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LETRAMENTO DIGITAL COMO POSSIBILIDADE DE VIVER A EXPERIÊNCIA
ERRANTE DAS IDENTIDADES SOCIAIS
Por:
Petrilson Alan Pinheiro da Silva
(Programa Interdisciplinar em Lingüística Aplicada)
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa Interdisciplinar de Lingüística,
Faculdade de Letras da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Orientador: Professor Doutor
Luiz Paulo da Moita Lopes.
UFRJ / Faculdade de Letras
Rio de Janeiro, Dezembro de 2007
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Pinheiro, Petrilson Alan
Letramento digital como possibilidade de viver a experiência errante das
identidades sociais / Petrilson Alan Pinheiro. - Rio de Janeiro: UFRJ/ CLA,
2007.
xiii, 204 f.: il.; 29,7 cm.
Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes.
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa
Interdisciplinar de Lingüística Aplicada, 2007.
Referências Bibliográficas: f. 186-193.
1. Visão socioconstrucionista do discurso e das identidades
sociais. 2. (re)Construção da identidade social de gênero. 3. Letramento
digital. I. Moita Lopes, Luiz Paulo. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Programa Interdisciplinar de Lingüística
Aplicada. III. Título.
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LETRAMENTO DIGITAL COMO POSSIBILIDADE DE VIVER A EXPERIÊNCIA
ERRANTE DAS IDENTIDADES SOCIAIS
Petrilson Alan Pinheiro da Silva
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa Interdisciplinar de Lingüística
Aplicada, Faculdade de Letras, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Lingüística Aplicada.
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________________________
Professor Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes - UFRJ
Orientador
__________________________________________________
Professora Doutora Branca Falabella Fabrício – UFRJ
__________________________________________________
Professora Doutora Viviane Maria Heberle – UFSC
__________________________________________________
Professora Doutora Myriam Brito Correa Nunes - UFRJ
Suplente
__________________________________________________
Professora Doutora Liliana Cabral Bastos – PUC-Rio
Suplente
Rio de Janeiro
Dezembro de 2007
Ao meu filho, cuja existência passou a me
proporcionar um novo projeto de vida
emocionante e desafiador: o de ser pai.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, por sempre me incentivarem a lutar por aquilo que acredito valer
a pena.
Ao Professor Luiz Paulo da Moita Lopes, por seus ensinamentos e orientações
ao longo de minha vida acadêmica. Sou muito grato por sua paciência, confiança e
pelos constantes incentivos para que eu pudesse me tornar um pesquisador, um
profissional e um ser humano melhor. Através de sua generosidade em querer
constantemente compartilhar seus conhecimentos, ele me ensinou que, como sempre
gostou de dizer, “o conhecimento só vale a pena quando é compartilhado com os
outros”. Você, Luiz, mais do que meu orientador, se tornou meu amigo.
À Professora Branca Falabella Fabrício, co-responsável pelo meu crescimento
como pesquisador ao longo do mestrado. A ela agradeço não só por ser um exemplo
de dedicação profissional como professora e pesquisadora, mas, principalmente, por
sua incansável vontade e disposição em me incentivar e me ouvir sempre que a ela
recorri, mostrando-se sempre solícita em querer me ajudar. Muito obrigado, Branca.
À Professora Myriam Brito Correa Nunes, pelo seu profissionalismo, ética,
vontade, paixão e bom humor que sempre estiveram presentes nas suas aulas de
mestrado e que muito contribuíram para meu amadurecimento como pesquisador e
professor.
À Professora Viviane Maria Heberle, por seu pronto aceite em participar de
minha banca examinadora, pelo seu conhecimento e profissionalismo dos quais que já
tive a grande oportunidade de presenciar e, sobretudo, por sua simpatia e humildade
que sempre demonstrou desde que a conheci.
À Professora Liliana Cabral Bastos, ao só por aceitar ser suplente na minha
banca examinadora, mas, sobretudo, por ter sido sempre um exemplo de dedicação,
que já pude presenciar em simpósios e seminários dos quais participamos juntos.
À CAPES, pela bolsa de mestrado, que muito contribuiu para que eu pudesse
me dedicar à elaboração desta pesquisa.
Ao meu tio, Felipe, que sempre se mostrou muito solícito para me ajudar nesta
dissertação. Muito obrigado, Fil!
Aos meus irmãos (Celso e Edson) e aos meus queridos avós.
Ao amigo Fábio Ferrari, por ter me incentivado nessa grande empreitada que foi
o mestrado.
Aos colegas de mestrado e de iniciação científica do Salínguas (em especial, à
Lêda, Ana Paula, Milena, Rodrigo, Tatiana, Thiago, Thayse, Aline, Jucilene, Natália,
Douglas e Vitor), que me proporcionaram não só momentos de construção de bons
conhecimentos, mas, sobretudo, de alegria e companheirismo ao longo desses dois
anos. Muito obrigado a todos!
À Daniele, secretária do Salínguas, que sempre foi muito prestativa nos
momentos que recorri a ela, além de ser uma pessoa muito divertida. Continue assim!
À Bianca, por sempre ter sido paciente e ter me apoiado quando muito precisei.
Você sabe o quanto é especial para mim!
E, por fim, ao sujeito desta pesquisa, sem o qual esta dissertação não seria
possível. Você foi mais que um simples participante; você foi a parte que colaborou e
que serviu de referência para dar vida a todo este trabalho. Muito obrigado!
REINVENÇÃO
(Cecília Meireles)
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... - mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço...
Só - no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só - na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
RESUMO
O LETRAMENTO DIGITAL COMO POSSIBILIDADE DE VIVER A EXPERIÊNCIA
ERRANTE DA IDENTIDADE SOCIAL DE GÊNERO
Petrilson Alan Pinheiro
Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa Interdisciplinar de
Lingüística Aplicada, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Lingüística Aplicada.
O objetivo desta dissertação é o de realizar um estudo de caso centrado em um
menino de dezessete anos que se constrói sócio-discursivamente como uma menina no
ciberespaço por meio de práticas de letramento digital. Para tanto, tomarei como
construto teórico central uma visão socioconstrucionista do discurso e das identidades
sociais (MOITA LOPES, 2003), cuja base epistemológica está principalmente voltada
para a preocupação com o que fazemos com nossas vidas e com as dos outros quando
utilizamos a linguagem. Nessa concepção, compreende-se que as relações de sujeitos
e de sentidos, nas quais as identidades sociais são constituídas, são múltiplas e
variadas, isto é, são entendidas como heterogêneas, contraditórias e em fluxo,
constituintes das práticas discursivas nas quais atuamos (ORLANDI, 2001). Quanto à
metodologia de pesquisa, adoto uma visão interpretativista de pesquisa, de teor
etnográfico, em cuja perspectiva se reconhece o conhecimento como algo construído
na interpretação da linguagem (MOITA LOPES, 1994). Como material de análise,
construí dois corpora: uma entrevista com o meu sujeito de pesquisa, e algumas
conversas com seus amigos virtuais, realizadas nas salas de bate-papo da Internet,
onde ele (re)constrói sua identidade social de gênero. Por meio da análise dos dados, é
possível refletir acerca do fato de que uma pessoa, ao se constituir como homem ou
mulher, em especial no ciberespaço, não está expondo sua natureza, uma suposta
essência do seu ser que pré-existe ao discurso, mas está se interpretando e se
construindo de uma forma que a permita criar sentidos no mundo social, o que o
possibilita experimentar outros modos de viver a multiplicidade da experiência humana.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Identidades Sociais; Gênero; Letramento Digital;
Ciberespaço.
Dezembro de 2007
Rio de Janeiro
ABSTRACT
DIGITAL LITERACY AS A POSSIBILITY OF LIVING THE ERRANT EXPERIENCE OF
THE SOCIAL GENDER IDENTITY
Petrilson Alan Pinheiro
Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa
Interdisciplinar de Lingüística Aplicada, Faculdade de Letras, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada.
The objective of this dissertation is to develop a case study of a seventeen-year-
old boy who constructs himself as a girl on cyberspace by means of digital literacy
practices. To do so, I will take as a central theoretical construct a socioconstructivist
view of discourse and social identities (MOITA LOPES, 2003), whose epistemological
basis is concerned with what we do with our lives and with other people’s when using
language. In such a view, it is understood that subject relations, in which social identities
are constituted, are multiple and varied, namely, they are understood as heterogeneous
and contradictory, constituent of the discursive practices in which we participate
(ORLANDI, 2001). As for the research methodology, I adopt an interpretativist view of
research with an ethnographic flavor which understands that knowledge is something
constructed in language interpretation (MOITA LOPES, 1994). As for the data analysis, I
have constructed two corpora: an interview with my research subject, and some
conversations between him and his virtual friends, carried out in virtual chat rooms,
where he (re)constructs his social gender identity. By means of the data analyses it is
possible to ponder that a person, when constituting her/himself as a man or a woman, in
special on cyberspace, is not exposing her/his nature, a supposed essence of his/her
being which pre-exists discourse, but s/he is interpreting and constructing her/himself in
a way which allows her/him to create meanings in the social world, which enables him to
experience other means for living the multiplicity of human experience.
KEYWORDS: Discourse; Social Identities; Gender; Digital Literacy; Cyberspace.
December 2007
Rio de Janeiro
LISTA DE CONVENÇÕES E ABREVIATURAS
Lista adaptada de MARCUSCHI (1991)
/ ..............................................................................................................pausa breve
// .............................................................................................................pausa longa
:: ..............................................................................................alongamento da vogal
[ .............................................................................................sobreposição de vozes
(( )) ................................................................................comentários do pesquisador
/.../ ......................................................................................... corte na produção oral
P .............................................................................................................Pesquisador
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 14
2. DISCURSO COMO PRÁTICA SOCIAL 24
2.1. Um olhar reflexivo para a contemporaneidade 24
2.2. A visão socioconstrucionista do discurso: o foco na alteridade 32
2.3. Discurso e poder: uma visão foucaultiana 37
2.4. Categorias de análise do discurso: o posicionamento discursivo e as
pistas de contextualização
43
3. A IDENTIDADE SOCIAL DE GÊNERO 50
3.1. A temática das identidades sociais 50
3.2. O gênero como identidade social 53
3.3. Gênero e poder 61
4. LETRAMENTOS 65
4.1. Letramento com prática social 65
4.2. O letramento digital 71
5. O CIBERESPAÇO 80
5.1. O conceito de ciberespaço 80
5.2. O Ciberespaço e o letramento digital: Novas formas de (re)pensar e
redefinir as construções identitárias
85
6. CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA 95
6.1. O(s) Sujeito(s) de uma pesquisa: buscando respostas para a eterna
pergunta sobre o quê pesquisar
95
6.2. Uma breve discussão sobre o paradigma interpretativista de pesquisa 99
6.3. A pesquisa Interpretativista no estudo de caso: observando e 103
participando do Contexto e da Metodologia de pesquisa
6.3.1. O contexto de pesquisa 103
6.3.1.1. Os sujeitos da pesquisa 103
6.3.1.2. As salas de bate-papo do ciberespaço 105
6.3.2. A metodologia de pesquisa 109
7. ANÁLISE DOS DADOS 114
7.1. A (re)construção da identidade social de gênero de um menino por meio
de práticas de letramento digital
114
7.1.1. A Entrevista 116
Seqüência 1: “na Internet, a gente tem a chance de ser, assim, tipo uma
outra pessoa. Ser coisas que na vida real a gente, às vezes, não pode ser”
117
Seqüência 2: “eu às vezes fico muito irritado porque se você, tipo, não tem
uma namorada, então você é gay, quer dizer, ah, assim, todo mundo fica
pensando que você é gay”
121
Seqüência 3: “As meninas me adoram! Elas gostam muito de mim. Assim,
elas me respeitam e não têm vergonha de falar as coisas comigo”
125
Seqüência 4: “Um dia, por causa da foto que eu mostrei pra uma amiga na
Net, ela disse que um amigo dela viu a foto e aí ele quis muito me conhecer”
129
7.1.2. As conversas nas salas de bate-papo do ciberespaço 134
Excerto 1: “to doida pra botar piercing mas minha mãe fica me enchendo!!” 135
Excerto 2: “sei lá gosto de caras que falem coisas interessantes. Naum
gosto de cara machão, sabe? Gosto assim de caras que sabem conversar”
139
Excerto 3: “acho q naum precisa ser um Brad pit, mas pelos menos tem q
ser gatinho e educado!!!”
144
Excerto 4: “o gatinho é td de bom!!! ai, ja to azarando ele tem um tempo,
mas não sei. me ajuda, amigaaa!!!”
149
Excerto 5: “ela me disse que ele era só ficante. mas se sou ela ficava direto
com ele!!!”
153
Excerto 6: “vc só vai saber se namorar com ele. tem q tentar. To com inveja 156
de vc!!!”
Excerto 7: “eu acho,assim que nem todo homem é safado. Naum sei. tem
mulher mais safada do que homem”
161
Excerto 8: “ai, vc ta sendo machista!!! só porque eu sou mulher vc naum
quer falar!”
164
Excerto 9: “ai eles tiveram uma briga e vc sabe como é “gay” quando brigam
é porque a coisa ta feia”
168
7.2. Respondendo as questões de pesquisa 172
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS 179
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 186
ANEXOS 194
14
1. INTRODUÇÃO
“Tornamo-nos conscientes de que o
‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não tem a solidez
de uma rocha, não são garantidos para toda a
vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de
que as decisões que o próprio indivíduo toma, os
caminhos que percorre, a maneira que age – e a
determinação de se manter firme a tudo isso – são
fatores cruciais tanto para o ‘pertencimento’
quanto para a ‘identidade’. Em outras palavras, a
idéia de ‘ter uma identidade’ não vai ocorrer às
pessoas enquanto o ‘pertencimento’ continuar
sendo o seu destino, uma condição sem
alternativa. Só começarão a ter essa idéia na
forma de uma tarefa a ser realizada, e realizada
vezes e vezes sem conta, e não de uma só
tacada” (BAUMAN, 2005, p. 17).
O interesse cada vez mais crescente por questões acerca das identidades
sociais é resultado das diversas mudanças que vêm ocorrendo nas práticas de
sociabilidade do mundo contemporâneo; um mundo de contradições, de diversos
encontros e desencontros entre teorias e práticas, tentando buscar respostas que, por
sua vez, parecem estar na origem de novas perguntas.
De fato, os últimos anos têm sido marcados como um período de mudanças
muito significativas na vida social, mudanças essas que se constituem novas formas de
sociabilidade entre os mais variados conjuntos de atores sociais (BAUMAN, 2005). A
velocidade dos meios de comunicação e produção, a volatilidade do capital e o acesso
aos estoques mundiais de informação, possibilitados pela era da tecnologia, segundo
Fridman (2000), exerceram grande influência nas novas formas de sociabilidade.
Tudo isso tem influenciado mudanças em relação à autoridade dos padrões
morais e sociais tradicionais: entre o declínio da ética puritana, de um lado, e o
15
crescimento de uma ética consumista hedonista, de outro (LIPOVETSKY & CHARLES,
2004). Tais mudanças passaram também a ocorrer, sobretudo, em virtude do grande
fluxo de informação, bem como do seu fácil acesso, o que passou a disponibilizar
diversas formas de ver e viver a experiência humana (FRIDMAN, 2000), ao mesmo
tempo em que vêm contribuindo para propiciar um repensar e uma redefinição das
relações e identidades sociais construídas nos mais variados contextos sociais.
Essa visão acerca das identidades sociais que vêm sendo construída na
contemporaneidade tem sido possibilitada a partir de mudanças na vida social, devido,
em grande parte, ao acesso imediato à informação por meio da mídia. Assim, muitos
construtos sociais que, segundo Moita Lopes (2006b, p.32), eram “tradicionalmente
entendidos com um discurso da esfera privada, estão cada vez mais presentes no
domínio dos discursos públicos como a mídia”.
Nesse sentido, a mídia, sobretudo a mídia eletrônica digital, tem se tornado,
portanto, um espaço central não só para a difusão da informação renovada, como
também para a permanente (re)construção das identidades sociais. Em outras palavras,
na contemporaneidade, o processo de construção das identidades sociais está cada
vez mais dependente de um grande fluxo de materiais simbólicos constituídos por meio
das mais diversas práticas de letramento nas quais os sujeitos se engajam para
construir sentido na vida social.
Tendo em vista, portanto, a posição preponderante que as identidades sociais
têm ocupado no contexto sócio-histórico atual, em especial na mídia, é notório o
crescente interesse em se estudar a questão das identidades sociais na tentativa de
criar inteligibilidade sobre a vida social. A exemplo disso, é possível mencionar estudos
relativos à questão do gênero, como os estudos e movimentos feministas, e, mais
16
recentemente, estudos concernentes à sexualidade, como teorias anti-sexistas e queer,
que muito têm contribuído para promover um questionamento e até uma redefinição
do(s) modo(s) como sempre se compreendeu a problemática das identidades sociais.
Talvez esse campo das identidades sociais esteja vindo à tona nas áreas de
estudos sociais mais recentes em virtude do fato de muitos de nós – sociólogos,
antropólogos, psicólogos, filósofos, lingüistas aplicados etc – termos nos tornado
conscientes, conforme a epígrafe supracitada, de que as identidades, de fato, “não têm
a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida”. Ao contrário, “são
bastante negociáveis e revogáveis” (BAUMAN, 2005, p. 17).
Cito meu próprio caso como exemplo. O interesse em querer me enveredar por
esse caminho e começar, então, a lidar com a questão das identidades sociais surgiu
em 2003, ano em que conheci, ainda no curso de graduação em letras da UFRJ, os
professores Luiz Paulo da Moita Lopes e Branca Falabella Fabrício. Foi justamente
durante a disciplina de Lingüística Aplicada, no sétimo período do curso de português /
inglês, ministrada por esses professores, que tive meu primeiro contato com esse
assunto que, algum tempo mais tarde, já começaria a mudar o próprio rumo da minha
vida.
Naquele mesmo ano, fui convidado pelo professor Luiz Paulo da Moita Lopes a
participar das reuniões do Projeto Salínguas: um projeto filiado ao Programa
Interdisciplinar de Lingüística Aplicada da Pós-graduação da Faculdade de Letras da
UFRJ, que lida com linhas de pesquisa voltadas para a questão das identidades
sociais, sobretudo as de gênero, raça e sexualidade.
Devo confessar que meu pouco conhecimento acerca desse assunto sempre
fora construído sob a égide de uma lógica biologizante ou mesmo religiosa para
17
explicar determinados fenômenos que, já há algum tempo, passaram a não mais fazer
sentido para mim. Cresci aprendendo, por exemplo, que a homossexualidade ora era
considerada uma doença, para os mais “incrédulos”, ora um “mal do espírito”, para os
mais “religiosos”. Ou ainda que a subserviência feminina se devia à suposta “natureza
do seu sexo”, razão por que as mulheres seriam supostamente consideradas mais
frágeis, físico e emocionalmente falando, do que os homens.
Foi por meio das teorizações, com base nas muitas leituras exigidas pelos
professores, e das discussões durantes as reuniões do projeto de pesquisa que passei
a compreender que somos construídos sócio-discursivamente por diversos traços
identitários que tanto nos levam a acreditar em regimes de verdade tradicionais de
cunho “bio-religioso”, impostos pela sociedade, como os que mencionei acima, quanto
podem, por outro lado, nos oferecer um outro olhar que, ao buscar desnaturalizar tais
construtos, nos possibilite enxergar outras alternativas de viver a experiência humana.
Contudo, devo reconhecer que, ao me expor a esse novo olhar, ainda pairaram
por minha mente muitas dúvidas. Afinal de contas, ainda me encontrava um tanto preso
aos valores tradicionais sob os quais sempre fui criado. Surgiram, então, certos
questionamentos, sobretudo no que concerne à questão do gênero e do sexo: ora, se
estou operando com uma base epistemológica que compreende a identidade social de
gênero, bem como as demais identidades sociais, como uma construção social, então,
o que dizer a respeito do sexo, atributo biológico usado no senso comum, e até
cientificamente, para categorizar homens e mulheres?
Esse e outros questionamentos só contribuíram para fomentar meu interesse em
estudar questões relativas à construção das identidades sociais, em especial, o gênero.
Foi, então, imbuído desse espírito “aventureiro” (digo “aventureiro” porque, de fato,
18
estava me enveredando por um caminho estranho, um novo mundo de conhecimento)
que me propus a ser um pesquisador. Dois anos depois, já estaria fazendo parte do
corpo discente de pós-graduação (mestrado) do programa interdisciplinar em lingüística
aplicada da UFRJ.
Depois de já ter decidido que me tornaria um pesquisador, só faltava saber qual
seria exatamente o assunto e, conseqüentemente, o objetivo da minha pesquisa. E,
mesmo antes de ingressar no mestrado, já tinha um interesse muito grande em
pesquisar a Internet. Mostrar, por exemplo, que as características precípuas das
identidades sociais, como a fluidez, a heterogeneidade, a multiplicidade e a
variabilidade são muito mais visíveis no mundo virtual do que no mundo real.
É preciso mencionar que, até aquela época, as pesquisas realizadas pelo corpo
docente e discente do Projeto Salínguas (resenhas, artigos científicos, dissertações de
mestrado etc) estavam voltados exclusivamente para o contexto escolar. E, como já há
algum tempo o meu orientador estava começando a lidar com estudos que envolviam
outros contextos institucionais (que não a escola), percebi, naquela mudança, uma
possibilidade de realizar pesquisas que estivessem relacionadas com o mundo virtual,
deslocando-me, portanto, do contexto escolar.
Ao longo dos dois últimos anos (2006 e 2007), tive, então, a oportunidade de
desenvolver alguns estudos que tematizam a inter-relação entre a questão das
identidades sociais e a Internet, em trabalhos de fim de curso de mestrado, em
apresentações de congressos, simpósios e seminários nacionais e internacionais e até
em artigos acadêmicos que foram publicados por revistas científicas da área.
19
___________________________
1
Por motivos éticos, o nome do sujeito de pesquisa e os de todas as pessoas com as quais interage
serão substituídos por pseudônimos neste trabalho. Para ele, optei pelos pseudônimos “Johnny” e
“Rose”. Este será usado sempre que ele estiver se construindo como uma menina nos dados
gerados referentes às salas de bate-papo do ciberespaço; aquele, quando estiver se posicionando
como um menino nos dados gerados na entrevista que me concedeu. Ainda faço uso dos dois nomes
juntos (Johnny / Rose) quando for possível, a meu ver, realizar uma interpretação ambivalente a
respeito da sua construção identitária, em que ele poderia estar se construindo tanto como Johnny
quanto como Rose.
Todavia, devo reconhecer novamente que, mesmo já tendo feito alguns
trabalhos relativos ao assunto, um dos grandes percalços pelos quais passei, e acredito
que muitos outros pós-graduandos de mestrado e doutorado também passam, estava
relacionado a uma eterna questão: o que pesquisar?
De fato, não sei se posso falar em nome de todos os discentes que se propõem
a realizar pesquisas, aliás, acho até que não. Muitos parecem chegar aos cursos de
mestrado e doutorado bastante convictos do que realmente querem pesquisar, o que,
no começo da minha jornada acadêmica, confesso, já me causou até uma certa inveja.
Contudo, devo dizer que, hoje, sinto-me orgulhoso de fazer parte da grande maioria que
passa pelos cursos de pós-graduação vivendo esse grande dilema sobre o quê
investigar. Isso porque, mesmo sabendo que essa dúvida poderia fazer com que me
atrasasse na pesquisa, acredito que nós só podemos construir conhecimento quando o
reconhecemos como um eterno devir. E, não obstante a minha pouca experiência, acho
que consegui aprender algo que, por mais paradoxal que possa parecer, já tem
norteado a minha vida há algum tempo: certeza e conhecimento não são palavras
sinônimas.
Com o intuito de buscar encontrar respostas para meus questionamentos
acerca da dinâmica da identidade social de gênero no panorama contemporâneo, em
especial no mundo virtual, depois de mudar o próprio rumo da minha pesquisa (Ver
seção 6.1), decidi-me por realizar um estudo de caso com Johnny
1
, cujo objetivo é o
20
tratar a construção da identidade social de gênero de um menino em práticas de
letramento digital no ciberespaço. Para tanto, procurarei pautar-me pelas seguintes
questões de investigação:
1) Como o sujeito de pesquisa (re)constrói sócio-discursivamente sua
identidade social de gênero ao participar de conversas em salas de bate-papo no
ciberespaço?
2) Como as práticas de letramento digital com as quais ele se envolve
promovem outras possibilidades de viver sua experiência identitária de gênero?
Meu interesse em focalizar o contexto do ciberespaço encontra respaldo,
primeiramente, na grande importância que a mídia eletrônica digital vem ocupando nas
mais variadas esferas da vida social, por ser um meio através do qual circulam tanto
discursos mobilizadores de novos significados, quanto discursos geradores e
mantenedores de preconceitos acerca da identidade social de gênero. Tal fato se deve
em função do número cada vez mais crescente de pessoas, sobretudo de
adolescentes, que fazem uso da Internet, em especial das salas de bate-papo virtuais,
engajando-se nas mais variadas práticas de letramento digital, em que compartilham
suas histórias de vida, conhecimentos, crenças, valores e opiniões, que perpassam os
contextos mais íntimos aos mais públicos.
Com base nisso, decidi, portanto, analisar a interação de Johnny com alguns de
seus amigos virtuais em salas de bate-papo do ciberespaço, em que ele se constrói
sócio-discursivamente como uma menina.
Para fins de organização, esta dissertação foi dividida em nove capítulos. Ao
encontro das idéias e dos objetivos esboçados acima, o presente estudo foi, então,
estruturado com base nas divisões apresentadas a seguir:
21
No Capítulo 2, busco apresentar uma perspectiva do discurso como prática
social. Logo no início, traço um breve panorama acerca da contemporaneidade, o
momento sócio-histórico em que estamos vivendo, fazendo referência a algumas das
transformações pelas quais a sociedade globalizada vem passando. Ao fim da primeira
seção, um destaque especial é dado à relevância da mídia e ao discurso na formação
de crenças, valores culturais, políticos e sociais para a (re)construção de identidades
sociais. Em seguida, discuto a visão socioconstrucionista do discurso e das identidades
sociais, em que mostro a importância do reconhecimento da alteridade na ação
discursiva e o modo como o discurso é entendido como uma forma de agir no mundo,
uma vez que ele tanto constrói o mundo social como se constitui por meio dele. Logo
depois, tento problematizar algumas questões pertinentes às relações entre discurso e
poder, com base numa visão foucaultiana, com o fito de mostrar como os discursos são
práticas sociais permeadas por relações de poder. Ainda neste capítulo, apresento os
dois recursos analíticos com os quais lido no presente trabalho: os conceitos de
posicionamento discursivo (DAVIES & HARRÉ, 1990; VAN LANGENHOVE & HARRÉ,
1999) e o de pistas de contextualização (GUMPERZ, 1999), utilizados aqui como
construtos teórico-metodológicos, visto que, em toda interação discursiva, nos
localizamos e localizamos o outro frente aos discursos dos quais participamos com
base em traços nas formas lingüísticas e paralingüísticas presentes nas estruturas
discursivas que contribuem para indexicalizar nossas identidades sociais.
O capítulo 3 é dedicado a tratar da questão da identidade social de gênero,
apresento, de forma mais geral, a temática das identidades sociais à luz do contexto
sócio-histórico atual. Em seguida, discorro acerca do gênero como uma construção
social, buscando não só historicizar seu conceito, como também apontando seu caráter
22
múltiplo, heterogêneo e fragmentado. Na última seção, discuto a relação entre gênero e
poder, mostrando que, embora seja construído socialmente, e que, por isso, estaria
sempre aberto a re-significações, o gênero não se apresenta de forma passiva na
sociedade, mas, muitas vezes, se constitui por meio de relações assimétricas de poder.
No capítulo 4, discorro acerca do(s) conceito(s) de letramento na
contemporaneidade, entendendo-o como uma prática social e plural. Logo depois,
busco realizar um contraponto entre os modelos autônomo e ideológico de letramento,
e situo a prática de letramento com a qual o sujeito de pesquisa se envolve no modelo
ideológico. Em seguida, trato da questão do letramento digital, em que mostro como a
introdução, na sociedade, de novas modalidades de práticas sociais de leitura e de
escrita, propiciadas pelas recentes tecnologias de comunicação eletrônica digital, estão
contribuindo para um repensar na forma como concebemos a própria noção de
conhecimento, uma vez que esse novo tipo de letramento na cibercultura nos conduz a
construir um tipo de conhecimento diferente daquele a que conduzem as práticas de
leitura e de escrita da era pré-digital. Ainda neste capítulo, aponto o hipertexto digital
como um meio multimodal de construir sentido nas práticas de letramento do
ciberespaço.
O capítulo 5 é dedicado a tratar teoricamente do ambiente que gerou a minha
pesquisa de dissertação: o ciberespaço. Logo no início, apresento conceitos gerais
sobre o ciberespaço, compreendendo-o como uma grande rede interconectada
mundialmente, com um processo de comunicação “universal” sem uma “totalidade”. Na
seqüência, tento relacionar o mundo do ciberespaço e as novas práticas de letramento
digital com as novas práticas de sociabilidade na contemporaneidade e com a
construção identitária, ao ponderar que a(s) maneira(s) como nos posicionamos nas
23
mais diversas práticas de letramentos nas quais nos engajamos contribuem para
(re)construir quem somos no mundo social. Com isso, busco mostrar como essa
relação está promovendo novas alternativas para se (re)pensar as construções
identitárias, como as salas de bate-papo da Internet, que se transformaram num lugar
para novas possibilidades de viver a experiência humana.
No capítulo 6, trato do contexto e da metodologia de pesquisa. Inicialmente,
relato o modo como a minha pesquisa tomou um outro rumo, em que passei a lidar com
um estudo de caso. Em seguida, discuto brevemente acerca do paradigma
interpretativista de pesquisa, em que justifico a opção por essa visão de pesquisa no
presente trabalho. Na seqüência, situo, então, a minha investigação como um estudo
de caso dentro da perspectiva de pesquisa interpretativista, em que me posiciono não
somente como observador, mas, sobretudo, como co-participante da pesquisa. Ainda
nesta seção, descrevo o contexto em que este estudo foi realizado, bem como os
instrumentos utilizados na geração dos dados.
Dedico o capítulo 7 à análise e discussão dos dados, em que analiso e interpreto
os dados à luz dos pressupostos teórico-metodológicos abordados aqui, fazendo,
primeiramente, uma breve introdução. Em seguida, discuto os dados gerados nos dois
corpora de análise (a entrevista e as salas de bate-papo do ciberespaço), e, por fim,
separadamente, respondo às duas perguntas de pesquisa que nortearam este estudo.
O capítulo 8 encerra como as minhas considerações finais acerca dos resultados
do trabalho como um todo, tomando como base os pressupostos teórico-metodológicos
e a análise e interpretação dos dados desta pesquisa.
24
2. DISCURSO COMO PRÁTICA SOCIAL
2.1. Um olhar reflexivo para a contemporaneidade
As transformações ocorridas no final da década de
oitenta entraram de rompante na década de noventa e
estão-nos agora em casa. Que fazer delas? Por que
transformações estão a passar as transformações? Que
desafios colocam à sociologia e às ciências sociais e
humanidades em geral? De que modo nos vão afectar?
De que modo as podemos afectar? Não é fácil
responder a estas questões, tanto mais que elas
pressupõem como não problemática uma postura
epistemológica que o é cada vez mais. Pressupõem a
separação sujeito-objeto: nós, aqui, as transformações,
lá fora. Quando, na verdade, as transformações não são
mais que nós todos, todos os cientistas sociais e todos
os não cientistas sociais deste mundo a transformarmo-
nos (SANTOS, 2001, p. 18).
Se nos dispusermos a observar o contexto sócio-histórico atual com acuidade,
perceberemos que, nos últimos anos, houve transformações muito significativas nos
jogos relacionais que se traduzem em novas formas de sociabilidade entre os mais
variados conjuntos de atores sociais (BAUMAN, 2005). Tais mudanças passaram a
ocorrer, sobretudo, em virtude do grande fluxo de informação, bem como do seu fácil
acesso, o que passou a disponibilizar diversas formas de ver e viver a experiência
humana (FRIDMAN, 2000). Isso, ao mesmo tempo, vem, outrossim, contribuindo para
propiciar um repensar e uma redefinição das relações e identidades sociais, uma vez
que, conforme a epígrafe supracitada, todos estamos, de alguma forma, nos
transformando (SANTOS, 2001).
Esse momento sócio-histórico tem sido batizado com diversos nomes pelos
estudiosos que têm se dedicado a teorizar a contemporaneidade. Rótulos como
25
___________________________
2
Os autores Lipovetsky & Charles (2004) fazem uma distinção entre os períodos da “Pós-modernidade” e
o da “Hipermodernidade”. O primeiro, de acordo com os autores, seria uma fase imediatamente posterior
ao período da Modernidade, cujo princípio norteador é o da conquista pessoal; o segundo, que se
caracteriza por ser o período atual em que vivemos, é marcado por prerrogativas sociais,
responsabilidades e medos. O mote, portanto, do primeiro, de acordo com Lipovetsky & Charles (2004, p.
29), se resume a “goze sem entraves”; do segundo, “tenha medo em qualquer idade”.
3
Faço uso da expressão “Pós-moderninade” (entre aspas) em função do seu caráter ambíguo, e até
contraditório, na opinião de alguns dos autores supracitados. Para
Rouanet (1987), por exemplo, o
prefixo “pós” tem muito mais o sentido de exorcizar o velho (a “modernidade”) do que de articular o novo
(o “pós-moderno”). Pennycook (2006, p. 76), por sua vez, assevera que embora as “teorias do “pós”,
como a “pós-modernidade”, “tenham feito avançar nosso pensamento de forma útil em muitos domínios,
permanecem atadas aos domínios além dos quais reivindicam ir”.
Em face disso, prefiro o termo
“contemporaneidade” por ser considerado menos polêmico e problemático para se compreender o
momento sócio-histórico atual.
“Pós-modernidade” (LYOTARD, 1989; ROUANET, 1987; SANTOS, 2001),
“Modernidade Reflexiva”
(BECK, GIDDENS &LASH, 1997), “Modernidade Líquida”
(BAUMAN, 1999), “Modernidade tardia” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999),
Capitalismo Tardio (JAMESON, 1996) e “Hipermodernidade”
2
(
LIPOVETSKY &
CHARLES, 2004), entre outros, têm sido usados para se referir a todas as mudanças
de ordem social, cultural, histórica, política e econômica que vêm transformando a vida
de todos nós, sem exceção.
As primeiras discussões sobre o tema da “pós-modernidade”
3
surgiram no campo
das artes e da estética, notadamente na arquitetura. De forma geral, têm se
caracterizado pelas polêmicas a respeito do fim das bases de legitimidade do
conhecimento moderno ou sobre as transformações da vida social acarretadas pelo
avanço tecnológico. Esse período da contemporaneidade vem trazendo, de fato, uma
série de mudanças em todos os aspectos da vida social: a velocidade dos meios de
comunicação e produção, a volatilidade do capital e o acesso aos estoques mundiais de
informação, possibilitados pela era da tecnologia, estão exercendo uma influência cada
vez maior nas novas formas de sociabilidade (BAUMAN, 2005).
