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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
KATIA SILENE ZORTHÊA
DARAITI AHÃ:
ESCRITA ALFABÉTICA ENTRE OS ENAWENE NAWE
CUIABÁ – MT
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DARAITI AHÃ:
ESCRITA ALFABÉTICA ENTRE OS ENAWENE NAWE
KATIA SILENE ZORTHÊA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Mato Grosso como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Educação, na área de
concentração: Educação Cultura e
Sociedade, na linha de pesquisa Movimentos
Sociais Política e Educação Popular, sob a
orientação do Prof. Dr. Darci Secchi.
Cuiabá – MT
2006
ii
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Ficha Catalográfica
Z88d Zorthêa, Kátia Silene
Daraiti Ahã: escrita alfabética entre o Enawene Nawe /
Kátia Silene Zorthêa. -- Cuiabá: UFMT/IE, 2006.
viii, 90 p. : il.
Dissertação de mestrado apresentada à Banca de
qualificação do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Mato Grosso como requisito parcial
para a obtenção do título de mestre em Educação, na área de
concentração em Educação Cultura e Sociedade, na linha de
pesquisa Movimentos Sociais Política e Educação Popular,
sob a orientação do Prof. Dr. Darci Secchi.
Bibliografia: p. 86 – 90
CDU – 376.74 (= 87): 372.45
Índice para catálogo sistemático
1. Alfabetização
2. Escrita Alfabética
3. Educação
4. Enawene Nawe
DEDICATÓRIA
Para
Caetano
hare nowi
iii
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer de forma especial:
Ao meu orientador: Darci Secchi, pela confiança e incentivo;
Aos professores: Rosa Helena e Luiz Augusto Passos, pelas contribuições e indicações de
leitura na qualificação;
À OPAN: Rosa, Ivar, Marcelo, Fernanda, Edson Rodrigues, Elton, Ivo, Fernando,
Rochelle, Deonísia, Simone, Angelita, Júnior, Thélia, Pedro, Rinaldo. Por tudo que aprendi
neste período.
À Cleacir, pela convivência, interlocução e ensinamentos sobre os Enawene Nawe. À
Natália e Jean Paulo
À Andréa pela constante troca e inspiração. Ao Ajuri e a Beatriz
À Terezinha pelo diálogo e entusiasmo. Ao João Paulo, Carlão, Ana Paula e Mema
Jônia, Gemaque, Maísa, Luzenira, Bimba, Estela, Biral, Tarcísio, Artema, Luciana Ferraz,
Luciana Rebelato, Solange, Silô, Mônica, João, Ana Paula Lopes, Dulcilene Rodrigues,
Paula Vanucci, Judite, Gilton, Plácido, Márcio Silva, Daniela, Dorinha, Francisco,
Maristela, Sueli Tomazi, Chikinha, Terezinha, Tuka, Nena, Gilberto, Seu Antônio e Dona
Lourdes.
À CAPES e UFMT
Á minha família: meu pai, minha mãe, Taninha (de forma particular), Marquinhos, Cal,
Patrícia, Neny (com muito carinho), Thaiz e Bela.
Ao Wemerson e Caetano, pela paciência e amor.
Aos Enawene Nawe, pela possibilidade de conhecer um Outro jeito de ver a vida.
iv
RESUMO
A palavra daraiti passou a traduzir a escrita alfabética entre os Enawene Nawe. Ela
se inseriu no cotidiano deste povo em 1995, e convive desde então, com outras formas
tradicionais, específicas e singulares de linguagem, valorizadas e transmitidas desde tempos
imemoriais.
Este trabalho pretende sistematizar o histórico desta experiência, demonstrando que
a sua aquisição define um processo diretamente ligado aos interesses do próprio povo. A
aquisição da escrita alfabética, neste caso, não se utilizou da instituição escolar para se
desenvolver, a dinâmica foi definida pelos próprios Enawene Nawe, a partir de seus
interesses e disponibilidades.
Compreender interpretações que sociedades com tradições orais podem fazer da
escrita, além de tentar produzir um argumento de inserção no debate a respeito das
metodologias de alfabetização, é a pretensão deste estudo.
Palavras Chave: Alfabetização, Escrita alfabética, Educação, Enawene Nawe.
v
ABSTRACT
The word daraiti passed to translate the alphabetic writing among the Enawene
Nawe. The writing was inserted in daily of this people in 1995, and live with that and
others forms tradicionals, specifics and singulars of language, valueds and transmiteds from
then on imemorials times.
This work claims make a historical system of this experience, showing that the
work´s acsitions defines a process straightlyconnected to the people’s interests. The writing
alphabetic’s accsition, in this case, don’t was used of the school institution to develop itself,
the dynamic was defined by the Enawene Nawe, from their interests.
Understand the multiples interpretations that tradition oral’s societies can make of
writing, over try to produce an insert argument in discussion treating about teach red ans
write’s methodologies.
Key word: Literacy, Alphabetical Writing, Education, Enawene Nawe.
vi
RELAÇÃO DAS SIGLAS UTILIZADAS
APAE – Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais
CAIEMT – Coordenadoria de Assuntos Indígenas do Estado de Mato Grosso.
FORMAD –Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
GERA – Centro de Estudo e Pesquisa do Pantanal, Amazônia e Cerrado
ICMS - Ecológico–Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - Ecológico
LAESP – Laboratório de Aprendizagem em Educação Especial
MPF – Ministério Público Federal
OPAN – Operação Amazônia Nativa
PCH – Pequenas Centrais Hidrelétricas
SEMA – Secretaria Estadual do Meio Ambiente
UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso
UFES – Universidade Federal do Espírito Santo
vii
SUMÁRIO
Introdução
Capítulo Primeiro: Considerações acerca da sociedade Enawene Nawe
1.1 - Contexto Atual.................................................................... 15
1.2 – Caracterização social......................................................... 23
1.3 - O mito de origem da escrita................................................ 36
Capítulo Segundo: A língua e a escrita da língua Enawene Nawe
2.1 – Línguas: a voz e a letra...................................................... 39
2.2 – Os sons da língua Enawene Nawe..................................... 41
2.3 - A escrita da língua Enawene Nawe.................................... 43
Capítulo Terceiro: A língua escrita e a alfabetização
3.1 - Pensamentos sobre a escrita alfabética e a alfabetização... 48
3.2 – Outros pensamentos sobre a escrita................................... 54
3.3 – O tempo e o espaço da alfabetização: o daraitare.............. 66
3.4 – Um dia de aula em Matokodakwa..................................... 80
3.5 – Escrita sem escola............................................................... 87
Considerações Finais..................................................................................... 93
Referências Bibliográficas............................................................................ 96
Anexo
viii
INTRODUÇÃO
Falar da minha história é falar também da teia de relações que vou tecendo no meio
cultural em que vivo. A propósito, Geertz (1978) sugere que o homem é um animal
amarrado às teias de significados que ele mesmo teceu (1978, p.15). Portanto, nesta
apresentação, ao tratar da minha vida profissional, não poderei deixar de considerar meus
vínculos com grupos sociais e culturais sem prestígio ou visibilidade no âmbito das
políticas contemporâneas.
Estou ciente de que os diferentes lugares desde onde falamos nos denunciam e,
portanto, o que aqui é apresentado deve ser interpretado à luz do caminho percorrido e dos
aportes utilizados para realizar esse percurso. Afinal, perguntaria Oliveira (1999, ps. 211 e
261), por que resgatar certos fatos do passado (algumas vezes remoto e esquecido) se não
os suponho como “memoráveis” e se não reconheço em alguém – o narrador – uma
particular autoridade para falar sobre eles?
Por falar em percurso, retrocedo no tempo, me reporto à Colatina, uma interiorana
cidade do norte do Espírito Santo, locus em que comecei a consolidar a minha identidade
profissional.
No ano de 1984, com 16 anos de idade, concluí o ensino médio e recebi o diploma
de professora de 1º a 4º série. Ser professora era um dos meus sonhos (e da minha família).
A profissão oferecia um certo prestígio e tranqüilidade, nada de mais, tampouco, nada de
menos...
Depois de formada no Magistério o meu primeiro emprego foi na Associação de
Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE. Como tantas outras professoras, eu não fazia
nenhuma idéia de como seria trabalhar com “excepcionais” afinal, até onde me recordo, os
conteúdos curriculares do curso de magistério não consideravam as especificidades de
crianças, jovens e adultos portadores de necessidades especiais.
Foi na APAE que iniciei, de forma mais sistemática, a minha formação como
professora alfabetizadora. Não desconsidero aqui tudo o que aprendi no curso de pedagogia
sobre métodos e técnicas de ensino diferenciados e criativos, mas alfabetizar alunos com
necessidades especiais foi algo bastante singular na minha vida.
1
Naquela época existiam classificações (se é verdade que já não existem mais) que
separavam os grupos de alunos de acordo com diagnósticos médicos, psicológicos e
pedagógicos e que pretendiam, supostamente, facilitar o seu atendimento em salas de aula:
9 Deficiente mental educável era o nome dado para aquele com os qual se
conseguia trabalhar conceitos básicos da vida cotidiana e, em alguns casos,
era possível alfabetizá-lo.
9 Deficiente mental treinável e deficiente mental dependente eram aquelas
pessoas que não tinham condições de se alfabetizarem por terem
necessidades muito específicas, inclusive no campo da linguagem oral.
Nesses casos, a aquisição da escrita era algo fora de propósito.
Concomitantemente, fui professora de uma “classe especial” numa escola da rede
estadual de ensino. A expressão classe especial, além de outras atribuições, definia também
um espaço em que eram reunidos os alunos portadores de necessidades educativas
especiais. Na época, era uma prática comum (e predominante) nas escolas o agrupamento
desses alunos em salas separadas dos demais. Geralmente, este tipo de organização escolar
contava com o apoio de profissionais que utilizavam os famosos testes de inteligência para
decidir quem continuaria nas salas regulares e quem iria para a classe especial.
A classe especial atendia aos alunos que demonstravam dificuldades no processo
inicial de aquisição da escrita alfabética, selecionados nas turmas de primeira série do
ensino regular e que viviam em situação de reprovações simultâneas. Apesar do estigma,
alguns aprendiam a ler e a escrever e ascendiam para a primeira, ou em casos mais raros,
para a segunda série. Aqueles que não aprendiam eram encaminhados ou para uma
instituição especializada, como a APAE, ou evadiam-se da escola.
O meu trabalho na APAE e na escola estadual consistia em alfabetizar estes alunos
que não haviam conseguido permanecer no ensino regular e apresentavam este suposto
“quociente intelectual” insuficiente para sua inclusão numa sala regular. Lembro-me que
uma vez no curso de magistério simulamos em aula a aplicação de um desses testes. Eu me
submeti a um e não recordo o resultado, mas ainda trago na memória a apreensão de vir a
obter uma nota inferior a nove, considerada na medida da “normalidade”. Neste modelo de
avaliação era considerado “deficiente mental” aquele a quem fosse dada uma nota inferior a
7,5 pontos.
2
A prática de classificar alunos por meio de instrumentos “engessados” como os
testes de inteligência, resultava num maior aprofundamento do preconceito. Era freqüente
ocorrer o encaminhamento de alunos para as classes especiais de forma indevida e
posteriormente ter que reparar o erro cometido. Esse procedimento teve por base conceitual
o behavorismo skinneriano. Desta prática restaram o estigma e o preconceito sofridos por
tantas crianças e a experiência em ter de lidar com situações tão complexas e desafiadoras
em suas vidas.
As reflexões sobre as mudanças nos referenciais para a alfabetização fervilhavam no
Brasil no final da década de oitenta. A formação dos professores passou a ser estimulada e
financiada pelo poder público estadual. O Ministério da Educação promovia uma política
de valorização da educação especial.
Naquele contexto de renovação de idéias e de práticas educacionais, participei de
um projeto de formação para professores que atendiam a alunos portadores de necessidades
especiais. O projeto era formado por professores da classe especial e da primeira série do
ensino fundamental, ambos pertencentes à rede estadual de educação que atuavam na
região de Vitória – ES e pela equipe de educação especial da Secretaria Estadual de
Educação – SEDUC-ES. Esta equipe era responsável por organizar e conduzir os grupos de
estudo e de pesquisa e contava com o apoio da Universidade Federal do Espírito Santo -
UFES. Nos grupos de estudos semanais os temas mais recorrentes tratavam da teoria
sociolingüística, de base piagetiana, inaugurada por Ferreiro e Teberosky (1991) e seus
seguidores. Os debates giravam em torno da tarefa escolar de ensinar a ler e a escrever:
A aprendizagem da leitura, entendida como o questionamento a respeito da
natureza, função e valor desse objeto cultural que é a escrita, inicia-se muito
antes do que a escola o imagina, transcorrendo por insuspeitados caminhos.
Que além dos métodos, dos manuais, dos recursos didáticos, existe um
sujeito que busca a aquisição de conhecimento, que se propõe problemas e
trata de soluciona-los, seguindo sua própria metodologia... Trata-se de um
sujeito que procura adquirir conhecimento, e não simplesmente de um sujeito
disposto a adquirir uma técnica particular. (FERREIRO e
TEBEROSKY, 1991, p. 11)
3
Neste percurso foi importante para a minha formação o debate que tratava da
inclusão do portador de necessidades educativas especiais nas salas de ensino regular. Por
inclusão entenda-se aqui a garantia do acesso contínuo ao espaço comum da vida social,
que deve estar orientado por relações de acolhimento à diversidade humana e de aceitação
das diferenças individuais.
Neste sentido, atuei como professora do Laboratório de Aprendizagem em
Educação Especial - LAESP da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Este
espaço proporcionou uma importante experiência inter/multi/poli-disciplinar. Participavam
do projeto vários especialistas de várias áreas diferentes e convergentes: pedagogos,
psicólogos, médicos, musicoterapeutas, fonoaudiólogos, professor de educação física. A
equipe contava também com o apoio de profissionais da área da comunicação registrando
as aulas em vídeo para que cada aluno pudesse obter uma orientação individual e
específica, coletiva e mais precisa. O projeto se dedicava a acompanhar sistematicamente
um grupo de treze alunos de escolas públicas que apresentavam problemas para aprender a
ler e a escrever. A equipe multidisciplinar se encontrava semanalmente para assistir as
filmagens e avaliar o desenvolvimento dos alunos no que diz respeito à aprendizagem da
língua escrita. Mesmo sem notícias sobre os resultados finais do projeto, vejo nele a
importância e necessidade da convergência das várias áreas do conhecimento dialogando e
tentando entender como aquelas pessoas organizam suas vidas e suas relações sociais e, a
partir das interpretações, poder qualificar as intervenções e ampliar as possibilidades da sua
inclusão social.
A forma de perceber as necessidades educacionais de alunos que são considerados
diferentes da maioria vem se alterando. A ruptura com a ideologia da exclusão tem
proporcionado a implantação de políticas inclusivas, onde o aluno com necessidades
específicas no campo da educação não precisa mais ser retirado do convívio comum da
escola regular. Seu envolvimento, participação, convivência e sentimento de pertencimento
ao grupo vem sendo vistos como fatores decisivos para a derrubada do estigma e
conseqüentemente para a aquisição do conhecimento adquirido na escola.
Atualmente a legislação brasileira posiciona-se pelo atendimento dos alunos com
necessidades educacionais especiais preferencialmente em classes regulares, em todos os
níveis, etapas e modalidades de educação e ensino.
4
É consensual no pensamento pedagógico acreditar que a construção de uma
sociedade inclusiva é um processo de fundamental importância para a manutenção e o
desenvolvimento de um estado democrático que respeita todas as formas de diversidade.
Da construção da minha vida profissional a última etapa aqui descrita tratará da
minha formação indigenista vinculada à Operação Amazônia Nativa, organização não-
governamental, também conhecida por OPAN. Através da OPAN tive a oportunidade de
conhecer o povo Enawene Nawe, com os quais foi possível viver a experiência que
apresento neste trabalho. Ter convivido com eles foi um privilégio e sem dúvida deixou
marcas em todos os campos da minha vida: profissional, intelectual, pessoal e afetivo.
A OPAN é a primeira organização não-governamental indigenista do Brasil e
atualmente tem sua sede em Cuiabá
1
. Nasceu em 1969 no Rio Grande do Sul e desde a sua
criação busca consolidar um modelo de ação indigenista que se caracteriza principalmente
pelo trabalho direto com os povos indígenas. As frentes de atuação tratam da atenção à
saúde, educação, regularização e proteção das fronteiras dos territórios e de ações no campo
da economia e da sustentabilidade. Agindo diretamente e simultaneamente com frentes
diferentes de atuação o trabalho de um lado se mostra complexo e de outro proporciona
uma visão mais ampla e integrada da realidade. A estrutura democrática da OPAN e a
autonomia das equipes favorecem as possibilidades de se priorizar o campo como fonte
primeira para os termos da atuação.
Sempre ocupou lugar de destaque na OPAN a atuação no âmbito da educação
escolar junto aos povos indígenas. Atualmente a instituição acumula um vasto leque de
experiências exitosas e reflexões sobre o trabalho educacional nas aldeias.
Diversas iniciativas desenvolvidas foram objeto de estudos e pesquisas acadêmicas
e indigenistas
2
. Dentre as produções mais conhecidas, destaco o livro A Conquista da
Escrita
3
tido como uma referência básica sobre o tema da educação indígena no Brasil. O
livro descreve as experiências de educação vividas durante a década de oitenta entre os
povos indígenas Kulina, Kanamari, Bororo, Myky, Tapirapé, Rikbaktsa, Yanomami e
Ticuna.
1
Além da sede, a OPAN mantém casas de trânsito nos municípios de Brasnorte-MT, Jutaí-AM e Lábrea-AM.
2
Conferir por exemplo (LEITE, 1994) e (SCHROEDER, 1998).
3
A conquista da escrita – encontros de educação indígena. São Paulo: Ed Iluminuras, 1989.
5
Além das análises e reflexões sobre a educação escolar indígena, a OPAN sempre se
preocupou com a formação dos novos indigenistas. O seu curso de formação é, ainda hoje,
oferecido a profissionais interessados em atuar e possibilita o acesso aos projetos de
trabalho desenvolvidos nas comunidades indígenas.
Incentivada por um amigo fiz o estágio e ingressei na OPAN. Inicialmente esta
formação despertou meu interesse por buscar divulgar a diversidade cultural dos povos
indígenas. Representava também uma possibilidade de qualificação muito específica para
atuar na interlocução entre culturas e povos diferenciados. A população largamente
majoritária, nem sempre é sensível aos direitos, à cultura e às aspirações de grupos étnicos
minoritários. As premissas do trabalho, associadas à dinâmica de uma equipe
interdisciplinar, me trouxeram a perspectiva de incrementar a minha formação.
A proposta político-pedagógica do curso de formação da OPAN prevê temas
inspirados na vida dos índios brasileiros: conceitos chaves da Antropologia, Política
Indigenista, Lingüística, Legislação, Saúde, Economia/Sustentabilidade, Educação, entre
outros. O curso é organizado em três etapas específicas e convergentes. A primeira é
intensiva e abrange informações para a atuação com povos diferenciados. A segunda etapa,
o estágio prático
4
, acontece em campo e é a possibilidade de conhecer o futuro espaço de
atuação. Nesta etapa o estagiário tem também o acompanhamento da equipe que atua nos
projetos de trabalho. A terceira etapa inclui análises e reflexões sobre os estudos da
primeira e segunda, e é encerrado com a descrição da experiência
5
.
Meu estágio prático se deu com os Enawene Nawe, quando tive a oportunidade de
conhecê-los e, pela OPAN, conduzir o programa de educação do projeto. Além da
educação, se desenvolviam ações nas áreas de saúde, economia e terra. O projeto era
financiado, na época, por duas agências internacionais: uma alemã e outra norueguesa.
Naquela ocasião eu ainda não tinha a pretensão e nem tampouco a expectativa de
transformar esta experiência em objeto de estudo acadêmico. Porém, hoje, olhando-a com
um necessário distanciamento, percebo tratar-se de uma oportunidade singular para refletir
uma ação educacional particular e específica. Ela será o ponto central deste estudo, e por
ora, faço apenas alguns apontamentos:
4
Contudo está presente a idéia de que na experiência o teórico e o prático são indissociáveis.
