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ALBA LÍVIA TALLON BOZI
A POLÊMICA DA VIDA NAS PÁGINAS DO JORNAL:
A FOLHA DE SÃO PAULO E A MANIPULAÇÃO DE EMBRIÕES
PARA OBTENÇÃO DE CÉLULAS-TRONCO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do grau de mestre.
Orientador: Prof. Dr. Afonso de Albuquerque
Co-orientador: Prof. Dra. Paula Sibilia
NITERÓI
2007
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2
B793 Bozi, Alba Lívia Tallon.
A polêmica da vida nas páginas do jornal: a folha de São Paulo e a
manipulação de embriões para obtenção de células-tronco. / Alba Lívia
Tallon Bozi. – 2007.
135 f.
Orientador: Afonso de Albuquerque.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Artes e Comunicação Social, Departamento de
Comunicação, 2007.
Bibliografia: f. 133-135.
1.
Jornalismo científico. 2. Folha de São Paulo (Jornal). 3.
Biotecnologia. 4. Biossegurança – Legislação – Brasil. I. Albuquerque,
Afonso de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Artes e
Comunicação Social. III. Título.
CDD 070.4495
2.
3.
4. 371.010981
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3
ALBA LÍVIA TALLON BOZI
A POLÊMICA DA VIDA NAS PÁGINAS DO JORNAL:
A FOLHA DE SÃO PAULO E A MANIPULAÇÃO DE EMBRIÕES PARA OBTENÇÃO
DE CÉLULAS-TRONCO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do grau de mestre.
Orientador: Prof. Dr. Afonso de Albuquerque
Co-orientador: Profª. Drª. Paula Sibilia
Aprovada em
Banca Examinadora
Prof. Dr. Afonso de Albuquerque (orientador) – UFF
Profª. Drª. Paula Sibilia (co-orientadora) – UFF
Profª. Drª. Ruth de Cássia dos Reis – UFES
Prof. Dr. Fernando Resende - UFF
NITERÓI
2007
4
Agradeço
Ao Afonso, pela disponibilidade, pelos
ensinamentos e pelo incentivo.
À Paula, por abraçar a co-orientação deste trabalho, já durante
seu andamento, e por dar a ele uma essencial contribuição.
À Ruth, eterna professora, pela importante participação na
minha formação profissional e acadêmica.
Aos meus pais, por me encorajarem na busca
desta tão importante conquista.
Aos meus irmãos, pelo incessante apoio.
Aos amigos, por me animarem durante todo percurso.
A Deus, por nossa tão fascinante humanidade.
5
O rápido progresso hoje obtido pela verdadeira ciência às vezes me faz lamentar ter nascido
cedo demais. É impossível imaginar a que altura poderá ser levado, dentro de mil anos, o poder do
homem sobre a matéria. Talvez aprendamos a despojar grandes massas de sua gravidade e a lhes dar
uma leveza absoluta, em prol da facilidade de transporte. A agricultura poderá reduzir sua labuta e
duplicar sua produção; todas as doenças poderão vir a ser prevenidas ou curadas por meios seguros,
sem excetuar nem mesmo a velhice, e talvez nossa vida se alongue a nosso gosto, ultrapassando até o
padrão antediluviano. Quisera eu que a ciência moral se encontrasse num rumo igualmente satisfatório
de aprimoramento, que os homens deixassem de ser lobos uns dos outros, e que os seres humanos
enfim aprendessem a ter o que hoje chamam impropriamente de humanidade!
Benjamin Franklin (carta a Joseph Priestley, 8 de fevereiro de 1780)
6
Resumo
Este trabalho resulta da análise da cobertura do jornal Folha de São Paulo sobre o tema
das pesquisas com células-tronco de embriões, autorizadas pela Lei 11.105, de 2005. O
assunto integrou a pauta da Folha desde 1997, quando foi divulgada a clonagem que resultou
na ovelha Dolly, experimento que marcou as pesquisas genéticas, provocou enorme
repercussão em todo o mundo e motivou o agendamento da questão na imprensa. A polêmica
inerente ao tema e os impactos que ele representa sobre as atuais concepções de vida humana
nos levaram a uma reflexão sobre os conceitos de vida e morte, e sobre os princípios políticos,
econômicos e morais que envolvem a manipulação da vida. Dois argumentos são destacados
no debate sobre o tema. O primeiro, de fundamentação cnica, indica as possibilidades de
intervenção na saúde humana, representadas pelo potencial das células-tronco embrionárias,
que poderá conduzir, no futuro, à cura de doenças crônicas ou problemas degenerativos, ainda
não conquistada com as técnicas atualmente adotadas, ou à melhoria na qualidade de vida dos
pacientes por eles acometidos. A segunda abordagem propõe uma discussão ética e envolve a
reflexão sobre o status do embrião no estágio chamado blastocisto, momento em que devem
ser retiradas as células-tronco para estudo. Como ferramenta teórica e metodológica para a
análise da cobertura feita pelo jornal, nos amparamos na teoria do enquadramento,
relacionando-a com a construção social da realidade e com a agenda-setting, outras duas
perspectivas teóricas influentes nos estudos da comunicação. Com isso, podemos observar de
que maneira o debate sobre as pesquisas e sobre a tramitação do controverso Projeto de Lei de
Biossegurança foi abordado pela Folha de São Paulo.
Palavras-chave
Jornalismo - Enquadramento Agendamento Construção Social da Realidade
Manipulação da vida - Biotecnologia – Lei de Biossegurança
7
Abstract
This paper is based on the news coverage of Folha de São Paulo on embryonic stem cells
research, legal in Brazil since 2005 (Law 11.105). This subject has been discussed in Folha
since 1997, when the cloning of a sheep, Dolly, transformed genetics experiments. The effect
of this kind of research in the whole world put it on the news coverage agenda. Such a
controversial topic and its consequences on human life, as conceived until then, suggest new
ways of thinking on life and death and on the political, economical and moral principles that
deal with life manipulation. Two main ideas are considered in this paper. The first one is
based on a technical assumption and shows possible interventions on human health. It
considers that embryonic stem cells may lead, in the future, to the cure of chronic and
degenerative diseases, something not possible at this moment, or increase life expectancy and
well-being of those patients suffering from these diseases. The second idea proposes an
ethical discussion on the use of blastocyst, the embryos status when stem cells are taken. The
theoretical and methodological approach for the news coverage uses the framing analysis, and
its relationship with social construction of reality and agenda-setting, two important
perspectives issues for communications studies. With this approach, it will be possible to
study how Folha de São Paulo deals with the debate about researches and legal procedures of
the controversial Law Project on Biosecurity.
Key-words
Journalism Framing Agenda-setting Social Construction of Reality Life’s
manipulation – Biotecnology – Law of Biosecurity
8
Sumário
Introdução 9
1. Aspectos técnicos e éticos da manipulação da vida 12
1.1. Aspectos técnicos 14
1.1.1. O debate em torno da manipulação da vida 14
1.1.2. Células-Tronco 17
1.1.2.1. Clonagem 20
1.1.2.1.1. Clonagem reprodutiva 21
1.1.2.1.2. Clonagem terapêutica 21
1.2. Aspectos éticos 22
1.2.1. Eixo político 25
1.2.2. Eixo econômico 29
1.2.3. Eixo moral 32
2. Enquadramento 35
2.1. Constrão Social da Realidade 36
2.2. Agenda-setting 38
2.3. Análise de enquadramento 42
2.3.1. Os fundamentos teóricos da análise de enquadramentos 42
2.3.1.1. Enquadramento e agenda-setting 45
2.3.1.2. Relações entre fontes e jornalistas 45
2.3.1.3. Enquadramento como elemento de construção da realidade 47
2.3.2. Usos metodológicos da análise de enquadramentos 50
3. O debate na Folha de S.Paulo 53
4. A fala dos agentes: o argumento ético 62
5. A fala dos agentes: o argumento técnico 87
6. O enquadramento das notícias 102
6.1. As fontes 103
6.2. Os títulos 114
6.3. Relação entre fonte e mote 117
Conclusão 128
Referências 133
9
Introdução
No dia 23 de fevereiro de 1997, pesquisadores do Instituto Roslin, na Escócia,
revelaram o nascimento do primeiro clone de um mamífero adulto. O mundo conheceu Dolly,
uma ovelha que havia nascido sete meses antes, a partir de uma célula somática de uma
ovelha adulta, por um processo denominado “transferência nuclear”. Até o nascimento de
Dolly, foram 277 tentativas, 29 embriões produzidos. Boa parte dos óvulos nem pôde ser
implantada. Dos embriões que puderam, apenas a gestação de Dolly chegou ao fim. Os
demais morreram durante o processo, sendo que muitos deles tiveram alterações genéticas ou
malformações graves. Dolly morreu jovem. Uma ovelha vive até 12 anos. Dolly foi
sacrificada aos seis anos e sete meses. Ao longo da vida, apresentou problemas que indicavam
um possível envelhecimento precoce, como artrite, e teve uma doença pulmonar progressiva,
que levou seus criadores a optarem por sacrificá-la. A necropsia diagnosticou câncer de
pulmão. O desenvolvimento dessas doenças não foi comprovado como decorrência da
clonagem, mas levou à desconfiança sobre a segurança da técnica.
Dolly provocou surpresa em todo o mundo. Desde seu nascimento até sua morte. Seu
nascimento mostrou que a clonagem de um mamífero era real. Mostrou imediatamente as
possibilidades de se clonar um ser humano, agora concretas. As reações de receio e desejo se
multiplicaram. Os questionamentos éticos, muitas vezes decorrentes das limitações técnicas,
se intensificaram. Não se poderia submeter um ser humano aos mesmos testes e colocar sua
vida em risco por doenças que poderia ter origem no processo.
O debate tomou grande proporção. Legislações de diversos países proibiram a
clonagem com fins reprodutivos, e a representantes da comunidade científica também
concordavam com a não realização do procedimento. O processo utilizado para gerar Dolly,
porém, é o mesmo a ser empregado para gerar embriões que sejam fornecedores de células-
tronco.
O potencial dessas células também ocupou o espaço midiático na última década.
Diferente da clonagem reprodutiva, que visa gerar um indivíduo, a chamada clonagem
terapêutica tem por meta obter tecidos e órgãos que possam ser usados em tratamento de
doenças graves. As possibilidades que as células-tronco podem representar para a descoberta
de doenças e, principalmente, para o tratamento de males que hoje não alcançam solução com
as técnicas atualmente disponíveis justificam a inserção do tema na agenda da mídia, da
política e da audiência.
10
A imbricação da ciência genética com a tecnologia atinge perspectivas que indicam a
conquista do alongamento da vida e até mesmo da imortalidade, dois cenários que integram o
imaginário social. Seus objetivos primários podem ser a saúde, a juventude, a beleza, mas
para além disso estão as ambições de controle dos corpos e das populações, alvo dos poderes
políticos e econômicos.
As manipulações genéticas representam instrumento de grande utilidade para as
biopolíticas. Ao serem ostentados sob a ótica do zelo à saúde e do aumento da qualidade de
vida, os resultados possibilitados pela biotecnologia ganham o apoio da sociedade. Afinal, os
fins são nobres: descoberta, prevenção e cura de doenças graves. No entanto, a ambição do ser
humano vai além de uma vida mais saudável, e envolve também o sonho de se dotar de
características físicas que atendam ao seu modelo ideal. Esse modelo ideal, instituído pelas
biopolíticas, tem como foco o prolongamento da vida produtiva, em consonância com os
interesses do mercado.
Os meios de comunicação social, em especial a imprensa, são agente importante na
consolidação das biopolíticas. Por meio deles, os poderes político e econômico encontram
grande espaço junto à população. Detentores de status que garante a eles a condição de fonte
fiável, conseguem agendar o jornal e atuam na construção da realidade social, juntamente com
os jornalistas que os procuram e também com o público.
Neste trabalho, propomos uma discussão sobre os aspectos cnicos e éticos da
manipulação da vida para a obtenção de célula-tronco a partir de embriões humanos. Embora
tratados de maneira separada, os dois aspectos são interligados e a opção por enfatizar um
deles permite a defesa de posição contrária ou favorável ao uso de embriões humanos para
pesquisa científica. O argumento técnico apresenta as vantagens que podem ser obtidas pelo
tratamento com células-tronco embrionárias e apresenta como marco inicial da vida o embrião
a partir do 14º dia, quando não pode mais se dividir em dois ou mais indivíduos. Antes disso,
na fase de blastocisto, não tem status de ser humano. O argumento ético apresenta o embrião
como vida desde o momento da concepção e, por isso, precisa ser respeitado e não pode ser
utilizado como instrumento para pesquisa.
Os agentes sociais disputam espaço na esfera pública da mídia. Assim, para analisar a
atuação de tais agentes e a maneira como a imprensa lida com a questão, realizamos um
estudo sobre a cobertura do jornal Folha de São Paulo envolvendo as pesquisas com células-
tronco embrionárias e a tramitação do projeto que resultou na Lei 11.105, a Lei de
Biossegurança, sancionada em 24 de março de 2005, permitindo as pesquisas com embriões
congelados há mais de três anos.
11
Apresentamos um debate sobre a manipulação da vida, as questões políticas,
econômicas e morais envolvidas no debate, e nos amparamos na teoria do enquadramento
para analisar a cobertura do jornal sobre o tema. O enquadramento, uma perspectiva surgida
nas ciências sociais e bastante aplicada nos estudos de comunicação, é a organização da
realidade com a seleção de informações, a ênfase em algumas e a exclusão de outras. Para
dialogar com a teoria do enquadramento, recorremos ainda a outras duas teorias: construção
social da realidade e agenda-setting, ambas também originadas da sociologia.
Escolhemos a Folha por ser representativa da imprensa brasileira, tendo circulação
nacional e sendo o maior jornal em tiragem. Dividimos a análise em duas partes. Na primeira,
observamos os artigos assinados, em que o texto é construído diretamente pela fonte.
Dividimos nossa análise entre os argumentos técnicos e os éticos apresentados pelos
articulistas, em artigos publicados entre 1997 e 2005, que contribuíram para a construção de
uma realidade envolvendo a temática.
Na segunda parte, nos detemos ao noticiário do jornal, em que a palavra dos agentes é
mediada pelos jornalistas, também agentes na construção da realidade. No espaço destinado
às notícias, os textos devem obedecer a regras da prática jornalística, entre elas a objetividade,
que visam garantir um equilíbrio entre os diversos ângulos possíveis para uma questão. Com
isso, os agentes, situados em campos opostos, disputam espaço na esfera pública mediada
pelo jornal.
Selecionamos para essa análise os textos que tratavam da tramitação do Projeto de Lei
de Biossegurança, publicados no período entre as duas votações feitas pela Câmara Federal, e
também reportagens que divulgavam tratamentos e avanços nas pesquisas com células-tronco.
Nosso objetivo, a partir dessa amostragem, é reconhecer as fontes escolhidas pelos jornalistas
para discutir o assunto, analisar de que maneira os agentes ocuparam os espaços disponíveis,
qual o enquadramento adotado pela Folha de São Paulo e de que modo ele fica evidenciado
pela cobertura jornalística, promovendo uma reflexão sobre enquadramento, sobre as rotinas
de trabalho da imprensa e sobre a complexa e decisiva relação entre as fontes e os jornalistas
na construção social da realidade.
12
1. Aspectos técnicos e éticos da manipulação da vida
A “revolução biotecnológica”, iniciada no século passado e potencializada nos últimos
anos, está redefinindo a vida. As possibilidades obtidas com as novas tecnologias estão
norteando ações, transformando corpos, reconstruindo os seres vivos. Estamos nos tornando
engenheiros da própria vida, tanto da nossa como das próximas gerações.
A evolução natural de nossos corpos levou anos, dezenas, centenas e milhares deles,
até que a atual formação estivesse definida, e essa evolução natural do corpo não está dando
conta de acompanhar as mudanças tornadas possíveis pelo avanço das tecnologias da área
biológica.
Enfrentamos uma ruptura que envolve o controle sobre a vida e a morte. Antes,
totalmente atribuídas à atuação divina ou ao acaso natural, hoje passam às mãos dos homens
(médicos, cientistas, farmacêuticos, empresários e governantes). As pesquisas avançam a cada
dia, e, com elas, as possibilidades de intervenção na vida humana. Vida e morte, por milhares
de anos, foram consideradas grandes mistérios. Com a evolução da ciência e o maior
conhecimento sobre as operações biológicas, passaram a ser mais compreendidas como
processos naturais. Agora, o caminho a seguir é, para além de compreendê-las, poder
controlá-las, e as experiências em andamento vêm procurando este tão almejado desfecho.
No último século, as descobertas científicas transformaram as experiências. Na década
de 1950, precisamente em março de 1953, foi revelada a estrutura de dupla hélice da molécula
de DNA, um conhecimento novo que mudou os rumos das pesquisas. Exatamente na era da
informação, tal descoberta o banco de dados do corpo humano abriu diversas
possibilidades de intervenção nos organismos vivos, entre elas a clonagem, reprodutiva ou
terapêutica. Com o conhecimento sobre a estrutura do DNA, as pesquisas com células-
troncos, iniciadas ainda no século XIX com alguns experimentos menos promissores,
ganharam outro foco e puderam ser direcionadas para o emprego na clonagem.
Embora o termo bioética tenha sido cunhado no final do século XX, os problemas
que motivam uma reflexão ético-filosófica e moral-religiosa são tão antigos quanto a própria
organização humana em sociedade, e nos últimos anos têm ocupado importantes espaços da
esfera pública, com o envolvimento de diversos agentes sociais nessa discussão.
Especialmente após a revolução industrial e a consolidação do capitalismo, as
preocupações com a vida foram ampliadas, visando a aspectos como produtividade e
qualidade, mas também motivando profundas questões de ordem moral, como a dignidade e o
respeito à individualidade humana. Essas diversas direções envolvem ainda uma outra esfera,
13
tão importante e talvez anterior a elas: o aspecto político. As tentativas de controle sobre a
vida, com o emprego de políticas públicas visando a tal fim, se fizeram presentes ao longo da
história de várias maneiras. Como exemplo, no último século, vimos a expansão das políticas
eugênicas, que recorreram à ciência para garantir sua execução.
Assim, o domínio sobre as vidas humanas é exercido por meio das “biopolíticas”
1
.
Com a ajuda da biologia, é possível ter poder sobre o interior do corpo orgânico o bio-
poder, definido por Foucault
2
(2005) –, o que aprimora e intensifica as possibilidades de
controle. Nas sociedades disciplinares identificadas por Foucault, os comportamentos eram
modelados pelos sistemas de vigilância, obtendo domínio na esfera social. Agora, com as
tecnologias de intervenção genética, torna-se possível moldar uma pessoa a partir de sua
constituição mais elementar sua formação como ser vivo –, numa atuação da ciência que
visa à previsão e ao controle, refletindo a perspectiva fáustica apresentada pelo sociólogo
Hermínio Martins
3
(1996 apud SIBILIA, 2002), em que a técnica é o objetivo principal da
ciência. A descoberta das técnicas do DNA recombinante trouxe à tona a possibilidade de
modificação na estrutura genética, propiciando uma intervenção na formação natural e
aleatória dos corpos. Hoje, os cientistas caminham para a conquista da clonagem humana. As
demonstrações já registradas em animais e os experimentos para a obtenção das células-
tronco visando à clonagem terapêutica mostram que a possibilidade da clonagem reprodutiva
é real, embora sua viabilidade não seja consenso entre os pesquisadores.
Motivados pelo desafio da complexidade da constituição da vida humana, ainda não
totalmente compreendida, e pelo projeto sociocultural de se obter um domínio sobre o que
ainda é desconhecido, os cientistas se aprofundam nas pesquisas envolvendo os elementos
formadores da vida. Um dos pilares para a compreensão da formação do ser humano está nas
células-tronco, capazes de formar todos os órgãos do corpo humano e responsáveis pelo
perfeito funcionamento dessas engrenagens.
1
Em linhas gerais, as biopolíticas são os princípios de intervenção e de controle utilizados para regular as
populações, modificando suas condições de vida, controlando-as e adequando-as às normas (FOUCAULT,
2005). Ainda neste capítulo voltaremos a esse tema.
2
O poder focado na vida, visando à sujeição dos corpos e ao controle das populações, na definição de Foucault
(2005, p. 131-132). Ainda neste capítulo nos aprofundaremos na questão.
3
Hermínio Martins (1996 apud SIBILIA, 2002) recorre a dois mitos ocidentais – Prometeu e Fausto – para
decompor as bases da ciência moderna. O titã greco Prometeu criou os homens a partir da argila e deu à
humanidade, contrariando Zeus, o controle do fogo – o conhecimento, antes apenas ao alcance dos deuses. Foi
castigado pela desobediência e é lembrado por ter se sujeitado ao sofrimento para beneficiar a humanidade. O
mito Fausto, de origem alemã, querendo superar os conhecimentos de sua época, faz um pacto com o demônio
Mefistófeles em busca da técnica e do progresso, desprezado as conseqüências dessa ciência. Fausto seria a
representação das tecnociências atuais, que buscam compreender a natureza para controlá-la.
14
Nos últimos 20 anos, e em especial nos últimos cinco anos, as descobertas têm sido
mais freqüentes e cada vez mais surpreendentes. Entusiasmados com os resultados possíveis
de serem alcançados com a aplicação das pesquisas, empresas farmacêuticas, laboratórios,
indústrias médicas e organismos governamentais reforçam o empenho para que os estudos
avancem, e, por conta dos agentes envolvidos, os avanços ganham visibilidade na mídia e se
inserem na agenda pública.
Neste capítulo, abordaremos os aspectos técnicos e éticos inseridos na manipulação da
vida. Na primeira parte, nos centraremos na técnica, nas discussões sobre os limites da vida e
da morte, e nos avanços da ciência com as descobertas que consolidaram a biologia genética
como a ciência do século XXI. Na segunda parte, nossa abordagem ética abrangerá as
questões políticas, econômicas e religiosas presentes no debate.
1.1. Aspectos técnicos
1.1.1. O debate em torno da manipulação da vida
A estrutura de DNA – descrita em 1953 é uma das principais descobertas das
ciências biológicas e foi a que reconfigurou os estudos da biologia genética e molecular.
Antes disso, os estudos já registravam alguns avanços quando as pesquisas em biologia
passaram a usar mais da experimentação, no final do século XIX. Naquela época, foram
publicados os resultados das experiências feitas pelo pesquisador alemão Wilhem Roux com
embriões de rãs, confirmando a teoria então esboçada, de que, ao lesionar uma das duas
células do embrião, nenhuma delas conseguia mais gerar um embrião normal justificando o
que ele denominou de teoria do desenvolvimento em forma de mosaico, em que perda de
potencialidades hereditárias durante as divisões celulares, até que cada célula tenha as
partículas relacionadas ao tecido de que ela faz parte. (NERI, 2001)
Pouco tempo depois, o cientista Hans Driesch, também alemão, descobriu, em seus
experimentos com ouriços-do-mar, que ao separar as duas células de um embrião,
desenvolviam-se dois embriões normais, o que levou o pesquisador a pensar que cada célula
do embrião era capaz de originar um indivíduo completo (NERI, 2001). A genética, ciência
que trata da hereditariedade, no início do século XX, optou pela tese do mosaico porque se
adequava melhor aos resultados que vinham sendo obtidos.
Em 1902, os estudos realizados por Walter Sutton associaram o comportamento dos
cromossomos na divisão celular e o modo como são transmitidos os fatores hereditários,
15
denominados genes a partir de 1909, nome dado pelo botânico Wilhelm Johannsen. A teoria
cromossômica da hereditariedade foi ganhando reforços nas décadas seguintes, graças a
outros estudos, mas permanecia misterioso o importante processo de diferenciação celular
(NERI, 2001).
Um dos mais importantes momentos entre os avanços para a explicação desse mistério
foi a demonstração, em 1944, pela equipe do pesquisador Oswald Avery, de que o ácido
desoxirribonucléico, o DNA, substância química conhecida mas considerada até então de
pouca importância, era o material hereditário. Nove anos depois, James Watson e Francis
Crick descreveram a estrutura de dupla hélice do DNA, que contém as informações
necessárias para a formação de todos os componentes dos seres vivos. Em 1970, os
pesquisadores descobriram como intervir nessa estrutura e modificar a bagagem genética,
com a tecnologia do DNA recombinante. Durante este período, foram realizados muitos
experimentos a fim de se descobrir precisamente o processo de fecundação, até que, em 1978,
nasceu o primeiro ser humano gerado por fecundação in vitro, na Inglaterra.
Quase 20 anos depois, em 1997, foi divulgado outro grande marco da ciência, o
primeiro caso de clonagem de um mamífero a partir de uma célula adulta. A ovelha Dolly,
mundialmente conhecida por ter revolucionado a biologia celular e do desenvolvimento, foi
gerada com o uso de técnicas de reconstrução embrionária por transferência nuclear. Foi a
primeira vez que uma célula adulta, somática (que dá forma a tecidos e órgãos) e diferenciada,
serviu para orientar o desenvolvimento de um embrião.
Logo depois, em 1998, foram apresentados os primeiros experimentos que obtiveram
células embrionárias pluripotentes humanas. A partir disso, foi rápido perceber que a
clonagem e as células-tronco podiam ser combinadas, resultando no que foi chamado de
clonagem terapêutica. Essa técnica poderia ser empregada para “construir ou reparar tecidos
danificados por doenças ou por acidentes a partir de novas células com as mesmas
características que as do tecido afetado e a mesma identidade genética do paciente”
(MARTINEZ, 2005, p. 22).
Como vemos, a descoberta da estrutura do DNA foi o principal impulsionador para as
possibilidades de intervenção na vida e também na morte. Foi a partir dele que outras
importantes descobertas se tornaram possíveis. Na atualidade, com os avanços cada vez mais
velozes da biotecnologia, chega-se ao ponto de adiar a morte, antecipar o nascimento, adequá-
lo a diversos interesses, escolher como nascerá e até provocar novas formas de vida, inclusive
à luz de objetivos desejados. A associação da ciência com a tecnologia busca reconfigurar a
vida e lutar contra a morte. A conquista da vida perpétua parece estar a um passo de ser
16
alcançada, e em condições favoráveis à produtividade, uma vida que se eternize mantendo-se
útil à sociedade capitalista. Isso representa o alcance de um controle antes nunca imaginado
sobre a vida, superando até mesmo suas limitações biológicas, inclusive a mortalidade
(SIBILIA, 2002). É a biotecnologia atuando com o biopoder, esse poder focado na vida, com
o intuito de obter a sujeição dos corpos e controlar as populações, define Foucault (2005). Um
poder que visa administrar a vida e moldá-la a atender os interesses dominantes, sendo a
morte a demonstração da falta de domínio sobre a vida.
As primeiras reflexões sobre a morte tentaram respondê-la com o mito, o culto e a
religião. Até o começo do século XIX, a morte era exaltada, e na passagem para a
contemporaneidade, passou a ser rejeitada. Nascimento e morte eram considerados fenômenos
naturais e contra eles o homem não tinha como lutar. No final da idade média, havia um amor
apaixonado pela vida. Philippe Áries conta que, do século XVI ao XVIII, houve uma ruptura
da familiaridade do homem com a morte e, no século XX, a morte “se tornou uma força
selvagem e incompreensível” (ARIÈS, 2003, p. 275).
No absolutismo, o soberano tinha poder sobre a morte. Ele escolhia quem deveria
morrer como forma de punição pelo comportamento inadequado. A partir do século XVII, o
poder assumiu a tarefa de gerar a vida – configurando o que Foucault (2005, p. 130)
denominou “biopoder”: “O velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por
um poder de causar a vida ou devolver à morte”. O poder direciona-se, então, para a vida, e a
morte torna-se exatamente o momento em que este poder escapa.
Outra razão para a transformação na relação com a morte foi a decadência das
religiões de salvação. Com a crença na vida eterna, na vida que prosseguia após a morte, a
passagem de uma condição para a outra era vista de maneira mais honrosa. A diminuição das
crenças religiosas mudou a relação com a morte e, antes disso, também com o moribundo,
agora alguém que não deve mais ser ouvido por não ter mais nenhuma glória (ARIÈS, 2003).
Com as alterações no status da morte e da vida, os esforços das ciências se voltaram
para a manutenção e o prolongamento do estado vivo. As possibilidades das intervenções
humanas, adquiridas, sobretudo, a partir do culo XX, tornaram a natureza vulnerável, e o
homem ganhou responsabilidade sobre ela (JONAS, 2006). Esta situação trouxe a necessidade
de reflexões éticas a respeito da atuação do homem na natureza, principalmente com os
avanços das pesquisas biológicas. Definir limites técnicos para a vida e a morte tornou-se
objeto de amplos estudos e intensos debates, sobretudo envolvendo pesquisadores, religiosos
e autoridades políticas.
17
Sob o aspecto biológico, até bem pouco tempo, a definição de morte estava atrelada à
natureza, e ocorria quando o corpo deixava de funcionar. A medicina já definiu a morte com o
fim dos batimentos cardíacos, quando cessavam todas as funções do corpo. Mais
recentemente, a morte passou a ser definida pelo fim das atividades cerebrais, mesmo que
outras funções ainda estivessem funcionando. Essa definição permite a retirada de órgãos
ainda saudáveis para transplantá-los em outros pacientes que apresentam maiores condições
de viver. Tal idéia é reforçada pela teoria moderna, sobretudo apoiada pelas descobertas
genéticas do século XX, que considerou o corpo humano por suas partes, e não mais como um
todo, continuando as teorias darwinistas, que moldavam a natureza humana aos interesses da
revolução industrial (RIFKIN, 1999), reforçando a idéia de homem-máquina.
Não apenas o fim, mas também o início da vida precisou ser redefinido a partir dos
novos rumos das ciências. As opiniões da ciência sobre o tema são divergentes. O início da
vida humana pode ser considerado como o momento da fecundação. Outra linha da ciência
indica que a vida começa após os 12 dias de gestação, pois antes disso o embrião pode ainda
se dividir em dois ou mais. Há cientistas que aplicam para o início da vida as mesmas funções
que são indicadas para definir a morte: quando o embrião passa a ter funções cerebrais, entre a
oitava e a vigésima semanas. Outro ramo define a vida pela capacidade de sobrevivência fora
do útero, em geral após a formação dos pulmões, entre a 20ª e 24ª semana de gestação. Menos
difundida, há a visão metabólica, que aponta que óvulo e espermatozóide também são vivos, e
que o desenvolvimento do ser humano é contínuo, não tendo, então, um marco.
Entretanto, embora possa ser reinterpretado sob vários critérios da biologia, não é
somente o ponto de vista biológico que está envolvido na definição do início da vida,
analisado sob concepções relacionadas à ética. Resumir a vida a um conjunto de funções
orgânicas, geradas a partir da combinação de genes, é colocar em risco o valor intrínseco da
vida, que se sobrepõe a características genéticas. Vida e morte não podem ser consideradas
apenas sob o aspecto biológico. O fato de viver e morrer torna completa a existência humana.
diversas outras questões envolvidas nisso. Mais à frente, abordaremos alguns aspectos
desta temática.
1.1.2. Células-Tronco
Em 1945, Hiroshima e Nagasaki, duas cidades japonesas, foram destruídas por
bombas atômicas jogadas de aviões, matando diretamente 170 mil pessoas. Nos cinco anos
18
seguintes, mais 200 mil morreram em decorrência da contaminação de água, terra e ar, e
milhões de pessoas ficaram com seqüelas irreversíveis.
Por conta do elevado número de mortes causadas por leucemia provocada pela
radiação, dois médicos canadenses realizaram diversas experiências e, por meio delas,
chegaram às células-tronco. Os dois médicos, Ernest McCulloch e James Till, aplicaram
grandes doses de radiação em camundongos e, depois, injetaram neles células de medula
óssea de animais saudáveis que possuíam o mesmo tipo genético a mesma linhagem para
ver o que acontecia. Eles apresentaram melhoras, normalizando os níveis de glóbulos brancos
e vermelhos. Pesquisando a origem dos novos glóbulos vermelhos, os médicos descobriram
que eles vinham de células-tronco adultas, presentes na medula óssea dos camundongos
saudáveis. Eles perceberam, ainda, que as células eram capazes de se multiplicar
indefinidamente, sendo, assim, uma fonte inesgotável de produção de glóbulos sangüíneos
(GRECO, 2005).
A descoberta foi publicada em 1961. Enquanto essa pesquisa era realizada, os Estados
Unidos faziam experimentos de transplantes de medula óssea entre humanos e também
autotransplantes. Nos casos de doação, os pacientes geralmente morriam por rejeição à
medula óssea recebida. Em 1969, foi feito o primeiro transplante bem sucedido ente pessoas
não gêmeas, depois da descoberta de que “o corpo humano não rejeitaria uma medula óssea
que tivesse tipo semelhante de Antígenos Leucocitários Humanos (HLA)” (GRECO, 2005, p.
48), um conjunto de proteínas presente no DNA que atuam como uma espécie de impressão
digital molecular do homem. Esses casos referem-se à aplicação de células-tronco adultas.
Na década de 1980, foram inventadas técnicas para retirar células de um embrião
recém-fertilizado de rato, alterá-las geneticamente e reimplantá-las, porém sem que se
diferenciassem. Tais células foram, mais tarde, identificadas como células-tronco
embrionárias, termo cunhado em 1981 pela bióloga Gail Martin, pesquisadora da
Universidade da Califórnia. Descobriu-se, ainda, que essas células eram capazes de
transformar-se em todos os tecidos de um camundongo adulto e transferir a modificação para
a geração deles originada. A conclusão era de que elas transformavam-se em todas as células
do corpo e eram capazes de se multiplicar indefinidamente.
O próximo passo foi conseguir isolá-las e fazê-las crescer em laboratório mantendo
sua capacidade de automultiplicação e especialização. Sucesso alcançado, os estudos
passaram a tentar alterar geneticamente as células isoladas. A precisão na mudança foi
alcançada em 1987, quando dois pesquisadores criaram uma técnica para inserir e apagar
genes específicos das células-tronco embrionárias de camundongos.
19
Em 1995, foram isoladas células-tronco embrionárias em macacos e, três anos depois,
em seres humanos, sendo conservadas vivas utilizando-se como ambiente tecidos de
camundongos. Neste estudo foram usados embriões formados nos processos de fecundação in
vitro com fins reprodutivos, porém não mais destinados ao implante no útero. As pesquisas
foram realizadas na universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, pela equipe do cientista
James Thomson, cedido pela Geron Corporatin – empresa biotecnológica, conhecida na época
pela realização de pesquisas sobre envelhecimento humano, que protagonizou diversas
polêmicas envolvendo patentes que também disponibilizou os laboratórios. Esse estudo foi
muito importante para mostrar a capacidade proliferativa das linhas celulares sem que se
diferenciem por muito tempo, o que não ocorre no processo natural. No entanto, lembra o
professor Demetrio Neri (2001), isso não pode ser considerado suficiente para que se inicie a
utilização terapêutica de tais células.
Não um conceito universal para células-tronco, mas podemos dizer que são células
capazes de, durante seu processo contínuo de replicação, originar células diferenciadas e
especializadas (NERI, 2001). O óvulo fecundado, ou zigoto, seria, então, a primeira célula-
tronco, que dele se origina todo o organismo. Depois de formado, o óvulo fecundado
começa a se dividir, sem aumentar de tamanho, em duas células perfeitamente iguais, depois
em quatro, oito e assim por diante.
Toda cisão é precedida por uma duplicação dos cromossomos, de tal modo
que todas as células filhas contenham a mesma bagagem genética da célula
originária, e isso [...] continuará constante por todo o desenvolvimento até a
fase pós-natal: todas as células do nosso corpo contêm a mesma e idêntica
bagagem genética da primeira célula. (NERI, 2001, p. 42)
As células-tronco são classificadas em totipontes, pluripotentes e multipotentes,
embora alguns pesquisadores não vejam diferenças entre as pluri e as multipotentes.
Usaremos aqui os conceitos adotados pelo professor de Bioética Demetrio Neri (2001), da
Universidade de Messina, Membro do Comitê Nacional Italiano para a Bioética.
A totipotência é uma propriedade que o óvulo fecundado tem no estágio de oito
células, até o quarto dia após a germinação. As células-tronco totipotentes são capazes de
produzir tudo que é necessário ao desenvolvimento do organismo. Nessa fase, a retirada de
uma célula do óvulo fecundado segmentado pode dar origem a uma nova segmentação,
comportando-se como um novo zigoto. Assim são formados os gêmeos e, em laboratório, esse
processo é chamado de clonagem por cisão embrionária.
A condição de totipotência se altera com a formação da mórula o óvulo fecundado
ganha o formato de uma amora –, já com 16 células. A partir daí, as células têm destinos
20
diferentes no desenvolvimento do organismo. A mórula evolui para a formação do que é
chamado blastocisto. Nesse estágio, entre o e 14º dias após a fertilização, o óvulo
fecundado tem geralmente entre 100 e 140 células, com potencialidades distintas. São
chamadas, então, de pluripotentes. Juntas, são capazes de originar todos os tecidos do
organismo adulto, mas sozinhas não podem produzir esse organismo.
Na fase seguinte, a partir do 15º dia, o embrioblasto originado da parte interna da
mórula e que seria o “germe do embrião” – ganha três camadas, os folhetos germinativos. Das
células presentes em cada um deles se desenvolverão gradualmente os vários tecidos e órgãos
do corpo humano. Tais células são chamadas multipotentes porque estão destinadas a formar
os tipos de tecido do folheto a que pertencem, mas não são capazes de originar todos os
tecidos do organismo. No entanto, uma célula de um tecido, se colocada em outro tecido,
pode alterar sua especialização.
As células-tronco não existem apenas na fase de formação do ser humano, mas
também no organismo adulto, visando suprir as perdas fisiológicas. As células-tronco adultas
estão presentes no couro cabeludo, no cérebro, na retina, na pele, na medula óssea e nos
músculos. Alguns tipos de células-tronco adultas são capazes de originar não apenas o tipo
celular do tecido onde é encontrada, mas também os tecidos de outros órgãos derivados do
mesmo folheto germinativo e até de outros.
1.1.2.1. Clonagem
Em 1996, nasceu a ovelha Dolly, o primeiro clone mamífero gerado por transferência
nuclear, num processo chamado clonagem reprodutiva. A partir desse resultado, surgiram as
discussões sobre clonagem humana, que a cnica usada é a mesma. Três anos mais tarde,
foi anunciado pelo governo americano o rascunho com 97% da seqüência do genoma
humano, abrindo possibilidades no diagnóstico das doenças genéticas e na terapia gênica.
Em 2001, a empresa Advanced Cell Technology anunciou que produziu embriões
humanos a partir de clonagem, mas assegurou que não pretendia usar a técnica para fins
reprodutivos e, sim, para cura de doenças. Ao longo daquele ano, vários periódicos, leigos e
científicos, publicaram artigos sobre o assunto, em defesa e contrários às pesquisas com
células-tronco embrionárias. Houve denúncia envolvendo uma pesquisa com CTs
embrionárias realizada com óvulos e espermatozóides obtidos para fins não reprodutivos que
teriam sido conseguidos mediante pagamento feito pelos pesquisadores: mil dólares para as
21
mulheres que doaram seus óvulos e 50 dólares para os homens que cederam os
espermatozóides.
Em 2005, cientistas da Universidade Nacional de Seul anunciaram a obtenção de
várias linhagens de células-tronco, a partir de clonagem. As linhagens seriam de nove
pacientes, entre homens, mulheres e crianças. Pouco tempo depois, a informação foi
desmentida. O pesquisador responsável, Hwang Woo-suk, admitiu a fraude e, em 12 de
janeiro de 2006, pediu desculpas publicamente. Com os últimos fatos relatados, se
intensificaram os debates e as controvérsias envolvendo a clonagem com fins reprodutivos e a
clonagem chamada de terapêutica.
1.1.2.1.1. Clonagem reprodutiva
A ovelha Dolly foi gerada por um processo de transferência nuclear. Nesse método, o
núcleo de uma célula adulta é retirado e transferido para um óvulo, que teve o seu núcleo
extraído. Com o novo núcleo, o óvulo pode, potencialmente, se desenvolver e gerar células-
tronco embrionárias.
No caso de Dolly, o óvulo com o novo núcleo foi implantado no útero de outra ovelha,
realizando a clonagem reprodutiva, que só deu certo depois de 277 tentativas frustradas
(NERI, 2001). O embrião foi reconstruído a partir da fusão entre o núcleo daquela célula
adulta e um óvulo enucleado (MARTINEZ, 2005). Dolly morreu em 2003, vítima de
problemas de saúde possivelmente causados pelo envelhecimento precoce de seus órgãos. A
experiência, porém, mostrou que uma célula adulta podia ser “reprogramada” para se
comportar como célula-tronco embrionária (GRECO, 2005). No entanto, pode ter havido
falha nesse comportamento da célula, gerando conseqüências não previstas. A técnica usada
para gerar Dolly é a mesma que, potencialmente, pode gerar seres humanos. Esse tipo de
procedimento foi denominado “clonagem reprodutiva”, pois visa à reprodução de um novo
indivíduo.
