escolas nas aldeias Tapirapé. A da Terra Indígena Tapirapé, município de Santa
Terezinha, que iniciou seu funcionamento em 1973 e conta com 115 alunos entre Ensino Fundamental, Médio
e EJA. E a Escola Indígena Estadual Tapi’itãwa, localizada na Terra Indígena Urubu Branco, município de
Confresa, criada em 2002. Ambas são estaduais e estão sob a gestão dos próprios índios.
Uma medida concreta resultante da tomada de consciência das ancias foi a criação
do NEI-MT Núcleo de Educação Indígena de Mato Grosso no ano de 1987. Participaram
da primeira reunião a Fundação Educar, o Museu Rondon (UFMT), o Conselho Indigenista
Missionário, a Operação Anchieta (hoje, Operação Amazônia Nativa - OPAN), a Missão
Salesiana e a Coordenadoria de Assuntos Indígenas. A Secretaria do Patrimônio Histórico
Nacional e a Delegacia Regional do Ministério da Educação se integraram ao núcleo
posteriormente. Após esta articulação, houve a primeira tentativa de se criar um programa
estadual com a participação das diversas agências envolvidas com a educação.
Na primeira fase de existência, o NEI se caracterizou como um fórum de discussão
sem caráter oficial. A sua maior preocupação era reunir os profissionais das instituições
educacionais, parceiras das comunidades indígenas, para discutir as demandas das escolas.
A partir do Encontro Nacional de Educação Indígena realizado no Rio de Janeiro, em
outubro de 1987
68
, o núcleo começou a se preocupar também com a participação dos índios
na definição das políticas de educação indígena para o Estado. O primeiro plano de ação
teve por base as linhas norteadoras do Encontro Nacional. Conforme Mendonça e Souza
(1908, p. 91), as principais diretrizes foram as seguintes:
1. Capacitar recursos humanos para a Educação Escolar Indígena,
dando prioridade aos professores indígenas;
2. Realizar cursos, encontros, pesquisas, reuniões periódicas com o
objetivo de:
a) Diagnosticar a Educação Indígena de Mato Grosso;
b) Definir as prioridades de atendimento pelos órgãos
competentes;
c) Elaborar a proposta do Estado a ser levada para a
discussão nacional que definiria as Diretrizes Nacionais
de uma Política de Educação Indígena;
d) Colaboração interinstitucional para trabalhos conjuntos
como o 1º. Curso de Antropologia, Lingüística e Educação
(Fev/88), 1º. Encontro de Professores Indígenas de MT
(Maio/89) e 2º. Encontro de Professores Indígenas de MT
68
A Secretaria de Estado de Educação/SEDUC enviou um representante que trouxe os encaminhamentos do
Encontro e serviu de base para traçar o plano de ação do NEI.
(Agosto/89) que encaminharam as propostas das
comunidades indígenas e dos professores para a
elaboração da nova Lei de Diretrizes Básicas do Ensino
Nacional.
3. Criar em nível de estado, uma legislação através da Secretaria de
Estado de Educação, que possibilitasse a normatização,
regulamentação e oficialização das escolas indígenas;
4. Ter como perspectiva de trabalho um mínimo de interferência dos
não índios no processo de construção da educação escolar indígena, a
fim de que progressivamente os índios assumam a questão da
educação escolar, como uma das formas de consolidarem sua
autonomia política, educacional e econômica.
Movida por grandes desafios e incentivada pelo Encontro Nacional sobre Educação
Indígena, a SEDUC criou em 1988 a Divisão de Educação Indígena e Ambiental DEIA.
Na época esteve vinculada à Coordenadoria do Ensino Rural que tinha como objetivo atuar
nas escolas indígenas e rurais do Estado. As primeiras ações da DEIA se centraram na
preparação de técnicos, indigenistas e professores para as escolas das aldeias
69
.
Com as mudanças políticas advindas da troca de governo em 1992, houve uma
reestruturação da SEDUC e, com ela, a extinção da Divisão de Educação Indígena e
Ambiental. Naquela ocasião o NEI foi praticamente desarticulado e apenas três técnicos
foram transferidos para outro setor da SEDUC, a Divisão de Articulação com os Órgãos
Municipais de Educação,
70
a fim de desenvolver o trabalho com as escolas indígenas.
Diante desse novo quadro político a educação escolar indígena sofreu um impacto e
ficou enfraquecida, porém a pressão e a participação indígena, fizeram com que viesse a ser
retomada. O NEI também foi redirecionado e teve ampla participação de representantes
indígenas, de instituições públicas, de partidos políticos e de ONGs. A sua contribuição foi
decisiva na elaboração da proposta para o plano de governo estadual para o período de
1995 a 2006. Tal proposta priorizou a profissionalização, a conquista da autonomia e a
69
Neste período existiam quatro escolas estaduais. Três dirigidas pelos Salesianos, junto aos Xavante e
Bororo e a outra com os Tapirapé. As demais escolas (aproximadamente oitenta), eram atendidas
precariamente pelas Secretarias Municipais de Educação e pela FUNAI.
70
Este setor estava vinculado à Coordenadoria Técnica da SEDUC. Não havia, entretanto, em nenhum
planejamento desta Coordenadoria, meta atribuída à educação escolar indígena.
consolidação da escola diferenciada, mencionada na Constituição Federal e reafirmada na
Lei de Diretrizes e Bases.
Como forma de atender à crescente demanda indígena o governo do estado
fortaleceu a Coordenadoria de Assuntos Indígenas, vinculando-a ao Gabinete da Casa Civil.
No campo da educação, foi criado por meio do Decreto Estadual nº. 265/95
71
o
Conselho de Educação Escolar Indígena, órgão de composição paritária entre
representantes indígenas e instituições públicas, com atribuição consultiva, deliberativa e de
assessoramento.
Dentre as várias ações coordenadas pelo Conselho, destacaram-se: 1) a realização de
um diagnóstico da situação das escolas indígenas no Estado; 2) a organização da
Conferência Ameríndia de Educação (que teve como desdobramento à implantação do
Terceiro Grau Indígena) 3) o Programa de Formação de Professores Indígenas, que em
resultou em dois projetos relevantes para as escolas das aldeias. O Projeto Tucum e o
Projeto Xingu, ambos, tidos como referência no âmbito do estado e fora dele.
A proposta pedagógica dos cursos foi uma tentativa de relacionar a educação à
prática social, integrando o processo de conhecimento escolar com a vivência cotidiana dos
alunos. Ou nas palavras do Projeto: Os eixos fundamentais do desenvolvimento das
comunidades indígenas estão baseados em seu Território, Língua, e Cultura, portanto estes
foram os eixos que nortearam o Currículo do Projeto”.
72
Grandes avanços também ocorreram na conquista da autonomia da escola indígena.
Com o aumento do número de professores formados pelos projetos,
73
não se justificava a
continuidade de professores não índios nas aldeias. A partir de então, quase todas as escolas
passaram a ter em seus quadros: docentes, diretores e servidores administrativos das
próprias comunidades. O currículo escolar passou a ter um pouco mais de flexibilidade e os
recursos financeiros, estaduais e federais, começaram a ser repassados diretamente às
escolas. Este novo procedimento adotado pelo sistema educacional exigiu dos professores
indígenas muito esforço na função de gestor escolar, experiência desconhecida até então.
71
O Conselho foi vinculado à Coordenadoria de Política Pedagógica da SEDUC e continua até o momento
com a mesma estrutura.
72
PROJETO TUCUM – A Construção Coletiva do Trabalho Pedagógico, p. 30-35.
73
A meta dos dois Projetos, Tucum e Xingu, era formar 250 professores no final das etapas. Em 2001, quando
iniciou o Terceiro Grau Indígena, aproximadamente 240 professores haviam concluído o Ensino Médio em
nível de Magistério.
Outro avanço importante foi a formulação do documento de diretrizes políticas
intitulado “Construção Coletiva da Política de Educação Escolar Indígena para Mato
Grosso”.
74
Nele constaram os seguintes princípios fundamentais (para a educação escolar
indígena):
75
:
a) A afirmação étnica, lingüística e cultural das sociedades indígenas;
b) A defesa da autonomia, das terras indígenas e dos seus projetos
societários;
c) A articulação e o intercâmbio entre os conhecimentos autóctones
das sociedades indígenas e os de outras sociedades (nacional e
mundial).
A proposta política e pedagógica pensada para a educação escolar indígena de Mato
Grosso viabilizou o acesso dos índios às escolas próprias. Evitaram-se, assim, as saídas
precoces das aldeias e as situações de riscos que os adolescentes e jovens encontram
quando moram nas cidades, especialmente o envolvimento com drogas, prostituições e
pequenos furtos.
Lamentavelmente, as políticas públicas no Brasil raramente têm caráter de
continuidade. As metas idealizadas no Plano de Governo até 2006, não avançaram a partir
de 2001 e muitas ações previstas o foram realizadas A professora indígena Francisca
Novantino mostrou assim o seu sentimento de indignação frente a este e outros desapreços
do poder público.
76
Apesar do aparato político, institucional e legal, percebeu-se ao longo
desse processo que os dispositivos e mecanismos que o sistema oficial
dispõe para atender às escolas indígenas ainda geram dificuldades em
termos da aplicabilidade [...]. Ainda não o entendimento pleno de
que a educação escolar indígena é um direito do cidadão indígena. As
74
Este documento foi elaborado com a seguinte metodologia: A participação Indígena; A participação e a
cooperação interinstitucional; O desenvolvimento integrado dos programas de educação escolar; e a
Compatibilização do cronograma de ações. (Documento da Política, 2000, p. 24).
75
Ibidem: p. 23.
76
Conferir: O Processo de Inclusão das Escolas Indígenas no Sistema Oficial de Ensino de Mato Grosso:
Protagonismo Indígena. Dissertação de Mestrado (2005, p. 80).
perspectivas quanto á implementação de política construída pelos
índios e seus assessores [...], estão longe de ser concretizadas.
Atualmente, a demanda apresentada pelas escolas indígenas do Estado de Mato
Grosso está muito além da capacidade e das condições de atendimento das instâncias
responsáveis. Não se permite mais a ilusão de pensar que a estrutura construída na primeira
metade da década de 1990 seja capaz de oferecer o atendimento apropriado às diferenças e
especificidades das 170 escolas indígenas que compõem o sistema educacional.
Infelizmente o nosso estado não foge à regra nacional. A Constituição Federal está prestes
a completar 20 anos, a Lei de Diretrizes e Bases completou uma década e os prazos
estabelecidos pelo Plano Nacional de Educação já se esgotaram, no entanto, muitos estados
não viabilizaram nem mesmo a primeira meta proposta, qual seja a de Criar, estruturar e
fortalecer, dentro do prazo máximo de dois anos, nas secretarias estaduais de educação,
setores responsáveis pela educação indígena, com a incumbência de promovê-la
acompanhá-la e gerenciá-la”.
77
Como vimos, diversas conquistas foram consolidadas e grandes desafios ainda
persistem, mas a esperança renasce a cada dia em centenas de crianças e jovens que vivem
nas aldeias.
O alento que deve ser lembrado por todos nós educadores é de que onde quer que
exista escola, ela é sempre parte de um projeto que a transcende”.
78
É um longo caminho a
percorrer, porém, os movimentos indígenas parecem dispostos.
No próximo capítulo passaremos ao tema central do trabalho e trataremos da gestão
escolar no contexto da interculturalidade, do protagonismo indígena e do controle social.
77
Plano Nacional de Educação. Lei Nº. 10.172 de 09 de janeiro de 2001. Das Modalidades de Ensino.
9.EDUCAÇÃO INDÍGENA, item 18.
78
Fonte desconhecida.
CAPÍTULO III
GESTÃO INTERCULTURAL, AUTONOMIA E CONTROLE SOCIAL
Quanto maior for o círculo de reciprocidade definido
por uma dada concepção de direito e de justiça, tanto
maior será a capacidade de inclusão de atores e de
diálogo e concepções diversas. Os sucessos dos
movimentos indígenas do Brasil são bons exemplos de
importância de círculos amplos de reciprocidade.
Boaventura de Souza Santos, 2003.
3.1 – Considerações gerais acerca da Gestão Escolar
Nesta seção faremos uma abordagem sobre a gestão escolar no contexto geral da
educação, seus fundamentos e suas características, à luz dos seguintes autores: Naura
Carapeto, Heloísa Lück, Luiz F. Dourado, Artemis Torres, Delarim Gomes e Jamil Cury.
A sociedade vive atualmente numa época de transformação. É comum ouvir
afirmações do tipo: nas últimas décadas vêm ocorrendo muitas mudanças no contexto da
política social e econômica no mundo contemporâneo. Os cidadãos mais conscientes m
acompanhando e participando na construção de uma nova realidade. No geral observa-se
nos indivíduos, o despertar de uma consciência mais coletiva, com sentimentos solidários e
democráticos.
Para Lück (2000, p.12), “o autoritarismo, a centralização, a fragmentação, o
conservadorismo, estão ultrapassados, por conduzirem ao desperdício, ao imobilismo, à
estagnação social e ao fracasso das instituições”. A mudança de padrão social conduz à
prática interativa, participativa e democrática, buscando soluções para os problemas. Com
estas transformações, a escola se encontra hoje, no centro das atenções da sociedade, pois é
através da educação que se desenvolve o pensamento e os conhecimentos de uma sociedade
globalizada.
Em consonância com as tendências da globalização, a educação brasileira passou
por mudanças significativas especialmente nos princípios da democratização e da
descentralização do Ensino Básico. Tais mudanças se tornaram perceptíveis na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação – LDB/96, citada no capítulo anterior.
A partir da flexibilidade desta lei, a sociedade começou a vislumbrar maior
participação na construção da cidadania através das discussões de diretrizes para o ensino,
coerente com a realidade da sociedade brasileira. Cury (2004, p. 59), diz que a Lei de
Diretrizes e Bases:
Possibilitou a desconstrução de entraves burocráticos e cartoriais
engessadores da administração dos sistemas e dos estabelecimentos
escolares quanto à montagem de uma cultura mais autônoma na
elaboração dos projetos pedagógicos – marca distintiva da autonomia.
As conquistas alcançadas pela Lei foram decorrências de mobilizações dos grupos
organizados, em todos os setores sociais. A escola, por exemplo, foi um espaço coletivo de
debate e participação ativa dos diversos segmentos da sociedade, desde o início da década
de oitenta.
Segundo Torres (2005, p. 3):
79
A redemocratização política, apesar de gradual e controlada, que o País
experimentou, na passagem do regime militar para o regime civil, e as
reformas das políticas estatais, inclusive, no campo educacional,
marcada pelas lutas sindicais e pela mobilização da sociedade,
contribuíram para o surgimento de um ambiente propício à
descentralização e á democratização da gestão escolar. Tais processos,
se não geraram ou não tem conseguido gerar uma nova cultura política
condizente com a qualificação democrática, colocaram em debate a
79
TORRES, Artemis et al. Política de Gestão Escolar - documento preliminar. Cuiabá: SEDUC, 2005. [Texto
digitado].
questão da natureza do poder, suas formas e as possibilidades de exercê-
lo nos processos coletivos.
A cultura democrática vem sendo construída no percurso da história, através de um
permanente exercício. E aos poucos a feição da escola vai se renovando, especialmente no
que diz respeito à gestão. Como disse Torres (2004, p. 3);
80
“É possível afirmar que a
gestão escolar se inspira nos princípios da democracia representativa, segundo a qual
todos os segmentos da comunidade escolar são convidados a participar na concepção, na
tomada de decisão, na avaliação [...]”. O jeito novo de conceber a gestão reflete na
mudança de atitudes, no comportamento, na postura, no ensino aprendizagem e nas
relações pessoais e profissionais da comunidade escolar. O grande desafio para os
educadores continua sendo a transformação, tanto em nível de conceito, quanto na prática,
de forma a superar os limites da antiga administração escolar.
Para compreender o sentido dos termos gestão e administração buscamos em Gomes
(2006, ps. 66-71), uma acepção precisa e eficiente sobre o tema. Porém, inicialmente
lembramos que a palavra gestão, no campo educacional é bastante recente, considerando
que, administração escolar foi a expressão utilizada até a década de oitenta, para se referir
ao administrativo e ao pedagógico da escola. Segundo a afirmação de Gomes (2006, p. 62):
Gestão e administração são palavras sinônimas, como fazem crer os dicionaristas, e se,
mais de século e meio, ambas estavam disponíveis ao uso, por que gestão tem datação
recente em títulos da literatura escolar?”.
Segundo este autor, embora as duas palavras se apresentem nos dicionários, como
sinônimo ou de idêntico significado, elas se diferenciam no sentido. Do ponto de vista
capitalista, os princípios da administração, se adeqüa especialmente à produção industrial e
aos negócios empresariais. Com características centralizadoras, ela se ocupa com as normas
e funções da estrutura, do funcionamento e da organização da empresa ou do órgão público
e serve particularmente, ao atendimento da burocracia. Estas diretivas, transferidas para a
escola, não conseguem obter sucesso, pois a natureza da produção na escola é diferente da
produção na indústria capitalista. Ao passo que o sentido de gestão está fortemente ligado
80
Política de Gestão EscolarDocumento Preliminar. Cuiabá: UFMT, 2004. [Texto digitado].
ao modo de ser, à índole e à maneira como o sujeito realiza as ações. “O administrador é
delegado, o gestor é autônomo; o administrador tem poder, o gestor, autoridade” (Ibidem,
p. 70).
Felizmente, a administração escolar, nesta concepção autoritária, está cedendo
espaço à prática de gestão mais democrática e coletiva na escola. É certo que este propósito
necessita universalização, mas um número expressivo de escolas brasileiras envolvidas
no processo democrático, antenadas com os anseios da comunidade. Aos poucos a escola
vai adotando mecanismos e estratégias de superação de seus limites. Afirma Lück (2000, p.
07): “a gestão escolar constitui uma dimensão e um enfoque de atuação que objetiva
promover a organização e a mobilização de todas as condições materiais e humanos
necessárias, para enfrentar os desafios da sociedade globalizada”.
A mobilização se inicia pela superação das concepções autoritárias de poder e a
conquista de um espaço dinâmico e descentralizado tanto no campo financeiro quanto nas
propostas curriculares. Pesquisas
81
mostram escolas que, através de sua gestão
comprometida e transparente, envolvem a comunidade na elaboração de seus projetos
pedagógicos, de forma que as ações coletivas, refletem na eficácia do ensino aprendizagem
e na resolução dos problemas corriqueiros que afetam a escola. A soma de esforços dos
educadores, em equipe, contribui despertando interesse nos educandos e desenvolvendo
com maior habilidade e aptidão suas potencialidades e sua cidadania.
Afirma Lück (2000, p. 8):
O objetivo final da gestão é a aprendizagem efetiva e significativa dos
alunos, de modo que, no cotidiano que vivenciam na escola,
desenvolvam as competências que a sociedade demanda [...].
O processo de gestão escolar deve estar voltado para garantir que os
alunos aprendam sobre o seu mundo, sobre si mesmo e sobre o mundo
que os rodeia.
Os avanços alcançados, não significam o dever cumprido ou a luta concluída. Apesar
de algumas conquistas, a comunidade escolar tem pela frente um caminho pedregoso, pois
a experiência da democracia é um exercício permanente. Visto que a cultura do
autoritarismo nas instituições educacionais é uma prática de longos anos. E para mudar esta
cultura, nada mais apropriado que começar com as gerações novas, através de um ambiente
educativo, considerando que o estudante não aprende somente na sala de aula, mas na
escola como um todo. O ambiente democrático na escola deve começar pela sua forma de
organização e funcionamento, até a maneira das inter-relações humanas e sociais
81
O GPMSE Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação, vinculado ao Programa de Pós-
Graduação/UFMT desenvolve pesquisas com destaque em experiências exitosas, a exemplo da Escola
Liberdade e da UPC – Universidade Popular Comunitária que envolvem a comunidade no processo de Gestão
escolar. Sobre este tema conferir também http://novaescola.abril.
com.br/ed/138_dez00/html/gestaoescolar.htm.
estabelecidas no seu interior. Frente a essa tarefa, a gestão da escola e a atuação dos
profissionais que a promovem, têm grande importância e sentido.