5
A estrutura do curso de formação mudou em alguns detalhes, mas seus princípios continuam iguais.
6
a) Tratou-se de uma experiência de alfabetização vivida por uma sociedade que
até aquela ocasião ainda não conhecia a escrita alfabética e falavam
exclusivamente a língua materna;
b) Foi realizada sem a estrutura escolar. Sendo assim, não existiam séries,
disciplinas, horários e espaços privilegiados para o ensino. A experiência
sempre foi aquela baseada no desejo pela escrita. Era importante que a condução
da experiência fosse despida de todos os mecanismos que pudessem
sobrecarregá-la;
c) Como era uma primeira experiência considerava-se importante avaliar quem
eram os interessados e qual o espaço por ele (s) ocupado (s) na tentativa de
entender os significados dados à escrita pelo povo. A solução para impasses
ocorridos deveria ser dada sempre pela lógica social, ou seja, era importante que
o processo fosse entendido numa lógica própria e conduzido pelos próprios
Enawene Nawe, reconhecidos como sujeitos desse processo;
d) O processo de alfabetização ocorreu num contexto onde quem ensinava a
escrita alfabética, aprendia uma nova língua e buscava entender seus fonemas,
suas sílabas e suas palavras;
e) As atividades eram pautadas pelos Enawene Nawe interessados, a partir dos
referenciais próprios de cada processo individual e particular;
f) Os horários, ênfases e grupos eram definidos pela dinâmica social própria do
povo. O processo deveria ser iniciado sem interpretações inexoráveis;
g) A escrita da língua e não a oralidade da língua portuguesa era o objeto de
interesse do povo.
Feitas essas considerações, falarei rapidamente sobre os métodos de alfabetização
utilizados comumente. Destacarei seus aspectos relevantes e problemáticos e a evidência de
que, dos métodos adotados, o maior potencial da experiência situa-se na natureza das
relações estabelecidas entre os sujeitos e atores sociais.
Nunca será demasiado lembrar Paulo Freire ao sugerir que para além do uso de um
determinado método ou técnica, a educação prescinde de pessoas entusiasmadas e
comprometidas.
7
***
Alfabetizo desde o tempo em que o método silábico era o mais difundido nas
escolas da rede pública. Tanto na APAE, quanto na rede estadual de ensino, utilizei este
método para alfabetizar alunos com problemas de aprendizagem e não encontrei nele
maiores dificuldades.
Tanto os métodos sintéticos como os analíticos passaram a ser criticados pelas
novas tendências metodológicas que, no final da década de oitenta, eram inspiradas no
construtivismo. O construtivismo nasceu com as descobertas da psicogênese da língua
escrita (FERREIRO E TEBEROSKY, 1991) e, como o próprio nome sugere, suscitava
construção. Quando ele surgiu, muitos se mostraram resistentes em assimilar a novidade,
pois sentiam dificuldades para colocá-lo em prática. O movimento pró-construtivismo
replicava: não é difícil começar (se referindo à alfabetização) pergunte para seus alunos o
que eles querem aprender e eles te darão o caminho. Só mais tarde percebemos que o
construtivismo não é propriamente um método de ensino.
As propostas pedagógicas renovadoras para a aprendizagem da leitura e da escrita,
embora professem um rompimento com os modelos antigos, muitas vezes baseiam-se em
experiências passadas e não descartam os conhecimentos anteriores. Os procedimentos
metodológicos centrados na exploração da sílaba são um bom exemplo para caracterizar o
encontro entre o passado e o presente.
Dada a sua importância na formação das palavras é inevitável que a sílaba ocupe
um lugar de destaque nos métodos de alfabetização. O seu lugar, ora no centro, ora na
periferia do método, está atestado na história da escrita. Uma rápida revisão histórica
mostra que, uma vez superada a fase pictográfica, em que o homem desenhava para
expressar suas idéias, a escrita evoluiu e passou a ter um referente fonético. Os sons eram
representados por desenhos. Esses sinais escritos eram sinais silábicos e representavam as
consoantes, a exemplo do que ocorre atualmente com a escrita dos alunos em início de
alfabetização. Só mais tarde foram introduzidas as vogais, o que deu origem à sílaba como
a conhecemos hoje.
8
Os diversos períodos da história do ensino da leitura e da escrita mostram as
diferentes formas de tratamento dado à sílaba no processo de alfabetização de crianças,
jovens e adultos. Precisamos saber como utilizá-la!
O método sintético de alfabetização, como por exemplo o silábico, parte dos
elementos não-significativos da língua - a letra ou a sílaba - e por meio delas constrói as
palavras, as frases e o texto. Nem sempre o alfabetizando percebe que elementos não
significativos da língua podem passar ao status de significativo se existir valor e sentido ao
que está se falando. Este método insiste na correspondência entre o oral e o escrito e atribui
grande ênfase na análise auditiva. A aprendizagem da leitura e da escrita é vista apenas
como um ato mecânico, uma técnica para decodificar um enunciado.
O método analítico de alfabetização encaminha-se no sentido inverso ao método
sintético. Sua abordagem analítica parte dos elementos significativos, as palavras, frases, e
textos e, numa operação inversa, segmenta-os em seus elementos menores e não
significativos. Este método vê a aquisição da escrita como uma tarefa fundamentalmente
visual.
As duas abordagens priorizam a correspondência entre o som e a grafia, mas
diferem quanto à ênfase atribuída às habilidades perceptivas (auditiva ou visual). Ambos os
caminhos foram (e ainda continuam sendo) duramente questionados. Apesar disso,
arrebatam defensores e prosseguem em sua trajetória...
Durante séculos a abordagem sintética que concebe a língua como um objeto
externo, estabeleceu como regra geral de obediência os níveis de complexidade: do mais
simples para o mais complexo. Só era permitido passar para uma nova fase quando a
anterior estivesse dominada. Antes de ler, a pessoa deveria conhecer bem o alfabeto, o
nome das letras e as combinações corretas entre vogais e consoantes. Os professores
alfabetizadores contavam (e ainda contam) com o apoio didático de cartilhas que continham
as famílias silábicas que compunham palavras, frases etc. Esse processo exigia muito
esforço do professor e do aluno e demandava muito tempo.
Os argumentos usados pelo método analítico para se contrapor ao método sintético,
eram de que ele desconsiderava o significado do texto no início da aprendizagem e que o
sentido das palavras (e não de letras) é sempre mais facilmente reconhecido.
9
A principal mudança na concepção de alfabetização se deu a partir da consolidação
e das contribuições advindas de ciências como a Psicologia, a Lingüística e a
Sociolingüística. Com elas tornou-se mais fácil desvendar a distinção entre decifração e
leitura, e se percebeu que o aluno, seja ele criança, jovem ou adulto, começa a ser
alfabetizado bem antes de chegar à escola. Aprender a ler e a escrever é muito mais do que
decifrar sílabas, embora que de uma forma ou de outra ela deva ser realizada, já que se trata
de uma unidade constitutiva das palavras da língua que se pretende escrever.
Nas metodologias de alfabetização atualmente utilizadas, o estudo da sílaba é
bastante diferenciado daquele adotado nos métodos tradicionais. O mundo evoluiu e já não
se aceita apenas aprender a decifrar códigos. Eles já não bastam!
A experiência mostra que qualquer método aplicado com competência e entusiasmo
pode levar a resultados positivos. Seriam ainda mais positivos os resultados se fossem
respeitados os processos de aprendizagem individuais e o contexto social e lingüístico dos
sujeitos da aprendizagem. Assim, alfabetizar é propiciar a formação adequada para os
propósitos dos alfabetizandos e da sociedade que eles compõem.
Ao concluir essas considerações pretendo fazer alguns comentários acerca do
pensamento de Paulo Freire. Seus pensamentos sempre foram preciosos para o meu
trabalho de alfabetizadora, ainda que não os tenha seguido à risca como fez com
criatividade Isabel Hernández na sua experiência com os índios Mapuche
6
no Chile. Dele
tirei muitos ensinamentos e inspirações para o trabalho de alfabetização entre os Enawene
Nawe.
Paulo Freire, no início dos anos sessenta, inspirou-se na experiência positiva dos
chamados Círculos de Cultura, grupos de debate surgidos do Movimento de Cultura
Popular do Recife, para desenvolver uma metodologia para alfabetizar adultos. Os grupos
de adultos promoviam debates sobre temas variados que surgiam a partir da consulta aos
participantes.
O caminho sugerido por Freire segue regras metodológicas, lingüísticas e desafia o
alfabetizando a utilizar palavras carregadas de conteúdo político, o que lhe permite uma
visão mais ampla da linguagem e do mundo. Nega a mera repetição de frases, palavras e
6
Educação e sociedade indígena: uma aplicação bilíngüe do método Paulo Freire. São Paulo: Cortez Editora,
1981.
10
sílabas ao propor aos alfabetizandos “ler o mundo” e “ler a palavra”. Portanto, antes de
qualquer tentativa de discussão de técnicas, de materiais ou de métodos para uma aula
dinâmica é indispensável que o professor perceba o ato de aprender como algo muito
importante e precioso. O caminho se mostra eficaz por partir da realidade do alfabetizando,
de fatos de sua vida cotidiana. O seu sentido pedagógico é a politização do trabalhador.
Assim, a educação é tida como um importante meio de fortalecer a “classe dos oprimidos”
e dar-lhe condições para lutar por uma mudança social e contra as desigualdades.
Para Paulo Freire, o ato de aprender a ler e escrever é, antes de tudo, aprender a ler o
mundo, a entender o seu contexto, a procurar respostas para as indagações. Aprender a ler o
mundo é deixar de se satisfazer apenas com a escrita de algumas palavras, sem
compreender a dinâmica que une a linguagem e a realidade. Aprender a ler e escrever é um
ato educativo e comprometido com a libertação dos homens, portanto é um ato
essencialmente político
7
.
Desde esse ponto de vista, é impossível negar a natureza política do processo
educativo quanto o de negar o caráter educativo do ato político. Isso é, não há educação
neutra do mesmo modo que não há prática política esvaziada de significação educativa.
Para Paulo Freire:
[...] o ato de ensinar exige pesquisa; respeito; criticidade; estética e
ética; reflexão crítica sobre a prática; consciência do inacabamento;
respeito a autonomia do ser do educando; bom senso; apreensão da
realidade; alegria e esperança; a convicção de que a mudança é
possível; curiosidade e segurança; comprometimento; compreender que
a educação é uma forma de intervenção no mundo; liberdade e
autoridade; tomada consciente de decisões; saber escutar;
disponibilidade para o diálogo e querer bem aos educandos. (FREIRE,
1996, p. 21)
Ao tratar do papel do professor, ele reafirma o seu status de educador e reinterpreta
a relação entre o ato de ensinar e aprender:
7
É importante destacar que se de um lado as idéias de Paulo Freire tem um caráter humanista – universalista,
por outro, sua ênfase a respeito da noção de Liberdade está circunscrita em contextos históricos particulares
referente à sociedade de classes e ao Estado.
11
[...] ensinar não é transferir conhecimento. O ato de ensinar se constitui
como tal se o ato de aprender for precedido, ou concomitante ao ato de
aprender o conteúdo, ou o objeto cognoscível, com que o educando se
torna também produtor do conhecimento que lhe foi ensinado.[...]
ensinar também é saber escutar o outro. E isso quer dizer, ensinar é
também fazer com o outro; num processo de construção dialógica,
dialética e coletiva. (1997, p. 118)
A participação do sujeito da aprendizagem no processo de construção do
conhecimento não é apenas algo mais democrático é também mais eficaz. Ao contrário da
concepção tradicional da escola, apoiada na autoridade do professor, Paulo Freire
demonstra a importância de alunos e professores aprenderem juntos, serem parceiros de
múltiplas e mútuas aprendizagens.
***
Daraiti é uma palavra que fez parte do meu cotidiano desde que cheguei à aldeia
dos Enawene Nawe, no ano de 1994. Associado a esta palavra está o nome de
Marikeroseene, o primeiro Enawene Nawe que se interessou pela escrita alfabética.
- Muyalaka, daraiti ahã - Vamos, é a vez da escrita! – Era assim que
Marikeroseene, falava nas suas horas de folga, me convidando para escrever.
Vivíamos ambos e ao mesmo tempo uma dupla função de aprender e ensinar. Eu era
uma aprendiz da língua do povo e Marikeroseene, o aprendiz de uma língua escrita: a
alfabética. Sentia que era comum a nossa apreensão pelo início da experiência de
alfabetizar e ser alfabetizado.
A escrita alfabética era nova, mas outras formas de escrita sempre existiram por lá,
quer seja nos trançados da cestaria, nas linhas, círculos e pontos desenhados com urucum,
jenipapo e argila, nos corpos dos homens e das mulheres.
Entre os Enawene Nawe, daraiti é uma palavra traduzida por escrita e tem seu
sentido como aquele atribuído por Bakhtin (1972), como a representação de um signo. Ela
foi ensinada por Hiriniwaxiwiri, um enorenawe (denominação de uma categoria de
espíritos celestiais) que, travestido de urubu, utilizou o seu corpo para ensinar o
12
conhecimento. Para eles existem categorias diferenciadas de espíritos: os enorenawe, os
yakairiti e os dakoti. Eles serão vistos com mais detalhes adiante.
Na aldeia a palavra daraiti passou a traduzir também a escrita alfabética. Ela se
inseriu no cotidiano Enawene Nawe em 1995, e convive desde então, com outras formas
tradicionais, específicas e singulares de linguagem, valorizadas e transmitidas desde tempos
imemoriais. Hoje eles fazem uso do código alfabético, mas continuam se valendo de
múltiplos códigos.
O propósito deste trabalho é sistematizar o histórico da experiência de aquisição da
escrita alfabética entre os Enawene Nawe, demonstrando que a sua aquisição define um
processo diretamente ligado aos interesses do próprio povo. A aquisição da escrita
alfabética, neste caso, não se realizou vinculada à instituição escolar, a dinâmica foi
definida pelos próprios Enawene Nawe, a partir de seus interesses e disponibilidades.
O primeiro capítulo traz dados da etnografia do povo. São apresentadas informações
sobre o seu contexto atual, seu modo de viver e sua relação com o ambiente natural e
sagrado. Este capítulo traz também o mito de origem da escrita. Foram imprescindíveis
informações obtidas pelos estudos realizados por Silva (1995), Sá (1996), Mendes (2001) e
Jakubaszko (2003).
No segundo capítulo apresentaremos um panorama sobre as línguas indígenas
brasileiras e a língua Aruak mais especificamente, apoiado nos estudos desenvolvidos por
Aryon Rodrigues (1986), Greg Urban (1992) e Bruna Franchetto (2001). Os aspectos
fonéticos e fonológicos da língua Enawene Nawe e um breve histórico da constituição da
sua grafia serão também destacados.
O terceiro capítulo é de ordem analítica e aborda a experiência de alfabetização
desenvolvida nos anos de 1995 a 1997. Este capítulo recorre aos estudos de Goody (1968),
Kawall (1992), Soares (2003), Ferreiro e Teberosky (1991) para compreender, entre outras
coisas, as múltiplas interpretações que sociedades com tradições orais podem fazer da
escrita, bem como, se inserir no debate a respeito das metodologias de alfabetização a partir
da experiência realizada junto aos Enawene Nawe na aldeia Matokodakwa. Este último
capítulo pretende também evidenciar a dinâmica própria que foi gerada no trajeto da
alfabetização e sugere que se os contextos sociais, políticos, lingüísticos forem respeitados
13
não haverá método, nem instituição com capacidade e poder para definir caminhos
contrários aos interesses de qualquer povo.
14
CAPÍTULO PRIMEIRO
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA SOCIEDADE ENAWENE NAWE
1.1 Contexto atual
Os Enawene Nawe comentaram que antigamente as duas coisas que
mais preocupavam a eles eram os (índios) Cinta Larga
8
e a demarcação
da sua terra. Hoje, as preocupações são outras: gasolina, boi, asfalto,
carteira de habilitação, saúde, poluição das cabeceiras dos rios, usinas
hidrelétricas, ICMS ecológico.
9
O território indígena Enawene Nawe está localizado ao noroeste do estado do Mato
Grosso e abrange uma área de 742.088 hectares. Esta área foi homologada no ano de 1998.
A aldeia atual é denominada Matokodakwa e se situa próxima ao rio Iquê, um dos afluentes
do rio Juruena.
Fonte: FUNAI/2006
8
O povo Cinta Larga e os Enawene Nawe se “consideravam” inimigos tradicionais.
9
Relato de Pedro Passos (antropólogo e assessor do projeto) à Coordenação da OPAN, em 07/04/06.
15
Fonte: FUNAI/2006
Os padres jesuítas Vicente Cañas
10
e Thomaz de Aquino Lisboa, havia tempo,
buscavam a aproximação com o povo. Os Enawene Nawe percorriam uma área que de certa
forma era protegida por outros povos indígenas da região, principalmente os Rikbaktsa,
Cinta-Larga, Nambikwara e Myky. Estes sim, mais vulneráveis às frentes de expansão
colonialistas.
10
Vicente Cañas ou Kiwxi, como era conhecido era missionário jesuíta e se estabeleceu entre eles em 1977.
Seu trabalho indigenista teve início neste período e durou até 1987, ano em que foi assassinado a mando de
fazendeiros da região. Durante os anos de convivência com os Enawene Nawe a preservação do território e
as ações de saúde figuraram como ênfase de sua atuação.
16
Os jesuítas convidaram Roberto Nambikwara e Tapema Rikbaktsa, dois índios da
região, para a ambiciosa missão de contato com os então isolados Enawene Nawe. Eles os
acompanharam.
Foi no dia 28 de julho de 1974 que ocorreu o contato oficialmente registrado com os
Enawene Nawe, cuja existência era conhecida desde 1962.
Naquela ocasião a população era de 97 pessoas e se organizava em sete casas
comunais.
11
Os missionários ficaram impressionados com o jeito expansivo e alegre do
povo. Dizem que quando chegaram à aldeia havia apenas um homem deficiente físico que,
por não poder andar, facilitou o contato amistoso do grupo com o povo. As mulheres
haviam fugido amedrontadas e os homens estavam nos acampamentos de pesca.
[...] quando (os missionários) chegaram, deixaram machados e facões e
foram embora. Waitoa
12
mostrou os presentes para os Enawene Nawe e
muitos ficaram interessados: chegaram a dividir um facão em dois para
servir para mais pessoas. Eles (os missionários) voltaram com mais
presentes, que depois foram divididos entre todos [...].
13
Nos registros históricos disponíveis sobre este povo
14
é possível observar que, após
o contato, eles não tiveram depopulação. Ao contrário, o que se vê é o constante aumento
da sua população. Eram menos de cem indivíduos naquela época e atualmente somam 442
pessoas
15
.
A exploração econômica não é novidade no Brasil Central, mas o entorno do
território indígena Enawene Nawe tem se inserido num contexto bastante peculiar. A região
noroeste/nordeste, por onde passa a estrada que liga os municípios de Juína-MT e Vilhena-
RO, alimenta-se do garimpo de diamantes e madeireira e a implantação da pecuária, o
sudoeste, da extração de madeira, além do crescimento da pecuária e da monocultura da
soja.
11
LISBOA, Thomaz. Os Enawene Nawe. Ed. Vozes, 1984.
12
Waitoa está vivo e lembra detalhes desta ocasião.
13
Daliamase - relatório da oficina de LP – 2005 – Arquivo OPAN.
14
A maioria destes documentos encontra-se disponíveis nos arquivos da OPAN.
15
Arquivo OPAN (abril, 2006}.
17
Há dois fatores, no entanto, que preocupam sobremaneira esse povo: a construção
de usinas hidrelétricas no curso do rio Juruena e a devastação de uma região de ocupação
tradicional, denominada Adowina ou rio Preto. Ambas estão relacionadas à expansão da
fronteira agrícola, especialmente para o cultivo da soja.
