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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
CELIBATO E GÊNERO: UMA RELEITURA
CRÍTICA
CLAUDOMILSON FERNANDES BRAGA
GOIÂNIA
2007
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1
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
CELIBATO E GÊNERO: UMA RELEITURA
CRÍTICA
CLAUDOMILSON FERNANDES BRAGA
Dissertação apresentada ao Programa de s-
Graduação em Ciências da Religião, da
Universidade Católica de Goiás como requisito
para obtenção do grau de mestre.
Orientador: Prof. Dr. José C. Avelino da Silva
GOIÂNIA
2007
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2
3
Dedico esta dissertação:
Ao querido amigo e psicólogo Elpídio, a
quem expus minhas dúvidas e
descobertas e de quem teimosamente
muitas vezes discordei na tentativa de
encontrar o melhor argumento.
4
Agradeço:
Aos meus colegas do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião, com
quem aprendi e desabafei todas as minhas
angústias. Um especial agradecimento a
minha querida amiga Azize, uma fortaleza.
A querida Professora Dra. Zilda Fernandes
Ribeiro, que me inspirou em dose dupla,
com aulas deliciosas e indicações
bibliográficas perfeitas.
A Professora Dra. Carolina Teles Lemos
que, com sua rigidez acadêmica, me
ensinou a arte da leitura com sentido.
Ao Professor e orientador Dr. José C.
Avelino da Silva, ou simplesmente Avelino,
com a eterna tranqüilidade e a capacidade
de me desafiar.
5
RESUMO
BRAGA, Claudomilson F. Celibato e Gênero: uma releitura crítica. Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião) - Universidade Católica de Goiás, 2007.
Esta dissertação aborda na sua essência as questões que envolvem as relações de
gênero e suas imbricações com o poder, tendo como instrumento de
operacionalização o celibato clerical instituído pela Igreja Católica e legalmente
descrito no Código de Direito Canônico. Também é objeto deste trabalho uma
releitura crítica do celibato a partir da perspectiva da arte, nomeadamente a arte
fotográfica de Oliviero Toscani. Paralelamente a esta abordagem central, permeia
este trabalho dissertativo um recorte teórico sobre a sexualidade, o aprisionamento
dos corpos e dos desejos e, especificamente como o celibato clerical - agora
entendido como instrumento do poder utiliza o aprisionamento dos corpos e dos
desejos como argumento para controlar a sexualidade e afastar a mulher do homem
e, por conseqüência, do poder da Igreja, o que, num sentido contrário, é obtido pelo
isolamento do homem.
Palavras chave: Celibato, Gênero, Sexualidade, Patriarcalismo, Crítica.
6
ABSTRACT
BRAGA, Claudomilson F. Celibacy and Gender: a critical interpretation. Dissertation
(Master's degree in Sciences of the Religion) - Catholic University of Goiás, 2007.
This dissertation approaches in its essence the subjects that involve the gender
relationships and it connections with the power, having as operational instruments
the clerical celibacy instituted by the Catholic Church and legally described in the
Code of Canonical Right. Also is object of this work a critical interpretation of the
celibacy starting from the arts perspective by the Oliviero Toscani photographic art.
The central approach of this work permeates in the analysis from theoretical parts
about, sexuality, the imprisonment of the bodies and of the desires and specifically
as the clerical celibacy - now expert as instrument of the power - it uses the
imprisonment of the bodies and desires as argument to control the sexuality and to
move away man and woman and for consequence the church’s power, which is
obtained by the man isolation in a contrary sense.
Key words: celibacy, gender, patriarchal, sexuality, critical
7
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Outono / Inverno 1992. Fotografia e criação: Oliviero Toscani 18
Figura 2: Cena do refeitório Em nome de Deus, cineasta Peter Mullan 101
Figura 3: Interrogatório. Em nome de Deus, cineasta Peter Mullan 103
Figura 4: The Lovers. René Magritte, 1924 106
8
SUMÁRIO
RESUMO 5
ABSTRACT 6
LISTA DE FIGURAS 7
1 INTRODUÇÃO 10
1.1 PROBLEMATIZAÇÃO E HIPÓTESES 12
1.2 METODOLOGIA 12
1.3 ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO 14
I CAPÍTULO 18
2 TOSCANI 18
2.1 O ESTRANHAMENTO 18
2.2 INTERPRETANDO TOSCANI 21
II CAPÍTULO 24
3 GÊNERO: UMA CONSTRUÇÃO DE PODER 24
3.1 CONCEITUANDO GÊNERO 24
3.2 SITUANDO GÊNERO 25
3.3 RELENDO GÊNERO 27
3.4 GÊNERO E PODER 34
9
3.5 CELIBATO: UMA CONSTRUÇÃO PATRIARCAL 48
III CAPÍTULO 55
4 CELIBATO: DA OFERTA À IMPOSIÇÃO 55
4.1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA 55
4.2 ESTRUTURA E INTERPRETAÇÃO DOS CÂNONES 277 E 599 58
4.3 MARIAS: UMA RELEITURA DO CÂNON 66
IV CAPÍTULO 78
5 CRÍTICAS AO CELIBATO 78
5.1 CELIBATO: SEXUALIDADE CONTROLADA 78
5.2 CELIBATO: APRISIONANDO DESEJOS 89
5.3 CELIBATO: A CRÍTICA DA ARTE 96
5 CONCLUSÕES 111
6 REFERÊNCIAS 121
10
1 INTRODUÇÃO
Entre as nuanças que permeiam a vida social, chama a atenção os estudos
de gênero como categoria de análise. Neste sentido, a academia, assim como
outros setores da vida social têm buscado compreender as relações de gênero e as
variáveis que perpassam esta abordagem.
Os estudos de gênero têm causado um substancial interesse das pesquisas,
nomeadamente a partir das cadas de 60 e 70 do século XX, no âmbito das
Ciências Sociais e mais acentuadamente a partir dos movimentos feministas que
assolaram a Europa e os Estados Unidos da América e proporcionaram um novo
entendimento do papel da mulher na sociedade..
Assim, as questões que envolvem o gênero são objeto de discussão em
vários níveis do conhecimento e têm suscitado vários recortes teóricos para a sua
compreensão, seja na totalidade ou em partes, de modo que o tema tem causado
grande interesse dos estudiosos e pesquisadores do assunto.
Se, por um lado, o estudo do gênero traduz as relações de poder subjacentes
a esta questão, por outro lado se torna importante perceber em que circunstâncias
estas relações de poder se constroem, ou seja, em que bases estas relações de
poder se sustentam e se fazem prevalecer para definir as questões que envolvem o
gênero.
11
Portanto, em nosso estudo entendemos que o celibato clerical conforme
descrito pelo Código de Direito Canônico da Igreja Católica
1
é uma das vertentes
que afasta a mulher da igreja e a inferioriza em relação ao homem. e por
conseqüência. isola o homem, de modo que a sexualidade, neste recorte teórico,
representa. se não o principal, um dos mais fortes argumentos deste afastamento /
isolamento: logo, se configura como uma questão de gênero.
Este meu interesse em investigar como o celibato presente no Código de
Direito Canônico da Igreja Católica relega a mulher a uma posição de inferioridade
não nasceu de forma despretensiosa, ele busca respostas a esta questão.
Foi escolhido investigar como o celibato, presente no Código de Direito
Canônico da Igreja Católica relega a mulher a uma posição de inferioridade pelo fato
de a Igreja Católica vivenciar com alguma freqüência pressões da sociedade civil em
relação a casamento dos padres e porque as mulheres não podem se ordenar,
obtendo, assim, plenos direitos aos sacramentos da ordem.
Todavia, o estudo não se restringe apenas a esta primeira investigação:
também busca evidenciar como o celibato representa estratégia de poder do
masculino adotada pela Igreja Católica, e busca relacionar como a sexualidade
feminina é utilizada como argumento deste afastamento e, por último, investiga
como a obra de Oliviero Toscani representa uma crítica à imposição do celibato.
Esta opção justifica-se a partir da minha formação primeira, Comunicação
Social e, na condição de comunicador que vivencia estes conflitos veiculados na
1
O termo Igreja Católica, Igreja Oficial, Igreja de Roma são termos utilizados no decorrer deste
trabalho referente à mesma Instituição.
12
mídia nacional e no contato permanente com os meios de comunicação de massa:
revistas, jornais etc.
1.1 PROBLEMATIZAÇÃO E HIPÓTESES
Objetivando compreender como o celibato relega a mulher a uma posição de
inferioridade construí o seguinte problema que norteou este trabalho: a imposição do
celibato conforme descrito pelo Código de Direito Canônico da Igreja Católica relega
a mulher e a coloca numa posição de inferioridade em relação ao homem e em
relação à Igreja Oficial e pode ser compreendida como uma disputa de poder entre
gêneros?
A partir deste problema central foram elaboradas as seguintes hipóteses:
O celibato conforme descrito pelo Código de Direito Canônico da Igreja
Católica relega a mulher a uma posição de inferioridade, cujo argumento central é a
sexualidade.
Outra hipótese levantada é de que o celibato representa estratégia de poder
no masculino.
E a última hipótese diz respeito como a arte subverte a norma e representa
uma crítica à imposição do celibato
1.2 METODOLOGIA
Assim, a metodologia adotada teve inicialmente a compreensão de que ela
representa "o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da
13
realidade" (MINAYO, 1998, p. 16), tendo como princípio o caráter científico
investigativo, não apenas para descrever, para construir um conjunto de significados
de uma realidade. Segundo Goldenberg apud Bicalho (2001, p. 21) a metodologia
"faz um questionamento crítico da construção do objeto científico, problematizando a
relação objeto / sujeito construído. [...] busca uma subjetividade controlada por si
mesma e pelos outros (crítica)".
Com relação à coleta de informações, as mesmas foram obtidas em
referências: obras literárias, artigos científicos, dissertações de mestrado e teses de
doutorado, assim como em outras publicações, nas quais serão trabalhados os
conceitos específicos relacionados ao objeto, de forma que estas informações
possam discutir as hipóteses apresentadas, de que o celibato, na forma e descrição
como este se apresenta no Código de Direito Canônico da Igreja Católica, relega a
mulher a uma posição de inferioridade.
A leitura do Código de Direito Canônico se restringiu ao que se refere ao
celibato; foi priorizada, inicialmente, a leitura dos clássicos para depois ser feita a
leitura de outros autores que tratam direta ou indiretamente do tema.
Por se tratar de uma pesquisa de cunho bibliográfico, o método de
procedimento adotado foi o histórico comparativo, segundo o qual a Instituição Igreja
Oficial com os seus costumes e normas são originariamente identificados e
posteriormente compreendidos, a partir da investigação bibliográfica, na busca de
perceber as suas determinações e influências em relação ao celibato, na atualidade.
14
Assim fazendo, as questões que envolvem gênero no âmbito da igreja
católica, as questões de poder, as definições teóricas de sagrado e profano e as
questões, que envolvem a sexualidade e a igreja, possibilitarão confirmar ou refutar
as hipóteses apresentadas.
Os conceitos apresentados no âmbito da pesquisa se concretizam e
representam a limitação adequada ao domínio particular a que serve em relação ao
fenômeno em estudo, - o celibato.
A bibliografia pesquisada teve como critério de definição inicial a busca nos
clássicos, ou seja, em obras de referência que se tornaram matrizes para outros
estudos e suas decorrências.
Um segundo critério na busca bibliográfica teve como princípio a atualidade
da obra, ou seja, não apenas o período de publicação, mas, sobretudo a sua
pertinência da abordagem com a realidade atual e com o objeto de estudo.
Desta forma, a pesquisa foi realizada em documentos e bibliografias
pertinente ao objeto, cuja técnica de coleta foi do tipo documentação indireta e
direta, já que o Código de Direito Canônico é fonte primária em nosso estudo.
1.3 ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO
Os capítulos foram estruturados com a seguinte lógica: no primeiro capítulo,
buscamos compreender como a arte fotográfica construída por Toscani se torna
estranha e como este estranhamento convida o interlocutor a experimentar, de
forma diferente, a realidade. Ainda neste primeiro capítulo, é elaborada uma
15
interpretação da fotografia de Toscani com sua plástica diferenciada e aspectos
cromáticos próprios, que instigam e sugerem um viés interpretativo possível: as
questões envolvendo as relações de gênero.
No segundo capítulo, apresentamos aquilo que entendemos como o principal
recorte teórico do nosso objeto: as questões de gênero traduzidas na perspectiva do
celibato e como o gênero está impregnado de poder e buscamos ainda neste
capítulo identificar como o celibato representa um instrumento na construção da
relação patriarcal de poder.
E para construir este raciocínio, abordamos o gênero como categoria analítica
e tentamos desvendar os conceitos subjacentes ao próprio conceito de gênero;
buscando num segundo momento inter-relacionar gênero e poder e como esta
relação se constrói, apresentando o celibato nesta construção patriarcal de poder,
cujo discurso constrói e corrobora o próprio poder, o que por conseqüência define os
papéis de gênero.
No terceiro capítulo, buscamos situar o celibato, primeiro numa perspectiva
histórica, mesmo que de forma breve, demonstrando a sua construção ao longo da
história da Igreja e num segundo momento, buscamos situar esta norma, agora
numa perspectiva legal, ou seja, a partir do Código de Direito Canônico.
Ainda neste capítulo, foram feitas na seqüência duas abordagens: uma
interpretação do celibato, ou seja, dos cânones que normatizam o celibato clerical e
uma releitura dos mesmos cânones a partir da figura feminina de Maria.
16
Assim, o segundo e terceiro capítulos, em seu conjunto, evidenciam como o
celibato representa uma estratégia de poder masculino adotada pela Igreja Católica,
relegando a mulher a uma posição de inferioridade em relação à igreja e ao homem,
cujo argumento central, em nossa perspectiva, é a sexualidade.
No quarto e último capítulo, buscamos compreender como esta sexualidade é
vista e construída a partir do corpo do homem e, principalmente do corpo da mulher,
de tal modo que, ainda neste capítulo, a partir de uma releitura da sexualidade, o
celibato seabordado como instrumento de negação dos corpos, de modo tal que
este aprisionamento representa uma forma de manter a sexualidade sob controle.
Neste contexto, o celibato representa, dentre outros, um dos mecanismos de poder -
de controle dos corpos – e, por conseqüência, da sexualidade.
No quarto capítulo, abordamos ainda como a arte subverte e desloca a norma
e se posiciona de forma crítica à imposição do celibato, e neste sentido, a arte de
Toscani - inspiração primeira do nosso objeto - é resgatada e reinterpretada, de tal
forma que agora a arte fotográfica de Oliviero Toscani não apenas convida com seu
estranhamento a repensar a norma, mas sobretudo, convida o interlocutor a uma
desconstrução do imaginário e sugere uma visão diferenciada da realidade.
Por fim, nas considerações finais, reelaboro as considerações prévias
apresentadas ao longo desta dissertação, resgatando as principais conclusões
observadas no estudo do objeto: de como o celibato é uma construção masculina e,
desta forma afasta a mulher da igreja e do homem, podendo este processo ser
compreendido como uma disputa de poder entre os gêneros.
17
Também nas considerações finais buscamos evidenciar como a sexualidade
é um dos principais argumentos desta construção e como a arte subverte, nas suas
mais variadas expressões, subverte a norma e representa uma crítica à imposição
do celibato.
Assim, acreditamos que a construção teórica que se apresenta demonstra
como as questões de gênero, traduzidas na perspectiva do celibato, representam
uma estratégia de poder do masculino em relação à mulher, ou seja, uma estratégia
sustentada pela negação da sexualidade feminina, mesmo que seja construída a
partir do aprisionamento dos corpos e da sexualidade masculina.
18
I CAPÍTULO
2 TOSCANI
2.1 O ESTRANHAMENTO
Figura 1: Outono / Inverno 1992 – 1993. Fotografia e criação: Oliviero Toscani
Nascido em 1942 na cidade de Milão, Oliviero Toscani é fotógrafo profissional
graduado pela Escola de Fotografia de Zurique. Iniciou sua carreira como fotógrafo
de moda para revistas internacionais, como a Elle, Vogue for Men e Harper's, e criou
19
campanhas publicitárias da indústria de roupas e da moda - Jesus Jeans, PréNatal,
Velentino etc., o que lhe rendeu numerosas recompensas, dentre as quais o Grande
Prêmio de Cartaz e Grande Prêmio Unesco.
Em 1989 foi contemplado com o Leão de Ouro no Festival de Cannes, prêmio
máximo da indústria da publicidade mundial. Atualmente vive na Toscana com a
família e durante as décadas de 1970 e 1980 foi o responsável pela valorização da
imagem internacional da empresa United Color of Benetton.
A arte fotográfica de Toscani se desfigura na sua própria existência sem,
contudo, perder o sentido da arte a partir do momento em que se traduz como
propaganda, e novamente se esvazia e assume uma outra perspectiva artística,
quando se assume como peça publicitária, assumindo desde sempre sua função
subversiva, contrária. Negando a própria função, posicionando-se de modo estranho
diante da vida cotidiana.
Este estranhamento em Toscani não se encerra na estratégia da veiculação e
nos objetivos, mas os perpassa e se situa no rompimento da percepção
automatizada. Este rompimento que conforme Sklovsky (apud CARAMELLA, 1998,
p. 90).
[...] implica num conceito confuso dado a sua constante associação ao de
fundo” , algo mais confuso ainda. Daí, deslocarem a noção de forma para a
noção de procedimento, a que Sklovsky dará ênfase e importância.
Ferrara interpretando o estranhamento de Sklovsky, afirma:
A arte como procedimento, Sklovsky coloca que é na ação de
estranhamento, ou seja, no prolongamento do tempo de duração da
percepção que o receptor é levado a experimentar a realidade de maneira
nova. O identificar lugar ao “conhecer outra vez” (FERRARA, 1986, p.
33).
20
Ainda segundo Ferrara (1986), ao contrário do que possamos imaginar, o
estranhamento o é algo que se baseia no complexo, no difícil. “Seu princípio é o
de operar com o singular, de deslocar o comum, desviar a norma” (FERRARA 1986,
p. 35).
Nesta ótica, Toscani encontrou uma forma de subverter a norma, sem cair no
exagero por meio da publicidade. Toscani, nos dizeres de Calazans
[...] não faz mera publicidade que torna público-pública informe do produto
Benetton; sua propaganda proselitista suscita debates que fazem os
fruidores comunicarem, exporem-se, assumirem posturas, propagando
uma atitude de conversação, prosa (CALAZANS. 2004. s./p.).
Assim, Toscani instiga à conversação, à discussão, ao debate, ao repensar a
norma. E segue Toscani deslocando, desloca o produto, desloca o conceito de arte
fotográfica, desloca o social, no momento em que a marca o prevalece; prevalece
o discurso contra a AIDS, contra a fome, contra o preconceito, contra a guerra.
Apesar da arte fotográfica de Toscani ser considerada por muitos como
cáustica, ou ácida nos dizeres de alguns críticos, pois fere princípios básicos da
sociedade, nomeadamente da religião católica, a arte de Toscani também pode ser
vista como bela e contundente e pode perfeitamente ser compreendida como um
relato preciso da vida cotidiana. Até porque a leveza das produções de Toscani leva
o interlocutor a pensar, ao diálogo. Em nada podemos simplesmente afirmar que
Toscani vampiriza as situações que registra, muito pelo contrário, pode muito bem
ser vista apenas como um relato fotográfico do social, da vida, das situações do dia
a dia.
21
2.2 INTERPRETANDO TOSCANI
A construção da arte em Toscani abre a discussão em vários sentidos, como
bem disse Calazans, e sugere diversas possibilidades de ser interpretada. Pode ser
interpretada como simplesmente uma construção artística, no sentido da plástica ou
ainda, pode ser interpretada a partir de outro olhar, como denúncia, no momento em
que chama o interlocutor a pensar e a se posicionar a favor ou contra aquilo que a
expressão artística representa.
Assim, a diversidade cromática da obra de Toscani possibilita sua visão de
diversos ângulos. Entretanto um conjunto de possibilidades chama a atenção: por
que a plástica construída no branco e no preto? Por que um beijo e não outra
expressão de afeto? Por que exatamente um padre e uma freira? Por que o padre
foi fotografado pelas costas? Por que a freira mostra o rosto e não o padre? Que
plástica estranha é essa que Toscani construiu partindo desta fotografia?
Todas estas questões sugerem uma série de respostas convincentes ou não,
mas, sobretudo, abre possibilidades de interpretação e, dentre elas uma chama a
atenção: não estaria Toscani partindo das diferenças de gênero, conduzindo o
interlocutor a repensar a norma eclesiástica do celibato e, deste modo
caracterizando o celibato como um instrumento do poder patriarcal, vigente no
âmbito da Igreja Católica?
22
Não estaria o branco e o preto representando a dicotomia máxima possível
entre as cores e, deste modo, estaria Toscani partindo desta representação,
demonstrando aquilo que a Igreja Oficial construiu, ao longo dos anos de sua
história, a separação dogmática entre os gêneros? Estaria Toscani traduzindo da
perspectiva da arte fotográfica, a ausência dos corpos, já que o preto e o branco
significam a completa ausência de cores e, portanto, esta escolha, para além de
demarcar a diferença, os lados que se opõem, não estaria fazendo uma alusão a
esta negação, que a metáfora da inexistência de todas as cores representaria por
conseqüência, a inexistência também dos corpos que a representam?
