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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes
A DIMENSÃO COLETIVA NA CRIAÇÃO:
o processo colaborativo no Galpão Cine Horto
RICARDO CARVALHO DE FIGUEIREDO
Belo Horizonte
2007
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2
RICARDO CARVALHO DE FIGUEIREDO
A DIMENSÃO COLETIVA NA CRIAÇÃO:
o processo colaborativo no Galpão Cine Horto
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Artes.
Orientador: Fernando Antonio Mencarelli
Belo Horizonte
2007
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3
RICARDO CARVALHO DE FIGUEIREDO
A dimensão coletiva na criação: o processo colaborativo no Galpão Cine Horto
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Artes.
Belo Horizonte, 2007.
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Antonio Mencarelli (Orientador) – EBA/UFMG
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Mariana de Lima Muniz – EBA/UFMG
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre – FALE/UFMG
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Ernani de Castro Maletta – EBA/UFMG
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Maurílio Andrade Rocha – EBA/UFMG
4
Figueiredo, Ricardo Carvalho de, 1982-
A dimensão coletiva na criação: o processo colaborativo no
Galpão Cine Horto / Ricardo Carvalho de Figueiredo. - 2007
128 f. : il.
Orientador: Fernando Antonio Mencarelli
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas
Gerais, Escola de Belas Artes.
1. Grupo Galpão – Teses 2. Teatro de Grupo – Teses 3.
Teatro – Pesquisa – Teses 4. Criação (literária, artística, etc.) –
Teses I. Mencarelli, Fernando Antonio, 1962- II. Universidade
Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes III. Título.
CDD: 792.098151
5
A cada um dos integrantes dos processos de
Casa das Misericórdias
O homem que não dava seta
que no embate cotidiano da sala de ensaio
colocaram-se enquanto sujeitos dotados de anseios, desejos e,
principalmente,
capazes de radicalizar a criação em conjunto – por mais difícil que seja.
6
AGRADECIMENTOS
À todos aqueles que contribuíram para a escrita desta dissertação, direta e
indiretamente.
À minha família que, mesmo de longe, estabelece seus laços de afeto.
Ao Prof. Dr. Fernando Mencarelli pela orientação paciente, compreensiva e rigorosa.
À Sara Rojo pelas discussões travadas durante o exame de qualificação e durante as
aulas. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes:
Ernani Maletta, Maurílio Rocha, Antônio Hildebrando e Pitti.
Às funcionárias da Pós-Graduação em Artes: Zina e Vanessa.
Aos cúmplices de mestrado: Carla, Flávio, Juliana e Sandra.
Aos integrantes da Maldita Cia. de Investigação Teatral, em especial a: Nina Caetano,
Amaury Borges e Lenine Martins.
Aos integrantes do espetáculo O homem que não dava seta, em especial a: Chico
Pelúcio, Gustavo Bones, Paulo Azevedo, Tininha, Marcelo Braga e Cristiana Brandão.
Aos integrantes do Galpão Cine Horto e do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro:
Júlio Maciel, Luciene Borges e Natália Baruh.
À Cia. Teatral As Medéias, pela oportunidade de participar do processo colaborativo,
em especial: Adélia, Ana, Davi, Domingos e Guiomar.
Aos amigos virtuais, pelas trocas incessantes: Rosyanne Trotta, Miriam Rinaldi,
Adélia Nicolete, Narciso Telles e André Carreira.
Aos amigos de todas as horas: Neide, Nina e Clóvis.
Ao Fellipe pela amizade e hospedagens.
À Alaine, pelo amor incondicional.
Ao Davi pela amizade de irmão.
Ao Eduardo pelo companheirismo.
Aos parceiros de jogo da UFOP que, na ocasião, eram meus alunos.
Ao teatro.
7
RESUMO
Nesta pesquisa, investigou-se a forma de criação teatral denominada processo
colaborativo em experiências ocorridas nos projetos Oficinão e Cena 3 x 4 do Galpão Cine
Horto, esse último em parceria com a Maldita Cia. de Investigação Teatral. Os projetos
marcam, a partir de 1999, as primeiras experiências em Belo Horizonte voltadas para a
reflexão e o exercício sistemático do processo colaborativo, em parceria com os criadores
paulistas Luís Alberto de Abreu e Antônio Araújo, entre outros supervisores, orientadores e
convidados, que difundiram o conceito e a prática em escolas e grupos no país. Neste
trabalho, questionou-se os motivos pelos quais um coletivo de artistas escolhe o processo
colaborativo como meio de criação. Tendo como base duas montagens, O homem que não
dava seta (2002) e Casa das Misericórdias (2003) para a análise do processo colaborativo. A
hipótese é que o processo colaborativo interessa aos grupos teatrais e aos artistas que
investem no chamado teatro de grupo, porque possibilita a verticalização da experiência
coletiva no campo da criação, uma vez que esta experiência é recorrente nos grupos teatrais
em seu modo de produção.
8
ABSTRACT
This research investigated the form of theatrical creation process called collaborative
experiences occurred in the projects Oficinão and Cena 3x4 of Galpão Cine Horto, the latter
in partnership with Maldita Cia. Investigação Teatral. The projects mark, from 1999, the first
experiments in Belo Horizonte focused on the systematic reflection and the exercise of the
collaborative process, in partnership with the creators from São Paulo Luis Alberto de Abreu
and Antonio Araújo, among other supervisors, mentors and guests which broadcast the
concept and the practice in schools and groups in the country. In this work we ask the reason
a collective of artists choose the collaborative process as a means of establishing, through two
mounts, O homem que não dava seta (2002) and Casa das Misericórdias (2003). Our
hypothesis is that the collaborative process with interested groups and theater artists who
invest in the theater group called because allows verticalisation of collective experience in the
field of creation, as this experience is applicant in theatrical groups in their mode of
production.
9
SUMÁRIO
RESUMO ...................................................................................................................................6
ABSTRACT ...............................................................................................................................7
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................11
CAPÍTULO 1: Processo Colaborativo: o coletivo na criação ............................................16
1.1 – Teatro de Grupo: a busca da coletivização dos procedimentos na criação .....................17
1.2 – A criação coletiva e o processo colaborativo ..................................................................38
1.2.1 A criação coletiva nos grupos: O Teatro Oficina (Brasil) e o Living Theatre
(Estados Unidos) ..........................................................................................................46
1.3 – A colaboração: usos e significados .................................................................................55
CAPÍTULO 2: O processo colaborativo na formação para o teatro de grupo: O homem
que não dava seta ....................................................................................................................58
2.1 – Galpão Cine Horto: a preocupação com a criação em grupo ..........................................60
2.2 – O Oficinão: espaço de formação, criação e investigação coletiva ..................................61
2.2.1 – O início do processo colaborativo no Oficinão: Caixa Postal 1500 ................63
2.2.2 – A conjugação da criação: O Homem Que Não Dava Seta ...............................74
2.2.2.1 – A atuação ...........................................................................................77
2.2.2.2 – O Núcleo de Dramaturgia ..................................................................84
2.2.2.3 – A Direção ...........................................................................................89
CAPÍTULO 3: Investigação coletiva da criação colaborativa nos grupos teatrais: Casa
das Misericórdias ....................................................................................................................93
3.1 – O processo colaborativo nos coletivos: o Projeto Cena 3x4 ...........................................94
3.2 – Maldita Cia. de Investigação Teatral ............................................................................104
10
3.2.1 – A conjugação dos desejos ............................................................................. 104
3.2.2 – As visitas: do espaço vazio para a arquitetura do abandono ..........................109
3.2.3 – A atuação ........................................................................................................111
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................115
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................119
ANEXOS ...............................................................................................................................126
11
A necessidade do trabalho de grupo,
mesmo em um conjunto de astros grandes e pequenos
como os do teatro de Arte de Moscou,
foi solidificada por Stanislavski
ao demonstrar que o desempenho individual
só pode atingir seu máximo rendimento cênico
pelo desempenho coletivo.
Eraldo Pêra Rizzo
12
INTRODUÇÃO
Minha inserção no teatro deu-se quando ainda morava em João Monlevade cidade
do leste mineiro, onde nasci. Ao fazer uma oficina sobre iniciação teatral descobri a
possibilidade de comunicar-me por meio de outra linguagem, a teatral, que até então
desconhecia. Foi nessa oficina que descobri a existência de um grupo de teatro amador, do
qual fiquei enamorado. As pessoas que compunham aquele coletivo eram iniciantes, umas
com algumas oficinas a mais que outras, representantes do teatro feito para a missa de
domingo (na igreja), mas todos com grande vontade de estar ali e praticar o teatro em grupo.
Ao recordar-me dessa trajetória, sob o olhar do teatro de grupo, percebo o quanto
éramos criativos, inventores e que, dessa forma, conseguíamos driblar, por exemplo, o
pagamento de direitos autorais dada a criação dramatúrgica dentro do coletivo. Em meio a
textos bíblicos (encenados durante os evangelhos na missa), textos relacionados ao casamento
da roça (para as festas juninas, textos sobre segurança do trabalho ou de assuntos
relacionados ao teatro-empresa, temas que retratavam épocas como década de 60 e 70 no
Brasil), o grupo sobrevivia com mais de dez integrantes.
Esse histórico retrata, de alguma forma, o modo de criação de grupos amadores que
trazem em sua trajetória elementos que dizem respeito ao que entendemos hoje como
compartilhamento das funções. É claro que estávamos longe de realizar naquela época algum
trabalho consciente sobre isso, mas percebo que existiam contaminações no processo de
escrita e de direção durante os processos criativos.
Logo após minha permanência nesse grupo, comecei a fazer um curso de teatro aos
fins de semana em minha própria cidade com uma professora que me marcou muito. Foi
que decidi, sem sombra de vidas, me profissionalizar em teatro. No ano de 2000, ingressei
no curso superior de artes cênicas. Durante a graduação envolvi-me com diversos trabalhos.
Dirigia, atuava, escrevia, experimentando, de forma mais consciente, as várias funções
existentes no fazer teatral. Além de exercitar esses lugares de criação, muito cedo, tive contato
com o ensino direcionado às crianças e aos idosos, realizando-me bastante.
Aos poucos, percebi que a forma coletiva chamava minha atenção e que daí, o teatro,
era exatamente uma arte que requer/proporciona esse encontro. Também comecei a entender
que sempre havia uma troca entre essas experiências e na interface dos desejos, dos projetos,
saíamos mais fortalecidos.
13
Assim, ao fazer uma oficina sobre processo colaborativo ministrada pelos integrantes
da Maldita Cia. de Investigação Teatral, em 2003, fiquei motivado a descobrir as
possibilidades contidas nessa proposta, despertando-me por trabalhar o teatro de forma a
interligar as várias funções contidas no mesmo, respeitando-as, na comunhão de um projeto.
O caráter pedagógico contido nessa forma de criação contemplava meus anseios teatrais-
educativos.
Contudo, precisava ir além, experimentar esse modo de criação de forma sistemática.
Foi quando participei (junto a Cia. Teatral As Medéias – da cidade de Ouro Preto/MG, no ano
de 2005) do Projeto Cena 3x4. Na função de ator, vivenciei o processo colaborativo e
questionei, enquanto criador, sobre as (im)possibilidades que aquela forma de criação
permitia.
Concomitantemente, quis estudar outros grupos que investigavam o processo
colaborativo a fim de entender a verticalização da dimensão criativa coletiva que se dava a
partir da dinâmica estabelecida entre as funções e se era da natureza dessa prática a
verticalização
1
da criação. Assim, escolhi estudar as produções realizadas junto ao Galpão
Cine Horto realizadas desde o ano de 1999, fomentando a criação e a pesquisa dentro de
seus projetos a partir do processo colaborativo.
O Cine Horto foi um espaço de experimentação e difusão do processo colaborativo
quando incorporou as experiências trazidas pela Escola Livre de Santo André, impulsionada
por Luís Alberto de Abreu, e pelo Teatro da Vertigem, com Antônio Araújo, resultando na
criação de dois projetos: a experiência do processo colaborativo no Oficinão (1999) e a
criação do projeto Cena 3x4 (2003), em parceria com a Maldita Cia.
Desse modo, investigamos as especificidades do processo colaborativo em dois
espetáculos: O homem que não dava seta (Oficinão de 2002) e Casa das Misericórdias (Cena
3x4 (2003)); buscando enxergar se houve uma radicalização em seus procedimentos criativos
a ponto de tornar o processo colaborativo uma necessidade na criação em grupo.
Para isso, foi importante realizarmos uma revisão da literatura no que diz respeito ao
processo colaborativo. Esse modo de criação é praticado desde a década de 90, tanto na
Escola Livre de Teatro como no Teatro da Vertigem. Na primeira, destacamos os professores-
pesquisadores: Tiche Vianna, Cacá Carvalho, Luís Alberto de Abreu, Chico Medeiros, Luís
1
Essa verticalização tem a ver com o aprofundamento dentro de cada área de criação do espetáculo (atuação,
direção, dramaturgia), ou seja, cada criador investe em sua função de modo a contribuir a partir de seu lugar
específico com o discurso global da obra.
14
Fernando Ramos e Antônio Araújo, entre outros, que buscaram refletir e desvendar alguns
princípios que pudessem ordenar um trabalho de intensa criação e ao mesmo tempo sem
hierarquias fixas e desnecessárias. Desenvolvendo essa prática também em seu grupo,
Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, radicaliza essa experiência junto a outros
criadores do fazer teatral (atores, dramaturgos, cenógrafos, light designer etc.) obtendo grande
respaldo junto ao coletivo no que diz respeito ao processo criativo.
A partir de então, vários estudos começaram a se debruçar sobre a criação em processo
colaborativo e dentre esses, destacamos: Antônio Araújo (2002), Fábio Cordeiro (2004),
Stella Fischer (2005), Adélia Nicolete (2002 e 2005) e Miriam Rinaldi (2006), como
pesquisadores-artistas que contribuíram para uma reflexão teórico-prática. Esses trabalhos são
complementares na discussão do conceito e apropriação do termo, porém, trazem variadas
críticas às reflexões produzidas por outros pesquisadores brasileiros.
Ao revisar esses estudos, preferi buscar a gênese da palavra colaboração, atualmente
estudada em outros campos do conhecimento e descobrimos que o conceito usado pelos
teóricos do teatro em muito se aproxima do processo de produção colaborativo.
Historicamente, o processo colaborativo vem logo após a criação coletiva (1960
1970) e a década dos encenadores (1980), respectivamente. O diálogo com as experiências
das décadas anteriores resultou na proposição nos anos 90 de uma revisão das práticas
teatrais, culminando no processo colaborativo, não enquanto evolução da criação, mas
enquanto possibilidade de aprofundamento nas funções teatrais durante a elaboração do
espetáculo.
As transformações da cena criativa ao longo do século 20, reconhecidamente híbrida,
tanto em sua dimensão pós-dramática (Lehmann, 2002) quanto de work in process (Cohen,
2004), impulsionaram a busca por novos processos criativos, contendo no qual o processo
colaborativo se insere, seja em sua proposição central que pressupõe a coletivização da
criação com a manutenção das funções, seja no caráter polifônico da sua criação.
Sendo assim, o corpo desta dissertação apresenta-se da seguinte maneira:
No primeiro capítulo, apresento o processo colaborativo, procurando reconhecer a
prática criativa instaurada nos coletivos de trabalho. Desenvolvendo as questões decorrentes
dessa prática e sua definição. Percebi que os estudos já realizados sobre o tema estão longe de
esgotar tal discussão e que, portanto, essa dissertação é pertinente no que diz respeito ao seu
foco, pois é interessante refletir sobre a radicalização das funções no processo de criação e em
15
que medida permitiu-se que cada função aprofundasse seu material no diálogo com a obra. No
contexto teatral dos anos 90, em que foram propostas novas formas de criação e escrita do
espetáculo teatral, resultando numa multiplicidade de processos experimentais, o processo
colaborativo afirmou-se como uma maneira encontrada pelos grupos teatrais para o
aprofundamento, conceitual e prático, da sua dimensão coletiva.
Reconheci a importância do teatro de grupo, enquanto instância provocadora dessas
“re-visões” ao longo dos trabalhos, amadurecendo questões estéticas e aprofundando as
relações criativas durante os processos. E também desnecessários através dos grupos que
mantêm uma permanência eficaz entre seus membros, que têm surgido variadas formas de
questionar o acontecimento teatral.
E, por fim, recorrer à criação coletiva para aprofundar o debate e analisar os aspectos
que se aproximam e se afastam do processo colaborativo duas importantes experiências que
investem na criação em grupo e que, necessariamente, dependem deste para as realizações
propositivas.
No segundo capítulo, a reflexão sobre um projeto formativo do Galpão Cine Horto,
realizado através do estudo e da prática do processo colaborativo, é conduzida através do
exemplo de um dos espetáculos criados. Faz parte dessa reflexão a busca por uma formação
teatral para o teatro de grupo. Esse projeto possibilitou o encontro e a parceria com Luís
Alberto de Abreu e outros criadores ligados à Escola Livre de Teatro (Santo André/SP),
culminando na busca pela criação em processo colaborativo, que se tornou um dos principais
procedimentos pedagógicos do Oficinão.
Esse projeto investiu na dimensão coletiva da criação ao proporcionar uma intensa
relação entre um Núcleo de Criação Dramatúrgica, coordenado por Abreu, trabalhando em
intensa colaboração com o diretor e os atores, em um fluxo contínuo de proposições
reavaliadas nos diferentes núcleos (direção, atuação, dramaturgia).
Assim, analisar o processo de elaboração do espetáculo O homem que não dava seta
(2002) por ter sido o Oficinão o mais preocupado em guardar material sobre o seu processo e
também por se tratar da última experiência no Cine Horto que abrigou o Núcleo de
Dramaturgia. A extinção desse Núcleo irá influenciar diretamente outro projeto do centro
cultural – o Cena 3x4.
No projeto Cena 3x4, analisado no terceiro capítulo, há a reflexão sobre como a
proposta de experimentar a criação compartilhada do processo colaborativo foi colocada para
16
uma série de grupos teatrais de Belo Horizonte e Ouro Preto, revelando-se uma forma de
impulsionar a coletivização dos seus processos criativos. Analisamos o espetáculo Casa das
Misericórdias (2003) que integrou o projeto no primeiro ano, dando origem também à criação
da Maldita Cia. de Investigação Teatral.
Finalmente, verifica-se que o processo colaborativo, enquanto expressão de um
coletivo, tem contribuído de maneira peculiar à experimentação e radicalização da cena
contemporânea, possibilitando alterações nas relações de trabalho, no processo criativo e no
encontro com o espectador.
17
CAPÍTULO 1
Processo Colaborativo:
o coletivo na criação
18
CAPÍTULO 1 – Processo Colaborativo: o coletivo na criação
1.1 – Teatro de Grupo: a busca da coletivização dos procedimentos na criação
Contra o individualismo doentio, contra o império dos interesses privados,
reorganizam-se os trabalhos de grupos teatrais que procuram restabelecer, em bases
coletivas, uma aproximação entre dramaturgia e encenação. E essa aproximação
surge repondo a questão da função pública do teatro. (Carvalho
2
, 2002: p. 96)
Sérgio de Carvalho, da Cia. do Latão (SP), traz à tona a força dos coletivos teatrais
que retomaram suas propostas de continuidade de trabalho, formando um elo entre o elenco
permanente e o aprimoramento das pesquisas moldadas no princípio do coletivo colaborador.
Essa condição gerou um universo de múltiplas possibilidades cênicas visando ao
aprofundamento conceitual e a criação de paradigmas estéticos, artísticos e organizacionais
que revêem o tratamento da cena.
Além de um espaço de tempo necessário para a maturação de suas propostas, outro
ponto relevante para tal visibilidade é a coletivização dos processos de produção e criação,
gerando uma autonomia em relação ao modelo do teatro que se sustenta em consonância com
o mercado, possibilitando a renovação da linguagem, a experimentação, a potencialização
crítica e o compromisso ético.
No entanto, por mais que o trabalho coletivo seja intrínseco ao fazer teatral, existem
inúmeras formas de organização e procedimentos que se estruturam por suas regras internas
o que acontece de grupo para grupo.
Mesmo assim é possível identificar dentro dos coletivos algumas semelhanças que vão
desde formas de espetáculos que tem uma linguagem estética muito próxima, até os discursos
ideológicos que sustentam essas práticas. A criação coletiva nesse aspecto é uma grande
representante de um movimento teatral que através de seu discurso reivindicatório,
questionador e anárquico trouxe significativa importância para a ação do coletivo, conforme
veremos adiante. Seus representantes modificaram o modo de produção teatral a partir da
coletivização dos procedimentos artísticos, inserindo os criadores nas várias facetas da cena.
Conseqüentemente, o produto obtido dessa mútua interferência criativa rompeu com
2
Depoimento de Sérgio de Carvalho. In: GARCIA, Silvana (Org.). Odisséia do teatro brasileiro. São Paulo:
SENAC, 2002.
19
paradigmas contidos no teatro e trouxe novos questionamentos ao fazer teatral, pois, agora, já
não existia um único autor, que respondia pelas escolhas estéticas e tecia um discurso
dramático aos padrões aristotélicos.
Concomitantemente, na década de 1970 (Garcia
3
, 1990) a abertura de sedes em
bairros da periferia de São Paulo caracterizando o fenômeno dos agrupamentos teatrais que
aliavam a tradição popular do teatro com o empenho de resistência artística, sob o clima de
repressão e censura, dado o agravamento da ditadura militar no país. Temos novamente o
coletivo enquanto provocador e modificador das relações pré-concebidas no teatro.
A partir da década de 80/90, os grupos investem numa radicalização para a pesquisa
de uma linguagem (específica) como forma de construção da sua identidade cultural. Assim,
teatro de grupo aparece como uma promessa de permanente reflexão sobre os fundamentos
do teatro, bem como do desejo de construir métodos de formação do ator, baseados em uma
ordem ética para o trabalho coletivo.” (Carreira e Oliveira
4
, 2003: p. 96) (Grifos meus).
Rosyane Trotta, em texto não publicado, Teatro de Grupo: utopia e realidade
5
, reflete
sobre três aspectos que consolidam a formação dos grupos. Segundo a autora, se pensarmos
do ponto de vista da organização de grupo, a commedia dell’art é pioneira, composta por
atores e coordenada pelo ator que era capaz de “gerenciar seus passos e rascunhar suas
histórias” (s/d: p.04). Já para a pesquisa de linguagem, Trotta aponta que começou a ser
investigada nas primeiras experiências de encenação e o grupo, enquanto responsabilidade
social, nasce nos movimentos de agit-prop
6
, do início do século XX, liderado por
encenadores como Meyerhold. No Brasil, “estes três aspectos coletivização, autoria e visão
crítica reúnem-se na trajetória das companhias dos anos 60 e dos grupos dos anos 70.”
(Trotta, s/d: p. 04).
Entende-se que o teatro de grupo permitiu uma transformação da cena tanto na sua
forma de organização, quanto na sua elaboração criativa, nas escolhas cênicas que competiam
para a formatação e fortalecimento do coletivo e que surgiam através do trabalho em
conjunto.
3
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. São Paulo: Perspectiva, 1990.
4
CARREIRA, André & OLIVEIRA, Valéria Maria de. Teatro de grupo: modelo de organização e geração de
poéticas. In: O Teatro Transcende, Ano 12, n. 11, Blumenau, p. 95 – 98, FURB, 2003.
5
TROTTA, Rosyane. Teatro de Grupo: utopia e realidade. Texto não publicado. (s/d).
6
“O teatro de agitação e propaganda (agit-prop) fez-se presente na Rússia revolucionária logo nos primeiros
momentos, alimentado pelo desejo urgente de participação das organizações de trabalhadores e associações
culturais independentes.” (Garcia, 2006: p. 18). GARCIA, Silvana. Agit-prop (teatro de). In: GUINSBURG,
Jacó; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariangela Alves de. Dicionário do Teatro Brasileiro: temas, formas e
conceitos. São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2006. (p. 17 – 18).
20
Teatro de grupo é, sem dúvida, a forma de organização mais vigorosa e produtiva
como processo de investigação, transformação e criatividade cênica. Um coletivo de
trabalho é a única fonte rigorosamente penetrante e estimulante, capaz de aprofundar
um projeto artístico de forma a mantê-lo permanentemente inserido na vida social e
no constante confronto com a realidade, sem que perca sua capacidade de
reinventar-se a si mesmo, de pesquisar linguagens inesperadas e diversificadas.
(Peixoto
7
, 1992: p. 01)
É nesse contexto que a dinâmica dos grupos teatrais brasileiros têm reivindicado dos
estudiosos, dos críticos e do público, dois aspectos fundamentais: o seu modo de organização
e a sua prática artística, pois não implica em relação direta a forma de organização de um
grupo com a sua prática criativa.
Se na década de 1950 e 1960 o teatro brasileiro moderno trazia nos coletivos a carga
semântica do termo companhia era porque essa imagem estava diretamente ligada a uma
organização de empresa, com empresários/produtores e empregados. Atores e técnicos eram
admitidos a cada montagem e ao término de uma temporada os contratos eram encerrados. Na
década de 1970, o sistema cooperativo surge como resposta e se revela mais democrático
entre os artistas envolvidos, em plena repressão política-estética-social: “sem patrão nem
empregado, nele a hierarquia emerge por conta do desenvolvimento do próprio trabalho e não
por determinação do capital
8
” (Milaré, 2004: p. 33. Tradução do autor).
Posteriormente (1980), a figura do encenador
9
assume de vez o papel de condutor do
processo da criação teatral, substituindo, muitas vezes, o dramaturgo como geômetra das
ações e pensador do corpo de valores éticos e estéticos do espetáculo. Esse foi um momento
bastante rico para a renovação da cena teatral brasileira, pois o diretor não se resumia mais a
erguer a apresentação através da montagem de textos dramáticos. Avesso da servidão à escrita
do dramaturgo, os encenadores tornaram-se os verdadeiros criadores, fazendo avançar a
pesquisa cênica a limites até então inexplorados. Quando não criavam os próprios textos, onde
se assentavam as apresentações, apropriavam-se da dramaturgia de autores clássicos ou
contemporâneos como suporte para sua criação, remodelando, cortando, fundindo cenas e
dando outra configuração ao trabalho original do dramaturgo.
7
PEIXOTO, Fernando. Teatro de grupo: significado e necessidade. scara Revista de Teatro, Ribeirão Preto,
SP, ano 1, n. 1, p. 1, 1992.
8
“sin patrón ni empleado, en él la jerarquía emerge por cuenta del desarrollo del propio trabajo y no por
determinación del capital.” (Milaré, 2004: p. 33).
9
Ver: TORRES, Walter Lima. Introdução histórica: o ensaiador, o diretor e o encenador. In: Revista
FOLHETIM. Rio de Janeiro. Teatro do Pequeno Gesto – janeiro a abril de 2001, nº 9.
21
No entanto, um processo coletivo de criação continuava solicitando reflexão e
aprofundamento. Se o processo de criação convencional havia encontrado seu equilíbrio
baseado na hierarquia representada pelo texto e na especialização das funções, a busca de um
processo coletivo eficiente continuou seu percurso à procura de respostas aos problemas que
sua ausência de método apresentava.
Partindo dessa premissa, pode-se afirmar que o teatro de grupo tem como
característica primeira a coletivização dos procedimentos de criação, que se arquiteta de
forma singular em cada coletivo, de acordo com a conjugação estética-política-social. Desse
modo, Carreira & Oliveira (2003) revelaram que os grupos surgidos nas décadas de 80 e 90
contrastam com os grupos das décadas anteriores porque:
fortaleceram tendências cujos eixos focalizam a busca de linguagens teatrais como
forma de construção de identidade cultural. [...] Isso repercute em projetos que
implicam em estabilidade e em uma política de pedagogia que difunde os referentes
técnicos e ideológicos dos grupos. E o grupo surge como matriz necessária para o
estabelecimento de um lugar identitário, funcionando como coesão dos projetos
coletivos. (Carreira & Oliveira, 2003. p. 96 - 97).
O projeto coletivo de criação, no respeito às individualidades, deu margem ao
questionamento do teatro de grupo e à possível reorganização dessa forma de produção.
Assim, a existência do teatro de grupo, só se dá quando:
o objetivo de cada integrante é o de formar e expressar a personalidade e a
profissionalização do coletivo e não a sua própria, ou melhor dizendo, quando as
individualidades se colocam disponíveis para criar uma cultura comum e se deixar
formar por elas. (Trotta
10
: 1995, p. 22).
A definição de grupo, ao contrabalancear esse misto de individualidade e coletividade
na busca de um projeto artístico que expresse a síntese dessa tensão, é possível “quando o
lugar daqueles que não almejam uma carreira solo e para quem o grupo não é uma ponte, mas
o próprio lugar. O que não quer dizer que dentro de um grupo não haja o individualismo
mas é o individualismo que não quer eliminar o coletivo e que, antes, depende dele.” (1995, p.
22).
10
TROTTA, Rosyane. O paradoxo do teatro de grupo. 1995. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-
Graduação em Teatro, Centro de Letras e Artes / Unirio, Rio de Janeiro.
22
O grupo, enquanto local de expressão do coletivo potencializado pelos indivíduos, é o
próprio lugar de consonância entre os desejos e a realização de uma proposta estética.
Parto, pois, para a discussão do processo colaborativo que, como projeto de
investigação e construção de uma identidade de grupo, fundamentalmente é uma experiência
coletiva e a permanência de um cleo estável de criadores tem sido um fator determinante
para essa prática. O amadurecimento do grupo criador amplia os horizontes da elaboração nas
pesquisas técnicas e artísticas, além de dar uma identidade à equipe, proporcionada pela
experiência compartilhada.
Diversos foram os contextos que levaram à disseminação do processo colaborativo no
país. Muitos grupos de teatro vêm se formando através da necessidade de investigação de
metodologias, de ideologias, de estéticas etc. e esse fenômeno de grupo trouxe para o teatro
relativa importância para o desenvolvimento da cena brasileira contemporânea.
Um dos principais representantes desse procedimento criativo é o Teatro da Vertigem
(SP), importante coletivo que investiga as relações da cena através do processo colaborativo.
Interessa-me trazê-lo aqui pelo fato de averiguar sua criação nas diferentes áreas teatrais e seu
aprofundamento artístico.
No contexto teatral dos anos 90, em que foram propostas novas formas de criação e
escrita do espetáculo teatral, resultando numa multiplicidade de processos experimentais, o
processo colaborativo afirmou-se como uma maneira encontrada pelos grupos teatrais para o
aprofundamento, conceitual e prático, da sua dimensão coletiva.
Essa dinâmica deu condições e movimentos para que todos os artistas envolvidos
pudessem contribuir com proposições nos diferentes setores de uma criação teatral, com
liberdade e desenvolvimento de habilidades. Sob essa perspectiva, compreendemos que esse
processo tem oferecido maior liberdade de criação, tanto na forma quanto na escrita,
organização e resolução final do espetáculo, em coexistência com a manutenção das funções.
Sendo assim, é importante tentar compreender adiante como o Teatro da Vertigem tem
criado seus espetáculos a partir do processo colaborativo e como esse coletivo tem investido
na radicalização e aprimoramento das funções teatrais através do diálogo entre os seus
membros.
23
O processo colaborativo no Teatro da Vertigem
Processo contemporâneo de criação teatral, com raízes na Criação Coletiva, teve
também clara influência da chamada ‘década dos encenadores’ no Brasil (década de
1980), bem como do desenvolvimento da dramaturgia no mesmo período e do
aperfeiçoamento do conceito de ator-criador. Surge da necessidade na busca da
horizontalidade nas relações criativas, prescindindo de qualquer hierarquia pré-
estabelecida, seja de texto, de direção, de interpretação ou qualquer outra. Todos os
criadores envolvidos colocam experiência, conhecimento e talento a serviço da
construção do espetáculo, de tal forma que se tornam imprecisos os limites e o
alcance da atuação de cada um deles, estando a relação criativa baseada em
múltiplas interferências. (Abreu e Nicolete
11
. In: Guinsburg, 2006: p. 253).
Foi através da Escola Livre de Teatro (Santo André SP) e do Teatro da Vertigem
(SP) que surgiu a denominação processo colaborativo. Essas instâncias foram referências na
busca da horizontalidade nas relações artísticas entre as funções teatrais: atuação,
dramaturgia, direção etc.. Dessa forma, o processo colaborativo:
(...) se constitui numa metodologia de criação em que todos os integrantes, a partir
de suas funções artísticas específicas, têm igual espaço propositivo, sem qualquer
espécie de hierarquias, produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por
todos. (Araújo, 2002: p.101). (Grifos meus)
O Teatro da Vertigem, importante grupo que renovou a cena brasileira contemporânea,
tem sistematizado sua prática ao longo de seus quatro trabalhos: Paraíso Perdido (1992), O
livro de (1995), Apocalipse 1,11 (2000) e BR 3 (2006). Dois de seus criadores, Antônio
Araújo (diretor) e Miriam Rinaldi (atriz), produziram suas dissertações de mestrado sobre o
processo criativo do grupo (conforme indicado em nota
12
) e têm disseminado suas produções
em importantes eventos pelo país (FTC Festival de Teatro de Curitiba; FIT Festival
Internacional de Teatro; ECUM – Encontro Mundial de Artes Cênicas) etc.
Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, comentou que desde o primeiro
espetáculo do grupo, Paraíso Perdido (1992), vem buscando pesquisar a cena através do
11
Adélia Nicolete e Luís Alberto de Abreu são dramaturgos e desenvolvem junto a seus grupos trabalhos a partir
do processo colaborativo. Ver: ABREU, Luís Alberto de; NICOLETE, Adélia. Processo Colaborativo. In:
GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariangela Alves de. Dicionário do Teatro Brasileiro:
temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2006. (p. 253 – 254).
12
ARAÚJO, Antônio. A gênese da vertigem: o processo de criação de “O Paraíso Perdido”. 2002. Dissertação
(Mestrado). Escola de Comunicação e Artes/USP, São Paulo. RINALDI, Miriam. O ator do Teatro da Vertigem:
o processo de criação de Apocalipse 1, 11. 2006. Dissertação (Mestrado). Escola de Comunicação e Artes/USP,
São Paulo.
