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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MESTRADO
RUBENS RIEG
A RELAÇÃO DIALÓGICA:
A DESCOBERTA DO ZWISCHEN EM MARTIN BUBER
Prof. Dr. Mons. Urbano Zilles
Orientador
Porto Alegre
2007
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1
RUBENS RIEG
A RELAÇÃO DIALÓGICA:
A DESCOBERTA DO ZWISCHEN EM MARTIN BUBER
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção de grau de
Mestre, pelo Programa de Pós-graduação
da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Mons. Urbano Zilles
Porto Alegre
2007
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2
RUBENS RIEG
A RELAÇÃO DIALÓGICA:
A DESCOBERTA DO ZWISCHEN EM MARTIN BUBER
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção de grau de
Mestre, pelo Programa de Pós-graduação
da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
Aprovada em ___ de ____________de ______
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________
Prof. Dr. Urbano Zilles (PUCRS), Or.
____________________________________________
Prof. Dr. Draiton Gonzaga de Souza (PUCRS)
____________________________________________
Prof. Dr. Adilson José Colombi (Faculdade São Luiz)
3
Dedico esta dissertação a Nelson e Maria
Norma, que por primeiro dirigiram-se a
mim numa relação dialógica.
4
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Dr. Mons. Urbano Zilles pela sua orientação, dedicação,
incentivo e oportunidades de aprendizado.
A todos os professores e colegas com quem tive aula e convivência neste
período de estudos e aprendizagem.
Aos colegas professores da Faculdade São Luiz pela amizade, incentivo,
disponibilidade e colaboração.
5
RESUMO
Esta pesquisa objetiva analisar a contribuição central do pensamento de Buber: a
Relação dialógica e a descoberta do Zwischen. O “entre-dois”, que Buber
trabalha, será a categoria que nasce na relação dialógica. Esta relação dialógica
pode acontecer de duas maneiras: a primeira como Eu-Tu, onde um homem se
coloca diante de outro homem em uma atitude de respeito, mutualidade,
presença e sem preconceitos ou interesses. Contudo, esta relação ainda pode
acontecer em um grau de perfeição menor com coisas ou objetos. O segundo
modo da relação acontecer é a semelhança do sujeito conhecedor, onde o
homem não se coloca diante do outro em uma atitude livre e desinteressada,
mas com o objetivo de conhecer, de apreender ou de captar algo de quem está
em relação. Neste caso existe um sujeito com intencionalidade. Estas relações,
na sua perfeição, quando prolongadas se entrecruzam com o que Buber chama
de Tu Eterno que, por sua vez, podem gerar uma terceira modalidade de relação
dialógica: Eu-Tu Eterno. A relação dialógica acontece sem mediações. A palavra,
definida como palavra-princípio ou como Eu-Tu, Eu-Isso, é a própria relação. O
homem não precisa de nada como mediação para que a relação aconteça. No
entanto, entre o Eu e o Tu surge algo que Buber chama de zwischen, ou
simplesmente “entre”.
Palavras-chave: Relação dialógica. Zwischen. Palavra. Encontro. Resposta. Eu-
Tu. Eu-Isso. Eu-Absoluto.
6
ABSTRACT
This research aims to analyse the central contribution of the thought of Buber:
the dialogical relation and the discovery of the zwischen”. The “between” that
Buber works, will be the category, fruit of the dialogical relation. This dialogical
relation may happen of two ways: the first one as I-Thou, in which a man places
himself before another man in a posture of respect, mutuality, presence; without
prejudice or advantage. However, this relation may also happen in a level of
smaller perfection with things or objects. The second way in which this relation
may happen is the similarity of the connoisseur, in which the man does not place
himself before the other one in a free and disinterested attitude, but with the aim
to discover, to grasp or to pick up something with intentionality. These relations,
in their perfection, when they are extended, they cross each other, and this case
Buber calls the “Eternal-You” relation: Eternal-I-Thou. The dialogical relation
happens without mediations. The word, defined as primary word, or as I-Thou, I-
It, is the relation itself, the man does not need anything as mediation so that the
relation happens. Nevertheless, between the I and You appears something that
Buber calls the “zwischen”, or just “between
Key-words: Dialogical Relation. Zwischen. Word. Meeting. Answer. I-Thou. I-It.
I-Absolute.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................. 09
1 A EXISTÊNCIA E O ENCONTRO ....................................................... 13
1.1 Um problema kantiano .....................................
.................................. 15
1.2 O papel da palavra é buscar relações ................................................... 23
1.3 O silêncio é comunicação .................................................................. 24
2 EU E TU .......................................................................................... 29
2.1 Uma nova antropologia ...................................................................... 29
2.2 As palavras-princípio como presença e cumplicidade .............................. 35
2.3 A relação como começo da existência do homem ................................... 40
2.4 O homem na relação Eu-Isso .............................................................. 42
2.5 O espírito na relação .......................................................................... 43
2.6 A causalidade ................................................................................... 45
2.7 Eu egótico ........................................................................................ 46
3 A DIMENSÃO FUNDANTE DO TU ABSOLUTO .................................... 49
3.1 Testemunho: um caminho .................................................................. 50
3.2 A unicidade do homem ....................................................................... 54
3.3 Conversão: o reencontro consigo ......................................................... 55
3.4 A liberdade ........................................................................................ 58
3.5 Finitude humana: abertura para o infinito .............................................. 60
3.6 O Encontro com o totalmente Outro ..................................................... 62
3.7 Deus: o Tu absoluto ........................................................................... 65
4 A PALAVRA DIALÓGICA .................................................................. 67
4.1 O diálogo ......................................................................................... 67
4.2 Movimento básico do diálogo ............................................................... 71
4.3 O encontro: no princípio é a relação ....................................................
74
4.4 A responsabilidade e a resposta ..........................................................
78
4.5 O espaço ontológico do entre .............................................................. 80
8
CONCLUSÃO ................................................................................... 87
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................... 90
9
INTRODUÇÃO
A proposta buberiana
1
de refletir sobre a existência humana torna-se, de
certo modo, atípica porque é provocadora em sua simplicidade: “nada mais
simples, na verdade, conceber o homem como ser de relações”
2
. Sua proposta
filosófica está extremamente ligada com sua experiência de vida, experiência de
desencontro.
A casa na qual moravam meus avós tinha um tio interno
grande e quadrangular, cercado por uma galeria de madeira no
térreo e nos demais pisos até o telhado, no qual se podia, em
cada pavimento, andar em volta da construção. estava eu,
certa vez, no meu quarto ano de vida, com uma menina alguns
anos mais velha, filha de um vizinho, a cujos cuidados a avó me
tinha confiado. Nós nos debruçávamos na balaustrada. Não posso
me lembrar o que havia falado à minha pensativa companheira
sobre minha mãe. Mas ainda ouço como a menina mais velha que
eu me dizia: "Não, ela não volta nunca mais". Sei que fiquei
mudo, mas também que não nutri nenhuma vida quanto à
verdade da palavra dita. Ela permaneceu agarrada a mim e
agarrava-se, de ano a ano, sempre mais ao meu coração.
depois de mais ou menos dez anos, eu havia começado a senti-la
como algo que não dizia respeito somente a mim, mas também
ao ser humano. Mais tarde, apliquei a mim mesmo o sentido da
palavra "desencontro", através da qual estava descrito,
1
Martin Buber nasceu em Viena em 1878. Morou com os avós paternos em Lemberg, grande
centro cultural e religioso. Em 1896 iniciou os estudos de Filosofia e História da Arte na
Universidade de Viena e em 1901 entrou na Universidade de Berlim, onde teve como professores
Wilhelm Dilthey e Georg Simmel, publicou o artigo Uber Jakob Böhme (Sobre Jakob Böhme).
Tornou-se doutor em Filosofia pela Universidade de Berlim em 1904 . Suas principais obras foram:
1906: Publica Die Geschichten des Rabbi Nachman (Histórias do Rabi Nachman); 1908: Publica Die
Legende des Baalschem (A lenda de Baal Schem); 1913: Publica Daniel. Gespräche von der
Verwirklichung (Daniel. Colóquios sobre a Realização); 1917: Publica a Ereignisse und
begegnungen (Acontecimentos e Encontros); 1919: Gemeinschaft (Comunidade); 1923: Nomeado
professor de História de Religião e Ética Judaica na universidade de Frankfurt-am-Main. Publica a
mais importante obra Ich und Du (Eu e Tu); 1927: Publica Des Baal-schem Tov (Sobre a relação
com Deus); 1929: Publica Religion und Philosophie (Religião e Filosofia); 1932: Escreve
Zwiesprache (Diálogo); 1938: Publica Worte na die Jugent (Palavras à Juventude) e, em
conseqüência das pressões nazistas, vai morar na Palestina, onde assume a cadeira de Filosofia
Social na Universidade Hebraica de Jerusalém; 1947: Publica Dialogisches Leben: Gesammelt
philosophische und pägogische Schriften (A Vida do Diálogo. Coleção de Escritos Filosóficos e
Pedagógicos); 1950: Publica o resultado de quase cinqüenta anos de estudos e reflexão sobre
Filosofia Social sob o título: Pfade in Utopia (Caminhos e Utopia); 1951: Publica Bücher und
Menscher (Livros e Homens), Heilung aus der Begegnung (A cura a partir do Encontro. Uma troca
de Idéias com a Psicologia de C.G. Jung), Urdistanz und Beziehung (Distância e Relação). No
mesmo ano deixa sua cátedra na universidade Hebraica, dedica-se a formação de mestres e
professores; 1953: Publica Das echte Gespräch und die Möglichkeiten des friends (O diálogo
Autêntico e as Possibilidades da Paz); 1955: Der Mensch und Seuin Gebild (O Homen e sua
Imagem); 1961: Publica Begegnungen (Encontros), uma coleção de fragmentos autobiográficos.
Buber falece em Jerusalém em 13 de Junho de 1965.
2
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
166.
10
aproximadamente, o fracasso de um verdadeiro encontro entre
seres humanos. Quando, após outros vinte anos, revi minha mãe,
que viera de longe visitar a mim, minha mulher e meus filhos, eu
não conseguia olhar nos seus olhos, ainda espantosamente
bonitos, sem ouvir de algum lugar a palavra "desencontro" como
se fosse dita a mim. Suponho que tudo o que experimentei, no
correr da minha vida, sobre o autêntico encontro, tenha a sua
primeira origem naquela hora na galeria
3
.
A proposta de Buber é provocadora pois é forjada na experiência de
“desencontro” e moldada a partir de circunstâncias existenciais concretas
4
, de
modo individual ou comunitário. Ele rejeita considerar o diálogo como mero meio
de comunicação ou processo psicológico, mas fala de existência dialógica. Isto é,
usa do princípio dialógico para chegar ao questionando mais amplo da existência
humana
5
. Buber encontrou, por meio da relação dialógica, um caminho de
reflexão para tentar responder a tensão dialética entre um conforto intelectual e
uma insatisfação constante que o acompanhou durante toda a sua vida.
Este presente trabalho se propõe a pesquisar o problema da relação
dialógica enquanto novidade e descoberta da categoria do entre por Martin
Buber.
Buber constrói seu pensamento dentro de uma concepção antropológica
que tenta considerar o ser humano em sua integralidade. Ele conseguiu clarear a
filosofia do outro apresentando a problemática da relação. “É Buber que
identificou esse terreno, viu o problema de Outrem, o Du, o Tu”
6
. Ele busca
descobrir um sentido para a pessoa que condições a ela de simplesmente ser.
Encontrar na realidade uma dimensão fundante para a existência humana.
Buber busca uma visão de conjunto diferente da realidade, que fuja da
relação sujeito objeto, teoria e prática, Deus e homem. Ele considera que a
filosofia tem como tarefa primeira despertar na pessoa a vontade de uma vida
cada vez mais humana. Devolver ao homem contemporâneo uma realidade vital
a fim de que se possa fundar uma existência renovadora, criadora e plena de
sentido.
3
BUBER, Martin. Encontro: fragmentos autobiográficos. Tradução de: Sofia Inês Albornoz Stein.
Petrópolis: Vozes, 1991, p. 9-10.
4
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
167. Lebensakt, isto é, ato vital.
5
Cf.: Ibibem, loc. cit.
6
Cf.: LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Tradução de: Pergentino
Stefano Pivatto (coordenador). Petrópolis: Vozes, 1997, p. 162;
11
A realidade, marcada por individualismo exacerbado e centralismo
econômico propostos pelos modelos capitalistas, precisa de novos caminhos que
incorporem elementos fundamentais como a reciprocidade, a mutualidade, e a
totalidade. Buber consegue, ainda, mostrar a essência da pessoa, valorizar a
alteridade e lançar um novo olhar para o trabalho e os bens que estão à
disposição.
A relação dialógica é a resposta
7
que Buber encontrou para sanar a crise
da humanidade no mundo. Os caminhos, segundo Buber, não existem para
serem admirados, mas para serem percorridos; é preciso ouvir, mas não copiar;
não adianta pensar em fazer algo, mas sim fazê-lo; e, sobre tudo, o fundamental
da existência humana não é o indivíduo nem a totalidade, mas sim o ser humano
como humano; pois a pessoa se torna Eu no Tu e essa frágil vida, entre o
nascimento e a morte, poderá tornar-se uma plenitude, se for um diálogo.
Partindo de sua antropologia filosófica, cujo fundamento é a compreensão
do ser humano como um ser-com-o-outro, chega-se a sua idéia de encontro e
diálogo.
A relação dialógica acontece através da categoria da palavra que é o
“entre”
8
. A palavra deve ser entendida como diálogo, não destacando apenas
sua estrutura lógica ou semântica, fazendo dela apenas um dado, mas sim como
palavra falante, com o sentido de portadora do ser. Através da palavra
primordial, a Grundwort
9
, a humanidade se introduz na existência, se atualiza
constantemente e se introduz aos outros.
A filosofia tem usado do diálogo desde os seus primórdios para perguntar
e investigar o seu objeto de estudo. A relação dialógica foi muito importante,
especialmente para a transmissão dos resultados de cada investigação.
Dessa forma, percebe-se que, na relação dialógica desenvolvida até
Buber, se tinha noção de um comunicador e de um ouvinte. O filósofo que faz
seu discurso e o discípulo que atentamente o escuta. Por vezes, a ênfase está
naquele que fala, o filósofo, que é o caso da maioria dos filósofos que são
protagonistas de seu pensamento. Contudo, muitas vezes a ênfase não está no
filósofo, mas no interlocutor. É o caso das filosofias que se direcionam para a
uma perspectiva maiêutica.
7
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
100.
8
Cf.: Ibidem, p. 94.
9
Cf.: Ibidem, p. 116.
12
O problema que Buber tentou responder foi a percepção de que numa
relação de diálogo existe algo a mais que um simples sujeito falante e outro
ouvinte. A questão é muito mais complexa. Existe um sujeito comunicador que
pode assumir posturas diferentes diante de alguém.
Buber chama de Eu aquele que se coloca diante de um outro para lhe
falar. No entanto, este Eu pode assumir uma postura apreensiva ou especulativa
em relação a outro que pode ser um Tu ou uma coisa qualquer. Quando se trata
de um outro do qual se tenta simplesmente conhecer, explorar, captar elementos
e se faz uma relação diretiva com objetivos pré-fixados, então se tem uma
relação objetivante. E Buber chamará esta relação de Eu-Isso. Por outro lado,
quando o outro for tratado sem esse objetivo diretivo, mas com respeito à sua
individualidade, simplesmente se colocando diante dele, então, segundo Buber se
tem uma relação de Eu-Tu.
Portanto, o primeiro passo que Buber desenvolve será a explicação da
relação Eu-Tu e num segundo momento a relação Eu-Isso. O autor chama essas
duas relações de palavras-princípio. Ele percebe que a questão está em entender
o que acontece entre o Eu e o Tu ou o Isso. Contudo, existe ainda outra
dimensão humana da qual Buber não esquece e que para ele tem grande
importância porque faz parte do dia-a-dia da maioria das pessoas: a relação com
Deus.
Esta pesquisa quer apresentar a idéia da relação dialógica de Martin
Buber dentro de uma perspectiva inter-pessoal. Em seu livro Eu e Tu, que
representa o cerne de sua filosofia, o autor mostra que a existência é marcada
por encontros que podem ser edificantes ou avassaladores no que tange a
relações de pessoas. Sua filosofia é construída sobre o alicerce da palavra, do
diálogo, de um Eu e de um Tu. No entanto, se em vez do diálogo houver um
monólogo e no lugar de um Tu existir um ser objetivado, não se tem uma
relação dialógica dignificante, mas possessiva e objetivante. O sonho de Buber é
uma sociedade fundada nos valores do respeito, coerência, liberdade,
sinceridade, próprios de uma relação dialógica genuína.
É precisamente este sentido que o trabalho quer articular. Entender a
relação dialógica desenvolvida por Buber e perceber sua originalidade. Descobrir
se sua conclusão foi decisiva na reflexão da filosofia pós-buberiana e se ainda
hoje é possível pensar como então. Seria possível articular, nos dias de hoje,
13
uma ação que seja eminentemente dialógica e que contemple as várias
contingências existentes?
Para alcançar este objetivo, o primeiro capítulo articulará as influências
que Buber sofreu e como os indivíduos desenvolveram a relação dialógica. No
segundo capítulo, esta pesquisa desenvolverá a problemática da palavra-
princípio Eu-Tu e Eu-Isso como possibilidade de se perceber o ser humano dentro
de uma nova antropologia considerando a presença e a cumplicidade como
característica deste novo modo de entender o ser humano. O terceiro capítulo
apresentará a relação fundante da palavra-princípio Eu-Tu Absoluto como uma
possibilidade de resgate desta nova proposta antropológica apresentada por
Buber. que as linhas de todas as relações, se prolongadas, se entrecruzam no
Tu eterno
10
o qual resiste e transcende a todo esforço de objetivação. E, por fim,
no quarto capítulo serão retomadas algumas categorias, de modo especial a
palavra, que mostrará a realidade do entre como a descoberta de Martin Buber
para a antropologia filosófica.
10
Cf.: BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução de: Newton Aquiles von Zuben. 2ª ed. São Paulo: Cortez
e Moraes, 1979, p. 87.
14
1 A EXISTÊNCIA E O ENCONTRO
A mola mestra na interpretação da existência humana, segundo Buber, é
a relação dialógica, porque ela consegue exprimir que o significado não está no
homem, nem no outro, tampouco no mundo, mas entre os três. A relação,
portanto, é o sentido de ação do homem no mundo e, também, o lugar
11
ontológico-existencial onde transcorre a história dos homens
12
. A fenomenologia,
com a idéia de intencionalidade, é onde Buber se inspira para falar de um lugar
“além do homem e aquém do mundo, além do Eu e aquém do
Tu ou Isso”
13
. A palavra gera a relação. Ela assume, segundo Buber, um papel
de criadora no seio do mundo e não de instrumento para contemplar “visando” a
realidade.
A existência vai corresponder ao auto-conhecimento do ser humano a
partir dos atos de vida que não possui, mas que somente se manifestam, apenas
existem. Desta forma a palavra não se caracteriza como um instrumento para
contemplar o mundo, a realidade. Ela é a própria criação no seio do mundo,
porque ela gera a relação. Por isso, a relação conduz a uma interpretação do
significado da existência humana que acontece entre um sujeito e um objeto.
Essa é a problemática do círculo hermenêutico onde sujeito e objeto se
identificam ao fazer a pergunta sobre a existência humana. E, ao mesmo tempo,
quando o sujeito faz a pergunta sobre o homem, o sujeito, sendo homem, está,
de certa forma, condicionando a sua resposta por ser ele mesmo aquele que vai
elaborar o instrumental teórico e conceitual que por sua vez está determinado
pela situação do sujeito que pergunta
14
.
Várias tentativas diferentes já foram elaboradas para tentar responder a
essa questão. Buber abraça esta questão tentando olhar para as diversas
tentativas de respostas já elaboradas durante a história e procura perceber o que
entre elas é constante ou invariável. Von Zuben descreve esta problemática da
seguinte forma:
11
Segundo Von Zuben, Da zwischen significa lugar ontológico-existencial como o Da do Da-sein.
12
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003,
p. 186.
13
Ibidem, loc. cit.
14
Cf.: Ibidem, p. 187.
15
Existe algo “constante ou invariável” que sustenta todas as
posições históricas diante dela (questão)? Esta “constante” se
relaciona com o conteúdo ou com a postura do próprio
questionador? Trata-se de um processo de elucidação ou de
dedução dos rios atributos de uma essência única, dada de
modo definitivo? Seriam as respostas “puras elucidações
conceituais?” De que modo uma “resposta é instruída pelas
“respostas” anteriores? A passagem de uma “resposta” de certa
época histórica dada em certa circunstância cultural à outra
posterior acontece por que ordem ou razão? Cada nova posição
abre novas possibilidades, mas será que não devemos reconhecer
a existência de um encadeamento se processando graças a uma
força dynamis diretiva, que caracteriza a própria questão
(hermenêutica) como questão?
15
Se a questão for concebida como forma de antecipação que aguarda
algum preenchimento, ela poderia, por ser apenas forma, estar ainda esperando
um conteúdo. Contudo, esta forma que espera um conteúdo acaba por ser uma
forma não totalmente pura, no sentido da lógica formal, pois, por estar
esperando, teria algo a mais que somente uma forma, ela teria em si mesma a
espera por conteúdo. Por isso, esse conteúdo esperado representa uma
demarcação de espaço onde poderá se conceber a resposta. É uma pré-
compreensão da realidade abordada pela questão
16
.
Assim, esta pré-compreensão assume característica de orientação e
possui alguns elementos importantes para entender essa questão.
Primeiramente, a existência do homem é um projeto inacabado e, por isso, não
pode ser considerado como um dado. A existência do homem assume um
contínuo fazer-se que provoca uma interpelação constante de descobrir-se. A
reflexão busca um sentido não dito para a existência e ela objetiva o
desvelamento do fenômeno humano. Em conseqüência de ser projeto inacabado,
o ser humano comporta uma exigência de realização
17
, isto é, uma exigência
formal e universal de carência de ser e de busca de mais ser. Por isso o homem
se pergunta; a questão sobre o sentido da existência humana o deixa inquieto e
15
Ibidem, p.187-188.
16
Parece que Sócrates já falava de algo parecido quando coloca a “proposição batalhadora” onde
argumenta que é tão difícil ao homem procurar o que sabe quanto o que não sabe. Pois o que sabe
ele não precisa procurar, pois já sabe; o que não sabe não pode procurar, pois como procurar o
que se desconhece?
17
Cf.: CROMBERG, Mônica Udler. A crisálida da filosofia: a obra eu e tu de Martin Buber
ilustrada por sua base hassídica. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 74.
16
o faz tomar partido, pois se trata de descobrir sua própria verdade. Mais que
especulação estéril, esta questão é, por ser radical, concretude vital
18
.
Nesse sentido o caminho de Buber não será tanto o da reflexão
sistemática, mas primeiramente a meditação sobre a experiência concreta
existencial. Por isso, sua reflexão sempre terá como ponto de partida uma
experiência concreta e se deve encontrar novamente com ela. O pensamento não
pode estar alienado às coisas que o circundam. O autor confia nas idéias como
orientação para a ação. “Para Buber, a relação como princípio dialógico é feito
primitivo, pronto, dinâmico, que organicidade à compreensão do mundo e do
ser e, em última análise, da existência humana”
19
.
No entanto, esta tarefa parece impossível sem considerar o homem como
um ser em sua totalidade. Buber quer estudar o homem, o seu ser e sua
significação. O verdadeiro estudo do homem contempla a problemática, a
exigência da questão e o engajamento, isso é, um vínculo entre a reflexão e a
experiência concreta entre a idéia e a ação.
Embora o homem se reconheça como o objeto mais digno de sua
reflexão, bem cedo ele se retira, resignado e abalado pela
complexidade da problemática. Esta resignação o leva a tomar
dois caminhos igualmente condenáveis: considerar tudo entre
céus e terra”, esquecendo-se de si próprio, homem; e seccionar o
homem em compartimentos, aos quais se consagra
separadamente numa análise menos problemática e
problematizante, menos exigente e menos engajadora
20
.
1.1 Um problema kantiano
O primeiro destaque deve ser dado para Immanuel Kant. Ele conseguiu
ver e trabalhar o problema antropológico com muito realismo e sensibilidade.
Tentou responder quatro perguntas que, ao final, o levariam ao verdadeiro ser
humano: o que posso saber, o que devo fazer, o que me é cito esperar e o que
é o homem. Estas perguntas são fundamentais para Kant. A primeira é
desenvolvida pela sua metafísica especialmente na Crítica da razão pura; a
18
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003,
p. 191.
19
Ibidem, p. 194.
20
Ibidem, loc. cit.
