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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
DANIELLE RAMOS BRASILIENSE
AS TESSITURAS NARRATIVAS DO JORNAL O GLOBO SOBRE
O ACONTECIMENTO “CHACINA DA CANDELÁRIA”
ORIENTADORA: Profa. Dra. MARIALVA CARLOS BARBOSA
Niterói, RJ
2006
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SUMÁRIO
Introdução...........................................................................................................................p.3
Parte 1 – Mudanças na madrugada: a presença do acontecimento e a tessitura da
ordem narrativa...............................................................................................................p.11
1.1 - Apresentação do primeiro contexto: o menor
1.2 – A chacina contada pelo O Globo
1.3 – O acontecimento nas teias da contemporaneidade....................................................p.13
1.4 – Código de desamparo ao menor
1.5 – O senso comum e a instauração da ordem midiática no acontecimento...................p.23
1.6 – Ordem e Desordem...................................................................................................p.31
Parte 2 – A “matança dos inocentes” e suas lembranças pulverizadas no tempo......p.43
2.1 - Apresentação do segundo contexto: o jornal
2.2 - Os sentidos memoráveis do presente.........................................................................p.45
2.3 – Os trabalhos da memória..........................................................................................p.52
2.3.1. Os aniversários como lembranças................................................................p.56
2.3.2. O acontecimento pulverizado: 1994 e 1995.................................................p.61
2.3.3. As hierarquizações e acomodações em 1996...............................................p.64
2.3.4. Um esquecimento anunciado.......................................................................p.70
2.3.5. Quadro dos trabalhos de memória...............................................................p.73
Parte 3 –No fluxo da memória, a instauração do novo acontecimento: o ônibus 174 e
um sujeito remanescente da Candelária.....................................................................
3.1 - A narrativa autorizadas do jornal O Globo
3.2 - O sequestro e a Chacina
3.3 - As reatualização dos sentidos pelas tecituras narrativas
3.4 - As reconfigurações memoráveis por imagens sínteses
3.4.1 - A construção do monstro
4.4 – Violência, morte e esquecimento
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3
Conclusão.................................................................................................................................
Bibliografia.......................................................................................................................p.75
4
Resumo
A dissertação aborda a tessitura narrativa do caso Candelária nas páginas do Jornal O
Globo, a partir do acontecimento fundador de 1993 até seus desdobramentos posteriores,
chegando ao caso Sandro Nascimento, sobrevivente da Candelária e protagonista do
seqüestro do ônibus 174. Na pesquisa, buscou-se pensar os trabalhos da memória, para
entender a relação entre mídia, senso comum e a construção de estigmas sociais.
Palavras-chave: memória; narrativa; senso comum; O Globo.
INTRODUÇÃO
Um ato de extermínio coletivo contra crianças e adolescentes, ocorrido nas
mediações da Igreja da Candelária, no centro da cidade do Rio de Janeiro, na madrugada de
sexta-feira, dia 23 de julho de 1993, surpreendeu as autoridades e chocou a sociedade. Este
acontecimento, conhecido como a “Chacina da Candelária”, teve grande repercussão por se
tratar de um fato marcado pela brutalidade da violência urbana contra menores que
dormiam nas ruas da cidade. O reconhecimento do envolvimento da polícia no extermínio
acirrou mais ainda o impacto desse episódio.
A inegável gravidade dos fatos repercutiu nos meios de comunicação, dentre eles
nas páginas dos jornais impressos. Através das mais diversas estratégias narrativas, a
imprensa procurou configurar o episódio e informar o acontecimento à sociedade nos dias
seguintes à chacina. Sob a dimensão de um fato surpreendentemente violento e
contraditório, um crime que envolveu crianças e policiais, a imprensa assume seu lugar
5
privilegiado de autoridade e busca construir um sentido instantâneo para seus leitores que
não acompanharam de perto o fato, mas que esperavam sua notícia imediatamente. O
acontecimento, então, passa a ser conhecido através das estratégias jornalísticas que
gerenciam a sua realidade.
Assim, é por intermédio de uma construção narrativa espetacular que tomamos
conhecimento a respeito dessa chacina e entendemos o que se passou na madrugada do dia
23, enquanto crianças e adolescentes dormiam debaixo das marquises. Tal configuração
narrativa, que se dará um contexto sócio-político fundamental (tanto em termos de
composição política das instâncias governamentais, quanto das discussões correntes acerca
da instituição de um estatuto voltado para as crianças e adolescentes), construirá um marco
de memória que irá se reconfigurar, nos anos seguintes, através de processos ambíguos de
lembrança e esquecimento, em diversas outras notícias jornalísticas acerca dos próprios
sobreviventes da Candelária, da violência urbana, de ações contra ou a favor das crianças
de rua, dentre outros tópicos. É exatamente esse fluxo narrativo, pensado como processo,
que buscamos mapear nesta dissertação.
Optamos, para esse fim, por recortar como objeto o jornal O Globo, buscando
entender como um veículo importante, parte da maior empresa de comunicação do Brasil e
que tem circulação significativa na cidade do Rio, trata este caso. A dissertação aqui
apresentada se propôs, portanto, a explorar as narrativas de O Globo e perceber a maneira
pela qual esta mídia gerencia as contradições da Chacina da Candelária para os leitores e de
que forma o jornal se refere a este acontecimento e aos sujeitos envolvidos, não apenas no
momento da cobertura do episódio, mas também nos momentos em que sua memória é
ativada. Damos ênfase especial ao momento em que a chacina é lembrada por um novo
acontecimento que envolve o sobrevivente Sandro Nascimento, no caso que ficou
conhecido como o “seqüestro do ônibus 174”, no ano de 2000.
Estamos partindo, portanto, de algumas premissas básicas. Uma delas implica no
reconhecimento de que tanto o acontecimento “Chacina da Candelária”, quanto suas
reconfigurações, estão marcados por contradições. Uma das contradições questionadas
nesse trabalho se refere ao fato de ser um acontecimento que envolve crianças, moradoras
das ruas, vistas por grande parte da população carioca sob uma lógica de pensamento que se
6
baseia no senso comum, qualificando-as como “marginais” que poluem este ambiente.
1
Neste sentido, o que precisamente esta pesquisa destaca é a forma pela qual o jornal O
Globo, que cotidianamente anuncia os fatos por categorias retóricas sintetizantes e
redutoras da vida cotidiana, se refere a determinados sujeitos que não fazem parte de um
mundo perfeito e ordenado, mas que pertencem ao lugar do impuro e da desordem.
Foram mortas crianças que, seguindo uma lógica introjetada por parte do público,
sempre se desejou “apagar” do cotidiano de uma cidade como o Rio. Sujeitos pobres, sem
casa, de família desconhecida ou inexistente, ou seja, elementos opostos ao que se conhece
tradicionalmente como ordem social, mas que, de repente, se transformam em vítimas de
uma barbárie provocada pela polícia, instituição social que tem, em tese, a função de
manter a ordem. As narrativas construídas pelo jornal O Globo nos fazem entender como
são apresentados esses sujeitos e como são construídas suas identidades no momento em
que os menores são vitimizados socialmente por um crime. Mudariam os menores de lugar
nas narrativas da imprensa ou seriam mantidos como referência de “classe perigosa”? Os
menores, como vítimas, tomam o lugar da ordem, ou permanecem cristalizados por valores
do senso comum?
A relação do senso comum com a imprensa se dá pelo princípio da reflexão sobre o
mundo a partir de argumentos baseados nas experiências da vida cotidiana. Entendemos
que a interpretação da realidade feita pelo O Globo se constrói também por este viés do
senso comum, que Clifford Geertz (1997) reconheceu como um sistema cultural. Embora o
senso comum seja formulado para simplificar diversas teorias a respeito das realidades do
mundo, ele permite uma naturalização dos valores uma vez conhecidos no cotidiano. O
trabalho que tem o jornal, de sintetizar os fatos, na tentativa de explicá-los com maior
agilidade e rapidez, causa uma redução dos sentidos complexos das realidades. Desta
forma, é este o ponto de partida para nossas reflexões sobre o episódio da Candelária: se a
construção da notícia jornalística é feita sob a forma do senso comum, como o jornal fecha
os sentidos de um episódio complexo e contraditório como a chacina das crianças? De que
forma as contradições desta realidade são polidas e simplificadas? Consideramos que as
teorias da vida cotidiana se transformam em problemas no processo de construção da
1
A concepção de poluição e sua relação com os universos da ordem e do perigo, bem como a de senso
comum, serão desenvolvidas no decorrer dessa dissertação. Isso se dará com todos conceitos assinalados em
7
narrativa midiática quando formam estereótipos e juízos pré–conceituados inquestionáveis,
na forma de uma realidade única e consensual.
O discurso do senso comum é definido por padrões de juízo construídos
históricamente e, portanto, constituem elos de referências que transpassam o tempo. Esse
percurso discursivo é promovido por um dialogismo, como referendou Mikhail Bakhtin
(1979) ao pensar a existência da circularidade da linguagem. Assim, é importante perceber
as questões da articulação da memória, como plano principal de uma narrativa midiática.
Cabe entender não somente a narrativa do acontecimento, mas o fluxo dessa narrativa e da
construção das identidades produzidas pelo jornal. Procura-se saber de que forma as
identidades são fundadas nos discursos sobre a chacina e como esse episódio, uma vez
narrado, com todas as referências sobre os sujeitos envolvidos, especialmente menores,
foram evocados pela memória de O Globo em outros momentos, especialmente quando irá
narrar um episódio de violência tão significativo quanto a chacina, como o “sequestro do
ônibus 174”. O trabalho apresentado pretende pensar, assim, a relação entre o discurso
acontecimental jornalístico e suas múltiplas memórias.
A memória é uma instância de mediação essencial e necessária para que se constitua
a realidade. O jornalista constrói a memória tanto pela via das lembranças, quanto do
esquecimento. Na medida em que a memória vai sendo ativada no fluxo dos discursos da
imprensa, os tempos se tornam flexíveis, o passado é retomado, o presente é configurado e
o futuro planejado. Por meio desta circulação temporal, evidencia-se o presente como um
fluxo de mudanças constantes. Relacionada ao senso comum, a memória pode se articular
como uma repetição das idéias já naturalizadas. Mas no caso da chacina, momento em que
esses menores se trasformam em vítimas, como se articula a narrativa dos jornais ao falar
sobre os menores sobreviventes num tempo depois do crime? O contexto da Candelária é
esquecido ou lembrado? Se é lembrado, de que forma o jornal gerencia os sentidos em sua
narrativa sobre este episódio?
Para tentar compreender como se processa a relação entre o acontecimento e a
memória da chacina, foi, sobretudo, importante levar em consideração a teoria da
construção narrativa proposta por Paul Ricoeur (1994), que sugere que a organização das
nossas experiências temporais se faz por uma mediação do tempo presente. Tomando
itálico nesta introdução, razão pela qual optamos por explicitar algumas das referências bibliográficas destes
conceitos no decorrer dos capítulos.
8
Ricoeur como aporte teórico, mas, principalmente, metodológico, visamos demonstrar,
nessa dissertação, como a construção narrativa de O Globo sobre o caso da chacina foi
composta por um jogo de intrigas concebidas pela configuração do tempo presente que
instaura e legitima outras novas narrativas sobre o fato. Assim, metodologicamente, este
trabalho se organiza pela teoria da tríplice mímese proposta pelo autor, que uniu a teoria
narrativa da poética de Aristóteles à teoria de Santo Agostinho sobre o tempo. Para
Ricoeur, as experiências cotidianas contadas pelos homens para explicar suas realidades só
podem ser configuradas pelo fluxo contínuo do tempo.
A teoria proposta por Ricoeur pressupõe que a narrativa seja composta por três
mímeses: a mímese I seria o tempo préfigurado, onde nascem as coisas, onde os
acontecimentos se fundam; a mímese II compreenderia o que está relacionado à mediação
do acontecimento, onde as coisas são apresentadas e constituídas; a mímese III seria a
jusante, para onde as coisas vão e onde os sentidos são reconfigurados. Dentre essas
mímeses propostas pelo autor, a mímese II é considerada a mais importante por promover a
configuração narrativa de uma nova realidade mediada pelos outros tempos. O trabalho da
mímese II se aproxima, partilhando da concepção que vem sendo desenvolvida em outros
trabalhos acadêmicos,
2
do fazer jornalístico, que produz narrativas constantes em um tempo
presente formado por um passado atualizado e por um futuro antecipado. As indicações de
Santo Agostinho sobre a existência não apenas de três tempos - como passado, presente e
futuro - nos fazem entender melhor a complexa teoria de Ricoeur, pois para Santo
Agostinho o que existe temporalmente em nossa vida é o presente das coisas passadas, um
presente das coisas presentes e outro presente das coisas futuras. Os tempos para ele são
sempre mediados por um presente contínuo, em um círculo não vicioso (em que
configurações podem ser também prefigurações e reconfigurações), por isso Ricoeur indica
o trabalho da mímese II como fundamental para articular as narrativas no fluxo dos tempos.
Acreditamos que o jornalista é, sobretudo, um mediador, construtor de narrativas
que interferem na vida humana, e que a produção das notícias se dá também pela sua
maneira de perceber o mundo e que sua percepção é construída no fluxo da articulação
temporal.
2
Dissertação Letícia e Mirella.
9
Sendo assim, optamos por estruturar esta dissertação sob a lógica das mímeses de
Ricoeur. Na primeira parte, falaremos sobre o acontecimento da chacina da Candelária
como um tempo que se configura, mas que também é prefiguração para outros
desdobramentos narrativos. Iniciaremos nossa discussão apresentando a primeira matéria
do jornal O Globo no dia 24 de junho de 1993, pois essa configuração é fundamental para
pensar o episódio da chacina. Nesta apresentação, também contextualizamos a realidade
dos menores brasileiros, que, em 1993, tinham recebido amparo recente com a criação do
Estatuto de proteção à criança e ao adolescente, conforme determinado na Constituição
brasileira. Depois, abrimos uma discussão a respeito da problemática proposta por diversos
autores, como Louis Quéré, Maurice Mouillaud e Adriano Duarte, sobre o conceito de
acontecimento relacionado à mediação jornalística. Introduzimos, a partir disso, uma
análise sobre a questão da narrativa e sua relação com o senso comum neste acontecimento
essencialmente contraditório. Procura-se, assim, entender a forma como O Globo sintetizou
seu discurso e como as noções sobre o senso comum são articuladas em suas narrativas a
respeito dos menores envolvidos. Tais reflexões são amparadas por análises das matérias do
jornal, que narram a chacina na semana seguinte ao ocorrido. Dentre as discussões
apresentadas, evidenciamos a questão da inversão da ordem percebida pela narrativa de um
crime cometido pela polícia.
Entender o acontecimento e sua nascente não é apenas pensar o momento da sua
ruptura no tempo, mas também todo o seu processo memorável, seu passado e seu futuro.
Portanto, cabe explorar também, baseados na lógica da mímese II, os trabalhos de memória
como propõe Maurice Halbwachs. Neste capítulo, reconhecemos o enquadramento do
passado produzido pelo jornal O Globo a partir das demandas do presente. Em um primeiro
momento apresentamos a relação entre memória e acontecimento, inserindo também o
contexto do jornal O Globo. Ou seja, partimos da historicidade do objeto para depois fazer
menções a respeito das elaborações que o fazem falar de uma realidade violenta como a
chacina. Em seguida, apresentamos os sentidos memoráveis do presente, reconhecendo os
trabalhos de acomodação, assimiliação, hierarquização, legitimação, de esquecimento e de
mudança promovidos pela narrativa do jornal. Evidenciamos também aqui um apagamento
do episódio.
O terceiro capítulo se refere à reatualização do acontecimento da “chacina da
Candelária” por um novo episódio, o “seqüestro do ônibus 174”, protagonizado, sobretudo
10
nas narrativas da imprensa, por um sobrevivente da Candelária, Sandro Nascimento. O
objetivo é mostrar que o fluxo na memória se constitui como jusante, uma refiguração, ou
melhor, a instauração de um novo presente. Nesta parte, simulada como mímese III, nos
propusemos a mostrar como os trabalhos da memória se operam pelas sensações e
reatualizações de imagens sínteses, relacionadas ao fluxo memorável a respeito da
identidade dos menores. Este capítulo mostra essencialmente como o jornalista vai
reatualizar os sentidos e de que forma vai reafirmar as idéias uma vez produzidas sob a
forma do senso comum. Para entender o desenvolvimento desse fluxo narrativo,
procuramos perceber nas matérias apresentadas pelo O Globo, durante uma semana depois
da ocorrência do seqüestro, de que forma o jornal retoma a questão da Candelária e como
ele apresenta Sandro como sujeito indesejável para a sociedade. Sandro se torna, aqui, uma
referência da memória dos menores que indicavam um perigo social. Na avaliação dessas
narrativas de O Globo sobre o seqüestro, percebemos a construção do personagem
monstruoso como uma espécie de identidade essencialista criada pelos valores do senso
comum em um acontecimento repleto de contradições. Neste sentido, é necessário pensar
não apenas nas narrativas do jornal sobre o caso em si, mas essencialmente entender as
grandes sínteses que estas colocam em cena.
A primeira síntese diz respeito ao acontecimento “ônibus 174”, percebendo as
reduções e imagens fixadoras que o seqüestro inaugura, comparando-as com as
operacionalizadas quando da “chacina da Candelária”. Quais são, portanto, os pontos que
aproximam esses episódios e como a violência é qualificada pelo jornal tanto em 1993
como em 2000? Outra síntese diz respeito ao próprio sujeito Sandro Nascimento,
categorizado como monstro social.
Por conta desse trabalho de enquadramento do senso comum e da cristalização dos
valores relacionados aos sujeitos envolvidos em ambos os crimes, é importante também
perceber o lugar da imprensa como autoridade social, que narra o acontecimento e ajusta
uma realidade multiplamente contraditória.
Nosso principal objetivo, assim, é avaliar as condições da imprensa como narradora
e, sobretudo, construtora da realidade. Procuramos entender a relação do jornal com a
memória de um acontecimento de caráter violento e perceber como são reforçadas as
identidades dos sujeitos não desejados pela mentalidade da ordem social no fluxo do tempo.
Assim, este trabalho evidencia a circularidade dos discursos da mídia e a configuração de
11
uma realidade não apenas construída por seu acontecimento, mas, principalmente,
constituída por uma relação com a memória.
Falta um fecho. O final ainda está um pouco confuso, mas está bom. Depois de tudo
pronto voltamos de novo a introdução.
Parte I
Mudanças na madrugada: a presença do acontecimento e a
tessitura da ordem narrativa.
Sábado, 24 de junho de 1993, o jornal O Globo leva às bancas suas primeiras
reportagens sobre o atentado da madrugada do dia 23, contra os menores que dormiam nas
proximidades da Praça Pio X, em frente à igreja da Candelária, no centro da cidade do Rio
de Janeiro. Naquele momento, pouco se sabia sobre o caso. Apurou-se a morte de 7
vítimas, dentre elas pelo menos 40 crianças e adolescentes que foram surpreendidas com
tiros disparados por homens encapuzados, enquanto se recolhiam debaixo das marquises.
12
As declarações de sobreviventes e de outros personagens ajudavam a indicar como
suspeitos do crime policiais militares. O retrato falado de um deles é divulgado junto com a
história de uma ameaça feita dias antes do acontecimento. Assim, importava narrar, nesta
edição, o enredo do assassinato, as mortes, os suspeitos, os sobreviventes, as mães que
procuravam seus filhos e as falas das autoridades que se alarmaram com o caso ainda
obscuro.
Após o lide, que descreve a ação dos possíveis suspeitos, o repórter apresenta o
acontecimento da seguinte forma:
“(...) A chacina da Candelária ocorreu por volta de 1h30m.
Os criminosos chegaram em dois Chevettes, um deles com a
cor padrão dos táxis e ambos com as placas cobertas por
plástico. Sob a marquise dormiam 50 meninos de rua, com
idade de 8 e 15 anos. Três homens saíram do carro e
perguntaram pelo menino Ruço. Eles mataram quatro
menores no local e feriram dois. Um dos feridos morreu no
Hospital Souza Aguiar e Marco Antônio da Silva, o Ruço, de
15 anos, está internado em estado de coma”.
Após esse início em que é particularizada a rápida ação dos assassinos frente aos menores
indefesos – já que dormiam – sob as marquises, a notícia continua presumindo o que poderia ter
acontecido e, dessa forma, descrevendo minuciosamente o acontecimento naquela madrugada.
Os mesmos policiais saíram da Candelária e próximo à
Praça Mauá renderam L. de 22 anos e os menores
Paulinho Escurinho e Gambazinho. Eles foram postos na
mala de um dos Chevettes e mortos próximo ao MAM, no
Parque do Flamengo. Os dois menores morreram no local,
mas L. mesmo baleado no rosto, conseguiu fugir.
Os criminosos usaram pistolas 9 mm para praticar os
crimes. Na Candelária, pela ordem foram mortos Rogério
Neguinho, Caolhinha (morto com um tiro na cabeça ao
correr) e Paulo Roberto Oliveira, o Pimpolho, que
completaria 12 anos no próximo dia 3.
- Mata não, moço – implorou Pimpolho, segundo um menor.
(...) ”
3
O acontecimento “Chacina da Candelária”, apurado pelo jornal O Globo,
entretanto, não se resume a este relato, sendo um episódio de significados múltiplos
construídos por diversas vozes, envolvidas por uma tessitura narrativa que não trata apenas
do fato presente. O que o jornal fez foi reportar o que estava em evidência e o que era
conhecido até aquele momento. A notícia sobre o fato deveria ser informada para a
13
sociedade que já a esperava. Os relatos escritos logo após o acontecimento são, portanto,
aqueles que irão construir a primeira história. Esta história, embora fundada pelo
imediatismo, faz parte de um enlace mais abrangente, construído por um mediador que tece
as estruturas plurais existentes em um determinado tempo, envolvido por uma orquestra
polifônica, como discutiremos neste trabalho. O enlace mais amplo é constituído pelo
acontecimento, suas memórias e todo o contexto social que o constitui. As estruturas do
acontecimento não são fixas, pois fazem parte de um elo de herança discursiva que se
constrói no decorrer do tempo histórico
Este capítulo pretende responder a algumas questões: como é tecido inicialmente o
acontecimento denominado “Chacina da Candelária”? O que estamos entendendo por
acontecimento? Como o jornal tece as narrativas a partir da figuração do senso comum?
4
Em primeiro lugar, para pensar tais questões é preciso observar a notícia como uma
verdade que o leitor busca sobre os acontecimentos, pois, por não ter contato direto com o
fato, o publico pode observar as ocorrências, a partir das narrativas midiáticas.
Essa busca pela informação noticiada também está ligada a uma necessidade de
estabilidade e segurança sobre a realidade do mundo. Tal sensação de equilíbrio se torna
essencial para a construção da história da vida humana que se realiza na rotina do fluxo dos
acontecimentos. Os fatos e seus sentidos se transformam em referências temporais que
orientam a sociedade de modo geral.
Antes de falar do conceito de acontecimento e de sua relação com a mídia é
necessário entender o contexto que envolve os principais elementos desse fato. As
narrativas de O Globo dizem respeito a um caso de violência contra menores na cidade do
Rio, portanto, se entendemos as realidades como construções históricas discursivas e
dialógica – como mostraremos mais adiante - nos interessa perceber de que forma a
categoria “menor” é criada no Brasil e como esta identidade é cristalizada no fluxo do
tempo. Mas para saber de que forma as narrativas do jornal são construídas com relação a
este episódio, não nos basta saber só as condições de herança simbólica desses menores,
mas também o contexto em que viviam nos anos de 1990, especialmente, as questões de
segurança pública do estado do Rio de Janeiro, já que vamos analisar um episódio com
3
Matéria do jornal O Globo, dia 24 de junho de 1993, editoria Rio, p. 6.
4
Escolho o verbo tecer, ao invés de construir, pois fica mais clara a relação intrínseca que existe entre
acontecimento, memória e narrativa, na produção ou gerenciamento do senso comum.
14
fortes marcas de violência nesta cidade. Apresentar portanto, discussões sobre o estatuto do
menor e sobre as ocorrências sociais e políticas que se passavam na cidade onde o crime
acotece, se torna fundamental, nesta dissertação, para entender a configuração midiática do
episódio “chacina da Candelária”.
1.1 – O menor e o Rio de Janeiro de 1990
No livro “O mal que se adivinha” de Adriana Vianna, é feita uma análise sobre os
diversos mecanismos que criam a categoria de “menor” no começo do século XX. Esse
estudo parte da percepções de registros feitos pela polícia em trabalhos de recolhimento de
crianças abandonadas ou que de alguma forma trangridiam a lei, no período entre 1910 e
1920. Segundo a autora, a probelmática da significação do menor acontece sobretudo no
campo jurídico, onde é identificado historicamente o processo de naturalização e
cristalização do termo “menor”. No ano de 1923 foi criado o Juízo de Menores do Distrito
Federal e em 1927 o primeiro Código de Menores. Essa representação social da infância,
pelo termo “menor” segundo Adriana, foi formulada à princípio para que se reconhecesse a
inocência. Mas em outro sentido, a classificação do menor acaba se vinculando ao processo
de hierarquia social, no momento em que se estabelece “direitos” a esta classe.
Buscamos o trabalho de Adriana Viana para enteder historicamente, a categoria do
menor como um problema. Assim como o objetivo da antropóloga não era apenas
identificar o personagem “menor”, e sim os processos que o criaram a partir daquela época,
também é nossa intenção, entender a construção das identidades dos menores, a partir da
observação do jornal O Globo no período em que ocorre um crime significativo contra
crianças e como isso se processa na memória desta imprensa após esta ocorrência. Observar
então um breve histórico sobre os menores, é importante para pensar as relações do jornal
dos anos 90, com as narrativas sobre as vítimas da Candelária.
A classificação sobre a categoria menor, no começo do século, como falamos, tem
importância por conta da atividade policial em registrar e descrever os sujeitos de
menoridade sob o julgo de adjetivos: o menor infrator, ou o menor abandonado, por
exemplo. De qualquer forma, independente da situação que se encontrava a criança, ele era
um “menor” e a idéia do Estado ao recolhe-lo passava pela lógica da arrumação social, A
ordem da época era proteger a sociedade dos que tinham características próximas de
15
criminosos, mesmo obtendo menoridade. Nos dias de hoje, os menores só são recolhidos
das ruas pela polícia, se forem pegos com drogas, ou se acusados de assaltos, existe uma lei
que dá direito a estes, mas esta já foi consolidada pelas sombras negativas da categoria
“menor”, que por muito tempo é entendido apenas como delinquente.
O Código do menor na década de 1920 só organizava essas marcas, separava o
menor que deveria ficar preso pelos atributos do Estado, do que não precisava. Não muito
diferente era o Serviço de Assistencia ao Menor implantado no gover no de Getúlio Vargas
em 1941, quando as influências fascistas de higienização estavam em moda, levando assim,
a uma preocupação maior com a infância abandonada. Com o aumento da criminalidade
inclusive pela agregação dos menores infratores neste mesmo lugar institucional, o SAM
não deu conta dessa expansão e foi substituído pela FUNABEM em 1964. Neste momento
que se cria a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor, muda também a classificação
sobre esses menores, na tentativa de mudar a mentalidade a respeito de sujeitos
transgressores para “menor carente”.