24
processo colaborativo e que essa proposta foi levada aos outros três espetáculos. O diretor
também destacou que antes de lançar mão dessa terminologia, o grupo investigava a mecânica
clássica no trabalho do ator e as mitologias da criação e da queda, sem pretensão de
formalizar um espetáculo, até o momento em que decidiram estruturar e compor um roteiro a
partir do trabalho levantado durante a experimentação.
Partindo desse ponto, Aimar Labaki, no livro Trilogia Bíblica do Teatro da Vertigem
(2002a), dá indícios que o início do processo colaborativo no grupo deu-se, quando Antônio
Araújo convidou um grupo de atores para ler e experimentar o método Laban, ou seja, estudar
a transposição de conceitos de física clássica para o trabalho do corpo do ator e a leitura de
textos, procurando respeitar as funções de cada criador. Assim,
(...) nenhuma peça de teatro escrita dava conta dos temas que atormentavam
aquelas almas. Achavam mais fácil elencar que temas seriam esses. Chegaram a um
só: o lugar do sagrado no cotidiano deles, jovens artistas de terceiro mundo em fim
de milênio. (Labaki, 2002: p.25). (Grifos meus)
O reposicionamento do dramaturgo
Uma pessoa ou mesmo um grupo de teatro pode decidir envolver-se num processo
colaborativo por diferentes razões. Para o Teatro da Vertigem era imprescindível a busca pela
relação horizontal na criação. Nessa dinâmica, com cada indivíduo respondendo em sua área
de criação específica, surgiu a elaboração de uma obra compartilhada a partir de questões
comuns entre os membros do grupo.
Se, através dessa relação não-hierárquica, a investigação de um tema/linguagem foi
tomada pelo grupo, por que não criar uma obra inédita? A presença do dramaturgo no
processo colaborativo seria um fator essencial para o estabelecimento dessa proposição, visto
que na década de 1970 a figura do dramaturgo deixou de ser central na criação de muitos
coletivos. Temos na década de 80 um destaque para a figura do encenador, que muitas vezes
apropriava-se de textos dramáticos, criando um novo trabalho em parceria com a figura do
dramaturgista
13
. Na década de 90, e no processo colaborativo, o dramaturgo retorna, agora na
13
“É uma atividade teórica e prática que precede e determina a encenação de uma obra” (Pavis, 2000: p. 117) e
ainda: “(...) o dramaturgista pode também se encarregar da escrita, adaptação ou tradução de um texto. [também
atua como] o responsável por confeccionar, organizar, estruturar o roteiro ou texto, além de amparar os estudos
teóricos necessários à montagem.” (Nicolete, 2005: p. 17).
25
sala de ensaio, reassumindo sua função e dialogando com o diretor, os atores e os outros
criaodres.
Adélia Nicolete (2005) diz em sua dissertação de mestrado que após o dramaturgismo
da década de 80 também conhecida como década dos encenadores houve uma “re-visão”
dessa função nos anos 90, fazendo ressurgir o dramaturgo, agora na sala de ensaio junto aos
atores e ao diretor. Assim identifica a autora: “a proliferação de novos dramaturgos foi, sem
dúvida, um dos elementos fundamentais para a proposta de processo colaborativo.
Principalmente pelo fato de eles se disporem a trabalhar de outra maneira, que não a da
autoria individual” (Nicolete, 2005: p. 32). O dramaturgo, nessa nova relação estabelecida
como processo compartilhado, coloca seu trabalho no mesmo patamar dos demais criadores,
submetendo sua criação a várias modificações, assim como atores e diretor.
Também Aimar Labaki (2002b) caracteriza o processo colaborativo pela participação
diferenciada do dramaturgo durante o processo, pois:
O que caracteriza essa prática é a presença física do dramaturgo na sala de ensaio.
Ele dialoga em pé de igualdade com atores, diretor, iluminador, diretor de arte,
respondendo pela palavra e pela estrutura do texto final, isto é, aquele que resulta
como síntese verbal de todo processo
14
.
Além da participação física do dramaturgo na sala de ensaio também é imprescindível
a qualidade de sua intervenção frente ao processo. A partir de sua presença, não é apenas o
seu lugar que se altera, mas todas as relações de trabalho. O ator, o diretor, enfim, todos os
criadores envolvidos terão seus lugares transformados frente à criação, ocasionando uma
espécie de descentralização, uma desierarquização, não havendo, portanto, uma instância
primordial: o texto não é mais importante que a atuação, que, por sua vez, não é mais
importante que a encenação etc. Logo, o aparecimento de comandos individuais no lugar
de uma liderança centralizadora. Há, todavia, uma dinâmica na circulação e apropriação de
conceitos, procedimentos e materiais entre dramaturgo, ator e diretor
15
.
É nesse sentido que Araújo (2002) afirma ser o processo colaborativo de natureza
impura, pois um exercício de dramaturgia favorecerá a interpretação de uma personagem, ou
14
LABAKI, Aimar. Dramaturgia paulista hoje. In: Folhetim, Rio de Janeiro, Teatro do pequeno gesto, no. 15
p.77, out. – dez. 2002b.
15
Atemos-nos a falar apenas de três áreas: atuação, dramaturgia e direção; por uma questão de síntese na escrita.
Com isso é importante lembrar da importância, no processo colaborativo, dos demais criadores (iluminador,
cenógrafo, figurinista etc.) para a elaboração da obra teatral.
26
seja, poderá ser apropriado pelo ator para elaborar sua criação; assim como uma vivência ou
laboratório servirá para a encenação, da mesma forma que um workshop fornecerá material
para a dramaturgia. Portanto, reclamar um trabalho puro de interpretação, dramaturgia ou de
encenação seria uma contradição ao caráter aglutinador do processo colaborativo.
Nota-se uma zona fronteiriça, de interferências, propondo alargamentos nos limites de
ação de cada criador, deixando espaço para uma maior participação de cada artista em outras
instâncias. Essa intervenção, porém, não evolui a ponto de as funções se descaracterizarem.
Na dinâmica do processo dois movimentos que acontecem simultaneamente: um de caos
criativo, com as diversas descobertas ocorrendo em todas as áreas; e o outro de rigor seletivo,
ou de fusão e separação, dependência e autonomia. Apesar de haver um corpo coletivo de
criação, esse não esconde as diferenças individuais e suas especificidades.
O ponto de arranque do processo colaborativo no grupo
Luís Alberto de Abreu
16
(2002) pontua que o início de um trabalho colaborativo
deveria partir de questões que afetam diretamente os envolvidos e que os questionamentos
pessoais são um mote para esse tipo de criação. Abreu apud Nicolete (2002: p.103): “A partir
disso começa a se elaborar, começa a se encaixar, começa a se improvisar, a trabalhar as
imagens, a tabular, a pesquisar essas coisas todas.”.
A idéia inicial para a elaboração de Apocalipse 1,11 veio de Antônio Araújo após ter
lido uma reportagem que dizia sobre o crime de um grupo de jovens da cidade de Brasília que
colocaram fogo em um índio pataxó, matando-o, enquanto dormia num banco da cidade.
Aliado a isso, o diretor vivia fora do país e percebeu como o Brasil era visto pelos
estrangeiros: terra da impunidade, lugar de ninguém. Vejamos uma parte do texto que Araújo
enviou ao Prêmio Estímulo Flávio Rangel de Artes Cênicas (1997) Área de Pesquisa de
Linguagem Cênica (em 10/08/97):
Fim dos tempos ou começo de uma nova era? Este final de milênio parece
conter ambos os comportamentos: o terror da aniquilação total e a utopia de uma
16
Luís Alberto de Abreu em entrevista para Adélia Nicolete In: NICOLETE, Adélia. O texto teatral: reflexões
sobre alguns processos de criação da dramaturgia contemporânea. 2002. Monografia (Especialização). Centro
Universitário de Santo André, Santo André.
27
nova civilização. Daí o interesse em investigar esta zona de tensão e ansiedade que
ora vivemos, em todas as suas contradições.
Não acredito em transformações milagrosas, nem em recompensa dos
Eleitos. Mas me intriga esta idéia de um Julgamento Final, de uma Punição Final e
todos os temores por ela provocados. E é curioso que se tal idéia instiga o desejo e a
urgência por uma Purificação e conseqüente Salvação, ao mesmo tempo vê-se uma
crescente onda de barbarismo e violência. Atos terroristas, crimes em massa,
guerras étnicas estão na ordem do dia.
E guardo até hoje o sentimento de perplexidade e horror quando li, numa
banca de jornal, sobre a "queima" do índio em Brasília por um grupo de jovens de
classe média. A violência gratuita, sem causa ou justificativa, nos lança numa
região do absolutamente incompreensível e nos confronta com a questão do Mal.
Decadência de valores?
Manifestação da Besta Apocalíptica? Ou simplesmente traços
característicos, ainda que indesejáveis, da condição humana? (...) Espero, na
verdade, que possamos com esta pesquisa, mais do que pintar quadros de salvação
ou de destruição, questionar e refletir sobre esta dialética de esperança e terror.
(Araújo apud Rinaldi, 2006: p. 2)
Ao receberem a notícia, os atores ficaram curiosos com a proposta, pois estavam
algum tempo em cartaz com o espetáculo anterior, O livro de , mas, ao mesmo tempo,
perplexos com a escolha do espaço para a encenação: a Casa de Detenção do Estado de São
Paulo, mais conhecida como Carandiru.
foi possível para o Vertigem criar a partir do processo colaborativo porque havia
uma comunhão por parte de seus integrantes em relação ao tema a ser abordado. Nesse caso, o
diretor havia proposto a imagem que daria início à pesquisa do grupo, mas que poderia ter
sido acionada por qualquer integrante. Diante disso, o que nos interessa é destacar que a força
do coletivo é imprescindível no arranque da proposta, pois todos precisam estar inteiramente
decididos a mergulhar na criação para que essa ganhe em potência, na soma das criações.
Coletivização e manutenção das funções
Distintamente da criação coletiva, o processo colaborativo mantém a criação conjunta,
mas preserva as diferenças, sendo que cada criador ator, dramaturgo, diretor etc. não
abdica do seu lugar de autor e tem sua própria leitura do material experimentado em conjunto
e ainda:
O que se nota, nesse caso, é que a participação ativa de atores, dramaturgo e diretor
na concepção do texto e do espetáculo não impede que os envolvidos construam
28
dramaturgias específicas da atuação, da palavra e da encenação, que às vezes podem
não estar em completa sintonia. (Fernandes, 2002: 38).
Uma importante diferenciação entre ambos os processos criativos é que neste último
existe a divisão tradicional das funções teatrais, e a cada uma delas são delegados, em última
instância, espaços específicos, enquanto que a criação coletiva permitia uma relativização ou
mesmo diluição dessas funções.
Conforme Sílvia Fernandes (2002
17
), iniciada a segunda etapa dos ensaios do
Apocalipse 1,11, em abril de 1999, o foco de criação passou a ser o espetáculo, e o diálogo
entre as diversas funções especializadas (atuação, direção, dramaturgia, cenografia,
iluminação, sonoplastia etc.) se alargou, permitindo uma troca mais efetiva, estimulada pelas
diferenças. A partir daí os ensaios se transformaram “em verdadeira oficina coletiva” em que
as funções eram experimentadas em compartilhamento, num mecanismo de socialização dos
instrumentos criativos na elaboração do trabalho teatral.
Pensando conceitualmente o que é o campo de responsabilidade de cada área,
podemos chegar a pontos de intersecção, ou seja, os limites da atuação, dramaturgia e direção
não são territórios intransponíveis e se remanejam a todo instante, como um organismo vivo.
No entanto, opta-se pela necessidade de que um criador (ou um núcleo), especialista,
responda pela criação em determinada área e que possa dialogar com os demais envolvidos a
fim de contribuir através do seu locus específico com a obra final.
A cena como foco
Foi preferível não elencar critérios que balizam a seleção dos materiais, pois cada
coletivo em sua dinâmica criativa estabelece sua forma de prioridade junto aos produtos
elaborados. Com isso, não um conceito prévio, mas antes uma sensação que permeia o
processo criativo. Observando o projeto original de Apocalipse 1,11 pode-se verificar que não
um conceito ou uma definição a respeito do fim do mundo, mas antes um sentimento, uma
sensação amorfa. Em entrevista realizada por Miriam Rinaldi (2006: p.14), Antônio Araújo
fez a seguinte afirmação que ilustra tal passagem:
17
FERNANDES, Sílvia. O Lugar da Vertigem. In: Trilogia Bíblica (Teatro da Vertigem). Apresentação de
Arthur Nestrovski. São Paulo: Publifolha, 2002. (p. 35 – 40)
29
Tenho determinado desejo artístico, que eu acho que de alguma maneira está
conectado com a época. No caso de O livro de Jó, a questão da AIDS era muito
grave [...] no caso de Apocalipse 1, 11, uma insatisfação muito grande com o país,
da maneira como estava e como está.
Mas apesar de os parâmetros de construção da obra surgirem ao longo do trabalho e de
acordo com cada coletivo, é possível verificar que existem alguns elementos norteadores no
processo colaborativo. Para Abreu (2002), todo material criativo deve ter expressão em cena.
Para o dramaturgo, apenas uma nova cena tem o poder de refutar a anterior. Sendo assim,
todo argumento ou idéia debatida deve, antes de tudo, ser experimentado. Ele afirma que um
bom argumento não tem o poder de rechaçar uma cena, mesmo que ruim.
Antônio Araújo (2002) também valoriza a unidade cênica, quando afirma que se deve
evitar a discussão excessiva, nociva ao processo colaborativo, abrindo espaço para novas
descobertas na prática da sala de ensaio: “(...) teorizações e confrontos argumentativos não
devem, de maneira alguma, substituir a experimentação prática e concreta” (p. 126).
Dentre todo o material levantado durante o trabalho na sala de ensaio, o mais concreto,
sem vida é a cena. É no período de elaboração das cenas que o espetáculo é construído
como um todo: texto, interpretação, encenação, cenografia – concomitantemente. Nessa etapa,
a cena adquire um valor de experimentação, tentativa, busca, estudo e é gerida por todos
seus integrantes. Se o dramaturgo analisa e sugere os encaminhamentos da cena, trabalha os
aspectos referentes ao texto ao longo do processo, também fazem o diretor, os atores e os
demais envolvidos em suas respectivas áreas. E nessa constante elaboração, o processo
colaborativo permite que o espetáculo não se estagne em relação às experimentações após a
estréia, tornando-se também um work in process.
Work in process
O processo colaborativo tem sido desenvolvido enquanto um work in process
18
expressão que conduz a noção de trabalho e de processo. Renato Cohen (2004) nos apresenta
os dois termos da seguinte forma:
18
Ver: COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
30
Como trabalho, tanto no termo original quanto na tradução, acumulam-se dois
momentos: um, de obra acabada, como resultado, produto; e, outro, do percurso,
processo, obra em feitura. (p. 20)
Como processo implica interatividade, permeação; risco, este último próprio de o
processo não se fechar enquanto produto final. (p. 21)
Em nível de linguagem, conceito e procedimento o processo colaborativo tem extrema
afinidade com o work in process, principalmente por ambos estarem em constantes
modificações. Miriam Rinaldi (2006
19
: p. 16), atriz e pesquisadora do Teatro da Vertigem,
que elaborou sua dissertação de mestrado sobre o trabalho do ator no espetáculo Apocalipse
1,11 nos fala da aproximação entre o espetáculo analisado com o work in process, elemento
percebido também pelo próprio Cohen.
Fazendo breves aproximações com work in process, podemos dizer que no processo
de criação de Apocalipse 1, 11 o risco foi uma constante, seja na forma de um
desafio, daquilo que o projeto implicaria para os artistas envolvidos, ou como
indefinição de conclusão do mesmo. O texto escrito não serviu como única matriz
geradora e por se tratar de uma obra de criação coletiva houve a sobreposição de
narrativas e justaposição de discursos como principais operações dramatúrgicas. Em
seu processo de criação, privilegiou-se o texto cênico em detrimento do texto
escrito. Apocalipse 1, 11 manteve seu caráter de obra aberta à medida que foi
apresentado, em meio ao processo, em leitura pública e ensaios abertos. Os
procedimentos utilizados vêm de diferentes procedências, tais como técnicas
corporais orientais, meditação Rajneesh, laboratório psicofísico, pesquisa de campo
reforçando seu caráter interdisciplinar. O próprio Renato Cohen em seu livro Work
in progress na cena contemporânea (São Paulo: Perspectiva, 1998, p. XXVI) toma o
Teatro da Vertigem como exemplo.
Nesse misto de interferências de uma obra aberta, que se encontra em constante
transformação, há espaço para o conceito de polifonia, reforçando o caráter aglutinador,
permitindo que a escrita da cena em processo colaborativo ganhe outra dimensão, agora
apoiada nas associações, justaposições, numa não-causalidade, alterando o paradigma
aristotélico da lógica de ações, da fábula, da linha dramática.
19
RINALDI, Miriam. O ator do Teatro da Vertigem: o processo de criação de Apocalipse 1, 11. 2006.
Dissertação (Mestrado). Escola de Comunicação e Artes/USP, São Paulo.
31
Polifonia – as variadas vozes na construção coletiva
No início do século XX, Gordon Craig encarava o texto teatral como um dos
elementos do espetáculo e propunha a figura de um régisseur para compor os diversos
elementos cênicos. Assim também reforçou Bertolt Brecht
20
(2005) quando questionou a
função do texto no conjunto da encenação e por essa razão propôs um texto
plural/polissêmico que pudesse despertar uma multiplicidade de leituras ao espectador.
A teoria brechtiana do teatro coloca, então, o problema do texto em termos novos.
“Não se trata mais, com efeito, de saber que importância lhe deve ser atribuída em relação aos
outros elementos do espetáculo, nem de definir um esquema de subordinação mais ou menos
acentuada desses outros elementos frente ao texto”. (Roubine, 1998: p. 66). Brecht ainda
interrogava-se sobre as possibilidades que o texto apresentava dentro do conjunto da
realização cênica para representar diversos significados, seja por oposição àquilo que o palco
deixa à mostra, seja por sua (in)adaptação a um determinado público.
Uma das originalidades da prática brechtiana consistiu em fazer intervir
concomitantemente diversos modos de teatralização do texto: os diálogos, songs, projeções,
slogans etc. A novidade dessa prática tem a ver com a invenção de um texto plural, cuja
heterogeneidade reforça as possibilidades significantes, através da dialética semiológica que
introduz. Pode-se caracterizar essa abordagem praticada por Bertolt Brecht como polifonia,
que se define, segundo Maletta
21
(2005: p. 47-48) da seguinte forma:
(...) Assim, mesmo havendo diferenças entre as várias acepções do termo, a seguinte
definição contempla satisfatoriamente as múltiplas abordagens: polifonia é um
termo emprestado da música e que se refere aos discursos que incorporam
dialogicamente muitos pontos de vista diferentes, apropriando-se deles. O autor do
discurso pode fazer falar várias vozes. Em outros termos, a polifonia refere-se à
qualidade de um discurso incorporar e estar tecido pelos discursos ou pelas vozes
– de outros, apropriando-se deles de forma a criar, então, um discurso polifônico.
Conforme explicitado logo acima, utilizar o conceito de polifonia nesse trabalho pode
nos revelar aspectos importantes no que se refere ao teatro e especificamente ao processo
colaborativo. Isso porque, se polifonia “se refere aos discursos que incorporam dialogicamente
muitos pontos de vista diferentes, apropriando-se deles.” (Maletta, 2005: p. 47 48), o ato de
20
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
21
MALETTA, Ernani de Castro. A formação do ator para uma atuação polifônica: princípios e práticas. 2005.
Tese (Doutorado). Faculdade de Educação / UFMG, Belo Horizonte.
32
alguém apropriar-se do discurso do outro, revela que é preciso um movimento dessa pessoa
para, colocando-se enquanto criadora, conseguir ser autor do trabalho e ainda assim, não
respeitar as outras vozes criadoras, como também incorporá-las ao seu discurso.
Não há nada de novo para o teatro ao falar em polifonia, pois o teatro por si só é uma
obra polifônica, conforme afirmou Barthes apud Maletta:
Barthes (1964) refere-se ao Teatro como uma ‘verdadeira polifonia informacional’.
Segundo ele, o Teatro é uma ‘máquina cibernética’ que envia diversas mensagens
simultâneas (vindas do cenário, figurino, da iluminação, e da postura, dos gestos e
das palavras dos atores), algumas das quais permanecem como, por exemplo, o
cenário enquanto outras mudam constantemente a palavra, os gestos (Maletta,
2005: p. 50).
Acontece que não basta para esse estudo saber que o teatro é por si só, polifônico, se
os autores (ator, dramaturgo, diretor etc.) do espetáculo não trabalham, de forma consciente,
polifonicamente. Ou seja, é interessante uma incorporação da polifonia no fazer teatral, por
parte de todos os envolvidos no processo, de forma a não agir polifonicamente, como
também, interdisciplinarmente
22
.
Assim, pode se observar que desde o Teatro Épico um ponto de partida na tentativa
de alterar a relação entre palco x platéia; texto x representação; diretor x ator. A partir daí,
para o seu público, o palco não representa mais um espaço mágico, ilusionista, mas sim um
local de exposição favoravelmente localizado. Para o seu palco, o público não significa mais
uma massa humana hipnotizada, mas espectadores diversos que por interferirem na obra, são
também co-autores da encenação. Para a sua encenação, o texto não é mais a base e nem o
componente principal da obra, mas é colocado como mais um dos elementos que compõem o
texto espetacular, tão importante quanto os demais.
Também os elementos componentes da cena gestos do ator, cenário, figurino, sons,
iluminação etc. passam a ser utilizados para a elaboração do discurso teatral. O palco então
passa a emitir variadas e diferentes vozes, valendo-se dos vários elementos constituintes desse
discurso. Na valorização dos elementos cênicos que estavam submersos, aqueles
ultravalorizados, como o texto, por exemplo, realocam-se em um patamar próximo dos
22
“O prefixo ‘inter’ vai indicar a inter-relação entre duas ou mais áreas, sem que nenhuma se sobressaia sobre as
demais, mas que se estabeleça uma relação de reciprocidade e colaboração, com o desaparecimento de fronteiras
entre as áreas do conhecimento.” (Richter, 2002: p.85). RICHTER, Ivone. Multiculturalidade e
Interdisciplinaridade. In: BARBOSA, Ana Mae (org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo:
Cortez, 2002.
33
demais. Transformado em um palco polifônico, cada elemento de linguagem se manifesta e se
relaciona na estruturação da linguagem cênica.
Acreditamos que essa modificação na elaboração da cena teatral tem ligação direta
com a nova relação pretendida entre o palco e a platéia, uma vez que esse teatro utiliza de
todos os seus elementos cênicos para tecer o discurso, a fim de provocar e estimular o
espectador na criação conjunta.
Se com o efeito de distanciamento, Brecht propunha a fragmentação e,
conseqüentemente, gerava a tensão entre as partes, propunha a descentralização das
hierarquias e a valorização do fragmento, como disse Halima Tahan (1998) ao escrever sobre
a atualidade do pensamento brechtiano:
O distanciamento gera um efeito de fragmentação do relato cênico; ao quebrá-lo
mediante a erupção de novas vozes, descentraliza-o e polifoniza-o; ele opera em um
limite entre a realidade e a ficção, ilumina-o intensificando suas bordas. Essa
revalorização do fragmento que se tem produzido em nossa época, a partir de obras
como a de Walter Benjamin amigo e estudioso de Brecht abra caminho para
fazer, no teatro, uma leitura que recupere essas partes da poética brechtiana; um dos
pontos de encontro entre o teatro moderno de Brecht e as mais variadas recentes
propostas. (Tahan
23
, 1998: 8).
Essa fragmentação abre espaço para evocarmos a proposta brechtiana no teatro
colaborativo, propondo variadas vozes na composição do discurso cênico e, que, segundo Ana
Maria Silva
24
(2001: p. 141-142):
Em sua autonomia artística e também significante, estas linguagens traçam
percursos paralelos e muitas vezes independentes, tramando histórias e acionando
mecanismos poéticos. Elas são atualizadas no desenrolar do evento teatral e
colaboram para criar ações e associações conflitantes ou não entre imagens e sons,
entre tempos e lugares, entre os dizeres de outrora e os dizeres de agora. O corpo, o
texto, a cena, a música são componentes desta dramaturgia que não se desenvolve
somente através da linguagem verbal, mas que também pensa a cena e a atuação dos
atores plasticamente, criando sínteses poéticas através do confronto entre os vários
sistemas significantes.
23
El distanciamento genera un efecto de fragmentación del relato escénico; al quebrarlo mediante la irrupción de
nuevas voces lo descentra y lo polifoniza; ella opera en el espacio mite entre realidad y ficcíon, lo ilumina
intensificando sus bordes. La revalorización del fragmento que se ha producido en nuestra época, a partir de
obras como la de Walter Benjamin amigo y estudioso de Brecht abre el camino para hacer, desde el teatro,
una lectura que recupere esos aspectos de la poética brechtiana; uno de los puntos de encuentro entre el teatro
moderno de Brecht y las más recientes propuestas. (Tahan, 1998: 8).
24
SILVA, Ana Maria Rebouças Rocha. Poética Cênica na Dramaturgia Brasileira Contemporânea. 2001.
Dissertação (Mestrado). Escola de Comunicação e Artes/USP, São Paulo.
34
Se pensarmos que o distanciamento brechtiano provoca a polifonia, podemos entender
que a descentralização das partes não as enfraquece, pelo contrário, torna-as autônomas
perante o todo. Assim, o distanciamento, pode se proceder através de qualquer um dos
mecanismos cênicos: cenário, música, luz, ator etc. E, dessa forma, afirma Maletta (2005: p.
100):
Cabe ressaltar que foi possível para Brecht propor uma reformulação da
dramaturgia do espetáculo em função de uma atuação polifônica. Principalmente
porque a estrutura da cena teatral brechtiana é essencialmente construída por meio
do contraponto entre o ilusionismo e o distanciamento.
Rosenfeld (2002) descreve explicitamente a atuação polifônica do ator no teatro épico,
enfatizando a incorporação de dois diferentes pontos de vista, a partir do contraponto entre o
discurso do próprio ator e o discurso da personagem:
Ao distanciar-se do personagem, o ator-narrador, dividindo-se a si mesmo em
“pessoa” e “personagem”, deve revelar a “sua” opinião sobre este último; deve
“admirar-se ante as contradições inerentes às diversas atitudes” do personagem
(Pequeno Organon, § 64). Assim, o desempenho torna-se também tomada de
posição do “ator”, nem sempre, aliás, em favor do personagem. O ponto de vista
assumido pelo ator é o da crítica social. Ao tomar esta atitude crítica em face do
personagem, o ator revela dois horizontes de consciência: o dele, narrador, e o do
personagem; horizontes em parte entrecruzados e em parte antinômicos. (p. 162).
Não o ator passa a agir de forma polifônica na elaboração do discurso cênico
contemporâneo, pois desde a descentralização do texto dramático instaura-se uma dinâmica
em que os diferentes sistemas sígnicos (a imagem, a iluminação, o som etc.) dão outra
dimensão à criação, contribuindo para compor uma encenação polifônica.
A partir de então, Ryngaert (1998) chama a atenção para o fato de que, a partir da
metade do século XX, com essas vozes tornando-se explicitamente evidentes no discurso
cênico uma maior percepção por parte do espectador. Este então passar a ser visto como
um colaborador do acontecimento teatral e em muitas propostas teatrais é incorporado
diretamente ao evento. Essa expansão da cena em seus múltiplos elementos constitutivos, não
textocêntrica, tem uma rica história ao longo do século XX, incorporando tanto a experiência
épica quanto inúmeras outras que redefiniram e ampliaram as possibilidades no campo das
textualidades cênicas.
35
O Espectador
Essa preocupação com o olhar do espectador tem sido muito destacada nos trabalhos
do Teatro da Vertigem, pois pelos princípios do trabalho colaborativo, o espectador também é
um dos criadores. A ele é dado lugar decisivo na criação do espetáculo, pois modifica/re-
significa a obra a cada encontro e, conseqüentemente, faz seus criadores revisarem o
espetáculo constantemente, em se tratando de uma obra em processo. Ainda o Teatro da
Vertigem ao intervir sobre espaços públicos propõe ao espectador uma nova relação com a
cidade, alterando sua forma de agir sobre os espaços e de se perceber enquanto sujeito
político-histórico-social, pertencente àquela dinâmica. Portanto,
(...) alteram-se as relações de vozes e textos matriciadores do espetáculo:
axiomaticamente estão em jogo três vozes que agenciam o texto, lugar e presença
a voz/texto autoral, apriorística, a voz do performer/ator e a voz do encenador,
organizador da mise-en-scène expressiva. (...) Insemina-se, de outro lado, uma
quarta voz expressante – a voz do receptor-autor – por vias da interatividade, em que
essa participação cresce, interferindo, mediando e criando texto numa série de
manifestações. (Cohen, 2004: p. XXVII).
Quanto ao processo de escritura do espectador, essa encenação polifônica, permite
com que ele possa fazer uso de seu papel ativo durante a representação e inferir a respeito do
sentido da obra, sendo mais um a co-habitar a relação cênica.
Uma escritura que, detonada, invade os sentidos do espectador, atacando-o por todos
os lados; através do racional e do sensorial, da visão e da audição. Textos cujos fios
são pavios que inesperadamente inundam o imaginário do espectador/ouvinte com
pequenas explosões de microcenários que se chocam com os lugares concretos que a
cena mostra. Os textos falados pelas personagens pintam cenários. (Silva, 2001: p.
142).
Essa possibilidade de participação do espectador é um resgate do teatro pós-dramático,
segundo Lehmann (2002). Para ele, o teatro deve construir uma opção de comunicação direta,
ao vivo e real, numa sociedade dominada pela dia. Trazer o espectador para o jogo, mesmo
que ele não seja obrigado a jogar, é criar uma situação política concreta trata-se da relação
que cada um estabelece com o que ocorre à sua volta. É político, mesmo sem transmitir
verbalmente uma ideologia ou um conceito.
também uma mudança por parte do espectador no que Lehmann (2002) identificou
como o surgimento de uma postura ética. Mesmo tendo possibilidade de perturbar ou destruir
36
o espetáculo, esse espectador é tomado por um sentido de responsabilidade por aquele
processo, pois se sente parte dele. Além do mais, “nesse tipo de apresentação, qualquer
espectador pode se tornar o único espectador. Porque, para cada espectador, todos os outros
fazem parte do espetáculo também, e ele é o único que está vendo tudo(Lehmann, 2002: p.
12).
A seleção do material pelo coletivo
Também a pesquisa nesse tipo de processo está presente do início ao fim, visto que os
criadores precisam investigar, durante a produção da cena: o que permanece, quais caminhos
devem ser aprofundados e quais escolhas são fundamentais para o desenvolvimento do
trabalho. Lembrando que escolher implica em separar, em eliminar diversas outras idéias,
cenas, pesquisas, pela qual os criadores precisam optar.
Durante o próprio processo ocorre uma investida em determinados caminhos de
criação. O canovaccio estratégia dramatúrgica usada no processo colaborativo por permitir
que o grupo tenha uma dimensão, ainda que resumida, do trabalho pode ser encarado como
uma forma de seleção do material, na medida em que sugere uma estrutura com base na
pesquisa e em algumas improvisações e não em outras.
Esses critérios de seleção procuram escolher o material que mais se adequa à estrutura
pretendida. Se o diretor responde pela encenação tendo em vista o espetáculo, opta pelas
melhores soluções cênicas, independentemente de quem criou esta ou aquela cena. O mesmo
acontece com o dramaturgo, que, embora interfira nas demais criações, tem responsabilidade
específica com a dramaturgia.
O período de seleção do material é o que mais gera conflitos e o processo colaborativo
só ocorre por meio do estudo e aprofundamento do material criado e no encontro/confronto de
opiniões embasadas. Todos os componentes devem bancar sua função/autoria num embate
igual de criação. Nessas empreitadas é que o coletivo ganha outra dimensão, para além do
trabalho em parceria, os integrantes passam a ter que aprimorar não apenas seu discurso
cênico como também seu posicionamento frente à criação, preocupando-se com todas as
etapas de criação. O olhar para o todo é necessário e imprescindível para esses novos
criadores.
37
A novos processos correspondem novas possibilidades cênicas e dramatúrgicas
Peter Szondi
25
(2001) enveredando-se pelas teorias de Adorno e Hegel refletiu sobre a
dualidade entre forma e conteúdo e afirmou que para novos conteúdos seriam necessárias
outras formas. Assim, o drama, enquanto forma, abarcava determinados temas e períodos
históricos passando a ser contraposto pelo gênero épico que passou a dar conta do novo
homem e de suas novas formas.
É importante destacar que a partir da criação coletiva esse movimento de oxigenação
da encenação passa a contar com variadas possibilidades de criação, dando oportunidade e
fazendo com que os criadores passem a investigar múltiplas formas em seus coletivos,
caracterizando um espaço de pesquisa e aprofundamento na linguagem estética.
Rupturas no decorrer da ação teatral são realizadas. Esta não se desenvolve como uma
linha vertical cujo ápice é o desfecho dramático. A ação é interrompida constantemente, com
comentários, argumentos contraditórios, para que o espectador possa refletir, fazendo,
portanto, a des-dramatização da ação.
Hans-Thies Lehmann
26
(2002) prefere denominar esse teatro de pós-dramático,
porque:
em vez de representar uma história com personagens que aparecem e desaparecem
em função da psico-lógica da narração, é fragmentado e combina estilo díspares e se
inscreve numa dinâmica da transgressão dos gêneros. A coreografia, as artes
plásticas, o cinema e, certamente, as diferentes culturas musicais, o atravessam e o
animam. (2002: p. 3).
Lehmann identifica na década de 1980 uma pesquisa atenta sobre novos moldes de
erguimento do espetáculo, pois o texto, destronado, desloca o foco da criação para a cena
fazendo com que a análise textual de um espetáculo não se restrinja aos aspectos literários
apenas, partindo, pois, para uma análise da própria realidade teatral. Parafraseando Anne
Ubersfeld
27
(2005) pode-se afirmar que o teatro não apenas promove um diálogo entre os
personagens, mas também entre todos os elementos da cena. Portanto, tendo a cena como
ponto de partida para tecer o discurso cênico, abandona-se a instância da origem/fonte do
25
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880 1950). Trad. De L.S. Repa. São Paulo: Cosac & Naif,
2001.