Não seria o beijo a expressão máxima da sexualidade entre os membros de
casal e, portanto o ato que representa esta possibilidade, que, na perspectiva
celibatária, é proibida, de se relacionar de forma harmoniosa com o outro? Ou seria
o beijo a forma encontrada pelo artista para afrontar a norma?
Partindo da escolha de um padre e de uma freira, não parece claro que a arte
fotográfica de Toscani desejou falar exatamente do celibato, já que ambos significam
os seus representantes eclesiásticos na estrutura da Igreja de Roma?
Considerando o fato de o padre estar de costas e apenas a freira mostrar sua
face, não estaria Toscani denunciando que o pecado do padre é permitido, pois não
é identificado e se não se identifica o pecador, o pecado perde o sentido, passa a
não ter autor, logo se esvazia na inexistência da autoria?
23
E, em relação à exposição da face da freira, não estaria Toscani apenas
demonstrando que, para a mulher, o pecado é natural e, portanto, mostrar a face da
pecadora é uma ação de naturalização da mulher como fonte do pecado?
Assim, apesar de a arte fotográfica de Toscani abrir uma vasta possibilidade de
interpretações, uma em especial se vislumbra: a possibilidade de empreender uma
busca teórica sobre aquilo que entendemos como a questão central da fotografia do
padre beijando a freira: as questões que envolvem as relações de gênero. Possibilita
também, nesta busca teórica, um recorte de interpretação ainda mais preciso:
compreender as questões que permeiam as relações de gênero, partindo da
definição eclesiástica do celibato.
Deste modo, o percurso teórico que se segue buscou, na sua essência,
compreender as questões que envolvem a normatização do celibato e sua relação
com as questões de gênero, construindo, desta ótica, uma releitura crítica.
24
II CAPÍTULO
3 GÊNERO: UMA CONSTRUÇÃO DE PODER
3.1 CONCEITUANDO GÊNERO
A história do gênero, segundo Colling (2004), tem um objetivo: “introduzir
na história global a dimensão da relação entre os sexos, com a certeza de que esta
relação não é um fato natural, mas uma relação social construída e incessantemente
remodelada” (COLLING, 2004, p. 28).
Assim, apesar dos discursos médicos em relação à mulher e ao homem terem
se tornado uma construção de oposição e de contrastes, tendo como principal
argumento à fisiologia celular, segundo Matos (1999), em termos pós-modernos esta
construção têm sido utilizada para teorizar as questões da diferença sexual, não da
diferença de sexo, questionando os papéis sociais destinados às mulheres e aos
homens, apesar de serem atribuídas aos homens e às mulheres características
fundadas em uma perspectiva biológica e em idéias e atitudes a elas associadas.
Ainda segundo Matos (1999), falar em gênero em vez de falar de sexo indica
que a condição das mulheres não está determinada pela natureza, pela biologia ou
pelo sexo, mas é “[...] resultante de uma invenção, de uma engenharia social e
política” (COLLING, 2004, p. 29).
25
Entretanto, as posições teóricas na construção do conceito de gênero se
diferenciam pelas abordagens e pelo referencial teórico utilizado.
3.2 SITUANDO GÊNERO
Se, para Rubin, no seu texto Tráfico de Mulheres, gênero é definido como “um
conjunto de arranjos pelo qual a sociedade transforma a sexualidade biológica [...]
as relações de gênero não resultam da existência de dois sexos, mas sim de um
sistema sexo/gênero” (RUBIN, 1993, p. 82).
Pereira (2004), que se contrapõe a este sistema sexo/gênero como definição,
vê, nas teóricas feministas culturalistas, um aporte teórico, um contraponto, nos
quais estas afirmam que gênero “não é um sistema de diferenças natural e
biológica” (MACHADO apud PEREIRA, 2004, p. 181).
Assim, para esta corrente teórica, os estudos de gênero e, por conseqüência,
seu conceito apontam na perspectiva do imaginário e do simbólico, de forma que o
conceito reafirma que gênero é “radicalmente o simbólico, o cultural, o social e o
econômico” (MACHADO apud PEREIRA, 2004, p. 183).
Também a Psicanálise tem contribuído para o conceito de gênero e seu
entendimento. Segundo Lamas apud (PEREIRA, 2004), gênero pode ser
compreendido como “o elo que articula o social e o psíquico sexualidade,
identidade, reprodução e liberdade” (LAMAS apud PEREIRA, 2004, p. 184).
Nesta perspectiva torna-se relevante ressaltar o importante estudo de Butler,
Corpos que pesam (apud PEREIRA, 2004, p. 175), de tal modo que as preposições
26
de Butler retomam as discussões sobre natureza e cultura, criticando a teoria
construcionista, que desconsidera o corpo na construção do conceito de gênero.
Desta forma, para a autora, “compreender gênero e suas relações, o sexo, a
matéria e o corpo importam” (BUTLER apud PEREIRA, 2004, p. 189). Deste modo, a
categoria gênero, segundo Colling (2004), permite entender a construção e a
organização social da diferença sexual. Isto porque segundo Laqueur apud Matos
(1999, p. 29), “o sexo é situacional e explicável, apenas, dentro dos contextos das
batalhas de gênero e poder”.
Se, para Couto, gênero "é, em primeira e última instância, uma forma de
ordenamento
2
da prática social" (COUTO, 2001, p. 5), para Scott, a definição de
gênero se configura como sendo um elemento constitutivo de relações sociais
baseado nas diferenças percebidas entre os sexos” (SCOTT, 1991, p. 14) e,
portanto, o gênero é segundo a autora “ uma forma primeira
3
de significar as
relações de poder” (SCOTT, 1991, p. 14).
Rauber (1998), por outro lado, define gênero não como uma classificação de
sexo – masculino e feminino - mas antes de tudo como uma
forma social que adota cada sexo, toda vez que se atribuem conotações
específicas de valores, funções e normas, [...] Não está vinculado ao
biológico, e sim ao cultural, ao social (RAUBER, 1998, p. 10).
Ainda sobre o conceito de gênero, Matos (1999), apresenta-o como uma
construção social, cultural, ou seja, simbólica. Assim, gênero não seria apenas uma
metáfora para explicar diferenças de base sexual, mas, “um instrumento que mapeia
2
Eu grifei.
3
Eu grifei.
27
um campo específico de distinções, aquele cujos referentes falam da distinção
sexual” (MATOS, 1999, p. 49).
Portanto, o conjunto teórico sobre o conceito de gênero sugere que o estudo
deste não se limita apenas a entendê-lo, partindo da compreensão do poder, já que
esta é apenas uma forma primordial de se compreender gênero, apesar de o poder
ser, seguramente, o principal viés de representação do gênero.
Ou seja, o gênero se conecta ou interage com classe, raça, etnia, e também,
com religião, política etc., de tal modo que, para entender gênero, devemos ir,
constantemente, além do próprio gênero.
3.3 RELENDO GÊNERO
Assim, gênero pode ser compreendido partindo-se do entendimento de outros
conceitos, tais como a relação dual entre o sagrado e o profano, de forma que, este
dualismo representa um elemento estruturante do conceito de gênero.
Também o conceito de habitus, que permeia as relações sociais e permite
entender gênero, possibilita perceber as diferenças entre os sexos, partindo-se
daquilo que Bourdieu (1998) denominou de princípio gerador de todos os
pensamentos, percepções e ações.
E, ainda, faz parte da discussão sobre gênero, o conceito de legitimação, que
valida a ordem social e traduz as questões de gênero.
28
Assim, Berger (1985) trabalha a legitimação num sentido mais amplo do que
Weber, e esclarece: “por legitimação se entende o saber socialmente objetivado que
serve para explicar e justificar a ordem social”. (BERGER, 1985, p. 42). Em outras
palavras, as legitimações são as respostas a quaisquer perguntas sobre os
porquês dos dispositivos institucionais. (BERGER, 1985, p. 42) e conclui, afirmando
que podemos descrevê-la, dizendo simplesmente que a religião foi historicamente
o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação” (BERGER, 1985, p. 45).
Desta forma, o conceito de legitimação de Berger (1985) subsidia e garante a
força de dispositivos institucionais para afirmar a relação de poder existente nas
relações de gênero, inclusive com relação direta com questões, que envolvem a
religião e, neste sentido, possibilita uma primeira tentativa de relacionar gênero e
celibato.
Para Berger (1985, p. 46), a religião “legitima as instituições infundindo-lhes
um status ontológico de validade suprema, isto é, situando-as num quadro de
referências sagradas e cósmicas”.
Assim, o processo de legitimação se relaciona com a sacralidade do fato
legitimado, ou seja, aquilo que a religião legitima como sagrado é posicionado e se
posiciona como válido com posição de referência.
Retomando a perspectiva dualista entre sagrado e profano, apresentada por
Durkheim, em sua obra As formas elementares de vida religiosa, agora com a
perspectiva de que o sagrado é referência para o processo de legitimação.
Conforme vimos anteriormente, temos como relação do sagrado à coisa“ por
29
excelência que o profano não deve tocar, e não pode tocar com impunidade”.
(DURKHEIM, 1989, p. 55), de forma tal, que o sagrado existe em oposição ao
profano e demonstra não apenas uma dicotomia, mas, sobretudo, a existência de
lados que se opõem: de um lado, o sagrado, que segundo o autor, está diretamente
ligado ao masculino e que não pode ser tocado pelo profano, representado pelo
feminino.
[...] pressupõe a classificação de todas as coisas reais e idéias, sobre as
quais os homens pensam, em classes ou grupos opostos, geralmente
designados por dois termos distintos suficientemente bem traduzidos pelas
palavras profano e sagrado [...] (DURKHEIM, 1989, p. 52).
Durkheim também examinou as categorias filosóficas de pensamento, -
tempo, espaço, classe, número, causa, substância, personalidade etc. - e usando
estas categorias, elaborou sua teoria das representações coletivas – que, segundo o
autor, são coletivas e devem ser vistas como fato social, na sua compreensão de
fato social como coisa, portanto, fora do indivíduo.
Ou seja, nos seus estudos sobre os totens australianos, Durkheim demonstra
que:
A oposição tradicional entre o bem e o mal nada representa diante disto,
pois o bem e mal nada mais são do que duas espécies oposta da mesma
classe [...] como dois mundos entre os quais nada existe em comum
(DURKHEIM, 1989, p. 54).
Assim, Durkheim constrói partindoi das representações coletivas, seu
raciocínio teórico no que se refere a esta relação dual e associa claramente o
sagrado ao masculino e o profano ao feminino, de tal modo que as relações de
gênero se descortinam, se configurando, da ótica do sagrado e do profano.
30
Assim, ao sacralizar o masculino, Durkheim naturaliza o feminino, de tal modo
que, reinterpretando o trabalho de Durkheim, Erickson (1996) afirma que a
perspectiva durkheimiana exclui as mulheres do mundo como uma atividade
admitida da vida social.
Esse processo de sacralização não foi criado, segundo Erickson (1996), sem
motivo. “Para Durkheim, a função do sagrado é gerar poder. Este é criado pela força
que mantém a divisão entre sagrado e profano” (ERICKSON, 1996, p. 50).
A existência desta força sobrenatural, que existe e dualiza a oposição
sagrado e profano sentido e as subsidia às relações de gênero, no momento em
que o sagrado, que, segundo Durkheim, pertence à esfera do masculino é esta força
sobrenatural, e o outro desta força é o profano, que, segundo o entendimento
durkheimiano, pertence ao âmbito do feminino.
Eliade (1992) trabalha o conceito de sagrado a partir de uma dimensão
cósmica, diretamente relacionado ao espaço, ao tempo, à natureza e ao ser
humano.
os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que
o homem conquistou no cosmos e, por conseqüência, [...] a todo
investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência
humana (ELIADE, 1992, p. 29).
Em Bourdieu, o entendimento de gênero nasce em nossa perspectiva
partindo da construção teórica elaborada pelo autor sobre o conceito de habitus,
legado que Bourdieu recebeu de Mauss.
31
Segundo Bourdieu (2004. p 61), “[...] o habitus como indica a palavra, é um
conhecimento adquirido e também um haver, um capital [...] o habitus indica a
disposição incorporada, quase postural [...]”, ou ainda:
[...] o habitus religioso, princípio gerador de todos os pensamentos,
percepções e ações, segundo as normas de uma representação religiosa
do mundo natural e sobrenatural, ou seja, objetivamente ajustados aos
princípios de uma visão política do mundo social (BOURDIEU, 2004, p.
57).
O habitus é, pois, esta ão que medeia, logo, negocia e, se o faz, está
impregnada de poder. Perpassa o indivíduo, é social, está, portanto, em todos os
lugares e em todos os sentidos, logo, também subsidia o conceito de nero e, por
possuir propensões estruturadas, define de modo determinado o meio social
existente, é, sobretudo estruturante. Assim o habitus pode ser perfeitamente
entendido partindo-se dos termos e segundo estes "[...] a lógica do funcionamento
da igreja, a prática sacerdotal e, ao mesmo tempo, a forma e o conteúdo da
mensagem que ela impõe e inculca e que são a resultante da ação conjugada de
coerções internas, [...]" (BOURDIEU, 1998, p. 65).
A igreja representa, pois, este conjunto, - prática sacerdotal, forma e conteúdo
da mensagem que, segundo Bourdieu (1998, p. 59), representa o capital religioso
(ou sagrado).
Em suma, mediante os refinamentos e as complicações com que contribui
para o fundo cultural primário, a sistematização sacerdotal tem por efeito
manter os leigos à distância (esta é uma das funções de toda teologia
esotérica), convencê-los de que esta atividade requer uma “qualificação”
especial, “um dom de graça”, inacessível ao comum dos homens [...]
(BOURDIEU, 1998, p. 69).
Assim, o habitus subsidia a postura da Igreja, no sentido de manter o
afastamento da mulher da própria igreja por questões de poder, ou seja, é o habitus
32
religioso que define, em outras palavras os papéis de gênero que se verificam no
âmbito da religião oficial.
Segundo Woortmann (2006), interpretando Bourdieu (Esquisse d'une théorie
de la pratique, précedé de trois études d’éthnologie kabyle Géneve, 1972), na qual
o autor apresenta suas interpretações e críticas aos estudos do parentesco, em
particular, à questão das trocas matrimoniais e do celibato, o conceito de habitus é
mantido e resgatado para manter esta reprodução social.
Não é raro, contudo que na casa permaneça um celibatário, de certa
forma sacrificado em função das necessidades de reprodução social. [...] o
celibatário constituído pelo habitus é resignado porque designado, tendo
ele próprio internalizado as disposições naturalizadas, que o colocam na
condição de menoridade adulta (WOORTMANN, 2004, p. 4).
Aqui também Woortmann (2006) ressalta o conceito de habitus, inclusive com
relação direta ao celibato, onde este o celibatário - é 'sacrificado' em função das
necessidades de reprodução social, ou seja, da manutenção da reprodução social,
daquilo que poderíamos denominar de manutenção da ordem social.
Deste modo, os estudos empreendidos por Bourdieu (1995) sobre a teoria
da dominação masculina têm, em consonância com o conceito de habitus,
representado um aporte teórico revelador, na origem, da desigualdade entre os
sexos.
Afirma Bourdieu (1995, p. 16) que a divisão das coisas e das atividades
(sexuais e outras), segundo a oposição entre o masculino e o feminino, recebe sua
inserção em um sistema de oposições homólogas, alto / baixo, em cima /embaixo,
na frente / atrás, claro / escuro etc”.
33
E demonstra a arbitrariedade desta divisão das coisas com base em um
esquema, denominado de esquema sinóptico das oposições homólogas. “[...] sendo
semelhantes na diferença, o suficientemente concordantes para se sustentar em
mutuamente” (BOURDIEU, 1995, p. 139), ou seja, segundo o pensamento de
Bourdieu (1995), a experiência apreende o mundo social e suas arbitrárias divisões,
“a começar pela divisão socialmente construída entre os sexos, como naturais [...] e
adquire, assim, todo um reconhecimento de legitimação” (BOURDIEU, 1995, p. 17).
Assim, o conceito de habitus representa e contribui de forma privilegiada em
“seus suportes simbólicos privilegiados daquelas significações e valores que estão
de acordo com os princípios da visão falocêntrica de mundo” (BOURDIEU, 1995, p.
149).
Bourdieu, assim, argumenta que a ordem social androcêntrica impõe,
portanto, uma neutralidade que dispensa justificativa, pois “[...] funciona como uma
imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual
se alicerça [...]”.(BOURDIEU, 1995, p. 18).
Portanto, a compreensão do conceito de gênero está além do próprio gênero,
de forma que uma das possibilidades de definir gênero é compreender as
imbricações de poder inerentes e dele definidoras.
Torna-se pertinente empreender, num primeiro momento, como se constrói a
relação gênero e poder, com o objetivo de elucidar até onde for possível, onde
exatamente as relações de gênero se configuram como relações de poder, até
34
porque os conceitos de gênero se reconstroem com base em posições ideológicas
diferentes.
3.4 GÊNERO E PODER
Retomando a construção teórica de Scott sobre o gênero que segundo a
autora “[...] é uma forma fundamental de significar as relações de poder”. (SCOTT,
1991, p. 14), temos, portanto a possibilidade de compreender gênero não apenas
pela utilização do seu conceito, mas por meio daquilo que o gênero é, uma forma de
poder.
Erickson (1996), em uma releitura da obra de Èmile Durkheim, As formas
elementares da vida religiosa, apresenta uma série de análises, que abordam as
questões relacionadas ao sagrado e ao profano, da lógica do gênero perpassado
pelas relações de poder.
Para Erickson,
a análise da religião, de Durkheim, se contemplada através de uma lente
feminista, revela o processo de sacralização da religião como uma
ferramenta usada por homens particulares para criar e sustentar uma
sociedade de que são excluídas as mulheres e o restante da coletividade
profana (ERICKSON, 1996, p. 84)
Ainda nesta releitura empreendida por Erickson (1996), na qual as questões
de poder perpassam as questões de gênero, a autora traduz o poder na forma de
violência, afirmando: “são necessários atos de violência para criar e sustentar o
35
sagrado e o profano para criar e sustentar o mundo dos gêneros” (ERICKSON,
1996, p. 87).
E, nesta abordagem, em que as questões de poder se apresentam de forma
clara, Erickson conclui: “[...] a teoria feminista da religião ocidental racionalizada
deveria encarar a religião como espaço na vida social em que é criada a distinção de
sexo” (ERICKSON, 1996, p. 88).
Assim, interpretando Erickson, pode-se perceber que as relações de gênero
como representações do poder, na perspectiva da autora, se traduzem pela
violência de gênero, ou seja, o poder perpassa as relações e se materializa na
violência.
Em Hertz (1980), no ensaio A proeminência da mão direita, um estudo sobre
a polaridade religiosa, o autor trabalha o princípio básico da religião: a oposição
entre o sagrado e o profano e constrói, a perspectiva do corpo humano, uma
relação direta entre o sagrado e o profano, o homem e a mulher, o certo e o errado,
enfim, com base nestas relações, descreve as relações de poder.
Segundo Hertz
[...] para a mão direita vão às honras, as designações lisonjeiras, as
prerrogativas: ela age, ordena e toma. A mão esquerda, ao contrário, é
desprezada e reduzida ao papel de uma humilde auxiliar: sozinha nada
pode fazer; ela ajuda, ela apóia, ela segura (HERTZ, 1980, p. 16).
Neste sentido, à polaridade do lado direito e do esquerdo nos liga, segundo
Hertz (1980), a polaridade do mundo. A direita representa o que é alto, o mundo de
cima, a esquerda está associada ao mundo de baixo.
Não é por acaso que nas pinturas do Último Testamento é a mão direita
do Senhor que aponta a abóbada sublime para o eleito, enquanto a o
36
esquerda mostra aos condenados às mandíbulas abertas do inferno
prontas para engolí-los (HERTZ, 1980, p. 19).
Entre os Wulganda da Austrália, segundo Hertz (1980), dois paus são usados
para marcar o ritmo durante as cerimônias: “um é chamado de homem e é segurado
pela mão direita, enquanto o outro, representa a mulher e é segurado pela mão
esquerda” (HERTZ, 1980, p. 27). Aqui, indubitavelmente encontramos, segundo o
autor, o privilégio do sexo forte e do lado fraco. “Não é este o lugar para procurar a
causa e o significado desta polaridade que domina a vida religiosa e que se impõe
ao próprio corpo” (HERTZ, 1980, p. 31).
Logo na construção teórica de Hertz (1980) as relações de gênero se
constroem como relações de poder quando se parte de uma leitura dicotômica do
mundo, no qual o forte é masculino e o fraco é feminino. Para Hertz esta disputa de
forças está assente na polaridade das coisas. O gênero se constrói, portanto, a partir
da percepção da diferença, da oposição.
A construção teórica de Hertz (1980) assim como o esquema sinóptico das
oposições homólogas de Bourdieu (1995) se corroboram na perspectiva de gênero
como uma relação de oposição e, portanto, uma relação de poder.
Ainda na busca de entender gênero como relações de poder temos uma
primeira definição de poder: Para Foucault o poder é “[...] como um feixe de
relações mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos
coordenado”(FOUCAULT, 2005, p. 248).
Nesta perspectiva, Foucault trabalha o poder como algo verticalizado, de cima
para baixo, apesar de argumentar que nem sempre esta é uma verdade absoluta:
37
Na medida em que as relações de poder são uma relação desigual e
relativamente estabilizada de forças, é evidente que isto implica um em
cima e um em baixo, uma diferença de potencial. [...] Todo o poder, seja
ele de cima para baixo ou de baixo para cima e qualquer que seja a
instância em que é analisado, ele é efetivamente representado, de
maneira mais ou menos constante nas sociedades ocidentais, sob uma
forma negativa, isto é, sob uma forma jurídica (FOUCAULT, 2005, p. 250).