Em 1998, os sojicultores da região de Sapezal - MT iniciaram a abertura de uma
estrada na porção noroeste do território, objetivando interligar os municípios de Sapezal e
Juína e escoar a produção da soja.
Os Enawene Nawe souberam do projeto e, apesar de seduzidos, decidiram
inicialmente não aceitar. Mas as propostas vieram acompanhadas de muitos presentes:
chinelos, roupas, material para a lavoura, linha de algodão entre outras coisas. Eles estavam
divididos: uns queriam, outros não. Sabiam que aqueles presentes poderiam custar mais
caro do que imaginavam. Alguns começaram a visitar com mais freqüência o município de
Sapezal e de lá voltavam para a aldeia abarrotados de mercadorias e, vez ou outra, com um
barco de alumínio e um motor de popa. Comentam que num dos supermercados da cidade
de Sapezal as mercadorias estavam à disposição deles: era só recolher tudo o que
desejassem.
Naquele período os Enawene Nawe experimentaram comidas da cidade e
começaram a trabalhar nas fazendas vizinhas. Não apreciaram muito. Foi também o início
da inserção dos motores de popa na vida social, desejo que se expandiu entre eles
rapidamente
16
.
A estrada já adentrava cinqüenta quilômetros do território quando os Enawene
Nawe acionaram seus aliados, que articularam uma reunião interinstitucional no município
de Sapezal. Esta reunião tinha o intuito de discutir os impactos da obra no cotidiano da
aldeia. O encontro contou com a participação do MPF, FUNAI, UFMT, CAIEMT,
prefeituras dos municípios de Sapezal, Juína e Comodoro, OPAN, sojicultores da região
entre outros. Na ocasião o MPF manifestou a ilegalidade da obra e promoveu a sua
interdição.
Da terra que pleiteavam a região do Adowina ou rio Preto (situada no nordeste da
área) ficou de fora da demarcação oficial. Aquele território é lugar imemorial onde
16
Hoje os Enawene Nawe contam aproximadamente com uma frota de 40 motores de popa e os respectivos
barcos de alumínio.
18
tradicionalmente construíam barragens de pesca e aldeias, além de ser importante local de
coleta de jenipapo. Saíram de lá incentivados pelos constantes ataques dos vizinhos Cinta
Larga e Rikbaktsa. Atualmente esta região está ocupada por fazendas e empresas agrícolas.
A partir do ano de 1999 os Enawene Nawe iniciaram um processo de retorno à região, o
que lhes propiciou a oportunidade de rever uma área que lhes pertenceu e que atualmente
está em litígio. Durante o período em que desenvolvem o yãkwa,
17
- entre os meses de
fevereiro e abril - constroem barragens de pesca e pequenos acampamentos na região. Essa
reocupação resulta na iminência de conflitos, considerando a presença dos agentes externos
e os efeitos da exploração agrícola na região. A devastação ambiental, os desmatamentos
indiscriminados que incluem as matas ciliares, o assoreamento dos rios, a caça e pescas
ilegais e outras práticas predatórias inviabilizam o manejo tradicional praticado pelos índios
e resultam em danos irreversíveis ao meio ambiente.
Desde muito tempo atrás, esta é nossa terra. Ela pertence aos yakairiti
(espíritos ancestrais), que são os donos dos peixes e de todos os produtos
agrícolas. Se a terra e os peixes forem destruídos, os yakairiti se
vingarão da nossa gente.
(Kawairi - chefe Enawene)
18
Com relação ao entorno da terra indígena, além do contexto desfavorável na região
do rio Preto, têm sido liberadas também as construções de várias usinas hidrelétricas no rio
Juruena.
As licenças ambientais foram fornecidas pelos órgãos públicos responsáveis: a
Secretaria de Estado de Meio Ambiente – SEMA e a Fundação Nacional do Índio - FUNAI.
A perspectiva é que essas Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs – forneçam energia para
a indústria da soja da região. Os empreendedores envolvidos e que integram o Consórcio
Juruena
19
, desejam construir no curso do rio Juruena, um total de onze usinas, sendo que
cinco delas (Telegráfica, Rondon, Cachoeirão, Parecis e Ilha Comprida) atingirão de forma
direta os Enawene Nawe. Todas já possuem licença prévia e licença para a implantação. A
primeira PCH estará a apenas 20 quilômetros do limite sul da terra indígena.
17
Yãkwa é o nome dado a um ritual e a uma categoria de espíritos subterrâneos.
18
Informação acessada no site www.survival_international.org, em 08/03/2006.
19
O consórcio Juruena é formado pelas Empresas: Maggi Energia S.A, MCA Energia e Barragens Ltda e
Linear Participações e Incorporações Ltda.
19
Caso venha a se concretizar a construção destas usinas, o modo de vida Enawene
Nawe será gravemente afetado, pois alterará o ciclo de reprodução do peixe, que é o recurso
alimentar e simbólico vital à ordem, à manutenção e à reprodução da sua organização social
e que se constituirá no elo mais vulnerável neste processo.
O Estado de Mato Grosso é hoje o maior produtor de grãos do Brasil e a sua política
desenvolvimentista se confronta diretamente com os direitos dos povos indígenas e
especialmente dos Enawene Nawe. O território desse povo está situado num dos últimos
corredores de fronteira agrícola da região e tem sofrido os diversos impactos resultantes da
adoção deste modelo predatório. Ainda assim, o povo continua resistindo frente às ameaças
que se projetam sobre o seu sistema de produção tradicional.
Segundo dados da organização não-governamental Survival International, três quartos
da soja utilizada no Reino Unido para a engorda do rebanho bovino, em 2004, foram
importads do Brasil e não se sabe o quanto dessa soja pode ter sido cultivada nas áreas que
antes faziam parte da Floresta Amazônica.
20
Entre as vítimas desses impactos estão as
populações indígenas que habitam as regiões cercadas pelo agro-negócio. O Estado do
Mato Grosso registrou nível recorde de desflorestamento em 2003 e 2004, representando a
metade de toda a Amazônia.
21
Os Enawene Nawe têm encaminhado cartas, relatórios e outros documentos que
socializam e denunciam estes fatos aos órgãos públicos e à comunidade nacional e
internacional. Procuram explicitar a sua preocupação com o agravamento da sua situação
territorial e com o descumprimento de um direito que lhe é garantido pela Constituição
Federal.
20
Informação acessada no site www.survival_international.org, em 08/03/06.
21
FORMAD, Relatório/2005.
20
A título de ilustração, reproduzimos a seguir o teor do primeiro documento escrito
por eles sobre questões territoriais, que data de 18 de abril de 1996.
22
22
Escrito por Marikeroseene e traduzido por mim.
21
Tradução da carta da página anterior
Chefe dos não índios
A nossa terra é muito importante para nós.
Não queremos nosso território invadido.
Onde faremos as roças de milho e procuraremos peixes também?
Onde iremos pegar mel?
Onde nossos filhos crescerão?
Há muitos anos atrás nossos antepassados nos mostraram nossas terras, foi aqui
que nosso povo nasceu. Aqui o nosso povo cresceu.
Porque você fez uma escrita feia da nossa terra.
23
Não seja bobo, chefe tem que ser esperto. Faça logo a escrita do nosso território
tradicional.
Os Enawene Nawe é que falam.
A Constituição Federal proclama que o direito dos povos indígenas a terra é
originário. Esse direito vem da origem, de antes da própria lei nacional, de antes da
colonização européia. Este direito diz respeito às terras que os índios tradicionalmente
ocupam. Terras tradicionalmente ocupadas são aquelas onde os índios moram, plantam,
criam, caçam, pescam, coletam enfim, vivem. São aquelas terras onde encontram as
condições para praticar seus costumes e tradições.
A Constituição Federal ressalta também que “são reconhecidos aos índios a sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens” (título VIII Da Ordem Social).
Parece que os Enawene Nawe entenderam rapidamente os propósitos do texto legal
e fazem a escrita funcionar potencializando seu aspecto universal.
Em estudos publicados em 1989 e 1992 Meliá e Kawall respectivamente
demonstram que a identidade étnica e cultural de um povo pode ser valorizada, dependendo
também do uso que fizer da escrita. Seria ilusão pensar que a conquista da escrita pode
23
Se referindo à homologação.
22
reverter o processo de colonização,mas ela está contribuindo, pelo menos em alguns
casos, para reforçar a identidade dos povos”. (MELIÁ, 1989, p.15).
A escrita, nascida do contato com o civilizador e usada pelas agências de
contato governamentais e missionárias como forma de exercerem seu poder
sobre os povos indígenas é usada hoje por estes mesmos povos como
instrumento fundamental para a conquista de sua autonomia frente à
sociedade não índia. Neste sentido, como afirma Meliá (1989, p.15), estamos
longe da alfabetização como passagem para a tradução e a integração no
mundo dos brancos. A conquista da escrita se quer agora criação.
(KAWALL, 1992, p.105).
Ao reunirmos o material disponível sobre a escrita feita pelos Enawene Nawe
percebemos que sobressaltam aos olhos o seu caráter político. O processo inicial de
aquisição da escrita alfabética, objeto deste estudo, se deu em agosto de 1995 e, como
poderá ser observado nos capítulos seguintes, sempre foi conduzido pelo próprio povo, de
acordo com interesses, disposição e calendário social. Interesses e disposições
privilegiavam a aquisição da escrita na língua materna. Porque a escrita da língua materna e
não a oralidade da língua portuguesa configurou o caminho solicitado e desejado por este
povo? Seria a busca por uma interlocução mais igualitária?
1.2 – Caracterização social
Dois grandes ecossistemas fazem parte do território Enawene Nawe: o Cerrado e a
Floresta Tropical. O clima da região é quente e úmido.
O território tradicional se estendia desde o rio Juruena até o Tapajós. Atualmente,
vincula-se aos municípios de Sapezal ao sul, Comodoro ao sudoeste e Juína ao norte, na
divisa entre os estados de Mato Grosso e Rondônia.
A pesca, o cultivo e produção da mandioca e do milho, a coleta do mel e a
fabricação do sal vegetal são atividades econômicas, ordenadas e plenas de significados
simbólicos. São importantes produtos consumidos pelo povo, e servem também ao
23
abastecimento dos seres sobrenaturais, como nas cerimônias rituais destinadas a Yãkwa,
Lerohi, Salumã e Kateokõ.
24
No período da seca os rituais são destinados a categoria de espíritos subterrâneos
denominados Lerohi. Os rituais são realizados através do plantio de produtos agrícolas e da
pescaria nos arredores da aldeia.
No início das chuvas os rituais são oferecidos a Salumã e para esta categoria de
espíritos celestiais é oferecida a coleta do mel.
Durante a cheia, os Enawene Nawe se organizam para o plantio do milho e todo o
ritual é oferecido à Kateokõ.
Na vazante, com a pesca de barragem, este povo desenvolve uma complexa
cadência de atividades destinadas aos Yãkwa, espíritos que habitam o patamar subterrâneo.
Os rituais dirigidos aos seres subterrâneos marcam o confronto com a alteridade e a
relação é de obrigação, enquanto que os rituais desenvolvidos para aos seres celestes
marcam as relações de proximidade, de cooperação
25
.
Os rituais se destacam como fissuras no tempo cotidiano pelo potencial de
ampliar a equação do tempo/espaço ao lidar com o acervo de uma memória
coletiva e conjugar os diversos patamares referentes a concepção do cosmos
e da vida social, congregando domínios distintos, mas articulados da
natureza, da sobrenatureza e da sociedade. (JAKUBASZKO, 2003, p. 49).
Na relação entre os deuses, os Enawene Nawe acreditam que Salumã é marido de
Kateokõ – ambos são categorias de espíritos celestiais. Kateokõ por sua vez, é irmã de
Yãkwa e Lerohi – categorias de espíritos subterrâneos.
Yãkwa e Lerohi habitam o patamar subterrâneo e com eles os Enawene Nawe
mantém uma relação de obrigação e alteridade.
Os yakairiti são responsáveis pelo controle da produção das pescarias de barragem e
das espécies cultivadas. Eles habitam as profundezas, encostas, morros, cachoeiras, pedras
e margens dos rios. São sovinas, perversos e predadores. Se expressam por meio de
24
Conferir: Silva (1995).
25
Conferir: Silva (1998).
24
lamentos e gemidos e ameaçam a tranqüilidade social. Com eles os Enawene Nawe
estabelecem uma relação de troca de produtos, comidas, danças e músicas. Os rituais são
marcados pelo sentimento de obrigação e hostilidade.
Kateokõ e Salumã habitam o patamar celeste e com eles o povo mantém uma
relação de proximidade. Eles também são conhecidos como Enorenawe.
Os Enorenawe são perfeitos, cheirosos e bonitos. Vivem numa aldeia ideal e
convivem com a abundância de alimentos. São os ancestrais consangüíneos dos Enawene
Nawe, seus avós. São donos de espécies de aves, ervas e mel. Os rituais são marcados por
um clima de proximidade e liberdade.
Existem também os dakoti que se originam das sombras das pessoas mortas.
Transitam a noite pela floresta, nos arredores da aldeia, nas roças e lagoas ao longo dos
rios. Comem fungos e insetos.
Para este povo, cada pessoa que morre transforma-se parte em dakoti (sombra dos
mortos), parte em enorenawe (espíritos celestiais) e parte em yakairiti (espíritos
subterrâneos).
Na superfície terrestre vivem os humanos (os próprios Enawene Nawe) e os
animais, que também foram Enawene Nawe num passado distante.
Com base no esquema a seguir, sugerido por (SILVA, 1995, p. 15), a estrutura do
cosmos Enawene Nawe poderia ser assim desenhada:
25
enorenawe (patamar celeste)
liberdade e proximidade salumã, kateokõ
Enawene nawe
hostilidade e obrigação yãkwa, lerohi
yakairiti (patamar subterrâneo)
A partir deste esquema podemos observar que os enorenawe habitam o patamar
celeste e com eles os Enawene Nawe mantém uma relação de liberdade e de proximidade,
já que são considerados seus avós ancestrais. Para eles, os Enawene Nawe desenvolvem os
rituais salumã e kateokõ. Os yakairiti, por sua vez, habitam o patamar subterrâneo e com
eles é mantida uma relação de alteridade. Para eles, são desenvolvidos os rituais yãkwa e
lerohi. Entre um e outro grupo de categorias sobrenaturais, vivem os Enawene Nawe.
Para entender a relação entre o cosmos e o dia a dia do povo é importante ter em
mente que toda a produção alimentar se efetiva a partir de uma rede de trocas e
reciprocidades com os seres sobrenaturais.
A subsistência concentra-se na pesca, agricultura, além da coleta de alguns
produtos.
O peixe é para eles a principal fonte de proteína animal. Desenvolveram, ao longo
do tempo, uma série de habilidades técnicas para a pescaria: usam arco e flecha, pequenas
armadilhas, anzóis, venenos vegetais além das barragens de pesca que represam as águas
dos rios.
Um dos mitos fala que a barragem de pesca foi um presente de Datamare para os
Enawene Nawe:
Datamare era pai de Dokowi que possuía uma rede mágica. Com ela
Dokowi dava conta de pegar uma grande quantidade de peixes de
uma só vez.
26
Wayariokõ, irmão de Datamare, foi avisado para não tocar a rede
pois era arriscado e perigoso, ao que nem deu ouvidos.
Quando Dokowi virou as costas, Wayariokõ pegou a rede e, ao joga-
la, foi tomado por ela mesma, que enrolou sobre o seu corpo. A cada
movimento, a rede apertava e enrolava mais, dificultando a sua
respiração.
Ao encontrar Wayariokõ naquela situação Dokowi bateu forte sobre a
rede e conseguiu libertar seu tio.
Wayariokõ foi para a beira do rio, pegou uma peneira, tingiu-a com o
extrato de tucum e jenipapo e criou o pacu de pintas vermelhas e
pretas e jogou-o na água. Sugeriu a Dokowi que fosse pescar e disse
que não seria necessário usar sua rede mágica, pois os peixes
estariam em locais rasos.
Com arco e flecha Dokowi flechou o pacu, que nadou para o meio do
rio levando o menino. Vários outros peixes se aproximaram e
acusaram Dokowi de matar seu povo: você é ruim Dokowi, olha o
lugar dos peixes, não há mais peixes.
Os peixes começaram a indagar o menino sobre quem era o seu pai.
Amedrontado Dokowi tentou despista-los dizendo que ora era filho
da árvore, ora da folha, ou de uma espécie de fruto nativo. Mas não
conseguiu convencê-los. Tentou amedrontá-los também dizendo que
o veneno vegetal que estava em suas veias, em seu escroto e em seus
olhos e unhas, iria matá-los. Os peixes não acreditaram e o
devoraram.
Datamare, ao saber que seu filho havia sido devorado pelos peixes
construiu como vingança uma barragem de pesca e depois ensinou
aos Enawene Nawe a sua tecnologia.
26
26
Conferir: Plácido Costa (1995, p. 12). Este mito é a transcrição do relato de Cleacir Alencar Sá, indigenista
que atua com o povo desde 1989.
27
As barragens de pesca são construídas distantes da aldeia entre os meses de
fevereiro e abril. Somente os homens podem participar e assim se organizam a partir de
grupos de descendência patrilinear.
27
Os pescadores se dividem em diferentes rios, representando os Yãkwa (espíritos
subterrâneos) e obedecem a uma lógica de distribuição dos domínios territoriais ensinada
por seus ancestrais.
Um grupo sempre permanece na aldeia. Eles são chamados de harikare, os
anfitriões da grande festa ritual e responsáveis por limpar os caminhos, colher e produzir os
alimentos e fabricar o sal vegetal.
A função do harikare também é recepcionar os yãkwa, grupos de Enawene Nawe
travestidos de espíritos subterrâneos que chegarão das barragens de pesca, após dois meses
de pescaria. Toda essa trama é realizada por meio de um complexo ritual de trocas e
obrigações.
Este povo também se utiliza da pescaria com venenos vegetais que é realizada nas
lagoas próximas aos rios. Esta pescaria acontece durante a estação seca e no início das
chuvas, durante os meses de agosto a dezembro. Os Enawene Nawe utilizam uma
combinação de espécie de cipó com uma casca de árvore que se transformará no veneno e
que sufocará os peixes.
As atividades de coleta são também muito importantes na vida deste povo. Os
produtos mais apreciados são os frutos, mel, fungos e insetos. A castanha, bacaba, buriti,
pequi, vespas, formigas, cupins e cogumelos são também muito desejados.
O sal vegetal não é utilizado no dia a dia. Sua produção é destinada principalmente
aos rituais oferecidos a Yãkwa e Lerohi. Ele é fabricado por meio de uma tecnologia
específica que consiste na queima e produção de cinza de uma espécie de palmeira. Esta
cinza formará um líquido de cor escura que será fervido até secar e se transformar em sal.
Durante a estação ritual do Yãkwa o sal é oferecido pelos harikare (anfitriões) aos yakairiti
(seres que habitam o subterrâneo) em troca do peixe.
O mel também é um item muito valorizado no cardápio desse povo. É consumido
tanto na forma natural como adicionado à água, numa combinação denominada mala. Um
estudo realizado pela OPAN/GERA/UFMT sobre o uso e potencialidades dos recursos
27
Nesta ordem, os filhos sempre reforçam o clã do pai.
28
naturas da terra indígena
28
, identificou vinte e uma espécies de abelhas sem ferrão, além de
várias outras espécies sem identificação. O mel da espécie appis melífera é bastante
consumido e, para eles, é um presente dado por Kateokõ (espírito celestial).
A base da agricultura está calcada no cultivo da mandioca e do milho. As roças de
mandioca ficam no entorno da aldeia e podem ser colhidas em qualquer época do ano. Seu
cultivo garante o suprimento das famílias e dos rituais. O povo mantém permanentemente
duas roças de mandioca: uma apta para a colheita e outra, em processo de cultivo. Elas
podem ser coletivas ou familiares.
Eles cultivam uma variedade de mandioca mansa e catorze variedades tidas como
bravas. Dentre os principais pratos feitos com este produto destacam-se o beiju, os sucos
fermentados, os mingaus e o pirão. Eles consomem também as folhas e as raízes de
mandioca cozidas ou assadas.