26
LEHMANN, Hans-Thies. Le théâtre postdramatique. Paris: L´Arche, 2002.
27
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.
38
discurso e se pluralizam as instâncias de emissão da cena, conduzindo a novos modos de
percepção.
Questão coletiva/criação compartilhada
O coletivo assumiu grande importância para a criação teatral e, nesse sentido, tem
proporcionado uma renovação na cena, enquanto modo de criação e enquanto produto
estético.
Antônio Araújo observa que o Teatro da Vertigem no primeiro trabalho precisou
encontrar um assunto que os provocasse e ao mesmo tempo dialogasse com questões que os
inquietava, daí a necessidade da investigação colaborativa – já que queriam escrever uma obra
com as mãos de todos, que sairia daquela forma, porque aquelas pessoas estavam juntas
naquele lugar e naquele instante com um único objetivo. E que seria uma obra escrita a
tantas mãos, cada uma deveria contribuir com o que tem de melhor e, portanto, dialogar com
o que o outro propõe, questionar, ser questionado, desafiar, ser desafiado etc. Assim, que
todos são os donos da obra, não haveria porque alguém controlar o processo de trabalho, mas
sem perder de vista que cada função tem um trabalho específico e que o espetáculo necessita
que todas dialoguem entre si – retroalimentando-se.
Percebe-se que neste aspecto, o Teatro da Vertigem (SP), através do processo
colaborativo, partiu de um mesmo ponto que grupos da criação coletiva partiram, como o La
Candelaria
28
(Colômbia) e o Living Theatre
29
(Estados Unidos): a construção cênica
partilhada a partir de motivações específicas de seus criadores. Tiveram que produzir a cena a
partir de requisitos fundamentais para aquele coletivo de criadores, pois além de não
encontrarem obras que abarcassem o interesse coletivo, sentiam a necessidade de uma criação
compartilhada entre todos os seus membros. O espetáculo, portanto, é o acúmulo das
experiências em ensaio, em que a dramaturgia vem à tona por meio de um jogo de tentativa e
erro.
28
Santiago Garcia (1988) integrante do Teatro La Candelaria na Colômbia, comenta que apesar de as camadas
populares gostarem das obras de Brecht ou de Peter Weiss percebeu que precisavam apresentar peças que
tratassem de assuntos de interesse daquelas pessoas e mais diretamente dos problemas que são próprios daquela
classe trabalhadora. Por isso: “(...) Começamos a procurar obras latino-americanas e encontramos pouquíssimas;
e fomos obrigados a escrever nós mesmos os textos que preenchessem esses requisitos fundamentais”.
(GARCIA, 1988: p.113) (Grifos meus). In: GARCIA, Santiago. Teoria e Prática do Teatro. Trad. Salvador
Obiol de Freitas. São Paulo: Hucitec, 1988.
29
O Living Theatre será discutido logo em seguida.
39
A partir da criação em conjunto (criação coletiva e processo colaborativo) diversos
grupos passaram a fazer uso de suas próprias memórias na pesquisa da elaboração cênica,
apostando na experiência de cada indivíduo, elaborando obras que abordam questões
cotidianas, numa dramaturgia fragmentada e plural, a ponto de realizar combinações com
outras linguagens, tal como a cinematográfica, a performance, a circense etc. Esse processo de
ruptura permitiu a abertura de “espaço para as formas híbridas, combinadas ao texto. Essa
flexibilização da forma dramática ampliou o alcance do texto cênico, oxigenando a cena e
gerando uma nova
30
” (Garcia, 2004: p. 25) (Tradução do autor).
A coletivização dos procedimentos teatrais apropriada distintamente pelos praticantes
da criação coletiva e do processo colaborativo é motivo de nossa próxima reflexão.
Buscaremos investigar quais as especificidades dessa coletivização e, afinal, quais os ganhos
cênicos proclamados por essa investida no coletivo.
1.2 – A criação coletiva e o processo colaborativo
Não somente o grupo se transforma em coletivo, mas passa a ser autor e a co-dividir
o processo de montagem das peças. Cada membro contribui com a sua única
qualidade humana, participando do processo de encenação e contribuindo com suas
aptidões técnicas e artísticas colaboram na iluminação, na música, na cenografia, nos
adereços, costumes coisas práticas. As peças assim obtidas são inovadoras por
permitirem aos atores representar a si mesmos e não mais personagens de ficção.
Liberdade enfim. (Troya
31
, 1993: p.08)
Ilion Troya (1993) ao refletir sobre o trabalho do Living Theatre resgata aspectos
importantes da criação coletiva, dos quais chamamos à atenção para a importância dada a
cada membro em expressar-se junto ao grupo, contribuindo em todas as fases de execução de
uma obra.
Trazer para esse trabalho a discussão sobre a Criação Coletiva é fundamental na
compreensão dos coletivos aqui estudados, pois em tese esse modo de fazer teatral tem sido
investigado por diversos autores
32
. Todavia, não nos importa discutir se havia ou não algum
30
“(...) se abre espacio para las formas híbridas, combinadas del texto. La flexibilización de la forma dramática
ampliá el alcance del texto escénico, oxigenando la escena y generando una nueva.” (Garcia, 2004: p. 25).
31
TROYA, Ilion. Fragmentos da vida do Living Theatre. 25º Festival de Inverno da UFMG. Ouro Preto/MG,
Julho de 1993.
32
ABREU (2003), FERNANDES (2000), GARCIA (2006), NICOLETE (2005),TROTTA (2006) etc.
40
tipo de hierarquia nos coletivos apresentados e, sim, como estes se organizavam na criação
conjunta – o que é diferente de um grupo para outro.
Temos alguns aspectos em comum nesses coletivos, como por exemplo, a tentativa de
fazer com que cada componente e cada área de criação tenha “vez e voz” no trabalho. A
criação coletivizada do texto, dos personagens, do cenário, figurino, iluminação etc. era
elaborada a várias “mãos”, usando da improvisação para a experimentação cênica. Outro
aspecto que, conseqüentemente, fazia identificar um coletivo que criava a partir desses
moldes é o que aponta Rosyanne Trotta (2006: p. 102) a seguir: “A forma de produção
cooperativada, a restrita ficha técnica e a confecção coletiva dos objetos e elementos de cena
produzem uma linguagem que expressa a identidade cultural do grupo.(Grifos meus).
Perceber a “identidade cultural do grupo” era possível nessas produções, pois, geralmente,
viviam em comunidades e teciam um discurso cênico em sintonia com sua proposta de vida.
Liberdade na criação, na vida, na arte.
A formação teatral no Brasil tem se dado em boa parte também através dos grupos, o
que representa sua importância não hoje, como nas décadas anteriores. Silvana Garcia
(2006) discute a importância do trabalho de grupo no país e aponta que “há no trabalho do
coletivo uma qualidade que não se encontra normalmente no elenco por associação
circunstancial e nas companhias de repertório tradicionais” (2006: p. 219), isso devido à
pesquisa de linguagem desenvolvida pelos grupos ao longo dos trabalhos, à afinidade de
interesse entre seus membros, aos objetivos comuns, fazendo com que, nas relações, haja uma
pesquisa no processo de criação e, portanto, em seu resultado. Um exemplo é o próprio José
Celso, junto ao Oficina, ao elaborarem a concepção de “te ato”, uma pretensão de conduzir
o espectador a uma transformação de pensamento e atitude, tornando-se, em vez de simples
contemplador, um atuador. Com isso, “o grupo, na sua conformação particular concreta, já é
seu primeiro produto e todas as etapas de produção artística buscam e confirmam essa
identidade” (Garcia, 2006: p. 219).
O descentramento da noção de sujeito, em meados da década de 60 e 70 ajuda a
desvelar o motivo que contribuiu para esse posicionamento, pois para Stuart Hall
33
o sujeito
pós-moderno não teria uma identidade:
fixa, essencial e permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’:
formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
33
HALL, Stuart. A identidade cultural pós-moderna. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
41
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. [...] O sujeito
assume identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente (Hall, 2001,
p.13).
Nos grupos que se caracterizaram pela criação coletiva havia um acúmulo de funções.
Não existia um dramaturgo, mas uma dramaturgia coletivizada, também não havia um
encenador, mas uma encenação coletiva etc. Acontece que essa prática trazia alguns
elementos contraditórios, pois se cada elemento do grupo participava de todas as funções, não
necessariamente tinha habilidades e interesse nos vários campos. Dessa forma, notamos que
sempre havia alguém no grupo que assumia determinada função, ainda que não
deliberadamente.
Rosyane Trotta (2006), no verbete sobre a Criação Coletiva no Dicionário de Teatro
Brasileiro, aponta que os fins usados no processo coletivo são distintos, ou seja, existem
objetivos diferenciados quando hoje um grupo cria a partir dos moldes coletivos. Se na década
de 1970 havia um posicionamento político declarado e, assim, agir coletivamente era uma
maneira de burlar o sistema, hoje, talvez, a criação coletiva tenta levar o criador a engajar-se
em todo o processo de criação e realização da obra, evitando que esse artista fique imerso
apenas no seu locus de investigação.
Antônio Araújo também defende esse ponto no processo colaborativo, pois aposta
que não o diretor e o dramaturgo têm responsabilidade na estruturação do discurso cênico,
estando o ator apenas na linha de montagem, cumprindo ordens e estando à mercê das
concepções alheias. Esse também, enquanto criador, precisa se colocar e ter voz ativa em todo
o processo de construção do discurso a ser apresentado, também, por ele.
Há, no entanto, outros fatores que podem ser considerados na compreensão deste
movimento que leva a um retorno das funções no processo colaborativo. A marca do
individualismo, por exemplo, tão presente após o período da globalização, pode ser também
investigada e inquirida como uma das transformações de fundo presente nessa relação entre o
indivíduo e o coletivo, no deslocamento da criação coletiva ao processo colaborativo, pois
ainda que a autoria da obra seja compartilhada por todos os criadores, cada um assina sua área
específica de criação.
Quanto à caracterização dos grupos que praticavam a criação coletiva na década de
1970, no Brasil, Sílvia Fernandes (2006a), os define como: “equipes de produção teatral que
se organizam em cooperativas de produção, o que acaba determinando a autoria comum do
42
projeto estético e a tendência à coletivização dos processos criativos”. E mais à frente a
pesquisadora indícios que essa “coletivização” era proposital e pensada, pois “o grupo
significa uma tentativa de eliminar do interior da criação teatral a divisão social do trabalho”.
(Fernandes, 2006a: p. 152).
Agir no âmbito privado (dentro do grupo) era uma tática para infringir as regras
impostas pelo público e a tentativa de diluição do poder através da criação artística no interior
do grupo, uma forma de não seguir junto à sociedade estratificada e capitalista, a divisão
social e hierarquizada do trabalho, pois pretendia burlar o sistema vigente.
A emergência daqueles coletivos relacionava-se ao contexto político-social, pois
naquele período no Brasil, com o Golpe de 1964, o país entrou em verdadeira repressão
artística/cultural, política e estética, e com isso, os artistas de teatro, consciente ou
inconscientemente, foram responsáveis também pela reorganização de uma camada da
sociedade no combate à ditadura militar. É sabido que nesse mesmo período, a arte utilizou-se
de astúcias e, como diria Michel de Certeau
34
(1994), de táticas para encobrir suas denúncias
e descontentamentos vigentes. Chamando de tática o que aponta Certeau (1994: p.100-101):
A tática é movimento ‘dentro do campo de ação do inimigo’ como dizia von
Bullow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem, portanto, a possibilidade de dar
a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto,
visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as
ocasiões e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade
e prever saídas. O que ele ganha não se conserva. Este o-lugar lhe permite sem
dúvida mobilidade, mas uma docilidade do tempo, para captar no vôo as
possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar vigilante as falhas que as
conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai
caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia.
A relação existente na criação afirmava a força coletiva, dava voz ativa a cada um e ao
grupo, alimentava-se das opiniões e da reflexão conjunta e projetava socialmente as
inquietações, críticas e o combate implícito ou explícito à ditadura.
É preciso entender, porém, que a criação coletiva no Brasil não aconteceu sempre com
o mesmo propósito daquela realizada nos outros países da América Latina. O Asdrúbal
Trouxe o Trombone (Rio de Janeiro) é um exemplo, já que faziam uma manifestação artística-
lúdica que caracterizava-se como meio eficaz de auto-expressão. Hamilton Vaz Pereira
34
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. E.F. Alves. ed., Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 1994.
43
(diretor do grupo) criticava o trabalho ligado à interpretação, pois revelava que o produtor e o
diretor teatral buscavam um fisic de role da personagem, escondendo o ator sujeito daquela
criação. Essa preocupação modificaria sua postura frente ao teatro e a saída/procura para a
criação coletiva vem, não apenas como outra forma de agir sobre o teatro, mas também,
eliminar a transformação do ator em personagem.
Evoquemos as teorizações de Bertolt Brecht (2005) que eram demasiadamente
apreciadas nesse momento e que tiveram forte influência no teatro latino-americano. Brecht
recusou a interpretação do ator à base da emoção, pois essa visava atingir o universo afetivo
do espectador e acabava por aluciná-lo, assim propôs o efeito de distanciamento que
definimos como:
Distanciar é dar-se o tempo para mostrar todas as faces de um objeto ou de uma
situação, em vez de fazê-las passar a quente num grande movimento, como um
prestidigitador. É atribuir ao referido objeto, à referida situação, o peso da reflexão e
da presença do ator que critica ou aprova o que mostra, e quer ressaltar o lado
‘estranho’ de um evento. (Aslan, 2003: p.166).
A teoria brechtiana foi fundamental por escancarar o acontecimento teatral, ou seja,
quebrar com o ilusionismo, rompendo com a quarta parede que separava o palco da platéia,
mostrando de vez que o acontecimento teatral é artificial, ou seja, não era vida corrente. Isso
não é apenas uma opção estética, mas também um posicionamento ideológico, pois ao
denunciar o poder que hipnotizava as multidões mantendo os corpos ceis
35
, engavetava o
senso crítico do espectador.
Fazer com que o ator apareça em cena, eliminando a metamorfose é outro elemento de
desvendamento, característico da pesquisa de Jerzy Grotowski
36
(1976) em sua primeira fase,
que centralizou forças no desenvolvimento do trabalho do ator sobre si mesmo, buscando um
teatro para o qual os únicos elementos realmente imprescindíveis fossem o ator e o
espectador.
A figura do ator é peça chave para a concretização das propostas na criação coletiva,
uma vez que centraliza suas experiências para teatralizar seu cotidiano “a partir de estímulos
que visam especialmente à ocupação eficiente do espaço e à ampliação de gesto e voz.”
(Fernandes, 2000: p. 14). É nesse contexto que o trabalho do ator ganhou outra dimensão
dentro da obra teatral, pois deixou de ser aquele que “dá vida ao texto do autor” para
35
“É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.”
(FOUCAULT, 2004: p. 118).
36
GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
44
participar na criação do sentido do espetáculo. Conseqüentemente, esse ator não retém sua
criação original, pois recebe de volta dos outros envolvidos, aquele primeiro esboço, agora
com outra carga de significados.
Nesse momento surge a imagem do “ator-rei”, pois esse torna-se múltiplo: ao atuar,
produzir texto, e segundo Ryngaert (1995: p. 30):
(...) É essa imagem do ator-rei, produtor do texto e do sentido, que nossa época
retém quando lhe acontece fazer o processo do texto. Como se libertar-se do texto
permitisse escapar à rotina da representação e restabelecesse a capacidade do ator de
invenção direta. A improvisação é mitificada porque autoriza a cada momento a
criação do ator e restabelece o contato íntimo entre o corpo do ator e seu imaginário.
Não mais dizer as palavras de um outro ofereceria uma sensação única de liberdade.
Aslan (2003) destacou a criação do ator do Living Theatre, pois a ele é dado um tema
para que improvise, devendo “reagir de acordo com sua personalidade” (2003: p. 297). Ao
decidir ser da comunidade, o pré-requisito para que possa fazer parte é aceitar as regras de
vida daquele coletivo, não importando se é um ator que possui algum tipo de técnica ou uma
pessoa sem experiência teatral. Comungam com um ator que se posicione diante das
circunstâncias dadas na vida, questionador e provocador, que não precise de nenhum artifício
para colocar seu pensamento às outras pessoas, apenas a si próprio.
A criação coletiva ficou conhecida por propiciar uma participação ampla de todos os
integrantes do grupo na criação do espetáculo, pois conforme Luís Alberto de Abreu (2003
37
:
p.33): “Todos traziam propostas cênicas, escreviam, improvisavam figurinos, discutiam idéias
de luz e cenário, enfim, todos pensavam coletivamente a construção do espetáculo dentro de
um regime de liberdade irrestrita e mútua interferência”.
O espetáculo era apresentado com múltiplas opiniões em cena, que muitas vezes não
eram transformadas em objeto de apreciação para um futuro espectador, o que levou a
inúmeras críticas, muitas referenciadas no modelo do teatro convencional. Essa postura
demasiadamente democrática levou alguns grupos a não terem propostas estéticas muito
claras para seus trabalhos e, como cada componente deveria sentir seu discurso incorporado
ao resultado final, muitas dessas obras colocavam em risco a precisão e a clareza do discurso
cênico.
37
ABREU, Luís Alberto de. Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação.
Cadernos da ELT, Santo André, v.1, n.0, p. 33-41, mar. 2003.
45
O todo mundo faz tudo tão recorrente na criação coletiva é analisado por Sílvia
Fernandes (2002) ao avaliar o espetáculo Trate-Me Leão (do Grupo Asdrúbal Trouxe o
Trombone Rio de Janeiro) como (...) responsável por uma quantidade considerável de
cenas prolixas, repletas de referências em que cada participante se sentia democraticamente
representado” (Fernandes
38
, 2002: p. 37). Ou seja, sentir-se democraticamente representado
enquanto criador, colocando suas questões numa obra que iria ser levada ao público era uma
forma de driblar o sistema vigente e denunciar uma repressão instaurada sobre os coletivos
criadores que usavam da linguagem teatral para se manifestar.
Para Antônio Araújo (2006
39
) essa perspectiva do todo mundo faz tudo embutia alguns
traços de manipulação, pois o “(...) dramaturgo ou o diretor pregava tal discurso coletivizante
visando camuflar um desejo de autoridade e, dessa forma, evitava confrontos e conflitos com
os outros integrantes do grupo” (p. 128). Avaliamos que, de forma estratégica, negar o poder
pode ser uma forma de exercê-lo, pois o que prevalecia no discurso era a irrestrita liberdade,
enquanto que a prática não se mostrava dessa forma, pois, em geral, havia quem tomava as
decisões e posicionamentos éticos-estéticos, e, certamente, isso se dava no Asdrúbal.
Hamilton Vaz Pereira revelou que era um posicionamento ideológico cada membro do
Asdrúbal ser criador em cada área, visto que: “somos várias sensibilidades dentro de um
espetáculo e não a sensibilidade de um autor ou de um diretor a quem todo o grupo está
filiado” (Pereira apud Fernandes, 2000: p.72). Esse modus operandi vem na contramão do
que se fazia no teatro até então, pois para Hamilton:
Essa descentralização do autor e do diretor tem a ver com um caminho próprio do
grupo em acreditar que se as pessoas estão dentro de um esquema de produção para
se sustentar, para comer à custa do seu próprio trabalho, elas deveriam ter uma
capacidade maior de imaginar, de querer, de produzir a arte, de produzir teatro.
(Pereira apud Fernandes, 2000: p.72).
Ao contrário do que se falava “todo mundo faz tudo, Sílvia Fernandes (2000) corrige
dizendo que todo mundo opinava em tudo”, pois na criação coletiva, além de todos
opinarem em tudo, executarem várias funções, todos também eram atores. No entanto, era um
38
FERNANDES, Sílvia. O Lugar da Vertigem. In: Trilogia Bíblica (Teatro da Vertigem). Apresentação de
Arthur Nestrovski. São Paulo: Publifolha, 2002. (p. 35 – 40).
39
ARAÚJO, Antônio. O processo colaborativo no Teatro da Vertigem. In: Sala Preta. ECA/USP. Nº6, 2006 (p.
127 - 133).
46
ator que criava o cenário, dava palpite na iluminação, fazia maquiagem, criava coreografias e
atuava.
Podemos observar que um aspecto está contido no outro, ou seja, pelo fato dos
criadores terem voz ativa no processo é comum que o produto seja, muitas vezes, essa
somatória que forma um conjunto de idéias apresentadas por todos. Devido a isso, o resultado
artístico apresentava-se aos de fora do processo (público, críticos etc.) como um emaranhado
de idéias/propostas. E “o conceito de uma cena não era atingido pela síntese, mas pelo
acúmulo de informações agrupadas por analogia, o que resultava numa impressão caótica,
causada pelo excesso de dados concomitantes” (Fernandes, 2000: p.38).
O fato de vivenciar o processo de criação coletiva era o determinante dessa prática.
Segundo Reinaldo Maia (2004: p. 2):
O processo de criação coletiva de alguma maneira, em estrito senso político, é a
solução encontrada para uma criação estética que se encontrava sufocada pela
censura, pelos cerceamentos políticos organizacionais, que busca formas de driblar,
de continuar exercendo sua função social e contribuir para a ‘formação de quadros’,
que possam ajudar na luta pela redemocratização do país.
O autor para o Living Theatre deveria viver as mesmas experiências cotidianas que o
grupo. Ter um texto “de fora” daquele coletivo não era uma forma de exercer a democracia e
a liberdade criadora, mas sim o controle e a hierarquização.
Os grupos que praticavam a criação coletiva tinham a necessidade de uma fala que
fosse criada e expressa pelo próprio coletivo uma escrita/assinatura cênica coletivizada
uma identidade. O esvaziamento de textos dramáticos nessa época não é proveniente de uma
falta de peças escritas, pois havia ainda dramaturgos que faziam seus trabalhos de outras
formas. Acontece que esses grupos mantinham a escrita quente – aquela na qual o responsável
pela escrita está diretamente na sala de ensaio, colhendo, amadurecendo e improvisando junto
aos atores.
Maia (2004) ainda afirma que a criação coletiva não foi apenas uma resposta aos
problemas da cena vigentes na época, mas também responsáveis pela consolidação de um
pensar que interferisse na contramão do sistema ditatorial. As contribuições de Michel
Foucault
40
(2004) para esta reflexão são de grande valia a fim de discutirmos sobre a
sociedade disciplinadora. Atende ao ponto que os criadores pretendiam naquele período: com
40
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: a história da violência nas prisões. 29ª ed., Petrópolis: Vozes, 2004.
47
essa prática, levar, através da cena teatral, toda a reflexão travada no âmbito secreto e com
isso mostrar uma forma de burlar as regras impostas pelo poder instituído.
Patrice Pavis
41
(2000) ressalta que a criação coletiva estava na contramão do império
estabelecido longos anos pelo autor de teatro textocentrismo e que também vinha
contrapor a soberania do encenador e por isso:
(...) essa forma de criação é reivindicada como tal por seus criadores desde os anos
sessenta e setenta. E está ligada a um clima sociológico que estimula a criatividade
do indivíduo em um grupo, a fim de vencer a ‘tirania’ do autor e do encenador que
tendem a concentrar todos os poderes e tomar todas as decisões estéticas e
ideológicas. (Pavis, 2000: p. 79).
No Brasil, o encontro do Teatro Oficina com o Living Theatre no ano de 1970,
destacou-se como um importante momento em que o coletivo rompeu a sua forma de criação
teatral e buscou revisar suas relações com o espectador, passando a agir politicamente através
do discurso teatral.
1.2.1 – A criação coletiva nos grupos: O Teatro Oficina (Brasil) e o Living Theatre
(Estados Unidos)
Foi no ano de 1970 que o Teatro Oficina esteve em contato direto com o Living
Theatre, quando esse veio ao Brasil pela primeira vez. Os dois coletivos possuem vários
pontos em comum, dentre os quais, merece destaque a postura política combativa e as
experimentações cênicas inovadoras. As pesquisas que traziam o grupo norte-americano ao
Brasil diziam respeito à experiência em espetáculos que “deixavam de ‘falar’ sobre idéias
revolucionárias para ‘agir’ revolucionariamente” (Lemos, 2000: p.36). Para o Living,
provocar a ação do espectador era uma questão fundamental, conforme aponta Ilion Troya
(1993: p.09): “Não bastava tampouco romper a passividade do público, incitando-o a
protestar. Queria corrompê-lo com força de vida, enchê-lo de êxtase e consciência
revolucionária, sugerindo possibilidades de ser e de agir”.
41
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. Jacó Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva,
2000.
48
Vivenciar no grupo os ideais revolucionários que almejavam para a sociedade era uma
forma de dar início à transformação. Era preciso mudar todas as estruturas condicionadas
pela qual viviam a fim de causar uma reverberação aos de fora – espectadores. É nesse sentido
que reverberam as palavras de Jean-Jacques Lebel:
Agora sabemos que não podemos nos libertar das enfermidades do capitalismo se
não nos desprendemos do dinheiro. Não podemos nos livrar do dinheiro sem
transformar a psicologia, nem as relações sociais sem transformar a psicologia e as
relações humanas. Não podemos transformar a psicologia, nem as relações sociais
sem transformar e liberar a sexualidade. Não se pode realizar uma revolução em um
nível. Sem isto, vamos direto ao fracasso. O homem vive em numerosos níveis e
a revolução deve efetuar-se simultaneamente em todos esses níveis. Não podemos
continuar com o mesmo sistema de educação se pretendemos destruir o princípio da
autoridade. Não podemos continuar com o mesmo sistema familiar fundado sobre o
princípio da autoridade, se queremos abolir o estado (porque este não é mais do que
um reflexo). É necessário transformar a estrutura da sociedade. Inventar outra.
(Lebel apud Lemos, 2000: p. 36)
Esse discurso do Living Theatre é bem mais radical do que o do Oficina quando
analisado sobre o período da elaboração de Gracias Señor. Os integrantes do Living
precisavam fazer uma revolução em todos os aspectos de suas vidas, pois deveriam ser
membros não só do grupo, mas de uma organização de convivência e de trabalho, baseada nos
seguintes ideais: coletivização das funções e tarefas, independência do grupo e de seus
integrantes, desligamento do capital, do poder e da violência e liberação sexual: “Beck e
Malina contestam a sociedade capitalista, recusam o circuito comercial do teatro, a própria
forma do teatro, desde a arquitetura até a escrita e a atuação” (Aslan, 2003: p. 297).
A própria mudança na forma de viver é essencial para a manutenção do grupo e por
isso trabalham na liberação do homem em todos os níveis. O caráter transgressor de seu teatro
nas ruas, além de denunciar a cara segregacionista que as cidades adotam, transgride as regras
de uso das cidades e por isso se caracterizam como acontecimento de ruptura.
Se a criação coletiva ficou marcada pelas rupturas que propôs ao acontecimento
teatral, não estaria o processo colaborativo renomeando essa prática para fugir das vorazes
comparações? Mesmo apontando limitações da criação coletiva, Antônio Araújo declarou que
o processo colaborativo se assemelha a ela em muitos aspectos, mas que encontrou junto ao
seu grupo uma forma de apropriar-se da criação coletiva:
(...) é incontestável nossa filiação a esse modus operandi ainda que tenhamos nos
apropriado dele [Criação Coletiva] de uma maneira própria e particular. Pois, apesar
49
de não comungarmos da filosofia da extinção dos papéis dentro de uma criação,
acreditávamos em funções artísticas com limites menos rígidos, estanques, e
praticávamos uma criação a todo tempo integrada, com mútuas contaminações entre
os artistas envolvidos. (Araújo, 2002:11) (Grifos meus)
Se a diluição das funções era essencial para a criação coletiva dada a não-
estratificação dos conteúdos artísticos e nem dos artistas para o processo colaborativo, a
marca da individualidade se faz presente dentro do coletivo, estando os criadores em seus
respectivos campos na busca do diálogo a partir de seu lugar de criação.
Mas também encontramos formas de criação coletiva em que se conservavam as
funções, como acontece, entre outros casos, no Teatro Experimental de Cali TEC (1962)
dirigido por Enrique Buenaventura. Segundo o pesquisador Nestor García Canclini
42
:
esse grupo vem compondo um método de criação coletiva para modificar as relações
clássicas entre dramaturgo, diretores e atores. Sem eliminar tais funções, suprimiram
a separação entre os trabalhos de cada especialidade e, portanto, o autoritarismo do
autor que impõe ao diretor um texto pré-existente à encenação e o autoritarismo do
diretor que dita aos atores condutas que devem ser executadas cegamente. (1984: p.
162)
Ou ainda, nas palavras do próprio criador do TEC, Enrique Buenaventura:
O trabalho coletivo não não elimina a divisão de trabalho, mas também cria uma
divisão do mesmo que impede a oposição negativa entre ‘criadores’ e ‘executores’,
entre ‘criadores’ e ‘intérpretes’, mais ou menos passivos. Dentro dessa criação
coletiva do texto repartem-se as tarefas de tal modo que o ‘dramaturgo’ tem a sua,
assim como dentro da montagem coletiva, o diretor (...) conserva não sua tarefa
específica, como esta se torna mais rica e profunda”.
43
(apud Canclini, 1984: p. 163)
Tanto na criação coletiva quanto no processo colaborativo a palavra não é o único eixo
da criação, pois a partir daí buscou-se experimentar novas possibilidades de construção
poética da cena e, conseqüentemente, de relação com o espectador. Esse desprendimento na
utilização da palavra não significa uma anulação da mesma, e Desgranges
44
(2006: p. 58) nos
mostra que: “Os artistas não se colocavam contra a palavra, mas buscavam uma utilização
42
CANCLINI, Nestor García. A Socialização da Arte: teoria e prática na América Latina. São Paulo: Cultrix,
1984.
43
Depoimento de Enrique Buenaventura, in: CANCLINI, Nestor García. A socialização da arte: teoria e prática
na América Latina, cit.
44
DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006.
50
desta que se tornasse viva, intensa, contrariando uma utilização ‘formal’ desta, que perderia
vigor no contato direto com o espectador”.
Essas experiências teatrais tão intensas na década de 1960 são, segundo Desgranges
(2006: p. 59): “(...) a finalização da experiência moderna iniciada na virada do século XIX
para o século XX de desconstrução do palco, empenhando-se na tentativa de destruir as
estruturas formais em que a arte teatral se apoiava até então”. As bases constituintes do teatro
são desestabilizadas, removendo os critérios que definem o acontecimento teatral. Assim,
Desgranges pontua que:
A partir deste momento, o teatro não era mais, necessariamente, algo previamente
dado, que acontecia em um determinado lugar, de uma determinada maneira, que
propunha uma determinada relação, ainda que com variações relativas. O teatro,
depois desta quebradeira operada pelos artistas neste momento histórico, poderia ser
qualquer coisa, algo que se estruturaria pela própria maneira como os artistas
definiriam sua arte e convidariam o próprio público a frui-la ou a participar do
evento. (2006: p.59-60).
O Living tem influências diretas do pensamento de Antonin Artaud, como: agredir o
espectador, colocá-lo diante de uma realidade física, provocá-lo a ponto fazê-lo participar da
improvisação, fazê-lo reagir, pois: “Espectador, meu irmão, você não está aqui para se
divertir, mas para protestar conosco contra a guerra e todos os crimes da sociedade de
consumo.” (Beck apud Aslan, 2003: p. 298).
Romper com os tabus em cena impostos pela sociedade é uma forma de encorajar os
espectadores a se desprenderem de seus receios. Segundo Aslan (2003: p. 300-301), ao
apresentarem Connection, mostraram que “todos nós temos necessidades de uma droga e que
se os drogados chegam lá aonde chegam, isto não provinha de sua natureza diabólica, mas dos
erros do mundo inteiro”. O grupo nesse momento aponta para aspectos significativos no
combate à alienação do ser humano, mostrando que as representações sociais dominantes
camuflam ao homem a situação real de exploração econômica e dominação política. Marilena
Chaui (1994) ao analisar essas questões diz que esse ocultamento da realidade social é a
ideologia e que:
Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais de exploração e de
dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas. Enfim, também é um
aspecto fundamental da existência histórica dos homens a ação pela qual podem ou
reproduzir as relações sociais existentes, ou transformá-las, seja de maneira radical
(quando fazem uma revolução), seja de maneira parcial (quando fazem reformas).
(Chaui, 1994: p.21).
51
No Brasil, destacamos o Teatro Oficina com a obra Gracias Señor, um exemplo
significativo de criação coletiva, que trouxe um conceito que iria, novamente, questionar a
idéia de atuação e colocar em outro patamar a importância do coletivo criador:
Uma vida comunitária com características muito próprias, onde era possível um
exercício libertário e comunitário afinado com as idéias contraculturais que
cercavam a juventude dos anos sessenta e setenta e a criação coletiva de um
texto/roteiro e de cenas fundamentadas em ações improvisadas, nascidas dos
estudos, laboratórios, ensaios e experiências vivenciais daquela comunidade.
(Lemos, 2000: p.05)
Fundamentalmente, essa é a definição de atuador que Lemos (2000) aborda ao estudar
o Oficina. Chamamos a atenção para o termo vida comunitária, fator que exerce uma forte
influência na concepção de Gracias Señor, não apenas na organização daquele coletivo, como
também na contaminação imprescindível para o trabalho.
“Em 1966, o Oficina queimou. Com o fogo foi tudo aquilo. O golpe e a resistência
primeira ao golpe. Vinha vindo outra coisa... Ninguém sabia.” (Corrêa, 1998: p.84). Para a
reinauguração do espaço do Teatro Oficina a obra escolhida foi O Rei da Vela escrita em
1933 por Oswald de Andrade, que também possibilitou a “re-visão” do teatro brasileiro, pois
era incapaz de produzir uma obra que preocupasse o poder instituído pelo regime militar. Era
necessário naquele momento encontrar a identidade teatral do Oficina, porquanto “para
exprimir uma realidade nova e complexa era preciso reinventar formas que captassem essa
nova realidade.” (Corrêa, 1998: p.85).
A proximidade da obra de Oswald de Andrade com o Oficina estava no ponto em que
despertava a consciência de que estávamos colonizados em todos os aspectos, inclusive na
(re)produção estética. Para ambos “a burguesia nacional é vista como cúmplice dessa
realidade, seja pelo segmento que se nutre dos privilégios oriundos dessa situação, seja pelo
segmento cuja passividade não é menos criminosa” (Lemos, 2000: p.24).