5
Adriana conta que a década de 1970 foi um momento emergente sobre temas
relacionados a problemática do menor. Os estudos eram focados sob a premissa de que o
termo “menor” não era usado para todas as crianças e adolescentes, mas era uma referência
para tipos particulares de crianças e adolescentes, por serem abandonados pela família, por
cometerem pequenos furtos, ou por viverem nas ruas. Por conta disso, a categoria “menor”,
classificada no começo do século, muda na década de 1980 para “menino de rua”.
O novo Código implementado nos anos 90, o Estatuto da Criança e do Adolescente
buscava mudar o olhar da sociedade com relação aos menores uma vez estereotipados.
Diversas críticas e denúncias sobre o tratamento dado aos menores pela extinta FUNABEM
e pelo código dos Menores fez com que fosse criado esse Estatuto. Em janeiro de 1993,
com a percepção do crescimento da violência e o reconhecimento de maior número de
crianças na rua também foi criado o Departamento Geral de Ações Socioeducativas que
antendia especificamente adolescentes que conflitavam a lei. O DEGASE é vinculado à
Assistencia Social do Estado do Rio de Janeiro e à Secretaria da Família.
5
Para saber mais sobre as Instituições responsáveis pelos menores nessas épocas ver a dissertação de Janaína
de Fátima Silva Abdala, “Prisão concreta, liberdade virtual. Atos comunicacionais de adolescentes
infratores”, UFF, 2003.
16
O IUPERJ entre os anos de 1990 e 1991 fez um levantamento sobre inúmeras
instituições não - governamentais que tinham a iniciativa de trabalhos com criaças e
adolescentes pobres no Rio de Janeiro. A pesquisa feita durante este tempo indicou a
existência de 620 instituições e dentre estas, 43 eram voltadas especificamente para
crianças que viviam nas ruas.
6
O começo dos anos 90 portanto, foram marcados pela
discussão sobre menores de rua, por conta da situação crítica que se encontrava o Rio de
Janeiro na época. A chacina da Candelária então, acontece em meio a esta tentativa de
organização do menor na sociedade.
Depois da Chacina houve um cobrança social com relação ao trabalho dessas
ONGs, que com verbasmilionárias, inclusive internacionais, foram acusadas de incentivar a
chamada “indústria do menor”. Essa exposição com relação ao trabalho dessas instituições
se deu também por conta de uma pesquisa feita antes da chacina, em fevereiro de 1993,
onde o IBASE havia contado 797 crianças dormindo nas ruas do Rio.
Em meio as matérias da chacina publicadas pelo O Globo, encontramos uma
entrevista com o Juíz de Menores, Libordini Siqueira, que indica também a culpa dessas
instituições. O título da entrevista é : “A culpa é da indústria do menor.”
Neste caso, queremos perceber como em meio a este contexto o jornal O Globo se
posiciona frente a um acontecimento que chega como explosão da desordem social,
6
Essas informações foram encontradas em Impelizieri, Flávia, “Crianças de Rua e Ongs no Rio: um estudo do
17
relacionada a questão da violência. Vale lembrar que, além de toda problemática com
relação ao menor, a cidade do Rio de Janeiro na década de 90 é invadida por um clima
tenso provocado pelas intervenções militares, a Rio 92 e as operações Rio I e II nos anos de
1994 e 1995, devido ao medo de descontrole da segurança pública no Estado e a vontade de
ordenação do espaço.
Uma das perguntas chaves do trabalho de Wilson Borges
7
(2006) é porque os
militares ocuparam parte do espaço público da cidade. Tal questionamento se fortalece pela
idéia de que o começo dos anos 90 é marcado pelo governo do primeiro presidente eleito
por votos diretos após anos de ditadura, mesmo em pouco tempo tendo sido expulso por
impeachment, Itamar Franco passa a marcar esse novo começo de era, sem autoritarismo
militar.
A idéia do terror da violência portanto, estava no cotidiano dos leitores de O Globo
que viviam em um contexto atribulado pela insegurança. O permanente encontro dos
cariocas com menores que circulavam pelas ruas do Rio de Janeiro, e todas as narrativas
midiáticas que os informavam sobre vandalismo, roubo e perversidade, criavam motivos
para que a sociedade desejasse o sumiço dessas crianças. Com tamanha crise de pânico
vivida pela cidade, a história desses menores, reconhecidos uma vez como tal, fazia com
que eles fossem enxergados como lixo, sujeitos desordenados que contrastavam o sonho da
paz, da ordem e da higiene da cidade maravilhosa. No entando, com todo esse sentimento
de repulsa, no momento em que essas crianças são acometidas por um ato de barbarie, a
visão que se tem sobre elas se contradiz. Mas até que ponto, elas são reconhecidas
exatamente como vítimas de uma chacina, quando o jornal narra esta história? De que
modo O Globo trata este acontecimento e os sujeitos que sempre se desejou apagar de um
cenário dito “maravilhoso”? Isto é o que iremos perceber daqui para frente neste capítulo.
1.1- O acontecimento nas teias da contemporaneidade
atendimento não governamental.”, Rio de Janeiro, AMAIS Livraria e Editora, IUPERJ, 1995.
7
No livro “Criminalidade no Rio de Janeiro. A imprensa e a (in) formação da realidade”, Wilson
Borges fala do contexto político e social dessa época, onde os militares ocuparam favelas levando uma
discussão problemática sobre a segurança pública no país. A Rio 92 é consequencia da visita de diversos
chefes de Estado à Conferencia Mundial sobre Meio Ambiente e Biodiversidade - ECO 92 – onde se
pretendia previnir e constrangre a criminalidade no Rio de Janeiro, que crescia absurdamente.
18
Num primeiro momento será necessário desenvolver o conceito de acontecimento a
partir de uma série de reflexões e autores. Mas gostaríamos de pontuar, logo de início, que
o acontecimento chacina da Candelária, assim como qualquer outro, não pode ser tomado
como sinônimo de fato ou reduzido a um ato, devendo ser pensado dentro de uma lógica
bem mais complexa e foi por isso que falamos primeiro do contexto do menor na cidade do
Rio de Janeiro na época que ocorre o massacre.
Há que se considerar ainda, o processo de construção histórica do conceito de
acontecimento, cuja dimensão de associação às mídias é a que mais nos interessa nessa
abordagem. Foram as mudanças no espaço e as novas formas de organização das cidades
no século XIX que contribuíram para a instauração da nova maneira de obter informação.
Diante das transformações da chamada Modernidade
8
urbanas e consequentemente sociais,
o jornalista passa a ser importante mediador simbólico para noticiar os acontecimentos à
distância, simplificando, assim, o tempo da informação e a necessidade de saber o que
ocorria nos arredores das cidades. A noticiabilidade dos acontecimentos nas cidades
modernas encurta as distâncias, produz novas experiências e atende a vontade cada vez
maior de conhecer os fatos ocorridos fora do raio de visão do público.
9
Pensar hoje a construção histórica a partir das notícias e do tempo em que estas são
apreendidas na contemporaneidade, onde velocidade e imediatismo fornecem uma espécie
de senha para o entendimento de mundo, é perceber mudanças na própria dimensão da
consciência história. Produz-se, uma espécie de ruptura entre os laços fundadores do
passado, presente e futuro, já que se vive uma espécie de presente que se estende
infinitamente em direção a um futuro indeterminado, improvável e, ao mesmo tempo,
ardentemente desejado
.
O bombardeio de notícias espetaculares, por outro lado, faz com que o momento
ganhe mais importância do que a seqüência do acontecimento. O que acabou de acontecer é
8
Mesmo reconhecendo o caráter polissêmico da expressão, entendo por Modernidade o mesmo que A.
Giddens em As conseqüências da modernidade: algo que, historicamente, se refere a “estilo, costume de vida
ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais
ou menos mundiais em sua influência” (1991,p.11).
9
G. Simmel também aborda tais transformações que irão ocorrer na metrópole moderna, em que o homem
passa a ser submetido a um hiper-estímulo sensorial frente ao grande número de informações que começa a
receber diariamente. O jornal diário e o jornalista vão ocupar um importante papel mediador neste contexto.
Ver SIMMEL (1987)
19
apenas mais uma referência dentre muitas outras que se esgotam rapidamente. O caso
“chacina da Candelária”, por exemplo, embora tenha tido grande repercussão, não durou
nas páginas do jornal por muito tempo. O material que será usado para pensar as questões
propostas se esgota em no máximo cinco dias de notícias. Mesmo reconhecendo a
gravidade e seu “ineditismo”, a síndrome da novidade é o que interessa para o veículo. Na
mídia e, conseqüentemente, na rotina de vida dos seus leitores, as referências históricas se
tornam perenes, como se pode também perceber neste caso.
Essa sensação de que os acontecimentos se “desmancham no ar” não deixa tempo
para uma crítica mais vigorosa ou para que se tome consciência da realidade presumida. O
que sabemos sobre os fatos noticiados é apenas o básico, a estrutura. Philip Schlesinger no
final do seu artigo sobre “Os jornalistas e a sua máquina do tempo”
10
argumenta: “Seria
enganoso tentar qualquer argumento determinista, desde a natureza das notícias até a
qualidade da nossa consciência histórica. Não existe aqui nenhuma relação causa-efeito”.
Apesar disso, para ele, “há uma parcialidade evidente nas notícias contra longo prazo, e é
plausível argumentar que, quanto mais tomamos notas das notícias, menos conscientes
ficaremos do que está por de trás delas”.
Com essas palavras, Schlesinger encerra uma discussão cujo objetivo é demonstrar
que a notícia na contemporaneidade apaga, de certa forma não só a idéia de verdade
absoluta, mas também a sua consciência histórica, por ser construída em curto tempo.
Apesar disso, não se trata de dizer que o acontecimento, com seu tempo de duração
reduzido, se apague. Talvez o acontecimento ganhe outro lugar na lógica de construção da
memória, em um lugar suspenso, ou virtual, mas não apagado.
Usando um argumento diametralmente oposto, Lacouture (1995- 215-239), enfatiza
que o jornalismo, ao contrário, produz diariamente uma espécie de história imediata,
mesmo que esta ação dominada pelo imediatismo não se preste à verificação, delimitação,
exclusão, coleção, características fundamentais da operação histórica. Para ele, ainda que
haja uma espécie de história imediata fundada na excepcionalidade, não há acontecimento,
já que “não se alinham forças da mudança com as potências da informação” (pp.232-233).
Para Lacouture, o acontecimento percebido por um historiador se diferencia do percebido
por um jornalista que objetiva apenas criar emoções passageiras, do que dar conta de
10
SCHLESINGER, P. In TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: Questões, Teorias, Estórias. Lisboa: Veja, 1993.
20
enxergar os fatos pela sua profundidade. Lacouture afirma que o jornalista se preocupa
mais com o superficial que lhe trará resultados satisfatórios a partir do uso sensacional da
informação, do que os “ecos vindos do solo”, onde o historiador costumava – antes da era
imediatista – encostar seus ouvidos para obter maior percepção das realidades observadas.
A instantâneidade do acontecimento noticiado se dá especialmente, pela
aproximação que este tem com o mundo do consumo. O acontecimento contemporâneo
com características espetaculares, que não permanece por muito tempo na consciência do
público, são como mercadorias, ou produtos da cultura de massa que ao invés de ser
esquecido, é desgastado pela necessidade de novos acontecimentos provocada pela
indústria midiática que institui poder aos fatos. De qualquer maneira, o rápido esgotamento
de uma notícia nos veículos de comunicação, não apaga sua importância como ruptura
histórica e social, embora exista o consumo da novidade. Jesus Martín-Barbero em seu
livro “Ofício de cartógrafo” diz que transformado em notícia, o acontecimento sai da
história e entra na banalidade, condição para ser inserido no ciclo do consumo, no valor e
no ritmo da cultura de massa. Apesar de termos esta consciência, nossa questão é entender
a essência de um acontecimento e como se constrói essa banalidade.
A rigor, o que deve ser considerado em um acontecimento é o seu sentido, o que,
para Gilles Deleuze,
11
é o seu brilho. Tanto o jornalista como o historiador produze sentidos
na demarcação de um tempo, seja ele informado de modo imediato ou na busca do passado.
O acontecimento ganha sentido quando percorre o caminho de associação entre o passado e
o presente. O fato do passado - e seu sentido - só é transportado para o presente quando
inaugura novo sentido, empurrado e estimulado por um acontecimento. O percurso entre os
tempos é feito, portanto, a partir de um rompimento que irá inaugurar um novo sentido, ou
seja, um acontecimento.
A contribuição de R. Koselleck (1990) sobre a semântica histórica enfatiza que é
apenas na sucessão dos tempos que se percebe o acontecimento. Desta forma, nos
questionamos: o que aconteceu na Candelária? O que levou à chacina? Tais
questionamentos só podem ser percebidos na sucessão do tempo, ou seja, depois que ele
aconteceu. As ações, as identidades que compõem este acontecimento, só são percebidas na
11
DELEUZE, Gilles (1969).
21
sucessão temporal que a constitui. Para Koselleck, o antes e o depois constituem o sentido
de uma narrativa.
12
KOSELLECK TÁ HORRÍVEL !!!!
Embora as questões de tempo e a noção de intriga narrativa sejam importantes para
compreender o acontecimento, Louis Quéré
13
apresenta um questionamento que vai além
dos esquemas estruturais. Quéré se preocupa em conhecer no que consiste o poder
hermenêutico do acontecimento. Para tal questão, o autor se baseia em duas prerrogativas
propostas por Hannah Arendt e G.H. Mead sobre a dualidade do acontecimento.
É importante lembrar que Hannah Arendt não considera os textos jornalísticos bases
de informação histórica, pois, para ela, eles apenas traduzem suas próprias concepções
sobre o espaço público. Mas, ao mesmo tempo, é importante pensar o acontecimento como
elemento provocador da descontinuidade, introduzindo condições sociais futuras, e
concordar que os discursos são as provas da existência desses marcos históricos ocorridos
em algum tempo.
14
Segundo demonstra Quéré, para Arendt, a forma de enquadramento de um
acontecimento teria dois pontos de vista diferentes: um correspondente ao entendimento e
outro à ação. A rigor, do ponto de vista do entendimento, relacionado à contemplação, o
acontecimento se definiria apenas pelo encadeamento entre o seu fim e a causa que o
estimulou. Já sobre a ação, Quéré resume desta forma: “o acontecimento é um fenômeno de
ordem hermenêutica: por um lado ele pede para ser compreendido e não apenas explicado,
por causas; por outro, ele faz compreender as coisas – tem, portanto, um poder de
revelação.” A partir da ação, segundo Louis Quéré, podemos pensar no acontecimento não
apenas como inaugurador de um processo, mas uma instância que marca o fim e o começo
de outro. O poder de abertura e rompimento do acontecimento e seu posterior poder de
esclarecimento é que interessa para Quéré. E por fim ele se pergunta: de onde vem o poder
de acontecer?.
Os acontecimentos existem por causa de outros acontecimentos, ocupando e
mudando o curso da vida humana. Embora o poder da ação para Arendt seja o que
desencadeia um acontecimento, para Quéré não basta perceber o ponto inicial, já que se os
12
R. Koselleck, « Représentation, événement et structure ». In : Le futur passé. Contribution à la sémantique
des temps historiques. Paris : EHESS, 1990.
13
QUÉRË, Louis, “Entre o facto e o sentido: a dualidade do acontecimento”. In: Revista Trajectos. Lisboa:
ISTCE e Editorial Notícias, número 6, 2005.
22
acontecimentos estimulam reações e respostas, eles “se tornam”. Portanto, “a principal
origem da compreensão do acontecimento já está no próprio acontecimento.”. Neste artigo,
Quéré se propõe a ir além da dualidade ação/conhecimento e tenta superar suas dificuldades
a partir de algumas reflexões de Mead, em torno do tempo.
De acordo com Quéré, o tempo para Mead não se constitui por conseqüências, ou
provocações, inaugurando o novo de qualquer forma. Embora o acontecimento quando
surja indique descontinuidade, ele só pode ser percebido a partir do que é visivelmente
contínuo, ainda que neste instante o mundo já não seja mais o mesmo, uma vez que o
surgimento do novo provoca sempre alteração significativa de sentidos. O descontínuo é
uma aparência que inaugura o novo, portanto o acontecimento é um fluxo harmônico, um
resultado de um procedimento passado, seja ele previsto, ou não. No entanto, o
acontecimento nunca pode ser conhecido no tempo passado: ele apenas revela o seu próprio
passado e inaugura novos momentos. De qualquer forma, só podemos investigar o passado
de um acontecimento quando o acontecimento surge.
Quando a chacina da Candelária acontece, temos um caso de descontinuidade no
tempo. Essa impressão só se reduz a partir do momento em que se busca no tempo passado
sua continuidade. Essa busca, tributária de uma idéia de naturalidade - uma vez que já
ocorreu algo semelhante -, pode ser feita por análises de contextos similares ao
acontecimento, ou seja, outras chacinas e morte de crianças, ou pela própria reconstrução
do fato.
Mas se compreender o acontecimento, portanto, seu poder de inaugurar
determinados momentos, requer olhar para o próprio acontecimento, importa, aqui, analisar
a narrativa deste acontecimento. No caso do jornal O Globo, o acontecimento foi
reconstruído pela tentativa de descrição minuciosa do próprio incidente. Ao mesmo tempo,
a notícia produziu uma espécie de aproximação com assuntos passados, enfocando meninos
de rua, voluntários que ajudavam com entrega de agasalhos e instituições que patrocinavam
alimentação. Da mesma forma, a chacina da Candelária, o acontecimento em si, é cultuado
hoje na história da violência no Brasil como o fato que inaugura a morte coletiva de
14
DUARTE, André et alii (org). A banalização da violência: atualidade do pensamento de Hannah Arendt.
Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004.
23
crianças e adolescentes, como um discurso fundador.
15
Existe sempre a recuperação da sua
memória, quando novos acontecimentos similares eclodem na cena midiática. Isso foi o que
ocorreu, por exemplo, no caso do seqüestro do ônibus 174.
Para entender de onde vem o poder que coloca a chacina da Candelária no lugar de
acontecimento fundador, é necessário compreender a relação deste acontecimento com os
significados narrativos que lhe foram atribuídos. Louis Quéré coloca a questão da
pregnância de valores dada pelos sujeitos aos fatos como um dos problemas para revelar o
que é um acontecimento. Quando o acontecimento eclode e o descrevemos, temos um
conjunto de elementos para avaliar. Mas cada um deles diz respeito a nossa própria
participação. Diz ele:
São relativos ao que nós somos, às nossas capacidades e ao nosso
sentido do possível, à maneira como somos afetados e ao nosso poder de resposta, aos
nossos hábitos e à nossa sensibilidade. Tudo coisas que são sociais”.
Desta forma, configuram-se em função do que “lhe fazemos, da forma como lhe
respondemos e como deles nos apropriamos”. Mas Quéré adverte que o nosso poder de
ação sobre o acontecimento é limitado, pois como passado não temos o poder de modificá-
lo, de fazer com que ele não tenha se produzido daquela forma. “O que aconteceu,
aconteceu”.
16
Assim, para avaliar algum tipo de conduta ou relação com os acontecimentos, é
preciso dirigir o olhar para quem o anunciou. A preocupação do pesquisador francês em
15
A idéia de Discurso Fundador é trabalhada pela analista de discursos Eni Orlandi (1993), sobre a
construção da identidade nacional do país. Para Orlandi, o discurso fundador se dá pela criação de uma nova
tradição ao re-significar o que existia no passado e instituir uma outra memória a partir da existencia do novo
acontecimento. Assim, o acontecimento que organiza, segundo ela, vários sentidos gerando continuidade na
construção de outros significados é o que podemos chamar de discurso fundador.
16
Idem, p.68.
24
pensar o poder hermenêutico do acontecimento está ligada à ordem, ou melhor, à
possibilidade de organizá-lo em uma teia discursiva. Modificar o acontecimento
literalmente é impossível, já que não há possibilidade de volta para o passado. Mas a
construção que se faz na narrativa, pode modificar muito a experiência observada e seu
percurso na história. Portanto, se a maior responsável pela noticialização do acontecimento
hoje é a mídia, devemos investigar seu poder de ação sobre os fatos.
Para Maurice Mouillaud (2002)
17
, os acontecimentos são sempre revestidos pela
forma da informação. O acontecimento, neste sentido, não seria visto como uma mera
representação dada pelo jornal, nele não haveria um pleno status “realista”, mas um modelo
de informação que o impregna e o coloca em lugar de fato. As formas de modelos retóricos
são usadas para transformar o acontecimento em informação. Mouillaud observa que os
modelos que se ajustam para que um acontecimento se transforme em informação são
procedentes de um paradigma factual. Esse paradigma supõe que nem todas as coisas foram
experimentadas, embora tenham sido enunciadas. Para Mouillaud, o fato é como um
envelope, um modelo que encapa e embute a experiência do acontecimento, e a permite
circular sob a forma padrão da informação. Mas para que ganhe tal movimento, a
experiência é fragmentada, enquadrada em uma moldura, pois, assim, fica mais fácil
garantir, segundo Mouillaud, a conservação da informação e de sua identidade no tempo.
Mouillaud defende a idéia de que seria impossível apreender um acontecimento na
sua totalidade e, consequentemente, fazê-lo conhecido ou lê-lo. Para que um acontecimento
seja conhecido, é necessário fragmentá-lo em diversas cenas “monossêmicas”, ou seja,
aquelas que partem de um ponto e vão para uma determinada direção. Neste sentido,
enfatiza Mouillaud : “o que se chama acontecimento, não pode sequer ser encarado como
uma soma de micro-acontecimentos, mas sim, como uma dinâmica inesgotável de
apreensões”. Pensando desta forma, o autor se aproxima da idéia de polifonia do filósofo
lingüista Mikhail Bakhtin para perceber o acontecimento como uma pluralidade de
ocorrências. O acontecimento pode ser percebido neste caso, como a polifonia, uma
dinâmica de vários contextos que se transformam em uma aparente sincronia
acontecimental. Embora se perceba harmonia em um conjunto instrumental, não quer dizer
que esta aconteça pela existência de apenas uma consciência, ou de várias pequenas
17
MOUILLAUD, Maurice, O jornal: da forma ao sentido, UNB, Brasílis, 2002.
25
consciências, mas de uma multiplicidade de consciências e significações que juntos,
motivados em um mesmo tempo, se transformem apenas num acontecimento.
Ao refletir sobre o enquadramento de um acontecimento, visto sob a forma de
fragmentação temporal, há que pensar no caso da Candelária como uma ocorrência
múltipla. As primeiras reportagens do jornal O Globo, por exemplo, começam narrando
como policiais armados abordaram menores que dormem debaixo das marquises e se
fecham com a narrativa da morte dos meninos, ou das mães que os procuram, ou dos
depoimentos dos policiais. Mouillaud diz que para criar o acontecimento é necessário
proceder entre a “montante e jusante” da narrativa e, desta forma, o acontecimento
permanece sob limites espaciais e temporais. O enquadramento do jornal, por razões que
conhecemos a partir do pensamento de Mouillaud, se movimenta sempre por esse fluxo de
multiplicidade por modelos de informação.
Os modelos de informação, como já comentamos, talvez impeçam a percepção do
acontecimento como um fluxo, embora este sempre se refira ao tempo passado. O problema
está exatamente na noticialização, que transforma o acontecimento em “sucesso”, como
indicou Barbeiro (2004). A notícia esvazia a dinâmica histórica inesgotável do
acontecimento e preenche este aparente vazio com o sensacionalismo e o espetáculo.
A partir da análise da teoria de Pierre Nora sobre “os acontecimentos monstruosos”,
18
Érik Neveu e Louis Quéré (1996) entendem que os meios de comunicação tendem a
alimentar uma insaciável fome de acontecimentos sociais. Para eles também existe,
portanto, a insistência em sempre fabricar o novo e instalar um grande sistema de detecção
do que pode prender a atenção do público. Segundo os autores, existe uma constante
produção de acontecimentos, mas isso não quer dizer que se criem acontecimentos
artificiais. Nora diz que o que se produz é uma “événementialité” do novo.
19
A discussão proposta por Neveu e Quéré mostra que o acontecimento moderno não
é mais usado pela sua historicidade, pelo seu passado, sua significação exemplar ou pelo
seu valor de fundamentação.Os acontecimentos se aproximam do fait divers, assim como
18
NORA, Pierre. “Entre Mémoire et Histoire”. In: Les Lieux de Mémoire. La République. Vol. 1. Paris,
Éditions Gallimard, 1984. “Os mass media, dessa forma, fizeram, da história uma agressão e tornaram o
acontecimento monstruoso. Não porque sai, por definição, do ordinário, mas porque a redundância intrínseca
ao sistema tende a produzir o sensacional, fabrica permanentemente o novo, alimenta uma fome de
acontecimentos”(p. 183)
19
« NEVEU e QUÉRÉ, Érik e Louis ». In : Reseaux: Comunication Thecnologie Société Dossier:
Le Temps de L´événemente I, nº 75, 1996, p. X-y.
26
conceitua o semiólogo francês Roland Barthes (1965): uma informação geral de interesse
público transformada em drama, ou melhor, uma forma narrativa que seja chocante,
escandalosa ou esteja próxima do ineditismo. Esta prática de espetacularização da notícia,
que projeta o acontecimento para o público, segundo ele, contribui para a libertação do
imaginário das massas. O objetivo da imprensa ao se apropriar do fait divers é, segundo
alguns autores, exatamente entreter e divertir a sociedade de massa.
20
Neste sentido, perde-
se o caráter fundador e edificador do acontecimento original, mas se ganha uma
credibilidade por parte das “virtualidades emocionais”, como especificam os autores. Para
Quéré e Neveu, os acontecimentos se teatralizaram. Uma das características próprias deste
tipo de acontecimento é de acontecer frente a cena pública, e nunca em um momento em
que não estejam presentes o repórter e o telespectador. Estes acontecimentos, segundo eles,
precisam ser vistos, enquanto se fazem.
Os meios de comunicação fabricam os acontecimentos que se tornam públicos. Só
são selecionadas ocorrências que pareçam merecer, por diversos motivos, visibilidade como
fatos notáveis, que chamam a atenção do leitor. A imprensa extrai um acontecimento, a
partir de seus critérios hierárquicos ou atribuições próprias de importância, de valor ou
pertinência sobre determinado assunto. É seguindo esse pensamento que Quéré e Neveu
pensam o acontecimento como uma construção midiática.
A hermenêutica da narrativa esclareceu e criticou os postulados ontológicos que se
ligaram à questão da construção dos acontecimentos, como comenta Neveu e Quéré. Paul
Ricoeur correlaciona acontecimento e narrativa por meio da intriga, como veremos no
próximo capítulo. O desenvolvimento da intriga, portanto, é importante para pensar a
questão do acontecimento, como construção, narrado pela mídia.
Adriano Duarte (1988) considera o acontecimento “uma espécie de ponto zero da
significação”. Duarte reconhece o acontecimento como aquele que está no lugar do
imprevisto, do improvável, pois quanto menos previsível ele for, maior a chance de se
tornar uma narrativa jornalística. Para Adriano, o acontecimento só pode ser tratado como
tal se tiver caráter excepcional. É por romper a rotina de uma causalidade conhecida ou
prevista que os episódios se tornam “dignos de ser registrados na memória.”
20
DEJAVITE, 2001, p. 207.