Para Naura S. Carapeto (2000, p. 167):
82
A gestão democrática da educação é, hoje, um valor consagrado no
Brasil e no mundo, embora ainda não totalmente compreendido e
incorporado à prática social global e à prática educacional brasileira e
mundial. É indubitável sua importância como um recurso de
participação humana e de formação para a cidadania. É indubitável sua
necessidade para a construção de uma sociedade mais justa, humana e
igualitária. É indubitável sua importância como fonte de humanização.
Todavia, ainda muito se tem por fazer.
Tendo em vista a complexidade e amplitude do sistema educacional, Jamil Cury
(2004, ps. 43-55) diz o seguinte: “A gestão, hoje não é apenas exigência de transparência
e moralidade, mas é conceder direito à vontade própria, à participação da sociedade civil
organizada, é caminhar para a mudança de cultura com autonomia e responsabilidade”. A
sociedade moderna quer concessão no processo e no produto das políticas de governo, não
quer apenas ser executora de políticas públicas, ela quer propor, elaborar projetos, ser
ouvida e conquistar espaços. É na relação com os estabelecimentos de ensino que se verá
o grau de diálogo com que os administradores dos sistemas e seus respectivos órgãos
normativos poderão traduzir a gestão democrática participativa”.
83
Os princípios da educação nacional
84
inspiram o diálogo pedagógico que a gestão
participativa requer, porém, a prática de ensino dos educadores preserva certo ranço da
pedagogia conservadora que, vez ou outra, o planejado entra em contradição com a
experiência. Outro fato discordante com os princípios da gestão democrática é que os
órgãos normatizadores do sistema educacional determinam políticas e programas que
impossibilitam a participação coletiva e o exercício da democracia na escola. Em seus
82
Artigo publicado Em Aberto, v. 17, n. 72.
83
Ibidem: p. 59.
84
Conferir: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, art. 3º.
estudos e pesquisas sobre este assunto, Artemis Torres
85
(2005, p. 2) admite que o
“atropelamento do processo de democratização pelos ideais neoliberais que foram se
instalando nas políticas estatais e a introdução da Gestão de Qualidade Total”
86
confundiu a comunidade escolar. A forma semelhante de tratar a escola como empresa,
com autoritarismo e falta de respeito, além de gerar desgaste nas relações pessoais,
desmotivou os profissionais a continuar acreditando na gestão democrática
87
.
Como prática social, a gestão possui uma dimensão ampla e distinta. É necessário,
portanto, descobrir alguns horizontes por onde é possível caminhar democraticamente e não
ao contrário, declara Dourado (2004, p. 69):
As proposições sobre gestão são diversas, indo desde posturas que
defendem uma participação restrita e funcional atrelada ás novas
formas de controle social, como exemplo, a defesa do paradigma da
gestão com ênfase na qualidade total, até perspectivas que buscam [...]
um projeto coletivo envolvendo a comunidade local e escolar.
Seguindo ainda o pensamento de Dourado (2004, ps. 70-78), observa-se que para
ele a gestão democrática está situada num “processo de luta política que não se
circunscreve aos limites da prática educativa, mas vislumbra [...] a possibilidade de efetiva
participação, aprendizado político e o repensar das estruturas autoritárias”. Enquanto
responsabilidade coletiva, ela (a gestão) não é tarefa que se determina ou se ordena e sim
ações que vão se tecendo num processo de idas e vindas, resultando na participação de
diversos atores. É neste movimento, marcado pelo respeito e pelas oportunidades, que se
instala um campo propício de experiências recíprocas.
Portanto, a constituição da gestão da forma que estamos dizendo, não se edifica
através de regras ou normas impositivas, mas é um processo de efetiva participação política
e que necessita conscientização e responsabilidade. Na maioria das vezes a gestão humana
e pedagógica é penalizada e sufocada pela burocracia e o legalismo doutrinal. Preocupação
85
Professora Artemis Torres faz parte do Programa de Mestrado em Educação/IE/UFMT. Coordenadora do
Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação. É pesquisadora, entre outras temáticas, do processo
de democratização da escola pública.
86
Ibidem: Palestra proferida no Seminário QUALIDADE DA EDUCAÇÃO: desafios de todos. Promovido
pela SEDUC-MT, em julho de 2005. Cujo Tema foi: Na escola que temos... como vai a Gestão?
87
Este exemplo se refere à situação de Mato Grosso, especificamente.
de vários pesquisadores expressa nesta frase: “Almejamos provocar uma socialização das
responsabilidades, mas não exclusivamente a responsabilidade pela gestão financeira e
técnico-burocrática da escola, e sim a responsabilidade pela formulação do seu projeto
político pedagógico”. (TORRES, 2005, p.3).
Este é o mesmo desejo das comunidades indígenas, que demandam por escolas. Não
qualquer tipo de escola, mas aquela gerida pelos próprios índios. A diferença é que,
enquanto os gestores das escolas não indígenas se sufocam com as demandas
administrativas, os gestores das escolas indígenas desejam se apropriar também de todos os
processos educativos, inclusive dos recursos financeiros. Querem participar do dia-a-dia da
escola, com autonomia e liberdade para decidir seus projetos de futuro. Como afirma o
professor Benedito Bororo: Temos condições de receber os recursos financeiros da escola
e decidir o que estamos precisando comprar, mas o município não repassa”.
As considerações apresentadas acerca da gestão democrática escolar foram uma rápida
pincelada a fim de demonstrar a complexidade desta área. São várias pesquisas realizadas
neste campo,
88
que poderão contribuir nesta construção. Todavia, a temática requer ainda
aprofundamento, leitura e acima de tudo muita vivência.
A democracia é um exercício constante que se experimenta na prática cotidiana.
Portanto, a escola, pela função que exerce na sociedade, está predestinada a colaborar na
formação de uma sociedade autônoma e democrática.
3.2 – Caracterização da Escola Indígena Cadete Adugo Kuiare
Nesta seção tentaremos situar no tempo e espaço a Escola Indígena “Cadete Adugo
Kuiare”, suas características físicas, legais, pedagógicas e a sua relação com os projetos
societários do povo indígena a quem ela se destina.
Na seqüência trataremos das peculiaridades de sua gestão, da participação coletiva,
do protagonismo indígena e do controle social exercido de forma comunitária sobre a
escola da aldeia.
A Escola Indígena Cadete Adugo Kuiare está localizada na Terra Indígena Tereza
Cristina, na aldeia Córrego Grande, no posto indígena “General Gomes Carneiro”. A
área territorial da aldeia está sob a jurisdição do município de Santo Antonio de Leverger
88
Citamos algumas: GOMES, Delarim Martins . Gestão democrática escolar em Cuiabá: estudo de caso
(2006); TORRES, Artemis . Balanço crítico da gestão democrática em Mato Grosso (2006); ABICH, Luzia
Pereira de Souza. O impacto da política neoliberal na gestão democrática da rede estadual de ensino de
Mato Grosso (2005); CORRÊA, Rose Cléia da Silva. Conselhos Deliberativos da Comunidade Escolar:
esperança, conquista e ilusões. (2002), e outros.
- MT. A Administração do Núcleo de Apoio Local da FUNAI, responsável pela Terra
Indígena situa-se à Avenida Dom Wunibaldo s/n. em Rondonópolis – MT.
A denominação da escola foi uma escolha de José Kadagare, o Bari ou Pajé da
aldeia Córrego Grande, em homenagem ao seu grande amigo Adugo Kuiare, um ancião de
muito prestígio e antigo chefe dos Bororo.
Ao longo de vinte anos as aulas funcionaram numa casa construída pelos próprios
índios, coberta com palha de buriti, com paredes de pau-a-pique e piso de chão batido.
Somente em 1999 foi construído um prédio de alvenaria numa parceria entre a FUNAI de
Rondonópolis e a prefeitura de Santo Antonio de Leverger.
A vinculação institucional da escola com a rede municipal de ensino do município
de Santo Antonio do Leverger se deu por meio da Lei Municipal . 458 de 1991. O seu
funcionamento foi autorizado pela Resolução nº. 397/01 do CEE - Conselho Estadual de
Educação, publicada no Diário Oficial do Estado do dia 18 de dezembro de 2001 e o seu
reconhecimento encontra-se em andamento no referido Conselho.
A decisão da comunidade de oficializar a educação escolar foi tomada dada à
necessidade de assegurar uma instância responsável pela manutenção sica, financeira e
pedagógica da escola. Devido ao crescimento gradativo do número de alunos não foi mais
possível à escola funcionar apenas com doações de voluntários e de instituição de caridade.
O material escolar arrecadado era insuficiente e a sobrevivência dos professores e suas
famílias se agravavam dada à indisponibilidade de tempo para exercerem outras atividades
de subsistência.
A atual estrutura física da escola é constituída por duas salas de aulas; uma cozinha;
uma sala com a multi função de: biblioteca, secretaria, almoxarifado e sala de professores.
Possui ainda dois banheiros e uma quadra de esporte descoberta, com piso de cimento.
A manutenção do prédio deveria ser feita pelo município, porém, desde a sua
construção nenhuma reforma foi realizada. Na medida do possível a FUNAI tem mantido e
conservado as instalações.
Os móveis e equipamentos para a escola, como armários, prateleiras, mesas,
cadeiras, computador, impressora, televisor, mimeógrafo, fogão e utensílios para cozinha,
também foram adquiridos pela FUNAI.
No ano de 2001 a Associação Indígena Korogedo Paru Kejewu Boe-Bororo
89
encaminhou um projeto para o PADIC,
90
solicitando financiamento a fundo perdido para
a instalação da rede elétrica para a escola. No primeiro momento conseguiram energia
somente para a escola, o posto de saúde e para o posto indígena da FUNAI. Hoje todas as
casas da aldeia têm energia. Com o acesso à rede elétrica foi possível instalar bebedouros,
ventiladores nas salas de aula e água encanada proveniente do poço semi-artesiano,
construído com recursos da Fundação Nacional de Saúde – FUNASA.
O lixo proveniente da escola é juntado em local apropriado e queimado. Todavia, o
que é produzido pela população da aldeia ainda não tem destino final definido. A escola e a
Associação Indígena Korogedo Paru Kejewu Boe-Bororo realizaram diversas atividades
conjuntas no sentido de conscientizar a população para melhorar o aspecto geral da aldeia e
propiciar-lhe conforto e bem estar. Uma das ações de maior impacto foi o Projeto do
Lixo”, desenvolvido nas aulas de educação ambiental, com alunos da V a VIII série
juntamente com a professora desta disciplina. Dentre outras atividades foi realizado um
grande mutirão de limpeza da aldeia que envolveu toda a comunidade. Uma parte do lixo
recolhido foi queimada e a outra enterrada. Para Estevão Bororo (presidente da
Associação): “Esta integração foi considerada positiva tanto pela Associação quanto pela
escola e a comunidade”.
89
Sua diretoria é assim constituída: presidente, vice-presidente, secretário, vice-secretário, tesoureiro e vice-
tesoureiro. O Conselho Fiscal é composto por cinco pessoas. Todos os membros da Associação são
moradores da comunidade de Córrego Grande.
90
PADIC - Projeto de Apoio Direto às Iniciativas Comunitárias. Este Projeto é um dos componentes do
Programa de Desenvolvimento Agroambiental do Estado de Mato Grosso - PRODEAGRO
A coletividade faz parte dos costumes Boe-Bororo, portanto, na elaboração dos
projetos de interesse comum, a escola, a Associação, o Conselho Comunirio
91
e toda
comunidade participam nas discussões, definição de prioridades, elaboração e execução
das ações. O cacique da comunidade, não costuma tomar decisões isoladas, recorre às
organizações comunitárias. O conselho dos velhos também participa nas discussões
internas.
Sobre o assunto, assim se referiu o cacique:
A ação comunitária do momento é o projeto de roça. Este assunto
já foi discutido amplamente por toda a comunidade. Agora o
Conselho está na fase de negociação com o administrador da
FUNAI, em Rondonópolis. É necessário recursos para a compra
de sementes e arame para cercar a área da roça, contra o gado.
Todos daqui estão dando uma força para conseguir o melhor
resultado.
Recentemente a Associação encaminhou ao Ministério do Meio Ambiente um
projeto com o objetivo de desenvolver a horticultura e as roças tradicionais. O projeto vai
envolver toda a comunidade em ações conjuntas e de mútuo aprendizado e, se aprovado,
terá o acompanhamento de técnicos da “Eco 03”, uma ONG de Cuiabá que assessora
trabalhos técnicos de implantação de roças.
91
Sobre o Conselho, falaremos mais adiante.
Esse modo peculiar de decidir e encaminhar as ações coletivas são práticas
constantes na comunidade. Esse sentimento foi assim expresso pelo presidente da
Associação Indígena
92
:
Aqui na aldeia não temos costumes de centralizar nenhuma ação.
Nossa tradição é explicar a todos, o que acontece na aldeia e fora
dela. Todos dão opinião, até os mais velhos, porque nossas discussões
internas são sempre na língua Bororo. Às vezes acontecem algumas
divergências de idéias não é permitido quando se trata dos rituais e
das cerimônias. Nestes momentos não existe diferenciação de clã,
somos todos iguais.
Além dos professores indígenas, a comunidade escolheu também o seu diretor.
Conforme afirmação de José Jerego: “Nós reunimos, discutimos primeiro quem tinha mais
experiência com escola e fizemos votação por escrito. Foi eleito o que todos acharam que
era o melhor”. Sobre esta experiência, falaremos adiante com mais detalhes.
A escola possui uma Unidade Executora,
93
com as devidas habilitações para
funcionar, porém, até agora, não administrou nenhum recurso financeiro destinado a
comunidade, uma vez que a Secretaria Municipal de Educação não trabalha com o sistema
de descentralização de recursos. A escola recebe diretamente da prefeitura os materiais e
a merenda escolar, não dispondo de nenhuma autonomia na escolha de produtos que
sejam mais adequados à alimentação das crianças.
Quanto aos recursos didáticos, recebem brinquedos, jogos e livros que são
complementados por outros materiais confeccionados por professores e alunos. A escola
possui muitos livros paradidáticos enviados pelo Ministério da Educação e pela SEDUC,
92
Estevão Bororo, depoimento colhido em novembro de 2005.
93
A Unidade Executora, ou Pessoa Jurídica da Escola Cadete Adugo Kuiare foi criada através do Conselho
Escolar. O Conselho depois de elaborado o Estatuto cadastrou-se na Receita Federal, adquirindo o seu
Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, ficando habilitado a receber recursos financeiros.
como também uma rica bibliografia específica do povo Bororo elaborada pelos próprios
professores durante o curso de formação do Projeto Tucum. Contam ainda com outras
publicações elaboradas por Mário Bordignon, missionário salesiano que a mais de vinte
anos convive com o povo Bororo e conhece bem esta língua.
O calendário da escola é apropriado e respeita a programação tradicional do povo,
como os rituais, as cerimônias e tudo o que diz respeito à cultura Boe-Bororo, conforme
previsto na LDB. A execução de um calendário diferenciado nem sempre é bem entendida
pelo órgão gestor, a Secretaria Municipal de Educação, o que prejudica o fluxo das ações
planejadas pela escola. “Os funcionários não entendem, não têm conhecimento sobre
escola indígena. Impõem as mesmas regras das escolas rurais da rede Municipal.
Precisamos mais autonomia”, disse o diretor da escola, Bruno Tawie.
Como vimos, o processo de consolidação da escola indígena Cadete Adugo Kuiare,
passou por um período de informalidade, caracterizado pelas ações isoladas de
professoras não-indígenas. Quando a comunidade dispôs de seus próprios professores
Bororo, a escola vinculou-se à Secretaria Municipal de Educação com a expectativa de
obter as condições necessárias para desempenhar com mais qualidade suas ações
pedagógicas.
Na medida em que a comunidade foi depositando maior confiança nos professores e
estes amadurecendo suas experiências como tais, a escola passou a ser também um espaço
coletivo de articulação com as demais organizações comunitárias. Com o envolvimento
recíproco, a educação escolar na aldeia, não é tarefa somente dos professores, como
afirma Silva (1998, p. 206): “A escola indígena é entendida como um empreendimento
coletivo. É preciso valorizar os aspectos educativos de todo cotidiano vivido junto às
famílias e a comunidade, assim como o intercâmbio entre os saberes tradicionais e os novos
conhecimentos”.
Feita essa descrição geral, passaremos a tratar dos desafios da gestão escolar no
contexto da escola indígena Cadete Adugo Kuiare, trazendo à tona aspectos do passado e
da atualidade. Nesta seção evidenciaremos também quatro pilares que consolidam o
protagonismo indígena nesta escola.
3.3 – Desafios da Gestão Intercultural na Escola Indígena “Cadete Adugo Kuiare”
3.3.1 - Retratos de antigamente
Atualmente, a escola em nossa aldeia significa uma
grande honra para os Bóe-Bororo, porque
antigamente não era escola indígena, era de
”branco”. (Wilson Aieko).
O texto apresentado aqui tem por base as entrevistas realizadas na aldeia, em abril
de 2005, o Projeto Político Pedagógico da Escola, o Projeto do Ensino Médio (em fase de
implantação) e outros.
Segundo relato da comunidade, a escola da aldeia Córrego Grande começou a
funcionar algum tempo após a criação da FUNAI,
94
nas instalações do Posto Indígena
Gomes Carneiro, construído na época do SPI – Serviço de Proteção ao Índio. No início
havia muita rotatividade de professoras, pois nenhuma delas tinham experiência com
94
A FUNAI foi criada no ano de 1967. Não encontrei nenhum documento na escola comprovando a data das
primeiras atividades escolares na aldeia.
aldeia indígena, isto dificultava a permanência junto aos Boe-Bororo.
95
Os velhos contam
que “a educação naquela época era muito severa cheia de castigo, as professoras usavam a
palmatória e davam regüada nos alunos”. Fato comum para o método pedagógico da
época. Para as populações indígenas, no caso desta aldeia, por exemplo, além da violência
física expressa neste depoimento, os estudantes eram penalizados por não entenderem a
língua portuguesa, as proibições com relação à língua materna eram severas. Os castigos
físicos, a imposição de regas e todas as formas de impedimento utilizados na escola
distanciavam cada vez mais a educação escolar dos princípios educativos da sociedade
Boe-Bororo, cuja educação das crianças se dá numa relação harmoniosa e de respeito
com os pais, com a comunidade e a natureza, sempre observando os costumes da cultura.
Outra situação que deixava as famílias preocupadas e entristecidas, era com
relação ao local da escola. Estando localizada no Posto Indígena da FUNAI, as crianças
deveriam percorrer uma longa distância, sem a presença de adulto, isto era motivo de
conflitos e confusão entre elas. “Aconteciam muitas brigas entre as crianças, durante as
idas e vindas da escola para a aldeia”, disse José Américo Bororo.
Com o tempo perceberam que esta experiência não trazia bons resultados e a Funai
deixou de contratar professoras. Com isto a escola ficou abandonada por um longo
período e as crianças sem aula, até que o prédio foi derrubado
96
.
Segundo depoimento de Irmã Maria Ossemer
97
, a comunidade após muito tempo
sem escola, solicitou ao Bispo de Rondonópolis, Dom Osório Stoffel, uma irmã para
95
Os mais velhos lembram de 04 professoras que passaram pela escola da aldeia, porém, não lembram o
nome. Todas elas eram contratadas pela FUNAI.