17
segunda Kant desenvolve na filosofia moral e do direito; e a terceira abrange a
filosofia da história e da religião
21
. No entanto, interessa aqui entender e
desenvolver a última: o que é o homem? Pois as três primeiras questões
remetem à última.
Buber destaca o fato de que nem Kant, nem a antropologia pós-kantiana
destacam o lugar especial que o homem possui no cosmos, sua relação com o
destino e com o mundo das coisas, a compreensão de seus co-irmãos, de sua
existência como ser que sabe que vai morrer, sua atitude em todos os encontros,
ordinários ou não, com o mistério que compõem a trama de sua vida
22
. A crítica
existencial de Buber parte de uma leitura que Heidegger faz de Kant, onde Kant
não teria entrado na totalidade do homem. A primeira pergunta “o que posso
saber” acaba por limitar uma parcela da realidade, pois se se pode saber uma
coisa, supõe-se não poder saber outras. O mesmo acontece com a segunda e a
terceira pergunta, pois quando se pergunta “o que devo fazer” sugere-se que
algo se faz, mas não tudo, ou, ainda, “que me é lícito esperar”, mas quando se
espera se cria uma expectativa, e se excluem outras. Nas três situações
acontecem limitações e revela-se a finitude humana. Buber, contudo, afirma que
não é a intenção de Kant apontar limites ao que o homem pode saber, fazer ou
esperar. Kant coloca diante de si a pergunta “o que posso saber”, pois está
diante de uma realidade que lhe mostra que ele conhece e quer perguntar, de
modo universal, se é possível fazer da metafísica uma ciência com conhecimento
a priori. Da mesma forma “o que devo fazer” significa cogitar a possibilidade de
uma regra universal que pudesse reger todos os atos humanos. A terceira
pergunta, muito além de limitar a ação humana, revela que existe algo para se
esperar, que é permitido esperar por algo e que, por isso, é possível esperar por
algo que seja permitido.
Segundo o autor, a quarta pergunta de Kant “que é o homem” aborda a
questão que engloba as três primeiras. Pois quem é aquele que pode conhecer,
pode fazer e a quem cabe esperar? Ao considerar, juntamente, que a finitude,
que supõe poder conhecer somente este saber específico, com a infinitude, que
abre a possibilidade de simplesmente poder conhecer, faz com que o
conhecimento da finitude do homem e a sua participação no infinito o leve a uma
21
Cf.: KANT, Immanuel. Lógica. Tradução de: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo
brasileiro, 1992, p. 42.
22
Cf.: BUBER, Martin. Que es el hombre? México: Fondo de Cultura Económica, 1970, p. 13.
18
duplicidade no processo cognitivo de percepção de sua existência. Desse forma,
o homem participa do finito e do infinito, porque o finito e o infinito atuam na
existência humana
23
. Portanto, uma compreensão completa do ser humano
deverá levar em conta um duplo caminho de diferenciação e comparação.
Somente por este duplo caminho de diferenciação e comparação
poderá considerar o homem em sua integridade, este homem
que, qualquer que seja o povo, o tipo ou a idade a que pertença,
sabe que, fora dele, nada mais sabe na terra: que caminha pela
estreita via que leva do nascimento a morte; prova que ninguém
que não seja ele pode provar: a luta com o destino, a rebelião e a
reconciliação e, às vezes, quando se junta por escolha com outro
ser humano chega a experimentar em seu próprio sangue o que
está na interioridade do outro
24
.
Não se trata de uma questão de redução do ser humano a uma disciplina
ou a uma definição, mas de tentar conhecer o homem. Quando este se coloca
como objeto de sua investigação, ele deve se colocar como uma pessoa
presente, encarnada em sua totalidade, em seu eu concreto. Isso significa entrar
em si e buscar o ato vital, que faz o exercício de se expor a tudo que poderia
ocorrer a uma pessoa em determinada situação. A busca da totalidade do ser
humano exige que o homem esteja presente em si. O momento da vida não leva
a outra idéia que a de viver o que se tem de viver, estar presente com todo seu
ser, indiviso e, por isso, em posse de sua consciência, ter o conhecimento da
totalidade humana.
No decorrer da história humana, houve momentos em que a humanidade
refletiu mais e em outros, menos, sobre a sua existência. Segundo Buber, na
fase histórica dos gregos, a tendência era conceber o mundo como um espaço
fechado em si mesmo e Aristóteles representa seu auge. Essa filosofia
contemplava o mundo e tentava fundamentar a existência das coisas desse
mundo. Assim, se vive um mundo novo, cheio de sentido para as coisas que se
vê, uma vida inspirada em imagens e fundada numa cultura principalmente
plástica. Isso aparece de maneira especial na filosofia de Platão onde o mundo
das idéias é um mundo dos olhos, um mundo de figuras contempladas, um
mundo de representações. Contudo, Aristóteles um mundo de coisas e o
homem no mundo como uma coisa entre coisas. A antiga filosofia grega, em
23
Cf.: Ibidem, p. 15.
24
Ibidem, p. 19. (Tradução livre do autor).
19
seus principais expoentes, colocou o problema cosmológico, mas teve
dificuldades de apresentar o problema existencial antropológico.
Sócrates apresentou sua filosofia pela maiêutica e pelo diálogo.
Questionou realidades morais interiores. Pelo diálogo, conseguiu se aproximar de
uma antropologia, mas ainda aquém de contemplar o humano na sua realidade
mais ampla ou total
25
.
Para Buber, o primeiro a conseguir colocar a realidade existencial de
modo mais completo foi Agostinho, que vinha de um mundo necessitado de novo
sentido. Ele tinha passado pelo maniqueísmo e introjetou em si a dualidade entre
o corpo e a alma. Chegou a formular a questão kantiana, contudo, em primeira
pessoa: “quid ergo sum, Deus meus? Quae natura mea?” É a pergunta inspirada
no salmo: “que é o homem? Que tu pensas ser?”, mas em sentido diferente,
pedindo que Deus lhe responda
26
. Pela palavra natura Agostinho mostra que
olhando para si, pergunta por cada pessoa que tem em si um mistério profundo.
A admiração que Agostinho tem por si mesmo é diferente da admiração
que Aristóteles e Platão têm pelo homem, pois, para estes últimos, o homem não
passa simplesmente de alguém que faz parte do mundo.
O homem agostiniano se assombra com o que no homem não se
pode compreender como parte do mundo, como uma coisa entre
as coisas, e essa surpresa deriva muito do filosofar metódico; a
sua descoberta se apresenta como algo muito bonito e
inquietante. Não se trata propriamente da filosofia, mas
repercutirá em toda a filosofia posterior
27
.
Dante, na Divina comédia, mostra o cosmos do cristianismo como uma
viagem mental ao mais profundo inferno, na morada de Lúcifer, passando pelo
purgatório até chegar ao céu da Trindade, como quem faz uma viagem por
regiões com mapas bem delineados e exatos
28
. Este mundo, no entanto, é finito,
pois entra no quadro do tempo finito e do tempo do cristianismo.
O esquema desta imagem do mundo é uma cruz cujo madeiro
vertical é o espaço finito entre o céu e o inferno, que nos leva
diretamente através do coração humano, e cujo travessão é o
tempo finito desde a criação até o dia do juízo; seu centro, a
25
Cf.: ROSSETTI, Lívio: O diálogo socrático “aberto” e sua temporada mágica, Hypnos: humano e
divino. São Paulo, v. 11, n. 16, p. 15, 2006.
26
Cf.: AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret,
2002, p. 216-217.
27
BUBER, Martin. Que es el hombre? México: Fondo de Cultura Económica, 1970, p. 28.
28
Cf.: ALIGHIERI, Dante. A divina comédia: o inferno. Tradução de: Domingos Ennes. São Paulo:
Cia do Brasil, 1947, p. 7.
20
morte de Cristo, coincide, cobrindo-o e redimindo-o, com o centro
do espaço, o coração do pobre pecador. Em torno a este esquema
se constrói a imagem medieval do mundo
29
.
Por sua vez, Tomás de Aquino se obriga em descobrir quem é o homem
real do qual se pode dizer Eu e chamar de Tu. Contudo, para Aristóteles, filósofo
onde Tomás buscou inspiração filosófica, esse homem ainda está na terceira
pessoa
30
. Para Tomás, a alma humana, a última na hierarquia dos espíritos, se
une substancialmente com o corpo, o primeiro na hierarquia das coisas
corpóreas, de um modo tal que se revela como horizonte e linha divisória entre a
natureza espiritual e a corpórea. No entanto, Agostinho conhecia muito melhor a
problemática particular e do ser humano angustiado; na antropologia de Tomás o
homem logo se acomoda e não sente aquele elo intrigante em busca de uma
confrontação consigo mesmo, mas seria aquietado prontamente.
Durante a baixa Idade Média, um fato notável foi que o homem começou
a perceber que ele não estava sozinho no desafio de penetrar o mundo e que ele
mesmo possuía a capacidade de perceber seu próprio penetrar ou relacionar com
esse mundo. Contudo, começou a perceber também que este mundo não lhe
daria segurança absoluta e começou, então, a sentir-se como estrangeiro e
solitário. O amor que se tem a Deus é o próprio amor de Deus para com a
humanidade.
O racionalismo que indaga o espaço e o tempo, infinito-espaço-temporal,
levou o homem a vislumbrar que existe o eterno e que é algo muito diferente do
infinito, como também é muito distinto do finito, mas que pode haver
comunicação entre o homem, isso é, um Eu e seu Tu eterno.
Em Hegel, percebe-se uma unidade no ser humano:
Em cada homem estão a luz e a vida, ele é a propriedade da luz;
e não é iluminado por uma luz a maneira de um corpo opaco que
mostra um reflexo que lhe é próprio, mas que se acende com sua
própria matéria ígnea e sua chama lhe é própria
31
.
O homem passa a ser o lugar e o meio em que a razão do mundo
conhece a si mesma e dá ao homem uma capacidade ilimitada de saber.
Conseqüentemente, se a razão tudo pode saber, ela também tudo pode fazer.
Hegel coloca o homem em um novo lugar, numa nova dimensão: tudo que o
29
BUBER, Martin. Que es el hombre? México: Fondo de Cultura Económica, 1970, p. 28.
30
Cf.: AQUINO, Tomas de. Suma teológica. Tradução de: Alexandre Corrêa. Vol II. Questões 50-
119, 2ª ed. Porto Alegre; Caxias do Sul: EST; Sulina; UCS, 1980, LXXV – XCII.
31
BUBER, Martin. Que es el hombre? México: Fondo de Cultura Económica, 1970, p. 42.
21
homem sabe, o faz, ele o realiza na história. O sentido de todas as coisas e do
próprio homem acontecerá dentro da própria história.
Dentro desse mundo aparece a contribuição de Marx que se aproveita da
dialética hegeliana
32
para oferecer aos homens de seu tempo uma imagem da
sociedade e não mais do mundo. Isso é, a imagem do caminho através do qual
poderá chegar à sociedade humana mais perfeita. Por isso, em vez de razão do
mundo se encontram relações de produção que determinam as relações
humanas. O mundo do homem é reduzido a sociedade.
Contudo, foi Feuerbach quem revolucionou a compreensão do ser
humano quando descobriu o homem como indivíduo, isso é, um indivíduo que
está em relação com outro indivíduo. O homem individual não consegue exprimir
toda sua essência, nem como ser moral, nem como ser pensante. Ele precisa da
comunidade, onde percebe uma diferenciação entre um Eu e um Tu.
Nietzsche desenvolve o pensamento filosófico sobre o homem colocando-
o no centro dos estudos do mundo como um ser problemático e possuidor de
uma força e de uma paixão sem precedentes
33
. Em outras palavras, afirma que
o ser humano não é uma espécie determinada, unívoca como as outras espécies,
mas em constante amadurecimento e transformação. O sentido que o homem
tem que dar a si próprio ele deve buscar em sua própria vida. Deve fazê-lo como
uma vontade de poder. O homem originalmente será aquele que tem boa
consciência de sua vontade de poder. Segundo Nietzsche, esse é o homem que
se deve “criar” e que se deve “superar”. Isso porque o homem é um caminho,
uma encruzilhada, uma ponte, uma grande promessa. Somente o homem pode
prometer
34
.
Uma interpretação diferente começou a ser pensada por Heidegger. Ele
pensa o homem como aquele que existe. A existência é uma relação de um ente
com o ser e que, ao mesmo tempo, consegue compreender esse ser. Essas duas
exigências, no entanto, somente o ser humano pode cumpri-las. Compreender
sua própria existência fez com que o homem descobrisse que quando se começa
a viver, na verdade, começa-se a caminhar para a morte. Heidegger concebe a
realidade da vida humana em certas categorias que reconhecem sua origem e
32
Cf.: Ibidem, p. 50.
33
Cf.: NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de: Alex Martins. São Paulo:
Martin Claret, 2002, p. 226.
34
Cf.: NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. Tradução de: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret,
2000, p. 117.
22
exercem sua jurisdição na relação do indivíduo com o que ele mesmo não é e as
aplica na existência, isto é, a esse comportamento ou atitude do indivíduo com
seu próprio ser
35
. Dessa forma, a vida do homem passa a ter um sentido
absoluto, pois transcende a particular contingência, ou seja, considera o outro
com quem se enfrenta e com quem se pode entrar em uma relação verdadeira
de ser a ser. Contudo, “a Existência de Heidegger é uma existência monológica”
36
; pode até haver algumas tentativas de diálogo, mas logo são abafadas pelo
monólogo e repetido ato de descobrir sempre novas categorias de seu ser. O
homem de existência autêntica é aquele que é si mesmo. Por isso, esse é o
homem que não pode viver realmente com o homem, mas um homem que
somente pode viver de modo real no trato consigo mesmo
37
.
Kierkegaard parece dar um passo nesta relação com o outro
38
. O homem
continua solitário, mas abre uma porta para uma relação com o Absoluto: “cada
qual somente com muito cuidado deverá entrar em contato com os demais’ e
deverá falar, essencialmente, somente com Deus e consigo mesmo”
39
. Dessa
forma, o homem de Kierkegaard renuncia a relação com o outro para, na sua
singularidade, entrar em contato com o Absoluto. Contudo, existe um outro.
um Tu dirigido a outros homens que brota da alma e a envolve por inteiro. E o
Eu particular ou singular possui uma responsabilidade própria completamente
independente.
A influência que Kierkegaard provocou em Heidegger foi uma
secularização do Absoluto e o redirecionamento para o homem. Assim o si
mesmo acaba sendo uma pessoa real, alguém que pode ter uma relação
completa com um outro Eu.
A grande relação acontece unicamente entre pessoas reais. Pode
ser o forte como a morte, pois é mais forte que a solidão e
rompe com os limites da solidão superior, vence sua lei de ferro e
coloca o referencial de um eu a outro eu
40
.
35
Cf.: BUBER, Martin. Que es el hombre? México: Fondo de Cultura Económica, 1970, p. 88.
36
Ibidem, p. 93.
37
O homem individual não chega em si a essência do homem. A essência do homem se acha na
unidade do homem com o homem. Contudo, em Heidegger o homem individual chega em si a
essência do homem e trai a existência quando se converte em um resultado: si mesmo. Este é um
resultado que encerra o homem nele mesmo.
38
CF.: KIERKEGAARD, Sören Aabye. O desespero humano. Tradução de: Adolfo Casais Monteiro.
3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1998, p. 241.
39
BUBER, Martin. Que es el hombre? México: Fondo de Cultura Económica, 1970, p. 98.
40
Ibidem, p. 104.
23
Na verdade entram em consideração três elementos importantes que se
interagem entre si: a relação com as coisas; a relação com os outros, que pode
ser relação com um outro ou com os outros; a relação com o mistério do ser que
invade as relações com o Absoluto. Assim, a situação humana não pode
despojar-se nem do mundo das coisas, nem dos demais homens e da
comunidade, nem da dimensão que aponta para além do mundo. O homem pode
chegar a sua existência unicamente se a relação total com sua situação é
imbuída de relações vitais essenciais.
O ato principal da existência humana não é nem o indivíduo enquanto
entendido como tal, nem mesmo a coletividade entendida como tal. Ambas,
consideradas em si mesmas, não passam de abstrações. O indivíduo é um ato
existencial na medida em que entra em relação viva com outros indivíduos e a
coletividade é um ato existencial na medida em que se funda com unidades vivas
de relação. O ato fundamental da existência acontece entre o homem e o
homem. A relação que particulariza o mundo acontece quando entre ser e ser
algo não encontra outra relação igual em nenhuma outra parte do mundo.
O caminho da humanidade é marcado por momentos em que o homem
tem uma atitude de encolhimento, degeneração e por momentos de
desprendimento, tornando-se um ser aberto. Possui raízes que buscam o outro
ser concreto, para se comunicar com ele em uma esfera comum aos dois que,
respeite o campo próprio de cada qual. Essa esfera denomina-se entre: “constitui
uma palavra-princípio que se realiza em graus muito diferentes”
41
.
Esta dimensão de entre não se trata de uma construção fabricada para se
explicar uma realidade, mas de algo que está no interior de uma relação onde
existe o protagonismo de dois sujeitos: um Eu e um Tu. É um diálogo onde as
partes não foram pré-estabelecidas e nem se sabe de antemão o seu resultado.
É algo que não ocorre em um e outro participante, nem tão pouco em um mundo
neutro que subjuga os dois. É a dimensão onde a alma
42
de um e de outro
cessam, contudo ainda não começou o mundo; o entre é aquele restante que
não se identifica nem com o Eu, nem com o tu e nem com o mundo, ele é o
essencial
43
.
41
Ibidem, p. 147.
42
Alma, segundo Buber, significa dimensão interior que dá condições da relação acontecer.
43
Cf.: Ibidem, p. 148.
24
Podemos entender este ato em acontecimentos mudos, momentâneos,
que apenas se somam à consciência. Na angústia mortal de um refúgio
contra bombardeios, os olhares dos desconhecidos tropeçam uns
instantes, em uma reciprocidade como que surpreendida e sem vínculo;
quando soa a sirene que anuncia o cessar das armas, aquele está
esquecido e, no entanto, ‘aconteceu’ em um âmbito não maior que
aquele momento. Na sala, às escuras, se estabelece entre os olhares
desconhecidos, impressionados com a mesma pureza e a mesma
intensidade por uma melodia de Mozart, uma relação apenas perceptível
e, no entanto, simplesmente dialógica, que quando as luzes voltam a
acender-se apenas se pode recordar
44
.
Deve-se cuidar ao colocar assuntos afetivos para a compreensão de
semelhantes acontecimentos fugazes, mas consistentes: o que ocorre nestes
casos não está ao alcance dos conceitos psicológicos porque se trata de algo
ontológico. Desde estes eventos menores, que oferecem uma presença tão
fugaz, até a mais doentia tragédia. A situação dialógica é acessível somente
ontologicamente. Mas não arrancando da ontologia da existência pessoal, nem
tão pouco de dois existenciais pessoais, se não daquilo que, transcendendo a
ambos, se faz essencial “entre” os dois.
Nos momentos mais poderosos da dialógica, naqueles que, em verdade,
se põe em evidência que não é o individual nem o social algo diferente
que traça o círculo em torno do acontecimento. Para lá do subjetivo, para
cá do objetivo, na fina linha divisória em que o eu e o tu se encontram se
fala do âmbito do entre
45
.
1.2 O papel da palavra é buscar relações
Não se preocupando em elaborar teorias e sistemas e caracterizando-se
como homem atípico, Buber não elabora somente discursos e elucubrações sobre
palavras que visem rótulos modernos.
As palavras são, ao mesmo tempo, indispensáveis e fatais. Quando
tratadas como hipóteses de trabalho, elas ensinam a entender,
progressivamente, melhor o mundo. Por outro lado, elas podem querer fazer
engolir a verdade, como se fossem um dogma. A palavra por si tem a pretensão
de querer tudo definir, englobar tudo em seu seio e apresentar uma verdade
absoluta e acabada. Ao contrário, para Buber, a palavra não é instrumento para
contemplar visando a realidade, mas sim a própria criação do mundo. A palavra
gera a relação. A relação é o sentido de ação do homem no mundo. É o lugar
ontológico-existencial onde transcorre a história de todos os homens. Logo, o
44
Ibidem, loc. cit.
45
Ibidem, p. 149.
25
eixo central da existência humana, não está nem num, nem noutro, mas na
relação onde existe o entre
46
. Para Buber, a relação como princípio dialógico é o
feito primitivo, ponto dinâmico que organicidade à compreensão do mundo e
do ser, e, em última análise, da existência.
Trata-se de algo que acontece a toda hora, quando se olha alguém,
quando se dirige a palavra, não é apenas com o movimento natural do corpo que
se faz. Mas, sobretudo, quando se volta a alguém com toda a atenção e com a
alma. Todo voltar-se-para-alguém provoca uma resposta, por mais imperceptível
que seja, por mais rapidamente que seja sufocada num olhar, num som, vindos
da alma, que passa, talvez, na interioridade da alma, mas que existem. Um
exemplo foi dado por Buber:
Depois de uma descida, servindo-me da luz tardia de um dia que
se findava, eu estava à beira de um prado, certo então do
caminho seguro, deixando o crepúsculo nascer sobre mim. Sem
carecer de um apoio e mesmo assim disposto a oferecer à minha
permanência uma vinculação, pressionei o meu bastão contra um
tronco de freixo. Então, senti duplamente meu contato com o ser:
onde eu segurava o bastão tocava a casca. Aparentemente,
encontrei-me comigo, todavia, onde encontrei a árvore
encontrei a mim próprio
47
.
Essa experiência foi, para Buber, uma relação de diálogo. Ele percebeu
que a fala humana, como bastão, sempre será autêntica se for bem dirigida.
Refere-se ao homem a quem se envia a palavra, a esse homem se faz também
um movimento de tender para ele como alguém insubstituível. Isso se encontra
junto a ele, o homem referido pelo Eu, e toma parte da recepção da palavra. O
Eu o abarca, abarca a quem a palavra é dirigida.
1.3 O silêncio é comunicação
Uma conversação não necessita de som algum, nem mesmo de um
gesto. “A linguagem pode renunciar a qualquer mediação de sentidos, mesmo
assim é linguagem”
48
. Buber não quer se referir ao silêncio dos namorados que
46
Zwischen.
47
BUBER, Martin. Encontro: fragmentos autobiográficos. Petrópolis: Vozes, 1991, p.38.
48
BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. Tradução de: Newton Aquiles von Zuben. São
Paulo: Perspectiva, 1982, p. 35.
26
somente um olhar já é linguagem, não precisando de palavra alguma.
A linguagem pode ser entendida pelo exemplo de dois homens sentados
num banco da praça. Os dois não falam um com o outro, não olham um para o
outro, nem se quer voltam-se um para o outro. Eles não se conhecem
intimamente e nem sabem nada sobre a vida do outro. Conheceram-se na
manhã, por causa de suas perambulações. Nenhum pensa, no momento, no
outro. Um deles, como de costume, estava sereno, disposto, de uma forma
receptiva para tudo que pudesse acontecer, seu ser parece dizer que não é
suficiente estar preparado, que é preciso também estar presente. O outro, na
sua atitude não o atrai, é um homem reservado, controlado, mas todos sabem
que seu autocontrole é algo a mais que atitude, é uma incapacidade de se
comunicar. Agora imagina-se que as amarras que envolvem seu coração se
dissolvessem de repente. Mas, mesmo assim, o homem não diz uma palavra,
não move um dedo. Porém, ele traz alguma coisa, depois que as amarras de seu
coração caíram, não importa donde, ou como, e eis que esse homem faz, liberta
dentro de si uma força sobre o qual só ele tem o poder de ação
49
.
Sem restrição, a comunicação jorra do seu interior e o silêncio leva a
palavra ao seu vizinho, a quem era destinada, e que a recebe sem reservas,
como recebe o destino autêntico de quem vem ao encontro. E o que sabe ele do
outro? Nada mais é necessário. Pois, onde a ausência de reservas reinou entre os
homens, embora sem palavras, aconteceu a palavra dialógica de uma forma viva
e “sagrada”.
O diálogo pode existir sem signos, sem sons, sem gestos, embora esse
seja seu modo mais comum de acontecer.
Um elemento de comunicação por mais íntimo que seja - parece
pertencer a sua essência. Mas, nos momentos mais elevados, o
diálogo transcende também estes limites. Ele se completa fora
dos conteúdos comunicados ou comunicáveis, mesmo os mais
pessoais; não se completa, no entanto, num acontecimento
místico, mas sim num acontecimento que é concreto no sentido
estrito da palavra, totalmente inserido no mundo comum dos
homens e na seqüência temporal concreta
50
.
Também a palavra de Deus deve ser entendida assim. Buber compara a
palavra divina com uma estrela cadente que baixa nos olhos e cujo fogo servirá
de testemunho do meteoro. Mas ele poderá testemunhar somente a luz, não
49
Cf.: Ibidem, p. 36.
50
Ibidem, p. 37.