As roças de milho ficam distantes da aldeia
29
e para isso os Enawene Nawe se
organizam em acampamentos. Estas regiões, muito férteis, têm solo de cor escura e
apresentam melhores condições para o plantio do milho. Utilizam quatro variedades de
milho de onde fabricam variados tipos de bolos, mingaus e sopas. O plantio ocorre entre os
meses de julho e setembro.
A aldeia atual foi construída em 1999. É composta por nove casas dispostas em
círculo e por uma casa central conhecida como a casa de Yãkwa ou a casa das flautas. O seu
interior abriga as flautas dos clãs e é morada dos seres sobrenaturais. A posição das flautas
na casa de Yãkwa reflete o padrão de residência que dispersa os clãs entre elas.
No sentido leste da casa abre-se o caminho do Yãkwa, com as roças rituais de
mandioca. Este caminho chegará ao porto do Yãkwa, localizado à margem esquerda do rio
Iquê.
Uma fotografia aérea nos daria a seguinte imagem da aldeia:
28
Relatório intitulado: Estudo do uso e potencialidades dos recursos naturais da terra indígena Enawene
Nawe. Arquivo/OPAN - 1995
29
Segundo Mendes, as mais distantes encontram-se num raio de 30 Km.
29
No interior das casas eles se organizam através de grupos familiares, grupos
domésticos e grupos residenciais. Segundo Silva (1995) o grupo residencial é formado
pelos moradores de uma casa, o grupo doméstico pelos moradores de uma seção de uma
casa e o grupo familiar pelos moradores de um compartimento de uma seção de uma casa.
Os clãs se dispersam entre as casas e são exogâmicos, ou seja, não é permitido casamento
dentro do mesmo clã. O padrão de residência é uxorilocal, isto é, ao casar, um homem
passa a morar com sua esposa na casa de seus sogros.
A vida econômica e matrimonial e a conformação dos papéis e responsabilidades
específicos são organizados a partir dos clãs. Atualmente eles se organizam em número de
nove:
Kawekwarese,
Aweresese,
Anihiare,
Kawinariri,
Kailore,
Lo lahese,
Mairoete,
Maolokori,
Kaholase.
Após esta rápida caracterização, passamos a descrever de forma tamm sintética
alguns processos educativos específicos do povo. Por meio de processos próprios de ensino
30
e aprendizagem, esta sociedade forma vários especialistas que são responsáveis por
diferentes atividades em diferentes contextos. São eles:
Honaitare/lo
30
Baraitare/lo
Sotairi(lo)ti
Sotakatare/lo
Os honaitare/lo são especialistas que interagem com os seres sobrenaturais por
meio do sopro e da palavra, principalmente nos rituais de transição. São eles que
possibilitam a transição realizada nos períodos de nascimento, nominação, casamento, entre
outros. Durante a fase de reclusão da menina moça – período prévio a sua primeira
menstruação - ela recebe orientações alimentares e cuidados especiais dados por um
honaitare/lo.
Um outro grupo de especialistas é denominado baraitare/lo. Eles são os
conhecedores das ervas apropriadas para diversos tratamentos, transmitindo estes
conhecimentos apenas para os seus parentes consangüíneos.
Os sotairi(lo)ti, denominação nativa para os xamãs ou pajés, são especialistas que
têm o poder de se transportarem para outros domínios do cosmos. Este conhecimento é
adquirido pelo sotairi(lo)ti através dos Enorenawe, os seres que habitam o patamar
celestial. Cada especialista se relaciona e se comunica com um conjunto de seres
sobrenaturais. Sua conduta terapêutica é realizada através de sucções pelo corpo do
paciente.
Os sotakatare/lo são especialistas capazes de se comunicar com os seres
sobrenaturais através da música. Recebem orientações dos Enorenawe e são fundamentais
na realização de todos os rituais. São os guardiões da história
31
.
Além dos especialistas nativos, fundamentais para a ordem social, destacamos nesta
rápida incursão pelos processos próprios de aprendizagem, as categorias de idade nativas
32
30
Os sufixos /re/ e /lo/ designam respectivamente o gênero masculino e feminino.
31
Para maiores detalhes conferir Jakubaszko (2003)
32
Conferir Sá (1996) e Jakubaszko (2003)
31
nas quais a pessoa é classificada no percurso do seu desenvolvimento físico e cultural. São
elas:
Tiraware/Tirawalo
Wesekoitakori/Wesekoitakolo
Enawehorairi/Enawehorailo
Anolokwari/Anolokwalo
Atetoarese/Atetoarese
Atonaharese/Atonahalose
Dinoarese/Dinoalose
Enawaretese/Enawalotese
Awitaretese/Awitalotese
Awitariti/Awitaloti
Enetonasare/Enetonasalo
Kolakarinasare/Kolakalonasare
Kolakalare/Kolakalalo
Ihitariti/Ihitaloti
a) Tiraware/Tirawalo (vida intra-uterina). Para que uma mulher engravide são necessárias
muitas relações sexuais. Para eles, a gravidez é o resultado da combinação entre o esperma
e o sangue menstrual no útero. O tronco, os braços e a pulsação cardíaca são os primeiros a
se desenvolver no útero materno, depois as pernas e a cabeça. Se a mulher tiver relações
sexuais com mais de um homem durante a gravidez, o bebê terá sido feito em conjunto.
Esse modo de conceber a fecundação estará subjacente em todo o processo de criação e de
formação do Enawene Nawe.
b) Wesekoitakori/Wesekoitakolo (recém nascido). Nesta fase o pai e mãe ficam em
reclusão, obedecem restrições alimentares para que o recém nascido não seja atormentado
por seres que causam doenças ou a morte. O bebê tem seu cabelo cortado e suas orelhas
furadas para receber o brinco de tucum. Também são colocados adornos de algodão em
torno dos tornozelos e punhos. Sua alimentação é o leite materno oferecido pela mãe, tias e
avós. Banhos de ervas para o crescimento com saúde e pinturas leves com urucum também
são recomendados.
32
c) Enawehorairi/Enawehorailo (colo). Nesta fase usam colares, pulseiras e tornozeleiras.
Após o benzimento podem consumir o oloiti (refresco de mandioca) o ketera (mingau de
mandioca) e o mel diluído na água. Os irmãos mais velhos ajudam nos cuidados diários.
d) Anolokwari/Anolokwalo (senta e engatinha). Nesta fase, a criança recebe um par de
brincos de conchas além de mais colares para enfeitar o seu pescoço. As meninas usam
cinto de tucum e pintura corporal de urucum, feita com palha de buriti.
e) Atetoarese/Atetoarese (fica em pé). Segundo os Enawene Nawe, nessa fase as crianças
são auxiliadas pelos Enorenawe para que não caiam e se machuquem.
f) Atonaharese/Atonahalose (anda). Recebe tornozeleiras de algodão tecidas em tear. As
meninas usam argolas de borracha na perna, abaixo do joelho. Passa a incluir o peixe na
dieta alimentar.
g) Dinoarese/Dinoalose (criança pequena - de 3 a 6 anos). Começa a tomar banho sem a
companhia dos pais. Iniciam o aprendizado de uma série de atividades com os adultos,
como acompanhar os pais na roça e nas expedições de pescas familiares. As meninas estão
sempre junto da mãe.
h) Enawaretese/Enawalotese (7 a 11 anos). Nesta idade são intensificados os processos de
transmissão do conhecimento e aprendizagem. Os meninos acompanham os pais nas
pescarias e as meninas seguem para as roças com as mães.
i) Awitaretese/Awitalotese. O menino participa de pescarias, sem o pai. Se as articulações
matrimoniais já existirem, presta serviço para o sogro na plantação de uma pequena roça
com o auxílio do pai para que a noiva e a sogra possam colher. A menina cuida das
crianças menores, participa dos rituais, assim como os meninos desta idade.
j) Awitariti/Awitaloti. Esta é a fase de transição para a vida adulta. Os meninos recebem o
adorno peniano chamado de olokoiri e meninas, a tatuagem em torno do umbigo e dos
seios, após a primeira menstruação. Nesta fase estão prontos para o casamento. As marcas
da passagem (adorno peniano e a tatuagem) têm grande valor social, pois indicam a
capacidade reprodutiva da pessoa.
Existe um ritual para esta passagem. O awitariti é inicialmente preparado pela mãe
que lhe corta o cabelo e troca seus objetos corporais. Pai e mãe explicam para o filho o que
irá acontecer. A mãe e irmãs mais velhas preparam beiju para oferecer aos cunhados que
participam do ritual. A dieta proíbe a alimentação com peixe, mandioca e sal. Na
33
madrugada peixe e beiju são oferecidos aos cunhados, que se encontram na casa do yãkwa,
preparando o ritual. Nesta fase do ritual os cunhados preparam flechas, pedaços de palha
para fazer o adorno peniano, urucum, esteira e parte da indumentária do yãkwa que serão
usados pelo awitariti. O menino, por sua vez, está sendo preparado para o ritual em sua
casa. Ele será pintado com uma camada de urucum pelo corpo e usará uma parte da
indumentária do yãkwa. Um dos seus cunhados (pode ser o marido de uma irmã) irá buscá-
lo em sua casa e falará ritualmente para o pai, mãe e irmãos do awitariti. Em seguida ele
será conduzido à casa do yãkwa. A família do awitariti preparará em sua casa um dote
formado por panelas de barro, adornos, cuias, arcos e flechas e peixes que serão ofertados
aos cunhados logo após a colocação do adorno. O awitariti deitará numa esteira disposta na
entrada da casa do yãkwa e apoiará a cabeça no colo do cunhado até que ele coloque o
adorno. Este adorno é normalmente maior que o usado após o ritual, na vida cotidiana.
Além do adorno é colocada a indumentária do yãkwa, os adornos do tornozelo, brincos de
conchas, colares e o cocar. O ritual é seguido por vários gritos, que simbolizam a presença
de yakairiti e entregam para o menino arcos e flechas e palhas para confeccionar o adorno
peniano. Os cunhados devolvem o menino à sua casa e a sua família, novamente com uma
fala ritualizada. Os pais entregam o dote aos cunhados do menino, que então retira a
indumentária e deixa apenas os colares. Substitui o estojo usado no ritual por um outro, já
de tamanho normal. De volta a sua casa toma chás de casca de árvore, oferecidos por uma
awitaloti, e que foi preparado por sua mãe. O menino irá ingerir o chá e vomitar os restos
de comida ingeridos anteriormente, limpando seu corpo. As primeiras refeições de um
awitariti são feitas em utensílios novos até que um honaitare benza os utensílios que ele
usa. Os ex-meninos iniciados na vida adulta têm agora sérias obrigações sociais, ele já não
é mais um menino. Agora virou homem.
A awitaloti por sua vez, depois de informar a mãe sobre a sua primeira menstruação
irá habitar por um tempo, uma pequena repartição construída por seu pai, bem próxima a da
sua família. A menina permanecerá reclusa e neste local irá fabricar seus alimentos com
utensílios disponibilizados para este fim, além de tomar banho e fazer suas necessidades
fisiológicas. Um honaitare será convidado para benzer a casa e a rede da menina e
permanecerá benzendo a menina e a aldeia, casa por casa. Este serviço é caro e pago com
bens. A awitaloti também tomará chás para fazê-la vomitar alimentos ingeridos
34
anteriormente. Terminada a menstruação é feita a tatuagem no ventre e no seio da menina
por uma parente consangüínea, não sendo cobrada nenhuma troca pelo serviço. Depois de
feita a tatuagem coloca-se novos adornos e corta-se o cabelo da menina. O honaitare
benzerá a casa da menina e os caminhos para o banho e para a roça. Depois do benzimento
a menina poderá transitar desde que proteja a cabeça do sol. Os Enawene Nawe acreditam
que no caminho do eno (céu), existem aranhas gigantes, que são também dakoti (sombra
dos mortos). Neste caminho, onde moram as aranhas, existem muitos obstáculos e algumas
pontes de cobras inofensivas. As mulheres que não tem a tatuagem, assim como o homem
sem o adorno, são devorados pelas aranhas, quando tentam cruzar essas pontes.
k) Enetonasare/Enetonasalo – nascimento do primeiro filho. Nesta fase as mulheres
mudam os adornos e passam a usar o urucum com outros traços diferenciados da fase
anterior
l) Kolakarinasare/Kolakalonasare – a partir do quarto filho.
m) Kolakalare/Kolakalalo – nascimento do primeiro neto. Nesta fase a pintura corporal
passa a ter uma fina camada de urucum, as mulheres sofrerão algumas restrições na
participação dos rituais.
n) Ihitariti/Ihitaloti – é caracterizada pela presença de rugas, diminui o uso de adornos.
Esta dinâmica da vida Enawene Nawe expressa pela importância dos especialistas,
das fases da vida e dos ritos consagrados as passagens, são processos de transmissão do
conhecimento e do pensamento socialmente construídos a partir das determinações
históricas e culturais.
Nossa pretensão ao descrever sinteticamente os aspectos mais gerais da vida social
é compreender as concepções de aquisição e transmissão dos conhecimentos nos contextos
sócio-históricos e concepções de linguagem enquanto produto da interação entre as
pessoas.
[...] o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, isto
é, pelos instrumentos lingüísticos do pensamento e pela experiência
sociocultural [...]. O pensamento verbal não é uma forma de
comportamento natural e inata, mas é determinado por um processo
35
histórico-cultural e tem propriedade e leis específicas que não podem ser
encontradas nas formas naturais de pensamento e fala.
(VYGOTSKY, 1993, p. 44)
Descreveremos agora, o mito de origem da escrita, não da escrita alfabética, da qual
trataremos no terceiro capítulo, mas a escrita traduzida pelos Enawene Nawe por meio da
palavra daraiti.
1.3 - O mito da origem da escrita
Num tempo ancestral denominado kodakitiwa, quando o natural, o
social e o sobrenatural não eram nitidamente definidos e se
confundiam, os Enawene Nawe desejaram aprender daraiti.
Um dia, o dono do daraiti Hiriniwaxiwiri, um enorenawe (ser
sobrenatural) que tem a forma de urubu - sentiu fome e desceu a terra
para se alimentar. Seu cardápio predileto é carne podre.
Os Enawene Nawe estavam interessados no seu conhecimento e
prepararam uma armadilha para pegá-lo. Era a única maneira de
aprender um signo que apenas ele conhecia. Deitaram num local onde
a “carniça” estivesse bem visível e se cobriram dela. Escondidos,
esperaram a chegada de Hiriniwaxiwiri.
Sem imaginar o que o esperava, Hiriniwaxiwiri se aproximou e
começou a comer da carne podre quando, com os braços bem abertos e
com uma força inimaginável, os Enawene Nawe o agarraram.
Imobilizado, foi transportado para o interior da casa.
Todos estavam eufóricos e muito interessados neste conhecimento.
Sem muita demora perguntaram como poderiam aprender.
Hiriniwaxiwiri respondeu:
36
- Meus netos, porque me prenderam, eu vou dizer o que eu sei.
Observem as minhas asas – nekano
33
, elas ensinam o daraiti
manarese
34
. Podem olhar, observem bem para aprender.
E continuou:
- Agora meus netos, observem estas partes do meu pescoço e da minha
cabeça –nolalehase
35
, elas ensinam o daraiti tohi
36
.
Eles ouviram tudo com muita atenção e satisfeitos, libertaram
Hiriniwaxiwiri, que falou:
- Meus netos, quando o sol estiver próximo das 10 horas da manhã eu
vou fazer cair uma chuva do meu xixi. O meu xixi é como remédio. É
muito importante que todos vocês se banhem nele para que possam
viver eternamente.
Desconfiados, conversaram no interior da casa, se deveriam ou não
atender ao pedido de Hiriniwaxiwiri.
Wayareokõ, o personagem mítico desordeiro, não aconselhou a saída
do grupo, dizendo:
- Hiriniwaxiwiri está mentindo, o xixi dele vai nos matar, não podemos
sair. Vamos morrer.
Amedrontados e apreensivos, decidiram permanecer no interior da
casa, observando atentamente o que ocorria no seu exterior. Seria
verdade a conversa de Hiriniwaxiwiri?
As cobras e uma espécie de lagarto conhecido por kodohi estavam fora
de casa naquele momento. Eles são muito espertos, ouviram a conversa
e acreditaram no que Hiriniwaxiwiri falou. Se banharam na urina dele.
Enquanto banhavam estes répteis começaram a trocar a pele; a pele
envelhecida caiu e no seu lugar nasceu uma pele nova. Quando os
Enawene Nawe viram estes animais trocando de pele correram para o
33
Ekano: braço ou asa. O prefixo /n/ designa a primeira pessoa do singular.
34
Manarese corresponde aos trançados que podemos visualizar nas peneiras Enawene. Peneira em Enawene é
denominada manarese.
35
Nolalehase: parte de trás do pescoço e parte da cabeça.
36
Tohi corresponde aos trançados que podemos visualizar nas cestas Enawene. Cesta em Enawene é
denominada tohi.
37
pátio, mas não havia mais tempo, não conseguiram se beneficiar da
profecia de Hiriniwaxiwiri.
Ainda hoje as cobras e os lagartos não morrem, quando ficam velhos
apenas trocam a pele e se renovam constantemente.
O que eles carregam na sua pele é a escrita.
Hiriniwaxiwiri, que é casado com Koroiwalose, é o dono do daraiti.
Além do daraiti ele ensinou letras de música para os Enawene Nawe.
37
37
Versão contada por Anauri Enawene Nawe.
38
CAPÍTULO SEGUNDO
A LÍNGUA E A ESCRITA DA LÍNGUA ENAWENE NAWE
2.1 Línguas: a voz e a letra
São faladas no Brasil, atualmente, cerca de 180 línguas indígenas, o que classifica o
país como o de maior densidade lingüística do contexto sul-americano.
Apesar do processo a que foram submetidas, muitas línguas indígenas ainda
mantêm traços fundamentais de conservação. Elas se agrupam em troncos, famílias e
línguas isoladas. Cada língua - indígena ou não – é composta por uma rede de signos que
refletem a visão de mundo do povo que a fala. Pode ser caracterizada como uma forma de
expressão das experiências, análises e interpretações que foram (e são) acumuladas e
compartilhadas coletivamente ao longo de um processo histórico determinado.
Os Enawene Nawe falam uma língua da família Aruak. Um recente trabalho sobre
fonética e fonologia da língua Enawene Nawe realizado por REZENDE (2003), indica que
esta língua pertence a família Aruak - Maipure.
Para Aryon Rodrigues (1986, p.65), Aruák ou Arawák é o nome de uma língua
falada na costa guianesa da América do Sul, na Venezuela, na Guiana, no Suriname, na
Guiana Francesa e também em ilhas como Trinidad. Os Aruak se encontram na grande
região guianesa, entre as línguas da família Karib, e se estendem para o oeste, sudoeste e
sul. Outras se encontram mais no nordeste amazônico da Bolívia e no Brasil Central.
O termo Aruák foi utilizado para designar um conjunto de línguas faladas no
interior do continente. Segundo Aryon este conjunto de línguas também foi chamado de
Maipure, Nu-Aruák ou Lokono (1986).
Greg Urban (1992) por sua vez, comenta que o tronco Aruak é composto pelas
famílias Maipure e Aruan (do sudoeste amazônico), e pelas línguas Puquina (Titicaca –
Bolívia), Toyeri (do Peru) e Itarakmbet. Os estudos do autor indicam que a área peruana é
tida como a possível zona de origem dos Maipure e que um dos o ramos, o ocidental parece
não ter se deslocado muito, estando no local de sua origem há três mil anos ou mais. Ele
destaca que o ramo central da língua Maipure encontra-se no planalto brasileiro. “Pode-se
39
imaginar rotas de regiões de cabeceiras, que teriam levado o ramo central aos seus locais
atuais, nas cabeceiras brasileiras” (URBAN, 1992, p. 95). Ele indica que o ramo migrou
pela periferia da bacia Amazônica a partir da área peruana e, mais tarde, se estabeleceu em
regiões das terras baixas amazônicas.