96
Naquela época, a administração do Posto da FUNAI era do Senhor Orlando Graça Leite.
97
Pertencente a Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas, morou na aldeia por vinte anos
consecutivos.
trabalhar com o povo Boe-Bororo, ensinando-os a ler e escrever, “pois a aldeia de Meruri
tinha escola e os índios de lá já sabiam ler, só os de Córrego Grande não sabiam ler e
escrever. Se não viesse nenhuma irmã para dar aulas, eles iriam mudar todos para Meruri”.
Conforme sua afirmação, muitas famílias estavam dispostas a se mudar em busca da
escola. Todavia, em 1980, Maria Ossemer iniciou a alfabetização na aldeia, atendendo ao
desejo da comunidade. Não quiseram mais a escola no posto da FUNAI. Disse Maria
Ossemer:
Quando cheguei não havia nenhuma estrutura para me alojar e
nem para dar aulas, no início passava o dia todo na aldeia e à
noite ia dormir na casa da fazenda vizinha. Logo, o povo
percebeu a dificuldade e começou a fazer um roçado e construiu
a casa da irmã que também foi escola por muito tempo. Era de
pau a pique, chão batido e coberta de palha. Toda comunidade se
envolveu na construção da casa escola.
A partir daí a escola na aldeia Córrego Grande se efetivou e nunca mais foi fechada.
Os primeiros alfabetizandos de Maria Ossemer, Bruno Tawie e Evaristo Kiga, foram
também os primeiros professores indígenas da aldeia. Atualmente concluíram o Terceiro
Grau Indígena pela UNEMAT. Esta é uma grande vitória para a comunidade, considerando
as dificuldades que enfrentaram no início da escolarização. As aulas eram somente em
português, porque a professora não falava a língua original da aldeia. Um destes alunos fez
a seguinte revelação:
Quando fui ingressado na escola, me esforcei muito para aprender a
língua portuguesa, pois os meus pais falavam na primeira língua, o
contato deles era somente com o pessoal da aldeia. Mesmo com
dificuldade, eu tinha amor ao estudo, ia todo o dia à escola e fazia as
tarefas de casa. Mas para entender a mensagem da professora,
perguntava sempre o colega do lado. Quando ia falar com ela,
misturava as duas línguas. Hoje sou professor, superei este
obstáculo, mas esta experiência de aprender a ler na ngua
portuguesa, me marcou muito, nunca vou esquecer. Hoje nossos
alunos não passam por isso, porque todos nós da aldeia, somos
professores bilíngües.
Por muito tempo os estudantes freqüentavam da primeira à quarta série,
interrompendo os estudos, porque os pais não queriam seus filhos na cidade e não havia
outra professora para contribuir com as aulas de 5ª a 8ª. Série.
Quando os dois primeiros alunos de Maria Ossemer começaram a colaborar na
alfabetização das crianças menores, esta professora passou a ensinar até a 5ª. Série. Com a
colaboração dos dois professores, a língua Bororo começou a ser introduzida na escola e
nunca mais foi interrompida, facilitando a aprendizagem dos alunos.
Todos os professores que hoje estão lecionando aqui na aldeia, como
também o atual diretor, estudaram nesta escola. Bruno começou a
lecionar no ano de 1992 e Evaristo Kiga começou o trabalho de
professor, no ano seguinte. Ambos contavam com a ajuda da Ir. Maria
que incentivava os dois professores indígenas.
98
A escola na aldeia funcionou por onze anos sem qualquer caráter oficial, e sem
remuneração para os professores. Por um lado a não institucionalização da escola lhe dava
oportunidade de se livrar das ações homogeneizadoras do Estado considerando que entre a
educação escolar e a educação tradicional da comunidade indígena, há grande diferença. De
outro lado, faltava infra-estrutura para o funcionamento. A escola contava apenas com a
98
Conferir: Projeto do Ensino Médio (2005, p.7)
boa vontade dos índios e da professora, buscando ajuda e doação de voluntários,
instituições e outros, na aquisição de materiais necessários ao trabalho. Como não havia um
órgão responsável pela escola, nesta época todos os documentos administrativos eram
enviados à FUNAI de Cuiabá, onde ficaram arquivados até a municipalização, em 1991
pela Prefeitura de Santo Antônio de Leverger.
Na época em que se pensou em municipalizar, a comunidade deveria apresentar
uma denominação para a escola que caracterizasse um sentido simbólico para o povo.
Como de costume, todas as decisões a serem tomadas na aldeia, os mais velhos são
consultados. Foi assim que José Kadagare
99
indicou o nome de “Escola Indígena Cadete
Adugo Kuiare” em homenagem ao seu grande amigo e parceiro, Adugo Kuiare, antigo
chefe dos Boe-Bororo. “Esse nome significa onça prenha, aquela que defende seus filhotes.
Assim era Adugo Kuiare na defesa do seu povo”.
100
Como chefe e Capitão da Aldeia, era
amigo particular de Marechal Rondon e companheiro de trabalho nas instalações das linhas
telegráficas. Cadete foi uma denominação de Rondon, como forma de demonstrar ao seu
amigo, total confiança e amizade como se ele também fosse um militar.
As atividades escolares funcionaram no mesmo local, até 1999 quando a prefeitura
de Santo Antônio do Leverger, a FUNAI de Rondonópolis e a comunidade indígena
firmaram uma parceria e construíram uma escola de alvenaria na aldeia. A escolinha
coberta de palha, parede de pau a pique e chão batido, próximo à realidade das casas
originais do povo Boe, foi motivo de muitas reuniões e discussões na aldeia. Alguns
achavam que mudando a estrutura arquitetônica, poderia prejudicar os costumes originais
do povo, outros diziam que prédio não tem influência sobre a cultura. Esta longa conversa
trouxe resultados positivos no sentido de reforçar suas convicções e a compreensão sobre
a cultura, especialmente para os mais novos. O novo prédio foi construído,
aproximadamente a uns 200 metros da escola antiga.
99
O Bari (Pajé) da aldeia, sabedor de toda cultura Bóe-Bororo. É cantador e chefe de cerimônia.
100
Informação de Ir. Maria Ossemer.
Na seqüência, mostraremos através de depoimentos diversos, o que significa escola
na aldeia, a impressão dos diversos segmentos da comunidade Boe-Bororo sobre esta
instituição e como ela funciona hoje.
3.3.2 – O que os Boe-Bororo pensam da escola atualmente
A educação escolar hoje apresenta para o povo Boe-Bororo, a
oportunidade de construir e reconstruir sua história, sua política e a
conviver com outras sociedades. Nossa escola trabalha sintonizada
com a vida comunitária da aldeia, ela ajuda o povo a se firmar e a
consolidar sua identidade perante a sociedade nacional. (Estevão
Bororo)
Este depoimento nos faz acreditar que a escola hoje é uma necessidade e um recurso
a mais para o fortalecimento do seu povo. A partir deste momento passaremos a expor
alguns testemunhos e declarações de representantes dos diferentes grupos da comunidade
Boe-Bororo, resultado das entrevistas realizadas durante as visitas na aldeia.
101
Julgamos
que os depoimentos concedidos a esta pesquisa, traduzem o pensamento do maior número
de pessoas da comunidade, por isso é através deles que tentaremos compreender:
a) Os valores da escola para os Boe-Bororo;
b) Sua finalidade e objetivos;
c) Como são exercidas as atividades administrativas e pedagógicas;
d) E o sentido da escola na aldeia.
Apesar dos mais idosos, aqueles que não falam português, não compreenderem o
sentido da escolarização para o povo, a maioria aposta nos benefícios que ela pode trazer.
Vejamos o que diz Valdina Togokiareudo:
101
Entrevistas gravadas em abril e novembro/05.
Às vezes os mais velhos ficam tristes quando algum jovem sai da
aldeia para estudar na cidade. Eles dizem que isto prejudica na
aprendizagem da cultura dos Boe. Mas os jovens não podem ficar sem
escola, ela ajuda a gente aprender sobre o futuro do mundo dos índios
e do mundo dos “brancos”. Por isso precisamos Ensino Médio aqui.
A escola contribui com a consciência política dos índios, e ensina a ler e escrever
na língua portuguesa. A escrita dá poder e valoriza a cultura do povo”.
102
De fato, o poder da escrita e da leitura encanta não só os índios. Ampliar os
conhecimentos universais, ter acesso às leis, saber interpretá-las, conhecer os seus direitos,
todas as possibilidades adquiridas através da leitura e da escrita, representa uma grande
força para os índios, em suas relações com outras sociedades. O conhecimento das
diferentes culturas da sociedade ocidental, adquirido através da escola, pode contribuir na
valorização de seus próprios costumes e tradições.
Segundo Aracy Lopes (2001, p. 17):
A escola indígena é local privilegiado para o estudo das relações
políticas entre segmentos diferenciados da população, em que se
entrecruzam concepções e dinâmicas culturais próprias às esferas
locais, regionais e nacionais, com os desdobramentos necessários que
decorrem da globalização da economia e da informação.
A expectativa da comunidade de Córrego Grande, em relação à escola é que ela se
torne instrumento de mediação entre as duas sociedades: indígena e ocidental. “A escola
está em sintonia com a comunidade. Um dos objetivos dela é ter estratégia de
fortalecimento social e posicionamento frente aos não índios”. (Estevão Bororo)
A Resolução 03/99/CEB/CNE Câmara de Educação Básica/Conselho Nacional de
Educação define no artigo 2º. I e artigo 3º. que escola indígena é aquela localizada na
102
José Jerego, ex-cacique da aldeia.
aldeia. Ainda certifica que a definição do modelo de organização e gestão desta escola deve
ser com a participação efetiva da comunidade indígena. Ela tem a total liberdade e
responsabilidade com a edificação da escola. O papel dos órgãos de apoio deve ser de
reconhecimento e estímulo às iniciativas comunitárias. O que observamos com relação à
escola e à comunidade da aldeia Córrego Grande é que ela está numa dinâmica interessante
de reciprocidade, tentativas de implementar este processo. Como afirma o professor
Daniel Koriga: “A escola influencia muito nas decisões políticas da comunidade”.
Como vimos anteriormente, a escola não é o único meio de se educar e muito menos
de politizar o cidadão brasileiro, mas com certeza ela contribui e abre caminhos para que os
conhecimentos sejam socializados. A escola Cadete Adugo Kuiare criou o conselho
comunitário e adotou como prática, tomar decisões somente a partir das discussões
realizadas nas reuniões desse conselho. Desta forma, acreditamos que a influência é
recíproca, pois a comunidade também ajuda a decidir os caminhos da escola. Afirmação do
professor Dário Brame:
A comunidade espera muito da escola no sentido da formação das
crianças, dos jovens e dos adultos. Quer que os Boe-Bororo
aprendam a dialogar e respeitar os mais velhos e que aprendam
também com a escola, os valores morais e culturais do nosso povo
e de outras sociedades”.
Segundo Pinto (2005, p. 31), pensando a escola como um dos ambientes educativos,
ela tem como função social, a responsabilidade da formação integral do ser humano, bem
como “a transmissão integrada da cultura em todos os seus aspectos”. Desta forma, a
escola da aldeia não pode estar alheia à realidade do povo indígena e a situação atual do
mundo ocidental.
Como disse Lopes (2001 p.13): “as escolas nas aldeias são hoje tanto nativas quanto
exógenas”. É necessário o conhecimento universal e o respeito à diversidade.
A educação escolar significa desenvolver o senso crítico dos
educandos e o conhecimento universal. O conhecimento não está
pronto para ser repassado, ele vai se construindo junto, professor e
aluno. E assim vai ensinando novos valores aos nossos índios e
construindo vencedores. (Professor Benedito Júnior Bororo)
A concepção da construção coletiva é um aprendizado que se inicia muito cedo com
as crianças da comunidade Bóe-Bororo, através dos afazeres cotidianos. A escola como
local de ampliação dos conhecimentos, educadores e educandos tenta dar continuidade a
essa prática pedagógica, iniciada com a educação tradicional. Juntos fazem novas
descobertas e constroem novos saberes.
No Relatório Jacques Delors, os quatro pilares da educação,
103
aponta que a escola
tem o desafio de ajudar a pensar “não o que ensinar, mas como ensinar, de forma a
criar um ambiente propício que desperte o desejo de aprender. O descobrir e construir
juntos são estímulos a aquisição da aprendizagem”.
Em tempos passados a escola teve influência negativa no sentido
de levar as crianças ao desapego de sua cultura, porque a
filosofia da escola era positivista e de integração. Hoje com este
processo de mudança na ideologia da escola, ela procura se
aproximar da cultura do povo. Aqui na nossa aldeia ela está
retomando o sentido de trabalhar junto com a comunidade. Nos
tempos anteriores esta escola prejudicou muito. (Estevão Bororo)
103
Conferir: p. 03.
Felizmente as populações indígenas, conscientes do processo de aniquilamento de
suas culturas, vividas ao longo da história do Brasil, vêm acirrando suas lutas frente às
ações dominadoras e passo a passo adquirindo direitos junto à sociedade ocidental. Em
razão de tanta peleja dos diferentes povos, vários órgãos de apoio e pesquisadores da área
educacional vêm se preocupando em avaliar antropologicamente as perdas culturais
desses grupos e constituindo programas que respeitam às suas peculiaridades. A escola
hoje tem sido um lugar privilegiado para se refletir os projetos civilizatórios que geraram
grandes conflitos nas relações sociais, tanto nas formas de aldeamento quanto na
introdução da escola nas aldeias.
Como esta foi uma prática generalizada no meio das sociedades indígenas, as
marcas são percebidas na fala do professor Estevão e tantos outros que deram seus
depoimentos sobre a escola nos dias atuais. Apesar dos avanços conseguidos na educação,
em relação à autogestão indígena, é necessário ponderar alguns projetos que partem das
instituições oficiais responsáveis e chegam na escola, em caráter impositivo, sem o menor
respeito à comunidade. Como por exemplo, o PDE - Plano de Desenvolvimento da
Escola
104
que é elaborado sem o conhecimento da comunidade escolar. Após muitas
reivindicações, na administração anterior, a escola conseguiu o direito de participação na
104
O PDE é uma proposta de planejamento escolar, com formulários e metodologia própria. No caso das
escolas estaduais, é elaborado pela comunidade escolar e tem a finalidade de fazer um levantamento das
necessidades administrativas e pedagógicas, por bimestre. Neste planejamento são previstos os recursos
financeiros necessários às despesas do ano letivo e encaminhado a SEDUC. Esta por sua vez, libera o recurso
bimestral à escola, conforme sua previsão no PDE e a prestação de contas dos recursos liberados
anteriormente. No caso das escolas municipais, as regras são quase iguais, com as seguintes diferenças: quem
elabora o PDE são as Secretarias Municipais de Educação e os recursos financeiros não são repassados à
escola. A Secretaria encaminha merenda, material pedagógico e de consumo quando a escola solicita. É o
caso da Cadete Adugo Kuiare.
elaboração deste plano, porém, atualmente esse direito foi suspenso. O órgão responsável
pela escola deduz suas necessidades e elabora o plano.
Como o nosso propósito é tratar com maior ênfase as conquistas das comunidades
indígenas, do que os problemas por elas enfrentados chamamos a atenção para o mérito
da língua indígena referendada nos Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas
Indígenas (1998, p. 118): “A inclusão da língua indígena no currículo da escola atribui
direito e paridade com a língua portuguesa”. Neste sentido, a escola Cadete Adugo Kuiare
incentiva e favorece a manutenção da Língua Bororo. Quando a criança é alfabetizada,
não tem domínio do português é na língua materna que se alfabetiza. A introdução do
português se dá a partir da terceira série. Nas séries seguintes, a língua indígena é dada
como disciplina, com carga horária equiparada ao português. Considerando que os
professores das diferentes áreas falam a língua Bororo, há uma complementaridade da
língua materna, em todas as aulas, especialmente para sanar dúvidas, nos temas mais
complexos. Um aluno da 8ª. Série, Arnaldo Koge demonstra a importância de um Bororo
estudar na escola da sua aldeia, dizendo o seguinte:
O que acho interessante no jeito desta escola funcionar é que aqui não
ensina só o português, mas também a língua materna. E tem outras
disciplinas que na escola do branco talvez não tenha, como: Arte
Bororo, Educação Corporal, Educação para a Saúde, Educação para
o Ambiente e outras.
Como a escola não é o único lugar de aprendizagem, a comunidade Boe-Bororo
utiliza outros espaços para transmitir o que é próprio da sabedoria dos velhos. É no centro
da aldeia, às vezes dentro do Baíto,
105
às vezes fora dele, que são repassados os valores
tradicionais e o modo de funcionamento da sociedade Boe. Essa forma de educação,
contemplando os costumes da cultura, contribui na formação política dos alunos e
complementa os conhecimentos construídos na escola. Afirmação de Fernando Kudoro
Bororo, na época era vice-cacique:
Aqui na nossa aldeia, quando acontece o funeral, a escola libera os
alunos para participarem da cerimônia. E nas reuniões envolvendo a
vida política do povo, eles participam das discussões, dando opinião e
ouvindo os mais velhos falarem. Isto também é considerado formação
dos estudantes.
Para Bruno Tawie, diretor da escola: “a educação escolar significa o domínio da
ciência dos não índios. Ela ensina o diálogo e o respeito entre nós e outras sociedades” A
escola aqui é reconhecida como um instrumento que favorece a compreensão do mundo
externo à aldeia. Percebe-se que esta fala traduz não o entendimento do Bororo, mas da
grande maioria dos povos indígenas. Aracy Lopes (2001), interpreta o pensamento dos
índios dizendo que a educação escolar está incorporada em suas reivindicações. Ela está
inclusa nos projetos de futuro do povo, proporcionando condições para o domínio dos
conhecimentos tecnológicos específicos.
A expressão seguinte demonstra mais uma vez que, a escola é sem dúvida um
elemento importante, para o povo Boe:
Na minha avaliação a educação escolar dentro da aldeia, significa o
fortalecimento e a autonomia dos índios. Ela ajuda a desenvolver a
nossa capacidade de lutar em defesa do nosso povo e a sermos autores
principais da nossa história. (Professor Sebastião Marques)
As afirmações obtidas neste estudo atribuem à escola, grande responsabilidade. No
entanto, ela sozinha não resolverá todos os problemas das sociedades indígenas ou de
105
Casa dos homens localizada no centro da aldeia. Espaço de formação da cultura tradicional.
qualquer que seja. Mas aumenta com certeza a obrigatoriedade do poder público em
oportunizar com qualidade e respeito às diferenças, a escolarização nas aldeias. Isto é,
quando solicitado pelas comunidades.
O anseio à conquista da autonomia, da independência e de melhores condições para
gestar seus projetos de futuro é um desejo expresso pelas populações indígenas de todo
País. Autonomia se tornou a palavra forte para estes povos. Buscando compreender melhor
este conceito, tanto individual quanto social, deparamos com um vasto horizonte. O termo
adquire especificidade no contexto de cada teoria apresentada. Apesar das abordagens
diferenciadas parecem todas concordarem com duas condições essenciais: liberdade,
independência de controle e ação, capacidade de agir intencionalmente.
Para compreender um pouco mais o sentido da palavra, buscamos rapidamente em
Barroso (1996),
106
maiores esclarecimentos. O autor considera a autonomia vinculada à
idéia de auto-governo, onde os sujeitos se regulam por regras próprias. Contudo, isto não é
sinônimo de indivíduos independentes. A autonomia é um conceito de relações
determinadas, somos autônomos de alguém ou de alguma coisa, nossas ações se exercem
sempre num contexto de dependência recíproca. Desta forma somos mais ou menos
autônomos, podemos ser autônomos em relação a umas coisas e não o sermos em relação a
outras. Por isso, a autonomia é uma maneira de administrar, nortear as distintas
dependências em que os indivíduos e os grupos se encontram no seu meio, de acordo com
as suas próprias leis.