27
Os acontecimentos jornalísticos, portanto, são reconhecidos pelo excesso,
anormalidades, falhas ou inversão da ordem. Adriano Duarte afirma que o discurso
jornalístico fundado neste tipo de acontecimento faz parte do mundo dos acidentes “que
deixa vestígios e altera substâncias do mundo das coisas, das pessoas, das instituições”.
Mas não é o acontecimento por si só que funda sua própria excepcionalidade. O discurso
narrativo construído pelo jornalista é que tem esse poder. É ele que torna o acontecimento
notável e que afirma as identidades do mundo social.
Adriano Duarte chama esses acontecimentos provocados pela narrativa jornalística
de meta-acontecimentos. Para ele, o que torna o discurso jornalístico perceptível é a sua
própria lógica de noticiar e informar, como uma fonte baseada na verdade autônoma de
outras experiências do mundo. Neste sentido, não basta apenas haver falhas, excesso ou
inversão da realidade ordenada. O que instaura poder e visibilidade aos fatos é a ordem do
discurso ou suas representações cênicas, como descreve Duarte. Os meta-acontecimentos,
para o autor, não são apenas gerados pelas “regras dos acidentes da natureza”, mas são
dados a partir das regras do mundo simbólico da enunciação.
Duarte chama atenção para a questão da ordem. Se os meta-acontecimentos para ele
são acidentes que rompem com a ordem de funcionamento da realidade, ao mesmo tempo a
narrativa jornalística tenta ordenar este acidente a partir dos seus regimes enunciativos. A
meta-enunciação jornalística que da visibilidade ao acontecimento, destaca a desordem a
partir da lógica da ordenação. Assim, a maneira de informar o acidente é o seu
enquadramento, tornando a narrativa um discurso partidário, que anula as contradições, ao
invés de ressaltar a desordem do mundo.
Há ainda que se considerar uma espécie de prazer pela notariedade da informação.
Em busca de tornar visíveis cada vez mais os acontecimentos, os jornais os ordenam de
forma espetacular. Cria-se, então, um novo acontecimento que já não é mais o discurso
informativo sobre um acidente, mas uma narrativa enunciada por um jornalista e por uma
empresa de comunicação que possuem seus próprios valores e que formulam seus próprios
juízos. Para Adriano Duarte
21
, a mídia, ao informar, não apenas confere notariedade
pública, mas realiza “novos atos ilocucionários” a partir das suas regras enunciativas em
busca de determinada ordem.
21
RODRIGUES, Adriano, Comunicação e Linguagem, O acontecimento. Adriano Duarte Rodrigues, CECL,
1988
28
Mouillaud, neste sentido, se aproxima de Duarte pois acredita na importância de
perceber no acontecimento a ordem do seu discurso.Pois para entender um acontecimento é
preciso conhecer o fluxo que o conserva no tempo, que envolve múltiplas formas de
informar. Porém, como percebemos, Neveu e Quéré levaram mais em consideração a idéia
de teatralização provocada pela mídia, o que é bastante relevante considerar ao analisar o
acontecimento. Mas importa para nós neste trabalho perceber o acontecimento como um
modelo de informação, como propõe Mouillaud. È claro que o fait divers será considerado
também como modelo. Nossa maior ênfase será observar a construção narrativa do jornal,
entendendo a forma de espetacularização do fato, mas além disso, considerar
especialmente, o fluxo narrativo que existe no acontecimento “chacina da Candelária”.
A partir disso, podemos dizer que O Globo não seria só um lugar de
reconhecimento do episódio da Candelária, mas também de busca por respostas a
questionamentos sobre o caso, funcionando como organizador das múltiplas vozes
envolvidas neste debate. Noticiar o acontecimento é, portanto, apresentar informações
selecionadas que geram formas diferentes de compreender a ocorrência, reforçando
estereótipos ou provocando novas leituras sobre formas naturalizadas do mundo.
2.2. O senso comum e a instauração da ordem midiática no acontecimento.
Falar em acontecimento produzido pela mídia é, em última instância, como vimos a
partir dos autores enunciados no item anterior, se referir à produção de significados a partir
das presunções do senso comum.
Clifford Geertz (1997) em “O senso comum como um sistema cultural”. refere-se ao
senso comum como parte de um sistema cultural construído por práticas herdadas, crenças
e juízos habituais. Para Geertz, todos os agentes portadores de linguagem que aplicam
significados aos objetos culturais a partir das experiências vividas são participantes deste
sistema. O senso comum nasce, então, a partir de reflexões sobre essas experiências da vida
cotidiana dos sujeitos, ao contrário da ciência, que necessita de experimentações empíricas
e de uma reflexão calculada, para que se provem suas evidências. Ao senso comum, só
basta mesmo a experiência, para que apareçam as concepções de verdade, mas nada é
comprovado. O que o afirma é o seu poder de repetição. Diz Geertz: “o mundo é a sua
29
autoridade”. Tal repetição naturaliza os sentidos e culmina em padrões de juízo pré-
definidos, em valores pré-conceituosos.
O poder de revelação do acontecimento, dado por um mediador como o jornal,
contém uma autoridade mundana, onde sua objetividade em pronunciar os fatos e suas
técnicas de ordem se misturam a esta composição do sistema cultural, que se baseia, como
mostra Geertz, apenas em crenças consolidadas. A proclamação da experiência, ao mesmo
tempo em que reafirma, provoca e retifica estereótipos e normaliza preconceitos, também
empobrece determinadas experiências.
O fio condutor que interligaria os acontecimentos do presente a outros semelhantes
ocorridos no passado, por um lado produz a banalização da experiência, por outro induz o
público a digerir com mais facilidade aqueles temas que fazem parte do seu quotidiano.
Afinal, a existência de eventos semelhantes no passado induz a pensar que a realidade se
repete em um contínuo, formando uma espécie de capa protetora, já que há uma
naturalização de seus efeitos perversos. Outra contribuição para tal banalização se dá pela
lógica da instantaneidade. Quanto maior for o bombardeio de notícias e a rapidez com que
elas aparecem na mídia, mais naturalizados serão os acontecimentos
22
.
A naturalização dos fatos contribui também para a afirmação da imagem dos
sujeitos sociais a partir do senso comum. O problema está na dificuldade do leitor de
entender o que é contraditório por já estar impregnado pelas experiências comuns. Tratar a
realidade de forma diferente, como diz Geertz, é mais do que uma surpresa empírica, é um
desafio cultural, no mundo onde o aceitável é o que é comum. A familiaridade nos cega,
segundo o autor, quando ficamos imersos no cotidiano.
Quando pensamos no episódio “Candelária”, observamos que a realidade construída
pelo jornal O Globo a respeito de menores de rua teria de ser diferente, pelo menos desta
vez. Aqueles que eram sempre tratados como marginais e naturalizados por questões de
senso comum, como parte excluída da sociedade (e nessa categoria excluído também do
discurso dos jornais), sofrem um crime violento praticado por policiais a mando de
“pessoas de bem” (percepção naturalizada pelo senso comum). O Globo constrói uma
argumentação de causa e efeito entre os meninos de rua e razões sociais possíveis de gerar a
22
E no caso das notícias sobre violência, isso interessa ao Estado, no sentido ampliado de Gramsci (1991).
Tem-se uma ação de natureza política, cuja ação dos meios de comunicação é fundamental, como veremos no
capítulo x.
30
chacina. As primeiras reportagens tendem a relatar a investigação sobre o fato,
considerando questões primordiais referentes aos direitos humanos.
Em defesa às vítimas, os títulos do jornal declaram: “Protetores de crianças culpam
políticos e governos”, “A culpa é da indústria do menor”, “Itamar quer recolher menores
das ruas”, “Justiça critica investigação policial”.
23
Mas quando esse assunto vai se
esgotando para o jornal, os menores voltam a ser chamados de “pivetes”.
Depois de um ano, no entanto, o jornal anuncia: “Candelária, um símbolo do
medo”.
24
A matéria procura retratar as condições dos menores que continuam dormindo nas
proximidades da igreja e destaca o trauma e o medo que ainda sentem. A Candelária passa
a significar a proximidade da morte. Uma entrevista com um sobrevivente da chacina,
identificado como “B”, é particularizada no texto:
23
Matérias de O Globo, 24 e 26 de julho de 1993. Grifos nossos.
24
Matéria de O Globo. Domingo, 17 de julho de 1994.
31
Faz parte do grupo o único sobrevivente da chacina (....) B.,
19 anos, um dos
líderes do grupo de 72 crianças e
adolescentes que dormia
amontoado por volta de 1h da
madrugada de 23 de julho, a hora do massacre.”
25
E continua descrevendo “B”:
Homossexual, “mãe” de diversos meninos de rua, B. anda
pela rua sem qualquer segurança – assim como outras
testemunhas da chacina - e sente saudades dos “bons
tempos” em que morava na Candelária.”
É fácil perceber a forma como o repórter tipifica o menor na sua narrativa: alguém
que é líder de um grupo que dorme amontoado, homossexual e “mãe” de outros meninos.
As descrições valorativas já começam a marcar o lugar original da desordem pública
imaginada pela sociedade, a qual pertencem esses “menores de rua”. Não por acaso o
repórter fala da convicção de B. em saber que qualquer dia algum anônimo, como os
outros, irá voltar para matá-lo. Provavelmente, inclusive, o B. citado pelo repórter possa ser
Bilinha, o rapaz assassinado seis anos depois da chacina em frente à Candelária, como uma
espécie de conclusão do crime cometido anteriormente.
Mais adiante a matéria descreve, em uma retranca, a má conduta deste menor, o que
seria motivo de ele estar perto da morte: “Remanescente do grupo acumula inimigos”. O
texto começa com a frase: “B. está cada vez pior”. A constatação é do próprio produtor da
notícia, que com seus próprios valores e a partir de sua apuração, sentencia. E continua:
“Único sobrevivente da Candelária, ele acumula inimigos
com uma impressionante facilidade. Há cerca de um mês,
seu temperamento violento deu prejuízo ao dono de um carro
estacionado em frente á igreja. Depois de
cheirar cola
durante mais de uma hora, B. se envolveu numa briga com
outros menores e irado,
estilhaçou o vidro lateral de um
Fusca
com uma cabeçada. O guardador, como sempre, nada
pôde fazer – a não ser tentar explicar o inexplicável ao dono
do carro.”
26
Esse pequeno trecho da matéria mostra a preocupação em caracterizar a ação
violenta do menor, capaz de estilhaçar o vidro de um carro com uma cabeçada. A matéria
segue justificando o fato de B acumular inimigos com “uma impressionante facilidade”.
25
Idem.
26
Idem.
32
São suas ações violentas e fora da ordem (cheirar cola durante uma hora, envolver-se em
briga e estilhaçar o vidro com a cabeça, ações particularidades num crescendo) que
produzem seus inimigos. Assim, o jornal vai construindo o desfecho da trama, mesmo
aquela que ainda não figura na noticia. O temperamento violento de B. o levará,
certamente, a morte. A morte do menor, portanto, já está anunciada no texto – como
possibilidade – antes mesmo de seu acontecimento.
Se a princípio a matéria tinha o objetivo de evidenciar o medo dos menores, como
diz o título, este aspecto é diminuído pela narrativa, que busca mostrar com seus
argumentos, modelados pelo senso comum, a vida dos meninos como “B”.
Em de agosto de 1993, uma semana após o assassinato dos menores, a narrativa
sobre o medo é mais participativa da causa dos menores. Talvez por ser muito próxima do
acontecimento fundador, a descrição desses sujeitos não recebe rótulos significativos ou
ironias pertencentes ao mundo do senso comum, como na matéria anterior. O título
particulariza: “Menores enfrentam noites de terror”. Tal como a anterior, o medo de os
menores continuar morando nas ruas quase não é abordado. Observa-se na narrativa o
caráter denunciador, perambulando por entre o texto. Mas nas descrições destaca-se a
contradição: se inicialmente o objetivo é tratar do medo sentido pelos menores, em função
33
da chacina, transmite para o leitor o mesmo sentimento quando narra, na maior parte do
texto, a rotina de roubos, a divisão em gangues e a luta pela sobrevivência dos menores.
Neste sentido, embora vítimas recentes da violência, aparecem como sujeitos transgressores
e agentes do medo para a sociedade. O medo rapidamente troca de lugar.
Assim, o lead particulariza:
“Amedrontados desde a chacina da semana passada, os
menores de rua
evitam circular durante á noite e, quando o
sol se esconde, se
refugiam nos abrigos que eram evitados
anteriormente. Exterminar é a palavra mais comum entre os
menores de rua. ‘Tombaram na Cinelândia, os
exterminadores podem passar por aqui’ - são frases comuns
entre grupos espalhados na cidade. No entanto, o medo que
chega com a noite não atrapalhou o dia-a-dia. Banho em
chafariz, pedido de comida, briga entre turmas rivais,
pequenos furtos –
tudo continua na mesma”.
Nesse pequeno trecho observa-se a construção de duas tipologias narrativas,
pressupondo a possibilidade de repetição do mesmo acontecimento. Os verbos evitar e
refugiar mostram as ações dos menores, como estratégias, diante da possibilidade da
repetição do acontecimento da semana passada: a chacina. Ao mesmo tempo, ao descrever
o quotidiano dos menores – banho no chafariz, pedido de comida, brigas e furtos –
permeado por ações que vão num crescendo, da sobrevivência a partir da ordem à
34
sobrevivência a partir da desordem, inserem novamente a repetição como tema da
reportagem. Em princípio, o fato de não ter se produzido a excepcionalidade – já que “tudo
continua na mesma” – não induziria a produção da notícia. Mas é exatamente a repetição
desse quotidiano que coloca em cena o medo. Se tudo continua na mesma, também
permanece a possibilidade do retorno do acontecimento da semana anterior.
Ao longo do texto, uma coluna é separada em destaque na matéria, onde são
listadas expressões usadas pelos menores. Este pequeno boxe representa claramente uma
determinada tipificação dos menores infratores, que usam palavras específicas para
caracterizar seu dia a dia.
Mas, embora a ênfase dada aos valores preconceituosos do senso comum seja menor
na matéria mais próxima ao acontecimento, a diferença entre esta e a de 1994,
anteriormente discutida, fica ainda mais evidente ao reproduzir a voz de uma autoridade
que responde por esses menores.
“Segundo os educadores do Centro Brasileiro de Defesa dos
Direitos da Infância e Adolescência (...) uma das características mais comuns dos menores é se
fixar em regiões comerciais, onde obtém alimentos com mais facilidade”. A matéria se encerra com
a fala da coordenadora do departamento de pesquisa:
– “Os grupos são mutantes e as crianças também. Tem
épocas que roubam e cheiram cola e, de repente se afastam e
apenas pedem dinheiro para conseguir comer. Por isso, é
muito precipitado e incerto dizer que são futuros marginais.
Hoje, o universo deles é tão pequeno que, no máximo,
pensam em ser caminhoneiros e cabeleireiros - finaliza a
coordenadora.”
As marcas do senso comum são diminuídas por esta fala. Embora apareçam
vitimizados pelo medo, ou pelo meio de sobrevivência social, a narrativa do jornal enfatiza
a rotina de roubos, agressividades e badernas provocadas pelos menores, seja uma semana
ou um ano depois do acontecimento. A maior diferença é que a narrativa com
temporalidade próxima ao acontecimento, e que carrega o sentido de vítimas em lugar de
culpados, cria espaços para crítica do leitor aos valores do senso comum, a partir de
discursos introduzindo uma espécie de outro lado da história. Mas, com o passar do tempo,
são as falas cristalizadas e os valores cotidianos que ganham novamente maior espaço nos
jornais.
35
Em outra reportagem, do dia 21 de abril de 1996, marcada pelo julgamento dos
policiais acusados, o que se destaca mais uma vez é a classificação dos menores como
marginais e drogados. Sob o título “A nova geração de meninos de rua da Candelária”, o
jornal procura mostrar que, três anos após o episódio da chacina, o típico menino de rua que
habita a Candelária não mudou.
“Olhar de Maluquinho. Menino maluco. Sob a chuva fina,
ele corre entre os carros, enxuga o nariz com um gesto
rápido e pára em frente à cruz de madeira. Está de bom
humor. A “zoeira” do último “bagulho” (cigarro de
maconha) já passou. Como se pudesse se defender do frio,
sem blusa e sem sapatos, abraça o próprio corpo,
encolhendo de tamanho até parecer ainda menor do que é,
apesar de seus 15 anos. Maluco faz parte da nova geração
de meninos e meninas da Candelária.”
No boxe integrante da matéria, a testemunha principal do crime, Wagner dos
Santos, que embora exilado na Suíça comparece ao julgamento, é tratado, com pesar, como
uma pessoa sem família e sem casa. O título demonstra que a matéria dá maior ênfase ao
“pobre rapaz”, que tem sonhos impossíveis, do que ao fato de estar exilado, correndo risco
de vida por um crime que testemunhou. A primeira frase deste texto é significativa e
36
dramática. “Uma casinha, uma namorada. Uma família. Sonhos simples de um homem
perto de completar 25 anos, que se acha velho demais. Ele fala pausadamente, numa
gagueira adquirida depois da dramática noite da chacina da Candelária.” Os desejos de
Wagner contados dessa forma e todas as suas falas conhecidas nessa pequena entrevista
representam o menor caracterizado, tipificado pela imprensa. E assim, as impressões do fait
divers ganham maior espaço diante de um assunto de relevância para a sociedade.
Reconhecemos a partir destas análises a necessidade de separação do que faz parte
de determinada ordem social,em contraponto ao que compõe o lugar de uma significativa
desordem. Tais diferenças são garantidas pelas narrativas do cotidiano, que alimentam as
idéias do senso comum de nossa sociedade.
2.3. Ordem x Desordem
O caso da chacina da Candelária, portanto, também está envolvido em um processo
de construção da notícia. A morte dos menores narrada pela imprensa teve de ser encaixada
em padrões de fazer jornalismo, tanto como atribuição técnica, quanto como incorporações
de valores culturais e históricos que pertencem ao mundo midiático. E sob esta realidade
midiatizada existe uma divisão entre aquilo que é puro ou impuro, partindo essa escolha
dos sentidos humanos. A pureza é o ideal, incita ordem, e a impureza é o abominado,
precursor da desordem. A desordem pode ser organizada se mudar de lugar e a ordem
também pode tomar destino contrário. O desejado, o sonho, é sempre da ordem. Espera-se a
ordem no lugar da desordem. Mas a desordem faz parte da nossa relação e processo de
vida. A esperança em manter a ordem, portanto, pensando especificamente nas questões
desse trabalho, é tentar consolidar sempre um “receituário”, onde se organizam os
ingredientes do senso comum.
Para Bauman, “o mundo dos que procuram a pureza é simplesmente pequeno
demais para acomodá-los”. Esse mundo não será suficiente para mudar a pureza para um
outro lugar, sendo necessário queimá-las, envenená-las, despedaçá-las, passá-las a fio de
espada. E continua: “
Mais frequentemente, estas são coisas móveis, coisas que não se cravarão no
lugar que lhes é designado, que trocam de lugar por sua livre vontade. A dificuldade com essas
coisas é que elas cruzarão as fronteiras, convidadas ou não a isso”.
37
Para ele, as pessoas controlam a sua própria localização, zombam, assim, dos
esforços dos que procuram a pureza para colocarem as coisas em seu lugar e, afinal,
revelam a incurável franqueza e instabilidade de todas as acomodações. E Bauman enfatiza
essa relação afirmando que os impuros (como baratas, moscas, aranhas ou camundongos), ,
em momento algum, “podem resolver partilhar um lar com os seus moradores legais (e
humanos) sem pedir permissão aos donos, são por esse motivo, sempre e potencialmente,
hóspedes não convidados, que podem, desse modo, ser incorporados a qualquer imaginável
esquema de pureza.”
27
Seguindo a lógica do pensamento de Zigmunt Bauman a partir das idéias de Mary
Douglas, há que incorporar ao acontecimento “Chacina da Candelária”, os desdobramentos
desta reflexão. As crianças da Candelária mudam de lugar – de marginais a vítimas da
violência –, ganhando outro enfoque nas matérias de O Globo. Os principais suspeitos e
réus confessos não são mais os que ocupam lugar da desordem, mas aqueles que deveriam
lhes defender e que foram treinados para manter tal organização. A polícia do Rio de
Janeiro passa a ser a maior referência do acontecimento no momento imediato em que é
narrado o fato. As matérias evidenciam com espanto o fato de o crime ter sido cometido por
aqueles que, em princípio, teriam os pés fincados no lugar da ordem. Os títulos são
reveladores: “Policiais são suspeitos da Chacina da Candelária”, “Presos três PMS
suspeitos da chacina de 7 menos na Candelária”,
28
“Identificados 3 PMS chacinadores”,
29
“Chacina tem mais suspeitos, todos PMS”.
30
30
Título da matéria de quarta-feira , 28 de julho de 1993, seção Rio de O Globo, p.13.
27
BAUMAN, op. cit., pp.14-15.
28
Títulos das matérias principais de sábado, 24 de julho de 1993, O Globo, RJ.
29
Título da matéria de segunda-feira de O Globo, seção RIO, p.7.
38
Essa troca de referência do olhar que organiza o mundo em torno de modelos de
pureza se torna ambígua. O mundo seguro e armado não se vê livre de criticar o que
considera modelo de ordem. Sendo assim, ao mesmo tempo em que a imprensa tende,
como já comentamos, a abordar a ordem, cria neste momento um espaço para o olhar de
estranheza. Bauman diz que a ordem só apresenta uma qualidade saudável por ser evidente
e aceita sem muito esforço de reflexão. Assim, para o autor, torna-se uma situação
despreocupante até que alguém imponha dúvidas, questione seus fundamentos ou
demonstre suas esquizofrenias. Então, é neste sentido que Bauman fala sobre as questões de
estranhamento, pois, segundo ele, a chegada de um estranho causa um terremoto. E termina
a reflexão, enfatizando a questão do estranhamento do cotidiano: “o estranho despedaça a
rocha sobre a qual repousa a vida diária.”
31
O jornal O Globo teve papel fundamental para ressaltar o espanto sobre a
participação da polícia no crime. “Os PMS chacinadores”, como assinala o título de uma
das matérias da primeira semana, foram o alvo principal do jornal. Mas além da
classificação “chacinadores”, que é usada para aqueles policiais especificamente, os
acusados do crime não recebem muitos estereótipos no texto, em comparação ao que
acontece com a classe impura de “menores de rua”, muitas vezes chamados de “marginais”,
por exemplo.
Ao mesmo tempo, outra questão contraditória pode ser reconhecida neste episódio.
Havia muitos comentários na época a respeito do envolvimento de comerciantes da
redondeza da Candelária que queriam varrer os menores que perambulavam por ali,
cometendo infrações. E inclusive, algumas vozes narradas pela revista Isto É demonstram
satisfação com a morte dos menores pela população do Rio de Janeiro. O Globo não
comenta o assunto. Apenas três matérias se aproximam desta possibilidade. A publicada em
30 de julho daquele ano, x dias após a chacina, e intitulada --------, particulariza a suspeita
do procurador geral da defensoria pública, achando que o risco que os policiais correram só
seria válido se houvesse envolvimento de dinheiro.
32
A matéria revela uma suspeita que
aparece três anos antes: a esposa de um policial que havia sido atropelada ao fugir de um
dos menores que queria assaltá-la teria desencadeado a vingança.
33
E a terceira, mais
itoria Rio, 30 de julho de 1993, p.13.
31
BAUMAN, op. cit., p.
32
Matéria de O Globo, ed
33
Matéria de O Globo, editoria Rio, 12 de junho de 1996, p.17.
39
significativa, publicada x semanas depois da chacina, “Matar um menor pode custar
CR$1milhão”,
34
começa com a declaração de ex-policiais confirmando o extermínio como
“um serviço encomendado”. Esta aparente denúncia da existência de um grupo de
extermínio é justificada na mesma cobertura em uma matéria secundária que enfatiza: “ A
cada meia hora, um furto no Centro”. No desenvolvimento do texto o delegado da 3ª
Delegacia de Polícia (bairro do Castelo), enfatiza: “(...) O problema é social e não se pode
ter ilusões de que medidas extremadas possam resolver o problema. Enquanto persistir
tamanha desigualdade, o problema continuará.”
Neste pequeno exemplo, podem-se observar as vozes discordantes existentes numa
mesma narrativa jornalística. Enquanto o título – A cada meia hora, um furto no Centro –
apresenta-se como uma espécie de justificativa para a existência do grupo de extermínio, no
interior do texto uma outra voz apresenta a questão como sendo fruto da desigualdade
social.
34
Matéria de O Globo, editoria Rio, 1 de agosto de 1993, p.16.
40
De um modo geral, podemos perceber que os “desejáveis de morte”, e responsáveis
pela desordem, como enxergam os portadores de senso comum, ainda que vítimas de um
crime violento, não são completamente absolvidos. Aqueles que freqüentemente são
abordados por supostos moradores de rua, crianças e adolescentes que assaltam para
sobreviver, não se conformam em vê-los ao seu lado, pois na sua memória estes são seres
da impureza. E não é por acaso que uma das primeiras reportagens sobre o crime enfatiza:
“Menores mortos em operação limpeza”.
35
Sobre esta impureza, Bauman afirma que a sujeira desafia os propósitos e esforços
de organização. O autor comenta que as pessoas investem freneticamente suas forças na
separação, confinamento, no exílio ou na própria destruição dos estranhos e os compara a
35
Matéria de O Globo, editoria Rio, 28 de julho de 1993, p.17.
41
animais nocivos e bactérias. Bauman não se surpreende que tais pessoas comparem suas
intenções e ações a rotinas higiênicas. E demonstra seu argumento a partir de uma
afirmação valiosa para a discussão que propomos: “combateram os estranhos, convencidos
de que protegiam a saúde contra os portadores de doença.”
36
Os termos que usa Bauman, como “animais nocivos”, “bactérias”, faz-nos também
lembrar dos estigmas usados para caracterizar os tipos de pessoas. Estes não são muito
diferentes dos usados pelos jornais para falar geralmente dos “meninos de rua”,
“marginais” ou “pivetes”. O estigma é esse tipo de marca negativa associada a
determinados grupos ou pessoas que passam a carregar esses traços de negatividade,
cristalizados pelo discurso narrativo.
37
Como a organização narrativa da imprensa de modo geral parte de questões do
senso comum, essas marcas são naturalizadas. No entanto, embora exista toda essa relação
sobre os esquemas de narrativa dos acontecimentos produzidos pela imprensa (sua
autoridade, técnicas de narrativa, compromisso com objetividade, relação com a memória)
e embora haja o sonho da ordem e uma arrumação hermenêutica do acontecimento a partir
dos conceitos cotidianos apenas experimentados e naturalizados na vida, a construção da
realidade não é apenas dada ou ordenada. Existe uma luta para que permaneça o fluxo dos
acontecimentos no tempo: uma luta por hegemonia. Embora na forma narrativa hegemônica
da imprensa as identidades pareçam fixas, não são, pois fazem parte de um fluxo de
constante mudança. Sabemos também que no mundo da representação tudo se constrói a
partir de um jogo de disputa pela significação, localizado na arena do discurso.
38
Se as identidades não são fixas, fazendo parte de um fluxo de constante mudança,
como algumas categorias vêm sendo preservadas na arena do discurso narrativo, como
práticas herdadas dentro do sistema cultural de que fala Geertz?