27
poderia reproduzir a pedra e dizer esta aqui". O homem tenta compreender a
relação com Deus, e na caminhada dessa noite, o obscurecimento da luz, não
consegue experienciar a revelação e nasce a esperança, a expectativa de uma
teofania da qual nada se conhece a não ser o lugar: a comunidade.
Nas catacumbas públicas
51
dessa experiência, não existe uma palavra
divina que é transmitida de modo único e indefectível. Mas as palavras que são
transmitidas manifestam-se no humano voltar-se-um-para-o-outro. Não existe
lealdade e amor àquele que vem sem amor e lealdade para com sua criatura.
Portanto, ter experienciado é o caminho; não um progresso, mas um caminho.
A palavra é constantemente dirigida a alguém e não se ocupa do
extraordinário, mas do que acontece no cotidiano, daquilo que passa de qualquer
maneira, do comum.
Aquilo que acontece à pessoa é a palavra que lhe é dirigida. Enquanto as
coisas acontecem, as palavras são dirigidas. O sistema interligado e esterilizado
que pretende neutralizar, dos eventos, o germe da palavra, é a grande obra
titânica da humanidade. E também a linguagem foi colocada a seu serviço. Por
isso, os adivinhos não podem ser levados a sério. Procuram encontrar, fora de
contínuo espaço-temporal do mundo, leis que dirigiriam os homens no mundo. A
característica comum de todas essas práticas é a de serem para sempre, isto é,
permanecem sempre iguais, seu resultado foi verificado uma vez por todas, suas
regras, leis e conclusões analógicas são universalmente aplicáveis. Essa é a falsa
fé.
A verdadeira fé consiste em estar presente e perceber. “A fé verdadeira –
se assim me for permitido denominar nosso estar presente e o perceber inicia-
se quando termina a consulta ao dicionário, quando ele é deixado de lado”
52
. O
interessante é que, nesse sentido, o dicionário afasta do homem o estar presente
e o perceber. Pois, o que acontece a uma pessoa, não pode ser revelado dela
para outra, porque não existe nenhuma informação secreta, nunca foi revelado
anteriormente e nem é composto de sons que já tivessem sido pronunciados. Ela
é incapaz de ser tanto interpretada quanto traduzida.
Ninguém pode penetrar o interior de alguém, onde a palavra se alojou,
para, então, expressá-la e explicá-la aos outros. A palavra daquele instante é
51
Termo usado para designar a sacralidade do Eu e a impossibilidade de se invadir este espaço, a
menos que o Tu se revele.
52
Ibidem, p. 45.
28
algo que permanece, que não pode ser isolado; porém, permanece a pergunta
do questionador, pergunta essa que merece resposta.
Na vida, segundo Buber, conhece-se unicamente a realidade concreta do
mundo, que nos é constituída constantemente, a todo instante
53
. Dentro dessa
realidade são dados os signos da palavra que a todos é dirigida. É importante
descobrir quem faz a pergunta e quem fala.
Buber, durante sua juventude, pouco se entretinha com o fenômeno
religioso. Porém, certa vez, um jovem o procurou e pediu-lhe para conversar.
Mais tarde, quando o jovem não vivia mais, Buber ficou sabendo, por um
amigo, que ele havia buscado um sentido para sua existência. Foi assim, num
profundo mergulho na noite, quando deixou de lado tudo o que sabia sobre
Deus, que Buber emergiu para uma nova vida e nesse momento começou a
receber signos
54
. Mas quem seria o emissor daquilo que se sente todos os dias
por meio dos signos? Se o chamasse de Deus, seria, então, o Deus de um
momento, o Deus do momento.
Poderia se comparar a maneira como um aprendiz de literatura
compreende uma poesia: tudo que ele conhece do autor é o que o poema
transmite e nada mais. Porém, na medida em que vai lendo outros poemas e
contos, vai acrescentando novos sujeitos e, paulatinamente, firma-se uma única
existência polifônica da pessoa. Contudo, Buber afirma que os que pronunciam a
palavra divina, os deuses do momento, constituem na verdade, por identidade, o
Senhor da voz, o Único. Buber segue afirmando que a palavra do Senhor da Voz
não se realiza no homem se este não falar e responder a seus semelhantes: o
próprio homem.
A palavra verdadeiramente dirigida por Deus envia o homem ao
espaço da linguagem vivida, onde as vozes das criaturas passam
uma perto da outra e, tateando, conseguem alcançar,
precisamente no desencontro, o seu parceiro eterno
55
.
Por fim, cabe a cada pessoa, que está atenta à palavra que lhe é dirigida,
respondê-la. “Responder ao que nos acontece, que nos é dado ver, ouvir,
sentir”
56
. A hora concreta, com seu conteúdo do mundo e do destino, designada
a cada pessoa, é linguagem para a atenção despertada. E para se realizar a
53
Cf.: Ibidem, loc. cit.
54
Cf.: Ibidem, p. 48.
55
Ibidem, loc. cit.
56
Ibidem, p. 49.
29
resposta, não ajudaria nenhuma teoria, nenhuma técnica, nenhum
conhecimento, pois se estaria lidando com algo que foge a qualquer classificação,
é simplesmente a concretude da própria vida. “Esta linguagem não possui
alfabeto, cada um dos seus sons é uma nova criação e como tal pode ser
captada”
57
.
Pode-se ainda, pelo fato de que atitude ainda não está decidida, tomar
um conhecimento último dos signos. Por isso, possibilidade de se envolver no
silêncio, ou de se esquivar, refugiando-se no hábito; porém, em ambos os casos,
a pessoa será atingida por uma angústia que não esquecerá. Por outro lado, a
resposta poderá ser, talvez, balbuciada: a alma raramente consegue alcançar
uma articulação muito firme. No entanto, seria um balbuciar honesto, é como se
a laringe e os sentidos estivessem demasiadamente assustados para imitar de
forma pura, mesmo que estejam de acordo com a alma. Da mesma forma que a
palavra dirigida, a resposta assume uma linguagem intraduzível no campo da
ação e da omissão, sendo que, às vezes, a omissão pode comportar-se como a
ação e a ação como omissão.
Espera-se do homem que se encontra atento que enfrente com firmeza o
ato da criação. Somente, então, fiel ao momento, pode-se experienciar uma vida
que é algo diferente da soma de momentos. Responde-se aos momentos e, ao
mesmo tempo, responde-se por eles, responsabilizando-se por eles. “Uma
realidade concreta do mundo, novamente criada, foi-nos colocada nos braços:
nós respondemos por ela”
58
.
57
Ibidem, loc. cit.
58
Ibidem, p. 50.
30
2 EU E TU
A existência e o encontro estão marcados profundamente pela maneira
como o ser humano se coloca diante do outro ou das coisas. Não se trata
simplesmente de uma postura, mas de uma atitude
59
que faz do homem alguém
responsável pelos seus atos. Essa percepção conduz a um novo olhar sobre o
problema do homem. É a idéia de relação dialógica ou de encontro dialógico que
tem a intenção de conceber o ser humano em sua totalidade.
As atitudes do homem diante dos outros homens e frente ao mundo
podem acontecer pela relação Eu-Tu ou Eu-Isso. Conceber o ser humano dessa
forma, como um ser de relações, faz com que Buber desenvolva uma
antropologia do “entre - dois”
60
.
2.1 Uma nova antropologia
Esta nova antropologia, como qualquer antropologia filosófica, quer
tentar compreender o homem, as suas manifestações, o fundamento de seu ser.
Por isso, considerar as características da palavra no homem é de suma
importância para se conhecer o fundamento do ser do homem
61
. O homem não
é um ser-para-si, é, antes, essencialmente um ser-no-mundo. Mais ou menos,
ele sempre se encontra em relação com o mundo. “Um homem considerado
somente em si mesmo é pura abstração”
62
.
O primeiro elemento desta nova antropologia é o social. Ele pode ser
traduzido como fenômeno social, enquanto manifesta a coexistência de uma
multiplicidade de homens com vínculos que os unem uns aos outros, resultando
experiências e reações em comum. Contudo, esse vínculo significa, muitas vezes,
apenas que nele estão contidas e delimitadas as existências individuais. O
59
Haltung, isto é, atitude que se manifesta no sentido de desvendar realizando-se. Segundo Buber
esta atitude encontra fundamento nas palavras-princípio.
60
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003,
p. 116.
61
Cf.: BUBER, M. Werke. Erster Band: Schriften zur Philosophie. München: Kösel; Heidelberg:
Lambert Schneider, 1962. p. 411, in: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e
diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p. 117.
62
Ibidem, loc. cit.
31
coletivo parece ter surgido na história com o objetivo de minimizar as
experiências pessoais para valorizar e fortalecer o grupo. O homem, dentro da
coletividade, sente-se mais seguro, como que carregado, libertando-se da
solidão, do medo diante do mundo e da sensação de estar perdido. O coletivo
torna-se, por seu efeito, essencial para o homem moderno, mas prejudica o
inter-humano, a vida entre pessoa e pessoa. “O um-com-o-outro coletivo
preocupa-se em conter dentro de limites a tendência das pessoas para o um-em-
direção-ao-outro”
63
.
O valor de estar voltado para a pessoa parece estar condicionado à
tolerância do grupo. Este último parece ter muita força em relação ao primeiro.
Buber demonstra esse fato por meio de uma experiência pessoal quando se
juntou a uma passeata em prol de um movimento ao qual ele nem pertencia,
mas estava lá por causa de um amigo.
Nessa ocasião, enquanto o grupo se organizava para partir, Buber
conversava com um amigo e um outro homem de bom coração. Estavam face-a-
face um com o outro, bem próximos, de modo autêntico, com a alteridade do
ser, quando o grupo começou a caminhada. Neste instante Buber descreve:
Enquanto se formava o cortejo, fiquei conversando com meu
amigo e um outro homem, "homem selvagem", de bom coração,
mas que também trazia sobre si a marca da morte. Neste
momento eu ainda sentia os dois como se estivessem realmente
face-a-face comigo, sentia cada um como meu próximo, próximo
mesmo àquilo que me era mais remoto; tão outro do que eu, que
minha alma se chocava, cada vez, dolorosamente contra esta
alteridade, mas que, precisamente por esta alteridade, me
confrontava autenticamente com o ser. Então as formações
puseram-se em marcha e, pouco depois, eu não estava mais
em nenhum confronto, fazia parte do cortejo, acompanhando o
passo sem destino e, evidentemente, o mesmo acontecia de uma
forma idêntica com os dois com quem, pouco, eu trocara a
palavra humana. Algum tempo depois, passamos em frente de
um café onde eu estivera sentado no dia anterior com um músico
a quem conhecia superficialmente. No mesmo instante abriu-se a
porta; o músico estava no limiar, viu-me - aparentemente a
mim viu - e para mim acenou. Imediatamente tive a sensação de
que fora retirado do cortejo e da presença dos amigos que comigo
marchavam e que fora colocado lá, face-a-face com o sico. Eu
não sabia que continuava a marchar no mesmo ritmo, me
experienciava como estando do outro lado, respondendo
silenciosamente com um sorriso de compreensão àquele que me
chamava. Quando retomei a consciência dos fatos, o cortejo, à
63
BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 136.
32
testa do qual estavam meus companheiros e eu, tinha deixado
o café atrás de si
64
.
O inter-humano, com certeza, vai muito além da simpatia. É de
fundamental importância que em relação ao um-diante-do-outro, o outro não
seja considerado como objeto, mas como parceiro num acontecimento vital.
Alguns existencialistas afirmam o fato de que um faz do outro o objeto como
perda do mistério e do inter-humano na relação entre os homens. O essencial do
acontecimento, porém, não é que um faça do outro seu objeto, mas o fato de
que ele não consegue fazê-lo completamente e o porqde não conseguir fazê-
lo. O ser humano pode pôr uma barreira intransponível à objetivação e esse é o
privilégio do homem
65
.
A sociologia poderia objetar esta distinção do social argumentando que a
sociedade se constrói precisamente sobre as relações humanas e que a doutrina
proveniente destas relações deve ser considerada na realidade como fundamento
da sociologia. Contudo, convém esclarecer que a “relação” que trata a sociologia
não corresponde exatamente a “relação” descrita por Buber. Naquela se
contempla uma atitude duradoura que se atualiza em acontecimentos que
incluem fenômenos psíquicos individuais, como por exemplo, a saudade do outro
ausente. O inter-humano Buber entende como
Apenas os acontecimentos atuais entre homens, ou seja,
contemplando-se, possam atingir diretamente a mutualidade, pois
a participação dos dois parceiros é, por princípio, indispensável. A
esfera do inter-humano é aquela do face-a-face, do um-ao-outro;
é o seu desdobramento que chamamos de dialógico
66
.
É errado confundir os fenômenos inter-humanos como fenômenos
psíquicos.
Buber aponta três principais problemas para a realização do
diálogo, do inter-humano. O primeiro é a dualidade de "ser" e
"parecer". O diálogo não acontece se aqueles que estão envolvi-
dos nele são simples aparência, isto é, se estão preocupados com
sua imagem, com o modo pelo qual desejam encontrar o outro.
Os parceiros do diálogo devem "ser", vale dizer, apresentar-se
sem reservas, como realmente é. O segundo problema diz
respeito ao modo pelo qual percebemos os outros. Para Buber,
perceber o outro é tomar dele um conhecimento íntimo, diferente
da observação analítica e redutora que transforma o outro em
simples objeto. Tal percepção, tal conhecimento íntimo significa
64
Ibidem, p. 137.
65
Cf.: Ibidem, p. 138.
66
Ibidem, loc. cit.
33
também para Buber, “tornar o outro presente”. O terceiro
problema que dificulta a realização do diálogo é a tendência de
"imposição", à qual Buber contrapõe a "abertura"
67
.
Outro elemento que se pode colocar como importante na proposta
antropológica de Buber é a diferenciação entre ser e parecer. Essa é uma
questão da qual participa todo ser humano. Alguns não se preocupam com a sua
aparência, simplesmente são como são, espontâneos e sinceros. Mas outros se
preocupam muito com a impressão deixada com quem se relaciona.
Buber distingue duas espécies de existência humana. Uma é
caracterizada por uma vida a partir do ser ou por aquilo que se é; a segunda é
determinada pelo desejo de parecer. Essas duas posições aparecem
naturalmente misturadas na maioria das ações das pessoas. A distinção,
contudo, é possível de se fazer no âmbito do inter-humano através de um
exemplo onde duas pessoas olham uma para a outra.
As pessoas do primeiro grupo ou o homem que vive de acordo com o que
é olha para o outro como alguém que quer exclusivamente manter relações
pessoais. É caracterizado por um olhar espontâneo, sem reservas. Naturalmente
ele tem a intenção de se fazer compreendido pelo outro, mas não é influenciado
por qualquer pensamento sobre a imagem de si próprio que pode ou deve
despertar no outro. O segundo grupo de pessoas que se preocupa com o próprio
parecer ou aparência que os outros irão captar, tendem a medir e calcular os
seus gestos e ações para produzir no outro o efeito desejado e uma aparência
específica. Assim, o que se faz de mais expressivo nessa aparência, o olhar, se
faz com a ajuda da capacidade que o homem tem, em maior ou menor medida,
de fazer aparecer um elemento desejado do ser no olhar. “Ele fabrica um olhar
que deve atuar como uma manifestação espontânea e, com freqüência, assim
atua”
68
. Essa manifestação não se como mero acontecimento psíquico, mas
também como uma reflexão de um ser pessoal.
Contudo, Buber chama a atenção para a imitação genuína que é uma
atitude autêntica e consciente onde se manifesta um desejo de parecer até ser.
Aqui a “imitação é imitação genuína (...), também a máscara é uma máscara e
não uma simulação”
69
. Diferente de quando a aparência é fundada na mentira
70
67
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
171.
68
BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 142.
69
Ibidem, loc. cit.
34
e por ela é impregnada. Aqui o inter-humano é ameaçado na existência, pois
deixa perder a oportunidade do acontecimento verdadeiro entre o Eu e o Tu.
A autenticidade é o elemento importante. Onde ela está presente, está
igualmente presente o autêntico humano. A crise seria, portanto, uma crise do
entre. O desafio seria libertar o conceito de honestidade de um moralismo e
configurá-lo com o conceito de retidão, retidão esta de caráter e de alma.
Outro elemento da antropologia de Buber é o tornar-se presente. Este
elemento é caracterizado pela conversação. Contudo, não se trata de um simples
palavreado onde não se usa o estar - juntos, nem se fala realmente um ao outro.
Sartre demonstrou essa realidade colocando-a no vel de um princípio de vida,
isolando o homem em si mesmo. Os muros que estão entre os homens que se
colocam em conversação são simplesmente intransponíveis. Não pode existir
contato direto com o outro. A existência interior do outro diz respeito somente a
ele e a mais ninguém.
Buber, porém, afirma que em algum ponto a humanidade se transviou da
verdadeira liberdade, da livre generosidade do Eu e Tu e que se deveria buscar
com todas as forças a nostalgia reprimida
71
. A conversação surge quando cada
um vê o seu parceiro como ele precisamente é.
Eu tomo conhecimento íntimo dele, tomo conhecimento íntimo do
fato que ele é outro, essencialmente outro do que eu e
essencialmente outro do que eu desta maneira determinada,
única, que lhe é própria e, aceitando o homem que assim percebi,
posso então dirigir minha palavra com toda serenidade a ele, a ele
precisamente enquanto tal
72
.
Isso não significa que numa conversação sobre um objeto se tenha que
perder todas as convicções pessoais, pelo contrário, se respeita o caráter da
pessoa e como ela desenvolveu sua convicção e, talvez, se tenha que mostrar o
que ela tem de errado. “Eu digo sim à pessoa com quem luto, luto com ela como
seu parceiro, a confirmo como criatura e como criação, confirmo também o que
está face a mim naquilo que se me contrapõe”
73
. A partir desse ponto, se
depende do outro para que haja uma conversação genuína, a reciprocidade
tornada linguagem. No entanto, depois que uma das partes tenha legitimizado o
70
A mentira a que Buber está se referindo é uma mentira existencial, sobre a qual se constrói a
própria vida para satisfazer um desejo ou vaidade pessoal. Esta mentira não se identifica, portanto
com um conjunto de fatos falsos.
71
Cf.: Ibidem, p. 146.
72
Ibidem, loc. cit.
73
Ibidem, loc. cit.
35
face-a-face, o outro, enquanto homem com o qual estou pronto a entrar em
diálogo, pode-se esperar que ele também entre e assuma atitude de parceiro
num tornar-se presente em um diálogo genuíno.
Buber alerta para o cuidado, quando se trata do conhecimento íntimo do
ser humano. Conhecer intimamente uma coisa significa experienciá-la na sua
totalidade, sem abstrações que poderiam reduzí-la. No entanto, quando se trata
de uma pessoa, ela se encontra em uma categoria diferente, pois precisa ser
compreendida sob o “ponto de vista do dom do espírito que entre todas as coisas
e seres a ele pertence, o espírito como fazendo parte decisiva da vida pessoal
do homem, isto é, o espírito que determina a pessoa”
74
. Isso significa perceber a
dinamicidade central que caracteriza a unicidade de toda manifestação, ação e
atitude. Quando o outro está destacado da contemplação de um Eu, esse
conhecimento íntimo
75
é impossível. É preciso, então, colocar-se de uma forma
elementar em relação ao o outro, para que ele se coloque como presença diante
do Eu. Essa atitude básica poderia até ficar sem resposta e a dialógica morrer
como germe, mas a mutualidade é conseguida e o inter-humano pode
desabrochar na conversação e no diálogo genuínos.
Neste sentido, Kant vem ajudar a olhar o outro semelhante nunca como
meio, mas sempre e ao mesmo tempo como um fim em si. O homem é
antropologicamente existente não no isolamento, mas na integralidade da
relação de homem e homem. Será a reciprocidade da ação que possibilita a
compreensão adequada da natureza humana e que a aparência não intervenha
perniciosamente na relação entre um ser pessoal e um outro ser pessoal e que
cada um tenha o outro na mente como presente no seu ser pessoal.
Não é o ser-próprio como tal que é o essencial em última
instância, mas o fato que o sentido da criação da existência
humana se completa, vez após vez, como ser-próprio. É a função
de abertura entre os homens, é o auxílio ao vir a ser do homem
enquanto ser-próprio, é a assistência mútua na realização do ser-
próprio da natureza humana conforme a criação, é isto que leva o
inter-humano à sua verdadeira altura
76
.
A conversação ou o diálogo genuíno é o voltar-se para o outro na
verdade do ser, é o próprio voltar-se do ser. Quando se fala tem-se alguém em
74
Ibidem, p. 147.
75
Contrariamente ao conhecimento íntimo está o olhar analítico, redutor e dedutivo. Cf.: Idem,
op.cit.
76
Ibidem, p. 152.
36
mente. E ter alguém em mente significa exercer ao mesmo tempo o tornar-
presente na medida em que é possível no determinado instante. Essa atitude
aceita e confirma o outro. Os sentidos atuam para que o outro se torne uma
pessoa total e única, como a pessoa que ele é. Por isso, cada um dos
participantes traz a si próprio para o diálogo. Na participação do diálogo, cada
um tem o caráter do que quer ser dito, e deve fazê-lo, porque o que se diz
leva consigo o signo inconfundível daquele que diz que por sua vez faz parte da
vida comunitária. Onde existe a palavra dialógica de forma autêntica existe a
franqueza do ser, de modo oposto ao palavrear vazio e sem direção de pessoa. O
dizer é ao mesmo tempo natureza e obra, broto e formação, e onde ele aparece
dialogicamente, no espaço onde a grande fidelidade respira, esse dizer precisa
realizar sempre novamente a unidade dos dois.
Dessa forma supera-se a superficialidade que uma conversação aparente
pode gerar. No meio de pessoas que estão livres da vontade de parecer, produz-
se uma comum fecundidade que não é encontrada em outro lugar. A palavra
nasce entre homens que estão abertos pela dinâmica de um elementar estar -
juntos nas suas próprias profundidades.
2.2 As palavras-princípio como presença e cumplicidade
As palavras-princípio fundamentam a existência humana. A realização
existencial do homem acontece na sua relação com o mundo. O homem em sua
essência é um ser-no-mundo, isto é, seja qual for o lugar ou a situação, o
homem sempre está ligado de uma forma ou outra ao mundo. Este mundo vai
além das coisas que o rodeia e dos animais. O homem, em sua relação com o
mundo, pode ir além de seus sentidos e necessidades vitais, ele pode ver o
mundo numa totalidade. O mundo existe, porque o homem é capaz de dar
significado a tudo que existe ao redor dele; se assim não fosse, o mundo não
existiria. O animal não possui a liberdade que o homem tem diante das coisas. O
animal está dependente do mundo, das coisas que o cercam de modo absoluto.
Também o homem é determinado pelo mundo, de certa maneira, mas isso
acontece dentro de sua liberdade. O princípio do ser do homem acontece numa
correlação homem-mundo, que por sua liberdade pode determinar o mundo.
37
Martin Buber chama esse princípio do ser do homem de atitude. Portanto, o
homem realiza a sua existência quando livremente assume uma atitude diante
do mundo de modo responsável. Desta forma, a atitude que o homem tem
quando se coloca diante do mundo é uma postura também dinâmica.
O mundo não pode ser concebido sem o homem e nem o homem
pode ser compreendido independentemente do mundo. uma
atitude do homem na qual o mundo aparece com simplesmente
separado do homem. A outra atitude do homem faz com que o
mundo seja não mais um simples ‘objeto’, no sentido de ‘algo
jogado diante de’, mas um Tu. Em uma como em outra, as
atitudes variam tanto a condição essencial do mundo quanto a
condição existencial do homem. A atitude do homem vai
determinar o significado de sua existência e o significado do
mundo
77
.
Assim sendo, essa variação na modalidade de ser do homem acontecerá
de acordo com as atitudes fundamentais que o homem pode assumir e que
Buber chama de palavras-princípio que se revelam como Eu-Tu e Eu-Isso. A
atitude fundamental do homem pode se expressar numa dualidade diante do
mundo e também o princípio do ser do homem não é único, mas duplo. Essa
dualidade de atitudes é manifestada por uma dualidade de palavras que são
proferidas. O Eu surge ao ser quando o homem profere a palavra-princípio Eu-Tu
ou Eu-Isso. “O mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade de sua
atitude. Sendo que a atitude do homem é dupla de acordo com a dualidade das
palavras-princípio que ele pode proferir”
78
.
O Eu do homem também participa da duplicidade da atitude do homem.
Dessa forma, o Eu de uma palavra princípio não é idêntica ao Eu de outra
79
. Elas
possuem conteúdos diferentes e determinados nas possibilidades de
relacionamento. Tudo que se apresenta diante do Eu pode se tornar um Tu ou
um Isso, conforme a atitude assumida pelo Eu. Buber afirma uma clara e
contínua correlatividade e interdependência entre o homem, o Eu e o mundo,
evitando um entendimento idealista. Essa interdependência gera a possibilidade
da plenificação do evento.