Como sabemos, cada sociedade indígena está “intrinsecamente relacionada” a outras
sociedades, portanto, entendemos que a sua autonomia acontece quando as relações
interculturais forem entrelaçadas e a partir daí ter a capacidade de gestar e realizar projetos
determinados, com a habilidade de identificação de sua identidade e diferenciação em
relação a outras sociedades. Diz Barroso (1996, p. 2)
107
“Quanto mais estabelecer trocas de
energia e informação, maior é a riqueza e as possibilidades de construção da autonomia”.
Julgamos que a autonomia da escola indígena não é algo que se adquire ou que os órgãos
públicos possam lhe conceder e sim um processo que vai se construindo e consolidando na
inter relação e criando a sua própria identidade.
106
Conferir: http://members.tripod.com/Rmoura/autonomiahtm Autonomia e Gestão das Escolas.
107
Ibidem.
O Parecer 14/99/CNE - Conselho Nacional de Educação, no item 5, sobre a
“Flexibilização”, assegura que: “A escola para ser considerada indígena deve ser
instituída na aldeia e seus profissionais, prioritariamente, índios da própria etnia”. É
evidente que a garantia da lei, contribui na conquista e no fortalecimento de uma escola
com características indígenas, mas este critério por si só, não assegura a identidade própria
da aldeia. É necessário a aproximação e o envolvimento da comunidade nas ações
pedagógicas e administrativas da escola e ainda, é essencial o rompimento das estruturas e
dos “modelos” contraditórios à realidade e as decisões da comunidade indígena.
É fundamental ponderar que a escola ideal para cada comunidade indígena é aquela
idealizada pelo próprio grupo e não a que os assessores não indígenas decidem que seja.
Quem poderá avaliar se uma escola indígena tem características peculiares ou não?
Somente o seu próprio povo. Neste sentido, os depoimentos concedidos a esta pesquisa,
revelam que a escola Cadete Adugo Kuiare, desempenha seu papel como tal. Ou pelo
menos, caminha num processo de construção própria, equivalente às expectativas da aldeia
Córrego Grande. Seu percurso de gestão, conta com algumas experiências que passaremos
a demonstrar em seguida.
A educação da nossa escola é diferente da educação do não-índio porque ela
acontece na aldeia onde trabalham só professores, alunos e diretor índio”. (Juscimar
Bororo)
Eu acho o funcionamento da escola muito bom, pois o diretor sabe comandar bem
a escola e nós estamos lutando para melhorar ainda mais”. (Wilson Aieko)
3.4 - O Protagonismo Indígena e o Controle Social na Gestão Escolar
Embora a educação escolar indígena propague o convívio entre os mais diversos grupos
ou segmentos sociais, a discussão acerca da interculturalidade é ainda recente nas
instituições de ensino. Apesar dos avanços apontados na última década, como por exemplo:
as práticas pedagógicas reconhecidas pela lei, multiplicidade de consultorias antropológicas
e lingüísticas a nível federal, responsabilidades atribuídas aos estados e municípios pela
educação indígena e outros, o quadro político institucional, é problemático quanto aos
mecanismos que garantam o atendimento à diversidade. Para Nietta Monte (1998, p.76), “o
sistema federativo brasileiro confere autonomia aos governos locais na maioria dos casos
com nítidos perfis antiindígenas e conservadores, o que acarreta rejeição [...] e imposição
de regras rígidas para o funcionamento das escolas indígenas”.
Portanto, o respeito à diversidade cultural e étnica, ainda que sejam valores de
cidadania, na maioria das vezes estão ausentes nos órgãos normatizadores da educação
pública. Em alguns casos, os gestores indígenas ao esbarrar em posturas preconceituosas
nas instituições, se intimidam, mas não desistem, quanto aos encaminhamentos
administrativos de suas escola. As lutas incansáveis dos povos indígenas e de profissionais
que os apóiam, está suscitando nas escolas, nova concepção de gestão. São iniciativas
ancoradas nos desejos e necessidades das comunidades indígenas. Segundo Francisca
Novantino, esse protagonismo se deve ao “movimento indígena como importante estratégia
para o rompimento da política de integração e a melhoria da escola e de outras áreas,
como: saúde, demarcação das terras e sustentabilidade”.
108
A noção de protagonismo indígena é tomada aqui na acepção proposta por Darci
Secchi (2005, p. 02), que a concebe como uma relação intercultural e dialógica entre
múltiplos atores.
Ao discutir o protagonismo indígena em contexto de relações
interculturais tem-se em foco uma dupla dimensão: a de ocupar os
espaços e a de definir os papéis que configuram a teia dessas relações.
A primeira dimensão diz respeito às estratégias a serem adotadas para
viabilizar a presença e a participação indígena em todas as instâncias
decisórias e em todas as etapas de realização de um determinado
evento. A segunda trata do exercício qualificado do diálogo e do
desempenho concreto das atribuições e representações estabelecidas
nas relações interculturais. Trata, portanto, da capacidade (ou
incapacidade) das sociedades indígenas exercerem o controle sobre os
elementos culturais externos, incorporados ao seu cotidiano, em
decorrência do convívio intercultural.
Com referência ao protagonismo na escola indígena, traremos alguns fundamentos
da gestão escolar para o povo Boe-Bororo, na escola Cadete Adugo Kuiare. Estes
fundamentos se relacionam ao controle da comunidade sobre as decisões da escola e as
conquistas apresentadas evidenciam a interculturalidade na prática da gestão. Apontaremos
assim, quatro pilares sobre os quais se consolidam o protagonismo indígena na escola
pesquisada:
1) A formação de professores indígenas
A formação de professores oriundos da própria comunidade constituiu-se num
importante evento educativo e foi assim sintetizado por Valdomira Bororo, mãe de aluno:
A escola é uma coisa boa para nós. Hoje em dia não é mais como no tempo passado,
agora temos professores daqui mesmo. A gente não pode deixar de ser índio, mas tem que
aprender o que é do branco também”.
108
Dissertação de Mestrado, (2005, p. 107).
A formação de professores indígenas em Mato Grosso consolidou-se a partir do ano
de 1996, com a implantação do Projeto Tucum - Formação de Professores Indígenas para o
Magistério. Este Projeto foi uma experiência inovadora que Mato Grosso desenvolveu,
através de parcerias entre órgãos governamentais (municipal, estadual e federal), entidade
civil e as comunidades indígenas. Contou com a parceria financeira do Banco Mundial,
através do PRODEAGRO e o seu final se deu no ano 2000.
O Projeto Tucum foi uma excelente oportunidade para formar quadros locais que
passariam a atender à população em idade escolar que aumentava em escala crescente, nas
aldeias. Em uma decisão coletiva, a comunidade de Córrego Grande indicou oito
candidatos ao curso e os acompanhou ao longo dos estudos. O seu desempenho e a
permanência como professores naquela comunidade foram motivos de grande alegria e
comemoração. Álvaro Koriga, membros do conselho de idosos constata que: com a
conclusão do Projeto Tucum, a aldeia pôde contar com oito professores indígenas
preparados para lecionar”.
Num esforço coletivo, os professores passaram a assumir totalmente as atividades
escolares, direcionando-as para a realidade e especificidade da aldeia. Aos poucos foram
rompendo com as relações de dependência e submissão que por muito tempo estabeleceram
com os professores não-índios contratados pela FUNAI e por outras instituições. A
conquista deste espaço na escola proporcionou aos índios exercer as relações interculturais
com qualidade e autonomia. As atividades escolares que antes eram planejadas longe da
aldeia, pela Secretaria Municipal de Educação de Santo Antonio de Leverger, passaram a
ser discutidas e decididas no coletivo. Essa participação da comunidade trouxe maior
desempenho nas ações educativas da escola.
A consolidação desse processo não foi rápida e nem fácil. Exigiram longas
conversas e reflexões no Baíto (casa central) e com o conselho dos idosos. O povo Boe-
Bororo, pelos seus costumes tradicionais, antes de tomar qualquer decisão que envolve a
coletividade, necessita de muita conversa e troca de idéias. Assumir a liderança da escola e
o trabalho pedagógico sem a intervenção das professoras não índias, exigiu uma
mobilização de forças. Mas com o envolvimento da comunidade, a escola Cadete Adugo
Kuiare, vem alcançando resultados interessantes.
Em vários depoimentos os professores contam como foram essas negociações.
Bruno Tawie (2004, p. 66) destaca que: A princípio alguns da comunidade não
entenderam muito bem, até porque nossa escola sempre foi dirigida pelas irmãs
franciscanas desde 1980”.
Esse processo de confiabilidade, tanto por parte da comunidade, como pela
Secretaria Municipal de Educação e pelos próprios professores, por si só já pode ser
considerado uma vitória. Inicialmente, alguns pais, especialmente os mais velhos, temiam
que a escola se transformasse em “baderna” ou até fechasse. Consideravam que não
estariam preparados para assumirem tanta responsabilidade. Mas como a história é um
processo, disse Bruno: “o tempo está mostrando que somos capazes, toda a comunidade
Bororo agora está mais confiante nos professores e acreditam em nossa capacidade”. No
decorrer do tempo os próprios professores foram ganhando experiência e segurança no
trabalho educacional. Isso possibilitou a ampliação ao atendimento escolar, implantando na
aldeia, todas as séries do Ensino Fundamental e a educação infantil.
A conquista da comunidade quanto à formação de seus professores teve
prosseguimento com o . Grau Indígena. Em 1997, o Governo de Mato Grosso criou uma
Comissão Interinstitucional e Paritária que iniciou a elaboração do Projeto de Cursos de
Licenciatura Específicos para a Formação de 200 Professores Indígenas. O Projeto foi
concluído no final de 1999, com a entrega oficial do documento ao Governo do Estado.
Segundo Elias Januário, coordenador do Projeto,
109
O ano de 2000 foi dedicado às
negociações políticas e financeiras, com a assinatura dos convênios entre as instituições
parceiras e a sua aprovação nos colegiados da Universidade do Estado de Mato Grosso”.
Em 2001 a UNEMAT, Campus de Barra do Bugres, realizou o vestibular e as aulas
iniciaram no mês de julho, deste mesmo ano.
Os resultados foram surpreendentes para os Bororo de Córrego Grande, visto que
nove professores prestaram o vestibular e oito foram aprovados, se formando em 06 de
junho de 2006. A nova turma do Terceiro Grau Indígena conta também com a primeira
professora Bororo desta aldeia (Neide Gereguinha), aprovada no vestibular de 2005.
A criação do Grau Indígena resultou num grande avanço para as políticas
públicas do Estado. A formação de 200 professores de diferentes etnias é uma vitória para
educação escolar indígena das aldeias. Como disse o coordenador do Grau, Elias
Januário, ao se referir o Projeto
:
110
109
Conferir: www.unemat.br/indigena/historico.htm
110
Conferir: Caderno de Educação Escolar Indígena, Ano II, nº. 04 – agosto a dezembro (2002, p. 7).
Não faz muito tempo que tudo não passava de um enorme desejo, de um
sonho, de uma grande luta e de um longo caminho a ser percorrido.
Hoje é realidade, resultado, sucesso, trabalho e determinação. Estamos
completando um ano do Projeto Grau Indígena. Nesse período
crescemos, superamos obstáculos, trocamos experiências, aprendemos e
ensinamos. Assim tem sido o Grau Indígena, um espaço de diálogo,
de construção coletiva do conhecimento, de percepção de outras
lógicas, da esperança de um futuro melhor, do reconhecimento das
diferenças e da valorização do outro.
Que a formação destes professores traga às suas comunidades mais dinamismo,
esperança no futuro e que contribua para a valorização de suas culturas e a consolidação
dos direitos dos povos indígenas, garantidos na Constituição Brasileira.
Para a comunidade de Córrego Grande, ter professores formados em nível superior,
significa valorização do povo Bororo. “As expectativas com relação aos professores agora
é maior. Temos que estar atentos para falar em nome da comunidade quando o assunto diz
respeito aos ”brancos”, como por exemplo: elaboração de projetos, economia, e outros”,
enfatiza Estevão Bororo. Outra expectativa é com relação à implantação do Ensino Médio
na aldeia. Com este número suficiente de professores, os jovens não terão necessidades de
freqüentarem as escolas da cidade. O Projeto foi elaborado e se encontra em tramitação
burocrática nos órgãos afins.
2) O Projeto Político Pedagógico
A construção desta seção, além das entrevistas gravadas na aldeia, tem por base a
primeira versão do Projeto Político Pedagógico da escola indígena Kadete Adugo Kuiare,
elaborado em 2001 e a versão atualizada, por iniciativa dos acadêmicos do Grau
Indígena, Bruno Tawie e Benedito Bororo. A proposta de avaliação do Projeto foi
associada ao Trabalho de Conclusão de Curso - TCC destes acadêmicos, em 2006 e foi
precedida por novas discussões com a comunidade, a partir do Projeto anterior.
De acordo com as informações dos professores Boe-Bororo, a primeira versão do
Projeto Político Pedagógico da escola Cadete Adugo Kuiare foi elaborada
aproximadamente dois anos após estes assumirem as atividades escolares. Foi necessário
anteceder um período de experiência, para que todos se sentissem mais seguros e confiantes
para este trabalho. Com a assessoria da professora Ana Macedo,
111
iniciaram junto à
comunidade da aldeia Córrego Grande a construção do Projeto. O documento elaborado foi
considerado um instrumento importante pela comunidade escolar, contemplou a iteração
entre aldeia e escola, aglutinou a realidade da comunidade e dados essenciais ao trabalho
pedagógico.
Para os professores Bororo Bruno e Benedito (TCC, 2006, p. 20):
Pensar o projeto político pedagógico de uma escola é pensar a escola no
conjunto e a sua função social. Se essa reflexão a respeito da escola for
realizada de forma participativa por todas as pessoas nela envolvidas,
certamente possibilitará a construção de um projeto de escola
consistente e possível. É preciso buscar informações diretas na aldeia.
Queremos fortalecer e estreitar as relações de trabalho entre a escola e
a comunidade.
O Projeto Pedagógico das escolas indígenas em geral, fundamenta-se nas
orientações da Resolução 03/99/CEB/CNE, no Artigo 5º, com as seguintes prescrições:
A formulação do projeto pedagógico próprio, por escola ou por povo
indígena, terá por base: As Diretrizes curriculares Nacionais, as
características próprias da escola indígena, as realidades sócio
lingüísticas, os conteúdos curriculares especificamente indígenas e a
participação da comunidade ou do povo indígena.
O processo de elaboração do Projeto Político Pedagógico da escola indígena Cadete
Adugo Kuiare se deu a partir de uma construção coletiva, onde as lideranças se
111
Pertencente à Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas.
comprometeram em colaborar na interação entre escola e comunidade. O Projeto foi
sistematizado a partir do seguinte roteiro:
1. Histórico do povo Boe-Bororo;
1.2. Da aldeia Córrego Grande;
1.3. Da Escola Indígena Cadete Adugo Kuiare;
2. Finalidade da escola;
3. Definição de papéis: (da comunidade, dos pais, dos alunos, dos gestores, dos
professores, da merendeira, dos agentes de serviços gerais);
4. Funcionamento da Escola;
5. Áreas de Conhecimentos;
6. Metodologia;
7. Calendário Escolar;
8. Formas de Registro;
9. Processo Avaliativo.
10. Anexos
Ao iniciar esta atividade, a indagação dos participantes foi da seguinte ordem: Qual
a utilidade e a contribuição do documento para uma escola indígena? A preocupação em
torno desta questão foi sendo evidenciada na aldeia, durante o desenvolvimento das
atividades previstas. O Projeto abrange a dimensão pedagógica, no sentido de definir as
ações educativas necessárias ao cumprimento de seus propósitos e física funcional, por
definir as suas características organizativas.
Veiga (1995) explica que o PPP procura dar uma direção para a escola, por isso suas
ações são intencionais, com sentido explícito e compromisso definido coletivamente. Ele é
pedagógico e político, por estar articulado com a realidade sócio, político e cultural e com
os reais interesses da comunidade escolar.
Com o comprometimento dos partícipes no processo educativo, este Projeto em sua
concepção, tem por objetivo ultrapassar a mera elaboração de planos, que na maioria das
vezes tem a função de cumprir exigências burocráticas.
Com esta compreensão a comunidade escolar definiu as finalidades da escola, da
seguinte forma:
1. A escola serve para a comunidade indígena Bororo aperfeiçoar o
português, não ser enganado pelos “brancos” e aprender a
valorizar mais as tradições e os costumes do povo;
2. Aprender a ler e escrever na Língua Bororo, pois a escrita é uma
arma poderosa que a escola oferece aos índios e ainda contribui
para manter a cultura;
3. Aprender a elaborar documentos, projetos e compreender as leis, e
o que acontece na política e na sociedade externa;
4. Aprender a defender os direitos territoriais e os demais direitos
indígenas e conhecer melhor a realidade do mundo dos não-
índios;
5. A escola tem ainda por finalidade desenvolver nos educandos idéia
crítica a respeito dos conhecimentos da ciência universal. Ela o
é algo pronto e acabado, está em construção e todos nós somos
sujeitos. (PPP, 2001, p. 3)
Todos os segmentos da escola Cadete Adugo Kuiare têm um papel definido no
Projeto Político Pedagógico. Mencionamos como exemplo, apenas alguns deles (pais,
alunos e gestores), com o único objetivo de ser sucinta neste item e não por estabelecer
uma hierarquia entre os segmentos. Como também não pretendemos pormenorizar o roteiro
ou o desenvolvimento do Projeto. De acordo com os professores Bruno e Benedito (TCC,
2006), os pais Bororo têm um papel fundamental na escola, porque são eles os primeiros
responsáveis pela educação tradicional de seus filhos. Neste caso, é atribuída a eles a tarefa
de organizar e coordenar eventos envolvendo a cultura do povo, dentro da escola e no
centro da aldeia. E ainda: colaborar com os professores na definição de temas de pesquisas
e com os alunos na execução; participar de todos os colegiados relacionados à educação
escolar; diagnosticar os problemas da aldeia e acompanhar o processo de ensino-
aprendizagem de todos os estudantes.
Aos estudantes, antes de qualquer tarefa, é garantido o direito de serem ouvidos em
todos os assuntos que lhes dizem respeito. Dentre outras atividades, a estes compete:
Participar com assiduidade de todo processo educacional, inclusive na definição de temas e
planejamento dos projetos de pesquisa; motivar discussões sobre os problemas da
comunidade e elaborar propostas de solução; participar de todos os eventos culturais;
colaborar na aprendizagem dos colegas.
Para a comunidade de Córrego Grande, o diretor e o coordenador pedagógico são os
gestores da escola. Na busca da construção de uma escola democrática o papel dos gestores
neste Projeto, coaduna com a acepção de Gomes (2006, p. 71): “o gestor tem noção de
autoridade e distingue da noção de poder, seu significado está associado à noção de autor,
criador, compositor, inventor ou arquiteto. Remete-nos para a idéia de alguém que se
legitima pela sua própria obra [...]”. Os objetivos da gestão neste caso são: coordenar as
ações educacionais; criar mecanismos que envolvam todos os segmentos da escola na
execução do Projeto Político Pedagógico; estabelecer uma relação próxima e co-
participativa com os professores, em todas as suas atividades curriculares; promover
encontros de formação continuada e avaliação periódica para a equipe pedagógica;
responsabilizar-se junto ao presidente do Conselho Comunitário, pelas ações
administrativas e financeiras. Todas as ações demandadas pelos órgãos normatizadores do
sistema de ensino e instituições parceiras (SEDUC, MEC, FUNAI, Prefeituras e ONGs.).