Isto porque segundo Foucault (2005), são duas as formas de análise do
poder: uma que se origina do direito, tendo o contrato como matriz. Poder que corre
o risco de se tornar opressivo quando excede, rompe os termos do contrato, e uma
segunda categoria de análise baseada no esquema guerra-repressão.
Portanto, segundo Foucault (2005), o poder pode ser analisado a partir destas
duas categorias: contrato opressão, que é jurídico, e dominação-repressão, na qual
a oposição não é entre legítimo-ilegímito, como no primeiro, mas entre luta e
submissão.
Ainda com relação ao conceito de poder apresentado por Foucault, um dado
chama a atenção: a afirmativa de que todo poder - de cima para baixo ou de baixo
para cima - nas sociedades ocidentais são exercidos, na maioria das vezes sob a
forma jurídica.
De modo geral, penso que preciso ver como as grandes estratégias de
poder se incrustam encontram suas condições de exercício em micro-
relações de poder. Mas sempre também movimentos de retorno, que
fazem com que as estratégias que coordenam as relações de poder
produzam efeitos novos e avancem sobre domínios que, até o momento,
não estavam concernidos. [...] até a metade do século XVI, a Igreja
controlou a sexualidade de maneira bastante frouxa; [...] a partir do Concílio
de Trento, por volta de meados do culo XVI, assistiu-se a uma série de
procedimentos novos, que foram aperfeiçoados no interior da instituição
eclesiástica (FOUCAULT, 2005, p. 249).
E conclui; “Foi isso que se tentou injetar na sociedade, através de um
movimento, é verdade, de cima para baixo” (FOUCAULT, 2005, p. 249).
38
Em Foucault, podemos perceber então que o gênero, a partir das definições
de poder apresentadas pelo autor, são relações baseadas na coerção, jurídica ou
não, verticalizada, portanto, hierárquicas, de baixo para cima ou de cima para baixo,
mas, sobretudo, relações de submissão.
Outra possibilidade de compreender o conceito de poder surge a partir da
leitura conceitual de gênero na perspectiva durkheimiana do sagrado e do profano,
reconstruída em Weber na sua definição do papel do sacerdote como sagrado, logo
detentor do poder.
Deste modo, a abordagem weberiana - apesar de ter como foco o saber
sagrado - não deixa de relatar a experiência do poder, a partir do momento que o
sacerdote define e sistematiza a norma, cujo resultado acarreta duas
conseqüências: os dogmas e as escrituras canônicas, que segundo Weber (1991)
são revestidos de qualidades sagradas por serem sempre de origem sacerdotais,
portanto são a verdade.
Portanto, segundo Foucault a verdade é uma fonte de poder.
A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que produzem e
apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem [...] Regime
da verdade (FOUCAULT, 2005, p. 14)
E para Foucault a verdade ainda pode ser entendida como um “conjunto de
procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o
funcionamento dos enunciados” (2005, p. 14), corroborando, portanto, o pensamento
weberiano onde a verdade se constitui numa importante ferramenta de construção
de poder, seja pela produção, seja pela implementação da lei, seja porque o
sacerdote, nos dizeres de Weber está revestido da verdade e a representa.
39
Para Weber o poder pode significar então “a probabilidade de impor a
própria vontade em uma relação social, mesmo que contra toda resistência e
qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade” (WEBER, 1991, p. 325).
Portanto, o pensamento weberiano construído a partir do saber sagrado,
aquilo a que Foucault chamou de procedimentos regulados para a produção, ou
simplesmente verdade, sugere às relações de gênero uma relação de poder
imposta, mesmo que de forma probabilística.
O poder ainda pode ser compreendido como fato que transcende o indivíduo
e segundo Lemos (2005, p, 118) se plasma nos sujeitos e nos espaços sociais,
materializando-se como afirmação, como satisfação de necessidade e como
realização de objetivos”.
Segundo Lagarde (apud LEMOS, 2005, p. 118) “quem exerce o poder se
arroga o direito ao castigo e de postergar bens materiais e simbólicos. Dessa
posição domina, sentencia e perdoa e, ao fazê-lo, acumula e reproduz o poder”.
Para Lagarde interpretado por Lemos, portanto, o poder se materializa a partir dos
objetivos sociais que buscam, pois se constrói na realização destes objetivos.
Assim, parece-nos importante ressaltar que os conceitos de poder até aqui
apresentados sugerem de alguma forma que para compreender gênero como
relações de poder não podemos conceber o poder como algo estático, muito pelo
contrário, o poder, apesar de representar uma disputa, presume uma negociação.
40
Deste modo é Foucault que melhor resume esta dinâmica. Para o autor o
poder “é enigmático. Ao mesmo tempo em que é visível, é invisível” (FOUCAULT,
2005, p. 145).
Segundo Lemos (2005) então, o poder não é algo que se obtém, mas algo
que se negocia permanentemente.
Desta feita, podemos afirmar que o poder é possível tanto para homens como
para mulheres. Conforme Bicalho (2001, p. 47) o contingente feminino participa da
estrutura de poder, desfrutando ora mais, ora menos da capacidade de impor sua
vontade”.
Apesar de o poder ser central na discussão de gênero e esta é uma afirmação
segundo Safiotti (2004), incontestável, não se pode ainda, segundo a autora
privilegiar esta como a única e última verdade. Conceber o gênero como
exclusivamente uma instância do poder é desconsiderar outras nuanças deste
binômio gênero / poder, até porque o poder, enquanto forma fundamental de
significar gênero, também pressupõe o disputa, mas possibilita também
relações igualitárias, dinâmicas, enigmáticas.
Logo, abre-se uma possibilidade de indagar: se o gênero é uma primordial
forma de poder, de que forma então se constroem as relações de nero se não
pela disputa de poder?
A resposta a esta questão encontra na abordagem do patriarcado, que
segundo Safiotti (2004), se diferencia de gênero enquanto forma de representar o
poder. No patriarcado as relações são hierarquizadas entre seres socialmente
41
desiguais” (SAFIOTTI, 2004, p. 119). A autora ainda afirma que “patriarcado é um
caso específico de relações de gênero” (SAFIOTTI, 2004, p. 119). Sendo portanto, o
patriarca “uma fase histórica do gênero” (SAFIOTTI, 2004, p. 122).
Assim, fincar raízes no entendimento de poder como definitivo para explicar a
hierarquização das relações entre homens e mulheres, logo compreender o gênero,
segundo Safiotti (2004) não dá visibilidade aos manipuladores deste controle.
Compreender gênero, apenas como uma forma primordial de poder, permite
na visão de Safiotti (2004), que este esquema, estrutura de poder patriarcal,
silencioso, engendre formas cada vez mais sofisticas, e as vezes brutais, de se
expressar, ganhar terreno, e se tornar cada vez mais invisível.
É veementemente negado, levando a atenção de seus participantes para
outras direções, cumpre, pois, um desserviço a ambas as categorias de
sexo, mas seguramente, mais ainda à das mulheres (SAFIOTTI, 2004, p.
123).
Desta forma, reconstruir o conceito de gênero não apenas como uma forma
primordial de poder, mas sobretudo, como uma expressão do poder patriarcal é
vislumbrar a possibilidade de entender gênero de uma forma mais ampla e sem elidir
seu caráter político. É incluir nesta perspectiva não apenas a disputa entre homens e
mulheres, mas perceber que este como um processo de dominação masculina,
conforme denominado por Bourdieu, também engloba os homossexuais que apesar
de pertenceram à mesma classe, vivenciam, no seu dia-a-dia, a ordem patriarcal.
Assim, o conceito de patriarcado, conforme Hartmann (apud SAFIOTTI, 2004,
p. 104) pode ser traduzido como “pacto masculino para garantir a opressão das
mulheres”, de forma que as relações hierárquicas entre os homens capacitam e
42
constituem a categoria homens a “estabelecer e a manter o controle sobre as
mulheres” (SAFIOTTI, 2004, p. 104).
Este regime de capacitação possibilita aos homens a manutenção em
funcionamento mecanismos de controle da ordem. Se, entre os homens, segundo
Safiotti (2004) critérios de hierarquia, como por exemplo, idade, em relação às
mulheres estes mecanismos se relacionam, quase sempre com o controle da vida,
tais como: as mulheres são reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e
reprodutoras de novas reprodutoras, o que sugere que as mulheres enquanto
categoria social, prestam serviços sexuais a seus dominadores.
Assim, podemos verificar que a sexualidade representa seguramente um dos
mecanismos de manutenção da ordem patriarcal de gênero e que, nesta ótica, o
celibato se configura como uma estratégia patriarcal de poder, cuja estrutura
operacionaliza este poder, o celibato, pois, conforme descrito pelo Código de Direito
Canônico proíbe certas expressões de sexualidade e, portanto, define as relações
entre homens e mulheres.
O poder patriarcal tem, por conseguinte, no celibato mecanismo de controle
da vida, da sexualidade, dos corpos.
Pode-se, desta forma, compreender as relações de gênero e por via de
conseqüência, o celibato, não apenas como uma disputa de poder, em que pese
esta realidade, mas, sobretudo, como uma construção patriarcal de poder.
Se o conceito de patriarcado nos remete, segundo Hartmann a um pacto
masculino que garante a opressão das mulheres importa saber neste sentido,
43
exatamente qual ou quais os mecanismos adotados pelo patriarcado no sentido de
garantir a ação, ou melhor, a opressão em relação às mulheres.
Desta forma e segundo Safiotti (2004), o patriarcado funciona como uma
“máquina bem azeitada, que opera sem cessar [...] quase automaticamente, além de
trazer de forma muito clara a força de uma instituição” (SAFIOTTI, 2004, p. 100).
Assim, no seu conjunto, o patriarcado representa um sistema, conforme
Dimen (1997), de dominação, apesar de se diferenciar de outros sistemas de
dominação, como o racismo, o colonialismo, pois vai direto “na jugular das relações
sociais, - o desejo”.(DIMEN, 1997, p. 46). O patriarca “ataca o desejo, [...] reduzindo-
o ao sexo e, depois, definindo sexo nos termos politizados de gênero.” (DIMEN,
1997, p. 46).
O patriarcado é, pois, esta estrutura de poder político disfarçada em sistema
de diferença natural, de forma tal que, onde o poder outorgado é tão desigual, a
intimidade não pode florescer. A estrutura patriarcal não consiste apenas na intensa
discriminação da divisão do trabalho, atribuindo-se uma diferença salarial para baixo
às trabalhadoras, mas também no controle de sua sexualidade e, por conseguinte,
de sua capacidade reprodutiva.
Seja para induzir as mulheres a terem grandes números de filhos, seja a de
convencê-las a controlar a quantidade de nascimentos e o espaço tempo
entre os filhos [...] o controle está sempre em mãos masculinas [...]
(SAFIOTTI, 2004, P. 106).
O exposto até então permite verificar que gênero é muito mais amplo que o
patriarcado e se a maior parte da história foi vivida numa organização de gênero,
44
segundo Safiotti (2004), os últimos sete mil anos são caracterizados pela existência
de sociedades cada vez mais patriarcais.
Numa perspectiva quantitativa, o patriarcado é, nas sociedades ocidentais
urbano-industriais, o que mais abrange. Do ponto de vista qualitativo, a organização
social do gênero é total, ou seja, é transversal as relações humanas.
A descrição mítica do Pai da Horda Primitiva apresentada por Carneiro
(2005), descreve a criação e a manutenção do poder masculino e elucida a
presença patriarcal desde muito tempo como estrutura de poder vigente em relação
às mulheres. Segundo Carneiro
O Mito do Pai da Horda Primitiva, descrito por Freud (1913) o que se
apresenta é um pai violento e ciumento que guarda todas as fêmeas para
si próprio e expulsa os herdeiros à proporção que vão se tornando
maiores, possíveis concorrentes na disputa das mulheres. Certo dia, os
filhos insubmissos perceberam que unidos tornavam-se fortes, por isso
voltaram juntos, investiram contra o pai tirano, mataram-no (CARNEIRO,
2005, p. 5).
O autor conclui a descrição afirmando:
A esta barbárie, do pai tirânico sendo morto e devorado pela conjuração
dos filhos exilados, explica-se porque um grupo de jovens vivendo juntos
em celibato forçado, a tudo assistiram em sua impubescência, [...] O
violento pai da horda primitiva fora sem dúvida o temido e o invejado
modelo de cada grupo de irmãos, que o odiavam porque representava um
obstáculo poderoso a seus desejos sexuais e aos seus anseios de poder;
mas inconscientemente o amavam e o admiravam também (CARNEIRO,
2005, p. 5).
Deste modo e ainda segundo Carneiro (2005, p. 12)
A força da ordem masculina pôde ser evidenciada no fato de que apoiada
pelos mitos e rituais, divulgados e alimentados por instituições forte e
penetrante como a religião (Igreja) dispensava justificação, dispensando
os discursos que parecem legitimá-la, até porque as ordens fundamentais
(Estado / Igreja) funcionam intensamente, utilizando-se simbolicamente
das interpretações simbólicas atribuídas a Deus e ao homem para ratificar
a dominação masculina.
45
Assim, as religiões, e em especial a Igreja Oficial Católica, hegemônica na
América Latina, está inteiramente perpassada pela estrutura de poder patriarcal, que
vai desde a sua estrutura hierárquica organizacional até as definições legais
presentes no Código de Direito Canônico, nomeadamente o celibato, conforme
descrito, e que serve ao nosso estudo.
Um outro mecanismo presente na estrutura patriarcal é o fato de a figura do
patriarca não ser imprescindível ao funcionamento da máquina patriarcal.
Tomemos como objeto de análise o filme de Zhang Yimou, Lanternas
Vermelhas, no qual a terceira esposa é levada à morte, pela transgressão da norma
contra o adultério, sem a presença ou mesmo a participação do patriarca.
Ou seja, o mero fato de a transgressão ter sido cometida contra a ordem
patriarcal de gênero, não obrigou ao patriarca tomar uma decisão, pois a própria
estrutura prevaleceu e funcionou no sentido de se manter preservada.
No relato de Safiotti (2004) sobre o filme Lanternas Vermelhas, a autora
apresenta uma análise, afirmando que
[...] Além de o patriarca fomentar a guerra entre as mulheres, à estrutura
patriarcal funciona como uma engrenagem quase automática, pois pode ser
acionada por qualquer pessoa, inclusive por mulheres. Quando a quarta
esposa, denuncia a terceira, a segunda, é esta que faz o flagrante e que
toma as providências para que se cumpra a tradição [...] O patriarca nem
sequer estava presente no palácio no qual se desenrolam os fatos. Durante
toda a película, não se o rosto deste homem [...] conferindo aos homens
o direito de dominas as mulheres, independentemente da figura humana
investida de poder (SAFIOTTI, 2004, p. 102)
Assim e segundo as colocações da autora, a máquina funciona independente
da figura masculina e funciona até mesmo acionada por mulheres.
46
Em sua obra, O falo de Deus, Eilberg-Schwartz (1995) nos apresenta uma
interessante análise entre a figura de um Deus pai, assexuado e seus filhos,
reprodutores. O autor questiona como podem os homens, que devem procriar e
reproduzir a linhagem de seu pai, ser criado à imagem de um Deus, se este Deus é
assexuado? Como ser um símbolo de masculinidade a ser seguido e imitado se não
tem nenhuma sexualidade, pois é um Deus assexuado?
Estas dentre outras questões são colocadas por Eilberg-Schwartz. Entretanto,
ao fazer uma releitura das colocações do autor, em paralelo com a obra
cinematográfica de Zhang Yimou a partir da estrutura patriarcal de gênero, podemos
elencar algumas considerações sobre as questões apresentadas: a mecânica de
funcionamento da estrutura patriarcal independe da presença do patriarca, ou seja,
se o Deus é assexuado não impossibilita que os colaboradores desta máquina
azeitada, conforme afirmação de Safiotti (2004) operacionalizem-na; outra colocação
possível diz respeito à estrutura patriarcal na qual, se a masculinidade do símbolo a
ser seguido em termos de sexualidade é questionável, conforme as colocações de
Eilberg-Schwartz, como então se sustenta a estrutura do patriarcado se não pela
funcionalidade do habitus conforme descrito por Bourdieu?
Portanto, são para as mulheres, nesta estrutura patriarcal de gênero, onde a
máquina se torna quase que autônoma, que a socialização, segundo Bourdieu
(1995) tende a diminuí-las, a negá-las, tendem a fazerem da aprendizagem uma das
virtudes negativas da abnegação, da resignação e do silêncio [...]”, (BOURDIEU,
1995, p. 63).
47
Com relação aos homens, estes ainda segundo Bourdieu “[...] também estão
prisioneiros e, sem se aperceberem, vítimas da representação dominante”
(BOURDIEU, 1995, p. 63).
Assim, o privilégio masculino é também
uma cilada e encontra sua contrapartida na tensão e contensão
permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõem a todo homem o
dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade
(BOURDIEU, 1995, p. 64).
Em sua obra Dominação Masculina, Bourdieu (1995) retoma sua análise
sobre Cabília, sistematizando-a.
A análise do autor explica como as diferenças sexuais sustentam a prática e
naturalizam as diferenças de forma que a relação de dominação se encontra,
segundo Bourdieu (1995), na base de um sistema de relações interdependentes da
relação de poder.
Bourdieu, com insistência, reafirma que a dominação masculina está
estruturada em nosso inconsciente, está estruturada tanto nas estruturas simbólicas
como nas instituições sociais e desta forma mostra como o sistema social consagra
uma ordem patriarcal, cuja ordem patriarcal se constrói através do corpo que, na
obra de Bourdieu, aparece como um artefato tanto físico, quanto simbólico, com
prazeres e desejos diversos. Todo o social é vivenciado pelo corpo, corpo este que
pensa e sente” (BOURDIEU, 1995, p. 74).
Se, para Bourdieu (1995), o processo de dominação impõe a “masculinidade
aos corpos dos machos humanos e a feminilidade aos corpos das fêmeas humanas,
num processo de inculcação sexualmente diferenciado e diferenciador” (BOURDIEU,
48
1995, p. 82), Dimen, que também compartilha desta perspectiva, afirma que o
“patriarca ataca o desejo” (DIMEN, 1997, p. 46), ou seja, nega os corpos, nega a
sexualidade, utilizando o desejo para garantir o patriarcado, de forma tal que ambos
os autores naturalizam os corpos e neste processo, caracterizam a sexualidade
como eixo norteador nas relações patriarcais de gênero.
4
3.5 CELIBATO: UMA CONSTRUÇÃO PATRIARCAL
Deste modo, o celibato conforme descrito pelo Código de Direito Canônico, se
configura como um dos mecanismos de funcionamento da estrutura patriarcal de
gênero presente na Igreja Oficial, de tal modo que, assim como o celibato, o
patriarcado se constrói e se representa como uma expressão de poder.
Retomando a afirmação de Bourdieu, de que a dominação masculina está
estruturada em nosso inconsciente, está, portanto, nas estruturas simbólicas e nas
instituições sociais, e deste modo, demonstra, como o sistema social consagra a
ordem patriarcal, torna-se importante, mesmo que de forma breve e a partir de um
recorte teórico, compreender como esta ordem patriarcal subsidia a dominação
masculina e justifica o celibato não como uma oferta, mas, sobretudo como uma
imposição e neste sentido, pode ser compreendido como uma construção patriarcal.
4
A abordagem sobre como o corpo e a sexualidade do homem e da mulher são utilizados pela
estrutura patriarcal de gênero e como estes se inter-relacionam com o celibato será abordado no
quarto capítulo desta dissertação.
49
Assim, o judaísmo antigo é um contexto particularmente adequado para
explorar este aspecto do celibato como uma construção patriarcal. Segundo Eilberg-
Schwartz (1995) é, no monoteísmo judaico, que a imagem de uma divindade
masculina sustenta esta ordem patriarcal.
Assim, é no judaísmo antigo monoteísta que a tradição religiosa definiu a
aceitação do relacionamento de um Deus pai, masculino, um Deus imaginado como
marido de Israel e que, segundo Eilberg-Schwartz (1995), denota o princípio de toda
esta construção da idéia patriarcal.
Vê-se, portanto, neste contexto,que a idéia da masculinidade do ser humano
do sexo masculino numa relação com um Deus masculino evoca um primeiro
dilema: o homoerotismo e por conseqüência a desmasculinização do povo de Israel.
Mas, qual a inter-relação do homoerotismo e da desmasculinização de Israel
com o celibato como uma construção patriarcal? Como exatamente esta relação se
imbrica se constrói? Antes, porém, de compreender esta interface parece adequado
compreender, primeiro, o dilema do homoerotismo e a desmasculinização como
princípio gerador desta ordem patriarcal.
Segundo Eilberg-Schwartz (1995) esta desmasculinização não teria sido
problemática se, no judaísmo antigo, a cultura não fosse definida pela descendência
pratrilinear. Como, então, suplantar esta relação homoerótica entre um Deus
masculino e o povo masculino de Israel?
A descrição mítica do dilúvio serve a nosso propósito e possibilita
compreender como a dominação masculina de forma institucionalizada e simbólica
50
está presente em nosso inconsciente, cuja definição do celibato pode ser
compreendida não como uma proteção da herdade de acordo com a lógica do
direito, mas como uma construção do poder patriarcal da Igreja de Roma, assim
como também esclarece e redireciona a relação homoerótica entre um Deus
masculino e o povo de Israel.