Stuart Hall, em seu livro Da Diáspora, trabalha com as questões de luta e poder
cultural a partir do conceito de ideologia. Para Hall, as classes sociais usam a ideologia
36
Idem, p. 19.
37
Sobre estigma, ver GOFFMAN (1978).
38
Vale ressaltar que estamos tomando hegemonia, aqui, no sentido proposto por Gramsci: como uma relação
entre sujeitos que implica em força e consenso. Ou seja, a dominação da hegemonia só se completa através de
processos de negociação, em que aqueles que estão fora do lugar hegemônico exercem sobre este uma contra-
hegemonia, em uma perspectiva dialética da história. Assim, não se pode entender os processos de dominação
social dentro da dicotomia reducionista de conformismo e resistência, mas como um jogo de interações
sociais, em que todos os envolvidos participam enquanto sujeitos sociais concretos, e não como ativos e
passivos.
42
para dar sentido ou funcionamento às suas vidas.
39
Este senso comum ideológico pode ser
pensado na forma de instrumento cultural que se manifesta na disputa por significação das
classes no espaço onde o discurso se apresenta. Para entender as questões de luta ideológica
e chegar a uma resposta para nossa pergunta anterior, precisamos primeiro pensar sobre a
teoria do signo ideológico de Bakhtin, assim como fez Hall. Para Mikhail Bakhtin, além
das questões da herança da fala, como a polifonia
40
que mantém harmonicamente, em um
elo de cadeia, vozes dos discursos dialogando com outros discursos e sendo reconstruídos
sempre como heranças da fala, foi mais valioso para Hall pensar que todo signo é
ideológico e que o dialogismo (elos em cadeia) é o que faz as vozes interagirem no interior
do texto, gerando significados e novos valores.
A partir dessa visão, Hall propõe reflexões acerca da importância da arena de
conflito, onde aparecem lutas de resistência, batalhas por significar. Se todo signo é
ideológico, como afirma Bakhtin, a ideologia é uma luta pela significação. Portanto, nas
narrativas, onde tais significações emergem como embates, há um lugar de visibilidade por
esses jogos de força e poder. O discurso narrativo, portanto, é uma arena ideológica, no
qual se apresenta também a produção de hegemonia (levando-se em conta que toda
hegemonia pressupõe a contra hegemonia), deslocada no fluxo dos acontecimentos.
Neste sentido, como aponta Stuart Hall, o conceito de dialogismo recuperou e
ampliou os limites da contradição dialética e da razão dualista ao oferecer uma
interpretação ampliada e múltipla dos sentidos.
41
A rigor, a ampliação da questão da
dominação já tinha sido operada pelo pensamento de Antonio Gramsci, ao conceber a idéia
de hegemonia sempre a partir de um duplo, ou seja, visualizando as ações contra-
39
STUART, Hall (2003, p.267). O autor está trabalhando com o conceito de ideologia no sentido proposto
por Bakhtin: uma prática discursiva, “arena onde se desenvolve a luta de classes”. Para ele, ideologias são
sistemas de representação, mas também práticas concretas.
40
A polifonia é esta variedade de vozes dentro de um texto, em contradição transformando-o em diálogo.
Todo discurso sempre está relacionado a outro discurso. Nem sempre é conhecida dos autores a existência em
seu texto de outras vozes, estas podem estar muitas vezes explícitas em citações ou referências, mas também
se manter ocultas. Qualquer discurso sempre estará, desta forma, impregnado pelas vozes de outros discursos
com os quais ele dialoga. Com relação a estes enunciados que antecedem, Bakhtin diz que "o locutor não é
um Adão bíblico, perante objeto virgem". (BAKHTIN, Mikhail, Estética da criação verbal, São Paulo,
Martins Fontes, 1992, p.314)
41
HALL, op. cit., p. 235.
43
hegemônicas. A luta por hegemonia é, portanto, uma luta de e pelo poder, mas é também
uma questão de resistência cultural
42
.
Para Hall, a idéia de dialogismo amplia a dialética do pensamento gramsciniano. O
princípio dialógico de Bakhtin propõe o sentido de que a natureza das coisas se transforma
a partir de um elo de cadeias tanto das coisas passadas, como das futuras, em um presente
que é único no tempo. Este presente é construído pelo conflito de múltiplas realidades, não
apenas dialéticas, mas dialógicas.
Assim, o discurso do jornal O Globo a respeito da chacina da Candelária tende a ser
hegemônico por escolha de seu público alvo, cristalizações de valores e outras lógicas
técnicas de construir narrativa, como a questão da autoridade da fala. A relação destes
discursos com a realidade dialógica não muda o curso desta lógica construtivista de
estereótipos e valores pré-definidos. Pela lógica dialética, percebe-se que o jornal constrói a
partir de suas narrativas, múltiplos valores em constante luta. Mas, mesmo existindo
conflitos de hegemonia, o jornal O Globo vai se referir aos menores mortos na chacina
como “meninos de rua”, “pivetes” ou “marginais”. Esses estigmas são carregados no tempo
pelo discurso dialógico que permite a prevalência de um discurso hegemônico.
Uma matéria sobre os menores moradores das proximidades da Candelária, um ano
antes da chacina, ajuda a perceber as questões discutidas anteriormente. No dia 2 de
setembro de 1992, o jornal O Globo noticiou uma suposta tentativa de assalto a turistas sul-
africanos que visitavam a catedral. O título enfatizava: “Pivetes sitiam turistas na
Candelária”, para, em seguida, o lide particularizar a ação, destacando a violência através
de palavras como “cercados”, “encurralados”. Ao mesmo tempo eles foram retirados pela
ação de “sitiar” a Candelária, transformando tudo num “pesadelo”:
Trinta e cinco turistas sul-africanos, de férias pela primeira
vez no Rio, foram
cercados por 30 pivetes ontem de manhã
durante uma visita à igreja da Candelária, no Centro. Vários
Turistas acabaram
encurralados na sacristia da igreja,
invadida pelos pivetes que
sitiaram a Candelária, à espera
de uma chance de assaltar os sul-africanos
. O pesadelo
acabou com a chegada de PMs, que escoltaram o grupo até
o ônibus da empresa de turismo Club Med.
43
(Grifos nossos)
42
A resistência se faz não por ações concretas, podendo ser percebida em atos quotidianos. Sobre o tema cf.
Thompson (1961, 1976).
43
Matéria de quarta-feira , 02 de setembro de 1992, seção Rio de O Globo, p.11.
44
Os menores expostos nessa matéria como “pivetes” reforçam o discurso
hegemônico estereotipado. Este discurso reaparece outra vez na narrativa quando o guia
turístico que acompanhava os sul-africanos declara: “os turistas ficam apavorados.
Coloquei todos eles para dentro da igreja. Mesmo assim, a situação ficou difícil porque o
grupo de pivetes aumentou – explicou Armando Bandeira”.
44
Fica claro aqui que a voz do
jornal é a mesma voz do declarante.
Ao longo da matéria cria-se um clima de tensão, onde os menores passam a ocupar
o lugar de vilões perigosos:
“A situação ficou pior para os turistas que estavam dentro
da igreja. Os pivetes cercaram a Candelária e se postaram nas
portas. Apavorados, os sul-africanos decidiram ficar na sacristia.
O grupo de pivetes entrou e houve um tumulto dentro da igreja. Um
funcionário da Candelária chegou a trocar socos com dois
menores. A solução foi seguir para o altar que estava sendo
preparado para uma missa às 11h. Os pivetes invadiram o altar
também, o que obrigou o padre Arnaldo Moreira Silva a adiar a
missa. Os menores chegaram a falar no microfone da Candelária.
Para o grupo de turistas sair da igreja foi preciso pedir ajuda ao
5ºBPM”.
44
Idem.
45
Essa narrativa continua particularizando a ação dos “pivetes” como sendo de
completa exceção. Eles não só cercaram a igreja, como impediram a saída dos turistas. Por
outro lado, a narrativa é construída apelando a valores duais: de um lado os menores
infratores, de outro os turistas indefesos. De um lado, o padre que é obrigado a adiar a
missa. E de outro, o grupo que sobe ao altar e fala ao microfone. De um lado, a ordem e de
outro a desordem.
Observa-se também que na narrativa do jornal as vozes dos menores e de
instituições que os representam são completamente apagadas. Apenas se sabe nesta matéria
que menores “pivetes” tentaram assaltar turistas, criando um clima de tensão. A causa e
motivo da atitude dos menores ou suas próprias falas não são informadas para o leitor.
Portanto, é o discurso hegemônico que prevalece. E é sob a forma hegemônica do discurso
que estes menores ficam conhecidos cotidianamente como pivetes ou marginais. Além do
mais, a narrativa dá a entender a separação entre o sagrado e o profano, a divisão entre o
puro e o impuro, principalmente quando o impuro, o “pivete”, profana o espaço sagrado, a
“igreja”, a “sacristia”, o “altar”.
O jornal não se interessa pela fala contrária e, assim, seu discurso tende sempre a
anular as contradições. O prejuízo da agência que levava os turistas para conhecer a
catedral do Rio “por conta da violência” é mais importante do que as condições dos
46
menores. A agência de turismo, a igreja, a polícia ou a imprensa tentam, assim, isolar esses
personagens na tentativa de não contaminar aqueles que ocupam o lugar da ordem.
Essas falas cotidianamente caladas aparecem nas matérias da chacina em
1993,
quando
do padre e do guia turístico na matéria em que trinta “pivetes” abordam
turistas
fala do
então c
O assalto na Catedral Metropolitana e o cerco aos turistas
Em 1993, sete dias após o bo noticia: “Cardeal
lembra
A poucos metros do local onde oito menores de rua foram
os “pivetes” trocam de lugar na luta hegemônica, passando a ser vítimas da ordem.:
“Mães procuram os filhos”;
45
“Pesquisas que provam que meninos não gostam das ruas”.
46
Os menores só ganham lugar neste momento, onde os sobreviventes, frente a um crime que
foge aos padrões e choca a população, passam a ser peças chaves para entender o
acontecimento.
As falas
para assaltar são usadas para reiterar a voz do jornalista. Ao mesmo tempo, ao
contrário, vozes como a do presidente Itamar Franco na época da chacina (“Estou
horrorizado com o crime”
47
) criam a chance de tentar comover os leitores. Governador,
vereadores, secretários de segurança, estudantes, o Papa, todos se manifestam em defesa
dos menores e contra o crime, e todos ganham lugar nas edições do jornal O Globo.
A matéria de 1992 afirma o assalto (sem ocorrência) e reproduz no texto a
ardeal arcebispo da cidade, Dom Eugênio Salles:
sul-africanos por menores infratores na Igreja da
Candelária revelam o clima de violência na cidade, segundo
o cardeal-arcebispo (...) – É difícil, mas continuaremos a
fazer o bem, apesar dos obstáculos – disse o cardeal. Dom
Eugênio informou que já pediu à Pastoral do Menor que
atue junto ao grupo de meninos e meninas que vagueiam nas
mediações da Igreja da candelária.
48
acontecimento da chacina, O Glo
Herodes e pede punição”. O lead diz:
chacinados na sexta-feira passada, o cardeal-arcebispo do
Rio, dom Eugênio Salles rezou ontem a missa de sétimo dia
pelas vítimas da chacina. Na homilia, dom Eugênio lembrou
Herodes, o rei dos judeus que mandou matar todas as
crianças para eliminar o Rei dos Reis. O cardeal pediu
45
Título da matéria de sábado, 24 de julho de 1993, O Globo, RJ. p. 9.
46
Matéria de domingo, 01 de agosto de 1993, O Globo, RJ. P. 19.
47
Matérias de sábado, 24 de julho de 1993, O Globo, RJ, p. 10.
48
Matéria de quarta-feira , 02 de stembro de 1992, seção Rio de O Globo, p. 11.
47
punição dos culpados e disse que a Pastoral do Menor está
acompanhando as investigações.
49
Estes dois relatos reproduzindo a fala de um mesmo personagem, o cardeal
arcebis
po do Rio, servem para pensar em uma instância importante na construção narrativa
do jornal: a memória. Trata-se de uma instância de mediação fundamental, pois se encontra
em uma relação de lembrança e esquecimento operada coletivamente pelos sujeitos,
envolvendo a produção de presentes, ou seja, de fatos sociais que permitem uma
atualização, realizada por profissionais (no caso os jornalistas) portadores também de suas
próprias histórias e culturas organizadas em comunidade. O senso comum é elemento
importante na percepção desta continuidade produzida pela memória. O próximo capítulo
trata especificamente da memória da Candelária. Nele vamos identificar de que forma os
valores comentados neste capítulo, que pertencem ao acontecimento da “Chacina da
Candelária”, vão reaparecer no fluxo do imaginário coletivo e consequentemente nas
narrativas dialógicas do jornal.
49
Matéria de sexta-feira, 30 de julho de 1993, seção Rio de O Globo, p. 13.
48
Parte II
“matança dos inocentes” e suas lembranças pulverizadas no tempo
.1 – Apresentação do segundo contexto: o jornal O Globo nos anos 90
anizações Globo.
O veículo atinge hoje setenta e cinco por cento dos leitores de classe A e B no estado do
A
2
O jornal O Globo, criado em 1925 é o veículo mais antigo das Org
49
Rio de
icação na década de 1990, época
marcad
pesados para aumentar a circulação dos
jornais
Comunicações LTDA , que integra hoje os jornais O Globo, Extra,
Diário
o ano,
inclusi
2.2 – Memória do acontecimento
s inocentes”, relembrado pelo Cardeal Dom Eugênio
alles na missa de sétimo dia dos menores da Candelária, é parte da história do cristianismo
Janeiro e é considerado um dos jornais impressos com maiores tiragens do país,
segundo o Instituto de Verificação de Circulação, a AVI.
Para entender a relação de O Globo com a chacina da Candelária é necessário
compreender o contexto desse jornal como meio de comun
a pela modernização das empresas de comunicação do país. Ao ser informatizado
em 1986, o jornal O Globo entrava nos anos 90 de vento em polpa. Com venda de 700 mil
exemplares, especialmente nas edições de domingo, o veículo ocupava um lugar superior
de venda em relação a outros jornais nacionais.
50
Havia assim, na época em que ocorre a chacina da Candelária um impulso das
empresas de comunicação, que investiam lucros
. Diversos projetos foram efetivados pelas vantagens do Plano Real em 1994. As
condições econômicas pérmitiram o avanço da modernização iniciada nos anos 80. A
circulação dos jornais nacionais cresceram de 4,3 milhões conferidos em 1990, para 6,6
milhões em 1995.
Em 1992, um ano antes da chacina dos menores, foi instalada pelas Organizações
Globo a Infoglobo
de Notícias e Valor Econômico e o tablóide Expresso. Além destes, a Infoglobo
incorpora também a Agência Globo e a Globo On Line. A família Marinho ganha assim,
mais um centro de comunicação além da TV Globo e do Sistema Globo de Rádio.
Os investimentos e a corrida para o sucesso, fizeram com que as Organizações
Globo lançassem em 1998 além do jornal Extra, a revista Época. Neste mesm
ve, para garantir a qualidade dos seus produtos, a empresa inaugura o Parque Gráfico
em Caxias, no Rio de Janeiro.
O episódio “A matança do
S
50
Ver “Rede Globo 40 anos de poder e hegemonia”(2005)
50
contad
ligiosas são reatualizadas no
cotidia
odes – envolveu crianças, símbolo da
inocên
antaria e com portas trabalhadas em bronze, vira um lugar de
memória não apenas por ser um patrimônio arquitetônico ou um cartão postal importante da
a pela Bíblia Sagrada, uma narrativa do livro de S.Matheus. Nele, relata-se uma
chacina liderada por Herodes, que encomenda a morte de todas as crianças com menos de
dois anos de idade, objetivando eliminar um provável rei entre os judeus. Este ato de
violência, no entanto, apreendido no tempo teológico, não é, de modo geral, lembrado pelos
cristãos com a mesma intensidade com que se lembra, por exemplo, a morte ou ressurreição
de Cristo. A memória deste fato só ganha maior sentido quando o pensamento cristão se
volta para a possibilidade de morte do Salvador, ainda quando recém-nascido, ter sido
impedida, como se acredita, por poderes divinos superiores.
A matança dos inocentes é, assim, secundária nas lembranças dos cristãos. A
história ganha relevo dependendo de como as narrativas re
no da vida das sociedades. Um momento importante, em que normalmente a sua
lembrança é acionada, é quando algum fato da atualidade é identificado como lhe sendo
semelhante. O caso da Chacina da Candelária, por exemplo, na maneira como foi
semantizado nos discursos narrativos da imprensa, remeteu a este fato bíblico por suas
semelhanças, indicando, de forma bastante expressiva, como uma narrativa pré-figuradora
atua sobre a própria configuração do acontecimento.
As mortes ocorridas na Candelária foram construídas como um fato de violência
cruel, justamente porque – tal como no crime de Her
cia. O acontecimento se deu em um local com fortes representações na cidade do Rio
de Janeiro. A Candelária é a igreja-símbolo do catolicismo carioca, impregnada de sentidos
prévios ligados à história religiosa da cidade e do país. Em relação à Candelária, existem
diversos enquadramentos de memória possíveis a partir não só da sua imagem como
catedral e monumento histórico, mas como palco de episódios importantes da vida política
e social brasileira. Foi lá, por exemplo, que ocorreu a missa de sétimo dia do estudante
Edson Luiz, assassinado numa manifestação em 1968, assim como o comício pelas Diretas
Já!, em 1984, entre diversas outras manifestações políticas. Estes episódios são parte da
história da igreja, constantemente lembrados nas narrativas jornalísticas, o que tornam o
prédio e os seus arredores um lugar de memória: espaço investido de uma certa vontade de
lembrar (NORA, 1984).
A Candelária, monumento construído no século XVIII com revestimento interior em
mármore, fachada em c
51
cidade,
pelo senso comum. Além de ser importante perceber como os jornais narram
um aco
ões da violência e dos direitos humanos, costuma lhe ser associado. Da
mesma
2. 3 - Os sentidos memoráveis do presente
ria é uma instância de mediação essencial e necessária para pensar os fatos
e sentidos, mas também cria valores e propõe
ovas reflexões a respeito do mundo e do senso comum. De acordo com Michael Pollak
(1992)
mas também por se transformar em um marco histórico e jornalístico da repressão
política, das reivindicações democráticas e da questão da violência urbana e dos direitos
humanos.
As relações de memória entre os acontecimentos devem ser investigadas a partir das
narrativas existentes sobre estes. Por isso, cabe-nos aqui pensar também na violência
naturalizada
ntecimento de significação violenta, nos interessa também conhecer o processo de
atualização da memória em um novo presente, onde outros fatos vão lembrar este
acontecimento.
Nesse sentido, não se pode esquecer que a “chacina da Candelária” ocorreu em
julho de 1993, nove meses depois de um outro acontecimento, o “massacre do Carandiru”,
que, pelas quest
maneira que ambos os fatos seriam associados a um outro, ocorrido apenas um mês
após o da Candelária, a “chacina de Vigário Geral”. Os três fatos, ocorridos entre 1992 e
1993, voltaram os olhos do mundo para o Brasil, chamando atenção para a falta de
segurança, despreparo policial e abuso de poder. Apesar de as vítimas transitarem todas no
espaço do que se costuma chamar de “marginalidade”, o tom de denúncia ganhou lugar nas
narrativas da imprensa sobre esses fatos, muitas vezes invertendo a máxima comum de que
“bandido bom é bandido morto”.
A memó
passados e presentes. Cristaliza significações
n
, a memória está intrinsecamente relacionada à identidade. Uma é constitutiva da
outra. A identidade só se constrói a partir de referências exteriores, de um Outro, e a
memória só se forma a partir de alguma identificação, de alguma referência. Quando um
jornalista descreve os fatos, ele está reconstruindo determinadas identidades (inclusive a
52
sua própria, como categoria socio-profissional), usando a memória social de algum espaço
e tempo. As representações dos fatos atuais são feitas a partir da construção de lembranças
e esquecimentos.
Na medida em que a memória vai sendo ativada, remetendo àquilo que já aconteceu,
o passado torna-se flexível e o presente um fluxo de mudanças constantes. O senso comum,
no entanto, costum
a pensar o tempo como linear e o passado como fixo e imutável. Afinal,
o que
ente pelos indivíduos. A maioria das pessoas que lembra da
chacina
não apenas das nossas ações e pensamentos anteriores,
mas tam
de que a
lembra
já aconteceu – enquanto realidade factual – não pode ser mudado. Mas os
acontecimentos jamais são pura factualidade, e mesmo o fato não pode ser entendido a
partir de uma perspectiva ingênua como se tivesse uma realidade autônoma e prévia a sua
configuração discursiva.
Michael Pollak (1992) distingue dois tipos de memória, aquela relacionada a
“acontecimentos vividos pessoalmente” e outra ligada a fatos “vividos pela coletividade”,
não presenciados diretam
, por exemplo, não viveu o episódio, a não ser através do relato dos outros, seja
daqueles que participaram do fato, seja através dos meios de comunicação. A chacina é,
portanto, para a maioria um acontecimento vivido indiretamente, mas é também, ao mesmo
tempo, parte das nossas lembranças.
David Lowental (1989), no seu célebre trabalho “Past is a foreign country”,
sublinha o fato de que reconhecemos o passado como um âmbito temporal distinto do
presente ao tomarmos conhecimento
bém da de outros, seja pelo testemunho direto ou de terceiros. Nossas memórias se
constituem não apenas do que lembramos e repetimos, mas também da história sobre
pessoas e acontecimentos que, muitas vezes, não nos dizem respeito diretamente.
A memória, pensada a partir da perspectiva clássica de Maurice Halbwachs (1990),
é instrumento de reconfiguração do passado, um trabalho de enquadramento do que
aconteceu a partir das demandas do presente. Apesar de termos a impressão
nça é uma linear repetição do passado, mudanças são constantemente geradas por
contextos sociais diversos que associam e selecionam o passado para preencher o presente e
configurar o futuro. Como indivíduos todos lembram, mas como participantes de grupos
que executam suas lembranças coletivamente. Neste sentido, a configuração do futuro se dá
a partir de enquadramentos de memórias individuais, cada uma com a sua própria
53
intensidade e pontos de vista diferentes, que são forjados a partir da memória coletiva, que
é modificada no tempo de acordo com as relações, negociações e lutas sociais.
Portanto, segundo Halbwachs, as lembranças individuais sempre se apóiam nas
lembranças dos outros, pois as consciências não são isoladas em si mesmas. A
memória
individ
s e imagens do passado, permitiu-lhe concluir que o esquema
imagem
depara. Ora, se para o filósofo os atos de percepção são participantes de um
tempo
ual é sempre contemplada a partir de quadros sociais: o indivíduo lembra sempre
como membro de um grupo.
O questionamento de Henri Bérgson (1999) a respeito das ações do cérebro no
presente, evocando lembrança
-cérebro-ação seria uma fórmula motora de funcionamento do cérebro, e o esquema
imagem-cérebro-representação, uma fórmula perceptiva. A observação de Bérgson sobre
este esquema o leva a pensar em duas realidades importantes. A primeira é relativa à idéia
que tudo acontece no presente e a outra revela que, embora exista diferença entre os
processos de ação e percepção, estes dependem de um esquema corporal, que recolhe os
movimentos, os transmite ou os retém. Para Bérgson, o estímulo que leva à determinada
percepção não depende da ação. A percepção seria um intervalo entre ação e reação do
corpo. Ecléa Bosi (1994) explica que esse intervalo dado pela percepção seria como um
vácuo composto por um conjunto de imagens, que, trabalhadas no pensamento, se
transformam em “signos da consciência”, e que o esquema nervoso central do cérebro seria
um condutor para o esquema de ação e um bloqueador da consciência quando retida a
percepção.
Ecléa Bosi particulariza uma discussão sobre a questão do tempo, diante da qual
Bérgson se
presente, dada uma relação de atualidade entre o organismo e o ambiente, cada
percepção seria um ato de novidade. Porém, o que é novo pressupõe a existência do velho,
ou seja, de experiências passadas. Neste sentido, Bérgson propõe uma oposição à percepção
atual para desenvolver pensamentos a respeito das lembranças, por acreditar que as
lembranças não aparecem da mesma forma que as percepções, elas se constituem de modo
diferente. As percepções, assim como as idéias, se dão em um presente contínuo e são
impregnadas de lembranças que não se constituem, para ele, no presente, mas em uma
relação do corpo presente com o passado, interferindo e deslocando a idéia de atualidade
nas representações. O passado chega ao presente pela lembrança, completando as
percepções e as movendo para nossa consciência. Ecléa Bosi define que “a memória
54
aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta
e invasora.”
51
A partir deste ponto, a percepção não é mais pura e a memória, para Bérgson, é o
lugar da subjeti
vidade. Mas, além da percepção, que tem seu lugar no esquema cerebral,
onde fi
periências de comportamento com
caráter
eimiana. Os estudos sobre fatos sociais levam Halbwachs a questionar os
esquem
cariam as memórias das nossas experiências adquiridas? A idéia de virtualidade de
Bérgson se aplica exatamente neste ponto. As experiências passadas não estariam mortas,
portanto, mas guardadas em um plano virtual da mente.
Ainda sobre a memória, Bérgson faz uma distinção entre dois tipos, uma que
imagina e outra que repete. Quando o corpo guarda ex
repetitivo do cotidiano, nossas ações aparecem automaticamente de modo ativo e
motor, este é o tipo de memória denominada pelo filósofo de memória-habitus. As
lembranças que ocorrem fora deste esquema, ou seja, independentes do hábito, são
consideradas aquelas que fazem referência ao passado por pura imaginação, independência
e autenticidade, como a memória dos sonhadores. Bosi enfatiza que, para Bérgson, a
lembrança é uma sobrevivente do passado e que este é conservado no espírito de cada ser
humano e vem aflorar na consciência na forma de “imagens – lembranças”. A intenção de
Bérgson, então, segundo Bosi, seria dar à idéia de memória “um estatuto espiritual diverso
da percepção”.
Mas a idéia de pureza da memória incomoda Maurice Halbwachs, herdeiro direto da
sociologia durkh
as de evocação pura das lembranças, visto que, para ele, seria impossível não
relacionar a memória aos quadros sociais que a cercam. Na oposição proposta por Bérgson
da subjetividade (espírito) e da exterioridade (matéria), a primeira relativa à memória e a
segunda à percepção, mesmo que fale de corpo, não se fala de sujeito como aquele que
interage com um exterior de experiências em um jogo de lembranças. Portanto, neste
sentido, falta em Bérgson, segundo Halbwachs, uma perspectiva de cunho social, onde os
sujeitos apareçam com diversos modos de agir, sentir ou pensar. As memórias dos
indivíduos, sobretudo, estão voltadas, para Halbwachs, aos seus relacionamentos com as
instituições sociais e disciplinadoras (como demonstrou também Michel Foucault
52
), como
família, escola, igreja, emprego.
51
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembrança de Velhos. Companhia das Letras, São Paulo, 1994, p43.
52
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1978.
55
Deste modo, o passado não pode ser mais visto como autônomo tal como aparece na
questão da espiritualidade bergso
niana, pois as memórias estão inteiramente relacionadas,
de aco
ue lembra do episódio, ao retratar, no futuro, algo relacionado a ele.
Sua lem
elária em uma reportagem sobre a gravação
do prim
rdo com Halbwachs, ao outro ou ao grupo que as induzem, fazendo-nos lembrar.