26
Essas Mudanças vêm afetando a relação como concebemos a autoridade dos
padrões morais e sociais tradicionais: entre o declínio da ética puritana, de um lado e o
crescimento de uma ética consumista hedonista, de outro (LIPOVETSKY & CHARLES,
2004). E o dinamismo com que tais mudanças ocorrem tem atingido de forma crucial as
relações sociais, sobretudo, as subjetividades; mais do que nunca, o indivíduo se
tornou o centro de si mesmo, ou, nas palavras de Lipovetsky & Charles (2004, p. 23):
A pós-modernidade representa o momento histórico preciso em que
todos os freios institucionais que se opunham à emancipação individual
se esbarram e desaparecem, dando lugar à manifestação dos desejos
subjetivos, da realização individual, do amor-próprio. As grandes
estruturas socializantes perdem a autoridade, as grandes ideologias
não estão mais em expansão, os projetos históricos não mobilizam
mais, o âmbito social não é mais que o prolongamento do privado –
instala-se a era do vazio, mas “sem tragédia e sem apocalipse”.
De fato, nunca, na história da humanidade, os seres humanos viveram de forma
tão intensa tudo aquilo que diz respeito ao seu próprio eu. Na sociedade do consumo
(BAUDRILLARD, 1995), em que tudo e todos são cada vez mais tratados como
mercadorias (JAMENSON, 1993; SANTOS, 2001), o que existe é uma eterna
insatisfação, que vai sendo preenchida por um consumo hedonista, sempre pronto a
acabar e a recomeçar novamente. Sobre essa questão, Bauman (2005, p. 98) pondera
que:
Hoje em dia, somos consumidores numa sociedade de consumo. A
sociedade de consumo é a sociedade do mercado. Todos estamos
dentro e no mercado, ao mesmo tempo clientes e mercadorias. Não
admira que o uso/consumo das relações humanas, e assim, por
procuração, também de nossas identidades (nós nos identificamos em
referência a pessoas com as quais nos relacionamos), se emparelhe, e
rapidamente, com o padrão de uso/consumo de carros, imitando o ciclo
que se inicia na aquisição e termina no depósito de supérfluos.
27
Tem-se início, portanto, uma nova sociedade denominada sociedade de
consumo fragmentada (FRIDMAN, 2000), com a substituição da produção fordista por
cadeias de montagem mais curtas e flexíveis, denominadas de Toyotização, o que
acarretou, segundo Santos (2001), na perda do poder do Estado-nação, com a
crescente globalização da economia e alto índice de desemprego. Como corolário, a
noção de democracia passou a se basear na capacidade de livre escolha de bens de
consumo (LIPOVETSKY, 2004).
O consumo, na contemporaneidade, se coaduna, por conseguinte, com a esfera
econômica, que, longe de questionar qualquer ruptura com o sistema capitalista, mostra
que cada vez mais estamos no estágio do capitalismo tido como transnacional
(JAMESON, 1996). Relacionado intrinsecamente à globalização, esse momento sócio-
histórico tem como características essenciais a ruptura com as fronteiras nacionais e
uma adaptação mais flexível às demandas da produção e dos mercados consumidores.
Segundo Jameson (1996, p.17), o “pós-modernismo” seria, portanto, um conceito de
“periodização cuja principal função é correlacionar a emergência de novos traços
formais da vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma
nova ordem econômica”.
Nesse mundo da globalização, embora marcado por muitas transformações, uma
merece um destaque especial: a mídia. Com efeito, o desenvolvimento da mídia
transformou a constituição espacial e temporal da vida social, criando novas formas de
ação e interação não mais ligadas ao compartilhar de um local comum. Em relação a
essa característica, Fridman (2000, p. 17) aponta que “é possível saber o que afeta o
mundo todo e não estar em lugar algum”. Desse modo, podemos experimentar os
28
acontecimentos sem a necessidade de compartilhar simultaneamente o mesmo espaço
que nosso interlocutor.
Essa capacidade da mídia de transformar o próprio sentido de temporalidade tem
se tornado um dos efeitos mais importantes do mundo contemporâneo, em que os
sujeitos vivem presentes contínuos perpétuos, em que o eterno presente, o tempo das
“narrativas da mídia, é contado pelo relógio dos gozos que se gastam em cada aceno
das mercadorias, nessa versão de uma salvação terrena que não tem um fim último
nem dá coerência a trajetos de vida” (ibidem, p. 72).
De fato, essa nova relação espaço-tempo, proporcionada pelos meios de
comunicação em massa, que vêm intensificando as relações sociais em escala mundial
ligando localidades antes distantes, tem nos proporcionado um novo tipo de vida nunca
antes experimentado. As conseqüências dessa transformação têm grande alcance e
atingem muitos aspectos e instâncias de nossas vidas, desde os mais íntimos aspectos
da experiência em um nível micro, a instâncias macro de domínio público (THOMPSON,
2004). A esse respeito, Fabrício (2006, p. 47) aponta que:
A compressão espaço-tempo possibilitada pela velocidade da circulação
de discursos e imagens disponibilizados em tempo real pela TV ou pela
Internet, que, ao produzirem uma megaestimulação visual e cognitiva,
vêm tornando os regimes de atenção, concentração e percepção cada
vez mais rápidos, instantâneos, multifocais e fragmentários, fabricando
novos espaços de visualidade, de experimentação e de construção de
sentido (como, por exemplo, espaços e simuladores virtuais e
holográficos).
Em meio a esse mundo globalizado e contingente, percebemos cada vez mais
que as ações globais são cada vez mais afetadas pelas ações locais e o local, por sua
vez, cada vez mais globalizado, ou, segundo Kumaravadivelu (2006, p. 134), “o global
29
está localizado e o local está globalizado”. Com isso as práticas sociais passam a ser
perenemente examinadas e reformuladas à luz de informação renovada sobre estas
mesmas práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter. Portanto, torna-se
intrínseco ao processo de constituição do conhecimento a possibilidade de revisão das
convenções daquilo que se tem como certo e verdadeiro (VENN, 2000).
Isto posto, podemos atribuir à fluidez do tempo a possibilidade, segundo
Thompson (2004), de compartilhar de “uma visibilidade mediada”, que é a
transformação da própria idéia de experiência, uma capacidade reflexiva de processar
novos conteúdos e de atuar em questões diversas e, como corolário, transformar a
própria vida social.
Um dos desdobramentos, portanto, mais significativos desse momento de grande
reflexividade da vida contemporânea (BECK, GIDDENS & LASH, 1997), marcada por
mudanças socioculturais e pela exposição a uma gama de discursos diversos, reside na
possibilidade que ela abre para (re)construção das identidades sociais no mundo
altamente semiotizado em que vivemos. Nesse sentido, a mídia passa a ser, então,
considerada como o veículo através do qual se produzem as incertezas, ambivalências
e pluralidades acerca das coisas do mundo contemporâneo (THOMPSON, 2004). A
esse respeito, Fridman (2000, p. 23) assinala que “a onipresença da mídia, ambiente
em que se processa a nova expansão do capitalismo, informa a idéia de sociedade da
imagem”. Nesse contexto, o predomínio das imagens influencia as maneiras de pensar,
sentir, desejar, consumir e agir dos indivíduos.
Contudo, somos atordoados pela sensação de que todos esses recursos
tecnológicos irão nos atropelar com uma avalanche de informações e acontecimentos
que nos chega em um ritmo acelerado e por meios diversos (SANTOS, 2001). A gama
30
de informações transmitida pela mídia nos leva a não fazer distinção entre o aqui e o
ali, entre o próximo e o distante, afetando, assim, a nossa relação pessoal com o
espaço e com o tempo. E tudo isso pode causar um certo efeito desorientador sobre
muitos indivíduos, uma vez que
“o uso dos meios de comunicação transforma a
organização espacial e temporal da vida social, criando novas formas de ação e
interação, e novas maneiras de exercer o poder” (THOMPSON, 2002, p. 14).
Filiando-se a essa compreensão, Fabrício e Moita Lopes (2004) contribuem para
a compreensão do sentido de vertigem ao sublinharem que “muitas das certezas ou
modos de viver tomados como naturais têm sido questionados cotidianamente pelos
avanços tecnológicos”, produzindo, assim, a “destradicionalização da vida pública e
íntima” (FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004, p. 6) na atualidade. É, justamente, essa
experiência sobre a diversidade econômica, cultural e social, sem precedentes, que
vem alterando profundamente a vida em sociedade, ou pelo menos a sua
compreensão, o que colabora para gerar o que alguns denominam de mundo em
descontrole (GIDDENS, 2002). Nesse sentido, Moita Lopes (2003, p. 15) pondera que:
Há nas práticas cotidianas que vivemos um questionamento constante
de modos de viver a vida social que têm afetado a compreensão da
classe social, do gênero, da sexualidade, da idade, da raça, da
nacionalidade etc., em resumo, de quem somos na vida contemporânea.
Uma vez frente a esses novos significados, que não fazem parte de seu
repertório de sentidos, muitos sujeitos sociais perdem seu referencial e se deparam
com um sentimento de insegurança e impotência. Segundo Fridman (2000), as
vertigens trazidas por essas rápidas transformações resultam em esforços de se tentar
compreender o mundo atual. Esses esforços evidenciam a tentativa de elucidação dos
31
meios e modos em que se processa a “comunicação instantânea, a volatilidade do
capital, a ação à distância, os novos apartheids sociais, a fragmentação do sujeito e a
predominância da mídia na constituição do universo simbólico das grandes massas”
(FRIDMAN, 2000, p. 11).
Nesse contexto, emerge uma outra característica marcante da
contemporaneidade: a noção de “modernidade reflexiva” (BECK, GIDDENS & LASH,
1997), em que se configuram propostas de reflexões constantes sobre a realidade
social que nos circunda. E, mesmo reconhecendo que ainda coexistem uma série de
kits identitários que não se enquadrariam no modelo de modernidade reflexiva proposto
pelos autores acima, é possível perceber, segundo Giddens (2002, p. 45), que a
reflexividade é um fator cada vez mais presente na vida social moderna, em que as
“práticas sociais estão sendo constantemente examinadas e reformadas à luz de
informação renovada sobre essas próprias práticas, alterando, assim constitutivamente
seu caráter”.
Se estamos presenciando mudanças profundas nas práticas sociais, devemos
pois, considerar sobremaneira a importância que o discurso assume na vida
contemporânea, uma vez que estou operando aqui com uma visão de discurso como
prática social, como uma forma de agir no mundo (Ver seção 2.2). A esse respeito,
Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 4) asseveram que “uma característica importante das
mudanças de ordem econômica, cultural, e social da modernidade tardia é que elas
existem como discursos”. Logo, podemos inferir que a instauração do processo reflexivo
está intimamente relacionada ao uso do discurso como espaço de reflexão sobre a vida
social. É, portanto, a partir dessa noção de discurso, tomando como base os aspectos
32
aqui explicitados acerca da contemporaneidade, que passo a discutir, na próxima
seção, o discurso como prática social.
2.2. A visão socioconstrucionista do discurso: o foco na alteridade
O significado é um construto negociado pelos
participantes, isto é, não é intrínseco à linguagem
(BAKTIN,1981, p. 96).
Em virtude do quadro sócio-histórico exposto na seção anterior, busco, no
presente trabalho, uma noção de discurso ancorada em uma visão
socioconstrucionista, cuja base epistemológica está voltada para a preocupação com o
que fazemos com nossas vidas e com as dos outros quando utilizamos a linguagem
(MOITA LOPES, 2006a). Nessa concepção, portanto, o discurso é caracterizado como
uma ação na qual os significados são gerados pelos participantes de um evento
discursivo específico. Em outras palavras, compreender o discurso sob essa ótica
implica, sobretudo, considerar seus efeitos sociais, o que nos leva a percebê-lo como
uma forma de ação no mundo social.
Para entender a importância que o discurso assume na contemporaneidade
dentro das relações sociais, devemos enxergá-lo, primeiramente, como uma construção
social. Isso quer dizer, primeiramente, que o significado, conforme Bakhtin (1981, p. 96)
pondera na epígrafe acima, “é um construto negociado pelos participantes, isto é, não é
intrínseco à linguagem”; e também que a construção social do significado se vincula a
momentos sócio-históricos específicos e é mediada por práticas discursivas
particulares, em que os participantes estão atrelados a relações de poder (FOUCAULT,
1979). Essa visão do discurso tem influenciado também pesquisadores que têm
33
examinado como a construção das identidades sociais se dá por meio do envolvimento
das pessoas com práticas discursivas (MOITA LOPES, 2003). Assim, podemos inferir
que as identidades sociais dos sujeitos estão constantemente sendo (re)inventadas
para si e para o outro, construindo-se, desta forma, a realidade por meio do discurso.
Nesse sentido, pode-se inferir que o discurso fornece os meios de mediação da
ação, já que é o seu estudo que demonstra como os participantes do mundo social
constroem os contextos institucionais em que vivem (MOITA LOPES, 2003). Sob essa
perspectiva, é possível afirmar que o olhar para a ação humana situada implica,
portanto, uma noção fundamental para se compreender a vida social: a alteridade.
Assim, na busca de tentar fazer sentido no mundo por meio do uso da linguagem nas
práticas discursivas, a presença do outro se configura como de extrema relevância para
esse processo. Por isso, a concepção de alteridade está implícita no próprio conceito
de interação, já que esta pressupõe ação conjunta entre atores sociais. É, portanto, a
presença do outro com o qual nos “engajamos no discurso (tanto no modo oral, quanto
no modo escrito) que, em última análise, molda o que dizemos e, portanto, como nos
percebemos à luz do que o outro significa para nós” (MOITA LOPES, 2002, p. 32).
Nesse sentido, a obra de Mikhail Bakhtin contribuiu sobremaneira para os
estudos da linguagem no que concerne à importância da alteridade na construção de
quem somos. Desse modo, focalizar o discurso à luz da teoria desse pensador implica
compreendê-lo como uma construção dialógica. Para Bakhtin, a interação, então, é
engendrada pelas relações que os sujeitos estabelecem entre si no meio social através
da mediação da linguagem (BLANCK, 1996). Sob essa perspectiva, a presença do
“outro” possui, portanto, um papel fundamental, pois sem ele (o outro) o sujeito não
mergulha no mundo “sígnico, não penetra na corrente da linguagem, não se
34
desenvolve, não realiza aprendizagens, não ascende às funções psíquicas superiores,
não forma a sua consciência, enfim, não se constitui como sujeito” (FREITAS, 1997, p.
320).
Isso nos leva a afirmar que é o engajamento discursivo com o outro que irá dar
forma não somente ao que dizemos, mas ao que somos (MOITAL LOPES, 2003).
Assim, no uso da linguagem, sempre há alguém para quem desejamos nos remeter e
com quem desejamos nos relacionar. A alteridade, portanto, é um elemento crucial para
a construção do significado bem como de nossa vida social.
Com base nessa visão de linguagem, Bakhtin desenvolve o conceito de
dialogismo, cujo sentido pode ser interpretado como o elemento que instaura a
natureza interdiscursiva da linguagem na medida em que diz respeito “ao permanente
diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos
que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade” (BRAIT, 1997, p. 98).
Nesse sentido, o dialogismo é entendido como um elemento representativo das
relações discursivas que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos
instaurados historicamente pelos sujeitos. Esses processos, portanto, se constituem em
“contextos que não estão simplesmente justapostos, como se fossem indiferentes uns
aos outros; encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto”
(BAKHTIN,1981, p. 96).
E, conforme já foi dito, por estarmos constantemente internalizando e trazendo à
tona os discursos dos outros, a linguagem apresenta, segundo Bakhtin (2003), um
caráter dialógico, uma vez que esses enunciados sempre pressupõem uma atitude
responsiva do(s) outro(s) a quem eles se dirigem. Ou, conforme o próprio Bakhtin
(2004, p. 79) aponta, “nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída
35
exclusivamente a quem a enunciou: é produto da interação entre falantes e em termos
mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu”. Por conseguinte,
o eu e o outro constroem, cada qual, um universo de valores. A esse respeito, Faraco
(2003, p. 22) assevera que:
O mesmo mundo, quando correlacionado comigo e com o outro, recebe
valorações diferentes, é determinado por diferentes quadros
axiológicos. E essas diferenças são arquitetonicamente ativas, no
sentido de que elas são constitutivas dos nossos atos (inclusive de
nossos enunciados): é na contraposição de valores que os atos
concretos se realizam; é no plano dessa contraposição axiológica (é no
plano da alteridade, portanto) que cada um orienta seus atos.
O “outro”, portanto, não é entendido como um destinatário pacífico, cuja única
função se resume em compreender o locutor; sua atitude em relação à fala do locutor é
sempre responsiva ativa e materializa-se na sua resposta (externa ou interna). É
exatamente uma resposta e não uma compreensão passiva que o locutor espera do(s)
outro(s) a quem o seu discurso se dirige, resposta que pode se materializar sob a forma
de uma concordância, adesão, objeção, execução etc (BLANCK, 1996).
Isto posto, podemos afirmar que todo o discurso provém de alguém que possui
suas “marcas identitárias específicas que o localizam na vida social e que o posicionam
no discurso de um modo singular assim como seus interlocutores” (MOITA LOPES,
2003, p.19) e, ainda, que essas marcas são frutos de uma “consciência que adquire
forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas
relações sociais” (BAKHTIN, 1997, p.35).
Em face da atitude responsiva ativa do outro perante o locutor, o discurso
pressupõe sempre, conforme Bakhtin (1981), uma apreciação valorativa. Tal apreciação
36
é norteada por avaliações que fazemos na vida, com base em critérios éticos, sociais,
políticos, religiosos ou outros, de enunciados concretos, e envolvem elementos
extraverbais, sem cujo conhecimento se torna impossível compreender o discurso.
Sob essa visão de discurso como uma apreciação valorativa, é possível afirmar
que, sempre que nos engajamos num processo de leitura, ou em uma conversa numa
sala de bate-papo na Internet, por exemplo, estamos fazendo também uma avaliação
ou julgamento sobre determinado tópico. Em outras palavras, ao (re)construirmos
significados via discurso, estamos o tempo todo fazendo escolhas que deixam
transparecer nossos posicionamentos em relação ao que está sendo dito e para quem
estamos nos dirigindo. Assim, “a significação dos enunciados tem sempre uma
dimensão avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo” (Bakhtin,
1981, p. 46). Isso significa dizer que, sob uma ótica bakhtiniana, as vozes que atuam
em nossos discursos, conforme foi dito, estão imbricadas de valores, de modo que
estamos sempre nos apropriando de discursos dos outros para a construção de quem
somos, isto é, nosso discurso reflete outros discursos provenientes de outras práticas
discursivas (FREITAS, 1996).
Com base nessa natureza social do discurso, Moita Lopes (2002, p. 197) aponta
que “os significados que as pessoas constroem quando agem nas práticas discursivas
são reveladores de como compreendem o mundo a sua volta, a si mesmas e os outros
como participantes desse mundo”. Por isso, tendo em vista que o discurso é parte
constitutiva do mundo social, podemos afirmar que todo discurso é gerado com base no
momento sócio-histórico em que ocorre, ou seja, tudo aquilo que falamos está
historicamente situado (MOITA LOPES, 2003). Desse modo, sempre que nos
engajamos em práticas discursivas, nos posicionamos dentro de um contexto sócio-
37
histórico específico, ainda que o nosso interlocutor não esteja presente fisicamente,
como é o caso do mundo virtual, por exemplo (Ver seção 5.2). Isso significa afirmar que
os participantes das práticas discursivas não estão em um vácuo social, ou seja, não
são considerados como “uma entidade que existe independente do discurso, mas, ao
contrário, são uma função do discurso em si mesmo” (FAIRCLOUGH, 1992, p. 43).
Ao pensar o discurso como constituinte das relações sociais, devemos, portanto,
considerar que, ao se engajarem em práticas discursivas, os participantes estão
posicionados na história, na cultura e em relações de poder. Essas relações de poder
são caracterizadas por relações de conflito, nas quais grupos sociais, com interesses
distintos, engajam-se por meio de práticas discursivas (FAIRCLOUGH, 1992).
Podemos, então, afirmar que muitos discursos são intencionais e constituídos de
acordo com determinadas regras de interação e poder que são características de cada
contexto. É com base em tais inferências que dedico a próxima seção a tratar dessa
relação entre discurso e poder, tomando como base a visão foucaultiana.
2.2. Discurso e Poder: uma visão foucaultiana
O discurso, aparentemente, pode até nem ser nada de
por aí além, mas, no entanto, os interditos que o atingem,
revelam, cedo, de imediato, o seu vínculo ao desejo e ao
poder. E com isso não há com que admirarmo-nos: uma
vez que o discurso — a psicanálise mostrou-o —, não é
simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo; é
também aquilo que é objeto do desejo; e porque — e isso
a história desde sempre o ensinou — o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas
de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se
luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-
nos (FOUCAULT, 1996/1970, p. 2).
38
___________________________
4
A relação entre discurso e poder sempre foi uma tônica nos trabalhos de Foucault. Contudo, como o presente estudo
não se propõe a fazer uma releitura de suas obras, escolhi apenas os trabalhos supracitados com o fito de tentar
promover, ainda que de forma um tanto exígua, uma discussão que possa contemplar tal relação.
Ao tentar contemplar a relação entre discurso e poder, não poderia deixar de
incluir neste estudo um dos autores que trataram com maior proficuidade sobre essa
questão no século XX: Michel Foucault.
Não pretendo, neste trabalho, fazer uma releitura dos trabalhos de Foucault –
algo que, muito embora pareça bastante interessante e tentador, não é, pois, o objetivo
desta pesquisa de dissertação. Proponho-me aqui a problematizar algumas questões
pertinentes às relações entre discurso e poder, com o fito de situá-las como práticas
sociais para iluminar o presente estudo e, para tanto, fazendo uso de alguns dos
pressupostos foucaultianos.
Em trabalhos como A Ordem do Discurso, Microfísica do Poder e A História da
sexualidade
4
, Foucault lida, sobretudo, com as relações entre discurso e poder,
rompendo com as concepções clássicas desses termos. Segundo ele, o poder não
pode ser localizado em uma instituição ou no Estado simplesmente, o que tornaria
impossível a “tomada de poder” proposta pelos marxistas, mas sim como uma relação
de forças (FOUCAULT, 1979).
Ao ser tratado como relacional, o poder, para Foucault, se torna onipresente, um
corolário de relações discursivas e de poder interdependentes e em constante
movimento. Portanto, para o autor, o poder não somente reprime, mas também produz
efeitos de verdade e saber, constituindo verdades, práticas e subjetividades por meio
dos discursos (FOUCAULT, 1981).
39
Com base nessa concepção, podemos pensar que os diversos contextos sociais
e as relações subjetivas podem configurar em uma série de ferramentas sociais, não
necessariamente positivas (inclusão) ou negativas (exclusão), no que concerne às
relações de saber e poder, que se imbricam no discurso, revelando as condições de
“verdade” e “supostas verdades”. Nesse sentido, Foucault (1979, p. 94) pondera que:
É justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber. E, por
essa mesma razão, deve-se conceber o discurso como uma série de
segmentos descontínuos, cuja função tática não é uniforme nem estável.
Mais precisamente, não se deve imaginar um mundo do discurso dividido
entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso
dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade de
elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes.
Os saberes, para Foucault, são tão produtores da realidade quanto os poderes,
uma vez que os saberes constituem igualmente a realidade e, por isso, não estão fora,
não se pode desvinculá-los dos poderes. Portanto, a idéia de poder que Foucault
apresenta é aquela em que o poder se configura como luta, como correlações de
forças, em que poder e saber se articulam como movimento, como dinâmica e não
como algo estático, definido de uma vez por todas (FOUCAULT, 1979).
Foucault, portanto, rejeita todo e qualquer pensamento metafísico, questionando,
com isso, o próprio estatuto da verdade, além de mostrar o modo como o poder é
produzido por relações particulares com saberes. Estes, do mesmo modo, não são
universais, mas se instituem enquanto verdades, ou melhor, como “regimes de
verdade”, num processo que produz poder, cuja relatividade não pode ser validada em
nenhuma instância metafísica ou exterior à realidade social (FOUCAULT, 1981). Em
outras palavras, os saberes que se instituem enquanto verdadeiros (num sentido não
40
absoluto, mas relativo) estão imbricados em relações de poder particulares, em práticas
cotidianas, em instituições que representam o poder associado aos saberes que
legitimam aquelas práticas. Nesse sentido, ao construir sua identidade social de gênero
em práticas de letramento digital no ciberespaço, por exemplo (Ver seção 5.2), o sujeito
desta pesquisa se constitui discursivamente por meio de “regimes de verdade” em
relações particulares de poder.
O poder, portanto, se produz a cada instante, é um processo. A cada momento
há coisas novas acontecendo. Para estudá-lo, é necessário buscar compreender seus
movimentos. Desse modo, é possível compreender a idéia de que o poder se produz a
cada instante e provêm de todos os lugares, ou nas palavras de Foucault (FOUCAULT,
1981, p. 88):
Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro como a
multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se
exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas
e afrontamentos incessantes, as transforma, reforça, inverte; os apoios
que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando
cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que
as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo
esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos
estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais.
Se Foucault entende o poder, sobretudo, como uma correlação de forças e,
como tal, pressupõe uma interação de parte à parte, e não somente num sentido de
imposição e de supremacia, então, é possível pensar que, para qualquer tipo de poder,
pode haver sempre resistência (FOUCAULT, 1979). É exatamente por meio desse
embate que o próprio poder se estabelece, em que o alvo sobre o qual se exerce o
poder resiste, e este alvo são os próprios sujeitos. Pode-se perceber essa
transformação contínua da nossa realidade como um dos efeitos dessas lutas de poder.
41
Nesse sentido, pode-se afirmar que todas as vezes que surgem alternativas,
resistências, que se tornam institucionalizadas, tem-se um movimento para colonizá-las,
para apoderar-se delas e transformá-las de novo nesse jogo de dominação
(FOUCAULT, 1979). Em outras palavras, o poder seria, justamente, uma situação
estratégica complexa criada para institucionalizar certas práticas, leis etc, pelos menos
durante um certo tempo, mas que, logo em seguida, começaria a mover-se, a desfazer-
se para novamente se reorganizar, porém de outra forma.
O modo, portanto, como Foucault propõe avançar na compreensão das relações
de força consiste na ligação entre as formas de resistência aos diferentes tipos de
poder, uma vez que tais formas seriam capazes de evidenciar as relações de poder e
de observar onde se inscrevem, de descobrir seus pontos de aplicação e os métodos
que utilizam. O que percebemos, com isso, é que podemos pensar nas relações de
poder com base na dinâmica das estratégias de poder / resistência (FOUCAULT, 1979).
Visto dentro dessa perspectiva, o poder que interessa a Foucault, conforme foi
apontado no começo desta seção, não é, portanto, somente o poder que permeia as
lutas de classes, mas, sobretudo, o poder que emana dessas lutas, visto que, segundo
a epígrafe supracitada, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os
sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder
de que procuramos assenhorear-nos” (FOUCAULT, 1996 / 1970, p. 7). Assim podemos
entender o poder como o meio através do qual seja possível levar o sujeito ao
enaltecimento ou mesmo à subordinação discursiva dentro de rituais sociais nos quais
nós, sujeitos, somos constituídos, a partir das relações de poder nas quais nos
engajamos. (FOUCAULT, 1979).
42
Repensando essas relações à luz das identidades sociais, Moita Lopes (2002)
nos chama atenção para o fato de que o poder se apresenta distribuído na sociedade e
que isso é uma característica central da visão de identidade como construção social.
Argumenta, ainda, com base em Foucault (1981), que as identidades, muitas vezes,
não são escolhidas, mas são inscritas em relações discursivas de poder específicas nas
quais são construídas.
Dessa maneira, percebemos que os processos discursivos são construtores de
certas identidades que têm voz na sociedade, mas que, conforme dito anteriormente,
podem transformar-se em épocas e contextos diferentes, uma vez que o discurso se
constitui como o meio através do qual as verdades são instituídas. A esse respeito
Foucault (1996 / 1970, p. 47) pondera que:
O discurso nada mais é do que o reflexo de uma verdade que está
sempre a nascer diante dos seus olhos; e por fim, quando tudo pode
tomar a forma do discurso, quando tudo se pode dizer e o discurso se
pode dizer a propósito de tudo, é porque todas as coisas que
manifestaram e ofereceram o seu sentido podem reentrar na
interioridade silenciosa da consciência de si.
Toda essa questão que envolve o poder como constituinte dos significados
socialmente legitimados e que está presente nas práticas discursivas é, portanto,
central para esta pesquisa, uma vez que as relações de poder em exercício estão
presentes não somente no meu discurso como pesquisador e no discurso de Johnny, o
sujeito de pesquisa, como nas próprias conversas entre ele e as demais pessoas com
os quais ele interage nas salas de bate-papo da Internet (Ver capítulo 7).
Depois de considerar que toda prática discursiva é permeada por relações de
poder e que somos posicionados no mundo social com base nessas relações, encerro o
43
presente capítulo discorrendo, na seção seguinte, acerca das categorias discursivas de
análise, nas quais trabalho os conceitos de posicionamento discursivo e sua relação
com as pistas de contextualização na (re)construção das identidades sociais.
2.4. Categorias de análise do discurso: o Posicionamento discursivo e as pistas
de contextualização
Conforme já foi discutido anteriormente neste capítulo, contemplar a visão do
discurso como prática social é, em outras palavras, reconhecer que estamos, a todo
momento, (re)construindo significados nas diversas práticas discursivas em que
atuamos. E isso ocorre em função das posições que ocupamos nas interações sociais
das quais participamos, ou seja, com base em determinados posicionamentos ou
localizações que tomamos na conversa (DAVIES & HARRÉ, 1990). Esse caráter
dinâmico da construção do significado de um evento interacional nos diferentes
contextos (sejam eles mais informais ou institucionais) é posto em relevo por alguns
autores (GOFFMAN, 1981/ 2002; DAVIES & HARRÉ, 1990; VAN LANGENHOVE &
HARRÉ, 1999; GUMPERZ, 1999) que abordam a linguagem como um fenômeno social.
Nesta seção, tratarei de dois recursos analíticos com os quais lido no presente
trabalho, com o intuito de compreender a identidade social de gênero como uma
construção social: o conceito de posicionamento discursivo (DAVIES & HARRÉ, 1990;
VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999) e o conceito de pistas de contextualização
(GUMPERZ, 1999).
Se as práticas discursivas nas quais nos engajamos são também práticas
sociais, então, isso significa que, cada um de nós, participantes discursivos, está
44
inserido num processo de posicionar a si próprio e aos nossos interlocutores nessas
práticas discursivas, muitas vezes negociando novas posições. Segundo Van
Langenhove & Harré (1999, p. 2), em qualquer “prática discursiva, o posicionamento
constitui o falante inicial e os outros de uma certa maneira e, ao mesmo tempo, é um
recurso por meio do qual todas as pessoas envolvidas podem negociar novas posições
(e novos significados)”.
O sujeito, portanto, ao se engajar no processo de interação com o outro, se
constitui em função de determinadas posições ao trazer consigo sua visão de mundo,
suas experiências de vida, seu modo de agir etc. Davies e Harré (1997 apud Fabrício,
2002, p.88) definem o posicionamento como “um termo que faz alusão não só ao
conjunto de direitos e obrigações que orientam falantes e ouvintes a agir de
determinadas maneiras, mas também à ligação entre as posições por eles assumidas e
sua significação como atos sociais”. A esse respeito, Davies & Harré (1990, p. 48)
ponderam que:
Ao falar e agir de uma posição, as pessoas estão trazendo para a
situação particular suas histórias como um ser subjetivo, isto é, a história
de alguém que esteve em múltiplas posições e engajado em diferentes
formas de discurso.
Isso significa que os participantes podem, muitas vezes, se posicionar
discursivamente para atingir determinados objetivos em detrimento de outros, de modo
a (re)construir suas identidades e as identidades de seus interlocutores. Nesse sentido,
o posicionamento pode ser entendido como a construção discursiva de histórias
pessoais que “fazem com que as ações das pessoas se tornem inteligíveis e relevantes
como atos sociais” (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999, p. 16).
45
Os posicionamentos, por conseguinte, são caracterizados por sua natureza
dinâmica, em que as inferências dos interlocutores são contextualmente situadas,
centradas, uma vez que “as formas concretas que tais posicionamentos vão tomar
diferem de acordo com as situações em que ocorrem” (Van Langenhove & Harré, 1999,
p. 30). Desse modo, podemos pensar que numa mesma conversa virtual na Internet,
por exemplo, um indivíduo pode se posicionar e / ou posicionar seu(s) interlocutor(es)
de diversas maneiras, algumas podendo ser até mesmo contraditórias entre si, como foi
o caso em algumas das interações analisadas nesta pesquisa (Ver subseção 7.1.2). Em
outras palavras, podemos sempre nos (re)posicionar e (re)posicionar o(s) outro(s) nas
práticas discursivas das quais participamos, visto que os posicionamentos são fluidos e
provisórios, sempre sujeitos a mudar no decorrer da interação.
Esses posicionamentos, portanto, podem também ser desafiados, questionados
e (re)negociados pelos participantes, o que nos remete às noções de poder e
resistência, discutidas na seção anterior (ver seção 2.3). Assim, uma vez que as
práticas discursivas são perpassadas por relações de poder, os sujeitos sempre se
posicionam com base naquilo que o seu interlocutor significa para ele em tais relações
(DAVIS & HARRÉ, 1990).
Ao discorrerem acerca do conceito de posicionamento, Van Langenhove & Harré
(1999) apresentam uma classificação para definir os tipos de posicionamento. No
entanto, para os fins do presente estudo, faço uso de apenas alguns dos tipos
apresentados por eles por considerá-los mais relevantes para a análise dos dados
gerados. Para os autores, o posicionamento pode ser de primeira ou de segunda
ordem. No posicionamento de primeira ordem, os sujeitos localizam discursivamente a
si mesmos ou a seus interlocutores. Contudo, esse posicionamento pode ser refutado
46
ou questionado pelo(s) interlocutor(es), o que o transforma em um posicionamento de
segunda ordem. Este – também chamado de reflexivo – ocorre, portanto, quando um
participante discursivo tem seu posicionamento anterior questionado por outro(s)
participante(s), o que faz com que aquele participante se (re)posicione em favor de
seu(s) interlocutor(es) (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999).
Existe ainda, segundo os autores, o posicionamento moral, que ocorre no
momento em que alguém se posiciona ou posiciona uma outra pessoa com base em
aspectos da vida social socialmente legitimados, ou seja, esse tipo de posicionamento
é, muitas vezes, usado pelos sujeitos buscam ser aceitos nos grupos sociais dos quais
almejam participar (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999).