A atitude que Buber quer exprimir vem antes de qualquer conhecimento
existente na pessoa, seria, portanto, de ordem pré-reflexiva e existencial. Ela
é algo constitutiva do ser, não algo que se toma de fora, nem algo que possa ser
77
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
118.
78
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 3.
79
Cf.: Ibidem, loc. cit.
38
entendido como um posicionamento de ordem cognoscitivo diante de um ente ou
de um objeto qualquer. A atitude “é o próprio Eu realizando-se”
80
. Por isso, não
há nenhum Eu fora da relação Eu-Tu ou Eu-Isso.
As palavras-princípio não exprimem algo que pudesse existir fora
delas, mas uma vez proferidas elas fundamentam uma existência.
As palavras-princípio são proferidas pelo ser. Se se diz Tu profere-
se também o Eu da palavra-princípio Eu-Tu. Se se diz Isso se
profere também o Eu da palavra-princípio Eu-Isso
81
.
O homem pode se realizar, numa atitude de relacionamento, tanto
quando diz a palavra Eu-Isso, quanto quando profere a palavra-princípio Eu-Isso.
A palavra é portadora do ser. Para o autor, a palavra possui a plenitude dinâmica
do ser e é caracterizada como dabar
82
; diferentemente da concepção de logos
que se situa numa posição de contemplação. Assim, quando o homem profere a
palavra-princípio, esta fecunda a relação. Ela não é simples expressão verbal,
está ligada ao que existe de mais íntimo no homem: a sua essência. Quando o
homem profere ou pronuncia a palavra-princípio, ele cria, desenvolve uma
determinada atitude diante do ser com significado profundamente “existencial do
processo de apelo à existência, à realidade do ser-homem”
83
. Logo, o princípio é
entendido como o fundamento existencial ou apelo à existência do ser-homem.
As palavras-princípio significam antes relações e não coisas, e quando proferidas
fundamentam a existência
84
.
A relação, pela palavra-princípio, pode acontecer sob duas maneiras, que
recebe sua significação segundo a intenção dessa palavra que determina. Isso
quer dizer que o Eu entra em relação ou com um Tu ou com um Isso. Dessa
forma, quando um Eu pronuncia a palavra-princípio, ele mostra ou determina a
direção ao mundo e, ao mesmo tempo, qual a atitude do homem e sua essência
na entrada em relação ao mundo como sendo um Tu ou um Isso. Essa palavra
contém em seu seio uma significação intencional. “Aquele que profere uma
palavra-princípio penetra nela e permanece”
85
. Quando se revela o Eu se
80
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
119.
81
BUBER, Martin. Eu e Tu, São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 3.
82
Dabar, isto é, palavra com força criadora. É a palavra criadora que Deus proferiu no ato da
criação. Cf.: Gn 1,3ss.
83
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
120.
84
Cf.: Ibidem, loc. cit.
85
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 4.
39
revela a palavra-princípio. Essa atitude é doação de sentido que nasce de um
encontro entre o homem e aquilo que lhe está em frente. Pois o homem é:
O ente pelo qual o significado do ser é desvelado; seu Eu, sua
palavra instaura, desvela o ser, o mundo como sendo
essencialmente relacionados ao homem. Ou ainda, o ser humano
é compreendido como relação, e o fundamento ou condição de
possibilidade de tal relação, como de todo relacionamento é a
palavra-princípio
86
.
Por isso, não se pode conceber um Eu fora das duas relações. Buber
afirma que isso seria uma abstração e revelaria um homem incompleto. “Não
um Eu em si, mas apenas o Eu da palavra princípio Eu-Tu e o Eu da palavra-
princípio Eu-Isso”
87
. Mas ao mesmo tempo em que o Eu sempre está ligado a
um Tu ou a um Isso, o Eu nunca poderá, ao mesmo tempo, manter as duas
relações. A dinâmica que acontece é de atualidade e latência. A atualidade de
uma palavra-princípio implica a latência da outra, numa contínua sucessão.
A existência humana é, portanto, considerada sob uma dualidade de Eus
que é caracterizada pelo princípio monológico, que significa separação,
experiência, utilização e pelo princípio dialógico que significa resposta, o inter-
humano e a união. O ser humano é responsável pela instauração de sentido no
mundo. O destino do homem é instaurar o sentido do mundo, daquilo que está à
sua frente, e, ao mesmo tempo, desvendar e instaurar o sentido de sua própria
existência. A instauração de sentido no mundo e em si próprio no desenrolar da
história acontece na esfera do inter-humano, o lugar do encontro e da resposta
fundamentada pela reciprocidade e pela mutualidade.
Nessa dualidade de possibilidades, a palavra-princípio Eu-Isso assume
sobretudo o significado de separação. O Eu separado tem possibilidade de tomar
consciência de si mesmo como um sujeito de experiência e utilização. Ele é
separado porque é limitado e especificado entre outros seres limitados. É o Eu de
um processo de relacionamento objetivante. O Eu da palavra-princípio Eu-Tu
introduz a relação ou o mundo da relação. Percebe a pessoa de modo pleno, isto
é, como alguém que toma consciência de si e de sua realidade, como uma
subjetividade, como um sujeito que não possui nenhum objeto ligado a si como
aos moldes do relacionamento objetivante: “quem diz Tu não possui coisa
86
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
121.
87
BUBER, Martin. Eu e Tu, São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 4.
40
alguma, não possui nada. Ele permanece em relação”
88
. Essa relação acontece
na totalidade do ser, como afirma Buber, “a palavra-princípio Eu-Tu pode ser
proferida pelo ser na totalidade do ser”
89
e não somente parte do ser, como seu
eu epistêmico, por exemplo
90
.
No relacionamento Eu-Isso, acontece o relacionamento sujeito-objeto.
Interessante perceber, neste relacionamento, que o objeto pode estar presente,
mas de nada adianta se o Eu não está na presença
91
desse objeto. Sendo assim,
o objeto não está presente na sua própria realidade, mas é representado através
de uma identidade de um conceito. Por essa razão, o homem tem a capacidade
de combinar ausência e presença. Na relação Eu-Tu, no encontro dialógico, o
homem caminha em direção de uma plenificação de sua pessoa, pela relação
com outras pessoas e com outras subjetividades. “A pessoa significa uma forma
espiritual de um estado natural de ligação”
92
. O domínio do ter, da experiência e
da utilização não consegue chegar à plena realidade; a participação na realidade
e no ser acontece ao que está em relação. Portanto, o Eu será real somente se
estiver participando da realidade do ser.
Buber quer, com isso, mostrar que não se deve entender a existência
humana exclusivamente pela relação monológica, mas para que ela seja
completa, deve ser entendida numa “dinâmica histórica da existência humana no
seu devir através do ritmo constante de sua atitude diante do mundo, realizada
através do Eu-Tu ou do Eu-Isso”
93
. O autor não descarta o Eu da relação Eu-
Isso, mas afirma que a separação que essa relação realiza distancia-se do ser e
fica somente uma determinação ou um modo de ser.
O Eu de uma relação monológica, ou que passou pelo mundo do Isso,
ainda possui consciência de si, “como que se desligando da luz do Tu”
94
.
Significa que o Eu não perde completamente a realidade. Permanece no Eu uma
semente da relação, pois em seu interior, isto é, em sua subjetividade, o Eu está
88
Ibidem, p. 5.
89
Ibidem, p. 3.
90
Zuben afirma o encontro da concepção buberiana com a concepção da fenomenologia
existencial, quando esta concebe a recusa do primado do conhecimento propondo uma relação
entre o homem e o mundo de ordem existencial mais originária que o relacionamento de ordem
cognoscitiva. Conferir a nota n° 4, ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e
diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p. 121.
91
Gegenwart, isto é, o Tu que se manifesta enquanto o tempo atual, que se opõe ao passado e ao
futuro. O termo expressa “presença” ou “presente”.
92
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
125.
93
Ibidem, p. 125.
94
Ibidem, p. 126.
41
consciente tanto da sua ligação, quanto da sua separação. Essa lembrança e
consciência levam a subjetividade a ser a sementeira onde cresce, amadurece e
se aperfeiçoa a vontade de uma nova relação, de uma renovação na participação
do ser.
A subjetividade deve ser compreendida como a vibração dinâmica
de um Eu no interior da verdade solitária que é a sua. Ela é a
atmosfera propícia onde amadurece a substância espiritual da
pessoa, o lugar em que é possível uma regeneração do ser-
parado. Retirado na ilusão de conhecer seu próprio ser, sua
maneira de ser o ser separado toma consciência de si como um
ser que é assim e não de outra maneira
95
.
Desta forma a relação dialógica se completa pelos princípios fundantes do
ser do homem, isso é, o princípio dialógico e monológico, os quais não coexistem
ao mesmo tempo. A existência dialógica do homem acontece, portanto, numa
constante atualidade e latência desses dois princípios. Embora a exclusividade de
uma palavra-princípio implique a latência da outra, Buber insiste que é o mesmo
Eu, o único homem, ou ainda, “uma existência que pode realizar-se de um modo
ou de outro”
96
. Contudo, o fundamento do ser do homem não são as duas
palavras-princípio, mas a atualização de uma ou de outra.
Essa atualização demonstra uma continuidade baseada no princípio
dialógico. A vida dialógica é vivida pelo homem que possui consciência que,
durante a atualidade da palavra princípio Eu-Isso, se espera a palavra invocadora
e a respectiva resposta. A lembrança da relação dirigida pelo princípio Eu-Tu
gera no homem um desejo de preencher o vazio da relação Eu-Isso. Desse
modo, o ser humano percebe dentro de si que é portador de um devir que
constantemente o impulsiona a caminhar, ora numa continuidade dialógica, ora
numa continuidade monológica.
2.3 A relação como começo da existência do homem
A existência do homem acontece na relação. As palavras-princípio
fundamentam a possibilidade do ser do homem de ser um Tu ou um Isso. Nestas
95
Ibidem, loc. cit.
96
Ibidem, loc. cit.
42
duas possibilidades desenvolve-se uma continuidade através da atualização e da
latência das palavras-princípio. Os dois movimentos essenciais são a distância
originária e a relação.
A relação Eu-Tu é a relação mais simples, primeira e mais elementar,
pois é a relação vivida. A criança ou o ser primitivo pronuncia a palavra-princípio
antes de conhecer o Eu. A relação acontece com muita força, de modo poderoso,
de tal forma que o Eu percebe essa influência sem estar consciente de sua
existência. A palavra-princípio Eu-Tu é composta de um Eu e de um Tu, mas não
é formada da justaposição de um Eu e de um Tu. Por isso, a consciência do Eu é
posterior, acontece quando, depois da relação, se toma consciência de si como
um Eu, se isola o Eu da relação e se adquire a existência. A partir deste
momento, a palavra-princípio pode ser pronunciada para se formar o primeiro
modo egocêntrico de se existir. Esse Eu se torna protagonista de determinadas
impressões e o mundo aparece como o seu objeto. Se o Eu, na relação Eu-Tu, é
posterior, a relação Eu-Isso é ainda posterior ao Eu
97
. Dessa forma, existem três
realidades que se integram na reciprocidade de um evento que constituem um
Eu: o próprio Eu, a relação – entendida como palavra-princípio Eu-Tu que os une
– e o Tu
98
. “Se o Eu se realiza na sua relação com o Tu, e se o Eu precede o Eu-
Isso, compreendemos que o Tu é anterior ao Isso e o Eu-Tu é anterior ao Eu-
Isso, de uma anterioridade ontológica”
99
.
As filosofias da existência encontram-se com Buber na sua afirmação de
que a existência de uma relação primeira e irredutível é anterior ao
relacionamento cognitivo ou ao conhecimento, pois “a presença originária da
relação, sucede então, a presentificação objetivante do relacionamento sujeito-
objeto, condição de possibilidade de todo conhecimento científico, em suma, de
todo conhecimento”
100
. A reflexão sobre si mesmo, ou a análise reflexiva do
sujeito sobre si não consegue açambarcar a característica essencial do que
acontece na relação, porque é irredutível ao mundo do Isso. A consciência do Eu
é constituída pelo evento da relação que se por sua maior ou menor
intensidade, na seqüência alternada de latência e abertura de cada evento.
97
Cf.: BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 25.
98
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003,
p. 131.
99
Ibidem, loc. cit.
100
Ibidem, loc. cit.
43
O Eu se descobre como consciência não objetivável pelo Tu e como
consciência não “coisificada”. O Eu se percebe nessa relação como uma projeção
ao outro, isso é, descobre um sentido de intencionalidade da consciência como
abertura ao outro. O encontro faz a presença do outro acontecer e valorizar o
outro como absolutamente outro, ou como um Tu. O outro se torna uma
presença iluminadora possibilitando a vida autêntica, sem reduzi-lo a qualquer
meio. “O fundamento da verdadeira existência é a relação, a qual é também
princípio (no sentido mais profundo do termo), como afirma Buber: ‘no princípio
é a relação’”
101
.
2.4 O homem na relação Eu-Isso
O homem se coloca diante do mundo e dos seres existentes sob as duas
atitudes fundamentais. A primeira, esteio para a existência dialógica,
caracterizada pela relação Eu-Tu, e a segunda é o nculo objetivável, o campo
da experimentação, do conhecimento e utilização caracterizados na relação Eu-
Isso. A experiência estabelece um contato na estrutura do relacionamento, de
certo modo, unidirecional entre um Eu, ser egótico, e um objeto manipulável. O
mundo do Isso é ordenado e coerente, ele é indispensável para a existência
humana. É o lugar onde se entende os outros. Ele é essencial, mas não pode ser
o sustentáculo ontológico do inter-humano.
O mundo se mostra de modo concreto ao homem por meio da palavra-
princípio Eu-Isso, implicando em afirmar que o homem é necessariamente na sua
relação com o mundo, não havendo homem fora do mundo, nem mundo fora do
homem. O mundo, portanto, é algo inerente ao homem, conquanto lhe sirva de
estrutura e lhe permita, mediante o diálogo, a percepção do outro como sujeito,
ou das próprias coisas ou da própria natureza, para além do mero espaço na
esfera do Tu.
O mundo do Eu-Isso supõe o plano da reflexão, daí falar em objetivação.
Embora o homem tenha a ilusão de experimentar algo, algum objeto, como
101
Ibidem, p. 132.
44
transparente, ele é, na realidade, opaco e acabado, pois cabe ao homem viver o
sentimento de distância e ter dele a experiência. No entanto, a afirmação da
primazia do diálogo, no qual o sentido mais profundo da existência humana é
revelado, não agride a atitude Eu-Isso, pois o divertimento, o trabalho, o
conhecimento e até mesmo a cultura são exemplos de um Isso. O Eu-Isso se
torna a fonte do mal somente quando o homem se deixa subjugar por essa
atitude, absorvido em seus propósitos, movido pelo interesse de pautar todos os
valores inerentes a essa atitude, deixando, enfim, fenecer o poder de decisão e
responsabilidade, de disponibilidade para o encontro com o outro, com o mundo
e até com Deus. A diferença entre atitudes não é ética, mas ontológica. Não se
deveria distingui-las em termos de autenticidade ou inautenticidade. Enquanto
humanas, as duas atitudes são autênticas. Somente quando a relação perde o
seu sentido de construtora do engajamento responsável pela verdade do inter-
humano, daí então o Eu-Isso se torna destruição de si mesmo. O homem é
submetido à arbitrariedade e à fatalidade.
2.5 O espírito na relação
Na história da humanidade percebe-se a manifestação do outro de muitas
formas, mas, em especial, pela linguagem verbal, linguagem da arte, da ação,
onde a palavra da resposta ou linguagem é o Espírito. Em outros termos, o
Espírito é a resposta do homem a seu Tu. O Espírito não se identifica nem ao
homem, nem ao Tu, mas está justamente entre os dois: é a resposta do Eu para
Tu. Porém, uma questão surge: o fato é que todo Tu tende a ser
inexoravelmente um Isso. E quanto maior for a intensidade da relação, maior
será a resposta e mais se enlaça o Tu, reduzindo-o à objetivação
102
.
Segundo Buber, todas as coisas se transformam em Isso, porém cada
coisa que é objetivada pelo homem deve se consumir para se tornar novamente
presença, através do Espírito, a fim de se apoderar do homem, fazendo retomar
ao elemento inicial do objeto e vivenciá-lo no presente. A fatalidade é uma das
piores atitudes do homem. Em vez de se contemplar e respeitar, acolher os
limites e a totalidade do outro, dando uma resposta na relação, o homem prefere
102
Cf.: BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 45.
45
observar, isto é, reprimir e servir-se do Tu. A fatalidade conforma o homem no
mundo do Isso
103
.
O processo de objetivação acontece de modo tão natural, que nem se
percebe a passagem do mundo do Tu para o mundo do Isso. No conhecimento,
por exemplo, tudo começa na contemplação, no face-a-face. As coisas são
consideradas pelo homem através de um encontro de face-a-face, de presença.
Mas o homem quando alguma coisa, não se contenta apenas em estar na
presença, mas ele compara, ordena com outros objetos, coloca em classes,
decompõe objetivamente, pois, para conhecer, o homem precisa colocar tudo na
qualidade de um Isso.
Contudo, a atitude do conhecimento não é a maior, existe outra que se
eleva ao ser estrelado do Espírito, é a resposta viva. A palavra, portanto, tornou-
se vida e essa vida é ensinamento, que mesmo sendo a lei cumprida ou
transgredida, é sempre um testemunho que garante a sobrevivência do Espírito
sobre a face da terra. Assim, se pode passar de geração a geração um caminho
de abertura para o mundo do Tu. Entretanto, prefere-se:
Aprisionar a pessoa na história, e seus ensinamentos nas
bibliotecas; eles codificaram indiferentemente o cumprimento ou
a violação das leis, e são pródigos na auto-veneração ou mesmo
na auto-adoração sempre camuflada com psicologia, como é
próprio do homem moderno
104
.
Ao contrário da resposta viva, o Espírito pode ser recalcado, reduzido
quando, no aperfeiçoamento da função de experimentação e de utilização de
uma relação, o homem separa o Eu do Isso criando duas grandes zonas: as
instituições e os sentimentos. O primeiro, no domínio do Isso e o segundo, sob o
domínio do Eu
105
.
Buber afirma que a instituição é a parte de fora do homem, onde se
trabalha, se exerce influência, se fazem negócios; a estrutura é mais ou menos
organizada, e ordena, de uma ou outra forma, o curso dos acontecimentos. Os
sentimentos são considerados a parte de dentro, onde se vive a presença e se
livra das instituições. Aqui o homem se manifesta com seu ódio, amor ou
ternura; é o estar à vontade
106
.
103
Cf.: Ibidem, p. 46.
104
BUBER, Martin. Eu e tu. 2. Ed. São Paulo: Moraes, 1979, pp. 49-50.
105
Cf.: Ibidem, 50.
106
Cf.: Ibidem, loc. cit.
46
O mundo do Isso, desvinculado das instituições, é somente um exemplar,
um objeto; o Eu, separado dos sentimentos, não tem a capacidade de
contemplar. Ambos não dão acesso à vida atual, pois as instituições não geram a
vida pública e os sentimentos não criam a vida pessoal. Para que possam nascer
e perdurar são necessários sentimentos como conteúdo mutável; por outro lado,
são necessárias instituições como forma durável; porém, esses dois fatores
reunidos não geram ainda a vida humana, é necessário um parceiro que é a
presença central do Tu, ou ainda, para dizê-lo com toda a verdade, o Tu central
acolhido no presente”
107
.
2.6 A causalidade
“O mundo do Isso é o reino absoluto da causalidade. Cada fenômeno
‘físico’ perceptível pelos sentidos e cada fenômeno psíquico pré-existente ou que
se encontra na experiência própria, passa necessariamente por causado e
causador”
108
.
O reino da causalidade, do mundo do Isso, sem dúvida, tem sua função
essencial: a ordenação científica da natureza. Contudo, ela não aflige o homem,
pois ele pode se evadir para o mundo da relação sem se livrar do mundo do Isso.
Na relação Eu-Tu, onde existe o confronto livre, recíproco, não possibilidade
de causalidade, nem ao menos uma pequena matriz. Desta maneira o homem é
livre, porque conhece a relação e a presença do Tu, e, por isso, está em
condições de tomar uma decisão. Aquele que é capaz de se apresentar como
presença diante de uma face, tomando uma decisão, não pode ser considerado
submisso à causalidade.
O homem livre percebe a oscilação existente entre o Tu e o Isso, e o
sentido dela. Ele sabe que é mortal e que a oscilação existe nele por essência. A
chave para ultrapassar o umbral do santuário, onde marca o extremo de um e de
outro mundo, é a decisão. O homem bem sabe que pode, sempre que quiser,
107
Ibidem, p. 54.
108
Ibidem, p. 59.
47
ultrapassar esse umbral, apesar de não poder permanecer para sempre. Essa
obrigação de deixar aquele mundo, logo depois, incessantemente, está
intimamente ligada ao sentido de destino desta vida. É esse “umbral” que
ascende no homem a resposta sempre nova, onde atua o Espírito. O que se
chama necessidade, não apavora, pois nesse santuário ele conheceu a
verdadeira resposta, isto é, o destino.
Conforme a concepção de Buber, o destino e a liberdade juraram
fidelidade mútua, pois quando o homem toma a decisão de atualizar sua
liberdade ele encontra seu destino.
Aquele que se esquece de toda causalidade e toma uma
decisão do fundo de seu ser, aquele que se despoja de seus
bens e da vestimenta para se apresentar despido diante da
face, a este homem livre o destino aparece como réplica de
sua liberdade
109
.
Contudo, apesar da garantia do Espírito em assegurar que todos os
homens façam o encontro com um Tu, acontece que, às vezes, o mundo do Isso
fica sem ser penetrado, sem ser fecundado pelo Tu. Se o ser humano apenas se
acomoda nos objetos e se ele não mais deseja o Tu, ele sucumbirá. Neste caso,
a causalidade se intensificaria a tornar-se fatalidade opressora e
enganadora
110
.
O caminho para uma libertação não seria o caminho do progresso e da
evolução, mas de retorno ao Espírito. Uma descida em espiral através do mundo
subterrâneo do Espírito. Ao mesmo tempo, também, uma ascensão para uma
região o íntima, tão sutil, tão complicada que não se pode mais avançar nem
recuar, onde existe apenas a inaudita conversão, uma ruptura
111
. Buber ainda
afirma: “Onde está o perigo, ali cresce também a força salvadora”
112
.
2.7 Eu egótico
O Eu egótico separa-se do evento de modo consciente. Porém, Buber não
cessa de afirmar que as pessoas ou as coisas não perdem a atualidade. A
participação permanece nelas como potencialidade ou semente viva.
109
Ibidem, p. 62.
110
A liberdade, em relação à causalidade, dá possibilidade a conversão.
111
Durchbruch.
112
Ibidem, p. 65.
48
O egótico toma consciência de si como um ente que é desse e não de
outro modo e sempre voltado para si mesmo: “eu sou assim”.
Entre o “eu não sou nada” e “eu sou” existe a distância entre o Eu
egótico e o Eu Pessoa. O Eu egótico é relativo, o pessoal reside
em si mesmo. O Eu egótico necessita de atributos, o Eu pessoal,
apenas de consistência, de realidade, de presença, que o
adquiridas através de relações. Os atributos velam a falta de
realidade do Eu egótico. É por isso que ele tanto necessita da
afirmação de suas qualidades e se vê como um ente que é assim-
e-não-de-outro-modo
113
.
Portanto, ele se debruça sobre seu próprio modo de ser específico que
imaginou ser seu. Enquanto o Eu, da relação com o Tu, contempla o si-mesmo, o
egótico estabelece sobre si um conhecimento que o leva a iludi-lo, pois o que é
experienciado por esse Eu, sem voltar à atualidade, é alienante
114
.
O verdadeiro conhecimento poderia levá-lo frustração ou à regeneração.
Essa frustração surge da dinâmica de tudo submeter ao funcional e à utilização e
de nada atualizar. A atualização não acontece no ser egótico porque requer de
um ser que não esteja unicamente nele, nem unicamente fora dele. Toda
atualidade é uma ação onde o Eu participa sem poder se apropriar do ser. Desta
forma, o egótico permanece alienado à atualidade, porque esta requer
participação e o egótico não participa, mas se coloca à parte como aquele que se
apropria. “O Eu que se separa do evento da relação em direção da separação,
consciente desta separação, não perde sua atualidade. A participação permanece
nele, conservada como potencialidade viva”
115
.
A história da humanidade desenrola-se nesse constante pronunciar das
palavras-princípios, Eu-Tu, ou Eu-Isso. Nunca, o ser humano será totalmente
egótico, ou totalmente atualidade; o que acontece é que existem homens que
possuem mais atitudes egotistas e outras atitudes mais atualizantes.