O ensino na escola Cadete Adugo Kuiare funciona de forma seriada. A implantação
do Ensino Fundamental completo se deu gradativamente, de acordo com a demanda
apresentada pela aldeia. As aulas são ministradas em língua Bororo e portuguesa, porém, a
língua indígena tem destaque pelo fato da alfabetização até a 2ª. série, não utilizar o
português em sala de aula, sua introdução se a partir da 3ª. Série. Em todas as séries e
disciplinas a língua Bororo está presente como língua de instrução, uma vez que os
professores são Bororo e a comunicação se em sua ngua. De acordo com o professor
Gilberto Kia: O que tem de diferente no funcionamento da nossa escola, em relação à
escola da cidade é porque os conhecimentos indígenas e não-indígenas são repassados em
duas línguas”. O uso da língua Bororo na escola é uma forma de incentivo e valorização de
um dos fundamentais instrumentos da cultura. Afirma Orivaldo Aiepa: Existem aspectos
da tradição que só podem ser transmitidos na língua materna”.
Além das disciplinas do currículo nacional e da língua indígena citada acima, o
Projeto Político Pedagógico contempla áreas específicas do conhecimento tradicional,
como a arte e a cultura Bororo. Esta área serve para expressar o dia a dia da comunidade;
conhecer as pinturas faciais de cada clã; aperfeiçoar os cantos e as danças tradicionais;
resgatar aspectos da arte Bororo como os artesanatos e conhecer a arte de outros grupos
étnicos”.
112
No estudo do Projeto enquanto instrumento pedagógico foi possível identificar na
aldeia Córrego Grande uma comunidade educativa, como refere os RCNEIs (1998, p. 65):
A comunidade educativa é referência para a identificação e escolha de práticas
pedagógicas adequadas às escolas indígenas. [...] Ela é fonte de conhecimento de um
conjunto de atores que junto aos professores deve conduzir o planejamento curricular”. O
diálogo respeitoso entre escola e aldeia propiciou a construção de um currículo organizado
com os conhecimentos universais, interligados aos saberes da cultura Boe, sustentando
desta forma, a interculturalidade.
3) A Eleição do Diretor
A busca pela autonomia da escola teve prosseguimento. A comunidade escolar
sentindo os resultados positivos na educação se motivou a dar um novo passo, a escolha de
um diretor para a escola indígena Cadete Adugo Kuiare. Embora a Secretaria Municipal de
Educação de Santo Antonio de Leverger, não tivesse em suas normas, nenhuma legislação
assegurando o cargo de diretor para as escolas rurais, não foi difícil conquistar este espaço.
Segundo informações do ex-secretário municipal de educação na época, João Bosco
Gallio,
113
a Secretaria Municipal de Educação de Santo Antonio, tem apenas um diretor em
sua sede, que atende todas as escolas rurais do município. São 56 escolas, incluindo duas
indígenas. A Cadete Adugo Kuiare foi a primeira escola do município a implantar de 5ª a 8ª
séries. Esta ampliação significou maior demanda de atendimento para o diretor, no sentido
da assistência técnica, administrativa e pedagógica para a escola. Esta realidade instigou a
comunidade e o secretário a decidirem em conjunto, pela escolha de um dos professores
para assumir a função de diretor da escola, facilitando assim, as relações com a Prefeitura e
a Secretaria de Educação. Este entendimento trouxe bons resultados.
Após esta decisão, a comunidade de Córrego Grande iniciou o processo de reflexão
sobre as atribuições e os candidatos ao cargo em discussão. Conforme Ata da Reunião:
114
112
Conferir: Projeto Político Pedagógico, (2001, p. 7).
113
Entrevista gravada em maio de 2006.
114
Conferir: Livro Ata da escola Cadete Adugo Kuiare, p. 4.
No dia 18 de fevereiro de 2003, a comunidade realizou a eleição.
Primeiro foi colocado no quadro o nome dos oito professores,
candidatos
115
e depois procedeu em forma de votação secreta, saindo
vitorioso com 60% do resultado, o professor Bruno Tawie.
Segundo José Jerego, cacique naquela época: “a escolha de um diretor Bororo teve
uma grande importância para o povo, no sentido da valorização e confiança por parte da
prefeitura de Santo Antonio”. Com a eleição foi possível ratificar e explicitar a capacidade
dos próprios índios em gerir seus destinos e exercitar a autonomia.
O nome do diretor eleito foi comunicado ao secretário de educação que respeitou e
acatou a decisão da comunidade. Logo em seguida foram tomadas as providências para a
nomeação do futuro diretor. Em seu depoimento, o secretário disse: A pessoa escolhida é
muito responsável na aldeia, comandou todo o processo de criação da escola, e hoje como
diretor, continua agilizando as ações educativas”.
Entendemos que a construção de uma escola participativa não depende da ação
do diretor, mas de todos os segmentos que compõem a escola. E ainda da criação de
espaços e mecanismos que possibilitem o envolvimento da comunidade nos planejamentos,
na definição dos projetos, emfim, nas atividades de aprendizagem dos estudantes.
Para o Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares (2005, p.
32):
116
A democratização da gestão escolar implica a superação dos processos
centralizados e a gestão colegiada, orientada pelo sentido político e pedagógico presente
na prática educativa”.
A escolha de um diretor para a escola Cadete Adugo Kuiare, despertou na
comunidade um conjunto de expectativas, no sentido de superar as dificuldades de acesso à
Secretaria Municipal de Educação e melhorar as condições gerais de funcionamento da
escola, tanto nos aspectos pedagógicos, quanto administrativos e financeiros. No entanto, as
expectativas não se efetivaram completamente porque o sistema de ensino do município, ao
qual a escola pertence, não difere do restante do país.
115
Sebastião Marques, Daniel Koriga, Dário Brame, Benedito Júnior, Bruno Tawie, Neide Jereguinha,
Gilberto Kia, Evaristo Kiga, Félix Rondon Adugo Enawu.
116
Caderno nº. 5
As escolas indígenas, em nível nacional, apesar da legislação assegurar a criação de
categoria própria, no sistema educacional do país, são inclusas na modalidade de escolas
rurais. Portanto, o tratamento não poderia ser outro, como este observado por Moacir
Carneiro (2000, p.93), ao comentar o Artigo 28 da LDB que trata da oferta de educação
básica para a população rural:
A grande maioria das escolas municipais aponta para uma enorme rede
de escolas rurais, sempre ignoradas na hora do planejamento da
educação nacional. [...] E ainda, a matriz psicopedagógica, eivada de
um culturalismo anti-rural, norteadora da formação dos professores,
produz uma disfunção educativa entre o que o professor quer e o que o
aluno é.
De acordo com José Jerego, a comunidade ao escolher um professor para a função
de diretor, optou pelo que tinha mais experiência, mais tempo de trabalho e mais
facilidade em relacionar com a prefeitura”. Mas, para o professor Bruno, diretor eleito, a
prática mostrou que a realidade é permeada por desafios, por momentos de dificuldades que
às vezes surpreende, disse ele:
A experiência que eu tinha era somente com o meu trabalho pedagógico
e na sala de aula com os alunos. No começo tive dificuldade para
orientar os planejamentos, a elaboração dos projetos de pesquisa e o
preenchimento dos formulários e fichas, exigidos pela Secretaria de
Educação. Eu não imaginava que a gestão de uma escola exigisse tanta
dedicação e conhecimento. A educação tem muitas leis, por mais que nós
professores indígenas tenhamos estudado e participado de cursos de
formação, a vivência ou a prática de gestor de escola, exige mais do que
a gente sabe. Especialmente com relação à burocracia. As atribuições e
responsabilidades pesam mais porque a escola não tem um secretário
para colaborar. Mas com isto não estou dizendo que fico desanimado,
pois tenho aprendido muito e quero aprender mais. Conto sempre com a
colaboração dos professores e de toda comunidade, nosso trabalho é
coletivo e eu quero colaborar sempre.
A construção de relações entre escola, sistema de ensino, forma de gestão, participação
da comunidade, educação tradicional e conselho comunitário, constitui um aprendizado
político e pedagógico, no cotidiano da escola. Esta é uma experiência muito recente nas
escolas indígenas de Mato Grosso, especialmente na Cadete Adugo Kuiare. É importante
observar que esta prática está sendo considerada uma inovação para a comunidade
indígena.
Apesar da necessidade de dedicação exclusiva e disponibilidade de um professor para
exercer a função de diretor, as demandas da gestão da escola envolvem a coletividade e
colaboração da aldeia Córrego Grande. Esta prática proporciona um novo aprendizado e
novas relações interpessoais, sem, tampouco, interferir nas tradições clânicas, em seus
modos de relacionamentos.
Com o processo de escolarização nas aldeias, as comunidades indígenas começaram
a enfrentar novos desafios, dentre outros, no plano das relações sociais, culturais e
educativas. De modo particular, surge a necessidade de enfrentar os conflitos da
interculturalidade. que se estabelecer relações, entendimento e cooperação pessoais e
culturais, fortalecendo deste modo à identidade própria. O novo contexto nas comunidades
indígenas requer a elaboração de novas linguagens e o confronto com situações
interculturais diversas.
Nesta direção, vem ganhando relevância na escola indígena as discussões em torno
da gestão intercultural, existem diferentes iniciativas e práticas educacionais. A escola
Cadete Adugo Kuiare, apesar dos inúmeros desafios, caminha na perspectiva da superação
dos exageros burocráticos por parte das instituições “normatizadoras” do ensino. Espera-se
mais flexibilidade, compreensão e maior respeito às diferenças. Não há neste sentido,
nenhuma pretensão por parte das comunidades indígenas, em ter uma escola totalmente
descompromissada com as leis, ou sem normas necessárias à organização da gestão. O que
se pretende é que haja um sistema mais flexível e as instituições educacionais possam
proporcionar maior eqüidade aos indígenas em suas formas organizacionais.
Eleger um diretor indígena que aspira ações inovadoras para a escola da aldeia
parece pouco no campo das conquistas, todavia é um novo passo.
4) O Conselho Escolar
Como vimos anteriormente e ainda com base na afirmação de Paro (2001), a eleição de
Diretor é um mecanismo importante no processo democrático da escola, mas não é o
bastante. Outras experiências devem ser vivenciadas, como por exemplo: os grêmios
estudantis, as associações de pais, de profissionais da educação e Conselhos Escolares, que
trataremos aqui com a denominação de Conselho Comunitário da Aldeia Córrego Grande.
Ao discutir sobre os Conselhos Escolares Comunitários, Torres (2005, p. 3)
117
comenta
sobre a democracia representativa e diz o seguinte sobre os Conselhos:
É necessário criar um Conselho que deixe de ser um mecanismo
sofisticado da globalização neoliberal. Sofisticado, porque legitimado
formalmente por vários ingredientes característicos da democracia
participativa: quais sejam, a participação paritária de distintos
segmentos; a participação nos processos decisórios; a autonomia
financeira; a descentralização de poder na gestão pedagógica,
administrativa e inclusive financeira.
A experiência da Escola Kadete Adugo Kuiare indica que a comunidade da Aldeia
Córrego Grande se apropriou deste mecanismo imprimindo sua especificidade e garantindo
que os principais aspectos de sua cultura fossem considerados na sua composição, no
estabelecimento de suas prioridades e formas de atuação, na sua gestão. Observamos que a
participação não é meramente formal e fechada no cotidiano escolar, mas se relaciona com
o cotidiano da aldeia, mesclando os novos e antigos elementos da vida Boe Bororo.
De acordo com informações da comunidade, o Conselho Comunitário é uma
instância colegiada que conta com a participação dos diferentes segmentos da aldeia. Em
sua concepção ele é mais um passo na busca de uma escola participativa, possibilitando a
implementação de uma nova cultura na gestão escolar, por meio da coletividade e co-
responsabilidade. Conforme a afirmação do presidente, Orivaldo Aiepa: O Conselho
nasceu com a finalidade de ajudar o diretor da escola e as outras organizações que
participam dele, a resolver os problemas da aldeia. A intenção é melhorar o futuro da
comunidade em todos os níveis”.
O Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares do MEC considera
esta organização um dos mais importantes mecanismos de democratização da gestão de
uma escola, expresso no caderno nº. 5 (2005).
O Ministério da Educação investiu neste Programa visando a criação e a
consolidação dos Conselhos das Escolas Públicas, existente em vários lugares do país.
Tem por finalidade dar apoio e impulso na democratização da educação e da gestão. Para o
Ministério da Educação, a intenção desta ação é interligar os Conselhos com outras
políticas públicas e constituir um alicerce de conscientização e socialização da visão
democrática da sociedade.
Dentro desta perspectiva, o Conselho Comunitário da Aldeia Córrego Grande, como
órgão colegiado, composto por representantes da comunidade escolar e local, tem como
atribuição deliberar sobre questões políticas, pedagógicas, administrativas e financeiras da
escola.
A participação de seus membros é ampla e ativa na vida da escola, garantindo o
fortalecimento dos mecanismos de decisão coletiva. O Conselho tem a missão de
117
[Texto digitado]
proporcionar um espaço coletivo, onde se possa aglutinar as forças dos diferentes
segmentos que compõem a comunidade escolar. Ele deve atuar no processo de
implementação da gestão. Uma de suas demandas é apoiar as lutas comunitárias, como a
infra-estrutura da escola e a valorização dos profissionais da educação, a partir de salários
dignos e formação continuada. Enfim, ele poderá resultar em desdobramentos positivos no
sentido de fazer cumprir as políticas públicas e colaborar para o exercício participativo na
escola.
Seria uma inverdade afirmar que a comunidade indígena em foco se firmou nas
orientações do Programa Nacional do Ministério da Educação, para criar o Conselho
Comunitário. Contudo, não podemos dizer que a intenção da comunidade, quando da
criação deste Conselho, estaria fora destas orientações. Além das atribuições comuns a
qualquer Conselho Escolar, ele tem a função especial de promover a interação dos saberes
na construção dos conhecimentos, através das ações educativas. A escola tem como
desafio, favorecer um equilíbrio entre a ciência que vem de fora e a tradicional do povo
Boe-Bororo. Manter esta interligação é propiciar o fortalecimento da cultura Boe, um dos
princípios do Conselho, dito pelo professor Gilberto Kia:
A escola funciona de acordo com a organização, o desejo, os valores e
as necessidades da comunidade. O Conselho Comunitário não é
fiscalizador, mas observa as atividades educativas, para que a escola
não saia do ponto de convergência que é a sociedade Boe-Bororo.
A ampla representatividade do Conselho,
118
além de incorporar as instâncias
organizativas da comunidade é potencialmente formadora nos princípios da
autodeterminação e autonomia entendida aqui, conforme as definições de Barroso (2001, p.
16):
119
Autonomia está etimologicamente ligada à idéia de autogoverno, isto é,
a faculdade que um indivíduo ou organização m de se regerem por
regras próprias. Ela tem a liberdade e capacidade de decidir, não se
confunde com a independência.
Segundo o presidente, com exceção da sua pessoa, todos os conselheiros pertencem
a uma outra organização, como: o Conselho de Saúde, a Associação Indígena Korogedo
Paru Bóe-Bororo, representantes de pais de alunos, professores, cacique, diretor, Conselho
dos Idosos e chefe de Posto da FUNAI. Disse Orivaldo: “Convidamos uma pessoa de cada
118
Relação dos conselheiros: Orivaldo Aiepa (Presidente), Bruno Tawie (Vice-presidente), Benedito Pereira,
Sebastião Tororeu, Jurandir Bororo, Daniel Koriga, Dário Brame, Jocelino Bororo e Manoel.
119
In: Programa Nacional dos Conselhos Escolares, caderno nº 5 (2005, p. 46).
setor da comunidade e assim deu certo. Todos estão envolvidos de alguma forma e
conseguimos trabalhar em conjunto, com sintonia e proximidade”.
Orivaldo explica que a sua escolha como presidente se deve ao fato de não pertencer
especificamente a nenhum dos segmentos citados. Sem o acúmulo de cargos, teria mais
liberdade e disponibilidade para viagens fora da aldeia, em busca de resolver os problemas.
E completa: Este é um dos papéis do Conselho, buscar melhoria para a comunidade em
todos os sentidos e ficar informado sobre projetos que os órgãos públicos têm, tanto para a
escola quanto para outras ações”.
Antes da criação do Conselho Comunitário o poder estava centralizado no cacique e
ele se sentia sobrecarregado. Com tantas responsabilidades e demandas apresentadas, nem
sempre conseguia agilizar todas.
Atualmente, quem define os caminhos e prioridades das ações comunitárias, são os
conselheiros, nas reuniões ordinárias. Para cada demanda apresentada, o responsável
principal conta com a colaboração de todos. Por exemplo: quando as atividades são
relacionadas à escola, o diretor convoca o Conselho, da mesma forma quando a questão é
saúde, terra, formação dos adolescentes, dos jovens, funeral, pescaria, assunto sobre
economia, sustentabilidade e outros. Observa um dos professores: “Neste caso estamos
atendendo a exigência da escola diferenciada que é integrar a comunidade em suas
atividades”. O Conselho atua também no acompanhamento do aprendizado escolar dos
estudantes, fazendo reuniões com os professores e os pais, dialogando sobre as dificuldades
e compromissos dos estudantes.
A experiência do trabalho articulado entre escola e Conselho soma forças nas
atividades educativas e culturais. Como esclarece o professor Estevão Bororo: “Este fato
pode ser observado no “roial” - Momento de encontro no pátio da aldeia, durante a noite
onde os Bororo manifestam sua alegria através dos cantos tradicionais da cultura”. Neste
caso os anciões solicitam ao presidente do Conselho para acertar com o diretor a liberação e
participação dos estudantes na cerimônia.
Este é um momento fundamental e oportuno de aprendizagem. Os cantos
tradicionais são formas de manifestação de alegria e ao mesmo tempo preparação para as
caçadas ou pescarias. Estes cantos podem ser chamados também de “pensão” ou alimento
das almas.
O Conselho Comunitário, por ter sido criado há pouco tempo, aproximadamente um
ano e meio, encontra-se em fase de estruturação financeira. Busca junto à Associação
Korogedo Paru elaborar projetos, a fim de angariar recursos para custear as despesas de
deslocamento. Necessita apoio financeiro externo, para resolver as questões de infra-
estrutura, de ordem administrativa e outros.
Do ponto de vista da coletividade, aspecto fundamental na cultura Boe, o Conselho
Comunitário se constitui numa organização sica e oportuna na sustentação do Projeto
Político Pedagógico. É ele que define as prioridades e o rumo da escola indígena Cadete
Adugo Kuiare, na busca de atender os interesses da sociedade Bóe-Bororo.
As ações de formação de professores, de definição do projeto político pedagógico,
eleição do diretor e criação do conselho escolar não podem ser consideradas
separadamente. Elas se articulam e se complementam e assim se tornam o projectu (aquilo
que impulsiona para frente) de autonomia e de desenvolvimento da comunidade Bororo.
Assim concebida, a escola da comunidade consolida-se como uma instância promotora do
protagonismo indígena e viabilizadora dos saberes necessários para a construção do seu
plano de vida e de futuro.
Para finalizar este capítulo, que trata da gestão intercultural, da autonomia e do
controle social apresentaremos, como ilustração, três experiências de gestão escolar
vivenciadas pelos povos Xinguanos, Arara e Umutina.
3.5 Outras práticas de protagonismo intercultural em Mato Grosso
Consideramos oportuno neste espaço de estudo acadêmico apresentar também
outras experiências protagonistas, interculturais e inovadoras de gestão escolar, vivenciadas
por outros povos indígenas do Estado. Tais experiências poderão ser vistas como um
referencial ou apenas em seus aspectos relevantes, na construção de políticas para as
escolas indígenas estaduais.