Por último, ainda tomo como base o posicionamento intencional. Este, segundo
Van Langenhove & Harré (1999), pode ocorrer quando: a) o sujeito deseja mostrar
traços de sua identidade, com o objetivo de atingir determinados propósitos específicos
(auto-posicionamento deliberado); b) quando a necessidade de assumir determinada
posição se dá por exigência do posicionamento de um outro interlocutor (auto-
posicionamento forçado); c) o sujeito fornece informações sobre outra pessoa, podendo
ou não ser esta o próprio interlocutor (posicionamento deliberado do outro); e d) o
sujeito é posicionado por outra pessoa de acordo com os julgamentos de uma dado
grupo ou instituição (posicionamento forçado do outro) (VAN LANGENHOVE & HARRÉ,
1999).
Há, portanto, diferentes modos de se posicionar nas práticas discursivas, que
são construídos e negociados entre os participantes na interação. Isso nos mostra que
os posicionamentos discursivos estão estreitamente relacionados à construção do
gênero, bem como à construção de outras identidades sociais, uma vez que, dentro de
47
uma visão socioconstrucionista (Ver seção 2.2), “o gênero é um posicionamento
discursivo e, como tal, matizado por outros traços identitários” (MOITA LOPES, 2005, p.
4). Nesse sentido, considero a noção de posicionamento discursivo como um construto
teórico central para a análise de como somos construídos no mundo social.
Contudo, para que os tipos de posicionamento possam ser entendidos nas
práticas discursivas, entendo que seja também necessário que eles sejam
indexicalizados por meio de determinados elementos. Por isso, adoto, no presente
estudo o construto que Gumperz (1999) chama de pistas de contextualização
(contextualization cues), cuja função se presta a designar quaisquer traços nas formas
lingüísticas e paralingüísticas presentes nas estruturas discursivas que contribuem para
assinalar as pressuposições contextuais do falante e que os interlocutores interpretam,
na tentativa de compreender que tipo de atividade está ocorrendo. A esse respeito,
Gumperz (1999, p. 131) afirma que:
As pistas de contextualização são traços presentes na estrutura de
superfície dos textos através dos quais os falantes assinalam e os
ouvintes interpretam qual é a atividade que está ocorrendo, como o
conteúdo semântico deve ser entendido e como cada sentença se
relaciona ao que a precede ou segue.
Gumperz (1999) aponta como exemplos de pistas de contextualização os
mecanismos de sinalização relacionados às mudanças de código, estilo e dialeto,
fenômenos prosódicos, escolha entre opções lexicais e sintáticas, aberturas e
fechamentos conversacionais e repetições. O autor ainda lembra que, muito embora
essas pistas tragam consigo muitas informações, evidenciando-se formalmente na
superfície do texto, os significados são construídos como parte do processo
48
interacional. Nesse sentido, o contexto, bem como o processo “de negociação de
significados, leva, portanto, à identificação e interpretação de uma variedade de sinais,
culturalmente convencionados, utilizados pelos participantes na interação” (FABRÍCIO,
2002, p. 81).
Dentro dessa perspectiva, o encontro social é caracterizado, então, como um
sistema integrado de atividades em funcionamento, em que tudo o que acontece
contribui para sinalizar o contexto da interação, e ainda para nossa interpretação do
que está ocorrendo naquele dado momento específico. Em outras palavras, podemos
afirmar que as pistas de contextualização funcionam no estabelecimento dos
posicionamentos discursivos no curso da interação, uma vez que contribuem para
sinalizar mudanças no contexto e para criar envolvimento entre os interlocutores
(GUMPERZ, 1999).
Faz-se necessário, por conseguinte, compreender que as pistas de
contextualização são muito mais de que elementos que veiculam “informação”, pois, se
os significados são construídos no processo de interação, então, eles são sempre
influenciados pelo contexto da interação e pelos interactantes que dela participam. Sob
essa perspectiva, é possível, portanto, inferir que os significados que atribuímos às
pistas de contextualização não são universais, uma vez que aprendemos em nossa
cultura a atribuir significado a essas pistas, “o que contribui para a interpretação das
mensagens momento a momento” (FABRÌCIO, 2002, p. 81). Do ponto de vista da
construção do significado que atravessa o presente trabalho, a comunicação humana é,
portanto, muito mais uma questão de co-construção de interpretações compartilhadas
do que, simplesmente, de transmissão de significados.
49
Ao ter buscado compreender, no presente capítulo, a concepção de discurso
como prática social, pretendo corroborar a idéia de que as nossas identidades e
posicionamentos são tomados com base em determinados tipos de discurso
legitimados e apoiados pela sociedade, que os faz funcionar como verdadeiros. É
nesse sentido que determinados grupos sociais se julgam superiores a outros ao se
pautarem por determinadas concepções naturalizadas, como a de que o homem seria
superior à mulher. Dessa forma, procurei mostrar que visões de mundo e
conhecimentos entram em constante conflito visando engajar discursivamente os
participantes em um processo de reflexão sobre a própria ação. Por isso, considero
fundamental compreender o discurso como o meio através do qual seja possível
entender que a nossa participação nas mais diversas esferas da vida social constroí
quem somos, como avaliamos o outro e como pensamos que esse outro nos avalia com
base em nossos posicionamentos interacionais, desencadeando, com isso, um
processo ininterrupto de (re)construção de identidades. Em virtude disso, passo,
portanto, no próximo capítulo, a tratar especificamente da questão das identidades
sociais.
50
3. A IDENTIDADE SOCIAL DE GÊNERO
3.1. A temática das identidades sociais
A identidade só nos é revelada como algo a ser
inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço,
“um objetivo”; uma coisa que ainda se precisa construir
a partir do zero ou escolher entre alternativas e então
lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais” (BAUMAN,
2005, p. 21).
A questão das identidades sociais no presente trabalho surge como temática de
discussão, pois, por um lado, tem sido uma categoria de intensa análise em nossos
tempos e, por outro, nos dá a possibilidade de entendermos os movimentos sociais que
perpassam os sujeitos da contemporaneidade. Por isso, é possível afirmar que dentre
os motivos mais importantes pelos quais a temática das identidades tem sido focalizada
tão freqüentemente tanto na mídia quanto nas universidades estão as mudanças
“culturais, sociais, econômicas, políticas e tecnológicas que estão atravessando o
mundo e que são experienciadas, em maior ou menor escala, em comunidades locais
específicas” (MOITA LOPES, 2003, p. 15).
À luz do contexto sócio-histórico atual, os sujeitos sociais na chamada “crise de
identidade” (HALL, 1999) são vistos como parte de um processo mais amplo de
mudanças, fazendo surgir novas identidades fragmentadas e levando, com isso, a uma
nova concepção de sujeito e de “identidade”. O que Hall (1999) pretende mostrar com
esse questionamento é que as identidades, antes tidas como entidades fixas e
homogêneas, estão sendo compreendidas, na contemporaneidade, como
“descentradas”, isto é, deslocadas e fragmentadas. Isso nos conduz a compreender a
identidade, em conformidade com a epígrafe supracitada, como “algo a ser inventado, e
51
não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo’” (BAUMAN, 2005, p.22).
Ao buscar compreender as identidades sociais como categorias que podem
sempre ser (re)inventadas, não devemos, pois, concebê-las como uma qualidade
inerente aos indivíduos, mas como algo que se constitui nas relações interpessoais por
meio de práticas discursivas particulares. Isso quer dizer que construímos identidades
sociais ao nos engajarmos em processos interacionais com os outros, por meio daquilo
que dizemos e, da mesma forma, como nos percebemos com base naquilo que o outro
representa para nós (MOITA LOPES, 2002). Nesse sentido, é possível inferir que as
práticas discursivas moldam e são moldadas pelas nossas identidades sociais, não
sendo, portanto, algo natural, fixado antes da interação social, mas construído na
interação.
Contudo, devemos sempre levar em consideração, conforme nos aponta Louro
(2003), que, nesses processos de reconhecimento de identidades, inscreve-se a
atribuição de diferenças, uma vez que “tudo isso implica a instituição de desigualdades,
de ordenamentos, de hierarquias, e está, sem dúvida, estreitamente imbricada com as
redes de poder que circulam na sociedade” (LOURO, 2003, p.15). Portanto, devemos
pensar que a análise das práticas discursivas e dos significados que construímos vão
revelar nossos valores, crenças e nossas concepções políticas e que só se tornarão
possíveis ao relacionarmos os significados construídos localmente a contingências
políticas, culturais, institucionais e históricas (MOITA LOPES, 2002). Isso nos leva a
afirmar que ao considerarmos as identidades de nossos interlocutores no processo
discursivo, estamos ao mesmo tempo (re)construindo suas identidades sociais e eles,
as nossas (MOITA LOPES, 2003).
52
Essa abordagem pressupõe, por conseguinte, uma visão não essencialista das
identidades sociais, cujo princípio se define não por fatores biológicos, mas como esses
e outros fatores são construídos nas práticas discursivas e sociais (COOK-GUMPERZ,
1995). Temos, com isso, duas visões antitéticas acerca das identidades sociais: uma
visão essencialista e uma visão socioconstrucionista (Ver seção 2.2). Jagose (1996, p.
8), a esse respeito, pondera que:
Enquanto a primeira considera a identidade como natural, fixa e inata, a
segunda visão assume que a identidade é fluída, o efeito do
condicionamento social a partir dos modelos culturais disponíveis para
entender o sujeito.
A visão socioconstrucionista opera, portanto, com uma base epistemológica
corroborada pelo princípio de que as relações de sujeitos e de sentidos (nas quais as
identidades sociais são constituídas) são múltiplas e variadas, isto é, são entendidas
como heterogêneas, contraditórias, e em fluxo, constituintes das práticas discursivas
nas quais atuamos (ORLANDI, 2001).
Tal perspectiva acerca das identidades sociais lida, portanto, com uma visão de
identidade como construção social, implicando o modo como as pessoas se posicionam
ou são posicionadas no discurso com base nas circunstâncias nas quais se situam ou
nas práticas discursivas múltiplas onde atuam, não sendo, portanto, predeterminadas
(BRAIT, 1997).
Ao tomar essa visão de identidade como construção social, portanto, está
implicado o fato de que somos criados, ou melhor, criamos nossas identidades sociais
por meio dos outros a nossa volta, pois “ao antecipar como os participantes podem
responder na interação, com base em quem eles são, nos compomos de formas
53
diferentes” (SHOTTER apud MOITA LOPES, 2002, p. 34). Isso significa que nos
posicionamos de formas diferentes, que pessoas são seres produzidos por outros e que
uns ocupam posições de maior poder nas relações assimétricas.
Dentro dessa perspectiva acerca das identidades sociais como construção
social, através da qual sujeitos se constituem para criar sentido no mundo social, é que
concebemos, outrossim, a constituição da categoria social de gênero.
3.2. O gênero como identidade social
Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que
ninguém nasce mulher e sim torna-se mulher, decorre
que mulher é um termo em processo, um devir, um
construir de que não se pode dizer com acerto que
tenha uma origem ou um fim. Como uma prática
discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções
e re-significações” (BUTLER, 2003, p. 58).
Busco operar aqui com uma compreensão das identidades sociais com base nas
rápidas transições que a sociedade está experimentando devido aos processos
responsáveis por um novo modo de pensar o mundo e suas relações, bem como as
próprias pessoas em seus esforços (ou não) em compreender o que está acontecendo.
A profusão de discursos, possibilitada pelos meios de comunicação cada vez
mais tecnologizados, permitiu uma grande circulação de diversas formas de ver e viver
a experiência humana para além dos limites de tempo e de espaço (CHOULIARAKI &
FAIRCLOUGH, 1999 – Ver seção 2.1). Dinamismo, multiplicidade e contradição são
traços para se compreender o sujeito na contemporaneidade. O contato, portanto, com
outras formas de ser homem / mulher tornou possível não só a compreensão de que a
54
experiência humana não se resume a um gênero particular, mas a um repensar das
concepções tradicionais de gênero (MOITA LOPES, 2002).
Isso leva-nos a pensar a questão da identidade como algo múltiplo, a partir das
próprias mudanças que a sociedade vêm nos impondo, dentre as quais a de que a
experiência humana não é limitada a um grupo étnico particular, a uma raça, a um
gênero, a um modo de expressão da sexualidade. A esse respeito, FROSH &
PATTMAN (2002, p. 51) asseveram que:
A modernidade tardia tem também sido caracterizada por uma explosão
de políticas identitárias centradas particularmente na afirmação de
identidades feministas, gays e lésbicas e de raça, que têm apresentado
um grande impacto na sustentabilidade de noções mais tradicionais de
masculinidade.
No que diz respeito à questão do gênero, estamos presenciando a uma
pluralidade de esforços na tentativa de reconhecer o gênero como uma construção
social. Diante dessa perspectiva, estamos admitindo que as diferentes instituições e
práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são, outrossim, constituintes dos
gêneros. Portanto, tais instituições e práticas “constroem” e são “construídas pelos
sujeitos, o que nos remete a epígrafe acima de que, de fato, o gênero é um termo
sempre em “processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que
tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está
aberto a intervenções e re-significações” (BUTLER, 2003, p. 58).
Se formos historicizar o conceito de gênero como um construto social,
perceberemos que este se encontra lingüística e politicamente envolvido com a história
55
das lutas dos movimentos feministas contemporâneos (LOURO, 2003). A esse respeito,
Giddens (1993, p. 19) indica que:
Do ponto de vista dos gêneros masculino e feminino, a “revolução sexual”
dos últimos trinta ou quarenta anos não é apenas, ou mesmo
primariamente, um avanço neutro na permissividade sexual. Ela envolve
dois elementos básicos. Um deles é a revolução na autonomia sexual
feminina - concentrada naquele período, mas possuindo antecedentes que
remontam ao século XIX. Suas conseqüências para a sexualidade
masculina são profundas e trata-se muito mais de uma revolução
inacabada.
Por isso, muito embora ainda persistam estudos que buscam, por meio de um
determinismo biológico, “essencializar” as desigualdades entre homens e mulheres,
entendemos, em consonância com Connell (2001, p.12), que:
A(s) masculinidade(s) e a(s) feminilidade(s) não estão programadas em
nossos genes, nem tampouco fixadas pela estrutura social. Elas
passam a existir na medida em que as pessoas passam a agir no
mundo. Elas são ativamente produzidas, usando os recursos e
estratégias disponíveis num dado cenário social.
O conceito de gênero é uma caracterização de cunho sociocultural que surgiu,
portanto, com o intuito de se distinguir da concepção reducionista do dimorfismo sexual
da espécie humana, baseada numa concepção puramente biológica dos sexos. Há
machos e fêmeas na espécie humana, mas a condição de ser homem ou mulher é
condição realizada pela cultura (HEILBORN, 1994). Sobre essa questão, Butler (2003,
p. 24) aponta que:
Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente
independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante,
com a conseqüência de que homem e masculino podem, com igual
56
facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e
mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino.
Ao dirigir o foco para o caráter “fundamentalmente social”, não há, contudo, a
pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja,
não é “negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e
histórica produzida sobre as características biológicas” (LOURO, 2003, p.22).
Verificamos, portanto, que as abordagens pós-estruturalistas distanciam-se das
vertentes que consideram o corpo como uma entidade puramente biológica, para
teorizá-lo como um construto sociocultural e lingüístico.
Essa idéia de os seres humanos serem divididos em dois sexos começou a
ganhar força cultural no século XVIII. Antes disso, para a ciência, havia somente um
sexo: o masculino. A mulher, por sua vez, era apenas um representante inferior desse
sexo (FOUCAULT, 1981).
Nesse sentido, o conceito de dimorfismo sexual para estabelecer a diferença de
gênero entre homens e mulheres veio de encontro com os ideais igualitários da
revolução democrático-burguesa cujo objetivo era o de justificar as desigualdades entre
homens e mulheres, fundamentado-as numa desigualdade natural (LOURO, 2003).
Nesse caso, a “natureza” era invocada como justificativa racional para as
desigualdades de direitos de mulheres e outras minorias construídas pela política e pela
economia da ordem burguesa.
Mediante a essas argumentações, o gênero como relação de poder, de fato,
antecede a diferenciação de sexo biológico; isso porque, ao ignorar o genital feminino e
tomando somente como referência o masculino, já é em si uma evidência da relação
57
assimétrica e unilateral de cunho biológico e egocêntrico do homem. Sobre essa
questão, Butler (2003, p. 56) pondera que:
No lugar de uma sexualidade com “identidade masculina”, em que o
masculino atua como causa e significado irredutível dessa sexualidade,
nós podemos desenvolver uma noção de sexualidade construída em
termos das relações fálicas de poder, as quais reestruturariam e
redistribuiriam as possibilidades desse falicismo por meio,
precisamente, da operação subversiva das “identificações” que são
inevitáveis no campo de poder da sexualidade.
Talvez por isso a condição de “ser homem” seja imbricada por atributos
socialmente valorizados, tais como: atividade, força, bravura, coragem, autocontrole,
iniciativa, aptidão para competir, capacidade para dominar e comandar (COSTA, 1989).
Das mulheres, ao contrário, esperam-se características atribuídas e legitimadas pela
sociedade como: passividade, compreensão e delicadeza. E, de fato, tais atributos
imputados a homens e mulheres estão tão cristalizados na sociedade que ajudam a
corroborar a idéia de uma suposta “essência” do que é ser homem ou mulher.
Contudo, a categoria de gênero busca privilegiar a análise e compreensão dos
processos de construção dessas distinções, percebidas em mulheres e homens nas
formas sociais, culturais e históricas. A categoria passa a exigir, segundo Louro (2003,
p. 23), que se pense de forma plural, “acentuando que os projetos e as representações
sobre mulheres e homens são diversos”.
Ao compreender o gênero como uma categoria que se baseia na pluralidade e
nos conflitos dos processos em que a cultura vai construindo e distinguindo corpos e
sujeitos femininos e masculinos, torna-se relevante expressar a articulação de gênero
com outras categorias ou marcas sociais, conforme destaca Louro (2003), como classe,
58
raça / etnia, religião, geração, tradicionalidade, regionalidade, sexualidade. Ou, nas
palavras de Connell (2000, p. 29):
O gênero é uma maneira de estruturar a prática social em geral,
não um tipo especial de prática, por isso está inevitavelmente
envolvido com outras estruturas sociais. É comum agora dizer
que o gênero intersecta – ou melhor, ‘interage’ – com raça e
classe.
Isso quer dizer que os construtos de gênero estão conectados a outros aspectos
da “vida social e na construção de outras categorias socialmente significantes. Em
outras palavras, isso significa que o gênero não é uma questão de duas categorias
sociais homogêneas, associadas a “ser mulher” e a ‘ser homem’” (ECKERT
MCCONNELL-GINET, 1995, p. 470). Entender o gênero como um construto social
permite, portanto, visualizá-lo dentro de uma gama de possibilidades de realização, o
que, muitas vezes, torna seu significado e classificação muito fugidios. Em virtude
dessa perspectiva, pode-se considerar que a noção de gênero já não pode ser mais
entendida como desvinculada de interseções sociais, políticas, históricas e culturais nas
quais ela é produzida, mas sim vista com um amálgama de identidades sociais em
práticas discursivas particulares (MOITA LOPES, 2006b).
Ao negar qualquer resquício de um essencialismo ou de uma base natural para a
constituição do gênero, Butler (2003, p. 37) o considera como “uma complexidade cuja
totalidade é permanentemente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer
conjuntura considerada”. Sob essa perspectiva, a categoria de gênero propõe, portanto,
um afastamento das análises que repousam na definição de papéis e funções
imputadas a mulheres e homens para, dentro de uma concepção mais ampla, conceber
59
o fato de que as instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis,
as doutrinas e as políticas de uma sociedade são “constituídas e atravessadas por
representações e pressupostos de feminino e masculino e que estão diretamente
implicadas com sua produção, manutenção ou re-significação” (MEYER, 2003, p.18).
Tomando como base esses parâmetros, é possível perceber, por conseguinte,
que as possibilidades da sexualidade, por exemplo – das formas de expressar os
desejos e prazeres – também são, assim como o gênero, sempre socialmente
estabelecidas. Tal concepção se aplica, por exemplo, ao sujeito de pesquisa (Johnny),
que, embora seja um indivíduo do sexo masculino, se constrói identitariamente, no
mundo virtual, como uma menina que sente desejos por meninos (Ver seção 8.1).
Nesse sentido, podemos afirmar que as identidades de gênero e de sexualidade se
constroem numa relação conjunta, ou melhor, “queremos significar algo distinto e mais
complexo do que uma oposição entre dois pólos; pretendemos dizer que as várias
formas de sexualidade e de gênero são interdependentes, ou seja, afetam umas às
outras” (LOURO, 1997, p.49).
Essas novas formas de viver a experiência humana têm abalado projetos
essencialistas de gênero, colocando em xeque, sobretudo, a construção da feminilidade
e da masculinidade hegemônicas, representada pela dicotomia homem-mulher, uma
vez que as diferenças entre eles têm sido cada vez mais entendidas em termos de
construção social, afastando, com isso, “proposições essencialistas sobre os gêneros; a
ótica está dirigida para um processo, para uma construção, e não para algo que existia
a priori” (LOURO, 2003, p.23).
Dentro desse campo epistemológico, percebe-se que o mais interessante é
como todos somos atores neste espetáculo de gênero, ou somos intérpretes desses
60
ideais de gênero que não possuem vínculo necessário algum com o corpo biológico,
visto que os meios através dos quais homens e mulheres agem no mundo social
precisam ser vistos como práticas de gênero que são relacionais, contraditórias e
múltiplas (FROSH & PATTMAN, 2002). Daí decorre que a matriz cultural por intermédio
da qual a identidade de gênero “se torna inteligível exige que certos tipos de
‘identidade’ não possam existir – isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo
e aquelas em que as práticas do desejo não decorrem nem do ‘sexo’ nem do ‘gênero’”
(BUTLER, 2003:39).
Se dentro dessa visão acerca da identidade social de gênero não se
compreende o sujeito de forma unívoca, bem como se desconstrói a dicotomia existente
entre masculinidade / feminilidade, visto que esta divisão pressupõe uma essência ou
um ideal masculino ou feminino de ser, então, devemos operar com construtos que
abarquem a multiplicidade de possibilidades do que vem a ‘ser homem’ ou ‘ser mulher’.
Em outras palavras, devemos pensar, por conseguinte, em masculinidades e
feminilidades como “realizações plurais, inscritas numa instituição social, histórica e por
isso contingente, não natural, não universal, uma vez que culturas diferentes, e
diferentes períodos da história constroem o gênero diferentemente” (CONNELL, 2000,
p. 10).
Contudo, não basta apenas que se atribuam realizações plurais ao gênero;
devemos, pois, buscar entendê-lo como uma categoria social que está sempre
imbricada a relações de poder. Portanto, dedico a próxima seção a discutir acerca
dessa relação entre gênero e poder.
61
3.3. Gênero e Poder
A noção binária de masculino/ feminino constitui não
só a estrutura exclusiva em que essa especificidade
pode ser reconhecida, mas de todo modo a
“especificidade” do feminino é mais uma vez totalmente
descontextualizada, analítica e politicamente separada
da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de
relações de poder, os quais tanto constituem a
“identidade” como tornam equívoca a noção singular de
identidade” (BUTLER, 2003, p. 21).
Ao analisarmos os conceitos gênero e poder (Ver seção 2.3), percebemos que
estes estão intrinsecamente relacionados, tornando-se mecanismos sociais de domínio
versus dominado, maioria versus minoria, prestígio versus desprestígio, inclusão versus
exclusão, entre outros (FROSH & PATTMAN, 2002). Segundo Gilbert (1997, p. 70), “os
nós, sujeitos sociais, somos sempre posicionados pelo nosso gênero e lidos através de
nosso gênero, mesmo quando tentamos nos escrever fora, ou além, de dualismos
generificados e sistemas de sentidos patriarcais”.
Para Thompson (2000), as relações de poder são assimétricas quando
indivíduos ou grupos de indivíduos particulares possuem um poder de maneira estável,
de tal modo que exclua outros indivíduos. Pode-se falar, nesses casos, de indivíduos ou
grupos dominantes e subordinados. Nesse sentido, uma relação de dominação pode
ser estabelecida de diversos modos: dominação de gênero, relações de dominação de
classe, de raça, entre outros (LOURO, 2001). Um tipo de dominação não é mais grave
do que o outro, pois o resultado é o agravamento do processo de exclusão, ou seja, são
extraídos das pessoas seus direitos à cidadania simplesmente por pertencerem à
determinada classe social, por serem de determinada raça, ou representarem um
gênero específico (THOMPSON, 2000).
62
Portanto, mesmo reconhecendo que as relações de gênero são construídas
socialmente e que, por isso, estão sempre abertas a re-significações (BUTLER, 2003),
conforme apontei na seção anterior, é preciso, outrossim, compreender que as mais
variadas masculinidades e / ou feminilidades não coexistem de forma passiva na
sociedade, mas se inter-relacionam por meio de relações de poder (FOULCAULT,
1979). Existem, portanto, “relações hierárquicas em que algumas masculinidades são
consideradas dominantes, enquanto outras são subordinadas e marginalizadas”
(CONNELL, 2000, 10).
A busca, então, da reificação do binário assimétrico masculino / feminino ocorre
por meio de uma “unidade do gênero que é efeito de uma prática reguladora que busca
uniformizar a identidade de gênero por meio da heterossexualidade compulsória”
(BUTLER, 2003, p. 57). A força dessa prática é atribuída a relações de pode de efeito
regulador e, por conseguinte, excludente, uma vez que não contempla possibilidades
de re-significação e, até mesmo, de subversão.
Se a “masculinidade” e a “feminilidade” podem ser re-significadas e subvertidas,
então, podemos enxergar outras masculinidades e / ou outras feminilidades sem que se
atribua valor maior a nenhuma delas. Nesse aspecto, Connell (2000, p. 11) ainda
assevera que a forma “hegemônica não precisa ser a forma mais comum de
masculinidade. Na verdade, muitos homens vivem num estado de tensão, ou até
mesmo de distância, em relação à sua cultura ou comunidade”. Tal pressuposição
corrobora a idéia de que não existiria uma masculinidade ou feminilidade a partir da
qual as outras seriam constituídas, mas sim masculinidades coexistindo nas suas mais
variadas formas, cujo valor supostamente imputado a cada uma delas não seria tão
relevante para sua constituição.
63
Por isso, para que possamos tecer considerações acerca dos “matizes de
gênero” (BUTLER, 2003), temos que pensar na dimensão desses conceitos presentes
nas relações sociais, não somente como a simbolização de identidades definidas na
sociedade que constroem um ser masculino ou um ser feminino, mas como uma teia de
relações que são estabelecidas em complexas redes de poder, que, através das
instituições, dos discursos, dos códigos, das práticas e dos símbolos, constituem
hierarquias entre os gêneros (LOURO, 2003).
Osterne (2001) expressa sua preocupação ao apontar que a condição masculina
passa pelo processo de dominação, isso porque, segundo Bourdieu (2004), ela
funciona como um princípio universal de visão e divisão, como um sistema de
categorias de controle. Nesse sentido, Fraser (2002), em uma análise sócio-política das
lutas de gêneros de políticas feministas, argumenta que uma das características da
injustiça de gênero é o androcentrismo que supervaloriza traços associados ao
masculino e desvaloriza traços associados ao feminino, e que padrões androcêntricos,
tendem a ser constantemente institucionalizados, criando sulcos de interação social e
se infiltrando, de um modo geral, em todas as áreas da sociedade (FRASER, 2002).
Percebemos, com isso, que o reconhecimento da história da dominação
masculina está presente em muitas culturas, sobretudo no ocidente, e que o
reconhecimento da autonomia conquistada pelas mulheres gera determinações sobre a
condição masculina e sobre as relações de gênero (LOURO, 2001). O homem é
socialmente percebido como poderoso e essas outras categorias são frágeis. Isso é
fruto do processo cultural de simbolização, como mostra Bourdieu (2001), e a
dominação masculina está suficientemente assegurada em vários contextos para exigir
justificativas.
64
Desse modo, quando nos dispomos a discutir a construção da categoria de
gênero, temos que pensar que diferenças e desigualdades de gênero, com base em
todos esses desdobramentos, estão dentro da análise de processos sociais mais
amplos que marcam e discriminam sujeitos como diferentes (LOURO, 2001), tanto em
função de seu gênero, quanto na maneira em que este estabelece articulações,
conforme já apontei anteriormente, com outras identidades como: raça, sexualidade,
classe social, religião, aparência física, nacionalidade.
Nesse sentido, observar, por exemplo, as práticas de letramento nas quais nos
engajamos pode contribuir para compreendermos como as identidades sociais são
construídas nas práticas sociais por meio de relações de poder. Em face disso, dedico
o capítulo seguinte a discorrer acerca do letramento.
65
___________________________
5
Kleiman (1995), ao discutir sobre a questão da origem do letramento, afirma que o termo advém da palavra inglesa
Literacy. Aqui no Brasil, segundo a autora, o termo começou a ser utilizado por especialistas das áreas de educação e
das ciências lingüísticas a partir da publicação da obra da Professora Mary Kato, em seu livro “No mundo da escrita:
uma perspectiva psicolingüística” de 1986.
4. LETRAMENTO
4.1. Letramento como Prática Social
“Os estudos de letramento como prática social têm
passado a focalizar os contextos de construção de
significado, os participantes, suas ideologias,
identidades sociais, histórias, seus projetos
políticos etc., entendendo o letramento […] como
práticas discursivas, ou seja, como modos de usar
a linguagem e fazer sentido tanto na fala quanto
na escrita” (GEE 1994 apud MOITA LOPES, 2005,
p. 49)
Ao se pensar sobre a questão do letramento
5
, a idéia que se tem, de imediato, é
única e exclusivamente a escola e os meios tradicionais nela desenvolvidos para
aprender a ler e escrever. Contudo, temos assistido, nos últimos anos, a uma explosão
de novas práticas de letramento, consubstanciadas pelas novas tecnologias, que vêm
fazendo parte, de forma cada vez mais crescente, das mais diversas esferas da vida
social. Por isso, quando, hoje, se reflete acerca de tipos de letramentos, pode-se
mencionar uma multiplicidade de novos tipos de interações por meio de textos e
hipertextos, gerados na / pela mídia eletrônica ao lado do, então, letramento
“tradicional” escolar que, por sua vez, passa a ser apenas mais um tipo de letramento
(LANKSHEAR & KNOBEL, 1997). E, com o fito de tentar compreender o letramento
como prática social – noção que subjaz à presente pesquisa – mostrarei, neste capítulo,
algumas visões acerca do letramento, que se estendem desde uma visão mais
tradicional a concepções de letramento mais recentes, como o letramento digital.
66
Pesquisas e abordagens relativamente recentes no campo do letramento
(GRAFF, 1994, KLEIMAN, 1995; SCRIBNER & COLE, 1981; SIGNORINI, 1998;
SOARES, 1998; STREET, 1984) passaram a não mais enfocar o letramento como um
fenômeno universal, indeterminado social e culturalmente, responsável pelo progresso,
civilização, acesso ao conhecimento e mobilidade social, visto que, conforme assevera
Signorini (1994, p. 21):
Essa idéia de “letra” como a chave para se decifrar (ou conquistar) o
“mundo”, independentemente de variáveis contextuais de qualquer
natureza, nos remete a um mito consolidado nos dois últimos séculos
via tradições culturais ocidentais de prestígio e que é constitutivo não
dos discursos institucionais sobre as vantagens de se saber ler e
escrever, como também do senso comum: o “mito do letramento
”.
Soares (1998, p. 39) define letramento como “o estado ou a condição que
adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da
escrita e de suas práticas sociais”. Nesse sentido, uma pessoa que sabe ler e escrever
(alfabetizada) não seria, necessariamente, letrada. Letrado seria, então, aquele sujeito
que “além de saber ler e escrever, faz uso freqüente e competente da leitura e da
escrita” (Ibidem, p. 36).
Tfouni (1995), por sua vez, vai mais além nessa questão. Para ela, o termo
letramento surgiu para suprir a necessidade de se ter uma palavra que pudesse
designar “o processo de estar exposto aos usos sociais da escrita, sem, no entanto,
saber ler e escrever” (Tfouni, 1995, p. 8).
Sob essa perspectiva, Tfouni (1995) conceitua o termo letramento em confronto
com a alfabetização: “enquanto a alfabetização ocupa-se da aquisição da escrita por
um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos
67
da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade” (Ibidem., p. 20). A autora
reafirma essa diferença entre alfabetização e letramento insistindo no caráter individual
daquela e social deste. A alfabetização, portanto, refere-se à aquisição da escrita como
aprendizagem de habilidades para leitura. Isso é levado a efeito, em geral, por meio do
processo de escolarização e, portanto, da educação formal. A alfabetização pertence,
assim, ao âmbito do individual. O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-
históricos da aprendizagem da escrita. Desse modo, procura estudar e descrever o que
ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneira restrita ou
generalizada; procura ainda saber quais práticas psicossociais substituem as práticas
“letradas” em sociedades ágrafas.
Assim, para Tfouni (1995), letramento são as conseqüências sociais e históricas
da introdução da escrita em uma sociedade. Do mesmo modo, Bastista & Galvão (1999,
p. 33) ponderam que o conceito de alfabetização tem sido utilizado como “o processo
de aquisição das habilidades básicas de leitura e de escrita, enquanto o letramento se
refere aos usos efetivos que um indivíduo ou um grupo social fazem da leitura e da
escrita”. Dessa forma, o letramento estaria voltado para o estudo das influências de
uma sociedade letrada na vida de um indivíduo, ressaltando as mudanças
comportamentais, culturais e cognitivas que ocorrem nos sujeitos, alfabetizados ou não.
Nesse sentido, as pessoas que não são alfabetizadas, mas que vivem numa sociedade
letrada não poderiam, portanto, ser consideradas iletradas.
Kleiman (1995, p. 19), por sua vez, define letramento como “conjunto de práticas
sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em
contextos específicos, para objetivos específicos”. A partir desse conceito, pode-se
inferir que as práticas de letramento mudam conforme muda o contexto onde estão
68
inseridas, e, por conseguinte, é possível dizer também que as orientações de
letramento são específicas em cada uma de suas agências, sejam elas: a escola, a
família, a igreja, o local de trabalho, o mundo virtual, dentre outras.
A autora vai mais longe em sua argumentação ao mostrar que a escola, principal
agência do letramento, “preocupa-se não com o letramento, prática social, mas apenas
com um tipo de prática de letramento, a alfabetização” (Ibidem, p. 20). Em outras
palavras, isso quer dizer que a escola privilegia a aquisição do código escrito em
detrimento ao desenvolvimento de habilidades para usar a leitura e a escrita em
diversos contextos sócio-culturais.