Homem algum é puramente pessoa, e nenhum é puramente
egótico; nenhum é inteiramente atual e nenhum totalmente
carente de atualidade. Cada um vive no seio de um duplo Eu. Há
homens, entretanto, cuja dimensão de pessoa é tão determinante
que se podem chamar de pessoas, e outros cuja dimensão de
egotismo é tão preponderante que se pode atribuir-lhes o nome
113
CROMBERG, Mônica Udler. A crisálida da filosofia: a obra eu e tu de Martin Buber ilustrada
por sua base hassídica. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 69.
114
Cf.: Ibidem, p. 91.
115
BUBER, Martin. Eu e tu. 2. Ed. São Paulo: Moraes, 1979, p. 74.
49
de egótico. Entre aqueles e estes se desenrola a verdadeira
história
116
.
Quanto mais intenso é o Eu da palavra princípio Eu-Tu, tanto mais o ser
humano é pessoa na dualidade de seu Eu. Quanto mais o Eu da palavra princípio
Eu-Isso for dominante, mais profundamente o Eu é atirado na inatualidade e
nesse estado, “a pessoa leva, no homem, na humanidade, uma existência
subterrânea e velada e, de algum modo, ilegítima até o momento em que ela
será chamada
117
.
Contudo, pode-se fazer uma ressalva quanto ao fato de Buber não ter
explicado suficientemente o problema do conceito de pessoa quando aplicado à
análise do filósofo que tenta entender o sentido de seu ser e de sua existência.
Quando se parte do ponto de vista da relação que o homem estabelece com o
mundo, a distinção acontece em termos de um relacionamento cognoscitivo para
o Eu-Isso e em termos de uma relação dialógica para o Eu-Tu. Este tem caráter
existencial-ontológico, aquele possui um caráter objetivante-cognoscitivo. Parece
que o primeiro quer exprimir o caráter da totalidade do ser do homem, portanto,
como pessoa
118
. Deste modo, não se tem bem claro o que Buber quis insinuar
com o método específico da antropologia filosófica.
116
Ibidem, p. 76.
117
Ibidem, loc. cit.
118
Ibidem, loc. cit.
50
3 A DIMENSÃO FUNDANTE DO TU ABSOLUTO
Buber dedica todos os seus esforços na busca de uma visão de conjunto
da realidade onde não haja quebra, nem ruptura absoluta entre sujeito e objeto,
entre teoria e prática, entre Deus e homem. O Hassidismo fornece uma
cosmovisão que supera a dicotomia entre sujeito e objeto, teoria e prática e uma
solução para o problema da desumanização do homem.
Assim como em Daniel o desespero é o portal para a realidade,
assim em Eu e Tu o desespero é o solo a partir do qual o retorno
brota. O homem obstinado, que está inteira e inextrincavelmente
enredado no irreal, dirige a melhor parte de sua espiritualidade
em desviar ou velar seus pensamentos a respeito de seu Eu real.
Mas somente estes pensamentos com respeito ao Eu esvaziado de
realidade e ao Eu real é que possibilitam ao homem penetrar e
enraizar-se no solo do desespero, de maneira que a partir da
autodestruição e do renascimento, o início do retorno possa
despontar. Apenas através deste retorno é que ele pode encontrar
o “Tu eterno”
119
.
A relação Eu-Tu dá base à experiência e à existência, estabelece o
domínio da relação fundamental e das relações cotidianas. Essa relação dialógica
é marco referencial em cujo âmbito se desenvolve e se abre à palavra princípio
Eu-Tu absoluto, esta sim, cume do pensamento de Buber
120
.
A relação entre indivíduo e indivíduo supõe um movimento vertical que
se apóia
121
sobre o ato de uma relação Eu-Tu com o Tu absoluto. Dizer Eu-Tu ou
Eu-Tu Absoluto é estar em uma relação absoluta, isso é, nada lhes
fundamento, pois são fundamento de si mesmos. Assim, não se deve pensar a
relação como um composto de um e outro, mas como entre um e outro
122
. A
pergunta de como um Eu poderia entrar em relação com um Tu Absoluto requer
que se tenha em mente que Buber está buscando um fundamento único, apesar
da dualidade essencial da relação. Esse fundamento primordial é a relação. O
119
FRIEDMAN, Maurice. Martin Buber’s life and work. Detroit: Wayne State UniversitY Press,
1988, p. 354 (tradução livre do autor).
120
Cf.: BUBER, Martin. Eu e tu. 2. Ed. São Paulo: Moraes, 1979, p. XLII.
121
Cf.: CROMBERG, Mônica Udler. A crisálida da filosofia: a obra eu e tu de Martin Buber
ilustrada por sua base hassídica. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 141.
122
Ao mesmo tempo não se encontra Deus dentro do homem, mas sempre na relação entre um Eu
e um Tu.
51
mundo concreto onde essa relação se atualiza é a linguagem no diálogo
123
que
se dirige em atualização até as bordas da divindade
124
.
“Quando Buber fala sobre o Tu eterno, não é sobre Deus que está
tratando, mas sobre o aspecto relacional de Deus: não é Deus em si ao que
“entre” Deus e o homem”
125
. A relação, o que existe entre o Eu e o Tu, é para
Buber uma relação de ser-a-ser e pode ser chamada de espiritual. É por isso que
Buber afirma que cada Tu particular abre uma perspectiva sobre o Tu Absoluto e
que por meio de cada Tu particular a palavra-princípio se dirige ao Tu Eterno: “as
linhas de todas as relações, se prolongadas, entrecruzam-se no Tu eterno. Cada
Tu individualizado é uma perspectiva para ele. Através de cada Tu
individualizado a palavra-princípio invoca o Tu eterno”
126
.
3.1 Testemunho: um caminho
O caminho percorrido por Buber, na fé, quer fugir de qualquer religião ou
norma inviolável. A relação com o Absoluto é de confiança, fugindo de uma
relação objetivante, como se fosse um Isso, isto é, um ser impessoal
127
.
Portanto, quando Buber escreve sobre Deus, não quer fazer uma teologia, pelo
contrário, quer colocar um exemplo concreto de uma atitude
128
real de fé. O
material que se utiliza não é nada mais que a literatura do povo, com suas
tradições de vida judaica, em especial do Oriente. As verdades religiosas são
geralmente dinâmicas, em conseqüência, deve-se evitar fazer uma análise
descontextualizada, como se fosse um segmento da história. Pelo contrário, para
haver uma visão mais completa, deve-se tomar o conjunto, seria como se
encontrasse o início da religiosidade do povo judeu e se percebesse seu
desenvolvimento no decorrer da história.
123
O diálogo deve ser entendido aqui como uma metáfora. A palavra é o que acontece entre os
dois. O diálogo seria uma espécie de síntese da relação.
124
Cf. MECA, Diego Sanchez, Martin Buber: fundamento existencial de la intercomunicación.
Barcelona: Herder, 1984, p. 115.
125
CROMBERG, Mônica Udler. A crisálida da filosofia: a obra eu e tu de Martin Buber ilustrada
por sua base hassídica. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 126.
126
BUBER, Martin. Eu e tu. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1979, p. 87.
127
Cf.: Ibidem, p. 129.
128
Atitude não é uma posição de ordem cognoscitiva frente a um ente qualquer. Não é algo
exterior ao Eu, mas algo que constitui o próprio Eu, é o próprio Eu realizando-se.
52
Buber percebe na religião judaica um dos encontros mais profundos do
homem com o Absoluto, é a lembrança carinhosa e viva do encontro de Deus
com os homens. Desta maneira, a experiência israelita do Tu na relação direta,
única e marcante, foi tão forte que o povo não pode ter outra concepção que a
de um Deus Único. Contraditoriamente poderia se confrontar aos pagãos que não
reconhecem as formas de manifestação divinas e, segundo Buber, o homem se
torna pagão na medida em que não reconhece as formas de manifestação de
Deus no cotidiano. O Judaísmo foi um dos exemplos mais sublimes da ação
dialogal dos homens com Deus. Encara a linguagem como algo que vai além da
existência humana e do mundo. A palavra é tida como dinâmica total, como
aquilo que acontece. Até o ato da criação é linguagem, porém, muito mais um
momento intensamente vivido. O mundo é dado aos homens que o percebem, e
a vida do homem é, em si mesma, um diálogo; o homem pode proferir a palavra
independentemente, nos atos simples, puros e pequenos de sua vida. Assim se
forma a verdadeira história do mundo num diálogo entre Deus e sua criatura.
Essa experiência, afirma Buber, não é exclusiva dos judeus, mas foram eles que
souberam vivê-la com tanto vigor e fervor.
É pela palavra anunciada por Deus que este criou os céus e a terra com
tudo que neles existem. No paraíso, Deus e homem mantinham um diálogo tão
sublime e espontâneo, que cada um se fazia presente autenticamente, até que o
homem quis possuir as mesmas qualidades ou características de Deus. Na
verdadeira relação, o Eu não deve possuir o Tu, basta a abertura, basta a
reciprocidade da presença dos dois.
Moisés teve uma magnífica experiência dialógica com o Absoluto, por
exemplo, na ocasião em que levava seu rebanho para as pastagens do Monte
Horeb, a montanha do Senhor. A abertura de Moisés, em querer contemplar a
sarça que não se consumia e o silêncio de espírito, reconheceu a voz de Deus
que lhe foi dirigida. Moisés teve desejo de ir em direção a Deus e este lhe pede
reciprocidade de doação. Deus se expressa em forma de presença autêntica: "Eu
sou aquele que sou" e Moisés silencia na humildade de sua existência. Por causa
da abertura, Moisés era o único que estava em condições de contemplar a face
de Deus no caminho do deserto
129
. Foi ele, também, quem subiu ao Sinai, na
presença de Deus e fez a aliança. Assim, durante toda a história de Israel, Deus
se manifestava pela palavra ao povo.
129
Cf.: Ex 3,11-15.
53
A palavra ocupa papel fundamental no hassidismo
130
, pois é por meio
dela que o tzadik conta as histórias para os hassidin. Ao contrário de muitas
religiões, o hassidismo é fundado na tradição de seus rabis, em histórias que
contam sobre o cotidiano do povo. Portanto, a principal função do hassidismo
não é almejar uma vida eterna no futuro, após a morte, mas, “sem prejuízo de fé
numa vida eterna, sempre teve a tendência de criar um lugar terreno para a
perfeição”
131
.
Isso mostrou que essa vida não se resume somente em embriaguez,
sofrimento, medo, dor e tensão constante, mas em uma vida de fervor, alegria
entusiástica. Pois Deus se dirige diretamente ao homem por meio dessas coisas e
desses seres que Ele coloca na vida. O homem responde de acordo com o modo
pelo qual ele se conduz em relação a essas coisas e esses seres enviados por
Deus. Assim, o hassidismo mostrou que partindo de toda a realidade, de toda
tentação, e até do pecado, alcança-se o caminho para Deus e a “reciprocidade da
relação entre o humano e o divino, a realidade do Eu e do Tu que não cessa
mesmo à beira da eternidade - o hassidismo tornou manifesto, em todos os
seres e todas as coisas, as irradiações divinas, as ardentes centelhas divinas, e
ensinou como se aproximar delas, como lidar com elas e, mais, como elevá-las,
redimi-las e reatá-las à sua raiz primeira”
132
.
Mas, como o homem simples poderia viver tal alegria entusiástica? Ou
como poderia perceber a centelha divina na vida dele, através do encontro dos
seres e coisas? Deve antes dirigir toda a força de suas paixões para Deus, fazer
as coisas que se tem para fazer, por mais diversas que forem, com uma força e
com a intenção sagrada, a Kavaná
133
. Mas somente isso não basta, pois, no
cotidiano da vida, as inúmeras necessidades da alma se embaralham e, quando
aliadas às grandes aflições, geralmente o homem se encontra de mãos atadas.
Aqui reside a função do tzadik
134
.
130
Dentro do judaísmo, Buber esteve constantemente ligado ao hassidismo, movimento fundado
por Baal Schem Tov, com o objetivo de levar e garantir as tradições religiosas no Ocidente. Os
tzaddikin são os entusiasmadores, enquanto os hassidin os entusiasmados.
131
BUBER, Martin. Histórias do rabi. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, pp. 20-21.
132
Ibidem, p. 21.
133
Kavaná: intenção sagrada que tem como verdadeiro alvo a santidade oculta de Deus e sua
glória infinita e informe, de onde emerge a voz e a palavra de Deus.
134
Ele é o que cura tanto na esfera corporal como espiritual, porque é somente ele que sabe lidar
com as duas realidades e ensina a trabalhar com as funções que, no cotidiano, se faz e fortalece o
coração. Ele está sempre orientando até que o hassid possa andar pelo caminho a sós,
desbravando para além das dificuldades. O tzadik não deve anular ou substituir a alma do hassid,
mas sempre irá se unir a ele auxiliando-o a conquistar e reconquistar a verdade, e aliviar a tensão
em seu ir-em-direção-a-Deus.
54
Mas não é somente o tzadik que ajuda os hassidin. A relação entre eles é
de concentração. A reciprocidade se desenvolve no sentido de sempre esclarecer
ao máximo. Nos momentos difíceis, o mestre encoraja os discípulos e, nos
momentos de depressão do mestre, os discípulos ajudam o mestre a se
reencontrar. Eles o rodeiam e o iluminam. Eles perguntam e o mestre esforça-se
em responder, o que não aconteceria sem a pergunta.
O tzadik, através de suas histórias e parábolas simples, se expressa na
espiritualidade e incita o ouvinte à união entre espírito e a natureza podendo,
assim, se utilizar dos símbolos e alegorias das histórias. Sempre que essa
unificação aparece sob a forma humana, ela prova, com o testemunho da vida, a
unidade divina entre espírito e natureza; novamente revela essa unidade ao
mundo dos homens, que sempre volta a se alhear dela, e suscita alegria
entusiasta. Pois o verdadeiro êxtase não provém do espírito nem da natureza,
mas da união de ambos.
“Na medida em que tu sondas a vida das coisas e a natureza da
relatividade, chega até o insolúvel; se negas a vida das coisas e da relatividade,
deparas com o nada; se santificas a vida, encontras o Deus vivo”
135
. Quando
Buber começa a descrever a relação com o Tu Eterno, menciona que é somente
mediante as outras relações que se chega ao totalmente outro, ela seria a
sublimação de todas as relações.
Logo, o ser humano tem um compromisso de ordem existencial para
cumprir: o de participar da história, de estar em contato com esse mundo, não o
negando, mas o levando numa relação dialógica. Isso não é uma missão
particular, mas, sobretudo, comunitária. Pois a verdadeira vida do homem
consiste na relação com o outro. O mundo por si , como fim, não realiza o
homem, mas tem seu papel essencial como fundamento das relações que dão
sentido à existência humana.
Buber não cessa de lembrar em sua reflexão que a relação Eu-Tu é o
fundamento e o próprio princípio do ser homem. Essa relação faz o Eu, em
relação a um Tu, também pessoa. É somente mediante a vivência da
intersubjetividade, que a pessoa entra em contato com o outro ser humano,
imbuídos numa realidade comum. A isso Buber chama de ser-com, o fundamento
da existência e da vida comunitária.
135
BUBER, Martin. Eu e tu. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1979, p. 92.
55
Cada Eu na relação com o Tu, e vice-versa, vem na insígnia do ser social,
unidos por laços de fraternidade do “amai-vos uns aos outros”
136
, fundamentado
no amor de Deus. Portanto, em cada Tu particular reina uma centelha de vida
divina que o envolve de tal modo que a relação Eu-Tu se torna uma relação
interpessoal com Deus. Desta maneira, o homem se realizará plenamente no
encontro com o Tu Absoluto, o Absolutamente Outro, Deus. Assim sendo, a vida
terrestre, em seu aspecto social e político, faz com que a religião não seja
somente um credo, mas uma realização efetivada da comunidade humana,
dando a possibilidade de recriar e renovar, a cada instante, o político, o artístico,
o social, a história da humanidade.
3.2 A unicidade do homem
A concepção oriental, ao contrário da ocidental, não o homem num
dualismo: corpo e alma, bem e mal. Em especial, o judaísmo percebe o homem
como um todo, não havendo conflito dentro dele, mas, em uma visão de homem,
como um ser mortal e frágil, diante de Deus, podendo venerá-lo e manter sua
palavra com ele. “Então o mal é apenas ‘a casca’ o envoltório, a crosta do bom,
uma casca que requer perfuração ativa”
137
.
O mal está sempre ligado à falta de ação, de decisão, de tomada de
posição
138
. A “queda” não aconteceu apenas uma vez e depois se tornou uma
fatalidade. Apesar de toda história, apesar de toda "hereditariedade", todo
homem se encontra na mesma situação de Adão; a cada homem cabe decidir.
Portanto, o homem que toma uma decisão sabe que seu decidir não é uma auto-
ilusão; o homem que agiu sabe que esteve e está diante de Deus. A unidade dos
dois é o mistério no âmago do diálogo
139
.
O mal deve, portanto, ser considerado apenas como um elemento
primário e, segundo Buber, como uma paixão. A paixão é quando é
gerada no estado de desorientação, recusa de orientação, e não se quer aceitar a
136
Jo 15,17.
137
GUINSBURG, J. O Judeu e a modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1970, p.459.
138
Cf.: BUBER, Martin. Eu e tu. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1979, p. 54.
139
Cf.: BUBER, Martin. Imagens do bem e do mal. Tradução de: Edgar Orth. Petrópolis: Vozes,
1992, pp. 25-26.
56
direção que leva a Deus. Segundo o Judaísmo, a idéia de paixão, o mau impulso,
é o único elemento que leva o homem às grandes obras, inclusive as santas
140
.
A tradição judaica ainda fala que segundo as Escrituras, Deus, após a criação,
observou que sua obra era muito boa e que essa seria a paixão, sem a qual não
se poderia nem servir a Deus, nem viver. Até mesmo o mandamento: “Amarás o
Senhor teu Deus com todo teu coração com toda tua alma e com todas as tuas
forças”
141
em que as forças são interpretadas com toda paixão, inclusive o mau
impulso
142
.
3.3 Conversão
143
: o reencontro consigo
“A conversão consiste em reconhecer novamente o centro e a ele voltar-
se novamente”
144
. Buber quer frisar, antes de tudo, que não se trata de mero
sentimentalismo, de algo que acontece no âmago da alma, mas de algo que é
tão real quanto o nascimento e a morte que englobam o ser humano na
totalidade de seu Eu, numa relação entre o Eu e o Tu Absoluto.
A tradição do hassidismo guarda uma analogia que muito ajuda a
compreender a dimensão da conversão. Conta ela que Deus, quando premeditou
sua criação e traçou-a sobre uma pedra como um mestre de obras, desenhou
uma planta e viu que o mundo não teria duração. Então, criou o retorno, a
conversão: dessa maneira o mundo tinha duração, pois, doravante, nos abismos
do Eu-egótico, abrir-se-iam as portas da salvação, e como num só movimento se
proporcionaria misericordiosamente um retorno.
A conversão não quer significar um retorno a um "estado anterior”, sem
pecado, mas antes de tudo, uma reviravolta do ser
145
, uma mudança de atitude,
em cujo transcurso o homem é projetado ao caminho de Deus. De acordo com
Buber, o retorno se diferencia do arrependimento, pois este parece expressar um
mero estado mental ou uma contrição de algo. A conversão “não envolve um
140
Cf.: BUBER, Martin. Histórias do rabi. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 187
141
Dt 6, 5.
142
Cf.: BUBER, Martin. Imagens do bem e do mal. Petrópolis: Vozes, 1992, pp. 30-31.
143
Umkher.
144
GUINSBURG, J. O Judeu e a modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 116.
145
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003,
p. 181.
57
objeto, mas uma direção uma mudança com relação ao presente, ao que vem
sendo”
146
. É o próprio homem, no entanto, que deverá procurar esse caminho
numa relação dialógica na qual o Tu Absoluto jamais será objetivado. Fazê-lo não
de forma sensível, mas contemplando na presença pura, em sua schehiná
147
,
para então caminhar pelo mundo. É o próprio homem que assume o caminho e é
a sua situação de presença que contempla a face-de-Deus, que converte seus
passos em pegadas do Deus vivo. “Conversão para a disponibilidade ao diálogo,
ao inter-humano, à construção de novas comunidades”
148
.
"O Tu se apresenta a mim. Eu, porém, entro em uma relação imediata
com ele. Assim, a relação é, ao mesmo tempo, escolher e ser escolhido,
passividade e atividade”
149
. Esta é a atitude que Buber chama de fazer-nada,
onde o homem atinge a totalidade desprezando qualquer atitude de isolamento,
ou parcialidade, pois nesse momento, o homem mergulha numa totalidade
atuante, na qual ele próprio torna-se essa totalidade atuante. Essa atitude é
pressuposto para o encontro com o supremo. Isso, porém, o significa que se
deve ignorar o mundo sensível, isto é, o mundo do Isso, como se fosse mera
aparência. Na verdade, nem pode existir um mundo aparente, pois existe apenas
uma dupla maneira de se revelar, visto que a atitude humana é dupla. Para
Buber, deve-se quebrar apenas o encanto da separação. Nada que foi inventado
ou imaginado pelo homem poderia ajudá-lo a sair do mundo do Isso, pois tudo
isso faria parte dele.
Aos jovens que o visitavam pela primeira vez, o Rabi Bunam
costumava contar a história do Rabi Aisik, filho do Rabi lekel de
Cracóvia. Após longos anos de miséria, que, no entanto não
abalaram sua confiança em Deus, o Rabi Aisik sonhou que alguém
lhe ordenava procurar um tesouro perto da ponte que leva ao
palácio real em Praga. Quando o sonho se repetiu pela terceira
vez, o Rabi Aisik preparou-se e viajou a Praga. Na ponte,
entretanto, havia sentinelas que a vigiavam dia e noite e ele não
se atreveu a cavar. Ia todas as manhãs à ponte, rondando-a até a
noite. Finalmente o capitão da guarda, que se havia apercebido de
seus movimentos, perguntou-lhe gentilmente se procurava algo
ou se esperava alguém. O Rabi Aisik contou-lhe o sonho que o
trouxera da pátria distante. O capitão riu-se: - E tu, pobre
coitado, peregrinaste até aqui com os sapatos rasgados, por
causa de um sonho? Ora, quem crê em sonhos! Se eu acreditasse
146
CROMBERG, Mônica Udler. A crisálida da filosofia: a obra eu e tu de Martin Buber ilustrada
por sua base hassídica. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 112.
147
Schehiná: morada, residência divina.
148
Ibidem, loc. cit.
149
BUBER, Martin. Eu e tu. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1979, p. 89.
58
em sonhos, também teria de sair andando e ir a Cracóvia procurar
um tesouro embaixo do fogão da casa de um judeu chamado
Aisik, filho de lekel! Posso imaginar-me lá, demolindo todas as
casas, onde a metade dos judeus chama-se Aisik e a outra, lekel.
- E continuou rindo. O Rabi Aisik cumprimentou-o, voltou para
casa, escavou o tesouro e construiu a casa de orações que se
chama sinagoga de Reb Aisik e Reb lekel
- Lembra-te desta história - acrescentava o Rabi Bunam - e
registra o que ela te diz: algo que não poderás encontrar em
parte alguma do mundo, nem mesmo com o tzadik, e no entanto
há um lugar onde o poderás encontrar
150
.
Para sair do mundo do Isso, basta apenas uma perfeita aceitação da
presença, nada mais, nenhuma prescrição a mais seria lida. Obviamente que
quanto mais impregnado no mundo do utilitarismo, das experiências, das coisas-
a-mão, mais difícil será assumir os riscos da conversão para uma relação, que
não coloca as coisas como fim, mas como fundamento da relação mais profunda
e abrangente:
Aquele que entra na relação absoluta não se preocupa com nada
de isolado, nem com as coisas, ou antes, nem com a terra ou com
o céu, pois tudo está incluído na relação pura; não significa
prescindir tudo, mas sim ver tudo no Tu; não é renunciar ao
mundo, mas proporcionar-lhe apenas fundamentação
151
.
Neste sentido, um homem que quer deixar seus ídolos, algo bem finito,
não lhe basta trocar os seus nomes pelo de Deus. Pois tal homem, em relação às
coisas, tem relação de posse e de utilitarismo, sendo que Deus não pode ser
possuído, tomado para algum fim. Ele é essencialmente presença, atitude que
não combina com um idólatra. A situação do mundo do Isso, não tem outro
caminho se não o da conversão. Portanto, a atitude de troca não passaria de um
disfarce: "Se alguém permanece no estado de posse, o que significa o fato de,
em vez de invocar o nome de um demônio ou, de um ser disfarçado em
demônio, se invocar o nome de Deus? Significa que com isso ele blasfema”
152
.