1.1.2.1.2. Clonagem terapêutica
Uma outra maneira de obtenção de células-tronco embrionárias é a partir do método
chamado clonagem terapêutica, em que a célula com seu novo núcleo não é implantada em
um útero e, por isso, não gera um novo ser, questão também ainda não consensual entre os
cientistas. A célula é cultivada em laboratório e, ao se dividir, atinge o estágio de blastocisto,
22
tornando-se capaz de produzir linhagens de células-tronco embrionárias, que podem formar
todos os tecidos humanos. Essa é a esperança da medicina para tratamentos de doenças
graves, como paraplégicos, cardíacos, portadores do Mal de Alzheimer, entre outras. A
“clonagem terapêutica”, como foi convencionada, visa à produção de células para obtenção de
tecidos e órgãos que possam ser usados nos tratamentos dessas doenças.
1.2. Aspectos éticos
As descobertas científicas e as mudanças nas concepções de morte e vida, com as
possibilidades de intervenção oferecidas pela ciência, exigem uma especial atenção à ética e
uma nova responsabilidade, afinal, essa interferência atinge diretamente a essência da vida, e
altera o ser humano para o que Paula Sibilia (2002: p. 63) chama de “homem pós-orgânico”,
um homem que está para além da organicidade natural que sempre definiu a vida e que agora
se coloca em transformação. Tais reconfigurações exigem profundas reflexões sobre as
conseqüências dessa revolução na vida humana.
Compreender o homem como ser social é um dos pontos centrais da Filosofia que,
pela ética, busca analisar os hábitos e as regras de conduta que os ordenam. Os costumes, os
valores e as normas de comportamento de uma sociedade compõem a moral, que não se ocupa
de uma justificação racional para as práticas adotadas. Cabe à ética a reflexão sobre essas
práticas morais, e, considerando a pluralidade existente, a ética busca ponderar sobre o que é
mais correto, o que é melhor. As mudanças na realidade humana, resultantes da imbricação
entre ciência e tecnologia, exigem, então, um intenso e rio debate ético que defina as
diretrizes a serem adotadas pelas tecnociências.
O acaso pode ser um dos grandes entusiasmos da vida de cada pessoa
4
. Embora todos,
de certa maneira, busquem algum controle sobre a vida, para Hans Jonas (2006, p. 59), é
possivelmente o desconhecimento sobre ela que traz esperanças, que motiva a continuar, em
busca dos sonhos, dos planos, daquilo que é desejado. “Esse eterno recomeçar, que só se pode
obter ao preço do eterno terminar, pode muito bem ser a esperança da humanidade, que a
protege de mergulhar no tédio e na rotina, sendo a sua chance de preservar a espontaneidade
da vida.”
4
Pessoa, definida aqui como a consciência ética e moral, dotada de vontade livre e de responsabilidade para
fazer escolhas, agir e viver segundo as normas e os valores morais definidos por sua sociedade, e, quando julgar
necessário, opor-se aos valores estabelecidos. No final deste capítulo, apresentamos uma reflexão sobre este
conceito.
23
Assim, mesmo que este controle sobre a vida seja ambicionado, é necessário refletir
sobre ele e sobre as transformações que esse domínio provocará sobre a sociedade. Afinal, o
homem nasce e vive sabendo que vai morrer. Passa a vida a planejar o que quer, a traçar
metas e buscar objetivos, para, com isso, morrer realizado. A morte completa a vida. Caso o
homem atinja o sonho da imortalidade, as motivações da vida, sua organização, suas rotinas
também precisarão ser redesenhadas. Sem a morte, poder-se-ia dizer que perde o sentido
também o nascimento, seu oposto e seu par, ambos reciprocamente essenciais.
Os comportamentos individuais e coletivos mudarão, mas ainda não é possível saber
em que sentido irão se desenvolver. As necessidades produtivas tendem a aumentar e, embora
alguns livros e filmes de ficção e desenhos animados futuristas possam ter exagerado nas
condições de vida futura, isso parece mais próximo de tornar-se realidade. Um mundo cada
vez mais competitivo, com mais possibilidades técnicas, e cada vez mais dando lugar ao
Homo faberdescrito pelo filósofo Hans Jonas (2006, p. 61), aquele que tem domínio total
sobre as coisas e sobre o próprio homem. O “Homo faber” visa à técnica como primeiro
objetivo, tem-na como a realização de seu destino, como lugar central em sua vida. Antes,
este Homo faber” era apenas uma parte do Homo sapiens”, a parte servil que atendia às
necessidades da humanidade mas não era seu fim. Agora, o “Homo faber” está dominando o
Homo sapiens”, afirma Jonas em seus estudos sobre as questões éticas apresentadas pelo
avanço tecnológico.
Com tantas possibilidades abertas pelas novas tecnologias, que trazem resultados
diretos nas pessoas, as ciências médicas e biológicas não podem caminhar distantes das
ciências sociais. As ações precisam ser acompanhadas de reflexões sérias para que preservem
a dignidade
5
intrínseca aos seres humanos, para que as ações não conduzam a um futuro de
danos irreversíveis, já que, uma vez iniciado o processo, recuar nele se torna cada vez mais
difícil. “Ela [a ética] tem de existir porque os homens agem, e a ética existe para ordenar suas
ações e regular seu poder de agir. Sua existência é tanto mais necessária, portanto, quanto
maiores forem os poderes do agir que ela tem de regular.” (JONAS, 2006, p. 65)
Hans Jonas (2006, p. 63) defende que o princípio ordenador das ações deve adaptar-se
às ações que se pretende regular, o que pode levar, por necessidade, a um novo tipo de ética,
“uma nova ética de responsabilidade de novo alcance, proporcional à amplitude de nosso
poder”.
5
Entendemos dignidade aqui, sob a explicação de Habermas (2004, p. 47). A dignidade não é propriedade
natural, mas é algo intangível que só tem “significado nas relações interpessoais de reconhecimento recíproco e
no relacionamento igualitário entre as pessoas”.
24
Para o filósofo, as ações do momento devem ser pautadas no respeito às próximas
gerações, porque é preciso analisar que direitos a geração atual têm de manipular o futuro de
vidas que ainda não chegaram. Manipular a existência humana é arriscar porque não ainda
como avaliar as conseqüências dos avanços tecnológicos do presente, e fazer isso é, então,
uma aposta. Os conhecimentos adquiridos ainda são certezas relativas, e por mais que os
objetivos sejam propiciar melhores condições às pessoas, a ética chama a refletir sobre os
possíveis futuros comprometimentos da vida humana, sempre atento à preservação das
condições de vida das próximas gerações.
Entretanto, não arriscar também pode trazer conseqüências. Para criar algo útil é
preciso assumir riscos e não fazer isso também pode trazer prejuízos futuros (EIGEN, 1997).
Há sempre um paradoxo se colocando sobre os avanços da biologia, que só poderá ser
contornado recorrendo-se à reflexão ética, pois a vida ética implica a reciprocidade entre as
pessoas.
As questões envolvendo a vida humana têm sido amplamente discutidas na sociedade
e suas implicações éticas vêm sendo absorvidas pelas políticas implementadas. As
biopolíticas os princípios de intervenção e de controle reguladores das populações são
conseqüência da inserção do biológico no político, quando os fenômenos próprios à vida da
espécie humana penetram a ordem do saber e do poder. Com elas, teve início o biopoder,
organizado em torno das disciplinas do corpo e das regulações da população, visando atender
as necessidades da era industrial e do sistema capitalista (FOUCAULT, 2005). Para intervir
nas condições de vida, modificá-las, controlá-las e adequá-las às normas, o Estado moderno
recorreu a biopolíticas de prevenção, planejamento e regulação (SIBILIA, 2002).
A sustentação do capitalismo, desde seu início e ainda hoje, se pela aplicação das
técnicas políticas do biopoder. Destaca Foucault (2005) que os dispositivos de poder do
século XVIII – família, exército, escola, polícia, medicina e administração:
agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças que
estão em ação em tais processos e os sustentam; operaram, também, como
fatores de segregação e de hierarquização social, agindo sobre as forças
respectivas tanto de uns como de outros. Garantindo relações de dominação
e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do
capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das
forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte,
tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e
procedimentos múltiplos. (FOUCAULT, 2005, p. 132-133)
Levando em consideração o biopoder e as biopolíticas e para realizar a análise
proposta em nosso trabalho, vamos organizar as questões deste capítulo a partir de três eixos:
25
o eixo político, abordando o controle da vida como instrumento de poder; o eixo econômico; e
o eixo moral, que envolve questões relativas à identidade e ao status de pessoa.
1.2.1. Eixo político
A contemporaneidade é marcada pelos avanços científicos e tecnológicos antes vistos
apenas em livros de ficção. Tal cenário configura os processos de poder existentes na
atualidade, aumentando as possibilidades de controle sobre as populações
6
. As novas
tecnologias biológicas permitem chegar ao controle do futuro, deixando de lado a
imprevisibilidade e tendo nas mãos a oportunidade de transformar o destino do mundo. O
aparato tecnológico capaz de intervir na constituição do ser humano, desde a sua essência,
potencializa as ações do biopoder e, portanto, condiciona a formação de biopolíticas que o
retenha e o aproveite.
Foucault (2005), na obra A história da sexualidade, apresenta um arrazoado a respeito
do direito de morte e do poder sobre a vida. Nas sociedades soberanas, desde os impérios
romanos e gregos até as monarquias absolutistas, o poder se exerceu com o direito sobre a
vida e sobre a morte. Nas relações dos soberanos com os súditos, aqueles podiam dispor da
vida destes em duas condições: quando o soberano se sentisse ameaçado podia expor a vida
dos subordinados, num quadro que Foucault classificou de “direito indireto”, ou diretamente
tirar-lhes a vida quando os próprios súditos eram a ameaça. Mesmo de modos diferentes, o
direito de morte e vida existia, porém nos regimes absolutistas era condicionado e não mais
absoluto mesmo assim, ele existia, e o direito sobre a vida era marcado exatamente pelo
poder de tirá-la.
A partir do século XVI, e até o XIX, os instrumentos do exercício do poder foram
sendo transformados acompanhando as fortes mudanças que aconteciam no mundo ocidental
nesse período, e o direito de morte perdeu espaço para um poder que devia gerar a vida: “um
poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a barrá-las,
dobrá-las ou destruí-las” (FOUCAULT, 2005, p. 128). Mesmo assim, o poder de morte
continuou, sob uma nova rubrica um poder de morte para garantir o poder sobre a vida: as
pessoas podiam ser colocadas em risco em nome da sobrevivência coletiva, como nas guerras.
Evitar a morte se tornou a regra, porque se o poder deve se basear na vida, a morte é
exatamente o momento que o poder mostra sua fragilidade. Se o novo poder se baseou na
6
“Conjunto de seres vivos coexistentes, que apresentam traços biológicos particulares e, em função disso, são
investidos com técnicas e saberes específicos” (SIBILIA, 2002: p. 158)
26
vida, ele precisou criar normas para regular as condutas, de modo que não fosse necessário o
recurso da lei, que tem a punição por princípio. As modificações chegaram ao ponto de o
sistema jurídico recorrer a aparelhos médicos e administrativos para regular, e não mais
precisar punir. “Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder
centrada na vida”. (FOUCAULT, 2005, p. 135)
O poder sobre a vida, identificado por Foucault (2005, p.135), baseou suas ações em
dois pólos: o corpo-máquina e o corpo-espécie. O primeiro pólo visava adestrar o corpo,
ampliar suas aptidões, tirar-lhe a força, utilizando mecanismos típicos das instituições
disciplinares para exercer este controle escola, quartel, polícia etc. o segundo se apoiou
nos processos biológicos – nascimento, mortalidade, saúde, longevidade, entre outros –,
marcando as políticas públicas de controle regulador da população, as biopolíticas. Essa busca
da sujeição dos corpos e dos controles inaugura o que Foucault classifica de “era de um bio-
poder”. Esses dois focos analisados pelo filósofo permanecem separados até o século XIX,
quando finalmente se articulam em torno das tecnologias de poder que serviram para
consolidar o capitalismo, “à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção
e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos”.
O recurso das biopolíticas afastou as ameaças de morte. Viver se tornou algo mais
controlável, com o emprego de mecanismos biopolíticos que se preocupam e regulam o corpo,
a saúde, a alimentação, a higiene. Com os avanços da ciência e o desenvolvimento de aparatos
técnicos cada vez mais completos, as biopolíticas também estenderam seus canais de ação.
Agora, o poder político já não precisa mais se ater apenas ao controle atual das vidas
“disponíveis”, como foi feito durante toda a modernidade, de modo a aproveitá-las mais
adequadamente ao sistema vigente. A ordem dominante pode também exercer um controle
sobre as vidas futuras, preparando-as e modelando-as aos seus interesses, potencializando o
desejado controle da aleatoriedade natural (SIBILIA, 2002, p. 181).
As descobertas da biologia molecular e genética permitem a intervenção na formação
das populações, reforçando as possibilidades de políticas “eugênicas” que buscam o
melhoramento das gerações futuras –, renovadas e re-significadas pelas novas tecnologias,
para garantir o controle sobre a sociedade. Durante as duas Guerras Mundiais, as políticas
eugênicas trouxeram enormes impactos sobre a população. O objetivo era eliminar genes
considerados ruins para se obter uma pretensiosa perfeição na raça humana. O exemplo mais
extremo, porém não único, das políticas públicas eugênicas foi a Alemanha, no período de
Adolf Hitler. Em 1933, ele criou a Lei para a prevenção contra uma descendência
hereditariamente doente”, seguida pelas leis “da cidadania do Reich” e “para a proteção do
27
sangue e da honra dos alemães”, referindo-se às populações judias e ciganas e proibindo o
casamento entre pessoas de “raças diferentes”. Além disso, milhões de pessoas presas nos
campos de concentração morreram vítimas de experimentos em nome da ciência. No entanto,
é importante lembrar que a idéia de “genes ruins” não pode ser levada adiante, porque mesmo
os genes considerados responsáveis por características negativas são importantes no processo
evolutivo (RIFKIN, 1999).
Hoje o perigo de uma nova “eugenia” está voltado ao cotidiano das pessoas, de modo
a conformá-lo às necessidades contemporâneas, moldando as pessoas de acordo com as
exigências do mercado, não sendo mais as mesmas medidas racistas e nacionalistas da
primeira metade do século XX. A alteração genética em seres humanos busca dar a eles
características mais bem aceitas na sociedade, visando à eficácia econômica, ao aumento da
performance, à otimização da qualidade e à relação custo-benefício (SIBILIA, 2002). Essa
escolha levará o valor da pessoa humana a ser tomado não pela sua identidade, mas pelas suas
qualidades biológicas dando origem a uma bio-identidade, uma identidade definida pelo
corpo (ORTEGA, 2002).
Os limites entre uma eugenia que recorra a intervenções genéticas de modo terapêutico
ou uma eugenia que use as alterações para “aperfeiçoar” as características individuais são
difíceis de se estabelecer estando disponíveis os recursos para qualquer uma delas. Em breve,
os pais podem querer “personalizar” os bebês alterar traços que não são doenças, mas que,
na visão deles, podem torná-los vítimas de preconceitos futuros, como a cor da pele, o tipo de
cabelo e a estatura, e também interferir em características mais subjetivas, tornando a
sociedade cada vez menos tolerante a “defeitos” pouco significativos (RIFKIN, 1999).
Determinar o nascimento de uma criança saudável, loira, de olhos claros, predestinada
a ter estatura alta, por exemplo, não tem implicações apenas nessa aparente configuração
objetiva. questões complexas envolvidas, como, por exemplo, a relação que ela tecom
os pais que a “desenharam” assim e com a sociedade que a cerca. Habermas (2004) fala da
possibilidade até mesmo de culpa sobre seus ascendentes, porque eles puderam interferir nas
características que a pessoa carrega e ela pode estar descontente com isso. Ou ainda, reclamar
de pais que preferiram não fazer alterações e deixar o acaso agir. A mudança nas relações
também preocupa Julio Luis Martínez (2005, p. 107), professor da Universidade Pontifícia de
Comillas, em Madrid/Espanha, e titular da cátedra de Bioética, para quem a possibilidade de
intervenção e novas criações genéticas “reduz o significado específico da reprodução humana
e perverte as relações da pessoa humana, como a filiação, a consangüinidade, o parentesco e a
paternidade ou maternidade”.
28
Martínez (2005, p. 107) destaca que a clonagem humana viola dois princípios
fundamentais dos direitos humanos. O princípio da igualdade entre os seres humanos é
comprometido quando se permite, com a clonagem, “a dominação do homem sobre o
homem”, acarretando no desrespeito ao ser clonado. Além disso, também ataca o princípio da
não-discriminação, pois “é evidente a discriminação em toda a perspectiva seletiva-eugenista
inerente à lógica da clonagem”.
Ainda que tudo seja permitido, como essa nova indústria é cara, assim como ocorre
com a cirurgia plástica estética, o acesso a tais recursos será restrito aos mais abastados,
gerando ainda mais exclusão aos pobres e aumentando suas diferenças com os ricos, um outro
ponto importante a ser considerado neste debate ético. As medidas eugênicas se enquadram
no modelo capitalista da sociedade contemporânea, quando aqueles que m dinheiro existem
enquanto consumidores e, portanto, têm o direito de escolher o que querem, que podem
pagar por isso. Rifkin (1999, p. 237) define a atualidade como a “era da escolha ilimitada do
consumidor”, e diz que a manipulação tecnológica é um conjunto de escolhas compradas num
mercado.
Escolher os genes que vão compor uma pessoa será como escolher enlatados nas
prateleiras do supermercado, graças às técnicas de DNA recombinante. Como isso vai parecer
simples, no nível técnico, a tendência é deixar de lado as complexidades de outra ordem que
estão envolvidas nessas atitudes.
A cada escolha de gene a ser alterado está uma decisão eugênica tomada pelos
pesquisadores, lembra Paula Sibilia (2002). De posse das informações continuadas no DNA e
com a ajuda das tecnologias computacionais, pode ser possível conhecer o desenvolvimento
daquele ser vivo. Com isso, o próximo passo é a manipulação: “corrigir eventuais problemas,
prevenir aqueles indicados como tendências probabilísticas e praticar outros ajustes e
melhorias específicas, de acordo com as preferências do consumidor” (SIBILIA, 2002, p.
125).
No entanto, mesmo com outras motivações, as políticas eugênicas ainda podem
representar o risco de serem novamente aplicadas como política preventiva de governo. As
medidas eugênicas, independente de quem as promove, podem provocar a discriminação por
estigmatizar as pessoas. De acordo com Rifkin (1999), já existe discriminação genética
praticada por seguradoras e planos de saúde, com base na predisposição do cliente, e
existem leis tentando regular essa questão. Ele alerta ainda para a possibilidade de os
genótipos gerarem preconceito também na contratação para trabalho, além dos preconceitos
29
por características visíveis que existem hoje. Caso as medidas sejam oficialmente adotadas
pelo governo, quando já tornadas usuais pelo mercado, a questão se torna ainda mais grave.
Por trás dessa prevenção está, na verdade, um excelente mecanismo de domínio da
sociedade. Será possível controlar os seres humanos desde sua concepção, adequando-os aos
modelos que sejam interessantes ao poder vigente. Qualquer que seja a medida escolhida, a
intenção de controlar a vida vem presente na esfera pública desde o século XIX, quando o
poder passou a se preocupar com a regulamentação da vida (SIBILIA, 2002).
Cada vez mais o mercado dita as biopolíticas, de maneira sutil e às vezes
aparentemente inofensiva, implementadas por empresas, escolas, governos e diversas
organizações, para modificar as condições de vida da população e estabelecer normas que lhe
sejam favoráveis. Como exemplo real no Brasil, está o fato de homossexuais não poderem
doar sangue, a obrigatoriedade na vacinação de crianças, ou a luta para se transformar em lei
o direito ao aborto em casos de malformação de fetos. De tempos em tempos surgem ainda
projetos para esterilizar presos acusados de crimes hediondos, sem falar na obrigação de
escolha no atendimento de pacientes que chegam em estado grave aos hospitais públicos que
não dispõem de vagas suficientes.
O objetivo das biopolíticas é organizar a vida da população, dominar a aleatoriedade
que é natural. Paula Sibilia (2002) destaca que, com as técnicas e políticas da tecnociência, o
impulso de dominar o imprevisível é acentuado pelas possibilidades de alterar o código
genético e até de se fabricar algo vivo. Hoje, as políticas públicas ligadas à gestão das vidas
estão voltadas às necessidades do sistema capitalista. De olho na produtividade, na
longevidade da vida útil, investe-se em corpos e almas.
Mais do que os corpos adestrados da era industrial, como força mecânica
de trabalho braçal, hoje o privilégio do emprego é oferecido às almas
capacitadas, àquelas subjetividades equipadas com as qualidades voláteis
mais cotadas no mercado de trabalho contemporâneo, tais como a
criatividade, a inteligência e as habilidades comunicativas. (SIBILIA, 2002,
p. 169)
1.2.2. Eixo econômico
A partir do momento que as manipulações em estágios iniciais e finais da vida humana
passaram a representar grandes chances econômicas, as discussões foram se intensificando a
fim de se chegar a definições que permitissem que os resultados das propostas oferecidas pela
biotecnologia se potencializassem. A engenharia genética foi ampliando sua atuação e
buscando maneiras de suprir as necessidades da indústria da saúde, das empresas e também de
30
governos, sendo as patentes a maior representação da mercantilização da ciência, como afirma
a ativista Vandana Shiva (2001). As elevadas cifras envolvidas nas relações comerciais da
área biotecnológica reforçam os interesses de investimentos no setor, sobretudo pelos grandes
laboratórios. Cerca de 90% dos investimentos em pesquisas biomédicas e farmacológicas são
feitos por multinacionais, que aplicam anualmente bilhões de dólares nos estudos, destaca o
professor Demetrio Neri (2001). As patentes, a produção e a venda de medicamentos, os
produtos híbridos, as sementes, as vacinas são exemplos dos mecanismos de lucro dessas
grandes empresas, consolidando a exploração econômica da vida.
Na contemporaneidade, já não são privatizáveis apenas produtos e objetos obtidos pela
ciência. Elementos naturais, não fabricados, foram decretados patrimônio particular e até
atribuídos como “invencionices” de alguns. Chegou-se ao ponto de privatizar a vida, e
privatizar a vida alheia. Cientistas e médicos identificam doenças em pacientes, fazem
tratamentos neles e, às vezes, se apropriam das constatações a que chegaram, obtendo
patentes, tirando do próprio paciente o direito à sua privacidade, e obtendo imensos lucros
com ela.
A polêmica das patentes sobre a vida começou com a descoberta da tecnologia do
DNA recombinante, afirma Neri (2001, p. 147), quando, na década de 1980, a justiça
americana julgou possível pedir patente sobre novas formas de vida criadas com a ajuda desta
tecnologia. No entanto, não foi uma autorização comum. “Trata-se aqui dos genes, os
componentes últimos de todos os seres vivos”, informações contidas no corpo de qualquer
organismo vivo, que podem ser consideradas “bem comum, como ar ou a água, e não podem
ser de propriedade privada de ninguém”.
Os registros de propriedade trazem grandes vantagens a quem adquire, mas podem
trazer muitas desvantagens a quem precisa deles. Atualmente, as patentes são um grave
conflito entre países pobres e ricos, por exemplo. Num novo modelo de colonização, os ricos
exploram bens naturais existentes nos países do hemisfério sul e conseguem obter registro de
propriedade sobre eles, apenas por terem identificado alguma espécie ou feito alguma
manipulação genética nas espécies conhecidas. Então, se terra, mata, água e ar estão sendo
privatizados, chegou o momento de partir para outros horizontes, explica Vandana Shiva
(2001, p. 69). “O capital precisa agora ir em busca de novas colônias a serem invadidas e
exploradas para continuar sua acumulação – o espaço interior dos corpos das mulheres,
plantas e animais.”
Em relação a isso, Paula Sibilia (2002, p. 172) complementa: “no mundo
contemporâneo, a vida passou a ser definida como um produto, com uma mercadoria, uma
31
invenção humana. De acordo com tal definição, as diversas formas de vida podem ser
patenteadas, compradas e vendidas no mercado global”. Na prateleira do mercado estão, lado
a lado, remédios, sementes transgênicas, armas e alimentos, todos produtos controlados por
multinacionais.
Difundidas de maneira veloz e com um tom promissor e futurista, essas idéias atendem
aos interesses comerciais e industriais das empresas de biotecnologia. A manipulação de
plantas e animais para preencher as necessidades dos seres humanos vai ganhando espaço e
financiamento, inclusive do poder público, e gerando cada vez mais lucros às empresas que
trabalham com fármacos, alimentos, aditivos químicos, além da própria medicina, entre outros
setores. No entanto, os procedimentos adotados, como a combinação de genes de espécies
diferentes e a interferência no desenvolvimento dos organismos, contrariam a liberdade de
auto-organização e auto-reprodução dos seres vivos (SHIVA, 2001).
As patentes de “invenção” vêm sendo concedidas em número cada vez maior, embora
até hoje não se tenha conseguido efetivamente criar a vida em laboratório. Os resultados são
alterações, modificações, nunca a criação de uma nova vida. Vandana Shiva (2001) lembra
que as patentes são alcançadas sob a alegação de que algo foi criado, mas a criação de
qualquer novo elemento implica riscos, e quando este questionamento é iniciado, os donos
das patentes argumentam que o organismo sobre o qual ele buscou ter direito de autoria é, na
verdade, natural e não traz impactos indesejados.
A intervenção em organismos vivos vem sendo considerada patenteável, mesmo que
nisso não haja, então, um ato de invenção. Desse processo resultam vários problemas, entre
eles o desrespeito à vida, qualquer que seja a espécie, a desvalorização de conhecimentos
populares milenares, e a dependência da qual se tornam reféns os países explorados, seus
agricultores, seus médicos, seus laboratórios e, sobretudo, sua população.
Para Shiva, essas atitudes caracterizam a “ciência reducionista”, que não atribui
valores à natureza e, por isso, age para dominá-la e explorá-la, desconsiderando as
conseqüências sociais e ecológicas que isso pode trazer, além das implicações econômicas,
políticas e culturais. Nesses reducionismos, apenas a espécie humana tem valor, e, dentro
dela, apenas os “consumidores”. As demais m valor instrumental, visando atender ao
homem, o que pode interferir e levar à extinção espécies que também têm importância no
ciclo da natureza (RIFKIN, 1999; SHIVA, 2001). Em tempos de clonagem e terapia genética,
até embriões humanos tornam-se um meio, um objeto manipulável, que pode ser comprado e
vendido, fabricado e destruído, conforme os interesses do mercado. As patentes sobre
qualquer forma de vida devem ser questionadas, pois a apropriação dos organismos fere a
32
integridade da vida e a dignidade dos seres, que a vida é livre, não tendo sido criada por
ninguém.
A clonagem segue os princípios da engenharia industrial, envolvendo a replicação e a
personalização para produzir em larga escala cópias idênticas de seres vivos, e representa a
chance do que Rifkin (1999) chama “pseudoimortalidade”. Os estudos apresentam
resultados, embora, por força das organizações políticas internacionais, as legislações de todo
o mundo ainda não permitam a clonagem humana. Já houve divulgação da obtenção dessa
façanha, e alguns resultados divulgados tiveram até adulteração comprovada, mas muitos
deles nunca foram questionados sob seus aspectos técnicos.
A alteração genética de seres vivos, humanos ou não, encontra grandes aliados, atende
a interesses políticos e econômicos, e, alerta Rifkin (1999), representa a arma do futuro, tão
poderosa quanto as ameaças nucleares. No setor de alimentos, o investimento pesado da
indústria nos transgênicos exerce forte pressão sobre as autoridades pela liberação de tais
produtos. Quando o assunto é manipulação genética de seres humanos, a pressão é feita por
laboratórios, empresas e cientistas para que as pesquisas e, futuramente, a utilização de seus
resultados sejam liberados. Nos dois casos, sempre apoiados em grandes promessas de
aplicação na melhoria da qualidade de vida, no baixo custo de alimentos, na inclusão de
propriedades que são fundamentais ao ser humano, além da salvação de vidas que estão em
risco hoje e na possibilidade de gerar seres que não corram esses riscos futuramente. Mais
uma vez, a intenção é ter controle sobre as vidas futuras, adotar biopolíticas que possam dar
origem a uma população que atenda aos moldes do que for definido como saudável ou ideal.
1.2.3. Eixo moral
A moral relaciona-se aos costumes, valores e normas de conduta de uma sociedade. Os
valores adotados em uma cultura levam-na a definir suas regras de comportamento, de modo a
atender aquilo que ela definiu como importante e socialmente aceito. A concepção que temos
de “pessoa” na atualidade foi historicamente construída, a partir das mudanças e da
consolidação das primeiras referências a persona. Marcel Mauss (2003), no texto “Uma
categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de ‘eu’”, aponta as formas que a categoria
de “eu” adquiriu ao longo do tempo, em diversos locais, e de que maneira ela ganhou corpo,
até se tornar clara nas sociedades ocidentais.
O conceito formulado do “eu” moderno tem por base a visão que os próprios homens
tiveram de si, a partir de seus direitos, suas religiões, costumes e estruturas sociais. Desde as
33
sociedades mais primitivas, permeadas por cerimônias rituais e pelo uso de máscaras na
representação individual e coletiva, até a consolidação da noção de pessoa como temos hoje
no ocidente, foi percorrido um longo caminho. Os sentidos que servem de predecessores à
noção contemporânea de pessoa humana se tornaram mais fortes na sociedade romana, que
inseriu um aspecto jurídico às noções existentes nas outras sociedades. “A ‘pessoa’ é mais
do que um elemento de organização, mais do que um nome ou o direito a um personagem e a
uma máscara ritual, ela é um fato fundamental do direito” (MAUSS, 2003, p. 385). Nesta
concepção, a pessoa ganhou a forma de uma entidade completa e independente, com direitos
individuais. Tomada como elemento jurídico, a pessoa ganhou também um sentido moral,
“um sentido de ser consciente, independente, autônomo, livre, responsável”.
Isso aconteceu porque, naquela época, devido a muitas lutas, os romanos conquistaram
direitos de cidadania, permanecendo excluídos deles os escravos, considerados não
proprietários do próprio corpo, sem nome e sobrenome. O cristianismo trouxe a mudança
nessa relação, ao aceitar que, mesmo que eles não fossem donos do seu corpo, eram
possuidores de uma alma.
Por causa do cristianismo, dos dogmas estabelecidos pela Igreja, a noção de pessoa
ganhou o sentido que vemos hoje, mais individual, relata Mauss (2003, p. 393). O mistério da
Santíssima Trindade, em que três pessoas são apenas uma, e, sobretudo, a dupla natureza de
Cristo, humana e divina, contribuíram para a definição da pessoa humana, já que o ser
humano é “substância e modo, corpo e alma, consciência e ato”. A partir disso, temos a
pessoa como algo racional indivisível, individual, o que a elevou, explica Mauss, a um status
de consciência e de categoria, concretizado apenas nos últimos dois séculos, tornando-se a
“categoria do Eu”, identificada com o conhecimento de si, a consciência psicológica.
Esta noção de pessoa cristã impera na contemporaneidade, pelo menos no mundo
ocidental, e induz a maneira de lidar com questões envolvendo os seres humanos. A
concepção cristã define o ser humano como tal desde o momento em que nele é inserida a
alma imortal, uma atribuição de Deus. Ao longo da história, este momento também
permaneceu controverso, mas reinou por um grande período a idéia de que isso acontecia
quando o corpo estava totalmente constituído, “apto” a receber a alma. Hoje, tal visão foi
modificada, e ainda que não haja consenso sobre a fase da infusão da alma, a Igreja Católica,
principal representante do cristianismo, considera o ser humano como tal no instante da
fusão dos gametas, momento em que se torna, portanto, também uma pessoa, digna de
proteção e respeito.
34
Não podemos deixar de considerar que existem outras concepções de pessoa, como a
apresentada por Habermas (2004, p. 49), de que apenas o nascimento transforma um
organismo em pessoa. Para ele, a “individualização da história de vida realiza-se por meio da
socialização”. Embora já componha um ser geneticamente individual, somente quando a
criança nasce e rompe o cordão umbilical ela se torna indivíduo e pessoa dotada de razão, o
que está, para ele, então, diretamente relacionado à esfera pública. Mesmo com esta
concepção, ele defende que o ser em gestação tem direitos morais e jurídicos, sendo ele dono
de um “valor integral para a totalidade de uma forma de vida eticamente constituída”. O
embrião, assim, merece uma proteção porque precisa dela, mas, principalmente, porque é
digno de recebê-la.
É importante destacar aqui que, como bem lembra o bioeticista Demetrio Neri (2001),
a linguagem da ciência não é a mesma linguagem usada na ética, a noção de pessoa não é
adotada desse modo pela biologia, e os termos “indivíduo” e “ser humano” têm significados
diferentes para estas duas áreas.
Assim, sob o aspecto da ética, não só para o aspecto religioso, a pessoa é dotada de
dignidade e merece respeito, mesmo sendo embrião, pois é vida humana, ainda que não seja
homem no sentido de ser socialmente construído, como nos referimos no próximo capítulo,
amparado no conceito apresentado por Berger e Luckman (2004), no estudo da Sociologia do
Conhecimento.
As questões éticas envolvendo a manipulação da vida humana não se apóiam numa
antítese natural-artificial. Não uma mutação tecnológica em necessária oposição a uma
pessoa natural, mas há sim uma necessidade de cuidado com as conseqüências que
intervenções desse nível proporcionam. Usar o ser humano, mesmo em estágio embrionário,
como meio, como instrumento, e não como fim e como valor, representa um atentado contra a
dignidade que lhe é atribuída desde sua constituição, e precisa, portanto, ser cautelosamente
debatido na esfera pública. A produção de embriões humanos ou o uso dos congelados
implica, como vemos, na redução do ser humano a um estado de “coisa”, a um produto, e tal
comportamento atende os interesses políticos e econômicos que recorrem ao ser humano
como fontes de peças de reposição, instrumentalizando-o.
35
2. Enquadramento
Neste capítulo, pretendemos discutir o enquadramento enquanto ferramenta teórica e
metodológica na análise da cobertura da aprovação do projeto de lei da biossegurança que
permitiu as pesquisas com células-tronco embrionárias. Para uma abordagem mais completa
da questão, antes iremos relacionar o enquadramento com duas outras perspectivas teóricas de
grande influência nos estudos da comunicação: a construção social da realidade e a agenda-
setting.
O enquadramento a seleção, ênfase ou exclusão de elementos do discurso e de
aspectos da realidade envolve marcos interpretativos gerais, construídos socialmente, que
permitem às pessoas dar sentido aos eventos e às situações sociais. Assim, está diretamente
relacionado à construção social da realidade, em um caminho de mão dupla. Os quadros os
recortes selecionados – ajudam a construir socialmente a realidade, mas também são resultado
dessa realidade construída socialmente. O jornalismo atua na formatação dessa realidade,
porém os próprios jornalistas que atuam na escolha dos quadros fazem parte dessa realidade.
Os profissionais da imprensa não são especialistas, portanto, estão vulneráveis aos quadros
estabelecidos ao redor deles, aos enquadramentos dados pelas fontes a quem eles recorrem, o
que define, em grande parte, como serão os quadros estabelecidos no jornal.
Para os leitores, a realidade socialmente construída pelo agente jornal costuma se
apresentar como a realidade de fato, sobretudo quando não outras informações ao acesso
deles, pois quanto menor é a experiência de alguém sobre determinado tema, maior é sua
dependência dos meios de comunicação para interpretar o assunto.
A importância de recorrer à teoria da construção social da realidade para analisar o
enquadramento está relacionada ao fato de que os agentes responsáveis pelos quadros do
jornal são produto dessa mesma realidade e não podem ser tratados separadamente. A
imprensa também é agente, mas está envolvida na rede do processo de construção da
realidade. O mundo social é conhecido pelas descrições feitas pelos próprios membros e se
estabelece a partir dessas mesmas descrições, elaboradas pelos agentes envolvidos, entre eles
os jornalistas. O tempo inteiro, então, a realidade está sendo construída socialmente e não
pode, por isso, ser considerada como um evento esporádico, especial.
Os estudos acerca da construção social da realidade não foram direcionados às
questões midiáticas, mas podem ser aplicados também a elas, uma vez que os jornalistas e
outros profissionais de mídia estão inseridos nessa realidade e também atuam como agentes
construtores dessa realidade.
36
Recorreremos ainda aos estudos de agenda-setting, também relacionados à construção
social da realidade. Quando a mídia agenda o debate público e os diversos agentes externos
agendam a mídia, temos, certamente, uma participação efetiva na elaboração da realidade. O
jornal elege temas com base no repertório estabelecido pela agenda pública. As fontes,
construções sociais e também construtoras, participam desse processo, e recebem do jornal
tratamento diferenciado, conforme seu status social e político.
É exatamente a maneira como os agentes relacionam-se com a mídia que nos interessa.
De que modo eles assediam os jornais, que conteúdo têm a oferecer, quem são as fontes
habituais para o assunto em pauta, e de que forma o jornal trata cada um desses agentes, como
se apropria do discurso deles são questões que nos propomos a discutir. O comportamento das
fontes e da mídia, selecionando assuntos e pontos de vista sobre cada tema, caracteriza o
enquadramento. Assim, tentaremos neste capítulo percorrer os referenciais teóricos que nos
servem de parâmetro para fazer a análise do objeto de nosso trabalho.
2.1. Construção Social da Realidade
Teoria influente nos estudos de comunicação, a perspectiva da construção social da
realidade não foi concebida originalmente para aquela área, mas sim para a sociologia,
sobretudo com Berger e Luckman (2004), que buscaram descrever o que chamaram de
Sociologia do Conhecimento, mostrando como se dá a construção da realidade social.
Para além do homem-indivíduo, existe o homem-ser social. O convívio é inerente ao
homem e, portanto, é impossível a vida humana de outro modo. A realidade do ser humano é
a realidade da vida cotidiana, a realidade de um mundo coerente que se formou por meio dos
pensamentos e das ações dos próprios homens, uma realidade construída socialmente, uma
realidade resultado da partilha, do convívio, dos acordos, do senso comum
7
.
Como vemos, a intersubjetividade interfere decisivamente na construção da realidade.
Na verdade, temos uma relação de simbiose, que a sociedade é um produto humano, e o
homem é um produto social (BERGER & LUCKMAN, 2004, p. 87).
Não apenas o mundo social é conhecido pelos seus membros graças às
descrições que dele fazem os próprios membros entre si, como também esses
relatos são parte do próprio mundo social que os membros descrevem e
tornam inteligível. Em conseqüência, os relatos sobre o mundo recebem seu
significado e se tornam inteligíveis apenas quando estão em relação com seu
contexto (Garfinkel, 1967; Wieder, 1974); Zimmerman and Pollner, 1970).
7
Podemos considerar senso comum como um conjunto de entendimentos subjetivos, qualitativos e
generalizantes aceitos como verdadeiros num determinado meio social (COTRIM, 2002; CHAUÍ, 1999).
37
A construção social da realidade é endêmica e inevitável, e assim, o pode
ser posta de lado como se fosse um evento especial que ocorresse em
circunstâncias peculiares. (FISHMAN,1990, p. 4)
Embora não seja, certamente, a única realidade existente, essa realidade da vida
cotidiana é dominante e tomada como a principal por Berger e Luckman, que sobre ela, então,
escreveram sua teoria da construção social da realidade. O que faz essa realidade predominar
é o fato de ser uma realidade ordenada, cujos fenômenos são enquadrados em modelos,
independente da vontade de cada um. A linguagem, característica essencial do ser humano,
permite a ordenação dos acontecimentos que terão significado para ele (BERGER &
LUCKMAN, 2004). Ela é objetiva, coercitiva, obriga a padrões. Para organizar a realidade,
ela é ‘rotinizada’, por meio da institucionalização de determinados comportamentos da vida
humana.
A rotinização desses processos acontece ao longo de gerações, até que sejam
completamente integrados e tomados como naturais. A vantagem do estabelecimento da
rotina é que isso contribui para diminuir as tensões (BERGER & LUCKMAN, 2004), que
as ações de cada pessoa e as interações se tornam previsíveis. Esse processo de rotinização e
de institucionalização das ações incute nas pessoas a idéia de que os acontecimentos são
naturais, e, com o tempo, acabam por se tornar inquestionáveis. No entanto, todos os fatos se
sustentam sobre contextos sociais específicos e têm uma pré-determinação instituída, de
maneira explícita ou sutil, pelos grupos dominantes (BERGER & LUCKMAN, 2004).
As rotinas formam a realidade construída, mas, até que sejam tomadas como naturais,
precisam ser negociadas durante algum tempo, são modeladas a partir da interferência dos
diversos agentes envolvidos. Depois de escolhidas pelo poder hegemônico, elas precisam,
ainda, ser adaptadas à audiência, de modo a ser mais facilmente assimilada.