O mito revela que as águas do dilúvio baixaram e que Noé, sua mulher, seus
filhos e as esposas dos seus filhos deixaram a arca. Noé planta uma vinha e se
embriaga; durante seu entorpecimento, ele deita nu em sua tenda. Quando Cam
adverte os seus virtuosos irmãos, eles dão as costas e desviam seus olhares.
Apesar de esta descrição mítica possibilitar diversas interpretações, inclusive
com a história impressionante em que Deus vira as costas para Moisés, uma
interpretação que serve ao nosso objeto muito nos interessa, no sentido de que o
relato mítico da nudez de Napós o dilúvio e o desviar do olhar dos seus filhos,
mesmo que possa ser entendido como uma forma de respeito ao pai, ou ainda
segundo alguns historiadores antigos, o desviar dos olhares procurarem assegurar
que o desejo heterossexual é a norma, denota que a exposição dos corpos precisa
ser preservada, protegida.
A nudez pode ser entendida como um movimento de sexualidade, e esconder
os corpos traduz a negação desta intenção. Assim, podemos entender que a
desmasculinização do povo de Israel e a possibilidade de uma relação homoerótica
entre este povo e um Deus masculino, dilema originalmente colocado, perde força e
51
sentido no momento em que os corpos destes filhos são negados, conforme relato
mítico da nudez de Noé, os corpos dos homens de Israel.
Assim, esconder o próprio corpo traduz a possibilidade de compreender que
ao negar, ou reforçar a improbidade de ver os corpos dos filhos de Deus, é por
conseguinte, negar o próprio corpo de Deus, pois se o homem é a imagem e
semelhança de Deus, negar os corpos dos filhos de Deus é reforçar a idéia de que
Deus não tem corpo.
Deste modo, a possibilidade homoerótica entre Deus e seus filhos se esvazia
e perde sentido: Deus não tem corpo e, não tendo corpo impossibilita uma relação
homoerótica e, por conseqüência, a masculinidade do povo de Israel é reconstruída.
Assim segundo Eilberg-Schwartz (1995, p. 41) “[...] se voltarmos a atenção ao
divino, descobrimos que muita informação se encontra disponível sobre o gênero de
um Deus monoteísta, mas o sexo deste Deus está cuidadosamente ocultado”.
Portanto, o dilema do homoerotismo e da desmasculinização do povo de
Israel, agora desmistificado oferece um novo modelo de explicar a difamação das
mulheres. Segundo Eilberg-Schwartz (1995), Deus é masculino por definição, sem
sexo, a masculinidade passando, então, a ser a norma. As mulheres passam, por
definição, a ser o diferente.
Portanto, o Deus que caracterizou o judaísmo rabínico, caracterizou as
mulheres como diferentes e celebrou um pacto de patrilinearidade e identidade entre
um Deus masculino e a sua imagem e semelhança, também masculina. Eilberg-
Schwartz afirma, ainda, que este pacto masculinizante entre Deus e os homens “[...]
52
permitiu aos homens agirem cada vez mais como seu pai” (EILBERG-SCHWARTZ,
1995, p. 241).
O mito do nascimento imaculado de Jesus, ainda segundo Eilberg-Schwartz
(1995) assinala, assim, uma nova atitude em relação ao significado da
masculinidade. Agora, os homens teriam novas atitudes em relação a seus corpos e
à sexualidade. A procriação e a sexualidade foram feminizadas.
Nos dizeres de Eilberg-Schwartz (1995), a imaginação cristã, com o
nascimento de Cristo, reforçou a divindade masculina e confirmou a configuração da
masculinidade na comunidade religiosa. O divino o tem corpo, não tem
sexualidade, os homens constituem agora a reprodução da imagem e semelhança
de Deus, reforçada pela semelhança entre os homens e o filho de Deus. A relação
dos homens com a divindade segundo o autor, “[...] reforça a associação da
feminilidade com a subordinação” (EILBERG-SCHWARTZ, 1995, p. 32).
Portanto, às mulher foram atribuídas funções procriadoras, garanti,do e
preservando, deste modo, ao homem a sexualidade. Como, então, associar o corpo
e a sexualidade humana existente e concreta com um divino sem corpo e
assexuado?
Agora, podemos compreender, numa outra perspectiva, a imposição do
celibato, que se configura como este mecanismo de controle direto da sexualidade
dos homens. Se aos homens foi permitida a sexualidade, no momento em que Deus
tornou-se incorpóreo, então, como aproximar o homem a Deus?
53
Entendemos que é exatamente neste ponto que o celibato se configura como
um instrumento de aproximação do homem com Deus. Entretanto, para construir
esta possibilidade de ascese, o celibato, num sentido contrário, precisou afastar o
homem da mulher, isolando-a. Mas, e em relação às mulheres celibatárias? Se o
homem é a imagem e semelhança de Deus, parece-nos pertinente afirmar que a
mulher o o é. A mulher não se assemelha em vários sentidos. O seu corpo difere
do corpo do homem. Às mulheres, originalmente, foram atribuídos papéis: da
procriação, reprodução. A matrilinealidade garante apenas o poder terreno, pois a
relação do divino masculino é simbiótica apenas com os homens.
Nesta tríplice relação Deus, homem e mulher, a ela, - a mulher é atribuído
um papel, o outro desta relação. À mulher ficou o papel de subordinação. o basta
ser celibatário, precisa ser do sexo masculino.
Assim, o celibato que pode ser compreendido como um instrumento
conjugado no masculino é, portanto, uma construção patriarcal e que controla a
sexualidade masculina a partir do isolamento do homem em relação à mulher,
afastando-a. Mas não só, ao afastar a mulher, nega, por conseqüência, a
sexualidade dele próprio de tal modo que, neste sentido, conforme citado por
Bourdieu, ambos são vítimas da própria estrutura dominante, de tal forma que a
máquina patriarcal da Igreja Oficial, por meio do celibato, funciona
independentemente de quem é dominante ou dominado. Prevalece a norma.
Apesar de a mulher ter ficado com a responsabilidade de reprodução,
também o celibato, pelo fato de negar a sexualidade da mulher, controla uma das
54
suas principais características, a sua capacidade de reprodução, capacidade de
gerar a vida, ou seja, controlando a sua capacidade reprodutiva, pela negação do
corpo do homem, de certo modo novamente inferioriza esta mulher, pois lhe retira
uma das suas principais capacidades, a reprodução da vida, pois a torna assexuada,
no momento em que a isola.
55
III CAPÍTULO
4 CELIBATO: DA OFERTA À IMPOSIÇÃO
4.1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
Muito instrutivo seria, embora demasiado longo, o estudo dos documentos
históricos sobre o celibato eclesiástico. Todavia, é a partir da definição apresentada
no Concílio Ecumênico Vaticano II (1965) que o Código de Direito Canônico - define
a prática obrigatória do Celibato aos clérigos de forma perpétua e perfeita.
Desde os inícios do século IV, a Igreja Oficial do Ocidente, por meio das
decisões de vários Concílios e dos Sumos Pontífices, proclamou, difundiu e
sancionou esta prática.
Foram os supremos Pastores e Mestres da Igreja quem promoveram e
defenderam o celibato eclesiástico no percurso histórico. Entretanto, a obrigação
solene do celibato, que se iniciou pelo Concílio Ecumênico de Trento (1545), é
ratificada em definitivo pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, é, por fim, inserida no
Código de Direito Canônico.
É importante, aqui, ressaltar que a legislação da Igreja Oriental em matéria de
disciplina celibatária para o clero, conforme foi estabelecido no Concílio Trulano do
56
ano 692, e abertamente reconhecido pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, difere da
igreja Oficial do Ocidente.
Outro importante ponto a ser esclarecido e que merece ser observado, é que
mesmo no Oriente, somente os sacerdotes celibatários são sagrados bispos, e
nunca os sacerdotes podem contrair matrimônio depois da ordenação, o que sugere,
até certo ponto, o princípio do sacerdócio celibatário também se aplica à igreja do
oriente.
Assim, do século quatro em diante, a questão do celibato surge no seio da
Igreja e é a partir do Concílio de Nicéia, em 325, que se formula a decisão de que os
ministros da Igreja não poderiam casar depois de ordenados. Isto, porém, não
impedia a ordenação de homens que já fossem casados.
O Concílio espanhol de Elvira em 304 criou decretos contra o casamento do
clero. Estes decretos, entretanto, foram de extensão limitada e quase nenhum
esforço mais sério foi feito para pô-los em vigor. Inocêncio I, ano 417, decretou o
celibato dos sacerdotes, mas não teve aceitação geral.
Patrício da Irlanda, que morreu em 461, considerado santo pela Igreja de
Roma, declarou que o seu avô era padre. Mas a Igreja Católica Romana foi
persistente na exigência de um sacerdócio celibatário, tanto que, no ano de 1079,
sob a mão forte de Gregório VII Ildebrando di Bonizio, o celibato foi novamente
decretado e foi razoavelmente posto em vigor.
Os papas Urbano II (1088-1099) Odon de Logery e Calixto II (1119-1124)
Guide Borgonha, arcebispo de Viena lutaram com determinação contra o as
57
relações extra matrimoniais do clero. O decreto do Primeiro Concílio de Latrão
(1123), invalidou o casamento de todos aqueles que estavam nas ordens sacras, e o
Concílio de Trento (1545) fez sérios pronunciamentos sobre o celibato do clero.
Conforme estes pronunciamentos, um sacerdote romano que se casasse
incorria na excomunhão e ficava impedido de todas as funções espirituais. Um
homem casado, que desejasse vir a ser um sacerdote, tinha que abandonar sua
esposa, e esta também tinha de assumir o voto de castidade ou ele não poderia ser
ordenado padre.
Na carta do Papa Siríaco a Himério de Tarragona, no ano de 385, uma
clara fundamentação da proibição:
É um crime ainda gerar filho muito tempo depois da ordenação, mesmo da
própria esposa [...] estejam todos os padres e levitas obrigados, por uma lei
indissolúvel, a consagrar-se à castidade de coração e de corpo desde o dia
da ordenação [...] pelo que o ato da geração é tido como impuro, sejam os
transgressores afastados do estado sacerdotal e nunca mais possam
celebrar os sagrados mistérios dos quais eles mesmos se privaram, ao
satisfazerem apetites obscenos (NETO, 2001, p. 4)
É bom ressaltar que o Concílio de Trento (1545) não decretou nenhuma lei
nova sobre o celibato, apenas confirmou o que está em vigor até os dias de hoje. A
Igreja de Roma apenas reafirmou, no Concílio Vaticano II e, repetidamente, nos
sucessivos Magistérios Pontifícios, a firme vontade de manter a lei, que exige o
celibato livremente escolhido e perpétuo para os candidatos à ordenação sacerdotal
no rito latino.
58
O Concílio Ecumênico Vaticano II, em sua versão final, trata, pois, do celibato
em dois decretos: Decreto Optatam Totius
5
no qual afirma devem os clérigos
compreender a excelência da virgindade consagrada a Cristo e
sejam prevenidos contra os perigos que ameaçam a sua castidade,
sobretudo na sociedade do nosso tempo. [...] não venham a sofrer
detrimento algum por causa do celibato, mas adquiram mais alto domínio
do corpo e da alma [...] (DOCUMENTOS DO CONCÍLIO VATICANO II,
1997, p. 308).
E o Decreto Presbyterorum Ordinis
6
no qual afirma que o celibato harmoniza-
se com o sacerdócio e, pela primeira vez, coloca a questão do celibato não como
uma oferta, mas, sobretudo, como uma imposição.
Por todas estas razões, fundadas no ministério de Cristo e na sua missão,
o celibato, que a princípio era apenas recomendado aos presbíteros,
depois da Igreja Latina, foi imposto,
7
por lei, a todos aqueles que deviam
ser promovidos às Ordens sacras. [...] Por isso este sagrado Concílio pede
não somente aos presbíteros, mas também a todos os fiéis, que tenham a
peito este dom precioso do celibato sacerdotal e supliquem a Deus que o
confira sempre abundantemente à sua Igreja (DOCUMENTOS DO
CONCÍLIO VATICANO II, 1997, p. 526-527).
Assim, o celibato é construído a partir do Concílio Vaticano II e se rege na
norma constante no Código de Direito Canônico, em seus cânones 277 e 599.
4.2 ESTRUTURA E INTERPRETAÇÃO DOS CÂNONES 277 E 599
O Código de Direito Canônico em vigor se divide em sete livros e compreende
um total de 1752 cânones, assim distribuídos:
5
Opção de todos.
6
Presbitério Ordinário.
7
Eu grifei.
59
Livro I - Das Normas Gerais - trata das Leis e Costumes eclesiásticos, dos
Decretos Gerais e Instruções, dos Estatutos e Regimentos, dos Ofícios
Eclesiásticos.
Livro II - Do Povo de Deus - trata das obrigações e direitos de todos os fiéis
(clérigos e leigos), das Associações de fiéis, da estrutura hierárquica da Igreja, da
organização interna das igrejas particulares, dos Institutos e Sociedades religiosas e
seculares.
O Livro III - Do Múnus de Ensinar da Igreja - trata do Ministério da Palavra, da
Ação Missionária, da Educação escolar, dos Meios de Comunicação Social e dos
Livros.
Livro IV - Do Múnus de Santificar da Igreja - trata dos Sacramentos, do Culto
Divino, do Culto dos Santos e das Imagens Sagradas, dos lugares e tempos
sagrados. O livro V - Dos Bens Temporais da Igreja que trata da aquisição,
administração, alienação dos bens eclesiásticos em geral.
O livro VI - Das Sanções na Igreja, trata dos delitos e das penas em geral, do
processo penal, da aplicação e cessação das penas, dos diversos tipos de delitos e
por último o livro VII trata dos Processos e dos diversos foros e tribunais, dos
julgamentos, das ações e exceções, das causas e dos recursos, das declarações de
nulidade do matrimônio e das ordenações, trata ainda dos processos administrativos
e dos recursos apresentados nestes processos.
É esta estrutura legal que rege as normas da Igreja Católica e dentre estas
normas, agora fundamentadas na perspectiva do Direito, a imposição completa e
60
irrestrita do celibato como pressuposto, fundamental, dentre outros, para a obtenção
de todos os sacramentos da ordem.
Observando que os cânones 277 e 599 que tratam e definem o celibato para
os clérigos e religiosos da Igreja Oficial, aqui nosso principal fio condutor, pertence
ao Livro II - Do Povo de Deus e que trata das obrigações e direitos de todos os fiéis
(clérigos e leigos) e rezam:
Cânon 277:
Os clérigos são obrigados a observar a continência perfeita e perpétua por
causa do Reino dos us; por isso, são obrigados ao celibato, que é um
dom especial de Deus, pelos quais os ministros sagrados podem mais
facilmente unir-se a Cristo de coração indiviso e dedicar-se mais livremente
ao serviço de Deus e dos homens (CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO,
1997, p. 125)
O cânon 599, que também trata das questões relacionadas ao celibato, não
deixa claro a quem se destina a orientação evangélica da castidade. Entretanto,
como este non é referenciado pelo cânon 277 entendemos que as orientações
contidas no cânon 599 dizem respeito aos religiosos do sexo masculino.
O conselho evangélico da castidade. Assumido por causa do Reino dos
céus e que é sinal do mundo futuro e fonte de maior fecundidade num
coração indiviso, implica a obrigação da continência perfeita no celibato
(CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 1997, p. 279).
Inicialmente, a interpretação dos cânones 277 e 599 chamam a atenção pelas
expressões: obrigado e obrigação, o que denota, ao contrário da oferta, uma
imposição clara da norma. Logo, o celibato não pode se configurar como uma oferta,
61
pois esta pressupõe a aceitação ou não. Sugere, portanto, que o celibato é uma
imposição, pois os clérigos são obrigados e têm a obrigação de aceitar a norma.
Neste sentido, também fica claro que a aceitação da norma significa o
afastamento, por parte dos clérigos, do outro. O outro do homem é a mulher.
Outra interpretação possível diz respeito à associação do celibato a uma
oferta especial de Deus. Esta oferta, apesar de definida como uma obrigação,
porquanto o indivíduo não pode se recusar a recebê-la, possibilita concluir que o
indivíduo, que não for celibatário, não receberá o dom especial de Deus, que ainda
segundo o cânon, é a possibilidade de mais facilmente unir-se a Cristo.
Portanto, quem não se submeter a esta oferta, certamente terá mais
dificuldades em receber o dom especial de Deus e, por conseguinte, terá também
mais dificuldades em unir-se a Cristo, que o instrumento facilitador está
condicionado ao cumprimento da norma, ser celibatário.
Com relação à expressão coração indiviso, pode-se perceber que a Igreja
sugere a abstinência completa de qualquer outra relação que não seja com Cristo,
afirmando que a fecundidade do amor em Cristo é possível quando se conta com
um coração não-dividido e, neste sentido, reforça a necessidade do afastamento do
outro, que, conforme já dissemos, é a mulher.
Ainda na tentativa de compreender os cânones, é importante ressaltar que
estes definem não apenas o celibato, mas também a obrigatoriedade da continência
perpétua e perfeita, algo mais profundo, pois:
62
comporta a abstenção de todo ato interno ou externo contra o sexto e o
nono decálogo; e também a abstenção do uso do matrimônio (CÓDIGO DE
DIREITO CANÔNICO, 1997, p. 126).
Assim, a norma que define o celibato, também define de forma indireta o
matrimônio,
8
o que em outras palavras, legisla em todos os aspectos que envolvem
a relação homem mulher.
Há, portanto na definição do celibato conforme descrito pelo Código de Direito
Canônico um vínculo entre o que define a lei e para quem se destina neste caso ao
masculino.
[...] não resta dúvidas de que leis formuladas dentro de uma cultura que
Derrida chamou de falocêntrica apoiaram e estimularam a valorização
social do lugar simbólico representado pela masculinidade (OLIVEIRA,
2004. p. 66).
Ainda segundo Oliveira (2004), muitas leis expressam, de modo claro e
evidente, a condição legal do poder masculino, de forma que aqueles que não se
enquadram sofrem sanções.
Os numerosos documentos publicados pelos últimos papas, sobretudo a
Carta Encíclica Sacerdotalis coelibatus
9
, em 24 de junho de 1967, de Paulo VI,
fazem menção clara do objetivo do celibato e dos propósitos do suposto voto,
O celibato sacerdotal, que a Igreja guarda desde séculos como brilhante
pedra preciosa, conserva todo o seu valor mesmo nos nossos tempos,
caracterizados por transformação profunda na mentalidade e nas estruturas
(PAULUS PP. VI, 1967, p. 1)
Também descreve o Papa Paulo VI, em sua Carta Encíclica:
8
Sobre o matrimônio dos clérigos, a Igreja Latina prevê esta possibilidade, descrevendo os processos
a serem seguidos, caso o clérigo deseje contrair matrimônio. Também descreve as condições e
prerrogativas do matrimônio dos clérigos da Igreja Oriental. Sobre esta abordagem ver: Código de
Direito Canônico, São Paulo: Loyola, 1997.
9
Celibato Sacerdotal
63
Julgamos, portanto que a lei vigente do celibato consagrado deve, ainda
hoje, acompanhar firmemente o ministério eclesiástico; deve tornar possível
ao ministro a sua escolha, exclusiva, perene e total, do amor único e
supremo de Cristo e a sua dedicação ao culto de Deus e ao serviço da
Igreja, e deve ser característica do seu estado de vida, tanto na comunidade
dos fiéis como na profana (PAULUS PP. VI, 1967, p. 4).
E a mesma Carta Encíclica apresenta segundo o Sumo Pontífice as
verdadeiras razões para o celibato:
A verdadeira e profunda razão do celibato é, como dissemos, a escolha
duma relação pessoal mais íntima e completa com o mistério de Cristo e da
Igreja, em prol da humanidade inteira. Nesta escolha lugar, sem dúvida,
para a expressão dos valores supremos e humanos no grau mais elevado
(PAULUS PP. VI, 1967, p. 13).
Inclusive o Decreto Presbyterorum Ordinis,
10
número 16, fala da aceitação
livre do celibato por parte dos candidatos à ordenação, supondo assim uma
obrigação intrínseca.
Por todas estas razões, fundadas no mistério de Cristo e na sua missão, o
celibato, que a princípio era apenas recomendado aos sacerdotes, depois
foi imposto por lei na Igreja latina a todos aqueles que deviam ser
promovidos às Ordens sacras. Este sagrado Concílio aprova e confirma
novamente esta legislação no que respeita àqueles que se destinam ao
presbiterado, confiando no Espírito Santo que o dom do celibato, tão
harmônico com o sacerdócio do Novo Testamento, será dado liberalmente
pelo Pai, desde que aqueles que participam do sacerdócio de Cristo pelo
sacramento da Ordem, e toda a Igreja, humildemente e insistentemente o
peçam (DOCUMENTOS DO CONCÍLIO VATICANO II, 1997, p. 491).
A Carta Encíclica Sacra Virginitas
11
, do Papa Pio XII, trata exclusivamente da
importância da virgindade e, por conseqüência, do celibato entre os clérigos e
estende esta orientação a todos. "Antes de mais, é preciso notar que o essencial da
doutrina sobre a virgindade o recebeu a Igreja dos próprios lábios do divino" (PIO
PP. XII, 1954, p. 3) e que se pode afirmar, recebeu dos lábios de Cristo.