O estado de Mato Grosso, ao iniciar uma nova gestão administrativa em 1996,
implementou a sua política educacional, adotando a gestão democrática como instrumento
de descentralização do ensino. Constituiu um processo de efetiva participação dos cidadãos
nas decisões a respeito da vida da escola, como por exemplo, eleição direta dos gestores
escolares, descentralização de recursos financeiros e escolarização da alimentação escolar e
outros.
Foi este contexto de gestão democrática e participativa que acolheu e incentivou
várias experiências desenvolvidas nas aldeias indígenas. Estas experiências foram
realizadas num espaço propício para o diálogo interinstitucional, que possibilitou e
impulsionou o diálogo intercultural, tema tratado neste estudo.
Destacaremos a seguir algumas experiências desenvolvidas no período em que
foram financiadas ações para/com as populações indígenas de Mato Grosso.
120
As fontes
financiadoras dos programas e projetos destinados às populações indígenas foram o Banco
Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD, contando com a Cooperação
Técnica do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD. Os recursos
financeiros advindos do BIRD eram repassados para o Programa de Desenvolvimento
Agroambiental do Estado de Mato Grosso – PRODEAGRO que, por sua vez repassava às
Secretarias de Estado de Educação e de Saúde para a execução das ações. O BIRD também
repassava parte dos recursos destinados as populações indígenas, para a FUNAI.
Neste percurso, chamamos a atenção para um detalhe de grande importância. Os
recursos financeiros que possibilitaram o desenvolvimento de projetos pioneiros para o
contexto indígena não foram facilitados pelo poder público, mas foram frutos de intensas
negociações, articulações e conquistas do movimento pró-indigenismo mato-grossense.
Diante dos movimentos de pressão da opinião pública e de organizações
internacionais, o governo brasileiro e o Banco Mundial decidiram
reestudar as ações do Programa e incluíram os “assuntos indígenas” na
pauta dos projetos a serem financiados. Na ocasião a postura
intransigente do Banco em favor das comunidades indígenas foi decisiva
para garantir no projeto os recursos necessários para a demarcação de
áreas indígenas [...]. SECCHI, 2002.
Os recursos captados no estado de Mato Grosso foram utilizados para implementar
ações no campo fundiário tais como: demarcação e regularização de áreas indígenas;
aviventações; identificações; vigilância, fiscalização; localização e identificação de índios
isolados.
Além das ações fundiárias foram também financiadas atividades econômicas em
áreas indígenas. Algumas delas foram executadas pela FUNAI e outras pelo Projeto de
Apoio Direto às Iniciativas Comunitárias
121
,- PADIC, incorporado ao PRODEAGRO. As
comunidades indígenas, através das suas associações, acessavam diretamente os recursos
do PADIC. Apesar de observarmos que hoje muitas das iniciativas desenvolvidas não
120
O texto aqui apresentado sobre o financiamento das ações indígenas, tem como fonte o Documento do
PRODEAGRO elaborado por: SECCHI, Darci. Avaliação Final das Ações na Área Indígena. Cuiabá: 2002.
121
Este recurso não foi destinado apenas aos índios, mas a outras comunidades que solicitaram.
desencadearam a continuidade desejada, não dá para negar o mérito no campo da formação
dos gestores indígenas que tais projetos proporcionaram.
O atendimento à saúde e a capacitação de recursos humanos foram outras ações
financiadas pelo Programa. No campo da saúde, a primeira fase do PRODEAGRO
promoveu o atendimento de rotina e realização de diagnóstico de saúde para elaborar um
Modelo de Atenção Integral à Saúde Indígena. Após a instalação dos Distritos Sanitários
de Saúde pôde-se assistir a construção de uma política de atendimento nesta área que
vigora até os dias de hoje.
No campo da capacitação de recursos humanos foram destacados os cursos de
formação de auxiliares de enfermagem indígena, denominado Projeto Xamã e o curso de
formação de professores indígenas, denominado Projeto Tucum.
As ações no campo da formação de recursos humanos indígenas não constavam nas
metas iniciais do PRODEAGRO:
Passaram a compor o Projeto a partir da reformulação proposta na
Avaliação de Meio Termo em decorrência da pressão exercida pelas
comunidades indígenas, pelas organizações indigenistas, acadêmicas,
ambientais e de saúde no sentido de garantir o reconhecimento
profissional aos agentes de saúde indígena. (Idem, p. 48).
A partir daí discutiu-se também o reconhecimento profissional dos professores
indígenas. A necessidade de implantar ações na área de formação de professores foram
reveladas através de um amplo diagnóstico realizado com recursos do PNUD, descrito no
segundo capítulo. Com esta demanda identificada, iniciou-se a implantação do programa de
formação, coordenado pela SEDUC e a Coordenadoria de Assuntos Indígenas de Mato
Grosso – CAIEMT.
O curso de formação de professores indígenas, Projeto Tucum, iniciou em janeiro
de 1996, organizado inicialmente, de forma a atender povos do noroeste do Mato Grosso
(Umutina, Paresi, Irantxe, Rikbaktsa, Apiaká, Munduruku, Kayabi, Nambikwara) e o povo
Xavante. Posteriormente, em setembro do mesmo ano, esta ação se ampliou para os povos
Bororo e Bakairi. Em 1997 o programa atendeu também aos catorze povos do Parque
Indígena do Xingu.
O Projeto Tucum constituiu-se numa importante iniciativa no Mato Grosso pela sua
concepção, organização e amplitude. Certamente foi uma referência de trabalho por abarcar
tão grande dimensão em parcerias entre as diversas instâncias do poder público e outras
forças organizadas da sociedade civil.
Os cursos eram organizados em etapas intensivas e intermediárias. Estas etapas
sempre foram muito férteis em pensamentos e propostas, pela sua abrangência e
diversidade de sujeitos educadores que atuaram no programa. A experiência de aglutinar
instâncias das mais diversas culturas, ideologias e povos indígenas de várias etnias,
permitiu um amplo debate intercultural. Neste contexto havia comunhão ou divergências
das diversas práticas educacionais. O que antes era tido como restrição pelos
antropólogos, se constituiu num espaço de respeito ás diferenças”.
122
Foram os diferentes diálogos fomentados em diversos espaços de interlocução e por
diferentes atores ou sujeitos deste processo que possibilitaram a construção de uma política
para a educação escolar indígena naquele período.
Esta política foi consolidada por diversas ações, desencadeadas pelas comunidades
indígenas e ou pelas agências educacionais. Mostraremos em primeira instância uma
experiência desenvolvida em parceria entre Estado, Organizações Indígena e Civil, que
vem elucidar as iniciativas protagonistas dos povos indígenas de Mato Grosso.
A Secretaria de Estado de Educação, em 1997 iniciou uma parceria com o Instituto
Socioambiental ISA, a Associação Terra Indígena do Xingu - ATIX e as comunidades
indígenas, com a finalidade de regularizar as escolas do Parque Indígena do Xingu
123
.
Desde 1996 as comunidades solicitavam a atuação do órgão estadual na
regularização destas escolas, mas em 1997 quando representantes das várias
comunidades e entidades atuantes na região, como ISA, FUNAI, Secretarias Municipais de
Educação da região, juntamente com a SEDUC realizaram em Canarana uma reunião onde
se decidiu pela estadualização de dezenove escolas do Parque Indígena do Xingu - PIX. Na
época, todas as escolas com vínculo oficial eram municipalizadas.
Como a forma de organização administrativa do Estado não conseguiria atender as
especificidades das dezenove escolas então estadualizadas, foi determinado pelo secretário
de educação
124
que estas escolas fossem vinculadas entre si, de forma a existir três escolas
centrais e as demais anexadas a elas: Escola Estadual Karib atenderia aos povos Kuikuro,
Matipu, Nahukua, Kalapalo e Aweti; Escola Estadual Ikpeng, aos povos Ikpeng, Trumai e
Kayabi e a Escola Estadual Diauarum atendendo aos povos Kayabi, Suiá e Yudjá. Anos
mais tarde se estadualizou a quarta escola denominada Leonardo Villas Boas, para atender
aos povos Yawalapiti, Waurá, Aweti, Kuikuro, Kalapalo e Matipu.
125
A configuração que
122
SEDUC - Relatório Final do Projeto Tucum, 2002.
123
É importante destacar que a primeira escola do Parque Indígena do Xingu - PIX começou a funcionar em
1976 no Posto Indígena Leonardo/Alto Xingu, com professoras não índias contratadas pela FUNAI.
124
Na época, o Secretário era Fausto Faria.
125
A definição de quais escolas vincularia à central, era do próprio povo e não da SEDUC.
conformava as divisões era de caráter geográfico e também cultural, com o cuidado de
respeitar a decisão de cada povo, sem a interferência do óro estadual.
A contratação dos professores do PIX (Parque Indígena do Xingu) foi feita
inicialmente através de convênio entre SEDUC e Associação Terra Indígena do Xingu
ATIX. Esta forma de encaminhar o pagamento dos professores tinha por premissa
possibilitar o controle social do trabalho docente que por algum tempo foi exercido por esta
Associação. Era comum observar os gestores da ATIX (Associação Terra Indígena do
Xingu) discutindo critérios variados sobre a permanência ou não de professores na escola,
além de participar da escolha de conteúdos das aulas, de refletir sobre a política lingüística
adotada e outros, num colegiado com legitimidade para este trabalho.
126
A partir da estadualização das escolas iniciou-se o processo de captação de recursos
federais e estaduais. Os gestores indígenas aos poucos foram sendo formados e adquirindo
experiências em lidar com aplicação e prestação de contas dos recursos públicos destinados
às escolas. Ao mesmo tempo em que assumiam
127
o trabalho administrativo de gestão, os
professores atuavam também em sala de aula.
Os recursos financeiros provenientes da Secretaria de Estado de Educação eram
repassados às escolas indígenas através dos seguintes programas:
a) Repasse Bimestral. Valor proveniente do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério FUNDEF, vinculado ao mero de
alunos matriculados e declarado no censo do ano anterior.
128
Este recurso, repassado
diretamente na conta bancária de cada escola, é utilizado para a compra de materiais de
consumo e prestação de serviços à escola, como por exemplo, pequenas reformas.
b) Programa de Dinheiro Direto na Escola PDDE, este é um recurso do Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação FNDE que consiste no repasse diretamente à escola. É
repassado anualmente e destina-se a aquisição de materiais e serviços.
126
Mais tarde a ATIX decidiu que os professores seriam contratados diretamente pelo setor de Recursos
Humanos da SEDUC, através da Assessoria Pedagógica de Canarana. Esta opção deveu-se ao fato de que o
processo burocrático para a formalização do convênio era moroso e os professores ficavam muito tempo sem
pagamento.
127
Cada escola central dispunha de um diretor e um secretário que eram responsáveis por todas estas
demandas administrativas.
128
Dos recursos financeiros do FUNDEF, 60% são destinados à remuneração dos profissionais do magistério
e 40% para as despesas diversas de manutenção e desenvolvimento do Ensino Fundamental.
c) Programa Nacional de Alimentação Escolar PNAE, recurso que também é previsto
com base no número de alunos do censo anterior, sendo que para alunos indígenas o valor
atual corresponde a 0,44 (quarenta e quatro centavos), quantia superior a per capta de
outros segmentos da sociedade brasileira. Conquista alcançada em virtude da luta dos
movimentos indígenas e da gestão da Coordenação Geral das Escolas Indígenas do
MEC.
129
Esta foi mais uma tentativa de respeitar à tradição coletiva das comunidades
indígenas, igualmente nos momentos da merenda escolar.
Para as escolas estaduais do Parque Indígena do Xingu, podemos destacar como
inovação duas conquistas com relação ao Programa Nacional de Alimentação Escolar:
1) Mudança no cardápio do programa estadual de alimentação escolar;
130
2) Ajuste nos formulários de prestação de contas dos recursos financeiros.
Com a mudança do cardápio na alimentação escolar, ou seja, com a reelaboração
de um novo cardápio e a substituição do convencional, priorizou-se os gêneros alimentícios
da cultura tradicional do povo Xinguano. Os alunos da aldeia passaram a utilizar na
merenda escolar seus produtos característicos.
Segue como exemplo, um cardápio da Escola Estadual Indígena “Karib
Comunidade Kuikuro”.
131
- Peixe Assado;
- Beiju de Polvilho;
- Mingau de Pequi;
- Mutap (pirão de peixe);
- Perereba (mingau preparado com o caldo de mandioca brava);
- Mingau de Beiju;
- Suco de Mel (água e mel)
- Frutas (manga, mangaba, melancia, abacaxi);
- Mingau de Abóbora.
129
Esta Coordenação funciona na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade/MEC
SECAD/MEC.
130
O planejamento da alimentação escolar começa pela definição dos cardápios que serão oferecidos aos
alunos por um determinado período letivo”. Conferir: Programa estadual de Alimentação Escolar. In:
www.seduc.mt.gov.br
131
Conferir: Arquivo da SEDUC/Merenda Escolar.
Desta forma, evita-se que a escola seja um veículo de entrada de alimentos
industrializados, podendo vir a prejudicar a saúde das crianças.
Os fornecedores locais (forma encontrada para atender a realidade, considerando
que em cada escola central há uma média de seis a oito salas anexas, localizadas em aldeias
distantes e não sendo possível contratar merendeira para todas) disponibilizam a merenda
pronta, condizente com os hábitos da própria aldeia. Esta dinâmica exige que cada
professor responsável por sua escola anote os nomes dos fornecedores, os produtos
fornecidos e o respectivo valor. Quando a SEDUC efetiva o repasse financeiro na conta
bancária específica a este fim, os gestores procedem aos pagamentos dos credores, de
acordo com o consumo do período. Lembrando que o valor do recurso financeiro destinado
a cada escola é correspondente ao número de alunos, coletado no censo do ano anterior.
Os ajustes do cardápio e todas as modificações ocorridas no Programa da
Alimentação Escolar objetivam o melhor atendimento às escolas Xinguanas. A criação
deste modelo de gestão, implantado em 1998, contou com a mobilização dos gestores
escolares indígenas, da então coordenação do projeto de educação do Parque Indígena do
Xingu
132
e com a valiosa contribuição da nutricionista,
133
gestora do setor da Merenda
Escolar da SEDUC e toda sua equipe. A colaboração destas profissionais foi fundamental
na concretização de todas as mudanças.
132
Esta Coordenação era formada pela SEDUC, representada pela professora Kátia Silene Zorthêa e pelo
Instituto Socioambiental, representado por Maria Cristina Troncarelli.
133
Layde Emília G.F.da Costa Marques.
A mudança na prestação de contas dos recursos financeiros foi outra conquista
relevante com relação ao Programa Nacional de Alimentação Escolar. Visto que houve
uma desburocratização da Legislação quanto à forma de prestar contas destes recursos.
Os desafios e a luta na adequação da Lei de forma a contemplar a realidade das
escolas indígenas, teve início quando a SEDUC recebeu a primeira prestação de contas dos
recursos destinados à merenda escolar. Naquele momento detectou-se o descompasso entre
as exigências legais e a realidade apresentada pelas aldeias. Eram “irregularidades” que do
ponto de vista dos órgãos fiscalizadores (em primeira instância o Fundo Estadual de
Educação da SEDUC), estaria absolutamente fora das regras. É certo que o sistema
financeiro e o de fiscalização não foram estruturados de forma a considerar as diferenças e
peculiaridades das escolas indígenas. A pouca prática dos gestores indígenas com a escrita
e especialmente com a interpretação da contabilidade, inviabilizava a apresentação
“correta” de demonstrativos financeiros, no formato contábil vigente. Para que o problema
não perdurasse sempre, seria necessário um ajuste no sistema, no sentido de aproximar a
legalidade com a realidade e as possibilidades dos índios. E assim como foi a luta para se
conseguir um novo cardápio aprovado para as escolas, foi o empenho e a criatividade para
tornar aquela realidade sui generis (prestação de contas), legal e diferenciada ao mesmo
tempo.
Um dos maiores impasses detectados estava no pagamento dos fornecedores da
aldeia, que não dispunham de comprovante fiscal dos produtos fornecidos. O processo da
prestação de contas continha apenas Recibos de Pagamentos a Autônomos RPA.
Entendendo que este não teria valor legal, o setor responsável pela análise destes processos,
encaminhou-o ao Tribunal de Contas do Estado TCE, este por sua vez despachou para o
Tribunal de Contas da União - TCU. Os dois Tribunais não dispondo de nenhuma
sensibilidade, interesse e compromisso com aquela questão, se negaram a aceitar o processo
de prestação de conta.
As duas equipes gestoras da SEDUC (equipe de educação escolar indígena e da
merenda escolar), mantendo o empenho e persistência e acompanhando passo a passo o
caso, encaminharam o processo ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
FNDE.
Como percebemos, estas duas conquistas passaram por uma incessante luta dos
envolvidos no processo. Concomitantemente houve uma pressão exercida por vários
segmentos da sociedade civil e por representantes indígenas que intercederam junto aos
órgãos federais para que o pedido fosse aceito.
Após um espaço de tempo a SEDUC recebeu um Parecer da Auditoria do Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE/MEC AUDIT/DICIN/001/99.
Despacho nº. 93/2000 (p. 6 e 7), com o seguinte encaminhamento:
7. RECOMENDAÇÕES
7.1 À Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso/MT:
7.1.1 respeitar as particularidades e hábitos alimentares dos
alunos de comunidades indígenas. Para tanto, poderá ser aceito recibo
pelo fornecimento da merenda escolar, observando o recolhimento dos
impostos municipais, estaduais e federais.
Com esta iniciativa do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação/Programa
Nacional da Alimentação Escolar - FNDE/PNAE, os Demonstrativos Financeiros,
elaborados a partir da especificidade da aldeia, passaram a ser um Documento Legal, aceito
pela SEDUC e pelos Tribunais de Contas, do Estado e da União. Ação que veio atender de
forma vitoriosa uma demanda de gestão escolar das comunidades indígenas de Mato
Grosso e de outros Estados da União e foi considerada uma experiência pioneira no país.
Apesar do longo e árduo percurso na luta por uma escola indígena voltada à
realidade dos povos do Xingu, este foi um exercício gratificante. Efetivar esta conquista,
através do envolvimento dos movimentos indígenas, das organizações aliadas dos índios e
das instâncias do poder público, foi mais uma estratégia em que o diálogo intercultural foi
bem sucedido. Este fato evidencia um protagonismo acessível á participação e a
contribuição dos diversos parceiros.
Sem dúvidas, poderíamos enumerar outros exemplos exitosos das escolas indígenas,
em que os professores e as comunidades surpreenderam com alguma iniciativa
protagonista, merecedora de divulgação. Porém, optamos por apresentar outra experiência
que diz respeito ao povo indígena Arara, no norte do estado de Mato Grosso. Trata-se de
uma ação no campo da gestão, na escola estadual Adeca Vela Arara. Localiza na aldeia
Volta Grande, Terra Indígena Arara do Rio Branco, no município de Aripuanã.
Esclarecemos que 30% desta Terra estende-se até o município de Colniza e o acesso tanto
se faz por Aripuanã, como por Espigão D’Oeste – RO.
A partir de uma entrevista realizada com Aldecir R. Vela Arara, diretor da escola,
no dia 29 de abril de 2006, passaremos a transcrever a experiência iniciada pelos
professores indígenas. A entrevista desenrolou de maneira informal, sem roteiro pré-
estabelecido, com o objetivo de mostrar o caminho percorrido pela comunidade, na
tentativa de revigorar a língua original do povo.
Segundo o entrevistado, o contato do povo Arara com a nossa sociedade, se deu
pelos anos de 1910 a 1911, aproximadamente. Em 1935 foram expulsos de suas terras e
divididos entre os estados de Rondônia, Pará, Amazonas e Mato Grosso (município de
Aripuanã). Somente em 25 de outubro de 1992, após 57 anos de muita luta e persistência, o
povo conseguiu retornar aos locais de origem. No início retornaram apenas 20 famílias para
a aldeia Volta Grande, hoje são em torno de 295 pessoas, divididas em 3 aldeias.