Assim, vemos que a realidade é construída conjuntamente entre os seres humanos,
baseada em diversos fatores, entre eles proximidade e interesse. A partir da nossa relação com
o mundo é que formamos nossa imagem sobre ele. Quanto mais próximo, em geral, maior o
interesse sobre determinado aspecto da realidade. Ao longo da vida, é possível que os
interesses mudem, como mudam também os níveis de proximidade e de afetação por
determinados fenômenos.
Comparadas à realidade da vida cotidiana, as outras realidades aparecem
como campos finitos de significação, enclaves dentro da realidade
dominante marcada por significados e modos de experiência delimitados. A
realidade dominante envolve-as por todos os lados, por assim dizer, e a
consciência sempre retorna à realidade dominante como se voltasse de uma
excursão. (BERGER & LUCKMAN, 2004, p. 42-43)
38
Concebida para os estudos da sociologia, a perspectiva da construção social da
realidade foi também aplicada ao estudo dos meios de comunicação. A socióloga Gaye
Tuchman, no livro Making news (1978), defende que as notícias impõem um enquadramento
que afeta a realidade. Para a socióloga, a construção das notícias, um tecido de discursos e
enquadramentos elaborados com base em normas da profissão, é um recurso social que coloca
limites à compreensão analítica da vida contemporânea. A construção das notícias é a
ordenação dos acontecimentos, sendo, portanto, a construção dos significados que farão
sentido para o mundo.
Fishman (1990) também aposta na construção social da realidade por intermédio dos
meios de comunicação de massa, que criam imagens dos fatos para a audiência, afetando,
desse modo, a percepção de mundo das pessoas. A realidade presente na imprensa, mesmo
sendo parcial, é a realidade que chega ao público e, portanto, é a realidade.
O noticiário é uma forma determinante de conhecimento, não porque o
mundo fora vem sob formas determinantes, mas porque as pessoas
empregam métodos específicos que procuram organizar o mundo em algo
coerente. O noticiário é o resultado dos métodos empregados pelos
jornalistas. Se fossem utilizados métodos diferentes, resultariam formas
diferentes de noticiário e os públicos conheceriam, de um modo muito
diferente, o mundo que está fora de sua experiência direta. (FISHMAN,
1990, p. 14)
A imprensa é um dos instrumentos mais fortes da construção da realidade para a
sociedade, que têm amplo alcance, grande repercussão, é mantida por poucos grupos e,
entre eles mesmos, há pouca discordância a respeito dos enquadramentos a serem adotados.
2.2. Agenda-setting
Uma das teorias que também dialogam com o tema do enquadramento é o
agendamento, anterior a ele e um dos seus precursores. Os estudos sobre a capacidade que a
mídia tem de determinar que assuntos estarão em debate e integrarão as discussões do público
tiveram início no século passado e ganharam destaque com os pesquisadores Maxwell
McCombs e Donald L. Shaw, em 1972, quando publicaram a análise sobre a eleição
presidencial americana de 1968, mostrando que os eleitores indecisos prestam mais atenção
ao conteúdo das informações e parecem não ter preconceitos nem juízos estabelecidos
(MCCOMBS & SHAW, 1972, apud AZEVEDO, 2004).
A partir disso, formularam as hipóteses do agenda-setting aplicado à campanha
eleitoral. Reuniram dados da agenda da mídia, relativa à visibilidade e à proeminência de
39
temas num período delimitado, e também da agenda do público, relativa aos temas discutidos
e considerados importantes pela audiência, e encontraram vários pontos comuns entre as duas.
Nas conclusões de McCombs e Shaw, as duas agendas, juntas, configuram a
denominada agenda-setting de um determinado período a capacidade que a mídia tem de
apontar que assuntos integrarão a agenda do público, promovendo alguns temas e preterindo
outros, definindo, assim, “o que” deve fazer parte do repertório de assuntos da audiência em
um determinado período. O público, então agendado, passa a se preocupar com determinados
assuntos, motivado pela publicização promovida pela mídia. À medida que o tema ganha
intensidade na imprensa, ele ganha também importância para a audiência. Vemos, assim, que
na hipótese do agenda-setting, a imprensa é parte importante e agente circunstancial da
construção social da realidade. Teorias mais atuais já dão conta do duplo fluxo no caminho do
agendamento, definido não pela imprensa, mas também pelo público e por outros agentes
políticos.
O agendamento, essa eleição de temas que receberão destaque no jornal, atua também
na construção da realidade na medida em que indica os assuntos que integrarão o repertório
do público, fixa acontecimentos que, de fato, serão tomados como tais porque foram eles, e
não outros, que tiveram divulgação.
Em conseqüência da ação dos jornais, da televisão e dos outros meios de
informação, o público sabe ou ignora, presta atenção ou descura, realça ou
negligencia elementos específicos dos cenários públicos. As pessoas têm
tendência para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que
os mass media incluem ou excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o
público tende a atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma importância que
reflete de perto a ênfase atribuída pelos mass media aos acontecimentos, aos
problemas, às pessoas. (SHAW, 1979; apud WOLF, 1999, p. 130)
Para Shaw (1979, apud WOLF, 1999, p. 130), “o pressuposto fundamental do agenda-
setting é que a compreensão que as pessoas têm de grande parte da realidade social lhes é
fornecida, por empréstimo, pelos mass media”.
A teoria da agenda-setting vem sendo aplicada a diversas situações, ilustrando essa
capacidade que a imprensa tem de criar imagens do mundo e fazê-las serem absorvidas pelas
pessoas como realidade. Um dos fundadores da teoria, E. Shaw (apud WOLF, 1999) defende
que a imprensa não tem necessariamente a intenção de persuadir, mas, ao descrever a
realidade exterior, apresenta ao público uma relação de assuntos sobre os quais é preciso ter
uma opinião, sobre os quais é preciso discutir.
A escolha destes temas dá-se, em parte, pelo método de seleção das fontes, o que
promove a agenda política, que geralmente recorre-se a quem tem status político e
40
econômico, e também promove quem tem mais disponibilidade para atender a imprensa,
necessariamente pessoas bastante interessadas na divulgação de uma informação.
Além das fontes “tradicionais” pautarem os jornais, elas ainda contribuem para a
definição do enquadramento adotado, pois quando o assunto é novo, os jornalistas também
não têm informação sobre eles. Mesmo que os repórteres não partilhem desta mesma opinião,
a tendência é enfatizar os dados que confirmam as informações das fontes oficiais pessoas
autorizadas socialmente a falar sobre o tema, sejam autoridades públicas, ocupantes de cargos
políticos, ou médicos, no caso de informações de área da saúde, por exemplo – e minimizar as
informações contraditórias, considerando que os profissionais da imprensa já estão habituados
com as rotinas de trabalho do jornalismo, parte da complexa discussão sobre o papel da
imprensa na afirmação da ideologia hegemônica. O cenário altera-se, mas não sabemos em
que proporção, quando uma contestação de uma fonte oficial, o que não é comum
acontecer. O atrito entre fontes oficiais pode modificar o processamento das informações por
parte do público, e pode dividir opiniões. Se esse conflito não ocorre, as chances de o público
contestar tais informações são pequenas.
A falta de experiência com determinado assunto, tanto por parte do público como dos
jornalistas, a escolha de um momento favorável à sua inserção - um bom “gancho” - e até
mesmo o meio utilizado para a sua divulgação podem interferir na fixação da agenda. Para
avaliar o nível de agendamento de determinada matéria, podemos considerar: a quantidade de
notícias divulgadas, considerando que a freqüência com que um tema é tratado é a principal
chave para definir sua importância; a estruturação editorial, referindo-se à proeminência da
disposição do artigo no noticiário; o grau de conflito que se apresenta numa reportagem; e o
tempo necessário para que os efeitos possam ser percebidos (MCCOMBS & GILBERT, 1986,
apud KUNCZIK, 2001).
A polêmica da discussão sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias mostra a
eficácia do agendamento. Agentes contrários disputaram espaço no jornal e tentaram atingir
com seu discurso a opinião pública. É importante destacar que vários fatores contribuem para
a produção do agenda-setting. Um deles é o meio de comunicação de massa em si, que
algumas categorias têm mais credibilidade ou mais alcance. A mídia impressa tem maior
poder de agendar que a televisão porque a TV noticia de maneira mais curta rápida,
heterogênea e fragmentada, enquanto o impresso é mais aprofundado e contínuo
(PATTERSON, 1976; apud WOLF, 1999). Mas isso não quer dizer que não seja possível,
como foi demonstrado por alguns pesquisadores, que haja efeitos significativos no
agendamento da televisão.
41
Depende, ainda, dos receptores, que está condicionado ao conhecimento prévio que
eles têm sobre o tema, ao nível de interesse naquele assunto, às alterações que aquilo pode
trazer à vida deles, entre outras razões. Quanto menor é a experiência direta que as pessoas
têm com um determinado assunto, mais elas precisarão do jornal para obter as informações e
os quadros interpretativos referentes a essa área. Nessa situação, o jornal tem papel
fundamental na construção da realidade, e para dar conta dos assuntos precisa recorrer a
especialistas, que acabam por direcionar os quadros.
Outro fator a se levar em conta para o agendamento, como citamos, é a situação social
vivida, um momento favorável à adoção de determinado ponto de vista ou o ineditismo do
tema, por exemplo. Quando a estrutura de valores de uma sociedade está se transformando, é
maior a possibilidade de que os meios de comunicação de massa influenciem o público
(KUNCZIK, 2001). Nesse momento, o enquadramento dado pela imprensa é fundamental
porque atua na construção da opinião pública sobre os assuntos em questão.
No nosso caso, tal aspecto deve ser levado em conta porque o tema, ainda recente para
a maioria da população, a torna mais vulnerável, já que, quando o tema foi inserido, boa parte
não tinha, como ainda não tem, muita opinião formada, sobretudo porque as informações a
respeito do projeto de lei, das suas permissões, o seu texto, bem como os desdobramentos das
pesquisas que viriam a ser realizadas não eram objeto de amplo debate. A partir da fixação do
tema pela imprensa, o assunto passa a fazer parte do repertório da audiência, o que não
significa que as informações a que terão acesso serão necessariamente diversas, pois muitas
vezes a fonte é mesmo apenas a imprensa, que, como vimos, tem suas razões para estabelecer
os quadros. Mesmo assim, quanto mais em voga, caso haja um debate, com direito ao
controverso, ao contraditório, mais chances a audiência tem de refletir sobre o tema. Do
contrário, a fixação da agenda na imprensa contribuirá para a modelagem da agenda do
público.
O assunto em foco neste trabalho é polêmico e envolve a transformação dos valores
relacionados à questão, num momento em que os diversos problemas envolvendo o limiar da
vida humana bem como o poder do homem sobre ela estão em voga, o que também torna mais
propícia a apreensão da agenda da mídia. Os apelos dos milagres anunciados pela ciência
entram em conflito com a necessidade de reflexão.
Questões como o aborto e a clonagem abalaram muito os valores da população sobre a
vida. A primeira contribuiu para a liberação sexual feminina, “dona” do seu próprio corpo,
capaz de decidir o destino do filho que esperava, principalmente a partir da década de 60. A
segunda questão, já no final do século XX, apontou a possibilidade de gerar um ser igual,
42
geneticamente idêntico, não apenas motivando a medicina a salvar vidas, como também
aguçando egos patológicos que vislumbraram a possibilidade de serem reproduzidos e
perpetuados. As possibilidades de decisão sobre a vida encantam e aterrorizam.
2.3. Análise de enquadramento
2.3.1. Os fundamentos teóricos da análise de enquadramentos
Algumas áreas das ciências humanas trabalharam com o conceito de enquadramento
antes dos estudos em comunicação. Um dos precursores do conceito, empregado na análise de
fenômenos sociais, foi o sociólogo Erving Goffman. Segundo ele, enquadramentos são
definições da situação construídas de acordo com princípios de organização que governam os
eventos ao menos os eventos sociais e nosso envolvimento subjetivo com eles
(GOFFMAN, 1991).
A organização dos eventos resulta de elementos como crenças, valores e regras
estabelecidas. A construção da realidade é promovida segundo os interesses que prevalecem
em cada fato conforme quem os organiza. Nós mesmos escolhemos o enquadramento da
realidade de maneira que tenhamos sobre ela algum controle, ao ponto de optarmos, por
exemplo, não tomar conhecimento sobre determinados assuntos, preferir ficar na ignoncia. O
conjunto de vários enquadramentos definidos por interesses diversos, então, forma a realidade
aparente uma realidade que é, na verdade, complexa e contraditória acaba aparentando uma
ordem.
Goffman não abordou a realidade apresentada pelos meios de comunicação, mas, de
maneira geral, se preocupou com as diversas situações em que a realidade pode ser definida.
A partir do trabalho do sociólogo ganharam fôlego duas abordagens. Uma delas aponta para o
enquadramento sob uma perspectiva natural, um quadro determinado e livre da intervenção
de qualquer pessoa.
A segunda abordagem é social. Por ela, diferente da natural, os quadros permitem
compreender eventos que sejam provocados pelo homem. As suas ações são fundamentadas
em valores – como honestidade, economia, certeza, tato, entre outros – e submetem os
eventos a normas. Cada quadro social tem suas próprias regras. Pelas ações intencionadas, o
agente pode manipular o mundo natural e se colocar em interação com os diversos mundos
existentes na sociedade. Os homens são inteligentes o suficiente para se adaptar ao ambiente
43
natural e dele tirar proveito, lembrando que esse ambiente também exerce pressão sobre o
agente.
Aproveitando-se do trabalho de Goffman, a psicologia deu importante contribuição ao
estudo do enquadramento ao demonstrar que mudanças na formulação de problemas podem
provocar grandes alterações nas preferências das pessoas. Por experimentações, Kahneman e
Tversky (1984 e 1986, apud PORTO, 2004) mostraram que, mesmo com problemas idênticos
sendo expostos, as pessoas decidem de acordo com a forma como os temas foram
enquadrados. Tal demonstração aponta que os enquadramentos são importantes instrumentos
de poder.
Não nos deteremos nesse enfoque, mas sim numa abordagem mais relacionada à
imprensa. Muitos estudos foram apresentados no intuito de demonstrar como os
enquadramentos adotados pelos jornais interferem na apreensão dos assuntos tratados. Um
deles foi sobre a organização do movimento Student for a Democratic Society (SDS),
conduzido por Todd Gitlin (1980). No texto em que relata a análise, ele apresenta uma
definição para enquadramento:
Os enquadramentos dos media, que em grande parte são tácitos e não
admitidos, organizam o mundo tanto para os jornalistas que o descrevem
como, num grau muito importante, para nós que confiamos em suas
descrições. Os enquadramentos de media são padrões persistentes de
cognição, de interpretação e de apresentação, de seleção, de ênfase e de
exclusão, através dos quais os manipuladores-de-símbolos organizam
habitualmente o discurso, seja ele visual ou verbal. (GITLIN, 1980, p. 7)
Por meio da seleção, ênfase e exclusão de elementos do discurso, aplicados à seleção
de aspectos da realidade, é possível construir uma interpretação dos fatos, uma avaliação
moral e um determinado tratamento sobre a informação. Cada detalhe pode ser noticiado sob
diversos enfoques, pode receber vários enquadramentos. A intenção é obter reações
favoráveis da audiência, e essas reações influenciam as ações das elites políticas, principais
fontes dos quadros das notícias (ENTMAN, 1991).
Ao observar a relação entre os enquadramentos da mídia e a cultura política, o
sociólogo William Gamson (1987; apud PORTO, 2004) explica que o tema político apresenta
variações no discurso ao longo do tempo. No entanto, geralmente há “pacotes interpretativos”
que disputam para definir qual prevalecerá, e no centro de cada um deles está o
enquadramento, uma idéia organizadora que atribui significados aos eventos, conectando-os e
mostrando suas controvérsias.
Na definição de Entman (1994; apud PORTO, 2004, p. 82), já mais precisa,
enquadrar significa selecionar alguns aspectos de uma realidade percebida e
fazê-los mais salientes em um texto comunicativo, de forma a promover uma
44
definição particular do problema, uma interpretação causal, uma avaliação
moral e/ou uma recomendação de tratamento para o item descrito.
O próprio Entman apresenta uma análise comparativa dos enquadramentos feitos pela
imprensa norte-americana na cobertura de dois episódios: o ataque ao avião da Korean Air
Lines (KAL) por um caça soviético, em 1º de setembro de 1983, que matou a tripulação e seus
269 passageiros; e o ataque ao avião da Iran Air por um cruzador norte-americano, que matou
a tripulação e seus 290 passageiros. Entman (1991) constatou que, no primeiro caso, o quadro
deu destaque à falência moral e à culpa do país responsável pelo ato, e, no segundo caso, o
quadro descaracterizou a culpa e destacou os problemas envolvidos no manejo da tecnologia
militar.
No caso estudado, o sociólogo explica que os enquadramentos das notícias funcionam
como princípios apreendidos mentalmente para o processamento da informação e como
características do texto noticioso (ENTMAN, 1991). Ele confere poder ao texto comunicativo
graças ao enquadramento, que torna possível atuar politicamente, definir problemas,
diagnosticar causas, fazer um julgamento moral e sugerir remediações. Isso não quer dizer
que a audiência receba sempre passivamente as mensagens e as assimile como “a verdade”,
mas sim que, como dissemos, caso não haja informações controvertidas no quadro, é bem
provável a assimilação da posição dominante pela grande maioria da audiência.
A autoridade do emissor também é fundamental para a aceitação dos enquadramentos.
O emissor é o responsável pela organização das informações de modo a auxiliar as pessoas na
aquisição do conhecimento da realidade. A imprensa representa um respeitado construtor de
enquadramentos.
A supremacia narrativa adquirida pelo jornalismo se deve ao fato de
constituir-se como um campo legitimado socialmente para operar funções de
outros campos, num processo de especialização de competências típico da
modernidade, que concedeu à mídia e ao jornalismo, em especial, o papel de
narradores privilegiados, cuja tarefa é dar a conhecer aquilo que diz respeito
ao mundo e ao presente que se desenrola diante dos olhos de quem dele faça
parte. (REIS, 2002, p. 37)
A legitimação dessas instituições é uma questão complexa, porque a sociedade é a
coexistência de seres humanos que adotam determinadas ações enquanto seres inteligentes,
racionais, morais e ativos que vivenciam o mundo, e não como simplesmente “causados” por
ele (GITLIN, 1980). Afinal, todos fazem parte do processo de construção social da realidade,
todos são agentes e integrantes, todos são resultado e causadores dessa realidade socialmente
construída.
45
2.3.1.1. Enquadramento e agenda-setting
A teoria do agendamento discorre sobre a escolha dos temas, mas o enquadramento a
completa, por tratar do conteúdo, que muito interfere na formação da opinião pública. A
imprensa define prioridades, elenca os temas escolhidos, e, então, nos mostra sobre o que
pensar. A mídia seleciona assuntos e ignora outros, definindo, assim, quais temas,
acontecimentos e atores são importantes para a notícia. Quando enfatiza determinados temas,
acontecimentos e atores sobre outros, a dia estabelece uma escala de proeminência entre
eles é o primeiro nível de efeitos da agenda-setting. O segunto nível fica a cargo dos
quadros adotados, conforme constrói os atributos, positivos e negativos, acerca dos objetos, o
que é realizado ao adotar enquadramentos positivos e negativos sobre temas, acontecimentos
e atores.
Assim, percebemos que a mídia não apenas nos diz o que pensar, mas também como
pensar sobre o que definiu que devemos pensar. Além de dar a conhecer os assuntos, ela ainda
‘monta’ um acontecimento, dando-lhe forma e conteúdo (FISHMAN, 1990). O próprio
McCombs, fundador do conceito de agenda-setting, anexou a ele o conceito de
enquadramento.
Agenda-setting é considerada mais do que a clássica asserção de que as
notícias nos dizem sobre o que pensar. As notícias igualmente nos dizem
como pensar acerca disso. A seleção de objetos para a atenção e a seleção
dos enquadres pensados acerca destes objetos são o ponto forte do papel do
agenda-setting. (MCCOMBS, 1993; apud COLLING, 2001, p. 94)
2.3.1.2. Relações entre fontes e jornalistas
Os enquadramentos, como defendeu Shaw em relação ao agendamento, nem sempre
são aplicados de forma consciente ou com intenção de manipular ou iludir (HACKETT, 1993;
apud PORTO, 2004). Fishman (1990) segue na mesma linha, argumentando que o modo
como os jornalistas interpretam o que as fontes dizem não é totalmente arbitrário nem
totalmente pré-estabelecido pela natureza daquilo com que se defrontam.
Muitas vezes surge o que Wolfsfeld (1991) chama de “relações de namoro” entre
jornalistas e fontes, resultante de um convívio próximo, que, além de simpatia e confiança,
pode promover uma identificação do repórter com a fonte, refletida na reportagem. O autor
define a relação entre fontes e imprensa como uma “simbiose competitiva”, numa ligação de
dependência em que cada lado precisa dos serviços do outro, mas quer que tais serviços sejam
46
realizados à sua maneira. Essa relação envolve ainda o conjunto de transações culturais em
que cada lado expõe suas interpretações da realidade.
De acordo com Herbert Gans (1979), o trabalho jornalístico é afetado pelas relações
entre jornalistas e fontes. Ele defende que o acesso das fontes aos jornalistas depende de
quatro fatores interrelacionados: incentivos; poder da fonte; proximidade geográfica e social
dos jornalistas; e capacidade de oferecer informação adequada, sendo este último o mais
importante deles.
Wolfsfeld (1991) também define quatro fatores que determinam o poder das fontes
sobre os meios de comunicação: o nível do status social, político e de media; o volume de
organização e de recursos; o volume do comportamento noticiável; e o nível de dependência
dos media. Para ele, a conjunção desses quatro componentes acarreta a noticiabilidade”. Os
três primeiros definem a força das fontes sobre os meios de comunicação, e o quarto fator
mostra a vulnerabilidade das fontes, sendo que a interação entre eles é que determina o poder
de um antagonista, atuando de maneira relacionada. Afinal, o status político e social
geralmente está relacionado ao maior nível de organização e de recursos, o que contribui
ainda para um status mais elevado de media e torna a fonte menos dependente de um
comportamento noticiável, sendo menos dependente dos meios de massa. Wolfsfeld estaca
que, comumente, os atores políticos que exercem maior poder sobre a imprensa são
exatamente os que menos precisam dela. Resulta de todos esses fatores a desigualdade da
capacidade das fontes de ganhar acesso aos jornalistas. Quem tem poder econômico ou
político tem acesso à mídia e é reportado por ela. Já quem não tem, geralmente ganha
algum destaque quando produz acontecimentos negativos.
por parte dos jornalistas, a opção por recorrer a determinadas fontes faz-se a partir
de alguns fatores, definidos por Gans (1979) como conveniência passada, produtividade,
confiabilidade, veracidade, autoridade e articulão. A autoridade e a confiabilidade são
diferenciais entre as fontes, e estão relacionadas, geralmente, à função que a fonte
desempenha, ao seu vel de envolvimento com o acontecimento e ao histórico de
relacionamento com o jornalista em outras situações. A minoria que detém as informações e
tem acesso aos meios de comunicação sabe de seu poder de controlar a informação a ser
divulgada e tira proveito da possibilidade de punir os jornalistas negando-lhes seus registros.
Mas não são apenas as fontes que influenciam os jornalistas. Os dois grupos fazem
parte de uma rede, e a influência, por isso, é mútua. Wolfsfeld (1991) propõe uma distinção
entre dois componentes de poder: força e vulnerabilidade. A força é representada pelo valor
dos serviços de uma pessoa para outros atores, o que determina a probabilidade de exercer
47
influência sobre eles, enquanto a vulnerabilidade está na necessidade que essa pessoa tem dos
serviços dos outros, definindo a probabilidade de ser influenciada. Essa relação define o nível
de poder, dividindo-se a força pela sua vulnerabilidade.
Assim, nem só as fontes atuam sobre os media, mas os meios de comunicação também
têm poder sobre as fontes. Para Wolfsfeld (1991), tal poder é condicionado por cinco
variáveis: seu status social e político, seu nível de recursos, a extensão de sua distribuição, seu
nível de contínua dependência a cada um dos antagonistas, e sua dependência em relação a
um determinado conflito. Os três primeiros são determinantes da ‘força’ dos meios de massa e
os dois últimos, do seu nível de ‘vulnerabilidade’.
2.3.1.3. Enquadramento como elemento de construção da realidade
As reflexões teóricas acerca da construção social da realidade mantêm ligações com a
teoria do enquadramento, sobretudo porque os quadros dos acontecimentos que preenchem os
espaços públicos definem o nível de importância a ser atribuído ao fato. Hoje, concebemos
o espaço público mediatizado, um espaço público totalmente arbitrado pelos meios de
comunicação, uma esfera que atua como mediadora entre os agentes políticos e a audiência
(AZEVEDO, 2004). Nos textos noticiosos, a escolha dos quadros a serem divulgados
contribui decisivamente para a formação da realidade a ser absorvida pela audiência.
Ao recorrer aos meios de comunicação, os seres humanos constroem redes de
significação. Nesse aspecto, a imprensa corrobora a rotina estabelecida, reforça o que está
definido. Por mais que a realidade social, em geral, apresente o caos, mostre seu dinamismo, a
mídia está ali para organizar o quadro, eliminando as incertezas, minando o aleatório,
impondo uma racionalidade à realidade. (THOMSON, 1995, apud CORREIA, 1999).
Uma das maneiras de promover essa ordenação é estabelecer “acontecimentos-tipo”, é
definir conceitos, classificar assuntos, formatar comportamentos previsíveis e, assim, tratar
controladamente o caos. Com a escolha de temas editoriais, a imprensa consegue classificar
os fatos em grupos e, de algum modo, relacionar os fatos, enquadrando-os em pacotes, ainda
que não tenham ligação. Esse ajuste de temas o é apenas para ordenar a realidade para a
audiência, mas é também uma forma de a própria imprensa se organizar, um auxílio nas
buscas, escolhas e cortes que precisa fazer rotineiramente. Dessa maneira, organizamos, com
a ajuda dos jornais, a vida cotidiana em quadros que nos permitem compreender a sociedade e
responder ao que nos é cobrado (TRAQUINA, 1995, apud CORREIA, 1999).
48
Ao eleger os assuntos que serão abordados e o enfoque que receberão, a imprensa vai
atuando como agente na construção da realidade. Com base no que nos é oferecido, podemos
formar opiniões, adotar visões de mundo, tomar atitudes. Os jornais nos oferecem um mundo
além daquele que perceberíamos por nossa própria conta, um mundo além do nosso
mundinho.
A realidade do noticiário é produzida pelas “rotinas de trabalho” adotadas pelos
jornalistas e pelos métodos que eles utilizam para transformar o mundo em notícia. Tais
rotinas são estabelecidas de acordo com os interesses políticos e econômicos das empresas de
comunicação e atuam de modo a privilegiar determinadas versões da realidade, em detrimento
de outras (GITLIN, 1980).
Essas rotinas profissionais dos jornalistas visam, antes de qualquer coisa, promover os
enquadramentos das notícias. Estabelecidas de acordo com os interesses poticos e ecomicos
das empresas de comunicão, as rotinas atuam de modo a privilegiar determinadas veres da
realidade, preterindo outras. Os procedimentos adotados pela empresa “adestram” os repórteres,
que também podem interferir nos enquadramentos com sua experiência de vida, seu processo de
socializão, incluindo como socialização esse treino na empresa. Tudo isso é inserido no
processo de construção do enquadramento, geralmente, de maneira inconsciente, o intencional,
impensada. As rotinas de trabalho já proporcionam uma tendenciosidade nas notícias, soberana à
intenção dos repórteres, que favorece os interesses das elites poticas e econômicas.
À medida que o enquadramento vai sendo trabalhado pela imprensa, ele vai ganhando
tons de “naturalidade”, e a questão tende a entrar no senso comum, a ser tomada como certa. A
seleção dos detalhes de cada acontecimento, a ênfase em alguns ângulos e a omiso de outros
formam o enquadramento definido, a realidade organizada pelos jornais e assimilada por nós, o
público, acreditando que é realmente a realidade. Essa naturalização dos acontecimentos ajuda
no controle ideológico, necessário para manter a ordem estabelecida. Como vemos, a imprensa
tem atuão decisiva para garantir o que os poderes político e ecomico pretendem (GITLIN,
1980).
Vemos, assim, que o jornal organiza o mundo, determina o que é realidade e atua
como um dos principais se não o principal meios de disseminação da ideologia
8
. Com
isso, certamente, esse espaço é disputado pelas diversas elites que tentam, ali, fazer prevalecer
o seu pensamento. As oposições, mais fracas, têm dificuldade em mostrar sua posição. Na
imprensa, por mais que tentem mostrar o que pensam, tentem ter voz, as oposições o
8
Tomamos “ideologia” como o conjunto de pensamentos de um indivíduo ou de um grupo.
49
conseguem o espaço que lhes permita equiparar as forças, não conseguem dizer o que querem
e não têm poder sobre o que a mídia vai mostrar como sendo seu pensamento, suas atitudes e
as razões que as motivaram. O mais complicado, porém, é que as oposições obtêm algum
espaço ao se adequaram às regras da imprensa, ao se tornarem “noticiáveis” dentro do que a
mídia define como tal. A oposição é vista pela audiência sob o rótulo que a mídia a apresenta.
Na esfera pública, e na esfera pública mediatizada, vários discursos em disputa, e
nenhum deles pode se isolar. Num debate constante e intenso, as trocas e influências
acontecem o tempo inteiro, os grupos sociais e as instituições competem e estabelecem lutas
ideológicas, o que proporciona a construção conjunta realidade (MAIA & SANTIAGO,
2005).
Entre os diversos agentes, em qualquer situação, podemos identificar atores políticos e
os agentes da dia. E, claro, entre eles um imenso jogo de interesses, que podem, por
parte da mídia, resultar em enquadramentos que favoreçam ou contrariem os atores. A
complexidade da sociedade favorece o papel decisivo da imprensa na estruturação do espaço
público e na construção da realidade social. Se o debate é saudável e necessário no espaço
público, deveria, então, acontecer com o equilíbrio real de forças dos agentes em combate,
com todos os lados dispondo das mesmas chances no conflito (MAIA, 2003).
Parte da rotina de trabalho dos jornalistas é formada pelas regras da objetividade e do
equilíbrio, paradigmas do jornalismo e que, portanto, devem ser reforçados na atuação da
imprensa. Com isso, as questões são trabalhadas como oposição, conflitos, “dois lados”. O lado
mais forteapoiado pela imprensa fala e o outro lado contesta. Uma ajudinha extra é dada pela
opino pública, a quem se recorre para atestar aceitação (GITLIN, 1980). A imprensa até “ouve
o outro lado”, recorre à oposição para atestar que o contraditório espresente e que, com isso,
ela respeita os preceitos do bom jornalismo, mas o enquadramento adotado e os espaços
destinados à contestação mostram a diferença no tratamento.
A imprensa define sobre o que falar, elege os protagonistas e as questões a serem
abordadas, escolhe imagens, ângulos e palavras de modo a reforçar aquilo que ela propõe. No
caso das pesquisas com células-tronco embrionárias, a grande questão era quem estava “a
favor” e quem estava “contra” a vida. A mídia, claro, se colocou como estando a “favor da
vida” – considerando a definição que ela mesma estabeleceu –, mantendo-se de fora do debate
ético em torno do início da vida.
A questão da vida não é recente, embora polêmica, mas as possibilidades anunciadas
pelas pesquisas eram pouco conhecidas quando o assunto entrou na agenda e, nessa situação,
trabalhar o tema de modo a mobilizar a opinião pública é mais fácil. Com agentes políticos
50
em discordância, agentes de autoridade reconhecida em atrito, a imprensa tende a minimizar
os efeitos da oposição, controlar e afastar aquilo que pode ser prejudicial.
Gabriel Tarde (apud AZEVEDO, 2004) apresenta quatro elementos formadores do
espaço público do que ele chama de “democracia de massa”: a imprensa, a conversa, a
opinião e a ação. Por divulgar a agenda política e a agenda pública, sobre a qual a audiência
precisa refletir, debater, contrapor opiniões e se posicionar, o papel da imprensa é o mais
importante.
2.3.2. Usos metodológicos da análise de enquadramentos
Gitlin (1980) aponta que, para qualquer análise de mídia, é preciso identificar quais
enquadramentos adotados para o caso em voga e por que eles foram escolhidos. De que
maneira a imprensa reagiu aos acontecimentos, que eventos ela escolheu noticiar e que razões
levaram a essa escolha são questões a serem respondidas para a identificação do
enquadramento, embora não seja fácil descobrir e relatar como realmente se deu o
comportamento da mídia. Ao identificar os destaques da cobertura, é preciso ir além deles
para compreender os objetivos da imprensa naquela cobertura, com especial atenção ao modo
como ela divulga a oposição e ao conteúdo simbólico das mensagens divulgadas.
O enquadramento é identificado a partir da observação de elementos inseridos nas
narrativas noticiosas, como palavras-chave, metáforas, conceitos, símbolos e imagens visuais.
Tais elementos motivam a audiência a desenvolver uma determinada compreensão sobre os
fatos relatados. Para identificar os quadros utilizados, Entman (1991) sugere o levantamento
de palavras e imagens visuais freqüentes na narrativa e que carregam significados ligados ao
tema. É preciso, ainda, buscar a definição do problema (se é político ou econômico, por
exemplo), verificar se há ou não personalização do problema (se ele é colocado como um
ente), identificar as causas do problema apresentado, quais são seus atores, a quem está sendo
creditada a solução do problema e quais são as soluções divulgadas. Ao fim de tudo isso, é
necessário identificar a avaliação moral do problema. A escolha e a repetição desses
elementos, referindo-se a algumas idéias e não a outras, realçam alguns quadros e chegam a
tornar outros totalmente invisíveis. Entman (1991) apresenta ainda os aspectos que ajudam a
criar o enquadramento prentendido: juízos de importância, agente, identificação,
categorização e generalização.
51
As regras para se dizer objetivo também são importantes para assegurar o disfarce do
enquadramento. Seguindo as estratégias da objetividade, os jornalistas fazem relatos que
chamam de “verdades” e que, portanto, devem ser vistos como realidade.
O recurso sistemático à terceira pessoa e a omissão generalizada do sujeito
da enunciação; a indicação específica de omitir os deícticos de lugar e de
tempo (hoje, agora, ali, aqui), por serem marcas que remetem para um
sujeito que se pretende a todo custo ocultar, constituem mecanismos
objetivantes que visam, antes de tudo, construir um poderoso efeito de
adequação total à realidade. Ou seja, relatam-se os fatos, omitindo-se tudo
quanto diga respeito a quem os relatou e em que condições os fez.
(CORREIA, 1999, p. 3)
Liebes (1992), no seu estudo sobre a cobertura da Intifada palestina e da Guerra do
Golfo nas televisões norte-americana e israelense, aponta seis mecanismos de enquadramento,
levando em consideração apenas os episódios estudados: excisão, higienização, equalização,
personalização, “demonização” e contextualização.
Nos casos analisados por Liebes, o “inimigo” da TV norte-americana logo, o
inimigo do povo norte-americano – sofreu uma excisão, sendo anulado nas reportagens,
saindo do foco da mídia e tendo suas perdas minimizadas. Não era retratado, por exemplo, o
que acontecia ao povo iraquiano durante o confronto. Junto com isso, houve a “demonização”
do lado oposto, demonstrado, sobretudo, com a representação de Saddam Hussein como líder
do mal. Liebes aponta também um processo de “higienização” no noticiário, que não
mostrava imagens chocantes patrocinadas pelo comando norte-americano. Esse
distanciamento no noticiário servia também como estratégia para promover uma
“equalização” entre os dois lados, pois, com um olhar distante, não eram percebidas as
diferenças, entre outras, de armamento, de condições de luta, existentes entre os dois lados.
Além disso, tal comportamento por parte da mídia ainda ajudava a reforçar o ideal de
equilíbrio no noticiário.
O que Liebes chama de personalização da guerra é mostrar as personagens e o que está
acontecendo com elas durante o conflito, mas apenas do lado apoiado pela mídia. No caso da
Guerra do Golfo, as vítimas norte-americanas: os soldados mortos e suas famílias sofrendo,
enquanto as personagens correspondentes do outro lado eram “excisados”.
A contextualização é colocada por Liebes como estratégia de enquadramento na
medida em que só é usada por quem tem interesse em fazer a crítica ao outro lado, que,
sim, coloca um contexto para o ato, enquanto, para divulgar o lado apoiado, mostra o fato
apenas como episódio isolado, descontextualizado.
52
Entman (1991) aponta a necessidade de estar atento a algumas questões nos estudos
sobre o enquadramento, a partir da análise que fez dos dois incidentes aéreos citados. A
audiência é, em princípio, livre para tirar conclusões diferentes das mensagens da dia,
embora, nos casos estudados, quando a imprensa apresenta pouca contestação ao quadro
dominante, o texto noticioso assume a forma de uma versão autorizada. Além disso, o
sociólogo reforça a necessidade de observar a autonomia da imprensa porque ele a coloca
como fundamental para a teoria democrática, e é freqüente um controle do Governo sobre o
enquadramento das notícias, embora os jornalistas muitas vezes resistam e desafiem a linha
oficial, e muitas vezes, oficialmente, o país viva um regime democrático.
53
3. O debate na Folha de S.Paulo
O debate público sobre questões de grande impacto político e econômico é de extrema
importância para legitimar as posições adotadas pelos agentes envolvidos. A mídia de maneira
geral e o jornal, especialmente para o nosso trabalho desempenha papel relevante neste
contexto, pois é uma das esferas onde o debate se realiza. Não existe apenas essa esfera, mas
ela é uma das mais abrangentes, devido à audiência envolvida e, por conseguinte, ao grande
alcance que consegue obter. Por isso também os agentes envolvidos acabam traçando grandes
batalhas na tentativa de registrar seus pontos de vista e de conseguir destaque positivo no
debate. Tornar a discussão pública aumenta a legimitidade das decisões adotadas pelos
agentes políticos, sobretudo quando se obtém uma adesão do público à posição defendida
pelos agentes que têm prerrogativas decisórias.
Em decorrência disso, a mídia se coloca, então, como o espaço onde ocorre a luta entre
os diversos agentes políticos, econômicos, religiosos e a sociedade civil em geral –, que
buscam influenciar e controlar a percepção dos fatos e interferir nas políticas públicas. Essa
luta, em geral, não é equilibrada, porque o acesso dos agentes ao jornal não é igual. Como
dissemos no capítulo anterior, este acesso está condicionado a diversos fatores, como status
social, político e de mídia, organização e recursos, comportamento noticiável e dependência
da mídia (WOLFSFELD, 1991).
Os atores envolvidos adotam discursos muitas vezes extremos. No caso específico das
discussões sobre as pesquisas usando embriões humanos para a obtenção de células-tronco, os
agentes se dividem entre argumentos técnicos, a favor do avanço da ciência, e éticos, levando
em conta a definição dos limites da vida. Num quadro geral, os argumentos da eficiência do
tratamento e benefícios à saúde são usados por aqueles que defendem o uso de embriões
congelados para obtenção de células-tronco e também a clonagem terapêutica; os que apelam
para a necessidade de discussão ética e recorrem à dignidade humana são os que não aprovam
as pesquisas usando os embriões, existentes ou produzidos para este fim.
Nos próximos capítulos, pretendemos fazer uma análise de alguns textos divulgados
no jornal Folha de S.Paulo, com base na fundamentação teórica apresentada nos capítulos
anteriores. Desse modo, observaremos como as questões relacionadas à vida foram tratadas
pelo jornal e que agentes estiveram presentes no veículo para discutir esse tema. Nossa
proposta é identificar os atores envolvidos e quais os enquadramentos discursivos adotados
por esses atores. A escolha do jornal Folha de S.Paulo constitui uma amostra representativa da
54
imprensa por ser o jornal de maior tiragem, envolver coberturas nacionais e internacionais, e
ser vendido no país inteiro.
Para fazer a análise, adotamos uma estratégia que nos permitisse definir melhor o
material a ser considerado. Assim, antes de chegar à seleção final dos textos, devemos
explicitar aqui como procedemos no levantamento das informações. Nos dias 13, 19 e 20 de
junho de 2006, fizemos buscas no site do jornal Folha de S.Paulo para coletar os textos que
continham as seguintes expressões: “célula-tronco embrionária”; “células-tronco
embrionárias”; “biossegurança” e “célula-tronco”; “biossegurança” e “células-tronco”;
“células-tronco”; “célula-tronco”; e “biossegurança”.
A nossa busca compreendeu o período de fevereiro de 1997, quando foi divulgada a
criação do clone Dolly, até 24 de julho de 2005, quatro meses após a sanção da Lei 11.105,
que permitiu no Brasil as pesquisas com células-tronco embrionárias utilizando o excedente
de embriões congelados mais de três anos. Os resultados obtidos com a junção de todas as
buscas com os termos citados acima somaram mais de 1.300 registros. Embora
reconheçamos sua importância, preferimos voltar nossa análise apenas para os textos,
descartando outros elementos presentes, como fotografias, legendas, infográficos e
diagramação.