10
Presbitério Ordinário.
11
A sagrada virgindade.
64
Ou seja, as orientações que a Igreja recebeu, são oriundas do transcendente
- masculino, do esposo e deixa clara a construção patriarcal do celibato.
Mas, não uma construção patriarcal, também um discurso contra o próprio
corpo e contrário ao corpo da mulher:
[...] o divino Mestre não trata dos impedimentos sicos do casamento, mas
da resolução livre e voluntária de quem, para sempre, renuncia às núpcias
e aos prazeres da carne. [...] Acerca dos homens que não se
contaminaram com mulheres, pois são virgens (PIO PP, XII, 1954, p. 8 -
16).
Mas, apesar dos diversos documentos se referirem ao celibato como uma
opção de vida, a sua não-aceitação e seu não cumprimento de forma completa e
irrestrita, impossibilita qualquer sacerdote de sê-lo, logo, não é certamente uma
oferta a qual o indivíduo pode ou não aceitar. Trata-se de uma imposição, pois é
uma condicionante de acesso e manutenção às ordens do sacramento, ou seja, o
sacerdote que optar pelo matrimônio, logo rejeita o celibato, não deixa de ser padre,
mas fica impossibilitado de exercer os sacramentos da ordem.
É igualmente singular o que reza o cânon 1037, do digo de Direito
Canônico que, apesar de não definir as questões relativas ao celibato, reza sobre a
obrigação de assumir publicamente antes da ordenação a sua vocação para o
celibato.
O candidato ao diaconato permanente, não casado, e o candidato ao
presbiterato não sejam admitidos à ordem do diaconato sem que antes, com
o rito prescrito, tenham assumido publicamente perante Deus e a Igreja a
obrigação do celibato [...] (CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 1997, p.
457).
65
Também é importante ressaltar as razões, segundo a Igreja, para a lei do
celibato. Segundo o Código de Direito Canônico, são três as razões: as de caráter
cristológico, eclesiológico e escatológico.
A razão cristológica se baseia na escolha de Cristo. O caráter escatológico da
lei sugere o celibato como um sinal do estado definitivo e as razões de caráter
eclesiológico do celibato se justificam na maior disponibilidade de tempo de
dedicação à Igreja.
Apesar de todas as razões apresentadas pela Igreja se complementarem, é a
primeira razão, a cristológica, que nos interessa e serve ao nosso estudo.
Esta razão, que está baseada na escolha de Jesus Cristo, justifica-se,
segundo o Código, pelo fato de "[...] ter Cristo escolhido um gênero de vida
continente e ter manifestado sua predileção pela Mãe Virgem e pelo discípulo
virgem." (CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 1997, p. 127). Assim, a definição
legal do celibato não afasta a mulher da igreja, mas, sobretudo afasta a mulher
do homem, a partir do momento em que obriga o homem a esta condição.
Outra interpretação possível do ângulo do caráter cristológico do celibato é
que sua definição, em que pese a legalidade, é uma escolha do sobrenatural pelo
gênero masculino virgem e pela mulher, virgem, de forma que, neste sentido, a
sexualidade é algo desconsiderado, ou ainda mais, desnecessário, pois a sua
presença invalida a possibilidade de o homem unir-se a Cristo, conforme descrito no
cânon 277 - §1 do Código de Direito Canônico.
66
4.3 MARIAS: UMA RELEITURA DO CÂNON
A Igreja Católica, segundo Reimer (2005), possui quatro dogmas marianos:
Maria, a e de Deus; Maria é virgem antes, durante e depois do parto; Maria foi
concebida sem pecado original e Maria é assunta ao céu, sendo que os dois
primeiros também estão presentes em algumas Igrejas não católicas. “Fazem parte
da tradição cristã ecumênica.” (REIMER, 2005. p. 93).
O primeiro dogma, Maria, mãe de Deus, aprovado pelo Concílio de Éfeso, em
431, afirma, segundo Reimer (2005), que a encarnação de Cristo tornou-se
verdadeira através do seu nascimento.
[...] foi elaborado em reação a cristologia nestoriana, que afirmava a
maternidade de Maria vinculada estritamente à natureza humana de Cristo.
[...] fez surgir um reavivamento ou questionamento das tradições da Deusa
Mãe, presentes em tradições religiosas naquele contexto (REIMER, 2005,
p. 93)
Maria é virgem antes, durante e depois do parto é o segundo dogma mariano,
que caracteriza a virgem eterna, aprovado pelo Concílio em Constantinopla, em 553,
e promulgado pelo Concílio Lateranense, em 640. Nele se afirma a virgindade de
Maria, antes, durante e após o parto de Cristo, conforme Reimer (2005).
O terceiro dogma mariano, somente católico, é o dogma da Imaculada
Conceição, declarado mediante bula papal, em 1854, pelo Papa Pio IX, que,
segundo Reimer (2005), sofre críticas, pois possui total ausência de provas, tanto na
Escritura como na tradição.
67
O quarto e último dogma mariano, Maria é assunta ao céu, também somente
católico, foi aprovado em 1950, pelo Papa Pio XII. “Afirma-se que Maria é a primeira
e única pessoa que já subiu aos céus, e o fiel pode a ela dirigir sua oração”
(REIMER, 2005, p. 95).
Interessa observar que dos dogmas marianos, dois chamam a atenção em
especial ao nosso recorte teórico: o dogma da Imaculada Conceição e o dogma de
que Maria é virgem antes, durante e depois do parto. No dogma que trata da
virgindade de Maria, a figura feminina é reconstruída, ou seja, Maria foi escolhida
para dar à luz Cristo e, apesar desta evidência da sexualidade, esta é negada a
partir do momento em que Maria engravida, gera uma criança, à luz e mesmo
assim se mantém virgem, antes, durante e depois do parto.
Esta reconstrução do feminino vai ao encontro da razão cristológica, que
também justifica a obrigatoriedade do celibato, ou seja, para o feminino unir-se a
Cristo, assim como o masculino, é necessário afastar a sexualidade, aqui traduzida
e configurada pelo celibato masculino que, uma vez praticado de forma perpétua e
perfeita, afasta a mulher e não apenas, em uma perspectiva diferente, mantém esta
mesma mulher em situação de virgindade, logo excluí a sexualidade em prol de uma
ascese.
O dogma da Imaculada Conceição, onde a própria Maria tem origem virginal,
sendo portanto, segundo Reimer (2005, p. 94) "[...] livre do pecado original e
podendo ser a Mãe de Deus, sem”mácula"”. se reflete, segundo Reimer (2005,
68
p. 94), "[...] a idéia de Agostinho, para quem o pecado original está vinculado com a
sexualidade [...]".
Também nesta reconstrução da figura feminina em Maria, há algo que merece
atenção. A mulher reconstruída é divinizada e para ser divina possui diferentes
atributos das demais Marias. "[...] ela aparece totalmente "celibatária", isto é,
concebeu Jesus sem fazer sexo" (REIMER, 2005, p. 95). Deste modo, o celibato
clerical afasta a mulher porque isola o homem, e a inclusão da mulher só se a
partir da reconstrução de uma imagem, que atenda às exigências do celibato
masculino, a virgindade da mulher.
Assim, a mulher é excluída e incluída, apesar de se manter isolada no formato
homem celibatário, mulher virgem. Isto porque os Pais da Igreja, na Antiguidade,
dentre eles Agostinho "[...] entenderam a virgindade no sentido de negar a
sexualidade feminina, tornando-a negativa [...]" (REIMER, 2005, p. 97).
Diante de Maria, imaculada, virgem sem pecado original, virgem antes,
durante e depois do parto, todas as demais Marias que vivem a sua sexualidade
são diminuídas, relegadas, colocadas no âmbito do privado.
Sanchis (1994), quando da sua análise sobre o avanço das igrejas
neopentecostais na América Latina e, em especial, no Brasil, aponta razões para
este avanço, que o autor denominou de o repto pentecostal à cultural católico-
brasileira, apresenta, dentre outros motivos, uma postura inadequada da Igreja
Católica em relação às mulheres. Segundo o autor o crescimento das Igrejas
pentecostais nas décadas de 1970 e 1980 e das denominadas neopentecostais
69
deste a década de 1990, deve-se aos elementos estruturais da Igreja Oficial,
nomeadamente com relação aos ministérios.
A igreja faz questão de excluir metade da população do acesso as suas
funções ministeriais - dizia-me um teólogo. Na outra metade, escolhe uma
ínfima minoria de celibatários , que isola durante sete anos de formação
(SANCHIS, 1994, p. 40).
Deste modo, o celibato, que é feito por homens e para homens, relega as
mulheres e mesmo as mulheres celibatárias o são por condição ou se o são por
opção, não gozam das mesmas prerrogativas masculinas. Conforme Sanchis
(1994), não possuem acesso às mesmas funções ministeriais, são mantidas à
margem, incluídas de forma parcial. Assim o "[...] o deus dos homens é um macho,
tudo o que é mais sagrado, mais solene e mais decisivo exige um padre, os irmãos
do Santíssimo Sacramento [...]" (BRANDÃO, 2004, p. 248).
Enquanto o masculino, segundo Oliveira (2004) simbolizava o progresso, "[...]
o feminino deveria expressar a castidade, a pureza [...]" (OLIVEIRA, 2004, p. 71).
As outras Marias surgem desta construção de um espaço masculino
valorizado, de forma que o feminino é posto em segundo plano, primeiro porque não
negaram a sua sexualidade, não são celibatárias e porque não foram divinizadas,
muito pelo contrário, foram rotuladas, marginalizadas pelos atributos que lhes são
próprios: humanas e 'totais'
12
.
Dentre outras Marias, Maria de Magdalena conhecida no imaginário e na
tradição, segundo King (1998, p. 335), "[...] como a prostituta arrependida, como a
12
O termo total aqui utilizado refere-se a todas às mulheres que não negam o próprio corpo e os seus
desejos. Não fogem da intimidade, do prazer do próprio corpo. Compreendem e praticam a
importância de ser uma pessoa integral, total. Sobre este e outros conceitos subjacentes ver
GÖSSMANN (1996).
70
adúltera que Jesus salvou [...] como a pecadora [...]", é uma das representantes das
outras Marias, que não virgens, não negam o próprio corpo e, portanto, são
historicamente rotuladas e excluídas. Segundo a autora, esta imagem é uma "[...]
exegese equivoca da [...] Maria discípula tornara-se a Maria prostituta" (KING, 1998,
p. 335).
Por volta do século VI, ainda segundo King (1998) a exemplo desta
reconstrução da mulher, de uma perspectiva patriarcal, o discurso do papa Gregório
Magno, no qual ele não apenas identifica Maria de Mágdala como a mulher
pecadora, tirou conclusões que iriam povoar o imaginário do Ocidente. "Aquela que
Lucas chama de mulher pecadora e João chama de Maria, nós acreditamos ser a
Maria de quem foram expulsos sete demônios [...]" (KING, 1998, p. 336).
Assim como outras mulheres, esta Maria torna-se pecadora por causa de
seus crimes sexuais. Portanto, "o cânon e a ortodoxia foram inventados, em parte,
para excluir as mulheres de posição de liderança e autoridade." (KING, 1998, p.
343)
Sem dúvida, esta Maria é resultante da construção patriarcal, da qual o
celibato se serve para afastar as mulheres e cujo fundamento, conforme King (1998)
é a construção de um modelo de sexualidade redimida, a partir de um script
masculino.
Juntamente com Maria de Mágdala, outras mulheres também moldaram
papéis possíveis neste script. Eva, a tentadora, aquela que originou o pecado, mas
antes de Eva, Lilith, a Lua Negra que, segundo Matos (s./d.), foi a primeira mulher de
71
Adão e paria pequenos demônios, "criada do mesmo que Adão, e não de sua
costela" (MATOS, s./d., p. 97). Lilith, a Lua Negra, é "uma mulher coberta de sangue
e saliva - mbolo do desejo" (SICUTERI, 1990, p. 45), numa clara alusão de que a
sexualidade feminina foi reconstruída e estereotipada segundo o modelo da figura
da mulher inspirada em Maria, mãe, Santa.
Pandora grega, ao abrir uma caixa, que continha todos os males. Helena,
Clitemnestra, Antígona
13
, que transgridem as leis da aristocracia grega; Jocasta,
vítima do desejo, que, segundo Matos (s./d.), procura justificar o incesto.
Também em outras tradições não católicas, no hinduísmo, por exemplo,
Vritra, que, segundo Croatto (2001) incorpora as forças do mal, mas é vencida por
Indra.
Na tradição mesopotâmica, este mesmo ofídico é personificado pelo dragão
feminino Tiamat, que segundo Croatto (2001), representava as forças caóticas,
vencidas por Mardukm, "Deus da Babilônia" (CROATTO, 2001, p. 170), aqui
masculino.
Assim, a mulher permeia todo o imaginário ocidental, que passou a "ensinar
que as mulheres existiriam para produzir e educar a geração seguinte [...] que elas
existem a título global unicamente para os homens" (SIMMEL, 1993, p. 212).
Logo, nesta ótica, o celibato, feito por homens e para homens, constrói o
papel da mulher como um ser inferior, à imagem e semelhança de Maria, a
Imaculada.
13
Sobre estas representações ver BRANDÃO (1991).
72
No Brasil, desde o início da colonização, a Igreja Católica, por intermédio de
diferentes mecanismos, tentou controlar o exercício da sexualidade. Segundo Lemos
(2005) uma das formas de obter informações a este respeito, quando da visita do
Santo Ofício, é a confissão. Segundo Croatto (2001), a confissão é um dos
componentes do sacrifício, "[...] e os sacrificantes devem submeter-se a certas
condições, como se lavar, usar determinadas vestes, fazer jejum, confessar os
pecados" (CROATTO, 2001, p. 368).
A perspectiva restritiva e normativa da Igreja católica, em relação à
sexualidade, tem, segundo Lemos (2005), marcado a história do Brasil a partir de
[...] diferentes formas de atuação, a Igreja tentou permanentemente manter
sua hegemonia na normatização da sexualidade da população brasileira
(LEMOS, 2005, p. 145)
Assim, embora de forma imbricada, a tradição moral sexual cristã, segundo
Machado (apud LEMOS, 2005, p. 147)
marcou negativamente a percepção da sexualidade humana [...]. Isso
porque condenou o desejo e o prazer sexuais, [...] imputou uma
inferioridade à mulher em relação ao homem, reduzindo-a a função de
procriação.
Logo a moral cristã descrita e traduzida através do celibato conforme o
Código de Direito Canônico, valida, legitima e mantém de forma persistente a idéia
de que a sexualidade, se não no sentido da procriação, portanto, associada ao
matrimônio, é pecado e deve ser evitada, logo,
É o nosso dever alertar que o uso do sexo fora do matrimônio é
irresponsável, fere a dignidade da pessoa humana, é contrário à Lei do
divino Senhor da Vida e, portanto, é pecado que deve ser evitado (CNBB,
2006).
73
Assim, as Marias o reconstruídas, algumas são incorporadas ao universo
masculino, outras simplesmente afastadas, estereotipadas, segundo aceitem ou
reajam à norma.
Se o matrimônio
14
representa uma possibilidade de inserção da mulher na
vida, da perspectiva religiosa, outra possibilidade é a opção pela vida religiosa e,
nesta opção, o celibato, a título do que ocorre com os homens, cujo isolamento
afasta-o da mulher, o celibato religioso afasta a mulher do homem e da própria
mulher.
A opção pela vida religiosa, por parte das mulheres, nem sempre foi como a
conhecemos nos dias atuais. Nos primeiros séculos da nossa história, Portugal, por
motivos econômicos, políticos e demográficos, restringiu e controlou a fundação de
conventos femininos no Brasil colônia.
Segundo Miranda (1999, p. 489)
a coroa portuguesa faz restrições a estas fundações porque não queria a
existência de mulheres celibatárias e consagradas, ao contrário, queria
garantir o crescimento e a hegemonia da população luso-brasileira na
colônia. Assim, os conventos eram uma ameaça aos projetos da metrópole
para a colônia.
Os conventos foram, pouco a pouco, aparecendo e, aos poucos, conseguiram
autorização Régia e puderam funcionar legalmente.
Se, por um lado, os conventos representam o local ideal para a clausura
daquelas mulheres que desejavam este recolhimento, também serviram,
14
Sobre o casamento Durkheim descreve que "[...] este regula a vida das paixões, criando um
equilíbrio moral que favorece o marido". (DURKHEIM, 1989, p. 60). Sua teoria sobre o casamento
perpassa uma análise sobre o divórcio de forma que o autor afirma que a mulher é protegida pelo
divórcio da irracionalidade do cônjuge e o casamento mantém o marido dentro da lei moral da
sociedade. E nesta ótica, segundo Durkheim (1989, p. 61) "é preciso que um dos sexos seja
necessariamente sacrificado, e a única solução é escolher o menor dos dois males"
74
como locais para abrigar mulheres "decaídas", violentadas, órfãs, viúvas
[...] e neste sentido desempenharam um papel de enclausuramento, de
afastamento obrigatório da vida em sociedade, uma vez que as mulheres
eram colocadas nesses locais por imposição dos pais, irmãos e maridos
(MIRANDA, 1999, p. 492).
Neste sentido, segundo Miranda (1999, p. 500), "era preciso vigiar sempre,
estar atenta nesta batalha com a ação do diabo, que se manifestava no próprio
corpo, através da gula, da vaidade, nos desejos sexuais".
A Igreja Reformada, cujo processo eclesial denominado romanização se inicia
com a proclamação da República e a separação legal entre Estado e Igreja,
15
foi
levado a cabo no Brasil por padres e bispos ditos reformadores que queriam colocar
ordem na casa e tinham uma visão negativa do catolicismo de tradição.
A reforma também chega aos conventos e a Igreja precisava de um público
mais dócil, que "aceitasse tranqüilamente o novo modelo, as novas regras e que por
outro lado, colaborasse na reprodução deste catolicismo reformado" (MIRANDA,
1999, p. 504).
Assim, além da tentativa de enfraquecer os homens para fortalecer o poder
clerical, a Igreja reformada viu nas mulheres freiras o perfil ideal para alargar o seu
poderio e fazer valer as orientações da nova Igreja.
Assumindo o modelo de mulher ideal como o da mãe e esposa e vendo
nela a primeira iniciadora da educação dos filhos e, portanto a
multiplicadora dentro do lar dos ensinamentos doutrinais e morais, a Igreja
torna as mulheres o alvo privilegiado da sua ão (MIRANDA, 1999, p.
504).
15
Sobre a separação entre o Estado e a Igreja, Rouquiè relata que apesar da Igreja Oficial ter
contribuído sobremaneira com a formação do Estado Nacional em meados do século XIX, esta
situação se inverte a partir da proclamação da República. Sobre a formação do Estado e o papel da
igreja ver ROUQUIÈ ( 1991).
75
Apesar da reforma da Igreja, à mulher foi mantida um papel privado,
submisso, "caracterizado por um modo de vida disciplinado, controlado e por serem
úteis à sociedade" (MIRANDA, 1999, p. 505). Assim, as Marias da Igreja se
reconstroem conforme um modelo ideal de mulher. Celibatárias ou não, são
mantidas à margem da própria Igreja. Não reconhece o próprio corpo pelo fato de
negá-lo, de negar a própria sexualidade, o prazer.
O conteúdo do celibato, agora canônico e, portanto, numa concepção
tradicional "implica sujeição e obediência" (TAMEZ, 1998, p. 372), não representa
nesta construção, prioridades macho ou fêmea. Indistintamente afasta, segrega,
isola indivíduos.
"O texto canônico se levanta contra a mulher de todos os tempos para sujeitá-
la e confiná-la à categoria de ser inferior" (TAMEZ, 1998, p. 372). Há, portanto, no
texto canônico, violência contra a mulher.
16
de tal forma que, "o texto sagrado se
impõe ao texto da vida; o corpo canonizado frente a um corpo secular" (TAMEZ,
1998, p. 372).
Esta misoginia clerical é "descrito como violento desgosto, como imagem da
decadência, a tal ponto que a presença física da mulher arrasta as almas dos
homens para a luxúria carnal e, assim, para a condenação eterna" (RUETHER,
1997, p. 74).
Nos escritos de Broomyard, apud Ruether, (1997, p. 73), "a mulher é descrita
como uma lápide pintada, que esconde um cadáver em decomposição".
16
Sobre a violência de gênero ver ERICKSON (1996) e BICALHO (2001).
76
Desta forma, e como reflexão para desfrutar de uma hierofania, que segundo
Eliade (2001, p. 26) é a manifestação do sagrado, a feminista Spretnak, apud
Croatto (2001, p. 173), relata que:
[...] a compreensão do divino é imanente, não se concentra em algum trono
distante de poder ou em um Deus celeste transcendente. Em vez de
aceitar a noção religiosa patriarcal de que devemos transcender
espiritualmente o corpo e a natureza
17
é possível apreender a
transcendência divina como a totalidade sagrada ou a infinita complexidade
do universo. [...] a metáfora da imanência divina e da totalidade sagrada
transcendente, expressa sua constante regeneração nos ciclos do corpo da
terra e compreende o mistério da diversidade na unidade.
O relato de Spretnak aborda um
[...] segundo aspecto da espiritualidade contemporânea. [...] a potenciação
experimentada pelas pessoas que chegam a compreender sua herança e
presença em termos de um "eu" cosmológico, de uma dimensão da
existência humana partícipe da realidade mais vasta. Tal potenciação é
muito diferente da idéia de exercer um "poder sobre", dominante, força
essa que unifica as construções sociais da cultura patriarcal (CROATTO,
2001, p. 173).