Relembrar, para ele, é reconstruir o passado a partir das imagens de hoje. Sendo assim, a
memória não seria um sonho, mas um esquema de trabalho indivíduo-social, onde a
memória do indivíduo se entrelaça à memória social, que tem por instrumento, para tal
ligação, a linguagem.
No nosso caso específico, da chacina da Candelária, podemos imaginar o jornalista
como um mediador, q
brança, neste sentido, jamais seria uma pura relação entre a percepção concreta do
passado dada no presente. Esta lembrança está relacionada intrinsecamente ao lado social
do acontecimento. O funcionamento do cérebro depende das relações exteriores do sujeito.
Não só o jornalista, mas todos os sujeitos envolvidos (de forma direta ou não) neste
episódio lembram a partir do outro ou outros.
Uma matéria do jornal O Globo do dia 22 de novembro de 1993 pode ilustrar esta
discussão. O jornal lembra a chacina da Cand
eiro capítulo de uma novela da época, transmitida pela Rede Manchete, chamada
“Guerra sem fim”. A produção da novela reconstrói as cenas da chacina, usando atores que
representavam as crianças mortas.
56
Percebe-se, assim, que o jornal lembra, a partir da gravação da novela, revivendo o
episódio pelo conhecimento do grupo social sobre a história daquele acontecimento. As
gravações feitas na rua movimentam os olhares e percepções dos pedestres, camelôs e
menores que ainda vivem ali a partir de uma interação com o contexto social que inaugura a
lembrança, neste caso, uma simulação do crime construído pela produção da telenovela. A
ampliação de tal lembrança é dada a partir das relações exteriores dos sujeitos. A novela
revive, o povo acompanha como expectador, ao vivo ou pela TV, e o jornalista amplia tal
repercussão da memória em seu texto.
Gerard Namer (1987), ao analisar as idéias de Halbawchs na obra Memoire et
Société, trata a memória como um elemento dialógico. Para ele, a memória é uma
linguagem construída pelas recordações dos quadros do passado. Aproveitando que
Halbwachs retira o peso da subjetividade e leva a discussão para o campo social, Namer
propõe pensar o sujeito que, com seu discurso, se apropria de memórias coletivas e, a partir
das praticas sociais, constrói a memória.
53
A memória fornece as referências dos
acontecimentos em determinado tempo e espaço, que são reconstruídas no presente da vida
cotidiana do indivíduo com influências sociais em constante atualização. O passado, assim,
53
NAMER, Gerard. Mémoire et Société. Paris, Lincksieck, 1987.
57
se reconstrói a partir de ações desse presente e com ele se afirmam os gêneros que
constituem os grupos, suas identidades e os elementos relativos ao senso comum. As
memórias aparecem concomitantemente em quadros propostos pela coletividade e não
puramente pelo que é de interesse individual.
Sendo assim, Halbwachs define a memória em três estágios: memória social, a que
pertence a toda sociedade; memória coletiva, a que faz parte de um grupo determinado; e
memória individual, que, embora do indivíduo não é uma memória particularizada, já que é
sempre lembrada pelo grupo, cuja natureza é social e intelectual ao mesmo tempo. Para
Halbwachs, ainda que existam diferentes maneiras de lembrar: partindo de um grupo, ou de
um indivíduo, a memória sempre estará associada aos processos culturais, históricos e
sociais. A ausência do passado no presente causa necessidade ao grupo de inaugurar um
novo tempo a partir de representações, feitas no presente, das lembranças passadas do
indivíduo. Esse ciclo de mudanças que ocorre pelo impulso da memória só acontece na
medida em que o indivíduo vai alterando seu ponto de vista dentro do grupo e,
consequentemente, seu papel na sociedade.
A idéia de “quadros sociais da memória” também é importante na teoria de
Halbwachs. Estes quadros são, para ele, os instrumentos como a língua, o tempo e o espaço
usados pelo grupo para reconstruir o passado.
54
Para rememorar é preciso usar os quadros
da memória, pois são eles que trarão sentido ao presente na reconstrução do passado. Os
quadros sociais da memória movem constantemente o percurso da memória coletiva.
Na concepção de Halbwachs, existem seis tipos de trabalhos produzidos pela
memória social. São esses trabalhos que irão nos ajudar a perceber a construção narrativa
do jornal O Globo sobre a memória da chacina da Candelária. Essas operações da memória
social se dividem em acomodação e assimilação, mudança e esquecimento, hierarquização
e legitimação.
55
Os processos de construção da memória na sociedade operados pelos
jornais diários também se evidenciam a partir destes trabalhos, citados por Halbwachs,
como veremos a seguir.
Embora cada um desses trabalhos tenha significações diferentes, eles fazem parte de
um processo e, portanto, evoluem em conjunto. Assim, antes de demonstrarmos como são
realizados, pelo jornal O Globo, os trabalhos de memória acerca do acontecimento
54
BARBOSA, Marialva. Nome do texto. 2005, Inédito.
55
idem
58
Candelária, vamos apresentá-los de forma separada, para fins didáticos. Mas, na análise,
utilizaremos estas categorias de forma dinâmica, como de fato elas se dão no processo
dialético da memória.
Comecemos pelos trabalhos de acomodação e assimilação, que têm a função de
destacar alguns aspectos de determinado acontecimento memorável e desprezar outros,
como forma de seleção e enquadramento. Tais enquadramentos se definem pela opção do
que se considera como ordenado, ou algo que não irá contra a realidade naturalizada dos
sujeitos.
Na seqüência, está o trabalho referente à mudança e esquecimento. A modificação
do tempo presente, ou da memória de um grupo, se dá a partir do enquadramento, do que é
selecionado ao lembrar. O esquecimento, neste sentido, faz parte do mesmo processo, pois
silenciar ou esquecer também são formas de selecionar a memória. Neste aspecto deve-se
observar a experiência da mudança, vivida pelo sujeito ou pela sociedade. É importante
visualizar o grau de mudança de um acontecimento quando projetado no tempo futuro, por
exemplo. O que estamos propondo neste capítulo é perceber se existem mudanças com
relação à narrativa do jornal O Globo, sobre a chacina da Candelária e seus sujeitos após o
acontecimento, ou seja, na memória que o jornal constrói a posteriori sobre o
acontecimento. Portanto, identificar a organização dos sentidos operada pelo jornal a partir
deste trabalho de memória.
Por fim, o trabalho de hierarquização e legitimação consiste em perceber as
memórias dominantes ou dominadas que garantem a narrativa do acontecimento a partir de
um determinado tipo de enquadramento da memória. Interessa-nos, assim, perceber as
memórias silenciadas que permitem ou não uma organização ideal dos sentidos. Quanto à
legitimação, sabemos que a memória constrói o presente e tem o poder de inaugurar o novo
que representa continuidade. Para completar este tipo de trabalho mnemônico os sujeitos
usam o passado, ou seja, o acontecimento fundador mitificado, para autorizar e justificar a
construção de um novo presente.
É importante, então, acompanhar estes processos de construção da memória para
entender o fluxo de um acontecimento. Os trabalhos de memória nos servirão de base para
perceber o processo da memória narrativa do acontecimento chacina da Candelária. De que
forma o jornal O Globo seleciona a memória do acontecimento? Como são tratados os
menores em memória no acontecimento?
59
3.2 – Os trabalhos da memória
Os trabalhos de memória exigem determinada organização dos acontecimentos do
passado no tempo presente. Prontifica-se, então, na mente dos sujeitos uma espécie de
negociação entre o que interessa ou o que vale a pena ser lembrado para a construção do
seu futuro. Michael Pollak (1989) afirma, sobretudo, que a memória é seletiva. A memória
é um processo de organização construída pelos sujeitos a partir das suas referências sociais,
e as identidades são afirmadas sob a forma de negociação entre enquadramentos,
esquecimentos e silêncios. As memórias – assim como as identidades – são construções
sociais e não objetos naturais, fatos que possam ser tratados fora da linguagem que as
formulam e as dinamizam. No caso da memória individual, o trabalho de enquadramento
está relacionado a manipulações conscientes e inconscientes dos afetos, dos desejos, dos
medos, das inibições. No caso da memória coletiva, esse trabalho tem a ver com as lutas de
grupos sociais pelo poder de dizer.
56
Mas a grande questão é saber: a quem cabe ser guardião da memória de uma
coletividade? Quem detém autoridade para realizar o trabalho de seleção e enquadramento
do passado de um grupo? Isto nos leva a refletir sobre o papel do jornalismo, nos processos
de semantização do real no mundo contemporâneo. É interessante pensar que a maior parte
dos chamados fatos da atualidade, aqueles que adquirem relevância social a ponto de se
tornarem fatos jornalísticos, são vividos por grande parte da população indiretamente.
A função da memória comum de um grupo é tentar guardar referências do passado e
preservar determinadas formas de identidades em um trabalho de enquadramento. O
enquadramento seria uma operação da memória sobre os acontecimentos e as interpretações
do passado que se quer salvaguardar. Este modo permanente de localizar o passado requer
segurança, credibilidade e coerência no momento em que é atualizado pelo grupo ou sujeito
que procede tal discurso no presente. O controle da memória, segundo Pollak, parte de
testemunhas autorizadas. As narrativas organizadas são propriedades de quem fala do
acontecimento, e o atualiza no presente. Portanto, o jornalista, como coletividade social e
mediador entre o fato e o leitor, interfere neste processo, não só enquadrando a memória,
56
POLLACK, Michael. “Memória, esquecimento e silêncio”. In: Estudos Históricos, 2 (3). Rio de Janeiro,
1989.
60
mas reconstruindo, assim, valores e identidades no controle da realidade. No jogo de que
fala Pollak, pode ser esquecido ou lembrado apenas o que é de interesse comum do grupo,
quando existe esse controle da narrativa dos fatos.
57
Pierre Nora diz que consagramos alguns lugares específicos como uma imposição
para guardar a memória, o que ele chama de “memória seqüestrada pela história”. No caso
da imprensa, ela é o lugar que organiza (enquadrando) as celebrações da história,
registrando os fatos, portanto, no sentido que problematiza Nora, construindo lugares de
memória.
O jornal O Globo reconstruiu o episódio da chacina da Candelária em diversos
momentos, como na época do seqüestro do ônibus 174 no ano de 2000, por exemplo, sobre
o qual falaremos mais detalhadamente no próximo capítulo. Mas, antes mesmo deste
episódio, que marca também a história do Rio de Janeiro por ruptura violenta no tempo, o
jornal O Globo traz ao longo de seis anos (1994 a 2000) uma memória pulverizada da
chacina da Candelária. A partir do momento em que o acontecimento não é mais uma
novidade, ele aparece em matérias secundárias e em tempos cada vez mais espaçados.
Neste sentido, é importante perceber o fluxo desse acontecimento no tempo, como que ele
reaparece nos anos seguintes à chacina.
A primeira matéria que remete ao acontecimento fundador “chacina” aparece
somente no ano seguinte: 1994. Nessa matéria o que relembrado não o assassinato coletivo,
mas o tipo de “vandalismo” provocado pelos menores que ainda vivem na região. O título
destaca: “Menores quebram vitral da Candelária” (O Globo, 6/04/1994). A reportagem
denuncia o ato de rebeldia de três menores que, ao serem expulsos de dentro da igreja pelo
administrador, apedrejam os vidros que representavam Nossa Senhora da Candelária. A
matéria, já no seu título, particulariza os menores como vândalos. O lead confirma ainda
mais o enquadramento memorável: “Um vitral importado, produzido no século XIX, foi a
mais recente vítima de vandalismo na igreja da Candelária. Três menores de rua que
estavam brigando dentro da igreja foram expulsos pelo administrador Raul Andreoli,
protestaram apedrejando os vidros da Candelária na manhã de ontem.”
57
Algumas discussões acerca do jornalismo como sistema cultural, atuando como uma comunidade
interpretativa do mundo, através de conceitos fundamentais como o de autoridade cultural, serão apresentadas
no próximo capítulo desta dissertação.
61
A introdução desta matéria está incompleta, pois caberia uma pergunta fundamental
para que os sentidos se completassem e não fossem anulados: protestaram contra o quê? Ao
fim do texto, o repórter informa, como ponto secundário, o depoimento dos menores, que,
detidos na Divisão de Proteção à Criança e ao Adolescente, respondem a esta questão
dizendo só terem reagido à ação do coordenador que os espancou com um pedaço de
madeira. Mas, esta parte da estória não interessa a quem apurou o fato e construiu da
narrativa. Da mesma forma, a resposta do coordenador da igreja que cala o motivo do uso
da arma de madeira contra os menores. O texto indica apenas assim: “O administrador da
igreja, no entanto, garantiu que se machucaram quando brigavam entre si”. E só. Uma
pergunta fundamental, então, para completar esta matéria e para melhorar o entendimento
do leitor sobre o episódio, seria: por que o administrador teria espancado menores com um
pedaço de madeira, o que, inclusive, fere o Estatuto da Criança e do Adolescente? Mas a
ênfase da matéria não permitiria tamanha amplitude. Isto não interessa neste momento.
Assim, a matéria legitima, em um trabalho de memória, a fala da ordem, representada pelo
administrador, em detrimento da fala dos menores/desordeiros.
A primeira matéria que remete ao acontecimento do ano anterior também silencia
sobre a morte dos menores. O apagamento da chacina é necessário para que se construa, em
oposição, a ação dos menores como desordeiros. Observa-se, pois, claramente o trabalho de
memória operado pelo jornalismo na seleção das informações para a construção da matéria:
o esquecimento da chacina em contraposição à lembrança da ação dos meninos de rua.
62
Ainda neste jogo memorável, legitima-se a fala que opera a ordem, colocando lado a lado, o
ato desordeiro, dos meninos, aparece como sendo responsável pela destruição de uma peça
rara, cara e, sobretudo, síntese da religiosidade.
No que diz respeito aos trabalhos da meria, observa-se, pois, o apagamento do
acontecimento Candelária, que só é correlacionado pelo leitor na matéria, por estar ali
presente lado a lado os mesmos sujeitos desencadeadores da ação (e da construção
jornalística), os menores, e o lugar onde se dá o acontecimento (a igreja).
Esta matéria jornalística, envolvendo os menores e a Candelária, é a primeira depois
de quase um ano de ocorrência da chacina. Acomodam-se na matéria aspectos já
naturalizados pelo senso comum. No processo de produção da memória, percebe-se
claramente uma escolha do que se considera ordem ao destacar o menor apenas como
vândalo. Observamos, também, uma assimilação, no fluxo da memória, destes menores
como tipificados sujeitos da desordem ou profanos no local sagrado. Na hierarquização da
construção narrativa, a memória da chacina é esquecida, os assuntos percussores da
desordem são minimizados e, assim, os sentidos memoráveis se repetem. Com tal
mitificação do passado, as memórias da Candelária e dos menores constroem um novo
tempo: um presente marcado por fortes traços de continuidade com as tradições do
pensamento comum estigmatizado.
3.2.1. Os aniversários como lembranças
No dia 17 de julho de 1994, o jornal O Globo torna a lembrar a Candelária e os
menores, só que, desta vez, a matéria se refere claramente à chacina ocorrida em julho de
1993. Duas reportagens são publicadas na edição de maior tiragem semanal, a de domingo,
já que, no sábado seguinte, a chacina estaria completando exatamente um ano. Esta matéria,
que inaugura a cobertura do aniversário da chacina, tem por título: “Candelária, um
símbolo do medo”
58
. Esta narrativa, portanto, reconfigura depois de um ano a imagem
cristalizada do menor, onde o ator social em foco é “B”, um dos sobreviventes da chacina.
58
Já analisamos esta matéria no primeiro capítulo. Entretanto, a nosso ver, cabe ainda uma reflexão em torno
da questão da comemoração, uma vez que com o texto o jornal está comemorando o primeiro ano do
acontecimento Candelária.
63
Não muito diferente das reportagens de maio, a memória do leitor é reativada a partir das
narrativas estereotipadas de O Globo com relação aos menores e seu envolvimento na
sociedade. “B”, o “remanescente do grupo”, como diz o jornal, continua, a partir do
trabalho de memória proposto, a acumular inimigos que desejam sua morte. O passado dos
menores demonstrado na matéria de 1992, por exemplo, quando eles abordam os turistas na
Candelária, autoriza o tratamento do repórter dado a “B”, como vândalo, ou um menor
baderneiro que está “cada vez pior”. Novamente, há um trabalho de acomodação dos
sentidos, que legitima a visão cristalizada do senso comum.
Além disso, ao promover uma rememoração a partir de uma data síntese – o
primeiro ano do acontecimento fundador – o jornal aciona uma série de aspectos
memoráveis fundamentais para a ação de comemorar. Se a maioria das vezes a lógica da
construção comemorativa serve à instauração de uma dada memória nacional, como lugar
de coexistência das memórias coletivas atuais e reservatório daquilo que resta das antigas
memórias comemorativas, neste caso, a comemoração particulariza determinados trabalhos
de memória, nos quais a acomodação e assimilação se destacam.
Há que se ter em conta ainda que as comemorações fazem parte de um processo de
construção de poder, no qual o interesse político de dominar o tempo assume papel
primordial. Através da comemoração constrói uma vez mais o acontecimento, mas
sobretudo instaura-se a sua valoração coletiva e pública, o que leva os detentores deste
poder a serem proprietários de sua própria criação. Nesse sentido, os meios de comunicação
multiplicam os atos comemorativos, pois assim não só constituem o acontecimento, como
também todos os seus sentidos posteriores.
Determinados recursos performativos aparecem nos gestos comemorativos, havendo
uma espécie de denominador comum nesses discursos: o pretenso interesse pelo passado,
uma determinada valorização da memória e uma certa inquietude diante da publicização do
acontecimento reatualizado pelas estratégias memoráveis que a comemoração aciona.
Cada comemoração se inscreve como uma espécie de tensão entre dois pontos: de
um lado responde a uma preocupação de sociabilidade, de construção ou de afirmação de
uma identidade e outro é de natureza pedagógica, cuja preocupação é transmitir, fazer
conhecer e incitar. Cada comemoração é, pois, misto de sociabilidade e de pedagogia.
A mídia ao ser criadora da comemoração e, nesse sentido, inventora de um passado
memorial toma para si o papel de promotora da própria identidade nacional e local e o
64
sentido pedagógico do gesto comemorativo. Ao fazer isso transforma a comemoração, ato
jornalístico por excelência, num ato simbólico revestido de novos gestos e significados
59
.
(BARBOSA, 1999)
No mesmo exemplar do dia 17, uma outra matéria apresenta uma entrevista feita
com a mãe de um dos sobreviventes: “Esperança na punição dos criminosos continua viva”.
O texto começa relatando a fé de D. Ana Maria em alcançar justiça pela morte do seu filho,
com a punição dos assassinos. A frase que compõe o lead descreve a lembrança da mãe
desta maneira: “a lembrança do maior deles está ao alcance dos seus olhos, na
encardida
parede do barraco onde vive, na vila São Pedro, em Inhaúma – o retrato do filho Anderson
Tomé Pereira, o Caolho, com a camisa do flamengo.” (grifos nossos)
Mesmo com o detalhe significativo do olhar de alguém que busca a ordem, e que
descrimina a desordem quando se depara com uma parede fora dos padrões do “bom
gosto”, a matéria dispõe uma observação preocupada da mãe de Anderson, que considera
um mistério nunca ter sido procurada pela polícia ou pela justiça para prestar depoimento
sobre seu filho, que, como enfatiza o repórter, foi “assassinado num dos crimes de maior
repercussão da história recente do Rio.” E continua a relatar: “Caolho esteve em casa no
domingo, quatro dias antes da chacina, e poderia ter contado alguma coisa à mãe que
ajudasse na apuração do crime. Mas ninguém se interessou em procurar Ana Maria.” A
59
Barbosa, Marialva. Meios de Comunicação, memória e tempo. A construção da redescoberta do Brasil.
65
voz silenciada da mãe do menor, ou o esquecimento da sua existência como testemunha, é
uma característica importante para pensar as articulações da memória social e do
enquadramento proposto pela imprensa. Por que questões a voz desta mãe é silenciada no
tempo presente, onde se construíam narrativas sobre o acontecimento? E por que esta voz
só vem ganhar sentido após um ano da chacina? Neste sentido, o jornalista constrói para si
e para o jornal a imagem de investigador, capaz de promover a mediação entre os sujeitos
envolvidos no acontecimento e o poder público que não atua como deveria. Ao revelar o
esquecimento da polícia em relação a uma possível fonte de investigação, mascara seu
próprio papel neste esquecimento e se legitima como o novo olhar, aquele que desnuda o
esquecido e provoca a mudança, realizando, mais uma vez, os trabalhos de memória que
estamos descrevendo aqui.
Paradoxalmente ao relevo dado na semana anterior ao aniversário da chacina,
apresentando a comemoração por antecipação, no dia em que fazia exatos um ano do
acontecimento - 23 de julho de 1994 -, O Globo diminui significativamente o espaço dado
a sua rememoração. Apenas uma matéria, que ocupa pequeno espaço de uma coluna,
lembra o episódio: “Yvone comanda vigília na Candelária”.
Segundo a narrativa do jornal, a artista plástica Yvone Bezerra de Mello produziu,
neste dia, uma manifestação junto às crianças, na madrugada, colocando velas e um cartaz
no local do crime, para reavivar a memória da população carioca. Yvone costumava
voluntariamente ajudar os menores com alimentação, roupas e outras objetos. A artista
plástica, esposa de um empresário conhecido nas relações hegemônicas do Rio de Janeiro,
sabia quem era cada um dos menores que tinha sido assassinado.
Texto final de pós-doutorado. Paris: CNRS-LAIOS, 1999.
66
Hierarquizando o assunto como menos importante, em comparação a outros temas
que ocupam espaço mais nobre, novamente o jornal enquadra a memória do acontecimento.
Neste momento em que a memória da Candelária é reativada, ficam para trás muitas outras
questões que completam seu sentido, como o envolvimento dos policiais que ainda não
haviam sido legitimamente julgados, ou as condições de refúgio em que se encontrava
Wagner dos Santos, a principal testemunha do acontecimento. Quando a memória é
silenciada, não é permitida uma organização mais completa dos sentidos dos
acontecimentos. Pulverizada, passa a inaugurar um sentido mínimo que anula realidades
importantes para pensar o fato no seu futuro.
O mesmo quadro se repete nos anos seguintes: em cada um dos aniversários
subseqüentes nem 1995 e 1996, O Globo referenciou o acontecimento através de pequenas
notas. No dia 22 de julho de 1995, o jornal informa: “Dois anos depois, um crime ainda
sem castigo”. A matéria a referência a uma manifestação promovida por organizadores não
governamentais, pedindo que o processo fosse acelerado na justiça, uma vez que ainda não
67
haviam sido julgados os acusados do crime. A manifestação aconteceu depois da
celebração de uma missa na Candelária. Esta mesma lógica de lembrança - missa e
manifestação - acontece um ano depois, em 23 de julho de 1996 quando a chacina completa
3 anos. Também neste dia, O Globo publica uma nota sem maior relevo: “Missa lembra
hoje morte de menores na Candelária”.
Se no segundo ano do aniversário do acontecimento fundador, o crime sem castigo
mereceu, pelo menos, o relevo da fotografia, na edição, no terceiro ano, a matéria se
resumiu a uma nota de dois parágrafos, publicada sem destaque na página da editoria Rio.
1995 1996
3.2.2. O acontecimento pulverizado: 1994 e 1995
Depois do aniversário de um ano da chacina, na edição de 26 de julho de 1994, o
jornal publica mais uma matéria em que traça um paralelo entre um acontecimento atual e o
massacre de 1994. Um pequeno boxe informa: “Exposição em Brasília lembra
Candelária”. Trata-se de uma referência aos menores de Brasília que, através de
apresentações artísticas, protestam contra a chacina.
68
Após essa edição, O Globo só irá lembrar novamente o episódio em dezembro de
1994. Após meses de silêncio, o foco da matéria que recupera o tema Candelária é o
atentado contra Wagner dos Santos, que, após voltar do esconderijo na Bahia, onde esteve
desde a chacina, fica apenas dois dias sem segurança e é surpreendido na Central do Brasil,
onde caminhava, por homens que atiraram em sua direção. Neste momento de
rememoração do caso “chacina da Candelária” a partir de um acontecimento envolvendo a
testemunha sobrevivente, o novo se destaca e a memória da vítima domina a inauguração
de um novo tempo, em um trabalho de memória aciona a dimensão mudança. Wagner não é
tratado pelo repórter como um menor de rua tipificado, como em outros momentos. Ao
contrário, agora ele é a vítima desprotegida. E para afirmar a importância da denúncia que a
matéria proporciona, uma coluna é reservada para a fala de Yvone Bezerra de Mello,
afirmando ser comum o atentado contra os menores mesmo depois da chacina, pois um
outro menino já havia morrido uma semana antes daquela em que Wagner foi novamente
baleado.
69
O ano de 1995 é marcado por exposições pulverizadas da memória da chacina, a
partir do sobrevivente Wagner dos Santos.
60
Nos meses de janeiro, abril, maio e outubro,
ele foi o ícone de lembranças da tragédia ocorrida em 1993. As matérias exigem a
lembrança da testemunha viva, o que na época seria muito importante garantir, pois a
superproteção dada a Wagner pela justiça era uma condição dos direitos humanos e do
possível desvendamento do crime. Enquanto lembrava ao leitor a existência da testemunha
- mesmo em coberturas pequenas -, não o tratava como um menor qualquer. Ao contrário,
O Globo mantém o assunto em pauta durante esses meses como reconhecimento de uma
peça fundamental para a acusação dos assassinos e, consequentemente, para o fechamento
dos sentidos daquele episódio. De certa forma, o jornal passa a ser guardião da memória da
Candelária ao manter vivo, aos olhos do público, o sobrevivente que corria risco de morte.
Esse movimento pode ser observado até outubro quando, finalmente, o jornal
revela: “Sobrevivente da Candelária reconhece envolvidos na chacina” (27/10/1995).
Wagner, salvaguardado também pela imprensa, reconhece as vítimas por fotos que
comprovam a participação dos policiais.
60
Com exceção da matéria de 22 de julho, em que O Globo remete aos dois anos da chacina, sobre a qual já
falamos anteriormente, e de duas matérias, respectivamente de 1º de fevereiro e 10 de julho de 1995, em que o
jornal descreve a transformação do tema Candelária em curta-metragem e músicas. No próximo capítulo,
quando nos detivermos no episódio do ônibus 174, voltaremos com mais detalhes aos diversos
enquadramentos narrativos que a memória da Candelária suscitou em outros campos discursivos além do
jornalístico, abordando também essas duas matérias citadas.
70
A partir dai, nada mais é falado no ano de 1995sobre a testemunha ou sobre o
reconhecimento dos policiais. A próxima referência que encontramos sobre Wagner
encontra-se em matéria de 1996, analisada no capítulo anterior. Nessa matéria publicada em
21 de abril de 1996, o jornal apresenta uma nova geração de “meninos de rua”, dominados
pelas drogas e pela prática de furtos. Wagner, depois de fazer sua parte, reconhecendo os
criminosos, volta a ser caracterizado novamente na narrativa de O Globo como um menor
estereotipado, pobre, sem família e sem casa. Dessa forma, mais uma vez o jornal conjuga
na produção de seus trabalhos de memória mudança e esquecimento, ao produzir uma
memória social sobre a categoria “meninos de rua”.