Com base nessa visão, Kleiman (1995), com base em Street (1984), distingue
dois modos de se pensar o letramento, que vêm aparecendo nas pesquisas das últimas
duas décadas: o “modelo autônomo” e o “modelo ideológico”. O primeiro, que se
coaduna com a concepção tradicional de letramento, segundo Kleiman (1995, p. 21),
“pressupõe que há apenas uma maneira de o letramento ser desenvolvido, sendo que
essa forma está associada quase que casualmente com o progresso, a civilização, a
mobilidade social”. Pode-se, por conseguinte, pensar que essa concepção de
letramento se define, principalmente, por pressupor uma maneira única e universal de
desenvolvimento do letramento, quase sempre associada a resultados e efeitos
civilizatórios, de caráter individual (cognitivos) ou social (tecnológicos, de progresso e
de mobilidade social). Nesse modelo que, segundo a autora, é o que prevalece em
nossas escolas, a escrita é considerada como um produto acabado, por isso, sua
interpretação independe do contexto de sua produção e é onde se valoriza a
dicotomização entre a oralidade e a escrita.
69
Já no “modelo ideológico”, Kleiman (Ibidem, p. 22), baseada em Street (1984)
aponta que:
As práticas de letramento, no plural, são social e culturalmente
determinadas e, como tal, os significados específicos que a escrita
assume para um grupo social dependem de contextos e instituições em
que ela foi adquirida. Não pressupõe, esse modelo, uma relação causal
entre letramento e progresso ou civilização, ou modernidade, pois, ao
invés de conceber um grande divisor entre grupos orais e letrados, ele
pressupõe a existência e investiga as características, de grandes áreas
de interface entre práticas orais e letradas.
Contrapondo-se ao modelo autônomo, o modelo ideológico permite que se
considere, por exemplo, a oralidade como instrumento importante para dar continuidade
ao processo de desenvolvimento lingüístico dos alunos, uma vez que isso traz aspectos
culturais e de poder para as práticas de letramento. Ou, nas próprias palavras de Street
(1984, p. 161), no modelo autônomo de letramento, estuda-se o letramento com base
em “seus aspectos técnicos, independentes do contexto social, e, no modelo ideológico,
as práticas de letramento são vistas como inextricavelmente ligadas às estruturas
culturais e de poder em uma dada sociedade”.
À luz dessa concepção, o letramento passa a ser entendido como práticas
sociais de leitura e escrita situadas nos eventos em que essas práticas são postas em
ação, bem como as suas próprias conseqüências sobre a sociedade. A esse respeito
Moita Lopes (2005, p. 49) assevera que:
Ainda que seja verdade que as habilidades decodificativas e cognitivas
desempenhem um papel importante quando os participantes se
envolvem em práticas de letramento, estudos mais recentes neste
campo têm chamado atenção para o letramento como um evento social
situado.
70
Conseqüentemente, ao contrário do modelo autônomo, os pesquisadores que
adotam a perspectiva do modelo ideológico vão investigar práticas (plurais) de
letramento, contextualizadas em esferas sociais específicas (grupos, instituições,
contextos), em que funcionamentos discursivos particulares da esfera social estarão
atrelados a uma pluralidade de relações complexas, dentro de práticas letradas tanto
orais quanto escritas, que, portanto, não podem mais ser vistas de maneira dicotômica.
Podemos, então, argumentar que as relações de causa e efeito entre poder,
acesso (e sucesso) social e saber escolarizado, historicamente relacionadas à
universalização da racionalidade científica e tecnológica nas sociedades ocidentais
modernas, passam, portanto, no modelo ideológico, a ser questionadas, pois, em se
tratando de “grupos de maior prestígio na sociedade, as práticas letradas também estão
comprometidas com os mecanismos de dominação/ subordinação político-ideológicos
dos sócio-economicamente marginalizados” (SIGNORINI, 1994, p. 21).
Dentro dessa perspectiva de letramento, portanto, as próprias práticas letradas
escolares passam a ser consideradas apenas como um tipo de prática social de
letramento (ou uma agência de letramento dentre tantas outras como a família, a igreja,
o local de trabalho, etc.), que, embora continue sendo, nas sociedades complexas, um
tipo dominante - relativamente majoritário e abrangente -, desenvolve apenas algumas
capacidades e não outras (KLEIMAN, 1995).
Tomando como base, portanto, a concepção de letramento como prática social,
noção que subjaz a este capítulo, passo a discutir a seguir acerca das práticas sociais
de letramento consubstanciadas na Internet: o letramento digital.
71
4.2. Letramento Digital
Praticar letramentos tecnológicos dentro dos
ambientes do ciberespaço fornece oportunidades
valiosas para que os aprendizes possam explorar as
implicações sociais de vários grupos e indivíduos de
práticas discursivas particulares e ordens do discurso
(LANKSHEAR, C. & KNOBEL, 1997, p. 159).
As novas tecnologias do mundo virtual contribuíram para uma mudança profunda
no mundo em que vivemos: a economia da informação e a nova sociedade de rede
cresceram repentinamente e as aplicações da vida real relativas ao comércio eletrônico
e ao aprendizado reforçado pela Internet prosperaram (Ver seção 5.1).
Estamos vivenciando, segundo Soares (2002, p. 1), “a introdução, na sociedade,
de novas modalidades de práticas sociais de leitura e de escrita, propiciadas pelas
recentes tecnologias de comunicação eletrônica – o computador, a rede (a web), a
Internet”. Esse momento é, portanto, bastante privilegiado para buscar entender, a
partir da introdução dessas novas práticas de leitura e de escrita, a condição em que
estão se instituindo as práticas de leitura e de escrita digitais, uma vez que esse novo
tipo de letramento no ciberespaço nos leva, de fato, a um estado diferente daqueles
que sempre guiaram as práticas de leitura e de escrita antes da era da Internet
(SOARES, 2002).
Nesse sentido, é possível dizer que a tela como espaço de escrita e de leitura
traz não apenas novas formas de acesso à informação, mas também novos processos
cognitivos, novas formas de conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever, enfim,
um novo letramento, isto é, um novo estado ou condição para aqueles que exercem
72
práticas de escrita e de leitura no computador. A esse respeito, Cope & Kalantzis (2000,
p. 5) ponderam que:
Tem havido uma integração e multiplicidade crescentes de modos
significantes de fazer sentido, em que o textual está também relacionado
ao visual, ao áudio, ao espacial, ao comportamental, e assim por diante.
E isso é particularmente importante na hipermídia eletrônica.
Essa multiplicidade cada vez maior de criar sentido através de meios
multimodais é tão imensa e complexa que proporciona uma mudança na própria
concepção que se tem sobre letramento (LÉVY, 1996). Em certos aspectos essenciais,
essa nova cultura do texto eletrônico, ao contrário do texto impresso, não é estável e é
pouco controlada. Não é estável porque os usuários, ao fazerem uso dos textos virtuais,
podem interferir neles, acrescentar, alterar, definir seus próprios caminhos de leitura; e
é pouco controlado porque a liberdade de produção de textos na tela não só é muito
grande como é, muitas vezes, ausente o controle da qualidade e conveniência daquilo
que é produzido e difundido no espaço virtual (MARCHUSCHI, 1999; XAVIER, 2005).
Esse novo tipo de letramento, batizado de letramento digital (ou informacional,
ou ainda computacional), é, segundo Carmo (2003), um conjunto de conhecimentos
que permite às pessoas participarem, por meio de práticas letradas mediadas por
computadores e outros dispositivos eletrônicos do mundo contemporâneo. Essa nova
prática de letramento surgiu a partir do desenvolvimento da Internet, junto com diversos
outros bancos de dados públicos e comerciais on-line, o que passou a permitir um
acesso pessoal sem precedentes às informações mundiais.
O letramento digital se refere, portanto, às habilidades interpretativas de leitura e
de escrita necessárias para que as pessoas se comuniquem efetivamente por meio da
mídia on-line. A esse respeito Xavier (2005, p. 2) assevera que:
73
O Letramento digital implica realizar práticas de leitura e escrita
diferentes das formas tradicionais de letramento e alfabetização. Ser
letrado digital pressupõe assumir mudanças nos modos de ler e
escrever os códigos e sinais verbais e não-verbais, como imagens e
desenhos, se compararmos às formas de leitura e escrita feitas no livro,
até porque o suporte sobre o qual estão os textos digitais é a tela,
também digital.
Nesse sentido, os letramentos digitais envolvem desde o conhecimento
específico acerca do uso do computador, como o domínio de um programa de
navegação, a habilidades de letramento mais amplas, tais como a análise e a avaliação
das fontes de informações disponibilizadas no mundo virtual (XAVIER, 2005). E muitas
dessas habilidades também eram importantes na era pré-Internet, porém, assumiram
maior importância nesse momento, devido à grande quantidade de informações do
ciberespaço. Carmo (2003, p. 3), sobre a questão do “letrado eletrônico”, afirma que:
O letrado eletrônico seria aquele que dispõe não só de conhecimento
sobre propriedades do texto na tela que não se reproduzem no mundo
natural como também sobre as regras e convenções que o habilitam a
agir no sentido de trazer o texto à tela. E é capaz ainda de interagir com
uma gama ampla de textos e está mais apto a adquirir conhecimento
sobre novos tipos de texto e gêneros discursivos no meio eletrônico.
Contudo, é preciso levar em consideração que, na mídia eletrônica digital, muitas
dessas informações on-line são, até mais freqüentemente do que em outros tipos de
mídia, de qualidade duvidosa, uma vez que o próprio controle de publicação pode ser
alterado: enquanto, na cultura impressa, editores, conselhos editoriais decidem o que
vai ser impresso, determinam os critérios de qualidade, portanto, instituem autorias e
definem o que é oferecido a leitores, o computador possibilita a publicação e
distribuição na tela de textos que escapam à avaliação e ao controle de qualidade:
qualquer um pode colocar na rede, e para o mundo inteiro, o que quiser (CARMO,
74
2003). A exemplo disso, é possível encontrar artigos científicos expostos na rede sem
qualquer controle dos conselhos editoriais, ficando disponível para qualquer um ler e
decidir individualmente sobre sua qualidade ou não.
Com base nos vários pressupostos aqui feitos sobre a escrita e a leitura na
cultura da tela e no confronto entre tecnologias tipográficas e digitais de escrita e seus
múltiplos efeitos sobre quem as utiliza (SOARES, 2002), podemos, então, não mais
pensar em letramento como algo singular, mas sim sugerir que se pluralize a palavra e
que se reconheça que diferentes tecnologias de escrita criam diferentes letramentos. A
esse respeito, Soares (2002, p. 9) propõe que:
O uso do plural letramentos enfatiza a idéia de que diferentes
tecnologias de escrita geram diferentes estados ou condições naqueles
que fazem uso dessas tecnologias, em suas práticas de leitura e de
escrita: diferentes espaços de escrita e diferentes mecanismos de
produção, reprodução e difusão da escrita resultam em diferentes
letramentos.
Em outras palavras, podemos afirmar que, dado esse caráter múltiplo que o
letramento assume, o uso do termo no plural letramentos seria mais adequado à
teorização sobre letramento que estamos procurando desenvolver aqui, cujo ponto
central é a idéia de que diferentes tecnologias de escrita e de leitura geram diferentes
estados ou condições naqueles que fazem uso dessas tecnologias, em suas práticas de
leitura e de escrita (CARMO 2003). Em outras palavras, diferentes espaços de escrita e
diferentes mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita e da leitura
resultam em diferentes letramentos. Ruddell & Singer (1994, p. 147), a esse respeito,
apontam que:
75
O letramento está sendo continuamente definido, redefinido, construído,
e reconstruído na vida social ou no grupo. O resultado desse processo
não é uma definição simples de letramento, mas uma compreensão da
multiplicidade de letramentos que os indivíduos enfrentam ao se
tornarem membros de grupos e comunidades que estão sempre se
expandindo.
Na verdade, essa necessidade de pluralização da palavra letramento e,
portanto, do fenômeno que ela designa já vem sendo bastante reconhecida na tentativa
de designar diferentes efeitos cognitivos, culturais e sociais ora em função dos
contextos de interação com a palavra escrita, ora em função de variadas formas de
interação com o mundo, não só a palavra escrita, mas também a comunicação visual,
auditiva e espacial (SEMALI, 2005).
Por isso, para que se possa pensar em construção de conhecimento numa
sociedade letrada, não basta apenas saber ler e escrever ou ter acesso às mídias de
informação e comunicação; é preciso, outrossim, que se interprete, através de um olhar
crítico, o que se leu ou que se ouviu, associando as informações apresentadas com as
experiências e vivências do dia-a-dia. A esse respeito Fróes (2001, p.05) indica que:
É possível reunir várias informações, seja em uma folha de papel ou em
um hard disk de computador. Elas estão lá, disponíveis, insistentemente
disponíveis, mas para que tenham algum significado para alguém, elas
precisam que algo aconteça, elas precisam ser interpretadas,
caracterizando assim um ato de criação interpretativa, uma atualização.
Uma pessoa que possui, portanto, letramento digital estaria mais preparada para
participar do mundo contemporâneo, porque, mesmo afastada dos bancos escolares,
poderá conhecer e se adaptar às mudanças decorrentes do aparecimento das novas
tecnologias de informação e comunicação e à conseqüente invasão de informações que
nos rodeiam (FRÓES, 2001). De fato, há uma grande diferença entre informação e
76
___________________________
6
Os links são um vínculo de hipertexto na Internet que aparecem nos documentos e se manifestam ora como
palavras, ora como imagens grafadas em destaque, e que permitem ao usuário visualizar blocos de informações
(outros textos, fragmentos de informação, gráficos, fotos, etc.). Por meio desse recurso, são estabelecidas ligações
para arquivos de um mesmo site ou de diferentes sites. Os links também podem ser um dispositivo da codificação
HTML, que acionam um sistema de comunicação, geralmente um e-mail (correio eletrônico). O termo foi
empregado, pela primeira vez, por Theodor Holm Nelson em 1964, relacionando-o ao conceito de “hipertexto”, para
a criação do primeiro software com links da história chamado Xanadu. Vinte anos depois, seus conceitos foram
utilizados na criação da World Wide Web.
conhecimento, e o letramento digital pode ser decisivo para a capacidade de
transformar a primeira no segundo.
E uma das ferramentas mais comuns para construir sentido nas práticas de
letramento digital é o uso dos hipertextos, que, conforme pude observar, ocorre com
uma certa freqüência em um dos corpora desta pesquisa de dissertação (Ver seção
7.2).
Segundo Marchuschi (1999, p. 1), o hipertexto seria um modo de se construir
“uma escritura eletrônica não-seqüencial e não-linear, que se bifurca e permite ao leitor
o acesso a um número praticamente ilimitado de outros textos a partir de escolhas
locais e sucessivas, em tempo real”. Dentro de um hipertexto existem, de acordo com o
autor, vários links
6
, que permitem tecer o caminho para outras “janelas”, conectando
algumas expressões a novos textos, fazendo com que estes se distanciem da
linearidade da página e se pareçam mais com uma rede. Na Internet, cada site é um
hipertexto – clicando em certas palavras vamos para novos trechos, e vamos
construindo, nós mesmos, uma espécie de texto. De acordo com Jay Bolter (1991,
p.27), “as partes de um hipertexto podem ser agrupadas e reagrupadas pelo leitor”.
Cada uma das páginas da rede é construída, portanto, por vários autores:
programadores, designers, projetistas gráficos, autores do conteúdo do texto etc.
77
É nesse sentido que podemos conceber o hipertexto digital como um meio
multimodal para acesso a informações no ciberespaço. Lévy (1996, p.44) aponta que:
O hipertexto digital permite novos tipos de leituras (e de escritas)
coletivas. Um continuum variado se estende assim entre a leitura
individual de um texto preciso e a navegação em vastas redes digitais
no interior das quais um grande número de pessoas anota, aumenta,
conecta os textos uns aos outros por meio de ligações hipertextuais [...]
O hipertexto digital seria portanto definido como uma coleção de
informações multimodais disposta em rede para a navegação rápida e
“intuitiva”.
Um hipertexto digital, portanto, vai muito mais além da concepção tradicional de
leitura e escrita da qual sempre fizemos uso, como é possível perceber em algumas das
conversas do sujeito de pesquisa com outros interactantes no mundo virtual (Ver seção
7.2). Segundo Marchuschi (1999, p.2), ao permitir vários níveis de tratamento de um
tema, o hipertexto virtual “oferece a possibilidade de múltiplos graus de profundidade
simultaneamente, já que não tem seqüência nem topicidade definida, mas liga textos
não necessariamente correlacionados”. Nesse caso, podemos ponderar que o
hipertexto se torna um componente bastante subversivo quanto à forma, uma vez que
amplia os recursos expressivos do texto escrito com meios multimodais, articulando
sons, fotos, vídeos, cores e palavras, como é o caso das salas de bate-papo, em que
vários meios multimodais são usados para a comunicação entre os interactantes (Ver
sub-seção 6.3.1.2).
Sob essa perspectiva, podemos afirmar que o hipertexto digital muda a própria
concepção que temos acerca do texto. Os meios audiovisuais conquistam, cada vez
mais, o espaço da mensagem, como, por exemplo, os emoticons, hipertextos em forma
de diversas “figuras”, usados nas salas de bate-papo da Internet, que podem expressar
diversos sentimentos dos usuários e que se prestam a substituir certas palavras (Veja
78
ANEXO 4). Alguns deles, por exemplo, apresentam, inclusive, links que, além de
exibirem um conteúdo com diversas imagens e sons, estabelecem uma conexão com
outros textos e / ou outros hipertextos. Os emoticons têm a capacidade de conduzir um
interactante a interpretações de ordem subjetiva – afetivas e/ou comportamentais – dos
significados que carrega, devendo, desse modo, exprimir aspectos que, em geral,
eram possíveis no contato face-a-face.
É possível dizer, portanto, que a multiplicidade de hipertextos que existem no
mundo virtual traz consigo outros modos de construir sentido na comunicação social.
Nesse sentido, LANKSHEAR & KNOBEL (1997, p. 153) ponderam que:
Práticas sociais baseadas no texto digital deram um novo escopo à
experimentação e à criatividade evidentes no desenvolvimento de novos
vocabulários, sinais e códigos pelos participantes. Isto novamente
reforça a vontade humana para a prática da atividade, da invenção e da
transformação.
Essas informações do mundo virtual, consubstanciadas pelos hipertextos digitais,
são, por sua vez, provisórias, uma vez que obedecem a um ritmo específico de
pertinência mais ou menos imediata. A informatização instaura um novo tipo de regime
de circulação e de metamorfose das representações e dos conhecimentos. A esse
respeito Lèvy (1996, p. 36) aponta que:
Carteiros do texto, viajamos de uma margem à outra do espaço do
sentido, valendo-nos de um sistema de endereçamento e de indicações
que o autor, o editor, o tipógrafo balizaram. Mas podemos desobedecer
às instruções, tomar caminhos transversais, produzir dobras interditas,
estabelecer redes secretas, clandestinas, fazer emergir outras
geografias semânticas.
79
De fato, as novas produções hipertextuais, consubstanciadas pelas novas
tecnologias, nos permitem reavaliar e até (re)construir nossas práticas sociais, podendo
fazer com que elas “mudem e alterem de forma tal a constituírem um novo evento”
(MARCHUSCHI, 1999, p. 3). Nesse sentido, ser letrado digitalmente é, por conseguinte,
estar envolvido em certas práticas discursivas para construir sentidos, que buscam lidar
cada vez mais com meios hipertextuais multimodais que unem o textual, visual, áudio,
espacial, comportamental etc (COPE & KALANTZIS, 2000). Assim, podemos afirmar
que a possibilidade de se engajar em uma multiplicidade de discursos, de modo a
constituir-se como um ser discursivo na vida social, já é em si um ato de se tornar
letrado, uma vez que é a partir do discurso que podemos (re)construir quem somos nas
mais diversas comunidades de prática das quais fazemos parte (MOITA LOPES, 2005).
Como o contexto de pesquisa no qual este estudo se baseia é o ciberespaço
(Ver seção 5.2) e, conforme foi mostrado no presente capítulo, os letramentos e os
hipertextos digitais são mecanismos inerentes ao mundo virtual, dedico o último capítulo
do aporte teórico deste trabalho a compreender o ciberespaço e suas implicações na
(re)construção de múltiplas identidades sociais.
80
5. CIBERESPAÇO
5.1. O conceito de Ciberespaço
“O ciberespaço é um fluxo. Suas inúmeras fontes,
suas turbulências, sua irresistível ascensão oferecem
uma surpreendente imagem da inundação de
informação contemporânea. Cada reserva de
memória, cada grupo, cada indivíduo, cada objeto
pode tornar-se emissor e contribuir para a enchente.
A esse respeito, Roy Ascott fala, de forma metafórica,
em segundo dilúvio. O dilúvio de informações. Para
melhor ou pior, esse dilúvio não será seguido por
nenhuma vazante. Devemos portanto nos acostumar
com essa profusão e desordem(LÉVY, 1999, p. 9).
Antes de tratar do ciberespaço como contexto de pesquisa e um objeto de
estudo para a compreensão da (re)construção das identidades sociais, é conveniente
que sejam feitas algumas considerações conceituais, no sentido de tornar claro o
referencial sobre o qual se desenvolverão as reflexões sobre esse tema.
Segundo Filho (2003, p. 2), o ciberespaço se caracteriza “como um amplo
sistema ramificado que opera diretamente com a produção de trocas simbólicas e
processos de significação na esfera virtual”. O termo “ciberespaço” (do inglês,
cyberspace) foi cunhado pela primeira vez pelo escritor canadense de ficção científica
William Gibson em 1984 no seu livro Neuromancer. Esse termo veio dar novas
características a vários termos referentes ao mundo virtual usados atualmente, tais
como: cibercultura, ciberpunk e cibersexo.
A obra Neuromancer trata da história de Case, uma espécie de super-hacker do
futuro, especializado em penetrar em sistemas de grandes empresas para espalhar
vírus e obter informações sigilosas. No mundo em que ele habita, a tecnologia
consegue transformações espantosas na biologia do ser humano, como os muitos
81
personagens que possuem seus corpos alterados através de implantes artificiais, tanto
de natureza biológica quanto eletrônica. Ao longo da narrativa, os personagens entram
em contato com drogas de fácil aplicação e efeitos imediatos, que oferecem muitos,
alguns novos, estados de consciência e percepção. Neuromancer é uma história que,
por suas características, extrapolou a condição de ficção e se tornou uma referência
acerca do ciberespaço tal qual o concebemos atualmente (LEVY, 1997). É uma
demonstração sobre como as tecnologias podem alterar as relações humanas, o ritmo
de sobrevivência e a própria percepção da vida real, na tentativa de redefinir o retrato
de um futuro no qual a vida humana será fortemente permeada pela intervenção de
muitas tecnologias, e onde a questão das identidades passa a ser, sobretudo, um ato
de escolha, determinação pessoal e até de consumo (HAMMAN, 1998).
Historicamente, as contribuições da Internet nas práticas sociais, logo no início
de seu aparecimento, se restringiam apenas às áreas militar e administrativa do
governo. Em seguida, passou também a permitir acesso restrito a certas instituições de
ensino e pesquisa em sua passagem para a sociedade civil. Mesmo assim, na sua fase
inicial, o computador era usado principalmente como máquina para automatizar cálculos
e efetuar estatísticas. Contudo, segundo London (1997), é somente a partir da década
de 80 que o computador se tornou uma tecnologia mais popular em virtude da redução
do seu tamanho e peso. A Internet pôde, então, ser estendida ao cidadão comum
quando os microcomputadores passaram a custar menos e se tornaram mais fáceis de
usar.
Ainda na década de 1980, nos países mais desenvolvidos, a mídia passou por
transformações importantes: de um lado, iniciou-se um processo de hibridismo entre as
várias mídias, suas linguagens e meios como o rádio-jornal, o tele-jornal etc (LONDON,
82
___________________________
7
Os termos Internet e World Wide Web são usados indistintamente, embora eles não sejam sinônimos. A Internet é a
gigantesca rede das redes, uma imensa infra-estrutura em rede. Ela conecta milhões de computadores globalmente,
formando uma rede em que computadores podem comunicar-se uns com os outros; a World Wide Web (WWW) é
uma maneira de acessar informação por meio da Internet. É um modelo de compartilhamento de informações
construído sobre a Internet. A WWW se serve de browsers, como o Internet Explorer, para acessar documentos
chamados páginas (home pages), que estão ligados uns a outros por meio de hyperlinks. A WWW é apenas uma das
maneiras pelas quais a informação pode ser disseminada pela Internet. A Internet, não a WWW, é ainda utilizada
para acessar e-mails, Newsgroups, Instant Messaging. Portanto a WWW é apenas uma parte da Internet, embora uma
grande parte.
1997). Ao mesmo tempo, novos produtos foram oferecidos aos consumidores
estimulando a escolha e o consumo individualizados de produtos culturais:
videocassetes, aparelhos para gravação de vídeos, equipamentos do tipo walkman,
videosclips, videogames, filmes em vídeo cassette, em DVD etc.
Contudo, foi no final do século XX, especificamente na década de 1990, que se
deu início à utilização comercial da Rede mundial de computadores a partir do
desenvolvimento do projeto da World Wide Web (WWW)
7
. E, com o advento da
Internet, a cultura das mídias passou a trazer e preparar o consumidor para a entrada
em um outro modo mais radical de pensar os próprios meios de comunicação em
massa: a cibercultura. A principal marca da cibercultura é a interatividade, pois, muito
embora ela até esteja presente em outras formas de cultura, podemos observar que os
processos de interatividade, assim como suas aplicações, se tornaram, de fato, muito
mais diferenciados e complexos na virtualidade (TURKLE, 1997).
Nas culturas de povos ágrafos, a construção da história se dava, e ainda se dá,
através das narrativas orais: o narrador relatava as experiências passadas a ouvintes
que participavam do mesmo contexto comunicativo ou, conforme Jones (1997, p. 2),
A história era encarnada nas / pelas pessoas. Quando as pessoas mais
velhas morriam, muitas vezes, se apagavam dados irrecuperáveis pelo
grupo social. O saber e a inteligência praticamente se identificavam
com a memória; os mitos, a partir dos quais se geravam as grandes
narrativas, funcionavam como estratégia para garantir a preservação de
crenças e valores.
83
Com o advento da escrita, instaurou-se uma segunda grande etapa na história
da humanidade. Com ela, as relações entre o indivíduo e a memória social mudaram. O
sujeito passou a poder projetar suas experiências, sua visão de mundo, sua cultura,
seus sentimentos e vivências no papel. Ao fazer isso, pôde, também, analisar o próprio
conhecimento das coisas e do mundo, e, o mais importante, fazer com que esse
conhecimento pudesse alcançar pessoas de outras culturas e outros tempos por meio
da escrita (TURKLE, 1997).
O ciberespaço, no entanto, se constitui como a terceira grande fase na
experiência da comunicação humana. A conexão simultânea dos atores sociais a uma
mesma rede traz uma relação totalmente nova para os conceitos de contexto, espaço e
tempo. Das narrativas e da linearidade das culturas da escrita, passamos a uma
percepção do tempo, muito mais do que simplesmente linhas, como segmentos da
imensa rede pela qual nos movimentamos (CARDOSO, 1997). Vivemos num ritmo de
grande velocidade em que não há horizonte, nem ponto-limite, um “fim” no término da
linha. Ao contrário, vivemos num tempo fragmentado, numa série de presentes
ininterruptos que não se sobrepõem uns aos outros, como páginas de um livro, mas
existem simultaneamente, em tempo real, com intensidades múltiplas que variam de
acordo com o momento (MEYROWITZ, 1994).
Com base nessa experiência de um tempo fragmentado, outro conceito passa a
ser considerado como central no ciberespaço: o da desterritorialização. A
desterritorialização diz respeito ao fato de uma pessoa, um ato, uma informação se
tornarem “não-presentes” quando se encontram no mundo virtual, produzindo, ainda,
um deslocamento radical nos conceitos clássicos de lugar e de tempo (BAUMAN,
2005). Apesar da desterritorialização dos elementos e da implosão do tempo e do
84
espaço, o virtual não significa imaginário. A esse respeito, Du Gay (1994, p. 26)
assevera que:
A nova mídia eletrônica não apenas possibilita a expansão das relações
sociais pelo tempo e espaço, como também aprofunda a interconexão
global, anulando a distância entre as pessoas e os lugares, lançando-as
em um contato intenso e imediato entre si, em um “presente” perpétuo,
onde o que ocorre em um lugar pode estar ocorrendo em qualquer parte
(...) Isto não significa que as pessoas não tenham mais uma vida local —
que não mais estejam situadas contextualmente no tempo e espaço.
Significa apenas que a vida local é inerentemente deslocada — que o
local não tem mais uma identidade “objetiva” fora de sua relação com o
global.
O ciberespaço pode ser, portanto, considerado como uma virtualização da
realidade, uma migração do mundo real para um mundo de interações virtuais (LÉVY,
2001). Nesse sentido, a desterritorialização é uma das vias régias da virtualização, uma
vez que, segundo Kumaravadivelu (2006 – Ver seção 2.1), as distâncias espacial e
temporal estão diminuindo, e as fronteiras estão desaparecendo. Essa migração em
direção a uma nova concepção da relação espaço-tempo estabelece uma realidade
social virtual, que, ao manter aparentemente as mesmas estruturas da sociedade real,
não possui, necessariamente, uma correspondência completa com esta, possuindo
suas próprias estruturas e códigos.
Sob essa perspectiva, Lévy (1999) apresenta o mundo virtual como uma grande
rede interconectada mundialmente, com um processo de comunicação “universal” sem
“totalidade”. Isso segue uma linha de comunicação que vem possibilitando aos
navegantes da grande “rede”, participar democraticamente de um modelo interativo
feito para todos, consolidando, assim, a idéia de uma “aldeia global”.
O autor ainda pondera acerca do que se compreende como virtual. O senso
comum entende virtual como a ausência de presença, em oposição ao real. No entanto,
85
o termo virtual significa, atualmente, “aquilo que existe em potencial, derivado do termo
latino virtus que significa força, potência. É nesse sentido que a árvore está
virtualmente presente na semente” (LÉVY, 2001, p.16); o virtual não se opõe ao real,
mas ao atual: “a árvore produz a semente que tem em si a árvore” (Ibidem, p. 17). O
virtual, segundo o mesmo autor, portanto, difere do atual na medida em que, não
contém em si o real como fim, mas sim um complexo de possibilidades que, de acordo
com as condições e os contextos, irá se atualizar de maneiras distintas.
Nesse sentido, o virtual, portanto, é entendido como algo que dialoga e interage
com o atual, transformando-se de acordo com as peculiaridades de cada contexto.
Nessa relação, entende-se que os resultados finais (as atualizações) não estão
determinados, pois serão o resultado de um processo de atualização, efetivando-se
através do modo como os sujeitos se posicionam identitariamente (TURKLE, 1996). Por
isso, dedico a próxima seção a discorrer sobre o modo como o ciberespaço e a práticas
de letramento digital podem contribuir para propiciar um repensar e uma redefinição das
práticas de sociabilidade e, com isso, das próprias identidades sociais.
5.2. O ciberespaço e o letramento digital: novas formas de (re)pensar e redefinir
as construções identitárias
A multiplicação contemporânea dos espaços faz de
nós nômades de um novo estilo: em vez de seguirmos
linhas de errância e de migração dentro de uma
extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um
sistema de proximidade ao seguinte. Os espaços se
metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forçando-
nos à heterogênese” (LÉVY, 1996, p. 25).
86
Ao refletir, na seção anterior, acerca do ciberespaço, vimos que este não pode
ser considerado como um ambiente homogêneo e totalizante. Percebemos que, da
mesma forma que em sociedades complexas, a experiência da alteridade e de
constituição identitária é vivida de maneira bastante intensa (TURKLE, 1996). As
comunidades virtuais, listas de discussão, blogs e salas de bate-papo virtuais
inscrevem múltiplos e heterogêneos interesses e significados compartilhados no
ciberespaço. A exemplo disso, é possível mencionar “a nova civilização on-line” (Ver
ANEXOS 5 e 6), na qual, segundo CHAVES e LUZ (2007, p. 13), se desenvolveu uma
“geração que cresceu com a Internet e que vive em ritmo acelerado
e
aboliu
a
separação entre os relacionamentos do mundo
real e
aqueles
do
virtual”. As autoras
fazem uso da expressão “nativos da geração digital” para se referir a jovens que não
conheceram o mundo antes do e-mail. Os "nativos", segundo elas, dedicam muito do
seu tempo nos sites de relacionamento, nos quais podem compartilhar conhecimento,
músicas, fotos, filmes e conversas sobre todo o tipo de assunto, como o faz o próprio
sujeito da pesquisa (Ver subseção 7.1.2).
As particularidades desse novo mundo, segundo Lévy (2001), fazem com que as
estruturas gerais de determinados esquemas sofram mudanças para que se adaptem
às novas condições. Um exemplo disso seria a enorme gama possibilidades de
relacionamentos simultâneos que um sujeito pode estabelecer no ciberespaço. Nas
salas de bate-papo da Internet, um usuário pode, abrindo diversas janelas, manter uma
conversa com muitos (e variados) grupos simultaneamente (Ver subseção 6.3.1.2), o
que, de fato, torna o mundo virtual um lugar para novas adaptações das relações
humanas.
87
Uma das fortes tendências teóricas sobre a constituição do mundo virtual se
origina a partir de estudos sobre a criação de vínculos sociais com interesses
interligados dentro de um espaço eletrônico. Nesse sentido, é possível inferir que as
comunidades da Internet contemplam a diversidade, a heterogeneidade, rendendo-se,
exclusivamente, aos interesses comuns (LÉVY, 1999). A proximidade geográfica não é
mais considerada um delimitador para a uniformidade social de um grupo, uma vez que,
conforme mencionei na seção anterior, todas as fronteiras geográficas caem por terra
no ciberespaço. Em primeira instância, o que se verifica é a gama de pessoas, etnias e
culturas diferentes que se encontram num mesmo espaço da rede, suprindo suas
necessidades de contato social sem que sejam obstruídos por questões de repressão
social (CARDOSO, 1997).
Sob essa perspectiva, é possível compreender o espaço virtual como uma
possibilidade de fazer emergir relações sociais potenciais, já que o meio eletrônico
digital apaga o fator território nas ações humanas, não mais ficando restrito ao contato
face-a-face, o que permite estabelecer novas formas de sociabilidade (TURKLE, 1996).
Isso nos faz refletir acerca das noções de sociabilidade, comunidade, comunicação e
relações sociais que se criam, em virtude da própria mudança espaço-temporal de um
universo físico para um imaginário.
A forma como pessoas de diferentes culturas vivenciam a virtualidade pode
indicar muito a respeito de suas próprias culturas, isso porque, a própria noção de
pertencimento, por exemplo, não é mais percebida como “algo que acontece
simplesmente a uma pessoa, mas que muito desse sentido de pertencimento é criado
no aqui e no agora” (RAMPTON, 2006, p. 114). Por isso, a forma como os indivíduos
passarão a construir a experiência de múltiplo pertencimento proporcionada pela
88
Internet ainda está em aberto e só poderá ser respondida através de um trabalho de
pesquisa minucioso das diferentes tribos que povoam o ciberespaço (MILLER, 1995).