Assim o celibato possibilita recortes de interpretação. Se, para alguns, se
configura como uma estratégia da Igreja para proteger o patrimônio do clero
baseado no direito de herança, para outros, é um dom divino e a possibilidade única
de unir-se a Cristo de coração indiviso.
Também pode ser interpretado e percebido como forma de afastar e isolar o
homem religioso da mulher e que, neste sentido, serve a nosso objeto.
Deste modo, o celibato masculino afasta o homem da mulher, enquanto o
celibato feminino produz este afastamento num sentido contrário, ou seja, ao afastar
17
O sentido de natureza aqui expresso pela autora se refere não apenas às questões ecológicas,
mas também ao retorno ao natural, às origens, à terra, à mulher como natural, pertencente à natureza
originária.
77
a mulher do homem, o celibato da mulher afasta ela dela mesma à medida que esta
mulher não mais reconhece o próprio corpo, nega sua sexualidade, ignora o prazer.
Assim, o celibato masculino afasta o homem dele mesmo a partir do momento
em que o isola em relação ao outro, neste caso a mulher. Por outro lado a mulher
celibatária é triplamente afastada: primeiro, dela mesma, no momento em que esta
mulher tem o seu próprio corpo negado; depois, em relação ao outro, neste sentido,
do homem e finalmente esta mulher é afastada da Igreja, pois sua participação na
estrutura eclesial é inexistente.
Deste modo, o celibato que apesar de isolar homens e mulheres, denota, em
última análise, o afastamento da mulher do poder e, ao afirmar o poder patriarcal,
afirma, por conseqüência, o poder do homem na Igreja.
78
IV CAPÍTULO
5 CRÍTICAS AO CELIBATO
5.1 CELIBATO: SEXUALIDADE CONTROLADA
A sexualidade aqui tratada não se refere, obrigatoriamente, às relações
sexuais, tendo, como determinismo, as questões biológicas e de reprodução. O
prazer a que nos referimos diz respeito à satisfação pessoal em relação ao seu
próprio corpo. O prazer de existir, de se reconhecer em si mesmo, conforme Lamas
(2000).
Portanto, se a sexualidade se configura como um dos mecanismos de
controle do patriarcado, apesar de outras formas de controle existirem, tais como: a
procriação, as questões econômicas e mercadológicas etc., é a sexualidade em
nosso objeto que importa e pode ser vista na ótica do poder, à medida que também
apresenta mecanismos de controle e, portanto subsidia o poder.
Segundo Foucault (2005)n o poder tem na e por meio da sexualidade, um dos
dispositivos de funcionamento e pode ser compreendido como este
[...] conjunto decidamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas
(FOUCAULT, 2005, p. 244).
79
Assim o Código de Direito Canônico, cuja legislação regulamenta-se na
imposição do celibato e, portanto, no controle da sexualidade, proibindo-a na forma
da lei, por intermédio dos cânones 277 e 599, representa este instrumento de poder
patriarcal, este conjunto de decisões regulamentares, conforme Foucault, de
controle da sexualidade.
Foucault (2005) também argumenta que sobre os dispositivos, quanto a sua
natureza, podem aparecer como programas de instituições, ou ao contrário, como
elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda. “O
dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante” (FOUCAULT, 2005, p.
244).
Todavia, é em Weber que as relações de poder se descortinam com maior
ênfase e servem ao propósito de nosso estudo que as variáveis - religiosidade e
sexualidade, - em parte consciente e em parte inconsciente, são cada vez mais
extraordinariamente íntimas, isto porque, o princípio do poder se assenta no
pressuposto das relações, dos pólos, de forma que onde há pólos, lados e
interesses, o que, em última análise, podemos afirmar, há uma disputa.
Neste sentido, o que nos importa é exatamente este cenário; - o poder
configurado nas relações de gênero, de forma tal que a mulher e seu corpo e,
portanto, - a sexualidade - é considerada profana e sua prática se em detrimento
de uma ascese exclusivamente masculina, onde o celibato, conforme descrito pelo
Código de Direito Canônico, se normatiza e se conjuga no masculino.
80
Segundo Weber (1991) o que inicialmente se configurou como uma
abstinência temporária dos sacerdotes atuantes ou, também, dos participantes do
culto – a castidade de culto - se transformou em uma castidade permanente.
[...] a ascese da castidade carismática dos sacerdotes e virtuosos
religiosos, isto é, a abstinência permanente, parece partir sobretudo da
idéia de que a castidade, como comportamento altamente extraordinário,
seja em parte sintoma de qualidades carismáticas e em parte fonte de
qualidades extáticas [...] (WEBER, 1991, p. 400).
Ainda segundo o pensamento weberiano de uma sociedade racionalizada,
portanto, capitalista e burocratizada, logo ética, o que era inicialmente definido como
uma abstinência permanente, se configurou no celibato.
Mais tarde especialmente no cristianismo do ocidente, foram decisivos
para o celibato sacerdotal, por um lado, a necessidade de não permitir que
o mérito ético dos funcionários fosse inferior ao dos virtuosos ascéticos
(monges) e, por outro lado, porém, o interesse hierárquico em evitar que
as prebendas se tornassem hereditárias (WEBER, 1991, p. 400).
Interessando-nos, sobretudo, o primeiro motivo descrito por Weber, de modo
que este motivo possibilitou, ainda segundo o autor, duas novas relações típicas de
aversão à sexualidade.
A abstinência pode ser considerada o meio central e indispensável da
procura mística de salvação, [...] rege a idéia ascética de que a vigilância
racional ascética, o domínio de si mesmo e o método de vida são postos
em perigo na maioria das vezes pela irracionalidade extrema deste ato [...]
(WEBER, 1991, p. 400).
Assim, a idéia de que a abstinência representa o meio central de salvação e o
risco de vida pela irracionalidade do ato, possibilita compreender, portanto, que a
sexualidade representa este algo que se interpõe entre a salvação e a
impossibilidade de tê-la.
Weber (1991) descreve, ainda, que nesta ambígua possibilidade a
81
[...] adaptação absoluta ao mundo considera o erotismo irregular uma
irracionalidade desprezível, porque perturba o equilíbrio interno do
gentleman e porque a mulher é um ser irracional, difícil de governar
(WEBER, 1991, p. 400 – 401).
De tal forma que, segundo Weber, “a mulher individual é então sagrada, o
gênero é um recipiente do pecado” (WEBER. 1991. p. 401).
No reino divino de Jesus bem entendido, um futuro reino terrestre, - não
haverá sexualidade alguma e toda teoria cristã oficial condenou
precisamente o lado interno, emotivo, a sexualidade, como
“conscupisciência” e conseqüência do pecado original (WEBER, 1991, p.
402).
Portanto, se no conjunto teórico weberiano, o autor afirma que a sexualidade
representava este algo que se interpõe entre a salvação e a irracionalidade, logo, a
impossibilidade da salvação, percebe-se que o discurso da Igreja Oficial, em relação
às questões sensíveis e ainda não resolvidas no que diz respeito às relações entre
homens e mulheres, não mudou, ou quase não mudou, ao longo da sua história.
Permanece, portanto, com a mesma lógica: a sexualidade, ainda, é construída por
intermédio de um discurso repressivo e controlador.
A igreja Oficial tem, portanto, mantido um discurso complexo e intrigante, o
que, segundo Ribeiro, é “organizado sobre uma tipologia que, hoje, nos parece cada
vez mais rejeitável [...]” (RIBEIRO, 1998, p. 178).
A autora afirma ainda que a
igreja, em seu magistério e tradição, tece um discurso próprio sobre
realidades que dizem respeito à maternidade, feminilidade, paternidade,
geração, sexualidade, natureza, alteridade etc (RIBEIRO, 1998, p. 178).
E conclui dizendo que a fala da Igreja Oficial é de certo modo, toda ela,
baseada apenas numa visão patriarcal.
82
Se a sexualidade, conforme Ribeiro (1998), tem por parte da Igreja Oficial um
discurso próprio, o que dizer da sexualidade feminina? Do corpo?
No seu ensaio sobre As técnicas corporais, Mauss (1974) afirma que as
técnicas corporais se dividem e variam por sexo e por idade. Interessa-nos,
sobretudo a classificação feita pelo do autor das técnicas corporais por sexo.
Segundo Mauss, esta classificação cria uma lacuna social, de tal modo que “há uma
sociedade de homens e uma sociedade de mulheres”., (MAUSS, 1974, p. 218).
E, nestas condições, onde para o autor, o corpo é o mais natural instrumento
do homem, Mauss afirma que “todas essas técnicas consistem em fazer adaptar o
corpo a seu emprego” (MAUSS, 1974, p. 232).
A conclusão, apresentada por Mauss (1974), nos possibilita perceber que o
corpo da mulher e a sua sexualidade, conforme a tradição moral cristã tem um
emprego, a procriação. Neste sentido, o celibato, que proíbe inclusive a função
natural do corpo da mulher, que, segundo a Igreja é a procriação, é, portanto, um
mecanismo de poder, que nega não apenas a sexualidade, mas o próprio corpo.
Também Bourdieu, partindo do legado de Mauss, constrói seu conjunto
teórico sobre a dominação masculina, tendo como base o corpo. O corpo possibilita
,segundo Bourdieu (2005), “o exercício brutal do poder sobre os corpos reduzidos ao
estado de objetos [...]” (BOURDIEU, 1995, p. 26).
Assim, sob este ponto de vista que liga o corpo à sexualidade e esta ao
poder, “a pior humilhação para um homem consiste em ser transformado em mulher,
[...]” (BOURDIEU, 1995, p. 32), fazendo-o descobrir
83
o que significa o fato de estar sem cessar consciente de seu corpo, de
estar sempre exposto à humilhação ou ao ridículo e de encontrar um
reconforto nas tarefas domésticas ou na conversa fiada com os amigos
(BOURDIEU, 1995, p. 32).
Assim, os corpos se inscrevem neste conjunto de operações de
diferenciações, onde “homem ou mulher, conforme a definição social de sua
distinção sexual” (BOURDIEU, 1995, p. 35), assume papéis sociais diferenciados e
diferenciadores. Bourdieu, ainda, conclui que, longe de afirmar que as diferenças
dos corpos são invariáveis e eternas, elas são na realidade
produto de um trabalho incessante de reprodução, para o qual contribuem
agentes específicos (entre os quais os homens, com suas armas como a
violência sica e a violência simbólica) e instituições, famílias, Igreja,
escola, Estado (BOURDIEU, 1995, p. 46).
Se os corpos são diferenciados e diferenciadores, surge, então, partindo-se
das proposições de Swain (2000), um questionamento: “que corpo é este que impõe
uma identidade, um lugar no mundo, que conduz no labirinto das normas e valores
sociais / morais?” (SWAIN, 2000, p. 47).
A autora responde a esta questão, afirmando que, para as mulheres, a única
forma de encontrar os seus próprios corpos é por meio da reprodução, ou seja, “os
corpos são identificados pelo sexo e a proliferação de práticas sexuais se faz
segundo o modelo central de uma sexualidade reprodutiva e binária [...]” (SWAIN,
2000, p. 48), ou seja, uma sexualidade masculina e outra feminina.
A autora afirma, também, que nesta construção social, o corpo não é apenas
construído, mas, sobretudo objetivado, naquilo que Swain (2000, p. 70) “denominou
de escala de valores e atributos”, e conclui que a miséria sexual
84
não é apenas a falta de sexo, a reclusão, a proibição; a miséria sexual é a
obrigação do sexo como medida do ser, como essência identitária, padrão
de comportamento (SWAIN, 2000, p. 71).
Deste modo, os corpos que o celibato controla, mendigam não o sexo, mas o
desejo de ser, não identitário, mas, sobretudo livres daquilo que Bourdieu (1995)
denominou de estado de objeto.
Neste sentido, as colocações de Foucault tornam-se pertinentes, quando o
autor afirma que
o sexo permitiu reagrupar, segundo uma unidade artificial os elementos
anatômicos, as funções biológicas, as condutas, as sensações, os prazeres
e permitiu o funcionamento desta unidade fictícia como princípio, causa e
sentido onipresente, segredo e ser descoberto em toda parte: o sexo pode
assim funcionar como significante único e como significado universal
(FOUCAULT, 1988, p. 204).
Desta forma, os corpos se sujeitam a este significante para ter um significado
universal. Mas e os corpos que o celibato controla? Perdem o significado por não se
sujeitar ao significante?
Segundo Pollack (1997), a sexualidade suscita a especulação e a religião
privilegia uma divindade totalmente masculina que, ao mesmo tempo, não possui
corpo, o significado do corpo se perdeu e passou a ser controlado para que lhe
fosse atribuído um significante, uma valoração específica, ou seja, conforme os
dizeres de Mauss (1974), o corpo, que é o primeiro instrumento do homem, passou
a ser controlado em função de uma ordem patriarcal, e neste sentido, a sexualidade,
por conseqüência, também passou a ser controlada.
85
Se, no cristianismo, como vimos anteriormente, a masculinidade tornou-se
distinta da sexualidade, foi “a razão
18
que passou a constituir a principal qualidade
masculina, isolada, no controle do corpo, em permanente risco de ser poluído,
especialmente pelas mulheres.” (POLLACK, 1997, p. 29).
A nova religião considerava o corpo, com seus desejos animais, inimiga da
razão verdadeira, conforme Pollack (1997), de forma que, na concepção patriarcal
de Deus, os seres humanos “são a criação e os súditos de Deus, sem papel real a
desempenhar no divino, exceto como dominadores dos súditos menores de Deus,
as plantas e os animais(POLLACK, 1997, p. 60), ou seja, dominadores de corpos
com desejos, dos corpos femininos. Isso porque, segundo Pollack , “a igreja
via as mulheres como mais próximas dos animais. As mulheres tentavam os homens
e os afastavam de Deus” (POLLACK, 1997, p. 29).
Enquanto Eilberg-Schwartz (1995) questiona como um Deus assexuado cria
seres a sua imagem e semelhança, sexuados, Pollack (1997) também questiona
numa outra perspectiva, como um Deus sem corpo, existente em separado do
universo que criou, cria seres humanos com corpos, de forma tal que os corpos da
criação se distanciam do criador sem corpo?
E a autora responde a esta indagação afirmando então que “a religião torna-
se portanto, um anseio de escapar do corpo, assim como um comando para
controlá-lo” (POLLACK, 1997, p. 52).
E conclui dizendo que
18
Sobre a construção da razão em oposição à emoção ver: JAGGAR, 1997.
86
na religião de um Deus desprovido de corpo e de sexo, a sexualidade
humana torna-se um fracasso e uma traição, um afastamento de Deus
rumo a uma natureza menosprezada, um pecado (POLLACK, 1997, p. 52).
Também Tomás de Aquino, que aceita a teoria biológica de inferioridade da
mulher, adotou a definição aristotélica da mulher como homem bastardo, no qual o
sêmen masculino, segundo essa teoria, nos dizeres de Ruether (1997), é normativo,
de tal modo que todo homem deveria produzir outro homem à imagem do seu pai.
Mas, ainda segundo Ruether (1997, p. 85) “[...] por algum acidente, essa
forma masculina, às vezes, é subvertida pela matéria feminina e produz um
espécime humano inferior ou defeituoso, ou a mulher”.
Se, por um lado, o corpo da mulher e sua sexualidade se aproximam dos
animais, portanto, irracionais, o corpo masculino, nomeadamente no final do século
XIX, em contraposição à lógica aplicada ao corpo feminino, busca uma
masculinidade vitoriosa e ideal, principalmente por meio das competições esportivas
e das conquistas colonizadoras.
A disciplinarização do corpo masculino, via esportes e treinamentos físicos
além de ser útil aos ideais de conquista e defesa nacionais, incorporavam hábitos a
vida cotidiana dos homens.
Este processo de socialização masculina, segundo Oliveira (2004), “apontam
para uma conexão entre a apologia da força no ideal cristão e preceitos de
autocontenção e disciplinarização” (OLIVEIRA, 2004, p. 47). O corpo do homem é
valorizado, em detrimento da valorização do corpo da mulher.
Em 1908, na Inglaterra e, em 1910 nos Estados Unidos da América,
instituições religiosas, em especial a Igreja Anglicana, influenciaram a criação de
87
movimentos escoteiros, que segundo Oliveira (2004), significava mais do que uma
arena militar de socialização infantil, na realidade significava uma “arena dirigida
para a inculcação nos meninos de uma virilidade disciplinada” (OLIVEIRA, 2004, p.
48).
Deste modo, o corpo do homem, a exemplo do corpo da mulher, também
sofre um controle, quando lhe imputa a busca de um ideal de masculinidade por
meio do corpo, de forma que vínculos bastante claros entre o ideal de
masculinidade e a cultura à qual Derrida denominou de falocêntrica.
Logo, tanto o corpo do homem como o corpo da mulher são controlados. Se
por um lado o homem precisa provar sua masculinidade buscando um corpo ideal,
viril, pela disciplinarização: num sentido contrário, a mulher tem sobre o seu corpo
um controle pela negação do próprio corpo. Deste modo, tanto o corpo da mulher
como o corpo do homem que se aventuram em esferas naturais, ou seja, fora dos
controles da Igreja, conforme afirmação de Ruether (1997), correm o risco de
encontrar-se com demônios.
Por meio da Igreja, portanto,
que medeia a graça para além da natureza, é que a natureza é restaurada
à soberania de Deus e torna-se um veículo da graça (sacramento). Mas
essa graça, controlada pela Igreja e situada além das capacidades
presentes da natureza, está cercada pelo demoníaco (RUETHER, 1997, p.
73).
Assim, a perspectiva da Igreja Oficial como noiva escatológica, ou seja, um
sinal do estado definitivo de Cristo e mãe das pessoas cristãs é claramente anti-
88
sexual e busca moldar o papel da mulher, negando a própria mulher, a partir do
momento que a Igreja assume a maternidade universal.
Em conformidade com a interpretação de Ruether (1997), a Igreja, que é
masculina, e ao assumir a maternidade universal, nega o papel sexual das mulheres
reais, de tal forma que
Os papéis femininos foram sublimados e também assumidos dentro do
poder “espiritual” masculino. O poder masculino de chefia controla a
concepção, gestão, nascimento e relaciona isto com a esfera
transcendente que nega a maternidade “carnal” das mulheres (RUETHER,
1997, p. 122).
Ruether ainda conclui afirmando que
Homens celibatários o os principais detentores de poder da Igreja. Eles
representam o ”feminino masculino”, nas mãos de homens anti-
procriadores. [...] assim não é contraditório, e sim compreensível, que uma
cultura celibatária masculina que exaltou o símbolo do “feminino espiritual”,
como Maria, elevando-o quase ao status do divino, vivificasse e
demonizasse os papéis sexuais das mulheres reais (RUETHER, 1997, p.
123).
Assim, o empoderamento dos homens, numa perspectiva celibatária, implica
a perda de poder por parte das mulheres. Segundo Lyra (2002, p. 73), “[...] nessa
visão hidráulica de poder no plano da sexualidade”, a sexualidade perde. A mesma
sexualidade que evidencia o corpo é negada, os corpos e o desejo são reprimidos.,
de tal forma que o cânon e a ortodoxia, segundo King (1998, p. 47) “foram
inventadas em parte para excluir as mulheres de posições de liderança e
autoridade.”
Portanto, a supressão do corpo e dos instintos, os processos de autocontrole
e de autonegação, são, nos dizeres de Whitmont (1991, p. 100), “comparáveis ao
processo que as crianças atravessam para aprender a usar o banheiro”, ou seja,
89
um controle direcionador, até educativo, se quisermos assim denominar, daquilo que
podemos chamar de funções vitais e fisiológicas do corpo.
Privilegiar as necessidades pessoas, ou seja, o próprio corpo, a sexualidade,
mesmo quando não entram em contradição com as necessidades dos outros ou as
coletivas “é rotulado como egoísta e maligno” (WHITMONT, 1991, p. 100).
Assim, o celibato, que nega a existência dos corpos, exclui a sexualidade,
aprisionando os corpos.
5.2 CELIBATO: APRISIONANDO DESEJOS
Para compreender o aprisionamento dos corpos e, por conseguinte dos
desejos, como mecanismo de controle da sexualidade, - em que o celibato pode ser
entendido como um dos mecanismos patriarcais de poder - buscamos de modo
interdisciplinar, recortes teóricos que acreditamos possibilitarão a compreensão da
abordagem proposta.
É preciso, neste sentido, afastar qualquer pretensão de esgotar o assunto,
muito pelo contrário, apenas suscitar a possibilidade de perceber a sexualidade por
meio do desejo e dos corpos aprisionados e sua inter-relação com o celibato e como
a imposição do celibato possibilita este aprisionamento.
Em seu artigo intitulado O médico, a prostituta e os significados do corpo,
Engel (1985) afirma que o desejo sexual, como inerente à natureza humana, é neste
90
sentido, reconhecido como uma necessidade fisiológica. Todavia, este mesmo
desejo é visto ao mesmo tempo como “veneno para o corpo e, assim, de sua livre
manifestação poderia resultar a destruição do organismo” (ENGEL, 1985, p. 170).
Assim, o desejo que não se relaciona com a procriação, segundo o ideário
cristão, é considerado pela autora como um “excesso de prazer e/ ou ausência da
finalidade reprodutora” (ENGEL, 1985, p. 170).
A prostituição, portanto, se insere neste contexto como portadora deste
veneno para o corpo, já que o prazer não se destina à reprodução.