As primeiras notícias circularam em torno do fato da clonagem que resultou na ovelha
Dolly. Nos primeiros meses, houve uma avalanche de textos com informações sobre a técnica
e com muitas repercussões sobre o feito. Com o passar do tempo, foram sendo divulgadas
novas experiências envolvendo a clonagem. Geralmente, referindo-se à clonagem terapêutica,
as notícias davam conta de possíveis conquistas a serem alcançadas com o procedimento.
quando divulgavam algum relato envolvendo a clonagem reprodutiva, traziam principalmente
as repercussões sobre o tema, ouvindo-se também os cientistas. Ao longo dos anos, ganharam
destaque ainda algumas notícias sobre a postura dos governos em relação ao tema e eventos
promovidos por entidades religiosas. Poucas vezes, no entanto, no escopo noticioso houve
uma abordagem ética do assunto.
Os últimos anos da busca, 2004 e 2005, foram os que mais registraram textos
relacionados ao tema, exatamente nos anos que foram agitados pela votação do projeto de lei
que discutia a pesquisa com células-tronco embrionárias. Em 2004, foi votado e aprovado
pela Câmara Federal o Projeto de Lei nº 2401/2003, proibindo o uso de embriões para
pesquisas. O projeto endurecia a Lei da Biossegurança de 1995, em vigor naquele momento.
Após a aprovação, o novo projeto seguiu para o Senado, onde o texto foi modificado, votado e
aprovado no dia 6 de outubro, dessa vez permitindo as pesquisas usando os embriões
55
congelados mais de três anos. Depois da decisão do Senado, o projeto voltou à Câmara,
sendo votado no dia 2 de março de 2005. Nesse período, então, a partir de 2004, quando a
discussão foi acirrada devido à primeira votação na Câmara, é o que tema foi agendado com
mais freqüência na Folha de São Paulo.
Tendo os registros dos textos publicados, buscamos um olhar mais cauteloso,
identificando no material pré-selecionado os textos que apresentavam uma discussão mais
ampla sobre a questão da vida. A razão de tomar como início de nossas buscas o ano de 1997
foi a divulgação da clonagem que resultou na ovelha Dolly, fato que disparou o debate sobre a
clonagem de seres humanos e os poderes de manipular a vida, pois mostrou que, ao copiar um
mamífero, a ciência seria potencialmente capaz de clonar também um ser humano. A partir
desse fato, alguns outros acontecimentos tornaram o debate mais freqüente em diversos
momentos, colocando o tema com alguma regularidade na agenda da Folha de S. Paulo.
Podemos destacar, especialmente, além do clone Dolly, a repercussão sobre a possível
clonagem de um ser humano, anunciada por empresas de biotecnologia e também por um
médico italiano; e a tramitação do projeto de lei que autorizou as pesquisas com células-
tronco embrionárias no Brasil.
Durante os anos de 2001 e 2002, o mundo se viu às voltas com a notícia de que
finalmente havia sido clonado um ser humano, usando-se a mesma técnica empregada na
replicação que originou Dolly. A Folha acompanhou as notícias, divulgando na editoria de
Ciência os experimentos realizados com outros mamíferos, apresentando as notícias do
possível feito envolvendo um ser humano e, em seus editoriais, manifestando-se contrária a
esse tipo de experimento, posição reforçada também pelos colunistas nos espaços de opinião
do jornal. A postura da Folha foi clara: a favor da clonagem terapêutica e contra a clonagem
reprodutiva. A mesma opinião foi amplamente defendida pelos articulistas que ganhavam
espaço nas seções de opinião.
Ao final de 2003, as notícias passaram a abordar especialmente o projeto de lei que
alterava a legislação de biossegurança no país. O tema mobilizava esforços de diversos
segmentos sociais, especialmente do jornal, para garantir a aprovação de uma lei mais aberta
às pesquisas. O projeto ganhou um reforço naquele momento: um substitutivo permitindo a
clonagem terapêutica, pois retirava do projeto o veto ao uso e à produção de embriões.
Nos anos de 2004 e 2005, especialmente, a mídia em geral e, assim também, a Folha
de São Paulo, atuou de maneira decisiva como mediadora do debate blico que envolveu a
votação da Lei que trata do tema. Bem antes de haver um novo Projeto de Lei em andamento,
56
porém, o enquadramento pró-pesquisas vinha sendo adotado, ponto de vista identificado
desde as primeiras notícias sobre os resultados dos estudos com células-tronco.
Desde 1995, estava em vigor no Brasil a Lei 8.974 – a Lei de Biossegurança –,
sancionada em 5 de janeiro daquele ano, estabelecendo normas para a engenharia genética,
entre elas, proibindo a produção, o armazenamento e a manipulação de embriões humanos
destinados a servir como material biológico disponível. Com o avanço freqüente da ciência no
campo da clonagem tornou-se necessária uma atualização da referida lei, sobretudo por
pedidos de cientistas interessados em realizar as pesquisas e futuramente utilizar a técnica.
Um editorial da Folha, em 18 de dezembro de 2003, defendendo o uso dos embriões
congelados, pedia a revisão da Lei da Biossegurança em vigor. O substitutivo apresentado
pelo deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP), então líder do governo Lula, noticiado dias antes,
atendia a esse clamor. No entanto, o novo relator do projeto, o deputado Renildo Calheiros
(PC do B-PE), vetou novamente a manipulação de embriões humanos visando à clonagem
terapêutica. Assim, em votação no dia 4 de fevereiro de 2004, a Câmara manteve a proibição
já prevista na Lei 8.974 ao votar o Projeto de Lei nº 2.401/2003, que tratava principalmente da
questão dos transgênicos. O projeto foi apresentado pelo governo em 30 de outubro de 2003,
em regime de urgência, visando substituir a Lei de 1995, com a proibição das pesquisas
com células-tronco embrionárias. Aldo Rebelo, o relator inicial do projeto, tirou o artigo que
vetava a clonagem. Passado às mãos de Renildo Calheiros, o projeto voltou a proibir as
pesquisas com embriões.
O projeto tramitou na Câmara por três meses. Após a aprovação, seguiu para o
Senado. Se antes era grande a pressão dos diversos lados envolvidos, a partir do veto dos
deputados às pesquisas com células-tronco embrionárias, a abordagem do assunto ficou mais
intensa. Logo após a proibição da Câmara à manipulação de embriões, a Folha criticou a
decisão dos deputados, em editorial do dia 8 de fevereiro de 2004, e atribuiu ao Senado a
“responsabilidade de não compactuar com o obscurantismo”. Ocupantes de cargos elegíveis
enfrentam grandes problemas e podem sofrer conseqüências irreversíveis ao contrariar a
imprensa, legítima representante da sociedade. A Câmara, naquele momento, carregava o
estigma de responsável pelo atraso da ciência no Brasil, o que colocaria o país na contramão
das tecnologias para tratamento com células-tronco e o tornaria mais uma vez dependente de
tecnologias estrangeiras. O Senado representava, então, a chance de reverter a decisão.
No Senado, o projeto levou oito meses até ser votado em 6 de outubro de 2004,
aprovado com 53 votos, 2 contrários e 3 abstenções. Passou pelas comissões de Constituição,
Justiça e Cidadania (CCJ), de Assuntos Econômicos (CAE), de Assuntos Sociais (CAS) e de
57
Educação (CE) a primeira delas incluiu, ainda em agosto, a permissão ao uso de embriões
resultantes dos processos de fertilização in vitro e também à clonagem terapêutica. No
entanto, um acordo feito entre senadores, tirou do texto novamente a clonagem, mantendo
apenas o uso de embriões congelados.
Na votação realizada em outubro, os grupos favoráveis ao uso de embriões obtiveram
vitória. Mas tal vitória se deu, também, graças à força das empresas de biotecnologia, que se
empenhavam na liberação dos transgênicos, contida no mesmo projeto. O texto que se referia
às células-tronco embrionárias foi alterado e então aprovado, autorizando as pesquisas com
embriões existentes, congelados em clínicas de fertilização mais de três anos. Embora
não permitisse a clonagem terapêutica – a produção de embriões especialmente para obtenção
de células-tronco –, o resultado teve avanço considerável em relação à versão aprovada na
Câmara. No entanto, a guerra não estava ganha, pois o projeto precisava voltar aos deputados,
que poderiam vetar ou alterar o conteúdo aprovado pelo Senado.
Assim, as pressões aumentaram, pois a decisão estava de novo nas mãos da Câmara.
Para os grupos pró-pesquisa, a conquista da alteração do projeto representava um grande
avanço, que não poderia ser perdido novamente naquela esfera que havia rejeitado as
pesquisas com embriões. A união dos esforços nesse momento era fundamental. Desse modo,
a mobilização nesse período foi grande. Os diversos agentes tentavam, à sua maneira, fazer
ecoar sua voz para garantir o resultado de acordo com o que defendiam. Manifestos
circularam pela Internet, abaixo-assinados foram produzidos contra e a favor do uso de
embriões, audiências públicas foram promovidas, palestras realizadas em todo o país
tentavam esclarecer o assunto, mas nenhuma dessas ações conseguiria mais repercussão que a
divulgação midiática. Durante meses, o tema foi presença freqüente nas páginas da Folha de
S.Paulo. Notícias sobre as pesquisas mais recentes no mundo inteiro, vetos e aprovações por
diversos governos, financiamentos aprovados, experimentos das empresas, repercussões sobre
o assunto, divulgação de eventos sobre o tema foram pauta de muitas notícias. O jornal atuou
como a arena para o debate em torno do assunto, que ganhava mais repercussão e mais
destaque com o passar do tempo, e teve seu ápice nos dias que antecederam e que sucederam
a votação, fato que provocou grande repercussão social. Às vésperas da votação, diversas
entidades empenhavam-se em alardear suas posições.
Durante todo o tempo, os atores envolvidos se dividiam em argumentos pró e contra as
pesquisas com embriões. O debate na esfera blica esteve baseado em dois argumentos
principais: um técnico, o dos benefícios à saúde; e um ético, o da dignidade humana.
58
Os dias que antecederam a votação foram movimentados no Congresso. As
articulações para garantir o resultado eram intensas, para ambas as posições. O Executivo
queria a aprovação do projeto, interessado não nas pesquisas com células-tronco
embrionárias como também na liberação de alimentos transgênicos, tido como um grande
trunfo para a economia brasileira. A junção de dois assuntos polêmicos acabou por contribuir
para a diminuição dos debates, que boa parte dos envolvidos em cada área não era comum,
fazendo com que um dos pontos fosse necessariamente ignorado pelo outro grupo. Com o
Executivo e a imprensa apoiando a liberação das pesquisas com embriões, uma posição
contrária poderia custar muito aos senadores e deputados. À exceção das bancadas religiosas,
que mantiveram suas posições em função das crenças assumidas, os demais deputados
atenderam o que vinha sendo defendido publicamente pela imprensa. O trabalho feito ao
longo dos anos pela Folha de São Paulo serviu para firmar no senso comum a idéia de que as
células-tronco embrionárias eram mesmo a grande promessa da medicina.
Assim, finalmente o projeto de lei foi votado pela Câmara em 2 de março de 2005,
aprovado por 352 votos favoráveis, 60 contrários e uma abstenção. Naquele dia, empenhados
em garantir a esperança aberta pela promessa dos tratamentos com células-tronco
embrionárias, doentes crônicos e seus familiares se reuniram e foram para o Congresso
Nacional, munidos de faixas, camisetas e muitos relatos dramáticos. Ao lado deles estavam
cientistas e médicos que apostam nos resultados da técnica. O grande apoio vinha da
imprensa. Os relatos dos pacientes ganharam os jornais, em notícias que traziam também
informações autorizadas de profissionais da saúde, garantindo os benefícios que estariam por
vir com a aplicação das células-tronco embrionárias. Os editoriais pediam freqüentemente a
aprovação da clonagem terapêutica e o enquadramento adotado nas notícias era, quase
sempre, positivo.
O jornal polarizou o debate na antinomia ciência-religião, colocando os dois campos
em lados extremamente opostos, e ainda assegurando que isso ocorreu ao longo de toda
história quando se tratava de avanços científicos. A questão foi colocada de modo que a
ciência parecesse uníssona, sem cientistas e médicos descontentes com os rumos da discussão,
e como se toda religião fosse necessariamente contrária ao progresso da ciência e não
mantivesse simpatia por nenhuma pesquisa, embora o Vaticano, por exemplo, tenha
defendido os estudos com células-tronco adultas retiradas de placenta e cordão umbilical.
Em 24 de março de 2005, o projeto aprovado pela Câmara foi sancionado pelo
presidente Luiz Inácio Lula da Silva e transformado na Lei 11.105. A condução deste
debate no jornal será o tema dos próximos capítulos. Para quem defende a clonagem
59
terapêutica, o argumento técnico se faz mais importante, pois está amparado na quantidade de
vidas que poderão ser beneficiadas com os tratamentos oriundos da técnica. Já quem se coloca
contra a clonagem tem como questão central o fato de o embrião ser vida humana, e sua
manipulação, então, representar um grande entrave de ordem ética.
O primeiro argumento faz parte do enquadramento discursivo de quem defende a
clonagem terapêutica. Médicos, pesquisadores e pacientes vítimas de doenças degenerativas
apresentaram o discurso das curas possíveis e do aumento da expectativa e da qualidade de
vida, mostrando dramas de pacientes e explicações técnicas com possíveis soluções para os
casos divulgados. Tinham a seu lado o próprio jornal, defensor assumido da clonagem
terapêutica, que recorria ao mesmo enquadramento discursivo. O apoio do jornal à questão
tornou o debate desequilibrado em favor do grupo pró-pesquisa. Assim, os agentes que
priorizavam o enquadramento ético e consideravam o embrião como vida humana precisaram
empenhar muito esforço e encontrar artifícios para obter espaço no jornal, geralmente
conseguido em debates que visavam apresentar posições claramente contrárias e favoráveis,
alguns artigos de opinião ou ouvidos como fontes na repercussão de notícias para completar
os “dois lados” da questão. Religiosos, juristas e também médicos recorriam ao
enquadramento do status de vida do embrião, imbuído de dignidade humana e, portanto,
merecedor de ter assegurado o seu direito à vida.
Nos capítulos 4 e 5, procuraremos nos deter aos textos que apresentaram uma
discussão mais complexa e profunda sobre a questão da vida. Alguns poucos artigos assinados
apresentam a discussão sobre o status do embrião bem como sobre as possibilidades advindas
dos avanços nas pesquisas sobre clonagem. Nesse grupo, os autores dos artigos são
freqüentemente ouvidos como fontes nos textos noticiosos, e acabam por defender seu ponto
de vista pessoal na parte de opinião, mas também têm sua posição assumida e difundida
quando fala por intermédio dos repórteres.
Poderemos observar como foi o debate nos textos desobrigados aos valores-notícia,
escritos, sobretudo, por não jornalistas, embora boa parte deles mantenha algum vínculo com
o jornal, por serem colunistas regulares. Apesar disso, nos artigos é onde ainda se percebe a
maior pluralidade no debate, principalmente porque, em alguns quadros especiais, o jornal
opta por colocar as duas posições lado a lado. No entanto, mesmo com certa pluralidade
aparente, percebemos que, quando escritos por pessoas desvinculadas dos quadros do jornal,
os autores são escolhidos para abordar o tema várias vezes. Mesmo havendo no país uma
diversidade de pesquisadores que defendem as pesquisas com embriões e também um leque
de possibilidades entre teólogos e outros profissionais que argumentam contra o uso dos
60
embriões, a Folha repete os autores a cada vez que o assunto vem à tona, ou faz uma
alternância entre alguns poucos colaboradores.
Os agentes que assinam os textos defendem claramente seus pontos de vista.
Legitimados ao debate, sobretudo por sua autoridade para discutir o assunto cientistas,
teólogos, acadêmicos de áreas relacionadas e até jornalistas especializados em ciência –, os
atores ajudam a construir socialmente a realidade para o público leitor, leigo e fora das esferas
de decisão, embora amplamente afetados por ela. A realidade, nesse caso, é construída por
agentes não jornalísticos, e essa realidade tem especial importância ao ser promovida por
quem tem respaldo técnico para comentar o tema.
no capítulo 6, faremos uma análise dos textos noticiosos divulgados no jornal ao
longo daquele período. Os textos noticiosos estão sujeitos a uma série de regras e requisitos
prévios para serem divulgados como tal. Poderemos identificar quem foram as fontes ouvidas
pelo jornal durante o debate e qual o enquadramento geralmente adotado. Teremos a
oportunidade de ver como a realidade é socialmente construída, porém, dessa vez,
analisaremos como ela é construída pelos atores autorizados que falam com o intermédio dos
repórteres. A essencial relação entre fontes e jornalistas é um dos objetos da análise, pois é ela
que explica, em muitos episódios, o enquadramento adotado pela imprensa.
Nossa análise começa no dia 24 de fevereiro de 1997, com a repercussão da criação de
Dolly, resultado do processo de clonagem a partir da técnica de transferência nuclear,
divulgada naquele mês. No jornal, aqueles eram os primeiros textos falando do assunto. No
momento da divulgação do clone Dolly, o tema era pouco explorado na mídia. A notícia
surpreendeu o planeta. Governos de todo o mundo, cientistas e entidades religiosas
manifestaram grande preocupação com o resultado do experimento. Nos primeiros 10 dias
após o anúncio, houve mais de 30 registros de Dolly na Folha, com reportagens e diversos
artigos de opinião sobre o caso. Um terço de todas as vezes que Dolly foi citada no jornal nos
oitos anos da busca realizada está no período de um ano após o anúncio da clonagem.
A clonagem que originou Dolly foi feita pela técnica de transferência nuclear, tirando-
se o núcleo de uma célula adulta e transferindo-o para um óvulo, que teve o seu núcleo
extraído. Esse óvulo com o novo núcleo foi implantado no útero de outra ovelha, realizando a
clonagem reprodutiva. Tal procedimento, bastante polêmico desde as primeiras tentativas até
hoje, foi um marco para a ciência, por ter demonstrado que uma célula já diferenciada poderia
dar origem a todos os tipos de células de um indivíduo adulto. É com essa mesma técnica que
os cientistas conseguem realizar a chamada clonagem terapêutica, visando à obtenção de
tecidos geneticamente idênticos ao do indivíduo que cedeu a informação genética. Devemos
61
levar em consideração que nem todos os limites da técnica foram percorridos até o momento
e, portanto, não se chegou ainda ao momento oportuno na técnica para a retirada de células-
tronco embrionárias, mas, teoricamente, o processo ocorre da seguinte maneira: o embrião
clonado por transferência nuclear, com cerca de 100 células, é dissociado em laboratório para
a obtenção das células-tronco embrionárias. Tais células, sendo totipotentes, podem originar
todos os tipos de células do organismo.
No caso das pesquisas com células-tronco obtidas de embriões humanos, o tema não é
apenas noticioso, na medida dos resultados alcançados pela ciência, mas implica também uma
discussão ética que, visando alcançar esse nível, não consegue ser resolvida em textos
noticiosos ou artigos generalistas. O jornal, enquanto esfera pública de debates políticos, tem
importante papel na mediação do debate sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias
que, não sendo apenas uma discussão técnica, carrega em si a complexa definição da vida, seu
início e seu fim, principal ponto do debate sobre o uso de embriões. Assunto dessa ordem, que
atinge tão profundamente os valores da sociedade, exige ampla discussão, bem abastecida de
informações que permitam às diversas esferas envolvidas, e, sobretudo, à população leiga,
chegar a conclusões sobre o tema para participar efetivamente da definição das políticas
publicas relacionadas.
O debate na esfera pública esteve baseado em dois argumentos principais,
enquadrados de modos diferentes pelos diversos atores envolvidos: um ético, o da dignidade
humana, que valoriza os limites da vida; e um técnico, o dos benefícios à saúde, que valoriza
o avanço da pesquisa.
62
4. A fala dos agentes: o argumento ético
As experiências relacionadas ao uso de embriões humanos para obtenção de células-
tronco e envolvendo as técnicas de clonagem, terapêutica ou reprodutiva, são cercadas de
questões éticas que rendem muitas discussões e pouco consenso. Tais questões ocupam os
discursos das diversas posições adotadas em relação ao tema, em níveis diferentes de reflexão.
O status do embrião é o principal ponto para quem se opõe às pesquisas usando-o como fonte
de obtenção de células-tronco. Se considerado vida humana, é merecedor de respeito e zelo.
Eticamente, portanto, sendo vida, não pode ser manipulado para outros fins que não sejam sua
própria vida.
Para quem não considera o embrião vida humana, não há, por conseguinte, barreira
ética nas pesquisas utilizando-o. Esse segundo grupo, em geral, aponta problemas éticos
apenas para a clonagem reprodutiva, aquela que visa gerar um novo ser humano, cópia
genética de um ser já existente. Tal fato, ao primeiro grupo, serve para complementar os
argumentos de respeito à vida, desde a sua concepção, com a preservação da dignidade, da
individualidade, da autonomia de cada vida humana. Entre um grupo e outro, ainda quem
apóia as pesquisas com embriões congelados, encontrando para eles um fim mais nobre do
que ser descartado, mas que levanta preocupações com a produção de embriões apenas para a
terapia genética, que seria a clonagem terapêutica.
Como vemos, a questão ética faz parte do discurso de todos os agentes envolvidos,
mas eles não adotam o mesmo enquadramento. A Folha, em seus editoriais, defende que o
embrião não é vida até o 14º dia, não havendo, portanto, nenhuma objeção ética para utilizá-
lo. Os questionamentos éticos são acionados quando o assunto é a clonagem reprodutiva, que
a Folha define como não tendo nenhum propósito nobre e bastante insegura tecnicamente, o
que justifica sua não utilização. Nos editoriais, não fica clara uma preocupação ética com a
manipulação da vida.
Na coluna publicada no dia 27 de fevereiro de 1997, Otávio Frias Filho, diretor de
Redação da Folha e um dos herdeiros do Grupo, repercute o anúncio feito dias antes. Coloca
muitas questões, preocupando-se com a possibilidade de clonagem humana e as
conseqüências disso.
As decorrências de uma descoberta são assunto para a moral, a política e o
sistema jurídico, conforme o caso. O contra-argumento está na dúvida sobre
se é possível uma tal separação de campos, pois as pesquisas são financiadas
por interesses, os pesquisadores fazem uma rie de opções que implicam
valores etc. O debate é infindável.
63
Anos depois, em 16 de janeiro de 2003, ele assina o artigo “Bioficção”, quando
“admite” como ele mesmo disse que a clonagem humana motiva uma discussão ética e
que o público leigo deve ser bem informado para atuar no debate.
Sentimos que a ciência nos aproxima de possibilidades que podem ser
ilegítimas, perigosas e imorais e que debate de tal gravidade não deveria
ficar confinado aos cientistas. Estes têm a obrigação -moral- de esclarecer o
público leigo, pois a normatização da biotecnologia extrapola a ciência, é
assunto público.
A motivação para uma discussão ética, para ele, está relacionada apenas à clonagem
humana. Mesmo assim, ele diz que as restrições ao procedimento são de ordem religiosa, o
que não reflete uma discussão racional, e um receio de que a manipulação genética possa
trazer “transtornos ecológicos”. No entanto, defende ele, ainda não chegamos a problemas
morais de fato porque a clonagem tecnicamente está atrasada.
Não dúvida de que, no estado atual da ciência, a clonagem humana não é
apenas imoral, é criminosa: a técnica é insegura e temerária. O problema
moral vai surgir às claras quando (e se) a técnica da clonagem vier a se
comprovar segura, tão apta a produzir seres humanos saudáveis quanto o
método, digamos, bíblico.
Otávio Frias Filho considera que os avanços são inevitáveis “num ambiente livre como
o da modernidade ocidental” e, então, conclui que a moral é que precisa se adaptar aos novos
cenários: “Para aliviar o incômodo psicológico, é a moral que muda para se adaptar à cnica.
O argumento será que a clonagem amplia as possibilidades de vida da mesma forma que um
coração artificial”.
Os artigos assinados, mesmo de colunistas vinculados ao jornal, apresentam mais
questionamentos em relação à ética dos experimentos. Poucos dias depois do anúncio da
criação de Dolly, o então ombudsman da Folha, Mario Vitor Santos, assina um artigo
criticando a cobertura noticiosa dada à divulgação do experimento, que não se empenhou em
responder questões como as razões para a clonagem e se haverá limites estabelecidos para o
uso da clonagem humana. Nesse artigo, ele fala da necessidade de um debate técnico e ético
no jornal, que recorra a cientistas e filósofos.
Seguiram-se, por vários dias, diversos artigos assinados pelo grupo de editorialistas.
Neles impera o discurso científico, visando justificar a necessidade de permissão das
pesquisas com células-tronco embrionárias. Assim, freqüentemente, para defender a clonagem
terapêutica, o tema foi abordado por cientistas.
Em artigo publicado no dia 13 de fevereiro de 2000, intitulado “O preço da
imortalidade”, o físico Marcelo Gleiser tocou num assunto complexo e instigante, resultado
das possibilidades atribuídas à clonagem e que tem grande impacto na formação da opinião
64
leiga a respeito do tema: a imortalidade humana. Graças às células-tronco seria possível
alcançar a vida eterna, sem envelhecimento e comprometimento das funções do corpo.
Marcelo Gleiser foi colunista da Folha de 1999 a 2004, assinando artigos de
divulgação científica na seção “Micro/Macro”, publicada aos domingos na editoria de
Ciência. Seu papel de “tradutor” da ciência para o público leigo tem grande importância na
maneira como as pesquisas científicas são assimiladas pelo senso comum. Nesse artigo, ele se
refere à célula-tronco como “célula fantástica”, que seria uma “fábrica de materiais de
construção de seres humanos”.
Essa célula fantástica tem o potencial de se transformar em qualquer célula
do corpo humano, formando tecidos ou órgãos. Ou seja, ela carrega a
informação genética que pode gerar um determinado tipo de músculo ou a
pele, um rim ou um fígado, uma verdadeira fábrica de materiais de
construção de seres humanos.
Logo depois, aceita que existem ainda problemas de ordem técnica e também ética.
Claro, existem várias dificuldades técnicas, sem falar nas dificuldades éticas.
Primeiro, para isolar a célula-tronco, um embrião humano tem de ser
destruído, de acordo com as tecnologias atuais. A questão é, então, se a
destruição de uma massa de células humanas, alguns dias após a fertilização,
corresponde a um assassinato.
A seguir, cita as questões econômicas envolvendo as pesquisas que, não aprovadas
pelo governo no exemplo dele é o governo norte-americano –, têm seus avanços restritos às
empresas.
Como resultado, o setor privado, isto é, indústrias biogenéticas com fins
lucrativos, está controlando a pesquisa na área. E essas indústrias não vão
revelar suas descobertas (e fracassos) ao público enquanto não obtiverem o
resultado que procuram.
Ao final do texto, conclui reforçando a necessidade do debate público.
As indústrias biogenéticas argumentam que as vantagens desse processo são
muito maiores que as repercussões éticas. "O que é mais importante? A
"vida" de uma massa embrionária ou de uma criança morrendo de câncer?"
ou "imagine quantas espécies em extinção poderemos salvar?". Críticos
afirmam que os perigos são enormes. Por exemplo, "o que acontece com
uma pessoa que tem parte do cérebro regenerada? Será que ela manterá sua
identidade? E como iremos sustentar tanta gente no mundo?". Isso tudo
ainda está longe; mas o debate público tem de ser iniciado agora, para que a
sociedade não seja a última a saber o que acontecerá com seu destino.
Nesse texto, Marcelo Gleiser clama pelo debate e apresenta em linhas bem gerais os
prós e contras envolvendo as pesquisas. Em artigos posteriores, ele passa a defender nos
artigos as grandes vantagens das pesquisas com células-tronco.
A questão ética que integrava o debate e ainda integra, pela falta de conclusão a
respeito – coloca-se em torno da discussão a respeito do status do embrião, sendo ou não vida
65
humana, pessoa, e, caso assim seja considerado, dotado de direitos, respeito e autonomia. Para
o jornal e para os que defendem seu uso, é tratado como um “aglomerado de células”, e não
um ser humano, e, por isso, não há nenhum impedimento de ordem ética.
O argumento que leva em conta a dignidade desde o momento da concepção compõe o
enquadramento discursivo de quem está contra a aprovação da lei. Sob esse aspecto, as
pesquisas com embriões congelados e também a produção de embriões para os estudos
deveriam ser proibidas porque o embrião é vida humana e, portanto, não pode ser usado como
meio ou instrumento de pesquisa. Religiosos e juristas, em especial, e médicos e
pesquisadores adotam esta posição, expondo que o argumento não está baseado somente na
lógica religiosa. A restrição às pesquisas avança por um campo ético-filosófico, além da
moral de origem cristã, que clama pela discussão sobre os limites de intervenção na vida
humana e as conseqüências que podem resultar dos procedimentos de manipulação.
Mesmo que o assunto tenha tão alto nível de exigência na sua abordagem, poucas
contribuições foram publicadas nesse sentido. Considerando o volume de textos noticiosos
divulgados a respeito do tema, a quantidade de textos que problematizam a questão da vida é
pequena. Além do número de artigos ser reduzido em relação ao agendamento do assunto,
outros agravantes: os artigos que discutem o mérito são curtos e também superficiais,
recorrem a argumentos repetidos, e estão restritos a poucas fontes, o que resulta em pouca
pluralidade no debate. Em geral, são assinados por colunistas fixos do jornal, que já escrevem
artigos regularmente, e então elegem esse tema devido às notícias divulgadas no período. Na
Folha de S.Paulo, poucas vezes essa configuração muda, e geralmente ocorre quando o jornal
opta por divulgar artigos internacionais, simultaneamente a outros veículos, quando são
citadas fontes diferentes das habituais.
Foi assim com os artigos “Não clonem os seres humanos! – publicado em 30 de março
de 2001, escrito pelos pesquisadores Rudolf Jaenisch, do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT), e Ian Wilmut, do Instituto Rolin, onde foi criada a ovelha Dolly – e “O
futuro da morte” artigo de James Hughes, professor de política de saúde da Faculdade do
Trinity, em Hartford, Estados Unidos, publicado em 4 de novembro de 2001.
Talvez um dos textos que mais profundamente tenha abordado o tema no jornal seja o
artigo de James Hughes. No texto, o professor fala da mudança rápida no conceito de morte,
em função do avanço da tecnologia, que desafia a irreversibilidade da morte, propiciando, por
exemplo, reparos em pacientes com lesões cerebrais e testes de congelamento em pessoas. Ele
faz uma passagem por algumas concepções de morte já existentes ao longo da história e chega
à questão dos transgênicos e híbridos de humanos e animais.
66
A definição de morte está mudando rapidamente com o avanço da tecnologia
de manutenção e reparo dos pacientes com lesão cerebral. [...] O avanço da
tecnologia de cuidados essenciais também está desafiando a
irreversibilidade. As atuais definições de morte cerebral têm como predicado
a suposição de que esses pacientes não podem se manter em vida física, mas
hoje está demonstrado que isso não é verdade. As tecnologias emergentes
para tratamento de danos cerebrais aprofundarão o dilema das atuais leis e
práticas sobre a declaração de morte cerebral. As condições antes
consideradas como morte passarão a ser reversíveis, exigindo a elaboração
de novas leis, definições e práticas relativas à morte.
Levando em consideração tais mudanças, ele alerta que num futuro bem próximo
que ele previa uma década – a sociedade terá que definir o humano, com base nas capacidades
cognitivas, na subjetividade e na autoconsciência, em vez dos limites das espécies,
“enganosos e em via de desaparecer”.
Na próxima década, os transgênicos obrigarão os EUA e o mundo a
definirem o que é humano. Se não na primeira tentativa, e trabalhando a
partir de princípios democráticos e liberais, a definição de humano deverá
enfocar as capacidades cognitivas, a subjetividade e a autoconsciência como
base da cidadania, em vez dos limites das espécies, enganosos e em via de
desaparecer.
Esse texto pode ser considerado um dos que mais profundamente problematizaram a
questão no jornal, centrado, sobretudo, nas mudanças no conceito de morte, que condicionam
também as mudanças no conceito de vida. O artigo foi originalmente escrito para o Journal
of Evolution and Technology”, jornal eletrônico com artigos científicos visando à discussão
de temas da ciência e da filosofia, publicado pelo Instituto de Ética e Tecnologias
Emergentes, sediado nos Estados Unidos. Na Folha de S.Paulo, o texto foi publicado no
Caderno Mais, suplemento de entretenimento veiculado aos domingos. Poucas vezes um
artigo desse porte, correspondendo a quase oito laudas impressas, foi publicado no jornal. Por
isso, também, ele consegue percorrer caminhos mais amplos e apresentar diversas faces
envolvendo a questão da vida e da morte. Em geral, os textos têm no máximo o
correspondente a duas laudas.
Quando se trata do status do embrião, não considerá-lo vida ou considerá-lo uma vida
menos importante que outras representam não a discriminação como também uma lógica
comercial que serve de pano de fundo: o saldo de vidas salvas seria mais positivo caso os
embriões congelados, que seriam descartados, fossem usados na tentativa de curar pacientes
vítimas de problemas degenerativos. Não faltam apelos nesse sentido, tanto do jornal quanto
dos demais atores que defendem a liberação do uso de embriões humanos.
“Como negar a possibilidade de restituir a vida a tantos que sofrem, baseando-se na
preservação de embriões que serão destruídos?”, questiona em artigo no dia 16 de setembro
67
de 2001 o físico Marcelo Gleiser. Nesse artigo, ele faz considerações a respeito dos alimentos
transgênicos e destaca que “a questão ética complica muito quando a aplicação da engenharia
genética vai do reino vegetal ao animal”. Ele cita as várias experiências que vinham sendo
realizadas com animais e se coloca contrário às tentativas de clonagem de um ser humano.
Defende, porém, o uso das células-tronco retiradas de embriões, desde que sejam aqueles
congelados, rejeitados para os processos de fertilização. Nesse texto, o físico não parece
discutir o mérito da vida, o status do embrião, considerando apenas o fato de que, se não será
aproveitado para gerar bebês, que ganhe fins mais proveitosos. Os embriões “seriam
‘destruídos’ de qualquer modo, ou congelados e esquecidos”: “Ao menos, como doadores de
suas células-tronco, esses embriões estarão participando de outras vidas, dando nova chance a
milhões de doentes mundo afora. A escolha é clara”.
Na mesma linha escreve a professora Lygia da Veiga Pereira, do Departamento de
Biologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), fonte
freqüentemente ouvida nas reportagens sobre clonagem e células-tronco publicadas na Folha
de São Paulo, tendo também assinado diversos artigos de opinião sobre o tema no jornal. No
artigo “Clonar ou não clonar, eis a questão”, no dia 15 de novembro de 2001, ela defende o
uso dos embriões baseada na balança favorável que isso implicaria: “Aquele embrião
excedente trará muito mais benefícios na forma de CT embrionárias do que numa lata de
lixo”.
Esse artigo foi publicado no período em que estavam fortes os rumores sobre a
clonagem de um ser humano, divulgados principalmente pelo médico Severino Antinori.
Lygia da Veiga usa o artigo para falar da necessidade de uma legislação que respeite direitos e
deveres, de vigilância para que a lei seja cumprida, e condena a proibição cega, alegando que
isso atrasa a ciência e a melhoria na qualidade de vida. Para a professora, e também para
outros articulistas do jornal, usar o embrião “um conglomerado amorfo de células” não é
destruir uma vida, porque o ovo não é implantado no útero, o que não representa, nesse
raciocínio, um aborto.
O grande problema é que essas células são derivadas de embriões excedentes
de processos de fertilização in vitro. Tais embriões, normalmente
descartados com consentimento do casal, são destruídos para extrair as CT
embrionárias. Para algumas pessoas, isso significa destruir uma vida, o que
seria inaceitável.
Essa é uma questão delicada, que envolve aspectos morais, culturais e
religiosos. Vale lembrar que estamos falando de um embrião de cinco dias,
basicamente um conglomerado amorfo de células, que se fosse gerado no
ventre de uma mulher teria somente 20% de chance de se desenvolver em
68
um bebê. Uma coisa se pode garantir: aquele embrião excedente trará muito
mais benefícios na forma de CT embrionárias do que numa lata de lixo.
A pesquisadora Mayana Zatz, professora de Genética Humana e Médica no Instituto
de Biociências da USP, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano/IB-USP,
presidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscular e membro da Academia Brasileira
de Ciências este é o resumo do currículo publicado no jornal –, em artigo veiculado no dia
13 de fevereiro de 2004, logo após o veto da Câmara ao uso de embriões para obtenção de
células-tronco, em 4 de fevereiro, repete a fórmula usada por Lygia da Veiga Pereira de
atribuir saldo positivo ao fato de poder usar a terapia celular em pessoas doentes.
É justo deixar morrer uma criança ou um jovem afetado por uma doença
neuromuscular letal para preservar um embrião cujo destino é o lixo? Um
embrião que, mesmo implantado em um útero, teria um potencial baixíssimo
de gerar um indivíduo?
Ao usar células-tronco embrionárias para regenerar tecidos em uma pessoa
condenada por uma doença letal, não estamos na realidade criando vida?
Isso não é comparável ao que se faz hoje em transplantes, quando se retiram
os órgãos de uma pessoa com morte cerebral, mas que poderia permanecer
em vida vegetativa?
Em artigo de 22 de junho de 2002, “Salvando vidas”, Mayana Zatz usa a mesma idéia
para justificar o uso dos embriões.
Quanto a destruir "embriões humanos", estamos falando de cultivar tecidos
ou órgãos, a partir de embriões descartados, que nunca serão inseridos num
útero. Se esses embriões forem usados para salvar crianças e jovens
condenados por doenças letais e incuráveis, não estaremos criando vida?
No texto “Esperança renovada”, a cientista, uma das principais vozes em defesa das
pesquisas com células-tronco embrionárias durante a tramitação da Lei da Biossegurança no
Congresso, comenta os avanços divulgados por pesquisadores coreanos, de que seria possível
obter células-tronco sem chegar à etapa da fertilização. A empolgante notícia, bastante
comemorada não apenas pela pesquisadora, teve seus resultados desmentidos menos de dois
anos depois, quando os pesquisadores coreanos assumiram que houve fraude na divulgação de
diversos experimentos conduzidos por eles. O pesquisador Hwang Woo-suk chegou a pedir
desculpas publicamente, em 12 de janeiro de 2006. No artigo, Mayana Zatz cita diversos
países que aprovaram as pesquisas com embriões de até 14 dias, que seria o marco do início
da vida.
O ponto de vista das pesquisadoras Lygia da Veiga e Mayana Zatz é bastante próximo
ao defendido pela Folha de S.Paulo em seus editoriais, que criticaram a legislação proibitiva,
defendendo as pesquisas com embriões, inclusive a produção de embriões para esse fim, e,
sobretudo, o avanço da ciência independente das crenças e valores defendidos por grupos da
69
sociedade. A definição do “conglomerado amorfo de células” é repetida diversas vezes na
Folha de São Paulo, em artigos, editoriais e até em reportagens. Essa definição tende a
resolver o problema ético da manipulação da vida humana, ao apresentar um resultado
positivo para o uso dos embriões congelados e também para a produção deles visando à
obtenção das células-tronco.
As relações entre fontes e jornais são próximas e, muitas vezes, numa condição de
reciprocidade, ao que Wolfsfeld (1991) chama de “simbiose competitiva”, como já nos
referimos no capítulo 2. É bastante comum que os jornalistas se identifiquem com as fontes,
devido ao constante contato ou por serem leigos no assunto, e recorram sempre a elas,
adotando o mesmo ponto de vista. Para Michael Kunczik (2001), essa tendência a adotar os
pontos de vista de suas fontes também acontece para garantir um fluxo contínuo de
informações e ainda porque, muitas vezes, o jornal busca aquela fonte que irá confirmar a
opinião que o veículo quer defender. Em diversas situações, o próprio jornal recorre a fontes
que os repórteres antecipadamente sabem que reforçarão o “mote” que a pauta pretende
divulgar. Também por diversas razões, nesse caso, as fontes embarcam na notícia buscada
pelos repórteres.
O fim “nobre” dado aos embriões não utilizados pelas clínicas de fertilização,
proposto pelos defensores da pesquisa para obtenção de células-tronco embrionárias, encontra
resistência por outros agentes envolvidos no debate. A produção excedente de embriões, em
si, é um problema ético que não pode ser resolvido com outro problema ético, argumenta
Dom Geraldo Majella Agnelo, então presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil), no artigo “Em defesa da vida humana”, de 29 de agosto de 2004.
É também falacioso o argumento de que “os embriões já existem, pois foram
produzidos para a fecundação em laboratório em quantidade superior ao uso,
portanto deverão ser destruídos. Então, é melhor que sejam usados para fins
terapêuticos, assim terão a sorte de ser úteis a outros”. Em primeiro lugar,
trata-se de indivíduos vivos, e não de cadáveres. Em segundo lugar, já a
produção de embriões para fecundação artificial e, de modo especial, os
embriões supranumerários são um problema que deve ser resolvido
adequadamente. Não se resolve um problema acrescentando a ele um outro
maior.