Em 1993, com a colaboração de uma professora “não índia”, começou a funcionar
uma pequena escola, porém, este trabalho não prosperou e a escola voltou a funcionar
em 1999. Primeiramente com o professor Aldecir Vela Arara e mais tarde, a comunidade
contou com mais uma professora, a Gracilene Vela Arara.
Hoje a escola possui um quadro de profissionais indígenas, composto por um
diretor, três professores e mais um agente administrativo que permanece na cidade, para o
encaminhamento dos trabalhos burocráticos e a interação com os óros públicos. A Escola
Indígena Estadual “Adeca Vela Araracongrega mais duas salas anexas que são: Manoel
Vela Arara e Júlia de Deus Arara e funcionam de 1ª a 8ª série com um total de 80 alunos.
Os professores indígenas se dividem entre as três aldeias e o diretor em forma de
rodízio, atende todas elas. Pelo fato dos professores Arara estarem ainda se habilitando em
nível médio, a comunidade conta com a presença de mais cinco professores “não índios”,
residindo nas aldeias e colaborando com o ensino de 5ª a 8ª série.
Conforme depoimento de Aldecir, a presença da escola trouxe vários ganhos para a
comunidade Arara, especialmente no que diz respeito à língua original do povo. Devido o
grande espaço de tempo morando na cidade a língua quase desapareceu e hoje está sendo
revitalizada. A comunidade considera um elemento de fundamental importância revigorar a
língua Arara, que hoje faz parte dos projetos de futuro do povo.
Para o entrevistado o que o motivou a iniciar o trabalho de investigação da língua,
foi a participação em um encontro de capacitação de professores, em Cuiabá, promovido
pelo CIMI, em 1999. Neste encontro os demais professores participantes, se comunicavam
em suas línguas de origem, enquanto ele tinha domínio da língua portuguesa. Situação
que lhe deixou constrangido e ao mesmo tempo impulsionado a tomar uma medida para
reverter a situação. A partir desta ocasião, não mediu esforços em busca do conhecimento
de suas origens, especialmente da língua Arara.
Ao retornar para a aldeia, juntamente com Gracilene, sentiram que a escola poderia
ser um espaço de revitalização da cultura, língua e identidade do povo. A providência foi
uma conversa com o casal (Anita e Rodrigo Arara) responsável pelas articulações do
processo de retomada da terra. Juntaram-se a outros jovens da aldeia que aderiram a idéia, e
iniciaram um movimento de recuperação da língua.
O primeiro passo foi a realização de entrevistas com os mais velhos, anotando
palavras do cotidiano da vida na aldeia, nome de animais, de personagens importantes da
história do povo, de artesanatos e outras. À medida que aprendiam novas palavras, da
mesma forma ensinavam na escola para as crianças.
As atividades de pesquisa se transformaram numa rotina prazerosa, tanto para os
informantes, quanto para os professores e os jovens pesquisadores, ao ponto de não haver
horário definido para o trabalho, como foi no início. A qualquer momento do dia ou da
noite, os velhos convocavam o grupo para anotarem novas palavras que iam ressurgindo em
seus vocabulários. Aproveitavam para contar histórias dos antepassados e assim, os
professores utilizavam nas atividades escolares com as crianças, em forma de repasse. O
trabalho nesta aldeia durou até o limite das lembranças sobre a língua, por parte dos
informantes, como disse Aldecir: Escrevemos todas as palavras que os velhos sabiam,
depois passamos para outra aldeia. As entrevistas continuaram até que os mais velhos
lembraram e assim conseguimos juntar umas oitenta palavras”.
O segundo passo foi procurar uma assessoria na Secretaria de Educação do
Município (na época, profa. Ivone), para organizar aquelas palavras de forma que pudessem
distribuir e utilizar com os alunos. E assim foi organizado um livrinho para facilitar aos
professores o início da discussão sobre a língua Arara. Os debates e as conversas entre os
alunos, os professores e os mais velhos, fez surgir mais oitenta palavras novas que foram
acrescentadas ao livro, enriquecendo cada dia mais o diálogo em sala de aula.
Com a continuidade do estudo, conseguiram ampliar o número de palavras e
organizar um pequeno dicionário. “Apenas com cinco pessoas falando palavras soltas, hoje
temos um dicionário com duzentas palavras na língua. Através dele, estamos incentivando
a comunidade a fazer novas descobertas. Para nós é uma grande vitória”. (Aldecir Arara).
A escrita de pequenas histórias, pelos alunos e professores, é uma estratégia de
assimilação de novas palavras e construção de idéias sobre a cultura.
Para a comunidade esta foi uma extraordinária conquista. Iniciativa que suscitou
muitos outros elementos da cultura que se encontravam entorpecidos pelo longo período do
povo morando na cidade, devido ao processo histórico de expulsão de seus territórios.
Afirma Aldecir:
Através da língua, hoje estamos recuperando os artesanatos, o mito de
origem, os cantos, as danças, as histórias e assim, toda a cultura do povo
está sendo revitalizada. A língua de origem é como a mãe, nos dá
segurança e nos ajuda a sentirmos mais fortes, valorizados e
acreditarmos em nós mesmos. A comunidade passou a se interessar
pela cultura depois que começou a escrever e falar algumas palavras na
língua Arara.
Outra ação empreendida através da escola, em função de revigorar e fortalecer a
tradição do povo, é uma reunião de finais de semana entre trinta e cinco jovens e os mais
velhos das aldeias. Nestes encontros os idosos ministram uma espécie de aula sobre a
cultura Arara, ensinando cantos, danças, histórias dos antepassados, rituais, pinturas
palavras na língua e tudo que sabem sobre os costumes. Começaram com dez jovens e o
número aumenta sucessivamente porque estão convictos do valor e da importância de um
povo indígena manter suas raízes ligadas aos ancestrais.
Atualmente a revitalização da cultura perpassa os projetos de futuro da comunidade
e se encontra na responsabilidade de uma equipe de doze pessoas, envolvendo todas as
idades. Estão confiantes, determinados e com grande esperança que a língua original e
demais aspectos tradicionais do povo Arara de Mato Grosso, será recobrada. Aldecir
acredita que o conhecimento da língua (oral e escrita), fortifica a identidade e a auto-estima
do grupo.
O exemplo acima suscita questionamentos da seguinte ordem: Poderá um povo, por
si só, determinar a estrutura, a grafia ou o sistema da escrita de sua língua original? Não
seria necessário um estudo prévio por parte do profissional da linística? Qual o nível de
autonomia de uma comunidade para determinar a sua política linística?
Pesquisas nesta área demonstram que há diversas opiniões a este respeito.
estudos que mostram o contrário das orientações de Oliveira (1998, p. 390 - 391).
134
Destacamos o seguinte texto:
O desenvolvimento de uma tradição escrita não depende de haver uma
formalização prévia da gramática, nem mesmo de haver uma ortografia
unificada, e muito menos de haver uma norma lingüística escrita
fortemente fixada. [...] Os professores indígenas não podem ocupar o
papel de informante nem pessoas que vão simplesmente homologar ou
não um trabalho – do lingüista.
Com esta afirmação, o autor não tem a intenção de menosprezar a função do
lingüista, mas modificar sua ação. Neste sentido a atuação deste profissional passa a ser de
“elucidação conceitual da reflexão lingüística conduzida pelos próprios falantes que se
constituem em pesquisadores das suas próprias línguas”.
135
134
Gilvan Müller de Oliveira é lingüista e assessor de projetos de educação escolar indígena, em diversos
povos do Brasil. E foi assessor do Projeto Tucum Curso de Formação de Professores Indígena de Mato
Grosso, de 1996 a 2000.
135
Conferir: (p. 395).
A comunidade, segundo o autor, tem autonomia para decidir e encaminhar o
desenvolvimento de tradições escritas em suas nguas. Ou seja, se a escrita da língua faz
sentido na escola, é preciso que seja elaborado material de interesse da comunidade e que
circule nos diversos momentos do grupo indígena.
Partindo destes princípios, o dicionário lingüístico elaborado coletivamente, agrega
potencial para que a língua oral e escrita seja oficializada no currículo da Escola Indígena
Estadual Adeca Vela Arara. A intervenção de um linista teria a função de contribuir nos
esclarecimentos conceituais e incentivos à comunidade, para que o processo de
avigoramento da língua, seja intensificado.
No rol das iniciativas bem sucedidas das escolas indígenas, poderiam ser citadas
outras experiências, porém, cabe ainda, apresentar a última entrevista com o professor
Filadelfo Umutina, diretor da Escola Estadual de Educação Indígena “Jula Paré”, realizada
no dia 11 de maio de 2006. Embora não se trata de iniciativa exclusiva de professores
indígenas, ou restrita a escola, ela se torna importante pelo fato de demonstrar um contexto
original no campo das relações interétnicas da comunidade em geral, refletindo
indiretamente no currículo escolar. Estamos nos referindo a aldeia Umutina, espaço
marcado por uma singularidade especial, por abrigar em seu interior uma diversidade de
povos indígenas, que partilham diariamente a interculturalidade em suas convivências.
Para situar o limite deste espaço físico, faremos uma rápida apresentação. A Terra
Indígena Umutina localiza-se no município de Barra do Bugres, Mato Grosso, acolhe oito
povos diferentes que são: Umutina, Paresi, Nambikwara, Terena, Bororo, Irantxe, Kayabi e
Bakairi. Cada povo ali residente constituiu sua família porém, não fazem parte da regra
geral os casamentos entre as próprias etnias. Em alguns casos, o esposo ou a esposa,
pertence à outra etnia, por exemplo: é permitido um homem Bororo se casar com uma
mulher Paresi, ou uma Kayabi casar-se com um Bakairi e assim sucessivamente. Ao todo
são trezentos e oitenta pessoas aproximadamente, predominando o número de famílias
Umutina e em seguida, famílias Paresi. Sendo que o menor grupo se refere aos Irantxe,
apenas uma família com 5 pessoas.
As quatro salas de aula da Escola Estadual de Educação Indígena “Jula Paré”,
funciona em período integral (matutino, vespertino e noturno), para atender os cento e vinte
alunos matriculados, do pré-escolar ao Ensino Médio.
O nome da escola homenageia o maior detentos da cultura Umutina que muito
contribuiu para sua revitalização, o senhor Jula Paré.
136
dois anos atrás, funcionava na
aldeia, a escola municipal “Otaviano Calmon”, apenas até a série e os estudantes de
série ao Ensino Médio, se deslocavam todos os dias para a cidade de Barra do Bugres. Com
o aumento da clientela escolar e a freqüência dos professores no Terceiro Grau Indígena, a
comunidade decidiu por uma escola estadual, possibilitando o atendimento a todos os
estudantes na própria aldeia. Ressalta ainda, o exercício de autonomia desencadeado no
processo de gestão, nas escolas estadualizadas.
Chamamos atenção neste fato, para os procedimentos adotados pela comunidade da
aldeia Umutina, ao que se refere à interação dos diversos grupos indígenas. As
características próprias de cada cultura presente ali se adquirem na convivência familiar,
através dos ensinamentos dos pais. Porém, a manifestação coletiva como povo indígena,
vivenciada nas danças, nos cantos, na confecção de artesanatos, na educação escolar, nas
pinturas, nas relações com a sociedade não indígena, enfim, o cotidiano da vida de uma
comunidade, se dá a partir dos costumes do povo Umutina.
A decisão política da comunidade, após muitas discussões, refletiu positivamente no
currículo da escola indígena Jula Paré. Ela facilitou especialmente, os seguintes aspectos do
currículo: Diversidade lingüística, calendário escolar específico para cada povo, materiais
didáticos para cada grupo indígena, momentos coletivos das festas tradicionais com os
estudantes, inter-relação entre professores e estudantes e ainda, representação da
comunidade local em eventos externos à aldeia.
Segundo as informações obtidas na entrevista, podemos compreender o que
justificou a decisão coletiva desta comunidade. As divergências de idéias provocavam
enfrentamentos, prejudicando a dinâmica comunitária e afetando também as atividades
escolares. Afirma Filadelfo:
136
Falecido há mais de três anos.
O ensino da língua na escola, deu muito problema para a
comunidade. Quando começamos o Terceiro Grau Indígena, tentamos
trabalhar com a língua Paresi, pelo fato de termos muitos alunos desta
etnia e pelo domínio de alguns professores. Mas não houve aceitação
por grande parte da comunidade, a justificativa foi que, em Terra
Umutina não se trabalha outra língua indígena.
As discordâncias serviram como motivações nos debates comunitários e
interculturais. Os acertos e consensos ocorreram após um longo período de argumentos
fundamentados na necessidade de fortalecimento da comunidade, enquanto povo Umutina,
considerando o processo de contato deste povo pelo Serviço de Proteção ao Índio e sua
quase extinção devido às epidemias da época. Não se pode negar o sofrimento, sendo
obrigados a se misturar com outras etnias, vendo suas tradições se dissolverem em meio a
outras culturas.
A consonância das idéias adotadas na escola deu início ao ensino da língua
Umutina. Para isto, buscaram a contribuição da lingüística, no curso do Terceiro Grau
Indígena e enviaram também alguns professores ao Museu Nacional do Rio de Janeiro,
afim de encontrarem caminhos que contribuíssem no trabalho de revitalização da língua.
Felizmente com o diálogo interétnico estabelecido, foi possível deliberar
coletivamente um conjunto de princípios que contribuíram para a convivência respeitosa e
harmônica entre os diferentes grupos, pertencentes àquela comunidade, como:
- Fortalecimento do povo Umutina, com a colaboração de todos os grupos indígenas
que formam a comunidade. Sem a exigência de perderem seus nomes de origens e seus
costumes tradicionais.
- Criação de uma identidade comunitária para a aldeia. Todas as crianças que
nascerem naquela Terra Indígena, mesmo que os pais sejam de outra etnia, serão
autodenominadas Umutina. Isto não impede os pais de transmitirem a sua cultura ao filho.
Porém, no que se refere à coletividade, como na participação em eventos externos,
reivindicações e outros, o posicionamento destes membros será sempre em nome do povo
indígena daquela Terra.
- O envolvimento comunitário em todos os assuntos referentes à escola, como a
troca de professores, metodologia adotada, calendário escolar contemplando as atividades
culturais, avaliação de alunos, reforma e construção física do prédio, enfim, o envolvimento
nas demandas da gestão escolar.
- O tratamento de respeito aos estudantes, por parte dos professores, valorizando as
potencialidades de todos, independentes do grupo étnico a que pertence.
- O envolvimento de todos os estudantes indígenas nos rituais e festas tradicionais
Umutina, previstos no calendário escolar, durante o ano letivo.
- A motivação por parte das famílias à participação de seus filhos nas aulas de arte
Umutina, onde são revitalizados os tipos de artesanatos, como: roupas, cocares, enfeites,
braceletes, brincos, colares, cestarias etc.
O estabelecimento de uma unidade para o material didático utilizado na escola, no
caso é específico da cultura Umutina.
Para essa comunidade a convivência interétnica fortalece as raízes culturais. Hoje
chegaram a um consenso em muitas das questões que prejudicavam as relações pessoais e
grupais. Consideram que consonância nas decisões coletivas, a diversidade de etnias
enriquece os projetos de futuro. Mas, para alcançar este resultado, trilharam vários
caminhos e passaram por diversas fases de conflitos, desacertos e acertos. Atualmente a
comunidade tem clareza do seu papel social frente às questões da escola e outras demandas
comunitárias do percurso.
As experiências acima, ainda que relatadas muito resumidamente, têm como
propósito destacar algumas das iniciativas de gestão escolar indígena que merecem ser
conhecidas no âmbito do poder público, da academia e das próprias comunidades indígenas
de Mato Grosso. Estas experiências de gestão intercultural, assim como a desenvolvida pela
escola Cadete Adugo Kuiare se inserem nesse propósito.
Acreditamos que a divulgação destas iniciativas de protagonismo indígena possam
contribuir para o fortalecimento das comunidades indígenas, como um incentivo para que
continuem sempre lutando pela construção de uma escola fundada em suas culturas e
abertas à interculturalidade. Escolas que expressem por meio da sua gestão um futuro de
autonomia, liberdade e protagonismo indígena.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tivemos como propósito neste trabalho a descrição e interpretação das formas de
gestão escolar pensada e vivida pela comunidade Boe-Bororo da aldeia Córrego Grande.
Buscamos apresentar alguns indicadores que ilustram o que essa comunidade vem
vivenciando nos seus processos específicos de gestão escolar e que caracteriza a
experiência como uma iniciativa de protagonismo indígena. Tais indicadores servem
também como fontes inspiradoras para a implementação de outras iniciativas de políticas
públicas específicas e diferenciadas.
Ao longo do percurso procuramos discutir os principais avanços conquistados no
campo da educação escolar indígena na última década, tanto na esfera federal quanto no
âmbito do estado de Mato Grosso. O apoio financeiro de órgãos da cooperação
internacional, como BIRD/PRODEAGRO/PNUD, foi fundamental para consolidar um
processo pioneiro de educação escolar indígena no período de 1995 a 2002. Infelizmente, a
falta de continuidade das políticas públicas e o descompromisso dos dirigentes
educacionais atuais com a temática indígena ameaçam a caminhada bem sucedida feita até
aqui e deixam dúvidas sobre o futuro da educação escolar indígena no Estado.
Faremos a seguir uma retomada dos principais argumentos discutidos em cada
capítulo, acompanhados de uma síntese dos resultados obtidos. Em seguida apresentaremos
algumas proposições para a construção de uma política de educação escolar indígena
voltada para os interesses, às necessidades e o atendimento de seus projetos de sociedades.
Trazemos inicialmente à memória alguns pontos discutidos no primeiro capítulo e
reiteramos não tratar-se de um estudo etnográfico da sociedade Boe-Bororo. Nele foram
tecidas breves considerações acerca do tempo e do espaço sociocultural bem como de
alguns aspectos organizacionais com o intuito de situar historicamente o seu contato com a
sociedade majoritária. Em seguida foram apresentadas informações sobre a Terra Indígena
Tereza Cristina e mais especificamente da aldeia Córrego Grande. Foram destacadas a
forma de organização social e a sua interação com a escola, com as questões de saúde e
com o modo de vida dos Boe nos dias atuais.
O segundo capítulo trouxe algumas considerações acerca dessa realidade na medida
em que evidenciou a sua amplitude, abrangência e aspectos históricos, na perspectiva de
alguns autores. A maior ênfase foi dada à educação escolar. Percorremos o processo
histórico brasileiro e as conquistas obtidas a partir da promulgação da Constituição Federal
de 1988. Discutimos também os caminhos propostos pela educação escolar, tendo em vista
a sua condição de elemento cultural externo, progressivamente incorporada ao cotidiano
das aldeias. Destacamos o percurso específico vivido em Mato Grosso, desde a sua
consolidação e apogeu até o período recente em que se percebe uma redução do esforço do
poder público estadual para acompanhar o quotidiano das escolas indígenas.
No terceiro e último capítulo tratamos especificamente do objeto de estudo, cujo
foco foi a gestão escolar no contexto da interculturalidade, do protagonismo e do controle
social. Iniciamos com uma caracterização do sujeito de estudo, a escola indígena Cadete
Adugo Kuiare da aldeia Córrego Grande, especialmente no que diz respeito a sua forma de
gestão democrática e colegiada. Procuramos traçar o itinerário percorrido pela comunidade
escolar desde a implantação da escola aos dias atuais, apontando os principais desafios e as
soluções encontradas para consolidar a gestão intercultural. A exemplo de tantos outros
povos indígenas do Brasil, esta comunidade enfrentou seus problemas e desafios tendo-os
como “alavancas motivadoras para o prosseguimento do processo” e como forma de “se
fazerem conhecer com respeitabilidade interna e frente à sociedade envolvente”. (Silva,
1998, p. 207). Ainda neste capítulo, foram apresentados alguns indicadores que ilustram o
que os Boe-Bororo pensam sobre a escola. Em vários depoimentos, deparamos com
afirmações similares ao pensamento de Silva (1998, p. 238): “[...] a escola assume o papel
de uma nova linguagem – um novo espaço e tempo educativo – uma nova pedagogia,
necessária ao atual momento da comunidade, uma nova comunicação”.