A fotografia que centraliza a reportagem marca um novo tempo narrativo sobre os
menores da Candelária. Parados em frente à igreja, com os braços estendidos, parecem
71
apelar para uma solução social, mas, ao mesmo tempo, sob o olhar do leitor do jornal, nessa
posição eles também podem representar ameaça. A fotografia aciona a memória dos mortos
da Candelária, ao colocar na cena os meninos vivos diante da igreja, resignificando o
acontecimento original pela construção presente.
A representação narrativa da continuidade da chacina em momentos posteriores,
provocada pela imprensa como construtora da memória social, fica clara em O Globo.
Hierarquiza-se o que interessa e no momento em que há necessidade, mas legitimam-se
também novas verdades a partir das tradicionais idéias acomodadas no mundo social.
Assim, a lembrança enquadrada pelo jornal evidencia a existência de típicos menores que
continuam dormindo sob as marquises daquele lugar.
3.2.3. As hierarquizações e acomodações em 1996.
A chacina será enquadrada pelo ato memorável do jornal somente em 28 de abril do
ano seguinte, através de uma série de três reportagens sobre violência contra crianças. A
primeira ocupa uma página do jornal, na Editoria Rio, e é apresentada sobre a rubrica
INFÂNCIA ABANDONADA”. Em seguida, particularizam: Julgamento da chacina abre
discussão sobre a violência contra menores”. E o título reforça: “Os sobreviventes do
descaso”.
O texto introdutório da matéria prepara o leitor e reforça a idéia sobre a construção
da memória selecionada pelo jornal: “Quase três anos após a chacina da Candelária, o
julgamento, amanhã, do soldado Marcus Vinícius Borges Emanuel – um dos acusados do
assassinato de oito meninos de rua em julho de 1993 - reacende a discussão sobre a
violência contra menores”. Neste sentido, é o julgamento do acusado que possibilita que os
menores, ainda moradores de rua, sejam lembrados pelo jornal.
72
O texto introdutório, que anuncia o motivo da publicação da matéria, anuncia
também “R” como o retrato do abandono. Como outros meninos, ele continua “há cinco
anos zanzando pelas ruas da cidade, ele finge ter esquecido a tragédia em que oito amigos
seus morreram”. O tom da matéria tenta proporcionar aos olhos do leitor a realidade dos
menores que vivem na rua. Fala sobre a violência que começa em casa por falta de afeto e
comenta também a inexistência de estatísticas públicas sobre abuso sexuais cometidos
dentro das casas das crianças, o que muitas vezes as impedem de voltar para casa. E o texto
denuncia: Nos institutos de recuperação, os cursos técnicos não funcionam, os salários
estão atrasados, há escassez de material e, por falta de professores, não há ensino
regular.”
Nesse pequeno trecho a respeito da realidade dos menores observa-se ambigüidade,
uma vez que, na seqüência, a matéria relacionada especificamente a um dos menores,
provavelmente, vítima desse tipo de violência anunciada anteriormente, o caracteriza como
alguém que rouba ou pede dinheiro para comer. A descrição continua demonstrando as
mesmas condições precárias dos menores, até mesmo com relação a seu comportamento. A
narrativa impressiona pelo uso de termos explicitamente procedentes do senso comum, em
um processo de acomodação e naturalização da ordem. A idéia dos trabalhos de memória é
que tal acomodação é assimilada pelo grupo que, consequentemente, tende a selecionar o
que é ordenado para ele, hierarquizando o que é adequado lembrar e legitimando um novo
advindo das idéias padrões cristalizadas pelo senso comum.
73
A repórter, em seu lead, já prepara a descrição do que se conhece como um típico
menor de rua:
De cabelos cortados rente, com pequenas manchas ruivas –
resultado de uma improvisada descoloração – R. de 13 anos sorri
descaradamente. Dos cinco anos que bateu calçadas e praças das
zonas Sul e Norte do Rio, ele não guardou muita coisa. De seu, leva
de um lado para o outro uma sacola de plástico com duas
camisetas sujas. Da Candelária, ele nem quer saber. Na noite da
chacina, perdeu oito amigos e fugiu dos tiros em direção à Praça
Quinze. Depois disso, fingiu que esqueceu da tragédia:- Qual é tia,
sei de nada não - responde e sai correndo” (O Globo, 28/04/96,
grifos nossos)
A evidência de um sorriso, que para a repórter é “descarado”, reforça a entonação da
matéria que demonstra a atitude de “R” que, apesar de roubar, continua pobre, carregando
camisetas sujas em sacolas, como o sujeito ímpio da moral cristã. E que, “debochado”, não
quer nem saber do que aconteceu na Candelária.
A matéria continua evidenciando as acomodações memoráveis:
Nas ruas, quem sabe se virar, vive um pouco mais. Para
ganhar dinheiro vale tudo: pequenos furtos, pedir esmola,
passar papel nos ônibus contando uma história triste ou
mesmo esperar comida de alguma ONG”.
- Só aparecem com pão e leite. Tô fora, conta R. e emenda
num grito:
- A negona derrubou a comida!
(...) “
Negona é uma cachorrinha vira-lata preta, que divide
um saquinho de ração com os meninos. Mas insiste em comer
mais algumas bolinhas e recebe um passa-fora. Neguinha - a
outra vira-lata - fica quieta.
E já que o saquinho está aberto,
a ração vira biscoito na boca dos meninos
.” (Idem, grifos
nossos)
Frases como “Ao meio dia começa a caça”, referente ao momento em que os
menores vão procurar o que almoçar, completam ambiguamente o sentido do trecho da
matéria. A naturalização da idéia dos menores como provenientes da desordem, ou típicos
animais que comem ração, é reafirmada nesse momento. Assim como em 1993, na época
da chacina, os menores mais uma vez são vítimas, ainda que apareçam como sujeitos
naturais da desordem. Três anos não mudam suas referências narradas pelo jornal, que
assim legitima e acomoda os preconceitos, promovendo o esquecimento acerca das causas
74
sociais da infância nas ruas. “R” ou “B”, são apenas abreviações de sujeitos estigmatizados
pelo jornal que assim repercute valores santificados pelo senso comum.
Assim, mesmo que a reportagem como um todo se comprometa a abordar vários
ângulos da questão sobre violência contra menores, em um trabalho de hierarquização da
memória a matéria que ocupa o lugar principal é claramente estigmatizadora e tributária do
senso comum.
Além disso, é importante observar a página do jornal de uma forma mais ampla. A
fotografia que acompanha a reportagem mostra dois menores de costas, ambos com o
“cabelo cortado rente” (como diz a repórter, tipificando “R”), com copos nas mãos,
sentados na calçada em frente à porta de uma loja.
Na porta do comércio, uma bicicleta e, dentro, uma televisão ligada. Estes
elementos causam dúvidas com relação à observação dos meninos: ou eles estariam
assistindo à TV, enquanto lanchavam, ou poderiam estar olhando a bicicleta parada. Ao
mesmo tempo, os sentidos que completam a matéria ficam também dúbios, pois pode
parecer que os menores se preparam para roubar os objetos de desejo.
Ao fim da página, encontram-se dois significativos anúncios que denotam uma
incrível separação de mundos que o repórter não ousa demonstrar em sua matéria. Um
anúncio diz: “Quem disse que o jornal não tem boas notícias? Top Fantasy Disney World,
ou Flórida Especial”. E, logo ao lado: “Ody convida você para uma odysseia na Disney”.
Para quem são esses anúncios? A promessa da boa notícia vem do mundo publicitário , ou
seja, só é obtida pelo consumo, cabendo ao jornalismo o papel de porta-voz das misérias do
cotidiano, enquadradas, no jogo da memória, a partir de hierarquias e valores mediados
grupos dominantes, e não dos sujeitos retratados na reportagem sobre os meninos de rua.
75
A idéia de hierarquização fica ainda mais clara quando entendemos que a chacina só
volta a ser rememorada pelo jornal, em 1996, por ser exatamente a época em que um dos
policiais identificados por Wagner será julgado, e não pelo motivo de continuidade da vida
miserável e transgressora dos “menores de rua”, mesmo depois de três anos da chacina.
Mais uma vez, o jornal elege o que lembrar e o que esquecer.
No dia 04 de maio de 1996, O Globo publica: “Candelária: mais um policial militar
confessa”. O PM Alcântara é referência na matéria por confessar o crime. A narrativa doao
contrário do que vem fazendo com os menores, trata os policiais, não mais como sujeitos da
ordem, como vimos no capítulo anterior, mas como pessoas que cometeram um erro: matar
crianças que dormiam na rua. Porém, embora este sujeito tenha trocado de lado, passando a
ser o réu confesso do crime, ele é tratado como apenas Alcântara, sem outros qualificativos.
Nesta matéria, onde os atores principais são policiais e não menores, a classificação natural
do senso comum é evitada. A narrativa do jornal de certa maneira também perdoa
Alcântara, ao indicar sua conversão à igreja Evangélica.
Um boxe ao lado da matéria, intitulado “corpo-a–corpo”, traz uma entrevista com
outro policial acusado. O repórter começa a entrevista com Nelson Cunha, que confessa o
crime, deixando livres outros policiais: “Evangélico, réu confesso no caso da chacina da
Candelária, o ex-PM Nelson Cunha diz (...).” E entrevista, o repórter reafirma a conversão,
ao explicitar sua pergunta: “Você se converteu um ano depois da chacina. Por que não se
entregou na época?
A visão da conversão dos policiais como atitude proveniente de um mundo
ordenado, correto, faz o jornalista cobrar do policial a atitude de confessar o crime logo
após a conversão. Mas o policial, não acostumado com as questões de ordem exigidas pelo
repórter, responde: “A conversão é gradativa. Você lê a Bíblia, se envolve em trabalho
social com mendigos, meninos de rua, travestis. Só após isso e um remorso no coração é
que se pode tomar uma decisão tão difícil. Apesar de Deus ter me perdoado da covardia e
do medo, ele me cobrava a prisão dos inocentes.” Percebe-se, assim, que a seleção da
memória da Candelária nesta matéria ameniza a atitude passada do policial, como se ele,
sujeito ordenado, houvesse caído em tentação, tomando atitude ímpia de matar as crianças,
mas para, em seguida, se converter e se arrepender. A prisão é o desfecho exigido para a
restauração da ordem.
76
Há que se acrescentar também uma reflexão sobre a questão da nominação presente
nesta matéria. Ao contrário das qualificações constantes nas reportagens cujo principal
personagem é o menor, aqui o sujeito tem nome e sobrenome. Até mesmo na foto
publicada, aparece em primeiro plano o nome estampado na farda do policial.
O único adjetivo imposto pelo jornal aos réus é destinado ao acusado Emanuel, que
O Globo trata no título como matador: “Matador da Candelária poderá pegar pena
máxima”.
3.2.4. Um esquecimento anunciado
Depois do julgamento dos policiais e das suas confissões, o jornal publica uma nova
matéria no dia 23 de junho de 1996, justificando o esquecimento a que foi submetido o
assunto: “Chacina já não atrai mais tanta atenção”. Esta reportagem aparece no jornal um
mês antes da chacina completar três anos. Como mostramos, existe uma referência feita
pelo O Globo no dia 23 de julho com uma pequena notinha, comentando a missa e
manifestação dos três anos da morte dos menores. Isso confirma o que o repórter fala no
título da matéria de junho, pois realmente a chacina não demandava tanta atenção pública,
pelo menos no enquadramento de memória proposto pelo jornal. Celebrando o
esquecimento como se fosse de âmbito público, o jornal se justifica publicamente pela não
cobertura do caso, embora os problemas relacionados ao mesmo (menores na rua, violência
77
policial, miséria, ausência de políticas efetivas para resolver o problema, desigualdade
social etc.) persistissem. A primeira frase é significativa desta idéia de esvaziamento do
assunto Candelária, como lugar de memória do crime: “Os olhos do mundo se fecharam
para a Candelária (...)”
Duas pequenas matérias a mais são publicadas no fim do ano de 1996. Uma no dia
24 de novembro, denunciando a morte de uma testemunha da chacina, silenciada até aqui,
chamada Fábio de Oliveira. E outra, sobre a volta de Wagner dos Santos para a Suíça,
depois dos julgamentos dos policiais, que duraram praticamente todo o ano de 1996, mas só
foram destacados pelo jornal O Globo algumas vezes, como vimos.
Um silêncio sobre este caso durou mais dois anos, fazendo com que o trabalho de
esquecimento, previamente anunciado, sem concretizasse explicitamente. Não foram
encontradas matérias sobre a chacina em 1997 e 1998. O assunto só volta a ser pauta do
jornal em 1999 com a morte de Bilinha, um dos sobreviventes, que morre em frente à
igreja, no mesmo local da chacina de 1993. A matéria de O Globo revela ainda uma
continuidade que havia sido, então, silenciada: “Morte de menor de rua na Candelária é a
quarta ocorrida em apenas um mês”. As outras três mortes não foram encontradas nos
arquivos de O Globo. Mas o assassinato de João Fernando Caldeira da Silva, conhecido
como Bilinha, ganha lugar nas páginas do jornal.
Já o ano de 2000 é marcado pelas publicações sobre a morte de Sandro Nascimento,
o protagonista do episódio do ônibus 174. Este caso, por ser um marco de memória da
Candelária, mas, ao mesmo tempo, uma ruptura significativa, será comentado
78
detalhadamente no próximo capítulo, quando iremos tratar do fluxo do acontecimento
articulado sobre a construção da memória e da narrativa de um novo presente.
Este novo acontecimento, de grande reverberação nas páginas do jornal, colocará
novamente a chacina da Candelária em evidência. O que poderia servir como referência
para o jornal repensar seu lugar neste processo histórico, tendo praticamente calado a voz
dos sobreviventes após a chacina e pouco contribuído para denunciar o problema, com seus
trabalhos de enquadramento, acomodação e legitimação de um senso comum
estigmatizante acerca dos menores que vivem na rua, de fato não ocorre. Em 2001
novamente a pauta “chacina da Candelária” é silenciada nas páginas do jornal.
Na continuidade memorável do jornal O Globo, antes dos dez anos da chacina, uma
única matéria torna a lembrar da Candelária, informando: “Prefeitura calcula que 800
crianças vivem nas ruas do Rio” (24/07/2002). Uma cerimônia lembra os 9 anos da chacina
e a prefeitura aproveita para mostrar os dados referentes ao aumento dos menores nas ruas,
adotando a fala autorizada do poder público como naturalizada. Mais uma vez, percebemos
os trabalhos de acomodação e assimilação, bem como a hierarquização e legitimação de
algumas vozes em detrimento de outras. Na matéria, reaparece a lembrança da história de
Herodes comentada por nós no começo do capítulo: “Padre Jorge Antônio lembrou o
episódio da matança dos inocentes, quando Herodes mandou matar todas as crianças de
até 2 anos, porque, entre elas, estava Jesus Cristo – Há muitos Herodes na Sociedade -
disse”. O fluxo dialógico dos discursos mais uma vez se estabelece.
Em 28 de fevereiro de 2003, o jornal publica a condenação a 300 anos de prisão em
regime fechado do Ex- PM Marcos Vinícius Borges Emanuel, que já havia ido três vezes a
julgamento, desde 1996. Só após dez anos depois da chacina, Emanuel é condenado. Neste
período, de quase 8 anos, o jornal poucas vezes cobrou publicamente soluções para o crime,
como indicamos anteriormente, promovendo o esquecimento paulatino dos incômodos que
o tema causou em boa parte da sociedade brasileira.
Depois deste relato, o jornal O Globo reduz ainda mais as matérias sobre o caso,
mesmo diante do marco de dez anos da chacina, completados em 2003. Apenas uma
matéria, lembrou o acontecimento fundador, transformado em cerimônia pública
comemorativa. E como cerimônia constitui-se sobretudo em celebração profana e pública.
Transforma-se, por fim, o acontecimento em festa profana da praça pública.
79
“Candelária: ato lembra os dez anos da chacina”
Uma menina participa de um abraço simbólico à Praça Pio
X, no Centro, durante um ato para lembrar os dez anos da
chacina da Candelária, na qual morreram oito menores de
rua. Silhuetas de corpos representando as vítimas foram
preenchidas com pétalas de rosas. A programação teve ainda
missa, apresentações de música, teatro, dança e capoeira.”
(O Globo, 24/07/2003)
Apenas essas linhas lembram o acontecimento que matou os menores coletivamente
no ano de 1993. Os contextos sociais em que se encontram os menores e que foram
lembrados no ano de 1994 e 1996 são apagados. A condenação do policial depois de dez
anos também. O exílio de Wagner dos Santos e sua vida na Suíça não são comentados.
Neste sentido, o episódio morre para o jornal e seus sentidos já assimilados pelos leitores
são apagados.
Em 18 de dezembro de 2003, a ONG Viva Rio completa também dez anos, o que
faz O Globo lembrar mais uma vez a Candelária, pois, além do movimento ter sido criado
aproveitando-se dessa chacina e da de Vigário Geral, os integrantes do Viva Rio promovem
um abraço simbólico à Candelária neste dia. Vale notar que a matéria do aniversário da
ONG ocupou mais espaço do que a dos dez anos da chacina da Candelária.
Se nas edições comemorativas de dez anos o jornal já diminui as matérias, em 2004
e 2005 O Globo silencia completamente o aniversário. Aliás, o único veículo que noticia o
acontecimento através de uma pequena nota, na coluna de Ricardo Boechat, é o Jornal do
Brasil, informando sobre a missa que aconteceu na igreja da Candelária.
Percebemos que o jornal tem o privilégio social de mitificar o passado e esquecer o
que não quer que seja de interesse público. A organização dos sentidos do acontecimento
“chacina da Candelária” vai sendo, ao longo dos anos, trabalhada por um esquema que
inclui formas de destacar alguns aspectos, desprezar outros e naturalizar questões que
fazem parte de uma espécie representação do mundo da desordem tal qual proposta pela
ordem pública. As referências sociais, assimiladas durante esse tempo pelos leitores do
jornal, irão refletir-se no olhar que os mesmos terão sobre um futuro acontecimento similar
ao que já foi visto.
A partir do que discutimos aqui, refletiremos, no próximo capítulo, sobre o
acontecimento “174”, buscando perceber as articulações entre memória e narrativa em um
novo acontecimento legitimado pela memória da “Candelária”.
80
Parte III
No fluxo da memória, a instauração do novo acontecimento: o ônibus 174 e um
remanescente da chacina da Candelária.
“Nós não tínhamos resolvido a tragédia da Candelária e
já estávamos vivendo uma outra tragédia que era, em
certo sentido, uma extensão daquela primeira. Sandro
que é vítima da Candelária, agora se converte no algoz
do novo drama.” (fala de Luiz Eduardo Soares no
documentário Ônibus 174).
Doze de julho do ano de 2000. Sandro Nascimento entra em no ônibus da linha 174
no bairro do Jardim Botânico, zona Sul do Rio de Janeiro. Armado, o rapaz, com intenções
iniciais de cometer um assalto, ao ver-se encurralado com a chegada de um carro da polícia,
faz aproximadamente 10 passageiros reféns dentro do veículo. O ônibus ficou em poder de
Sandro por quase seis horas. Logo o local foi tomado pela imprensa, por diversos policiais
do BOPE (especialistas em seqüestros) e por pessoas que assistiam ao jovem com uma
arma na mão ameaçar tanto os reféns, dentro do ônibus, como todos que estavam do lado de
fora. Durante a negociação, foram libertadas algumas pessoas. Na janela, o rapaz declarava
não ter emprego, já ter sido vítima de espancamento policial e de ter estado na Candelária,
na madrugada da chacina.
Em um dos momentos de ira, Sandro atira na direção de uma refém, Janaína, que
não é atingida, mas permanece deitada no chão do ônibus como se estivesse morta. Depois
de horas de terror e encenação para as câmaras, Sandro resolve descer do ônibus e levar
junto, como escudo, uma das reféns, a professora primária Geisa Firmo. Enquanto os
policiais tentavam render o seqüestrador e libertar a refém, um soldado especialista do
BOPE atira na direção de Sandro, que acaba também imediatamente disparando alguns
tiros. O desfecho: Geisa Firmo morre baleada na cabeça e Sandro, dentro do camburão, é
sufocado pela polícia.
4.1 – A narrativa autorizadas do jornal O Globo
81
Na segunda parte desta dissertação, pensamos a respeito da problemática do
acontecimento. Entendemos que o acontecimento é construído a partir das narrativas,
embora seja fundado por uma ruptura ou marcado por um desequilíbrio no tempo. A
narrativa acontecimental é incorporada pelo imaginário coletivo através da mediação da
imprensa, que potencializa o fato. Além disso, reconhecemos que o sensacionalismo
exagera o acontecimento, principalmente os ligados à violência que já apresentam
naturalmente situações chocantes .
No dia seguinte do sequestro as páginas de O Globo foram tomadas por fotografias
e narrativas que evidenciavam o crime. O título dizia o seguinte: “Um Erro Fatal”. O
subtítulo completava: Polícia tem ação desastrada e jovem inocente é morta com cinco
tiros.” Essas frases chamam a atenção para o erro da polícia que poderia ter causado a
morte da refém Geisa Firmo. A foto de Sandro sendo levado para o camburão pela polícia e
a de Geisa morta sendo carregada pelo bombeiro abrem a reportagem. Quatro fotografias
nas laterais, com seqüência de horários e com títulos classificatórios e opinativos ("Por que
não atiraram antes?", "A tortura", "O seqüestro", "O desfecho"), reproduziram como filme,
em cenas do espetáculo, os momentos da ação policial e do seqüestrador dentro do ônibus.
No centro, e dividido em duas colunas, o texto dá maior ênfase à ação da polícia.
Informa que a arma usada pelo policial não era adequada para eliminar o bandido. O
82
cenário narrado pelo repórter é um trecho isolado da rua, onde a multidão acompanha todo
o caso e onde, em alguns momentos, o coronel Penteado (policial negociador) recebe água,
cigarros e café, como se estivesse em um lugar privilegiado de qualquer show, o camarote.
O enfoque narrativo sobre os policiais é marcado pela idéia de que eles não tinham
condições de lidar com aquele caso e que, ao mesmo tempo, não se importavam de fato
com o que estava acontecendo. A presença da imprensa talvez tenha realmente tornado
aquele espaço uma espécie de “universo circense”, um espetáculo onde todos
representavam
No espaço reservado para a charge do Chico Caruso, é publicado apenas um recado
no lugar do desenho: "Peço desculpa aos leitores, mas pela primeira vez em 32 anos de
trabalho não consegui sintetizar com humor os fatos do dia". Esta frase de Caruso
evidencia a gravidade do acontecimento .
A identidade do sujeito envolvido no seqüestro, ainda não reconhecido como
Sandro Nascimento, recebe a sua primeira classificação na primeira página do jornal, a de
bandido, pois o repórter, não o identificando de outra forma e não tendo conhecimento do
seu nome, expõe apenas o que ele representa, uma figura do mal. Portanto, expressões
como bandido e criminoso servem para preencher, neste momento, a lacuna existente. A
ação de Sandro equivale assim, a sua identidade.
A autoridade jornalística é percebida na maneira de narrar os fatos. O uso de
técnicas como a retórica aparece como forma estratégica na construção do discurso
persuasivo e repleto de valores do senso comum, onde são criados as identidades como
mitos, celebridades e os monstros da sociedade.
As estratégias jornalísticas de um modo geral, provocam e aumentam uma
intimidade do público com o emissor da mensagem, no caso aqui, o jornal O Globo. O
convencimento se dá, quando são feitos relatos de experiências pessoais em seus discursos,
ao mencionar fatos antigos em comparação ou enumerar algumas provas que confirmem
seus argumentos, como vimos nas análises anteriormente apresentadas. Assim, a
idealização do receptor a respeito da mensagem também influencia no texto, pois,
imaginando um determinado leitor, o jornal vai adequar seu discurso da maneira que ele
acha coerente, ou seja, sua argumentação será baseada nos conceitos que são pertinentes
para ele e para aquele público alvo. Como estratégia narrativa, o jornal apresenta as
83
verossimilhanças dos fatos quando os submete à probabilidades e hipóteses que se baseiam
no senso comum.
No campo do jornalismo se constrói a credibilidade
, o "poder simbólico", como
elaborou Pierre Bourdieu (1989): "O que faz o poder das palavras e das palavras de
ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das
palavras e daqueles que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das
palavras".
61
Os jornalistas conceituados são aqueles que trabalham nos grandes jornais ou
que são conhecidos por algum furo jornalístico, por uma matéria espetacular ou de grande
importância nacional. O que expressa a verdade não são exatamente suas palavras, mas a
autoridade (capital simbólico) que ele possui.
62
Para Bourdieu quem tem poder da fala,
explicita categorias e profere classificações.
Michael Shudson
63
fala da forma de como as questões do mundo são incorporadas a
partir das narrativas jornalísticas “inquestionáveis e despercebidas”. Para ele, esta forma
de produção textual deixa de lado a discussão sobre os fatos, colocando a fala do jornalista
como uma premissa do senso comum. Esse poder de dizer como as coisas são, de adaptar a
mensagem ao mundo social do leitor, é o que contribui para afirmação de significados
culturais.
Um conceito de autoridade importante para pensar o jornalismo, é o conceito
formulado por Barbie Zelizer
64
de autoridade cultural, com base em estudos sobre questões
durkheimianas de representações coletivas. Zelizer afirma que os jornais se colocam em
posição de autoridade cultural, como quem possui a verdade sobre os fatos, por serem
observadores das realidades que representam os interesses de um mundo social e coletivo.
E este mundo coletivo, que deposita sua credibilidade comum às realidades, ao mesmo
tempo é quem lhe autoriza.
O privilégio dos comunicadores em relatar os acontecimentos de interesse público
lhes dá abertura para exercer autoridade sobre determinadas realidades. Essa autoridade,
concebida por privilégio de quem fala, também determina aquilo que é verdade, ou seja, a
61 BOURDIEU, 1989, p.15.
62
Sobre autoridade jornalística, conferir WHITE, Hayden, Trópicos do discurso, ensaios sobre a crítica da
cultura. As ficções da representação factual 1994. ALBUQUERQUE e SOARES, Afonso e Rafael, Notícias
de notícias: Notícias do Planalto, memória e autoridade jornalística, 2003.
63
SHUDSON, Michael, 1994.
84
partir desse privilégio, o jornalista introduz uma verdade única e consensual, muitas vezes a
partir do que ele mesmo acredita ou do que afirmam os conhecimentos do senso comum.
Estas afirmações abrem espaço, como já vimos, para questões de interpretações não
críticas e naturalizadas, que partem de conceitos da vida cotidiana, impregnados na
sociedade. Mas ao mesmo tempo, esse privilégio em noticiar interessa à sociedade, que
obtém informação dos acontecimentos de seu interesse a partir dos media. O que preocupa,
afinal, é a avaliação deste público, que considera tais falas como verdade, por conta da
autoridade e da maneira como são reproduzidos tais discursos.
Essa questão dos valores da vida cotidiana, ou do senso comum, reproduzidos pelas
narrativas jornalísticas, nos faz lembrar as questões de memória tratadas por Barbie Zelizer
ao afirmar que a “autoridade” é uma construção que envolve questões socioculturais,
políticas e econômicas, portanto, questões de tempo, já que o discurso e as narrativas assim
se constroem. Neste sentido, pensar a memória coletiva para entender as questões de
autoridade e narrativa jornalística se torna fundamental, como percebemos no capítulo
anterior.