A natureza das relações estabelecidas via Internet, a forma como elas são
representadas pelos envolvidos, o desenrolar das histórias de amor e de amizade, as
formas, os limites e a estrutura de negociações do “cibersexo” (LÈVY, 1999), tudo isso
está ligado a questões que podem ser estabelecidas a partir desse universo de estudo.
As modalidades de articulação de identidades nas relações em que o encontro físico é
pouco provável (por questão de distância geográfica ou pela própria natureza da
relação), como é o caso do meu sujeito de pesquisa (Ver subseção 7.1.2), também se
constituem num terreno fascinante de interrogações. Com base na extrema facilidade
de manipulação e criação de identidades virtuais, as relações sociais ganham formas
cada vez mais heterogêneas e multifacetadas. A esse respeito Lankshear & Knobel
(1997, p.155) asseveram que:
Os ambientes do ciberespaço fornecem um acesso quase ilimitado à
complexidade, à diversidade e à pura multiplicidade das subjetividades
humanas a formas de vida culturais, junto com uma natureza altamente
fluida da identidade e com possibilidades extensivas para construir
identidades.
A exemplo disso, podemos mencionar a construção e manipulação de
identidades sociais, num ambiente virtual chamado Second Life (Ver ANEXOS 7 a 10),
um programa desenvolvido no ambiente do ciberespaço que propicia ao usuário criar um
personagem virtual chamadoavatar”, que interage com personagens eletrônicos (outros
“avatares”) de outros internautas. Esse “eu” digital pode passear, conversar, comprar,
namorar e até ganhar dinheiro no ciberespaço. O mais interessante é que o “avatar”,
criado pelo usuário, que irá transitar no mundo virtual, pode assumir diversas formas,
89
___________________________
8
Sobre essa questão, a Revista Veja Tecnologia destaca que a maioria dos usuários desses mundos virtuais em 3D
como o Second Life cria seus avatares como o intuito de materializar a imagem de como gostariam de ser no mundo
real. Se, no mundo virtual, todos podem ser de acordo com as suas fantasias e desejos, não haveria, segundo a
revista, “lugar para a baixa auto-estima” (Ver Anexos 3 a 10).
possibilitando ao usuário “ser” outras identidades sociais, muitas das quais não
disponíveis no seu mundo real.
A emersão de novas identidades no ambiente virtual é ricamente explorada por
Turkle (1996), para quem a Internet tem contribuído para a idéia da identidade como
multiplicidade. Para essa autora, os bate-papos virtuais, por exemplo, permitem ao
sujeito desmembrar sua identidade em várias, de forma a permitir-lhe vivenciar muitas
outras novas identidades, de acordo com sua fantasia e desejo
8
.
A contribuição de Turkle (1996) foi de suma importância no sentido de transpor a
discussão sobre o sujeito e as identidades múltiplas para o âmbito da Internet. Para
essa autora, “real” e “virtual” possuem potenciais característicos, podendo um se
expandir e se enriquecer com o outro e vice-versa. Dessa forma, nas salas de bate-
papo virtuais, “real” e “virtual” se encontram, saboreando a alegria da não identificação
e o prazer da interpretação de identidades. Em virtude disso, podemos afirmar que a
experiência identitária parece se constituir de forma mais plena no mundo virtual do que
no real. A esse respeito, Turkle (1996, p. 167) pondera que:
O eu não está mais simplesmente desempenhando papéis diferentes
em cenários diferentes, algo que as pessoas experimentam quando, por
exemplo, alguém acorda como um amante, toma café da manhã como
uma mãe e vai para o trabalho como uma advogada. A prática de vidas
das janelas é a de um eu distribuído que existe em muitos mundos e
desempenha muitos papéis ao mesmo tempo.
90
Outra questão que contribue demasiadamente para a multiplicidade de
(re)construções identitárias no mundo virtual está relacionada ao fato de não ser
possível ver o corpo físico presente nas interações do ciberespaço, visto que a
mediação recai sobre os equipamentos tecnológicos (LÉVY, 2001). As limitações
impostas pelas mídias eletrônicas digitais foram vencidas por intermédio de
mecanismos lingüísticos e extralingüísticos que auxiliam na inteligibilidade dos
significados no decorrer de uma sessão comunicativa (marcadores discursivos,
marcadores de troca de turnos, de encerramento, hipertextos áudio-visuais etc). Em
contrapartida, as mídias interativas, para alcançar uma melhor utilização do potencial
humano na interação eletrônica, oferecem mecanismos técnicos que acrescem,
segundo Murray (1995), à interação a noção de presença. Portanto, somos levados a
compreender que, no ciberespaço, a obliteração do corpo faz com que novos
mecanismos sejam usados para contornar os limites impostos pelo meio (CARDOSO,
1997).
Dentro dessa concepção, podemos entender que a fisicalidade no ciberespaço
(o corpo virtual) passa a ser construída via discurso; o agente online vai fornecendo
informações sobre si e, com isso, construindo a si mesmo (LÉVY, 1996). O interlocutor,
por sua vez, também consegue construir uma imagem do agente, situando-o na
interação como um ser que detêm características sociais próprias. Nesse processo de
reconhecimento, o que se estabelece é o sentido de co-presença: termo empregado
para definir o significado de presença virtual.
Vemos, portanto, na virtualidade um espaço para construção de identidades que
fluem no universo eletrônico, uma vez que o corpo físico se encontra atrás de uma tela
de computador. Segundo Turkle (1996, p. 158), a Internet possibilita “a construção de
91
uma identidade que é tão fluída e múltipla que expande os próprios limites da sua
noção. As pessoas se tornam mestres da auto-apresentação e da autocriação”. Por
isso, a Internet se tornou um espaço para experimentação de novas formas de
sociabilidade, em que a própria fisicalidade pode ser (re)construída.
Para entendermos as relações sociais que se formam no decorrer de uma
interação tendo o computador como mediador, devemos pensar, por conseguinte, como
o fator da presença é re-significado pela intervenção da técnica e de como o sujeito, de
forma muito mais radicalizada do que no mundo real, manipula suas informações
pessoais e sociais, que lhe são inscritas, para subsidiar suas ações no decorrer das
interações, uma vez que a vantagem do anonimato lhe proporciona isso (CARDOSO,
1997). Portanto, as marcas sociais ou pessoais são relevantemente necessárias para a
manutenção das relações entre os interactantes no mundo virtual. A esse respeito
Fabrício e Moita Lopes (2002, p. 25) apontam que:
As salas de bate-papo da Internet permitem que sejamos construídos
de formas diferentes, ao assumirmos identidades sociais variadas. Ao
mesmo tempo em que tal envolvimento midiático torna possível viver
sob a pele de outros, diferentes de nós mesmos, trazendo à tona a
natureza contingente dos discursos que nos fabricam, é também um
meio de poder experimentar modos de ser não legitimados nas práticas
sociais em que atuamos. Neste sentido, a Internet é um lugar de
liberdade em que se pode vivenciar discursivamente a alteridade. O
destino identitário é, portanto, questionado na prática social: você é
quem você quiser se os discursos em que você se situa o permitem.
Isso quer dizer que você pode se construir em outros discursos,
diferentes daqueles traçados ou disponíveis para você até então. De
algum modo, podemos dizer que é possível brincar de “Deus”,
vivenciando o papel do “Criador”.
Nesse cenário, a Internet pode ser, então, pensada como uma imensa
comunidade de prática que pode possibilitar aos interactantes, até mais facilmente que
92
outros meios, experimentarem outras vidas (LAVE & WENGER, 2002). E,
considerando-se que os interactantes que participam dessa pesquisa pertencem a
diferentes comunidades de prática, mas que, ao mesmo tempo, estão pertencendo a
uma mesma comunidade de prática virtual no ciberespaço, e que cada um está
construindo sua trajetória em todas essas comunidades de forma específica, o diálogo
entre eles pode ser um espaço privilegiado de vir a ser ao fazerem do processo de
construção do conhecimento no diálogo entre eles uma experiência de (re)construção
de identidades. Ou, nas palavras de Lèvy (1996, p.23):
A virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma
realidade num conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade,
um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto
considerado: em vez de se definir principalmente por sua atualidade
("uma solução"), a entidade passa a encontrar sua consistência
essencial num corpo problemático.
Sob essa perspectiva, é possível compreender que as a(s) maneira(s) como nos
posicionamos por meio das mais diversas práticas de letramentos nas quais nos
engajamos contribuem para (re)construir quem somos no mundo social. Isso significa
que podemos, com base nessa concepção, sempre é possível atribuir novos sentidos e
uma nova liberdade ao modo como interpretamos essa realidade.
Nesse sentido, as ideologias reveladas no discurso dos interactantes, ao se
engajarem em práticas de letramento digital, são diretamente influenciadas pela
participação deles em diferentes comunidades de prática (LAVE & WENGER, 2002), ao
mesmo tempo em que revelam as identidades por eles constituídas no decorrer das
interações com o(s) outro(s) nessas comunidades. À medida que essas identidades
93
entram em conflito, são questionadas e analisadas, o diálogo pode se tornar um espaço
para (re)construção de identidades para todos os participantes envolvidos.
Pode-se propor, assim, que a nossa participação nas práticas de diferentes
comunidades leva à construção de identidades em relação a essas comunidades. Sob
esse prisma, participar, por exemplo, de uma sala de bate-papo virtual na Internet
constitui-se, ao mesmo tempo, em ações e formas de pertencimento. Tal participação
influencia, por conseguinte, não apenas o que fazemos, mas também quem somos e a
forma como interpretamos aquilo que fazemos (MOITA LOPES, 2002).
É mister, portanto, pensar as identidades sociais de gênero, raça, sexualidade,
etnia, etc. como uma construção social, ou seja, como uma experiência de
pertencimento múltiplo. E, talvez assim, possamos nos imaginar, de acordo com a
epígrafe desta seção, como portadores de identidades sempre nômades, cujos
“espaços se metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forçando-nos à
heterogênese” (LÉVY, 1996, p. 25).
Nesse sentido, é possível afirmar que aquilo que o mundo virtual nos oferece de
mais interessante, no que diz respeito à constituição identitária, é justamente a
possibilidade, segundo Lévy (1996), de termos acesso não a uma, mas a várias novas
formas de viver a experiência humana no mesmo espaço de tempo. É, portanto, a partir
dessa multiplicidade de possibilidades que nos são disponibilizadas pelo ciberespaço, e
da forma como fazemos uso disso por meio da linguagem, que podemos pensar em
(re)criar nossos mundos sociais, nosso relacionamento com o outro e nossas
ideologias, assim como podemos pensar que tudo isso está intrinsecamente
relacionado com as nossas identidades sociais de gênero, raça, sexualidade etc que
94
constituem e são constituídas pela atividade humana nas mais variadas esferas do
mundo social, em especial no mundo virtual (LÉVY, 1999).
E se podemos, portanto, manipular quem somos, ou melhor, se podemos ser
“outros”, de forma mais ampla, no mundo virtual, então, este pode, de fato se tornar um
“espaço libertário” para a própria experimentação (LONDON, 1997). Em outras
palavras, a virtualidade potencializa pessoas a interpretarem e se envolverem em
performances identitárias sem que, preliminarmente, sejam questionados sobre a sua
veracidade, daí podemos pensar o ciberespaço, de fato, como um local em que se pode
viver a multiplicidade do ser humano.
Isto posto, ao relacionar os conceitos de discurso, identidades sociais, letramento
virtual e ciberespaço, pretendo dar conta de questões de ordem social, cultural e
histórica ao analisar os vários posicionamentos interacionais de Johnny frente às outras
pessoas com as quais interage. Entendo, portanto, que o diálogo entre os participantes
desta pesquisa, o espaço virtual e as práticas de letramento em que estão inseridos
passam a ser os meios através dos quais seja possível refletir acerca do processo de
(re)construção de suas identidades sociais. Depois de apresentados esses
pressupostos teóricos, passo, então, no próximo capítulo, a tratar do contexto e da
metodologia de pesquisa que norteiam o presente estudo.
95
6. CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA
Uma exposição sobre uma pesquisa é, com efeito, o
contrário de um show, de uma exibição na qual se
procura ser visto e mostrar o que se vale. É um
discurso em que a gente se expõe, no qual se correm
riscos” (BOURDIEU, 1989, p.18).
6.1. O(s) sujeito(s) de uma pesquisa(s): buscando respostas para a eterna
pergunta sobre o quê pesquisar
Devo confessar, neste capítulo de metodologia de pesquisa, que quando resolvi
começar a minha pesquisa de dissertação já tinha mais ou menos em mente qual seria
meu corpus de análise. De fato, tudo começou no ano de 2005. Eu precisava encontrar
um material que pudesse gerar os dados da minha dissertação. Foi, então, que conheci
um colégio estadual de ensino médio, localizado no bairro de Jacarepaguá, na cidade
do Rio de Janeiro. A escolha por esse colégio se deu por ser localizado próximo do
lugar onde moro.
Procurei a diretora do colégio, apresentei-me a ela e lhe disse que gostaria de
realizar uma pesquisa com alguns alunos (inicialmente pensei numa única turma
porque achei que, assim, seria mais fácil pesquisar). Expliquei-lhe que a minha idéia era
a de investigar como alunos(as) constroem suas identidades sociais de gênero no
ambiente virtual (Internet) a partir da análise de textos escritos e alguns tipos de
elementos semióticos - tais como: cores, figuras e fotos – utilizados para a
comunicação na Internet, gerados por meio da interação entre esses(as) alunos(as).
Ela achou meu projeto bastante interessante e me concedeu um horário semanal
para que eu pudesse realizar a minha pesquisa. O acordo que fizemos foi o de utilizar
96
os horários destinados para a disciplina de religião, que, na época, estavam vagos por
falta de professor, o que me pareceu, de início, um tanto cômico, já que estaria usando
o tempo destinado às aulas de religião para discutir com os alunos sobre temas como
gênero e sexualidade.
De fato, o colégio parecia ter as condições ideais para que pudesse realizar
minha pesquisa, não só por eu ter recebido um horário exclusivo para trabalhar com
os(as) alunos(as), como também pelo fato de o colégio possuir, na época, um
laboratório de multimídia com dez computadores com Internet que, posteriormente, foi
disponibilizado pela direção para que pudesse usar com os(as) alunos(as).
Comecei a trabalhar, então, com uma das turmas do segundo ano do ensino
médio, que tinha em torno de quarenta alunos(as) com idades entre dezesseis e
dezessete anos. Inicialmente, trazia textos da mídia impressa relativos aos temas de
gênero e sexualidade. Dizia-lhes que iria usar um gravador para registrar as conversas
e dava-lhes, então, algum tempo para discussão sobre os textos. Tudo parecia estar
indo muito bem até eu começar a observar o comportamento de um dos alunos da
turma.
A turma, de modo geral, se mostrava bastante interessada e, de fato, era muito
participativa. No entanto, ao perceber como um dos alunos era tratado por alguns de
seus colegas (alguns meninos), sobretudo quando abordávamos alguns assuntos
concernentes à sexualidade, não pude ficar inerte ao problema. O tal aluno, que chamo,
nesta pesquisa, pelo pseudônimo “Johnny” (Ver nota no capítulo 1) era, de uma certa
forma, discriminado por alguns de seus colegas por não se comportar, segundo eles,
“como um homem”.
97
Johnny, talvez por essa implicância e discriminação por parte dos meninos da
sua turma, parecia ter mais intimidade com as meninas: sempre andava e se sentava
com as meninas da turma, gostava de participar das conversas com elas e acabava se
distanciado dos meninos da turma por considerá-los uns “chatos”, motivos esses que,
por sua vez, eram usados para justificar o comportamento “afeminado” de Johnny na
visão de alguns meninos.
Comecei, então, a me aproximar mais de Johnny. Ao final dos encontros com a
turma, eu o procurava para conversarmos. Foi, então, em meio a essas nossas
conversas, que descobri algo revelador sobre ele: Johnny se construía como uma
menina nas salas de bate-papo virtuais da Internet, chegando até a criar nome e foto
fictícios de uma menina nas salas de bate-papo virtuais das quais participa.
Tamanho foi meu interesse por aquilo que decidi ir mais a fundo. Fiz algumas
entrevistas com ele e pedi-lhe que me falasse a respeito de alguns de seus amigos
virtuais e dos assuntos sobre os quais conversava com esses amigos nas salas de
bate-papo virtuais, com o intuito de analisar se poderia usá-los como material para a
minha pesquisa. De fato, tudo o que ele me contou já parecia mais interessante do que
imaginava, aliás, mais interessante até do que as próprias gravações que realizei com a
turma. Naquele momento, já me encontrava mais inclinado a desistir de trabalhar com a
turma e realizar um estudo de caso com Johnny. Foi a partir daí que a dúvida se
instaurou.
Se por um lado meu interesse em trabalhar com Johnny só aumentava à medida
que ia conhecendo-o melhor, por outro, estava ficando cada vez mais preocupado em
tentar realizar uma pesquisa cujo objeto investigado seria um único sujeito. Cheguei até
a pensar se não estaria sendo ousado demais em querer pesquisar somente um único
98
sujeito na minha dissertação, o que, de fato, não é algo ainda muito comum no mundo
acadêmico. Aliás, diga-se de passagem, quando contei para algumas pessoas que a
minha pesquisa investigaria um único sujeito, elas acharam aquilo estranho e vinham
com perguntas do tipo: é possível pesquisar uma pessoa só? Isso é ciência?
Segundo Yin (2001, p. 32), “o estudo de caso é uma investigação empírica que
investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real,
especialmente quando os limites entre os fenômenos e o contexto não estão
claramente definidos”. E, ao perceber, na prática, essa indefinição ou imprecisão em um
estudo caso com um adolescente, imaginei, já de início, que seria um trabalho muito
árduo e que, por isso, talvez não conseguisse realizá-lo, uma vez que estava lidando
com um contexto deveras micro-social. Eis que surgem, então, algumas perguntas
cruciais: a) como poderia fazer pesquisa analisando um único sujeito?; e b) como
poderia tecer generalizações sobre o que estava investigando a partir de um único
sujeito investigado?
Contudo, a partir das reuniões do projeto de pesquisa com o Professor Luiz
Paulo da Moita Lopes e com a professora Branca Falabella Fabrício (Ver capítulo 1),
das disciplinas de mestrado que cursei e de muitas leituras complementares que fiz ao
longo desses dois anos, as quais contribuíram para que construísse todo um aporte
teórico-metodológico, o que parecia ser uma grande dificuldade, na verdade serviu, ao
mesmo tempo, de motivação para que decidisse querer tentar entender cada vez mais
a fundo as particularidades do contexto de investigação, bem como a própria interação
entre mim (pesquisador) e o sujeito investigado.
Bem, após essa longa confissão, situarei, a seguir, a minha pesquisa dentro de
uma abordagem qualitativa de base interpretativista, já com o objeto de pesquisa
99
definido. Antes, porém, mostrarei uma visão geral sobre pesquisa, onde discuto
brevemente sobre o paradigma interpretativista de investigação, que considero
pertinente para entender os próprios rumos que norteiam a presente dissertação.
6.2. Uma breve discussão sobre o paradigma interpretativista de pesquisa
Em relação a seres humanos, uma interpretação
subjetiva dos dados [...] parece, a meu ver, ser
capaz de acrescentar uma dimensão humanística
rica à exatidão exibida pelos números
(CAVALCANTI, 1989, p. 161).
Um dos grandes dilemas com que um pesquisador costuma se defrontar,
sobretudo o pesquisador das áreas das ciências humanas e sociais, está relacionado
ao tipo de pesquisa que pretende realizar. Contudo, o caminho a ser seguido
dependerá sobremaneira das bases epistemológicas por meio das quais o pesquisador
se pautará para construir os pressupostos teóricos que serão o alicerce de toda a sua
pesquisa. Existem, pois, duas grandes correntes de pesquisa: a pesquisa de base
positivista e a de base interpretativista.
A pesquisa de base positivista, típica dos tipos de pesquisas realizadas nas
ciências naturais, é marcada pela visão determinista sobre a realidade, cuja metáfora
utilizada para descrever o universo remonta ao pensamento cartesiano. Quanto à
finalidade deste tipo de investigação, pode-se dizer que a pesquisa positivista busca a
objetividade nos dados pesquisados, entendendo a objetividade na concepção de
Holmes (1992, p. 40) como “a separação entre o pesquisador e o fenômeno em estudo;
a idéia de que o pesquisador não deve se envolver com o que está investigando, ou
então isso poderia contaminar a pesquisa”. Com isso, é possível inferir, segundo Moita
100
Lopes (1994, p.331), que, na perspectiva positivista, “só a experiência pessoal através
da observação do fato a ser estudado é possível”. Neste tipo de investigação, então, a
complexidade, os processos fluidos são meras ilusões, a realidade seria ordenada por
leis simples e universais que regem os fenômenos físicos, biológicos, sociais e
individuais, sendo que a descrição “exata” de tais fenômenos pressupõe a adoção de
instrumentos metodológicos válidos, de uma forma aparentemente independente do
sujeito do conhecimento, bem como do contexto cultural, social e histórico em que se
insere a atividade de pesquisa.
Por encarnar a forma “correta” do pensar, o pensar cientificamente, a filosofia
positivista é a base que sustenta um modelo de racionalidade como organizador da
sociedade (COHEN; MANION; MORRISON, 2000). De maneira geral, o positivismo
institui as ciências naturais como os modelos legítimos de sistemas de conhecimento, e
suas metodologias como fontes exclusivas de “revelação” de fatos verdade.
É parte da intuição básica desse tipo de investigação, portanto, a idéia de que o
mundo existe independentemente de seus observadores, de suas vidas, crenças e
práticas sociais (MOITA LOPES, 1994). É esse mundo exterior à humanidade que
constitui a base contra a qual os critérios de verdade e falsidade são forjados, e a partir
do qual estruturam-se os critérios e métodos empregados para o estabelecimento das
certezas – o que não passa de um processo de “desvelamento” da natureza pelo
conhecimento humano.
Em oposição a esse tipo de investigação positivista, existe um outro modo de
fazer pesquisa que começa a se fazer cada vez mais presente nas ciências sociais e
humanas, um tipo de investigação de base interpretativista, em cuja base
epistemológica se compreende, segundo Rey (1999, p. 37), que:
101
O conhecimento é uma produção construtiva-interpretativa, ou seja, ele
não representa a soma de fatos definidos pelas constatações imediatas
do momento empírico. O caráter interpretativo do conhecimento
aparece pela necessidade de dar sentido às expressões do sujeito
estudado cuja significação para o problema estudado é somente
indireta e implícita.
Isso passou a representar uma séria rejeição a um dos aspectos mais
importantes da metafísica positivista: o estruturalismo incondicional que postula a
reificação da direcionalidade epistemológica do geral para o particular, da teoria
universal para os casos específicos. Novas formas de escrita acadêmica são
introduzidas, como a escrita narrativa e as autobiografias, as histórias de vida, cada
qual com suas características específicas, mas atribuindo, de forma geral, inédito valor
a detalhes particulares do contexto específico de cada ambiente (FREITAS, 1997).
Essas inovações teórico-metodológicas estão relacionadas às novas
conformações dos objetivos de investigação. Conceitos importantes como a
“objetividade” da pesquisa científica e a “neutralidade” do discurso dentro do qual a
pesquisa se insere (do meio científico particular em questão e dos recursos discursivos
utilizados na pesquisa em questão, pelo próprio pesquisador) se vêem deslocados de
seus lugares tradicionais dentro da epistemologia, uma vez que, segundo Freitas (1997,
p. 27), na pesquisa interpretativista, “procura-se compreender os sujeitos envolvidos na
investigação para, através deles, compreender também o seu contexto”.
Uma pesquisa de base interpretativista, portanto, constitui-se por meio de uma
abordagem qualitativa de pesquisa, que, na minha opinião, torna-se mais adequada
para investigar como os seres humanos utilizam o discurso para agir socialmente e
construir o mundo e a si próprios, uma vez que estudar o ser humano e o discurso
102
implica compreender subjetividades que não podem ser tratadas quantitativamente.
Nesse sentido, Moita Lopes (1994, p. 330) aponta que o que é específico, no mundo
social, “é o fato de os significados que o caracterizam serem construídos pelo homem
[sic], que interpreta e re-interpreta o mundo a sua volta, fazendo, assim, com que não
haja uma realidade única, mas várias realidades”.
Em virtude do exposto, decidi adotar, no presente estudo, uma visão
interpretativista de pesquisa, com um certo teor etnográfico, visto que pude perceber
que, nesse tipo de investigação, longe de tentar buscar “verdades” e “certezas” típicas
de uma lógica racionalista, o conhecimento é reconhecido como algo construído na
interpretação da linguagem, num processo de interação entre investigador e
investigado, e, por isso, sempre aberto a novas interpretações. Então, penso que não
se pode realizar este tipo de pesquisa ignorando “a visão dos participantes do mundo
social, caso se pretenda investigá-lo, já que esta que o determina: o mundo social é
tomado como existindo na dependência do homem [sic]” (Ibidem, p. 331). Em outras
palavras, na pesquisa de base interpretativista, os instrumentos deixam de ser vistos
como um fim em si mesmo para se tornar uma ferramenta interacional entre o
investigador e o sujeito investigado.
Depois de expor o paradigma de pesquisa com o qual opero neste estudo, passo
a situar, na seção seguinte, o contexto de pesquisa do meu trabalho para, em seguida,
discutir os pressupostos metodológicos da pesquisa.
103
6.3. A pesquisa interpretativista no estudo de caso: observando e participando do
contexto de pesquisa
Os pontos centrais que norteiam o presente estudo consistem na compreensão
da (re)construção da identidade social de gênero de um adolescente (Johnny) por meio
de práticas sociais de letramento no ciberespaço. Este tema surge como um processo
de reflexão com base em investigações realizadas nos espaços de interação do
pesquisado: certos ambientes do ciberespaço. Por isso, busquei, nesta dissertação,
problematizar dois temas que se articulam para constituir os problemas de pesquisa com
os quais lido neste trabalho, com o fito de situá-los como práticas sociais e objetos de
investigação: as práticas de letramento digital nas quais Johnny se engaja (Ver seção
4.2) e suas (re)construções identitárias de gênero por meio dessas práticas, tendo como
contexto os ambientes virtuais nos quais ele transita (as salas de bate-papo da Internet –
Ver seção 5.2). Antes, porém, procuro mostrar como esses temas se articulam,
formando o contexto de pesquisa propriamente dito para, enfim, tratar da geração dos
dados.
6.3.1. O contexto de pesquisa
6.3.1.1. Os sujeitos de pesquisa
O contexto que propiciou a realização desta pesquisa foi inicialmente
desenvolvido num colégio estadual, localizado no bairro de Jacarepaguá, município do
Rio de Janeiro, no ano de 2005.
104
Os dados foram gerados em um dos computadores da sala de multimídia do
colégio. Aliás, devo mencionar que este trabalho só pôde ser realizado porque, muito
embora não corresponda ainda a uma realidade na maioria das instituições públicas de
ensino, o colégio possuía uma pequena sala de multimídia com dez computadores que
foram gentilmente disponibilizados pela diretoria do colégio durante o tempo em que eu
e Johnny geramos os dados para a presente pesquisa.
Quanto aos sujeitos de pesquisa, devo, primeiramente, situar-me como um de
seus partícipes. Sou professor de língua portuguesa, 30 anos, solteiro, e resido
atualmente em Jacarepaguá, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro.
Johnny é um rapaz de dezessete anos e está no segundo ano do ensino médio
de um colégio da rede pública do Estado do Rio de Janeiro. Ele pertence a uma família
de classe média-baixa, cuja renda familiar gira em torno de dois mil reais. Além de
estudar, também mora no bairro de Jacarepaguá. Vive com os pais num apartamento de
dois quartos, sala, cozinha e banheiro. O imóvel é próprio, mas os pais de Johnny ainda
estão pagando as prestações do apartamento, que foi comprado através de
financiamento pela Caixa Econômica Federal.
Seu pai tem quarenta e seis anos e trabalha como assistente comercial num
laboratório farmacêutico; sua mãe, quarenta e quatro anos, acumula as funções de
dona-de-casa e autônoma (trabalha com vendas em domicílio de produtos de
cosméticos). Johnny tem uma irmã de onze anos que também é estudante de escola
pública e está na quinta série do ensino fundamental.
Na escola, com os colegas de classe, Johnny se mostrava um rapaz bastante
eloqüente. Pude observar, no entanto, que, se por um lado esse atributo era recebido de
forma acolhedora por parte das meninas, por outro, parecia se tornar o grande pivô de
105
muitas repulsas por parte dos meninos da turma. Com isso, tive a impressão de que a
imagem de Johnny, em sala de aula, era construída a partir de duas visões antitéticas:
um grande apreço por parte das meninas e uma certa repugnância dos meninos. Foi,
justamente essa forma de discriminação com que Johnny era tratado pelos meninos da
turma que, conforme disse na primeira seção deste capítulo, chamou a minha atenção a
ponto de fazer com que mudasse o próprio rumo da minha pesquisa e me interessasse
em realizar um estudo de caso com ele.
Johnny, apesar de pertencer a uma família de classe média-baixa, possui
computador em casa, que, segundo ele, foi comprado à prestação pelo seu pai. A
família possui uma espécie de “banda-larga comunitária”, que é um plano de Internet via
rádio que muitos condomínios assinam, em conjunto, por ser mais barato.
Johnny me revelou que passa, pelo menos, seis horas por dia na Internet (na
maior parte do tempo conversando nas salas de bate-papo virtuais). Contudo, mesmo
despendendo tanto tempo no computador, ele ainda reclama, alegando que, muitas
vezes, não pode passar mais tempo usando o computador por causa da sua irmã mais
nova, que já começa também a participar desse mundo virtual; da sua mãe, que está
aprendendo a usá-lo para catalogar as suas vendas e pedidos; e do seu pai, que, às
vezes, também o usa para trabalhar. Percebe-se, portanto, que a prática de letramento
digital ocupa um espaço considerável na família de Johnny.
6.3.1.2. As Salas de Bate-papo do Ciberespaço
Com o intuito, então, de compreender como Johnny constrói sua identidade
social de gênero no ciberespaço, escolhi, como objeto de pesquisa a ser investigado,
106
analisar, além da entrevista que realizei com ele (Ver subseção 7.3.2), suas conversas
escritas realizadas nas salas de bate-papo onde ele interage com outras pessoas.
As salas de Bate-Papo (termo traduzido do inglês Chat-Rooms) são um sistema
interativo que permite que duas ou mais pessoas possam conversar em tempo real
numa página do site. O modo de funcionamento do programa é bastante simples: cada
pessoa digita sua mensagem e toda vez que teclar “Enviar”, o texto aparece na tela do
computador de todas as pessoas que estiverem conectadas à sala de bate-papo. As
salas podem ter acesso livre ou podem ser protegidas por senha. Em geral, elas são
usadas para encontros virtuais, amizades, namoros, suporte técnico, economia em
ligações etc.
O usuário, na sala de bate-papo, pode escolher entre conversar com várias
outras ao mesmo tempo, ou apenas com uma, se quiser, não disponibilizando seu
conteúdo para as demais pessoas presentes na sala de bate-papo, embora possa
continuar observando os outros conversando entre si.
As salas de bate-papo já se tornaram, de fato, uma ferramenta bastante
interessante à disposição dos internautas que buscam relacionamentos: alguns
ambientes virtuais, por exemplo, possuem uma base de dados, onde é possível
cadastrar-se, fornecendo informações a respeito dos dados pessoais de alguém e das
características da pessoa que esse alguém procura. Essas informações são cruzadas
no banco de dados do sistema e uma lista de pessoas cujas características “conferem”
com o desejado é gerada. O que antes era realizado, antes do advento da
popularização da Internet, por empresas especializadas, foi transposto ao ciberespaço,
mantendo suas características básicas e adquirindo novas propriedades na medida em
que passa a adequar-se ao novo meio.
107
Nesses ambientes, o sujeito pode escolher o tipo de “encontro” que deseja ter
com os interactantes. Na sala de bate-papo da UOL, da qual meu sujeito investigado
participa, por exemplo, a pessoa pode optar entre diversas modalidades de encontros,
chamados de “subgrupos”, dos quais é possível escolher entre “namoros”, “amigos”,
“paquera”, “românticos”, “gays e afins”, “lésbicas e afins”, “descasados” etc (Ver ANEXO
1). Ao clicar, então, em um dos “subgrupos”, uma outra tela se abre, mostrando as
salas de bate-papo disponíveis para interação, a quantidade de pessoas em cada uma
delas e a opção de entrar nas salas ou apenas “espiá-las” para ver o que está
acontecendo lá (Ver ANEXO 2).
Nesses tipos de sala de bate-papo, portanto, o usuário pode se comunicar com
um número ilimitado de pessoas, já que a proposta do sistema é justamente esta:
promover o maior número possível de encontros entre o público que interage nas salas.
No entanto, existem outros tipos de sala de bate-papo cujo objetivo é justamente o
contrário: o de particularizar os encontros, como o ICQ e o MSN (Ver ANEXO 3).
O ICQ é um programa de mensagens instantâneas, ou melhor, é um tipo de
comunicação instantânea que permite que um usuário da Internet converse com um
outro que tenha o mesmo programa em tempo real, podendo criar uma lista de amigos
"virtuais" e acompanhar quando eles entram e saem da rede. A sigla ICQ é um
acrônimo homófono da expressão inglesa “I Seek You” que, em português, significa "Eu
procuro você". O ICQ foi o pioneiro neste tipo de tecnologia tendo sua primeira versão
lançada em 1997 por uma empresa israelita chamada Mirabilis. O MSN Messenger (ou
apenas MSN), – que é o tipo de programa utilizado pelo sujeito na pesquisa – acrônimo
da empresa que o criou (Microsoft Service Network), é igualmente um programa de
comunicação instantânea que tem conquistado cada vez mais adeptos no
108
mundo inteiro, sobretudo no Brasil, onde se encontra entre os programas mais
baixados nos sites de downloads locais.
Diferentemente dos demais tipos de sala de bate-papo, no ICQ e no MSN, o
objetivo dos usuários não é propriamente o de conhecer o maior número possível de
pessoas, mas sim o de manter e até estreitar vínculos com aqueles que já se conhece.
Nesses programas de comunicação instantânea, busca-se não somente manter
relações com pessoas que já eram conhecidas do usuário no mundo real, mas também
com as pessoas que se conhece no mundo virtual. Por isso, é comum, como é caso do
sujeito investigado, se fazer uso, primeiramente, dos tipos de salas de bate-papo
mostrados anteriormente, com o fim de estabelecer um “primeiro contato” com uma
determinada pessoa. Passada, então, essa fase, caso o usuário deseje continuar
mantendo contato com essa pessoa, ele lhe fornece seu e-mail do MSN, por exemplo, e
eles, então, começam a interagir por meio do programa, já com um caráter mais
privado.