Francheto (2003), por sua vez, divide a família Aruak posicionando-a em cinco
diferentes regiões brasileiras: ocidental (Amuesha e Chamicuro), setentrional (Baniwa-AM,
Baré-AM, Tariana-AM, Wapixana-RR, Warekana-AM, Yaba’ana-AM), Central (Paresi-
MT, Enawene Nawe-MT, Mehinaku-MT, Waurá-MT, Yawalapiti-MT), meridional
(Apurinã-AC/AM, Kampa-AC, Manchineri-AC, Terena-MS/MT) e oriental (Palikur-AP).
Aryon (1986) inclui, ainda, as línguas Mandawaka (AM); Maniteneri (AC) como
sendo da família Aruak e atualmente faladas no Brasil. Banawá-yafi (AM); Deni (AM);
Jarawara (AM); Kanamari ((AM); Kulina (AM); Paumari (AM); Yamamadi (AM) são
línguas da família Arawá que, segundo o autor, não é a mesma que a Aruak.
Após esta rápida passagem pelas línguas indígenas faladas no Brasil passamos a
apresentar alguns dados da fonética e da fonologia da língua Enawene Nawe, coletados no
período de 1995 a 1997 e contou com assessoria lingüística de Márcio Silva. Estão
presentes os pontos de articulação da língua Enawene Nawe: suas consoantes e vogais
40
2.2 - Os sons da língua Enawene Nawe
41
42
2.3 - A escrita da língua Enawene Nawe
Escrever alfabeticamente uma língua com tradições orais parece uma coisa fácil,
mas não é. Para alcançar uma escrita não basta possuir uma linguagem é preciso certo grau
de reflexão sobre ela. É preciso refletir sobre as suas propriedades fundamentais, sobre a
sua morfologia e sintaxe, sobre sua estrutura fonética, fonológica e semântica, dentre outros
aspectos relevantes.
O campo da fonética, por exemplo, tem recebido grande destaque nos últimos anos,
especialmente por incorporar uma grande complexidade e níveis de análise. A aparente
simples decisão acerca do que venha a ser um fonema tem provocado inúmeros debates e
proposições.
Ferrreiro e Teberosky (1991, p.280) ao abordar o tema, citam a perspectiva de
Bloomfield sobre o assunto.
A existência dos fonemas e a identidade de cada fonema individual não
são, de modo algum, óbvias: foram necessárias várias gerações de
estudos, antes que os lingüistas tivessem plena consciência desta
importante característica da linguagem humana. O notável é que muito
antes que os estudiosos da linguagem tivessem feito essa descoberta,
tenha surgido um sistema de escrita alfabética, um sistema no qual cada
grafia representa um fonema. [...] É importante saber que a escrita
alfabética não foi inventada repentinamente como um sistema já pronto,
mas que progrediu gradualmente e, quase poderíamos dizer, por uma
série de acidentes, a partir de um sistema de escrita de palavras.
Não existe uma rígida convenção da escrita da língua Enawene Nawe, uma das
razões refere-se ao tema das Variações e, como podemos ver no exemplo da língua
Enawene Nawe abaixo, há inúmeras ocorrências dessa natureza (flutuações – variação
livre). É nesse sentido também que se aplica a noção de estabilização provisória da escrita
de uma língua, neste trabalho. Dentre as várias constatações sobre a língua Enawene Nawe,
Rezende (2003) destaca que nela não existe o encontro consonantal. Indica exemplos de
segmentos que fazem parte de agrupamentos consonantais, mas que são alofones de um
43
mesmo fonema. Acredita ainda que existam nesta língua variantes geracionais, ou seja, o
dialeto dos jovens e o dos velhos.
A variação livre, isso é, a ocorrência de dois fones que podem ser substituídos um
pelo outro no mesmo ambiente sem provocar a mudança do significado presente nesta
língua, podem ocorrer entre:
/t/ ~ /d/
[atana] ~ [adana] ‘trovão’
[meta] ~[meda] ‘cócegas’
/k/ ~ /g/
[agositi] ~[akositi] ‘órgão genital feminino’
[nawenegota] ~[nawenekota] ‘eu penso’
/t/ e /d/ - [t] ~[?] e [d] ~ [?]
[etenedowa] ~[etene?owa] - ‘ouvido’
[edose] ~[e?ose] - ‘olho’
/l/ ~ /?r/
[awitaliti] ~ [awitariti] – ‘adolescente’
[Kawali] ~ [Kawari] – ‘nome próprio’
/d/ ~ /l/
[datowa] ~ [latowa] – ‘amanhã’
[donese] ~ [lonese] – ‘nome próprio’
/w/ ~ /b/.
[wesera] ~ [besera] – ‘beber’
[wera] ~ [bera] – ‘jirau’
44
Nesta língua são utilizados dois elementos em conjunto para evidenciar a estrutura
interrogativa das frases: a entonação e a partícula /la/ que é afixada no final da palavra.
A estrutura silábica básica é V (vogal) e CV (consoante/vogal). O padrão silábico da
língua Enawene Nawe não prevê sílaba travada, ou seja, sílaba do tipo CVC.
A primeira tentativa em estabelecer a grafia provisória para a língua aconteceu em
agosto de 1989 e foi elaborada por Dorotéia Fátima de Paula, Márcio Ferreira da Silva,
Cleacir Alencar Sá e Henrique Santos Cavalheiro. O documento intitulado “Grafia
Provisória e Escrita Enawene Nawe foi destinado ao uso interno da equipe da OPAN e
pessoas interessadas, subsidiando os estudos lingüísticos e a estabilização da escrita para
fins de registros sobre o provo.
Segundo os autores, os critérios adotados para a estabilização provisória da escrita
da língua, se fundamentaram na “avaliação fonológica; maior compatibilidade possível
com o português; maior compatibilidade com língua de mesma família; participação
efetiva dos falantes nativos da língua na elaboração do sistema”.
38
Os quadros a seguir tratam da ortografia estabilizada no ano de 1996
Quadro de vogais
Vogais Grafia Palavra Tradução
/i/ [i] ‘i’ hoxirõ colar
/i/ [i] ‘i’ tanari o que foi?
[i] /e/
[e]
‘e’ akote muito
[i] /e/
[e]
‘e’ dewe anta
/a/ [a] ‘a’ halata pente
/ã/ [^] ‘ã’ nakohã (eu) tomar
banho
[o] /o/
[u]
‘o’ hakolo casa
38
SILVA, Márcio e outros (1989)
45
[õ] /õ/
[u]
‘õ’ olohõ urubu
39
Quadro de consoantes
Consoantes Grafia Palavra Tradução
[t] /t/
[d]
‘t’ atama trovão
[ky] /ky/
[gy]
‘ky’ mikya noite
[k] /k/
[g]
‘k’ akositi órgão genital
feminino
/kw/ [kw] ‘kw’ kakwa juntos
[b] /w/
[w]
‘w’ wesera beber
/m/ [m] ‘m’ malalakwa nome próprio
[w]
/s/ [s] ‘s’ sairi pedra
/x/ [s] ‘x’ xixi beiju
/n/ [n] ‘n’ nato eu
[d]
[s]
[r]
/d/
[l]
[l] /?/
[?]
‘r’ kokore titio
/l/ [l] ‘l’ katala azedo
/y/ [y] ‘y’ yakairiti espírito
39
Verifica-se o uso esporádico da letra [u] e não do [o] para representar os fones /u/, /u/, por parte dos jovens
alfabetizados em língua materna, que começaram a estudar a língua portuguesa oral e escrita.
46
subterrâneo
/ñ/ [ñ] ‘n’ muñakalõ virgem
/h/ [h] ‘h’ tohe cesto
Relacionamos a seguir a descrição dos fonemas que compõe a língua Enawene
Nawe, precedida dos respectivos símbolos gráficos utilizados para representá-los.
Símbolo Descrição fonética
“b” oclusiva bilabial sonora
“t” oclusiva alveodental surda
“k” oclusiva velar surda
“ky” oclusiva velar surda palatalizada
“kw” oclusiva velar surda labializada
“h” fricativa glotal surda
“s” fricativa alveolar surda
“x” fricativa alveopalatal surda
“m” nasal bilabial sonora
“n” nasal alveodental sonora
“ñ” nasal alveopalatal sonora
“l” lateral alveolar sonora
“r” vibrante simples alveolar sonora (tap)
“w” semivogal posterior alta arredondada
“y” semivogal palatal
“i” vogal anterior alta
“e” vogal anterior média ou baixa
Passaremos a discutir, no próximo capítulo, o processo de alfabetização entre os
Enawene Nawe no período de 1995 a 1997.
47
CAPÍTULO TERCEIRO
A LÍNGUA ESCRITA E A ALFABETIZAÇÃO
3.1 Pensamentos sobre a escrita alfabética e a alfabetização
São vários os estudos que tratam do surgimento, da apropriação e da utilização da
escrita alfabética por povos distintos, próximos ou distantes.
Alguns autores como Goody (1986) e Havelock (1995) enfatizam a superioridade
da escrita em relação à oralidade. Segundo essa perspectiva, a escrita tem a capacidade de
modificar sobremaneira uma cultura, transformando-a em seus aspectos sociais, políticos,
religiosos e econômicos.
Jack Goody (1977) acredita que a aquisição da escrita compreende a evolução
social de um povo e a evolução cognitiva de uma pessoa. Para ele a escrita desenvolve
capacidades de raciocínio e abstração e é responsável pelo desenvolvimento do intelecto.
Dessa forma a escrita é vista como uma variável para dicotomizar o moderno do não
moderno, o avançado do primitivo e serve para estabelecer distinções entre culturas orais e
letradas.
As concepções de Goody infelizmente não incorporam características dinâmicas do
processo histórico e da linguagem de um povo. Sua tese desconsidera sistemas e suportes,
que demonstram outros tipos de significados. Como vimos no capítulo primeiro, é por meio
do corpo tatuado que os Enawene Nawe articulam outras categorias que dizem respeito à
formação do sujeito, como a nominação e a idade das pessoas.
Dizer que a escrita é a tecnologia do intelecto não está incorreto, mas Goody
desconsidera outras atividades estruturadas significativamente. Existem outras formas de
representação da linguagem que se encontram presentes no processo de transmissão das
culturas.
É interessante destacar também a crítica de Lévi-Strauss, quanto ao suposto
potencial positivo da língua escrita. “Desde a invenção da escrita até o surgimento da
ciência moderna, o mundo viveu durante alguns milhares de anos durante os quais o
conhecimento flutuou mais que cresceu”. (LÉVI-STRAUSS, 1974, p. 336)
48
Street (1984) por sua vez, demonstrou a necessidade da compreensão dos usos tanto
da oralidade quanto da escrita em contextos específicos. Sob essa perspectiva, a escrita
passou a ser entendida como um conjunto de práticas sociais, construídas a partir de
condições relacionadas a estruturas políticas e econômicas. Por isso se torna necessário
conhecer os significados simbólicos que a envolvem. Street propõe que o significado da
escrita para um grupo está relacionado ao contexto em que este a utiliza. O seu uso vai
depender do significado a ela atribuído pelo grupo, ao longo da sua história.
Street ressalta o fato de muitos trabalhos sobre o letramento
40
sempre se basearem
em concepções centradas no significado que o letramento tem para a cultura ocidental. Ele
apresenta uma crítica a esta forma etnocêntrica de ver a escrita. Para ele a escrita deve ser
interpretada nos seus contextos sociais de uso.
Rappaport (1987) questiona a distinção entre sociedades com e sem escrita e
demonstra que a escrita não é responsável pelo desenvolvimento do intelecto e muito
menos por mudanças profundas internas de uma sociedade.
As formas indígenas de conhecimento entre os Paez (da Colômbia) [...]
são mais valorizadas do que a própria escrita alfabética, a que este povo
tem acesso. [...] Os meios de comunicação tradicionais e o
desenvolvimento da memória permitem a este grupo lidar de maneira
autônoma e coletiva com questões internas de sua sociedade. Ao mesmo
tempo, protegem as comunidades contra o mundo exterior, que
freqüentemente explora a falta de domínio das convenções
letradas.(KAWALL, 1992, p. 83)
Durante muitos anos a alfabetização foi entendida como a aquisição de um código
gráfico, ou seja, a capacidade de desenhar letras e decifrar o código da leitura. Os métodos
de alfabetização acompanharam estes pensamentos e se alteraram no decorrer da história.
Ainda hoje, alguns métodos utilizam de unidades fonológicas menores, como sílabas e
letras, para se chegar ao aprendizado das palavras e do texto. Estes são os denominados
métodos sintéticos. Outros partem de unidades maiores como a palavra para depois
decompô-la em sílabas e letras. São os chamados métodos analíticos.
40
A noção de letramento surgiu em substituição à de alfabetização
49
No método sintético, a escrita é vista como a transcrição gráfica da linguagem oral e
ler equivale a decodificar algo escrito em um som correspondente. O método recomenda
começar por situações em que a grafia coincida com a pronúncia. Dessa forma tenta-se
evitar confusões auditivas e visuais, apresentando o fonema e seu grafema (letra)
correspondente, um por vez. São utilizadas regularmente sílabas soltas para reforçar a
dissociação entre a leitura e a fala.
Os métodos analíticos, por sua vez, partem do pressuposto de que o primeiro passo
para a aquisição da escrita é o reconhecimento global das palavras nos textos e nos seus
respectivos contextos. A análise das unidades menores passa a ser uma preocupação e uma
tarefa posterior. A leitura é percebida fundamentalmente como uma atividade visual.
Os dois métodos, cada um a seu modo, enfatizam as habilidades visuais e auditivas,
não considerando a competência lingüística e a capacidade de pensamento, necessárias a
aquisição da escrita alfabética.
Nas últimas décadas ocorreram mudanças teóricas profundas no campo da
alfabetização. Nos anos 60 e 70 prevaleceram os paradigmas behavioristas
41
que foram
substituídos nos anos 80 pelas vertentes cognitivistas. Tais influências no Brasil se
difundiram sob a denominação de construtivismo ou socioconstrutivismo que surgiu a
partir de pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita desenvolvidas por Ferreiro e
Teberosky. Tal acolhimento deu-se especialmente por professores alfabetizadores que
encontraram nessa teoria uma possibilidade de conhecer melhor o sujeito aprendiz.
A perspectiva psicogenética da escrita alterou a concepção do processo de
construção da representação da língua escrita. Nela não são considerados apenas os
estímulos externos para o aprendizado do sistema de escrita, mas a pessoa capaz de
reconstruir o sistema de representação, interagindo com a língua escrita em seus usos e
práticas sociais. Na confluência com as teorias do construtivismo, incluindo Paulo Freire,
esta perspectiva sugere que a aprendizagem se dá pelas implicações simbólicas, sociais,
políticas, pedagógicas, e outras, na articulação intrínseca à construção de conhecimentos.
No Brasil, o debate sobre os métodos de alfabetização foi fortemente influenciado
por esse pensamento a partir da década de 1990.
41
Sobre o assunto conferir Soares (1995)
50
A psicogênese trouxe ainda, contribuições inestimáveis para a compreensão da
trajetória que cada indivíduo percorre para adquirir o domínio da escrita alfabética.
As questões levantadas pelo sujeito que apreende a escrita alfabética reproduzem,
na perspectiva psicogenética, as etapas da evolução da história da escrita na humanidade. O
desenvolvimento dessa perspectiva vai desde o estabelecimento dos pictogramas e do
desenho de palavras, passa pela introdução dos princípios de fonetização e evolui para a
escrita alfabética.
Com base nos estudos de Luiz Carlos Cagliari e Telma Weiz (1988), nos termos
históricos a escrita alfabética surgiu na Mesopotâmia, há aproximadamente cinco mil anos.
Desde aquela época o homem tenta aperfeiçoar as formas de escrever para demonstrar seus
sentimentos, seus pensamentos e suas ações. Inicialmente surgiram os pictogramas. Eram
formas de escrita expressas por meio de desenhos ou figuras. Os primeiros pictogramas não
eram claros e precisos, por isso podiam ser interpretados de diversas maneiras. Na verdade,
eram códigos comuns muito próximos à oralidade e por isso podiam ser interpretados e
compartilhados. Com o passar do tempo foram produzidas formas mais claras,
representadas por desenhos que seguiam a ordem das palavras faladas. Para cada desenho
correspondia um significado, uma informação. A representação de cada elemento da fala
possibilitou que as mensagens ficassem mais claras, com significados mais exatos. Com o
crescimento das cidades e do comércio as sociedades passaram a inventar formas mais
rápidas de escrever. A escrita ia se distanciando da idéia que a originara. Deixou de
representar os objetos, seres ou ações para representar o som da fala. A partir de então a
escrita passou a representar todos os sons da fala. Os fenícios se relacionavam com vários
povos da região e com eles conheceram os pictogramas. Trouxeram para sua cultura e
criaram as consoantes. Mais tarde os gregos inventaram a escrita das vogais. Assim teria
surgido o alfabeto que conhecemos atualmente.
A psicogênese da língua escrita tomou corpo na década de 80 e trouxe ganhos
inestimáveis para o entendimento de que alfabetizar-se envolve um processo de elaboração
de hipóteses sobre a escrita durante o seu aprendizado.
Para entender o processo de elaboração destas hipóteses é importante saber que esse
processo tem uma pré-história, que é o momento progressivo de apropriação, pelo aluno, da
idéia de representação que sempre tem como base a fala.
51
Para uma melhor ilustração do tema, utilizaremos a classificação dos níveis iniciais
de aquisição da linguagem escrita proposta por Ferreiro e Teberosky (1991, p.183).
Nível 1 – Neste nível escrever é reproduzir traços típicos da escrita identificados
como forma básica de escrita. Na sua interpretação, a intenção de escrever conta mais que
as diferenças objetivas no resultado. Neste nível cada um pode interpretar sua própria
escrita, porém os outros não, a não ser que se conheça a intenção do escritor. Neste nível a
leitura do que foi escrito é global, ou seja, cada letra, risco ou grafismo vale pelo todo.
Nível 2: Neste nível a forma dos grafismos é mais parecida com letras. Para ler
coisas diferentes é preciso que a escrita seja diferente. Neste nível existe o respeito a duas
exigências básicas da escrita: a quantidade e a variedade de caracteres.
Nível 3: Este nível é caracterizado pela tentativa de dar valor sonoro a cada uma das
letras que compõem uma escrita. Cada letra vale por uma sílaba – esta é a hipótese silábica.
Neste nível é superada a etapa de correspondência global entre a forma escrita e a
expressão oral atribuída, para passar a uma correspondência entre cada letra e o recorte
silábico do nome. A escrita representa partes sonoras da fala. Mesmo assim, as formas de
grafia ainda podem estar distantes da forma convencional das letras.
Nível 4: Passagem da hipótese silábica para a alfabética. A hipótese silábica é
abandonada e há uma necessidade de analisar além da sílaba, as formas gráficas existentes.
Este nível pertence às longas análises sonoras das palavras.
Nível 5: A escrita alfabética constitui o final desta evolução. Compreende-se que
cada um dos caracteres da escrita corresponde a valores sonoros menores que a sílaba e
realiza análise dos fonemas das palavras. Neste nível se compreende os mecanismos
internos do código alfabético.
O pensamento construtivista foi criticado por não ter valorizado a necessidade de
um ensino mais direcionado e explícito considerando que o aprendizado da leitura e da
escrita não se dá naturalmente, pela interação com a língua escrita. É necessária uma
orientação mais direta e específica para a aprendizagem dos códigos alfabético e
ortográfico, dados também pela cultura.
Analisando a dificuldade de leitura e escrita da população em escolarização em
países com os Estados Unidos e a França, Soares (2003) destaca que na França chegou-se a
52
divulgar um documento que sugere que o conhecimento do código grafofônico e o domínio
dos processos de codificação constituem etapas consideradas fundamentais para o acesso à
língua escrita.