O jurista Francesco Scavolini, doutor em jurisprudência e especialista em direito
canônico, reconhece o mesmo problema e sugere uma solução para a questão, em artigo
publicado no dia 26 de abril de 2004.
[...] faz-se necessária uma reflexão com relação aos embriões congelados e
rejeitados pelos “pais”: o Estado, por meio de uma lei apropriada, deveria
favorecer a “adoção” de tais embriões, para que as mulheres que desejarem
70
possam receber em seu ventre uma nova vida e dar à luz um ser humano
certamente ansioso, como todos nós, por dar e receber amor e carinho.
O físico Marcelo Gleiser, em geral, conduz seus artigos para convocar o debate
público sobre o tema. No entanto, ao dissertar, apresenta conceitos que referendam a
clonagem terapêutica. No artigo “Definindo o ser humano”, publicado no dia 9 de dezembro
de 2001, ele conclui falando da necessidade de discussão. “Cabe aos cientistas e à sociedade
criar um diálogo aberto para que desenvolvimentos nessa área não ocorram em segredo.
Porque me parece que eles são inevitáveis.”
Antes, porém, apresenta o ponto de vista que justifica o uso dos embriões,
argumentando que é preciso repensar valores éticos.
As linhas divisórias do conflito são bastante claras; líderes religiosos e
políticos conservadores condenam qualquer clonagem envolvendo células
humanas, alegando que extrair células-tronco de um blastocisto é
equivalente a assassinar um ser humano. Ou seja, que um conjunto de 150
células tem os mesmos direitos legais à vida de um feto de três meses ou de
um ser adulto.
Ao usar a última oração acima, ele reforça a idéia de que um “conglomerado de
células” não pode ser considerado vida, tal como os seres humanos nascidos. Em seguida,
ele expõe o “outro” lado.
Os mais liberais alegam que os benefícios médicos do uso dos órgãos
criados a partir das células-tronco justificam a clonagem de embriões
humanos. Isso não significa que esses grupos sejam a favor da clonagem de
seres humanos: os blastocistos são destruídos no processo de extração das
células-tronco.
E lança um desfecho para as duas afirmações.
A questão é se eles [os embriões] têm ou não direito à vida. A ciência nos
força a repensar nossos valores morais e éticos. A pílula foi e é vista com
desdém pela Igreja Católica, assim como o aborto, mas as pessoas usam a
pílula e praticam abortos. Apesar da resistência contra o uso da energia
atômica e contra a proliferação de armas nucleares, centenas de usinas
operam hoje em dezenas de países, enquanto o estoque de bombas é
suficiente para aniquilar a vida sobre a Terra diversas vezes. Meu ponto é
que a censura de certos grupos, sejam liberais ou conservadores, jamais vai
conter o desenvolvimento da ciência, especialmente quando atende a
interesses políticos ou comerciais. A clonagem de embriões humanos, ao
menos para a extração de células-tronco, é uma questão de tempo.
Invocar outros impedimentos promovidos na história da ciência é uma estratégia
usada não por Marcelo Gleiser, mas também por outros articulistas e editorialistas da
Folha. A pesquisadora Lygia da Veiga Pereira fez o mesmo em artigo no dia 6 de outubro de
2002. “Vale lembrar que, se sucumbirmos a esses argumentos fundamentalistas, por coerência
deveríamos também fechar clínicas de fertilização "in vitro", proibir a lula e a camisinha,
mesmo na era da Aids.’
71
Esse discurso contribui para a idéia de que futuramente essas restrições podem ser
superadas e que são necessárias, como nos casos citados, pois apresentam resultados
positivos. No mesmo texto, Lygia Pereira reforça novamente a idéia do “aglomerado de
células”.
A grande polêmica em torno da clonagem terapêutica é a destruição daquele
embrião para retirarmos as células-tronco embrionárias. Para alguns, isso
significa destruir uma vida, por isso é inaceitável. Esta é uma questão
delicada, que envolve aspectos culturais e religiosos. Países como Israel,
China e o Reino Unido permitem a clonagem terapêutica, enquanto nos
EUA, em nome da defesa da "vida" (aquelas cem células), o atual governo
conservador luta pela proibição.
O médico Drauzio Varella, popularizado por suas participações em programas de rádio
e televisão realizando campanhas educativas relacionadas à saúde, publica, no dia de maio
de 2004, o artigo “Clonagem humana”, se opondo à clonagem reprodutiva, mas criticando e
rebatendo os argumentos contrários à clonagem terapêutica. Ele reforça a idéia de que o
embrião é o “aglomerado de células”, não sendo, portanto, vida humana a ser preservada.
Em nome de princípios religiosos, pessoas que se dizem piedosas julgam
mais importante a vida em potencial existente num agrupamento
microscópico de células obtidas em tubo de ensaio do que a vida de uma
mãe de família que sofreu um infarto ou a de um adolescente numa cadeira
de rodas? Estivessem elas ou tivessem um filho nessa situação, recusariam
realmente esse tipo de tratamento?
Os dois questionamentos que o médico faz ao final do parágrafo servem de apelo à
reflexão do público, que, reportando-se ao lugar que ele sugere, pode adotar a postura
favorável às pesquisas.
O viés mercantilista e pragmático do uso das células-tronco fica evidente também em
expressões como a cunhada por Marcelo Gleiser no dia 13 de fevereiro de 2000, no artigo “O
preço da imortalidade”, ao qual fizemos referência, quando ele chama a célula-tronco de
“verdadeira fábrica de materiais de construção de seres humanos”. A concepção como uma
fábrica promove a imagem utilitária do organismo humano, que pode, então, ser usado como
instrumento para os fins desejados. Nesse caso, ser contra o avanço de uma ciência que
promete recuperar e prolongar a saúde das pessoas é estar contra a vida.
Em 2001, o médico João Pedro Junqueira, diretor da Clínica Pró-Criar/Mater Dei de
Reprodução Humana, respondendo “sim” à pergunta “O Brasil deve também desenvolver
técnicas de clonagem humana?”, lançada pelo quadro Tendências/Debates, no dia de
dezembro, critica o rumo emocional dado à clonagem, que ele classifica como “fantástico
procedimento”. O principal ataque do texto é ao sistema jurídico brasileiro, que naquele
momento não discutia a clonagem, mas debatia “ainda” a fertilização in vitro e a manipulação
72
de embriões. As discussões sobre a clonagem, defende ele, precisam avançar rápido porque,
do contrário, “estaremos fadados ao eterno subdesenvolvimento científico-tecnológico,
submissos e obrigados a comprar tecnologia ultrapassada”.
Dificultar o avanço da ciência, representado nesse contexto como a autorização da
clonagem terapêutica, era colocar-se contra a salvação da vida de milhares de pacientes que
enfrentavam doenças degenerativas ou que tiveram o andamento de uma saudável
interrompido por um acidente grave, por exemplo.
Esse enquadramento econômico encontra como apelo social o fato de que, sendo a
pesquisa permitida e avançando em outros países, os mais abastados poderiam se submeter ao
tratamento porque, tendo recursos, poderiam buscar a técnica onde ela estiver disponível,
enquanto os pobres seriam prejudicados pela falta de alternativas. Essa idéia foi apresentada
pelo médico Drauzio Varella, em artigo publicado no dia de maio de 2004, citado
anteriormente. No texto, ele alerta para os custos que seriam provocados caso o Senado
mantivesse a proibição do uso de embriões para obtenção de células-tronco, incentivando a
aprovação da lei, visando ao progresso científico brasileiro, para que se assegure a todos o
mesmo direito de tratamento.
O projeto de lei que proíbe autoritariamente a clonagem terapêutica, já
aprovado pelos deputados e que será submetido ao Senado, conta com o
repúdio frontal da comunidade científica. Sua aprovação obrigará as pessoas
que tiverem dinheiro a buscar fora do Brasil os tratamentos baseados nessa
tecnologia. Aos mais pobres, restará o recurso de sempre: pedir a Deus que
tenha piedade de nós.
O final do artigo traz um deboche, pois ele, que se declarou publicamente ateu,
coloca no parágrafo anterior uma crítica à postura religiosa adotada no debate sobre o tema.
Outra influência econômica é citada no artigo “Volúpia da imortalidade”, do
psicanalista Joel Birman, professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, em 9 de junho de 2002. Num artigo mais aprofundado do que o habitual, com
tamanho equivalente a cinco laudas e publicado no Caderno Mais!, o caderno de
entretenimento dos domingos, ele afirma que as grandes empresas de biotecnologia podem
exercer pressão sobre os governos, a ponto de mudar as posições contrárias que eles adotam.
É importante destacar que a edição de domingo do jornal apresenta conteúdo longo e também
com temática leve, e o caderno de entretenimento é lido como se propõe, tendo repercussão
diferente do caderno de notícias cotidianas.
Joel Birman entra na discussão sobre a vida e o que representam as possibilidades de
clonagem. Para ele, a clonagem tem forte influência no imaginário porque sugere o
alongamento da vida. Essa tentativa de controle sobre a vida, como ele lembra, muito
73
exerce fascínio sobre as pessoas, motivando a adoção de biopolíticas com o intuito de fazer
viver e deixar morrer – com o propósito de controlar a aleatoriedade da vida e, assim, vencer a
morte, a prova da falta de controle sobre a vida (FOUCAULT, 2005). No artigo, Birman
escreve:
As clonagens terapêutica e reprodutiva se delineiam como um bálsamo para
a finitude. Se a primeira promete o alongamento da vida, a segunda nos
anuncia a imortalidade. [...] Com isso, poderíamos adiar o encontro marcado
com o mestre absoluto e ter o júbilo de subjugá-lo. É do triunfo sobre a
morte que se trata aqui.
O professor destaca o papel da mídia na publicização do debate, geralmente restrito
aos laboratórios, a menos quando algum acontecimento é agendado e ganha a esfera pública.
Com isso, a audiência tenta se envolver e se situar no debate, mas tendo sempre o imaginário
povoado pela idéia da imortalidade, um desejo bastante freqüente. “[...] entre o júbilo e a
angústia o público oscila nessa experiência, marcada sempre que é pela inquietude. Isso
porque tal experiência é atravessada pela volúpia, não existindo aqui nenhuma neutralidade.”
Sabemos que as possibilidades sugeridas pelos estudos com células-tronco apontam
para o caminho desse controle sobre a vida, e sobre a qualidade de vida. O corpo não mais
envelheceria, pois teria suas “peças” restauradas ou substituídas quando houvesse
necessidade. Essa idéia da fábrica, difundida pelos cientistas, atua em concordância com o
discurso da Folha, que a torna freqüente nos textos publicados. Bem consolidada, minimiza o
fato de que o preço pago por tais peças são os embriões.
No dia 27 de junho de 2005, três meses depois de sancionada a Lei da Biossegurança,
o então ministro da Saúde, Humberto Costa, defensor das pesquisas para obtenção de células-
tronco, publica o artigo “Quem tem medo das células-tronco?”. Médico psiquiatra com
carreira política, ele defende a clonagem terapêutica como a grande promessa da medicina. O
artigo faz críticas à ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra a Lei da Biossegurança,
proposta pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, e se dispõe a esclarecer
pontos que julga confusos, como a definição do início da vida.
[...] em que pese a polêmica em torno do assunto, a ciência moderna adota o
mesmo padrão tanto para o reconhecimento de uma nova vida como para a
verificação da morte de um paciente: o funcionamento do sistema nervoso.
No caso dos embriões, o sistema nervoso só é ativado 15 dias após a
fecundação, mas aqueles que interessam às pesquisas e que estão congelados
têm em torno de cinco a sete dias.
A seguir, ele valoriza como papel do agente público o cuidado com a vida da
população, as biopolíticas, e diz que, para isso, o Estado precisa manter-se laico.
Devemos todos total respeito às crenças e religiões professadas pelos
brasileiros, mas, como gestores públicos, temos o dever constitucional de
74
buscar mecanismos que viabilizem a proteção e recuperação da vida.
Considerando o caráter laico do Estado brasileiro, estou certo de que o
Supremo Tribunal Federal deverá julgar pela improcedência de
argumentação a Adin apresentada pelo procurador-geral.
O ex-ministro fala do trabalho realizado pelo Ministério da Saúde, que executa uma
mega e pioneira ação envolvendo as pesquisas com células-tronco adultas, e apresenta dados
que atestam o sucesso do programa realizado a economia de milhões de reais aos cofres
públicos mensalmente.
Diria até que estamos na vanguarda desse processo, no qual o Ministério da
Saúde investiu recursos na realização do maior estudo com células-tronco
adultas para tratamento de doenças do coração já realizado no mundo -o
chamado Estudo Multicêntrico Randomizado de Terapia Celular em
Cardiopatias, iniciado em fevereiro deste ano.
Ao todo, 1,2 mil pacientes vão participar desse estudo, que envolve cerca de
40 instituições de pesquisa do país. É um projeto de R$ 13 milhões que,
comprovados os estudos preliminares já realizados, tem o potencial de gerar
uma economia na saúde pública estimada em quase 50 vezes maior. Isso
porque, entre consultas, internações, cirurgias e transplantes cardíacos, o
SUS gasta, anualmente, em torno de R$ 500 milhões. O sucesso dessa
iniciativa poderá, em três anos, salvar 200 mil vidas e reduzir os custos dos
tratamentos em pelo menos R$ 37 milhões por mês.
No dia 4 de julho de 2005, outro artigo ataca a Adin contra a Lei da Biossegurança. “A
alma como metáfora” é assinado por Hélio Schwartsman, que integra o corpo de editorialistas
da Folha. Ele atribui aos argumentos apresentados pelo procurador Cláudio Fonteles um
caráter estritamente religioso, distantes de bases jurídicas que os assegurem. Schwartsman,
repetindo o que há havia sido dito em editorial da Folha um mês antes, apresenta uma
concepção de início da vida que estaria amparada na legislação brasileira e, em seguida,
apresenta também um conceito amparado em critérios biológicos.
[...] a tradição jurídica brasileira o corrobora a tese de que a vida começa
com a fertilização. O mais perto que o direito chega de uma definição de
vida é a chamada personalidade civil, e ela surge no "nascimento com
vida" (Código Civil, art. 2º). [...] Isso não significa que os fetos estejam
desamparados. O mesmo artigo 2º protege os direitos dos nascituros "desde a
concepção". Mas esses direitos não são os mesmos concedidos a um ser vivo
com personalidade jurídica -ou a lei jamais poderia autorizar o aborto
necessário (art. 128 do Código Penal), que é aquele exercido por médico
para salvar a vida da mãe.
Também do ponto de vista filosófico-científico é difícil sustentar que a vida
comece na concepção: o zigoto se forma a partir de células que eram
vivas. O que fundamenta a opção católica pelo instante da fertilização é a
noção - dogmática- de que é este o momento em que a matéria passa a ser
animada pela alma. O problema desse ponto de vista é que ele não resiste a
uma rápida análise biológica. Para começar, o instante da concepção não é
exatamente um "instante". Entre a penetração do espermatozóide no óvulo e
a fusão genética dos gametas ocorre um intervalo de 24 a 48 horas. Será que
a alma leva todo esse tempo para ser soprada no novo ser?
75
É a gemelaridade, porém, que apresenta mais problemas. Gêmeos
monozigóticos (idênticos) se formam entre um e 14 dias depois da
fertilização, quando o concepto sofre um desenvolvimento anormal dando
lugar a dois ou mais indivíduos com o mesmo material genético. A alma, é
claro, já estava lá. Ela também se divide, ou outras almas surgem para
animar os demais irmãos? Quem fica com a "original"? E, se gêmeos
partilharem a mesma alma, como fica o livre-arbítrio? Se um irmão pecar,
levará o outro -talvez bonzinho- ao inferno?
Na seqüência desse artigo, foram publicados outros com comentários sobre a Adin
impetrada por Cláudio Fonteles. O procurador, porém, não assina nesse período um artigo de
opinião na Folha.
Claro, entre os artigos debatendo a Adin, houve aqueles que a defenderam, como o
texto “Verdade sobre células-tronco embrionárias”, publicado no dia 8 de junho de 2005, de
Ives Gandra da Silva Martins, advogado tributarista, professor e presidente da Academia
Paulista de Letras, e Lilian Piñero Eça, biomédica, doutora em biologia molecular pela
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Os dois apresentam as razões para que a Adin
seja considerada correta.
O tratado internacional sobre direitos fundamentais de São José determina
que a vida começa na concepção e que a pena de morte é condenável tanto
para o nascituro como para o nascido. E o Código Civil impõe que todos os
direitos do nascituro sejam garantidos desde a concepção. Seria, pois,
ridículo se todos os direitos estivessem garantidos, menos o direito à vida. A
vida começa, portanto, na concepção, não se justificando que seres humanos
sejam, como nos campos de concentração de Hitler, também no Brasil objeto
de manipulação embrionária. A lei é manifestamente inconstitucional do
ponto de vista jurídico.
No dia 6 de julho de 2005, Dom Amaury Castanho, bispo de Jundiaí/SP falecido no
dia de junho de 2006 –, defende a Adin de Fonteles. No texto “Direito à vida, fundo do
problema”, ele aborda a questão da vida e afirma que ela merece respeito desde o momento da
concepção.
[...] todo aborto voluntário, toda experiência que manipula e sacrifica um
embrião humano atenta contra o direito à vida. Legalizar e justificar tal
sacrifício, por qualquer motivo, é sempre uma cruel agressão à vida humana
nascente, protegida por nossa Constituição Federal e por compromissos
internacionais assumidos pelo Brasil.
Como cidadãos, temos o dever de defender a vida, particularmente a vida
sempre inocente do embrião e do feto humano. O direito à vida será sempre
o primeiro e o mais fundamental dos direitos humanos. Sem ele, nenhum
outro direito poderá ser efetivamente exercido. Esse será sempre o fundo do
problema quando alguém se posicionar a favor ou contra pesquisas que
sacrificam o embrião humano. Não é, portanto, por motivações
primordialmente religiosas, mas por razões científicas e jurídicas de respeito
ao direito à vida.
76
A falta de consenso a respeito do início da vida motiva a discussão proposta pelo
médico Marco Segre professor da Faculdade de Medicina da USP, presidente da Sociedade
de Bioética de São Paulo e membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do
Ministério da Saúde e pela advogada Gabriela Guz, professora de ética médica da
Universidade de Santo Amaro (Unisa), especialista em bioética. No artigo “Início da vida e
células-tronco embrionárias”, publicado no dia 14 de julho de 2005, a dupla defende que o
início da vida deve ser definido pela sociedade, e não pela ciência ou outro segmento, e que o
direito precisa atender tal definição, que deve ser tomada a partir de debate amplo,
transparente e plural. Apresenta imediatamente ao leitor uma definição biológica da vida.
O que é vida? Biologicamente, é um conjunto de características,
absolutamente variáveis de uma espécie para outra (veja-se, a título de
exemplo, as diferenças entre uma bactéria e um ser humano), todas elas
observadas e verificadas por estudiosos.
Logo em seguida, o artigo coloca as implicações de uma definição como essa, que não
é suficiente para encerrar a discussão sobre a questão.
Mas essa caracterização da vida é vista "de fora". [...] a descrição desses
aspectos todos nos permite saber "o que consideramos vida", mas não o que
a vida de fato é. A essência da vida está na subjetividade, na forma como
cada um a percebe e, portanto, ela é indefinível, e sua experiência, inefável.
Se nos louvarmos nas religiões, a vida precede a concepção e o nascimento e
ultrapassa a morte -todos fenômenos biológicos percebidos "de fora".
Conseguir uma definição para a vida é algo distante, pois passa por valores individuais
de quem quer que se proponha a apresentar uma definição. A dupla de articulistas,
diferentemente de diversos outros colunistas do jornal, tenta mostrar que é realmente difícil,
complexo e subjetivo chegar a tal conceito e que, importante mesmo, é que seja permitido,
incentivado e abastecido de informações um debate público que possa estabelecer essa
definição.
Se não conseguimos definir o que é "vida", dentro dessa óptica, muito menos
poderemos definir quando ela tem início nem quando termina. [...] O que
importa, portanto, e desejamos que fique bem claro, é definir a partir de
quando, e até quando, queremos considerar e respeitar "algo" como vivo.
Não havendo possibilidade de dissociarmos o que queremos considerar
"vivo" de aspectos biológicos -portanto, vistos "de fora"-, admitamos que a
impossibilidade de estabelecer o início e o fim da vida nos obriga a dar um
caráter aleatório a essas demarcações. É necessário, sim, estabelecer esses
parâmetros, precipuamente, para sabermos a partir de quando e até quando,
de acordo com os valores de nossa sociedade, devemos respeitar a vida.
depois de definida pela sociedade é que a questão poderá ser assegurada pelo
direito, afirmam os autores.
Não há dúvidas de que se faz necessário estabelecer a partir de que momento
a vida será passível de proteção jurídica. Entretanto, é preciso entender que o
77
direito não constitui uma "entidade" à parte da sociedade. Ao contrário, é
instrumento por ela e para ela criado. Em outras palavras, é o direito que
serve a sociedade, e não a sociedade que serve o direito. Portanto, para que
determinada demarcação de início da vida venha a ser traduzida em lei,
deverá ser o resultado de um processo democrático de escolha
exclusivamente da sociedade.
O fim utilitarista é a principal condenação quando se considera que o embrião é vida
humana, que, sendo vida, não pode ser usado como meio, devendo ser apenas o fim em si
mesmo. Dom Estevão Bettencourt, monge católico da Ordem de São Bento, debate o tema
duas vezes da coluna “Tendências/Debates”. Na primeira, faz oposição ao artigo do médico
João Pedro Junqueira, diretor da Clínica Pró-Criar/Mater Dei de Reprodução Humana ao
qual nos referimos acima –, na resposta à pergunta “O Brasil deve também desenvolver
técnicas de clonagem humana?”, de dezembro de 2001. No seu discurso, o monge expõe
que a grande diferença na procriação de homens e animais começa na maneira que se a
reprodução, que, no caso humano, não se resume a questões biológicas.
A reprodução humana está ligada ao amor, a um ideal de vida e à doação
mútua de homem e mulher, o que se concretiza na prole. A genitalidade
humana tem grandeza e nobreza singulares, de tal modo que não se pode
tratar a célula humana como se trata a do gado. Com outras palavras: a vida
do ser humano não é apenas o resultado de reações físico-químicas, mas sim
o patrimônio de alguém chamado à Transcendência ou ao Absoluto
(qualquer que seja o nome que se Lhe dê).
E classifica como crime bárbaro e como discriminação o uso de embriões como
instrumento.
Em nossos dias, defende-se a clonagem humana em nome da terapêutica de
certas doenças. Em resposta, é preciso observar que o fim não justifica os
meios. Produzir embriões para lhes tirar a vida e assim salvar a vida de um
adulto é rbaro. Fala-se muito contra a discriminação racial, sexual,
religiosa etc. Como então aceitar a discriminação do ser humano indefeso
em favor de um adulto? Como produzir muitos embriões para aproveitar
algum ou alguns e matar os demais, de acordo com o pragmatismo da
sociedade de consumo?
Ele defende que a vida humana começa no momento da fecundação, quando estão
presentes as informações necessárias ao desenvolvimento do embrião: “Nunca mais se
tornaria humana se não fosse desde então”. Sendo humana, portanto, merece respeito desde o
momento em que se inaugura, o que apóia a idéia de que o fim não justifica os meios. Em
novo artigo participando do mesmo quadro, em 22 de junho de 2002, opondo-se à
pesquisadora Mayana Zatz, ele toma como argumento central que os fins não justificam os
meios.
Não é lícito produzir um ser humano com a intenção premeditada de o
explorar como coisa e depois matá-lo ou congelá-lo por cinco anos e
78
eliminá-lo, desde que um casal benévolo o o venha procurar. A finalidade
boa não justifica os meios maus.
Para ele, mesmo com as anunciadas vantagens da clonagem terapêutica, um embrião
não pode ser eliminado para beneficiar um adulto, o que seria uma nova forma de
discriminação. A abordagem feita pelo monge encontra apoio nas afirmações de Julio Luis
Martinez (2005), professor de Bioética da Universidade de Comillas (Madri/Espanha), a quem
nos referimos no capítulo 2. O professor defende que os processos de clonagem violam o
princípio da igualdade entre os seres humanos e também o princípio da não-discriminação,
pois a lógica da clonagem implica uma seleção.
No discurso do monge Estevão Bettencourt publicado no jornal está implícita ainda
uma preocupação com o cunho econômico das pesquisas com embriões. Ele sugere que a
prática de produzir embriões como meio e não tendo como fim a própria vida tem como
objetivo atender a prática do consumo. “Não venha a ciência a produzir artificialmente seres
destinados a servir aos caprichos de alguma facção que, mediante nova forma de escravatura,
dispute a hegemonia sobre a Terra.”
O ex-presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Dom Geraldo
Majella Agnelo, doutor em teologia, atribui esse uso a um equívoco que ignora o significado
do embrião e que incentiva uma “mentalidade desumana”. No artigo Em defesa da vida
humana”, publicado no dia 29 de agosto de 2004, quando o projeto de lei já estava no Senado
para ser votado, ele contraria o argumento de que o embrião é apenas um aglomerado de
células.
“Um embrião não é um grumo de células, mas um indivíduo da espécie
humana; e não é necessário partilhar uma visão cristã para compreender isso.
Não se trata de uma verdade de fé, e sim de uma verdade que a razão é capaz
de reconhecer. Com efeito, o embrião, apesar de seu pequeno tamanho,
contém a informação genética (genoma) que presidirá o seu
desenvolvimento, até o nascimento e até a idade adulta.
Existindo uma seqüência do DNA típica e exclusivamente humana, cada ser
que a possui pertence à humanidade e é um ser humano. E se é um ser
humano, é uma pessoa, possui subjetividade jurídica. E se de pessoa se trata,
devem ser-lhe reconhecidos os direitos fundamentais das outras pessoas e,
entre estes, o direito à vida e à integridade física. Essa é uma conquista da
civilização, e seria muito grave retornar aos tempos nos quais não todos os
seres humanos eram considerados pessoas, podendo ser comprados e
vendidos, tratados como objetos.”
Dom Geraldo recorre também ao argumento jurídico de direito à vida, assegurado a
todo e qualquer ser humano, e usa como critério para definir a vida humana informações da
biologia. Em seguida, ele apresenta também os argumentos religiosos, mantendo, então, uma
separação entre eles. É com base no aspecto cristão que ele condena o uso instrumental do
79
embrião como meio de pesquisa, e não como finalidade única a sua própria vida. “No
horizonte da cristã, que compreende o ser humano como criação, imagem e semelhança de
Deus criador, ao ser humano é reconhecida uma dignidade inviolável, por isso ele é
indisponível a qualquer tipo de redução a coisa.”
Como outros articulistas, também recorre a um exemplo exagerado para atrair o leitor
ao seu ponto de vista, contrário à “coisificação” do embrião.
Pensar que um embrião possa ser destruído, manipulado, tratado como um
objeto, para aproveitar o poder especial que as suas células contêm, não é
muito diferente de comercializar crianças com a finalidade de utilizar seus
órgãos, transplantando-os em indivíduos doentes. Um ser humano não pode
ser, em hipótese nenhuma, tratado como um meio, para nenhum fim, nem
mesmo no caso em que esse fim fosse prolongar a vida de um semelhante.
A finalidade curativa é admirável, a finalidade econômica é interessante, o
problema é o meio: o embrião torna-se um meio, uma coisa, um objeto de
manipulação e de relações jurídicas (comprar e vender), como aconteceu
com os negros, quando eram trazidos escravos da África.
Ao final do artigo, faz um alerta para as possíveis conseqüências da adoção de uma
postura favorável à manipulação de embriões para atender as pretensões dos cientistas e das
empresas de biotecnologia. Para o teólogo, essa posição elimina o caráter inviolável do ser
humano, defendido não só pelos religiosos, mas também por diversas linhas filosóficas.
É importante prestar atenção às conseqüências que medidas dessa natureza
trazem à mentalidade comum: vai tomando espaço a idéia de que o ser
humano não é inviolável, podendo ser usado (comprado e vendido, fabricado
e destruído) sempre que interesse de alguns, interesse do mercado, assim o
exigir. Não é necessária muita fantasia para compreender como se
desenvolve, dessa maneira, uma mentalidade que transborda dos laboratórios
de genética, passando a determinar a conduta das pessoas na convivência
cotidiana.
A cultura da morte está assim instalada e estão aí seus frutos de violência, de
brutalidade, de prevalência do critério da utilidade sobre a dignidade sagrada
e inviolável da pessoa.
Meses depois, em 7 de novembro de 2004, quando o Projeto de Lei da Biossegurança
já estava novamente para ser votado pela Câmara, agora autorizando as pesquisas com
embriões, Dom Geraldo Majella Agnelo publica novo artigo sobre a questão: “Biogenética:
esperanças, ilusões e riscos”. Nesse texto, ele coloca os elementos técnicos desfavoráveis ao
uso de células-tronco embrionárias e reafirma o necessário respeito à vida humana em todos
os seus estágios. No entanto, chama a atenção também para o aspecto econômico do tema, de
interesse de grandes empresas que concentram o poder econômico e, conseqüentemente,
influenciam nas biopolíticas engendradas pelo poder político.
Entretanto, nesse contexto, faz-se ainda necessário chamar a atenção para
verdadeiras manipulações de ordem ideológica, por vezes ocultando
interesses de empresas de biotecnologia que montam verdadeiro esquema de
80
exploração econômica dos mistérios da vida. Essa constatação deveria
inclusive se constituir em interpelação para a destinação de verbas públicas,
para que não se invista em hipóteses o que é necessário para suprir as
necessidades mais urgentes do povo.
O reducionismo de caráter biológico e a maneira categórica com a qual são
apresentadas certas perspectivas terapêuticas revestem-se de caráter
profundamente deseducativo. Em vez de nosso povo ser incentivado a cuidar
de sua saúde, no sentido mais amplo da palavra, pode acabar acreditando que
laboratórios irão resolver todos os problemas humanos.
Criem-se esperanças, solidariedade; não ilusões.
Francesco Scavolini, doutor em jurisprudência e especialista em direito canônico,
aponta, com argumentos jurídicos, que o embrião tem direito à vida e não pode ser tomado
como objeto. Publicado no dia 26 de abril de 2004, o artigo elogia a decisão da Câmara de
vetar as pesquisas com células-tronco, posição que denota respeito ao direito à vida.
Com certeza a humanidade chegou numa encruzilhada decisiva; por isso é
digno de louvor o veto da Câmara à clonagem e à manipulação dos
embriões, pois mostrou ao mundo inteiro que a dignidade humana, feita à
imagem e à semelhança de Deus, não pode ser desprezada nem reduzida a
objeto.
Meses depois, em 16 de outubro de 2004, o então arcebispo de Mariana/MG, Dom
Luciano Mendes de Almeida, publicou o artigo “A vida humana é inviolável”, apoiando-se
não no aspecto ético, mas também no viés jurídico que a questão encerra. Nessa época,
Dom Luciano era colunista semanal da Folha, publicando sua coluna aos sábados, na editoria
Opinião.
O que está em questão é a sacralidade da vida humana, que tem sua origem e
razão de sua dignidade no ato criador de Deus. Mesmo para aqueles que o
fazem uma leitura religiosa da vida humana, ninguém tem o direito de violar
a vida do próximo. O reconhecimento da dignidade da pessoa é base para
toda lei positiva, e compete ao cidadão contar com a proteção das leis contra
os que agridem a sua vida e tentam eliminá-la.
Dom Luciano insiste na dignidade da vida humana, como tantos outros, desde a sua
concepção, e, portanto, ninguém pode dispor dela.
A vida humana precisa ser sempre respeitada, não importando o estágio ou a
condição em que se encontra. [...] O ser humano é o mesmo em qualquer
fase de seu desenvolvimento e possui igual dignidade desde o início de sua
concepção, ainda que seja embrião ou feto, portador ou não de defeito
genético e de doença incurável.
Portanto não é lícito e nenhuma razão pode justificar que se sacrifique uma
vida humana já presente no embrião em benefício de outra nem é permitida a
interrupção provocada da gravidez do anencéfalo.
Nossos magistrados e legisladores têm o dever de salvaguardar o pleno
direito à vida que cabe a todo cidadão. Buscamos um mundo possível e
melhor, mas que acontecerá com a afirmação clara e convicta da
dignidade da vida humana.
81
depois de a lei ter sido aprovada pela Câmara, com a nova redação, e antes de ser
sancionada pelo presidente da República, Dom Luciano Mendes de Almeida publica novo
artigo, “Pesquisa científica e células-tronco”, em 5 de março de 2005. Afirma que os dois
temas tratados na lei deveriam ter sido discutidos separadamente, comenta os transgênicos e
mais uma vez condena o uso dos embriões como material de experimentação.
Quanto ao uso das células-tronco maduras, os resultados são promissores e
eticamente válidos. A restrição, no entanto, está no recurso às células-tronco
embrionárias, cujo uso implica na destruição do embrião e, por isso, é
moralmente inaceitável, uma vez que ao ser humano, desde a sua concepção,
compete a sua inviolável dignidade. Não é portanto admissível, à luz dos
princípios éticos, o voto do Senado e da Câmara dos Deputados que permite
sacrificar o embrião humano e reduzi-lo a material de experimentação.
Nenhum progresso científico é verdadeiro se elimina a vida humana em
qualquer fase em que se encontre.
O argumento de religiosos e juristas encontra consenso no que se refere às razões para
não aprovar o uso de embriões humanos para obtenção de células-tronco: são considerados
vida humana desde o momento da concepção e, por isso, têm direito à vida.
Esse conceito não se repete pelos defensores da clonagem terapêutica. O editor de
Ciência da Folha, Marcelo Leite, publica, no dia 27 de outubro de 2002, o artigo “O sexo dos
anjos e a pessoa do embrião”, em que fala do debate que participou dias antes. No texto, ele
mostra sua opinião de que o conceito biológico de vida não deve ser identificado com o
conceito jurídico de vida, respondendo a uma pergunta feita pela platéia.
Tentei explicar que havia um pressuposto na pergunta de que discordava: a
idéia de que o conceito biológico de vida possa e deva ser identificado com o
conceito jurídico de vida, e mais ainda com o de constituição da pessoa
humana, do sujeito titular de direitos inalienáveis -como o direito à vida.
Dito de outro modo, não é óbvia nem cientificamente indiscutível a noção de
que a pessoa humana surge no momento mesmo da concepção, como afirma
o dogma católico vigente.
Ele recorre a religiões que adotam outros marcos para o início da vida, aproveita para
expor que mesmo na igreja católica o atual dogma não vigorou sempre e encerra o artigo com
sua posição em defesa do uso dos embriões para obtenção de células-tronco.
Se for para buscar argumentos na biologia propriamente dita, prefiro o
seguinte: até o 14º dia, o tal de "embrião" pode ainda dividir-se e
transformar-se em gêmeos idênticos, ou mesmo quádruplos. Não faz muito
sentido tomar como um indivíduo aquilo que ainda pode tornar-se duas, ou
quatro, pessoas.
Contardo Calligaris, psicanalista italiano que vive nos Estados Unidos e em São Paulo,
ex-professor de estudos culturais na New School de Nova York e antropologia na
Universidade da Califórnia em Berkeley, publica artigo no dia 19 de fevereiro de 2004,
82
“Ataque dos clones”, em que coloca sua definição de ser humano. Colunista semanal da
Folha, seus artigos são publicados às quintas-feiras no caderno Ilustrada.
Para que um embrião que contém uma centena de células-tronco me apareça
como meu semelhante, é preciso que minha definição do humano seja
biológica. Seria humana qualquer existência, em qualquer estágio, com a
condição de que pertencesse à espécie. Por esse caminho, por que não chorar
pelos espermatozóides sacrificados, não digo nas camisinhas e nas
masturbações, mas na própria hora da fecundação? E por que não pedir que
as mulheres enterrem com ritos religiosos cada óvulo expulso na
menstruação? [...] Veja bem: se a humanidade é definida por via biológica,
então o bem supremo é a sobrevivência. E nenhum valor moral pode situar-
se acima do bom funcionamento dos órgãos.
Calligaris faz críticas às concepções biológicas de vida adotadas por diversos agentes
representantes da sociedade, e tenta apontar, em tom irônico, algumas incoerências que
existiriam no discurso em defesa da vida embrionária. Afirma ainda que a moral não pode
estar acima dos avanços científicos que prometem benefícios à saúde e conclui seu texto
apresentando uma definição de humanidade que não se liga ao viés biológico.
Quanto a mim, prefiro reconhecer a humanidade de meus semelhantes nas
faíscas da emão, do pensamento e, sobretudo, da vida, que talvez seja a
atitude mais humana de todas.
Aliás, quando encontro sujeitos que têm certezas (como, neste caso, os
que se indignam com a experiência coreana), eles me parecem ser apenas
embriões de sujeitos.
Nos artigos selecionados, aparece também um ponto de vista que tenta definir o
começo da vida sob o aspecto jurídico. Quem defende o embrião como ser humano vincula o
início da vida ao conceito jurídico, que assegura a ele o direito à vida. Poucos textos foram
publicados na Folha em defesa desse direito. A maioria dos artigos assinados empenhou-se
em convencer sobre os benefícios das células-tronco embrionárias e a consolidar a idéia de
que o embrião que cederá as células não pode ser considerado vida, por não ter sido
implantado no útero e porque no momento da obtenção das células-tronco o embrião ainda
pode se dividir e resultar em mais de um bebê.
Sob o aspecto jurídico, encontramos o artigo de Francesco Scavolini, ao qual nos
referimos anteriormente, publicado no dia 26 de abril de 2004, em apoio à decisão da Câmara
de vetar as pesquisas com células-tronco.
O veto dos deputados federais a qualquer forma de manipulação e destruição
dos embriões humanos está fundamentado no alicerce do respeito absoluto
que é devido à vida humana e que está consagrado também em cláusula
pétrea da Constituição.
Na verdade, entre os cientistas, ninguém duvida que o embrião humano é um
organismo distinto e indivisível -isto é, um ser vivo pluricelular dotado de
existência autônoma. Um ser vivo cujo início se no exato momento em
que a célula masculina chamada espermatozóide se une à célula feminina
83
chamada óvulo. Para a ciência, portanto, o embrião humano não é uma vida
potencial ou virtual, mas uma vida real, um ser humano vivo, que não pode
ser tratado como uma coisa ou um objeto descartável.
Como o psicanalista Contardo Calligaris, Francesco Scavolini adota um exemplo
exagerado, mas oposto ao de Calligaris, para defender seu argumento.
Os supostos fins terapêuticos que alguns cientistas alegam para defender a
manipulação ou a clonagem de embriões não justificam a eliminação de
vidas humanas, mesmo que estas, como é o caso dos embriões, se encontrem
no estágio inicial de seu desenvolvimento, pois, se, por absurdo, fosse lícito
eliminar vidas humanas embrionárias para supostamente beneficiar outras
vidas humanas, alguém poderia também teorizar e propor, por exemplo, a
"exclusão" de pessoas idosas e doentes, para deixar vagas disponíveis nos
hospitais a pessoas jovens que, uma vez curadas, poderiam trabalhar e
produzir mais, em termos econômicos, em benefício da sociedade. Isso
representaria, evidentemente, uma aberração e uma discriminação
absolutamente inaceitáveis e indignas.
Marcelo Leite, em artigo no dia 28 de dezembro de 2002, posterior ao que citamos,
discute o anúncio de que nascerá um clone humano. Defensor da clonagem terapêutica, ele é
contrário à clonagem reprodutiva, e aponta não questões técnicas como também éticas para
o que ele chama de “manifestação sem precedentes da ‘hybris’ biotecnológica”. Ele culpa os
cientistas por terem deixado chegar a esse ponto, e destaca que um grande erro foi ter
justificado os impedimentos para tal feito com a falha técnica, e não o problema ético.
Ora, riscos são, por definição, superáveis. A pergunta que deveria ter sido
feita [...] era a seguinte: e se os problemas de segurança fossem resolvidos,
seria permissível fabricar clones? O que mais, senão a vaidade do
pesquisador e/ou do candidato a matriz, justificaria tal procedimento?
Não faltam argumentos filosóficos e éticos contra a clonagem. Um dos
preferidos, apresentado por pensadores tão díspares quanto o norte-
americano liberal Francis Fukuyama e o alemão frankfurtiano Jürgen
Habermas, é que a clonagem equivale a diminuir a dignidade da pessoa: sua
seqüência de DNA não é fruto da loteria biológica, mas determinada de cabo
a rabo, de modo irrecorrível, por outrem.
E não venham dizer que é a mesma coisa que escolher o nome ou a escola de
um filho, porque não é. Com o DNA não se discute.
Apesar de recorrer ao argumento da dignidade, Marcelo Leite defende a clonagem
terapêutica, que não considera o embrião, até o 14º dia, como vida humana. Enquanto o
editor de Ciência alerta para a necessidade de discutir eticamente o assunto, pois tecnicamente
os problemas poderão ser superados, o colunista Otávio Frias Filho, no artigo “Bioficção”,
publicado em 16 de janeiro de 2003 e que citamos anteriormente, aponta a necessidade do
debate sobre a clonagem se tornar mais aberto, público, pois envolve toda a sociedade, mas
destaca que até o momento não nenhum obstáculo de ordem moral porque tecnicamente
nada pode ser realizado ainda.