Por apresentar, justamente, esse caráter mais particular, o MSN, por exemplo,
disponibiliza um espaço na página para que o indivíduo possa expor uma foto sua, se
desejar, e, todas as vezes que os interactantes quiserem conversar com aquele
indivíduo, eles verão a sua foto exposta na página.
Devo ressaltar aqui que Johnny, durante a entrevista, contou-me que, depois de
algum tempo de uso do MSN, passou a expor uma “suposta” foto sua para as pessoas
com as quais interage no mundo virtual. No entanto, como se construía identitariamente
como uma menina no ciberespaço, ele não usou uma foto real. Ele me confessou que
fez uma montagem com a foto de uma menina que encontrou na Internet e, com o
109
auxílio de um programa de computador de edição de fotos (o PHOTOSHOP), criou a
“imagem” de uma garota para si (Ver seção 7.1.1).
Meu interesse em investigar as relações interpessoais que se constituem nas
salas de bate-papo encontra respaldo, portanto, na grande possibilidade que estes
apresentam na construção de relações sociais que, diferentemente de outros meios,
são geradas para além do espaço social imediato. Por isso, posso afirmar que esses
meios virtuais, mais até do que outros tipos de mídia eletrônica, se tornaram um
instrumento por meio do qual a vida local é cada vez mais deslocada para instâncias
globais, nas quais os sujeitos compartilham suas histórias de vida, conhecimentos,
crenças, valores e opiniões, que passam de um contexto mais íntimo ao um mais
público, re-significando, com isso, suas próprias identidades (Ver seção 5.2).
6.3.2. A metodologia de Pesquisa
Mais do que desenvolver uma metodologia de análise, procurei estabelecer,
neste trabalho de dissertação, uma relação de investigação entre o pesquisador e seu
objeto de análise. Assim, tentei trabalhar algumas etapas de pesquisa que considero
pertinentes na busca da compreensão dos objetos de estudo. Etapas essas que levam a
uma definição do objeto de pesquisa, tanto no que concerne à pesquisa de campo,
como no seu diálogo com o referencial teórico.
Devo ressaltar, antes de tudo, o compromisso ético que assumi com Johnny,
visto que, ao expor seus textos na minha pesquisa, procurei ter o cuidado de não só
usar pseudônimos para todos os interactantes, inclusive para o próprio Johnny (Ver
nota no capítulo 1), mas também o de explicar-lhe, ainda que em linhas gerais, a
110
natureza da minha pesquisa e, sobretudo, de pedir sempre a sua opinião e permissão a
respeito dos textos que seriam usados neste trabalho.
Johnny ainda foi muito gentil comigo, fornecendo-me alguns materiais mais
pessoais, relativos a algumas conversas virtuais que realizava nas salas de bate-papo,
o que, particularmente, considerei mais interessante para os fins deste estudo. Acredito
que essa boa vontade e gentileza com que Johnny passou a me tratar, e isso se
refletindo até no fato de ele ter me fornecido materiais mais pessoais sobre suas
conversas virtuais, se devem a uma maior aproximação e até a uma certa amizade e
confiança que se construíram entre nós à medida que nos envolvíamos na pesquisa.
Em algumas dessas conversas nas salas de bate-papo entre Johnny e outros
interactantes virtuais, pude perceber que a questão da construção identitária de gênero
é bastante marcante, o que me fez refletir acerca dos próprios pressupostos teórico-
metodológicos que pretendia utilizar no presente estudo. Nesse sentido, a pesquisa,
então, se propôs a responder às seguintes questões: 1) Como o sujeito de pesquisa
(re)constrói sócio-discursivamente sua identidade social de gênero ao participar
de conversas em salas de bate-papo no ciberespaço?; e 2) Como as práticas de
letramento digital com as quais ele se envolve promovem outras possibilidades
de viver sua experiência identitária de gênero?
O que se pretende compreender com esses questionamentos é o modo como as
identidades sociais estão sendo deslocadas ou fragmentadas, ou ainda desconstruídas
no ciberespaço, possibilitando o surgimento de novas formas de visualizar a questão da
identidade social de gênero (Ver seções 5.2).
Procurei, portanto, realizar um estudo de caso, com um certo “sabor” etnográfico,
visto que este tipo de pesquisa “procura descrever um conjunto de entendimentos e
111
conhecimentos específicos compartilhados entre participantes que conduzem seu
comportamento num determinado contexto” (CUMMING, 1994, p. 688). Por isso,
busquei, no presente trabalho, levar em consideração o contexto sócio-cultural no qual
Johnny estivesse situado, bem como suas atitudes e comportamentos, com o fito de
identificá-lo não como uma mera aplicação de certos métodos, mas sim como um estilo
de investigação comprometido com um tipo de pesquisa que possibilite compreender a
experiência humana por meio da co-construção do discurso entre os sujeitos
envolvidos.
Dentro dessa perspectiva de pesquisa, tentei, por conseguinte, mais do que
simplesmente observar o objeto investigado. Busquei, outrossim, me comprometer a
realizar uma espécie de observação reflexiva, “um tipo de investigação em que o
etnógrafo precisa estar sensível á natureza da sua participação como parte do
desenvolvimento da compreensão das pessoas que estuda” (DAVIS, 1999, p.19).
Meu objetivo neste trabalho foi, então, o de analisar a construção da identidade
de gênero de um sujeito ao interagir, por meio de práticas de letramento, num ambiente
bastante híbrido e multifacetado da mídia eletrônica digital: o ciberespaço. Desse modo,
o estudo focalizou, entre outras coisas, a compreensão do funcionamento da linguagem
na construção social de identidades de um adolescente em práticas sociais geradas por
meio do mundo virtual.
Para realização desta pesquisa, elaborei previamente um levantamento
bibliográfico teórico condizente com a temática proposta, que foi sendo ampliado e
revisto conforme as necessidades exigidas pela pesquisa.
Quanto aos meios para geração de dados da pesquisa, utilizei dois tipos de
instrumento. Como o meu objetivo era o de analisar a (re)construção identitária do
112
sujeito da pesquisa com base nas suas práticas de letramento digital, o primeiro
instrumento usado neste trabalho foi o uso das conversas, em forma de textos escritos,
realizadas nas salas de bate-papo virtuais da UOL e do MSN (Ver seção 7.1.2) entre
Johnny e alguns de seus amigos(as) virtuais, gravadas em CD-ROM pelo próprio
Johnny a meu pedido. Após essa fase, selecionamos (eu e Johnny escolhemos juntos)
algumas das conversas escritas que ele registrou, que apresentassem alguma relação
com a temática da identidade social de gênero.
Como segundo elemento de geração de dados, também usado como um dos
corpora da pesquisa, servindo, portanto, de apoio para complementação dos dados do
estudo, optei pela realização de uma entrevista com o sujeito investigado (Ver seção
7.1.1), registrada por meio de um gravador de áudio, cujo conteúdo trata da questão da
identidade social de gênero. A entrevista me permitiu também obter informações mais
gerais acerca do sujeito investigado, tais como: organização e renda familiar, tipos
favoritos de entretenimento, freqüência de uso da Internet etc. Contudo, o aspecto
central da entrevista com Johnny busca, de fato, compreender algumas questões
referentes aos seus posicionamentos, com base em sua experiência de vida, dentro
das possibilidades de (re)construção de gênero disponíveis em suas relações sociais.
Minha intenção com a entrevista era, portanto, não só a de conhecer um pouco
melhor Johnny, como também a de analisar o seu grau de conhecimento sobre o tema
e investigar as relações e práticas sociais nas quais ele se engaja, que poderiam
influenciar na construção de sua identidade social de gênero.
Para tanto, realizei uma entrevista não estruturada, visto que, neste tipo de
entrevista, observa-se um modo de interação “muito mais próximo de uma conversa
ocorrendo naturalmente” (Davis, 1999, p. 94). Além disso, muito embora tivesse em
113
mente alguns tópicos e questões pré-determinadas, pude perceber que as respostas e
os diálogos, como um todo, fluíam com tamanha naturalidade e diversidade que não
poderia promover um trabalho, cujo material de análise é o próprio ser humano, de
forma tão profícua sem fazer uso da entrevista não estruturada. E, com o intuito de
obter informações mais precisas, utilizei também, ainda durante a entrevista, notas de
campo com o fito de tentar recuperar alguns aspectos não-verbais, que não pudessem,
por ventura, ser captados apenas com as gravações em áudio.
Finalizo esta seção com uma observação acerca da entrevista: pude perceber
que esta foi, de fato, um momento em que tanto eu quanto Johnny estavam, a todo o
momento, tentando criar inteligibilidade não só em relação ao assunto tratado, mas,
sobretudo, em relação um ao outro, construindo, assim, nossas próprias identidades no
momento da entrevista. A esse respeito, Holstein & Gubrium (1995, p. 4) indicam que:
Ambas as partes da entrevista são necessária e inevitavelmente ativas.
Cada um está envolvido em um trabalho para criar sentidos. O
significado não é meramente obtido por meio de questionamento
apropriado, nem simplesmente transportado através das respostas dos
pesquisados; ele é ativamente e comunicativamente reunido no
encontro da entrevista.
À luz dessa base metodológica e dos pressupostos teóricos expostos ao longo
deste trabalho, que norteiam a presente dissertação, passo, no próximo capítulo, para a
análise dos dados da pesquisa.
114
7. ANÁLISE DOS DADOS
7.1. A (re)construção da identidade social de gênero de um menino por meio de
práticas de letramento no ciberespaço
Uma vez detalhados os pressupostos teórico-metodológicos e expostas as
razões que motivaram a realização do presente estudo, passo, neste capítulo, a
apresentar a minha interpretação dos dados gerados nesta pesquisa com o fito de
responder às seguintes questões:
1) Como o sujeito de pesquisa (re)constrói sócio-discursivamente sua
identidade social de gênero ao participar de conversas em salas de bate-papo no
ciberespaço?
2) Como as práticas de letramento digital com as quais ele se envolve
promovem outras possibilidades de viver sua experiência identitária de gênero?
Buscarei empreender aqui a análise dos trechos selecionados com base em dois
corpora: uma gravação em áudio da entrevista que realizei com Johnny e o registro em
CD-ROM, feito por ele mesmo, de algumas conversas por escrito entre ele e alguns de
seus amigos, realizadas numa sala de bate-papo do ciberespaço (Ver subseção 6.3.2).
Como a minha intenção é, em última análise, analisar o modo como Johnny
(re)constrói sua identidade social de gênero ao interagir com outras pessoas no
ciberespaço ao participar de conversas numa sala de bate-papo, realizei, nos dois
corpora de análise, certos recortes em sua extensão, descartando, com isso, as partes
que não condiziam com a temática proposta. Por isso, os fragmentos analisados abaixo
foram escolhidos porque os considero pertinentes para responder às indagações que
busco investigar neste estudo.
115
É importante ressaltar que, como os dados foram também gerados em práticas
de leitura e de escrita no ciberespaço, as seqüências analisadas devem ser entendidas
teoricamente como práticas sociais de letramento (Ver capítulo 4). Dentro dessa
perspectiva, como já apontei, busca-se compreender os letramentos como processos
relacionados às práticas sócio-culturais e históricas dos indivíduos (STREET, 1985;
KLEIMAN, 1995; et alii).
Cumpre assinalar que a análise a ser encaminhada no presente trabalho é uma
leitura possível que não esgota outras possibilidades de análise dos dados gerados
relativos à temática da pesquisa. Isso porque acredito que, a exemplo de qualquer
texto, os textos gerados nesta pesquisa podem levar a interpretações variadas,
porquanto depende de quem é o leitor, dos discursos em que circula e quais são as
estruturas de poder da sociedade em que vive.
Por último, devo ainda ressaltar que, devido à grande quantidade de dados
gerados com as atividades e ao escopo limitado deste estudo, escolhi apenas as partes
que julguei mais representativas para ilustrar a análise dos dados. Contudo, o que me
instiga nessa análise é a possibilidade de (re)construir parte do múltiplos sentidos que
compõem e caracterizam o discurso de Johnny. Os segmentos selecionados foram
analisados à luz dos pressupostos teóricos dos posicionamentos discursivos e das
pistas de contextualização (DAVIES & HARRÉ, 1990; VAN LANGENHOVE & HARRÉ,
1999; GUMPERZ, 1999 – Ver seção 2.4). Fiz uso também da perspectiva
socioconstrucionista dos discursos e das identidades sociais, e dos conceitos
foucaultianos de poder, verdade e regimes de verdade (Ver seções 2.2 e 2.3).
116
____________________________
9
Ver LISTA DE CONVENÇÕES E ABREVIATURAS no início desta dissertação.
7.1.1. A Entrevista
Nesta primeira parte do capítulo de análise dos dados, foram selecionadas
algumas partes da entrevista em áudio que realizei com Johnny em um dos nossos
encontros (Ver subseção 6.3.2). Nesta entrevista, foram abordados alguns assuntos
relativos à construção identitária de Johnny, com base nos seus relacionamentos na
escola, na Internet e no ambiente familiar. Para fins de análise, decompus a entrevista
em seqüências. No começo de cada seqüência, destaco um trecho, em negrito, que
considero como representativo do assunto central do qual os interactantes tratam em
cada seqüência no que diz respeito à temática das identidades sociais. Ainda aponto
que as convenções e abreviaturas usadas para transcrição de áudio nesta análise são
uma adaptação baseada em Marchuschi (1991)
9
.
Na primeira seqüência, inicio a entrevista questionando Johnny acerca da
primeira coisa que me chamou a atenção desde que ele me contou que conversa
bastante com outras pessoas nas salas de bate-papo da Internet: o motivo por que ele
prefere se identificar com um nome fictício de mulher (Rose) sempre que interage com
essas pessoas.
117
Seqüência 1:
“na Internet, a gente tem a chance de ser, assim, tipo uma outra pessoa. Ser
coisas que na vida real a gente, às vezes, não pode ser”
(1) P - A quanto tempo você usa a Internet, / quero dizer as salas de bate-papo
(2) da Internet?//
(3) JOHNNY – É::, deixa eu ver. // mais ou menos um ano.//
(4) P – E você usa um outro nome. É /, Rose, que não é seu nome verdadeiro,
(5) por quê?/
(6) JOHNNY – Ah:: Eu escolhi esse nome porque /, tipo, eu não queria que me
(7) descobrissem. // Mas, pô, acho que o mais importante é que,/ tipo, eu não
(8) queria ser a mesma pessoa,/ assim, que eu sempre sou no dia a dia./ Porque,
(9) na Internet,/ a gente tem a chance de ser, assim, tipo outras pessoas.// Ser
(10) coisas que na vida real a gente não pode ser, entende?/
(11) P – Ah:: / Mas houve um motivo especial para a escolha desse nome, é /
(12) Rose, que é um nome de mulher?/
(13) JOHNNY – Ah,/ porque eu gosto, na maioria das vezes, de conversar com
(14) meninas, tanto na escola quanto na Internet. // Aí, eu preferi escolher, tipo
(15) assim,/ um nome de mulher porque se eu escolhesse um nome de homem,/
(16) acho que as outras pessoas podiam estranhar./ E, aí, pô, elas, é/,
(17) então, não iam querer conversar comigo, entendeu?/
(18) P – Mas que outras pessoas?/
(19) JOHNNY – As pessoas que eu converso na sala./
(20) P – mas você não acha que a Internet é uma oportunidade pra todo mundo
(21) ser também [ outras pessoas?
(22) JOHNNY – [Ah:: Sei lá.// É::, mas, depende. // Pô, tem gente que conta muitos
(23) detalhes da vida na sala, tipo, a vida com os namorados, os ficantes, os
(24) problemas com os pais, assim, tudo/. E, então, eu acho que muitas pessoas
(25) usam pra desabafar e não pra inventar.//
(26) P – É,/ mas assim como você, elas também não poderiam estar fingindo ser
118
(27) outras [pessoas?/
(28) JOHNNY – [É:://, é bem, é:: /, assim como eu, é verdade, eu sei que tem muita
(29) gente que faz isso, sim.//
Nesta primeira seqüência, o eixo central gira em torno do fato de Johnny ter
escolhido um nome fictício e feminino (Rose) para interagir nas salas de bate-papo
virtuais. E, ao assumir um posicionamento de primeira ordem (VAN LANGENHOVE &
HARRÉ, 1999 - Ver seção 2.4), perguntando-lhe sobre o motivo da escolha de um outro
nome (linhas 1 e 2), Johnny aponta que, embora uma das razões para tal escolha
esteja relacionada a um certo receio de vir a ser reconhecido por alguém (“Eu escolhi
esse nome porque, tipo, eu não queria que me descobrissem” – linhas 6 e 7), o motivo
principal pelo qual ele prefere usar outro nome se coaduna, segundo ele, com a
possibilidade de o sujeito construir outras pessoas na Internet (“Porque, na Internet, a
gente tem a chance de ser, assim, tipo outras pessoas” – linhas 8 e 9). Em outras
palavras, isso ajuda a corroborar a idéia de que, no mundo virtual, os usuários podem
construir para si várias identidades sociais cada vez mais heterogêneas e
multifacetadas (LÉVY, 1996 - Ver seção 5.2).
Ao reconhecer essa possibilidade de constituir outras identidades no ciberespaço
(linhas 8, 9 e 10), Johnny assume, portanto, um auto-posicionamento deliberado (VAN
LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 - Ver seção 2.4) em que ele, claramente, demonstra
seu desejo de poder ser “outras pessoas” (linha 9) e, com isso, conseguir atingir um de
seus propósitos: o de construir determinadas identidades sociais, o que, segundo ele,
não seria possível no mundo real (“Ser coisas que na vida real a gente não pode ser,
entende?” – linhas 9 e 10).
119
No decorrer da seqüência, assumo novamente um posicionamento de primeira
ordem para questionar Johnny a respeito da sua preferência pelo uso de um nome
feminino ao interagir na Internet, Johnny sinaliza seu interesse em se construir
identitariamente como uma menina, em virtude da sua própria experiência de
convivência e interação com meninas no ambiente escolar e no mundo virtual (“porque
eu gosto, na maioria das vezes, de conversar com meninas, tanto na escola quanto na
Internet” – linhas 13 e 14). Todavia, Johnny também afirma que o motivo da escolha de
um nome feminino se deu em função de um certo receio de que as outras pessoas com
as quais interage nas salas de bate-papo virtuais, ao saberem que é um menino, não
quisessem conversar com ele (“Aí, eu preferi escolher, tipo assim, um nome de mulher
porque se eu escolhesse um nome de homem, acho que as outras pessoas podiam
estranhar. E, aí, pô, elas, é, então, não iam querer conversar comigo, entendeu?” –
linhas 14 a 17).
Portanto, pode-se inferir que, nesse caso, Johnny assume, de fato, um auto-
posicionamento forçado (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 - Ver seção 2.4), uma
vez que é possível perceber que a sua escolha por um nome feminino, ou seja, o seu
posicionamento discursivo como uma menina, ocorre, outrossim, em virtude de uma
certa exigência do posicionamento dos outros interlocutores com os quais interage nas
salas de bate-papo da Internet que, em geral, são também meninas.
E mesmo sabendo, por experiência própria, que a Internet é um lugar onde os
indivíduos podem construir outras identidades para si, Johnny se posiciona
deliberadamente em relação ao outro ao dizer que muitas pessoas não a usam para
esse fim, mas sim, segundo ele, para conversar acerca dos seus relacionamentos,
problemas pessoais, familiares etc (“tem gente que conta muitos detalhes da vida na
120
sala, tipo, a vida com os namorados, os “ficantes”, os problemas com os pais, assim,
tudo. E, então, eu acho que muitas pessoas usam pra desabafar e não pra inventar”
linhas 22 a 25).
Contudo, ao ser interpelado por mim sobre a possibilidade dos outros indivíduos
com os quais interage estarem igualmente fingindo ser outras pessoas (linhas 26 e 27),
em que tomo novamente um posicionamento de primeira ordem, Johnny assume um
posicionamento reflexivo (posicionamento de segunda ordem) (VAN LANGENHOVE &
HARRÉ, 1999 – ver seção 2.4), em que ele se reposiciona ao meu favor depois de ter
tido seu posicionamento anterior questionado por mim (É, é bem, é, assim como eu, é
verdade, eu sei que tem muita gente que faz isso, sim” - linhas 28 e 29). Esse
posicionamento reflexivo da parte de Johnny é, a meu ver, ainda marcado por duas
pistas de contextualização (GUMPERZ, 1999 - Ver seção 2.4): a dupla repetição do
marcador conversacional “é” com o seu alongamento (“É:://, é:: bem, é” – linha 28); e o
uso da expressão “é verdade” (linha 28), o que ajudam a corroborar a idéia de uma
certa afiliação e concordância da parte de Johnny em relação à minha opinião. Ainda é
possível inferir que tal posicionamento reflexivo da parte de Johnny possa ter se
constituído também em virtude da própria relação assimétrica de poder (FOUCAULT,
1979 - Ver seção 2.3) presente na interação entre mim e ele, que embora, a meu ver,
tivesse sido bastante cordial, e até amigável, fez com ele reconhecesse em mim um par
mais velho e experiente, o que, possivelmente o fez refletir acerca da sua própria
opinião sobre o assunto.
121
Seqüência 2:
“eu às vezes fico muito irritado porque se você, tipo, não tem uma
namorada, então você é gay, quer dizer, ah, assim, todo mundo fica pensando
que você é gay”
(30) P – E,/ que assuntos você gosta de conversar com as pessoas nas salas de
(31) bate-papo?//
(32) JOHNNY – Ah::/ Eu converso sobre um monte de coisas ((risos de Johnny)).//
(33) Mas mais coisas,/ assim que as garotas gostam de conversar/. Por exemplo,
(34) eu não gosto de conversar sobre futebol./ Eu:: detesto futebol./ Então, tipo,/
(35) talvez se eu dissesse meu nome verdadeiro, ou um outro nome de homem,/
(36) aí acho que os outros iam pensar que eu fosse gay //, porque eu não gosto
(37) de falar de coisas, tipo, que os meninos gostam de conversar./ Por isso que
(38) eu preferi usar um nome de mulher, entendeu?/
(39) P – Aha!/ Então você acha que as pessoas pensariam que você é Gay só
(40) porque você não gosta de falar de alguns assuntos que são mais comuns
(41) entre os meninos?//
(42) JOHNNY – Aha! Acho que sim,/ eu vejo muito isso lá na escola.//
(43) P – E você se sentiria incomodado se te chamassem de [ Gay?
(44) JOHNNY – [ Claro, porque eu não sou Gay, não ((Johnny parece se sentir
(45) um pouco incomodado)).//
(46) P – tá,/ mas e o que você entende por “gay”?
(47) JOHNNY – Ah eu acho que “gay” é aquela pessoa que,// assim, que, por
(48) exemplo, gosta de outra pessoa do mesmo sexo, homossexual./ E eu, pô,
(49) não gosto mesmo de ninguém do mesmo sexo que o meu. //
(50) P – Entendo/. Mas você gosta de alguém do sexo oposto?
(51) JOHNNY – Bem, no momento não. / Mas, assim,/ eu às vezes fico muito::
(52) irritado porque se você,/ tipo, não tem uma namorada,/ então você é gay, quer
(53) dizer, ah::, / assim, todo mundo fica pensando que você é gay. // E eu acho que
122
(54) as pessoas têm que respeitar a sua vontade, sabe?// Assim, às vezes eu
(55) quero ficar sozinho só saindo com os amigos, entendeu?/ E eu vejo que as
(56) pessoas são preconceituosas por causa disso. // Não só por causa disso, //
(57) mas, por exemplo,/ se o cara quer ser gay, aí, então isso foi uma escolha dele /
(58) e ninguém tem nada a ver com isso! ((Johnny aumenta o tom de voz)).
A seqüência 2 se inicia com o meu posicionamento de primeira ordem, uma
pergunta minha a respeito dos tipos de assuntos sobre os quais Johnny gosta de
conversar nas salas de bate-papo virtuais (linhas 30 e 31). Ele se auto-posiciona
deliberadamente ao afirmar que, como gosta de falar sobre assuntos que seriam típicos
das conversas de meninas e descarta, com isso, assuntos como futebol (“Mas mais
coisas, assim que as garotas gostam de conversar. Por exemplo, eu não gosto de
conversar sobre futebol. Eu detesto futebol” – linhas 33 e 34), poderia ser tachado de
“gay”, caso usasse seu nome verdadeiro ou um outro nome fictício masculino (“talvez
se eu dissesse meu nome verdadeiro, ou um outro nome de homem, aí acho que os
outros iam pensar que eu fosse gay” – linhas 35 e 36).
Pude perceber, neste trecho, que Johnny assume um posicionamento moral
(VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 - Ver seção 2.4) ao reverberar construtos
cristalizados no senso comum, inclusive na sua própria escola, onde muitos “regimes de
verdade” são produzidos (FOUCAULT, 1988 – Ver seção 2.3), (“eu vejo muito isso lá na
escola” – linha 42), como o de que para ser “homem” seria necessário, por exemplo,
gostar de futebol, ou não se interessar por assuntos que, socialmente, seriam mais
comuns às mulheres. Johnny parece, portanto, estar ciente desses discursos que
essencializam modos de “ser homem e “ser mulher” (BUTLER, 2003 – Ver seção 3.2), e
que não reconhecem aqueles que, de alguma forma, não se enquadram no padrão da
123
masculinidade hegemônica como os homossexuais, por exemplo. Tais discursos
parecem, com isso, invisibilizar muitas outras formas de constituição de masculinidades
e feminilidades, não contemplando a possibilidade de essas categorias serem
constantemente re-significadas e subvertidas (CONNELL, 2000 – Ver seção 3.2).
Nesta parte da seqüência, talvez tenha ficado mais evidente para mim o motivo
pelo qual Johnny, na seqüência anterior, disse preferir usar um nome fictício feminino: o
receio de ser tratado como “gay” (linhas 35 e 36). Isso, a meu ver, corrobora também o
seu posicionamento moral (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 – Ver seção 2.4). Isso
porque o seu posicionamento discursivo como uma menina ocorre, não somente em
função de uma certa exigência do posicionamento dos outros interlocutores com os
quais interage nas salas de bate-papo (auto-posicionamento forçado), como já havia
dito na análise da seqüência anterior, mas também pelo próprio medo de que esses
interlocutores o identificassem como “gay”, uma vez que esse rótulo traz em si certos
julgamentos depreciativos e estigmatizados por uma suposta ordem social moral.
Em seguida, ao tomar um posicionamento de primeira ordem para perguntar a
Johnny se o fato de ser chamado de “gay” o incomodaria (linha 43), ele prontamente se
auto-posiciona deliberadamente ao me responder que sim, inclusive se apressando em
dar uma resposta antes mesmo que eu terminasse a pergunta (linha 44). Isso parece se
mostrar de maneira mais contundente no momento em que ele, depois de ter dito sobre
o que entendia por “gay” (“Ah eu acho que gay é aquela pessoa que, assim, que, por
exemplo, gosta de outra pessoa do mesmo sexo, homossexual” – linhas 47 e 48),
replica, de forma veemente, que não gosta de “pessoas do mesmo sexo” (“E eu, pô,
não gosto mesmo de ninguém do mesmo sexo que o meu” – linhas 48 e 49). Isso, no
meu entender, ajuda a repercutir novamente a idéia de que o homossexualismo, por
124
exemplo, conforme apontei acima, afilia-se a um tipo de masculinidade não-
hegemônica (CONNEL, 2000 – Ver seção 3.2), e, por essa razão, incomodaria àqueles
que se enquadrassem nessa categoria. Além disso, é possível dizer que o rótulo de
“gay” poderia também o incomodar porque a identidade social de “gay” talvez o faça se
sentir estigmatizado no ambiente escolar, uma vez que os “regimes de verdade”
construídos nesse contexto, em geral, só legitimam a masculinidade heteronormativa.
Contudo, depois de ter sido questionado se gostava de alguém do “sexo oposto”
(linha 50), Johnny novamente assume um auto-posicionamento deliberado ao mostrar-
se indignado por achar que o fato de ele não ter uma namorada, por exemplo, não o
tornaria homossexual (“Mas, assim, eu às vezes fico muito irritado porque se você, tipo,
não tem uma namorada, então você é gay, quer dizer, ah, assim, todo mundo fica
pensando que você é gay” – linhas 51, 52 e 53). Logo em seguida, e de forma
surpreendente, ele parece se posicionar contrário à visão essencialista de que para ser
considerado “homem”, por exemplo, o indivíduo tem que, necessariamente, estar
sempre se relacionando com mulheres (“E eu acho que as pessoas têm que respeitar a
sua vontade, sabe? Assim, às vezes eu quero ficar sozinho só saindo com os amigos,
entendeu? E eu vejo que as pessoas são preconceituosas por causa disso” – linhas 54,
55 e 56).
E, embora tenha anteriormente se posicionado, perante a mim, como não
homossexual (linhas 47 a 49), Johnny encerra seu turno, num tom veemente,
apontando que a opção do sujeito em querer ser “gay” é unicamente sua e que os
outros não têm nada a ver com isso, o que, mais uma vez, corrobora seu discurso
contra-hegemônico (“se o cara quer ser gay, aí, então isso foi uma escolha dele e
ninguém tem nada a ver com isso!” – linhas 57 e 58). Assim, pude perceber que
125
Johnny, pelo menos na parte final desta seqüência, assume, portanto, um auto-
posicionamento deliberado, cujo propósito dessa vez, a meu ver, seria não mais o de
ser “outras pessoas”, como o da seqüência anterior, mas o de ter a sua vontade
respeitada no que diz respeito a sua vida afetiva e sexual. Tal posicionamento
discursivo também é ratificado em seu discurso por meio de duas pistas de
contextualização: o uso dos marcadores conversacionais “sabe” e “entendeu” (linhas 54
e 55, respectivamente); e do tom enfático (tom de voz mais alto) que Johnny emprega
na última frase da sua fala (“ninguém tem nada a ver com isso!” – linha 58), com o
objetivo de não só confirmar sua opinião em relação ao direito irrestrito à opção sexual
que todos deveriam ter, mas também de obter uma certa adesão minha a respeito do
que pensa sobre isso.
Seqüência 3:
“As meninas me adoram! Elas gostam muito de mim. Assim, elas me respeitam e
não têm vergonha de falar as coisas comigo”
(59) P – E você mencionou a sua escola,/ como é o seu relacionamento com os
(60) seus colegas lá?//
(61) JOHNNY – Ah::/ É mais ou menos.// Eu não ando com os garotos, /gosto de
(62) andar com as meninas.// Sabe, eu sinto que eu me dou melhor com elas./
(63) Assim./ Pô, elas deixam eu, tipo,/ conversar sobre tudo com elas. E:: // Eu
(64) não gosto muito dos papos e das brincadeiras dos garotos.//
(65) P – E como as meninas e os meninos te tratam?/
(66) JOHNNY – Ah:: As meninas me ado::ram/ e eu adoro elas também!/ Elas
(67) gostam muito de mim.// Assim, elas me respeitam e não têm vergonha de falar
(68) as coisas comigo.// Me falam dos namorados delas, dos garotos que elas
126
(69) ficam, assim, até de transar, essas coisas./
(70) P – E os garotos?//
(71) JOHNNY – Sei lá, assim,/ os garotos, eu sinto que no começo eles me
(72) tratavam mal.// Eles ficavam me sacaneando e me chamando de “gay”, de
(73) “boiola”, mas eu não gostava. //Ah:: /Eles são muito chatos./ Mas aí, agora eu
(74) não ligo muito,/ assim, eles deram um tempo.//
(75) P – Você ainda se incomoda quando eles te chamam de gay?
(76) JOHNNY – Ah::/ Não gosto não,/ mas às vezes eu nem ligo e finjo que não
(77) aconteceu nada//. Por isso que eu gosto muito de ir pra Internet,/ porque,
(78) assim,/ lá eu me sinto à vontade, entendeu?// E ninguém me descrimina ou fica
(79) falando alguma sacanagem pra mim lá.//
Nesta seqüência, depois de tomar um posicionamento de primeira ordem por
meio de uma pergunta a respeito do seu relacionamento com os colegas no ambiente
escolar (linhas 59 e 60), Johnny se auto-posiciona deliberadamente ao afirmar que
prefere se relacionar com as meninas da sua turma por achar que tem mais afinidades
com elas, ao mesmo tempo em que reconhece não gostar dos assuntos e brincadeiras
dos meninos (“gosto de andar com as meninas. Sabe, eu sinto que eu me dou melhor
com elas” e “Eu não gosto muito dos papos e das brincadeiras dos garotos” – linhas 61,
62 e 64). Tal afinidade com as meninas é corroborada, primeiramente, pelo fato de elas
permitirem sua presença em suas conversas (“Pô, elas deixam eu, tipo, conversar
sobre tudo com elas” – linha 63). Isso mostra que a noção de pertencimento a um
grupo, bem como as trajetórias em diferentes comunidades de práticas, são construídas
principalmente em função da forma como são avaliadas pelo(s) outro(s) nos mais
diversos contextos sociais, e, por isso, estão constantemente atreladas a relações de
poder (GEE, 2001 – Ver seção 5.2).
127
Um outro fator que contribui para ratificar essa noção de pertencimento de
Johnny em relação ao grupo das meninas da sua turma se faz presente no seu discurso
no momento em que ele se reporta às meninas, relatando-me que elas o adoram, o
respeitam e não têm vergonha de contar para ele assuntos mais íntimos sobre os quais
elas conversam entre si, o que, a meu ver, o faz se sentir cada vez afiliado ao grupo
(“As meninas me adoram e eu adoro elas também! Elas gostam muito de mim. Assim,
elas me respeitam e não têm vergonha de falar as coisas comigo. Me falam dos
namorados delas, dos garotos que elas ficam, assim, até de transar, essas coisas” –
linhas 66 a 69).
Johnny parece assumir, nesta parte, um posicionamento deliberado do outro
(VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 – ver seção 2.4), em que ele expressa
claramente sua opinião em relação às meninas (“eu adoro elas também” – linha 66), o
que, por sua vez, é legitimado, conforme apontou, pelo sentimento de amizade e
respeito que elas alimentam por ele ao engajarem-no em suas conversas mais íntimas
(linhas 65, 66 e 67). Isso, outrossim, se confirma por meio de algumas pistas de
contextualização, certas escolhas lexicais que atribuem valores apreciativos, das quais
Johnny faz uso para se referir às meninas, e elas em relação a ele (linhas 66 e 67). Tal
posicionamento discursivo contribue para ratificar a idéia de que Johnny estaria
construindo para si uma outra masculinidade, dando, com isso, visibilidade a outras
maneiras de se constituir identitariamente como um menino ao se relacionar com as
meninas da sua turma.