Sem romper com o ideário cristão, segundo a autora, os dizeres do discurso
médico acabam por recriá-lo, transformando o corpo em um instrumento de
profilaxia, ou seja, utiliza os corpos como instrumentos de cura, ou a busca dela, em
que a prostituição viabiliza e legitima o controle do corpo e do desejo.
Mas, o diagnóstico médico iria além: segundo Engel (1985, p. 175), “ao
classificar o corpo da mulher como prostituta”, por não se relacionar sexualmente
para fins de procriação, “imprimia sobre seu corpo a marca da esterilidade” (ENGEL,
1685, p. 175).
Numa perspectiva moral, a livre manifestação sexual, como vimos, segundo a
noção de excesso de prazer e/ ou ausência da finalidade reprodutora identifica o
corpo da prostituta como “lugar de depravação, de perversão” (ENGEL, 1985, p.
179) e, portanto, de esterilidade como citado acima.
Neste sentido, a prostituta é considerada um obstáculo físico e moral à
reprodução e, segundo Engel (1985, p. 179), à “viabilização da higienização do
91
corpo” lugar em que este corpo na perspectiva médica, que recria, de certa forma, o
discurso religioso, precisa ser moral e fisicamente adequado à reprodução.
Deste modo, a moral ética do discurso médico, revestido de aspectos morais
cristãos, revela um novo sentido. “O prazer, condenado e excomungado no discurso
cristão, é absolvido e resgatado no discurso médico; mas, somente aprisionado
pelas normas da regulação médica adquiria legitimidade” (ENGEL, 1985, p. 180).
Assim, a noção de corpos higiênicos ,segundo o discurso médico, aprisiona o
desejo, pois regula os corpos e, por conseqüência, a sexualidade, já que a
denominada sexualidade saudável, se restringiria exclusivamente à reprodução.
Uma outra possibilidade de compreender a negação dos corpos do ângulo do
aprisionamento do desejo é o entendimento do significado da confissão. Prática tão
extensiva, como a própria história da Igreja.
A confissão ocorre, segundo Foucault (1988), pelo fato de se tornar,
particularmente a partir da Idade Média, uma das técnicas mais valorizadas para
produzir a verdade e passa a ocupar um papel central na ordem dos poderes civis e
religiosos. Assim, no século XIII, o IV Concílio de Latrão estabelece a confissão
anual obrigatória, enquanto consolida o celibato clerical, retomando as idéias
desenvolvidas pelo Cristianismo Antigo. A Igreja Oficial procura neste momento,
efetivar o seu controle sobre a sexualidade pelo afunilamento das práticas sexuais:
“o sexo lícito torna-se restrito aos leigos casados” (LIMA, 1986, p. 67).
92
E ainda assim, é alvo de uma série de interdições que, segundo Golf apud
Lima (1986, p. 68), “proscrevem atos e ocasiões, na procura de reduzir, cada vez
mais, o sentido da sexualidade, direcionando-a para a procriação”.
O esforço moralizador de Latrão é reafirmado no Concílio Tridentino (1545
1563) de tal modo que, em todo este contexto, a confissão, sacramental ou judicial,
passou a ser um dos principais instrumentos para vigiar as práticas sexuais.
Segundo Lima (1986, p. 69) então, a confissão pode ser entendida como o
discurso da culpa. [...] a confissão é, antes de tudo um ritual de sujeição”, de tal
forma que, deste modo, a confissão constitui um ritual que produz a verdade e
corrobora o poder, conforme os dizeres de Foucault.
Portanto, nos manuais de confissão, o discurso sobre o sexo é associado à
luxúria e segundo o canonista Azpilcueta Navarro apud Lima, a “luxúria é vício da
alma que a inclina a querer deleite desordenado de cópula carnal ou dos
preparativos dela e sua obra e ato é querer o desejo e o gozo de tal deleite.”
Deste modo, ao normatizar às práticas sexuais, o que a Igreja procura é, na
realidade, controlar o desejo, valendo-se daquilo que Lima (1986, p. 78), denominou
de “ordenação do gozo”, ou simplesmente a licitude e a ilicitude do prazer, que a
cópula para fins não reprodutivos é, segundo os manuais de confissão, ilícito.
Isto não quer dizer, entretanto, que o matrimônio autorize os indivíduos à livre
exploração do sexo, que, neste sentido é cito. Muito pelo contrário, segundo
Lima (1986, p. 79), “a cópula matrimonial é lugar de sexo lícito, exatamente porque é
lugar do gozo ordenado”, ou seja, de gozo com finalidade reprodutiva, de tal forma
93
que o gozo destinado ao prazer torna-se a relação sexual no âmbito do matrimônio
uma cópula ilícita.
Portanto, o que se procura, neste sentido, é cercear as situações de prazer, a
sexualidade, onde o gozo, ordenado ou não, deve ser evitado e muito mais quando
vislumbrar a possibilidade do prazer.
Neste sentido, A História da sexualidade, de Michel Foucault tem sido o texto
mais influente e emblemático sobre o pensamento sexual. Foucault (1988)
argumenta que os desejos não são entidades biológicas preexistentes, mas
constituem um conjunto de práticas sociais historicamente determinadas e, numa
primeira análise, relaciona os grandes conjuntos estratégicos de poder a respeito do
sexo.
Primeiro, a histerização do corpo da mulher, ou seja, o corpo da mulher foi
analisado, qualificado e desqualificado como “um corpo integralmente saturado de
sexualidade” (FOUCAULT, 1988, p. 99), inicialmente por uma patologia intrínseca na
perspectiva médica; depois, ordenado socialmente como corpo social e, por isso,
responsável pela fecundidade regulada, de modo a garantir a reprodução e, depois a
mãe, com sua imagem “em negativo, que é a mulher nervosa”, segundo Foucault
(1988, p. 99).
Depois, a pedagogia do sexo das crianças, que, segundo o autor, são seres
sexuais liminares e, portanto, aquém e no sexo, cuja sexualidade deve ser
demarcada pelos pais, familiares, educadores, médicos e psicólogos, se assemelha
em grau e intensidade com a prática exercida com relação aos corpos e desejos da
94
mulher. Assim como as crianças, as mulheres também são colocadas em uma
situação limiar, pois o seu gozo, agora ordenado, apenas é lícito se obtido para fins
de procriação. O desejo do gozo, do prazer livre é considerado ilícito e, portanto
deve ser evitado.
Foucault ainda atribui à socialização das condutas de procriação como
pertencente a este conjunto de práticas sociais estratégicas de poder a respeito do
sexo. Conforme Foucaultm é “[...] por meio de medidas sociais e, posteriormente,
pelos valores patogênicos, atribuindo um controle do nascimento em relação ao
indivíduo e a espécie” (FOUCAULT, 1988, p. 99), que o corpo e os desejos da
mulher o controlados, ou seja, a rotulação e a atribuição de doenças como sendo
originárias do corpo da mulher, atribui a estes valores patogênicos e rotula os filhos
destes corpos como pertencentes a uma espécie de indivíduo menor, os filhos da
prostituta.
E, por último, seguindo Foucault (1988, p. 99), “a psiquiatrização do prazer de
tal modo que, o instinto sexual foi isolado como instinto biológico e psíquico de forma
tal, que se procurou uma tecnologia corretiva para tais diagnósticos”. Aqui o autor
relaciona, de forma clara o desejo sexual a algo instintivo, animalesco, logo
desequilibrado.
A este conjunto de práticas, o autor denomina de dispositivos da sexualidade,
argumentando que estes dispositivos, na realidade, “são mecanismos de fixação da
sexualidade” (FOUCAULT, 1988, p. 123), de tal forma que a partir e no decorrer do
século XIX, houve uma generalização destes dispositivos, e que, em última análise o
95
corpo social foi dotado de um corpo sexual. Aquilo que o autor chama de
“universalidade da sexualidade” (FOUCAULT, 1988, p. 120).
Neste sentido, a sexualidade é demarcada em relação à sexualidade do
outro. Instaura-se a proteção dos corpos, de tal forma que esta demarcação, ao
contrário, não instaura a sexualidade, mas serve-lhe de barreira.
Essa demarcação da sexualidade gera, segundo o autor, a teoria da
repressão que, pouco a pouco, vai recobrir toda a sexualidade, ou seja, organiza-se
[...] dando-lhe um sentido de interdição generalizada, colocando o princípio
de que toda sexualidade deve ser submetida à lei, ou melhor, que ela é
sexualidade por efeito da lei gerando um novo discurso onde à sexualidade
por oposição a dos outros, será submetida a um regime de repressão [...]
que a diferenciação sexual não se afirmará pela qualidade sexual do corpo,
mas pela intensidade da sua repressão (FOUCAULT, 1988, p. 121)
A história da sexualidade a partir da época clássica, efetivamente se
desenvolveu através de vários papéis simultâneos e, os fatos de tantas coisas terem
mudado no comportamento sexual das sociedades ocidentais sem que se tenha,
nos dizeres de Foucault (1988), realizado qualquer uma das promessas políticas
oriundas do Reich, bastou para provar que toda a revolução do sexo, ainda segundo
o autor, toda essa luta anti-repressiva, representou, nada mais nada menos “[...] do
que um deslocamento e uma reversão tática nos dispositivos da sexualidade”
(FOUCAULT, 1988, p. 123).
Assim, a sexualidade e, portanto, os corpos e o desejo, mesmo num cenário
de universalidade, continuam sobre este regime de repressão, de controle.
O celibato, que pode ser compreendido como um instrumento do poder
patriarcal, serve a este propósito, ou seja, pode ser compreendido como um dos
96
mecanismos de controle da sexualidade, cuja estratégia inicial é o aprisionamento
dos corpos.
Ao determinar a sexualidade dos clérigos em relação à sexualidade do outro,
neste caso, o feminino, o celibato reprime o corpo e o desejo destes homens
gerando uma barreira à própria sexualidade e num sentido contrário, ao aprisionar o
corpo do homem, por conseqüência afasta o corpo e nega a sexualidade do outro do
homem, ou seja, a mulher.
5.3 CELIBATO: A CRÍTICA DA ARTE
Se, para Foucault, a luta anti-repressiva da demarcação dos corpos
representou apenas um deslocamento e uma reversão tática nos dispositivos da
sexualidade, mesmo que os dispositivos tenham se mantido, em outras áreas do
conhecimento esta luta tem-se mantido até com certo vigor, e em que pese a
manutenção dos dispositivos, a crítica a este modelo de sexualidade tem se
mostrado ativa e pertinente.
Além das críticas feitas pelos movimentos feministas ao modelo das relações
de gênero, a arte, manifesta-se de forma diferenciada por meio de expressões
artísticas: literatura, pintura, cinema, e têm se mostrado contundente neste processo
e têm se posicionado fortemente contra este modelo de sexualidade, construído pela
Igreja de Roma.
97
Assim, a arte ao longo dos anos, tem demonstrado que pode ser vista como
um importante instrumento de crítica, até porque, segundo Stefanini apud Bayer
(1978, p. 422), “a arte é este algo que transcende, juntamente com o artista a
espiritualidade e a emoção”, ou seja, posiciona-se para além dos conceitos e
ideologias do artista e se afirma como expressão viva da sua própria existência.
Bayer também afirma que a obra de arte “tem a sua vida própria,
permanecendo ao mesmo tempo ligada ao seu autor, de quem tira a sua própria
significação e a sua força vivificante” (BAYER, 1978, p. 422).
A arte se desprende do entendimento banalizado da norma e das convenções
sociais, numa direção em que os artistas surgem como subversivos. Assim, segundo
Farina (2001, p. 4) a
arte é uma poética que encontra eco na subversão dos perceptos
submissos e arrepia as mentes despreparadas. Sobrevive no "ocultismo"
das suas propostas mais autônomas e singulares e, no entanto pode-se
revelar para qualquer um como uma possibilidade’ de contato. Não escolhe
e o segrega, mas não admite veleidades. Apenas vive como vítima da
sua própria maldição de eternidade.
A dimensão do escândalo provocado pela arte é um paradigma com base nas
vanguardas artísticas das primeiras décadas do século XX. Mas não apenas no
decorrer do século XX. Já em finais do século XIX a obra literária de Eça de Queiroz,
O crime do Padre Amaro, representa uma primeira tentativa de subverter a norma e
criticar as regras normativas vigentes no seio da Igreja católica.
Apesar da crítica literária de Queiroz (2005) caminhar num sentido contrário,
ou seja, relatar as peripécias sexuais cometidas e assim definidas como crimes, pela
98
Igreja Oficial, em nome de uma demarcação dos corpos, neste caso masculino, não
deixa de ser privilegiada e contundente na crítica ao celibato.
A obra de Queiroz (2004), originalmente escrita entre outubro de 1878 e
outubro de 1879 relata, em que pese a licença poética do autor, as amarguras e
desventuras do padre Amaro Vieira e de sua amada Amélia.
Relata as peripécias dos encontros amorosos, das armações e engenhocas
para fugir ao controle do clero. Relata, inclusive, a permissividade das hierarquias
superiores.
O relato romanesco entre Amaro e Amélia torna-se mais contundente,
quando, desta relação, nasce um filho, que a improbidade da Igreja Oficial obriga-o a
ser retirado da mãe minutos após o nascimento e entregue a uma tecedeira de anjos
19
.
O fruto da relação é morto, pois assim elimina-se a prova do pecado. Não
havendo um filho, a relação entre Amaro e Amélia pode ser negada. Amélia também
não resiste e morre, não porque foi abandonada, morre de amores pela perda do
filho recém nascido e retirado de seu convívio.
O crime do padre Amaro é, portanto, a expressão artística, posicionando
contra a norma e contra a improbidade eclesiástica com relação aos corpos, aos
desejos, nos quais o celibato é esta norma proibitiva daquilo que a narrativa de Eça
Queiroz (2004) chamou de “[...] batalha desesperada contra os dois fatos irresistíveis
do universo – a força da matéria e a força da razão” (QUEIROZ, 2004, p. 390).
19
Ama de leite, que se encarregava de sacrificar o recém-nascido, mediante o pagamento antecipado
de um ano das despesas com a criança recém-nascida.
99
E conclui o autor, dizendo:
Em que consiste a educação de sacerdote? Primo: em preparar para o
celibato e para a virgindade; isto é, para a supressão violenta dos
sentimentos mais naturais. Secundo: em evitar todo o conhecimento e toda
a idéia que seja capaz de abalar a católica; isto é, a supressão forçada
do espírito de indagação e de exame, portanto de toda a ciência real e
humana [...]“ (QUEIROZ, 2004, p. 390).
O romance de Queiroz representa, portanto, uma narrativa da improbidade
eclesiástica de se relacionar com o outro de forma completa e irrestrita. É, portanto
um relato desta batalha entre a e a razão; entre o desejo e a negação deste
desejo.
A obra literária O crime do padre Amaro de Eça Queiroz (2004), se traduz no
próprio nome. Que crime cometeu Amaro? O crime de amar, de desejar uma
mulher? Ou o crime de ter subvertido a norma e ter quebrado o voto de castidade?
Talvez possamos compreender e até afirmar que Amaro cometeu um duplo crime. O
crime de ter amado uma mulher e de ter desconsiderado os votos de castidade tão
fundamentais para unir-se a Cristo. O crime de ter dividido o coração, quando o
cânon o obriga a ter um coração indiviso.
Por que um crime e não apenas outra denominação menos contundente?
Seria uma decisão tão horrenda ter Amaro amado uma mulher a ponto de ser
considerado criminoso ou este crime se refere exclusivamente à quebra dos votos
de castidade?
Seria o celibato esta possibilidade única de unir-se a Cristo a ponto de quem
não for celibatário ser considerado criminoso?
100
Estas e outras indagações reforçam a idéia de que o celibato é uma
imposição e que a manutenção de todos os direitos e deveres sacramentais é
impossível na perspectiva da Igreja de Roma, sendo efetivamente padre.
A arte cinematográfica também serve à denúncia, à crítica, como bem mostra
Peter Mullan no filme Em nome de Deus. A obra cinematográfica, que se
desenvolve com base no relato de quatro mulheres, no interior da Irlanda, enviadas
contra a sua vontade para uma das unidades da irmandade, Irmãs de Madalena,
retratam com clareza, tanto quanto a arte pode ser precisa em seu papel de crítica
da norma religiosa vigente.
Seus crimes são os crimes do corpo, da sexualidade, sedução, filhos fora do
casamento, estupro. O convento Irmãs de Madalena é identificado pela prestação de
serviços de lavanderia às igrejas, mas, também é reconhecido pelo rigor e pela
disciplina implantada na recuperação das mulheres decaídas.
101
Figura 2: Cena do refeitório Em nome de Deus, cineasta PETER MULLAN.
O claustro e os votos de silêncio são obrigatórios. A comida regrada e a
completa ausência de dignidade.
Os corpos são negados. Escondidos de si mesmas. Aquelas que
eventualmente tentam, em vão, fugir, são punidas com o corte dos cabelos,
raspagem das cabeças, numa clara alusão à amputação da sedução. Cabelos
grandes e a mostra simbolizam a sedução. A raspagem dos cabelos representa uma
demonstração de força da instituição Igreja. Ela, a igreja, tem o poder de amputar a
sexualidade, o desejo. Essas Irmãs de Madalena foram marginalizadas como
prostitutas arrependidas.
102
O relato cinematográfico de Peter Mullan impressiona pela dureza das
imagens e pela crueldade da realidade vivida.
A estas mulheres foram retiradas todas e quaisquer possibilidades de viver
em plenitude. Foi retirada a dignidade, a sexualidade, o corpo, o prazer e a própria
vontade de viver.
Este caso real parece ter ocorrido na idade média. Mas não, os
acontecimentos do Convento Irmãs de Madalena ocorreram entre os anos de 1964 e
1968, no interior da Irlanda Católica e apesar de remontarem as barbáries do
período medieval, não ultrapassam quatro décadas.
Com o intuito de punir mulheres que, por contingências diversas, se
posicionaram na contramão daquilo que o patriarcalismo definiu como modelo ideal
de mulher, as Irmãs de Madalena, em nome de Maria de Madalena e de uma igreja
feita de homens e para homens pune com rigor exemplar todas as mulheres que
atentam contra essa moral sexual cristã vigente.
O que Peter Mullan traz para as telas do cinema mundial é o retrato de uma
sociedade patriarcal e machista com intuitos claros de dominação sobre os corpos,
nos quais a sexualidade feminina é caracterizada como perigosa.
103
Figura 3: Interrogatório. Em nome de Deus, cineasta PETER MULLAN
O filme Em nome de Deus retrata, portanto, mais do que uma misoginia
clerical, retrata uma realidade na qual o celibato feminino, não difere do celibato
masculino. Nesta questão, o gênero é desconstruído e reconstruído, não mais como
gênero, mas, sobretudo, como uma expressão do poder patriarcal da Igreja, na qual
o celibato representa este mecanismo, que serve ao controle dos corpos, da
sexualidade.
De tal modo que Em nome de Deus é um relato com sentido, não apenas de
descrever a misoginia contra a mulher, mas, sobretudo de valorar a sexualidade,
"alocando a virgindade feminina como um bem no mercado matrimonial"
(HEILBORN. 2002, p. 407).
104
Outra perspectiva intriga, na obra de Peter Mullan. O convento Irmãs de
Madalena presta serviço de lavanderia às igrejas da região. Às mulheres cabem
lavar lençóis e cobertas e, simbolicamente se lavariam diariamente. O ato de lavar,
limpar, no filme Em nome de Deus, parece infindável. Todas as mulheres trabalham
exclusivamente na lavanderia do convento. Os lençóis todos brancos e
melimetricamente dobrados, denotam o perfil da mulher que a Igreja Oficial construiu
à semelhança da imagem de Maria, imaculada, livre do pecado original.
As Irmãs de Madalena precisam ser brancas, alvas e melimetricamente
corretas como os lençóis que lavam.
Ao contrário do padre Amaro, que com a morte da amada Amélia e a morte
do filho desta relação, foi absolvido e manteve-se na vida eclesiástica, às Irmãs de
Madalena este final parece impossível. A saída do convento não representa uma
tarefa fácil, nem tampouco permitida, mesmo que o pecado cometido já tenha sido
redimido pelo tempo ou mesmo pela pecadora.
Os pecados das mulheres - no filme Em nome de Deus - parece não ter fim
nem perdão, o que demonstra que, para as mulheres, o pecado é naturalizado
porque é natural.
Mas o apenas a literatura e a arte cinematográfica construíram a crítica ao
celibato. A pintura também o fez e até com muita contundência.
Na célebre seqüência inicial de Un Chien Andalou, de Bañuel e Dali, em
1928, em que uma navalha rasga um olho, se anunciam não como uma
referencialidade, mas, sobretudo como uma metáfora da visão transformada. “Trata
105
do rompimento com a tradição perceptual, do anúncio do espectador, da
metalinguagem, da arte que traduz a si mesma como um modo de transformação da
realidade” (FARINA, 2001, p. 4).
Assim, a arte segue se construindo, ora como expressão da realidade, ora
como expressão do artista, de quem tira, conforme Bayer (1978), sua própria
significação e sua força, nesta sociedade "racista, capitalista e machista, que moldou
nossos corpos e nossas mentes, nossas percepções, nossos valores e nossas
emoções" (JAGGAR, 1997, p. 178).