O homem que se diz convertido “tem um fantasma que ele chama de
Deus. Porém, Deus, a eterna presença, não se deixa possuir. Infeliz o possesso
que crê possuir a Deus”
153
.
150
BUBER, Martin. Histórias do rabi. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 571.
151
BUBER, Martin. Eu e tu. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1979, p. 91.
152
Ibidem, p. 122.
153
Ibidem, p. 123.
59
3.4 A liberdade
Segundo Buber, o caminho da humanidade não é progressivo e nem de
constante evolução, mas um constante descer em espiral para o mundo
subterrâneo do Espírito e, por vezes, uma ascensão para a região mais íntima,
tão sutil, tão complicada que não se pode mais avançar nem recuar, onde
somente existe a conversão, ruptura com o mundo subterrâneo
154
. Eis a grande
pergunta feita: é preciso ir até o fim desse incerto caminho? É preciso recolocar-
se à prova até as últimas trevas? O autor afirma, contudo, que, para que essa
conversão aconteça e a humanidade possa alcançar mais liberdade
155
, é preciso
apostar nesse perigo da incerteza, pois é ali que cresce também a força
salvadora.
A linha de pensamento do evolucionismo e do historicismo, presentes na
sociedade, embora sejam diferentes, contribuem para que a humanidade
continue no caos, pois seu pensamento dirige os homens a uma concepção da
realidade preestabelecida, isso é, o fatalismo que corta qualquer possibilidade
de liberdade e conversão
156
.
Existem inúmeros poderes que reivindicam esse domínio, entre eles
Buber cita a lei vital de uma luta universal, onde existe a concorrência de
sobrevivência e deve-se combater ou renunciar a vida; a lei psíquica de uma
concepção da pessoa psíquica unicamente buscada em instintos utilitários,
inatos; a lei social de um processo social inevitável onde vontade e consciência
são meros fenômenos que não têm valor comunitário; e por fim a lei cultural de
um dever inalterável e constante, de um início e fim de blocos históricos.
A consagração, ou a crença de que astros podem reger as vidas
humanas, ainda coloca o homem em uma situação de total dependência desses
fatores, cabendo a ele somente a função de descobrir qual é a vontade desses
deuses, destes ídolos. Mas o homem não se encontra preso a um curso
inalterável em que nada possa fazer. Esse dogma, do curso inevitável, deixa
nada mais que a opção de seguir as regras por ele expostas ou retirar-se dele.
154
Conferir as notas 100 e 102.
155
A liberdade é a possibilidade de converter, sempre que quiser seu ser em uma relação Eu-Tu.
156
Cf.: Ibidem, p. 67.
60
Afasta toda possibilidade de liberdade, da revelação mais concreta e íntima do
homem, cuja força modifica a face da terra: a conversão.
Ao homem, que submeter-se a esse dogma, é oferecida a submissão ao
determinismo e o permanecer “livre
157
na alma”. No entanto, quem realiza a
conversão e conhece a verdadeira liberdade considera aquela dita “liberdade”
como a mais vergonhosa servidão
158
.
“A única coisa capaz que pode vir a ser fatal ao homem, é crer na
fatalidade
159
, pois esta crença impede o movimento da conversão”
160
. Isso seria
a impossibilidade de se invocar um Tu, pois ele nasce do vínculo e essa
concepção ignora a realidade do Espírito. Esse dogma se submete
profundamente no mundo do Isso, mas o Tu não é abafado completamente. Na
medida em que o homem se dirige para seu próprio ser na unidade, poderá
experimentar profundamente a liberdade.
É possível transformar o fantasma do mundo do Isso, mas, como o
transforma aquele que no seu interior sentir carência de atualidade
161
? Ou
como o homem poderia ressuscitar o seu Eu, ou sua subjetividade, pisoteado por
esse fantasma que, por vezes, é terrivelmente esmagador? Diante da fatalidade,
como encontrar a liberdade em profundidade?
“O homem livre é aquele cujo querer é isento de arbitrário
162
. Ele crê na
atualidade, isto é, ele acredita no vínculo real que une a dualidade real do Eu e
do Tu, crê no destino e também que ele tem necessidade dele"
163
. A atualidade
não determina o homem por completo, apenas o espera na forma de encontro.
Portanto, o homem que deseja ser livre, deve ir ao encontro da atualidade, com
todo seu ser. Isso pode exigir um pouco de sacrifício, mas seria sacrifício menor
que permanecer submetido às determinações do mundo do Isso.
A arbitrariedade afasta a possibilidade de encontro, coloca um abismo
entre o Eu e o Tu, fazendo que jamais haja oferta, doação ou diálogo. Quando se
diz um Tu, ele é pronunciado com a intenção do poder de atualização. A seus
157
É livre quem assume a responsabilidade mútua de um responder ao outro.
158
Cf.: Ibidem, loc. cit.
159
Fatalidade na relação é a incapacidade do Eu sair do vínculo Eu-Isso. É o mundo da
incredulidade, da escolha de fim e meios; mundo privado de oferta e graça, de encontro e de
presença, entrevado nos fins e nos meios.
160
Ibidem, loc. cit.
161
Atualidade é o ser que não está unicamente nele, nem unicamente fora dele. A atualidade é
participação. É a confirmação do Eu numa relação Eu-Tu.
162
Arbitariedade conflito interior em que a ser humano não tem liberdade para optar pela relação
Eu-Tu.
163
Ibidem, p. 69.
61
olhos, o homem livre não tem nada mais que fazer senão deixar as coisas
acontecerem e Buber chama isso de fatalidade
164
.
Ao contrário da arbitrariedade e do determinismo, o homem
verdadeiramente livre busca, no encontro com o Tu, uma constante atualização.
Deste modo, não é determinado por uma fatalidade, pois o homem livre vai
selando, com presença e graça, cada momento de sua história e de sua vida:
não é o destino que o conduz, mas é o homem que vai ao encontro do destino.
Um homem com carência de atualidade, medirá todos os seus esforços
em uma constante busca por fins e meios de explorar e dominar, utilizar tudo
que está ao seu redor. Mas Buber também afirma que se a lembrança de sua
decadência, de seu Eu imaturo e de seu Eu atual, deixar refletir a raiz mais
profunda que o homem chama de desespero e onde brotam a autodestruição e a
regeneração, tal homem já estaria no início de uma conversão
165
.
3.5 Finitude humana: abertura para o infinito
Durante toda a história, enquanto o homem se percebe nessa história,
ele tem invocado Deus sob vários nomes. Cantando, louvando, suplicando
pensando em um Tu. Porém, esse genuíno amor dos primitivos, aos poucos, foi
entrando no mundo do Isso, querendo conhecer Deus, querendo falar dele.
Contudo, apesar dessa tendência que o homem tem de tudo conhecer e explicar,
o nome de Deus continuou a ser santificado, pois além de se falar dele,
constantemente se fala com Ele.
Aquilo que se vive em uma relação com o Absoluto, nada mais é que o
ponto de partida e o caminho. Todo o resto é sempre dado, o homem não nega a
conhecê-lo. Buber fala que seria presunção querer falar sobre a relação com o
absoluto como se fosse algo que vai além do encontro.
Um discípulo do Rabi Baruch pesquisara a essência de Deus sem
dizer nada a seu mestre, e em pensamentos adiantava-se cada
vez mais, a chegar a um emaranhado de dúvidas tal que as
coisas então mais certas se lhe tornaram duvidosas. Quando Rabi
Barurch percebeu que o jovem não o procurava mais, como era
164
Cf.: Ibidem, loc. cit.
165
Cf.: Ibidem, p. 70.
62
seu costume, foi à cidade em que este morava, entrou de repente
no seu quarto e falou-lhe: - Sei o que está escondido em teu
coração. Atravessaste as cinqüenta portas da razão. A gente
começa com uma pergunta, pensa, encontra a resposta, e a
primeira porta se abre - para outra pergunta. E assim por diante,
cada vez mais longe, até forçares a inquagésima porta. Então
fitas a pergunta que homem algum alcança, porque, se alguém a
conhecer, não haverá mais liberdade de escolha. Mas, se ousares
ir adiante cairás no abismo.
- Então devo desfazer o caminho, até o começo? - exclamou o
discípulo.
Não estarás voltando atrás - disse o Rabi Baruch - quando
voltares; estarás para além da última porta, na fé
166
.
Com estas palavras, narradas pelo Rabi Baruch, Buber quer mostrar que
na relação existente entre o homem e Deus, o primeiro é incapaz de ser fiel e de
permanecer em presença:
O neto do rabi Baruch, o menino Iehiel, estava certa vez
brincando de esconder com outro menino. Escondeu-se bem e
esperou que o outro o procurasse. Depois de muito esperar, saiu
do esconderijo, mas não viu o companheiro em lugar nenhum.
Então Iehiel percebeu que, desde o começo, ele não o procurara.
Isto o fez chorar e, em lágrimas, entrou no quarto do avô e se
queixou do companheiro mau. E os olhos do Rabi Baruch se
encheram de lágrimas e ele disse: - Deus também fala assim: Eu
me escondo, mas ninguém me quer procurar
167
.
Dessa forma, para o ser humano estar na presença de Deus e sublimar o
mundo do Isso, deve, também, querer estar nessa presença. Pois somente dessa
forma poderá participar do fenômeno primordial do Eterno. “Falar de Deus é
reduzi-lo a um objeto comparável a outros objetos e que pode ser usado ou
explorado”
168
. Mas Deus não pode ser colocado na forma de um objeto. Muito
pelo contrário, o homem encontra-se em situação limitada e este sim se deve
deixar consumir na presença de Deus:
“Perguntaram ao Rabi Pinkhas: - Por que é que Deus é chamado
Lugar?
169
Ele é, certamente, o Lugar do Universo’, mas
deveriam, então, chamá-lo assim, e o apenas ‘Lugar’. O Rabi
respondeu: - o homem deve entrar em Deus, de modo que Deus
possa envolvê-lo e tornar-se seu Lugar”
170
.
166
BUBER, Martin. Histórias do rabi. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 134.
167
Idem, ibidem, p. 138.
168
BUBER, Martin. Eu e tu. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1979, p. LXV;
169
Lugar, Makon: é a designação de Deus, no qual existe tudo o que existe.
151
Ibidem, p. 167.
63
Este é um fenômeno em que o homem não sai do momento do encontro
supremo do mesmo modo como entrou. A verdade é que se recebe algo que não
se possuía antes, de modo que isso se pareça com uma luta ou um suave sopro,
não importa, simplesmente acontece, percebe-se um acréscimo. Não de
conteúdo, mas de presença, de força que, segundo Buber, reúne três fatos.
Primeiro, toda a plenitude da verdadeira reciprocidade do fato de ser
acolhido, de estar vinculado; “sem que se possa, de algum modo, dizer como é
feito aquilo a que se está ligado e sem que esta ligação nos facilite a vida - ela
nos torna a vida mais pesada, porém mais pesada de sentido”
171
, pois Buber não
admite a relação com o Absoluto sem que esta esteja fundamentada no mundo
concreto, no mundo da realidade. Segundo, a inefável confirmação do sentido,
tudo passa a ter sentido. O terceiro ponto pede que se realize esse sentido na
vida. Não se trata de outra vida, mas aquela no qual o próprio homem vive. Por
isso, não pode ser explicado e interpretado, somente se pede para realizá-lo.
Não se trata de outra vida, separada deste mundo, mas sim a vida concreta de
cada pessoa que participa do encontro com o Eterno. Mesmo que esse sentido
possa ser concebido, não pode, contudo, ser experienciado, somente realizado, e
é isso que é pedido.
Assim o mistério permanece. O que se vive não o revela. Apenas mostra
o caminho da salvação, que se reconhece, mas não é a solução pronta, acabada,
como se fosse uma fórmula. Buber afirma que não conhece nenhuma revelação e
não crê em nenhuma que não seja, ao menos no princípio, fundada no presente,
no aqui e agora.
Eu não acredito em uma autodenominação ou em uma auto-
definição de Deus diante do homem. A palavra da revelação é
esta: ‘eu sou presente como aquele que sou presente’. O que se
revela é o que se revela. O ente está presente, nada mais. A fonte
eterna de força brota, o eterno toque nos aguarda, a voz eterna
ressoa, nada mais
172
.
3.6 O Encontro com o totalmente Outro
Todo encontro com o totalmente outro requer uma atividade e uma
passividade. O Ser Humano deve estar disponível, prestar atenção e, ao mesmo
171
Ibidem, p. 127.
172
Ibidem, p. 129.
64
tempo, contemplar e participar da presença. Essa posição é condição para o
encontro com o Absoluto.
Entretanto, Buber quer deixar bem claro que para esse encontro não se
deve desprender-se de nada do mundo sensível. Pelo contrário, afirma que ele é
fundamento para a relação.
Como quando tu rezas e com isto o te afastas desta tua vida,
mas justamente te referes a essa vida rezando, quer dizer,
admitindo-a, seja no inaudito como no assaltante, quando és
chamado do alto, requerido, eleito, autorizado, enviado. Com este
teu pedaço mortal de vida estás na mente, este instante não é
retirado, ele se apóia no que foi e acena para o resto ainda muito
vivo. Não és tragado em plenitude sem compromisso, és desejado
para a solidariedade
173
.
O encontro com o Tu acontecerá no mundo em que o homem vive,
através dos caminhos que percorre, da natureza que contempla e das coisas que
vê. É nesse mundo que o Espírito se entrelaça e, no mistério da presença, eleva
a relação a sua sublimidade: Deus.
Segundo o pressuposto colocado por Buber, o Tu Eterno não pode, por
essência, tornar-se um Isso, quer somente questionar os diferentes deuses e
revelações que possuem as diversas religiões. O autor tenta ser realista ao
máximo quando afirma a impossibilidade de reduzir Deus a uma medida ou a um
limite, mesmo que seja a medida do incomensurável, do ilimitado.
Por essência ele não pode ser concebido como uma soma infinita
de qualidades, nem como uma soma de qualidades elevadas à
transcendência. Não pode tornar-se um Isso, porque não pode ser
encontrado nem no mundo, nem fora do mundo porque ele não
pode ser experienciado nem pensado; nós pecamos contra Ele, o
Ser, quando dizemos: ‘eu creio que ele é’; além disso, ‘Ele’ é uma
metáfora, mas ‘Tu’ não é uma metáfora
174
.
Porém, logo acrescenta que o homem, por sua essência, faz do Tu Eterno
um Isso, sempre o reduzindo a uma coisa. Talvez não seja propositalmente, pois
a história, a passagem do Deus-coisa através das religiões, quis ser um caminho,
ou melhor, tudo isso é caminho. Tanto nos momentos de luz e inspirações, como
nos de trevas, nos momentos de enaltecimento da vida e nos de desprezo, como
nos momentos de distanciamento.
173
BUBER, Martin. Encontro: Fragmentos autobiográficos. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 44.
174
BUBER, Martin. Eu e tu. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1979, p. 129.
65
São vários os fatores que contribuem para que o homem tenha essa
aspiração de possuir a Deus. Em primeiro lugar, poder-se-ia citar o fator
psicológico de que o homem não se contenta com um contato com o Tu Eterno,
ele deseja um contínuo, sem interrupção espaço-temporal, que proporcione uma
segurança a sua vida em todos os momentos, não apenas em pontos isolados
nos quais se dão os encontros.
Essa continuidade é tão forte que o homem aspira pela extensão
temporal, no sentido de duração, na qual Deus se torna um objeto de fé. Depois
de certo ritmo, começa a substituir todo o ritual de recolhimento e de expansão
para o encontro e se estabelece em torno do Isso uma acomodação onde basta
crer, ter fé. Essa mesma continuidade se estende, ainda, na estrutura da relação
pura, querendo evitar a solidão, pois, mesmo que o homem possa e deva se
encerrar o mundo no encontro, não pode ir até Deus e encontrá-lo senão como
Tu. O homem deseja a expansão espacial, na qual a comunidade dos fiéis se une
a seu Deus; originando o culto. Este, por sua vez, pode ser de grande perigo,
pois pode levar o ser humano a não mais fazer sua prece espontânea, pessoal,
caindo, assim, em um regulamentarismo formal
175
.
Numa relação pura, a estabilidade espaço-temporal pode ser
conquistada na medida em que ela se encarna na substância da vida, conforme
declara o próprio Buber:
Ela não pode aparecer preservada, pode ser posta à prova na
ação, ela pode ser realizada, efetivada na vida. O homem
pode corresponder à relação com Deus, da qual ele se tornou
participante, se ele, na medida de suas forças, a cada dia,
atualiza Deus no mundo. reside a única certeza da
comunidade
176
.
O sentido da ação no mundo é realizado no homem, na medida em que
ele se encontra com Deus. Pelo fato desse encontro não ser alienado da
realidade em que o homem vive e de não ser possível se colocar Deus em uma
forma, Buber escreve que todo encontro com o Absoluto é uma revelação. Essa
revelação não é puro sentimentalismo, mas ao contrário, é vocação e missão.
Assim, Deus vai se atualizando à medida que se caminha e se cumpre a
missão recebida. O homem não irá, portanto, se ocupar de Deus, mas entreter-
175
A verdadeira prece é aquela que anseia pelas necessidades da Shehiná, a presença de Deus no
exílio. Cf.: CROMBERG, Mônica Udler. A crisálida da filosofia: a obra eu e tu de Martin Buber
ilustrada por sua base hassídica. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 131.
176
BUBER, Martin. Eu e tu. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1979, p. 132.
66
se com Ele. Na história acontece um processo de maturação, no qual o homem
entra e sai da presença com o Absoluto e lhe é impressa e fundida uma forma de
Deus no Mundo. “O que aqui atua não é mais o poder próprio do homem,
também não é pura passagem de Deus, é uma mistura de divino e humano”
177
.
Toda forma é impregnada de Isso; logo, passível a se tornar um objeto
de culto e de fé. Isso não quer dizer que no culto não se possa fazer uma boa
prece, onde o homem se envolva numa relação que vivifica, pois a essência
sempre subsistirá no culto e na fé. O problema reside no ato de o homem
desejar refletir sobre Deus, em vez de apenas ficar com Ele, de querer
conceituá-lo, em vez de contemplá-lo. O fato de a verdadeira prece continuar
viva nas religiões, é o sinal de sua verdadeira vida. A religião permanece viva
enquanto sua prece não se degenerar.
3.7 Deus: o Tu absoluto
Buber, quando escreve sobre a relação que o Eu tem com o Absoluto,
afirma ser imprudente querer limitar Deus a um conceito. Essa reflexão iria
objetivá-lo, mas Deus transcende a qualquer forma, a qualquer classificação que
o homem possa fazer. Assim, o que se pode falar, seria sobre a relação que Deus
tem com o homem, embora Ele transcenda também esse aspecto
178
.
Por isso, Buber propõe perceber Deus dentro da relação dialogal, e
mesmo que Ele seja mais que simplesmente um Tu, isso é o que, de fato, o
homem tem condições de falar; e não importa nada fora disso. É condição
indispensável saber relacionar-se com os homens e percebê-los como indivíduos.
Tudo em vista de que a relação com o absolutamente outro acontece quando
fundada na palavra princípio Eu-Tu, isto é, na relação de presença com o outro.
Os atributos divinos são conhecidos como: a espiritualidade, da qual
chamamos o Espírito; a naturalidade, que consiste na natureza e Buber
acrescentou um terceiro, a personalidade. Deste último atributo nasce o ser
pessoal de todos os homens, como nasce dos outros atributos o ser espiritual e o
ser natural. Embora somente o ser pessoal se revele claramente como
177
Ibidem, p. 135.
178
Cf.: Ibidem, p. 127.
67
atributo
179
. Quando se afirma a personalidade de Deus, se afirma de modo
absoluto, e ela é transmitida quando se relaciona com o homem. Agora, pode-se
entender porque o homem não tem necessidade de se afastar de nenhuma outra
relação Eu-Tu. Pois, o absoluto de Deus açambarca toda realidade e se
transfigura na face-de-Deus.
O encontro do Absoluto com o homem, dentro da dimensão pessoal,
compreende três estágios que se fazem presentes na história da humanidade:
criação
180
, revelação
181
e redenção
182
. O primeiro, remete ao ato da criação do
mundo narrado na Bíblia no livro do Gênesis, mas também revela a maravilha de
Deus em cada ser humano que nasce, em cada flor que se abre e lança, pelo ar,
seu perfume, querendo dizer que Deus existe. O segundo estágio não se
apresenta como um ponto fixo. Buber percebe nele um processo de revelação,
de tal modo que o evento de Moisés, no monte Sinai, não é um ponto isolado. É
uma contínua escuta e uma conscientização no momento presente de sua
revelação. E, por fim, o estágio da redenção ou libertação que pode ser
considerado como o ponto culminante segundo Buber. Para que essa libertação
se realize deve ter a participação do homem, no dia-a-dia na busca constante da
salvação.
A força para cooperar na redenção foi atribuída a todos os
homens indistintamente. É pela santificação sem preferência de
tudo o que se faz, do ato de levar Deus ao longo da vida, a
consagração de nosso nculo com o mundo que realiza-se na
redenção
183
.
Assim, o homem deve amar o mundo, pois é nele, no seu interior, que se
pode encontrar o divino.
A estrada não é, porém, circular. Ela é o caminho. Em cada novo
Éon, a fatalidade se torna mais opressora, a conversão mais
assoladora. E a teofania se torna cada vez mais próxima, ela se
aproxima sempre mais da esfera entre seres, se aproxima do
reino que se oculta no meio de nós, no “entre”. A história é uma
aproximação misteriosa. Cada espiral do caminho nos conduz
igualmente a uma perdição mais profunda e a uma conversão
mais originária
184
.
179
Cf.: Ibidem, p. 155.
180
Schaffenden.
181
Offenbarenden.
182
Erloesenden.
183
Ibidem, p. 168.
184
Ibidem, p. 138.
68
Buber não se intimida em perceber Deus como o totalmente Outro, mas
não nega também que seja o totalmente Mesmo, nem tão pouco o totalmente
presente
185
. Agora se pode compreender porque Buber fala de Deus somente no
que se refere ao encontro com o homem, pois fora desse aspecto, qualquer
tentativa de conceituá-lo seria reduzi-lo.
185
Cf.: Ibidem, p. 92.
69
4 A PALAVRA DIALÓGICA
A palavra dialógica é aquilo que acontece ao Eu. Os eventos do mundo
são a palavras dirigidas ao Eu
186
.
A palavra não é um instrumento para se contemplar o mundo. Ela é a
criação no seio do mundo, pois ela gera a relação que por sua vez é o sentido da
ação do homem no mundo e, ao mesmo tempo, o lugar ontológico existencial em
que ocorre a história dos homens
187
.
Portanto, existe uma diferença entre signos e palavra dialógica. Os signos
se caracterizam por palavras que não encontram endereço de acolhida no Eu.
Embora os signos aconteçam sem cessar, eles deparam-se com uma “couraça
cuja função é repelir os signos”
188
. Por outro lado, “viver significa ser alvo da
palavra dirigida; nós precisaríamos tornar-nos presentes, precisaríamos
perceber”
189
os signos. a palavra dialógica é aquele signo que é acolhido pelo
Eu que se coloca em estado de presença.
A relação dialógica acontece em um constante movimento de distância e
de encontro. Quando a relação se caracteriza pelo encontro, então surge o
espaço ontológico do entre, caracterizado pela responsabilidade, pelo ser-com-o-
outro e pela relação de totalidade.
4.1 O diálogo
Quando se vive numa relação realiza-se, neste Tu encontrado, a
presença do Tu inato. Fundamentando-se no a priori da relação,
pode-se acolher na exclusividade este Tu, considerando como um
parceiro; em suma pode se endereçar-lhe a palavra-princípio.
O Tu inato atua bem cedo, na necessidade de contato
(necessidade de início, tátil, e em seguida, um contato visual o
com outro ente), de tal modo que ele expressa cada vez mais
claramente, a reciprocidade e “a ternura”. Porém, desta mesma
necessidade provém o instinto de autor e aparece posteriormente
(instinto de produzir coisas por síntese, ou, quando isso não é
186
Cf.: BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 44.
187
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003,
p. 186.
188
BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 43.
189
Ibidem, loc. cit.
70
possível, por análise, decompondo, separando) de tal maneira que
se produz uma personificação das coisas feitas, um diálogo
190
.
“Nos olhares que, no tumulto da rua, esvoaçam de repente entre
desconhecidos que se cruzam sem mudar de passo; existem, entre estes,
olhares que, flutuando sem destino, revelam, uma-a-outra, duas naturezas
dialógicas”
191
. O diálogo não se limita ao tráfego de homens entre si; ele é um
comportamento dos homens um-para-o-outro, que é apenas representado no
seu tráfego. um elemento que parece pertencer indissoluvelmente à
constituição do diálogo, de acordo com seu próprio sentido: a reciprocidade da
ação interior. Dois homens que estão dialogicamente ligados devem estar
obviamente voltados um-para-o-outro.