No entanto, depois de dois posicionamentos de primeira ordem meus (linhas 70
e 75, respectivamente), em que busco, até de forma um tanto insistente, saber acerca
do seu relacionamento com os meninos da sua turma, Johnny me confessa que eles
128
costumavam tratá-lo mal e se referiam a ele por meio de palavras ofensivas quanto à
sua sexualidade, o que, no começo, o incomodava (“os garotos, eu sinto que no
começo eles me tratavam mal. Eles ficavam me sacaneando e me chamando de “Gay”,
de “boiola”, mas eu não gostava” – linhas 71, 72 e 73). Nesse momento, Johnny
assume novamente um posicionamento deliberado do outro, em que ele não somente
fornece informações a respeito dos meninos, mas também expressa sua opinião em
relação a eles; opinião essa consubstanciada por uma pista de contextualização: a
escolha lexical “chatos” (linha 74). No momento atual, porém, Johnny afirma não estar
mais se importando tanto com as ofensas, e os meninos, por sua vez, pararam de tratá-
lo desse jeito (“Mas aí, agora eu não ligo muito, assim, eles deram um tempo” – linhas
73 e 74).
Embora essa constatação de que Johnny não estaria mais dando tanta
importância para o que os meninos falavam a seu respeito ainda se configure logo em
seguida na sua resposta à minha pergunta (“Não gosto não, mas às vezes eu nem ligo
e finjo que não aconteceu nada” – linhas 76 e 77), pude notar que isso, mesmo que de
forma mais tênue, ainda o incomoda. Isso porque existem, na nossa sociedade,
“relações hierárquicas em que algumas masculinidades são consideradas dominantes,
enquanto outras são subordinadas e marginalizadas” (CONNELL, 2000, p. 10 – Ver
seção 3.3). E, como Johnny estaria se construindo dentro de uma concepção de
masculinidade não hegemônica em relação aos meninos da sua turma, ele seria,
portanto, estigmatizado por eles. Essa seria também uma das razões pelas quais
Johnny prefere interagir com pessoas na Internet, porquanto este ambiente fornece
àqueles que dele fazem uso um acesso quase ilimitado à complexidade e à pura
129
multiplicidade da experiência das subjetividades humanas (LANKSHEAR & KNOBEL,
1997 – Ver seção 5.2).
Nesse sentido, o mundo virtual pode ser, portanto, entendido como um lugar,
antes de tudo, não discriminatório (Ver seção 5.2), o que faz com que Johnny se sinta à
vontade, sem medo do que os outros poderiam pensar ou falar sobre ele. Em face
disso, Johnny, novamente, assume um auto-posicionamento deliberado, pois expressa,
de forma contundente, sua opinião em favor desse mundo libertário do ciberespaço,
onde os modos de viver a sua experiência humana não seriam discriminados, ou
mesmo questionados (“Por isso que eu gosto muito de ir pra Internet, porque, assim, lá
eu me sinto à vontade, entendeu? E ninguém me descrimina ou fica falando alguma
sacanagem pra mim lá” – linhas 77 a 79).
Seqüência 4:
“Um dia, por causa da foto que eu mostrei pra uma amiga na Net, ela
disse que um amigo dela viu a foto e aí ele quis muito me conhecer”
(80) P – Sei,/ mas tem alguém com quem você conversa virtualmente que sabe
(81) que você não se chama Rose?//
(82) JOHNNY – Ah:: / sim tem uma amiga que sabe, sim,/ mas assim ela é uma
(83) grande amiga e não vai nunca contar pra ninguém.// Não tem erro, pô, eu
(84) confio mui::to nela.//
(85) P – E::/ você nunca passou por uma situação difícil que,/ por exemplo, alguém
(86) pudesse estar ameaçando descobrir que você não se chama Rose/ e que
(87) você não é uma [mulher fora dali?
(88) JOHNNY – [Ah:: Assim, / é muito difícil de alguém descobrir que meu nome
(89) não é Rose porque /, na verdade,/ eu só converso com essas pessoas
130
(90) online./ E, fora dali, eu não falo com eles.//
(91) Mas é verdade que têm,/ por exemplo, duas pessoas que a gente ta
(92) tentando um tempão marcar pra sairmos juntos./ Só que, aí,/ isso não
(93) aconteceu ainda porque elas pensam que eu sou uma garota,/ e aí, / elas tão
(94) loucas para me conhecer,/ e eu também quero conhecer elas,/ mas eu acabei
(95) me enrolando e até agora elas tão esperando.// Mas elas moram noutra
(96) cidade,/ assim, bem longe.//
(97) P – Aha,/ mas,/ além disso, eu sei que o MSN oferece a oportunidade de você
(98) colocar fotos suas lá.// E então,/ nenhuma dessas pessoas nunca te pediu
(99) para ver suas fotos?/
(100) JOHNNY – Ah::/ assim, eu também no começo não colocava nada. / Mas aí
(101) eu aprendi a mexer com Photoshop e,/ aí, pô,/ tipo,/ você não vai acreditar,/ eu
(102) criei uma própria imagem para mim mesmo//. Fiz uma montagem,/ assim,/ com
(103) vários pedaços de outras pessoas e aí montei a minha imagem.// Ficou muito
(104) engraçado,/ mas ficou maneiro/ eu fiquei bonita! ((risos meus e de Johnny)).
(105) P – Pôxa, que legal! [ E...
(106) JOHNNY – [ Ah::! ((risos de Johnny)) desculpa te cortar,/ mas é que eu
(107) lembrei, assim, // de uma situação mui::to engraçada que aconteceu na Net
(108) comigo.// Um dia,/ por causa da foto que eu mostrei pra uma amiga na Net,/ ela
(109) disse que um amigo dela viu a foto e aí ele quis muito me conhecer. Sério! /
(110) E eu não sabia, assim, o que fazer!/
(111) P – Mas e aí?//
(112) JOHNNY – Ah::/ eu falei /, tipo, que tava saindo com outro cara e que não
(113) tava afim,/ assim, de sair com ninguém,/ mas fiquei desesperado,/ sem saber
(114) o que fazer,/ mas também foi muito engraçado poder fazer isso,/ assim!//
(115) P – Bem,/ já que todo mundo acha que você é uma menina na Internet,/
(116) você já pensou em arrumar um namorado na Internet?//
(117) JOHNNY – Ah::/ acho que,/ de repente,/ ia ser legal arrumar alguém na
(118) Internet só de brincadeira,/ assim. // Acho que ia ser engraçado!//
131
Inicio a seqüência 4 com um posicionamento de primeira ordem, em que procuro
instigar Johnny, perguntando-lhe se há alguém com quem conversa nas salas de bate-
papo que saiba que seu nome não é Rose (linhas 80 e 81). Ele me diz que tem apenas
uma amiga que sabe disso, mas que, segundo ele, jamais contaria para alguém (“tem
uma amiga que sabe, sim, mas assim ela é uma grande amiga e não vai nunca contar
pra ninguém” – linhas 82 e 83). Nesse momento, percebe-se que Johnny assume um
posicionamento deliberado do outro, em que ele justifica sua falta de medo de ter seu
nome verdadeiro descoberto por meio da confiança e do apresso, expresso também
pela pista de contextualização (a escolha lexical “grande” (linha 83)), para com a sua
amiga (“ela é uma grande amiga e não vai nunca contar pra ninguém. Não tem erro, pô,
eu confio muito nela” – linhas 82, 83 e 84).
Novamente tomo um posicionamento de primeira ordem para saber se, alguma
vez, Johnny já havia passado por alguma situação em que alguém estivesse
ameaçando descobrir que seu nome não é “Rose” e que ele não é uma mulher no
mundo real (linhas 85, 86 e 87). Ele, então, me diz que isso dificilmente aconteceria,
que as pessoas com as quais conversa nas salas de bate-papo virtuais não são suas
amigas no mundo real (linhas 88, 89 e 90). Tal asserção nos permite discorrer que as
relações sociais que se formam no decorrer de uma interação no mundo virtual
contribuem na re-significação do fator da presença, não só por meio da intervenção da
técnica, mas principalmente através do modo como o usuário da Internet manipula suas
informações pessoais e sociais para subsidiar suas ações, uma vez que a vantagem do
anonimato lhe proporciona isso (CARDOSO, 1997 – Ver seção 5.2). Nesse sentido,“as
salas de bate-papo da Internet permitem que sejamos construídos de formas diferentes,
132
ao assumirmos identidades sociais variadas” (MOITA LOPES, 2002, p. 25 – Ver seção
5.2).
Em seguida, retomo o posicionamento de primeira ordem, em que insisto na
questão da possibilidade de Johnny vir a ser descoberto pelas outras com as quais
interage, perguntando-lhe se alguém já quis ver alguma foto sua no MSN (linhas 97, 98
e 99). De fato, o usuário do MSN não é obrigado a exibir uma foto sua na página inicial
(Ver subseção 6.3.1.2), por isso Johnny, no começo, também não expunha qualquer
foto sua (“eu também no começo não colocava nada” – linha 100). No entanto, ele mais
uma vez me impressiona, ao me contar que “criou uma imagem sua” a partir da foto de
uma menina que encontrou na Internet, usando o Photoshop, um programa de
computador usado para edição de fotos, com o qual ele realizou algumas mudanças
para poder inventar um novo rosto para si (“Mas aí eu aprendi a mexer com Photoshop
e, aí, pô, tipo, você não vai acreditar, eu criei uma própria imagem para mim mesmo.
Fiz uma montagem, assim, com vários pedaços de outras pessoas e aí montei a minha
imagem” – linhas 100 a 103). Nesse momento, Johnny assume um auto-
posicionamento deliberado, em que ele demonstra seu contentamento em relação à
criação da sua “nova imagem”, que é também corroborada pelas pistas de
contextualização, os itens lexicais “engraçado”, “maneiro” e “bonita” (linha 104).
Johnny continua o assunto relatando-me que, depois de ter mostrado sua nova
foto a uma amiga sua, um amigo dela chegou a se interessar por ele, pedindo até a
essa sua amiga que o apresentasse a ele (“Um dia, por causa da foto que eu mostrei
pra uma amiga na Net, ela disse que um amigo dela viu a foto e aí ele quis muito me
conhecer. Sério! E eu não sabia, assim, o que fazer!” – linhas 108, 109 e 110). Isso
mostra que a possibilidade que o ciberespaço oferece para construir outras identidades
133
através de meios multimodais, como é o caso do programa Photoshop, está
intimamente relacionada às práticas de letramento digital, visto que essa nova forma de
lidar com o computador traz não apenas novas formas de acesso à informação, mas
também novos processos cognitivos e sociais, novas formas de conhecimento, enfim,
novas formas de viver a vida social (COPE & KALANTZIS, 2000 – Ver seção 4.2).
Logo em seguida, tomo novamente um posicionamento de primeira ordem para
saber se Johnny já havia pensado na possibilidade de arrumar um namorado,
porquanto ele estava se construindo identitariamente como uma menina (linhas 115 e
116). Ele, então, se auto-posiciona deliberadamente ao exprimir a opinião de que isso
não só poderia ser possível como também interessante e divertido, o que, por sua vez,
também se confirma por meio de suas escolhas lexicais em “legal” e “engraçado” (“Ah::
Acho que, de repente, ia ser legal arrumar alguém na Internet só de brincadeira, assim.
Acho que ia ser engraçado!” – linhas 117 e 118).
Sob essa perspectiva, a Internet pode se tornar para Johnny um lugar em que
ele possa viver novas experiências. Isso porque a própria fisicalidade no ciberespaço (o
corpo virtual) passa a ser construída via discurso: o agente online vai fornecendo
informações sobre si e, com isso, construindo a si mesmo (LEVY, 1997 – Ver seção
5.2). O usuário, por sua vez, também consegue construir uma imagem da pessoa que
está do outro lado da tela, situando-o na interação como um ser que detêm
características sociais próprias. Por isso, a Internet, de forma mais expressiva do o
mundo real, se tornou um espaço para experimentação de novas formas híbridas de
sociabilidade, em que a própria fisicalidade pode ser (re)construída.
134
A presente análise da entrevista que realizei com Johnny serviu-me de base para
compreender algumas questões relativas à sua (re)construção identitária, o que será
comentado na seção destinada a responder às questões de pesquisa (Ver seção 8.2).
A seguir, passo a analisar o segundo corpus desta pesquisa: as conversas nas salas de
bate-papo virtuais.
7.1.2. As conversas nas salas de bate-papo ciberespaço
Nesta seção, analisarei algumas das conversas, em forma de texto escrito, entre
Johnny e outros interactantes, alguns de seus amigos virtuais, em dois tipos de salas
de bate-papo do ciberespaço: as salas de bate-papo da UOL, um ambiente virtual do
qual os interactantes, em geral, fazem uso para estabelecer um primeiro contato entre
si; e o MSN, uma sala de bate-papo mais restrita, onde só se conversa com pessoas
que foram escolhidas (“adicionadas”) pelo usuário (Ver subseção 6.3.1.2).
Como as conversas selecionadas nesta parte da análise foram realizadas por
pessoas diferentes, em datas diferentes, e, portanto, não seguem uma seqüência,
considerei mais oportuno distribuí-las em excertos. Cada excerto representa fragmentos
de conversas entre Johnny, que nas salas de bate-papo usa o nome “Rose” (Ver nota
no capítulo 1), e cada um de seus amigos(as) virtuais. Assim como na entrevista
(subseção 8.1.1), destaquei para cada excerto o trecho que considero representativo do
assunto central do qual os interactantes tratam e que tematizam a questão das
identidades sociais.
Os três primeiros excertos foram retirados de interações das salas de bate-papo
da UOL; os demais (os outros seis excertos), do MSN. O primeiro excerto é uma forma
de interação típica da sala de bate-papo da UOL, cujo objetivo é o de estabelecer um
135
primeiro contanto entre seus interactantes. Nessa conversa, Rose conhece Marcinha,
depois de vê-la conversando com uma outra pessoa sobre o uso de piercing no corpo.
Rose, então, convida-a para conversar.
Excerto 1:
ROSE E MARCINHA
“to doida pra botar piercing mas minha mãe fica me enchendo!!”
(1) ROSE – oi, td bem? vi q vc tava falando com uma menina q vc gosta de
(2) piercing. Fiquei interessadiiiiiiissima!!!
(3) MARCINHA – oi, rose, adoro sim!!! é eu tenho até uma comunidade no orkut
(4) de piercing. entra no link www.orkut.com/Community.aspx?cmm=120298
(5) ROSE – ai, vou entar sim. mas me conta, e verdade q doí muito botar???
(6) MARCINHA – naum so dói um pouquinho, mas fica show!!!
(7) ROSE – to doida pra botar piercing mas minha mãe fica me enchendo!!
(8) MARCINHA – ai, minha mãe tambem enchia o saco com isso. Po, mais aí
(9) tava geral colocando,minhas amigas todo mundo. Ai eu botei também. eu
(10) escondi três dias da minha mãe e do meu pai duas semanas!!! credita????
(11) ROSE – serio!!! mas e aí?
(12) MARCINHA – ah, no começo não gostaram mas aí ficou td bem!!
(13) ROSE – eos gatinhos?
(14) MARCINHA – ai, menina, maior sucesso. Agora so fico pagando
(15) barriguinha!!! Ainda mais agora q eu to mais magra!!!
(16) ROSE – ai , eu tenho uma amiga q usa q fica lindo. ela também e toda
(17) linda!! mas naum tenho coragem de botar na barriga, naum, acho q só ia
(18) botar na sobrancelha;
(19) MARCINHA – na sobrancelha fica show também. Mas não deixa de entrar lá
(20) na comunidade
(21) ROSE – vou sim. gostei de conhecer. tem msn?
(22) MARCINHA – eu tb. me add. meu email e marcinhatb18@hotmail.com
136
(23) ROSE – vou te add sim, bjos
Este excerto se inicia com Rose tomando um auto-posicionamento deliberado
em que ela, ao observar uma menina (Marcinha) conversando com uma outra pessoa
sobre um assunto que também lhe interessa, convida essa menina para conversar (“oi,
td bem? vi q vc tava falando com uma menina q vc gosta de piercing. Fiquei
interessadiiiiiiissima!!!” – linhas 1 e 2). Perceber-se, portanto, já no começo deste
excerto, que Rose, ao mostrar seu interesse em conversar com uma outra pessoa
sobre um assunto que, no senso comum, seria típico das mulheres, está, de fato,
buscando construir-se identitariamente como uma menina. Isso é igualmente
indexicalizado por uma pista de contextualização, o alongamento excessivo da sílaba
tônica da palavra, que é também uma das formas estereotípicas de se marcar a “fala
feminina” para manifestar intensamente o desejo por alguém ou por alguma coisa
(“interessadiiiiiiissima!!!” – linha 2). Nesse sentido, é possível inferir que Rose, ao fazer
uso de tais recursos lingüísticos, está se auto-posicionando como uma mulher e,
portanto, construindo sua identidade social de gênero.
Marcinha, em seguida, assume um auto-posicionamento deliberado não só para
confirmar sua opinião em relação ao uso do piercing, mas também para convidar Rose
a participar de uma comunidade num site de relacionamentos (o Orkut), através de um
dos meios mais usados nas salas de bate-papo para isso: o envio de um link (um tipo
de hipertexto – Ver seção 4.3), no qual o usuário clica e entra direto na página da
Internet que se deseja (linha 4).
É possível perceber que Rose, ao tomar um posicionamento de primeira ordem,
por meio do qual ela ratifica seu desejo não somente de usar piercing, mas também de
137
fazer parte de uma comunidade no Orkut de pessoas que o usam (linha 5), busca, com
isso, uma forma de pertencimento a partir de seu engajamento numa comunidade de
prática específica (no caso, a comunidade do Orkut), o que a possibilitaria construir
para si para outras identidades sociais (LAVE & WENGER, 2002 – Ver seção 5.2).
Mesmo tendo um certo receio usar piercing, em função de uma possível dor que
poderia sentir ao colocá-lo (linha 5), Rose parece cada vez mais querer usar um, e, só
não o fez ainda, segundo ela, porque sua mãe não estaria permitindo que ela usasse
(“to doida pra botar piercing mas minha mãe fica me enchendo!!” – linha 7). Nesse
momento, Rose estaria assumindo um auto-posicionamento forçado, uma vez que a
sua posição de não usar piercing ocorre, não por vontade própria, mas em função de
uma suposta proibição da parte de sua mãe, o que se confirma por meio do uso da sua
escolha lexical “me enchendo” (linha 7) para se referir a uma suposta pressão que sofre
da parte de sua mãe.
E, embora ela afirme sofrer tal repressão da sua mãe em relação ao uso do
piercing, isso não parece desanimá-la, especialmente porque essa situação de
repressão também é vivida por sua amiga Marcinha, que, mesmo assim, decidiu usar
piercing (“ai, minha mãe tambem enchia o saco com isso. Po, mais aí tava geral
colocando, minhas amigas todo mundo. Ai eu botei também” – linhas 8 e 9). Nessa
parte, Marcinha apresenta um auto-posicionamento deliberado, em que ela, mesmo
contrariando a opinião do seus pais, posiciona-se a favor da sua própria vontade de
usar piercing (linha 9), o que poderia ser, outrossim, uma motivação para que Rose
fizesse o mesmo.
Rose, então, toma um posicionamento de primeira ordem para saber de
Marcinha a respeito da opinião dos meninos, o que também poderia ser mais uma
138
razão para que ela passasse a usar piercing (linha 13). Tal suposição é corroborada
pelo posicionamento deliberado do outro, assumido por Marcinha ao dizer a Rose que o
uso do piercing na barriga é o “maior sucesso” entre os meninos e pela sua escolha
lexical “pagando barriga” (linhas 14), o que remete à construção da uma suposta
sensualidade feminina. Nessa parte da análise, acredito que seja possível tratar o
sujeito da pesquisa como Johnny / Rose (Ver nota no capítulo 1), uma vez que esse
suposto interesse pela opinião dos meninos em relação ao uso do piercing pode
assumir uma posição ambivalente: tanto pode ser um indício de que Rose não só quer
ser reconhecida como uma menina no mundo virtual do qual faz parte, já que as
meninas com as quais conversa também se mostram interessadas por meninos, como
também pode estar querendo, já como Johnny, expressar seu próprio desejo pelos
meninos. Nesse sentido, o ciberespaço, por ser um ambiente no qual circulam múltiplos
discursos, pode se tornar também um “espaço libertário” para a própria experimentação
de outras práticas, como a sexualidade (TURKLE, 1997 – Ver seção 5.2).
Contudo, logo em seguida, Rose parece tomar posicionamentos um tanto
contraditórios no que concerne à sua própria vontade. Isso porque, embora assuma um
posicionamento deliberado do outro no que diz respeito ao uso do piercing por parte de
uma de suas amigas, na tentativa de ratificar sua opinião favorável em relação ao
assunto (“ai, eu tenho uma amiga q usa q fica lindo. ela também e toda linda!!” – linha
16 e 17), ela, por outro lado, se auto-posiciona deliberadamente ao dizer que não tem
coragem de usar peircing na barriga (“mas naum tenho coragem de botar na barriga,
naum, acho q só ia botar na sobrancelha” – linhas 17 e 18). Acredito que tal contradição
encontra respaldo no fato de Rose estar consciente de que, muito embora possa
circular por vários discursos no ciberespaço que lhe possibilitem se construir sócio-
139
discursivamente como muitos outros sujeitos, ela sabe que, no mundo real (como
Johnny), tal possibilidade é sócio-culturalmente mais limitada, a tal ponto de ela, por
exemplo, não se sentir à vontade de usar piercing na barriga. E, mesmo quando
participa do mundo virtual, tais conceitos ainda parecem ecoar em seus discursos.
No excerto 2, Rose é convidada por Beto para conversar. É preciso mencionar
que, nesta interação, diferentemente das outras aqui apresentadas, o propósito dos
dois interactantes não era, propriamente, o de fazer uma “nova amizade”, mas o de se
“paquerarem”. Isso porque, em geral, Rose, ao entrar nas salas de bate-papo da UOL,
escolhe a opção “entre amigos” (Ver subseção 7.3.1.2 e ANEXO 1). Dessa vez, no
entanto, Rose preferiu a opção da sala de “paquera”, onde conheceu Beto.
Excerto 2: ROSE E BETO
“sei lá gosto de caras que falem coisas interessantes. Naum gosto de cara
machão, sabe? Gosto assim de caras que sabem conversar”
(24) ROSE – oi, beto. td bem?
(25) BETO – tudo. e aí, vc ta sempre teclando?
(26) ROSE – ah, as vezes. geralmente a noite. E vc?
(27) BETO – eu tb. E vc mora aonde?
(28) ROSE – No RJ e vc?
(29) BETO – vitória – espírito santo. E aí, conhece vitória? Tem praias lindas
(30) ROSE – eu sei. mas naum conheço lá naum. E quantos anos vc tem?
(31) BETO18 e vc?
(32) ROSE – 17
(33) BETO – que vc faz?
(34) ROSE – estudo. To no 2º ano e vc?
(35) BETO – to no 3º. Me diz que tipo de cara, assim vc gosta?
140
(36) ROSE – ah naum gosto de cara chato!!! cara, assim que só fica falando de
(37) si.
(38) BETOe como um cara poderia chegar em vc e se da bem?
(39) ROSE – Ah:: sei lá gosto de caras que falem coisas interessantes. Naum
(40) gosto de cara machão, sabe? Gosto assim de caras que sabem conversar,
(41) sabe falar de muitas coisas e naum fique falando sempre o mesmo assunto.
(42) BETO – Poxa, acho que sou esse tipo de cara!!
(43) ROSE – Ahã! Acho q não. já to achando vc muito convencido, hein!!!
(44) BETOque nada, so to vendendo meu peixe. Se eu naum fala bem de mim
(45) como eu vou conquista vc?
(46) ROSE – mas quem disse que eu quero ser conquistada por vc?
(47) BETOvc é difícil, hein???
(48) ROSE- ah, fala sério,naum sou nada!!!
(49) BETO – mas mesmo assim já gostei de conhecer vc!!
(50) ROSE- é até que eu tb. vc naum é mt convencido naum!!!
(51) BETO – mas eu ainda vou conquistar vc!!! pode ter certeza!
(52) ROSE – vamo ver, vai ser difícil, mas que sabe...
(53) ROSE – tenho que ir agora. bjinhos.
(54) BETOespera aí. me da seu msn
(55) ROSE[email protected]
(56) BETOvou te add. mt bjos.
(57) ROSE – bjos.
A conversa entre Rose e Beto se inicia da forma um tanto padrão nessa opção
de interação das salas de bate-papo: os interactantes se alternam na tomada dos
turnos (posicionamentos de primeira ordem) para se apresentar informalmente um ao
outro por meio de perguntas sobre informações mais gerais, como: lugar onde vivem,
idade, se estuda ou trabalha etc (linhas 24 a 35). O tópico central da conversa entre os
dois começa a se desenvolver quando Beto interpela Rose acerca do tipo de homem
141
que lhe interessa (“Me diz que tipo de cara, assim vc gosta?” – linha 35). Rose, então,
assume um auto-posicionamento deliberado para expor sua opinião, se construindo
identitariamente, a meu ver, como uma menina que tem preferências por um
determinado tipo de homem (“ah naum gosto de cara chato!!! cara, assim que só fica
falando de si” – linha 36).
Em seguida, Beto toma um posicionamento de primeira ordem na tentativa de
imprimir à conversa um certo tom de “paquera” (“e como um cara poderia chegar em vc
e se da bem?” – linha 38). Rose, então, se auto-posiciona deliberadamente ao apontar
novamente para o seu interlocutor (Beto) o tipo de homem que prefere (“Ah:: sei lá
gosto de caras que falem coisas interessantes. Naum gosto de cara machão, sabe?
Gosto assim de caras que sabem conversar, sabe falar de muitas coisas e naum fique
falando sempre o mesmo assunto” – linhas 39 a 41). Percebe-se, com isso, que Rose
vai tecendo sua identidade social de gênero por meio da sua relação sócio-discursiva
com Beto. Isso nos conduz a uma visão de identidade como construção social, em cujo
princípio está implicado o fato de que somos criados, ou melhor, criamos nossas
identidades sociais por meio dos outros a nossa volta, pois “ao antecipar como os
participantes podem responder na interação, com base em quem eles são, nos
compomos de formas diferentes” (SHOTTER apud MOITA LOPES, 2002, p. 34 – Ver
seção 3.1).
Nesse momento, Beto se auto-posiciona deliberadamente para enaltecer a si
mesmo e na tentativa de convencer Rose de que ele seria o tipo de homem que ela
descrevera (“Poxa, acho sou esse tipo de cara!!” – linha 42). Todavia, Rose toma um
posicionamento deliberado do outro, como uma espécie de reação à asserção de Beto,
em que ela o posiciona como alguém “convencido”, não se adequando, portanto, ao
142
esteriótipo de homem que ela idealiza (“Ahã! Acho q não. já to achando vc muito
convencido, hein!!!” – linha 43). Tal posicionamento de Rose ainda é corroborado por
algumas pistas de contextualização no seu discurso: os marcadores conversacionais
“Ahã!” e “hein!!!”, típicos do discurso oral, e o item lexical “convencido”, usados, no
contexto em questão, para indexicalizar uma suposta atitude de ironia e desdém em
relação à fala anterior de Beto.
Em seguida, Beto se auto-posiciona deliberadamente ao reconhecer que, apesar
de uma suposta dificuldade enfrentada para conquistar Rose, gostou de conhecê-la
(“mas mesmo assim já gostei de conhecer vc!!” – linha 49). Rose, por sua vez, toma um
posicionamento reflexivo (de segunda ordem) em relação ao seu interlocutor (Beto),
pois, embora não tenha tido seu posicionamento anterior questionado por ele, ela
parece ter se (re)posicionado em favor da idéia de que Beto não seria talvez tão
convencido quanto imaginava (“é até que eu tb. vc naum é mt convencido naum!!!” –
linha 50). Beto, então, assume novamente um auto-posicionamento deliberado com o
intuito de ratificar sua posição de conquistador na interação (“mas eu ainda vou
conquistar vc!!! pode ter certeza!” – linha 51). Rose, por sua vez, parece tomar essa
idéia como algo possível não só na linha 52 (“vamo ver, vai ser difícil, mas que sabe...”),
mas também na linha 55, em que ela, depois do pedido de Beto, disponibiliza o link
(hipertexto – Ver seção 4.3) do seu e-mail para ele, na tentativa de promover outros
encontros virtuais entre eles, já como um caráter mais privado no MSN (Ver seção
6.3.1.2). Percebe-se, com isso, que Rose está novamente (re)construindo sua
identidade social de gênero como uma menina ao se permitir criar um relacionamento
supostamente heterossexual com um menino no mundo virtual.
143
Ao longo do excerto, é possível ponderar, do mesmo modo, que Rose estaria
construindo sua identidade social de gênero de forma um tanto ambígua: por um lado,
ela parece fazer prevalecer a sua opinião acerca do tipo de homem que prefere; por
outro, ao se permitir participar desse jogo discursivo com Beto, ela sinaliza, outrossim,
sua construção identitária como uma menina heterossexual, uma vez que sabe, por
exemplo, que o comportamento esperado de uma menina, dentro de uma visão
essencialista cristalizada no senso comum, deveria ser o de se preservar o quanto
puder e até mesmo o de criar uma certa resistência em relação às supostas investidas
do menino, que, por sua vez, teria sempre o papel de “conquistador”.
Essa idéia de um suposto comportamento estereotipado imputado aos “papéis
dos sexos” (BUTLER, 2003 – Ver seção 3.3) continua sendo desenvolvida ao longo do
excerto. Beto, então, toma um auto-posicionamento deliberado para reiterar sua
posição de conquistador na interação, típica da masculinidade hegemônica (“que nada,
so to vendendo meu peixe. Se eu naum fala bem de mim como eu vou conquista vc?” –
linhas 44 e 45). Rose, por sua vez, continua exercendo sua função passiva, típica de
um ideal feminino, que se restringe unicamente a criar uma certa resistência às
“investidas” de Beto (“mas quem disse que eu quero ser conquistada por vc?” – linha
47). Nesse sentido, é possível afirmar que os interactantes se encontram numa relação
assimétrica de poder (FOUCAULT, 1888 – Ver seção 2.3), em que Beto assume a
posição de “conquistador”, enquanto Rose, a de “conquistada”. Isso se ratifica
igualmente através da pista de contextualização, o uso do verbo “conquistar” por parte
de cada um deles: Beto, por exemplo, o usa na voz ativa, o que o constrói na posição
de agente da ação da conquista (linha 45); Rose, por sua vez, usa-o na voz passiva, o
que contribui para construí-la de forma passiva na interação (linha 47).
144
Contudo, ao co-construírem um típico jogo de “paquera”, alternado
posicionamentos compatíveis com esse jogo de linguagem, ambos atualizam na
interação relações hierárquicas naturalizadas, cujas funções Rose parece conhecer
muito bem. Nesse sentido, é possível fazer uma outra interpretação, na qual Rose é
quem, de fato, assume uma posição hegemônica de poder na interação, já que é ela
que parece conduzir Beto a querer continuar mantendo o jogo discursivo da “paquera”,
inclusive permitindo que ele a adicione no seu MSN para futuros encontros (linha 55).
No excerto 3, Rose conhece pela primeira vez Joana na opção sala de bate-
papo “entre amigos” da UOL. Rose, então, convida-a para conversar. O assunto entre
elas gira em torno do ideal de homem que cada uma possui.
Excerto 3: ROSE E JOANA
“acho q naum precisa ser um Brad pit, mas pelos menos tem q ser gatinho e
educado!!!”
(58) ROSE – oi, vc da onde?
(59) JOANA –Mogi das cruzes , SP, e vc?
(60) ROSE – do rio
(61) JOANA – ai todo mundo fala q tem um monte de menino saradão aí!!! me
(62) conta
(63) ROSE - até tem mas tb tem mto menino feio!
(64) JOANA – é verdade, mesmo. mas qual e o seu tipo preferido?
(65) ROSE - ah, sei lá, tem q ser bonitinho, gatinho.
(66) JOANA – sabe porque to perguntando é q minha amiga tem uma
(67) comunidade no orkut e Homens bonitos de boca fechada. conhece?
(68) ROSE – naum. me manda o link
(69) JOANA - http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=153522
a gente
145
(70) acha q homem bonito e td burrão!!!!
(71) ROSE – ai é verdade, quando eu vejo assim um cara saradão, pô ele todo
(72) metidão mais naum sabe nem falar!!! mas nem todos. tem um menino q
(73) estuda comigo q é muito lindo, assim td de bom e ele naum e burrão não!!!
(74) JOANA – é verdade, mas tem poucos, ne? e é uma pena por que tem assim
(75) uns q são legais mas são tão feinhos, né!!!
(76) ROSE – tem mesmo!!! naum dá pra ser perfeito, né?
(77) JOANA – ai mas tem que ter também uns músculos. Naum precisa ser
(78) fortão. Mas magrinho tb naum dá.
(79) ROSE – eu tb naum gosto de menino mto fortão, bombado. E tb naum gosto
(80) de baixinho. Tem q ser alto tb. acho q naum precisa ser um Brad pit, mas
(81) pelos menos tem q ser gatinho e educado!!!
(82) JOANA – ai, mas isso já e impossivell!! Acho q eles nunca vão ser perfeitos.
(83) É por isso que eu naum to saindo com ninguém.
O assunto central abordado no excerto 3 se inicia quando Joana, ao saber que
Rose reside no Rio de Janeiro (linha 60), toma um posicionamento deliberado do outro
para discorrer sobre os meninos do Rio de Janeiro (“ai todo mundo fala q um monte de
menino saradão aí!!! me conta” – linhas 61 e 62). Além disso, a meu ver, é possível
afirmar que Joana também assume um posicionamento moral ((VAN LANGENHOVE &
HARRÉ, 1999 – Ver seção 2.4), em que ela constrói sua opinião de que o Rio de
Janeiro seria uma lugar de “um monte de menino saradão” (linha 61), com base em
uma suposta vox populi, cristalizada no senso comum e, portanto, legitimada
socialmente, marcada pela pista de contextualização “todo mundo fala” (linha 61). Rose
igualmente se posiciona deliberadamente em relação ao outro, porém, diferentemente
de Joana, ela assume tal posicionamento na tentativa de desnaturalizar tal concepção
(“até tem mas tb tem mto menino feio!” – linha 64). Isso faz com que Joana se posicione
146
reflexivamente (posicionamento de segunda ordem) em relação ao que Rose disse (“é
verdade” – linha 65).
Ainda na mesma linha, Joana toma um posicionamento de primeira ordem com o
fito de interpelar Rose a respeito do seu tipo preferido de homem (linha 64). Rose,
então, assume um posicionamento deliberado do outro para expressar sua opinião em
relação ao seu tipo preferido (linha 65). Percebe-se, com isso, que Rose continua se
construindo identitariamente como uma menina heterossexual, visto que ela se permite
não somente conversar sobre meninos, mas, principalmente, tecer suas escolhas
acerca do seu tipo preferido de homem.