Dentre as questões que são discutidas hoje sobre a profissão jornalista, existe
também um estudo, no qual se baseia Zelizer, que entende o profissional jornalista como
uma “comunidade interpretativa”, portadora de memórias coletivas que os mantêm,
inclusive, organizados como grupo e autorizados como aqueles que falam. Nesta prática
discursiva produzida por estes profissionais existem marcas de tradições narrativas que
carregam, portanto, valores de sua conduta profissional.
Na produção discursiva desta mediação é fundamental pensarmos sobre a questão
da objetividade, parte da conduta e tradição na produção de interpretação da realidade.
Como a objetividade é a principal técnica usada para produção dos textos jornalísticos, é
também a forma mais precisa em responder às dúvidas sobre a forma de reportar as
realidades. Ao falar de objetividade, devemos reconhecer também o profissional que a
emprega nas narrativas dos fatos sociais impressos pelo jornal. Na história da imprensa
brasileira, os donos dos jornais, por exemplo, fizeram jornalismo de causa própria a serviço
de interesses pessoais e principalmente políticos. Portanto, com atenção às trajetórias,
64
ZELIZER, Barbie. “Covering the Body: the Kennedy Assassination, the Media, and the Shaping of
Collective Memory.” Chicago and London: The University of the Chicago Press, ,p 1-13;201-214. 1992
85
podemos começar a perceber como a cultura dos jornais e dos jornalistas vem atravessando
os tempos e como a objetividade é muito mais do que uma crença nos fatos.
No caso do modo de fazer jornalismo, nos Estados Unidos, a objetividade, segundo
Michael Shudson,
65
foi uma forma de ir contra ao pessimismo que envolvia a sociedade na
época da inauguração desta técnica, devido à crise democrática e econômica que os
americanos enfrentavam. Em uma análise mais recente, Gay Tuchman
66
diz que a
objetividade “pode ser um ritual estratégico” que, ao ser usado e elaborado pelo grupo, o
protege das acusações de inverdade.
As idéias de imparcialidade e neutralidade que abrangem os valores do jornalismo
verdadeiro e que preservam a imagem do profissional se tornam contraditórias e ambíguas
quando levamos em consideração o uso de uma construção retórica de notícias. A boa
intenção em relatar os fatos apenas pelo que viu, ouviu ou pelo que foi apurado sobre ele
chega ao limite da não interferência da subjetividade quando se coloca em prática as
técnicas de construção textuais e de diagramação. Os textos e as fotografias são ordenados
dentro das páginas para muitas vezes dizer discretamente o se quer. O uso indireto de
palavras, o implícito nos textos ou até o não dito, mas entendido e interpretado pelo leitor
como verdade, faz do jornalismo um “falso fabricador” de cópias originais do real, para
esses leitores que o considera a autoridade imparcial no relato dos fatos. Objetividade não
quer dizer a mais pura verdade. Também não se pode esquecer que a construção da notícia
não é feita somente no ato em que ela é apurada pelo repórter, nesta construção estão
envolvidos outros profissionais da área, como o chefe de reportagem, o editor, o fotógrafo e
o diagramador. Percebemos comprometimento, também, na relação entre os donos das
empresas de comunicação, que imprimem milhares de notícias todos os dias, e aqueles que
anunciam nestes jornais e que praticamente os sustentam. Esta relação, sobretudo, interfere
no que é dito ou silenciado.
O caso da chacina da Candelária e do sequestro do ônibus 174, portanto,
obviamente também estão envolvidos neste processo de construção da notícia. A morte dos
menores narrada pela imprensa teve de ser encaixada nestes padrões de fazer jornalismo
brasileiro, tanto com atribuições às técnicas, tanto com incorporações de valores culturais e
65
SHUDSON, Michael, 1994.
66
TUCHMAN, Gay.1993
86
históricos que pertencem a este mundo midiático. A memória, assim como interpreta Barbie
Zelizer, é uma instância de contribuição para isto, pois encontra-se em uma relação de
lembrança e esquecimento operada coletivamente pelos sujeitos, envolvendo esta produção
de presentes, ou seja, de fatos sociais que permitem uma atualização do modo de fazer
jornalismo, envolvido assim, por profissionais portadores tamm de suas próprias
histórias e culturas organizadas por uma comunidade. O senso comum, sobretudo, é um
elemento importante na percepção desta continuidade produzida pela memória neste caso.
4.2- O sequestro e a Chacina
O seqüestro do ônibus 174 tem muitas características que o aproxima do episódio da
Candelária, além da participação do sobrevivente da chacina, Sandro Nascimento. O
seqüestro foi um fato de violência que abalou as estruturas da segurança pública do estado
do Rio de Janeiro, foi resultado de problemas sociais, econômicos e culturais que envolvem
o sistema capitalista e teve envolvimento com a ordem policial, que comete erros na sua
operação e causa assim tanto a morte da refém Geisa e de Sandro, quanto a dos menores da
Candelária.
Mas, além dessas aproximações, podemos perceber características ainda mais
marcantes e diretamente relacionadas a problemáticas da comunicação. Uma delas seria a
idéia de que o acontecimento do ônibus 174, assim como a chacina de 1993, apresentam
como característica uma raridade instantânea. Ambos são legitimados por uma ruptura
imprevisível, inesperada e, no momento em que são noticiados, se tornam produtos de
consumo que não duram muito tempo nas prateleiras como novidades.
Porém, a ligação mais forte entre estes episódios está na construção narrativa e no
fluxo do tempo. Isso acontece a partir do momento em que se estabelece uma operação
mimética, onde os textos se transformam em narrativa através da intriga. Esta intriga ou
enredo é exatamente a construção da ficção ou da argumentação para determinada
ocorrência. Esta elaboração é a mediação entre o acontecimento e sua memória, onde a
ação, ou o próprio acontecimento, ganha significado.
Este episódio do sequestro marca a continuidade da chacina ocorrida sete anos
antes. Como vimos no capítulo anterior, a inauguração do novo e a idéia de desdobramento
de um acontecimento se constroem pela memória. A narrativa dos jornais sobre o episódio
87
descrito acima é feita a partir de um trabalho mnemônico que ajuda a justificar de certa
forma o acontecimento em função de condições inscritas no passado. O tempo do passado é
uma espécie de autoridade para a compreensão do presente.
A matéria do O Globo do dia 14 de junho de 2000 demonstra claramente esta
continuidade e a autorização do passado para que se entenda o sujeito Sandro nascimento.A
primeira frase que aparece como retranca da matéria indica: "Terror: Ex-menino de rua
escapou de chacina, vivia de furtos e assaltos e usava quatro nomes e apelidos". Aqui se
marca o momento em que o jornal descobre que Sandro era um dos sobrevivente da
Candelária. “Mancha, Alex, Sérgio ou Sandro. Os nomes e apelidos mudaram de acordo
com a rotina que viveu nas ruas do Rio. Identificado como Sandro do Nascimento, o
bandido teve um passado de menor de rua viciado em cola que praticava furtos e assaltos
em esquinas e sobreviveu à chacina da Candelária, há sete anos”, diz o lead da matéria.
Essa fotografia de Sandro com uma placa pendurada com números, produzida
quando uma das vezes em que ele foi fichado pela polícia carioca, afirma a representação
de um criminoso remanescente da Candelária. Essa imagem de um menor que se
transformou em bandido perigoso, marca a questão da reatualização dos sentidos e ao
mesmo tempo a legitimação de um novo momento em que o sujeito criminoso é um ex-
menino de rua. Sandro a partir de então fica condenado a carregar a marca do seu passado.
Um box na direita da página sob o título “Em julho de 93, oito mortos em frente à
igreja”, traz um texto de retrospectiva da massacre da Candelária. Mas a ênfase sobre a
chacina se torna muito pequena diante de uma página que embora tenha aparentemente a
intenção de lembrar a sobrevivencia de Sandro, como indica o título, se preocupa mais em
88
falar sobre o bandido perigoso em que ele se transformou. As questões sociais mal
resolvidas mesmo depois da ocorrencia de uma chacina não são citadas também pelo jornal,
depois que um menor sobrevivente reaparece como sequestrador do ônibus.
O que podemos perceber é que a chacina não é um lugar de memória significativo,
muito menos no caso da sua reatualização com o acontecimento do sequestro do ônibus. A
chacina aparece mais como um lugar de memória para reforçar a existencia da desordem,
ou seja, enfatiza-se mais o menor que se transforma em sequestrador, do que os próprios
significados da chacina como acontecimento representado por uma relevancia social
significativa. O jornal O Globo aqui demonstra claramente sua intensão de lembrar o
massacre, não somente como uma referência minemônica da história da morte dos
menores, mas, mais que isso, utiliza a retrospectiva do acontecimento de 1993, ou seja o
passado de Sandro, para autorizar as narrativa sobre a transformação de um menor de rua
em um “homem frio, violento e especializado em assaltos a mão armada”, como enfatiza o
texto.
Uma outra questão importante para pensar a relação da reatualização dos sentidos
do passado da chacina no episódio do ônibus 174 é a existência das vítimas. Na chacina da
Candelária, as vítimas reconhecidas no crime foram as crianças e no caso do sequestro, os
reféns. Porém, como vimos nos capítulos anteriores em momento algum os menores são
tratados efetivamente como vítimas de um crime, nem na época em que a chacina aparece e
muito menos nos trabalhos de memória promovidos por O Globo. Vale lembrar aqui a
materia do dia dois de agoosto de 1993, analisada no primeiro capítulo, cujo título é
“Menores enfrentam noites de terror”, que por esta chamada, inicialmente a reportagem
demonstra o objetivo de tratar so menores como vítima, que com medo tentam escapar de
uma exposição nas ruas á noite. Só que mais de noventa porcento da narrativa nos
surpreende ao evidenciar a rotina de roubos, e estratégias de divisão dos menores como
gangues.
Nos impressiona assim também, perceber como as narrativas sobre as vítimas do
ônibus 174 que ficaram sobre uma média de seis horas diante de um jovem armado também
são diminuidas pela tipificação do bandido. As duas fotografias que foram publicadas nessa
página abaixo, mostram as reféns com armas apontadas para suas cabeças. Essa matéria é
uma das primeiras narradas pelo jornal O Globo a respeito do episódio e o seu enfoque
principal é a atitude do bandido, a situação das reféns aparece apenas como referência em
89
legendas ou pano de fundo da matéria que se preocupa em narrra as atitudes de Sandro.As
fotografias assim, são marcas fundamentais para que o terror promovido por Sandro seja
percebido. Embora o texto cite pouco a situação das reféns, a fotografia representa
fortemente essa situação. Mas ao mesmo tempo, essa exibição se torna ambígua, pois
depois de ler a matéria que completa o discurso sobre o caso, temos a sensação de que a
fotografia expõe mais a agressividade do sequestrador anunciado no texto. A evidencia
maior da a esta página de O Globo portanto, está no discurso construído sobre o bandido
do que sobre as vítimas.
Entendemos aqui então, que tanto faz se as vítimas são crianças moradoras das ruas
ou passageiros de um ônibus, o que importa para o jornal é promover uma singularização
da violência a partir da construção das identidades perigosas. Ora são menores drogados e
delinquentes que ganham espaço no jornal mesmo no em um tempo em que ganham espaço
na história como vítimas, ora é o menor remanescente reconhecido anos depois como um
grande marginal. A atenção exagerada dada ao lugar do bandido nos faz pensar também na
preocupação do jornal com a espetacularização do fato. A narrativa que busca sintetizar as
contradições da realidade só poderá expor a situação da vítima, do medo e da insegurança
a partir do momento em que um sujeito provoca tal situação. É mais cômodo então, colocar
todos os esforços narrativos focados em um sujeito para que o leitor perceba aquela
realidade repleta de multiplos significados por um único viés, o que diz respeito ao senso
comum. Para a consciência social de mode geral, quem faz vítima e quem aterroriza é o
bandido. Mais para frente neste trabalho colocaremos com maior evidencia a questão da
importancia que o jornal dá ao jovem Sandro como um sujeito monstruoso.
90
Com mais tempo para apurar o fato, os jornalistas questionam com maior ênfase o
provável erro da polícia na operação do caso em matérias publicadas mais tarde. As
confirmações da perícia sobre a morte de Sandro abrem o caminho para imprensa fazer as
denúncias. Várias vozes nas narrativas de O Globo falam do incidente e chamam a atenção
para o despreparo da polícia carioca. Essa situação nos faz lembrar uma matéria citada
também no primeiro capítulo desta dissertação, sobre a indicação da morte dos menores da
Candelária como uma “operação limpeza”. Sobre essa lógica a narrativa sobre a
Candelária se proxima mais uma vez das referências feitas pelo jornal sobre a morte de
Sandro provocada pelos policiais dentro do camburão. A matéria de O Globo, do dia 14 de
julho de 2000 informa a confirmação da perícia sobre a morte do sequestrador, que foi
estrangulado pela polícia no caminho para a delegacia. Neste sentido, a mesma operação
limpeza demonstrada na narrativa do jornal em 93 se reconfigura na narrativa sobre a morte
do sobrevivente. De certa forma ele escapada da chacina, mas depois morre pelas mãos da
mesma autoridade, a polícia. Mas uma vez assim, fica evidente na comparação das matérias
a inversão da ordem narrada pelos jornais, pois é a polícia novamente que se coloca no
lugar da criminalidade e são os desejados de morte varridos do cotidiano. O Globo não se
esquiva então, em denunciar tal realidade e chamar a atenção das autoridades para a
responsabilidade da polícia em ambos os casos. Um boxe completa assim a denúncia com o
título: “PMs ameaçam médicos para esconder crime”, pois ao levar Sandro para o hospital
Souza Aguiar, os policiais queriam que os médicos encobrissem no boletim de ocorrência a
causa da morte do jovem, que havia sido sufocado por eles, como informa o texto. Sendo
assim, tanto nas narrativas sobre o envolvimento da polícia na morte dos menores da
Candelária, quanto no assassinato de Sandro, o jornal expôs essas informações como
pautas importantes para a leitura do seu público.
91
A contribuição do jornal sobre a participação dos policiais no crime marcam uma
espécie de finalização do assunto da semana, pois as matérias sobre o sequestro vão se
esgotando aos poucos das págias de O Globo. Na edição de sexta-feira, 16 de junho, em
menos de uma semana do acontecimento, Sandro começa a desaparecer das páginas dos
jornais, mas os PMs acusados de estrangular o rapaz aparecem na primeira página. O
enfoque ao terror desencadeia para outros ângulos.
página 9
92
Mas fica claro o anúncio sobre a morte do assunto, pois depois de dias as narrativas
são consideravelmente simplificadas. Assim como foi anunciado o silêncio de anos da
chacina da Candelária em uma matéria comentada no segundo capítulo cujo título dizia:
Chacina já não atrai mais tanta atenção”, também vai se apagando o acontecimento do
ônibus 174. Na sessão “Rio” não encontramos mais o assunto, apenas nas páginas
separadas para questões nacionais, em “O País”, encontramos uma matéria: "FH recua nas
críticas ao plano de segurança", a fala e a foto do então Presidente da República promete
investimento na segurança e essa é a narrativa que se aproxima do episódio do sequestro,
apagado do interior do jornal.
Passada assim, a importancia ao instante singular de desencadeamento do
acontecimento, a tragédia é abandonada. O esgotamento sobre o assunto se dá em
contrapartida ao bombardeio de informações que foram publicadas durante um curto
período de tempo. No dia dezessete, O Globo mostra matérias sobre protestos pela paz, e
de policiais vistoriando ônibus. O jornal publica apenas uma nota no fim da página 10 da
editoria RIO informando que o soldado que errou o tiro não compareceu ao depoimento.
Todas as matérias da semana seguinte enfocam o seqüestro como mais um caso de
violência. Exploram casos relacionados ao seqüestro, mas não falam especificamente do
acontecimento e dos sujeitos envolvidos. Mostram pesquisas sobre violência, usam o drama
do terror e do medo, mas praticamente esquecem Sandro. No domingo, 18, dia em que o
jornal O Globo tem maior tiragem, Sandro não é mais pauta e novidade. A editoria RIO
mostra “A estatística do medo” e revela, a partir de pesquisas do IBOPE, que a maioria da
população carioca já havia sido assaltada e que desconfia da polícia.
93
Se o caso do sequestro vai sendo assim apagado, muito mais as referências sobre a
chacina que como vimos, é pouco evidenciada. A chacina da Candelária é apresentada nas
narrativas de O Globo apenas como um passado mitificado que serve assim para reinterar
as idéias do senso comum que buscam respostas sobre o presente. As referências portanto,
assimiladas pelos leitores na época da chacina tentem a se refletir tamm no momento em
que determinados assuntos são reconfigurados. Neste sentido, a legitimação de um novo
acontecimento é marcado pelas referências dos sentidos percebidos também no passado. A
naturalização das questões promovidas pelo senso comum, passam também por este
processo. Entenderemos melhor essa relação entre sentidos narratidos e o tempo na
próxima parte que segue este trabalho.
4.2 .2 – As reatualização dos sentidos pelas tecituras narrativas
Paul Ricoeur (1994) em “Tempo e narrativa” fala sobre a articulação das
experiências no tempo e demonstra a sua humanização pela narrativa. Para Ricoeur, a
narrativa, como forma geral de representação do mundo, é a mediação entre os seres
humanos e o tempo. O autor inicia sua argumentação sobre a questão da narrativa fazendo
correlacionado a teoria de Santo Agostinho, que fala sobre o tempo, mas não o relaciona
com a narrativa, com a teoria de Aristóteles sobre a poética, que, embora fale de narrativa,
não fala sobre o tempo. A partir da mimese de Aristóteles, explicada em sua obra Arte
Poética,
67
Ricoeur diz que a narrativa é composta por três mimeses e chama essa lógica
teórica de tríplice mimese. Das três mimeses a segunda, mimese II, é a que Ricoeur
considera como central para a construção narrativa, pois é a que faz mediação entre a
primeira e a terceira. A mimese I é o montante, a nascente, onde tudo começa, e a mimese
III a jusante, o sentido, para onde vão as coisas. A mimese II, portanto, tem o poder de
configurar a realidade pela operação de mediação entre a ruptura, o montante de um
acontecimento e seu aparente fechamento.
68
Ao organizar os fatos dentro de uma lógica
narrativa, compondo um enredo a partir de peripécias, o jornalista realiza exatamente essa operação
de mediação.
67 ARISTÓTELES, 1998.
68 RICOEUR, 1994, p.86. Grifo meu.
94
Facilita entender a tríplice mimese quando pensamos na mimese I como narrativa de
um tempo prefigurado (representações do mundo), a mimese III como narrativa de um
tempo refigurado (reprodução de discursos) e a mimese II como configuração de uma nova
realidade mediada por esses dois tempos anteriores. A mediação, ou a configuração
narrativa, é o presente contínuo formado pelo passado atualizado (prefiguração) e pelo
futuro antecipado (refiguração), ou seja, tudo é presente, neste sentido. Santo Agostinho,
sobre o tempo, diz que não existem tempos futuros e pretéritos, o que existe é o tempo
formado pelo presente das coisas passadas, presente das coisas presentes e presentes das
futuras.
69
O fluxo da vida se dá desta forma a partir de um tempo presente onde a história da
vida se constrói, se transforma e onde as rupturas são fundamentais para que o tempo flua.
Todo presente, portanto, é constituído do passado, do próprio presente e do futuro.
A constituição desse presente dinâmico se dá pelo simbolismo, por uma articulação
entre significações. Há uma frase de Paul Ricoeur importante para entender essa discussão
sobre o simbólico: “simbolismo não está no espírito, não é uma operação psicológica
destinada a guiar a ação, mas uma significação incorporada à ação decifrável pelos
outros atores do jogo social.” Neste sentido, compreendemos que assim como os signos
(unidade mínima de valor), os acontecimentos uma vez percebidos ganham valores
culturais que pertencem ao jogo das significações, e assim, se tornam públicos. Sua
publicização não parte apenas do momento em que acontece, pois um acontecimento é
sempre fruto da junção de outras mimeses.
Ricoeur acredita que, para entender um “rito”, ou um acontecimento, importa
percebê-lo como um “ritual”, com todas as características que um dia lhe foram
depositadas, o que o autor chama de “conjunto de convenções, das crenças e das
instituições que formam a trama simbólica da cultura”. Essas normas, de conduzir a
narrativa de um acontecimento, já discutimos anteriormente, mas é válida a lembrança. No
entanto, nossa questão principal sobre o acontecimento do ônibus 174 é pensar sua relação
com a chacina da Candelária e entender como foi construído um episódio que é legitimado
por um acontecimento ocorrido sete anos antes. Até que ponto a mediação simbólica do
episódio ocorrido no ônibus é verdadeiramente uma herança da Candelária? Esse fluxo
69 AGOSTINHO, 1987, p. 222.
95
narrativo revela mudanças nas notícias do jornal a respeito dos meninos indesejados ou
sujeitos da desordem?
Já que conhecemos como se processa o fluxo narrativo no tempo e que o passado
serve para autorizar o presente, como Sandro Nascimento é tratado sendo protagonista de
um crime, e, ao mesmo tempo, reconhecido como sobrevivente de uma chacina? Como o
passado de Sandro é atualizado e de que forma seu futuro é refigurado? Para responder
essas questões é necessário fazer novas referência às narrativas de O Globo sobre o
sequestro e mostrar as grandes sínteses criadas por esse discurso.
4.3 – As reconfigurações memoráveis por imagens sínteses
O trabalho de reconfiguração de um novo acontecimento promovido por um
remanescente da Candelária é narrado pela imprensa sob a forma de imagens sínteses. As
mesmas imagens estereotipadas construídas pelas narrativas de O Globo sobre os menores
da Candelária se repetem de certa forma quando analisamos o discurso do novo
acontecimento. Os argumentos tanto relacionados á chacina como ao sequestro do ônibus,
são reduzidos a uma marca para dar sentido e tentar incluir pelo senso comum o maior
número de pessoas possíveis na leitura das matérias. Os jornalistas de O Globo irão
reatualizar os sentidos produzidos sobre os menores da Candelária em suas narrativas sobre
Sandro Nascimento, usam assim, categorias redutoras após reconhece-lo como
sobrevivente da chacina. O jovem que reaparece após ter sobrevivido a uma chacina há sete
anos atrás é descrito como um monstro social que cresceu. Podemos perceber nas edições
da editoria Rio na semana seguinte ao sequestro como as refigurações jornalísticas
reafirmam a lógica do senso comum percebido anteriormente neste trabalho através das
narrativas que promovem o lugar da ordem e evidenciam generalisadamente a desordem
4.3.1 - A construção do monstro
Na segunda parte deste trabalho, vimos como os menores eram destacados pelas
narrativas dos jornais sobre o acontecimento Chacina da Candelária. Entendemos que a
identidade é uma construção que implica relações de alteridade, sempre em processo
dialético, ou seja, um constante tornar-se indicando dinamismo e transformações e não
96
essencialismos e naturalizações, e que o senso comum acerca da formação identitária tende
a eliminar o seu caráter dinâmico em busca de atributos essenciais e fixadores. Pensamos
no papel que desempenha o jornalismo, neste tenso embate entre as diversas concepções de
identidade. Assim, estamos partindo da premissa de que a imprensa, através de suas
estratégias narrativas, tende a reiterar o senso comum e anular as contradições da vida
cotidiana, produzindo sentidos que buscam explicar e condicionar as interpretações acerca
da realidade social. Para isso, produz espécies de cristalização das identidades de forma a
enquadrá-las em representações esquemáticas e essencialistas. Neste sentido, atuaria como
uma instituição legitimadora do senso comum. Mas para fazer isso, mesclam na cadeia
narrativa o presente com o passado, criando o que estamos denominando fluxo memorável.
O passado retoma sob a forma de grandes acontecimentos, elevados à categoria de marcos
fundadores, que legitimam os personagens e os fatos do presente.
É, portanto, como parte desse fluxo memorável que o personagem Sandro
Nascimento ganha força. Afinal, mesmo sendo um bandido ele é um sobrevivente de um
acontecimento espetacular.
No fluxo memorável da chacina da Candelária encontramos Sandro Nascimento. As
narrativas sobre este sujeito, mesmo entendido como vítima social, não havia de ser
diferente de quando era um menor de rua. Assim como foram tratados os menores citados
aqui anteriormente, tanto na primeira, como na segunda parte deste trabalho, onde a
memória da chacina é explorada, também em um novo momento, em que se apresenta uma
espécie de continuidade da Candelária – o seqüestro do ônibus - , o sujeito remanescente
deste acontecimento é tratado da mesma forma, sob a lógica tradicional do pensamento
comum, cristalizado, estereotipado e preconceituoso.
Assim observamos a construção de uma espécie de monstro midiático, naturalizado
pelos discursos sensacionalistas do jornal O Globo. Interessa-nos aqui pensar o
operacionalisação do jornal que a partir da representação marca o lugar da exclusão.
A matéria comentada anteriormente que tem por título "Terror e sangue no Rio", e
cujas fotos mostram as vítimas sobre o domínio de Sandro, dentro do ônibus, demonstram
momentos de tortura, em que o jovem segurava Geisa, que, chorando, pedia socorro à
polícia presente. O título desta matéria revela o terrorismo provocado por Sandro. Logo no
primeiro texto, existe uma reprodução da construção da identidade de Sandro Nascimento,
pois além de seqüestrador, Sandro é citado no lead como "bandido, sanguinário e frio",
97
“marginal” e “criminoso”. O texto fala ainda que Sandro poderia estar drogado,
reforçando, assim, o sujeito desordenado, uma figura que pertence ao mundo do mal. Este
detalhe sobre drogas aumenta a idéia de desarmonia com o equilíbrio da realidade
ordenada, que é, para o senso comum, uma espécie de pureza da vida.
A foto no centro desta página mostra Sandro sentado no banco do motorista,
agarrado ao pescoço de uma refém, que sob seu colo, tenta fazer o veículo andar. Dentro
deste contexto, a foto ganha significado de perigo. Sandro aponta a arma para a cabeça da
refém, que, expressando pavor, tenta dirigir o ônibus. Um box sob o título “As ameaças de
um bandido enlouquecido” expõe uma frase de Sandro: “ Delegado, ôôô, matei uma. Vou
contar até dez e matar mais uma...” Ao lado, a frase de um refém é colocada para
confirmar sua atitude e ampliar as sensações de terror e loucura proposta na reportagem:
“Senti muito medo e não sabia o que fazer. Ele estava nervoso e pegou alguns reféns.
Enlouquecido, começou a gritar para que os policiais saíssem da frente.”
Kathryn Woodward fala sobre sistemas classificatórios que demarcam o lugar da
diferença. Citando Durkheim, a autora se apóia na idéia de que o sistema classificatório
98
gera ordem à vida social e produz os significados por afirmações discursivas e por rituais.
70
Para entender a idéia de classificação, é importante pensar que as identidades são
construídas e as relações sociais são estabelecidas dentro de uma regra da separação do que
é profano e do que é sagrado, assim como pensou Durkheim a respeito dos processos
simbólicos da religião.