Existem três possibilidades de se perceber o ser humano que está diante
dos olhos: como um observador, como um contemplador e como alguém que
toma o conhecimento como íntimo. O observador é caracterizado por sua
concentração e por procurar gravar tudo que percebe em sua mente. Neste caso
a preocupação é de captar o máximo de informações possíveis. “O rosto nada
mais é que uma fisionomia, os movimentos nada mais são do que gestos
expressivos”
192
. O segundo, o contemplador, é aquele que está livre e
despreocupado com aquilo que a ele se apresenta. Não está preocupado com a
concentração para captar linhas. No início uma intenção para impulsionar a
ação, mas o que segue é involuntário. “Esquecer é bom... traços enganam... o
interessante não é importante. Todos os grandes artistas eram
contempladores”
193
. A terceira possibilidade diferencia-se das duas primeiras
pelo fato de, em uma hora receptiva, se conseguir captar algo que um homem
diz objetivamente ao outro. Não se trata de um dizer algo exterior, como uma
fisionomia, “mas significa que ele diz algo a mim, transmite algo a mim, fala algo
que se introduz dentro da minha própria vida”
194
. O próprio homem
provavelmente não tem nada a ver com o que se percebe dele, mas o fato é que
algo nele “disse” ao outro. “O dizer a que me refiro é uma linguagem real. Na
casa da linguagem muitos compartimentos e este é um dos mais íntimos”
195
.
Em relação a essa linguagem não se tem nada a fazer a não ser aceitá-la ou
190
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 31.
191
BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 37.
192
Ibidem, p. 41.
193
Ibidem, loc. cit.
194
Ibidem, p. 42.
195
Ibidem, loc. cit.
71
negá-la. Possivelmente, pode-se sentir interpelado a responder àquele que aí
está e essa resposta pode ser de várias maneiras, mas o importante é que se
responda.
Aparentemente o homem possui uma proteção que repele os signos que
lhe vem. Embora os signos aconteçam sem cessar. Viver significaria ser alvo da
palavra dirigida; isto é, bastaria assumir a postura de ter-se presente. Os signos
da palavra dirigida a alguém não são algo de extraordinário, algo que se
destaque da ordem comum das coisas; são justamente o que se passa de tempo
em tempo, justamente o que se passa de qualquer maneira, nada lhes é
acrescentado pela palavra dirigida. “As ondas do éter vibram sempre, mas, na
maioria das vezes, estamos com os nossos receptores desligados”
196
.
Aquilo que me acontece é a palavra que me é dirigida. Enquanto
coisas que me acontecem, os eventos do mundo são palavras que
me são dirigidas. Somente quando eu os esterilizo, eliminando
neles o germe da palavra dirigida, é que posso compreender
aquilo que me acontece como uma parte dos eventos do mundo
que não me dizem respeito. O sistema interligado, esterilizado, no
qual tudo isto precisaria ser inserido, é a obra titânica da
humanidade. E a linguagem, foi colocada ao seu serviço
197
.
A vida dialógica e a vida monológica nem sempre correspondem ao
diálogo e ao monólogo. Porque existe o diálogo que não é diálogo em sua
essencialidade ou como forma de vida, mas que apenas tem aparência de
diálogo. “O nome verdadeiro da concretude do mundo é: a criação confiada a
mim, confiada a cada ser humano. Dentro dela nos são dados os signos da
palavra que nos é dirigida”
198
.
Existem três tipos de diálogo: o autêntico, não importa se falado ou
silencioso, onde cada um dos participantes tem de fato o outro em mente ou os
outros na sua presença, no seu modo de ser e a eles se volta com a intenção de
estabelecer uma reciprocidade viva; o diálogo técnico, que é movido inicialmente
pela necessidade de um entendimento objetivo; e o monólogo que vem
disfarçado de diálogo. Este último, segundo Buber, parece ser o que mais se
manifesta
199
.
O primeiro tipo de diálogo tornou-se raro; onde ele surge, por mais não
espiritual que seja sua forma, traz o testemunho da perpetuação do espírito
196
Ibidem, p. 43.
197
Ibidem, p. 44.
198
Ibidem, p. 46.
199
Cf.: Ibidem, 53-54.
72
humano. O segundo tipo abrange os bens essenciais e inalienáveis da existência
moderna, embora o diálogo verdadeiro ainda aqui se esconda e surja, de uma
forma inconveniente, na tonalidade da voz de um condutor de trem, no olhar de
uma velha vendedora de jornais, no sorriso do limpador de calçadas. O terceiro
pode ser caracterizado por um debate onde os pensamentos são expressos não
pela forma como existiam na mente, mas que ao serem falados acabam sendo
tão aguçados que chegam a acertar o ponto mais sensível, sem considerar os
indivíduos com quem se fala como presentes; este terceiro tipo de diálogo pode
também ser uma conversação, onde se busca a determinação da autoconfiança,
decifrando no outro a impressão deixada, por isso, não é marcada por uma
necessidade de comunicar algo, nem de aprender; pode ser uma conversa
amistosa onde cada qual se considera absoluto e o outro fica em segundo plano;
e, ainda, pode ser um colóquio amoroso, em que tanto um parceiro quanto o
outro se regozijam no esplendor da própria alma e na sua vivência preciosa.
Buber conclui afirmando que o terceiro tipo de diálogo disfarçado é um
“submundo de fantasmas sem rosto!”
200
Vida dialógica não é uma vida que tem muito a ver com os
homens, mas é uma vida que, quando tem a ver com os homens,
acontece de forma verdadeira. Não é a vida do homem solitário
que devemos chamar de monológica, mas daquele que não é
capaz de atualizar, de uma forma essencial, a sociedade na qual o
seu destino o faz mover-se. Somente a solidão é capaz
demonstrar a natureza mais íntima do contraste
201
.
O ser humano que pratica o diálogo sente o apelo de responder a palavra
que lhe foi dirigida. Ele permanece em estado de presença mesmo estando só.
Pois o ser humano de postura monológica percebe o outro não no estado de
presença, mas possui a intenção de se comunicar de modo egoísta. Por isso, “a
solidão pode significar para ele uma multiplicidade crescente de rostos, de
pensamento, mas nunca o relacionamento profundo, conquistado numa nova
profundidade, com o incompressivelmente verdadeiro”
202
. Aquele que possui a
vida monológica, encara seu estado interior como um estado de vida e, portanto,
como se fosse somente um objeto passivo de conhecimento. Sua interioridade
200
Ibidem, p. 54.
201
Ibidem, loc. cit.
202
Ibidem, p. 55.
73
jamais se tornaria para ele uma palavra, a ser apreendida por meio da
contemplação e da sensibilidade
203
.
“A existência dialógica recebe, mesmo no extremo abandono, uma
sensação áspera e revigorante de reciprocidade; a existência monológica não se
aventurará, nem na mais terna comunhão, a tatear para fora dos contornos de si
mesma”
204
. No entanto, é muito fácil confundir egoísmo e altruísmo.
A dialógica não pode ser equiparada ao amor. Mas o amor sem
a dialógica, isto é, se um verdadeiro sair-de-si-em-direção-ao-
outro, sem alcançar-o-outro, sem permanecer-junto-ao-outro,
o amor que permanece consigo mesmo, é este que se chama
lúcifer
205
.
O diálogo exige o sair-de-si e o ir-ao-encontro-do-outro. Para poder sair
de si mesmo em direção do outro é preciso partir do interior, é preciso ter estado
ou estar em si mesmo. O diálogo verdadeiro não acontece entre meros
indivíduos, isto seria apenas um esboço, algo imperfeito, imaturo. O diálogo
pode acontecer entre pessoas.
Mas por que meios poderia um homem transformar-se tão
essencialmente, de indivíduo em pessoa, senão pelas experiências
austeras e ternas do diálogo, que lhe ensinaram o conteúdo
ilimitado do limite? (...) Aquele que não pode ter um
relacionamento direto com cada um que encontra possui uma
plenitude vã
206
.
Buber afirma que dentro da criação o ser humano tem condições de se
aproximar um-do-outro sem mediações, porque ambos, homem e criação, estão
ligados ao mesmo núcleo
207
.
4.2 Movimento básico do diálogo
O dialógico acontece entre as pessoas envolvidas. Distingue-se, portanto,
do psicológico na medida em que este acontece no interior de cada indivíduo. O
sentido do diálogo está no intercâmbio, na interação, no intervalo das duas
203
Cf.: Ibidem, p. 55.
204
Ibidem, loc. cit.
205
Ibidem, loc. cit.
206
Ibidem, p. 55-56.
207
Cf.: Ibidem, loc. cit.
74
palavras
208
. No plano antropológico ou existencial o encontro se através de
dois movimentos: o distanciamento e a relação. Pelo distanciamento, o homem
coloca-se face-a-face com o outro, reconhecendo sua alteridade,
independentemente do Eu. Pela relação, o outro se torna presente, em pessoa e
não em mera representação.
O movimento básico é uma ação essencial do homem, em torno do qual
se constrói uma atitude essencial, que se pode entender como ação interior. O
movimento básico dialógico consiste no voltar-se-para-outro.
De uma incapacidade de apreendermos totalmente o que nos
cerca, emerge esta pessoa e transforma-se numa presença; e eis
que, na percepção, o mundo cessa de ser uma multiplicidade
indiferente de pontos, a um dos quais talvez prestemos atenção
momentânea; mas é um movimento de ondas sem limites em
torno de um dique estreito, de contornos bem definidos apto para
suportar pesadas cargas, - um movimento sem limites, limitado
por este dique, assim que, embora não circunscrito, tornou-se
movimento finito em si próprio, recebeu uma forma, liberou-se da
sua própria indiferença
209
.
No entanto, nenhum dos contatos consegue captar tudo sobre o Eu. Todo
homem pode produzir uma resposta pela força de expressão que possui. Mesmo
que se queira que tal resposta seja sufocada, ela conseguiexistir num olhar,
ou num som vindos da alma e que acontecem na interioridade. Não é correto
afirmar que o ser humano é incapaz de voltar-se para outro no tumulto da vida.
O voltar-se-para-outro não é um sentimentalismo que está em desacordo com a
densidade compacta da vida atual, é apenas uma confissão mascarada da
fraqueza de sua própria iniciativa diante da situação da época; ele consente que
esta situação lhe ordene o que é possível ou permissível, em vez de, como
parceiro sereno, estipular com qual espaço e qual forma a relação deve conceder
à existência de criatura.
O oposto ao movimento monológico não consiste, afirma Buber, no
desviar-se-do-outro, mas no dobrar-se-em-si-mesmo.
O dobrar-se-em-si-mesmo é diferente do egoísmo ou mesmo do
egotismo. Não é que o homem se ocupe de si mesmo, se
contemple, se apalpe, se saboreie, se adore, se lamente; tudo isto
pode ser-lhe acrescentado, mas não é parte integrante do dobrar-
se-em-si-memo assim como, ao ato de voltar-se-ao-outro,
208
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
155.
209
BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 57.
75
contemplando-o, pode ser acrescentado, o tornarmos o outro
presente, na sua existência específica, mesmo englobarmo-lo, de
forma que as situações comuns a ele e a nós mesmo sejam por
nós experienciadas também do seu lado, do lado do Outro. Chamo
de dobrar-se-em-si-mesmo o retrair-se do homem diante da
aceitação, na essência do seu ser, de uma outra pessoa na sua
singularidade, singularidade que não pode absolutamente ser
inscrita no círculo do próprio ser e que, contudo toca e emociona
substancialmente a nossa alma, mas que de forma alguma se lhe
torna imanente, denomino dobrar-se-em-si-mesmo a admissão da
existência do Outro somente sob a forma da vivência própria,
somente como uma parte do meu eu. O diálogo torna-se uma
ilusão, o relacionamento misterioso entre o mundo humano e
mundo humano torna-se apenas um jogo e na rejeição do real
que nos confronta, inicia-se a desintegração da essência de toda
realidade
210
.
O dialógico é o desdobramento do inter-humano que se dá no face-a-face
e na aceitação mútuas. Porém, a relação inter-humana o acontece sem
dificuldades. Tais relações inter-humanas ocorrem nas dualidades: primeiro a
dualidade do ser e da aparência e, segundo, da imposição e da abertura
211
.
O diálogo autêntico acontece quando cada parceiro trata o outro como
ele é. Isto implica em um conhecimento íntimo do fato de que ele é o outro,
essencialmente outro, diferente do Eu.
Mais que uma compreensão objetiva de algo, o conhecimento
íntimo seria uma compreensão transjetiva de alguém. Quanto a
isso Eu e Tu definiu claramente as diferenças. Na relação Eu-Tu,
não conheço o outro do mesmo modo que tomo conhecimento de
um objeto. (...) mesmo que não possa renunciar a métodos e
tipologias, deve o médico, no entanto, saber em que momentos
colocá-los de lado e tornar-se presente no encontro. Este tornar-
se presente é a própria confirmação mútua no momento dialógico.
A confirmação não pode ser considerada estática, pois eu
confirmo o outro em sua experiência dinâmica, em suas
potencialidades específicas; no presente esconde-se o que pode
tornar-se
212
.
A responsabilidade do diálogo nasce e permanece como acontecimento
quando o tornar-se-presente e a confirmação do outro em sua alteridade são
experiências feitas pelos dois lados numa mútua aceitação. É a responsabilidade
que fará com que a relação misteriosa que acontece entre os homens deixe de
ser mero jogo e contato ilusório baseado na aparência para se converter em
210
Ibidem, p. 58.
211
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
155-157.
212
Ibidem, p. 157-158.
76
autêntico diálogo, em que a palavra e a ação se fundam na unidade da vida
vivida
213
.
Responsável é aquele que, firmemente implantado na realidade, somente
conclui experiências por meio das quais se chega a uma unidade de si próprio,
sem forma nem conteúdo e que não é passível de decomposição. Pode-se
chamar esta unidade de original, de pré-biografia
214
.
No sentir do homem, a unidade do seu próprio eu não é
distinguível da unidade em geral; pois aquele que, no ato ou
processo de mergulhar, afundou-se sob o campo de toda a
multiplicidade que inunda a alma, não pode experienciar o não-
ser-mais da multiplicidade de outra forma a não ser como unidade
enquanto tal. (...) mas na facticidade da vida vivida o homem de
um tal instante não está acima, mas abaixo da situação da
criação, que é mais poderosa e mais verdadeira do que todos os
êxtases; não está acima, mas abaixo do diálogo. Não está mais
próximo do Deus oculto, que está acima do Eu e Tu, e está mais
afastado do Deus voltado para os homens, do que Deus que se
com Eu a um Tu e como Tu a um Eu, do que aquele outro que,
rezando, servindo, vivendo, o se ausenta da situação de
confronto e que não está na expectativa de uma unidade sem
palavras, a não ser aquela que talvez nos seja revelada pela
morte física
215
.
Contudo, o ser humano que vive dialogicamente conhece uma unidade
vivida. Esta, uma vez verdadeiramente conquistada, não se rompe mais por
transformação alguma. Nessa unidade sem lacuna e sem ocultação, na
perseverança concreta é que se ouve a palavra e que se é permitido gaguejar
uma resposta
216
.
4.3 O encontro: no princípio é a relação
217
O encontro acontece como relação de presença, irredutível à relação
sujeito-objeto. O encontro é a relação que coloca o homem no ser e, ao mesmo
tempo, o diferencia. Não se pode pensar o encontro como uma unidade, porque
a ênfase deve ser colocada no encontro entre o indivíduo e o que se lhe
213
Cf.: Ibidem, loc. cit.
214
Cf.: BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 59.
215
Ibidem, p. 60.
216
Cf.: Ibidem, loc. cit.
217
Im Anfang ist die Beziehung.
77
apresenta em sua frente. A relação tem abertura para elementos como a
reciprocidade e a singularidade, que se encontram no centro da relação Eu-Tu e
são a chave para a relação com a natureza.
Não se pode objetivar tal encontro submetê-lo a um exame
comparativo com outras realidades, defini-lo por categorias
redutoras; só é conhecido no evento da relação dialógica, na
presença, no entre, esse lugar ontológico onde um Eu realiza-se
encontrando um Tu
218
.
Portanto, a verdade fundamental da consciência e a sua irredutibilidade à
ordem do Isso, das coisas ordenadas no espaço-tempo, não é atingida por uma
análise reflexiva do sujeito sobre si mesmo
219
.
Distância e relação são dois movimentos fundamentais da vida humana.
O primeiro é a tomada de distância ou distância originária e o segundo é o entrar
em relação. Parece não haver problemas em entender que entrar em relação
significa entrar em relação Eu-Tu; contudo, não se pode identificar pura e
simplesmente a distância originária com o relacionamento Eu-Isso. Pois, quando
o homem não consegue entrar em relação, a distância aumenta e se solidifica, e
acaba impedindo a relação, ao invés de ser aquilo que prepara o caminho para
ela. O fracasso de entrar em relação correspondente ao Eu-isso e a distância
originária são, dessa forma, pressupostos pelas duas atitudes: Eu-Tu e Eu-
Isso
220
.
Cada Tu neste mundo, pela sua essência, se torna necessariamente uma
coisa. Isto significa que antes do Isso se tornar consciente ele se manifestou em
sua presença como um Tu na relação Eu-Tu.
Esta linguagem objetivamente não capta seo uma ínfima parte
da verdadeira vida. O Isso é a crisálida, o Tu a borboleta. Porém,
não como se fossem sempre estados que se alternam
nitidamente, mas, amiúde, são processos que se entrelaçam
confusamente numa profunda dualidade
221
.
O homem é capaz de entrar em relação após acontecer a distância.
Contudo, ele também é capaz de alargar, acentuar, e aumentar essa distância.
Neste caso, quando acontece o aumento da distância, o relacionamento acaba
por se afirmar em Eu-Isso. O outro ser que está em face do homem se torna um
218
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p. 47.
219
Cf.: Ibidem, p. 131.
220
Cf.: Ibidem, p. 132.
221
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 20.
78
objeto do Eu. “O homem é o único ente cuja experiência da realidade funda-se
na distância radical em relação ao mundo”
222
.
A distância pode dar resposta sobre as possibilidades do ser humano;
enquanto o movimento de relação pode responder à questão de como a vida
humana poderia se realizar. A primeira situação é de ordem categorial, enquanto
a segunda é de ordem da categoria e da história. “A distância provê a situação
humana; a relação provê o devir humano nesta situação”
223
. A distância e a
falha em entrar em relação são estados do ser humano e não propriamente atos
ou atitudes.
A relação dialógica, ato do homem que envolve o seu ser em sua
totalidade e intencionalidade, se realiza como abertura ao outro de acordo com
sua livre decisão e co-responsabilidade. A distância é aquilo que especifica o
humano dando-lhe sentido enquanto tal e estabelecendo, por sua vez, um
mundo cheio de sentido. Aqui existe uma diferença muito grande em relação ao
animal, para o qual não existe mundo, somente um aglomerado de elementos
sem capacidade de transcendê-los
224
. Distanciar-se é característica humana,
porque abre portas para a possibilidade de relacionamento, contudo não se pode
identificar a distância com a palavra princípio Eu-Isso.
Em suma, as palavras princípio, instauradoras do ser do homem
no mundo, diante do mundo, intencionalmente com ele
relacionado, o próprias do homem. O homem toma uma atitude
diante do mundo. Ora, aquilo que provê a situação humana é o
movimento fundamental de distância. Esta distância deverá,
portanto, ser pressuposto para aquelas atitudes do homem.
Cremos poder afirmar que, de fato, o princípio do ser do homem é
o diálogo, realizado graças à palavra-princípio Eu-Tu
225
.
Por isso, pode-se afirmar que no princípio é a relação. Ela é um evento
que acontece entre o homem e o que lhe está em face, não é uma propriedade
do homem. As palavras-princípio são o conteúdo e intencionalidade do homem.
Elas são princípios que orientam e sustentam a existência, princípios existenciais
a serem proferidos. São duas formas de relação bipolar, fundamentais, e não
222
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
133.
223
Ibidem, p. 134.
224
Cf.: Ibidem, p. 135.
225
Ibidem, p. 135-136.
79
duas estruturas epistemológicas. A palavra-princípio, fonte de todas as relações,
se dá na evidência de uma atitude
226
.
O mundo o pode ser conhecido de outro modo senão por meio
das coisas e com o espírito do sentido ativo do homem que ama.
O homem que ama é aquele que realça cada coisa,
desconsiderando qualquer outra. Neste momento preciso, nada
mais existe senão essa coisa, que é a única amada no mundo,
coincidindo mesmo com o mundo. onde o racionalista busca as
qualidades gerais, e o faz por meio de categorias, o homem que
ama a coisa como única, ela mesma em seu ser (...) Buber
afirma que o mundo não é compreensível, mas pode ser
abraçado, pelo abraço em um de seus seres. Ele relembra que o
termo hebraico conhecer, também significa abraçar com amor
227
.
Os encontros não se ordenam de modo a formar um mundo, mas cada
um dos encontros é, para o ser humano, um símbolo indicador da ordem do
mundo. Embora eles não sejam inter-relacionados entre si, apresentam um
vínculo com o mundo
228
.
O termo encontro (begegnum) designa algo de atual, um evento
que acontece atualmente. A relação engloba o encontro. É porque
o homem é ser de relação que pode tomar parte, estar presente a
um evento de encontro inter-humano. A relação abre a
possibilidade real da latência, ou, em outras palavras, durante o
relacionamento objetivante da atitude Eu-Isso, a relação dialógica
está como que latente; ela é fundamento de possibilidade e a
esperança de uma nova relação dialógica. A relação está, de certo
modo, sempre presente, ou melhor, o homem está sempre
presente na relação, seja de um modo velado, seja de um modo
patente. Mesmo durante o relacionamento objetivante Eu-Isso, o
homem guardaria a possibilidade de uma nova relação. A relação
Eu-Tu – Beziehung é uma possibilidade de atualização do princípio
dialógico estabelecendo o encontro dialógico
229
.
A dimensão religiosa, tão importante para Buber, não se dá no interior do
homem, mas na relação dialógica. Portanto, depende da relação entre Deus e o
homem, relação essa que, enquanto tal e real, é recíproca. O termo realização de
Deus é impróprio para designar Deus como uma realidade, pois seria reduzir
Deus a uma idéia. Assim, esse termo será substituído por encontro entre Deus e
o homem que resulta na iluminação da vida e da história humana
230
. O encontro
entre o homem e aquilo que lhe está à frente é um encontro que jamais se
226
Cf.: Ibidem, p. 148.
227
Ibidem, p. 45.
228
Cf.: BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 36.
229
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
136.
230
Cf.: Ibidem, p. 48.
80
tornará unidade. É por essa razão que se trata de um encontro e não de uma
união e porque essa relação não acontece entre o homem e objetos passivos,
mas entre o homem e aquilo que é ativo nesses objetos. Isso se dá, pois o
homem se encontra limitado a superar esse tipo de relação em que não se
respeita o outro, mas que o objetiva, que, para Buber, é o próprio mal do
mundo. O homem encontra, contudo, uma ajuda preciosa, pois o caráter ativo
das coisas responde à experiência de amor que o homem tem. Com essa ajuda
o homem consegue harmonizar a própria força e a do mundo, com o intuito de
realizar, verdadeiramente, sua ação
231
.
4.4 A responsabilidade e a resposta
“O conceito da responsabilidade precisa ser recambiado, do campo da
ética especializada, de um ‘dever’ que flutua livremente no ar, para o domínio da
vida vivida. Responsabilidade genuína existe onde existe o responder
verdadeiro”
232
. Essa resposta deve ser dada ao que acontece diante do homem,
ao que é dado a ver, ouvir e sentir. Cada hora concreta, com o seu conteúdo do
mundo e do destino, designada a cada pessoa, é linguagem para a atenção
despertada. A linguagem pode não possuir alfabeto, cada um dos seus sons é
uma nova criação e como tal pode ser captada. Espera-se do homem que
responda; que esteja atento, que enfrente com firmeza o ato da criação. No
entanto, os sons pelos quais é constituída a palavra são os acontecimentos do
cotidiano da pessoa. É constituída por eles, como são agora, “grandes” ou
“pequenos”, mas, na realidade, quando a palavra é dirigida àqueles que são tidos
por grandes, não fornecem signos maiores que os outros.
O silêncio pode envolver o ser humano e fazer com que seja esta a sua
resposta ao que lhe interpela da mesma forma que a palavra dirigida. As
palavras da resposta são faladas na linguagem intraduzível da ação e da
omissão, onde a ação pode comportar-se como uma omissão e a omissão como
uma ação. Portanto, o que se fala com a omissão ou com a ação, com o ser, é o
penetrar na situação, no ser interior; Essa situação que se apresentou de súbito,
231
Cf.: Ibidem, p. 46.
232
BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 49.