O pensamento modernista, retomado pela obra de Oswald de Andrade, despertou no
Oficina o sentido antropofágico e por essa razão o processo de apropriação se deu no interior
do grupo a partir desse trabalho. Com O Rei da Vela foram propostas rupturas estéticas e
mudanças no modus operandi. Conforme Lemos (2000: p.27): “Este espetáculo representa,
também, uma guinada nos interesses artísticos do Teatro Oficina, que passam a ser orientados
por uma rebeldia que conduz o grupo para um rompimento com modos consagrados de pensar
e produzir teatro.”
52
Para José Celso Martinez Corrêa (1998) é preciso provocar o espectador, tirá-lo da
passividade e para isso não bastava o discurso, foi preciso agir sobre ele, despertando-lhe a
ação. Já em 1968, o contato físico foi estabelecido entre os atores e os espectadores na
montagem de Roda Viva
45
, texto de Chico Buarque de Holanda. Essa radicalização na
participação do espectador foi promovida a fim de “sacudi-lo em sua postura contempladora e
passiva, provocá-lo, incitá-lo até fazê-lo participar do espetáculo” (Lemos, 2000: p.28).
Desde 1971 o Oficina, a partir de investigações feitas a fim de estabelecer uma nova
forma de comunicação com o espectador, percebe a necessidade de romper com a forma que
até então trabalhava. O grupo denominou esse gênero de te atal, pois propunha a quebra do
aspecto ficcional existente no teatro que, conseqüentemente, exigiria uma nova postura do
ator, agora atuador, no qual: “(...) apresenta a uma audiência aspectos de sua personalidade
que estabelecem conflitos com valores ‘verdades’ para uma determinada comunidade”
(Lemos, 2000: p.10-11). As rupturas com o modo de fazer teatral dominante são questionadas
pelo coletivo, pois, era preciso mudar a estrutura do processo, uma vez que essa não
correspondia mais ao produto pretendido.
Um posicionamento político é o que Denis Guénoun (2003) aponta em relação à
separação do ator com o espectador, ou seja, do palco para com a platéia, pois o teatro
necessariamente requer um encontro entre espectadores num lugar (espaço) e instante (tempo)
comuns. Portanto, lembremos que:
(...) no lugar teatral grego, de onde nos vem o termo, ‘teatro théatron não
designa a cena que é designada pelo termo skenê –, mas sim as arquibancadas
onde se senta o povo. Isto mudará: mais tarde, a palavra passa a denominar
realmente, a área de representação, o francês clássico os atores sur théâtre’. E
este deslocamento de um espaço a outro é signo de uma história. Para nós, o ‘teatro’
designa por extensão o prédio em seu conjunto. Mas, no começo, o teatro é o lugar
do público – do público reunido. (Guénoun, 2003: p.14).
Contemporaneamente, é à luz da criação coletiva que se visualiza uma “re-visão” do
conceito de teatro e, portanto, um novo uso do mesmo. A própria constituição física do teatro,
como assembléia, uma reunião pública, era um ato político para o Teatro Oficina, o Living
entre outros. A possibilidade da reunião de pessoas para esse encontro político é o ponto
inicial para a transformação do “te ato” do Oficina. O conteúdo exibido numa sessão não
45
“Roda Viva” foi encenado por José Celso à convite do próprio Chico Buarque, não fazendo parte do repertório
do Oficina, todavia se faz presente por ser um trabalho que José Celso realiza em contato direto com o
espectador.
53
fica apenas na mostra de quem faz para quem observa. É preciso modificar esse status,
passando o observador a agir e, portanto, a ser também um atuador.
É também nesse momento que o teatro se afirmou como o corpo contra o texto,
propondo novas rupturas e posicionamentos ideológicos, quando “(...) reencontramos a velha
desconfiança para com o intelecto e a nostalgia de um teatro popular desvencilhado do peso
das palavras” (Ryngaert
46
, 1995: p. 27).
No trabalho do ator no Living Theatre era comum a opção pela não-representação de
um personagem, sendo que o ator “re-presentava” a si próprio. Portanto, “parte do princípio
de que a presença do ator em cena estabelece por si mesma uma relação com o espectador, e
que essa presença é tanto mais materialmente verdadeira quanto mais forem desenvolvidas e
utilizadas pelo ator a linguagem corporal e gestual” (Azevedo, 2002: p. 30). Priorizava a
participação em vez da representação; a improvisação coletiva em vez de esquemas
dramatúrgicos rígidos; a exploração de possibilidades teatrais ao contrário da “caixa preta”.
Outros praticantes da criação coletiva buscaram romper com a interpretação realista, como é o
caso do Asdrúbal Trouxe do Trombone (RJ). Durante os ensaios de O inspetor geral havia a
preocupação do elenco não encarnar as personagens, revelando a si próprios, e, assim:
(...) o ator tomava os aspectos do papel que mais lhe interessassem, criando um
trampolim para colocar-se em cena de maneira mais completa e mais espontânea
possível. O grupo considerava a personagem um sério limite para o ator, que deveria
usá-la para mostrar a si mesmo em cena. O estímulo maior era a possibilidade de
mostrar-se como alguém interessante, contando algo fascinante acerca de sua própria
história e aprendendo a exercitar a atração que um ser humano exerce sobre outro.
(Fernandes
47
, 2000: p.38)
A “re-visão” do espaço: a esfera pública do teatro
O uso do espaço teatral também é questionado nesse período, pois o ‘palco italiano’
traz consigo possibilidades limitadas de utilização e contém em sua relação palco/platéia uma
hierarquização: do palco para a platéia. Esse posicionamento estava diretamente ligado com a
revisão da experiência teatral, que pretendia tornar-se mais intensa e envolvente.
46
RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
47
FERNANDES, Sílvia. Grupos teatrais – Anos 70. Campinas/SP: Ed. da Unicamp, 2000.
54
Mas qual a finalidade de mergulhar a platéia na penumbra e iluminar o palco? Não
os recursos da iluminação ajudaram a consolidar esse pensamento, como também toda uma
ideologia dominante, visto que os espaços são condicionantes e possuem em sua própria
estrutura formas de conduta que priorizam um discurso: do poder, da ordem e da educação.
A revisão do espaço pelos grupos que praticaram a criação coletiva foi também um
posicionamento político. É política a escolha do lugar, que pode ser no centro ou na periferia;
o horário é determinante, pois a escolha pelo dia ou pela noite, pelo horário do lazer ou do
trabalho, exclui e, conseqüentemente, privilegia determinada parcela de espectadores. Os
autores Antonio Viñao Frago e Agustín Escolano (1998) analisam por esse ângulo essas
estruturas ao apontarem que os tempos e os espaços não são “simples esquemas abstratos, ou
seja, estruturas neutras”, mas sim: “(...) um programa, uma espécie de discurso que institui na
sua materialidade um sistema de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância (...) e toda
uma semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos, culturais e também ideológicos.”
(1998: p.26). Pensando por esse aspecto o espaço/tempo teatral tem que ser avaliado como um
conjunto cultural que expressa e reflete, para além de sua materialidade, determinados
discursos.
O Living Theatre, enquanto coletivo, propôs essa “re-visão” espacial desde a década
de 1950 ao adaptar armazéns comerciais para fins teatrais e buscar também apresentações na
rua. O fato de optarem pelo nomadismo, além de ser determinante para sua investigação, é um
posicionamento em busca de novas possibilidades espaciais para a representação teatral.
Assim,
Reivindicar a lógica da rua como material fundamental e assumir o fluxo de energia
dos usuários como guia das performances implicava em adotar uma postura de não-
aceitação de uma forma que despersonaliza os cidadãos, buscando que os
espetáculos construam um Lugar no qual cada pessoa possa expor suas próprias
necessidades a partir do encontro com os atores, e por meio destes, aproximar-se aos
outros transeuntes, forjando assim uma verdadeira cerimônia. (Carreira
48
, 2004a:
p.66)
A revisão do espaço teatral é influência direta do pensamento de Antonin Artaud
(1984), pois, este almejava escapar das limitações contidas no palco italiano e questionava a
relação palco-platéia. Em 1958, Julian Beck e Judith Malina entram em contato com o
48
CARREIRA, André. Os Não-Lugares: teatro de rua como resistência. O Teatro Transcende, Blumenau, v. 13,
n. 1, p. 63-68, 2004a.
55
pensamento de Artaud em O teatro e seu duplo que dialoga exatamente com a proposta do
Living, pois “já fazia uma década que eles vinham concentrando seus esforços numa
revolução na representação do ator e no problema da participação do espectador” (Roubine,
1998: p.100).
Todas essas “re-visões” oriundas da criação coletiva vão influenciar de certa forma o
teatro feito a partir de então e, conseqüentemente, o processo colaborativo. Entende-se aqui
que o processo colaborativo, vindo posteriormente à criação coletiva não representa uma idéia
de evolução, como pretendeu afirmar Stella Fischer
49
(2003), intitulando da seguinte forma
em um dos seus capítulos da dissertação: “Do coletivo ao colaborativo: a política de cena da
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz”; dando a entender que o grupo em questão
construía seu trabalho através da criação coletiva e que ao longo dos anos, com seu
amadurecimento, passou a investir no processo colaborativo.
O processo colaborativo é mais do que uma denominação de outra prática que também
prescinde do coletivo criador, trata-se de um novo modo de encarar o processo coletivo de
criação teatral que, embora conserve boa parte das características de seus antecessores
imediatos, por vezes difere deles de maneira radical, trazendo à luz novos procedimentos.
Lembrando que em arte não existem, via de regra, formas puras, elas se desenvolvem a partir
de sua relação com as formas que a precederam e os únicos critérios a serem considerados são
o nível, a lucidez e a forma particular dessa relação, como faz questão de assinalar Lehmann
(2002: p. 36).
Como apontado ao longo do texto, a criação compartilhada tem se dado por diversas
práticas teatrais e não se restringe apenas ao campo da arte. O conceito de colaboração tem
sido bastante difundido e tem, independentemente da área de conhecimento, um significado
muito particular que nos interessa discutir em seguida.
49
FISCHER, Stela Regina. Processo colaborativo: experiências de companhias teatrais brasileiras nos anos 90.
2003. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Artes/ Unicamp, Campinas.
56
1.3 – A colaboração: usos e significados
Um dos paradigmas mais prometedores que surgiram na idade pós-moderna é o da
colaboração, enquanto princípio articulador e integrador da ação, da planificação, da
cultura, do desenvolvimento, da organização e da investigação. (Hargreaves, 1998a:
p.277 apud Boavida, 2005: p. 130)
Conforme a citação acima, a colaboração é um princípio que vem articular e integrar
uma ação. Dessa forma, o uso do termo processo colaborativo se faz justo com a definição,
dada a sua intencionalidade em articular e integrar diversas ações criativas em prol de um
projeto. Contudo, é importante lembrar que o conceito de colaboração é vasto e vem sendo
estudado por diversos pesquisadores em outros campos de conhecimento. Evocá-lo aqui tem
ligação com o propósito da apropriação que o teatro fez do seu conceito.
Assim, a colaboração, segundo Brna
50
(2006) e Boavida
51
(2005), “envolve o empenho
mútuo dos participantes em um esforço coordenado para a solução conjunta do problema”
(Brna, 2006: p. 02) o que nos ajuda a compreender que a obra teatral é de autoria de todos
os envolvidos e que cada um, em suas funções específicas (atuação, dramaturgia, cenografia
etc.) irá contribuir para o todo, ao mesmo tempo em que dialoga, influencia e é influenciado
pelas outras partes do processo. O compartilhamento para a resolução do problema tem a ver
com o caráter múltiplo acionado pelo processo colaborativo, que ao quebrar com as
hierarquias, exige a existência de responsáveis por cada área, uma vez que haverá uma
conjugação entre seus diversos representantes para a resultante final.
Ao longo da história do teatro houve ênfase ora em um, ora noutro campo de criação e,
dessa maneira, Roubine
52
(1998) aponta que, no século XVII, a ideologia dominante
sacralizou o texto teatral e a partir desse momento todos os outros componentes da encenação
passaram a estar subordinados ao texto. A sacralização do texto naquele momento trouxe
conseqüências aos outros elementos da encenação, tanto que, cada vez mais, os autores
colocavam diversas indicações no texto para que, por exemplo, o cenógrafo materializasse o
espaço exigido pelo texto e tivesse, portanto, pouca ou quase nenhuma criação a ser realizada.
50
BRNA, Paul. Modelos de colaboração. Trad. Álvaro de Azevedo Diaz. Disponível em:
<http://www.inf.ufsc.br/sbc-ie/revista/nr3/Brna03.htm> acessado em 12/08/06.
51
BOAVIDA, Ana Maria Roque. A argumentação em Matemática: investigando o trabalho de duas professoras
em contexto de colaboração. 2005. Doutorado (Tese). Universidade de Lisboa, Portugal.
52
ROUBINE, Jean- Jacques. A linguagem da encenação teatral: 1880-1980. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
57
As relações nesse tipo de teatro (dito convencional em que existe uma hierarquia
determinada) já estão tão prontas, que romper com regras instituídas não é tarefa fácil, mesmo
quando todos estão dispostos a fazê-lo. A descoberta, no processo colaborativo, de outras
possibilidades de relacionamento entre os criadores é alvo de grandes crises dentro dos
coletivos, dada a necessidade de transformação do agir-pensar sobre a ação teatral. Esse novo
posicionamento do artista frente à criação em conjunto, requer, necessariamente, uma dose de
partilha.
A colaboração, segundo Wagner
53
(1997), representa uma forma particular de
cooperação que envolve trabalho conjuntamente realizado de modo a que os autores
envolvidos aprofundem mutuamente seu conhecimento. Day
54
(1999) diz que, enquanto na
cooperação as relações de poder e os papéis dos participantes no trabalho cooperativo não são
questionados, a colaboração envolve negociação cuidadosa, tomada conjunta de decisões,
comunicação efetiva e aprendizagem mútua em um empreendimento que se foca na promoção
do diálogo profissional.
Day (1999), analisa os significados de laborare (trabalhar) e operare (operar) que,
ligados ao prefixo co (ação em conjunto), constituem as palavras colaborar e cooperar.
Segundo o autor, operar (operare) é realizar uma operação, produzir determinado efeito ou
mesmo funcionar ou fazer funcionar algo de acordo com um plano. trabalhar (laborare) é
desenvolver atividade para alcançar determinados fins, sendo preciso pensar, preparar,
refletir, formar e empenhar-se. E finaliza dizendo que a realização de um trabalho em
conjunto a colaboração requer uma maior dose de partilha e interação do que a simples
realização conjunta de diversas operações – a cooperação.
Ainda sobre cooperação e colaboração vale ressaltar que o trabalho cooperativo é
realizado através da divisão do trabalho entre os participantes, como uma atividade que cada
pessoa é responsável por uma porção da solução do problema – o que deixa explícito no teatro
que cada função cuida do seu trabalho e cabe ao encenador a organização das partes de forma
a torná-las complementares, na tentativa de deixá-la orgânica, como uma obra única.
Sendo assim, entende-se que o uso do termo processo colaborativo é o mais adequado
para nomear esse tipo de prática que vem sendo estudado, pois implica em, necessariamente,
partilhar de uma concepção e aprofundar o conhecimento de cada envolvido. Nesses termos, o
53
WAGNER, J. (1997). The unavoidable intervention of educational research: A framework for reconsidering
researcher-practitioner cooperation. Educational Researcher, 26(7), 13-22.
54
DAY, C. Developing teachers: The challenges of lifelong learning. London: Falmer, 1999.
58
processo colaborativo prima por essas relações ao colocar todos os seus integrantes em um
patamar horizontal, que irá proporcionar que cada sujeito, a partir de seu lugar de
conhecimento específico, construa um saber compartilhado, em constante diálogo com os
demais envolvidos, resultando numa obra que é a síntese desses procedimentos.
Nesse aspecto, temos percebido que diversos grupos mineiros têm procurado realizar
suas criações a partir do processo colaborativo, por este permitir e reforçar as dinâmicas de
inter-relação no coletivo.
Mesmo o Grupo Galpão formado no início dos anos 80, em Belo Horizonte, quando os
coletivos tornaram-se um modelo efetivo para renovar os modos de produção e criação em
teatro na cidade, em consonância com o mesmo movimento que se dava nacionalmente,
realizou uma experimentação através do processo colaborativo, em parceria com Luís Alberto
de Abreu. Desde seu surgimento enquanto coletivo teatral, o Galpão esteve afinado com os
diversos movimentos nacionais que reuniram os grupos teatrais brasileiros, e com os modelos
partilhados também por outras experiências internacionais, e tem expandido suas atividades
no campo do compartilhamento, da pesquisa e da criação teatral, resultando na década de
1990, na criação de seu centro cultural, o Galpão Cine Horto, onde se desenvolve uma série
de projetos pedagógicos que se pautam pelas questões que orientam a formação e a criação
em grupo.
É nesse intuito que trazemos à nossa discussão o Centro Cultural do Grupo Galpão: o
Galpão Cine Horto. Foco dos próximos capítulos por abrigar variados projetos que investem
no teatro de grupo enquanto eixo centralizador das investigações do fenômeno teatral e,
particularmente em dois projetos que envolveram (e envolvem) a busca pela horizontalidade
criativa contida no processo colaborativo.
59
CAPÍTULO 2
O processo colaborativo na formação
para o teatro de grupo:
O homem que não dava seta
60
Tem projeto pra frente,
memória pra trás...
Bárbara Campos
O Oficinão foi um presente.
Gustavo Bones
Nove meses juntos, agora, despedida dói muito.
Não sei se estou feliz ou triste de finalizar.
Priscila Borges
O processo em si é o que mais me marcou, vou lembrar para o resto da minha vida.
O convívio, a formação, o trabalho na sala.
Dudu Nicácio
O processo foi muito valioso, a relação estabelecida com teatro,
com criação, com o outro, isso que está por trás é mais importante.
Atualmente saio mais inteiro do que entrei.
Chico Pelúcio
61
CAPÍTULO 2: O processo colaborativo na formação para o teatro de grupo: O homem
que não dava seta
2.1 – Galpão Cine Horto: a preocupação com a criação em grupo
O Galpão Cine Horto foi fundado em 1997 e surgiu no lugar de um velho cinema
abandonado, como um local perfeito para a busca de respostas a algumas das questões que se
apresentavam aos atores do Grupo Galpão (1982). Como Centro Cultural do Grupo Galpão, o
Galpão Cine Horto está voltado para a pesquisa, a formação e o estímulo à criação em artes
cênicas e tem sido um importante mecanismo de intervenção teatral para a cidade de Belo
Horizonte, além de ampliar seus horizontes com diversos projetos envolvendo artistas,
comunidade e grandes empresários. Como diz Chico Pelúcio, ator do Galpão e diretor do
Cine-Horto, sobre a criação do espaço: “decidimos que o perfil (...) seria especificamente
ligado ao teatro e a todo o seu universo, permitindo um intercâmbio estreito com o próprio
Grupo Galpão. E mais, no primeiro momento, o ator seria o foco principal dos projetos
(Pelúcio
55
, 2006: p. 13). A preocupação com o trabalho do ator foi devida à carência de
oportunidades de reciclagem, uma vez que os festivais de teatro e o Movimento de Teatro de
Grupo
56
, propícios a essa troca, não tinham necessariamente esse foco.
Dessa forma, as influências da Escola Livre de Teatro de Santo André (São Paulo),
apresentada ao Grupo pela diretora Maria Thaís (1997), e do Centro de Construção e
Demolição Teatral (RJ), coordenado por Aderbal Freire Filho, foram primordiais para a
consolidação do Galpão Cine Horto. Daí advém a investigação sobre as múltiplas esferas da
criação teatral, da atuação à encenação, pensadas como atividades concernentes aos coletivos
de criadores, ou aos grupos teatrais. Da Escola Livre, o Cine Horto incorporou a importância
55
PELÚCIO, Chico. Galpão Cine Horto Oficinão: Origem. In: Revista Subtexto Revista de Teatro do
Galpão Cine Horto. Ano III, novembro de 2006. Número 03: Formação para o Teatro de Grupo.
56
Cida Falabella (2006) em sua dissertação de mestrado nos fala sobre a criação do Movimento de Teatro de
Grupo de Minas Gerais que em janeiro de 1992 publica seu primeiro manifesto Em busca do tempo perdido
expondo suas principais diretrizes norteadoras do trabalho daquela organização. Sobre a reflexão apontada pelo
Movimento, Falabella aponta que “os grupos eram (e ainda o são) depositários de um conhecimento que ficava
restrito aos seus integrantes. O lançamento da revista Ensaio Aberto (que nunca teve uma periodicidade
definida) pretendia cobrir esta lacuna, publicando textos, artigos e entrevistas sobre o teatro e colaborando para a
circulação de informação, além de valorizar o trabalho de pesquisa dos grupos.” (2006: p. 22). FALABELLA,
Cida. De Sonho & Drama a ZAP 18: a construção de uma identidade. 2006. Dissertação (Mestrado). Escola de
Belas Artes – UFMG. Belo Horizonte.
62
de “(...) ligar a formação com a criação, da perspectiva do professor criador, do ator
proponente e do espaço vivo, mutável, que busca, a cada dia, um caminho reinventado”
(Pelúcio
57
, 2004: p.4). Do Centro de Demolição “ficou a lição de ver diversos artistas,
coletivamente como num formigueiro, construindo e ampliando o significado do teatro”
(idem).
Dentre os projetos que o Cine Horto abriga, interessa, nesse momento,
especificamente, o primeiro deles: o Oficinão. O Oficinão contou, desde cedo, com
profissionais relevantes para o cenário belorizontino e em sua segunda edição trabalhou
com o processo colaborativo. Em relação ao Oficinão, um dos inúmeros projetos da casa,
Chico Pelúcio (2006) lembra que foi constatado no cenário belorizontino uma falta de
oportunidade para o aprimoramento e reciclagem do ator em projetos que “possibilitassem a
pesquisa, o compartilhamento de experiências e o aprofundamento dos processos criativos”
(Pelúcio, 2006: p.14). Existiam na capital mineira três cursos técnicos de formação de ator
(TU – Teatro Universitário da UFMG; CEFAR – Centro de Formação Artística do Palácio das
Artes; NET Núcleo de Estudos Teatrais) e a graduação em artes cênicas (bacharelado em
interpretação teatral) surgiu no ano de 1999 na Universidade Federal de Minas Gerais.
Seguindo à profissionalização, proporcionada pelas escolas já existentes, reconhecia-se a
necessidade de proporcionar aos atores um espaço para aprofundar o exercício da criação
em grupo, a experiência de coletivamente conceber, gerir, realizar e manter um projeto
artístico, o que era oferecido pelo Oficinão sob a forma de um ano de
formação/investigação/criação, resultando em um espetáculo (e muitas vezes na formação de
um novo grupo de teatro).
2.2 – O Oficinão: espaço de formação, criação e investigação coletiva
O Oficinão é uma atividade em que o Grupo Galpão e profissionais convidados
compartilham suas experiências com atores/alunos, unindo pesquisa e treinamento à
criação artística. A cada ano, o Oficinão se propõe a pesquisar um tema específico,
resultando na montagem de um espetáculo que fica em cartaz no Galpão Cine Horto.
(...) Desde 1998, foram realizadas oito montagens, sendo que em cinco delas os
textos foram criados com base no Processo Colaborativo e finalizados pelos
participantes da Oficina de Dramaturgia, sob a coordenação de Luís Alberto de
57
PELÚCIO, Chico. Galpão Cine Horto: espaço de criação e incentivo ao trabalho em grupo. Subtexto, Belo
Horizonte, v.1, n.1, p.3-5, dez. 2004.
63
Abreu. (...) Muitos alunos que passaram pelo projeto formaram grupos e,
atualmente, atuam no mercado mineiro e em outras praças.
http://www.galpaocinehorto.com.br/projeto acessado em 28/10/06.
O Oficinão foi pensado para ser a espinha dorsal do Cine Horto, “a partir da qual
seriam buscadas outras formas de ampliar a experiência rumo à profissionalização dos
envolvidos”. (Pelúcio, 2004: p.4). Por trás dessa proposta, o trabalho em grupo, sempre
frisado pelos integrantes do Grupo Galpão, poderia proporcionar ao ator a possibilidade de
investigação do seu trabalho, tendo em vista o coletivo criador e a consolidação/construção de
um compromisso ético com o fazer teatral.
O primeiro trabalho do Oficinão foi Noite de Reis (de William Shakespeare)
transposto para a região do Rio São Francisco e estreou em 1998 com direção de Chico
Pelúcio. Em 1999, Caixa Postal 1500 tem como diretor Júlio Maciel e texto do recém-criado
Núcleo de Dramaturgia, sob orientação de Luís Alberto de Abreu. Eduardo Moreira é o
terceiro membro do Galpão a dirigir o Oficinão de 2000, Por toda a minha vida. Júlio Maciel
novamente dirigiu o Oficinão de 2001 no espetáculo Cães de Palha, o de 2002, O homem que
não dava seta, e o de 2003, A vida é Sonho. Em 2004, Chico Pelúcio, Lydia Del Picchia e
Júlio Maciel dividem a direção de In Memoriam. Estado de Sítio foi o espetáculo que
inaugurou a presença de um diretor convidado, fora do Grupo Galpão, Marcelo Bones. A
partir de então, Rodrigo Campos e Fernando Mencarelli assumem a direção de Quando o
peixe salta, de 2006, e Francisco Medeiros dirige o Oficinão de 2007, numa edição
comemorativa, contando também com a participação de Luís Alberto de Abreu na
dramaturgia e Tiche Vianna na direção dos atores.
Percebe-se que o Oficinão tem servido como lugar de experimentação para os
integrantes do Grupo Galpão, ao possibilitar que estes se engajem também na direção dos
espetáculos, visto que todos são atores.
Foi no Oficinão de 1999 que se deu a primeira experiência de criação colaborativa no
Galpão Cine Horto, trazida pelo dramaturgo e estudioso Luís Alberto de Abreu que,
conseqüentemente, criou o Núcleo de Dramaturgia para trabalhar diretamente com o Oficinão.
A partir daí, o Cine Horto cumpria mais uma de suas metas: fomentar a criação teatral nos
seus variados âmbitos – atuação, direção e dramaturgia.
64
2.2.1 – O início do processo colaborativo no Oficinão: Caixa Postal 1500
A Júlio Maciel
58
, integrante do Grupo Galpão, que ia dirigir o Oficinão no ano de
1999, foi indicado a procurar Luís Alberto de Abreu por não ter nenhum texto em mãos que
abarcasse o interesse pelo tema da comemoração dos 500 anos do Brasil. O dramaturgo,
aceitando o convite, sugeriu de imediato o agrupamento de um Núcleo de Dramaturgia no
Galpão Cine Horto, não apenas pela impossibilidade de estar constantemente em Belo
Horizonte, por residir em São Paulo, mas, principalmente, por promover uma formação de
dramaturgos na cidade, dada a carência desses profissionais na época. Assim, o Oficinão
serviu de base para outros projetos que contaram também com o Núcleo de Dramaturgia.
Esse agrupamento propiciou uma formação de novos dramaturgos na cidade de Belo
Horizonte que, dessa forma, exercitavam-se na criação voltada para o Oficinão, construindo
coletivamente a dramaturgia para os espetáculos. Nota-se que a produção dramatúrgica na
cidade era pequena se comparada ao número de grupos, atores e diretores e, basicamente, se
dava de forma individual, com os dramaturgos desenvolvendo seu trabalho em gabinete.
Juntamente com o Núcleo de Dramaturgia, Luís Alberto de Abreu traz a idéia do
processo colaborativo que pesquisava junto à Escola Livre de Santo André e ao Teatro da
Vertigem. Por conseguinte, o processo colaborativo começa a ser praticado a partir de sua
inserção, ou seja, no Oficinão do ano de 1999 – Caixa Postal 1500.
Pelo fato do referido dramaturgo residir na cidade de São Paulo, elegeu uma integrante
do Núcleo de Dramaturgia – Beth Penido
59
– para ser a coordenadora do núcleo nesse
primeiro trabalho. Penido era a responsável em fazer a ponte com o dramaturgo, pois ele
vinha em alguns momentos do trabalho.
O Núcleo de Dramaturgia era composto por pessoas de diversificadas áreas, tais como:
jornalistas, professores, artistas plásticos etc., sendo que poucos tinham experiência no campo
da dramaturgia. Foi a partir de um workshop ministrado por Abreu que o grupo de
dramaturgos começou o processo junto ao Oficinão. Eram nove dramaturgos para construir
um espetáculo com os 23 atores, dirigidos por Júlio Maciel: “Era uma experiência nova pra
58
Em entrevista para o autor deste trabalho no dia 14/03/2006.
59
Beth Penido, atriz, assistente de direção de Júlio Maciel, não era integrante do Galpão. Formada em Letras,
assumiu a coordenação de dramaturgia e, ao final, acabou entrando em cena no papel de “Narradora”.
65
todos!” afirma Júlio Maciel
60
. Maciel ainda disse que ninguém “imaginava” o que era o
processo colaborativo e que todos estavam no mesmo patamar: dramaturgos, atores e diretor.
Como experiência inovadora para a equipe, Abreu dava a assessoria e esclarecia
eventuais dúvidas, mas não participava do cotidiano dos ensaios e, por conseguinte, os
sujeitos que ali estavam precisavam fazer usos e apropriações durante o desenvolvimento do
trabalho, aprendendo a lidar com todas as demandas que o percurso apontava dia após dia.
Abreu, em entrevista para Nicolete (2002), revelou um fato curioso nesse Núcleo. Pelo
fato de existirem vários dramaturgos “inexperientes e sem vícios da profissão”, começaram a
construir cenas a partir do material do outro, ou seja, um dramaturgo desenvolvia determinada
cena até o ponto em que “dava conta”, depois passava para outro dramaturgo dar
continuidade: "Gente, essa cena aqui eu escrevi, mas daqui para frente eu não consigo mais
avançar. Quem quer pegar essa cena?" (Abreu apud Nicolete, 2002: p.106). E, dessa forma,
um dramaturgo trabalhava em cima da criação do outro, interferindo, dialogando e recriando a
proposição inicial. Essa criação sobre a criação era possível dada a afinidade dos membros
desse agrupamento, o que não se encontra com muita frequência. Essa experiência coletiva
dentro do núcleo favoreceu o crescimento e o aprimoramento da função dramatúrgica.
Como diretor, Júlio trabalhou muito a partir de improvisações e, desde o teste com os
atores, escolheu trabalhar com a idéia do descobrimento do Brasil. Nota-se, de antemão, que
para esse trabalho o tema estava dado pela direção e pelo Núcleo de Dramaturgia, portanto,
os atores que iriam se engajar no projeto deveriam contribuir para a sua efetivação. Querer
falar sobre esse tema era importante na escolha dos atores, pois iriam discutir a questão
durante todo o processo.
Quando pensamos que uma das características do processo colaborativo é a de
proporcionar a criação de um projeto coletivo, constatamos que neste Oficinão a descoberta
da horizontalidade foi imprescindível. As pessoas envolvidas nesse coletivo tinham grande
interesse pela investigação horizontal na criação do espetáculo e fazia sentido optar pelo
processo colaborativo por esse motivo, senão, poderiam muito bem optar por outros processos
de criação, em que o texto se encontra pré-concebido e as resoluções cênicas podem ser
trabalhadas desde o primeiro momento.
60
Em entrevista para o autor deste trabalho no dia 14/03/2006.
66
No coletivo as funções se retroalimentam
Em relação à elaboração das personagens, Maciel afirma que algumas surgiram
através das improvisações realizadas durante o processo dos ensaios, trazidas pelos atores,
seja nas observações que faziam pelas ruas da cidade, seja das figuras que liam em outros
textos dramáticos etc. Outras vezes, as personagens surgiam de roteiros trazidos pelo Núcleo
de Dramaturgia, uma forma de encaminharem suas resoluções para a cena. Também a
direção contribuiu com a criação de personagens. Assim, todos estavam buscando contribuir
com o espetáculo de forma geral, sem ter o medo de avançar na função do outro. Acontece
que cada um interferia no trabalho a partir de seu lugar específico, então:
Aí a gente começou a entender o processo colaborativo, que não tem uma hierarquia
e ao mesmo tempo todos estão envolvidos em tudo, mas cientes de qual é o seu
lugar na criação. Os atores escreviam, os dramaturgos davam muito material para
improvisação, os dramaturgos trocavam material entre si. Eles iam às reuniões de
dramaturgia e a Beth passava a cena para outro dramaturgo trabalhá-la. A criação
passava por todos. E ficava para a cena o que era interessante. (Maciel
61
, 2006).
Em consonância com a abordagem apresentada acima, Márcio Marciano
62
, da Cia. do
Latão (SP), que também trabalha com o processo colaborativo, em depoimento durante um
seminário sobre o trabalho do ator disse:
Desde o princípio ficou claro que o rendimento do ator era muito maior quando ele
era não ator, mas dramaturgo, diretor dos seus próprios improvisos, quando ele
começava a pensar de modo integrado. Nesse sentido que a dramaturgia precisa ser
também da responsabilidade dos atores, mesmo que eles não vão dar o acabamento
final da palavra literária, o processo gerativo deve ser de conhecimento imaginário
deles também. É um princípio de mobilidade de dramaturgia.
Mas nem sempre os atores entendiam os encaminhamentos dados pela dramaturgia às
personagens encontradas e vários questionamentos surgiam. Ana Régis, que foi uma das
atrizes de Caixa Postal 1500 e, posteriormente, integrou o Núcleo de Dramaturgia do
Oficinão Cães de Palha (2001), após ter acumulado experiência nessas duas áreas de criação
nos diz que:
61
Em entrevista para o autor deste trabalho no dia 14/03/2006.
62
Depoimento de Márcio Marciano. Seminário “A Presença do Ator”. Porto Alegre, 2002.
67
Hoje, três anos depois, penso que a maioria dos atritos que partiram dos atores era
em função de uma ignorância em relação à dramaturgia, às técnicas dramatúrgicas,
que quando eram esclarecidas, geralmente, resolvia-se o problema em questão.
(Régis apud Nicolete, 2005: p.63).