Operando por fixações como vimos nos capítulos anteriores, o jornal O Globo
separa o que é sagrado do que se considera profano. Vale lembrar a matéria publicada pelo
jornal em 1992 sobre os menores que invadem a igreja da Candelária, cercam os turistas e
acabam apanhando do adiministrador da igreja. Assim como naquele momento percebemos
ali essa separação do sagrado e do profano, podemos perceber essa idéia reatualizada nas
narrativas sobre o ônibus 174. Isso fica claro em alguns depoimentos como o de um refém
que foi liberado do sequestro por Sandro, sua fala aparece em um pequeno boxe que diz:
“O sujeito parecia possuído. Foi Deus quem me salvou” .
Quem vai confirmar essa idéia é o governador e a ex-governadora Rosinha
Garotinho, na época primeira dama do governo executado por Anthony Garotinho. Numa
entrevista publicada em uma das matérias da editoria “Rio” do dia seguinte ao sequestro
Garotinho que assistiu o episódio pela TV, declara que “o bandido estava drogado, era
psicopata e tinha pacto com o diabo” .
Derpois de dois dias essa idéia se reafirma pela sua esposa que diz segundo o texto
“ficou impressionada com a foto do sequestrador publicada pelo O Globo, na terça feira e
encontrou explicação metafísicas para o transtorno do sequestrador(...)”. A matéria
complementa a explicão: “o governador mostrou a foto a ela ontem pela manhã, também
70
WOODWARD in SILVA (2000).
99
impressionado com a imagem do bandido. Por causa do efeito das luzes, Sandro parecia
vestir uma capa e sua imagem ficara turva. Durante o sequestro, Sandro pediu que uma
das reféns escrevesse, com baton, no vidro do ônibus que havia feito pacto com o diabo. O
depoimento de Rosinha Garotinho segue na matéria: “_ Não sou xiita. Mas acredito em
Deus e no Diabo. E, pela foto, está claro que ele estava endemoniado, disse a primeira
Dama durante entrevista ao GLOBO, no Palácio das Laranjeiras.”
Ao publicar essas falas autorizadas o jornal também abre margens para a promoção
da essência do acontecimento contraditório, que pelo discurso das pessoas providos de
senso comum tipificam a identidade dos sujeitos. A matéria não apenas revela o
pensamento do refém, do Governador e da sua esposa, pois no geral suas narrativas são
propensas a simplificar imagens de realidades complexas, especialmente a dos sujeitos
envolvidos, como já vimos. Nesse caso, fica claro o apagamento de uma contradição pelas
idéias ordenadas da existência de um sagrado que se contrapõe ao profano.
No entanto, é importante pensar as identidades como um fluxo em constante
mudança e não como elementos fixos e inertes, ou seja, essencialmente sagradas ou
profanas. Assim como Heráclito pensou a pluralidade e mutabilidade do mundo e no devir
a partir de choques de realidades contrárias que causavam harmonia, não há possibilidade
de pensar em algo especificamente sagrado ou naturalmente profano, pois as realidades são
100
contraditórias e fluidas. A essência de uma identidade não existe, o que há é o simbólico e a
representação sobre esta.
Em uma das matérias sobre o sequestro, O Globo publicou: “Homem sem
identidade revoltou o Rio”, a idéia do título não era demonstrar as identidades múltiplas de
um sujeito, embora ele tivesse sido reconhecido em alguns momentos como Alex, Sandro
ou por Mancha como os menores da Candelária o chamava. Ao contrário, como o jornal se
baseia em questões do senso comum, definindo singularidades para explicar a realidade
contraditória, O Globo ao fazer essa afirmativa, pretendia reinterar o lugar de Sandro como
um indivíduo fora da ordem, não reconhecido, um jovem que para padrões de identificação
social não representava nada a não ser um criminoso. Para O Globo, Sandro era um ator
excepcional sem registro no Instituto Félix Pacheco que, ao mesmo tempo, era conhecido
por vários nomes. A matéria diz anda que Sandro poderia ter sido enterrado como mais um
indigente se não fosse reconhecido pela mãe Elza da Silva.
As considerações sobre a identidade do rapaz aumentam por causa de afirmações
feitas pela suposta mãe, ao dizer que Sandro Nascimento se chamava Alex Júnior da Silva.
A falta de um registro de identidade, narrado pela matéria demonstra desordem e indica o
lugar em que o criminoso pertence.
Uma estratégia narrativa usada pela imprensa para confirmar a partir do senso
comum a idéia de um ser originalmente bandido, é percebida na foto desta matéria
composta pela imagem de dois homens (vizinhos de D. Elza) segurando nos braços da
provável mãe de Sandro como se estivessem direcionando-a para algum lugar. A imagem
101
se assemelha à fotografia de Sandro sendo levado para o camburão da PM. Os significados
da fotografia do rapaz se repetem de certa forma na imagem da mulher, que tenta esconder
seu rosto com um casaco. Assim como seu filho tentou esconder-se dos flashes e das
câmeras das empresas de comunicação que cobriam o caso, sua mãe é representada da
mesma forma. Entendemos aqui que o jornal considerou importante fazer esta aproximação
entre a mãe e o bandido, para que os leitores com seus valores fundados no senso comum
reconhecessem por semelhança a mãe do sujeito que eles se referiam naquele momento.
As concepções de Durkheim acerca da relação entre autoridade moral e consciência
coletiva
71
, propostas também por Woodward, podem ser tomadas para pensarmos a atuação
do jornal, que, ao produzir sentidos através de práticas rituais, estimula os valores uma vez
classificados pela sociedade. Ou seja, a mídia utiliza-se de sistemas classificatórios
observados na cultura para dar sentido e construir representações do mundo social.
Woodward diz que, entre os membros de uma sociedade, há um consenso sobre como
classificar para manter a ordem social. Neste sentido, entendemos que o jornal ajuda na
padronização e naturalização dos valores determinados pela cultura, e organiza assim os
sentidos separando o puro do impuro e o que pertence à ordem do que não pertence, como
vimos em análise sobre o acontecimento da chacina da Candelária.
A idéia de ordem e desordem nasce a partir desta classificação simbólica. Os
criminosos só constituem o lugar da transgressão e da exclusão quando classificados. Mary
Douglas, em Pureza e Perigo, diz que se enxergarmos a diferença entre dentro e fora,
masculino e feminino, com e contra, iremos criar uma aparência de ordem. Douglas define
essa idéia com a seguinte frase: “A impureza é uma ofensa contra a ordem. Eliminando-a,
não fazemos um gesto negativo, pelo contrário, esforçamo-nos positivamente por organizar
o nosso meio”.
72
Nossos hábitos de classificação nos levam a rejeitar o que é impuro e a
fazer assepsias. Se prestarmos atenção àquilo que é desordenado, vamos ao encontro dos
modelos de organização. A noção do que é puro ou impuro, são criadas a partir do hábito
da separação ou da vontade de ordenação dos valores.
Para Norman Fairclough, o senso comum é uma conexão oculta entre a linguagem,
o poder e a ideologia. Os textos jornalísticos não são explicitamente cobertos de ideologias,
apenas mostram ao seu leitor o caminho para uma interpretação ideológica, na forma de
71
DURKHEIM (1970).
72
DOUGLAS, ano, pág.
102
naturalização. Fairclough afirma que a naturalização é a mais formidável arma do poder e
conseqüentemente um foco importante de luta.
73
A ideologia vira senso comum quando o
discurso é estereotipado e naturalizado, isso revela o efeito de poder que este representa em
um texto. Assim, o senso comum ideológico, através da linguagem, interfere na construção
de identidades dos sujeitos sociais. Norman Fairclough aplica o conceito de “rotinas
interacionais” ao perceber as formas como acontece a interação entre os sujeitos no
discurso e a forma como são separados ou misturados no texto, concluindo que a
naturalização dos fatos contribui para uma afirmação da imagem dos sujeitos sociais a
partir do senso comum.
74
Numa reportagem de 1996, vista no capítulo anterior, que tem por título “A nova
geração de meninos de rua da Candelária” e por subtítulo “Cocaína substitui cola de
sapateiro entre menores que dormem atualmente no local onde aconteceu a chacina de
1993” o jornal fala de um menor reconhecido como Maluco, e de outros que segundo o
texto, estão “todos mais violentos e mais drogados, soltos na vida”. Mas é sobre “Maluco”
que as narrativas da matéria vão se fundar e sobre ele diz: “de cocaína, ele diz entende
bem. Afirma que, pelo cheiro, sabe se é “malhada”(misturada com talco ou maizena).
Afinal, é um veterano. Aos 13 anos, bebia cachaça. Quando lhe dava um “caô na cabeça”,
quebrava tudo na casa da mãe, em Curicica, Zona Oeste. Antes mesmo de ser convidado a
sair, Maluco já era consumidor voraz de cocaína e maconha.” Esta reportagem tenta
mostrar a partir de referências do envolvimento dos menores com drogas, especialmente
usando a imagem de um dos menores – simplificando a realidade por esta imagem sínteses
- como depois de três anos de um crime contra crianças que moravam nas ruas, o típico
menor que ainda habita a Candelária não havia mudado, o que mudou foi a droga q ele
usava anteriormente.
A partir de reflexões sobre essa estratégia narrativa, podemos perceber como essa
noção de menino drogado fica próxima da idéia de naturalização do senso comum, sobre o
lugar da desordem, quando reconhecemos a mesma estratégia nas matérias sobre Sandro
Nascimento. Pra justificar a realidade de menores de rua não só depois de três anos da
chacina, mas especialmente depois de sete anos que ela ocorre, o sujeito reconhecido no seu
73
FAIRCLOUGH, Norman, Discurso e mudança social. Brasília, Editora UNB, 2001. p.105.
74
Idem, p.92.
103
passado como sobrevivente da Candelária é referenciado no título da reportagem desta
forma: “Bandido, fora de si, aparentava estar drogado”
Com tom opinativo o jornalista de O Globo primeiro qualifica Sandro como
bandido, depois afirma que ele estava "fora de si" e, em seguida, cria a hipótese de que ele
“aparentava estar drogado”. Mais uma vez a ênfase recai na qualificação de Sandro. Esse
momento de reatualização da memória, deixa claro como a classificação dos valores
estratégicamente mantidos no fluxo do tempo dialógico faz com que as contradições da
realidade fiquem cada vez mais apagadas e fazem com que o impuro que ofende a ordem
seja reiterado pelos valores do senso comum.
Com o relato de um artista sem identidade, a matéria começa com uma simulação
do show dado por Sandro: “_Querem pagar pra ver? Então vem. Meu pai morreu de tiro
também. Perdi um irmãozinho na Candelária. Arrancaram a cabeça da minha mãe quando
eu era pequeno. Eu sou maluco e não estou para bobeira - gritou Sérgio das janelas do
ônibus para policiais e jornalistas. Depois apontou a arma para fora e ameaçou atirar
contra jornalistas. Em seguida, ironizou: _Pode filmar, fotografar para o mundo todo.
Quer um beijo? Gatão! Disse mandando um beijo para o fotógrafo.” Esse texto nos faz
lembrar a matéria de O Globo de 1994, onde a narrativa do repórter tipifica o menor
identificado como “R”. A descrição do menor evidencializa um estereótipo e aponta o
104
deboche como característica da delinquencia: De cabelos cortados rente, com pequenas
manchas ruivas – resultado de uma improvisada descoloração – R. de 13 anos sorri
descaradamente (...)”. Tanto Sandro quanto o menor “R” são narrados como tipos ímpios que vão
contra a moral e a ordem.
A fotografia de Sandro, que é referência hoje quando a mídia trata do episódio e que
foi usada no cartaz do documentário, também é uma representação de deboche. Seus trajes
tornaram-se fantasias e suas expressões se confundem atrás de um sorriso. O quepe da
polícia virado para trás, a toalha enrolada na cabeça e uma camisa no pescoço acabam
marcando seu lugar de personagem-bandido, a partir das narrativas textuais que são
construídas a seu respeito. A imprensa portanto, tenta afirmar as imagens dos sujeitos pelos
valores comuns a sociedade.
Sobre essa afirmação de imagens dos sujeitos sociais, Michel Foucault, em sua obra
Os anormais, fala sobre o poder dos discursos psiquiátricos da década de 50, que tinham,
de certa forma, autoridade para condenar um criminoso, ao relatar seus comportamentos.
Foucault classifica tais discursos como grotescos pelo fato de serem criados por pessoas
desqualificadas, que detinham efeitos de poder, o que ele chama de “autoridade ridícula”.
75
Para ele, os discursos sobre os criminosos são “enunciados que possuem o estatuto de
discursos verdadeiros, que detêm efeitos judiciários consideráveis e que têm no entanto, a
curiosa propriedade de ser alheios a todas as regras, mesmo as mais elementares de
formação de um discurso científico (...)”.
76
Esta observação de Foucault remete à produção
jornalística e sua relação com os discursos providenciados pelas noções do senso comum
sobre sujeitos identificados como criminosos na sociedade contemporânea. As “rotinas
interacionais”, como propôs Fairclough, são similares no caso dos discursos psiquiátricos
da época e das narrativas jornalísticas construindo imagens preferenciais dos indivíduos.
Assim, na análise realizada anteriormente sobressaem as reduções qualitativas sobre
Sandro do Nascimento que o qualifica. As concepções arraigadas do senso comum fazem
com que os jornalistas construam lógicas de pensamentos não contraditórias, como as dos
relatos psiquiátricos da década de 50, mesmo que tenham como valor organizativo do seu
discurso o ideal de neutralidade. Foucault, ao analisar os relatos dos peritos, percebe que
seus valores são princípios para descrever o criminoso e para criar hipóteses sobre as
75
FOUCAULT (2001:pag)
76
Idem, p.
105
realidades dos crimes cometidos. Estes profissionais demonstram ter pensamentos
naturalizados pelo senso comum e pelas noções de tabu existentes na história social.
Uma frase citada por Foucault resume a lógica de pensamento dos narradores:
“afinal, se ele cometeu um roubo, é porque é ladrão; ou se cometeu um assassinato, é
porque tem uma compulsão a matar”.
77
Os raciocínios não se baseiam nas realidades
contraditórias, mas, como relata Foucault, o pensamento se valida de uma falsa
objetividade onde os psiquiatras declaram: “nós como peritos, não temos de dizer se ele
cometeu o crime que lhe imputamos. Mas suponhamos que ele tenha cometido.” A partir
disso, criam-se hipóteses a respeito dos acusados e geralmente as narrativas são sobre
sujeitos que ocupam o lugar da desordem, da impureza. São indivíduos que quebraram
algum tipo de tabu e, portanto, precisam ser separados.
Também os jornalistas, ao relatarem os fatos, costumam apresentar os criminosos
como personagens que são incapazes de interagir com o mundo ordenado, ou que têm
preferência pelo lugar da desordem, sendo estes motivos que os levam ao crime. As
narrativas espetaculares fazem muitas vezes com que a realidade passe do ato à conduta,
como explica Foucault. O comportamento histórico da vida de um criminoso relatado por
um poder discursivo não é nunca visto fora do crime. Todos seus atos são justificados pela
sua maneira de viver a vida. Explica Foucault: “descrever seu caráter de delinqüente,
descrever o fundo das condutas criminosas que ele vem trazendo consigo desde a infância,
é evidentemente contribuir para fazê-lo passar da condição de réu ao estatuto de
condenado.”
78
É por este viés que o jornal O Globo lembra o passado de Sandro na Candelária,
para explicar e justificar sua atitude criminal. Não por causa de uma revolta, por ter sido
vítima de uma chacina na infância, ou por ter perdido sua mãe brutalmente, ou por ser
pobre e nunca ter tido oportunidade - como ele mesmo declara no documentário Ônibus
174 - mas pelo fato de ter características comuns aos menores que vivem nas ruas da cidade
do Rio de Janeiro, classificados como infratores, como “B” ou “R”, casos já comentados
nos capítulos anteriores. Seria como se o leitor pudesse pensar da seguinte forma: “se ele
era um menino de rua e esteve na Candelária em 93, está explicado”.
77
Frase de um dos relatos analisados por Foucault (idem, p.21).
78
Idem, p.
106
Além disso, o discurso da imprensa não se organiza apenas sobre a condição do
sujeito que cometeu o crime, ele ainda demonstra, a partir das suas idéias tradicionais do
senso comum, o perigo social e faz um discurso direcionado para o medo, como podemos
perceber na análise da cobertura de 174. Um exemplo disso é a foto colocada da página
ilustrada abaixo, que diagramada no centro, chama maior atenção do leitor. Nela, o autor
do sequestro olha para frente com a arma apontada como se fosse atirar no leitor. Assim,
esta foto aproxima ainda mais opúblico de O Globo da ocorrência e representa a ameaça
que um tipo como Sandro pode ser para a sociedade. Entende-se então que, a rigor, os
discursos que indicam o perigo também são voltados para uma normalização, a partir da
representação de um sujeito que foi no percurso da sua vida, transformado em um ser
ameaçador a partir das suas próprias escolhas de permanência no lugar da desordem.
A idéia de normalização nos induz a pensar também a construção do anormal e do
monstruoso. Sobre isso, Foucault diz: “só há monstruosidade onde a desordem da lei
natural vem tocar, abalar, inquietar o direito...”.
79
Para ele, a desordem da natureza e a idéia
de formação de um homem mais animal abalam a ordem e, daí, fazem surgir o monstro. É
neste sentido que as identidades dos criminosos são constituídas, como monstros sociais,
79
Idem, p.
107
seres dignos de estar separados do mundo da normalidade, pessoas dignas de morte de
acordo com a mentalidade dos que ocupam o lugar da ordem.
80
Na reportagem de O Globo, onde Sandro é reconhecido como um sobrevivente da
chacina da Candelária, o repórter narra sua relações atual com uma menina identificada
pela narrativa do repórter como “X”, que ele conhecia desde os tempos que vivia pela
Candelária. No depoimento publicado nesta matéria, a menina conta que Sandro tinha
orgulho de dizer que estava na madrugada da chacina, no momento em que os policiais
atiraram, e que chegou inclusive a escrever na parede de um quarto de hotel onde
costumavam ir, a seguinte frase: “Alex, o Mancha da Candelária”. Essa narrativa do
jornal não representaria nada além de caracterizar mais seu personagem monstruoso que
com atitude similar ao que se conehce como vandalismo, pixa a parede de um lugar
privado.
Sobre a idéia delugar da normalidade a narrativa do jornal demonstra claramente
sua posição ao publicar o seguinte título de uma das matérias sobre o sequestro: "Motorista
conta que bandido embarcou no Hospital da Lagoa e pagou passagem como passageiro
comum". Esta frase marca a idéia de um indivíduo fora dos padrões de normalidade. Um
bandido drogado não deveria ter este comportamento significativamente ordenado. O
espanto em saber que Sandro pagou a passagem é um reforço contraditório sobre a imagem
do bandido, pois, de certa forma, demonstra um provável disfarce, onde o sujeito vil busca
se esconder nas regras da ordem social. Esta observação interfere de forma fundamental na
questão do medo midiático, pelo fato do mal ter um disfarce e poder parecer normal e
cotidiano. É o medo do invisível, de alguém que pode pagar a passagem do ônibus, entrar,
sentar e, de repente, promover um seqüestro. O texto jornalístico, então, reforça a idéia da
insegurança, e da monstruosidade mesmo com frases aparentemente simplórias.
4.4 – Violência, morte e esquecimento
Diversas narrativas sobre sujeitos “monstros” da história acabaram virando
referências quando se fala de crimes no Brasil,
81
como a história aterrorizante do “Crime da
mala”, de 1928, quando um homem mata a esposa grávida, corta suas pernas e coloca o
80
CITE BARBOSA, É MELHOR AQUI.
81
Referência revista marco
108
resto do corpo em uma mala e a despacha para a França, por ela ter descoberto um golpe
que ele pretendia aplicar em um parente. Ou o caso conhecido como “Fera da Penha”, de
1960, onde uma mulher por vingança, mata e queima Taninha de 4 anos, filha do seu
amante. Dentre estes, podemos citar também a morte de Araceli, a menina de oito anos que
foi estuprada e que teve seu corpo desfigurado por ácido; o episódio da morte de Claudia
Rodrigues em 1977, que foi estrangulada no bairro do Leblon no Rio de Janeiro; o caso do
maníaco do Parque em 1998 e o caso Daniela Perez,
82
em 1992, dentre outros de grande
repercussão e cobertura midiática. Muitos são os casos que ao invés de serem esquecidos,
são sempre lembrados. Em todos a morte cruel é razão da constante recordação.
Por conta de uma valorização da notícia como mercadoria e do espetáculo como
gancho principal para a venda, acostumamos a acompanhar nos jornais e na televisão
crimes tão violentos como os referidos acima. Quanto mais se vê a violência, mais ela faz
parte do noso cotidiano, portanto, cada vez mais ela é naturalizada. A rigor, teatralização da
violência é a realidade contemporânea e a banalização da sua existência o nosso problema.
Muniz Sodré, em sua obra Sociedade, Mídia e Violência, enfatiza a questão da
mídia no centro das interrogações sobre o fenômeno da violência. Muniz cita seis casos
distintos de violência como exemplo no começo do seu texto, e os classifica como violência
anômica, ligada à falta de respeito à ordem social e marcada por uma crueldade
significativa; violência representativa, espetacularizada pelos jornais, filmes e
propagandas; violência sociocultural, onde estão envolvidos problemas da transformação
do mundo capitalista, que envolvem também questões raciais e homossexuais; e por fim,
violência sociopolítica, ligada ao poder e determinados tipos de hegemonias. A partir dessa
separação entre os tipos de violência, tenta demonstrar que existem “atos de violência” e
“estados de violência”. Os atos são os seqüestros, assaltos, assassinatos e tudo que estiver
ligado à prática efetiva da violência. O estado se refere às práticas invisíveis e institucionais
provocados pelo serviço público. Para ele, ainda, a violência social pode ser chamada de
direta, quando existe exercício imediato de força física, e indireta quando é latente, ou seja,
marcada por pressões ou ameaças dos campos econômicos, morais, psicológicos ou
políticos. Mesmo sendo a violência considerada plural, a idéia e o conceito de força é que
prevalece, na maioria das vezes, para explicar a violência.
82
Sobre este caso, ver a dissertação de Priscilla Seifert, Tribunais Paralelos: imprensa e judiciário no caso
Daniella Perez. Niterói: Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF, 2004.
109
Dentro do contexto contemporâneo, só podemos entender a violência a partir da sua
relação com a mídia, que a mediatizam. A violência tratada como fato jornalístico é
sobretudo aquela que contém um nível de crueldade significativo, o que impede inclusive,
de categorizar a violência, pois seus sentidos se misturam. Muniz Sodré usa o termo
“sistema imagético” para explicar a produção do espetáculo midiático que atrai e distrai o
público. A violência entra neste sistema de imagens como comentamos anteriormente. A
naturalização dos sentidos violentos e brutais dada pela mídia espetacular e mercadológica
faz com que os fatos tenham prazos de validade ultra-rápidos pelo tamanho mínimo de
complexidade que se aplica a ele.
Essa relação da mídia com os fatos violentos faz com que cada vez estejamos mais
perto dos atos de violência do que do seu estado. Participa-se muito mais das informações
de seqüestros, assaltos e homicídios de modo geral. O que acontece no espaço público é
uma anomia social relacionada à violência contraposta assim, ao que podemos classificar
como uma ultravisibilidade da mídia, o exagero visual. A dificuldade que se tem hoje em
separar os tipos de violência também vem dessa relação pessoal com o exagero e a sua
conseqüente naturalização. Portanto, é preocupado com essa anomia e indiferença que
Muniz Sodré procura definir o conceito, pois a morte do conhecimento sobre a violência,
também é a morte da sua importância. Se não se conhece suas categorias, se esta tende a
mantê-la no lugar imagético honrado por nós e pela comunicação de massa.
Assim como o conceito de violência é apagado, a idéia de morte também está
banalizada. Marialva Barbosa em seu texto “A morte imaginada” fala exatamente dessa
morte anunciada pelo espetáculo. Seus argumentos enfatizam que por conta do crescimento
da morte violenta no contexto de desigualdade social e guerras urbanas, a mídia não
enfatiza mais a morte e sim as cenas de alguma brutalidade. A não ser, no caso de
celebridades ou sujeitos importantes na história, como Tancredo Neves, Ayrton Senna, ou
Roberto Marinho. De qualquer forma também, como mostra Marialva, o morto já não tem
maiores evidencias, quando os rituais da morte e o moribundo eram vividos com uma
temporalidade maior. Embora no caso dos mortos públicos um tipo de ritual ainda apareça,
não se evidencia mais o morto.
A morte é, pois, separada do pensamento, assim como se separa a impureza. O que
diferencia o horror pela morte é a narrativa que se constrói sobre ela. Crianças que morrem
em acidentes ou celebridades que são assassinadas ganham uma narrativa sobre suas mortes
110
diferenciadas, pois tem direito a discursos sobre seus passados, rituais de despedida, que
confirmam a maldade sofrida e trazem esperanças de que serão sempre lembradas com
alegria.
Já no caso dos menores, mesmo sendo lembrados em cerimônias religiosas como
missas, são mortes marcadas por um tipo de esquecimento, do que pela lembrança da vida.
Assim também o caso do Sandro, que ao morrer não teve direito de cerimônias, onde só D.
Elza, sua mãe, acompanhou seu caixão. Por outro lado, Geisa, como vítima e pessoa
distante da maldade e da desordem, teve sua história lembrada, como a professora primária
que dava aula na comunidade da Rocinha, sua vida foi relatada como uma trajetória
interrompida.
No caso da Chacina da Candelária as cerimônias após a morte dos menores como
flores colocadas no local do crime, em frente à igreja da Candelária, ou as missas
promovidas, não eram atitudes apenas que queriam lembrar a morte brutal, mas também
serviam de alguma forma como perdão e purificação dos seus atos ou da sua existência
como seres dignos daquela morte. Ao contrário das flores colocadas na curva Tamburello,
onde Ayrton Senna morreu, que homenagearam sua vida sem um tom sequer de perdão,
pois se tratava de uma alma iluminada.
Essa idéia de celebração no local da morte, nos permite retomar ainda a discussão
sobre lugar de memória de Pierre Nora (1986), comentada no capítulo anterior. Vale
lembrar que o jornal O Globo tenta difundir a idéia da cidade do Rio de Janeiro como lugar
perigoso, ao procurar esquecer rapidamente a chacina da Candelária e o caso do ônibus
174. É neste sentido, que podemos pensar a morte do inimigo (menores de rua, ou rapazes
que assaltam ônibus) como uma referência que é feita para que seja apagada da memória.
Neste caso, a chacina é lembrada nas reportagens sobre o seqüestro do ônibus para ser
esquecida também. Não falar muito da Candelária ou mudar o número do ônibus que
circula da zona sul é tentar esquecer o horror ocorrido nesses lugares.
A morte ou esquecimento dos menores na memória social é uma solução imediata
para a consciência do senso comum, ou uma interrupção no fluxo do mal existente. Mas ao
mesmo tempo, podemos nos questionar: a morte é a solução para o fluxo do senso comum?
Se fosse, o caso de Sandro Nascimento não seria similarmente narrado pelo jornal O Globo
como o caso dos menores mortos na chacina. De qualquer maneira, a imprensa pinta a
morte desses sujeitos da desordem como se fosse a morte do futuro, o fim da violência.
111
Lembrar desses lugares e desses casos, seria lembrar dos problemas da violência não
terminados. E já que na cobertura do caso, as contradições de uma realidade problemática é
reduzida pela força da espetacularização, porque não lembrar com a intenção de esquecer?
(mudar todo esse final)
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