A pesquisa propõe uma reflexão acerca do formato das escolas idealizadas para e
pelos povos indígenas, das práticas educativas e das formas de fortalecer as culturas
indígenas. Procura contribuir com a construção de uma escola que responda as suas
necessidades e anseios.
No que tenho podido compreender, a perspectiva de escola que os povos
indígenas têm acreditado e se empenhado em conquistar, é um exemplo
concreto, real e atual de inovação. Representam pequenas grandes
mudanças construídas cotidianamente. É preciso estar atento e sensível
para enxergá-las e interpretá-las com toda sua força e significação.
(SILVA, 1998, p. 232).
Como foi dito no terceiro capítulo, o protagonismo indígena construído pela
comunidade Boe-Bororo do Córrego Grande, como forma de gestão escolar e controle
social, se evidenciou pelos seguintes pilares: Formação de Professores; Projeto Político
Pedagógico; Eleição de Diretor e Atuação do Conselho Escolar Comunitário.
Essa estratégia de interação entre escola e comunidade supõe a participação, a
responsabilidade e o diálogo, tanto no interior da comunidade, quanto nas instâncias do
poder público. Trata-se de um protagonismo aberto, onde os conhecimentos da cultura
tradicional e os elementos adquiridos com a convivência externa são acolhidos,
compreendidos e propagados no universo do povo Boe.
A partir da articulação dos pilares acima destacados foi possível vislumbrar na
escola pesquisada os elementos constitutivos de uma modalidade de gestão convergente
com o universo cultural daquele povo.
A propósito da Formação de Professores é importante destacar que as políticas
públicas atuais não têm dado respostas adequadas para uma intervenção mais qualitativa no
atendimento da demanda apresentada pelas comunidades indígenas. Ao nosso ver, as
políticas públicas de Formação de Professores Indígenas devem considerar como
prioridades os seguintes aspectos:
- Formação de profissionais qualificados incluindo os profissionais indígenas;
- Diagnóstico permanente da demanda de professores indígenas, realizado de forma
participativa entre as comunidades e órgãos oficias de ensino;
- Participação efetiva das comunidades envolvidas no processo da formação de
professores.
- Garantia de fontes estáveis de financiamento;
É aconselhável que a prática da formação seja construída a partir de um planejamento
conjunto entre o Poder Público e as sociedades indígenas, pois só assim as culturas poderão
ter status mais elevado dentro da sociedade majoritária. O Poder Público deverá respeitar a
lei que reconhece os direitos das sociedades indígenas e criar instrumentos políticos e
materiais que lhes permitam exercer plenamente esses direitos. Cabe ao Estado promover
as especificidades dos projetos escolares e da formação, mas cabe aos grupos étnicos a
expressão desse desejo para a realização do projeto maior de autonomia indígena.
Os processos de aprendizagem vivenciados por um povo indígena, aliado aos
conhecimentos interculturais poderão ser o caminho para a construção de uma escola
convergente com as expectativas do povo.
O Projeto Político Pedagógico compreendido como um dos instrumentos da
organização escolar, tem por finalidade contribuir no enfrentamento dos desafios cotidianos
das escolas indígenas. De caráter dinâmico, reflexivo, orgânico e participativo, ele é uma
estratégia importante na gestão educacional. Sugere-se que este Projeto seja
metodologicamente orientado e elaborado com a presença e participação efetiva dos
professores e das suas comunidades. A realidade sócio-cultural de cada povo é a base que
fundamenta um Projeto em permanente construção.
A Eleição de Diretores realizada na escola Kadete é uma iniciativa singular no que
se refere às políticas públicas municipais. Comumente as secretarias de educação dos
municípios escolhem um único diretor que é o responsável pela gestão pedagógica e
administrativa das escolas rurais, uma categoria do sistema de ensino onde se inserem,
inclusive, as escolas indígenas. No caso da escola pesquisada, o povo acreditou na
importância de fazer a gestão das ações escolares, escolhendo o diretor na própria
comunidade. Esta iniciativa deve ser adotada como um aspecto a ser valorizado e
implantado como política pelos órgãos públicos municipais. As escolas estadualizadas, por
sua vez, já têm este encaminhamento como uma prática rotineira uma vez que cada
comunidade escolar, indígena ou não, escolhe o seu diretor. Além disso, os diretores das
escolas estaduais gerenciam os recursos financeiros a elas destinados.
O Conselho Escolar Comunitário da aldeia Córrego Grande foi criado para atender a
uma demanda interna e não a uma exigência burocrática. Ele é formado por segmentos das
diversas organizações da aldeia e responde tanto pelas necessidades da escola, quanto da
comunidade. Aponta-se aqui a possibilidade de potencializar estas formas de organização
coletiva e participativa das comunidades indígenas, capacitando-as também a receber e
gerir os recursos públicos financeiros destinados às escolas.
Finalmente, para concluir, queremos realçar o nosso entendimento que, aliás,
coincide com o estabelecido nos documentos oficiais sobre aos objetivos fundantes da
educação escolar indígenas. A educação escolar estará voltada para a promoção do
protagonismo indígena na medida em que viabilizar
A conquista da autonomia sócio-econômica-cultural de cada povo
contextualizada na recuperação da sua memória histórica, na
reafirmação de sua identidade ética, na valorização da própria língua e
da própria ciência e no acesso as informações e aos conhecimentos
técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades
indígenas e não indígenas. (LDB, Artigo 78).
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ANEXO
INSTRUMENTO DE PESQUISA
DIAGNÓSTICO RÁPIDO PARTICIPATIVO – DRP
Metodologia de Aplicação:
O instrumento aqui proposto foi elaborado apenas como um roteiro a contribuir na
coleta de dados para a pesquisa a ser realizada na aldeia rrego Grande. Este roteiro não
tem a intenção de ser “camisa de força” apesar de apresentar algumas questões mais
fechadas. Ele será desenvolvido num processo interativo, de diálogo com os indivíduos e
com a comunidade, priorizando grupos como, por exemplo, professores, lideranças, jovens
estudantes, velhos, etc. considerando as diferentes experiências e a realidade local.
Após o trabalho por categorias, será realizada uma reunião geral com o objetivo de
avaliar o trabalho e se for necessário, complementar com os dados que não se fizeram
presentes no primeiro momento da coleta, de forma a facilitar a sistematização
posteriormente.
1. DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
1.1. Nome da escola_____________________________________________________
1.2. Nome da aldeia: _____________________________________________________
1.3. Nome e Histórico da Terra Indígena: ____________________________________
1.4. Etnia que mora na aldeia: _____________________________________________
1.5. Município: _________________________________________________________
1.6. Cidade mais próxima: ________________________________________________
1.7. Nome de outras aldeias próximas: _______________________________________
2. HISTÓRICO DA ALDEIA:
2.1. Ano de fundação da aldeia (aproximado): ________________________________
2.2. De onde vieram os primeiros moradores (quais aldeias)? _____________________
2.3. Motivos da mudança: ________________________________________________
2.4. Nomes dos chefes (capitão, cacique) da aldeia: _____________________________
2.5. Como está organizada socialmente a aldeia?______________________________
2.6. A qual segmento ou grupo pertence o chefe da aldeia: ______________________
3. INFRAESTRUTURA E ECONOMIA DA ALDEIA
3.1. Número de casas residenciais de índios: __________________________________
3.2. Número de casas em construção: ________________________________________
3.3. Número de casas abandonadas: _________________________________________
3.4. A aldeia possui outras construções, casas ou prédios que não sejam as casas dos
moradores indígenas? (posto de saúde, posto da FUNAI, casa do enfermeiro, casa de
missionários, etc.)_____________________________________________________
3.5. Como se chega até a aldeia, ou como se sai da aldeia para a cidade?_____________
3.6. Existem veículos na aldeia que sejam para uso da comunidade? ( ) Não;
( ) Sim. Quais? _______________________________________________________
3.7 Para que são usados? _________________________________________________
3.8. De quem é a responsabilidade do veículo?________________________________
3.9. Há rádio nesta aldeia? ( ) Não ; ( ) Sim. A quem pertence?________________
3.10. A aldeia dispõe de energia elétrica? ( ) Não; ( ) Sim . É fornecida por: ( ) Gerador;
( ) Placa solar; ( ) Rede elétrica ; ( ) Outra: _________________________
3.11. Esta aldeia tem água encanada? ( ) Não; ( ) Sim
3.12. A água provém de onde? ( ) Rio ou córrego; ( ) Poço semi-artesiano; ( ) Fonte;
( ) Outro Local. Qual? __________________________________________________
3.13. Relacione as atividades econômicas que existem na aldeia: (Venda de madeira,
Garimpo, Turismo, Serviço em Fazendas, Venda de Artesanato, etc.) e quantas pessoas
trabalham em cada atividade:______________________________________________
3.14. A venda de artesanato é uma fonte de renda importante para essa aldeia? ( ) Não;
( ) Sim.
3.15. Quem mais produz artesanato, homens ou mulheres?_____________________
3.16. A caça, a pesca e coleta continuam sendo atividades importantes na aldeia?
______________________________________________________________________
3.17. Quais os Salários que contribuem para a economia da aldeia? Atenção: refazer quadro
Categorias Agência Pagadora Quanti
dade
Valor
Médio
Professores
Agente de saúde indígena
Funcionário da FUNAI
Aposentados
3.18. Quais Agências (instituições, óros, entidades, igrejas) atuam nesta aldeia:
Nome da agência Nome do agente ou
responsável
O que faz? Avaliação do
trabalho
Avaliação da atuação das agências: Ótimo, Bom, Regular, Ruim, Péssimo.
3.19. Quais projetos econômicos ou culturais foram ou estão sendo executados na aldeia?
Projeto Anos Agência
Obs.: relacionar projetos nas áreas da cultura e da economia.
3.20. Há algum tipo de cultivo nos quintais ou criação de animais?
ESPÉCIE Quantidade UTILIDADE
3.21. Quais os principais problemas que afetam a aldeia?
3.22.Qual o fato cultural mais significativo para o povo desta aldeia?_______________
3.23. Porque este fato é importante para o povo?__________________________________
3.24. Quais as principais festas desta aldeia?__________________________________
3.25. De quando em quando é realizada?_____________________________________
3.26. Existe curador, curadora rezador, pajé, xamã nesta aldeia? ( ) Não;
( ) Sim. Qual seu(s) nome(s)? ____________________________________________
3.27. Do que ele(s) trata(m)?______________________________________________
3.29 Outras aldeias vêm consultá-lo(s)? ( ) Não; ( ) Sim. Quais?_______________
3.30. Há farmácia ou posto de saúde na aldeia: ( ) Não; ( ) Sim.
(Questão sobre consumo de bebida alcoólica, se não quiser responder, não é preciso. Se não
responderem, por favor, anotar o motivo.).
3.31. Você acha que o consumo de bebida alcoólica é um problema grave para essa aldeia?
( ) Não; ( ) Sim. Por quê? ________________________________________
A ESCOLA E SUA ORGANIZAÇÃO
4. Gestão Administrativa e Financeira
4.1. Nome da Escola: _______________________________________________________
4.2. Histórico da Escola: (escolha do nome, significado do nome, como surgiu o interesse
pela escola, quem iniciou o processo de escolarização do povo, como foi esse processo,
etc.).
__________________________________________________________________
4.3. A escola possui prédio próprio? ( ) Não; ( ) Sim.
4.4. Quem mantém o prédio onde funciona a escola? ____________________________
4.5. Material principal da construída da escola: ( ) alvenaria; ( ) madeira ; ( ) palha;
( ) barreada; ( ) pau-a-pique; ( ) outro:
_____________________________________________________________________
4.6. Quantas salas de aula têm o prédio? _____________________________________
4.7. A escola possui: ( ) cozinha; ( ) banheiro próprio; ( ) energia elétrica; ( ) água
encanada; ( ) bebedouro; ( ) esgoto?
4.8. Onde é jogado o lixo da escola? _____________________________________
4.9. Quais equipamentos a escola possui: ( ) Mimeógrafo ; ( ) máquina de escrever;
( ) computador; ( ) projetor de slides; ( ) filmadora; ( ) gravador; ( ) Televisor; ( )
vídeo; ( ) som ; ( ) estantes; ( ) mesas; ( ) carteiras; ( ) outros – quais?
_____________________________________________________________________
4.10. Endereço para correspondência: ________________________________________
4.11. A escola é: ( ) estadual; ( ) municipal.
4.12. A escola possui uma Unidade Executora em funcionamento (como Associação, ou
Conselho Deliberativo da Comunidade Escolar - CDCE, por exemplo)? ( ) Não; ( ) Sim.
Qual o nome? ______________________________________________________
Nº. do CNPJ: ______________________________________________________
4.13. A escola possui atos legais como: ( ) Decreto de criação – D.O_____________
( ) Autorização de funcionamento – D.O____________________________________
4.14 Reconhecimento-D.O___________________________________
4.15. Nome do responsável pela escola (professor ou diretor ou outros):
________________________________________________________________
4.16. De que forma as lideranças ou a comunidade participaram da escolha dos
responsáveis (gestores) da escola? ____________________________________________
4.17. De que forma a comunidade participou na escolha dos professores?_________
4.18 Os professores têm supervisão e/ou acompanhamento do órgão oficial responsável
pela escola?___________________________________________________________
4.19. A escola recebe recursos financeiros do MEC, das Secretarias Municipal ou Estadual
ou de outras fontes?__________________________________________
4.20. A comunidade participa do processo de gestão dos recursos financeiros que chegam
na escola? ( ) Sim; ( ) Não. ________________________________________
4.21. A escola recebe recursos para comprar a alimentação escolar ou recebe a merenda
pronta?________________________________________________________________
4.22. Qual o valor do recurso da merenda escolar, por aluno?______________________
4.23. Como a escola participa dos projetos de sustentabilidade, das tarefas coletivas e do
dinamismo cultural do povo?_____________________________________________
5. Gestão Pedagógica
5.1. Qual o objetivo da escola? (descrever: para que serve, como a comunidade participa da
escola, qual a contribuição da escola para a comunidade, o que a comunidade espera da
escola para o futuro, etc.). ____________________________________________________
5.2. Qual a modalidade de funcionamento da escola: ( ) Séries; ( ) Ciclos ; ( ) etapas
intensivas; ( ) módulos. Explique a modalidade de funcionamento
______________________________________________________________________
5.3. Língua(s) em que o ensino é ministrado: _______________________
5.4. A língua portuguesa é usada para ensinar outras disciplinas? ( ) Não; ( ) Sim.
5.5. A língua portuguesa é ensinada como segunda língua? ( ) Não; ( ) Sim.
5.6. São utilizados materiais didáticos específicos do grupo étnico? ( ) Não; ( ) Sim. Quais
e quem os elaborou?
_________________________________________________________________________
___________________________________________________________________
5.7. A Escola ou os professores receberam os PCNs (são os livros chamados Parâmetros
Curriculares Nacionais, do Ministério da Educação)? ( ) Não; ( ) Sim. Anote aqui se foi a
escola ou os professores_____________________________________________
5.8. A escola ou os professores receberam os RCNEIs (é o livro chamado Referencial
Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, do Ministério da Educação) ( ) não; ( ) Sim.
Anote aqui se foi a escola ou os professores __________________________
5.9. A escola possui currículo próprio? ( ) Não; ( ) Sim. Quem elaborou?
_____________________________________________________________________
5.10. Quem fornece os planos de aula? (quem diz o que é preciso ensinar em cada série da
escola)
______________________________________________________________
5.11. A escola possui um regimento escolar (um documento que determina as regras que
organizam a escola)? ( ) não; ( ) Sim; ( ) Não sei
5.12. A comunidade combinou oralmente ou por escrito algumas regras para o
funcionamento da escola? ( ) Não; ( ) Sim. Cite algumas que você conhece
____________________________________________________________________
5.13. Quem envia os livros didáticos que vocês usam?
____________________________________________________________________
5.14. Como são escolhidos os livros didáticos, alguém orienta?
______________________________________________________________
5.15. Utilizam algum livro didático próprio? ( ) não; ( ) Sim. Quem ajudou a elaborar?
_____________________________________________
5.16. Utilizam outros recursos didáticos para as aulas, como por exemplo, jogos, teatro,
materiais fabricados por vocês mesmos? ( ) Não; ( ) Sim. Quem elaborou e como são
utilizados.
______________________________________________________________________5.17
. O calendário escolar é próprio? ( ) não; ( ) Sim
____________________________________________________________________
5.18. Quantos dias letivos a escola funciona por ano?____________
5.19. Esse número de dias totaliza quantas horas/aula por ano, aproximadamente?
_______________________________________________
5.20. Como é feita a avaliação da aprendizagem dos alunos?
5.21. De que forma a Comunidade acompanha o desenvolvimento da aprendizagem dos
alunos?
5.22. Qual o critério de progressão que a escola utiliza com os
alunos?_______________________________________________________________
5.23. A escola já ficou fechada por algum motivo ( ) Não; ( ) Sim.
Qual Foi?_____________________________________________________
6. DADOS SOBRE OS PROFESSORES (ANEXAR FOLHAS)
6.1 Nome: ________________________________________________________
6.2 Etnia(s) a que pertence? ______________________________________
6.3 Sexo: ( )Mas: ( ) Fem..
6.4 Idade: _______anos
6.5 Ano de nascimento: _________________
6.6 Local de nascimento: ________________________________________
6.7 Escolaridade (até que série estudou): __________________________
6.8 Onde estudou: _____________________________________________
6.9 Tempo de serviço como professor _________ anos.
6.10 É concursado? ( ) Não; ( )Sim .
6.11 Está contratado atualmente? ( ) Não; ( ) Sim.
6.12 Qual o órgão contratante ( ) município; ( ) estado; ( ) Funai; ( ) outro.
Qual?_________________
6.13 Qual é o valor do salário mensal que recebe atualmente_______________________
6.14 Em qual série dá aulas? __________________________________________
6.15 Em qual (ou quais) série(s) já deu aulas antes? ________________
6.16 Sempre lecionou nesta escola? ( ) Sim; ( ) Não. Em que outras escolas ou aldeias já
lecionou antes.
______________________________________________________________
6.17 É membro da associação de professores indígenas? ( ) Não;
( ) Sim. Qual o Nome?______________________________________________
6.18 É membro de alguma associação ou organização indígena? ( ) Não ;
( ) Sim. Qual (ou quais)? ______________________________________________
7. INFORMAÇÕES SOBRE OS ALUNOS:
Série Média de Idade Quantos Turmas
Educação Infantil
1ª. Série
2ª. Série
3ª. Série
4ª. Série
5ª. Série
6ª. Série
7ª. Série
8ª. Série
TOTAL DE ALUNOS:
7.1.Alunos do ensino fundamental e médio desta aldeia que estão estudando na cidade
Nome
Série Cidade Motivos
7.2. Quais os cursos de nível médio (segundo grau) que são de interesse desta
comunidade?__________________________________________________________
7.3. Observações sobre a entrevista:
_____________________________________________________________________
Aldeia Córrego Grande, ........./......../05
Nome completo dos participantes da pesquisa
Obs: Quem tiver vontade favor desenhar o mapa da aldeia, fique a vontade.
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