Ao entrevistar Júlio Maciel (2006), pude investigar se ele, como diretor do Oficinão, e
posteriormente, como ator dirigido por Paulo José em Um homem é um homem, de Bertolt
Brecht, espetáculo do Grupo Galpão, pôde contribuir de forma consciente com as outras
funções no novo trabalho, mesmo esse não se apresentando como colaborativo. Em resposta,
disse que os dois processos são difíceis e que as dificuldades aparecem em momentos
diferentes, mas que após conhecer as demais funções teatrais, conseguia agir de forma a
contribuir com as demais áreas de forma consciente, sendo que:
No processo colaborativo o ator se apropria do texto mais rápido, pois acaba criando
junto o texto. No Caixa Postal 1500 a gente só tinha a idéia inicial, no final criamos
tudo, do nada. Nasce muito orgânico do ator. Mas não tem texto para a gente
agarrar. No outro processo você coloca o personagem no ator, adapta aquilo a você.
Tem outra dificuldade: quem passa pelo processo colaborativo experimenta sair da
sua função e não fica fechado naquilo. No processo colaborativo você acaba por
mexer em tudo, tem uma visão completa do trabalho teatral. O teatro como um todo.
(Maciel, 2006).
Maciel acabou desenvolvendo também a dramaturgia de um espetáculo no Galpão
Cine Horto, Papo de Anjo
63
. E afirma que se atreveu a trabalhar com dramaturgia após ter
passado pelo processo colaborativo, pois pôde compreender mais as outras funções e
estabelecer um diálogo maior.
Esse processo amplia a visão e as possibilidades. Você é responsável por todo
aquele trabalho, pela criação de tudo. O processo colaborativo uma abertura para
o profissional, uma visão mais global. Você tem uma visão de como aquilo
funciona, você vê com outros olhos as funções. Eu passei pelas três áreas e você vê a
dificuldade nas três. (Maciel, 2006).
Assim, ter experiência e saber em que consiste o trabalho dos outros núcleos criadores
pode favorecer o diálogo e o aprofundamento das relações, pensando também na própria
63
Papo de Anjo faz parte do projeto Cine Horto Na Rua e foi criado para colocar em prática um antigo
desejo do Grupo Galpão de conceber alguns espetáculos para serem apresentados na rua, como forma de resgatar
as suas origens. Tendo como base a idéia de que atuar na rua é uma vivência das mais ricas para o ator, esse
projeto busca aproximar o teatro de suas funções primordiais na sociedade, além de ampliar as perspectivas dos
atores/alunos do Galpão Cine Horto interessados em novas imersões artísticas.
68
eleição do material que o grupo tem que realizar, pois, com o avançar das experimentações
cênicas, é chegada a hora da criação romper a esfera particular e tornar-se pública,
transferindo o próximo passo à criação do espectador
64
.
A eleição do material
No Caixa Postal 1500, diz Maciel, “o espetáculo deveria ter uma hora e meia, e a
gente tinha umas 4 horas de cena, de material trabalhado” (Júlio Maciel 2006). O material
levantado pelo grupo era extenso e teve que ser selecionado, optando por desenvolver
determinadas cenas em vez de outras, descartar propostas, revisitar criações etc. Mas como
fazer essa seleção? Sobre esse aspecto, Nicolete (2005) diz que naturalmente acontece uma
pré-seleção ao longo do trabalho “na medida em que se investe em determinadas soluções em
detrimento de outras” (2005: p.47). E, dessa forma, cada grupo busca dar a todo material
investigado um viés adequado à forma pretendida, independente de quem elaborou
determinada solução para a cena. Essas escolhas precisam ser mediadas pelo que o grupo
pretende investigar e nesse momento a individualidade da criação não deve ter força, pois no
processo colaborativo “as discussões seguidas de um consenso substituem a simples vitória da
maioria”, diz Nicolete, e continua: “Pode-se dizer que no processo colaborativo o jogo de
forças é muito maior, pois não se trata de individualidades, mas de funções” (Nicolete, 2005:
p. 47).
A prática de cada núcleo (no Caixa Postal 1500) se diferenciava, pois os atores e
diretor trabalhavam sempre juntos, diariamente, enquanto os dramaturgos trabalhavam em
outro horário e periodicamente se encontravam para assistir o material produzido pelos atores,
juntamente com a direção. Dada a necessidade em realizar uma pesquisa histórica sobre a
descoberta do Brasil, convidaram também quatro professores da Universidade Federal de
Minas Gerais
65
para tratar de assuntos ligados ao tema do projeto: jesuítas, negros, índios,
degredados. Nesses encontros, todos os criadores faziam-se presentes, visto que cada núcleo
64
Conforme já apontado no Capítulo 1 dessa dissertação, Renato Cohen (2004) chama de quarta voz expressante
o espectador que conjugando sua criação à obra artística a faz crescer “interferindo, mediando e criando texto
numa série de manifestações.” (Cohen, 2004: p. XXVII). In COHEN, Renato. Work in progress na cena
contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo: Perspectiva, 2004.
65
São eles: Prof Carla Maria Junho Anastasia (Dep. de História/UFMG), Prof. Ciro Flávio Castro Bandeira Melo
(Dep. de História/UFMG), Prof. José Monroe Eisenberg Lage de Resende (Dep. Ciência Política/UFMG) e Prof.
Maria Efigênia Lage de Resende (Dep. de História/UFMG).
69
poderia apropriar-se de forma particular dos assuntos abordados e fazer usos diversos do
material apreendido.
Maciel afirmou que houve um momento-chave no final do primeiro semestre que deu
um impulso ao trabalho, exatamente quando propuseram um jogo de improvisação no qual os
atores permaneciam em círculo, enquanto os dramaturgos, na arquibancada, com uma lista de
personagens, falavam: “Quero tal figura encontrando com tal figura. Exemplo: Índio
encontrando com padres jesuítas. A partir desse dia começou a ficar mais claro o que a gente
queria” (Maciel, 2006).
A Atuação
Questionamentos entre os núcleos eram constantes, e Ana Régis (do núcleo da
atuação), em depoimento à Adélia Nicolete, afirmou que:
Tivemos vários encontros com a dramaturgia para mostrarmos as improvisações e
com o tempo começaram a chegar os textos. A resistência de nós, atores, foi grande.
Reclamávamos que na improvisação o texto tinha sido diferente, antes mesmo de
experimentar o texto na cena, achávamos que as alterações eram perdas. É claro que
muitas propostas da dramaturgia eram inegavelmente ótimas e eram assimiladas
imediatamente. Tivemos muitos atritos principalmente ao abordar a questão
indígena. Havia pontos de vista diferentes entre a dramaturgia e os atores que eram
do núcleo dos índios. Por fim, entramos em acordo, mas depois de muita conversa.
(Régis apud Nicolete, 2005: p. 63).
Os acordos estabelecidos entre os integrantes do coletivo não eram simplesmente
“acordo de cavalheiros”, quando alguém precisa ceder para não magoar ou atritar mais a
relação. A defesa da criação dava-se de forma impetuosa e precisava, às vezes, ser acalmada
por outro núcleo. Ninguém saía perdedor ou vencedor daquelas discussões, pois o grupo
levava para a cena as proposições e, dessa concretude, todos encaminhavam seus
posicionamentos, buscando sempre o que era melhor para o trabalho: “Ao final do trabalho
saímos mais fortalecidos e tínhamos aprendido que num grupo todos esses contratempos
potencializam a criação” (Maciel, 2006).
Transpassado por diversos momentos caóticos, Maciel (2006) afirma que o núcleo de
atuação sempre entrava em crise, visto que estavam acostumados a receber, em outros tipos
70
de processo, desde o início do trabalho, o texto para que pudessem criar suas personagens,
decorá-lo etc. Ao contrário dessa postura, Araújo (2002: p.84) afirma:
Em vez de um ator que simplesmente executasse indicações dramatúrgicas ou
cênicas, buscávamos um ator com proposições e opinativo. Para tanto, além de um
viés crítico, o ator se valeria de sua história pessoal para a realização de cenas e
workshops que, por sua vez, colaborariam na construção do próprio espetáculo.
Clóvis Santos e Gisele Silva
66
(2006) refletiram sobre a dramaturgia da cena tendo
como foco o corpo do ator. Nesse trabalho puderam acompanhar um grupo de alunos-
pesquisadores (estudantes de artes cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto) que
realizaram o espetáculo
67
Vozes de Engoma, a partir do processo colaborativo. A monografia
resultante investigou o conceito de atuação dentro do processo colaborativo, revisando a
formação do ator e apontou que:
dentro de um grupo que além de inexperiente (em relação ao uso de seu instrumental
técnico) não tem como prática de criação o processo colaborativo, não garante a
instauração de um ator dramaturgo. A pesquisa aponta, então, para a necessidade de
se rever a formação desse ator, que em geral, é preparado para uma atuação
interpretativa. (Santos & Silva, 2006: p.02).
O ator e a dramaturgia: a experiência do Teatro da Vertigem
mais experientes, os atores do Teatro da Vertigem organizaram, ao longo dos seus
quatro trabalhos, alguns pontos-chave para a criação do ator. A atriz Miriam Rinaldi, em
artigo escrito para a Revista Sala Preta, traz um estudo sobre o trabalho do ator no Teatro da
Vertigem e apresenta quatro estratégias de criação utilizadas durante o processo de construção
dos espetáculos: (1) vivência, (2) improvisação, (3) workshop e (4) visitas.
Na (1) vivência o ator imagina a partir de determinado tema (dado pelo diretor e/ou
dramaturgo) e busca interagir com as imagens produzidas em sua mente, com o objetivo de
66
SANTOS, Clóvis Domingos dos & SILVA, Gisele Inácio da. Dramaturgia da cena: a escrita no corpo do ator.
2006. Monografia (Iniciação Científica). Departamento de Artes / Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro
Preto.
67
O grupo Vozes de Engoma foi criado para a realização do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na
graduação em Artes Cênicas (bacharelado em Direção Teatral) e pesquisou a inserção do imaginário africano na
formação da cultura brasileira.
71
“provocar a sensibilidade, trazendo à tona fantasias, lembranças e desejos sobre o tema”
(Rinaldi
68
, 2002: p. 52). Essa vivência é um aquecimento para as fases seguintes e, praticada
individualmente, serve também para trazer o ator para um trabalho sobre si, conforme relato
de Luciana Schwinden, também atriz do Teatro da Vertigem:
Chego à sala de ensaio. Deixo meus objetos pessoais. Fecho os olhos. Aos poucos,
tento livrar-me das imagens cotidianas. Me preparo para um grande mergulho
interno. A vivência é um importante estado de concentração. Sou conduzida por uma
voz que me alimenta de estímulos. Embarco sem rédeas para um lugar
desconhecido. A imaginação, assim como o corpo e a voz do ator, precisa ser
treinada; precisa estar aquecida e viva. (apud Rinaldi, 2002: p. 53)
Aventurar-se pela imaginação sem limites e sem medo de até aonde chegar é outro
ponto essencial para o trabalho dos atores. Precisam se “livrar” das amarras e alcançar novas
descobertas para além do seu repertório atoral. Aqui entra a (2) improvisação, tão difundida
entre os atores a partir de Viola Spolin
69
(2003). Utilizam como material para as
improvisações diversos elementos, tais como: fotos, imagens, matérias de jornal, perguntas,
palavras etc. Realizada individual ou coletivamente, tem duração variada, de acordo com o
desenrolar do tema.
O (3) workshop despende mais tempo, se comparado à improvisação, pois “sua
preparação representa a resposta cênica de uma pergunta lançada” (Rinaldi, 2002: p. 53) e,
apresentado sempre por um ator, pode contar com demais participantes para executarem a
concepção do proponente, que varia também na forma: textual, corporal, instalação etc.
Rinaldi traz, em outro texto escrito sobre O ator no processo colaborativo do Teatro da
Vertigem (2006b), a definição de workshop a partir de Richard Schechner: “É uma fase ativa
de pesquisa no processo de criação da performance, em que o artista tem liberdade de
explorar diversas possibilidades em ensaios. É o espaço da experimentação por excelência,
em que se chega à produção de protótipos” (Schechner apud Rinaldi
70
, 2006b: p. 136).
Dentro do desenvolvimento dos workshops, existem algumas regras definidas pelos
membros do Vertigem, que são: (1) o compromisso de elaborar uma cena, mesmo que
68
RINALDI, Miriam. O que fazemos na sala de ensaio. In: Trilogia Bíblica (Teatro da Vertigem). Apresentação
de Arthur Nestrovski. São Paulo: Publifolha, 2002. (p. 45 – 54).
69
SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. 4ªed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
70
RINALDI, Miriam. O ator no processo colaborativo do Teatro da Vertigem. In: Sala Preta. ECA/USP, 6,
2006b (p. 135 – 143).
72
incipiente em sua forma inicial; (2) uso de metáforas, evitando o didatismo sobre o tema,
procurando a tradução artística para a idéia.
O Teatro da Vertigem valoriza a experiência pessoal de cada sujeito, incentivando o
uso da memória (corporal) e da liberdade na criação.
Dividida em duas etapas, as (4) visitas se dão na aproximação temática e na
construção das personagens. Na primeira, são escolhidos lugares que têm alguma analogia
com o tema para o ator, que após essa visita irá elaborar uma cena contendo aspectos que,
para ele, traduzem aquela atmosfera. Essa tradução pode ser baseada em pessoas observadas,
situações vivenciadas naquele lugar, algum clima percebido pelo ator etc. Na segunda etapa, a
visita pretende contribuir diretamente para a construção da personagem, já esboçada nos
ensaios do grupo, e começa a ser lapidada. Nesse momento:
cada ator tem uma lista de lugares vinculados às características de cada papel, para
investigar vestimenta, objetos pessoais, tempo interno e externo, linguagem verbal e
gestual ou qualquer outro aspecto que o ajude na construção e preenchimento das
personagens. (Rinaldi, 2002: p. 54)
A transposição do aprendizado conquistado no espaço da rua para o espaço da sala de
ensaio, apesar das delimitações que lhes são próprias, não se constituem isoladamente, mas
também por meio de passagem (público x privado, rua x sala etc.) do conhecimento adquirido
em cada espaço – que dialogam constantemente.
Os atores do Teatro da Vertigem mantêm, ainda, um trabalho denominado de
depoimento pessoal, que consiste numa “qualidade de presença cênica, de expressão de uma
visão particular ou de um posicionamento frente à determinada questão. O depoimento é uma
qualidade de exposição de si próprio” (Rinaldi, 2006b: p. 139). Esse procedimento foi
adotado pelo grupo na tentativa do ator mostrar sua visão pessoal e se posicionar frente ao
assunto tratado, de forma criativa e, para Araújo (2002: p. 84):
O depoimento pessoal não funciona apenas como um instrumento de pesquisa no
caso, temática mas também como o próprio material bruto de concretização da
cena. Além de se constituir em um exercício interpretativo de caráter investigatório,
ele também conclama o ator a assumir um papel de autor e criador da cena, que é
construída a partir do material que ele mesmo traz para os ensaios.
73
Quando o Teatro da Vertigem se apresentou em Belo Horizonte, no Festival
Internacional de Teatro, Palco & Rua, precisou de longo tempo para investigar o novo espaço
de representação. Miriam Rinaldi, em entrevista a Rogério Oliveira
71
(2005), falou sobre as
expectativas da atuação quanto ao espaço:
O que acontece, é que existe uma fricção entre aquilo que você tem no seu
imaginário, em relação ao espaço, em sua fantasia e o espaço real. Sempre acaba
tendo uma certa tensão, entre aquilo que imaginamos sobre os espaços, a respeito
dos espaços, e aquilo que os espaços realmente são. Eu acho que é um elemento de
composição, quando entramos no espaço, o trabalho cresce enormemente para os
atores. Não só na construção da personagem, mas na trajetória da personagem.
Então tem alguns elementos que só surgem no espaço. (Rinaldi apud Oliveira, 2005:
p. 101).
Mais adiante, Vanderlei Bernardino, também ator do grupo, ressalta que a carga
sinestésica do espaço trouxe fortes influências sobre a representação:
O que interfere muito na interpretação é a carga do espaço, vem muito a acrescentar
na interpretação. Essa força que o espaço retém, essas histórias aqui, da igreja,
daqui do hospital. Ele um plus a mais para a sua interpretação, ou seja, que esse
espaço tenha um dado a mais, nesse sentido eu acho que ajuda, eu acho que trás
uma força, uma coisa que está impregnada, isso não tem como não trazer para o
seu desempenho, ou até para sua energia como pessoa, do ator (Bernardino apud
Oliveira, 2005: p. 103).
Assim, nota-se que a criação do ator no processo colaborativo passa por uma constante
“re-visão” de sua função dentro da elaboração do espetáculo e para isso precisa dialogar com
todos os elementos que irão tecer o discurso cênico. Para tanto, não é possível que fique
imerso apenas na construção da sua personagem, mas que a partir de sua função emane
ruídos
72
aos demais criadores da obra. Portanto, a aparição/provocação de ruídos obriga o
processo e, conseqüentemente, seus criadores, a se reorganizarem, pois origina novos
elementos, inesperados, perturbando as ordens estabelecidas, as soluções encontradas.
71
OLIVEIRA, Rogério Santos de. O Espaço Tempo da Vertigem: Grupo Teatro da Vertigem. 2005. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Teatro, Centro de Letras e Artes / Unirio, Rio de Janeiro.
72
Segundo Rubens Rewald (1998: p. 97) os ruídos são: “Flutuações aleatórias sem um padrão definido. As
causas da ocorrência do ruído nada têm a ver com o encadeamento dos fenômenos que constitui a história
anterior do sistema até então. Sua ocorrência é imprevisível, não fazendo parte do programa do sistema. O efeito
de sua perturbação pode dar uma nova significação ao sistema.” In: REWALD, Rubens Arnaldo. Caos /
Dramaturgia. 1998. Dissertação (Mestrado). Escola de Comunicação e Artes/USP, São Paulo.
74
A autoria no processo colaborativo
Todas as flutuações presentes no trabalho Caixa Postal 1500 serviram para o
fortalecimento da equipe, afirma Maciel (2006), visto que todos encaravam o trabalho como
seu, diferente de quando, por exemplo, os atores transferem ao diretor o lugar da
responsabilidade, do pretendido êxito e, portanto, da autoria.
A autoria no processo colaborativo é pensada a partir do conceito de autor (criador da
obra artística, literária ou científica) e que todos são os criadores no processo colaborativo,
nada mais comum do que todos também serem os autores. Mas nem sempre foi pensada dessa
forma a questão da autoria, pois durante um longo período da história do teatro o termo autor
foi usado para designar o dramaturgo ligado diretamente à literatura dramática. O texto
teatral era tido como um precedente para a encenação, contudo, com o advento do encenador
na primeira metade do século XX, o dramaturgo passa a ser o responsável pelo aspecto
literário e o encenador pela operacionalização do texto. A questão da autoria desloca-se do
dramaturgo para o encenador, pois esse desempenhava papel decisivo na criação e realização
do espetáculo, tornando-se o mediador entre a sua encenação e a palavra.
Para o processo colaborativo, a autoria de um espetáculo não se limita ao texto escrito
e sim à construção de uma encenação em toda a sua extensão. A autoria é, portanto,
compartilhada.
Devido a essa nova abordagem sobre o conceito de autoria, surge a necessidade de um
desprendimento por parte do dramaturgo para com a obra, conforme nos diz Nicolete
(dramaturga e pesquisadora) (2005: p. 52):
Ao dramaturgo, o desprendimento será necessário também quando da nomenclatura
que sua função receber nos créditos finais do espetáculo. Ele não será considerado
autor único, como nos textos convencionais, mas não será menos autor porque o
texto por ele elaborado é fruto também da colaboração dos demais artistas. É ele
quem domina as técnicas da escrita dramatúrgica, é ele quem conhece os recursos e
procedimentos disponíveis, é ele quem supostamente lida melhor com as palavras e
que, portanto, deve se encarregar de transformar as sugestões provindas da cena ou
de comentários, em algo dramaturgicamente interessante isso quando não ocorre
de algumas cenas já surgirem quase prontas das mãos dos atores.
Para os outros integrantes do grupo que desenvolvem o processo colaborativo, o fato
de haver o responsável pela dramaturgia não os retira do lugar da autoria, visto que é preciso
75
discutir a obra num todo, a partir de seu locus específico, mas não somente sob o ponto de
vista de um determinado núcleo e,
Portanto, aquele coletivo de artistas é, no ponto de chegada, o autor daquilo que é
mostrado ao público, não pela ‘amarraçãoartística dentro da sua especificidade,
mas porque contribuiu, discutiu e se apropriou do discurso nico total daquele
espetáculo (Araújo, 2002: p. 105).
A importância de cada criador não se reduzir a mero especialista ou técnico de sua
função é o que possibilita o aprofundamento das relações no processo colaborativo, pois “(...)
acima de sua habilidade particular, está o artista de Teatro, criando uma obra cênica por
inteiro, e comprometido com ela e com o seu discurso como um todo” (Araújo, 2002: p. 106).
A experiência do processo colaborativo no Oficinão foi possível através da
presença de Luís Alberto de Abreu, pois, com sua chegada ao Cine Horto, propôs essa forma
de criação, que investigava, possibilitando o reforço da experiência coletiva na criação
teatral e revelando sua importância como prática pedagógica para a formação dos criadores na
perspectiva do teatro de grupo.
2.2.2 – A conjugação da criação: O Homem que não dava seta
Uma abordagem dos valores éticos do homem contemporâneo, contada a partir de
uma série de núcleos, de diversas classes sociais, que se cruzam. As cenas se
interligam através de atos de personagens comuns, habitantes do caos urbano. Sobre
a montagem: Com uma impressionante costura narrativa, a estrutura dessa
montagem é ágil, fragmentada e utiliza inúmeros recursos cinematográficos. Os
temas são fortes, tratados pelos atores com verossimilhança. Tudo é muito rápido,
assim como o mundo s-moderno. (Disponível em <www.grupogalpao.com.br>
acessado em 21/01/07).
Após essa primeira experiência, Caixa Postal 1500 (1999), o Núcleo de Dramaturgia
ainda atuou no Cine Horto durante algum tempo, abrindo espaço para a inserção de novos
dramaturgos e colaborando com os seguintes espetáculos do Oficinão: Por Toda Minha Vida
76
– 2000; Cães de Palha
73
2001; O homem que não dava seta2002; A vida é sonho – 2003.
Além do trabalho no cleo, vários desses dramaturgos começaram a desenvolver trabalhos
paralelos, individuais, ou com seus respectivos grupos, fomentando a criação dramatúrgica
em Belo Horizonte, conforme previsto por Abreu ao propor esse agrupamento desde a sua
chegada em 1999.
Enfim, essa primeira experiência do Oficinão resultou em que o processo colaborativo
veio suprir uma escrita que não havia sido encontrada pelos participantes do Oficinão do ano
anterior e que, dessa forma, propiciou a elaboração de uma dramaturgia inédita, desenhada a
várias vozes, além de investigar a criação em grupo, fortalecendo e descobrindo novas
possibilidades do trabalho coletivo.
O próprio Grupo Galpão, no ano de 2000, em parceria com Luís Alberto de Abreu,
construiu o espetáculo Um trem chamado desejo, a partir do processo colaborativo.
Por ter sido a última experiência do Núcleo de Dramaturgia, o Oficinão do ano de
2002, com o trabalho O homem que não dava seta, refletirei sobre essa encenação, buscando
falar sobre o processo interno da elaboração do trabalho, assim como das interrelações entre
os núcleos criadores: atuação-dramaturgia-direção. Esse trabalho foi o que mais deixou
registros do processo: propostas de canovaccio, textos teóricos, relatórios, vídeo da última
apresentação, make off e reportagens das apresentações realizadas em Belo Horizonte e em
Curitiba/PR, durante o Festival de Teatro (2003). Todo esse material encontra-se no arquivo
do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro
74
(CPMT), que também colaborou no acesso aos
integrantes daquele coletivo, através de telefones e endereços eletrônicos, após quatro anos da
estréia. Os integrantes de O homem que não dava seta chegaram inclusive a criar um grupo, a
Cia. do Homem, que durou alguns meses, se desfazendo após incompatibilidade entre seus
membros.
A partir daí, consegui realizar entrevistas com membros dos três núcleos centrais:
atuação, direção e dramaturgia, o que permitiu uma verticalização da análise e a possibilidade
de investigar a formação, em grupo, para o teatro de pesquisa.
73
Esse trabalho, por sugestão de Luís Alberto de Abreu, contou com apenas duas dramaturgas: Nina Caetano e
Ana Régis.
74
O Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT) localizado dentro do Galpão Cine Horto abriga videoteca
e biblioteca especializadas, além de acervo iconográfico, sala de estudos e equipamentos para pesquisa local e
via web. Trata-se de uma importante iniciativa para suprir a grande carência que artistas e estudiosos de todo o
país enfrentam para localizar acervos de artes cênicas tecnicamente catalogados.
77
Esse Oficinão contou com a direção de Chico Pelúcio que buscou, novamente, o
trabalho conjunto com o Núcleo de Dramaturgia. O tema da ética era o princípio norteador do
trabalho e foi eleito pelos dois núcleos, por eliminação dos temas desenvolvidos nos trabalhos
anteriores. No teste de seleção
75
para a entrada no Oficinão o tema foi apresentado aos
atores, que também conheceram minimamente do que se tratava o processo colaborativo.
Gustavo Bones
76
, um dos atores desse trabalho, ao ser entrevistado, falou sobre o teste de
seleção: “(...) Até mesmo no teste para a entrada no Oficinão, o Chico Pelúcio já falou sobre a
proposta do trabalho e o tema da ética. Parte do teste continha o tema. Assim, quem estava
ali era, em tese, porque realmente tinha interesse em colaborar com aquela proposta, além de
investigar o trabalho do ator no coletivo”.
Marcelo Braga, um dos dramaturgos do cleo, em entrevista para essa pesquisa,
aponta que a definição do tema veio por eliminação dos assuntos abordados anteriormente e
pelo que estava incomodando aqueles criadores na atualidade. Braga revela que esse tema foi
apontado após longas conversas do Núcleo com o diretor, e a questão foi unânime entre os
criadores. Ela veio despontando sobre todas as outras levantadas e marcava cada pessoa com
alguma história pessoal, pois,
Na época, o que estava impactando a gente era a ética urbana, a degradação dos
valores humanos. Discutíamos muito sobre o assassinato de um procurador. Teve
em Belo Horizonte, na época, uma discussão envolvendo Postos de Gasolina e ele [o
procurador] autuou o posto na Rua Prudente de Moraes e numa tarde mataram-no.
Essa história marcou muito o grupo. (Braga, 2007).
“Do que queremos falar?” é a pergunta que Abreu lança aos artistas que querem
desenvolver o processo colaborativo, em vez de “Que peça vamos montar?”, recorrente nos
processos em que se parte de um texto pronto.
O processo colaborativo necessita de criadores que tenham o que dizer através do tema
escolhido, pois necessariamente precisarão se colocar na elaboração do discurso e revelar,
portanto, suas opiniões sobre o tema. Esse engajamento possibilita que os núcleos sejam mais
propositivos durante o processo de trabalho e alimentem a criação com suas questões.
75
O Oficinão conta com um teste de seleção para os candidatos interessados em participar do projeto na
qualidade de ator. Esse teste é importante, dado o grande número de interessados pelo projeto e permite que
sejam escolhidos candidatos que tenham o perfil da proposta em questão: o teatro de pesquisa, o trabalho em
grupo etc.
76
Em entrevista para o autor no dia 08/02/2007.
78
O fato de um cleo, no caso dos atores, participar pela primeira vez do processo
colaborativo não implica numa relação ainda hierarquizada. Visto que todos estão ali em prol
da cena, a troca de experiências e o aprendizado mútuo é o que possibilita a descoberta da
colaboração de acordo com aquele grupo de pessoas. A cada processo, o Oficinão descobriu
que por mais que os princípios possam ser bem claros a respeito do processo colaborativo, a
experiência é sempre única e fundamental para a descoberta de novas formas de relação,
criação e conjugação do material cênico.
Ainda sobre a questão da hierarquia, ao entrevistar um dos atores do processo,
perguntei se havia percebido, de alguma maneira, tal postura e logo ele respondeu que:
Pelo contrário, não acho que essa hierarquia existiu no trabalho não. O Chico é
muito bacana, pois ele consegue formar um grupo, abarcar todo mundo. Ele é muito
sincero, diz quando não está dando conta: ‘alguém pega isso aqui!’. Ele tem uma
relação muito verdadeira com a gente. (Bones, 2007).
Citado pelo ator como um diretor que conseguiu estabelecer a união do grupo, Chico
Pelúcio, mais uma vez contaminado pelo seu grupo de origem, o Galpão, aposta na dimensão
coletiva do teatro e tem como meta a propagação do teatro de grupo, por acreditar que é nesse
âmbito que as relações ganham maiores avanços, seja nas descobertas estéticas amadurecidas
durante o tempo de convivência entre o coletivo, seja na sua forma de produção.
As relações estabelecidas entre os três núcleos de criação durante esse processo
revelaram aspectos significativos no que diz respeito ao compromisso com a formação,
através do processo colaborativo, para o trabalho em grupo. Vejamos como cada núcleo
contribuiu para o avanço das questões coletivas nessa proposta.
2.2.2.1 – A atuação
A não-hierarquização na relação criativa impõe ao ator outro lugar frente à criação.
Não mais aquele executor de indicações dramatúrgicas e sim um criador que, além de emitir
sua opinião, seja propositivo. O ator passa a assumir também o papel de autor e criador das
cenas, construídas a partir do material que traz para os ensaios. Mas para isso não basta que
79
execute ou corporifique o projeto dos outros, buscando uma re-apresentação de personagens.
É preciso que tenha um depoimento artístico autoral e que seja, portanto, um ator-criador.
Nesse sentido, os atores do espetáculo O homem que não dava seta precisaram
descobrir essas novas relações estabelecidas com o processo colaborativo, o que não foi um
aprendizado fácil, principalmente por virem de outras relações teatrais. Como sabemos, vários
métodos de trabalho para o ator partem da análise de algum texto dramático para a construção
da personagem e a maioria das escolas de formação desses atores também aborda apenas essa
metodologia. Assim, o texto prévio torna-se uma muleta para o ator, pois desenvolve seu
trabalho a partir de uma criação dada pela dramaturgia.
Nesse trabalho com o processo colaborativo não existia texto a priori e, portanto, a
falta que este fez aos atores foi mencionada por eles durante um vídeo realizado ao fim do
trabalho, numa avaliação do mesmo
77
. Foi uma das falas que marcaram o depoimento da atriz
Regina Lúcia
78
: “Tive dificuldade em trabalhar com o processo colaborativo, pois não existe
texto a priori”. Conseqüentemente, ela revela que, por isso, passou por muitas dificuldades na
elaboração da personagem.
A criação atoral teve início desde a entrada dos atores para a sala de ensaio, com a
discussão e a visão de cada um sobre o tema escolhido (ética). A partir de então, começaram a
elaborar improvisações sobre o tema a fim de buscar, através da concretização cênica, o que
pretendiam dizer.
Acontece que todo material produzido na sala de ensaio era transformado pelos
núcleos e a criação individual dava lugar à criação coletivizada. Com isso, houve vários
desencontros entre os núcleos que remanejavam as criações, nem sempre correspondendo aos
resultados esperados por todos. É a característica apontada pelo depoimento de outra atriz,
Bárbara Campos
79
: “(...) sempre expectativas, mas a gente pode se decepcionar”. O
investimento que cada artista faz em seu trabalho deixa sua marca de afeto no material
proposto e não é fácil lidar com esse desprendimento, principalmente quando se está ainda no
calor da criação. Percebe-se que esse processo tenta balizar a criação de cada indivíduo,
produto de seu universo pessoal, com o que melhor resulta para a cena. É nesse aspecto que
afirmo ser o processo colaborativo distinto da criação coletiva, que visa contemplar todas as
opiniões individuais e colocar em cena a produção de cada artista, sem se preocupar com o
77
Vídeo sobre O homem que não dava seta. Direção e Roteiro de Paulo Azevedo, janeiro de 2003.
78
Em depoimento durante o processo com Direção e Roteiro de Paulo Azevedo em janeiro de 2003.
79
Em depoimento durante o processo com Direção e Roteiro de Paulo Azevedo em janeiro de 2003.
80
resultado obtido dessa colcha de retalhos. Já o processo colaborativo, em outros termos,
propõe que haja a fricção criativa das resoluções cênicas e se uma proposta não se mostrar
eficiente para o espetáculo, não é possível que fique no todo apenas pelo fato de contemplar o
desejo de um criador. A concepção do espetáculo conduz essas decisões.
O contrário também foi possível, com as equipes se exercitando para fundir esses
desejos que, ao serem reelaborados, se transformaram potencializando a criação, não mais de
um, nem de outro, mas de todos. Então, na construção da sua personagem, Regina Lúcia, ao
receber do núcleo de dramaturgia a elaboração do seu texto final, percebeu que havia grandes
modificações na personagem criada por ela e (...) era outra coisa, pior, melhor, não sei, mas
era diferente”. Essa prática, muito freqüente no processo colaborativo, é um fator que mostra
o quanto as criações individuais são alteradas e modificadas pelos filtros dos outros criadores
que, muitas vezes, acabam transformando o produto elaborado de tal maneira que este se
modifica completamente.
Daí o exercício do desprendimento ser muito importante no processo colaborativo,
pois, em tese, nenhuma criação é de ninguém, tudo pode ser transformado. Para Abreu (2002:
p. 04): “Num processo de criação partilhada o muito espaço para ‘minha cena’, ‘meu
texto’, ‘minha idéia’. Tudo é jogado numa arena comum e examinado, confrontado e debatido
até o estabelecimento de um ‘acordo’ entre os criadores”. Esse acordo não significa reduzir a
criação ao senso comum, nem transformar a criação em um acordo de cavalheiros. Ele se
configura de forma tensa, precária e sujeito a ser avaliado constantemente durante o processo.