84
O problema moral vai surgir às claras quando (e se) a técnica da clonagem
vier a se comprovar segura, tão apta a produzir seres humanos saudáveis
quanto o método, digamos, bíblico. Podemos rechear nossa repulsa com
outros argumentos, como o de que a vida se apóia na diversidade genética
patrocinada pela mistura dos genes, valor que a clonagem violaria.
Frias Filho defende que a repulsa moral não tem razões concretas para existir, pois
estaria baseada apenas em dogmas religiosos e medos de riscos ainda não esclarecidos. Não
considera, em momento algum, que a manipulação da vida, sobretudo a humana, implica
questões sérias e de graves conseqüências.
Mas poucas vezes se questiona a repulsa moral que a idéia de clonagem
suscita. Essa repulsa não tem bases muito firmes. Ou bem ela traduz um
dogma religioso -fora de discussão racional, portanto- segundo o qual
somente a Deus é dado criar a vida, ou ela se apóia precariamente na
suspeita de que a manipulação humana do patrimônio genético venha a gerar
transtornos ecológicos.
Otavio Frias Filho propõe, ainda, que a moral é que deve se adaptar aos avanços da
ciência, e não a ciência à moral.
A história da ciência mostra, porém, que descobertas úteis se disseminam
sem que nada as possa deter, sobretudo num ambiente livre como o da
modernidade ocidental. Para aliviar o incômodo psicológico, é a moral que
muda para se adaptar à técnica. O argumento será que a clonagem amplia as
possibilidades de vida da mesma forma que um coração artificial.
Um artigo assinado por Koichiro Matsura, economista e diplomata japonês, diretor
geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), no dia
21 de setembro de 2003, aponta para um caminho oposto ao traçado por Otávio Frias Filho.
Para Matsura, a questão é ética, cultural e política, tanto para a clonagem reprodutiva como
para a terapêutica, e precisa ser refletida.
Os códigos que regem as pesquisas médicas governamentais proíbem a
realização, com humanos, de experimentos de processos cuja segurança e
eficácia ainda não tenham sido comprovadas por meio de testes em animais.
Mas o que vai acontecer quando essa barreira técnica for derrubada e o
argumento da precaução por motivo de saúde deixar de ser válido?
Para a clonagem terapêutica, o grande conflito é a definição do status do embrião.
O que está em jogo aqui é o status do embrião: é legítimo criar embriões
cujo desenvolvimento jamais será levado a termo? E quem vai providenciar
os incontáveis óvulos necessários para essas manipulações? Isso não pode
levar a uma nova forma de objetificação e utilização comercial do corpo
feminino, especialmente o das mulheres mais pobres? Essas perguntas
podem ser respondidas por meio da criação de parâmetros legais rígidos para
as pesquisas com embriões humanos, e, para chegar a isso, são necessários
novos debates.
85
em relação à clonagem reprodutiva, afirma Matsura, outras questões igualmente
sérias, principalmente quando a motivação para o uso de tal tecnologia é a busca da
imortalidade ou até a criação de cópias de si mesmos de outros.
Aqueles que associam a clonagem à realização dos mitos seculares da
imortalidade ou ressurreição, ou ainda a uma busca impossível por produzir
cópias deles mesmos ou de outros, utilizam representações da genética que
são equivocadas e perigosas. Os clones humanos certamente não seriam
monstros, mas poderiam rejeitar o projeto normativo que comandou seu
nascimento. Mas precisamos investigar mais a fundo, examinando as
motivações por trás de tal projeto e as visões da raça e da sociedade humanas
subjacentes a ele. Esse tipo de manipulação consideraria os clones como
portadores de um genoma específico, escolhido por suas propriedades
específicas. Não é difícil imaginar as conseqüências psicológicas e sociais
desastrosas que poderiam advir desse tipo de eugenia.
A natureza fornece a cada indivíduo uma identidade genética única e
singular. Abrir mão dessa riqueza natural pode, algum dia, nos levar a uma
divisão genética artificial entre humanos dotados de genomas originais e
humanos cujos genomas são clonados. Será que a humanidade não sofre
tipos de discriminação que cheguem?
Na melhor das hipóteses, a idéia da clonagem humana se baseia numa série
de fantasias e concepções equivocadas; na pior delas, no desejo de utilizar a
genética para finalidades decididamente questionáveis, quer sejam
comerciais, ideológicas ou práticas.
As preocupações manifestadas pelo representante da Unesco, entidade mundialmente
autorizada a falar em defesa dos direitos humanos, encontram amparo nas formulações do
filósofo alemão Jürgen Habermas, defendidos no livro O futuro da natureza humana (2004), e
do professor espanhol Julio Luis Martínez (2005), titular da cadeira de Bioética da
Universidade de Comillas. Habermas aponta a possibilidade de se atribuir culpa aos pais por
terem ou até por não terem interferido nas características dos filhos. Martínez fala de uma
violação ao princípio da igualdade entre os seres humanos e ao princípio da não-
discriminação.
Koichiro Matsura corrobora também a teoria da construção social da realidade, a que
nos referimos no capítulo 2, ao afirmar que, ainda que isto não marque o início da vida,
biologicamente representada de outro modo, o que molda o ser humano é sua trajetória e que,
por isso, não pode ser resultado de um processo de clonagem. A constituição de cada ser
humano é dotada de características singulares.
O homem não é um mamífero qualquer. Os animais podem ser reproduzidos
por meio da clonagem. Mas os humanos são moldados pela educação, a
ciência e a cultura, não pela clonagem.
Como vemos, os dois principais argumentos que identificamos são usados, ambos, em
enquadramentos diferentes, adequando-se à estratégia dos atores. Os agentes que defendem o
86
uso dos embriões, ao discutirem a questão da vida, alegam que as células-tronco são retiradas
num estágio embrionário chamado blastocisto, quando existem aproximadamente 100 células,
e que neste momento o ovo não é ainda vida humana. Assim, poderiam ser usados embriões
congelados e também poderiam ser produzidos em laboratório exclusivamente para este fim,
sem implicar em qualquer problema ético, porque as pesquisas se darão antes do 14º dia,
momento a partir do qual o embrião poderia ser considerado vida. Até este momento, ele
ainda pode ser dividido e gerar gêmeos, razão que o colocaria como não indivíduo, e,
portanto, não ser humano e não pessoa.
87
5. A fala dos agentes: o argumento técnico
O desenvolvimento da terapia celular e da clonagem terapêutica encontrou nos jornais
um enquadramento discursivo baseado não nos aspectos éticos, envolvendo a questão do
início da vida, mas também o argumento técnico. O método usado para a obtenção das
células-tronco a partir de embriões e as possibilidades abertas pelo uso da técnica serviram
para tentar neutralizar os argumentos contrários que consideravam o embrião como ser
humano e com direito à vida. Os defensores das pesquisas com embriões davam grande ênfase
a esses tópicos, apresentando os fundamentos que embasavam a idéia de que o embrião no
estágio em que forneceria as células-tronco embrionárias não era ainda uma vida humana.
O médico João Pedro Junqueira, diretor da Clínica Pró-Criar/Mater Dei de
Reprodução Humana, responde “sim” à pergunta “O Brasil deve também desenvolver
técnicas de clonagem humana?”, lançada pelo quadro Tendências/Debates, no dia de
dezembro de 2001. Destaca os rumos dados ao debate e fala dos medo criado em torno da
clonagem, resultante de um possível mau uso da técnica, que pode impedir o avanço de
conhecimentos que permitiriam um futuro melhor.
Quando a possibilidade da clonagem surgiu, em 1997, alguns vislumbraram
a chance de eternidade; outros ficaram preocupados com a chance de clonar
Hitler, por exemplo; e outros, ainda, pensaram em perpetuar um filho morto
ou um outro ser querido. Pena que o debate sobre a clonagem tenha tomado
rumo tão emocional e que o homem não tenha enxergado os benefícios de tal
fantástico procedimento.
Junqueira apresenta os problemas resultantes da clonagem reprodutiva, como as
doenças causadas pela falta de diversidade genética, e explica a diferença entre as duas formas
de clonagem, visando esclarecer entendimentos errôneos que podem prejudicar o avanço da
técnica que ele defende e mostrando a clonagem terapêutica como um caminho promissor na
cura de doenças graves.
A clonagem terapêutica tem como objetivo principal reorientar uma célula a
produzir um determinado conjunto de células ou um tecido: é a chamada
célula-tronco. Vamos imaginar o caso de alguém com leucemia que
necessite de um transplante de medula. Ele seria o doador dele mesmo, sem
incorrer no risco de uma rejeição. um sem número de situações a serem
desenvolvidas para o benefício do ser humano.
Em 13 de fevereiro de 2000, quando os resultados das pesquisas ainda não eram muito
consistentes, o físico Marcelo Gleiser, no artigo “O preço da imortalidade”, atribui à célula-
tronco a característica de “célula fantástica”, pelo seu poder de se transformar em qualquer
célula do corpo. Explica a esperança da medicina de descobrir o funcionamento da tal
“fábrica” e anuncia como grande conquista a possibilidade de rejeição aos transplantes, o que
88
seria possível com a clonagem terapêutica, que usa informações do indivíduo doente para
“fabricar” os tecidos.
Após isolar a célula-tronco, a idéia é descobrir qual o mecanismo
bioquímico que a induz em uma determinada direção, transformando-a em
um coração, cérebro ou músculo. Se esse mesmo mecanismo for descoberto,
será possível que uma pessoa doe uma amostra de seu material genético a
uma empresa, que poderá então clonar qualquer órgão que essa pessoa venha
a precisar no futuro. O problema com a incompatibilidade em transplantes
desaparece, pois esses órgãos são essencialmente você.
As pesquisas no momento usam óvulos extraídos de vacas como invólucro
do DNA humano; os técnicos retiram o DNA do óvulo (ninguém quer um
feto que "diz" muuu...) e injetam células humanas que são então fundidas
com as da vaca por meio de correntes elétricas. A esperança é que esse
processo irá induzir a divisão das células, formando um embrião que trará
consigo as células-tronco.
No dia 16 de setembro de 2001, no artigo “O dilema genético”, Marcelo Gleiser
reafirma as possibilidades de cura.
Por outro lado, o uso das células-tronco é, a meu ver, mais do que
justificado. Essas células, retiradas de blastocistos, embriões com alguns dias
de vida, têm a capacidade de se transformar em qualquer célula
especializada do corpo. Assim sendo, elas podem substituir células de vários
tecidos e órgãos, como coração, pâncreas e sistema nervoso, oferendo a
possibilidade de curar um sem-número de doenças, incluindo câncer, doença
de Alzheimer, mal de Parkinson, diabetes e defeitos congênitos, entre muitas
outras.
Dois meses depois, ele aborda novamente o assunto no artigo “Definindo o ser
humano”, publicado em 9 de dezembro de 2001. O propósito do texto é discutir o anúncio de
que médicos e pesquisadores norte-americanos teriam conseguido clonar um embrião
humano.
A clonagem de embriões humanos, ao menos para a extração de células-
tronco, é uma questão de tempo. Os tecidos e órgãos obtidos dessas células
vão salvar ou melhorar a vida de milhões de pessoas que sofrem de mal de
Parkinson, Alzheimer e outras doenças sem cura.
Em 29 de maio de 2005, no artigo “Células-tronco e a medicina do futuro”, o físico
explica novamente as razões de tanto empenho nas pesquisas com embriões, apesar das
restrições estabelecidas por diversos países.
As células-tronco são extraídas de embriões humanos com aproximadamente
cem células. O interesse nelas vem de sua capacidade de gerar células de
praticamente todos os órgãos e tecidos do organismo humano. O potencial
de terapias usando células-tronco é enorme, definindo toda uma nova área da
medicina, o que poderia tratar doenças que causam a degeneração de tecidos
com a reposição de células saudáveis. Doença de Parkinson, diabetes e
distrofia muscular são algumas das várias moléstias, a afligir centenas de
milhões de pessoas no mundo, que podem vir a ser tratadas.
89
Gleiser encerra o artigo afirmando qual deve ser a função da ciência, o que atende ao
uso das células-tronco embrionárias.
O papel da ciência é aliviar o sofrimento material do homem. É inútil tentar
bloquear o seu progresso com uma ideologia religiosa retrógrada. O que não
for feito nos EUA ou no Brasil será feito em outro lugar.
Os pesquisadores Rudolf Jaenisch, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts
(MIT), e Ian Wilmut, do Instituto Rolin onde foi clonada a ovelha Dolly no artigo “Não
clonem seres humanos!”, publicado em 30 de março de 2001, expõem argumentos cnicos
que servem para refutar a idéia da clonagem humana. Afirmam que os problemas existentes
nos processos de clonagem são razões para que a técnica de reprodução não seja aplicada em
seres humanos. No entanto, como defendem a clonagem terapêutica, expõem as vantagens
desse procedimento, alertando que não pode ser confundido com o que visa à reprodução, e o
terapêutico pode trazer grandes possibilidades para as pessoas doentes.
pesquisas para reprogramar essas células e transformá-las em tipos
específicos de tecidos, que poderiam ser usados para regenerar, por exemplo,
células nervosas e do músculo cardíaco, beneficiando pacientes do mal de
Alzheimer e de doenças cardíacas. O benefício potencial dessa clonagem
terapêutica de células será enorme, e essa pesquisa não deve ser confundida
com a dos ativistas da clonagem humana.
Naquele período inicial da defesa das pesquisas com células-tronco embrionárias,
antes da polêmica chegar novamente ao Congresso Nacional, a professora Lygia da Veiga
Pereira, do Departamento de Biologia do Instituto de Biociências da Universidade de São
Paulo (USP), publica o artigo “Clonar ou não clonar, eis a questão”, em 15 de novembro de
2001. Faz uma das suas primeiras defesas na Folha em favor das pesquisas, recorrendo às
possibilidades abertas.
No processo de clonagem, uma célula de identidade e função definidas
consegue ter acesso a toda a informação genética contida no seu núcleo. Se
pudermos entender e controlar esse mecanismo, poderemos um dia regenerar
órgãos e tecidos danificados. Afinal, as células de um fígado com cirrose
ainda têm a receita para fazer um fígado saudável.
Nos últimos anos houve um enorme investimento na pesquisa com células-
tronco. Em geral, célula-tronco (CT) é uma célula que tem a capacidade de
se transformar em diferentes tipos de célula. Por exemplo, as CT do sangue,
encontradas na medula óssea, produzem todos os tipos de célula sanguínea,
como hemácias e leucócitos. No entanto, apesar de as CT serem fonte de
diferentes tipos de células, ainda o se sabe se podem se diferenciar em
qualquer tipo - como neurônios.
Uma classe especial de CT são as chamadas células-tronco embrionárias.
Como o nome sugere, elas são derivadas de um embrião nos estágios iniciais
do desenvolvimento. Nos primeiros cinco dias desse processo, as células do
embrião ainda não decidiram se vão virar células de sangue, pele ou
músculo. Por isso, ainda têm o potencial de se diferenciar em qualquer
desses tipos celulares.
90
As CT embrionárias são derivadas desses embriões de cinco dias,
multiplicadas em laboratório e podem ser induzidas a se transformar em
células sanguíneas, musculares, de pele, secretoras de insulina e até
neurônios. Elas têm um imenso potencial terapêutico.
A pesquisadora Mayana Zatz, professora de Genética Humana e Médica no Instituto
de Biociências da USP, no artigo “Salvando vidas”, publicado no dia 22 de junho de 2002,
mostra a necessidade do uso terapêutico das células-tronco, recorrendo a exemplos em que
poderiam ser aplicadas.
Milhares de pessoas morrem todos os anos ou ficam seriamente
incapacitadas por causa de doenças degenerativas. Substituir o tecido que
está se degenerando ou um órgão não-funcional é um sonho antigo da
medicina, que se realizou, de forma ainda limitada, no transplante de órgãos.
Pesquisas recentes têm mostrado que esse sonho pode estar mais próximo do
que nunca. A esperança é que, a partir de células-tronco, ou seja, células
ainda indiferenciadas, seja possível fabricar qualquer tecido e, com isso,
salvar milhões de vida.
Salvar vidas é sempre o principal argumento na defesa da clonagem terapêutica e no
uso de embriões para obtenção de células-tronco embrionárias. No entanto, como a
pesquisadora mesmo explica, ainda não foi possível isolar tais células de modo a alcançar os
resultados imaginados. Ela explica como seesse processo e mostra que há três maneiras de
se obter células-tronco, além da clonagem terapêutica. Embora admita que as três fontes têm
“vantagens, desvantagens e incertezas”, no texto ela deixa livre de desvantagens as células
embrionárias.
Crianças e adultos: têm células-tronco no sangue, na medula e em vários
tecidos. As vantagens são a possibilidade de usar células do próprio doador e
evitar problemas de rejeição.Mas não sabemos se elas existem em
quantidade suficiente ou se têm a capacidade de se diferenciar em todos os
tecidos ou em alguns. O maior empecilho é que as células do próprio
doador não serviriam para portadores de doenças genéticas.
Cordão umbilical: ele é rico em células-tronco e é uma fonte excelente para
curar leucemias e doenças hematológicas. Mas não sabemos ainda se as
células de cordão são totipotentes.
Células embrionárias: sabemos que elas são totipotentes. Os milhares de
embriões que são descartados todos os anos em clínicas de fertilização
poderiam ser uma fonte fantástica para a obtenção de qualquer tecido.
Em seguida, a pesquisadora explica que a clonagem terapêutica também é uma
maneira de se obter células-tronco, mas apresenta também desvantagens.
A transferência do núcleo de uma célula de pele, por exemplo, para um
óvulo sem núcleo pode transformar essa célula já diferenciada em uma
célula totipotente. A partir daí seria possível fabricar qualquer tecido. Essa
técnica tem a vantagem de evitar a rejeição se o doador for a própria pessoa -
por exemplo, alguém que precise reconstituir a medula porque se tornou
paraplégico após um acidente. Entretanto ela não serviria para portadores de
91
doenças genéticas, como um afetado por distrofia muscular progressiva que
necessita substituir seu músculo esquelético.
Levando o leitor a refletir sobre as situações de uso das células-tronco, o artigo cita
exemplos e usa dados para demonstrar a necessidade da permissão das pesquisas.
Vamos imaginar uma pessoa que tem uma doença degenerativa dos
músculos. É o caso, por exemplo das distrofias musculares progressivas, que
afetam 80 mil brasileiros, crianças e adultos, e que, nas formas mais graves,
podem levar à morte ainda na segunda década de vida. Como substituir o
músculo doente por um saudável? É esta justamente a grande esperança. A
expectativa é que, a partir de células-tronco, seja possível "fabricar" um
novo tecido muscular.
É importante lembrar que as doenças genéticas afetam 3% das crianças que
nascem, ou seja, mais de 5 milhões de brasileiros.
No dia 13 de fevereiro de 2004, Mayana Zatz publica o artigo “Esperança renovada”,
comemorando os resultados divulgados pelos pesquisadores coreanos de novas maneiras de
obter células-tronco pluripotentes com a técnica de clonagem terapêutica. A empolgação de
Mayana é demonstrada logo no final do primeiro parágrafo, quando ela reafirma a grande
esperança de cura que tais células representam.
Trata-se de uma nova esperança de obtenção de células-tronco para fins
terapêuticos, e poderá no futuro representar a esperança de cura para
milhares de afetados por doenças neurodegenerativas, muitas delas letais
antes da segunda década de vida
Mayana Zatz exalta a oportuna divulgação da pesquisa, no momento em que o Brasil
discute a questão e quando os estudos com embriões foram vetados pela Câmara, na primeira
votação do projeto. Assim, ela tenta expor argumentos que possam mostrar as vantagens e a
necessidade da liberação das pesquisas, enquanto o projeto tramita no Senado.
Antes da votação do texto definitivo no Senado Federal, é fundamental que
os parlamentares entendam que a terapia celular com células-tronco,
incluindo as embrionárias, podem representar a esperança de tratamento para
milhões de brasileiros afetados por doenças genéticas (que atingem mais de
5 milhões de pessoas, a maioria crianças e jovens), que sofrem de doenças
comuns como o diabetes e a doença de Parkinson, ou que estão
incapacitados porque sofreram acidentes.
O recurso a dados envolvendo doentes para justificar a necessidade da terapia celular é
freqüente nos artigos que pedem a aprovação das pesquisas. A tentativa de esclarecer
detalhadamente que a clonagem terapêutica não tem nada de semelhante à reprodutiva
também é recorrente. Didaticamente, Mayana Zatz mostra o que acontece durante o processo.
A clonagem terapêutica ou transferência de núcleo nada mais é do que um
aprimoramento das técnicas hoje existentes para culturas de tecidos, que são
realizadas décadas. A vantagem é que, ao transferir o núcleo de uma
célula de uma pessoa para um óvulo sem núcleo, esse novo óvulo, ao se
dividir, gera células potencialmente capazes de produzir qualquer tecido em
laboratório. Isso abre perspectivas fantásticas para futuros tratamentos. Seria
92
o caso de reconstituir a medula de alguém que se tornou paraplégico após
um acidente, ou de substituir o tecido cardíaco em uma pessoa que sofreu
um infarto.
Mayana Zatz aponta as limitações da terapia, explica as diversas possibilidades de
obtenção de células-tronco e conduz as explicações técnicas para que culminem na
justificativa do uso dos embriões, pois as células-tronco embrionárias são as mais
promissoras.
Entretanto, no caso de portadores de doenças genéticas, não seria possível
usar as células da própria pessoa (porque todas têm o mesmo defeito
genético).
Existem células-tronco em vários tecidos (como medula óssea, sangue e
fígado) de crianças e adultos. Entretanto, a quantidade é pequena, e não
sabemos ainda em que tecidos elas são capazes de se diferenciar. A maior
limitação dessa técnica, o autotransplante, que tem mostrado resultados
promissores em pessoas com insuficiência cardíaca, é que ela também não
serviria para portadores de doenças genéticas.
O sangue do cordão umbilical e da placenta é rico em células-tronco, mas
não sabemos ainda qual é seu potencial de diferenciação. Se as pesquisas
mostrarem que células-tronco de cordão umbilical serão capazes de
regenerar tecidos ou órgãos, serão sem dúvida a fonte mais importante.
Teríamos de resolver então o problema de compatibilidade entre as células-
tronco do cordão doador e o receptor. Para isso será necessário criar, com a
maior urgência, bancos de cordão públicos. Quanto maior o número de
cordões em um banco, maior a chance de achar um compatível.
Se as células-tronco de cordão não derem os resultados esperados, a
alternativa será o uso de células-tronco embrionárias. Elas podem ser obtidas
pela técnica de transferência de núcleo, como na pesquisa sul-coreana, ou a
partir de embriões que são descartados em clínicas de fertilização.
O médico Drauzio Varella, com seu hábito de popularizar o debate sobre temas de
saúde, recorre a questionamentos que visam instigar ao leitor, para colocá-los a refletir e
apoiar as pesquisas com embriões. No artigo “Clonagem humana”, publicado em de maio
de 2004, ele classifica como crime qualquer apoio à clonagem humana e coloca na mesma
situação o impedimento em lei ao uso de células-tronco embrionárias no tratamento de
doenças graves. Explica tecnicamente o processo de formação do embrião e também da
formação das células-tronco, aponta como “uma das descobertas mais fantásticas do século
20” a que resultou na clonagem de Dolly e lança o apelo.
Imagine, leitora, que seu filho fique paraplégico ou seja afetado por uma
doença genética incapacitante, como a distrofia muscular. A clonagem
permitirá retirar o DNA de uma célula da pele do menino (ou sua, se ele
tiver um doença genética), introduzi-lo num óvulo "vazio" e produzir no
laboratório células-tronco, que poderão ser enxertadas na medula espinal,
para repor os neurônios perdidos, ou na musculatura, para recompor
músculos enfraquecidos pela distrofia.
93
A clonagem terapêutica oferece a possibilidade de repor tecidos perdidos por
acidente ou pelo passar dos anos e de tratar doenças neuromusculares,
infartos, derrames cerebrais, Alzheimer e outras demências, cegueira, câncer
e muitas outras.
Até que essa tecnologia encontre seu lugar na clínica, problemas técnicos
difíceis de resolver, mas o Brasil é um dos poucos países que têm o
privilégio de contar com pesquisadores preparados para enfrentar tal desafio,
desde que nossos legisladores não cometam o crime que estão prestes a
cometer.
O ex-ministro da Saúde, Humberto Costa, defende o uso das células-tronco recorrendo
a dados do Sistema Único de Saúde, relacionado a pacientes e também a custos de tratamento.
No artigo “Quem tem medo das células-tronco embrionárias”, tenta responder a duas
perguntas que ele mesmo propõe: a quem interessa uma política pública de pesquisas com
células-tronco no Brasil e no mundo?e “a quem não interessa a realização de pesquisas com
célula-tronco?”. À primeira questão, responde que há “muita gente” interessada e apresenta os
dados do SUS.
Apenas em nosso país, quatro milhões de pessoas com cardiopatias que,
invariavelmente, evoluem para algum tipo de insuficiência cardíaca. É gente
quase sempre condenada a aumentar a fila de transplantes de coração no
Sistema Único de Saúde (SUS), um procedimento caríssimo bancado pelo
bolso do contribuinte. É gente que, mesmo sem transplante, terá que passar o
resto da vida sendo medicada para, no máximo, manter-se em um quadro de
saúde estabilizado, haja vista não haver medicamento capaz de reverter essa
situação. Há, ainda, um universo de outras possibilidades terapêuticas para o
uso de células-tronco que devem ser exploradas pelas pesquisas, como o
tratamento de doenças genéticas e de doenças auto-imunes como, por
exemplo, o lúpus, além da recuperação de pacientes que apresentam
deficiências motoras provocadas por lesões na medula e vítimas de doenças
neurodegenerativas, como o mal de Alzheimer e escleroses.
À segunda questão, Humberto Costa responde com a crítica à ação de
inconstitucionalidade impetrada pelo procurador Cláudio Fonteles. Ao final do texto, para
defender o uso dos embriões na pesquisa, ele afirma que tais células são mais vantajosas que
as adultas, e lembra que essas já vêm sendo estudadas, inclusive no Brasil.
A questão é que as células-tronco adultas, extraídas de tecidos maduros, têm
uma eficácia relativa e capacidade de diferenciação restrita. Aquelas
retiradas de embriões têm maior versatilidade e, por conseqüência, maior
poder terapêutico. Os cientistas acreditam que nelas está a chave para a cura
de doenças graves e fatais como o câncer e o mal de Parkinson.
Os articulistas não autorizados tecnicamente a falar sobre as vantagens das células-
tronco não colocam essas características como principal informação dos artigos, mas recorrem
a afirmações que deixam claro ao leitor que a aprovação das pesquisas é algo importante
porque representa grandes chances de curas para a população doente, o que ajuda a amparar o
94
enquadramento que dão à questão ética, de que o embrião não é vida e aqueles congelados são
mais úteis nas pesquisas do que descartados.
Contardo Calligaris, no início do texto “Ataque dos clones”, publicado no dia 19 de
fevereiro de 2004, informa o resultado alcançado pelos pesquisadores coreanos, o mesmo que
motivou o artigo “Esperança renovada”, de Mayana Zatz, do qual falamos acima. Ao informar
o feito, Calligaris aproveita para mostrar ao leitor como aquilo é vantajoso.
Eles convenceram lulas quaisquer de um organismo humano a comportar-
se como células-tronco originárias, ou seja, como células não diferenciadas,
prontas a transformar-se em todos os tecidos dos quais o organismo possa
precisar. As promessas terapêuticas da experiência são imensas. Um
infartado, por exemplo, poderia implantar em seu coração células dispostas a
regenerar o órgão ferido.
O mesmo argumento da técnica é usado também por quem estava contra a aprovação
da lei. Chamando atenção para os problemas que poderiam se originar do uso das células-
tronco embrionárias, não relacionados a questões morais e éticas, a oposição empenhou-se
em apresentar como mais vantajoso o uso das células-tronco adultas, pesquisas mais
avançadas, que representariam grandes possibilidades no tratamento de diversas doenças e
que não sacrificam vidas humanas.
Os artigos publicados contra a clonagem terapêutica e em defesa da vida embrionária,
na Folha de São Paulo, foram escritos por teólogos e pensadores da área de ciências sociais, e
nenhum dos que localizamos foram escritos por profissionais da área médica. Assim, os
próprios articulistas, às vezes, recorrem a cientistas que dêem amparo ao seu ponto de vista.
Dom Estevão Bettencourt, monge católico da Ordem de São Bento, no artigo “Os fins
não justificam os meios”, publicado em 22 de junho de 2002, recorre ao médico francês
Jérôme Jean Louis Marie Lejeune, falecido em 1994, a quem se deve a descoberta da
anomalia cromossômica que dá origem à Síndrome de Down.
[...] a partir das pesquisas do dr. Jerome Lejeune (1926-94), está
comprovado que o concepto é autêntico ser humano desde a fecundação do
óvulo pelo espermatozóide; não se pode falar de pré-embrião até o 14º dia
nem se admite o prazo de 40 ou 80 dias para que haja a animação humana.
São palavras do dr. Lejeune: “A vida começa no momento em que toda a
informação necessária e suficiente se encontra reunida para definir o novo
ser. Portanto ela começa exatamente no momento em que toda a informação
trazida pelo espermatozóide é reunida à informação trazida pelo óvulo. Está
então realizado um novo ser. Aquele que mais tarde chamarão Pedro, Paulo
ou Madalena (“Pensées du Prof. J. Lejeune”, Paris)”.
Francesco Scavolini, defensor do embrião como vida humana, no artigo em que elogia
o veto da Câmara a pesquisas com embriões, publicado no dia 26 de abril de 2004, afirma a
95
necessidade de pesquisas que respeitem a ética e a dignidade humana e defende o uso
promissor de células-tronco adultas, recorrendo a exemplo que o justifique.
Nesse sentido, graças a Deus, a medicina já comprovou a eficácia das
células-tronco adultas (não embrionárias), por exemplo, no caso da
reconstrução dos tecidos de corações danificados por infarto (há quase três
anos, na Alemanha, o dr. Bodo-Eckehard Strauer, chefe do setor de
cardiologia da Universidade Heinrich Heine, de Düsseldorf, vem restaurando
perfeitamente, sem necessidade de operação, corações praticamente
destruídos pelo infarto, injetando células-tronco tiradas da medula óssea do
próprio paciente).
Há que ter em conta ainda que os cientistas da Universidade Duke, nos EUA
(Carolina do Norte), depois de três anos de pesquisas chefiadas pelo
professor Farshild Guilak, descobriram células-tronco adultas na gordura
humana (tecidos adiposos). Tais células, que podem se transformar em
células ósseas, em células cartilaginosas, em células nervosas e também
adiposas, abrem novos caminhos para a medicina.
Se a tudo isso acrescentarmos o fato de que a pesquisa científica está
mostrando a viabilidade do uso das pluripotentes células-tronco retiradas do
cordão umbilical após o parto, eis que pode e deve ser evitada tanto a
manipulação quanto a clonagem, pois a ação de criar ou manipular embriões
para suprimi-los seria um crime contra a humanidade.
Aliás, falando em manipulação da vida, é bom lembrar que a ovelha Dolly, o
primeiro clone animal da história, morreu um ano, revelando
surpreendentemente ter uma idade biológica bem maior do que a idade
temporal, ou seja, ela nasceu já velha e, por isso, teve precocemente doenças
típicas da velhice e conseqüente morte. Assim, podemos perguntar: por que
os cientistas que clonaram Dolly não previram isso?
O questionamento final e a informação da morte precoce de Dolly também são
freqüentes para mostrar os riscos da clonagem e, então, apontar para a rejeição ao método. No
artigo “Em defesa da vida humana”, em 29 de agosto de 2004, Dom Geraldo Majella Agnelo,
então presidente da CNBB, admite que a descoberta das células-tronco é promissora. No
entanto, defensor do embrião como vida humana e que não pode, por conseguinte, ser usado
em tratamentos, Dom Geraldo destaca que outras fontes para obtenção de células-tronco e
reclama a necessidade de pesquisas que respeitem o ser humano.
As células-tronco existem não somente no embrião, mas também na
placenta, no cordão umbilical e em algumas outras partes de um organismo
humano adulto, de onde podem ser retiradas sem comprometer a sua
existência. É verdade que as células dos embriões são mais potentes,
oferecendo condições mais eficazes de ação terapêutica. Isso não pode
constituir pretexto para lançar mão dos embriões, antes, significa que a
pesquisa deve avançar até encontrar formas de terapia que correspondam à
dignidade humana e ao valor inviolável da existência.
Em artigo posterior, no dia 7 de novembro de 2004, depois do projeto de lei ser
aprovado pelo Senado, Dom Geraldo Majella ataca novamente as pesquisas com embriões,
mas abre seu texto afirmando-se favorável a avanços científicos, desde que não contrariem os
96
princípios de inviolabilidade da vida humana: “Apoiamos as pesquisas científicas em
benefício da humanidade”. Durante o texto, demonstra que é possível obter células-tronco
viáveis para tratamento de outras maneiras.
Descobertas recentes nos mostram que as células-tronco se colocam, por
assim dizer, à disposição dos pesquisadores para que eles possam direcioná-
las na busca de curas de doenças, mormente de cunho degenerativo. Fica
cada vez mais comprovado que a mesma sabedoria do Criador que colocou
essas células na origem de cada nova vida, ou seja, na fase embrionária dos
seres humanos, faz com que haja nas outras etapas da vida outras tantas
células com potencial igualmente terapêutico.
Depois, aponta os riscos do uso das células-tronco embrionárias, o que serve de apoio
para sua defesa de pesquisas com células-tronco adultas.
Acontece que o uso de células embrionárias esbarra em vários impasses, uns
técnicos e outros éticos. Entre os impasses técnicos, hoje se sabe que as
células embrionárias são como que "selvagens" e, por isso mesmo, seu uso
pode apresentar sérios riscos, como vem assinalado no referido documento
da Santa Sé, com a devida documentação. Ademais, mesmo de um ponto de
vista estritamente técnico, é preciso reconhecer avanços em termos de
regeneração de órgãos que apresentam deficiências, mas praticamente nada
se conseguiu ainda em termos do que indevidamente se denomina de
"clonagem terapêutica".
Assim como Dom Geraldo Majella, Dom Luciano Mendes de Almeida, então
arcebispo de Mariana/MG, ressalta, no artigo “Pesquisa científica e células-tronco”, publicado
no dia 5 de março, a importância promissora das células-tronco adultas, e coloca-as como
dom divino.
Temos de saudar as conquistas recentes da ciência, em especial as da
genética, que descobre cada vez melhor a maravilha da vida humana, dom
do Criador. É nessa perspectiva que se insere a descoberta do uso das
células-tronco, que podem, pelo seu múltiplo potencial, regenerar tecidos e
órgãos. Mas temos de distinguir as células-tronco embrionárias, que surgem
com os primeiros desdobramentos logo após a fecundação do óvulo, das
células-tronco maduras, que encontramos no organismo desenvolvido e, em
especial, na medula óssea e no cordão umbilical. Quanto ao uso das células-
tronco maduras, os resultados são promissores e eticamente válidos.
Dom Luciano contesta, eticamente, o uso das células-tronco embrionárias e encerra o
artigo aclamando o uso das células-tronco adultas.
Por outro lado, alegremo-nos porque o uso das células-tronco maduras abre
amplo horizonte para a pesquisa científica e viabiliza a tão desejada cura de
muitas enfermidades. Todos os esforços devem, em nosso país, ser
empregados para que os cientistas, respeitando a vida e os princípios éticos,
façam novas conquistas para o bem da humanidade.
Dom Amaury Castanho, bispo de Jundiaí/SP, em artigo no dia 6 de julho de 2005,
elogia a Adin proposta pelo procurador Cláudio Fontelles. O texto “Direito à vida, fundo do
97
problema” defende o direito à vida do embrião e, de maneira superficial e resumida, aponta
que há problemas técnicos no uso das células-tronco embrionárias.
[...] há o fato de que as pesquisas sem células-tronco adultas e cordões
umbilicais, não-embrionárias, estão muito avançadas, resolvendo graves
problemas de patologia humana. Há, também, contra as pesquisas
embrionárias, a real possibilidade de resultados gravemente negativos para
as finalidades pretendidas.
No artigo “Verdade sobre células-tronco embrionárias”, publicado no dia 8 de junho
de 2005, Ives Gandra da Silva Martins, advogado tributarista, professor e presidente da
Academia Paulista de Letras, e Lilian Piñero Eça, biomédica e doutora em biologia molecular
pela Unifesp, para justificar o não uso de embriões para obtenção de células-tronco, recorrem
a dez argumentos de ordem técnica, atribuídos a fontes legitimadas para tais afirmações.
1) No caso da utilização das lulas de embriões congelados mais de três
anos, trata-se de um transplante heterólogo, com grande possibilidade de
rejeição, visto que, à medida que essas células se diferenciam para substituir
as lesadas num tecido degenerado, elas começam a expressar as proteínas
responsáveis pela rejeição (Jonathan Knight).
2) Allegrucci e colegas dizem que células-tronco de embriões congelados
estão longe de ser a "perfeita fonte de células para terapias", pois originam
teratomas (tumores de caráter embrionário).
3) Além disso, ocorrem metilações no DNA dos embriões congelados, que
não são passíveis de identificação, aumentando o risco de silenciarem genes.
Portanto, não servem para a pesquisa.
4) Há total descontrole das células embrionárias, surgindo diferenciações em
tecidos distintos nas placas de cultura, com o que se poderia estar renovando
experiências atribuídas a Frankstein.
5) Cada blastocisto fornece entre 100 e 154 células-tronco embrionárias. É
preciso saber quantos embriões humanos frescos seriam sacrificados. Por
exemplo, na terapia com autotransplante de células-tronco adultas
provenientes da medula óssea, é necessário um total de 40 milhões de
células-tronco, vale dizer, haveria a necessidade de 300 mil a 400 mil
embriões, pois não se pode expandir o número dessas células em placas, por
motivo de contaminação.
6) Andrews e Thomson, em 2003, referem que as células-tronco humanas
em cultura apresentam anormalidades cromossômicas à medida que se
diferenciam, com risco de se malignizarem.
7) Quanto à clonagem terapêutica, não se conseguiu até agora clonar um
primata. Ao tentar, obtém-se meia dúzia de células aneuplóides (células
cujos núcleos contêm um número diferente de cromossomos).
8) Feeder layers são camadas de tecidos retiradas de fetos vivos em qualquer
estágio, vendidas em dólares nos Estados Unidos, as quais estão sendo
utilizadas para garantir a qualidade do cultivo das células-tronco
embrionárias.
9) Joel R. Chamberlain e colegas mostraram em estudo que doenças
genéticas que podem ser tratadas, mas com células-tronco adultas,
modificadas geneticamente, como na Osteogenesis Imperfecta, a qual
98
origina desordens ósseas no esqueleto. Os resultados demonstrados foram
um sucesso.
10) "Célula adulta age como embrionária", de acordo com o cientista Rudolf
Jaenisch. O segredo está guardado em uma "chave" molecular: o gene Oct-4.
A molécula trabalha no estágio inicial do embrião, "segurando" as células
para não se diferenciarem antes da hora. No tempo adequado, o gene se
desliga e as células formam, então, os tecidos certos. Com o controle do
gene, é possível fazer com que certas células-tronco adultas sejam mantidas
nesse estágio sem diferenciação, o que pode expandir seu campo de atuação
na pesquisa de novos tratamentos
Depois dessa avalanche de objeções, Ives Gandra e Lilian Eça apresentam as
sugestões para que, além do impedimento legal ao uso dos embriões, sejam incentivadas as
pesquisas com células-tronco adultas.
Vemos alternativas para estudar a cura das doenças. Cresce o número de
trabalhos nos quais se verifica, com sucesso, a recuperação de tecidos ou
órgãos lesados, utilizando células-tronco adultas. Um exemplo é o trabalho
de Nadia Rosenthal, publicado no "Proceedings of the National Academy of
Sciences", sobre o sucesso em usá-las para recuperar tecidos musculares.
Devemos lembrar, também, do sucesso do pioneirismo brasileiro nas
aplicações de células-tronco adultas em seres humanos, no tratamento das
cardiopatias, doenças auto-imunes, lesão de medula espinhal, lesão de
nervos periféricos, entre outras.
Além dos dois enquadramentos do discurso técnico que vimos acima, chama ainda
atenção no jornal o apelo apresentado em alguns momentos envolvendo celebridades, pessoas
públicas, pelas quais o público sustenta simpatia, que aumenta quando suas histórias de
sofrimento são expostas para defender as pesquisas com células-tronco embrionárias.