81
que antes não se conhecia e nem se podia conhecer, pois até agora, semelhante
a ela nenhuma outra existia. O que não se consegue dominar no momento, se
renuncia. Nunca é possível dominar uma situação a qual se torna conhecimento
íntimo. Somente se subjuga, incorporando-a na substância da vida vivida. A
partir desse momento, experiencia-se uma vida que é algo diferente do que uma
soma de momentos. Responder ao momento é responder, ao mesmo tempo,
pelo momento, criando responsabilidade por ele. Assim uma nova realidade
concreta do mundo, novamente é criada e colocada nos braços do ser humano:
resta responder por ela
233
.
Uma responsabilidade que não responde a uma palavra é uma
metáfora da moral. Factualmente, responsabilidade existe
somente quando existe a instância diante da qual se
responsabiliza e a auto-responsabilidade tem uma realidade
somente quando o eu-mesmo diante do qual me responsabiliza
penetra transparente no absoluto. Mas quem pratica a
responsabilidade real, a responsabilidade dialógica, não precisa
nomear o emissor da palavra a que está respondendo. Ele
conhece o emissor pela palavra que pressiona, penetra, assume o
ritmo de uma interioridade, movendo atingindo o âmago do
coração
234
.
Na realização da vida dialógica, numa existência fundada no diálogo, se
sobressai o fenômeno da resposta que é uma das manifestações antropológicas
mais concretas da existência da esfera do entre. Nesse nível, palavra e práxis se
confundem, isto é, no vel do dialógico ou, em outros termos, dia-logos é dia-
práxis, já que existe uma interação entre Eu-Tu
235
.
O fenômeno da resposta é essencial à relação. Quem ouve se o
é para responder? A experiência de receber a palavra e respondê-
la é o âmago do entre ou a revelação vivida pela reciprocidade.
Esta experiência vivida de um vínculo numa situação de apelo e
resposta encerra para Buber o fenômeno da responsabilidade em
seus dois sentidos: primeiro, como resposta e, segundo, como a
obrigação de responder. Para Buber, a responsabilidade com
projeto do homem na história de viver num nível real e essencial
da vida humana é a resposta ao apelo do dialógico. A
responsabilidade transcendendo o nível moral, para um nível mais
amplo, é o nome ético da reciprocidade
236
.
233
Cf.: Ibidem, p. 49-50.
234
Ibidem, p. 50-51.
235
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003,
p. 100.
236
Ibidem, p. 101.
82
A reciprocidade permanece como o parâmetro valorativo das diversas
relações Eu-Tu nas diferentes esferas que Buber distinguiu. Imediatez,
reciprocidade, presença, totalidade e incoerência no espaço e no tempo,
fugacidade e inobjetivação são características do mundo do Tu.
Reciprocidade, presença, imediatismo e responsabilidade são quatro
aspectos muito importantes que não podem faltar a qualquer relação Eu-Tu. A
reciprocidade indica, como o próprio termo exprime, a existência de uma dupla
ação mútua entre os parceiros da relação. “Que ninguém tente debilitar o sentido
da relação: a relação é reciprocidade”
237
.
A relação Eu-Tu não se reduz à esfera humana, ou melhor, o Tu, como se
pode concluir, não é necessariamente um ser humano. Porém, é na esfera das
relações humanas que a reciprocidade pode atingir seu grau mais elevado. Na
relação dialógica, a palavra da invocação recebe a resposta. A reciprocidade
rompe então com o imediatismo do Eu, lançando-o ao encontro face a face. É
que o Eu e o Tu se tornam presentes. A presença ou o presente é o momento, o
instante, da reciprocidade. Essa presença recíproca é a garantia da alteridade
preservada
238
.
O Tu se na presença e não na representação
239
. Não se precisa de
meios entre os parceiros do encontro; não esquema de idéias prévias, nem
imagem. A relação é direta e qualquer meio seria um obstáculo. “As palavras de
nossa resposta são pronunciadas na linguagem da ação, o que dizemos por
nosso ser é que nós nos entregamos à situação, que entramos na situação, nesta
situação que vem de interpelar”
240
.
Por se tratar de uma ação recíproca entre os presentes no diálogo, essa
relação é também responsabilidade. Buber situa o problema da responsabilidade
imediatamente no vel da vida vivida. Ele não a aborda no plano de uma ética
autônoma, de um dever abstrato. Na realidade, a vida humana é vivida em
situações inter-humanas. A verdadeira responsabilidade se torna, então, o nome
ético da reciprocidade, uma vez que a resposta autêntica se realiza em encontros
inter-humanos no domínio da existência em comum.
237
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 9.
238
Cf.: ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
152.
239
Cf.: Ibidem, loc. cit.
240
Cf.: Ibidem, p. 153.
83
4.5 O espaço ontológico do entre
A palavra dialógica vem apresentada como uma categoria do entre. A
relação encontra lugar nesta categoria que possui um âmbito ontológico. A
palavra tem a capacidade de ser portadora do ser. Desta forma, ser Eu é dizer
Eu, as duas realidades são uma e a mesma coisa
241
. A palavra é o lugar onde o
ser se instaura como revelação. Ela é o ato do homem, o que o situa no mundo
com os outros. Essa atitude é efetiva e eficaz e atualiza o ser do homem. A
palavra tem sentido existencial e sua intencionalidade é princípio ontológico do
homem como ser dia-logal e dia-pessoal.
O âmbito ontológico não é de modo algum assimilável a uma
subjetividade, pelo contrário, transcende a subjetividade, pois não é a linguagem
que está no homem, mas o homem que está na linguagem. A categoria
ontológica não é uma parte do ser, mas um acontecimento. A categoria do entre
não é algo do Eu, nem é a própria subjetividade ou a subjetividade do outro, ela
é o que esentre os dois. É o espaço ontológico do encontro original. Trata-se
de algo original e simples e tem um espaço para a presença recíproca. O
encontro é caracterizado por um estar diante do outro em pessoa, de modo
imediato e Eu diante do outro dirigindo-lhe a palavra. Por isso, o entre não existe
anteriormente ao Eu e ao Tu, mas somente no encontro.
O ser humano assume uma atitude diante de um ser quando profere uma
palavra-princípio. Esta palavra não é simples expressão verbal, mas uma
realidade que se liga ao que é essencial do ser humano, pois quando se fala,
quando se profere a palavra originária, se inicia uma relação que fundamenta a
sua existência. A palavra é princípio, porque é compreendida como fundamento
existencial do processo de apelo à existência, à realidade do ser-homem. A
palavra fundamenta a relação do homem. As palavras-princípio querem anunciar
relações e não tem a pretensão de significar coisas; elas não descrevem algo que
pudesse existir fora delas, mas uma vez proferidas elas fundamentam uma
existência
242
.
241
Cf. MECA, Diego Sanchez, Martin Buber: fundamento existencial de la intercomunicación.
Barcelona: Herder, 1984, p. 91.
242
Cf. BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 3.
84
A palavra-princípio que o ser humano profere leva-o a assumir uma ou
outra atitude, conforme as duas intencionalidades dinâmicas que direcionam a
dois pólos de duas consciências vividas. Portanto, não é o ser humano que adota
uma ou outra atitude fundamental, mas a palavra-princípio proferida que o
coloca em uma ou outra atitude. Essa dualidade se manifesta como sendo Tu ou
Isso.
Aquele que diz Tu não tem coisa alguma por objeto. Pois, onde
uma coisa também outra coisa; cada Isso é limitado por outro
Isso; o Isso existe. Na medida em que se profere o Tu, coisa
alguma existe. O Tu não se confina a nada. Quem diz Tu não
possui nada. Ele permanece em relação
243
.
Por isso, quem pronuncia uma palavra fundamental entra nessa palavra e
está nela. Portanto se pode afirmar que a linguagem não está no homem, mas o
homem na linguagem
244
. A relação é primordial, acontece por meio do diálogo e
de uma vida em diálogo
245
.
A palavra-princípio Eu-Tu é um direcionar a palavra ou um dizer
246
. Por
outro lado, a palavra-princípio Eu-Isso
247
é um falar sobre ou um dito
248
. O Tu é
aquele a quem se dirige a palavra e que pode ser outro, quando é o Eu que
dirige a palavra, ou pode ser, ainda, um Eu mesmo, quando a palavra é dirigida
a si próprio. O direcionar a palavra e o falar sobre são as duas dimensões
fundamentais da linguagem que formam a dualidade das palavras-princípio
249
.
Esta realidade aponta para três maneiras do ser humano se fazer presente
250
: a
possibilidade de direcionar a palavra
251
, a capacidade de perceber algo
252
, a
possibilidade de falar sobre algo
253
.
A relação pode perdurar mesmo quando o homem a quem digo Tu
não o percebe em sua experiência, pois o Tu é mais do que aquilo
de que o Isso possa estar ciente. O Tu é mais operante e
acontece-lhe mais do que aquilo que o Isso possa saber. o
243
Ibidem, p. 5.
244
Cf. MECA, Diego Sanchez, Martin Buber: fundamento existencial de la intercomunicación.
Barcelona: Herder, 1984, p. 91.
245
As principais categorias da vida em diálogo é a palavra, relação, diálogo, reciprocidade como ação
totalizadora, subjetividade, pessoa responsabilidade, decisão-liberdade, inter-humano.
246
Das Ansprechen.
247
A palavra princípio Eu-Isso também pode ser denominada de Eu-Ele.
248
Das Besprechen.
249
Grundwörter.
250
Mir-Gegenwärtigsein.
251
Die Anredbarkeit.
252
Die Vernehmbarkeit.
253
Die Beredbarkeit.
85
lugar para fraudes: aqui se encontra o berço da verdadeira
vida
254
.
As duas palavras-princípio não coexistem em sua atualidade respectiva: o
monológico e o dialógico. No entanto, mesmo quando a palavra Eu-Isso está em
sua atualidade, o Tu continua presente de uma maneira latente. “A existência
dialógica se completa, sobretudo, como um ritmo de atualidade e de latência das
duas palavras-princípio”
255
.
A linguagem requererá a presença do outro. A presença do outro
é indispensável para nossa realização humana. A necessidade da
existência do outro, do Tu, é essencial para a constituição da
linguagem. Assim, surge o diálogo, inicialmente como uma
necessidade existencial. Este diálogo transforma-se em plenitude
humana. A linguagem não é simples meio de expressão, que se
pode por de lado e trocar como um disfarce, pois na linguagem
aparece e se manifesta em sua totalidade aquilo que nós somos.
O homem em sua essência humana está em relação. Em relação a
quê? À duplicidade. (...) a missão da linguagem é despertar a
duplicidade
256
.
A criação do mundo e do homem é a manifestação da palavra de Deus. A
palavra não relata a origem e significado da existência humana, mas é função
humana de integração social. Introduz o homem no mundo social. Atualiza o
homem no seu constante contato com o outro
257
.
Aquele que toma a linguagem como um acontecimento vivo e único
consegue compreendê-la. A linguagem torna-se atualizadora do homem. Nesse
instante o mundo se abre em sua plenitude e na totalidade do horizonte da auto-
compreensão do mundo. Quando o ser humano troca pela linguagem sua
experiência de ser humano junto ao outro no mundo, ele se hominiza, pois “o
homem se torna Eu na relação com o Tu”
258
. Essa comunicação é constante,
surge da sincera relação humana, da verdadeira linguagem. O ser humano se
torna verdadeiramente homem na existência dialogal com o Tu, pois “o homem
se torna Eu na relação com o Tu”
259
. Na plenitude existencial a linguagem
transforma-se em diálogo constante do Eu com o Tu.
254
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 10.
255
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
127.
256
SIDEKUM, Antônio. Intersubjetividade em Martin Buber. Porto Alegre/Caxias do Sul:
EST/UCS, 1979, p. 42-43.
257
Cf.: Ibidem, p. 43.
258
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 32.
259
Ibidem, loc. cit.
86
O diálogo é uma das formas de compreensão do ser humano:
compreendendo o que o outro diz, pode-se compreender a si mesmo. Assim
apreende-se o que é pensado na palavra e o sentido que é falado. O diálogo
acontece na compreensão humana. É preciso conquistar uma abertura de ser
para a vida dialógica. A troca de fala o significa grande coisa para o homem,
quando não for baseada no reconhecimento do outro. A reciprocidade acontece
num espaço de generosidade que se torna presente, em que o diálogo autêntico
sela o encontro dos homens, do qual cada um leva para o outro o testemunho
não somente de si, mas os valores comuns. Esta é uma atitude, antes de tudo,
aberta e receptiva. Isto significa reciprocidade
260
.
Dessa forma, o mistério que envolve o ser humano no seu ser genuíno só
pode ser desvelado na medida em que ele se volta para aquele que lhe está
próximo e que a ele se dedica na sua totalidade de ser.
Nesta relação, que é dialógica, o outro não é apenas o objeto de
seu interesse, mas se torna realmente um Tu, com o qual se
defronta em uma verdadeira troca interior, em um diálogo
pessoal. Compreende-se que tal relacionamento interior, tal
relação de pessoas, o é apenas uma conquista adicional, um
mero enriquecimento pessoal do homem individual plenamente
desenvolvido, do Eu amadurecido, pleno, mas é muito mais, é
uma condição fundamental para o homem poder chegar a ser
pessoa no pleno sentido da palavra, a ser ele mesmo. (...) O
homem se torna verdadeiramente homem numa situação
dialogal com o Tu
261
.
Nesta perspectiva, o ser humano começa a ter um olhar sobre a
solidariedade no decorrer da história, no qual a consciência de ser social do
homem foi desertando e crescendo cada vez mais.
É, talvez, a linguagem mais forte, cuja voz é mais penetrante e
humana e que ultrapassa os arcanos da própria consciência da
abertura para o outro, com o interesse do homem pelos seus
próprios atos e obras, cresceu cada vez mais a sua natural
inclinação para a verdadeira comunidade. Essa vida comunitária
do homem se realiza no mundo histórico. O mundo, pelo qual o
homem se sente atingido de maneira radical e imediata, é o
mundo histórico do homem. Mundo, portanto, não designa o
conjunto das realidades do mundo físico, senão, também, e
principalmente, o mundo do homem transformado pela livre
atividade histórica do próprio homem e, fundamentalmente,
construído por ele mesmo. O fato de o homem estar inserido no
mundo de realidades históricas faz com que ele seja um ser de
260
Cf.: SIDEKUM, Antônio. Intersubjetividade em Martin Buber. Porto Alegre/Caxias do Sul:
EST/UCS, 1979, p. 46.
261
Ibidem, p. 50.
87
relação. Pois, nesse mundo do homem, nessa história feita pelo
homem, decide-se o destino individual e social do homem, pelo
que o homem se em grande escala desafiado e marcado por
este mundo histórico
262
.
O entre está imbuído neste mistério do reino do Tu. “Ele é a esfera que
ontológica que sustenta, que torna possível o evento da relação. (...) o entre-
dois não é uma construção auxiliar; ele é o verdadeiro lugar e suporte daquilo
que se passa entre humanos”
263
.
No entanto, o obstáculo do inter-humano sempre será a dualidade do ser
e do parecer. Isto é, o ser é aquilo que é, sem reservas, e se constitui
verdadeiramente. O parecer, por sua vez, é o que se quer parecer. O parecer
fabrica uma ação que deve agir como espontânea. Ela vive de aparências. Estas,
segundo Buber, são os fantasmas que precisam ser exorcizados
264
. Assim,
quando o entre da relação é autêntico ou verdadeiro, também é autêntico e
verdadeiro aquele que se comunica com o outro.
Buber reconhece que a crise do entre se configura com a crise do
humano. A prédica moral se torna muito fraca e frágil se não fizer consonância
como a retidão do ser em sua relação.
Se nos tempos primitivos a pressuposição do ser-homem pode
dar-se através da retidão da sua postura de caminhar, a
realização do ser-homem pode dar-se através da retidão da
alma no seu caminhar, através de uma grande honestidade que
não é mais afetada por nenhuma aparência, que ela venceu a
simulação
265
.
O inter-humano pressupõe certa dependência dos homens entre si. A
aparência tenta sanar a dificuldade de um confirmar seu ser no outro,
descartando a possibilidade de oposição de convicção por parte do outro. Ceder à
aparência é covardia, resisti-la é a verdadeira coragem. O homem que luta
contra a aparência nunca o faz em vão. “Certamente torna-se cada vez mais
difícil perfurar a crosta cada vez mais endurecida que se formou sobre o ser”
266
.
Mas não é verdadeira a afirmação que não é possível mudar a “natureza do
262
Ibidem, p. 50-51
263
ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003, p.
139.
264
Cf.: BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 142.
265
Ibidem, p. 143.
266
Ibidem, p. 144
88
homem que age na aparência, “o homem, enquanto homem pode ser
redimido”
267
.
Outro problema que se pode encontrar na relação também abrange a
esfera do entre. É a imposição de uma atitude ou opinião própria ou, ainda, o
procurar no outro algo que corresponda com a própria opinião. A primeira é
muito usada na propaganda e a segunda pelos educadores. Na Crítica da razão
prática, Kant fornece um princípio norteador que impede usar o ser humano
como meio, o homem pode ser tratado somente como um fim em si. Para Buber
o inter-humano se aproxima de Kant, mas sua origem e objetivos são diversos.
Para o autor é na reciprocidade que se conhece o homem e se chega ao objetivo
último: o ser humano.
Não é o ser-próprio (o homem) como tal que é o essencial em
última instância, mas o fato que o sentido da criação da existência
humana se completa, vez por vez, como ser-próprio. É a função
de abertura entre os homens, é o auxílio ao vir a ser do homem
enquanto ser-próprio, é a assistência mútua na realização do ser-
próprio da natureza humana conforme a criação, é isto que leva o
inter-humano à sua verdadeira altura. (...) é somente que se
manifesta de uma forma encarnada toda a glória dinâmica do ser
do homem
268
.
Com isso Buber afirma que está errado afirmar unicamente a
individualização, mas também a relação entre dois, onde cada um tem em
mente, ao mesmo tempo, o que existe de mais elevado na relação, sem impor
algo de sua própria realização. Somente a descoberta e a prática do entre
possibilita a conversação genuína
269
.
267
Ibidem, loc. cit.
268
Ibidem, p. 152.
269
Cf.: Ibidem, p. 153.
89
CONCLUSÃO
A reflexão de Buber sempre partiu de atos da vida, isto é, das vivências
concretas de seus anos. O que provocou o início desta reflexão foi o desencontro
com sua mãe. Queria entender o porquê de não sentir nada pela sua mãe
quando ela o procurou depois de muito tempo
270
. Entre os dois não havia nada,
ele não conseguia olhar para os espantosos belos olhos dela, foi um fracasso de
relação: um desencontro.
A relação dialógica de Buber acontece em três esferas do ser. A primeira
com a natureza, a segunda é a vida com os homens e a terceira com os seres
espirituais. No entanto, será entre os homens que a relação se manifesta como
linguagem. Nesta esfera se pode dar e aceitar o Tu. Na primeira esfera não era
possível a reciprocidade, pois permaneciam na obscuridade sem alcançar o limiar
da conversação. A terceira esfera é marcada pelos seres espirituais. Ela é meio
envolta de nuvens, silenciosa, mas provocadora de resposta. Neste vel não se
identifica um Tu, mas se percebe um chamado ou uma invocação para se
responder atuando. É uma resposta dada com todo o ser da melhor forma que os
lábios podem pronunciá-la. Assim, as três esferas oferecem situações de tornar-
se presente que podem elevar o olhar ao limiar de um Tu Absoluto.
Contudo, a relação se estabelece de modo mais comum entre-dois
homens. Isso porque o Tu é pronunciado com a riqueza de toda a linguagem. A
relação pode, então, avançar e voltar na mesma forma da palavra-princípio,
somente aqui a invocação e a resposta são formuladas e vividas na
reciprocidade.
A antropologia de Buber compreende, em primeiro lugar, o ser humano
como um ser relacional. A partir de suas relações Buber afirma a existência
humana no existir com o outro, evitando uma relação que consista numa relação
somente consigo mesmo. É na relação com o outro que ele descobre e conhece a
si mesmo.
O reino do Tu supõe, ainda, o encontro de um com o outro pela categoria
do entre. Somente os homens podem dizer Tu a outro e podem também dizer
nós. O entre é um existencial que pode cobrar realidade ontológica em graus
muito diferentes. É a esfera comum aos dois: ao Eu e ao Tu.
270
Conferir a nota 2.
90
O entre não é uma construção ad hoc, secundária, mas um lugar e um
suporte reais que se estabelecem entre um homem e outro. Sua realidade requer
atenção especial, pois o encontro inter-humano sempre perpassa uma fina
realidade onde o Eu e o Tu se encontram, diferenciando-se da alma e do mundo.
Segundo Buber a essência do homem pode ser conhecida pelo reino do entre. O
que existe de mais peculiar no ser humano se pode perceber na relação com o
outro. O voltar-se para o outro é, por natureza, uma relação dialógica. Essa
relação é marcada por elementos como a reciprocidade, o fazer-se presente para
o outro, a resposta responsável, a consciência de alteridade, o espírito de
totalidade, a abertura ao absoluto ou eterno e a unicidade de si que
fundamentam o diálogo.
Buber chama o entre-dois, às vezes, de amor e, outras, de Espírito.
Quando se trata de amor, Buber não se refere a nenhum sentimento, mas a uma
realidade profunda: uma força cósmica. O amor provoca a atualidade e
corresponde à responsabilidade de um Eu para com um Tu. Portanto tem
característica de totalidade. O ódio, contudo, mesmo existente, sempre é parcial.
Não se pode odiar o ser em sua totalidade, apenas parte dele
271
. O amor é um.
O homem tem os sentimentos, estes moram no homem, enquanto ao amor, este
não surge, ele é construído entre o Eu e o Tu e eleva a relação até o seu limite.
O espírito é a resposta do homem ao Tu. O espírito é a palavra. O Espírito não
está na interioridade do Eu, está entre Eu e Tu. Aquele que sabe responder Tu
vive no espírito
272
.
Seria desejável que toda relação entre um e outro fosse Eu-Tu, mas é
impossível permanecer nesta dinâmica. Sempre se alterna entre um Eu-Tu e Eu-
Isso. Mas isso não pode ser considerado com algo ruim, pois é neste fluir de Tu e
Isso que se encontra a liberdade. Por isso, a relação Eu-Tu, embora não
permaneça de modo constante, sustenta-se como meta de toda a relação. Cada
ser humano contribui ao fazer-se presente ao outro com todo o seu ser e
colabora ao deixar que o outro se faça presente a ele, afim de que o outro se
torne um eu.
Contudo a filosofia relacional de Buber apresenta algumas dificuldades
frente a um olhar crítico. O primeiro ponto a ser considerado seria sobre a teoria
de manter o diálogo. Não se consegue medir de fato se os participantes
271
Cf.: BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 18.
272
Cf.: Ibidem, p. 45.
91
realmente conseguiram atingir o que Buber considera um diálogo. Um
observador não tem idéia clara se dois participantes de um diálogo conseguiram
ou não criar uma relação dialógica. Em segundo lugar a teoria de Buber não é
capaz de apontar resultados ou acontecimentos futuros a partir da relação
dialógica. O diálogo é sempre incerto e imprevisível. Os resultados aparecem
claros somente a quem está inserido ou participando do diálogo. Um terceiro
apontamento crítico seria que a teoria de Buber carece de simplicidade. A relação
dialógica é complexa e envolve muitos elementos. Mesmo se todas as qualidades
que promovem o diálogo estivessem presentes, ainda assim não seria garantido
que ele acontecesse. O diálogo é difícil de se conseguir e de nele permanecer,
pois uma vez que se aprendeu a estar preocupado com seus próprios
sentimentos de felicidade e realização, a relação Eu-Tu já cessou.
Não obstante, a relação dialógica de Martin Buber apresenta elementos
muito importantes para uma antropologia filosófica consistente. Mostra pela
relação Eu-Tu e Eu-Isso que o ser humano pode, pela sua atitude, viver em
reciprocidade e respeito se assim for sua resposta.
A filosofia de Buber é marcada pela esperança depositada no ser humano
e em sua progressiva integralidade. E que tudo que está a sua volta faz parte de
sua vida como atos-de-vida, tirando o ser humano de um abismo frio de
objetivação. A relação dialógica é a resposta que Buber encontrou para sanar a
crise da humanidade no mundo. Pois se a pessoa se torna Eu no Tu, esta vida
poderá tornar-se uma plenitude se for um diálogo.
Os caminhos, segundo Buber, não existem para serem admirados, mas
para serem percorridos; é preciso ouvir, mas não copiar; não adianta pensar em
fazer algo, mas sim fazê-lo; e, sobre tudo, o fundamental, da existência humana,
não é o indivíduo, nem a totalidade, mas sim o ser humano como humano.
Partindo de sua antropologia filosófica, cujo fundamento é a compreensão
do ser humano como um ser-com-o-outro, chega-se a sua idéia de encontro e
diálogo.
92
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