Outro ponto a ser destacado para esse núcleo foi a identificação com o tema,
favorecendo consideravelmente a sua intervenção, pois ao falar “(...) do homem de hoje, nos
vemos ali, descobrimos defeitos do homem contemporâneo. (...) Eu sofri muito para fazer o
meu personagem” (Bones
80
, 2003). Toda essa pesquisa sobre o homem contemporâneo trouxe
diversos questionamentos do elenco sobre a ética de cada um, misturando em muitos
momentos o que era ficcional e o que era real. Por isso, diz uma das atrizes: “a peça mexeu
com a vida de todos nós. Questionávamos muito nossa ética. Que lado vou escolher, que lado
quero... foi uma transformação pessoal (Juliana Barreto
81
, 2003). E parece que o coletivo
encarou tão a sério o tema que, como disse Bones, “o tema virou pele”, sendo que:
80
Em depoimento durante o processo com Direção e Roteiro de Paulo Azevedo em janeiro de 2003.
81
Em depoimento durante o processo com Direção e Roteiro de Paulo Azevedo em janeiro de 2003.
81
Vimos que a realidade era maior do que a gente. Cada pessoa nesse ano passou por
um problema com a ética. A Juliana, que tem um filho de um ano de idade, fazia na
peça uma babá que entregava o filho da patroa para ser seqüestrado a fim de
conseguir dinheiro para soltar o marido da prisão. O filho da atriz na vida real era
cuidado por uma babá que começou a deixar o menino sozinho em casa, o que a
aproximou muito da personagem dela. Fizemos o tema virar pele, vir pra fora.
Tentávamos trazer para o cotidiano esse tema. (Bones, 2007) (Grifos meus).
Isso contribuiu de forma essencial para um arranque nos ensaios, pois cada integrante
havia se apropriado de tal maneira do tema que, agora, era uma questão vital. A partir daí,
cada ator começou a investigar mais sobre a sua criação e começou a buscar material para o
aprofundamento do seu personagem.
Gustavo Bones, que criou um traficante que seqüestra duas crianças, conta que
pesquisou muito e, ao assistir a vários filmes e seriados, conseguiu descobrir características
para a sua personagem que ainda não havia descoberto. O ponto-chave para compreender o
universo desse traficante deu-se durante a pesquisa de campo que realizou visitando a
periferia de Belo Horizonte. Vendo aquela realidade, distante do seu cotidiano, preocupou-se
em não deixar a personagem virar clichê, permanecer numa esfera rasa, sem nuances e
contradições internas. Sua cena mais difícil foi a do estupro, pois precisou de muita
cumplicidade dos seus parceiros de cena e do núcleo de dramaturgia, que investiu bastante na
imagem que atravessava o ator. Ele dizia: “me sinto tocado todas as vezes que interpreto essa
cena” (Bones apud Machado
82
, 2002: p.21)
Os demais colaboradores desse Oficinão, ainda não citados, contribuíram para a
qualidade da interpretação dos atores e foram importantes ao provocarem nos intérpretes o
exercício da polifonia, ou seja, os atores buscavam incorporar os discursos das outras áreas
para o enriquecimento das suas personagens. Destacamos os seguintes profissionais na área da
criação: a professora e bailarina Dudude Herrmann na preparação corporal e Andréa
Amendoeira na preparação vocal. Rômulo Avelar ministrou aulas de produção cultural para
os atores, uma forma de suprir uma necessidade destes de viabilizar seus futuros projetos
artísticos. Esse pensamento norteia o Oficinão desde a sua implementação, conforme coloca
Chico Pelúcio: “(...) achamos que o ator tem que ser capaz de viabilizar seus próprios desejos
artísticos. Tem que transpor essa barreira da necessidade, de desejo, para a execução”
(Pelúcio
83
, 2007).
82
MACHADO, Renata Matta. Intolerância urbana deflagra peça no Galpão. Belo Horizonte, Jornal Hoje em
Dia, 29/12/2002.
83
Em entrevista para o autor no dia 08/02/2007.
82
Para a discussão da ética, foi convidado o professor de filosofia da Universidade
Federal de Minas Gerais Newton Bignoto de Souza, que ministrou aulas sobre o tema para
todos os núcleos. Dessa forma, cada núcleo, na confluência com os seus objetos de trabalho,
foi apropriando-se dessas informações e transformando-as em cenas concretas apresentadas
aos demais criadores. Cada núcleo ressignificou esses saberes e acrescentou, de acordo com
sua função, propostas de encaminhamento do espetáculo.
Na atuação, esse ator-criador passou a agir de forma colaborativa, apresentando novos
procedimentos para a criação, trazendo elementos de uma abrangência que pode ser
comparada com a cena pós-dramática, apontada por Lehmann (2002). Para ele, o ator é um
agente fundamental do teatro contemporâneo e para essa nova construção da cena é preciso
outro tipo de ator: “(...) não mais portador de uma intuição externa, vinda do texto ou do
encenador, nem um simples agente de discursos alheios” (Lehmann, 2002: p. 42). Há,
portanto, a necessidade de um ator que emane propostas e desencadeie soluções que irão
reverberar em todas as áreas.
Nesse espetáculo, percebemos que a criação do ator se deu em todos os níveis, iniciou-
se com a sua entrada para a sala de ensaio e a partir de então, contou com a sua criação em
todos as áreas do trabalho. Quando chegou a proposta de cenografia, por exemplo, foram os
atores que, ao lidar com o cenário, permitiram ao cenógrafo uma remodelação do seu material
e a adequação deste à proposta.
Os atores também trabalharam na criação de canovaccio
84
junto ao Núcleo de
Dramaturgia, fazendo as propostas de cena elaboradas pelos dramaturgos e até mesmo
encaminhando novas soluções para a mesma. Essa etapa, segundo Bones
85
(2007) foi “(...) um
pouco parecida com roteiro de cinema. Acho que a peça é um pouco assim, começa uma
idéia, é interrompida, e na frente continua aquela narrativa”. Essa fragmentação apontada
pelo ator também foi denunciada pela crítica e tem forte influência da cena pós-dramática, que
se apresenta como híbrida, plural, expandida, se comparada à narrativa aristotélica.
Com todo esse material produzido nas diversas áreas, os atores começaram a delinear
alguns personagens, até que no mês de julho de 2002 interromperam os ensaios para as férias
coletivas. Foi nesse momento que alguns atores e mesmo dramaturgos deixaram o trabalho.
84
Canovaccio é um termo oriundo da Commedia dell’Arte que indica o roteiro de ações do espetáculo, além de
indicações de entrada e saída de atores, jogos de cena, etc.
85
Em entrevista para o autor no dia 08/02/2007.
83
Ao voltarem, o Núcleo de Dramaturgia havia estruturado um novo canovaccio, mais
elaborado, configurando as resoluções cênicas apontadas durante o primeiro semestre.
Houve nessa etapa um workshop, como praticado pelos atores do Teatro da Vertigem.
Bones (2007) relata que nesse workshop os atores deveriam contar toda a história em dez
minutos. Em outro, os atores deveriam contar a história em dez minutos sem diálogo. Essa
estratégia é utilizada para que o ator ênfase ao seu trabalho corporal e passe a mostrar
fisicamente as relações existentes entre as personagens. O discurso verbal tem pouca
importância nessa fase, pois será reestruturado pelos dramaturgos que se ocupam dos
encaminhamentos apontados pelos atores para aprofundarem a estrutura dramatúrgica.
A realização dos workshops foi muito proveitosa para o trabalho dos atores, pois
precisaram ensaiar para as apresentações e descobrir, através da ação, se era possível
desenvolver o roteiro simplesmente com aquelas indicações ou se precisariam adaptar as
cenas, incrementando novas propostas.
Então, começaram a definir as personagens e delimitaram que divisões haveria entre o
elenco, se trabalhariam em duplas ou trios. Os atores foram provocados a desenvolver a
dramaturgia da personagem, pois precisaram se ater a vários aspectos devido às cenas
fragmentadas, pois na primeira cena, por exemplo, o personagem está em determinado local, e
apenas na sétima cena é que o espectador irá entender de onde o personagem veio, o porquê
da sua respiração tão ofegante etc. Isso para o ator é um trabalho complicado, aponta Bones,
pois: “Minha primeira cena era a gente (eu e o Euber) chegando na cadeia, os dois traficantes.
Depois éramos presos, depois fugindo etc. Para o ator foi difícil. (...) Tinha que me preocupar
em que estado entro nessa cena, qual respiração...”.
fizemos a peça. O problema maior veio aqui com a dramaturgia. O meu texto
final estava bom, tive sorte com isso. Foram textos muito difíceis de falar, pois
você via que não foi o ator quem criou, parecia uma fala imposta. Muita gente
[atores] ficou brava. (Bones, 2007) (Grifos meus).
Conforme veremos a seguir, o diálogo entre a Dramaturgia e a Atuação foi bem
complexo devido ao tempo dedicado aos encontros entre as áreas. Enquanto os atores
trabalhavam todos os dias e produziam bastante material, dramatúrgico inclusive, os
dramaturgos se viam uma vez por semana e quando chegavam aos ensaios, os atores
84
haviam encaminhado a cena, proposto novas resoluções para o que se apresentava no dia-a-
dia do trabalho.
Beto Lanza, crítico da Folha de São Paulo, assistiu ao espetáculo em Curitiba e fez
uma divisão interessante entre as personagens, comparando-as, posteriormente, ao homem de
hoje:
São pessoas comuns, elevadas ao patamar de arquétipos de uma sociedade
eticamente falida, convivendo de maneira interdependente até o esgotamento. As
personagens são divididas em castas: de um lado os segregados do mercado
economicamente ativo, do outro os incluídos no sórdido sistema de manipulação da
informação. O resultado é uma babel de tipos radicalmente urbanos, duros e cruéis,
como o nosso dia-a-dia (Lanza
86
, 2003).
Não podemos deixar de citar a campanha Eu dou a seta realizada pelos atores do
Oficinão. A proposta foi fazer um manifesto em defesa do cumprimento das leis de trânsito
pelos motoristas e, em especial, à utilização das setas, que são pouco usadas nas ruas de Belo
Horizonte e ignoradas como uma infração de trânsito. Para isso, foram criados personagens
como a presidente da ONG Em Defesa das Mulheres, atropeladas pelo Maníaco da
Madrugada; parentes das vítimas do maníaco; manifestantes diversos, trajados de blusas com
o tema da campanha, cartazes, faixas, panelas etc. Aproveitaram também para homenagear o
Grupo Galpão, que completou 20 anos em 2002 e que, em 1989, invadiu a “Praça Sete”
(ponto central na cidade) com a apresentação da performance Queremos Praia” resultado
de oficina realizada durante o Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais -
inspirada nas propostas de um folclórico vereador belorizontino: Nelson Thibau. “O
‘Queremos Praia’ era composto por quatro coqueiros, colocados junto ao ‘pirulito’ da Praça
Sete, transformada em ilha. O público era transportado pelo barco Bateau Mouche,
atravessando o mar de asfalto das avenidas Afonso Pena e Amazonas” (Brandão
87
, 1999: p.
96).
86
LANZA, Beto. Espetáculo surpreende ao apresentar a ética da urbe. Jornal: Folha de São Paulo, 26/03/2003.
87
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Grupo Galpão: 15 anos de Risco e Rito. Belo Horizonte, 1999.
85
2.2.2.2 – O Núcleo de Dramaturgia
A relação do Núcleo de Dramaturgia com o cleo de Atuação nesse Oficinão foi
conturbada, o que acentuou a importância do diálogo, do debate, do próprio embate na sala de
ensaio. Mas aqui existia uma relação que abalava o Núcleo de Dramaturgia, conforme
veremos.
Como já mencionei, os atores, junto à Direção e Assistência de Direção, trabalhavam
todos os dias da semana e esporadicamente em alguns sábados. Já o Núcleo de Dramaturgia
se encontrava uma vez por semana e uma vez por mês com o Luís Alberto de Abreu
coordenador do Núcleo de Dramaturgia.
O Núcleo conseguia estabelecer com Abreu uma “conversa” constante via e-mail e,
para suprir algumas faltas, o Núcleo mantinha estudos sobre dramaturgia, sobre o próprio
tema e sobre outros tópicos indicados pelo orientador. Cristina Andrade, integrante desse
Núcleo, disse, em entrevista, que nesse “grupo de estudos” pode se aprofundar na área, além
de ler mais peças teatrais: “(...) por exemplo, no melodrama [Por toda a minha vida – Oficinão
do ano de 2000], fomos estudar isso, ler o ‘Direito de nascer’ da rádio-novela. Quando o
Abreu vinha, tinha uma discussão das leituras, sobre dramaturgia, canovaccio etc.” (Andrade,
2007).
Ressaltamos que esse Núcleo era composto por cinco dramaturgos em formação, sob a
coordenação de Luís Alberto de Abreu, sendo: Maria Cristina Andrade, Marcelo Braga,
Miguel Anunciação, Juliana Antunes e Adriano de Faria. Esse tipo de formatação
potencializava muito o trabalho do núcleo e a dramaturgia era respondida por esse agente
múltiplo. Entre esses criadores não havia uma linearidade de pensamento e buscavam
conjugar as diversas criações numa única proposta de dramaturgia.
Entre eles, o trabalho era desenvolvido a várias mãos. Mas o contrário também
acontecia, pois: “(...) você lida com as vaidades. Você escreve um texto e, de repente,
ninguém gostou do que eu fiz. E às vezes você escreve um tanto e pegam uma frase. Tem que
ter essa humildade e perceber o que realmente é melhor” (Andrade, 2007). Esse núcleo estava
sujeito a todo tipo de variações, pois além de manter uma dinâmica interna, encontrava com o
restante do grupo para o diálogo teatral.
O impasse que a dramaturgia trazia para a atuação estava no ponto em que esse
primeiro núcleo, por não acompanhar sistematicamente os encontros, quando chegava à sala
86
de ensaio com sua produção, trazia material referente ao momento em que havia saído dali,
uma semana atrás. que, com o andar do processo, várias idéias tinham sido
transformadas/descartadas e a dramaturgia não havia acompanhado as discussões pertinentes
a essas decisões. Quando voltavam a se encontrar, o embate era inevitável, conforme
constatou a dramaturga Cristina Andrade
88
, em entrevista:
É verdade, eles têm essa demanda e a gente mandava texto, mas eles [atores]
mudavam e a gente falava: ‘Pô, mas como vamos mexer se a gente não sabe o que
mudou, o que não funcionou, entendeu?’ A idéia do processo colaborativo é muito
interessante, mas ao mesmo tempo muito exigente. Ou é colaborativo ou é outra
coisa. Foi minha primeira vez com teatro no ‘Caixa Postal 1500’. Éramos uns doze
dramaturgos, o que era difícil. Concordo que o dramaturgo tem de estar muito mais
próximo, de preferência todo dia, pra ver o que funciona, ouvir os atores, mas no
nosso caso era inviável, ninguém tinha tempo para isso. (Andrade, 2007) (Grifos
meus)
Também Marcelo Braga, do Núcleo de Dramaturgia, concorda com os atores, pois: “O
processo é esse mesmo, de muitas mãos. Os atores faziam, a gente transformava. Os
encontros eram muito polêmicos. Com toda razão, os atores que fazem o negócio, e alguns
não gostavam desse processo” (Braga
89
, 2007) (Grifos meus).
Marcelo ainda revelou que o ideal seria que os dramaturgos tivessem a mesma
frequência de encontros dos demais criadores, mas que, desde o início da proposta, todos
estavam cientes que os dramaturgos não poderiam estar ali, corpo a corpo, cotidianamente.
Assim, muitos atores sentiam-se desprotegidos sem a presença, desde o início, do texto
escrito, conforme já dito, que é de certa forma uma segurança para o seu trabalho
90
.
(...) O texto demorava muito a ficar pronto. Os atores ensaiavam todos dos dias. A
dramaturgia encontrava uma vez por semana. O ideal era que fosse na mesma
intensidade. Eles sentiam falta. Também era um pouco ilusão, que se isso
acontecesse tudo mudaria. (Braga, 2007).
88
Cristina Andrade (Núcleo de Dramaturgia) em entrevista para o autor no dia 20/04/2007.
89
Marcelo Braga (Núcleo de Dramaturgia) em entrevista para o autor no dia 03/03/2007.
90
A transferência de culpa para outro Núcleo é muito comum no processo colaborativo, visto que é difícil,
quando dentro do processo, reconhecermos nossas faltas. Quando participei de uma criação colaborativa, isso se
deu da mesma forma, pois a dramaturga só podia comparecer a alguns encontros, enquanto os atores, a diretora e
a cenógrafa trabalhavam todos os dias. Em nosso caso, o que aconteceu foi que a área da dramaturgia começou a
ser ocupada por outros integrantes, que além de se preocuparem com a sua área, também pensavam a
dramaturgia; assim, ao fim do trabalho, percebeu-se nitidamente que havia uma fragilidade na dramaturgia do
espetáculo.
87
a Assistente de Direção, Cristiana Brandão
91
, que acompanhou todos os encontros
com o cleo de Dramaturgia e também os ensaios junto aos atores, coloca a questão em um
outro embate e diz: “A avaliação que eu faço agora é que não para fazer num Oficinão o
processo colaborativo com o dramaturgo em gabinete. É preciso do dramaturgo no embate
com a sala de ensaio”.
Esse misto de interferências potencializa a criação individual e, por exemplo, no que
diz respeito à dramaturgia/dramaturgo, quando este não sabe como resolver determinada
questão, nada impede e nem diminui o seu trabalho, se for o ator, o diretor, o iluminador,
quem der uma sugestão/solução ao seu trabalho. Isso, porém, não faz do ator, do diretor, do
iluminador, um dramaturgo. Abreu apud Nicolete (2005: p.108) reflete que:
O processo colaborativo é um processo onde dramaturgo é dramaturgo no final,
quando ele conseguiu fazer uma boa relação, porque tudo que vem é muito novo, o
que vem é muito diferente do que ele já viu. Se está criando em casa, ele tem o
tempo de estabelecer como ele quer o enredo, o que ele quer atingir no público ele
faz tudo isso na cabeça. No processo colaborativo ele projeta tudo isso também,
mas, nessa projeção dele, entram uma série de interferências que ele não pode
descartar como em casa, sozinho, ele descarta. Ele vai ter de se debruçar sobre a
criação alheia e integrá-la ao próprio trabalho.
O desafio de estruturar a dramaturgia
A própria estrutura dramatúrgica, do ponto de vista da narrativa, implicou em um
desafio para costurar a história. Sendo a estrutura do espetáculo O homem que não dava seta
ágil, foi dado um tratamento narrativo que utilizou de diversos recursos cinematográficos:
recortes, colagens, imagem dentro das cenas, intervenções entre personagem do teatro com o
do deo etc. As cenas se ligavam através de atos e personagens em comum. Sem estar
preocupado em apresentar soluções, o espetáculo parte de realidades individuais conflitantes
com uma força que choca o espectador. Por se apresentar fragmentada, a dramaturgia é
permeada por quadros, duplas ou trios de atores. Conforme Andrade (2007):
Tinha a babá que trabalhava na casa e o namorado dela seqüestra a criança, tem o
atropelamento, tem os caras que estão presos, tem o juiz, são vários núcleos e a
grande questão era articular uma coisa com a outra, porque a gente criava. Não é a
babá que vai seqüestrar, depois ela vai ver e vai se arrepender. Como o juiz vai
91
Em depoimento durante o processo com Direção e Roteiro de Paulo Azevedo em janeiro de 2003.
88
entrar nisso tudo? E os drogados? Então um deles conhece o outro. Então a gente
teve que criar estratégias de amarrar esses núcleos.
O narrador foi uma das personagens que surgiu posteriormente no espetáculo, vindo
inicialmente para costurar a narrativa. Acontece que, com o passar dos ensaios, a personagem
ganhou uma desenvoltura impressionante devido ao trabalho do seu intérprete e dos
dramaturgos. Seu criador, Cristiano Pena
92
, fala a seguir sobre sua personagem, que
inicialmente surgiu da criação do Núcleo de Dramaturgia como solução cênica, mas que
conseguiu se apropriar daquela criação:
A criação da personagem Matuim deu-se no processo de estudo do próprio texto
encaminhado pelo autor. Num primeiro momento as sensações e imagens sugeridas
e levadas à cena, juntamente com orientações do Chico, da Cristiana Brandão e de
colegas, atores e atrizes da montagem. João Matuim surgiu como um misto de
palhaço, figura que se expõe diante das inquietações cotidianas; um homem que sai
às ruas de uma grande cidade para buscar e questionar valores éticos, filosóficos e
humanos. Artistas de rua, andarilhos, músicos de praças foram imagens que
auxiliaram na composição desta personagem. No contexto da peça, João Matuim,
faz um contraponto ao que é apresentado, nas outras situações, focalizadas em cenas
de corrupção, assassinatos e manipulações. Sem apresentar esta personagem apenas
como o outro lado da história, busquei ora inseri-la neste contexto, ora distanciá-la,
criando junto à dramaturgia e direção a polifonia da personagem e da própria cena.
Assisti a filmes de Oscarito e Mazzaropi, além de me inspirar em imagens de
arquivo e livros do próprio Cine Horto. João Matuim hoje está fora de cena, mas
suas questões e o processo de criação tornaram-se importantes experiências que
acompanharam minha vida.
Percebemos que essa personagem foi utilizada para fazer o contraponto entre as cenas
dramáticas do espetáculo e as passagens com vídeo, pois se relacionava com a cena de forma
distanciada, ao mesmo tempo que dialogava com os personagens do vídeo.
O narrador foi uma alternativa usada também pelo Núcleo de Dramaturgia em outro
Oficinão, Caixa Postal 1500, na figura de um índio fictício imaginado pela Europa quando
estava a descobrir um novo mundo – um imaginário europeu sobre o novo mundo.
Em O homem que não dava seta, o narrador surgiu numa proposta feita por Abreu, e
que não foi aceita com unanimidade dentro do próprio Núcleo. Segundo Andrade (2007):
(...) no início eu não queria, eu achava que a gente podia amarrar isso de um outro
jeito, aí lemos um texto russo que tinha uma figura que narrava, além de fazer parte,
contava a história. Depois ficou interessante, o Abreu e o Chico deram o arremate na
92
OFICINÃO 2002. Relatórios e fontes de pesquisa. Cristiano Pena, p. 02.
89
questão do narrador para interligar as personagens. Depois ficou como uma
alternativa interessante. No início eu resisti muito. Eu queria que as próprias
histórias, que as personagens dessem margem para toda a dramaturgia.
Ao propor o narrador para a estrutura do espetáculo, Abreu precisou também
fundamentar sua sugestão junto aos outros dramaturgos e indicou a leitura de textos teatrais
com a presença de narradores, para que o núcleo conhecesse outras relações possíveis de um
narrador com a história. Esse fato é interessante porque, mesmo sendo coordenador do Núcleo
de Dramaturgia, Abreu era questionado quando sugeria algum elemento e precisava, assim
como os demais envolvidos, fundamentar sua proposta de forma consistente.
Após o atropelamento, várias cenas se sucedem em ritmo acelerado: um casal que
briga na hora do jantar; a babá que, ao desligar o telefone, é surpreendida por sua patroa (uma
executiva) que a chorando (sem imaginar que a babá chora por tramar o seqüestro dos
filhos que acontecerá na cena XXVI); o motorista que acidentou uma mulher está na prisão
e fala de sua inocência ao carcereiro; a editora do jornal que está cobrindo a matéria pressiona
a repórter para que dê alguma notícia sobre o caso que possa dar audiência ao programa etc.
A trama envolve um juiz corrupto; uma repórter que, pressionada pela editora, sugere
que o homem que acabou de cometer um atropelamento seja o culpado por todos os outros
crimes; dois jovens ladrões da periferia; um policial corrupto e violento
93
; uma empregada
que entrega os filhos de sua patroa para serem seqüestrados a fim de conseguir dinheiro para
que seu namorado compre sua liberdade na cadeia; uma executiva que, por não ter tempo para
cuidar dos filhos, faz a compensação com bens materiais. E, como numa tragédia grega, os
homens são manipulados por um poder invisível, sendo o senador uma figura que jamais será
vista e ouvida, pois ordens pelo telefone. Também seu filho, o verdadeiro assassino, não
aparece na trama.
Outro elemento que caracteriza traços trágicos é a violência realizada sempre fora de
cena, obtendo um efeito cênico muito maior do que se fosse realizada no palco. Vejamos a
parte do texto em que ocorre o estupro de um dos presos, pelo policial, sem que o público
veja, apenas ouça:
93
“CARCEREIRO: Olha aqui malandro, até para aliviar. Mas vão ter que fazer um serviço pra mim, trabalho
fino, pro papai aqui! Tem um colega de vocês aqui na carceragem que ta começando a me dar muito trabalho. E
eu detesto hora extra! Tem gente graúda perseguindo o morcego. E quando os bambambans aparecem é
merda que rola pra cima da gente. Na minha delegacia roupa suja se lava aqui. O lance é o seguinte: apaga o
meliante que dá pra liberar os dois. Deita o elemento que aman as borboleta tão batendo asa.” Texto do
espetáculo “O homem que não dava seta”, Cena XVII, 2002: p. 14.
90
CARCEREIRO: (...) E você, carinha de anjo? Contigo, minha gracinha, o negócio
vai ser diferente! Vamos ver do que você gosta. Abaixa as calças. Anda, porra, que
eu não tenho a tarde toda não. Abaixa logo, porra! Que bunda de moça, hein? Vai
levar, vai tomar no rabo, cara! E amanhã tem mais, viu? Ah, se você quiser, eu te
faço de rainha aqui dentro!
94
Em meio a tantas situações, o espetáculo é todo criado a partir de cenas que em seu
desenrolar permite que o espectador faça diversas conexões e frua a obra. Essa fragmentação
é opcional, segundo o diretor, e a velocidade, característica do espetáculo, é uma analogia aos
nossos tempos e se rompe com as intervenções do Narrador João Matuim, sempre lembrando
que ainda somos animais humanos. as projeções, recorrentes durante o espetáculo,
funcionavam na medida em que transpunham a movimentação da rua para o palco,
contrabalanceando o ambiente externo com o interno.
2.2.2.3 – A Direção
(...) Abrimos um leque de cenas que falavam desse tema [ética]. Chegou num
momento que tínhamos muito material. Propus que jogássemos esse material fora e
começamos várias cenas com a seguinte questão: começar a cena com um homem
que não seta ou terminar uma improvisação com o fato de um homem não dar
seta. Estudar a lógica de uma pessoa que dirige e não seta, ou seja, uma
pessoa que não tem a menor preocupação com o outro. Ele não liga pra quem
está fora do carro dele. O que passa pela cabeça dessa pessoa? Como um sujeito
desses pode se relacionar com o mundo a partir dessa questão? Várias cenas
foram mostradas e estruturamos uma história. (Pelúcio
95
, 2007) (Grifos meus).
Pelo que Chico Pelúcio apresenta no depoimento acima, há uma preocupação do
diretor com o tema, ele também mostra como provocou os atores a investigarem o tema
cenicamente, ou seja, como transpôs para a cena, fisicamente, o que estava no nível
intelectual. Mas como jogar uma parte do trabalho fora? Descartar o quê? Não teria o ator,
mesmo quando descartava algo, incorporado vários elementos? Ao questionar essa colocação
Pelúcio explicou que:
94
Texto do espetáculo “O homem que não dava seta”, Cena XVII, 2002: p. 13.
95
Em entrevista para o autor no dia 08/02/2007.
91
Sem dúvida, algumas personagens acabaram se agregando nessa nova história.
Aparentemente no processo colaborativo se joga fora, mas na verdade nada é jogado
fora. O processo vai acumulando a consciência do ator, a consistência sobre o tema
do espetáculo etc. (2007).
A forma com que a Direção buscou lapidar as cenas e ligar os elementos que eram
essenciais para a compreensão do espectador foi realizada durante todo o processo, mas se
intensificou com a proximidade do encontro com os espectadores. Assim, um objeto deixado
no final de uma cena, um telefonema, um lenço que reconheço na mão do ator etc. vai ser
retomado mais à frente pelas mesmas personagens a fim de que o espectador reconheça as
histórias delas e siga a trama.
Mas como colocar em cena um tema que é tão recorrente em nossa atualidade e que
por se tornar parte de nosso cotidiano, não nos causa nenhuma reação, a não ser a de
desprezo? Como diria Bertolt Brecht, como podemos estranhar isso novamente, para
podermos interferir nele? Pelúcio (2007) conta que foi difícil tudo isso:
Foi um sofrimento pra gente, pois acabamos falando de interesse, violência etc.
Sobre violência, tentar levar isso para a cena era complexo, pois a cada dia real, saía
uma notícia mais chocante, muitas vezes pior do que a violência ficcional que a
gente tentava passar aqui em cena. (...) A nossa personagem era um juiz e na época a
crise do judiciário não havia explodido, como o caso do Lalau... Não havia tido um
juiz nesses casos ainda. Fizemos com o juiz e oito meses depois estourou a crise do
judiciário no Brasil.
Ao indagar o seu trabalho na função de direção, Pelúcio disse que um diretor que vem
trabalhar com o processo colaborativo precisa, necessariamente, desenvolver a escuta para
aproveitar melhor o material produzido pelos vários criadores, a fim de levar à cena o que é
mais interessante:
É um aprendizado, tem que aguçar seu olhar e ouvido, pois é bom que saiba
aproveitar esse material todo. Tira um pouco da idéia do encenador que tem idéia
pré-concebida. É preciso confrontar idéias, todos têm que estar mais disponíveis, e
aprender a ser contrariado. A sorte é que a gente tem o teatro como esse parâmetro
para a decisão final. O verbo vale menos que a própria cena. (Pelúcio, 2007)
Também Peter Brook (1999) fala sobre a importância do sentido da escuta para o
ofício do diretor, revelando que, na verdade, não segredos nesse ofício e sim grande
trabalho, pois:
92
O que o diretor mais precisa desenvolver em seu trabalho é o sentido da escuta. Dia
após dia, quando ele interfere, comete erros ou apenas observa o que está ocorrendo
na superfície, por dentro deve estar escutando, escutando sempre os movimentos
secretos do processo oculto. (...) O teatro é um ofício. O diretor trabalha e escuta.
Ele ajuda os atores a trabalhar e escutar (Brook
96
: 1999, p. 102)
Pelúcio, que também dirigiu outro espetáculo através do processo colaborativo junto
ao Grupo Galpão, Um trem chamado desejo, diz sobre o trabalho do diretor que: “(...) é cada
vez mais como um misto de diretor e coordenador do processo, sem uma visão vertical de
direção” (Saadi & Guedes
97
, 2002: p.102) (Grifos meus). Na mesma entrevista,
apontamentos de que o seu trabalho mediou a atuação e o trabalho dos outros criadores,
buscando ter uma visão geral do processo. Portanto, sendo o olhar de fora da cena, procurou
ajustar os diversos elementos para a composição de uma obra, não deixando o espetáculo
tornar-se um amontoado de cenas.
Já Nicolete (2005) nos traz indícios do trabalho polifônico que o diretor precisa
desenvolver durante o percurso, pois além de se colocar enquanto sujeito criador, com suas
vontades, intuições, crenças etc., precisa também saber incorporar as diversas vozes do
discurso cênico, sendo estas, muitas vezes, contrárias às suas. Assim: “(...) o diretor não
trabalha com a sua concepção de encenação, mas com todo um conjunto de vozes
individuais, porém interdependentes” (2005: p. 107).
Dessa forma, o processo colaborativo mostrou-nos o quanto é difícil conseguir
trabalhar em conjunto e ainda assim ser agente criador da sua área específica, tecendo um
discurso que busca incorporar os demais até tomar a dimensão coletiva da obra. Não menos
importante do que esse ponto, ainda foi preciso, durante o trabalho, efetuar a conjugação das
diversas vozes, emitidas pelos criadores e pelos signos que estes construíram. Percebemos que
o Oficinão tem proporcionado esse tipo de criação e pesquisa em grupo, trazendo para o teatro
grandes contribuições, seja nas estéticas investigadas, na forma de produção coletivizada, ou
nos próprios processos. Em O homem que não dava seta, visualizamos várias crises durante o
percurso, mas, para além disso, compreendemos que cada integrante, ao entregar-se na
comunhão de um projeto, saiu modificado. Encerro esse capítulo com o depoimento de Chico
Pelúcio
98
, no vídeo de finalização do trabalho, que consegue, de forma sintética, incorporar o
96
BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
97
SAADI, Fátima & GUEDES, Antônio. Chico Pelúcio: reflexões sobre o Grupo Galpão e a ética do teatro.
(Entrevista com Chico Pelúcio, com a colaboração de Yara de Novaes). Folhetim, Rio de Janeiro, n.13, p. 98-
131, abr-jun 2002.
98
Em depoimento durante o processo com Direção e Roteiro de Paulo Azevedo em janeiro de 2003.
93
discurso dos demais companheiros: “O processo foi muito valioso, a relação estabelecida com
teatro, com criação, com o outro, isso que está por trás é mais importante. Atualmente saio
mais inteiro do que entrei”.
Abrimos espaço para verificar, no próximo capítulo, como se deu a criação do
processo colaborativo através do coletivo Maldita Cia. de Investigação Teatral, que, como
grupo, surgiu no Projeto Cena 3x4 criado e executado pela Maldita em parceria com o Cine
Horto. A gênese desse coletivo tem relação direta com a investigação do processo
colaborativo enquanto possibilidade de radicalização do trabalho nas funções teatrais.
94
CAPÍTULO 3
Investigação coletiva da criação
colaborativa nos grupos teatrais:
Casa das Misericórdias
95
CAPÍTULO 3 Investigação coletiva da criação colaborativa nos grupos teatrais: Casa
das Misericórdias
3.1 – O processo colaborativo nos coletivos: o Projeto Cena 3x4
Conforme dito anteriormente, o Oficinão abarcou o Núcleo de Dramaturgia e o seu
coordenador: Luís Alberto de Abreu. Concomitantemente a esse trabalho, havia também no
Cine Horto o cleo de Direção, coordenado por Aderbal Freire Filho. Os Núcleos
Dramaturgia e Direção começaram a estabelecer algumas parcerias, culminando no Projeto
“Cenas Curtas
99
” que buscou, desde então, a pesquisa e a investigação teatral.
Em determinado momento, o Galpão Cine Horto convidou Luís Alberto de Abreu e
Antonio Araújo para realizarem uma oficina para os dois Núcleos, juntamente com os atores
do Oficinão, orientados pelo processo colaborativo. Esses núcleos não mantiveram uma
ligação estreita, visto que o Núcleo de Dramaturgia era destinado ao Oficinão e o Núcleo de
Direção era independente.
Essa oficina sinalizou uma possibilidade dos dois Núcleos (Dramaturgia e Direção)
trabalharem juntos e representou uma possibilidade de atender uma visão coletiva.