Nos Estados Unidos, o construtivismo que vinha tendo grande difusão passou a ser
contestado, sobretudo por negar o ensino do sistema alfabético/ortográfico e das relações
fonema/grafema de forma direta e explícita. Outra pesquisa realizada naquele país sobre as
habilidades de leitura na população jovem afirma que o problema não residiria no fato de
não saber ler e escrever, mas no fato de não dominar as competências de uso da leitura e da
escrita.
Constata-se assim, que a concepção da aprendizagem da língua escrita é mais ampla
que apenas a aprendizagem do código e das relações entre fonemas e grafemas.
Os anos 90, por sua vez, foram marcados pelo paradigma sociocultural. A
compreensão da dimensão sociocultural da língua escrita e seu aprendizado chegaram
posteriormente com os estudos sobre o letramento.
42
Este conceito procurou sintetizar os princípios fundamentais de cada uma das
correntes teóricas apresentadas acima, levando em conta, portanto, tanto os aspectos
técnicos e cognitivos dos métodos sintético e analítico, quanto a perspectiva Psicogenética
da língua escrita, articulando-os na definição e elaboração do conceito de Letramento. Este
conceito, recoloca a ruptura da dicotomia entre o sujeito que aprende e o professor que
ensina, valorizando a aprendizagem processada numa relação entre o Sujeito e Cultura em
que vive. Isso significa que ao lado dos processos cognitivos há um contexto que dá sentido
ao aprendizado, condicionando suas formas de uso e aplicação.
Foi no contexto das mudanças sociais e tecnológicas que o termo letramento surgiu,
ampliando em tese o sentido do que tradicionalmente se conhecia por alfabetização. Enfim,
tão importante como conhecer os códigos de funcionamento da aquisição da escrita, é
necessário conhecer os aspectos sociais e históricos do grupo em que ocorre essa aquisição.
Portanto, letramento pode ser definido como um conjunto de práticas sociais que
usa a escrita enquanto sistema simbólico num contexto específico. Aprender a ler e a
escrever implica na possibilidade de usar este conhecimento em contextos culturais
42
Conferir especialmente Soares (1995) e Kleiman (1995)
53
reconhecidos e legítimos. Assim, a língua escrita se legitima pela possibilidade de uso em
diversas situações e para diferentes fins.
Ainda que com este debate, continuaremos neste trabalho a utilizar o termo
alfabetização, pois para nosso entendimento, a idéia de alfabetização entrevê aqui mais do
que um conceito uma prática e que, em nosso contexto profissional, nunca desconsiderou
as atribuições que definem o campo conceitual letramento.
3.2 Outros pensamentos sobre a escrita
Meliá relata uma interessante passagem da sua experiência, vivida entre os anos de
1978 e 1982, com os Enawene Nawe.
Logo eles imaginaram que a escrita do meu caderno era um modo de
atualizar o passado ou adivinhar o futuro. Pela escrita a gente dominava
um longe, uma espécie de além no espaço e no tempo. Um deles, quando
percebeu que por meio do livro eu podia contar um mito Paresi – língua
também Aruak muito próxima – pensou que estava “escutando”
naquelas páginas as palavras e frases de uma língua que certamente eu
não conhecia. E aí, como se o livro falasse, levou-o ao ouvido. A escrita
no meu caderno não deixava de lhe ser fascinante; nele figuram páginas
e páginas, nas quais homens e mulheres deitavam a própria escrita, com
traços individuais e inconfundíveis.
(MELIÁ, 1989, p. 10)
Os Enawene Nawe sempre demonstraram um certo ‘fascínio’ pela escrita alfabética.
Assim como outras “coisas dos brancos”
43
, ela estava há muito tempo nos propósitos e na
mira do povo.
Na busca pelos registros escritos pelos Enawene Nawe, chamaram a minha atenção
duas interpretações feitas por Ataina e Tiholoseene. Ambos são sotairiti (pajé) e em
43
Neste contexto podemos destacar entre os desejos e demandas registradas naquela época o interesse pela
aquisição de um automóvel e pela viabilização da construção de uma estrada.
54
momentos diferentes interpretaram a escrita alfabética apresentando pontos de vista
também diferentes.
Ataina Ihitariti
Pai de 7 filhos
Clã: Kailore
Perguntei o que vamos escrever e ele respondeu: Uá! hixu kadene. Hixu ita
daraitalo. (Uá! Você é quem sabe. Você é que faz a escrita / Você é quem é a escritora). Eu
disse que eu escreveria o seu nome – ATAINA – no papel e que ao observar o desenho das
letras, ele tentasse reproduzir.
Iniciamos com a escrita do seu nome próprio. Eu dizia a palavra pausadamente,
indicando na escrita o que o som apresentava. Por um longo período ele observou as letras
que compunham seu nome e as reproduziu. Pediu que eu escrevesse outros nomes e
reproduziu:
55
Passado este momento, Ataina pegou o papel e a caneta e, sem dizer nada, começou
a desenhar. Segue o desenho que apresenta um panorama da aldeia Matokodakwa.
.
Ataina apresentou um olhar sobre a aldeia como uma foto em perspectiva
evidenciando através do circulo de dançarinos em frente à casa central (Yãkwa) a realização
de um dos rituais, naquele momento dinamizado pela música e pela dança.
Uma fonte principal de nossa incompreensão é que não temos uma visão
panorâmica do uso de nossas palavras. A representação panorâmica
permite a compreensão, que consiste justamente em “ver as conexões”.
Daí a importância de encontrar e inventar articulações intermediárias.
O conceito de representação panorâmica é para nós de importância
fundamental. Designa nossa forma de representação, o modo pelo qual
56
vemos as coisas. (É isto uma ‘visão do mundo’?). (WITTGENSTEIN,
1979, p. 56)
A relação proposta por Ataina, através de sua escrita, está apresentada pela
conexão: Nomes – Casas no primeiro desenho e: Escrita – Música e dimensão espacial no
segundo desenho. Veremos a seguir o caso de Tiholoseene,
Tiholoseene Kolakarinasare (a partir do 4º filho)
Pai de 8 filhos
Clã: Lulahese
O texto acima foi traduzido por Tiholoseene:
Eu vou à barragem do Hõxikyawina (rio da Matrinchãs). Vou à
barragem de pesca. Quando a barragem estiver pronta e os peixes
perto de chegar eu vou fazer um cesto pequeno para você, Kátia.
Não vou esquecer. É o Tiholoseene quem está falando.
57
O autor menciona o rio Hõxikyawina, que, em 1995, era o de maior potencial
pesqueiro no interior da área. Nas barragens de pesca os Enawene Nawe também produzem
a sua arte material, facilitada pela presença da matéria prima disponível. Na leitura de seu
texto, promete me presentear com um cesto, que deverá ser produzido durante sua
permanência no local da barragem. Como vimos no primeiro capítulo, todos os anos após o
período da desova dos peixes, organizados em clãs, os Enawene Nawe se deslocam da
aldeia para um dos afluentes do rio Juruena onde constroem barragens para a pesca. A
produção abastecerá também aos seres sobrenaturais durante as cerimônias e rituais que
compõem o Yãkwa.
Tiholoseene, no ato da leitura demonstra conhecer a função da língua escrita.
Escreve em forma de círculos, procedendo a leitura do que escreveu. Se for interpretada à
luz das nossas teorias e pensamentos sobre o tema, o autor certamente será classificado na
psicogênese da língua escrita, no nível pré-silábico. Neste nível de aquisição inicial da
escrita só o autor conhece o significado dos escritos e para uma compreensão externa é
necessário que ele “leia” o que pensou.
Numa outra perspectiva, podemos também pensar que exista certa ligação entre a
escrita que Tiholoseene produziu e o contexto cultural no qual está inserido (assim como
elucidado no exemplo anterior dado por Ataina), e que pode ser melhor evidenciado ainda
se considerarmos o mito de origem da escrita.
O mito conta que Hiriniwaxiwiri ensinou a escrita aos Enawene Nawe. Esta escrita
é claramente associada e socialmente identificada como a que se encontra disposta nos
trançados do tohi (cesto) e do manarese (peneira). Hiriniwaxiwiri disse para os Enawene
Nawe: observem estas partes do meu pescoço e da minha cabeça, elas ensinam o daraiti
tohi
44
.
Por que será que ao querer me presentear com um objeto elaborado por seu povo ele
tenha escolhido exatamente o cesto e faz o seu desenho para me entregar? Parece ser
estreita a relação entre tohi (cesto) e escrita para que fosse uma mera coincidência.
Naquele momento da minha presença entre eles eu ainda não conhecia o mito de
origem da escrita. Agora percebo que aquele texto escrito por Tiholoseene não dizia
44
Tohi corresponde aos trançados que podemos visualizar nas cestas Enawene. Cesta em Enawene Nawe é
denominada tohi.
58
simplesmente que eu receberia um presente, mas que o presente era a própria escrita, a
escrita dos Enawene Nawe.
Daraiti é símbolo, é signo. “Compreender um signo consiste em aproximar o signo
compreendido de outros signos já conhecidos [...] a compreensão é uma resposta a um
signo por meio de signos”. (BAKHTIN, 1992, p.34)
O que a escrita alfabética pode significar na vida de uma sociedade com tradições
orais?
Na primeira parte deste capítulo apresentamos os argumentos defendidos por
autores que apontam a escrita como uma tecnologia propulsora de mudanças culturais e de
transformações fundamentais no meio social, político, religioso e econômico das
sociedades. Vimos também alguns autores que propõem que o significado atribuído à
escrita por grupos específicos dependerá das relações sociais estabelecidas ao longo da sua
história.
Este trabalho orientou-se pela perspectiva de que a escrita constitui-se num
elemento a mais da linguagem e, como tal, busca exprimir aspectos de uma realidade. Esta
orientação busca inspiração também em Bakhtin para quem:
“a cada etapa do desenvolvimento da sociedade encontram-se grupos de
objetos particulares e limitados que se tornam objeto de atenção do
corpo social e que, por causa disso, tomam um valor particular. Só este
grupo de objetos dará origem a signos, tornar-se-á um elemento da
comunicação por signos”. (BAKHTIN, 1992, p. 45).
Os argumentos colocados pelos Enawene Nawe para indicar a necessidade da escrita
alfabética entre eles dizem respeito à sua utilização para reforçar, estimular e significar
aspectos interiores à cultura além de dar mais um significado às relações com o meio
externo na busca por relações políticas mais igualitárias.
Sendo assim, a escrita teve sua expressão e justificativas de interesses apresentadas
pelos Enawene Nawe inicialmente vinculadas a fatores intraculturais: Awa inirahã tota
(nossas músicas não podem ser esquecidas). Diziam acreditar que a escrita poderia ajudá-
los a guardar a linguagem mitológica presente nas músicas cantadas nos rituais. Os fatores
interculturais por sua vez se concretizaram na elaboração de mapas da ocupação do
59
território, à definição dos limites e registrar pleitos com finalidades de interlocução política.
De uma forma ou de outra, foi a possibilidade de se aproximar e de conhecer um novo
signo.
De acordo com Bakhtin, todo signo resulta de um consenso no decorrer de um
processo de interação em que a forma do signo é condicionada tanto pela ordem social
quanto pelas condições em que a interação acontece. Converte-se em signo o objeto físico o
qual, sem deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar, numa
certa medida, uma outra realidade (BAKHTIN, 1992, p.42).
Em sua relação com a linguagem escrita um sujeito pode produzir dados que
refletem sua forma de conceber a realidade social. Neste trabalho, não estamos buscamos
regularidades, mas singularidades. Portanto, levantamos e selecionamos para a nossa
análise dados que consideramos relevantes para demonstrar esta busca.
Foram várias letras de músicas escritas por várias mãos. Escrever letras de músicas
foi a inspiração para muitos encontros entre todos. Diziam que era importante escrever
músicas, pois os cantadores são velhos e poucos. Um começou a escrever e alguns outros se
interessaram:
1) Kameroseene Enetonasare
Pai de 7 filhos
Clã: Kailore
2) Laleroseene Enetonasare
Pai de 5 filhos
Clã: Aweresese
3) Makakoliarene Kolakarenasare
Pai de 7 filhos
Clã: Aweresese
4) Kolarene Kolakarenasare
Pai de 7 filhos
Clã: Anihiare
5) Marikeroseene Enetonasare
Pai de 7 filhos
Clã: Kailore
60
Cada um escreveu uma parte da música do Yãkwa que, segundo eles, é wahakase
(comprida) e só os sotakatare (cantadores) sabem todos os versos.
Apresentamos a seguir a letra de uma música que foi a primeira produção de Laloe
elaborada em 07/06/97. Esta produção e outras dos autores citados fizeram parte de uma
proposta de aula em que eles sugeriram a elaboração de um livro das músicas do Yãkwa.
Em grupos ou individualmente e com muito esforço iniciaram o processo de escrever as
letras. Cada um escreveu certa seqüência que depois foi recolhida e digitada dando formato
a um material de leitura e retorno ao que eles propuseram.
Lembro-me de chegar à aldeia com alguns exemplares deste material impresso com
as letras das músicas escritas por eles. Ao distribuí-lo entre os escritores e passado algum
tempo de observação e leitura, iniciou-se uma conversa sobre o que haviam escrito. Eles
identificaram muitos erros na escrita de cada um e dessa forma não hesitaram em culpar o
computador.
61
Uma outra aplicação dada à escrita foi a socialização dos desejos sexuais e dos
nomes das awitaloti (transição de menina para moça) desejadas, em formas de bilhetes
trocados entre eles, independentemente se o receptor do bilhete dominava o código da
linguagem escrita ou não, o que em alguns contextos tomava o “ar” de provocações entre
“rivais”.
62
Tradução da escrita feita em 18/02/96
Kameroseene,
Porque você gosta tanto de tocar nas cochas das moças? Você
está sempre junto a elas. E transa muito com elas. Você é um
homem que gosta muito de vulvas. Aliás, você é sexualmente
insaciável.
Laleroseene
63
Tradução da escrita feita em 19/02/96
Eu já sei que você está muito a fim de transar com a Malalakwa,
Laleroseene. Sua esposa, Atolohi já está com muito ciúmes e triste
porque você deu colares de tucum em troca do namoro. Além dela
você também transou com a Towaxirõ e presenteou-a com um
lulate (cesto). E com a Tiholose você transou na porta da sua casa.
Kameroseene.
Verifiquemos agora o conteúdo do bilhete abaixo:
64
Tradução:
Kátia,
Onde está o caderno, Kátia. Aquele caderno prometido. Eu o desejo
muito. Kátia, tenho saudades de você!
O bilhete anterior foi escrito por Laleroseene, em 25/09/96. Ele pediu a Kolareene
para entregá-lo por ocasião de sua visita a Cuiabá.
Ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade
constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderia haver
enunciado. As diversas formas típicas do destinatário são as
particularidades constitutivas que determinam a diversidade dos gêneros
de discurso [...]. O enunciado é um elo na cadeia de comunicação verbal
[...]. O objeto do discurso de um locutor, seja ele qual for, não é objeto
do discurso pela primeira vez neste enunciado, e este locutor não é o
primeiro a falar dele. O objeto por assim dizer, já foi falado,
controvertido, esclarecido e julgado de diversas maneiras, é o lugar
onde se cruzam, se encontram e se separam diferentes pontos de vista,
visões de mundo, tendências (BAKHTIN, 2000, p. 319)
65
As formas, usos e funções dados para a escrita se manifestam como vimos
diferenciadamente.
[...] a percepção e a inserção da escrita letrada na vida social dos povos
ditos ágrafos vão depender, fundamentalmente, da natureza de cada
sociedade e da constituição do campo social em que está inserida. A
adesão à escrita não é ato automático, compulsivo, mas passa pela
percepção que os diferentes povos têm deste meio de comunicação. Sua
inserção na vida social vem atender interesses e vantagens
diferenciadas. ( KAWALL, 1992, p. 3)
Os Enawene Nawe em sua singularidade nos apontam para duas dimensões centrais
das finalidades e usos aplicados para a escrita em seu seio social, conforme as análises
apresentadas até aqui.
As finalidades de caráter intra e extra social, sendo o sentido da primeira articulado
às idéias de registro/memória/identidade e, o segundo sentido, atrelado às condições e
possibilidades de interlocução política igualitária. Em ambas as orientações podemos
observar na percepção da escrita pelos Enawene Nawe, o entendimento como elemento
constitutivo do campo simbólico e da comunicação enquanto forma de alcance e caráter
universal. Eles compreendem o significado de inserção e de compartilhar a partir desses
códigos uma dimensão universal da comunicação. Talvez por isso tenham se interessado
antes pela aquisição da escrita do que pelo aprendizado da língua portuguesa na oralidade.
3.3- O tempo e o espaço da alfabetização: o daraitare
Se os adultos nomeassem algum objeto e, ao fazê-lo, se voltassem para
ele, eu percebia isto e compreendia que o objeto fora designado pelos
sons que eles pronunciavam, pois eles queriam indicá-lo. Mas deduzi
isto dos seus gestos, a linguagem natural de todos os povos, e da
linguagem que, por meio da mímica e dos jogos com os olhos, por meio
dos movimentos dos membros e do som da voz, indica as sensações da
66
alma, quando esta deseja algo, ou se detém, ou recusa ou foge. Assim,
aprendi pouco a pouco a compreender quais coisas eram designadas
pelas palavras que eu ouvia pronunciar repetidamente nos seus lugares
determinados em frases diferentes. E quando habituara minha boca a
esses signos, dava expressão aos meus desejos. (Santo Agostinho, nas
Confissões, I/8 in WITTGENSTEIN, 1979, p. 09)
Marikeroseene contou que quando nasceu, recebeu do seu pai o nome de
Kanawarikwa.
Entre os Enawene Nawe cada clã dispõe de um acervo de nomes armazenado. Estes
nomes são repassados por via paterna e dinamizam as sucessões quando da ocorrência de
óbito de um de seus membros, que passa a ser lembrado raramente e por meio dos termos
de parentesco.
O nome dado pelo pai da criança passa a valer quando ele paga o peixe ao seu sogro
e este, conseqüentemente, deixa de chamar o neto pelo nome que havia dado anteriormente.
O nome é pago com peixe.
45
Em 1990 Kanawarikwa casou-se com Salumanerõ e tiveram a sua primeira filha,
Marikerose.
A partir do nascimento da sua primeira filha, Kanawarikwa passou a ser chamado
por Marikeroseene e sua esposa Salumanerõ, por Marikerosenetõ. Além dos pais esta
regra é aplicada também aos avós em relação ao primogênito. Neste caso, o avô passará a
ser chamado de Marikeroseatokwe e a avó, Marikeroseaserõ.Vejamos os sufixos:
ENE – pai (este mesmo termo é usado pela esposa para chamar seu marido)
NETÕ – mãe (o marido também utiliza para chamar a esposa)
ATOKWE - avô
ASERÕ - avó
Na organização social Enawene Nawe, temos uma sociedade
estratificada em: geração dos jovens; geração dos nascidos –
crianças/primogênito; geração dada pela posição de pais; geração dos
avós.(JAKUBASZKO, 2003, p. 139)
45
Conferir Santos, 2006.
67
Eu estava aprendendo a língua com os próprios Enawene Nawe. Eles me ensinavam
frases do cotidiano, palavras soltas, palavras contextualizadas e, logo em seguida, eu as
anotava na minha caderneta. Primeiro na língua Enawene (e eles pronunciavam
pausadamente) e depois a tradução para o português. Neste processo de ouvir, falar traduzir
e anotar, a curiosidade recíproca para a escrita e oralidade era impulsionada.
Na aldeia, certa vez, me perguntaram o que eu fazia na terra dos iñoti (não índio) e
eu respondi que era professora. Rapidamente alguns começaram a dizer: - Se você é
realmente uma daraitalo (aquela que faz a escrita), você precisa provar, nos ensinando. E
os pedidos fizeram suscitar muitas conversas na OPAN sobre os pressupostos que
orientariam o processo de alfabetização.
Enquanto eu buscava compreender e apurar os sons e a grafia da língua, os
Enawene Nawe se interessavam em saber se a minha função daria conta de ensinar para
eles os códigos da nossa linguagem escrita.