A pesquisadora Lygia da Veiga Pereira, em artigo publicado no dia 6 de outubro de
2002, cita o ator Christopher Reeve, que ficou tetraplégico em 1995, depois de cair de um
cavalo e quebrar duas vértebras. Ele morreu aos 52 anos, em 11 de outubro de 2004, devido a
uma parada cardíaca, mas permanece imortalizado como o Super-Homem do cinema. Depois
do acidente, se tornou um grande e popular defensor da terapia com células-tronco, fato que é
citado por Lygia Pereira no artigo “O super-homem e a clonagem”.
No entanto o ator Christopher Reeve, imortalizado no papel de super-
homem, é um grande ativista da defesa da clonagem humana -da clonagem
terapêutica humana (esta utiliza os mesmos mecanismos da clonagem
reprodutiva para gerar, em vez de uma pessoa completa, somente tecidos
dessa pessoa que podem ser utilizados para transplantes).
Depois de citar o ator, ela explica tecnicamente o processo da clonagem. A referência
a Reeve serve para introduzir o tema.
A clonagem terapêutica começa da mesma forma que uma clonagem
reprodutiva, colocando-se uma célula qualquer de um indivíduo dentro de
um óvulo vazio. Esse embrião clonado se desenvolve por cinco dias no
laboratório, até formar um conglomerado de aproximadamente cem células.
99
Nesse momento, em vez de ser transferido para o útero de uma mulher, o
que configuraria a clonagem reprodutiva, o embrião clonado é dissociado e
suas células, chamadas células-tronco embrionárias, multiplicadas no
laboratório.
Essas células têm a capacidade de se transformar nos mais diversos tecidos:
sangue, músculo cardíaco, tecido hepático, células secretoras de insulina e
até neurônios. E, sendo geneticamente idênticos à pessoa da qual foi tirada a
célula inicial, quando transplantados não correm o risco da rejeição.
Ou seja, com a clonagem terapêutica podemos gerar preciosos tecidos para
transplante que tratarão as mais diversas doenças humanas, de leucemia,
infarto ou cirrose hepática até diabetes e a doença de Alzheimer.
E numa referência à personagem interpretado pelo ator, que podia ser vencida por
um inimigo, a pesquisadora pede a liberação das pesquisas.
Não deixemos que o fundamentalismo e a ignorância se tornem a
"criptonita" do século 21, impedindo o tratamento do super-homem e de
centenas de milhões de pessoas afetadas pelas mais diferentes doenças. O
Brasil precisa se posicionar quanto a essa questão: vamos investir nas
pesquisas com todos os tipos de células-tronco. assim poderemos viver a
grande revolução da medicina regenerativa.
Contrariamente ao que fez a pesquisadora, no artigo “Sobre células e celebridades”,
publicado em 20 de junho de 2004, o editor de Ciência da Folha, Marcelo Leite, tomando
como gancho a então recente morte do ex-presidente americano Ronald Reagan, vítima de
mal de Alzheimer, alerta sobre a confusão envolvendo a doença, usada como lobby auxiliar
nas tentativas de aprovação do uso de terapia com células-tronco. Mesmo sendo defensor das
pesquisas com embriões, ele expõe uma opinião contrária a esse tipo de estratégia.
Para efeito de propaganda em favor da pesquisa com células-tronco
embrionárias, nada melhor do que aproveitar essa associação natural entre os
dois flagelos e alistá-los na batalha de convencimento dos senhores idosos,
ou quase, que detêm o poder de decidir a latitude permissível de investigação
científica em cada país. Mas fique o leitor avisado de que Reagan tem pouco
a ver com isso.
Celebridade por celebridade, os defensores do estudo de células-tronco
embrionárias ainda terão de contentar-se com o combativo ator Christopher
Reeve, que encarnou Super-Homem e hoje está confinado a uma cadeira de
rodas.
Marcelo Leite explica porque as células-tronco não poderão ser usadas para curar
pacientes vítimas de mal de Alzheimer.
É curiosa a renitência dessa associação entre células-tronco e mal de
Alzheimer no debate público sobre o emprego de embriões humanos em
experimentos. Sempre que se mencionam doenças degenerativas que
poderiam um dia ser tratadas com essas células, vem à baila o nome do
neuropatologista alemão Alois Alzheimer (1864-1915), que descreveu a
doença em 1906. É um equívoco.
A forma de doença que leva seu nome se caracteriza pela morte de neurônios
e pela formação de placas no cérebro todo. É pouco provável que terapias
100
celulares venham a resolvê-la, porque seria preciso encontrar uma maneira
de disseminar as células reparadoras pelo órgão inteiro, o que está longe de
ser trivial.
A popularidade do mal de Alzheimer em associação com células-tronco
provavelmente decorre de uma contaminação semântica por outra doença
degenerativa cerebral dotada de nome próprio, o mal de Parkinson, descrita
em 1817 pelo médico britânico James Parkinson (1755-1824). Nesse caso,
sim, as células-tronco têm potencial, pois se trata de uma disfunção
totalmente localizada: os tremores e a rigidez muscular característicos
resultam da destruição de neurônios especializados, produtores do
neurotransmissor dopamina, numa área específica do tronco cerebral
conhecida como “substantia nigra”.
Como vemos, o argumento de ordem técnica, assim como o ético, é utilizado por todos
os lados do debate, embora cada uma adote o enquadramento que lhe é mais conveniente, sem
que haja maneiras de afirmar que um e não outro seja verdadeiro. O enquadramento adotado
contribui de maneira fundamental para a construção da realidade. No debate em foco neste
trabalho, a realidade que foi construída é aquela que atribui às células-tronco embrionárias
fantásticas propriedades curativas que justificam o uso dos embriões congelados em clínicas
de fertilização in vitro. Essa imagem, inserida no senso comum, foi apoiada não com o
privilégio da publicação de artigos em defesa do tema com amparo técnico, mas teve também
força nos editoriais da Folha, que assumiu abertamente a defesa das pesquisas e,
conseqüentemente, agiu de modo a pressionar o Congresso na aprovação de uma Lei da
Biossegurança que contemplasse tal interesse.
O debate desequilibrado em favor do uso dos embriões não está condicionado à
quantidade de artigos. O que promoveu de maneira essencial o desequilíbrio foi o fato de que
no jornal a defesa dos embriões ganhou enfoque religioso, que nenhum artigo contrário às
pesquisas foi assinado por cientistas, médicos, biólogos ou algum outro campo de atuação
profissional que tenha legitimidade técnica diante do público leitor. Levando em consideração
que os artigos em defesa do embrião como vida humana desde a concepção se amparam em
fontes capacitadas tecnicamente para muni-los de argumentos, não é por falta de gente que
defenda esse ponto de vista com amparo e legitimidade técnica que esses profissionais
deixaram de ser considerados na escolha dos articulistas.
É de fundamental impacto na apreensão do público uma realidade construída por
atores que assumem posições respaldados por sua capacidade técnica reconhecida
socialmente. Opostamente, têm menos inserção e apelo junto ao público as opiniões
expressadas, mesmo de maneira coerente, por pessoas que não dispõem de imagem
reconhecidamente técnica para fazer as afirmações que apresentam e, para obter um alcance
mais legítimo, precisam recorrer a citações.
101
O respeito às autoridades técnicas acontece, especialmente, como foi o caso das
células-tronco, quando a sociedade não está habituada a uma temática, ainda não formou
opinião a respeito devido à pouca circulação de informações e ao debate não amplo e
democrático. O ineditismo do tema e o enquadramento divulgado tornam favorável a adoção
de determinado ponto de vista, sobretudo quando uma estrutura de valores está em
transformação (KUNCZIK, 2001).
102
6. O enquadramento das notícias
As pesquisas com células-tronco extraídas de embriões humanos ganharam a agenda
pública e tornaram-se tema de diversos textos noticiosos em toda a imprensa. A pauta foi
amplamente abordada especialmente na época que tramitava no Congresso o Projeto de Lei nº
2401/2003, que tratava das questões de biossegurança. O veto dos deputados na primeira
votação provocou o descontentamento de parte da sociedade científica, e o debate foi acirrado
a partir disso até a segunda votação, um ano depois. Nesse espaço de tempo, o Senado
reinseriu no projeto o artigo que permitia as pesquisas, passando aos deputados novamente a
responsabilidade da decisão. Depois de aprovado, com a autorização a pesquisas com os
embriões já congelados e que tivessem três anos de armazenamento, o PL foi sancionado pelo
presidente Lula e resultou na lei 11.105, de 24 de março de 2005.
Na Folha de São Paulo, jornal que analisamos neste trabalho, a freqüência do tema no
caderno de notícias do jornal era coerente com a abordagem também constante nos seus
editoriais. Nos capítulos 4 e 5, apresentamos a abordagem dos agentes diretamente envolvidos
no debate, emitindo suas opiniões em artigos assinados, atuando como porta-vozes com certa
autonomia. Neste capítulo, vamos deter nossa análise ao noticiário, seção do jornal que se
organiza a partir da perspectiva da objetividade. Os agentes defensores de uma ou outra
posição disputam espaço numa arena pública cujo juiz – os jornalistas – tem por regra
promover o equilíbrio, tendo como instrumentos para isso a neutralidade, a imparcialidade e a
isenção.
Dentro da amostra recolhida, que obteve quase 1.400 registros, publicados entre
fevereiro de 1997 e julho de 2005, elegemos para esta análise os textos compreendidos entre a
primeira votação na Câmara, em fevereiro de 2004, até julho de 2005 esses quatro meses
seguintes foram incluídos por se tratar do período em que o jornal realizou as repercussões
sobre o tema, quando os agentes ainda tomavam atitudes que se desdobravam da decisão dos
parlamentares, agendando com alguma constância o tema. No período observado,
descartamos as notas e o material que tinha como pauta as legislações adotadas em outros
países, bem como os textos que apresentavam apenas fontes estrangeiras. Priorizamos os
temas brasileiros, mantendo apenas os textos que faziam menção a outros países quando se
apresentava repercussão com fontes brasileiras. Ao final, chegamos a 57 textos, incluindo
sub-retrancas, e uma seção de “frases”.
Entre os critérios de agendamento apresentados por McCombs e Gilbert (1986),
podemos destacar que o assunto analisado atende a alguns deles: freqüência no noticiário;
103
polêmica; alto grau de conflito entre os agentes envolvidos; e a repercussão que o tema pode
provocar na sociedade. Especialmente na questão das pesquisas com células-tronco
embrionárias, a novidade que o tema envolve, as possibilidades que ele apresenta para as
pessoas, a polêmica acerca da questão e a motivação do assunto intenção do governo,
principal agente político, que apresentou o projeto de lei, e das empresas de biotecnologia,
agentes econômicos de grande importância nesse cenário representam quesitos essenciais
para o nível de agendamento que o tema alcançou.
Entretanto, as notícias não ganham importância e obtêm repercussão apenas pelo grau
de agendamento, mas também pela maneira como o conteúdo é expresso o enquadramento
adotado. Com a escolha dos temas e do viés que a eles, o jornal organiza a percepção do
público sobre um aspecto da realidade. Por meio da interação de jornalistas e fontes, as
notícias dão forma e conteúdo aos fatos anunciados pelos agentes, possibilitando ao leigo
perceber um mundo que está fora de sua observação imediata por não fazer parte da sua
realidade (Fishman: 1990).
6.1. As fontes
A escolha das fontes é parte essencial do trabalho do jornalista. São elas que falam nos
textos noticiosos, por intermédio do repórter o responsável por selecionar que trechos dos
depoimentos integrarão o conteúdo da reportagem. Essa relação entre jornalista e fonte é peça
fundamental na composição das notícias. Por isso, visando garantir a segurança da informação
que vai divulgar, os repórteres recorrem a fontes nas quais deposita alguma confiança, seja
por causa da relação de afinidade que têm com ela, seja pelo não registro de problemas
anteriores ou porque a fonte goza de legitimidade técnica e social para que seu depoimento
seja tomado como verdadeiro. Fontes vinculadas a instituições dotadas de reconhecimento
público e também às esferas de governo responsáveis por empreender ações nas áreas
abordadas na notícia integram o grupo de fontes oficiais, escolhidas pelos jornalistas para
discutir os temas.
Assuntos com origem na ciência, sobretudo médica, apresentam grande influência na
vida da população. Afinal, alertam sobre doenças ou apresentam avanços em tratamentos, por
exemplo, despertando grande interesse em toda a sociedade. A saúde é tema que afeta todos
os segmentos sociais, e por isso é área prioritária das ações de governo. Desse modo, o
discurso científico encontra amplo espaço no jornal. As informações fornecidas pelos
cientistas desfrutam de status de verdade, por serem altamente especializadas e não serem
104
facilmente contestadas. Assim, são fontes que ocupam posição privilegiada na lista de
contatos dos jornalistas.
Para elaborar as notícias referentes às pesquisas com células-tronco, a Folha de São
Paulo ouviu, sobretudo, pesquisadores envolvidos em trabalhos na área. No período
selecionado para nossa análise, os textos sobre o tema estiveram relacionados à tramitação do
Projeto de Lei de Biossegurança e também a experimentos em andamento, no Brasil e em
outros países nesse último caso, as fontes brasileiras, cientistas, eram ouvidas como
repercussão, para opinar sobre a notícia principal. Nas notícias sobre o andamento do PL,
foram consultados também deputados e senadores, um padre, alguns pacientes ou familiares, e
um documento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) representam fontes
oficiais no fornecimento de informações amparadas por casos que ilustram as notícias.
As fontes mais citadas pelo jornal são as pesquisadoras Lygia da Veiga Pereira e
Mayana Zatz, ambas do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Lygia é
professora do Departamento de Biologia e do Centro de Estudos do Genoma Humano, com
doutorado em genética humana pelo Centro Médico Monte Sinai, de Nova York. Mayana
Zatz é professora de Genética Humana e Médica, coordenadora do Centro de Estudos do
Genoma Humano/USP, presidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscular e membro
da Academia Brasileira de Ciências. As duas são ouvidas como repercussão em notícias sobre
o tema, mas também são geradoras de notícias, fornecendo as informações que motivaram
alguns lides. A pesquisadora Lygia da Veiga Pereira é citada também em textos técnicos
divulgando os experimentos em que está envolvida. Mayana Zatz é citada, sobretudo, nos
textos referentes à tramitação da lei, porque fez parte da comissão encarregada de prestar
informações aos parlamentares e tendo lidado diretamente com a questão política.
Lygia da Veiga Pereira esteve em treze textos, sendo sete matérias principais, duas
sub-retrancas e quatro vezes ela repercutiu divulgação internacional. Mayana esteve citada
em dez textos: sete vezes na notícia principal, uma em sub-retranca e duas em repercussões de
notícias internacionais. As duas pesquisadoras defendem as pesquisas com células-tronco
embrionárias. Como argumento, explicam que essas células têm grande potencial de
regeneração, e seu estudos apresentam as perspectivas de, futuramente, poderem ser aplicadas
no tratamento de doenças degenerativas ou de deficiências motoras.
Essa informação, em diversos textos noticiosos do período analisado, não apresenta
vinculação clara com alguma fonte citada na reportagem, e é empregada também em textos
produzidos pela Redação (como aparece na assinatura), que não citam nenhuma fonte.
105
As duas pesquisadoras atuaram como fonte principal da Folha neste tema, sendo
procuradas a cada vez que o assunto era agendado. Mayana Zatz não foi referenciada nos
textos por experimentos realizados, mas por sua atuação junto aos parlamentares – ela liderou
a comissão responsável por esclarecer deputados e senadores sobre o tema –, repercutindo
fatos ligados à tramitação da lei ou, depois de aprovada, aos desdobramentos para a aplicação
dela. Já Lygia da Veiga Pereira foi citada principalmente em notícias que divulgavam
experimentos ou descobertas. Em alguns textos, ela foi a fonte principal da divulgação de um
trabalho – ela foi o próprio acontecimento, retratando o que o sociólogo Mark Fishman (1990)
expôs no livro Manufacturing news: os jornalistas tratam os relatos de suas fontes não como
versões da realidade, mas como sendo os próprios fatos.
Nas reportagens que divulgavam estudos internacionais, Lygia Pereira e Mayana Zatz
eram as referências da Folha para repercussão no Brasil. A necessidade de aproximar
geograficamente o fato relatado da audiência para atender mais um critério de
noticiabilidade leva a abordagens locais dos assuntos. Nesses casos, foram procuradas as
pesquisadoras Lygia Pereira, que repercutiu quatro temas internacionais, e Mayana Zatz, que
repercutiu dois, todos ligados a avanços científicos.
Além de Mayana Zatz, poucos outros pesquisadores foram ouvidos para debater o
passo a passo que envolveu o projeto de lei. Em geral, eram ouvidos para divulgar
experimentos ou para discutir especialmente a questão técnica do uso das células-tronco. Nas
repercussões da lei, identificamos nas matérias mais duas fontes da área científica ouvidas
para comentar a indefinição dos parlamentares. A bióloga Patrícia Pranke, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, repercutiu a notícia divulgada sob o título “Sob pressão,
Senado veta clone terapêutico” (16/09/2004), que divulgou a votação do relatório do senador
Ney Suassuna, favorável à clonagem para fins de pesquisa, pelas comissões de Assuntos
Sociais, de Assuntos Econômicos e de Constituição, Justiça e Cidadania. Pranke, na verdade,
é graduada em Farmácia, mestre em Ciências Médicas e doutora em Genética e Biologia
Molecular pela UFRGS e New York Blood Center. Ainda de acordo com o currículo
disponível na plataforma Lattes, fundadora do Instituto de Pesquisa com Célula-Tronco
(IPCT) e atualmente dirige o Banco de Sangue de Cordão Umbilical do Rio Grande do Sul,
ligado ao Ministério da Saúde.
A outra fonte que debateu a tramitação do PL foi o médico José Eduardo Krieger,
professor da USP e da Unifesp, diretor do Departamento de Clínica Médica do Laboratório de
Genética e Cardiológica Molecular do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da USP (InCor HCFMUSP). Ele foi a fonte da matéria “Paixão
106
emperra debate, afirma cientista” (21/09/2004). Nessa edição, foi a única matéria sobre o
tema, publicada ainda nas repercussões da votação do relatório pelas três comissões dias
antes. O autor da matéria é Marcelo Leite, colunista do jornal, que fala sobre a demora da
decisão sobre as células-tronco embrionárias e recorre às falas autorizadas do médico José
Eduardo Krieger para demonstrar que as pesquisas são importantes e que só não foram
permitidas ainda porque há uma grande interferência religiosa na questão.
Afora as quatro fontes citadas, a Folha recorreu ainda, de acordo com a pauta
escolhida, a outras autoridades científicas que deram aos textos publicados o status de
verdade. Todas as fontes com formação técnica ouvidas pela Folha defenderam as pesquisas
com células-tronco embrionárias, sobretudo pelos benefícios que elas podem trazer
futuramente. Algumas delas, ao apoiarem os estudos, fizeram ressalvas sobre o uso das
células-tronco, mostrando preocupação com a excessiva esperança depositada pelos pacientes
na aplicação das células-tronco embrionárias, ainda bastante distantes de serem usadas pelos
pacientes, levando em consideração que naquele momento ainda se discutia a autorização para
o início das pesquisas que levariam algum tempo para obter resultados que permitissem os
testes em seres humanos. Sob o aspecto ético do ponto de vista da destruição do embrião
as fontes ligadas à área científica foram uníssonas ao afirmar que o embrião na fase de
blastocisto é apenas um aglomerado de células ou uma “bolinha oca de células”, como
chegaram a dizer.
Essas outras fontes ligadas à área técnica não foram citadas em reportagens que
abordavam o andamento do projeto de lei, mas em textos que divulgavam experimentos
realizados com células-tronco adultas, e apresentaram casos para demonstrar que as técnicas
usadas obtiveram sucesso, enfatizando o potencial das células embrionárias, que seriam ainda
mais eficientes para tratar diversos males.
No dia 30 de março de 2004, foi publicada a reportagem “Células-tronco atacam
derrame cerebral”, que ouviu seis fontes, todas pesquisadoras da área médica. O lide foi
resultado das informações da pesquisadora Rosalia Mendez Otero, do Instituto de Biofísica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenadora do estudo. A reportagem foi
produzida no momento em que o grupo de pesquisadores aguardava autorização da Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) para começar a fazer testes em humanos, pois em
camundongos haviam obtido bons resultados. A partir dessa informação, a reportagem cita
alguns estudos em andamento, e recorre a outros pesquisadores. São citados os médicos Júlio
César Voltarelli, da USP de Ribeirão Preto, Radovan Borojevic, da UFRJ, Hans Fernando
107
Dohmann, do Hospital Pró-Cardíaco, localizado no Rio de Janeiro, Antonio Carlos Campos
de Carvalho, da UFRJ, e Ribeiro dos Santos, da Fiocruz.
O médico Júlio César Voltarelli é referenciado por trabalhar com células-tronco
visando ao combate do diabetes tipo 1. Essa é a única vez no material escolhido para nosso
trabalho que o médico é citado, embora ele apareça em algumas reportagens anteriores e
posteriores ao período selecionado para nossa análise. Na matéria citada acima, Voltarelli fala
do andamento do teste em um paciente, e o texto do repórter diz que o grupo dele já obteve
sucesso no tratamento de lúpus e esclerose múltipla.
Radovan Borojevic e Hans Fernando Dohmann, especialistas em doenças do coração,
são ouvidos também em outras matérias. No período estabelecido para o levantamento, o
primeiro aparece em quatro textos e o segundo, em cinco, sempre referenciados em textos que
destacam o sucesso das pesquisas. Em duas reportagens, o trabalho realizado por eles é o
motivador da pauta: “Célula-tronco evita transplante cardíaco” e “Célula-tronco trata derrame
no Rio”. Como a pesquisa tem resultados, as reportagens citam pacientes operados pela
equipe, parceira de Rosalia Mendez Otero. Em outras reportagens, o trabalho de Borojevic e
Dohmann é apenas citado pelo repórter, sem serem ouvidos, quando no texto é apresentado
um apanhado de estudos realizados.
A pesquisadora Rosalia Otero é citada em quatro textos, sendo que os três seguintes ao
apresentado acima são repercussões da lei, e ela é ouvida como pesquisadora apta a trabalhar
com células-tronco embrionárias. Em um deles, Rosalia fala da importância de que haja uma
política de governo que estimule as pesquisas, pois, para a pesquisadora, elas devem ser
conduzidas com verba pública. Na primeira citação Rosalia é a fonte das informações que
originaram o título e o lide.
Nessa mesma reportagem é ouvido o médico Antonio Carlos Campos de Carvalho, da
UFRJ, citado apenas nessa edição, e sua fala esteve sozinha na sub-retranca “Potencial exato
para terapia ainda é incerto”. Ele é parceiro do pesquisador Ricardo Ribeiro dos Santos, da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no tratamento de pacientes cardíacos vítimas de doença de
Chagas. O pesquisador Ricardo Ribeiro dos Santos médico imunologista ligado ao Centro
de Pesquisa Gonçalo Moniz (CPqGM), unidade da Fiocruz sediada na Bahia , foi citado em
sete notícias. O trabalho desenvolvido em parceria com a UFRJ foi citado em algumas
matérias como exemplo concreto de aplicação das células-tronco, combatendo problemas
cardíacos em pacientes acometidos pela doença de Chagas.
Na matéria “Células-tronco atacam derrame cerebral” (30/09/2004), o trabalho do
pesquisador não é o foco, e a pesquisa da Fiocruz é abordada na segunda parte do texto,
108
ilustrando o sucesso na aplicação de células-tronco. Meses depois, em de dezembro de
2004, a Folha publicou a matéria “Célula-tronco restitui coração chagásico”, divulgando os
resultados alcançados por Ricardo dos Santos e sua equipe, apresentados num congresso
realizado em Salvador. O texto gira em torno das explicações do pesquisador, única fonte
ouvida. No dia 8 de julho de 2005, isso ocorre novamente, quando a Folha publica a
reportagem “Célula-tronco vai tratar fígado na Bahia”, divulgando um experimento prestes a
começar, aguardando apenas a autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
(Conep), que regulamenta testes desse tipo.
Os pesquisadores Silvio e Mônica Duailibi, ambos da Escola Paulista de Medicina da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), trabalham com células-tronco adultas, em
parceria com o Instituto Forsyth, dos Estados Unidos. O trabalho do grupo foi pautado uma
vez no jornal, na edição de 25 de junho de 2004, na reportagem “Brasileiros criam dente em
abdome de rato”. O casal brasileiro é formado em odontologia e realiza trabalhos nessa área
na Unifesp.
Ainda sobre pesquisa com células-tronco a Folha teve como fontes o pesquisador
brasileiro Alysson Muotri, residente nos Estados Unidos e vinculado ao Instituto Salk, da
Califórnia; Eliana Abdelhay, do Instituto Nacional do Câncer (INCA); Dimas Tadeu Costa, da
Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto; Carlos Menck, do Instituto de Ciências
Biomédicas da USP; e Jefferson Braga da Silva, da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUC-RS).
Entre as reportagens colhidas na amostragem, algumas são resultado de
desdobramentos da Lei de Biossegurança, algumas vezes não tendo relação direta com o PL
em andamento, mas levantando questões secundárias ligadas ao tema principal. Num desses
casos, a Folha tomou por fontes os médicos Carlos Alberto Moreira Filho, do Hospital
Israelita Albert Einstein; Nelson Tatsui, do Banco de Cordão Umbilical Criogênesis; Marcelo
Zugaib, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP; Arnaldo Cambiaghi,
proprietário do Instituto Paulista de Ginecologia, Obstetrícia e Medicina da Reprodução
todos eles fontes da mesma reportagem: “Banco privado de célula-tronco é ‘ilusão’”.
Também entre os desdobramentos, depois de aprovada a lei, foi publicada a
reportagem “Clínica faz censo de embrião congelado”, motivada pela dúvida a respeito de
quantos embriões estariam disponíveis para pesquisa, que, durante as discussões sobre a
permissão das pesquisas, essa informação foi publicada algumas vezes, por ser de importância
prática para os estudos. Além das pesquisadoras Mayana Zatz e Lygia da Veiga Pereira,
procuradas como pesquisadoras interessadas nos estudos com células-tronco, foram
109
procurados também profissionais ligados às clínicas de fertilização, as fontes mais autorizadas
a falar sobre os embriões existentes. Foram ouvidos Maria do Carmo Borges, presidente da
Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA) entidade que reúne grande parte das
clínicas do País; o médico Roger Abdelmassih, proprietário da Clínica e Centro de Pesquisa
em Reprodução Humana Roger Abdelmassih; e Ricardo Baruffi, médico do Centro de
Reprodução Humana Sinhá Junqueira.
Outras reportagens posteriores envolvendo as clínicas de reprodução ouviram ainda
Edson Borges Júnior, diretor do Centro de Fertilização Assistida Fertility; Eduardo Motta,
professor da Unifesp e diretor do Centro de Medicina Reprodutiva Huntington; e José
Gonçalves Franco Júnior, do Centro de Reprodução Humana Sinhá Junqueira.
Na Folha de São Paulo, além de cientistas e pacientes que abordaram os estudos
realizados, o tema das células-tronco também teve como fontes as autoridades políticas.
Senadores, deputados e membros do governo federal foram ouvidos para debater a questão.
Entre as fontes que defenderam argumentos religiosos, foram citados: um deputado
evangélico ouvido depois da primeira votação da Câmara, que vetou as pesquisas; um
deputado católico e um padre, entrevistados depois da aprovação da lei na segunda votação da
Câmara; e o documento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), reproduzido
também depois da aprovação da lei.
Na matéria que divulgou o resultado da primeira votação da Câmara, publicada em 6
de fevereiro de 2004, a oposição às pesquisas com células-tronco embrionárias ficou a cargo
do deputado Adelor Vieira, do PMDB-SC, líder da chamada Frente Evangélica, que defendeu
que a vida começa na concepção. No texto “Câmara autoriza pesquisas com embrião”,
publicado no dia 3 de março de 2005, o padre Marcio Fabri, teólogo e bioeticista ligado ao
Centro Universitário São Camilo/SP, foi entrevistado para a matéria que divulgou a aprovação
da lei, na segunda votação da Câmara, e a parte publicada de sua entrevista mostrou que o
padre defendeu que interesses diferentes dos divulgados motivaram a aprovação das
pesquisas. Na reportagem, antes dele foi citado o deputado federal Salvador Zimbaldi (PTB-
SP), católico, numa citação em que diz que ia recorrer ao STF alegando inconstitucionalidade
do projeto. Na edição da véspera, dia da votação, foi publicada a matéria “Câmara decide
sobre células de embrião” em que, como oposição às pesquisas com embriões, foram
divulgados trechos da carta da CNBB enviada aos deputados. Dois dias depois, a entidade foi
lembrada como oposição em outra reportagem de continuação do tema (“Clínica faz censo
de embrião congelado”). Posteriormente, foi citado também o procurador-geral da República,
110
Cláudio Fonteles, autor da ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra o artigo da Lei
de Biossegurança que autorizou as pesquisas com embriões congelados.
As fontes políticas favoráveis às pesquisas foram os parlamentares envolvidos na
tramitação do projeto de lei líderes, relatores e autores de emendas; os ministros de Saúde,
Humberto Costa, e de Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos; o diretor do Departamento de
Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, Reinaldo Guimarães; o procurador da
República João Gilberto Gonçalves Filho, do Ministério Público Federal de Taubaté/SP, que
entrou com pedido de liminar antes da aprovação da lei pedindo autorização para o uso de
embriões congelados para pesquisa.
A cobertura da Folha sobre as células-tronco teve ainda como fontes os pacientes que
se submeteram a tratamentos ou seus familiares. Entre os casos citados, esuma sub-retranca
feita a partir da carta enviada aos senadores por Hermano Vianna, pai do cantor Herbert
Vianna, líder do grupo Os Paralamas do Sucesso, que ficou paraplégico em 2001 depois de
um acidente de ultraleve.
De modo resumido, podemos visualizar, pelos quadros abaixo, as fontes mais
entrevistadas pela Folha nas reportagens selecionadas:
1. Lygia da Veiga Pereira: Professora do Departamento de Biologia e do Centro de
Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências da USP, com doutorado em genética
humana pelo Centro Médico Monte Sinai, de Nova York – a favor das pesquisas com
embriões.
Referências:
Lobby religioso veta pesquisa com embrião (06/02/2004)
Cientistas recebem a notícia com entusiasmo (13/02/2004), sub-retranca de
“Coréia gera células-tronco a partir de clone humano”
USP importa células embrionárias humanas para continuar pesquisa
(23/06/2004)
USP transforma células de dente em ossos, músculos e neurônios (20/07/2004)
Embrião congelado basta, diz geneticista (08/10/2004)
Embrião mais jovem rende célula-tronco (04/01/2005)
Clínica faz censo de embrião congelado (04/03/2005)
Brasileiros pesquisam linhagens americanas (05/03/2005)
Grupos se animam para estudar embrião (06/03/2005)
111
Expectativa com células-tronco gera superoferta de “cobaias” para estudos
(26/03/2005)
Total de embriões é um décimo do previsto (31/03/2005)
Coréia faz 11 clones para estudar doenças (20/05/2005)
Regulação clara impulsiona orientais (20/05/2005), sub-retranca de “Coréia faz
11 clones para estudar doenças”
2. Mayana Zatz: Professora de Genética Humana e Médica, coordenadora do Centro
de Estudos do Genoma Humano/USP, presidente da Associação Brasileira de Distrofia
Muscular e membro da Academia Brasileira de Ciências a favor das pesquisas com
embriões.
Referências:
Lobby religioso veta pesquisa com embrião (06/02/2004)
Alemães dizem ter célula-tronco adulta tão boa quanto de embrião
(29/05/2004)
Sob pressão, Senado veta clone terapêutico (16/09/2004)
Embrião congelado basta, diz geneticista (08/10/2004)
Banco privado de célula-tronco é “ilusão” (10/10/2004)
Célula-tronco de Bush é inútil para terapia (30/10/2004)
‘Não mais o que debater’, diz cientista (02/03/2005), sub-retranca de
“Câmara decide sobre células de embrião”
Câmara autoriza pesquisas com embrião (03/03/2005)
Clínica faz censo de embrião congelado (04/03/2005)
Grupos se animam para estudar embrião (06/03/2005)
3. Ricardo Ribeiro dos Santos: médico imunologista, pesquisador do Centro de
Pesquisa Gonçalo Moniz (CPqGM), unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sediada na
Bahia – a favor das pesquisas com embriões.
Referências:
Células-tronco atacam derrame cerebral (30/03/2004)
Célula-tronco restitui coração chagásico (01/12/2004)
Resultados esperados vão além da terapia (02/03/2005), sub-retranca de
112
“Câmara decide sobre células de embrião”
Brasileiros pesquisam linhagens americanas (05/03/2005)
Grupos se animam para estudar embrião (06/03/2005)
Testes humanos ainda são muito arriscados (06/03/2005), sub-retranca de
“Grupos se animam para estudar embrião”
Célula-tronco vai tratar fígado na Bahia (08/07/2005)
4. Hans Fernando Dohmann: médico, coordenador de Pesquisa do Hospital Pró-
Cardíaco, localizado no Rio de Janeiro – a favor das pesquisas com embriões.
Referências:
Células-tronco atacam derrame cerebral (30/03/2004)
Célula-tronco evita transplante cardíaco (24/09/2004)
Célula-tronco trata derrame no Rio (19/11/2004)
Resultados esperados vão além da terapia (02/03/2005), sub-retranca de
“Camara decide sobre células de embrião”
Grupos se animam para estudar embrião (06/03/2005)
5. Rosalia Mendez Otero: professora, chefe do Laboratório de Neurobiologia Celular
e Molecular do Programa de Bioengenharia e Biotecnologia Animal do Instituto de Biofísica
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – a favor das pesquisas com embriões.
Referências:
Células-tronco atacam derrame cerebral (30/03/2004)
Grupos se animam para estudar embrião (06/03/2005)
Testes humanos ainda são muito arriscados (06/03/2005), sub-retranca de
“Grupos se animam para estudar embrião”
Pesquisa com embrião terá R$ 11 milhões (02/04/2005)
Coréia faz 11 clones para estudar doenças (20/05/2005)
6. Radovan Borojevic: biólogo, doutor em Ciências, professor titular da UFRJ, chefe
do Laboratório de Biologia Celular e Molecular do Departamento de Histologia e
Embriologia do Instituto de Ciências Biomédicas/UFRJ, diretor do programa avançado de
Biologia Celular Aplicada a medicina da UFRJ, coordenador do Banco de Células do Rio de
Janeiro – a favor das pesquisas com embriões.
113
Referências:
Células-tronco atacam derrame cerebral (30/03/2004)
Célula-tronco evita transplante cardíaco (24/09/2004)
Resultados esperados vão além da terapia (02/03/2005), sub-retranca de
“Camara decide sobre células de embrião”
Grupos se animam para estudar embrião (06/03/2005)
Dispomos acima as fontes que mais foram citadas nas reportagens selecionadas para
nosso estudo. A maior parte delas está ligada à área científica, voltada aos estudos com
células-tronco. Tal escolha decorre dos critérios estabelecidos pelos repórteres para a eleição
de pessoas a serem entrevistadas. De acordo com Gans (1979), entre esses critérios estão a
confiabilidade, a veracidade e a autoridade. O jornal, ao desempenhar seu papel na construção
da realidade, recorre a fontes especializadas, imbuídas de autoridade científica sobre o tema.
Essas fontes atendem ao quesito da confiança porque, sendo especialistas e o jornal deixa
claro seu nível de especialização para mostrar a autoridade no assunto e divulgando
informações amparadas por critérios técnicos, são as responsáveis pelas informações, livrando
o jornal dessa obrigação e deixando ao público a decisão de confiar ou não. A razão para a
confiança em determinadas fontes também pode ser atribuída aos cargos que ocupam,
configurando-as como fontes oficiais, e à afinidade de pensamento com os jornalistas.
Entre as fontes que integram o poder político, as mais citadas pelo jornal eram ligadas
ao Ministério da Saúde, responsável pelo setor que, conforme os argumentos apresentados,
seria o principal beneficiado com o uso das células-tronco embrionárias: a saúde pública. O
então ministro Humberto Campos foi citado três vezes, e o diretor do Departamento de
Ciência e Tecnologia do MS, Reinaldo Guimarães, duas. O então ministro de Ciência e
Tecnologia, Eduardo Campos, foi referenciado duas vezes nos textos, anunciando
investimentos. Os ministérios foram citados também de maneira impessoal, sem fontes, em
reportagens produzidas a partir de editais ou discursos sobre o tema. O pronunciamento de
autoridades públicas representa um importante critério de noticiabilidade, ao qual o jornal
recorre freqüentemente, pois poupa tempo e esforço, e ainda motiva novas pautas com
desdobramentos.
a. Humberto Costa: Ministro de Estado da Saúde – a favor das pesquisas com
embriões.
Referências:
114
Brasil conduz megaestudo para cardíacos (02/02/2005)
Pesquisa com embrião terá R$ 11 milhões (02/04/2005)
Humberto Costa volta a apoiar uso de embrião (01/06/2005)
b. Reinaldo Guimarães: Diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia do
Ministério de Saúde – a favor das pesquisas com embriões.
Referências:
Governo destina R$ 57 milhões para incitar pesquisar em saúde pública
(14/09/2004)
Ministério da Saúde quer investir (04/03/2005), sub-retranca de “Clínica faz
censo de embrião congelado”
c. Eduardo Campos: Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia a favor das
pesquisas com embriões.
Referências:
Ministro defende pesquisas com embrião (20/7/2004)
Câmara autoriza pesquisas com embrião (03/03/2005)
6.2. Os títulos
O título de uma reportagem é o item mais marcante do texto, devido ao destaque que
recebe é o primeiro elemento visto pelo leitor, e pode ser o único, se o leitor não levar
adiante a leitura do texto. Por isso, tenta reproduzir a principal idéia do texto, ou aquela a que
os editores atribuem maior importância. A Folha de São Paulo, levando em consideração a
importância do título, em seu Manual de Redação, recomenda o uso de aspectos mais
específicos do assunto, em vez da abordagem mais geral.
Abaixo, listamos apenas os títulos das reportagens selecionadas no levantamento feito
para esta análise.
1 Lobby religioso veta pesquisa com embrião 6/2/2004
2 Coréia gera células-tronco a partir de clone humano
3 Terapias ainda podem demorar mais de 10 anos
4 Cientistas recebem a notícia com entusiasmo
13/2/2004
5 Células-tronco atacam derrame cerebral 30/3/2004
115
6 Potencial exato para terapia ainda é incerto
7 Alemães dizem ter célula-tronco adulta tão boa quanto de embrião 29/5/2004
8 Senado sinaliza avanço em células-tronco 3/6/2004
9 USP importa células embrionárias humanas para continuar pesquisa 23/6/2004
10
Brasileiros criam dente em abdome de rato 25/6/2004
11
Ministro defende pesquisas com embrião
12
USP transforma células de dente em ossos, músculos e neurônios
20/7/2004
13
Governo quer liberar estudo com embrião 27/7/2004
14
Senador emenda a Lei de Biossegurança 10/8/2004
15
Comissão do senado aprova alteração em projeto da Lei de
Biossegurança
11/8/2004
16
Governo destina R$ 57 milhões para incitar pesquisas em saúde pública 14/9/2004
17
Senado amplia uso de embrião para pesquisas 15/9/2004
18
Sob pressão, Senado veta clone terapêutico
19
Pai de Herbert Vianna pede aprovação
16/9/2004
20
Paixão emperra debate, afirma cientista 21/9/2004
21
Célula-tronco evita transplante cardíaco 24/9/2004
22
Trecho sobre clonagem terapêutica gera dúvida 7/10/2004
23
Embrião congelado basta, diz geneticista 8/10/2004
24
Banco privado de célula-tronco é “ilusão” 10/10/2004
25
Célula-tronco de Bush é inútil para terapia 30/10/2004
26
Célula-tronco trata derrame no Rio 19/11/2004
27
Célula-tronco restitui coração chagásico 1/12/2004
28
Embrião mais jovem rende célula-tronco 4/1/2005
29
Brasil conduz megaestudo para cardíacos
30
Procurador pede liminar para liberar pesquisas com embrião
2/2/2005
31
Câmara decide sobre células de embrião
32
Resultados esperados vão além da terapia
33
‘Não há mais o que debater’, diz cientista
2/3/2005
34
Câmara autoriza pesquisas com embrião 3/3/2005
35
Clínica já faz censo de embrião congelado
36
Ministério da Saúde quer investir
4/3/2005
37
Um quinto dos casais quer embrião em casa 5/3/2005
116
38
Fonteles ataca constitucionalidade
39
Brasileiros pesquisam linhagens americanas
40
Grupos se animam para estudar embrião
41
Testes humanos ainda são muito arriscados
6/3/2005
42
Jovem recupera movimento da mão com células-tronco próprias 7/3/2005
43
Expectativa com células-tronco gera superoferta de “cobaias” para
estudos
Frases
44
Aos 16, Fernando de Deus já perdeu a visão
45
Ricardo, 23 anos e 42kg, busca cura de rins
26/3/2005
46
Total de embriões é um décimo do previsto. 31/3/2005
47
Pesquisa com embrião terá R$ 11 milhões 2/4/2005
48
Estudo expõe outro lado de célula-tronco 13/4/2005
49
Com medo de pesquisa, casal busca embrião
50
Amor ao próximo incentiva doação
17/4/2005
17/4/2005
51
País faz duas cirurgias com células-tronco 22/4/2005
52
Coréia faz 11 clones para estudar doenças
53
Regulação clara impulsiona orientais
20/5/2005
54
Fonteles contesta pesquisa com embrião 31/5/2005
55
Humberto Costa volta a apoiar uso de embrião 1/6/2005
56
Experiências serão feitas em 1.200 pacientes durante três anos 11/6/2005
57
Célula-tronco vai tratar fígado na Bahia 8/7/2005
Quatorze dos títulos acima sublinhados apontam para aspectos positivos do uso de
células-tronco, sendo que cinco deles foram publicados após a aprovação da lei. As quatorze
notícias mostraram os benefícios da técnica, os procedimentos que já tinham alcançado
sucesso, e reforçavam a necessidade de aprovação das pesquisas com embrião, pois as
células-tronco embrionárias seriam ainda melhores que as adultas que tinham bons
resultados constatados. Boa parte dos demais títulos reflete os posicionamentos de
pesquisadores da área e mostra os investimentos do governo federal em pesquisas foi o
governo que propôs o uso de embriões para obtenção de células-tronco.