Quando fomos apresentados para o processo colaborativo, pensamos: ‘isso parece
interessante’, parece atender a nossa visão de coletividade. Isso que a gente espera
de um grupo, que não tem um diretor que diga: ‘eu sei mais do que você, vocês
estão aqui para aprender comigo’, mas um diretor que pense que a criação é
compartilhada. (Caetano
100
, 2006).
Assim, três integrantes do Núcleo de Direção e uma do Núcleo de Dramaturgia, que
também haviam participado do Oficinão como atores, pensaram numa parceria que pudesse
questionar e propor novas relações entre os criadores na/da cena. Todos haviam passado por
outras composições de grupos e achavam desgastante a constituição desses coletivos,
conforme disse Nina Caetano (2006):
99
A proposta do Festival de Cenas Curtas é estimular a criatividade, reunir artistas, revelar novos talentos e
proporcionar ao público acesso a uma diversidade maior de linguagens teatrais.
<http://www.galpaocinehorto.com.br/projeto_detalhe.php?id=12 > acessado em 15/11/06.
100
Em entrevista para o autor no dia 22/09/2006.
96
Geralmente, nos grupos havia um diretor artístico que normalmente era quem dava a
linguagem do grupo ou era quem formava os atores, por exemplo, pedagogicamente.
Treinamento de ator, o ator tinha um treinamento a partir do diretor, então cada
diretor experimentava um processo diferente. Acabavam os diretores descobrindo
sua linguagem a partir desse tipo de composição. E aquele formato não nos
agradava, pois havíamos saído dos grupos que a gente trabalhava, por não gostarmos
desse tipo de processo.
Como seria possível apostar no indivíduo enquanto agente colaborador com a estética
e com a ética de grupo, questionando também a forma de trabalho dos coletivos teatrais, visto
que as relações de trabalho eram viciadas? O diretor era quem conduzia todo o processo do
grupo, concebendo esteticamente o espetáculo, enquanto os atores executavam as ações da
personagem dada pelo texto dramático etc., impossibilitando novas formas de elaboração do
espetáculo.
Em meio a essas inquietações e com a extinção dos dois núcleos (direção e
dramaturgia), surge o Projeto Cena 3x4, no ano de 2003, que vem promover o fortalecimento
dos grupos no âmbito da pesquisa em teatro e propor novas formas de criação, transpassado
pela verticalização das funções teatrais.
O projeto Cena 3x4 é uma parceria do Galpão Cine Horto (BH) com a Maldita Cia.
de Investigação Teatral (BH) que busca promover o fortalecimento de grupos de
teatro que se proponham a investigar a cena teatral a partir da pesquisa e da
construção de uma dramaturgia própria e contemporânea.
(www.grupogalpao.com.br/cena3x4.htm)
Amaury Borges, Lenine Martins, Lissandra Guimarães e Nina Caetano que
constituíram a Maldita Cia. de Investigação Teatral propuseram ao Galpão Cine Horto o
Projeto Cena 3x4, na expectativa de promoverem uma interface entre as três áreas: atuação,
direção e dramaturgia. Como contraproposta, o Galpão Cine Horto acrescentou que o Projeto
fosse composto por grupos teatrais já existentes e a partir daí surgiu a criação da Maldita Cia.
de Investigação Teatral, juntamente, com outros três grupos participantes nessa primeira
versão do Projeto. Sobre o fortalecimento do teatro de grupo, Júlio Maciel
101
, ator do Grupo
Galpão, explica porque foi de interesse do Cine Horto propor ao Cena 3x4 esse requisito:
O Cine Horto quer frisar o trabalho de grupo. A gente do Galpão monta, desmonta
etc. No grupo, a responsabilidade é de todos. O processo colaborativo vem resgatar
101
Em entrevista para o autor – 14/03/2006.
97
isso, o trabalho coletivo. No trabalho em grupo, mesmo quando os papéis são
definidos, o trabalho é do grupo. É um pouco o que a gente tenta passar aqui no
Cine Horto. A gente não tem uma técnica, e sim uma prática de Grupo. (Grifos
meus).
Portanto, ao convidarem grupos de teatro de Belo Horizonte, constataram que em sua
maioria eram compostos apenas por atores e, assim, resolveram convidar dramaturgos e
diretores dos Núcleos (Dramaturgia e Direção) extintos, para compor as equipes
participantes. A intenção nesse tipo de agrupamento, segundo Lenine Martins (2006)
102
, era a
de atritar as relações entre os atores, diretores e dramaturgos, a fim de questionar o lugar da
criação e buscar novas possibilidades na elaboração da cena. Martins (2006) aponta também
que foi fundamental a presença do dramaturgo na sala de ensaio, visto que a dramaturgia
também opera no lugar das ações.
Recorremos ao conceito de ação dado por Barba (1995) ao falar sobre dramaturgia:
Numa representação, as ações (isto é, tudo que tem a ver com a dramaturgia) não são
somente aquilo que é dito e feito, mas também os sons, as luzes e as mudanças no
espaço. Num nível mais elevado de organização, as ações são os episódios da
história ou as diferentes facetas de uma situação, os espaços de tempo entre dois
clímax do espetáculo, entre duas mudanças no espaço ou mesmo a evolução da
contagem musical, a mudança da luz e as variações do ritmo e intensidade que um
fator desenvolve seguindo certos temas físicos precisos (maneiras de andar, de
manejar bastões, de usar maquiagem ou figurino). Os objetos usados na
representação também são ações. Eles são transformados, adquirem diferentes
significados e colorações emotivas distintas. Todas as relações, todas as interações
entre as personagens ou entre as personagens e as luzes, os sons e o espaço, são
ações. Tudo que trabalha diretamente com a atenção do espectador em sua
compreensão, suas emoções, sua sinestesia, é uma ação. (...) Não é tão importante
definir o que é uma ação ou quantas existem numa representação. Importante é
observar que as ações são operantes quando estão entrelaçadas, quando se tornam
textura: ‘texto’. (Barba, 1995: p. 68)
A partir dessa definição, ampliamos o conceito de dramaturgia (ligado apenas ao texto
escrito) e, conseqüentemente, colocamos o dramaturgo em de igualdade com os demais
criadores da cena. Esse novo dramaturgo não es incumbido de anotar no papel o que os
atores improvisam, registrando as falas e melhorando-as. Ele irá operar no campo das ações,
do texto espetacular, enfim, da própria elaboração da cena.
Notamos que a partir do processo colaborativo, com a inclusão do dramaturgo na sala
de ensaio, surgiram novos profissionais. Esse fenômeno foi fundamental para a prática
102
Amaury Borges e Lenine Martins em entrevista para o autor no dia 28/09/06.
98
colaborativa, desde a década de 1990 em São Paulo, e a partir de 2000, em Belo Horizonte,
pois esses se dispunham a trabalhar de outra forma, já não mais a individual. Silvana Garcia
103
(2004) identifica da seguinte forma esse acontecimento:
Outro aspecto importante da produção dos anos 90 é a presença de uma nova
geração de dramaturgos, jovens maduros, em sua maioria com idade que oscila entre
os trinta e quarenta anos, que fazem da escrita uma profissão. Ou seja, não são
apenas autores inspirados que desenvolvem projetos artísticos pessoais, mas sim que
trabalham em sistema colaborativo, aceitando desafios como escrever para
companhias, criar roteiros de cinema e televisão e têm uma presença ativa na vida da
comunidade teatral. São profissionais do ofício, que escrevem por motivação
própria, mas também aceitam convites de grupos e diretores. Nestes casos, eles se
aproximam e até mesmo integram-se, por um tempo, em projetos coletivos, às vezes
para produzir mais de um trabalho. (2004: p. 27) (Tradução livre do autor).
Essa verificação revela-nos que o campo da dramaturgia expandiu-se, não apenas no
número de profissionais que começou a trabalhar na área, como também num aprofundamento
da pesquisa e qualificação desses artistas. Sua inserção em coletivos tem mostrado que o
teatro ganhou outra dimensão, ao experimentar novas possibilidades de elaboração do
espetáculo e apostar na verticalização dessas funções.
Desse modo, o Projeto Cena 3x4 surgiu na intenção de promover novas formas de
relação entre os criadores da cena teatral, como também de possibilitar uma investigação nos
modos de criação, na contramão do teatro comercial, ou seja, “na montagem de uma peça, (...)
como se o teatro fosse uma indústria”, sustenta Amaury Borges (2006)
104
.
Foram integrantes do projeto, no primeiro ano, os seguintes grupos: Luna Lunera,
LaBaPi, Grupo Trama e Maldita Cia. de Investigação Teatral.
O Projeto foi estruturado para os quatro grupos em três etapas, sendo elas: (1)
Levantamento e definição do universo temático em confluência com a linguagem; (2)
Estruturação do roteiro dramatúrgico; (3) Aprofundamento da dramaturgia da cena e da
encenação. Essa estruturação foi sugerida pelos coordenadores externos do projeto (Luís
103
Outro aspecto importante de la producción de los 90 es la presencia de una nueva generación de dramaturgos,
jóvenes maduros, en su mayoría con edades que oscilan entre los trienta y los cuarenta años, que hacen de la
escritura una profesión. O sea, no son apenas autores inspirados que desarrollan proyectos artísticos personales,
sino que trabajan en sistema colaborativo, aceptan desafíos como escribir para companias, crear guiones de cine
y televisión y tienen una presencia activa en la vida de la comunidad teatral. Son profesionales del oficio, que
escriben por motivación propia, pero también aceptan invitaciones de grupos o directores. En estos casos, ellos
se aproximan y hasta se integran por un tiempo en el proyecto colectivo, a veces para producir más de un trabajo.
(2004: p. 27). In: GARCIA, Silvana. La nueva dramaturgia y el proceso colaborativo en la escena paulista.
Conjunto, Havana, n.134, p. 24-28, oct-dic, 2004.
104
Amaury Borges e Lenine Martins em entrevista para o autor no dia 28/09/06.
99
Alberto de Abreu e Antônio Araújo) em combinação com os demais coordenadores
(integrantes da Maldita Cia. e do Galpão Cine-Horto, particularmente Chico Pelúcio e
Fernando Mencarelli), objetivando garantir o espaço de criação nas diversas áreas. Em cada
uma dessas etapas eram realizados os coletivões que reuniam todos os grupos e os
coordenadores para uma apreciação processual de cada trabalho. Nesse momento,
aproveitavam para avaliar o desenvolvimento de cada grupo e apontar algumas indicações.
A 1ª Edição (2003)
O projeto durou três anos e a edição (2003) foi pensada para durar seis meses, algo
breve que desse aos coletivos participantes uma oportunidade de conhecer a criação através
do processo colaborativo. Mas, com o andamento dos trabalhos, foi necessário estender o
prazo de criação, passando a contemplar um ano de experimentações. Constataram que a
pesquisa em seis meses de trabalho começava a ser erguida e, portanto, interrompê-la naquele
momento para uma possível apresentação seria como “abortar” o trabalho. Antônio Araújo
resgata a importância do tempo para o amadurecimento das questões criativas e diz que em
seu primeiro trabalho junto ao Teatro da Vertigem (O Paraíso Perdido) descobriram que o
processo “não deveria ter uma duração delimitada e rígida demais, que, necessariamente,
possuía um tempo de gestação maior do que o convencional” (2002: p. 150).
Como dissemos, nessa 1ª edição os grupos convidados eram basicamente compostos
por atores, daí o convite aos membros dos Núcleos de Dramaturgia e Direção para comporem
esses coletivos, a fim de estabelecer, de fato, uma investigação colaborativa. Cada grupo teve
o seu tempo para, nessa primeira fase, conhecer seus membros.
Nesse ano, ocorreram grandes trocas entre os grupos, sendo que cada coletivo assistia
aos ensaios/experimentações dos outros e discutiam sobre os processos, sobre as relações
adotadas em cada coletivo para manter/estabelecer a horizontalidade na criação, para a
descoberta do tema, da linguagem etc. Os núcleos reunidos formavam tanto um grande
coletivo de criadores que partilhava as questões relacionadas à investigação simultânea do
processo colaborativo, quanto um “primeiro” público para os trabalhos em processo. Esse
contato com o espectador desde o início é um fator potencializador do trabalho, pois permite
que o grupo possa ter um feed back constante do que está elaborando. Eram nesses encontros
100
que se discutiam as relações de trabalho entre o coletivo, a linguagem apontada pelos núcleos,
o tema e outros aspectos.
A importância de abrir o processo aos demais envolvidos no projeto faz parte da sua
metodologia, uma vez que as observações/interferências de espectadores (membros do
projeto) dão ao grupo novas proposições de trabalho. Essa avaliação do que era visto no dia
de trabalho dava um norte para o coletivo, que muitas vezes se perdia no fazer, nas
experimentações e nas relações de convivência artística.
Novamente, as presenças de Luís Alberto de Abreu e Antônio Araújo foram essenciais
para o desenvolvimento do trabalho e vinham em momentos pontuais do processo, para dar
assessoria ao projeto como um todo e aos núcleos em particular. Em alguns vídeos registrados
naquele momento
105
, pode-se perceber que muitas vezes os coletivos precisavam apenas de
incentivos, de serem aconselhados a “arriscar mais” e se esquecerem do produto/apresentação
no início da pesquisa, pois que pretendiam investigar um determinado tema a partir do
processo colaborativo, o tempo de experimentação deveria ser o suficiente para esgotar as
possibilidades de cada núcleo. Nesse processo, se os atores deveriam improvisar
constantemente buscando descobrir personagens, ações, relações entre si, o diretor e o
dramaturgo também deveriam se posicionar frente à criação e também arriscar. Se o ator pode
ficar horas experimentando uma relação com um objeto e depois não utilizar nada daquilo
para a personagem, por que o dramaturgo tem que acertar sempre ou chegar com as idéias
prontas? Esse tempo de experimentação precisa ser garantido a todos os membros, pois,
novamente, coloca-os num mesmo patamar de criação.
O projeto Cena 3x4 apresentou três momentos. No primeiro, paralelo a um
reconhecimento do grupo, visto que alguns núcleos nunca haviam trabalhado em conjunto,
havia um investimento na escolha do tema a ser abordado - sobre o que se quer falar- e uma
primeira fase de experimentação prática, em que tem início a investigação também da
linguagem a ser utilizada. No segundo momento, o material levantado na primeira etapa
começava a ser trabalhado para a construção de cenas mais elaboradas, e, aqui, tema e
linguagem se encontram definidos. O terceiro momento era o aprofundamento desse
material. As três etapas eram também marcadas pela busca da verticalização da coletivização
do processo de criação. Na primeira etapa, os grupos se deparavam com a necessidade de
105
Os vídeos: Cena 3x4 Primeiro encontro de Direção; Cena 3x4 primeiro encontro (fechamento com Luís
Alberto de Abreu); Cena 3x4 Primeiro encontro dos Núcleos: cenas e fragmentos” podem ser encontrados no
Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT) no Galpão Cine Horto.
101
estabelecer um procedimento colaborativo de criação, encontrar seus meios e engajar seus
criadores efetivamente no processo. As etapas seguintes deveriam também proporcionar o
aprofundamento da experiência colaborativa no desenvolvimento do trabalho criativo.
Nas três edições do Projeto (2003, 2004 e 2005) ficaram estabelecidas essas três etapas
para os grupos, mas conforme Martins (2006), no primeiro ano, essas etapas vieram de uma
necessidade dos grupos e que, portanto, tornaram-se essenciais naquele momento.
Martins (2006) ainda comenta que, nesse ano, muitos integrantes dos grupos
participantes haviam feito a oficina com Luís Alberto de Abreu e Antônio Araújo sobre
processo colaborativo e que o foco do projeto não estava na relação colaborativa, pois os
criadores tinham ciência dos seus lugares, mas que o foco estava na discussão estética das
obras em processo.
A 2ª Edição (2004)
Na edição, os dramaturgos e diretores eram mais jovens na profissão e as crises
surgiam a todo instante, pois tinham pouca prática nesse cleo (direção ou dramaturgia).
Conforme os coordenadores, (Borges e Martins 2006), faltou engajamento de alguns grupos
nesse momento e surgiu a pergunta: “Será que esses coletivos não têm questões a dizer e por
isso não se justifica trabalhar colaborativamente?” Afinal, quando é que um grupo precisa
criar a partir do processo colaborativo? Entende-se que esse processo não é sinônimo de
eficiência no que diz respeito ao seu produto e para isso existem outras tantas formas de
criação teatral. Para eles, só fazia sentido partir para o processo colaborativo quando o
coletivo precisava criar uma dramaturgia, ao mesmo tempo em que escolhia radicalizar os
procedimentos criativos coletivos, a fim de atritar as relações de trabalho, muitas vezes
viciadas.
Os coordenadores também perceberam que os atores estavam enfraquecidos no
processo e precisavam restabelecer seu material, questionando, colaborando e potencializando
o trabalho dos demais criadores. Em decorrência dessa lacuna no trabalho do ator, foi
convidada para ministrar uma oficina aos atores a atriz, diretora e pesquisadora Tiche Vianna
(do Grupo Barracão de Teatro Campinas/SP). Conforme depoimentos no encontro da “Rede
102
colaborativa
106
”, ocorrido em novembro de 2005, os atores de vários grupos apontaram que a
partir da oficina da Tiche começaram a provocar os outros criadores e perceber que através da
atuação era possível dialogar com o dramaturgo, com o diretor, com o cenógrafo,
estabelecendo um diálogo criativo com os demais artistas.
Foi então que sentiram a necessidade de incentivar os grupos a colocarem, desde o
início do trabalho, a figura do cenógrafo para responder por essa área específica e dar outra
dimensão à criação. Isto ocorreu devido à revisão das edições anteriores, pois quando os
coletivos começaram a caminhar para um possível fechamento do trabalho e um encontro com
o público, perceberam a falta de um projeto cenográfico, de iluminação. Quando esses
elementos, tão importantes quanto os demais, entravam na encenação, num momento
posterior a toda criação, ficavam mais frágeis em relação ao restante do trabalho, não por
opção estética, e sim por falta de um profissional que os concebesse junto com as demais
áreas.
Na 2ª e edição houve uma ausência da troca ocorrida entre os grupos, se comparada
à 1ª edição, pois para as duas posteriores, a valorização esteve ligada ao produto final.
Também na edição começou a se esboçar um caráter formativo dos grupos, talvez pelo
desconhecimento da abordagem colaborativa e o foco caminhou para esse aspecto: como
trabalhar colaborativamente.
A 3ª Edição (2005)
Na edição ocorreu a abertura de edital para que grupos que quisessem e tinham o
interesse/necessidade de investigar questões através do processo colaborativo se inscrevessem
no projeto, pois os fomentadores da proposta buscavam grupos que tinham um caráter de
investigação e de pesquisa. É possível que a maioria dos grupos participantes nessa edição
tenha se inscrito sem ter tanta clareza sobre a natureza do projeto, principalmente por faltar
maiores informações ou referência sobre o processo colaborativo.
Com a 3ª edição do Projeto, os convidados externos para o acompanhamento do
trabalho foram os seguintes profissionais: Luís Alberto de Abreu (Dramaturgia), Chico
106
Esse encontro da “Rede Colaborativa” foi a tentativa de reunir todos os grupos participantes do projeto Cena
3x4 e promover um debate acerca do processo colaborativo. Cada coletivo teve seu espaço para tecer
comentários sobre o seu processo de criação como participante do projeto e os desdobramentos oriundos dessa
experiência.
103
Medeiros (Direção) e Tiche Vianna (Atuação). Nesse ano, também foram estabelecidas as três
etapas durante o percurso e a vinda desses profissionais nesses momentos. Essa definição de
etapas para todos os grupos gerou uma espécie de etapas metodológicas, sendo que cada
grupo deveria chegar ao mesmo tempo em determinado lugar. Esse aspecto revelou que
muitos grupos, visando o cumprimento do cronograma, deixaram de investigar o seu processo
criativo para atender a essa necessidade e, portanto, pularam etapas e possibilidades de
descobertas individuais, atentando-se ao cumprimento do calendário – comum a todos.
Martins (2006) afirma que sentiu falta, a partir dessa edição, de promover núcleos de
estudos com os criadores, a fim de radicalizar as propostas e fomentar novas pesquisas. Numa
avaliação do projeto, durante as três primeiras edições, Borges e Martins (2006) afirmaram
que o mesmo tomou um caráter pedagógico, de formação, colocando etapas muito definidas:
primeiro isso, depois aquilo. E que esse procedimento acabou podando o sistema criativo,
dado o cronograma estipulado a todos os grupos e que cada um deveria acompanhar os
demais para o cumprimento das etapas estabelecidas. Essa, no entanto, não era uma visão
partilhada totalmente pela equipe do Cine Horto, co-coordenadora do projeto, particularmente
pelo seu representante no projeto, Fernando Mencarelli. Para ele, o caráter formativo do
projeto era uma de suas principais características, e estaria sendo plenamente realizado no
acompanhamento dos processos criativos e suas dinâmicas.
Avaliação das três edições
Sendo assim, podemos dizer que, ao longo de suas três edições, o Projeto Cena 3x4
mudou de foco, adequando-se à demanda dos núcleos que se apresentavam para o projeto. Se
para a edição era pensada a troca entre os processos artísticos dos grupos e cada coletivo
assistia ao cotidiano de trabalho dos outros, caminhou até chegar na edição para um lugar
formativo, não perdendo o caráter artístico, mas tomando como ponto principal a pedagogia
colaborativa. Pretendo dizer com isso que o teatro dever ser preservado em sua
potencialidade, pois seu principal vigor pedagógico está no caráter artístico que lhe é
inerente” (Desgranges, 2006: p. 91).
Nas três edições, observou-se que a proximidade da estréia forçava os grupos a um
fechamento da proposta para a fruição do espectador, deixando de lado o espaço dado à
104
experimentação, e possibilitando o retorno, ainda que pontual, de procedimentos não tão
colaborativos de criação.
No ano em que a Maldita Cia. de Investigação Teatral participou (2003), os
coordenadores e também integrantes desse coletivo, perceberam que como co-criadores eram
um incentivo aos outros grupos e a partir do 2º ano sentiram-se mais condutores das regras do
que parceiros na criação. Por isso, no ano de 2006, já sem a parceria do Galpão Cine Horto, o
Projeto Cena 3x4 foi desenvolvido por dois coletivos: a Maldita Cia. de Investigação Teatral
e o Reviu a Volta ambos os grupos participantes das versões anteriores do projeto e que
agora dialogavam ao longo de todo o processo de criação.
Em resumo, partindo do conceito de autoria compartilhada, o projeto Cena 3x4
proporcionou o encontro criativo de artistas-pesquisadores dos diversos segmentos do fazer
teatral. Esse projeto pretendeu estimular, também, a formação de novos dramaturgos,
diretores, atores etc. Vale ressaltar que essa formação deu-se em grupo e cada um desses
criadores acabou se apropriando de modo particular da criação do outro e que as relações
entre os criadores durante o processo se estabeleceram de acordo com cada equipe.
na elaboração do produto artístico, cada um dos criadores assumia uma
responsabilidade, em profundidade e extensão, pois estavam participando duplamente: na
concepção integral da obra e em sua área específica. Então, os criadores envolvidos
permaneciam em suas funções específicas (atuação, cenografia, direção, dramaturgia), mas
participavam do todo, ou seja, eram respeitadas as atribuições de cada função e
compartilhadas as decisões que os criadores tinham de tomar durante o percurso. Foi num
limite tênue que essas relações se estabeleceram.
Partimos agora para a reflexão de um coletivo em específico, a Maldita Cia. de
Investigação Teatral que, como proponente do referido projeto, também integrou a sua
edição (2003).
105
3.2 – Maldita Cia. de Investigação Teatral
3.2.1 – A conjugação dos desejos
Reunido o grupo com seus quatro integrantes iniciais, veio o questionamento: “Do que
iremos falar?”, haja vista a pluralidade de temas que poderiam ser abordados. Borges (2006:
p. 03) revelou que os primeiros aspectos levantados pelo grupo foram: “o próprio corpo-em-
vida do ator-pensador e a sua atitude pré-expressiva, a narrativa enquanto base discursiva e da
ação, o espaço físico enquanto locus de espaço/tempo ritual e de espaço vazio”.
Apontadas as questões que afetavam esses criadores naquele espaço-tempo, com o
amadurecer das propostas e a partir de experimentações sobre os temas, foram afunilando o
eixo centralizador da investigação a fim de aprofundarem a pesquisa.
Desde o início, era interesse para o grupo enveredar-se pela linguagem épico-
dramática, não só pelas experimentações anteriores na Oficina de Direção (com Aderbal
Freire Filho), mas pelas possibilidades de encontrar nessa linguagem uma reverberação das
inquietações humanas e, portanto, subjetivas, que afetavam esses criadores.
A própria narrativa, suas várias possibilidades, os jogos de quebra e relações com o
espectador que essa linguagem permite, para muito além do dramático, são eles elementos
provocadores do desejo. “Para além disso, não acreditamos muito na forma dramática e nas
possibilidades estéticas dela. O drama diz do que é possível dizer... o épico nos oferecia a
possibilidade de dizer outras coisas: o delírio, o pensamento do outro, o que está no íntimo e o
que está lá fora, na instituição...” (Caetano
107
, 2007b: p. 01)
O encontro do gênero épico com o dramático possibilitava ao ator narrar e vivenciar,
narrar distanciadamente na terceira pessoal do singular e vivenciar na primeira pessoa;
inverter, subverter a própria vivência como memória e narrá-la. Então, “essa dimensão de
status em pêndulo narrativo e dramático, ampliou as [...] possibilidades dialógicas para o ator,
as dilatações espaciais e temporais” (Borges, 2006: p. 08).
O tema do primeiro trabalho do grupo foi apontado por Amaury Borges, do Núcleo de
Direção, que levou um livro sobre Artur Bispo do Rosário
108
. Acolhido com bastante interesse
107
Em entrevista para o autor em 29/09/2007(b).
108
Artur Bispo do Rosário (1909 1989) foi criado por uma família rica, em Botafogo/RJ e quando jovem foi
marinheiro e lutador de boxe. No dia 22 de dezembro de 1938, teria visto Cristo descer no quintal da casa
acompanhado de sete anjos azuis. Com a visão tudo mudaria em sua vida; proclama-se Jesus Cristo e é internado
com o diagnóstico de esquizofrênico-paranóico. Passou mais da metade de sua vida trancafiado na Colônia
106
pelos demais membros do coletivo, passaram a encontrar consonâncias relevantes a partir
desse mote. As discussões sobre o poder, as instituições e o lugar da exclusão, do marginal
social eram do interesse coletivo. “Isso suscitou em nós a vontade de investigar a loucura e a
relação institucional com ela. Essa relação institucional sempre nos interessa...” (Caetano,
2007b: p 01).
Para Nina Caetano, dramaturga, a personalidade de Maura Lopes Cançado
109
era
muito forte, principalmente pelo seu ato de resistência, rebeldia. Entrelaçando conteúdos
afetivos à história pessoal da dramaturga, o tema tornou-se uma questão vital a ser investigada
nesse trabalho.
Bertolt Brecht (2005) traz a seguinte questão em sua obra: “Poderá o mundo de hoje
ser reproduzido pelo teatro?” A busca coletiva por uma dramaturgia e linguagem próprias
presentes de forma central no processo colaborativo não deixa de reverberar essa questão de
Brecht. A procura de novas formas processuais corresponde ao questionamento do status da
cena vigente: “Só poderemos descrever o mundo atual para o homem atual na medida em que
o descrevermos como um mundo passível de modificação.” (2005: p. 20)
Casa das Misericórdias (criação da Maldita Cia.) começa questionando o papel do
espectador/visitante na apresentação do espetáculo. Ao entrar por uma porta, num lugar
escuro e desconhecido, o espectador é conduzido àquele espaço/tempo como se fosse um
visitante do manicômio, encontrando naquele lugar as figuras de uma interna, de um guarda e
dos demais “visitantes”, conforme descrição abaixo:
Prólogo:
Um homem abre a porta, recebendo o público. Arquitetura do abandono. Lugar
híbrido, cheiro de hospital. Corredor. Pátio. A fachada de uma velha casa. Bancos
compridos espalhados pelo lugar: sala de espera. Bar. A luz clara deixa ver as
paredes cobertas por escritos que se sobrepõem. O homem adverte que as bolsas
devem ficar debaixo dos bancos. Enquanto o público se instala, uma voz de mulher,
no interior da casa, começa a tecer uma ladainha (canção do hospício de Barbacena).
O homem novamente adverte o público.
Juliano Moreira/RJ. Utilizava para "reconstruir o universo" elementos do cotidiano. Segundo ele todas as suas
obras eram para "ofertar ao Deus todo-poderoso no dia do Juízo Final". Ele, no interior de sua cela, desfiava seus
uniformes de interno para obter fios azuis desbotados com os quais bordava sua cartografia, mumificava os
objetos do seu cotidiano. O artista desnuda-se, despoja-se para dar existência à obra, assinalando a
transitoriedade do corpo em oposição à permanência do trabalho.
109
Maura Lopes Cançado nasceu em 1930 no interior de Minas Gerais. Após receber uma boa herança pela
morte de seu pai, muda-se para o Rio de Janeiro deixando seu filho. Após sentir-se sozinha e depressiva é
internada em hospital psiquiátrico. Sobre o período que esteve internada escreve a obra “Hospício é Deus” – uma
narrativa apresentada sobre a forma de diário que a autora escancara, entre outros temas, a rotina de um
sanatório, o tratamento muitas vezes cruel imposto às internas, reflexões sobre sua própria condição e a vida
levada até ali. Como interna foi tratada à base de eletrochoques e soníferos, passando por situações desumanas
que soube, ao fim das contas, transformar a dor do sentir e do ver em obra poética.
107
HOMEM – Não se pode arredar os banco. Não se pode fumar nem atender os
telefone. (para um espectador desavisado) E repito: bolsa, debaixo dos banco.
(Caetano et al, 2007: p. 02)
Sentimos-nos, enquanto espectadores, muito acuados com aquela recepção, pois as
várias regras impostas pelo guarda e o desconforto de estar cara a cara com os demais
visitantes nos transportam a um ambiente de confinamento e opressão. Todos nós compomos
o cenário, inclusive nossos pertences, largados ao chão. O grupo traz novamente a discussão
sobre a criação do espectador, a qual apontamos no primeiro capítulo dessa pesquisa. Esse
outro criador, acolhido no âmago da cena, não só faz parte desse coletivo, como interfere
diretamente na obra.
Exatamente sobre esse aspecto, Caetano (2007b) revelou que ao espectador foi
destinado o papel de um visitante.
Como alguém que está naquele lugar, participando daquela experiência, naquele
momento, mas que não vive ali. Alguém a quem são dados fragmentos, argumentos,
defesas. Alguém que partilha de um pedaço daquelas vidas... não uma testemunha
distante, que pelo binóculo, mas alguém que entra na casa, sente o cheiro das
coisas, o peso das coisas. (2007b, p. 04)
A estrutura/instituição do poder é fortemente questionada no espetáculo e começa
propondo uma “re-visão” do lugar do espectador, pois ele deixa de ser um anônimo que foi
assistir ao teatro, para tornar-se um cúmplice das atrocidades cometidas naquele local,
responsável inclusive por calar-se e não posicionar-se frente ao que lhe é mostrado/contado.
Dessa forma, o coletivo consegue trazer para a criação seus anseios projetados no início do
projeto, quando ainda levantavam questões pertinentes ao que iriam dizer.
Outra discussão pertinente ao trabalho é a relação entre indivíduo e sociedade, tendo
mais uma vez como pano de fundo a instituição de poder. A exclusão que propõe a sociedade
atual dos indivíduos diferentes/anormais é presenciada no confronto entre a interna e o
guarda, sendo a primeira representante do fraco e o segundo do forte. O guarda João de Deus
quer impor à louca Laurinda sua religiosidade e faz ameaças para que ela aceite a Deus, senão
é punida e não receberá comida. Mas Laurinda questiona os direitos institucionais na seguinte
passagem: LAURINDA Laurinda era doida, não era? Se isso dava ao guarda direito de
fazer o que quisesse, por que não daria a ela?(Caetano, 2007: p. 07). Enfim, o que dá direito
ao guarda de tratá-la como louca e fazer dela o que quiser? Sendo rotulada como louca, ela
108
também poderia fazer qualquer coisa? A relação dialógica proposta pela cena faz o espectador
retomar a todo instante sua condição de indivíduo dentro de uma coletividade, que impõe
regras de conduta e disciplina dos corpos.
Ainda no âmbito da dramaturgia, Laurinda inicia um silencioso trabalho de escrita
sobre as paredes. Nossa leitura traduz a possibilidade daquele corpo burlar as regras
instituídas e conseguir amenizar sua dura estadia naquele manicômio, o que Michel de
Certeau (1994) ao investigar o cotidiano cunhou de tática exatamente o processo pelo qual
os sujeitos usam para infringir de forma velada as normas estabelecidas.
Nina Caetano
110
, responsável pela dramaturgia desse espetáculo, chamou de notação a
forma que encontrou junto ao seu grupo para concretizar, em termos escritos, a composição
existente entre o gesto e a palavra, o corpo e o espaço. Vejamos um exemplo contido no texto:
GUARDA O Guarda bem sabe que Laurinda o provoca! É o seu exercício diário.
Todos os dias, o Guarda faz um esforço sobre-humano para não invadir a cela daquela puta,
louca, piranha.
LAURINDA Laurinda não se continha, não tinha limite: ela era doida, não era? Se
isso dava ao guarda direito de fazer o que quisesse, por que não daria a ela?
GUARDA O Guarda respira fundo e continua: Então ele os ensinou, dizendo: Pai
Nosso que estais no u, santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso reino, seja feita a
vossa vontade assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai as
nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido... Vê? Laurinda
continuava pelada... Apesar das roupas que ele trazia pra ela, ela ficava pelada, me tentando,
meu Pai... (pausa. Ele continua mais baixo) E não nos deixeis cair em tentação... mais
livrai-nos do mal. Amém.
LAURINDA Ai, meus anjos caralhudos, os anjos são sete, são grandes, de espadas
flamejantes rasgando a Bendita Buceta de Laurinda... A tentação de Laurinda era a do
Guarda. E ela provocava: Ave, Laurinda. Cheia de racha. Bendita sois s entre as mulheres:
peitudas, bundudas, bucetudas!