A curiosidade pelo tal mistério chamado escrita alfabética foi aumentando
gradativamente, até que a experiência foi inscrita.
No dia 14/08/95, depois de voltar da roça, Marikeroseene convidou-me para ir ao
seu baixalako (espaço privativo de uma família nuclear composta por pai, mãe e filhos
solteiros). Fez uma abertura por entre as palhas para entrar um pouco de luminosidade, e
começamos a dar início e forma, naquele momento, ao primeiro dia de aula na aldeia
Matokodakwa.
Tinha em minhas mãos caneta e papel, materiais de uso de uma professora
convencional. Eu estava apreensiva e perplexa pelo fato de me sentir agente de
transferência cultural. Com um sentimento de preocupação, propus que escrevêssemos
apenas na terra utilizando um graveto.
Sem entender o motivo da insegurança Marikeroseene aceitou a atividade, até que
sua esposa, que nos observava atentamente, passou o pé sobre o chão e apagou toda a
produção. Ele me perguntou por que não podíamos utilizar o papel que era muito mais
prático. Atendi ao seu pedido. Foi uma lição entre tantas outras em que pude perceber que a
introdução de um elemento externo não pressupõe a priori a dependência ou a autonomia
de um povo.
68
Continuamos então a escrever seu nome: M A R I K E R O S E E N E
A partir daquele dia, passei a ser vista como daraitalo (aquela que faz a escrita) e
Marikeroseene como o sujeito mais interessado em aprender os signos desta linguagem.
O nome próprio pode cumprir uma importante função na escrita, servindo de
modelo para toda a escrita posterior. Gelb (in FERREIRO, 1991) enfatiza:
[...] a necessidade de uma representação adequada para os nomes próprios
levou finalmente ao desenvolvimento da fonetização. Isso se acha
confirmado pelas escritas asteca e maia, que utilizam só raramente princípio
fonético e em tais casos, quase que exclusivamente para expressar nomes
próprios. [...] A fonetização, portanto, surgiu da necessidade de expressar
palavras e sons que não podiam ser indicados apropriadamente com
desenhos ou combinações de desenhos. (GELB, 1976, p. 216 in FERREIRO
E TEBEROSKI, 1991).
Ferreiro comenta que Gelb ao falar de fonetização, está se referindo não à letra, mas
ao uso de semelhanças sonoras entre palavras para representar novas palavras. O
significado da escrita não corresponde ao do objeto, mas à sonoridade do nome. Assim
começam a nascer às convenções relativas à escrita e à necessidade de adotar sinais
correspondentes à ordem de emissão na linguagem.
69
O nome próprio tem também um papel muito importante por ter sido a primeira
forma estável dotada de significação.
No processo de escrita e leitura do seu nome próprio, verificamos que
Marikeroseene não podia mais ser chamado de Kanawarikwa, pois o antigo significado
daquele nome já não lhe pertencia. Após o nascimento do primeiro filho, ninguém é mais o
mesmo sujeito. Agora, Kanawarikwa é Marikeroseene, pai de Marikerose e é beneficiado
pelo prestígio social que o título lhe confere.
Mesmo assim pediu para conhecer a escrita do seu “outro nome próprio”, próprio
de outra época.
K A N A W A R I K W A
Em seguida passou a escrever os nomes dos membros da sua família nuclear que
eram lidos e relidos, palavra por palavra. As sílabas que formavam cada nome próprio eram
destacadas com linhas que definiam claramente o seu início e fim. Ele começava a procurar
as semelhanças entre as sílabas que compunham os nomes próprios.
MA RI KE RO SE
MA RI KE RO SE NE
MA RI KE RO SE E NE
Para compreender o sistema alfabético é necessário buscar significados e
regularidades, construir critérios que permitam a compreensão do sistema. O que é
apreendido decorre do modo como o objeto foi apropriado.
Inspirada em Chomsky e Halle, Ferreiro sugere que:
[...] a escrita não deve ser, necessariamente e nem habitualmente, uma
transcrição fonética da fala; os sinais escritos podem corresponder a formas
fônicas que não coincidem inteiramente com os sons efetivos; porém, se as
similitudes semânticas - que correspondem à existência de um mesmo lexema
em palavras diferentes - estão refletidas nas similitudes da escrita, o sistema
70
de escrita em questão pode adaptar-se com facilidade às variantes dialetais
de pronúncia. Em conseqüência, nenhuma delas é elevada à classe de
pronúncia correta para aprender a ler. (FERREIRO, 1991, p.257)
TOWERARE ( nome próprio) DOWERARE ( nome próprio)
O exemplo da língua Enawene Nawe citado acima demonstra que na ocorrência de
variação livre entre as consoantes [t] e [d] as duas alternativas são aceitas como corretas.
O mesmo pode ocorrer com outros pares complementares como em:
l/r – [Kawali] ~ [Kawari] – ‘nome próprio’
d/l – [datowa] ~ [latowa] – ‘amanhã’
m/w – [datamare] ~ [dataware] – ‘personagem mítico’
d/t – [dorese] ~ [torese] – ‘espécie de abelha’
d/r – [edoa] ~ [eroa] – ‘cair’
w/b – [wesera] ~ [besera] – ‘beber’
Retornando à experiência vivenciada por Marikeroseene, em 23/08/95, nove dias
depois da primeira aula, para minha grande surpresa, ele apresentou a sua primeira
produção livre, demonstrando uma rápida progressão no entendimento deste código.
É importante atentar para a relação entre as palavras que ele escreveu e a escrita
convencional estabilizada naquela época.
Escrita de
Marikeroseene
Escrita/alfabetização Tradução
XIKWA XIRIKWA Espécie de papagaio
OLOHOKWA OLOKWARIKWA Lugar de papagaio
XIRIHI XIRISE Espécie de papagaio
MASE MAÕSE Tradução
MALU MALÕ Filha
MALULAKO MALOLAOKÕ Anel
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HOKOKASE HOKWAKASE Pau armador de rede
XIXU HIXO Você
MANARISEKWA MANARISEKWA Lugar de manarese – tipo de peneira
NAWATI DAWATI Machado
O quadro acima expressa sua facilidade para entender a relação entre som e letra.
Por exemplo, ao ler a palavra NAWATI (machado) como DAWATI ele demonstrou ter
entendido que o sistema alfabético se vale de segmentos menores que a sílaba. Deu à letra
[N] o valor sonoro do [D], que ainda não conhecia, mas entendeu que a escrita alfabética
tem base fonográfica. Apesar de não ter escrito ortograficamente algumas palavras ele se
sentiu satisfeito com o resultado. Este é um tipo de “erro” que pode ser considerado
construtivo, já que desperta novos interesses e impulsiona a busca de “acertos”.
Considerando que a sociedade Enawene Nawe vive numa constante troca e
interação de saberes e informações, Marikeroseene rapidamente socializou seus novos
conhecimentos e ensinou ao amigo a escrita do seu nome.
T I H O L O S E E N E
Tiholoseene era um grande amigo de Marikeroseene, um confidente e parceiro em
grandes empreitadas e recebia de forma imediata e constante as informações que
Marikeroseene apreendia sobre a escrita alfabética. Alfabetizava ao amigo ao mesmo
tempo em que ia se alfabetizando.
No mesmo dia em que apresentou a escrita do nome para Tiholoseene, mostrou
também uma relação dos peixes que esperava trazer da pescaria que faria no dia seguinte e
pediu que o amigo esperasse para conferir o resultado.
Escrita de
Marikeroseene
Escrita/alfabetização Tradução
MALAKO MALAKO
WALAKO
piau
72
HOLORI HOLORI Espécie de
peixe
HOXIKA HÕXIKIA matrinchã
Ao sair para a pescaria solicitou-me material necessário para suas atividades de
registro. “Eu quero uma sacolinha plástica para guardar o papel e a caneta. Não quero
perder o papel e a escrita que farei neste tempo chuvoso. Trarei para você olhar se escrevi
certo”.
73
E conforme o seu interesse e disposição, alguns dias depois, ao retornar da pescaria,
apresentou-me uma nova seqüência de produções convidando também o amigo
Tiholoseene para conferir a novidade. Segue o quadro do seu registro:
Escrita de Marikeroseene Escrita utilizada na
alfabetização
Tradução
MAHAKO TIKWA MAHAKO TEKWA Espécie de peixe (mahako)
fugiu
MATIHI TIKWA MATIHI TEKWA Espécie de peixe (matihi) fugiu
HOXIRA TIKWA HOXIRA TEKWA Espécie de peixe (hoxiri) fugiu
KOHESITI KOHESITI Mato
ETOKAKWA MAKEKESE ETOKOKAKWA
MAKEKESE
(Vi) um recipiente na
confluência
*XIXI TO___ XIXI TOTA O beiju acabou.
*MARAITIHI TO____ MARAITIHI TOTA O anzol acabou.
*__ indica a ausência da silaba final TA
O quadro dos registros feitos por Marikeroseene pode ser analisado no contexto de
uma atividade pesqueira. Houve dificuldade na captura dos peixes, o mato atrapalhou, sua
comida acabou, como também as iscas e os anzóis.
Nesta produção é importante também destacar o esforço intelectual que ele fez ao
tentar representar através do símbolo “__” a falta da silaba TA, que ele desconhecia ou
havia esquecido.
Esta atividade estimulou a construção de novos textos, e em menos de um mês
(07/09/95) sua produção escrita já se dava de forma alfabética, dentro das convenções
ortográficas estabelecidas. Segue o quadro da produção onde ele escreve a relação dos onze
espécies de peixes capturadas:
74
Neste mesmo dia ele escreveu também os nomes dos rituais que formam o
calendário Enawene Nawe, tema do primeiro capítulo deste trabalho.
75
Em 06/10, um mês e meio depois do primeiro dia de aula, Marikeroseene
demonstrou através das suas produções não apenas saber o que a escrita representa, mas
como pode ser representada, dando um sentido singular à sua construção.
A escrita abaixo demonstra, numa visão aérea, a conformação interna do padrão de
povoamento Enawene Nawe. Marikeroseene deu ênfase a forma de organização social, que
como vimos considera a regra de residência uxorilocal, isso é, padrão de residência que
determina que o novo casal passe a viver na localidade da mulher.
É importante destacar que, para a escrita dos nomes próprios, ele considerou o
nome utilizado antes do nascimento do primeiro filho, designação já explicada
anteriormente.
Acompanhando a produção anterior, temos do lado esquerdo, mais acima, o núcleo
familiar de Walitere, considerado o dono da casa e homem de maior prestígio. Ele é um
76
importante soprador e cantador, do clã Kawekwarese. É casado com Kawetalori. O seu
núcleo familiar está constituído também por sua filha solteira Akanerõ, nascida em 1975.
Apesar da avançada idade Akanerõ não se casou. Tinha naquela época um filho, Xiwirõ,
que faleceu em 1995. O nascimento de um filho, sem um acordo matrimonial prévio, pode
diminuir as responsabilidades de um suposto pai. Um filho de mãe solteira é incorporado
ao grupo clânico do pai da mãe, ou seja, do avô materno.
Outra família nuclear apresentada pelo autor é a de Wayako (ou Xayoene). Ele é
casado com Lalowalose (Xayoenetõ). Esse casal tinha, na época (1995), três filhos: Xayo,
Deõlose e Kotirikwa. Xayoene é filho de Walitere. A presença de um filho homem na casa
do pai, contraria a regra de residência uxorilocal, mas é comum em alguns casos, como, por
exemplo, quando o espaço de uma casa não é suficiente para acomodar todas as pessoas.
Na parte inferior do desenho temos um pequeno núcleo familiar formado por
Makakoliare, Atolohi e a filha do casal, nascida naqueles dias, Lalerose. Makakoliare
pertence ao clã Aweresese e é neto do grande chefe Kawairi. Essa aliança matrimonial
define, em termos políticos, a força do clã Aweresese, também presente na casa.
Os dois últimos grupos familiares da casa pertencem ao clã Kawinariri. Eles se
acomodam ao fundo, um de frente para o outro. O primeiro tem como chefe Wayaretiware,
que é casado com Horiritiwalo, filha de Walitere. Na época moravam em sua repartição
familiar os seguintes filhos: Owi, Kawialokwa, Anaorikase, Anaoriri e Lolawenakase.
O último grupo familiar tem como chefe Xiwiro (Yelowiñaseene), casado com
Kaxari (Yelowiñasenetõ). Eles são pais de Timia, Wayakori, Holikiare, Kweirose e
Yelowiñase.
Nos dois últimos grupos de famílias nucleares temos dois irmãos (filhos de
Kariokõ) casados com duas irmãs, filhas de Walitere, o chefe da casa. A troca de irmãos
para o casamento, como nesse caso, é concebida como a forma ideal para esse povo.
O texto acima é bastante significativo, tanto no que se refere aos aspectos técnicos
de sua escrita, ou seja, ao exercício contínuo que ele faz para escrever alfabeticamente,
quanto principalmente ao que indica aspectos da ordem social Enawene Nawe. Nesse
sentido, o detalhamento exposto acima, a respeito do conteúdo expresso no texto, pretendeu
77
apenas apresentar um pouco da dinâmica social deste povo (que é o que dá vida ao texto,
situa-o) a partir da produção do daraitare – (d)a escrita.
Abaixo segue a tabela com os dias, horários e locais das aulas que Marikeroseene
participou até elaborar o texto apresentado acima. O recorte de datas previu a possibilidade
de avaliar uma atividade onde pode ser conferida a aquisição da escrita alfabética até o
momento em que produziu a atividade inserida acima.
Data Horário Local Outra
participação?
Clã
14/08/95 14:45 às 17 horas
Baixalako
(espaço
privativo da
família nuclear)
15/08/ 13:35 às 15:05
Baixalako
16/08/ 12:15 às 14:30
Baixalako
17/08 7:45 às 8:30 Casa do Yãkwa Doirare
18/08 6:30 às 7:15
9:00 às 10:15
Casa do remédio Laleroseene Aweresese
19/08
21/08
22/08 8:30 às10:00
23/08 Pátio da aldeia
24/08
26/08
Tiholoseene Kailore
06/09
07/09 7:40 às 8:30
14:20 às 15:40
18:10 às 19:30
Hitikianase
(espaço com
luminosidade,
próximo à porta)
Casa de
Tiholoseene
Pátio
Tiholoseene
Tiholoseene
Tiholoseene
Kailore
08/09 8:00 às 10:00
09/09 5:10 às 5:30
8:30 às 9:40
78
10/09 9:00 às 11:00
Tiholoseene Kailore
11/09
14/09
Baixalako
Hitikianase
15/09 Casa do
Tiholoseene
27/09 15:30 às 16:40
Baixalako
Marikeroseene foi o primeiro Enawene Nawe a escrever alfabeticamente e
desencadeou um efeito multiplicador do conhecimento. Era comum encontrar nas
anotações do meu diário de campo algum comentário sobre a forma como ele socializava a
sua aprendizagem e demonstrava um suposto poder diante dos outros, além disso, ria de
seus esquecimentos e das falhas na hora da leitura. O efeito multiplicador fez o número de
interessados aumentar e quando era assim nos reuníamos na casa de Yãkwa.
Veremos a seguir um dia de aula coletivo em Matokodakwa.
79
3.4 – Um dia de aula em Matokodakwa
46
Era 19 de fevereiro de 1996, às 14:30 horas e estávamos em Matokodakwa, mais
especificamente na casa de Yãkwa. Os homens, em duplas ou sozinhos, chegavam com seu
kit para a escrita: caderno, caneta e banquinho para sentar. Tinha também aquele que havia
ficado na última aula, com a lousa verde e, ao sair de casa, além do seu material, deveria
trazer a lousa, o apagador e o giz.
Foto: Arquivo OPAN
A relação dos presentes que queriam aprender a escrever naquele dia era pequena:
catorze pessoas. Uns já estavam mais inteirados da relação existente entre a escrita e a fala
e podiam facilmente participar da construção de um texto escrito. Outros participavam
mais timidamente, pois apesar de comparecerem assiduamente às aulas, ainda não haviam
se inteirado da tal relação. Outros, porém, estavam começando naquele dia e, sendo o
primeiro dia, tudo parecia estranho e engraçado.
Além destes que estavam interessados mais diretamente, havia muitos adolescentes
e crianças que entravam, se penduravam nos esteios da casa central, riam, davam palpites,
circulavam entre nós e se dispersavam novamente pela aldeia.
Segue abaixo a relação dos Enawene Nawe que estiveram presentes na aula deste
dia:
46
Descrição de uma das aulas realizadas na aldeia, gravada em fita k7 e transcrita nesta seção.
80
1) Daliamase Enetonasare
Pai de 3 filhos
Clã Kailore
2) Laleroseene Enetonasare
Pai de 5 filhos
Clã: Aweresese
3) Kameroseene Enetonasare
Pai de 7 filhos
Clã Kailore
4) Marikeroseene Enetonasare
Pai de 7 filhos
Clã: Kailore
5) Lulawenakwaene Enetonasare
Pai de 10 filhos
Clã Kailore
6) Kakwatare Enetonasare
Pai 2 filhos
Clã: Kailore
6) Lareokotõ Enetonasare
Pai de 4 filhos
Clã: Aweresese
7) Luñarese Enetonasare
Pai de 3 filhos
Clã: Kailore
8) Kawekwairihi Enetonasare
Pai de 4 filhos
Clã: Kailore
9) Alawi Enetonasare
Pai de 6 filhos
Clã: Kailore
81
10) Xiwirõ Enetonasare
Pai de 6 filhos
Clã: Ainihiare
11) Ameirõ Enetonasare
Pai de 3 filhos
Clã: Kaholase
12) Lalokwarese Enetonasare
Pai de 3 filhos
Clã: Kawekwarese
13) Owi Enetonasare
Pai de 4 filhos
Clã:Kawenairiri
Em meio à conversas e gargalhadas, num tom mais alto, ouviu-se a pergunta: -
Hikieta hane wixowitama? (o que faremos hoje?). Após um breve silêncio, Marikeroseene
repetiu a mesma pergunta redirecionando-a para Lolawenakwaene -Hikieta wixowitama
(qual conversa faremos nessa aula?) Lolawenakwaene rapidamente respondeu: -Ainda não
pensei sobre isso!
Começaram então a discutir, por algum tempo, o assunto que seria transformado em
pauta para a escrita alfabética.
Lolawenakwaene sugere: ESEWEHI (sal vegetal oferecido aos espíritos yakairiti
por ocasião da pesca de barragem). Um concorda, outros se calam e a conversa continua.
Com uma voz bastante tímida um outro falou baixinho uma palavra, soletrando-a
como se estivesse lendo: KO-HA-SE (peixe). Parecia desconfiar que a escrita exige algo
parecido com soletrar e que isso faz parte de um certo código, uma convenção alfabética. O
leitor foi tão rápido e discreto que sequer deu tempo de ver quem era.
[...] o principiante lê as palavras soletrando-as com dificuldade. – Mas
adivinha algumas palavras pelo contexto; ou já conhece o trecho, talvez
em parte, de cor. O professor diz, então, que ele não lê realmente as
palavras (e em certos casos, que apenas finge lê-las).
82
Se pensamos nessa leitura, a leitura de um principiante, e se nos
perguntarmos em que consiste a leitura, estaremos inclinados a dizer: é
uma atividade espiritual, consciente e particular[...] ler é uma certa
vivência da passagem do signo ao som falado. (WITTGENSTEIN
Ludwig 1979; p.68)
Lolawenakwaene sugere o texto: OLOWINA/TAKWA/WAYATE (O nome de um
rio utilizado para barragem de pesca + a chegada + o dono = A chegada dos donos da
barragem de pesca do Olowina).
Alguns argumentam sobre a proposta e vão discutindo e construindo as
possibilidades de concretizar a escrita da sua língua.
Laleroseen,e apressado e com tom de pouca paciência sentencia: - Muyalaka,
yatakwa daraiti wixoma. (Vamos pessoal, vamos rápido fazer a escrita).