O Surrealismo moderno, movimento artístico, de onde Dali é um dos
expoentes, tem também, dentre outros, René Magritte como um dos seus principais
representantes. O Surrealismo que consiste, segundo Ostrower (1990, p. 254) “[...]
no registro imediato e automático de idéias ou imagens que afloram à mente” e
vazão às forças do irracional, alcançando assim uma liberdade absoluta, que,
segundo Ostrower, expressa a “[...] verdadeira realidade [...](OSTROWER, 1990,
p. 254), ou seja, a realidade do mundo, é um outro movimento da arte, que se
posicionou contrário às normas vigentes.
106
Figura 5: The Lovers. René Magritte, pintura sobre tela, 1924.
The Lovers
20
, de René Magritte, pintura sobre tela de 1924, representa uma
metáfora bem ao estilo surrealista: a descrição de objetos em combinações insólitas,
objetos que,normalmente, não existem em conjunto.
Interpretando a obra de Magritte, algumas possibilidades se vislumbram no
contexto em que se insere, ou seja, por que os rostos que se beijam foram cobertos,
escondidos, como se desejasse ocultar a face de seus protagonistas? Mesmo a obra
de Magritte, não fazendo nenhuma referência específica ao celibato, parece-nos
oportuno perceber que, na obra Os Amantes, de Magritte, as personagens não
podem e não querem ser identificados.
20
Os amantes
107
Este ocultamento explícito das faces que se beijam vai, portanto, muito além
do simples esconder dos rostos, denotando que há algo de proibido neste contato.
Aqui, novamente, as possibilidades são inúmeras. Seriam dois homens, duas
mulheres ou seria um padre beijando uma freira? Estariam os protagonistas se
escondendo ou se protegendo?
Assim, a obra de Magritte, mesmo que poética e pitoresca, como é definida a
maioria das obras Surrealistas, mostra como as artes plásticas também denunciaram
as proibições ao corpo, à expressão da sexualidade.
Neste contexto, em que as artes literária, cinematográfica e plástica se
posicionaram como instrumento de denúncia, ora contra o celibato masculino, como
fez Eça de Queiroz, ora contra o celibato feminino como demonstrou Peter Mullan
ou, ainda, como explicitou Magritte, em Os Amantes - sem se preocupar com a
causa - demonstrou a impossibilidade de os corpos se tocarem, surge como crítico
à normativa do celibato Oliviero Toscani.
Assim, a arte fotográfica de Toscani do padre que beija uma freira, posiciona-
o na contramão da norma, alertando para uma definição de poder no masculino, que
afasta a mulher, da Igreja e do homem, que a coloca no domínio do privado, no
âmbito da exclusão, ou seja, o beijo representa a sexualidade que deve ser evitada.
A imagem do padre e da freira que se beijam, eu a fiz porque me
interessava verificar se a reação provocada pelo olhar pode vencer o tabu
do conhecimento estabelecido. Em outras palavras, é possível suscitar
uma reação positiva propondo a imagem de algo geralmente entendido
como inadmissível (TOSCANI, 1996, p. 67).
108
Toscani convida ao choque, faz com que o receptor olhe a imagem até
conseguir retirar dali um significado. Toscani quebra o imaginário coletivo construído
ao longo da história da Igreja. Imaginário que, segundo Durand (1997) é este
conjunto de imagens e das relações de imagens que constitui o capital
pensado do homo sapiens. [...] não transforma o mundo, como
imaginação criadora, mas, sobretudo como transformação eufêmica do
mundo [...] como ordenança do ser às ordens do melhor (DURAND, 1997,
p. 432).
Le Goff pondera sobre o imaginário e afirma que “este está no campo das
representações, mas como uma tradução não reprodutora, e sim, criadora, poética“
(LE GOFF, 1994, p. 198).
A fotografia do padre beijando a freira representa, neste sentido, uma
tentativa poética de, conforme afirmativa de Toscani (1996), vencer o tabu do
conhecimento estabelecido. Desconstruir o imaginário e construir uma nova
possibilidade de se relacionar de forma positiva, sem restrições.
Essa dimensão escandalosa, que existe também na obra de Toscani, atua de
modo a conferir a notoriedade, tão fundamental para o estabelecimento da
importância no âmbito da pós-modernidade.
São modelos vestidos de padre e de freira, é bem verdade, entretanto,
visualmente, ambos se identificam como um padre e uma freira. São portanto,
signos
21
visuais, codificados culturalmente.
Com esta imagem ele ataca uma regra fundamental da Igreja Católica: o
celibato. Mas, ele o faz de uma maneira extremamente delicada, até poética. A
sensualidade quase infantil dessa imagem lembra mais: uma cena romântica de
21
Sobre os signos ver: FOSTER, 1996; BRAUDILLARD, 1973.
109
amor verdadeiro que uma cena pecaminosa para escandalizar - como escandalizou
- os católicos de todo o mundo.
Existem nesta imagem evidentes paradoxos, tais como o pecado e a pureza,
a norma e a liberdade, a verdade e a mentira. Paradoxos a serem desmistificados,
eliminados, desconstruídos, até porque segundo a perspectiva de Toscani, as
imagens sempre possibilitam “[...] o real sobressaí, o obstante todos os nossos
esforços para domesticá-lo, dourá-lo, torná-lo inofensivo, removê-lo” (TOSCANI,
1996, p. 67).
Esta reconstrução do imaginário proposta por Toscani sugere, portanto, muito
mais do que uma crítica ao celibato, sugere sobretudo, uma crítica ao modelo das
relações de gênero, proposto pela Igreja Oficial.
Retomando a interpretação da obra de Toscani empreendida no primeiro
capítulo desta dissertação, na qual as diferenças cromáticas propostas pelo autor
vão além de uma construção do imaginário do artista, vemos, sobretudo, que a arte
de Toscani caminha na direção daquilo que o próprio autor denominou de
conhecimento estabelecido. É, portanto, uma construção artística que percorre a
contra mão da norma.
O preto, o branco, o beijo, o padre, a freira, a face escondida, a face exposta
são apenas elementos simbólicos de uma construção, que se pretende mais
elaborada, que serve à denúncia, que se constrói como subversiva, que denuncia
não apenas um beijo proibido entre duas pessoas proibidas, denuncia uma estrutura
110
de poder baseada nas diferenças de gênero, para se justificar e prevalecer como
norma aceitável, como condição de ser.
A obra de Toscani convida, portanto, a uma reflexão, a uma democratização
da vida pessoal”, conforme colocado por Giddens (1993, p. 205) de tal forma, que as
normas possam ser separadas da sexualidade e, acima de tudo, do poder do falo”
(GIDDENS, 1993, p. 212). Que o celibato, oferta ou imposição, não represente a
negação da sexualidade, dos corpos, do próprio eu.
Que os corpos possam ser livres, que a sexualidade possa ser expressa, que
as questões patriarcais de gênero não se configurem como definidoras da vida
cotidiana e dos desejos.
111
5 CONCLUSÕES
Celibato e gênero: uma releitura crítica constituiu uma construção teórica, que
buscou compreender qual a interface existente entre o celibato e as relações de
gênero, cujo pressuposto e compreensão possibilitaram essa releitura, tendo como
objeto investigar a imposição do celibato, conforme descrito pelo Código de Direito
Canônico da Igreja Católica.
Também objetiva-se verificar como esta imposição relega a mulher à semi-
exclusão, colocando-a numa posição de inferioridade em relação ao homem e em
relação à Igreja Oficial e, ainda, a possibilidade de ser compreendida como esta
imposição, representa uma disputa de poder entre gêneros.
A construção teórica elaborada, origina-se, por meio intrigantes interpretações
sugeridas pela obra fotográfica de Oliviero Toscani e, após um caminhar na busca
da compreensão do objeto, finaliza-se, também com a obra de Toscani, agora não
mais como objeto de interpretação, mas, sobretudo, como instrumento de crítica à
imposição do celibato, o que nos levou obrigatoriamente a um traçado teórico
específico e completamente imbricado de conceitos, que se coadunam e se
complementam.
Algumas considerações foram levantadas e, neste momento, apresento
algumas destas conclusões, sem, portanto, finalizar esta investigação,
principalmente pela dimensão do universo investigado.
112
Assim, a arte fotográfica de Toscani sugeriu, a princípio, uma vasta
possibilidade de interpretações plásticas e cromáticas. Mas, uma interpretação
sugerida pelo mutor chama m mtenção: a possibilidade de compreender como a
construção fotográfica, do padre beijando a freira, elaborada pelo autor, representa
de forma explícita uma crítica ao celibato eclesiástico.
Ase, pe, pe, p concluir que esse estranhamento, em Toscani, é perpassado
pela compreensão de que a arte fotográfica construída é muito mais do que uma
crítica à norma, é uma crítica às relações de gênero construídas no seio da Igreja
Católica, de tal modo que esta construção denota como o celibato representa um
instrumento de poder patriarcal, presente no seio da Igreja Católica.
Deste modo, sendo o celibato uma possibilidade de compreender as relações
de gênero, verifica-se obrigatoriamente, a necessidade de compreender gênero em
sua amplitude e, deste modo, pode-se concluir que o gênero não passa
necessariamente pelo entendimento das questões de sexo. Logo se verifica que as
relações de gênero não são determinadas pelas questões biológicas, mas é,
sobretudo, “[...] resultante de uma invenção, de uma engenharia social e política”
(COLLING, 2004, p. 29).
Assim, o conjunto teórico sobre o conceito de gênero sugeriu que o estudo
deste não se limitasse apenas a entendê-lo partindo-se da compreensão do poder,
como afirma Scott (1991), que a autora afirma inclusive que esta é apenas uma
primordial forma de compreender gênero, apesar de o poder ser seguramente o
principal viés de representação do gênero, ou seja, a compreensão do gênero,
113
obrigatoriamente passa pela sua relação, interação e interconexão com classe, raça,
etnia, geração e, também, com religião, política etc., de tal modo que, para entender
gênero é necessário, constantemente ir para além do próprio gênero.
Conclui-se, ainda, que apesar de o poder ser central na discussão de gênero
e esta é uma afirmação, de Safiotti (2004), como incontestável, não se pode,
entretanto, privilegiar esta como a única e última verdade. Conceber o gênero como
exclusivamente uma instância do poder é desconsiderar outras nuanças deste
binômio gênero / poder.
Desta forma, reconstruir o conceito de gênero não apenas como uma forma
primeira de poder, mas, sobretudo, como uma expressão do poder patriarcal é
vislumbrar a possibilidade de entender gênero de uma forma mais ampla, ir,
portanto, para além do próprio gênero. É incluir nesta perspectiva não apenas a
disputa entre homens e mulheres, mas perceber que este como um processo de
dominação masculina, conforme denominado por Bourdieu, também engloba os
homossexuais masculinos que, apesar de pertenceram à mesma classe, vivenciam,
no seu dia a dia, a ordem patriarcal de gênero.
Desta forma, se podem compreender as relações de gênero em por
conseqüênciam o celibato, não apenas como uma disputa de poder, em que pese
esta realidade, mas, sobretudo como uma construção patriarcal de poder.
É Bourdieu, portanto, que melhor demonstra como as relações de gênero
podem ser compreendidas e, por conseguinte, como o conceito de gênero pode ser
elaborado, de tal forma quem segundo o autorm a dominação masculina está
114
estruturada em nosso inconsciente, e, portanto, por ser estruturada é estruturante e
se apresenta tanto nas estruturas simbólicas como nas instituições sociais, ou seja,
está presente em nossas vidas e em todos os sentidos. O autor ainda afirma quem
assim sendo, esta construção é socialmente consagrada como uma ordem
patriarcal, o que nos dizeres de Berger (1985), é legitimado.
Deste modo, a compreensão do gênero na perspectiva do celibato, conforme
descrito pelo Código de Direito Canônico, se configura como um dos mecanismos de
funcionamento da estrutura patriarcal de gênero presente na Igreja Oficial, de tal
modo que, assim como o celibato, o patriarcado se constrói e se representa como
uma expressão de poder.
Assim, o celibato, que pode ser compreendido como um instrumento
conjugado no masculino é uma construção patriarcal e que sua perspectiva consiste
no controle da sexualidade masculina, utilizando a estratégia do isolamento do
homem em relação à mulher, afastando esta última. Mas não só; ao afastar a mulher
, o regime patriarcal nega, por via de conseqüência, a sexualidade do próprio
homem, de tal modo que, neste sentido, ambos, - homens e mulheres -, são vítimas
da própria estrutura dominante, na qual a máquina patriarcal da Igreja Oficial, por
meio do celibato, funciona independentemente de quem é dominante ou dominado,
prevalecendo a norma.
Concluindo que o celibato representa um instrumento do poder patriarcal da
Igreja Oficial, parece-nos importante também concluir que a definição do celibato
constante do Código de Direito Canônico, segundo os nones 277 e 599d pelos
115
quais os clérigos são obrigados e têm a obrigação de se manter celibatários, denota,
ao contrário do discurso de oferta do celibato por parte da Igreja de Roma, uma
imposição da norma, sendo, portanto, o celibato uma imposição e não uma oferta,
pois, enquanto oferta, pressupõe a aceitação ou não, o que não é o caso.
Neste sentido, também fica claro que, ao se manterem celibatários, os
clérigos se afastam do outro, da mulher. Assim, a definição legal do celibato não
afasta a mulher da igreja, mas, sobretudo, afasta a mulher do homem, a partir do
momento em que obriga o homem a esta condição. Outra conclusão percebida diz
respeito à preferência do divino pelo gênero masculino, virgem e pela mulher,
virgem, cujo caráter cristológico, neste sentido trata a sexualidade como algo
desnecessário, ou ainda mais perigoso pois, a presença da sexualidade invalida
a possibilidade do homem unir-se a Cristo, conforme descrito no cânon 277 - §1 do
Código de Direito Canônico.
Logo, nesta ótica, o celibato feito por homens e para homens constrói o papel
da mulher como um ser inferior, a imagem e semelhança de Maria, a Imaculada.
O celibato, agora canônico e, portanto, numa concepção tradicional "implica
sujeição e obediência" (TAMEZ, 1998, p. 372), e já não representa nesta construção,
prioridades macho ou fêmea, indistintamente afasta, segrega, isola indivíduos.
Deste modo, o celibato masculino afasta o homem da mulher, enquanto o
celibato feminino produz este afastamento num sentido contrário, ou seja, ao afastar
a mulher do homem, o celibato da mulher a afasta dela mesma, à medida que esta
mulher não mais reconhece o próprio corpo, nega sua sexualidade, ignora o prazer,
116
de tal forma que o celibato que separa homens e mulheres, denota, em última
análise, o afastamento da mulher do poder e, ao afirmar o poder patriarcal, afirma,
por conseqüência, o poder do homem na Igreja.
A idéia de que a abstinência o celibato - representa o meio central de
salvação e riscos pela irracionalidade do ato, possibilita compreender, ainda, que
a sexualidade representa este algo que se interpõe entre a salvação e a
impossibilidade de tê-la, de tal maneira que, nesta lógica: a sexualidade ainda é
construída e expressa por um discurso repressivo e controlador, elaborado segundo
a perspectiva do poder patriarcal, na qual o gênero feminino representa este ato de
irracionalidade, tendo a mulher como única forma de encontrar seu próprio corpo
pela reprodução e, neste sentido “a religião torna-se, portanto, um anseio de
escapar do corpo, assim como um comando para controlá-lo” (POLLACK, 1997, p.
52).
O celibato, que nega a existência dos corpos, exclui a sexualidade
aprisionando-os, controlando os desejos, higienizando os corpos, pois os regula e,
por via de conseqüência, regula a sexualidade, que a denominada sexualidade
saudável se restringe exclusivamente à reprodução e, assim, o discurso médico se
ajusta e reafirma o discurso religioso, à medida que o reproduz. Os estudos sobre a
prostituição representam um lugar privilegiado, neste sentido, pois denotam o lugar
do gozo ilícito.
Ao normatizar as práticas sexuais, seja pelo uso do discurso médico, seja
recurso ao discurso religioso, o que a Igreja procura é, na realidade, controlar o
117
desejo, por aquilo que Lima (1986, p. 78) denominou de “ordenação do gozo”, ou
simplesmente a licitude e a ilicitude do prazer, já que a cópula para fins não-
reprodutivos é, segundo os manuais de confissão, um ato ilícito.
Neste sentido, a sexualidade é demarcada em relação à sexualidade do
outro., instaurando-se a proteção dos corpos, de tal forma que esta demarcação, ao
contrário, não instaura a sexualidade, mas serve-lhe de barreira. Ao determinar a
sexualidade dos clérigos em relação à sexualidade do outro, neste caso, o feminino,
o celibato reprime o corpo e o desejo destes homens, gerando uma barreira à
própria sexualidade e num sentido contrário, ao aprisionar o corpo do homem, por
conseguinte, afasta o corpo e nega a sexualidade do outro do homem, ou seja, da
mulher.
Este modelo de sexualidade, construído e difundido no imaginário cristão,
vem sendo ao longo dos anos, objeto de críticas dos movimentos feministas em
relação a este modelo elaborado nas relações de gênero. Entretanto, não foi apenas
o movimento feminista que se posicionou contrário a este modelo, a arte, pelas
formas diferenciadas de expressões artísticas, literatura, pintura, cinema, também
tem se mostrado contundente neste processo e tem se posicionado fortemente
contra este modelo de sexualidade construído pela Igreja de Roma.
Assim, a arte, ao longo dos anos, tem demonstrado que pode ser vista como
um importante instrumento de crítica, até porque, segundo Stefanini apud Bayer
(1978, p. 422), “a arte é este algo que transcende, juntamente com o artista, a
118
espiritualidade e a emoção”, ou seja, posiciona-se para além dos conceitos e
ideologias do artista, e se afirma como expressão viva da sua própria existência.
Neste sentido, a obra literária de Eça de Queiroz representa uma primeira
demonstração da arte, que se posiciona contra a improbidade eclesiástica de se
relacionar com o outro de maneira completa e irrestrita. É, portanto, um relato desta
batalha entre a fé e a razão; entre o desejo e a negação deste desejo. A obra de
Queiroz é uma descrição da máxima culpa: o amor entre um padre e uma mulher.
O cineasta Peter Mullan também traz para as telas do cinema mundial o
retrato de uma sociedade patriarcal e machista, com intuitos claros de dominação
sobre os corpos, nos quais, neste caso, é a sexualidade feminina que se caracteriza
como perigosa.
A intrigante obra de Peter Mullan instiga o pensamento partindo do relato da
vivência das mulheres no convento Irmãs de Madalena. O convento presta serviços
de lavanderia às igrejas da região, onde lavam lençóis e cobertas, o que sugere,
simbolicamente, que também se lavam diariamente, de forma incessante. O ato de
lavar, limpar, no filme Em nome de Deus parece infindável. Todas as mulheres
trabalham exclusivamente na lavanderia do convento. Os lençóis, todos brancos e
melimetricamente dobrados, denotam o perfil da mulher que a Igreja Oficial construiu
com base na imagem de Maria, imaculada, livre do pecado original. As Irmãs
de Madalena precisam ser brancas, alvas e melimetricamente corretas, como os
lençóis que lavam.
119
Ao contrário de padre Amaro, que com a morte da amada Amélia e a morte
do filho desta relação, foi absolvido e manteve-se na vida eclesiástica, às Irmãs de
Madalena este final parece impossível. A saída do convento não representa uma
tarefa fácil, nem tampouco permitida, mesmo que o pecado cometido já tenha sido
redimido pelo tempo ou mesmo pela pecadora.
O pecado das mulheres - no filme Em nome de Deus - parece não ter fim nem
perdão, o que demonstra que, para as mulheres o pecado é naturalizado, ou seja,
natural.
Magritte mostra como as artes plásticas também denunciaram as proibições
ao corpo, da sexualidade. É o beijo entre corpos que não se arriscam a mostrar-se.
As faces são ocultas como se o desejo e a sexualidade não pudessem ter nome
nem forma.
E, por fim, a arte fotográfica de Toscani do padre que beija a freira,
posicionando-o na contramão da norma, alertando para uma definição de poder no
masculino que afasta a mulher, da igreja e do homem, que a coloca no domínio do
privado, no âmbito da exclusão, no qual o beijo representa o exercício da
sexualidade que deve ser evitada.
Aqui, Toscani convida a uma reconstrução do imaginário, sugerindo muito
mais do que uma crítica ao celibato, mas também e sobretudo, uma crítica ao
modelo das relações de gênero proposto pela Igreja Oficial.
120
Vemos, sobretudo, que a arte de Toscani caminha na direção daquilo que o
próprio autor denominou de conhecimento estabelecido, é, portanto, uma construção
artística, que percorre a contra mão da norma.
O preto, o branco, o beijo, o padre, a freira, a face escondida, a face exposta
são apenas elementos simbólicos de uma construção que se pretende mais
elaborada, que serve à denúncia, que se constrói como subversiva, que denuncia
não apenas um beijo proibido entre duas pessoas proibidas, denuncia uma estrutura
de poder, baseada nas diferenças de gênero, convertidas em desigualdades para se
justificar e prevalecer como norma aceitável, como condição de ser.
A obra de Toscani convida, portanto, a uma reflexão, a uma democratização
da vida pessoal”, conforme abordada por Giddens (1993, p. 205), de tal forma, que
as normas possam ser separadas da sexualidade, e acima de tudo, do “poder do
falo” (GIDDENS, 1993, p. 212). Que os corpos possam ser livres, que a sexualidade
possa ser expressa, que as questões envolvendo o poder patriarcal não se
configurem como definidoras da vida cotidiana, dos desejos, das relações de
gênero, do próprio eu.
121
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