GUARDA – Ah, Laurinda... não blasfema!
LAURINDA Laurinda acaricia a Bendita... “O meu pão de cada dia, me dá hoje...
GUARDA Nem de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de
Deus!
LAURINDAO senhor é Deus?
111
110
CAETANO, Nina. A textura polifônica de grupos teatrais contemporâneos. In: Sala Preta, ECA/USP, 6,
2006. (p. 145 – 154).
111
Trecho do espetáculo Casa das Misericórdias, em que as falas são, muitas vezes, simultâneas: por exemplo, a
reza pornográfica de Laurinda atravessa a reza do Guarda.
109
Notamos que a dramaturgia desse espetáculo pode ser caracterizada como plural, pois
percebemos uma dramaturgia da atuação, do espaço, do texto, dos sons, do vazio, do silêncio,
na qual, conforme Grammont
112
(2004: p. 41):
(...) o jogo se desenvolve, em verdade, não entre diversas linguagens dramatúrgicas:
a dramaturgia do corpo, a dramaturgia do texto e a dramaturgia do espaço que
pode talvez compreender igualmente a dramaturgia do som e da luz. Nessa
concepção o que importa é que a dramaturgia é sempre plural e vel; e nesse
sentido se pode falar, inclusive, de uma dramaturgia do vazio e do silêncio.
(Tradução livre do autor).
Assim, todas essas ações
113
, como caracterizadas por Barba (1995), representam a
dramaturgia do espetáculo, ou o texto espetacular
114
, pois tecem o discurso cênico.
O trabalho da dramaturgia, nesse sentido, esteve na área da pesquisa de material para
as discussões ético-estéticas, ou seja, no campo do dramaturgismo e a criação propriamente
dita, no sentido de pesquisa (ou proposição) de imagens, narrativas etc.
A partir do livro de Maura Lopes Cançado, Hospício e Deus, a dramaturgia propôs
imagens a serem desenvolvidas durante os improvisos dos atores. Dialogicamente, os
improvisos dos atores esboçavam formas textuais das quais a dramaturga se apropriava e, por
conseguinte, propunha fragmentos de cenas ou textos.
Isso era improvisado e eu ia tecendo a costura entre os núcleos. Com a saída das
duas atrizes e a entrada do Lenine
115
, optamos por dois núcleos de ação: a visita ao
homem que se julgava Deus e a visita à mulher que tecia orações pornográficas. Aos
poucos, em função do tempo do projeto inclusive, optamos por transformar os dois
em um, o homem deus virou o guarda João de Deus, e a mulher tornou-se a única
interna do manicômio judiciário feminino. (Caetano, 2007b, p. 03)
112
“(...) el juego se desarrolla, en verdad, no entre diversos lenguajes dramatúrgicos: la dramaturgia del cuerpo,
la dramaturgia textual y la dramaturgia del espacio que puede tal vez comprender igualmente la dramaturgia
del sonido y de la luz. En esa concepción lo que importa es que la dramaturgia es siempre plural y móvil; en ese
sentido se puede hablar incluso de una dramaturgia del vacío o del silencio.” (2004: p. 41). GRAMMONT,
Guiomar de. El proceso colaborativo de dramaturgia a través de la pieza “elE: o outro”. In: CARREIRA,
André; VILLAR, Fernando (orgs.) et.al. Medicações performáticas latino-americanas II. Belo Horizonte:
Faculdade de Letras da UFMG, 2004. (p. 39 – 47).
113
Numa representação, as ações (isto é, tudo que tem a ver com a dramaturgia) não são somente aquilo que é
dito e feito, mas também os sons, as luzes e as mudanças no espaço. (Barba, 1995: p.68).
114
Texto espetacular (ou texto cênico) “é a relação de todos os sistemas significantes usados na representação e
cujo arranjo e interação formam a encenação.” (Pavis, 2000: p. 409).
115
Lenine Martins compunha o núcleo de direção junto com Amaury Borges, que com a saída de duas, das
três atrizes, ele passa a fazer parte da atuação, deixando, portanto, a direção.
110
3.2.2. – As visitas: do espaço vazio para a arquitetura do abandono
O que a Maldita Cia. buscou na relação com o público não caberia numa sala italiana,
visto a modificação na relação com o espectador e a coerência com a linguagem pesquisada.
Essa experimentação do teatro em outros espaços, que fogem ao teatro de palco, também
podem ser captadas por um aspecto de resistência, como identificou André Carreira ao
analisar o Teatro da Vertigem:
A ruptura com o código estrito do teatro de sala constitui uma prática de resistência
em um contexto teatral que se organiza pelas leis do mercado e que atribui valores
dos espetáculos a partir da capacidade de ocupação de espaços teatrais estritamente
hierarquizados ao longo da história (Carreira
116
, 2004b: p. 18 – 19).
Hoje, vemos multiplicada a ocupação de espaços públicos para a realização de
espetáculos teatrais em prol de níveis diferenciados de vinculação com o espectador e com a
linguagem. Sendo assim, no espetáculo, o espaço teatral pode ser qualquer lugar, pois: “É a
representação que ao espaço o seu caráter teatral” (Denis Bablet apud Serroni
117
, 1994: p.
28)
Também Anne Ubersfeld
118
(1991), ao falar sobre o espaço teatral, nos revela que este
é reconstruído na imaginação do espectador, e que:
A representação contemporânea trabalha essencialmente sobre o espaço. Longe de
unificá-lo, ela o fragmenta; longe de torná-lo coerente, ela o irracionaliza, impedida
de o tomar como um todo lógico, organizado. O espectador, fisicamente integrado
ao espaço, algumas vezes agredido por ele, é forçado não a aceitá-lo, mas a decifrá-
lo e, no limite, a reconstruí-lo. (1981: p. 123) (tradução livre do autor).
Existem diferenças quanto ao uso de espaços tornados teatrais, ou seja, existem grupos
que adaptam espaços de múltiplos usos para suas representações; outros utilizam o espaço
enquanto cenário real dos acontecimentos. E notamos que, frequentemente, espaços não
convencionais são usados por suas propriedades físicas, reforçando atmosferas já presentes no
texto. Para a Maldita Cia. o bar abandonado transformado em manicômio não é um elemento
116
CARREIRA, André. APOCALIPSE 1,11: risco como meio para explorar a teatralidade. In: CARREIRA,
André; VILLAR, Fernando (orgs.) et.al. Medicações performáticas latino-americanas II. Belo Horizonte:
Faculdade de Letras da UFMG, 2004b. (p. 11 – 28).
117
SERRONI, J. C. O palco italiano e seu rompimento. In: Modus cenográficos. São Paulo: SESC, 1994.
118
UBERSFELD, Anne. L’ecole du spectateur. Paris: Les Éditions Sociales, 1981.
111
alegórico; de fato é a estrutura que determina o olhar do visitante. Isso porque a investigação
dessa pesquisa não trabalhou a partir do texto dramático para sua concretização no palco.
Portanto, o espaço não é conseqüência de uma leitura do texto, nem a encenação nasce de
exigências da dramaturgia. Notamos uma estrutura que estabelece um diálogo entre espaço-
atores-dramaturgia e que todos esses lugares do discurso encontraram uma confluência no
espaço teatral criado.
Inicialmente, o grupo trabalhava numa sala de cores claras dentro do Galpão Cine
Horto e na segunda etapa, influenciados pelas visitas e numa afirmação dramatúrgica,
passaram a desenvolver o trabalho num antigo bar abandonado, ao lado do Galpão Cine
Horto.
Os ensaios na sala neutra privilegiavam o trabalho do ator, que se desenvolvia através
de vivências e improvisos temáticos, articulados com a linguagem épico-dramática. A direção
e a cenografia propunham intervenções nas ações dos atores com objetos expressivos (cordas,
elásticos, latinhas, trigo, fogo, água, tecidos) e parafernálias de iluminação (refletores,
lâmpada comum, velas etc.) e materiais sonoros (ruídos, sintonias de estações radiofônicas).
Havia, portanto, por parte dos atores uma construção de ações físicas para as personagens
naquele espaço-tempo. Dessa forma, esses materiais eram ressignificados de acordo com a
relação física do ator com o objeto, estabelecendo, inclusive através da fisicalização, portas,
passagens, cheiros, cores, noite/dia, dentro/fora, cima/baixo etc. Nesse jogo tudo era possível
de ser (des)construído, preenchido, erguido através do corpo do ator.
Conforme Borges (2006), estava contido dentro de toda essa experimentação “(...) o
ponto de vista do espectador” (p. 11), pois, além dos olhares dos criadores na área de direção,
dramaturgia e cenografia, havia constantemente integrantes de outros grupos do Cena 3x4
permeando essas experimentações.
As visitas a manicômios foram um ponto muito frutífero na busca de material para as
cenas. A violência apresentada pelos espaços destinados ao enclausuramento de loucos
causou grande impacto nos criadores.
Com isso, houve uma transposição dos ensaios ocorridos no espaço-vazio,
desenvolvidos na sala branca, para a arquitetura da casa-bar, estabelecendo, assim, um ritual
de passagem. Esse novo espaço apresentava, em sua edificação, uma imponência de signos e
registros impressos num estado de conservação, como: cores, cheiros, avisos, cartazes etc.,
segundo apresenta Borges (2006). Continha também características funcionais específicas:
112
cômodos, corredor, pátio com poço e escada, duas portas de aço com entrada/saída para duas
ruas.
A opção por esse espaço também tem um peso ideológico, pois de acordo com a
proposta do grupo a própria sala de ensaio dentro do Galpão Cine Horto estava dentro de uma
instituição propriamente teatral e a relação buscada no espetáculo quebrava exatamente com
essas regras. “Foi então que lembramos da casa ao lado, abandonada (que havíamos olhado
para ensaiar). E várias instâncias do que trabalhávamos em termos de ‘dramaturgia do espaço’
estavam configuradas ali: o dentro e o fora, os espaços de confinamento etc.” (Caetano,
2007b, p. 02)
Esse espaço, enquanto lugar de representação e memória para a comunidade local, já
não era utilizado enquanto bar, apresentava-se abandonado e configurava-se como meio de
passagem entre duas ruas. Segundo Borges, foi encontrado contendo:
(...) escombro, lixo, cores fortes e pálidas, cheiro latente nos diferentes
cômodos, as marcas do tempo e das pessoas que passaram ou viveram ali impressas
na arquitetura da construção como memórias e expressões vivas. Enfim, um espaço
de estatuto preponderante mas propício para a passagem ritualística e de encontro
com a nossa ‘voz’ cênica. (2006: p. 11)
Enquanto território de passagem, apontava dualidades: loucura-normalidade; público-
privado; homem-mulher; ator-personagem; e foi propício para o desenvolvimento da
linguagem épico-dramática. Essa mudança no espaço influenciou diretamente o trabalho dos
atores que passaram a investigar, inclusive, o material dramatúrgico oferecido pelo espaço,
possibilitando uma radicalização na criação do ator-criador inserido no espaço teatral.
3.2.3 – A atuação
O trabalho atoral foi desenvolvido, inicialmente, em nível pré-expressivo, conforme
explícito por Borges (2006), de acordo com os princípios da Antropologia Teatral, definida
como:
(...) o estudo do comportamento cênico pré-expressivo que está na base dos
diferentes neros, estilos, papéis e das tradições pessoais ou coletivas. Ela indica
113
um novo campo de investigação: o estudo do comportamento pré-expressivo do ser
humano em situação de representação organizada. (Barba, 1995: p. 186)
Paralelamente, foram criadas partituras de ações para a composição das cenas. O
conceito de partitura
119
foi extraído da música e aplicado ao trabalho do ator, assim como da
encenação que traz consigo um rigor implícito em sua utilização. Então, falar em partitura
implica em falar de ações que podem ser elaboradas, lapidadas, fixadas, combinadas e
reproduzidas.
Ao longo dos nove meses de trabalho, a criação dos atores deu-se da seguinte forma:
1. Contato com o material proposto (uma imagem, potencialmente humana, de Artur
Bispo do Rosário);
2. Improvisação relâmpago (queima-roupa) da imagem proposta;
3. Seminários (prático e teórico), sobre o universo de Artur Bispo do Rosário,
estudos sobre Antonin Artaud e a inserção da imagem de Maura Lopes Cançado;
4. Preparação psicofísica (energia, movimento e relação) que em sua base, conduza
para uma retro-alimentação da temática (loucura) e linguagem (épico-dramática);
5. Aplicação de jogos e vivências a partir da peculiaridade de cada ator (campo do
inconsciente individual e coletivo) dentro e fora da sala de ensaio;
6. Através de jogos e improvisos, criação de imagens potencialmente humanas para
inventariar partituras de atuação a partir de impressões particulares e pessoais,
seguido de trabalhos (prático-teórico) para definição do acordo comum sobre a
imagem cênica;
7. Improvisos (sonoridades, figurinos, materiais expressivos e de iluminação) para
estruturação de pré-partituras de ação de cada ator-compositor (trabalho com diretor,
músico, iluminador e cenógrafa) e ocupação do espaço cênico para encenação.
Através de baterias de improvisos, descobrir a rede de relações de encontro a partir
da gênese de cada personagem-atuante.
8. Nesta seqüência, “envelheceras relações, para chegar à situação de encontros;
Improvisos para estruturação de partituras para encontro e armação da dramaturgia
das cenas;
9. Trabalho de ocupação e instalação no espaço físico da encenação (Bar
abandonado);
10. Trabalho sobre as cenas e estruturação do primeiro esboço do roteiro completo
da dramaturgia (trabalho com diretor e dramaturga);
11. Estruturação dos blocos fundantes da dramaturgia da cena e primeiro encontro
com o espectador convidado;
12. Ensaios por cenas e do roteiro dramatúrgico (experimento no espaço de
iluminação e escolhas sonoras)
13. Aprofundamento no material interpretativo (foco no ator);
14. Ensaios (03) abertos com espectador;
15. Ensaio geral e estréia;
16. Acompanhamento em todas as apresentações e ensaios de correção e
potencialização dos encontros. (Borges, 2006: p. 15 – 16).
119
Tal concepção foi elaborada por Stanislavski que interrogou-se quanto à dificuldade de fixação da ação,
mantendo sua vitalidade. A ação, independente de motivações interiores que ultrapassam a vontade, pode ser um
elemento reproduzível e passível de fixação. Torna-se, portanto, psicofísica à medida que, reproduzida de forma
precisa, passa a ser uma isca dos processos interiores. Para Barba (1995: p. 188): “Qualquer que seja a estética
da encenação, deve existir uma relação entre a partitura e a ‘subpartitura’, os pontos de apoio, a mobilização
interna do ator”.
114
A estrutura mostrada acima foi reunida por Amaury Borges, diretor do espetáculo, e
contempla toda a fase de elaboração do espetáculo, dando foco ao trabalho do ator. Percebemos
que o princípio da polifonia está contido dentre as etapas mencionadas e que o ator estabelece
relação com todas as áreas da encenação, buscando, ao logo do processo, incorporar os
variados discursos.
Ainda, Borges (2006) aponta uma série de princípios e práticas desenvolvidas no
trabalho do ator e ressalta que o grupo não estabeleceu uma “base de treinamento”, mas sim
uma “preparação” que antecedia a cena em nível pré-expressivo, para todos os criadores do
espetáculo.
Somente para citar, na relação do ator e de diretor, assim como o ator se prepara, se
‘aquece’, se libera das energias cotidianas para agir extra-cotidianamente de forma
artística e pública, o diretor também, aquece e desperta seu corpo e espírito para agir
com o senso diretor, preparar para o exercício do ‘olhar ampliado e periférico’ e do
trato com o ambiente de ensaio e a palavra motivadora, justa e potencializadora do
trabalho do ator. Como nesta relação, todas as outras funções criadoras se aquecem e
exercitam, reservando suas diferenças, no nível do trabalho de atuação. (Borges,
2006 : p. 16 – 17).
Esse “aquecimento” de todos os criadores para o exercício criativo trouxe benefícios
ao rendimento do grupo, visto que despertava seus sentidos para a proposta, deixando o
estado cotidiano para alargar as possibilidades de intervenção e criação da obra. Os ensaios
eram uma constante de experimentações e composições nos diversos materiais propostos
pelos artistas. Um aprendia com o outro e também interferia sobre o material produzido na
cena.
Enfim, foi possível, durante a elaboração da Casa das Misericórdias, colocar-se
enquanto criador no processo e mesmo assim incorporar/apropriar-se do discurso dos demais
criadores. Para Caetano (2007b), isso é o significado de criação compartilhada.
É a necessidade de manter o seu incorporando o do outro, por isso, incorporamos a
loucura, elementos da linguagem do Bispo, mas não inteiramente o Bispo... a
cenógrafa incorpora a proposta do diretor na proposta dos materiais e objetos
(assemblages do Bispo), esse material me leva à Maura, que também deixa
presenças e defesas. Os atores dialogam com as imagens/textos/fragmentos advindos
daí etc. (2007b: p.05)
115
Enfim, compreende-se, através do estudo do Projeto Cena 3x4 e do espetáculo Casa
das Misericórdias que a afirmação do processo colaborativo enquanto provocador e
disseminador de novas estratégias para o erguimento do espetáculo é possível na medida em
que seus criadores estão dispostos a fazê-lo, necessitam colocar-se ativamente na construção
do sentido e na reflexão gerada pela obra e buscam estratégias para a instauração de sua
dimensão criativa coletivizada.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Penso que, como disse algumas vezes, esse texto, sendo de minha autoria (também) já
se encontra marcado pela minha subjetividade e, conseqüentemente, minhas experiências,
leituras, apreensão do teatro estão contidas na forma e conteúdo aqui apresentados. Fui
perpassado durante o tempo desse estudo por saberes e sabores diversos que se sintetizaram
nesse texto.
Minha motivação primeira para a escrita da dissertação esteve no ponto de interseção
entre a prática colaborativa e o teatro de grupo. Entende-se que o processo colaborativo
pressupõe um coletivo, inquieto, proponente, que deseja/necessita colocar seus
questionamentos através da forma teatral.
Podemos tecer algumas características em comum, pelo menos nos espetáculos
analisados, que merecem destaque. A primeira delas é a estrutura s-dramática. Tanto O
homem que não dava seta quanto Casa das Misericórdias (e Caixa Postal 1500
120
) são
compostos por quadros, apresentam uma dramaturgia plural, híbrida e contém personagens-
narradores.
A estrutura dramatúrgica de O homem que não dava seta é escrita de forma bastante
fragmentada e durante todo o espetáculo são apresentados cortes de episódios, aparentemente
desconexos uns dos outros. No começo, os quadros parecem complexos, mas à medida que a
trama se desenvolve, é possível identificar a linha narrativa do espetáculo. A colagem de
algumas cenas dá-se por meio da edição, como no cinema, ao invés do encadeamento natural.
Casa das Misericórdias tem, desde seu projeto inicial, a marca da linguagem épico-
dramática. Esse elemento é muito forte para o grupo e trazido com grande força para a cena.
A construção das personagens (o ator-narrador-personagem) revela a investigação épica
dentro da elaboração cênica.
Ambos os espetáculos trazem marcas nítidas dos processos. Pavis (2003) diz que a
montagem de um espetáculo implica na divisão do trabalho entre os seus diversos artífices,
nessa articulação dos momentos-chaves de uma cena, na lapidação dos ritmos, nas viradas
dramatúrgicas, em rupturas e cortes, pois: “tais traços danese estão ainda sensíveis e
localizáveis no produto acabado, como cicatrizes de antigas operações, ou como uma
120
Caixa Postal 1500 é composto por quadros temáticos que não apresentam uma relação casual entre eles. Com
situações independentes, apresenta uma unidade através do tema (500 anos do descobrimento do Brasil).
117
respiração da obra” (Pavis, 2003: p. 302). Para ele, a gênese de qualquer espetáculo fica
impressa no seu resultado.
Assim como o work in process, o processo colaborativo não pode ser compreendido
apenas pela utilização de uma série de procedimentos, justamente por envolver uma
“dinamicidade de sistemas”
121
. Ele depende de um conjunto de esforços e de um proporcional
equilíbrio de forças. Esse movimento gera energia e também tensão. Nesse sentido, a figura
do diretor é imprescindível, pois uma de suas funções é enfrentar o paradoxo existente em
todo coletivo de criação: incentivar as proposições e, ao mesmo tempo, ser criterioso na
seleção de materiais, mantendo o equilíbrio entre o individual e o coletivo. O diretor age
como um articulador das relações de trabalho, tanto entre os artistas quanto entre estes e a
obra. Da mesma forma, o dramaturgo também deve equilibrar as ações de incentivar a
produção em cena e sintetizar os materiais apresentados. Não quero, no entanto, dar a
impressão de que tais relações se dão num jogo de opostos. Seu melhor sentido é o da
complementaridade. Renato Cohen, ao se referir à construção da dramaturgia, também aponta
esse duplo movimento de caos e rigor inerente ao work in process:
No processo de hibridização/re-significação, trabalha-se alteração, deslocamento,
fusão e textualidade, numa operação que envolve dois momentos: um dionisíaco, de
fluxo corrente, caminho do inconsciente; e outro apolíneo, criterioso, cartesiano, de
lapidação, escolha
122
.
A escolha do processo colaborativo resulta em grande complexidade na criação dos
espetáculos. Como vimos, ele se faz de tentativas e erros, de exaustivo compartilhamento de
escolhas, de discussões, por vezes intensas, que exigem longos períodos de produção. No
entanto, ele permite o desenvolvimento de outras habilidades, decorrentes das interferências
em distintas áreas de criação. Para que isso ocorra é necessário um corpo coletivo com
potencialidades além daquelas específicas em sua área de atuação, além de desejo propositivo.
Tal intervenção acontece em mão dupla. Portanto, é igualmente indispensável a
disponibilidade para falar e ouvir e, mais do que tudo, para refazer. Isso demanda maturidade
nas relações grupais e a confiança de que as melhores escolhas serão feitas em prol do
trabalho, acima de qualquer vaidade ou visão pessoal. Nesse sentido, podemos dizer que o
processo colaborativo demanda uma qualidade poética, na maneira de fazer, e ética, na inter-
relação dos artistas e destes frente à obra.
121
Termo utilizado por Cohen. In: Renato Cohen, op. cit. 2004: p.21.
122
COHEN, Renato. Work in process na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2004: p. 28.
118
Identificamos o Galpão Cine Horto como um centro cultural que se dedica à cultura
teatral de forma geral, e à cultura do teatro de grupo em particular, apostando em projetos de
investigação teatral, de formação e reciclagem de artistas, de criação e de compartilhamento
de experiências, indo além do espaço dedicado ao lazer. E Ramos (2007) afirma ter percebido
essa característica no Cine Horto, pois:
(...) as casas de cultura podem ir além do lazer e da simples complementaridade ao
sistema educacional, propondo ações que possibilitem aos seus usuários aprender e
dominar os códigos artísticos, se expressar artisticamente, ter acesso a bens
simbólicos de forma democrática e vivenciar experiências coletivas. (...) percebemos
que a proposta de ação do Galpão Cine Horto visa contemplar todas essas
dimensões. (Ramos
123
, 2007: p. 223)
Refletimos sobre os processos de criação nos quais a cena aparece como um espaço de
troca; um lugar para intercâmbios autorais entre dramaturgo(s), diretor(es) e ator(es). Em
conseqüência, o sentido de colaborar adquire uma importância funcional, uma necessidade
produtiva, um desejo de qualidade artística sempre em depuração.
O que se verificou não seria propriamente a primazia do trabalho do encenador (como
criador maior), nem a do dramaturgo (como autor), nem a do ator (como eixo das
experimentações). Estivemos diante de processos de criação teatral, ou espetacular, que
colocam a cena como um espaço circular de intercâmbios autorais entre dramaturgo,
encenador e atores.
A autoria é coletiva também porque, como diria Jerzy Grotowski, o teatro é a arte do
encontro. Para haver teatro é preciso haver no nimo dois sujeitos, um ator e um espectador.
E esta autoria, no teatro, acontece como uma justaposição de fragmentos de memórias
individuais, uma amálgama de imagens, uma articulação entre diversas assinaturas e setores
técnicos e artísticos que colaboram para que a obra do teatro aconteça: o espetáculo, o
encontro.
Finalizo dizendo que quando o objetivo de um trabalho teatral é a montagem de um
espetáculo, os esforços se dirigem a esse fim. Mas quando o foco é também o processo, o
modo de produção, elabora-se não a obra, que terá como conseqüência o produto, mas a si
mesmo: a obra enquanto resultado de uma autoconstrução. Há, portanto, um aprendizado da
123
RAMOS, Luciene Borges. O centro cultural como equipamento disseminador de informação: um estudo
sobre a ação do Galpão Cine Horto. 2007. Dissertação (Mestrado). Ciência da Informação/UFMG, Belo
Horizonte.
119
vivência em grupo, um exercício de discussão, a busca de autonomia do sujeito. também
uma recuperação da noção de coletivo e uma afirmação da polifonia da obra artística.
É nesse sentido que o processo colaborativo foi investigado e apresentou-se enquanto
escolha consciente por parte de seus praticantes na busca pela afirmação da prática coletiva
que lhe é inerente. Com o processo colaborativo, o trabalho em grupo estende-se pelo modo
de produção desde a divisão de tarefas organizacionais até a instância central da prática
criativa, na radicalização da dimensão coletiva do teatro.
120
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Sala Preta. Revista do Departamento de Artes Cênicas Escola de Comunicação e Artes-
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Jornais
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LANZA, Beto. Espetáculo surpreende ao apresentar a ética da urbe. Jornal: Folha de São
Paulo, 26/03/2003.
Entrevistas
Júlio Maciel em entrevista para o autor deste trabalho no dia 14/03/2006.
Gustavo Bones em entrevista para o autor no dia 08/02/2007.
Chico Pelúcio em entrevista para o autor no dia 08/02/2007.
Cristina Andrade (Núcleo de Dramaturgia) em entrevista para o autor no dia 20/04/2007.
Marcelo Braga (Núcleo de Dramaturgia) em entrevista para o autor no dia 03/03/2007.
Nina Caetano em entrevista para o autor no dia 22/09/2006 e
em 29/09/2007.
Amaury Borges e Lenine Martins em entrevista realizada no dia 28/09/06.
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Textos Teatrais
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Horizonte, 2002.
CAETANO, Nina et al. Casa das Misericórdias. Belo Horizonte, 2007.
Vídeos
Vídeo sobre O homem que não dava seta. Direção e Roteiro de Paulo Azevedo, janeiro de
2003.
Cena 3x4 – Primeiro encontro de Direção. CPMT – Galpão Cine Horto, 2003.
Cena 3x4 primeiro encontro (fechamento com Luís Alberto de Abreu). CPMT Galpão
Cine Horto, 2003.
Cena 3x4 – Primeiro encontro dos Núcleos: cenas e fragmentos. CPMT – Galpão Cine Horto,
2003.
Apostilas
OFICINÃO 2002. Relatórios e fontes de pesquisa. 96p.
127
ANEXOS
Ficha técnica dos espetáculos
2002 – O HOMEM QUE NÃO DAVA SETA (OFICINÃO)
Sinopse: Uma abordagem dos valores éticos do homem contemporâneo, contada a partir de
uma série de núcleos, de diversas classes sociais, que se cruzam. As cenas se interligam
através de atos de personagens comuns, habitantes do caos urbano.
Sobre a montagem: Com uma impressionante costura narrativa, a estrutura dessa montagem
é ágil, fragmentada e utiliza inúmeros recursos cinematográficos. Os temas são fortes, tratados
pelos atores com verossimilhança. Tudo é muito rápido, assim como o mundo pós-moderno.
Elenco: Bárbara Campos/ Carlos Normando/ Clarice Peluso/ Cristiano Pena/ Dudu Nicácio/
Euber Silva/ Gustavo Bones/ Juliana Barreto/ Júnia Bessa/ Miller Machado/ Paulo Azevedo/
Priscila Borges/ Regina Lúcia
|
Oficina de Dramaturgia: Maria Cristina Andrade, Marcelo Braga, Miguel Anunciação,
Juliana Antunes e Adriano de Faria.
Ficha Técnica: Direção: Chico Pelúcio/ Assistência de Direção: Cristiana Brandão/
Coordenação Dramatúrgica: Luís Alberto de Abreu/ Dramaturgia: Oficina de Dramaturgia/
Preparação Vocal: Andréa Amendoeira/ Coreografia e Preparação Corporal: Dudude
Herrmann/ Cenografia: João Marcos Gontijo/ Assistente de Cenografia: Luciana Gontijo/
Execução de Cenário: Nilson Alves dos Santos/ Figurinos e Adereços: Alexandre Rousset e
Tereza Bruzzi/ Confecção de Figurinos: Mércia Louzeiro/ Trilha: Fernando Muzzi/ Tema do
Juiz e do Motorista: Dudu Nicácio/ Tema da Repórter: Dudu Nicácio e Clarice Peluso/
Músicos: Luiz Peixoto, Augusto Rennó, J.R., Leopoldina/ Iluminação: Felipe Cosse e Juliano
Coelho/ Maquiagem: Juliana Barreto/ Vídeo: André Amparo/ Fotografia: Guto Muniz/ Design
Gráfico: Laura Bastos.
Equipe de Professores: Andréa Amendoeira/ Cristiana Brandão/ Dudude Herrmann/ Newton
Bignoto de Souza (Ética)/ Romulo Avelar.
128
2003 – Casa das Misericórdias (PROJETO CENA 3X4)
Um retrato do abandono. Nesta arquitetura o cotidiano de duas vidas é regido pelo círculo
vicioso das relações humanas. Aqui, a semana passa num exercício diário de sobrevivência.
Lê-se na porta: “Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança”. D.A.
Dramaturgia: Nina Caetano
Direção: Amaury Borges
Atuação: Lissandra Guimarães e Lenine Martins
Direção Musical: Ricardo Garcia
Cenografia e figurino: Inês Linke
Técnico de Som e contra-regra: Admar Fernandes
Autores: Amaury Borges, Inês Linke, Lenine Martins, Lissandra Guimarães, Nina Caetano e
Ricardo Garcia.
1999 – CAIXA POSTAL 1500 (OFICINÃO)
Sinopse: Primeiro texto criado pela Oficina de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, Caixa
Postal 1500 lança um olhar crítico sobre os 500 anos de descobrimento do Brasil. O ponto de
partida foi a lenda da criação do mundo, contada pelos índios Guaranis. Em cena, dividem
espaço a ironia e o humor das situações de confronto entre índios, portugueses e negros. Todo
o trabalho foi marcado pela seguinte reflexão: afinal, o que temos a comemorar?
Sobre a montagem: A encenação foi distribuída entre o tradicional palco italiano e o de
arena. Um imenso bambuzal ocupou o espaço cênico para abrigar essa peça fragmentada,
composta por diversos episódios interligados pelo fio condutor da história do Brasil.
Elenco: Admar Fernandes Bernardo Caiowá e Okiô/ Alexandre Toledo Manuel/ Ana
Régis Mariano/ Arioc Tescari Kamayrá e Fabiano Caiowá/ Bete Penido (atriz convidada)
Diretora/ Carlos Batista Gusmão/ Cristina Haddad Maria/ Helvécio Izabel Elesbão/
Lenine Martins Antônio Mendes/ Lissandra Guimarães – Ica e Jurema Caiowá/ Luiz
Fernando Filizzola Folião/ Nina Caetano Hangay e Jussara Caiowá/ Nyvea Karam
Anarê/ Amélia Caiowá/ Orlando Besoytaorube Bispo Sardinha/ Paulo Camargo Grumete/
Ramon Braga Navarro/ Rosana Parma Jovem Portuguesa/ Sávio William Benedito/
Silvana Stein – índia Beija-Flor/ Otaviana Caiowá
Oficina de Dramaturgia: Georgia Oliveira, Ítalo Mudado, Ivana Andrés Ribeiro, Jória
Batista de Souza, Marcelo Braga de Freitas, Marcelo Henrique Costa, Maria Cristina de
Andrade, Miguel Anunciação, Sérgio Luiz e Sofia Martins.
129
Ficha Técnica: Direção: Júlio Maciel/ Coordenação Dramatúrgica: Luís Alberto de Abreu/
Coordenação da Oficina de Dramaturgia: Bete Penido e Ítalo Mudado/ Preparação Musical e
Trilha Sonora: Kristoff Silva/ Preparação Vocal: Babaya/ Preparação Corporal: Dudude
Hermann/ Cenografia: Chico Magalhães/ Figurino: Ana Lana Gastelois/ Assistente de
Figurino: Sávio William/ Execução de Figurino: Ireni Santana/ Adereços: Ever de Assis/
Consultoria em Maquiagem: Mona Magalhães/ Iluminação: Alexandre Galvão, Wladimir
Medeiros e Chico Pelúcio/ Assistentes Técnicos de Luz: Cristiano Medeiros, Diógenes de
Jesus, Felipe Cossi e Juliano Coelho/ Operação de Luz: Cristiano Medeiros/ Coordenação
Montagem de Cenário: Helvécio Izabel/ Projeto Gráfico: Arioc Tescari/ Fotos de Divulgação:
Guto Muniz/ Assessoria de Imprensa: Paulo Boa Nova e Beatriz Radicchi/ Coordenação de
Produção: Romulo Avelar/ Produção executiva: Ramon Braga
Também fizeram parte do “Oficin 99”: Alessandro Antônio Borges, Alessandro Piló,
Ana Nery, Cláudia Assumpção, Cleo Carmona, Chirstian Basques Fernandes, Eduardo da
Costa, Miller Machado, Roberta Maya e Wellerson de Oliveira.
Equipe de Professores: Prof Carla Maria Junho Anastasia (Dep. de História/UFMG), Prof.
Ciro Flávio Castro Bandeira Melo (Dep. de História/UFMG), Prof. José Monroe Eisenberg
Lage de Resende (Dep. Ciência Política/UFMG), Coordenção: Prof. Maria Efigênia Lage de
Resende (Dep. de História/UFMG), Workshop de Cultura Indígena/ Relato da Lenda “Início
do Mundo” – Kaká Werá, Whorshops de Teatro – Cacá Carvalho e Grupo Galpão, Estudos de
Interpretação de Texto: Bete Penido e ítalo Mudado, Tai Chi Chuan (estilo Yang) Luciana
Menezes.
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