Marikeroseene reforça e reitera: OLOWINA/TAKWA/WAYATE
Xiwirõ sugere: Wixiñakahã, haita (Vamos escrever, a conversa já acabou). Se
referindo ao fato de já se ter chegado a uma primeira conclusão sobre o tema a ser inscrito
naquela aula: os donos das barragens (de pesca). Este seria o tema da aula.
Laloe seria o daraitare (aquele que faz a escrita) que daria a forma escrita ao tema
escolhido:
OLOWINA/TAKWA/WAYATE
Ele começa escrevendo na lousa a frase sugerida e acordada:
O L O W I........
Pergunta: como é mesmo que escreve o N
y
A?
Alguém responde: é o NA.
Ele escreve o NA e pergunta: É assim mesmo que faz?
Com a resposta positiva, escreve o texto e ao final pergunta à Marikeroseene: Veja
se o que escrevi está certo?
OLOWINA TAKWA WAYATE
83
Após a leitura, Laloe senta no seu banco para escrever e Marikeroseene coordena a
leitura coletiva da frase escrita na lousa. Ele chama a atenção para a segmentação silábica
destacada com um traço abaixo da sílaba e por eles chamado de awiti (caminho).
As sílabas iam sendo destacadas separadamente e a possibilidade de apreensão dos
códigos, ainda abstratos, se tornava paulatinamente concreta.
O LO WI NA TA KWA WA YA TE
Surge uma nova discussão ao se iniciar a escrita do próximo texto. Desta vez seria o
nome de um outro rio: TINOLIWINA.
Depois de se falar muitas vezes a palavra tentando abstrair seus fonemas, ficou mais
fácil escreve-la. Mas, até se chegar a uma eventual convenção, passou-se por possibilidades
variadas de escrita: tiroruwina, tunoriwina, tiloliwina... Assim, coletivamente, foi escolhida
uma forma: TINOLIWINA.
TINOLIWINA TAKWA WAYATE
TI NO LI WI NA TA KWA WA YA TE
Durante a aula alguém comentou que a escrita tenta escrever todos os sons que a
língua fala. Portanto, ao falarmos sons iguais, usamos escritas iguais. É assim que
funciona.
Passou-se a um próximo texto:
HOYAKAWINA TAKWA WAYATE
HO YA KA WI NA TA KWA WA YA TE
O texto ia sendo lido sílaba a sílaba até se formar a palavra. O experimentador
verbalizava enquanto escrevia e a palavra era lida. Quando a leitura era coletiva um sempre
ia na frente, lendo antecipadamente. Muitas vozes se misturavam na seqüência e um ou
outro ficavam para trás, experimentando.
84
Assim que se alfabetizaram, os Enawene Nawe começaram a nomear as letras do
alfabeto, relacionando-as a um contexto bem diferente daquele oriundo da sua origem na
Mesopotâmia. Os nomes dados são utilizados para lembrar a alguém que deseja escrever
determinada palavra e se esquece de uma letra. Entre outros:
A – ixikiriti (a parte de formato triangular entre as coxas da mulher)
E – halata (pente)
I – ikehi (magro)
O – hetaokoseta (formato circular)
D – okore (arco)
S – hõkoida (curva/curvado)
Assim, com chaves específicas, eles davam pistas a um aprendiz de escrita
alfabética.
Foto: Arquivo OPAN
O texto ia sendo escrito quando nos chegou a informação de que no interior das
casas se comentavam os assuntos, as conversas, as palavras lidas e as gargalhadas que
saiam da casa do Yãkwa. Matokodakwa comentava a escrita. Apesar do interesse
demonstrado, alguns falavam também da sensação de timidez ou vergonha que ela
suscitava.
De volta à aula, outro grande debate foi iniciado para se definir a ortografia da
palavra que seria utilizada na escrita do novo texto, um outro nome de rio, que ao ser
pronunciado, apresentava variantes lingüísticas:
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MAXIK
Y
AWINA
HOXIK
Y
AWINA
Depois de muitas experimentações sonoras e escritas, Lolawenakwaene apresenta a
tese de que muitos falam a primeira forma: MA e outros a segunda: HO. Ou seja, as duas
formas de falar são aceitas, portanto devem ser aceitas também as duas formas de escrever.
Marikeroseene concorda dando um novo exemplo:
MAIXAITI (lenha)
HOAIXAITI (lenha)
Após pequena negociação Lolawenakwaene e Marikeroseene definem a escrita para
o momento:
HOXIKYAWINA TAKWA WAYATE
HO XI KYA WI NA TA KWA WA YA TE
Exercícios variados eram feitos no sentido de desencadear a abstração dos códigos
escritos, identificando-se determinadas palavras ou sílabas dos textos da lousa.
Com os textos escritos cada pessoa individualmente circulava determinadas
palavras, sílabas ou letras que eram sugeridas pelo grupo. Procurar a palavra TAKWA, a
sílaba WA, ou a letra A, ou tantas outras apresentadas, era uma tarefa simples e animada.
Além das letras/sílabas/palavras trabalhadas foram discutidas outras questões da
ortografia. Os Enawene Nawe reclamaram que muitos inõti (estrangeiros) que chegavam na
aldeia tentavam ensinar a escrita da língua indígena de forma diferente daquela
convencionada inicialmente, como por exemplo: hakolo (casa) ou hacolo? Esta situação
lhes deixava confusos e inseguros.
A constituição da língua Enawene Nawe como língua escrita, que surgiu da
expressão da vontade do povo, deve se fazer paulatinamente pelos próprios escritores do
povo. A estabilização e a normalização da língua escrita deve ser o resultado do processo
de criação da tradição escrita. As descrições lingüísticas não são condições necessárias
para o desenvolvimento da tradição escrita.
86
A normatização ortográfica da língua escrita, isto é, o estabelecimento
de que cada palavra só pode ser escrita de uma forma, de que há uma
relação unívoca entre uma palavra e a forma de escrevê-la, é um fato do
século XIX, não só para o Português, mas também para a maioria das
línguas européias. Faz pouco mais de 150 anos que temos uma
ortografia no sentido estrito do termo. Ou seja, o Português funcionou
como língua escrita durante 600 anos antes de uma fixação ortográfica.
(MÜLLER, 1998; p.392.)
3.3- Escrita sem escola
A experiência de escrita sem escola entre os Enawene Nawe se pautou no uso da
escrita alfabética e na prática da alfabetização que foi determinada pelos interesses e
disponibilidades do povo. O objetivo era compreender a lógica da escrita para utilizá-la
conforme a necessidade.
Foto: Arquivo: OPAN
87
O símbolo é arbitrário, isto é, não guarda relação necessária com o
fenômeno a que se refere. A prova disso é que povos diferentes atribuem
valor e significados diversos a fenômenos iguais. E mais ainda,
constatamos que numa mesma sociedade os símbolos se alteram no
decorrer do tempo. (JUNQUEIRA, 1999, p.16)
As reflexões e críticas feitas pela OPAN no início desta experiência, baseavam-se
em questões que historicamente vem definindo a forma como a escrita entra nas culturas
ameríndias: com horários fixos, calendários anuais, espaços pré-determinados, grupos
divididos e seriados, currículos, funcionários, formas de registro, disciplinas, regularização.
Estes elementos não deveriam interferir no processo inicial de aquisição da escrita
alfabética. Um regime de escola não seria necessário, as aulas seriam dadas sem as
categorias que permeiam o processo escolar, posto que a demanda não era pela implantação
da instituição escolar e sim, pelo aprendizado da escrita.
Embora a introdução da escrita não precise da formalidade da escola, a prática da
alfabetização dificilmente se dá fora dela. A escrita se burocratiza quando ela entra na
escola.
É importante destacar que era o início da introdução da escrita. Portanto, foi
necessário pensar no conjunto de letras a se utilizar para a escrita da língua. A ortografia
precisou atentar para a coerência fonológica e para a sua adequação ao sistema ortográfico
convencional. Adotar um sistema de escrita implica em analisar a realidade lingüística e as
possibilidades sociais, políticas e psicológicas da sociedade em foco. Nada pode ser
considerado neutro ou gratuito.
Os Enawene Nawe perceberam que era importante eu aprender bem a língua deles.
Para eles, é fundamental falar bem para escrever bem. O processo de introdução da escrita
deu-se simultaneamente ao aprendizado da língua falada para mim, atingindo
simultaneamente a dois propósitos: quem alfabetizava aprendia a falar a língua enquanto
quem ensinava a língua aprendia a ler e escrever.
Sobre esse processo de alfabetizar em língua nativa, assim se manifestou Bartomeu
Meliá:
88
Com respeito ao léxico, tenha-se em conta que o significado não pode
ser atingido sem um conhecimento conceitual do mundo do falante. Daí
a importância de aprender a língua no ambiente e nas situações em que
ela é falada e não somente na aula e nos livros. Ligado ao contexto, está
o sistema de crenças, que faz com que o léxico tenha um sentido, que não
pode ser dado só pela palavra, mas pela mentalidade e pela mestiça do
povo. (MELIÁ, 1979, p. 65)
Não podemos esquecer que é necessário também pensar na função social da língua
escrita. A escrita de uma língua indígena teria apenas a função de registro histórico e de
comunicação interna ou deveria servir como um canal de comunicação com a sociedade em
geral? As letras devem corresponder às da língua portuguesa? Se forem adotadas letras
diferentes das utilizadas na língua portuguesa, como fazer para que a comunidade externa
possa ler e compreender o que está escrito na língua indígena e evitar tanta desinformação?
A escrita não pressupõe institucionalização. Castoriadis (2000, p. 277) concebe o
termo instituição como “o lugar onde se dão as relações reais de uma sociedade”. Para ele,
esses lugares interligados formam uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se
combinam em proporções e em relações componentes funcionais e imaginários que
orientam o fazer e o representar de cada sociedade específica. Institucionalizar um espaço e
um tempo diferente é também dirimir as chances de se criar novos espaços e tempos.
A alfabetização não precisa necessariamente de um local especial para acontecer,
ela pode fazer-se dentro da própria casa, no pátio da aldeia, dentro da canoa ou no meio da
mata. Um local “certo” pressupõe a institucionalização de uma série de outras necessidades
e impõe um determinado tipo de conduta.
O tempo da alfabetização também não precisa ser institucionalizado. Não é
necessário prever a quantidade de tempo que será utilizada para a aquisição da escrita. O
tempo é aquele traduzido pelo interesse disponível em cada encontro.
O tempo e o espaço da alfabetização não podem ser e nem estar aprisionados.
Aprisionamento não combina com criatividade.
89
As singularidades que concretamente descrevem um trajeto específico
tendem muitas vezes a ser mascaradas ou ignoradas, devoradas em
discursos macro – totalizadores. O perigo desta armadilha, que acaba
não sendo apenas discursiva, reside não apenas na comodidade de lidar
com o desconhecido tornando-o familiar e portanto maleável,
manipulável, sem grandes surpresas, quando no risco de tornar-se
perversa nos impede de observar, buscar compreender as
especificidades de cada processo, negando assim as possibilidades,
brechas existentes na diversidade possível de rumos e destinos – que
envolvem efetivos sujeitos – que possam ser criados e trilhados.
(JAKUBASZKO, 2003, p. 133)
Os Enawene Nawe sempre foram os sujeitos condutores do processo de aquisição da
língua materna escrita. Os critérios estabelecidos por eles: horários, lugares, assuntos,
grupos etc, de acordo com o seu calendário social, sua disponibilidades e interesses,
conformam um novo desenho para a relação intercultural.
As dinâmicas eram determinadas pelos interessados, a partir dos referenciais
próprios de cada individuo em particular. Ninguém estava obrigado a estudar, estudava
quem desejasse aprender a escrita alfabética, quem atribuía alguma importância a ela. A
escrita era assim como um território de interessados.
Os considerados fazedores da escrita alfabética são chamados de daraitare. Os
daraitare, não são profissionais docentes, não recebem salário pela função, não possuem
contratos com instituições educacionais públicas ou privadas, não cumprem horários
predeterminados por nenhuma agência interna ou externa e nem representam o lugar onde
se forjam as condições para o exercício do controle da instituição escolar. Todos esses
elementos constitutivos da instituição escolar não existem.
Serão eles especialistas tradicionais para a prática de escrever? Jakubaszko (2003, p.
145)
acredita que:
[...] entre eles, o fato de haver alguns interessados neste aprendizado,
bem como aqueles que já dominam esta prática, parece ser suficiente e
satisfatório. É como se a sociedade Enawene Nawe como um todo se
apoderasse da escrita através daqueles especialistas que a dominam,
90
obedecendo, portanto à lógica da especialização presente na dinâmica
social Enawene Nawe.
Trata-se do exercício qualificado de um novo saber. Não é um saber exercido de
forma tirânica. Não é um saber elitizado, nem tampouco é democrático; não é universal,
nem tampouco restritivo. O conteúdo do saber é aberto a quem dele deseja ter acesso!
O público alvo tem sido formado majoritariamente por homens da categoria
enetonasare (nascimento do 1º filho). Os últimos relatórios do trabalho de campo realizado
pela equipe de área da OPAN, trazem informações sobre o interesse de jovens da categoria
awitariti e awitaretese, (de idade entre 12 e 14 anos).
Numa pesquisa pela aldeia, tentando identificar os atuais Enawene Nawe
considerados daraitare (aquele que sabe escrita), chegamos ao seguinte resultado:
1) Laleroseene Pai de 5 filhos
Clã: Aweresese
2) Kameroseene Pai de 7 filhos
Clã: Kailore
3) Marikeroseene Pai de 7 filhos
Clã: Kailore
4) Ameirõ Pai de 3 filhos
Clã: Kahõlase
5)Tiholoseene Pai de 11 filhos
Clã: Kailore
6) Daliamase Pai de 3 filhos
Clã: Kailore
7) Atainaene Pai de 3 filhos
Clã: Kailore
8) Menerore Pai de 3 filhos
Clã: Anihiare
9) Lalokwarese Pai de 3 filhos
Clã: Kawekwarese
91
10) Kawekwairihi Pai de 4 filhos
Clã: Kailore
11)Timia Pai de 1 filhos
Clã: Kawinairiri
12)Xiwirõ Pai de 6 filhos
Clã: Anihiare
47
Serão os daraitare considerados mediadores interculturais, tradutores, os que têm
habilidade para transitar entre os mundos através do signo escrito?
Nessa experiência não se oficializou o ensino nem tampouco se criou escola. O
modelo de alfabetização experimentado pelos Enawene Nawe continua sem a presença e
sem a formalização da escola.
Não sabemos até quando; nem eles se colocam essa questão.
47
Os dois últimos, segundo eles, kixixi (pouco).
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na introdução deste estudo tive o propósito de discutir a temática da alfabetização
tendo como pano de fundo a minha experiência e formação profissional.
Foi num contexto de envolvimento pessoal e institucional que se desenvolveram os
trabalhos de alfabetização e todas as demais ações propostas pelas linhas de ação do projeto
desenvolvido pela Operação Amazônia Nativa – OPAN. Tratou-se de um contexto que
possibilitou reunir profissionais de diversas áreas para discutir, analisar e implementar uma
experiência de escrita dissociada e independente da escola. As equipes de trabalho da
OPAN foram, sem dúvida, as norteadoras dos princípios a serem perseguidos nesta
experiência. A clareza no rumo das ações possibilitou a manutenção do distanciamento
desejado entre a escrita e a escola. Foi possível realizar uma experiência de alfabetização
despida de muitos mecanismos tradicionais da escola, o que a caracterizou como uma
alternativa que mereceu ser melhor conhecida e estudada.
Neste sentido, apresentamos no primeiro capítulo diversas informações sobre o
povo Enawene Nawe e o contexto das frentes econômicas que desestabilizam o entorno da
terra indígena. Apresentamos também alguns dados etnográficos e o mito de origem da
escrita.
O segundo capítulo pretendeu trazer à tona aspectos dos sons (fonética e fonologia)
e da escrita (a letras e as possibilidades de variações) da língua Enawene Nawe. Foram
apresentados somente os temas que considerei importante evidenciar para as possíveis
conexões com os objetivos deste estudo, ou seja, a experiência de alfabetização. Em anexo
apresentamos mais alguns apontamentos sobre a língua, que foram organizados na época do
trabalho de campo.
No último capítulo, de forma mais detalhada, trazemos a experiência de
alfabetização. São apresentados os pensamentos de alguns autores sobre a escrita e a
alfabetização, bem como alguns registros da escrita Enawene Nawe. Foram selecionados
textos que dão uma idéia dos assuntos tratados indicando a rapidez com que Marikeroseene
se apropriou dos códigos alfabéticos da leitura e escrita (um mês e meio). Este capítulo
trouxe à evidência a possibilidade de existir escrita sem escola.
Os Enawene Nawe, como vimos, apresentam duas finalidades para a escrita.
93
A primeira se relaciona aos aspectos mais intrínsecos da sua cultura e dão o sentido
da Memória - Registro e Eternização. Assim, tivemos presente a proposição de Bakhtin
para quem a escrita ou daraiti é símbolo, é signo.
Para a compreensão de um signo é sempre necessário aproximar o signo
compreendido de outros signos já conhecidos, ou seja, a compreensão é uma resposta a um
signo por meio de signos“. (BAKHTIN,1992: 34)
O que as palavras escrita e daraiti trazem de significado e de sensação?
Que razão temos para chamar de “S” o signo referente a uma sensação?
“Sensação é na verdade, uma palavra de nossa linguagem geral e não de
uma linguagem inteligível apenas para mim. O uso dessa palavra exige,
pois, uma justificação que todos compreendem. – E não ajudaria nada
dizer: não precisaria ser uma sensação; quando se escreve “S”, tem
algo – e mais não poderíamos dizer. Mas ‘ter”e “algo” pertencem
também à linguagem geral. – Assim, ao filosofar, chega-se por fim lá
onde desejaríamos apenas proferir um som inarticulado. – Mas tal som é
uma expressão apenas num jogo de linguagem determinado que se deve
agora descrever. (WITTGENSTEIN, 1979, p.98)
Qual a ligação entre a escrita ensinada por um enorenawe e o convite para o banho
da imortalidade e da eternidade? Os enorenawe, quando se sentem velhos se deslocam até
a lagoa denominada hurikwatia onde se banham, trocam de pele e ficam novos
48
. O eterno
e o imortal não são também características que se assemelham às sensações da escrita
alfabética?
A outra finalidade da escrita para os Enawene Nawe se desenha a partir da relação
com a exterioridade. Os aspectos da exterioridade se circunscrevem basicamente no campo
do Político. O sentido da busca por uma interlocução mais igualitária, através da escrita
alfabética, se insere pela compreensão de um conhecimento com dimensões universais: a
comunicação escrita.
48
Conferir Mendes (2006)
94
A experiência entre os Enawene Nawe permitiu uma outra reflexão sobre
metodologias de alfabetização. A questão que pode ser colocada como básica neste ponto
diz respeito não ao método de aprendizagem utilizado, pois o método pode se estabelecer a
partir de aspectos visuais, auditivos, analíticos, sintéticos, psicogenéticos ou qualquer outra
nuance da linguagem escrita. O que se considera mais importante e que de certa forma dá
um brilho diferente a experiência, é a inserção no campo do Outro. Perceber o Outro, a
partir do diálogo intercultural é a possibilidade de fazer nascer novos pensamentos e
significações.
Sempre confiáramos no povo. Sempre rejeitáramos fórmulas doadas.
Sempre acreditáramos que tinha algo a permutar com ele, nunca
exclusivamente a oferecer-lhe. (FREIRE, 1974, p.102)
A alfabetização deve ser ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores,
estados de procura, inovação, invenção.
O mundo da alfabetização não deve ser um mundo à parte, deve ser um
espaço/tempo possíveis de relação, de criação e recriação.
Alfabetizar é uma fonte de inspiração e pode, como fruto da ação pedagógica,
contribuir na construção de métodos próprios.
A língua escrita indígena deve ter uma função social como objeto com finalidades
expressivas e instrumento para fortalecer a autonomia sociocultural.
95
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VIGOTSKY, Lev S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
100
ANEXO
ASPECTOS DA LÍNGUA ENAWENE NAWE
101
102
103
104
105
106
107
108
109
110
111
112
113
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