117
6.3. Relação entre fonte e mote
Os títulos das notícias selecionadas, listados na tabela acima, indicam a relação entre
as fontes entrevistadas e os motes escolhidos para os textos. Boa parte deles em torno de
65% antecipa o enquadramento favorável à realização de pesquisas com embriões, presente
nos textos. ainda os títulos que se apresentam de modo mais equilibrado, sem adiantar a
informação que será preponderante na matéria enunciada, como “Câmara decide sobre células
de embrião” (02/03/2005), deixando a cargo do texto a ênfase no enquadramento.
As notícias são resultado da interação entre os jornalistas e as fontes. A questão
principal do texto, identificada no lide, é definida a partir das informações obtidas pelo
repórter durante a apuração dos fatos. Por isso, o jornalista tende a procurar as fontes nas
quais confie, seja por relações estabelecidas com elas ou pelo reconhecimento social que
elas detêm para abordar determinado tema. No entanto, a definição do destaque da reportagem
será feita, dispondo das informações das fontes, em atenção a alguns interesses práticos
(Fishman, 1990), como a observância ao curto tempo para executar a reportagem, o espaço
limitado disponível para tal texto, e fundamentalmente um caráter factual que o repórter deve
dar aos relatos, pois eles não podem deixar de lado as características essenciais do texto
definido como notícia a atualidade, a novidade. Destaca-se ainda o fato de que uma das
principais conseqüências da divulgação de uma notícia é exatamente a geração de mais
notícias (Fishman, 1990) um bom motivador para a transformação de relatos em
acontecimentos.
A primeira reportagem que tratou de bons resultados obtidos com células-tronco, no
período analisado, foi no dia 30 de março de 2004. A pesquisadora Rosalia Mendez Otero, da
UFRJ, teve a divulgação de seu experimento quando aguardava autorização para iniciar os
testes em seres humanos. O tulo “Células-tronco atacam derrame cerebral” e o lide
resultaram das informações fornecidas pela pesquisadora.
Pesquisadores da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) estão
prontos para testar, em seres humanos, o potencial das células-tronco adultas
contra mais uma enfermidade. Desta vez, o alvo é o AVC (acidente vascular
cerebral) isquêmico, uma espécie de derrame causada pela falta de fluxo de
sangüíneo em regiões do cérebro.
"Nossos protocolos estão aguardando o parecer da Conep [Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa]", conta a médica Rosalia Mendez Otero,
uma das coordenadoras do estudo. A equipe encerrou com sucesso a fase de
testes do procedimento em camundongos.
A reportagem informa que os pesquisadores “estão prontos” e que a equipe já encerrou
os testes em ratos com “sucesso”, gerando um enquadramento positivo sobre a pesquisa e
118
favorecendo a expectativa sobre o uso de células-tronco. A sub-retranca, um quadro “Saiba
mais”, publicada com o título “Potencial exato para terapia ainda é incerto”, apresenta
informações atribuídas a cientistas, sem especificar quem são eles, dizendo que não se
entendem a respeito do potencial das lulas-tronco. A única fonte nominalmente citada é um
pesquisador também citado no texto principal, Antonio Carlos Campos de Carvalho, da
UFRJ, cujas aspas relatam que há opiniões diferentes entre os cientistas sobre a maneira como
se originam as células-tronco.
O uso de sub-retrancas apóia a publicação de pontos de vista diferentes sobre uma
pauta, deixando para o texto secundário a mudança de enfoque em relação ao texto principal,
que deteve a informação definida pela Folha como a mais importante. Esse recurso contribui
para um aparente equilíbrio no debate. Foi assim, por exemplo, com a notícia “Sob pressão,
Senado veta clone terapêutico” (16/09/2004). O texto fala da votação, por três comissões do
Senado, do relatório que autorizava o uso de embriões obtidos por clonagem. O jornalista
divulga o resultado da votação, que vetou a clonagem e manteve a autorização para uso de
embriões congelados. A reportagem aponta que o veto resultou de pressão religiosa, mas não
são citadas fontes que respondam por essa informação. A sub-retranca dessa reportagem foi
“Pai de Herbert Vianna pede aprovação”, feita a partir de trechos da carta enviada pelo pai do
cantor, em que ele aponta as células-tronco embrionárias como “esperança” para portadores
de deficiências.
Desse modo, encontramos ainda as reportagens abaixo:
Coréia gera células-tronco a partir de clone humano
Terapias ainda podem demorar mais de 10 anos
Cientistas recebem a notícia com entusiasmo
13/2/2004
O texto principal divulga um experimento estrangeiro considerado importante pela
sociedade científica. O segundo texto traz apenas a fala do pesquisador coreano responsável
pelo feito, Woo Suk Hwang, que aponta a necessidade de cautela e explica como foi realizada
a experiência. O terceiro texto apresenta a opinião de três pesquisadores, entre eles uma
brasileira, como ocorreu em outras vezes. O primeiro título faz referência ao fato principal do
experimento. A segunda matéria traz a necessidade de cautela, o que equilibra o tom positivo
da primeira, e a terceira, também positiva, apresenta a opinião favorável dos pesquisadores.
Na terceira, o lide resulta da opinião da pesquisadora Lygia Pereira e faz um gancho com a
tramitação do projeto de lei de biossegurança, que poucos dias antes sofreu a derrota na
Câmara.
119
A façanha do grupo coreano foi saudada com entusiasmo na comunidade
científica mundial. E no Brasil houve uma razão a mais para acompanhá-la
de perto, segundo a pesquisadora Lygia da Veiga Pereira, do Centro de
Estudos do Genoma Humano da USP.
"Achei rbaro, e veio numa hora ótima -justamente quando está nas mãos
dos senadores decidir se vamos poder fazer essas pesquisas com células-
tronco embrionárias no Brasil", disse, referindo-se à tramitação do projeto da
nova Lei de Biossegurança, recém-aprovado pela Câmara.
Em seguida o texto fala do andamento da lei brasileira, do que representou a conquista
coreana e publica a opinião de dois pesquisadores norte-americanos, também apoiando os
resultados obtidos.
Na reportagem do dia em que estava marcada a nova votação da Câmara sobre o
projeto de lei de biossegurança, o texto principal apresentou o título e o lide destacando o
acontecimento a votação. O texto principal não tem fontes entrevistadas, apenas cita dois
documentos, um contra da CNBB e um a favor do Ministério da Saúde das pesquisas
com embriões. O segundo texto, também sem fontes entrevistadas e com citações sobre os
trabalhos realizados por algumas equipes brasileiras, fala que ainda um longo caminho
até o uso das células, e que elas são importantes não para o tratamento, mas para entender
como se forma cada tecido do organismo. Já o terceiro texto se baseia na fala da pesquisadora
Mayana Zatz, dizendo-se animada para a votação depois da conversa que teve com o
presidente da Câmara. Enquanto o primeiro texto aparenta uma abordagem direta sobre o fato
da votação, o segundo apresenta um enquadramento positivo, na medida em que aponta os
sucessos representados pelos estudos com células-tronco embrionárias, e o terceiro indica a
esperança da pesquisadora na votação, mostrando que houve um avanço no projeto durante a
tramitação no Senado.
Câmara decide sobre células de embrião
Resultados esperados vão além da terapia
‘Não há mais o que debater’, diz cientista
2/3/2005
Dias depois, nas repercussões da votação, a Folha publicou um par de matérias
Grupos se animam para estudar embrião
Testes humanos ainda são muito arriscados
6/3/2005
A reportagem principal mostra o tom empolgado dos pesquisadores. O título e o lide
são concluídos das falas dos pesquisadores colocadas no texto. No mesmo texto, porém, os
120
pesquisadores destacam que o potencial das células-tronco embrionárias ainda é
desconhecido, que é preciso muito estudo em laboratório e que os testes humanos devem
demorar alguns anos. A matéria reproduz falas de quatro pesquisadores e ainda cita mais três.
O viés do texto é positivo ao destacar que as pesquisas são importantes não para as curas,
mas para a compreensão das doenças.
Em princípio, os pesquisadores brasileiros que hoje estudam o potencial
terapêutico das células-tronco adultas teriam poucos problemas para se
adaptar às perspectivas abertas pela nova Lei de Biossegurança. A
instrumentação de laboratório e os métodos de cultivo que eles usam são
suficientes para enfrentar o desafio de transformar também as células-tronco
embrionárias, em tese mais versáteis que as adultas, em futuras opções de
terapia.
"Os equipamentos são basicamente os mesmos", contou à Folha Rosalia
Mendez Otero, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro). Otero e seus colegas Radovan
Borojevic e Hans Dohmann (este do Hospital Pró-Cardíaco, também no Rio)
ganham manchetes desde 2002, graças à recuperação de pacientes cardíacos
terminais com células-tronco adultas da medula óssea.
[...]
Em tese, as células-tronco embrionárias poderiam ser usadas para "fabricar"
qualquer tecido do organismo, dos neurônios do cérebro às unhas do dedão
do pé. Elas surgem quando os mamíferos (e o homem) não passam de uma
bolinha oca de umas cem células, com cinco dias de vida. Segundo a maioria
dos pesquisadores, elas seriam ainda mais poderosas do que as células-
tronco adultas, mas eles ainda sabem muito pouco sobre como fazê-las se
transformar nos tecidos que desejam ou evitar que causem efeitos
indesejados, como câncer.
[...]
Cautela e canja de galinha
Santos [Ricardo Ribeiro dos Santos, da Fiocruz] mostra uma cautela
saudável em relação à expectativa que a nova legislação criou. "Essa
mudança vai ser importante do ponto de vista de pesquisa, mas o reflexo
para os pacientes, por enquanto, vai ser muito pequeno", adverte. "Serão
necessários pelo menos quatro ou cinco anos de pesquisa antes que eu
consiga obter autorização para testar algum tipo de tratamento, e isso é
porque eu estou num hospital", complementa Abdelhay [Eliana Abdelhay,
do Instituto Nacional de Câncer].
A sub-retranca reproduz a fala de três dos pesquisadores citados na principal e pela
primeira vez aborda o teratoma um tumor resultante de um emaranhando de tecidos – como
problema grave resultante da aplicação de células-tronco embrionárias. Além disso, aponta
ainda outro impedimento: é caro e difícil manter as células indiferenciadas ou diferenciá-las
para o tecido almejado a principal vantagem do uso de células-tronco embrionárias para
tratamento era exatamente sua capacidade de se diferenciar em qualquer tecido do corpo
humano. Essa matéria chama especialmente a atenção por apontar dificuldades sérias para a
121
aplicação das células-tronco embrionárias, informação que não constava das reportagens do
período de tramitação do Projeto de Lei, escolhido para nossa análise. A conclusão da
reportagem, porém, reverte a questão para o apoio às pesquisas, mostrando que há muito a ser
estudado e que a quantidade de embriões disponível pode ser insuficiente.
Nenhum tumor é uma presença agradável no organismo de alguém, mas o
chamado teratoma ("monstruosidade", em grego latinizado) provavelmente
ganha o prêmio de mais assustador: uma maçaroca de todos os tecidos
possíveis, de músculo a dentes completamente formados. Pois o
aparecimento desse tipo de aberração celular é uma ocorrência comum nos
atuais estudos comlulas-tronco embrionárias. E não é só isso.
O teratoma é o resultado mais comum de injetar essas células num animal
antes que elas estejam diferenciadas –ou seja, antes que já tenham assumido
pelo menos parte das funções do tecido que se quer reconstruir. "Mas pode
acontecer que você consiga diferenciar as células, e elas se "desdiferenciem"
depois mesmo assim", conta Rosalia Otero.
É uma das dificuldades do tortuoso caminho que pode conduzir a uma
terapia. Outras também o comuns. Para começar, ninguém sabe direito
como induzir as culturas de célula a evoluir para o tecido que se quer. "Para
quem não tem muita prática, funciona muito pouco. O processo é totalmente
empírico, depende de tentativa e erro", afirma Eliana Abdelhay. "E mesmo
assim não funciona sempre, ou na mão de qualquer um."
E, paradoxalmente, também é um pesadelo laboratorial (e financeiro)
"segurar" a diferenciação das linhagens para que elas possam ser usadas
constantemente. "Elas basicamente fazem o que querem", diz Ricardo
Ribeiro dos Santos. "Uma das substâncias usadas para mantê-las
indiferenciadas, o LIF [fator inibidor de leucemia, na sigla inglesa], custa
US$ 2.000 o frasco. E ele é uma das substâncias utilizadas para isso",
conta o pesquisador.
Com tantas chances de que algo muito errado no meio do caminho, pode-
se imaginar que a demanda por embriões será alta. "Acho que vai haver uma
corrida por embriões, como existe com tudo", conclui Abdelhay.
Entre a amostra selecionada, referente à cobertura da tramitação do Projeto de Lei de
Biossegurança, duas reportagens tiveram por enfoque a oposição às pesquisas com embriões.
Gitlin (1980) destacou em seu estudo sobre a organização do movimento SDS (Student for
a Democratic Society) que as oposições obtêm espaço ao se tornarem “noticiáveis” dentro
das regras definidas pela imprensa. Esse parece ser o caso do então procurador-geral da
República, Cláudio Fonteles, entrevistado quando anunciou que iria contestar no Supremo
Tribunal Federal a decisão da Câmara de autorizar as pesquisas com embriões. A matéria
“Fonteles ataca constitucionalidade” cita o jurista, expõe os argumentos que ele teria usado, e
mostra que posição diferente da dele. Além disso, o texto publicado na seqüência da
reportagem “Um quinto dos casais quer embrião em casa” destaca que o procurador é
católico, mostrando que os argumentos de Fonteles eram amparados pela a religião, embora
ele tenha dito que se baseou nos argumentos técnicos que ouviu de pesquisadores. Esse texto
122
foi publicado no dia 5 de março de 2005, três dias depois da votação da lei pela Câmara,
quando o procurador anunciou que entraria com a ação.
A principal, “Um quinto dos casais quer embrião em casa”, apresentou o resultado de
uma pesquisa realizada pela clínica Fertility. A outra sub-retranca foi “Brasileiros pesquisam
linhagens americanas”, uma nota da Redação, sem aspas, mostrando que dois pesquisadores
brasileiros, Lygia da Veiga Pereira e Ricardo Ribeiro dos Santos, estavam trabalhando com as
linhagens obtidas por um pesquisador norte-americano que doou a diversos grupos de
pesquisa do mundo inteiro. A nota indica que, como no Brasil não se pode manipular
embriões, os pesquisadores fazem grande esforço para conseguir superar as barreiras impostas
pela lei brasileira e avançar com os estudos.
No dia 31 de maio de 2005, o procurador foi novamente o motivador de uma
reportagem, quando entrou com a ação direta de inconstitucionalidade (Adin). O texto
“Fonteles contesta pesquisa com embrião” cita trechos do documento, e mais uma vez lembra
o caráter religioso do procurador e a pressão das igrejas para evitar o uso de embriões. No dia
seguinte, o tema é repercutido e contra-argumentado pelo ministro de Saúde, Humberto Costa,
em defesa das pesquisas, em declaração referindo-se especialmente à atitude do procurador.
Um quinto dos casais quer embrião em casa
Fonteles ataca constitucionalidade
Brasileiros pesquisam linhagens americanas
5/3/2005
Fonteles contesta pesquisa com embrião 31/5/2005
Humberto Costa volta a apoiar uso de embrião 1/6/2005
Podemos identificar em relação às fontes de oposição alguns mecanismos de
enquadramento apontados por Liebes. Aqui, percebemos a “excisão”, quando o jornal
praticamente ignora os movimentos contrários às pesquisas com embriões; e a
“personalização”, pois o jornal apresenta personagens que ajudam a reforçar o lado defendido
pela Folha. O jornal recorre a diversos casos de tratamentos bem sucedidos para mostrar a
aplicabilidade da técnica que usa as células-tronco adultas, e, para apoiar o estudo das células
obtidas de embriões, além dos argumentos dos pesquisadores que apresentam
embasamentos técnicos apontando que são mais promissoras que as células-tronco adultas –, a
Folha recorre a pacientes vítimas de doenças graves que depositam suas esperanças nas novas
123
pesquisas. A aceitação do tema pela opinião pública é demonstrada por esses casos, que não
só aceitam como apelam para que a lei que responderá por suas esperanças seja aprovada.
Célula-tronco evita transplante cardíaco (24/09/2004)
"Eu o conseguia nem subir escadas. Hoje caminho 4 km em dias
alternados e trabalho dez horas por dia", conta Nélson Rodrigues dos Santos
Águia, 71, o primeiro brasileiro a receber células-tronco no coração.
Banco privado de célula-tronco é “ilusão” (10/10/2004)
A psicóloga Tatiana Grinfeld, 26, recebeu um ano um transplante de
células-tronco de cordão umbilical quando houve recidiva de leucemia. Ela
teve a doença diagnosticada aos 19 anos, fez quimio e radioterapia, mas a
doença reapareceu ano passado.
Como não havia células de medula óssea compatíveis no Brasil, ela recorreu
a um banco de cordão umbilical em Nova York. O transplante foi feito no
hospital Albert Einstein com sucesso. "Espero que tenha sido um tratamento
definitivo", diz ela, que agora tenta fortalecer o organismo, ainda fragilizado
com tantas sessões de quimio e radioterapia.
Célula-tronco trata derrame no Rio (19/11/2004)
A dona-de-casa Maria das Graças da Pomuceno, 54, recebeu células-tronco
retiradas de sua medula óssea no cérebro, três dias depois de sofrer um
acidente vascular cerebral (AVC). Sua recuperação, anunciada ontem por
médicos do Rio, abre um novo caminho no tratamento do derrame.
[...]
Tendo chegado ao hospital com o lado direito do corpo paralisado, sem falar
e compreender o que ouvia, Pomuceno andava e movia os braços 17 dias
depois de receber as células. Hoje, ela entende tudo o que lhe dizem e se
trata para recuperar a fala. Ela chegou com 17 pontos na escala NIH
(Institutos Nacionais de Saúde, na sigla em inglês), que vai de zero (o
melhor índice) a 43. Está agora com sete pontos, recuperação muito mais
rápida do que a habitual, segundo os médicos. "Ela estava condenada a ficar
na cadeira de rodas. Foi sorte fazermos o tratamento", disse Márcio da
Costa, filho da paciente.
Jovem recupera movimento da mão com células-tronco próprias (07/03/2005)
Um jovem gaúcho de 22 anos teve o movimento das mãos recuperado a
partir da utilização de suas próprias células-tronco, retiradas da medula
óssea.
[...]
Quando sofreu um acidente, o jovem teve o nervo periférico cortado na
altura do antebraço esquerdo e perdeu grande parte do movimento e da
sensibilidade da mão -esse nervo recebe e envia estímulos nervosos para a
medula espinhal e para o cérebro.
124
Expectativa com células-tronco gera superoferta de “cobaias” para estudos (26/03/2005)
O comerciante José Roberto, de Santa Cruz do Capibaribe (PE), ficou
paraplégico após um tiro. Marcia, de Curitiba, tem um filho com diabetes
tipo 1. Ricardo, 23, de Salvador, é portador de insuficiência renal crônica.
Fernando, 16, de São Paulo, tem uma doença neurodegenerativa que o
deixou cego e agora compromete a fala.
Assim como essas pessoas, outras milhares procuram -por email, carta e
telefone- os centros especializados em terapia celular ligados às
universidades públicas oferecendo elas próprias ou parentes como "cobaias"
humanas em pesquisas com células-tronco (CTs) embrionárias, recém-
aprovadas pela Lei de Biossegurança.
Sub-retrancas
Frases
"Nós temos muita fé, muita esperança de que essas células-tronco ainda vão
curar meu filho."
Jenice da Silva Andrade, mãe de Ricardo, 23, que tem um tipo de
insuficiência renal crônica desde os 11 anos
Aos 16, Fernando de Deus já perdeu a visão
A partir de 1998, porém, além de não apresentar melhora na visão, o menino
passou a sofrer convulsões. Foi então que um neurologista diagnosticou um
problema neurodegenerativo chamado doença de Batten –cuja expectativa de
vida das vítimas é, em média, de 25 anos.
Hoje, aos 16 anos, Fernando não enxerga e está com a fala comprometida.
"Ele gagueja muito. Muitas vezes não conseguimos entender o que ele diz",
conta a mãe, Lia Carrilho de Deus.
Até o ano passado, a família ainda pagava terapias coadjuvantes, como
fonoaudiologia, psicologia e terapia ocupacional, mas deixou de fazê-lo por
causa da falta de dinheiro. A esperança agora é com as pesquisas com
célulastronco.
"Esperamos que o desenvolvimento da clonagem terapêutica seja a solução
para o nosso filho. Preciso acreditar nesse fio de esperança", diz a mãe. A
clonagem terapêutica é proibida no país -a Lei de Biossegurança
autorizou as pesquisas com células-tronco embrionárias.
Ricardo, 23 anos e 42kg, busca cura de rins
Quando tinha 11 anos de idade, Ricardo da Silva Andrade foi acometido por
uma forte infecção de garganta, que foi tratada com potentes antibióticos. Os
pais atribuem a esse episódio o desencadeamento de um tipo de insuficiência
renal crônica (glomeruloesclerose).
Em 1997, o jovem foi submetido a um transplante em que recebeu um rim da
mãe, mas a doença reincidiu logo após a cirurgia, o que o levou a ter que
fazer hemodiálise a partir de 2001.
125
Em razão da insuficiência renal, Ricardo tem pressão alta, que precisa ser
controlada por meio de anti-hipertensivos.
No ano passado, as dores que sentia nos rins o levaram a interromper a
faculdade de educação física porque não conseguia permanecer sentado
durante várias horas.
[...]
A mãe de Ricardo, Jenice da Silva Andrade, conta que chorou e cantou o
hino nacional no momento em que soube da aprovação da Lei de
Biossegurança na Câmara dos Deputados. "Nós temos muita fé, muita
esperança de que essas células-tronco ainda vão curar meu filho", afirma ela.
País faz duas cirurgias com células-tronco (22/04/2005)
O estudante Edson Tiago Xavier de Souza, 18, de Limoeiro (78 km de
Recife), e o auxiliar de escritório Redivaldo José da Silva, 37, da capital, se
submeteram a quase duas horas de cirurgia ontem para receber as células-
tronco.
Souza teve os movimentos do braço direito afetados após o rompimento do
nervo plexo braquial (próximo ao pescoço) em um acidente de moto há cerca
de oito meses. Silva sofreu um acidente doméstico, seis dias atrás. Ele se
cortou com uma placa de vidro, na altura do pulso (nos nervos mediano e
ulnar), o que ocasionou a perda de parte dos movimentos e da sensibilidade
da mão direita. Com a ruptura dos nervos, o envio de estímulos nervosos
para o cérebro é bloqueado.
Após a aprovação da Lei de Biossegurança autorizando as pesquisas com embriões
congelados, a Folha publicou pautas com desdobramentos do tema. De imediato surgiu a
informação de que a quantidade de embriões disponível nas clínicas não era a que vinha sendo
divulgada pelos pesquisadores. Assim, começaram a ser ouvidas fontes vinculadas às clínicas
de feritilização in vitro. O jornal publicou que os centros de reprodução humana iniciariam
um censo e, dias depois, divulgou o resultado do levantamento. Aquilo que no primeiro
momento parecia ter se colocado com um problema, resultante da falta de informação dos
pesquisadores que pretendiam trabalhar com células-tronco embrionárias, rapidamente foi
contornado pelos pesquisadores.
Clínica já faz censo de embrião congelado (04/03/2005)
Com o projeto da Lei de Biossegurança aprovado no Congresso, os
pesquisadores estão ansiosos para colocar as mãos nos embriões que serão
descartados pelas clínicas de reprodução. Mas ninguém sabe quantos
existem, e a estimativa dada pelos cientistas de que haveria pelo menos 30
mil deles é tida como um exagero pelos especialistas.
Para resolver a questão, a SBRA (Sociedade Brasileira de Reprodução
Assistida) deve iniciar uma contagem.
126
[...]
E os cientistas admitem a imprecisão. "Eu fiz uma estimativa, mas ela pode
estar errada. Sempre tive a preocupação de saber esse número", diz Mayana
Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano, da USP. "Mas se as
clínicas estão dizendo que é menos, então deve ser menos."
Para Lygia da Veiga Pereira, também da USP, mesmo que haja menos do
que o estimado, os embriões devem dar e sobrar. "Se não forem 30 mil, se
forem 3.000, mesmo assim ainda temos material mais do que suficiente
para as pesquisas de todos os grupos atualmente capazes de trabalhar nisso",
afirma.
Total de embriões é um décimo do previsto (31/03/2005)
Censo realizado pela SBRA (Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida)
revela a existência de 9.914 embriões congelados nas 15 maiores clínicas de
reprodução brasileiras. Desses, 3.219 estão congelados mais de três anos,
critério essencial para a utilização em pesquisas com células-tronco (CTs)
embrionárias aprovadas pela Lei de Biossegurança.
O número representa, no máximo, um décimo do estimado pelos cientistas
durante a tramitação da lei no Senado, em 2004. No ano passado, eles
previram contar com 30 mil embriões nessas condições. Hoje, eles próprios
admitem que o número foi "chutado" por pesquisadores envolvidos nas
pressões para que as pesquisas fossem aprovadas no Congresso.
"Não acho que era essa [30 mil] a expectativa real de toda a comunidade
científica. Sem dúvida, 3.000 é muito menos [do que se imaginava], mas é
um excelente começo", afirma a geneticista Lygia da Veiga Pereira, do
Centro de Estudos do Genoma Humano, da USP de São Paulo.
Depois disso, a Folha publicou outras reportagens fornecidas por fontes ligadas às
clínicas de reprodução humana, que cobram de seus clientes o armazenamento de cada
embrião não implantado e mantido congelado. Assim, o jornal divulgou a matéria “Com
medo de pesquisa, casal busca embrião (17/04/2005)”, em que apenas uma clínica sustenta o
mote. A fonte foi o médico José Gonçalves Franco Júnior, da clínica Sinhá Junqueira, e a
reportagem “confirmou” a informação do título e do lide mostrando um casal de pacientes que
decidiu implantar os embriões guardados na clínica. Na mesma matéria, fontes ligadas a
outras clínicas não respaldam a informação, e essa oposição não foi destacada pelo repórter. A
sub-retranca focou a doação dos embriões. O tulo usado foi “Amor ao próximo incentiva
doação” e o texto que vem a seguir classificou a ação como um gesto altruísta.
Amor ao próximo incentiva doação (17/04/2005)
Altruísmo. É a justificativa de casais para a doação dos embriões
congelados em clínicas de reprodução. Em geral, eles estão satisfeitos
com o(s) filho(s) que tiveram por meio da reprodução assistida, não
127
sabiam o que fazer com os embriões excedentes e estão aproveitando a
aprovação da lei para tomar uma decisão. Assim como foram beneficiados
pelos avanços da medicina reprodutiva, eles consideram justa a
contrapartida.
[...]
Mãe de Lucca, 2, Mônica diz que não pretende ter mais filhos e que não
pensou duas vezes em doar os quatro embriões excedentes do processo de
FIV. "Gosto da idéia de saber que um pedacinho de nós vai ajudar
alguém."
A professora Estela (o nome é fictício), 35, de São Paulo, mãe de uma
garota de três anos, também acredita que doar os embriões para pesquisa é
uma forma de agradecer a ciência.
O apoio dos cientistas às pesquisas, atribuindo a elas grandes possibilidades de cura
para doenças graves e, portanto, melhor qualidade de vida aos pacientes; o apelo dos doentes
e seus familiares para que os estudos sejam permitidos; e a restrição dos argumentos
contrários à manipulação de embriões para obtenção de células-tronco ao mérito religioso,
livre de racionalidade, contribuíram para que, ao longo da cobertura jornalística do tema, o
enquadramento dado pelo jornal parecesse natural. Com o reforço dos pontos positivos e a
neutralização ou omissão das contestações, o enfoque tende a entrar no senso comum e ser
tomado como único e verdadeiro, tornando-se a realidade assimilada pelo público.
As expressões utilizadas nos textos contribuem para reforçar os enquadramentos
pretendidos (ENTMAN, 1991). Selecionamos algumas delas para ilustrar. Em diversas
reportagens é repetido que o embrião nada mais é que uma “bolinha de células”, ou “bola oca
de células” ou “aglomerado de células”, contribuindo para tirar do embrião o status de vida
humana, argumento usado por quem se opõe às pesquisas para obter deles as células-tronco.
A Folha afirmou em diversos textos que as tentativas de vetar as pesquisas e,
conseqüentemente, o avanço científico, foram resultado de “pressão religiosa”, exercida pelas
entidades ligadas às igrejas e também por parlamentares adeptos de religiões cristãs. Após
afirmações desse gênero o jornal apresentava argumentos técnicos favoráveis ao uso dos
embriões e mostrando que eles não poderiam ser considerados vida. Somadas a provas
científicas de que não eram vida e sua destruição não era um problema ético estavam as
expressões “promessa de cura” ou “esperança” para pacientes doentes. Tais expressões
ajudam a mostrar a necessidade de usar os embriões congelados as bolinhas de células
para fins mais nobres. Ser divulgada como “promessa”, ao mesmo tempo, justifica a
aprovação das pesquisas e isenta o jornal e os pesquisadores por não disporem de informações
seguras sobre o tema.
128
Conclusão
Os avanços da biotecnologia constituem um marco fundamental na concepção de vida
humana na contemporaneidade. As possibilidades de conquistar a longevidade e a
imortalidade provocam reações diversas entre as pessoas e suscita debates cercados de grande
polêmica. Os poderes político e econômico valem-se das tecnociências para levar adiante seus
projetos de controle sobre a população.
Partindo dessas considerações, realizamos a análise da cobertura do jornal Folha de
São Paulo sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias. Um projeto de lei, proposto
pelo governo brasileiro, autorizava as pesquisas com células-tronco de embriões humanos. A
questão central dessa permissão e que dividia as opiniões era o status do embrião.
Considerado vida humana, deveria ser respeitado como tal, atendendo aos princípios éticos de
nossa sociedade. Definido como não vida ainda, devido ao estágio de blastocisto, justificava-
se sua utilização para fins científicos.
O debate em torno do tema envolveu representantes de diversos segmentos da
sociedade, como cientistas, religiosos, acadêmicos, filósofos, pacientes de doenças graves e
seus familiares, além da população em geral e dos jornalistas que constroem o tema no
noticiário. Todos eles disputaram a esfera pública do jornal, adequando-se aos critérios de
noticiabilidade estabelecidos pela rotina de trabalho de trabalho dos jornalistas.
A questão central do debate sobre o uso dos embriões para pesquisa é resumida pela
definição sobre o início da vida. Pela análise que fizemos, podemos perceber que essa questão
não esteve presente na abordagem noticiosa do tema pela Folha de São Paulo. Afinal, a
questão não é factual, e não é estabelecida a partir unicamente de critérios objetivos, embora
eles também sejam usados. A discussão sobre o início da vida esteve restrita no jornal aos
artigos assinados nas seções de opinião. A defesa do embrião como vida humana ficou a
cargo dos religiosos que assinaram artigos. Os demais articulistas recorreram aos fins nobres
que poderiam ser dado aos embriões congelados, condenados à lixeira, para justificar seu uso,
não discutindo eram vida ou não, mas apelando ao argumento de que seu sacrifício poderia
representar a salvação de vidas pós-uterinas.
As fontes ligadas aos setores de saúde que assinaram artigos foram encontradas no
corpus do noticiário da Folha. Foram entrevistadas e atuaram junto com os repórteres na
formulação da realidade acerca da temática no jornal. Os jornalistas, autorizados socialmente
a transitar por diversos campos específicos, ampliam o aspecto da veracidade ao recorrer a
129
fontes também legitimadas para abordar o assunto, sobretudo em temas relacionados a áreas
de grande especificidade técnica, como a medicina.
Ao longo dos anos, podemos perceber que ganhou destaque no noticiário as
reportagens que salientavam possíveis benefícios a serem alcançados com o uso das células-
tronco, especialmente aquelas obtidas de embriões, que teriam potencial maior que as adultas,
utilizadas em alguns tratamentos. O foco dessas reportagens está em consonância com a
posição defendida pela Folha em seus editoriais – textos destinados à manifestação de posição
do jornal sobre determinado assunto. A Folha defendeu claramente as pesquisas com células-
tronco embrionárias, alegando os benefícios que elas poderiam trazer futuramente, e repetiu
em todos os seus textos o potencial dessas células, inclusive no noticiário, quando deveria se
apoiar em fontes técnicas, fato que não aconteceu todas as vezes. Em diversas reportagens, a
informação que enfatiza as promissoras aplicações das CTEs estava desvinculada de fonte,
colocando a informação como verdade científica e incontestável.
A Folha posicionou-se contrariamente e criticou a decisão dos deputados federais que
vetaram as pesquisas, na votação do Projeto de Lei de Biossegurança, em fevereiro de 2004,
poucos meses depois de apresentado pelo governo. O projeto seguiu para o Senado. Até ser
votado, a Folha publicou diversas reportagens sobre procedimentos bem sucedidos
envolvendo células-tronco adultas, e aproveitou para destacar a tramitação do projeto que
poderia permitir as pesquisas com as células de embriões, repetindo que eram mais
promissoras. Atribuiu aos senadores a responsabilidade de reverter a decisão da Câmara e
promover, com isso, o desenvolvimento científico do Brasil, que estaria condenado caso as
pesquisas fossem proibidas.
Durante toda a cobertura, a Folha tratou a rejeição às pesquisas com embriões como
motivação de ordem religiosa, não recorrendo a especialistas que defendiam a vida desde a
concepção. Mesmo sob a ótica religiosa, poucas vezes ouviu representantes das igrejas nas
reportagens sobre o tema, embora as notícias sejam dotadas de uma obrigação
institucionalizada de publicar os diversos pontos de vista existentes sobre um tema, mesmo
que o enquadramento do texto seja definido pelo jornalista que o escreveu.
O noticiário cuidou de construir uma realidade que colocava as pesquisas como
essenciais e promissoras. Grande parte dos textos evocava o sucesso da técnica e apoiava-se
nas declarações de pesquisadores que também puderam se manifestar nos textos opinativos.
Essas opiniões estavam em conformidade com os editoriais do jornal, que refletiam também a
posição do governo e das empresas de biotecnologia. Já os argumentos contrários às pesquisas
não foram alvo de discussão pelo noticiário. As fontes que adotavam essa postura não foram
130
responsáveis pelo enfoque de nenhuma reportagem, o que só aconteceu quando a Folha
entoou negativamente os argumentos, como nos textos “Lobby religioso veta pesquisa com
embrião” e “Sob pressão, Senado veta clone terapêutico”.
O ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles foi responsável por dois lides,
relacionados à ação direta de inconstitucionalidade (Adin) que ingressou no Supremo
Tribunal Federal (STF) contestando o artigo que autorizou as pesquisas: uma reportagem foi
feita quando anunciou que tomaria tal atitude e a outra quando ingressou com a ação. Nos
dois casos, o critério factual da notícia é incontestável, e representava a possibilidade de
retrocesso na decisão da Câmara, aprovada pelo jornal. O argumento da ação movida estava
baseado no direito à vida e citou argumentos apresentados por pesquisadores da área que, em
termos biológicos, defendem o embrião como vida desde o momento da concepção. Apesar
do argumento de ordem técnica, as menções que a Folha fez a respeito da Adin destacaram a
religiosidade assumida do procurador, católico, e menosprezaram os argumentos que ele
apresentou.
Antes de decidir sobre a questão, o Supremo, pela primeira vez na história, promoveu
audiência pública para discutir o assunto, promovendo no dia 20 de abril de 2007, um debate
entre 18 profissionais convidados do STF, 11 convidados da Procuradoria Geral da República,
um convidado da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e quatro convidados da
Presidência da República. A opção pela audiência foi feita pelo relator do processo, o ministro
Carlos Ayres Britto, para obter informações científicas antes de julgar o caso. Até o
encerramento do nosso trabalho, o ministro ainda não havia emitido seu voto.
A opção do STF por promover o debate é uma postura que também deveria ser
adotada pelo jornal durante a cobertura do caso, se levarmos em conta os princípios de
objetividade, imparcialidade, neutralidade e isenção que fazem parte do acervo retórico da
prática jornalística. No entanto, o debate promovido pela Folha em seu noticiário foge ao
equilíbrio proposto pelas regras jornalísticas.
A Folha, recorrendo a fontes que iam ao encontro de suas posições, construiu um
enquadramento favorável às pesquisas com células-tronco de embriões. A comparação entre
as fontes pró e contra a pesquisa mostra a desigualdade entre a divulgação dos dois
argumentos. A ausência de oposição aos argumentos técnicos contribui para que sejam aceitos
como verdade, e a redução da contestação ao fator religioso colabora para desacreditar a
oposição. A audiência, leiga, tende a adotar o discurso científico como verídico, sobretudo
quando ele é divulgado pela imprensa, instituição que dota de grande credibilidade social,
construída a partir da difusão das normas que regem seu trabalho.
131
Líderes de equipes, doutores no assunto, os pesquisadores entrevistados pela
reportagem preenchem facilmente os requisitos para a escolha de fontes. Gozam de status
reconhecido para discorrer sobre o assunto. As falas, repetidas ao longo do tempo, são
institucionalizadas como verdades. Na Folha, as opiniões contrárias às pesquisas ocuparam
lugar apenas nas seções de opinião, nas quais era grande também o número de textos em
defesa da aprovação da lei. O repertório de articulistas contrários ficou restrito a alguns
religiosos, enquanto nos artigos favoráveis apresentaram-se, principalmente, representantes da
área científica.
Nas reportagens que publicaram entrevistas com pessoas contrárias ao uso de
embriões, não identificamos alguma que tenha usado esse argumento como enfoque principal.
Geralmente, elas dividiram espaço com outras fontes, sobretudo contra-argumentando-as. Já
as fontes favoráveis ao uso de embriões pautaram o jornal e definiram o foco de diversas
reportagens, ajudando a construir junto ao senso comum a realidade que era mais adequada.
O enfoque favorável às pesquisas fica evidenciado desde a escolha dos tulos, que
refletem o posicionamento das fontes técnicas, até o enviesamento dado ao texto, a partir do
lide. Diversas reportagens enfatizaram os benefícios conquistados pelo uso de células-
tronco adultas e também os que estavam prometidos com o uso das células-tronco
embrionárias.
Percebemos ainda que nas reportagens que teciam críticas ao posicionamento religioso
que estaria apoiando a oposição às pesquisas, a crítica partia do autor do texto, e as fontes
científicas favoráveis ao uso de embriões não discutiam essa questão, preferindo apontar que
a negativa às pesquisas se baseava numa apreensão errônea do conceito de terapia celular ou
clonagem terapêutica.
O sucesso do uso de células-tronco embrionárias não é consenso na comunidade
científica, mesmo entre os cientistas que defendem a realização das pesquisas. As razões para
isso estão baseadas, sobretudo, na falta de garantia sobre a segura do procedimento, ainda
muito inicial. Uma dos problemas mais graves refere-se aos teratomas, tumores sérios que se
origem sobretudo de tecidos embrionários. As informações sobre os problemas com as
pesquisas foram divulgadas depois que a lei foi aprovada.
Como vemos, o enquadramento apresentado pela Folha foi favorável às pesquisas com
células-tronco obtidas a partir de embriões humanos congelados. No momento em que o
assunto ainda era desconhecido e poucos segmentos da sociedade tinham informações sobre a
questão, o enquadramento adotado pelo jornal desempenha importante papel na aceitação da
realidade proposta.
132
Nosso trabalho buscou refletir sobre a maneira como a Folha reportou o tema,
tomando por base metodológica a teoria do enquadramento para analisar as reportagens e
artigos publicados no jornal. O estudo não pretende esgotar o assunto, mas sim despertar o
debate sobre a atuação da imprensa em temas de amplo alcance social.
133
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