Tal posicionamento ainda é indexicalizado pelo uso sufixo diminutivo “inho” em
“bonitinho” e “gatinho” (linha 65), que, a meu ver, contribui para corroborar a idéia de
que Rose estaria construindo sua identidade social de gênero ao utilizar
propositadamente escolhas lingüísticas que, no senso comum, seriam típicas do
discurso das mulheres. E, ainda que seja possível afirmar que ela também faz uso do
sufixo quando interage com pessoas no mundo real, e que, por isso, estaria assumindo
um posicionamento ambivalente como Johnny / Rose (Ver nota no capítulo 1),
poderíamos considerar isso como um exemplo de desconstrução da visão essencialista
de gênero, que atribui tal uso especificamente às mulheres.
Em seguida, Joana assume um posicionamento deliberado do outro para se
referir a uma amiga que criou uma comunidade no Orkut cujo nome é “Homens bonitos
de boca fechada” (linha 67). Ela, então, convida Rose a participar da comunidade por
meio do envio de um hipertexto (um link), e encerra seu turno novamente se
posicionando deliberadamente em relação ao outro (aos homens), baseada numa visão
cristalizada no senso comum de que todo homem bonito seria burro (linha 70). A esse
147
respeito, considero pertinente comentar que tal posicionamento de Joana encontra
respaldo na comunidade de prática a que ela pertence (LAVE & WENGER, 2002 – Ver
seção 6.2), que pode contribuir para desconstruir ou mesmo legitimar, como é o caso,
visões essencialistas que ecoam no mundo social (“a gente acha q homem bonito e td
burrão!!!!” – linhas 69 e 70).
Rose, então, toma um posicionamento deliberado do outro com o intuito de
corroborar sua opinião favorável à asserção anterior de Joana de que os homens
bonitos e “saradões” seriam burros (“ai é verdade, quando eu vejo assim um cara
saradão, pô ele todo metidão mais naum sabe nem falar!!!” – linhas 71 e 72). Contudo,
Rose, ainda no mesmo turno, se mostra contraditória ao buscar, de uma certa forma,
desmistificar tal construto, se posicionando deliberadamente em relação a um menino
da sua turma que não se enquadraria em tal visão (“mas nem todos. tem um menino q
estuda comigo q é muito lindo, assim td de bom e ele naum e burrão não!!!” – linhas 72
e 73). Essa opinião de Rose faz com que Joana se posicione reflexivamente
(posicionamento de segunda ordem), embora ela considere que só uma minoria de
homens bonitos não poderia ser, de fato, burros (“é verdade, mas tem poucos, ne?” –
linha 74). Ela, ainda no seu turno, reverbera um outro construto equivalente, também
bastante enraizado no senso comum, de que o contrário, os homens que seriam
“legais”, são feios (“e é uma pena por que tem assim uns q são legais mas são tão
feinhos, né!!!” – linha 75), o que, por sua vez, é ratificado por Rose (“tem mesmo!!!
naum dá pra ser perfeito, né?” – linha 76).
Logo abaixo, Joana e Rose parecem chegar a um consenso sobre o que seria
um “homem ideal” para elas, em que cada uma assume um posicionamento deliberado
do outro para se referir ao seu tipo de preferido de homem (“ai mas tem que ter também
148
uns músculos. Naum precisa ser fortão. Mas magrinho tb naum dá” – linhas 77 e 78
(Joana); e “eu tb naum gosto de menino mto fortão, bombado. E tb naum gosto de
baixinho” – linha 79). Ainda no turno de Rose, ocorre algo interessante quando ela, ao
descrever qual seria seu tipo ideal de homem, menciona um ator da mídia internacional,
o ator Brad Pitt (linha 80), que é reconhecido pela opinião pública como um ideal de
beleza masculina (“Tem q ser alto tb. acho q naum precisa ser um Brad pit”, mas pelos
menos tem q ser gatinho e educado!!! – linhas 80 e 81). Nesse sentido, é possível
afirmar que, de fato, o discurso da mídia exerce uma grande influência na construção
de crenças, opiniões, valores, ou seja, das identidades sociais dos sujeitos, sobretudo
dos adolescentes (Ver seção 2.1).
Joana, então, encerra a conversa, assumindo um posicionamento deliberado do
outro, em que ela afirma categoricamente ser “impossível” existir um homem bonito e,
ao mesmo tempo, educado, ecoando novamente a visão essencialista do senso comum
e usando isso para justificar o fato de estar sozinha no momento (“ai, mas isso já e
impossivell!! Acho q eles nunca vão ser perfeitos. É por isso que eu naum to saindo
com ninguém” – 82 e 83).
Isso mostra, de fato, como Rose e Joana, por meio das práticas discursivas nas
quais se engajam, estão constantemente inseridas num processo de posicionar não só
a si próprias, como nos auto-posicionamentos deliberados, recorrentes nos excertos
anteriores, mas também ao posicionarem seus interlocutores nessas práticas
discursivas, negociando sempre novas posições, como nos posicionamentos
deliberados do(s) outro(s), como foi o caso deste excerto. A esse respeito, Van
Langenhove & Harré (1999, p. 2 – Ver seção 2.4) apontam que em qualquer prática
discursiva “o posicionamento constitui o falante inicial e os outros de uma certa maneira
149
e, ao mesmo tempo, é um recurso por meio do qual todas as pessoas envolvidas
podem negociar novas posições (e novos significados)”.
Os excertos a seguir são fragmentos de interações realizadas na sala de bata-
papo do MSN (Ver subseção 7.3.1.2). E, diferentemente dos três anteriores, no MSN,
os interactantes com os quais Rose conversa já são seus conhecidos e, portanto, já
foram adicionados à sua lista de amigos. Por isso, o tipo de interação (os assuntos, o
grau de intimidade etc) é distinto daqueles normalmente realizados nas salas de bate-
papo da UOL. No Excerto 4, Sabrina conversa com Rose sobre um menino que
conheceu na escola e no qual ficou interessada.
Excerto 4: ROSE e SABRINA
“o gatinho é td de bom!!! ai, ja to azarando ele tem um tempo, mas não sei. me
ajuda, amigaaa!!!”
(84) ROSE – oi, Sabri, td bem com vc?
(85) SABRINA – ai, td ótimo, amiga!!! vi hj na escola um gatinho lindo, mto fofo.
(86) fiquei
por ele!!!
(87) ROSE – como? me conta!!!
(88) SABRINA – ah eu tava no pátio com as minha amigas aí eu vi aquele
(89) menino tdo fofinho aí a gente falou dele, olha, geral ficou louca por ele,
(90) assim, o gatinho é td de bom!!! ai, ja to azarando ele tem um tempo, mas
(91) não sei. me ajuda, amigaaa!!!
(92) ROSE – pede as menina pra te apresentar!
(93) SABRINA – uuuu... ai,
tô até nervosa!!! manhã eu falo com elas. eu vou
(94) pega aquele gatinho pra mim!!!. eu posso te contar tudo, neh... ai, mas fala
(95) de vc!!!
(96) ROSE – na mesma! tô toda enrolada na escola, matemática, não entra na
150
(97) cabeça!!!
(98) SABRINA – ai, fala sério!!!!
No excerto 4, a interactante Sabrina inicia seu discurso assumindo um
posicionamento deliberado do outro ao contar para Rose a respeito de um menino da
escola que, no dia anterior, chamou muito a sua atenção por ser, segundo ela, muito
“lindo” (“ai, td ótimo, amiga!!! vi hj na escola um gatinho lindo, mto fofo” – linha 85). Ela,
então, descreve para Rose como o conheceu na escola e lhe pede ajuda para tentar,
de alguma maneira, conseguir conquistá-lo (linhas 88 a 91). Sabrina, portanto, se
posiciona discursivamente como o foco central na interação, tomando para si o turno e
esperando de Rose apenas alguma atitude responsiva em relação ao assunto do qual
está tratando.
Com o objetivo de mostrar que seu interesse pelo menino encontra respaldo na
opinião de outras pessoas, Sabrina ainda toma um posicionamento deliberado do outro
para se apoiar numa suposta opinião de outras meninas da sua escola que também se
mostraram bastante efusivas em relação ao mesmo menino (“aí a gente falou dele,
olha, geral ficou louca por ele” – linha 89).
Rose, então, assume um posicionamento de primeira ordem para incentivar
Sabrina a conhecer o menino (“pede as menina pra te apresentar!” - linha 92). E, após
ter ouvido o que supostamente esperava de Rose em relação ao modo como deveria
agir para se aproximar do menino no qual estava interessada, Sabrina se auto-
posiciona deliberadamente ao emitir uma resposta não propriamente verbal, uma pista
de contextualização típica da prática de letramento na qual os interactantes estão
envolvidos, que se aproxima da oralidade e que sinaliza para o outro (Rose) seu
151
posicionamento de dúvida ao que foi dito (“uuu...” – linha 06), seguido do uso de um
emoticon sorrindo, uma espécie de figura virtual que se caracteriza como um tipo de
elemento hipertextual (Ver seção 4.2 e ANEXO 4), que se presta, em diálogos
realizados nas salas de bate-papo virtuais, para mostrar algum tipo de aprovação ou
reprovação em relação a alguma idéia. No exemplo, Sabrina o usou com o intuito de
deixar claro para Rose que aprovou seu conselho (
- linha 93).
Logo em seguida, Rose se auto-posiciona deliberadamente para responder à
pergunta de Sabrina, desviando o foco do assunto da conversa ao se reportar a uma
suposta dificuldade sua com uma das disciplinas da escola (“na mesma! tô toda
enrolada na escola, matemática, não entra na cabeça!!! – linhas 96 e 97). Isso, de uma
certa forma, parece ter gerado uma frustração em Sabrina, que se auto-posiciona
deliberadamente para proferir apenas uma atitude responsiva de repulsa em relação à
fala anterior de Rose e de encerramento do assunto (“ai, fala sério” – linha 98).
Contudo, analisando o posicionamento discursivo de Rose em relação a sua
amiga, podemos observar aspectos que a constroem sócio-interacionalmente como
uma menina, como no momento em que ela faz uso de duas pistas de
contextualização: dois vocábulos marcados com a marca lingüística de gênero a, com o
intuito de enfatizar sua construção social de gênero como uma menina (“tô toda
enrolada na escola” – linha 07). Isso, de fato, contribui para a corroborar a idéia de que,
no ciberespaço, os sujeitos estão envolvidos em “formas de interação social em que as
‘palavras’ são sempre manifestamente componentes de práticas sociais com intenções
e valores relacionados com papéis, identidades e formas de produção” (LANKSHEAR,
C. & KNOBEL, 1997, p. 158 – Ver seção 5.2).
152
O uso da marca de gênero “a”, no entanto, passa a ser um cuidado constante
para o qual Rose deve atentar sempre que estiver interagindo em práticas de
letramento na Internet com alguém para quem queira ratificar seu posicionamento como
uma menina, visto que o não uso dessa marca de feminino em seu discurso poderia até
desfazer sua construção social como tal.
Um segundo aspecto que legitima sua constituição identitária de gênero se
coaduna com reconhecimento da alteridade, já que é a partir do outro que construímos
quem somos (BAKHTIN, 1981; FAIRCLOUGH, 1992 – Ver seção 2.2). No excerto, o
outro, representado por Sabrina, usa o vocábulo “amiga” (linhas 02 e 04) para se referir
a Rose, o que também ajuda a ratificar a idéia de que Sabrina, de fato, a constrói sócio-
discursivamente como uma menina.
Pude notar ainda que, muito embora a interação seja entre duas amigas (Rose e
Sabrina), parece existir, de fato, uma relação assimétrica de poder entre elas. Isso se
torna evidente na distribuição irregular de turno entre os interactantes, em que Sabrina
é quem parece determinar o limite do seu turno e o momento de dar voz a Rose, o que
se percebe por meio das próprias tomadas de posicionamentos discursivos (auto-
posicionamentos deliberados e posicionamentos deliberados do outro) que, em geral,
são realizadas por Sabrina. Tal constatação parece encontrar respaldo no fato de elas
estarem tratando de um assunto sobre o qual Rose não se sente tão à vontade para
discorrer, o que faz com que ela assuma uma posição passiva em relação à Sabrina.
Nesse sentido, podemos compreender o poder como o meio através do qual é possível
levar o sujeito ao enaltecimento ou mesmo à subordinação discursiva, como parece ser
o caso de Rose, dentro de rituais sociais nos quais nós, sujeitos, somos constituídos,
153
com base nas relações de poder nas quais nos engajamos. (FOUCAULT, 1979 – Ver
seção 2.3).
No excerto 5, Rose, em uma outra conversa, discute com Sabrina a respeito de
uma amiga em comum (Rê), comentando sobre fotos de uma festa em que essa amiga
esteve, a roupa que usou e um suposto namorado com quem esteve na festa.
Excerto 5: ROSE E SABRINA (outra conversa)
“ela me disse que ele era só ficante. mas se sou ela ficava direto com ele!!!”
(99) ROSE – ai, a Rê me mostrou as fotos da festa da prima dela. vc viu?
(100) SABRINA – vi... que vestido era aquele!!!
(101) ROSE – um verde mto lindo com decotão nas costas. arrasou ela!!!
(102) SABRINA – eh as fotos ficaram ótimas...
(103) ROSE – ela ficou mto linda nas fotos. vc viu a irmã dela? bonita tb, né?
(104) SABRINA – é irmã dela? nem sabia q ela tinha irmã! Ah:: vc conhece ela melhor!
(105) ROSE – é sim. mas naum da nem pra finjir. elas são igualzinhas!!!
(106) SABRINA – eu só vi as fotos mas ainda naum falei com ela da festa.
(107) ROSE – ai ela disse q foi ótima. deu tudo certo. e o namorado dela? achei
(108) bonitinho ele. q vc achou?
(109) SABRINA – mto fofo ele. mas é namorado ou ficante dela?
(110) ROSE – ela me disse que ele era só ficante. mas se sou ela ficava direto
(111) com ele!!!
Neste excerto, os diálogos são mais distribuídos, havendo uma alternância maior
em relação ao excerto anterior na troca de turnos entre os interactantes. Contudo,
percebe-se que Rose apresenta uma participação mais expressiva na interação em
154
virtude do seu provável grau maior de amizade com Rê, o que Sabina deixa
transparecer no seu discurso (“Ah:: vc conhece ela melhor!” – linha 104).
O excerto se inicia com Rose, que assume um posicionamento de primeira
ordem ao perguntar a Sabrina acerca das fotos de uma festa da Rê, uma amiga virtual
que elas têm em comum (linha 99). Sabrina, então, toma um posicionamento deliberado
do outro para elogiar o vestido que Rê estava usando na festa (“que vestido era
aquele!!!” – linha 100), que, por sua vez, chamou a atenção de Rose, que, do mesmo
modo, se posiciona deliberadamente em relação à Rê ao buscar descrever com
detalhes o seu vestido (“um verde mto lindo com decotão nas costas. arrasou ela!!!” –
linha 101).
É possível notar que Rose, ao fazer isso, constrói sua identidade social como
uma menina, até de forma mais evidente que no primeiro excerto, por meio dos itens
lexicais dos quais faz uso em seu discurso (“decotão” e “arrasou” – linha 101), que,
numa prática de letramento dentro de uma visão essencialista, com a qual Rose parece
lidar muito bem, contribuem para corroborar sua constituição identitária como tal, uma
vez que tais itens lexicais, na concepção do senso-comum, seriam típicos do discurso
das mulheres. Nesse sentido, a meu ver, pode-se considerar que Rose estaria usando
tais pistas de contextualização lingüísticas de forma intencional com o intuito de ser, de
fato, reconhecida como uma menina no ciberespaço.
As interactantes, então, assumem, logo em seguida (linhas 103 a 105), um
posicionamento deliberado do outro em relação à irmã de Rê, de quem Rose parece,
de fato, ser uma amiga mais íntima (“é irmã dela? nem sabia q ela tinha irmã! Ah:: vc
conhece ela melhor!” – linha 104). Rose, então, se posiciona deliberadamente para
mencionar que a festa tinha sido um sucesso e para se referir a um suposto namorado
155
de Rê, que apareceu nas fotos (“ai ela disse q foi ótima. deu tudo certo. e o namorado
dela? achei bonitinho ele. q vc achou?” – linhas 107 e 108).
Nota-se, nesta parte, que Rose estaria se construindo identitariamente como
uma menina de duas maneiras distintas que, no senso comum, seriam típicas do
comportamento das mulheres: primeiramente, por meio do uso do sufixo diminutivo
“inho” em “bonitinho” (linha 108), que indexicaliza lingüisticamente o discurso “feminino”;
e na sua própria atitude de elogiar a beleza de um menino, o namorado da Rê, o que
poderia sinalizar seu interesse, como menina, por pessoas do “sexo oposto” (“achei
bonitinho ele” – linha 108).
Sabrina, por sua vez, depois de se posicionar deliberadamente em relação ao
suposto namorado de Rê, toma um posicionamento de primeira ordem para questionar
Rose sobre o tipo de relação que Rê teria com ele (“mto fofo ele. mas é namorado ou
ficante dela?” – linha 109). Rose, então, assume dois tipos de posicionamentos: em
primeiro lugar, ela se posiciona deliberadamente no que diz respeito ao menino com
quem Rê estava na festa para dizer a Sabrina que, segundo Rê, ele não seria um
namorado sério (“ela me disse que ele era só ficante” – linha 110); e, logo em seguida,
assume um auto-posicionamento deliberado para expressar sua opinião ao ponderar
que se estivesse no lugar da sua amiga Rê ficaria com ele (“mas se sou ela ficava
direto com ele!!!” – linha 111).
No final deste excerto, portanto, ao assumir tais posicionamentos, Rose, de
forma ainda mais contundente, parece querer se posicionar sócio-interacionalmente
como uma menina, o que, a meu ver, contribui para construir Rose como alguém que,
de fato, se interessa por meninos e, por conseguinte, ajuda a ratificar, perante Sabrina,
156
sua identidade social de gênero (uma menina), que vai sendo co-construída
discursivamente ao longo da relação dialógica entre ambos os interactantes.
Sob essa perspectiva, parece-me coerente a proposição de que cada um dos
sujeitos neste excerto (Rose e Sabrina) co-constroem uma identidade social própria no
espaço discursivo virtual, no momento da interação, que faz com que seja reconhecida
e avaliada pelo outro, na comunidade de prática da qual estão participando, como um
certo tipo de pessoa e não outra, o que se torna bastante evidente na presente análise.
Nesse sentido, Rose, ao interagir com Sabrina na Internet, não está, portanto, somente
agindo como autor do seu texto, mas também, e principalmente, de si mesma
(TURKLE, 1996, p.157 – Ver seção 5.2).
No excerto a seguir, Rose e Rê conversam sobre o menino que Rê conheceu na
festa da sua prima. Rose, então, a incentiva a continuar saindo com ele.
Excerto 6: ROSE E RÊ
“vc só vai saber se namorar com ele. tem q tentar. To com inveja de vc!!!”
(112) ROSE – Oi, Rê, td bem?
(113) – td ótimo. Vc viu as fotos da festa da minha prima?
(114) ROSE – que vestido verde lindo era aquele que vc tava usando!!!
(115) – Aí, gostou? Arrasei
. Gostei tb do decote.
(116) ROSE – aí, era lindo mesmo!!! Mas me conta do gatinho da festa!!!
(117) – vc viu ele. q gatinho lindo!
(118) ROSE – vi, mto fofo ele. me conta é namorado ou ficante?
(119) – a gente ta começando a namorar. confesso q to
por ele!!!
(120) ROSE – que lindo!!! Vc e ele formam um casal lindo!!!
157
(121) – vc acha? Eu to gostando dele mas ach q nam vai dar certo. Ah, não sei se
(122) ele gosta de mim.
(123) ROSE – vc só vai saber se namorar com ele. tem q tentar.
(124) – é vc tem razão acho q vou tentar. e vc ta com alguém?
(125) ROSE – to solteriiiiiisima!!! os carinhas que conheço são td chatos.
(126) – não ta nem ficando?
(127) ROSE – fiquei com um mas não gostei. ele é bonitinho mas mto chato. Me
(128) dava
(129) – vc é mto engraçada, mas vc vai encontrar alguém pra vc. E vc vai ficar
(130)
por ele tb.
(131) ROSE – ai tomara!!! mas tem que ser um gatinho que vale a pena, né?
(132) – rô, é ele no cel. depois a gente se fala. Te adoro
(133) ROSE – eu tb
A interação deste excerto é iniciada por Rê, que toma um posicionamento de
primeira ordem para perguntar a Rose se ela viu as fotos da festa da sua prima (linha
113). Rose, então, assume um posicionamento deliberado do outro para elogiar o
vestido que Rê estava usando na festa (“que vestido verde lindo era aquele que vc tava
usando!!!” – linha 114). Rê, por sua vez, se auto-posiciona deliberadamente para
mostrar seu contentamento ao ter usado o vestido, o que se verifica por meio de duas
pistas de contextualização: item lexical “Arrasei” (linha 115) e do emoticon expressando
alegria (
- linha 115 – Ver Anexo 4).
Em seguida, Rose toma um posicionamento de primeira ordem para introduzir
um novo assunto: o menino da festa no qual Rê ficou interessada (“Mas me conta do
gatinho da festa!!!” – linha 116). Nesse momento, então, ambas se posicionam
158
deliberadamente em relação ao menino para elogiá-lo (linhas 116, 117 e 118). É
possível perceber que, ao se posicionar dessa maneira, Rose estaria se construindo
identitariamente como uma menina ao fazer uso das escolhas lexicais “gatinho” e “fofo”
(linhas 116 e 118, respectivamente), para se referir ao menino, uma vez que tais
escolhas, dentro de uma visão essencialista do senso comum, seriam típicas do
discurso das mulheres.
Rê, então, assume um auto-posicionamento deliberado com o objetivo de
mostrar para Rose o que sente pelo seu namorado (“confesso q to
por ele!!!” –
linha 119), marcado também pelo uso do emoticon. Rose, por sua vez, se posiciona
deliberadamente em relação aos dois (Rê e seu namorado), na tentativa de manifestar
seu apoio ao relacionamento entre eles (“que lindo!!! Vc e ele formam um casal lindo!!!”
– linha 120). Nesse momento, Rê parece se sentir insegura em relação ao seu
namorado, o que a faz duvidar se, de fato, eles poderiam ficar juntos. Isso se configura
por meio de dois posicionamentos antitéticos que ela assume: um auto-posicionamento
deliberado, para deixar claro para Rose que gosta dele (“vc acha? Eu to gostando
dele”– linha 121); e um posicionamento deliberado do outro, ao se mostrar incerta
quanto ao que seu namorado estaria sentindo por ela, o que a faz achar que o seu
relacionamento com ele não será bem sucedido (“mas ach q nam vai dar certo. Ah, não
sei se ele gosta de mim” – linha 122).
Em virtude disso, nota-se que Rose se constrói identitariamente como um tipo de
menina “conselheira” ao tomar um posicionamento de primeira ordem com o intuito de
manifestar sua opinião e apoio ao relacionamento dos dois, dizendo a Rê que deveria
insistir na relação (“vc só vai saber se namorar com ele. tem q tentar” – linha 123). Na
159
seqüência, Rê, então, se posiciona reflexivamente (posicionamento de segunda ordem)
em relação ao que Rose disse, o que a faz repensar quanto ao seu relacionamento com
o namorado (“é vc tem razão acho q vou tentar” – linha 134). Em seguida, Rê assume
um posicionamento de primeira ordem para desviar de si o foco da atenção,
questionando Rose acerca da sua vida amorosa (linha 124). Rose, então, se posiciona
deliberadamente em relação ao outro na tentativa de atribuir a razão de estar solteira
ao fato de considerar como “chatos” os meninos que disse ter conhecido (“to
solteriiiiiisima!!! os carinhas que conheço são td chatos” – linha 125).
Rê novamente toma um posicionamento de primeira ordem para indagar Rose se
ela estaria, pelo menos, saindo com alguém (“não ta nem ficando?” – linha 126). Rose,
então, assume um posicionamento deliberado do outro para se referir a um suposto
menino com quem já teria “ficado”, dizendo, porém, não ter gostado dele por considerá-
lo um “chato” (“fiquei com um mas não gostei. ele é bonitinho mas mto chato. Me dava
” – linhas 127 e 128). Rê, então, se posiciona deliberadamente em relação à Rose,
não só ao expressar uma opinião sobre ela, como também ao achar que ela encontrará
alguém por quem se apaixonará igualmente (“vc é mto engraçada, mas vc vai encontrar
alguém pra vc. E vc vai ficar
por ele tb” – linhas 129 e 130). Isso é, outrossim,
ratificado por Rose ao assumir também um posicionamento deliberado do outro para se
referir a um desejo seu de também encontrar um menino bonito e de quem ela goste
(“ai tomara!!! mas tem que ser um gatinho que vale a pena, né?” – linha 131).
É possível notar aqui que, ainda de forma mais contundente que nos excertos
anteriores, Rose constrói sua identidade social de gênero como uma menina, pois não
só sinaliza para a sua amiga seu interesse por meninos, mas também, pela primeira
160
vez, assume já ter tido um relacionamento com um. Isso, a meu ver, contribue para
corroborar a idéia de que Johnny / Rose poderia estar construindo identitariamente para
si outras masculinidades no mundo virtual para manifestar seus desejos não apenas de
“ser outras pessoas”, como também de poder se relacionar intimamente com outras
pessoas. Isso porque estou compreendendo as masculinidades, bem como a categoria
de gênero, não como entidades fixas, mas sim, segundo Connell (2001, p. 12 – Ver
seção 3.2), como algo “ativamente produzido, usando os recursos e estratégias
disponíveis num dado cenário social, que passa a existir na medida em que as pessoas
passam a agir no mundo”.
Nesse sentido, a Internet pode, conforme já mencionei, se configurar como um
“espaço libertário” para a própria experimentação, em que as pessoas podem
interpretar e atuar identidades sem que, preliminarmente, sejam questionadas sobre a
sua veracidade (LONDON, 1997 – Ver seção 5.2). Portanto, acredito que o ciberespaço
possa se tornar um meio através do qual Rose tenha a oportunidade de começar a
construir relacionamentos afetivos e amorosos, como o que foi mostrado no excerto 2
entre ela e Beto, e, com isso, poder experimentar outros modos de viver a multiplicidade
da sua experiência humana.
No excerto 7, Rose interage novamente com Rê. Dessa vez, no entanto, o
motivo da conversa gira em torno do fato de Rê achar que seu namorado não está mais
lhe dando atenção. Ela desconfia de que ele estaria a traindo com uma outra pessoa.
161
Excerto 7: ROSE E RÊ II (outra conversa)
“eu acho,assim que nem todo homem é safado. Naum sei. tem mulher mais
safada do que homem”
(134) ROSE – Oi, Rê, td bem?
(135) – Oi, ah, mais ou menos.
(136) ROSE – Por que amiga?
(137) – Ah:: Sei lá, eu e meu namorado não tamos muito bem. acho que ele naum
ta
(138) mais afim de mim.ele ta meio estranho comigo. Acho até que ele deve ta ficando
(139) com outra. Sabe como é que é homem, né! To
dele!!!
(140) ROSE – Ah, naum sei. Talvez ele esteja com algum problema.
(141) - sei qual é o problema dele!!! to morrendo de
dele.
(142) ROSE – Ah eu acho, assim que nem todo homem é safado. naum sei. tem
(143) mulher mais safada do que homem.
(144) – é, eu tenho uma amiga que, putz, é muito galinha, meu!!! Mas ele
(145) também é, ta?
(146) ROSE – mas como vc pode ter certeza que ele ta te traindo?
(147) – sei lá. O jeito dele. ta mt frio comigo. Assim, já naum ta mais afim de
(148) sair muito, po nem me chama mais pro cinema, tomar um sorvete...
(149) ROSE – ah se eu fosse vc eu conversava com ele. fala que a situação ta chata
(150) que vc quer mais atenção. fala com ele, rê!!!
(151) – ta bom. vou tentar, amiga!!!
O excerto se inicia com Rê se auto-posicionando deliberadamente para mostrar
para Rose que não está muito bem (“ah, mais ou menos” – linha 135). Rose, então,
assume um posicionamento de primeira ordem para interpelar Rê sobre o motivo pelo
162
qual ela estaria se sentindo assim (linha 137). Como explicação, Rê se posiciona
deliberadamente em relação ao seu namorado, dizendo que ele parece não estar mais
interessado nela (“acho que ele naum ta mais afim de mim. ele ta meio estranho
comigo” – linhas 137 e 138). Ela ainda acredita que ele poderia estar a traindo com uma
outra menina e atribui isso ao fato de ele ser homem (“Acho até que ele deve ta ficando
com outra. Sabe como é que é homem, né!” – linhas 138 e 139). Percebe-se que, ao
afirmar isso, Rê se posiciona moralmente (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 – Ver
seção 2.4) ao ecoar um discurso legitimado socialmente que imputa aos homens certos
comportamentos (o de traidor, por exemplo) como sendo algo inerente a uma suposta
natureza masculina.
Rose, por outro lado, busca desmistificar tal construto, se posicionando
deliberadamente a respeito do namorado da Rê, ao ponderar que o seu comportamento
de indiferença em relação a ela poderia estar ocorrendo em virtude de algum problema
pelo qual ele estaria passando (“Ah, naum sei. Talvez ele esteja com algum problema”
linha 140). Logo abaixo, Rose ainda ratifica, de forma mais contundente, seu discurso
anti-essencialista ao afirmar que nem todos os homens seriam “safados” e que há
mulheres que seriam ainda mais “safadas” do que muitos homens” (linhas 142 e 143).
Como uma das identidades sociais que Rose assume no mundo real é a de um tipo de
homem que não se enquadraria no esteriótipo de masculinidade hegemônica
apresentado por Rê, acredito que essa poderia ser uma das razões pelas quais Rose
tenha tentado desconstruir o discurso essencialista de sua amiga.
Em seguida, percebe-se que Rê se posiciona reflexivamente (posicionamento de
segunda ordem), ainda que de forma exígua, em relação à asserção de Rose ao fazer
uso de uma pista de contextualização, a forma verbal “é” (linha 144), indicando sua
163
concordância com o que foi dito anteriormente; e ao reconhecer que tem uma amiga
que se enquadraria na categoria das mulheres “safadas” que Rose descreveu (“é, eu
tenho uma amiga que, putz, é muito galinha, meu!!!” – linha 144), embora ela ainda se
posicione deliberadamente em relação ao seu namorado para ratificar sua opinião de
desconfiança a respeito dele (“Mas ele também é, ta?” – linha 145).
Na tentativa de amenizar a situação, Rose assume um posicionamento de
primeira ordem com o intuito de questionar Rê acerca da sua certeza em relação à
suposta traição do seu namorado (linha 146). Rê, então, se posiciona deliberadamente
em relação a ele ao buscar encontrar respaldo para as suas suspeitas de que ele não
estaria mais interessado nela, com base no seu comportamento para com ela (“sei lá. O
jeito dele. ta mt frio comigo. Assim, já naum ta mais afim de sair muito, po nem me
chama mais pro cinema, tomar um sorvete...” – linhas 147 e 148). Por fim, Rose toma
um auto-posicionamento deliberado para expressar sua opinião sobre o assunto ao
tentar se construir identitariamente na posição da sua amiga Rê, na tentativa de
convencê-la a conversar com ele sobre os problemas pelos quais estão passando (“ah
se eu fosse vc eu conversava com ele. fala que a situação ta chata que vc quer mais
atenção. fala com ele, rê!!!” – linhas 149 e 150).
É possível notar que Rose, ao assumir tal posicionamento, estaria, com isso,
solidarizando-se com a sua amiga, com quem compartilha assuntos que dizem respeito
à sua vida pessoal. Nesse sentido, podemos afirmar que tal confiança atribuída à Rose
se dá em virtude do fato de ela ser realmente reconhecida pelo outro (Rê) como uma
menina. Por isso, podemos dizer que, de fato, é por meio da presença do outro com
quem interagimos que nos faz ser quem, como e por que somos através do nosso
envolvimento no discurso (MOITA LOPES, 2003 – Ver seção 2.2). Isso nos possibilita
164
inferir que as identidades sociais dos sujeitos estão constantemente sendo
(re)inventadas para si e para o outro, construindo-se, dessa forma, a própria realidade
por meio do discurso.
O excerto 8 é uma interação entre Rose e um de seus amigos virtuais mais
antigos: André. O assunto da conversa se baseia numa nova namorada de André.
Rose, então o chama de “machista” por ele dizer que não contaria sobre a sua
intimidade com a namorada para uma mulher.
Excerto 8: ROSE E ANDRÉ
“ai, vc ta sendo machista!!! só porque eu sou mulher vc naum quer falar!”
(152) ANDRÉ – oi, rose, como vc ta?
(153) ROSE – tb bom. q vc conta de novo?
(154) ANDRÉ – tenho uma nova pra contar. to namorando agora
(155) ROSE – serio!!! vc sempre foi tão galinha!!!
(156) ANDRÉ – era nada, tu q pensa assim!
(157) ROSE – ta bom!!! vc nunca para com ninguém!!!
(158) ANDRÉ – q isso! eu sou um anjinho!!!
(159) ROSE – ai vcs são tudo igual mesmo!!! nunca admitem!!
(160) ANDRÉ – vc sabe q eu sou maneiro!
(161) ROSE – mas e ai e ela como é?
(162) ANDRÉ – ela é massa, pô acho ela linda e maneira, tem um papo maneiro, mas
(163) naum vo te falar do resto porque tu é mulher!!!!!
(164) ROSE – ai nada a ver!!! ai, fala aí, já rolou coisa seria?
(165) ANDRÉ – Ah naum rolou nada ainda de serio!!!
(166) ROSE – aha!!! Acredito. vc sabe q eu sou mto curiosa, fala logo!!!
(167) ANDRÉ – ah q tu quer sabe os detalhes? Naum te conto, ah tu e mulher!!!
(168) ROSE – ai, vc ta sendo machista!!! Só porque eu sou mulher vc naum quer
165
(169) falar!
(170) ANDRÉ – é, ta certo nada a ver mesmo!!! então quando rolar o machista te
(171) conta!! vou sair amiga, bjo.
(172) ROSE – me conta mesmo! to esperando, bjo e sorte com a nova lindinhaaa!!
O excerto 8 se inicia propriamente com André se auto-posicionando
deliberadamente para dizer a Rose que está namorando (“tenho uma nova pra contar.
to namorando agora” – linha 154). Rose, então, toma um posicionamento deliberado do
outro, em que ela se mostra surpresa por não achar que André seria um tipo de homem
que teria um relacionamento mais sério com alguém (“serio!!! vc sempre foi tão
galinha!!!” – linha 155). Eles, então, se alternam nos turnos, em que André se auto-
posiciona deliberadamente para se defender e afirmar que sempre foi sério (linhas 156,
158 e 160), e Rose, por outro lado, continua se posicionando deliberadamente em
relação a ele com o intuito de confirmar sua opinião de que ele não seria um homem
sério (linhas 155 e 157).
Ao considerar André como um tipo de homem que não admite ser “galinha”,
Rose assume um posicionamento moral na tentativa de enquadrá-lo num esteriótipo de
masculinidade hegemônica, portanto socialmente legitimado pela sociedade, que
nunca admite seus atos (“ai vcs são tudo igual mesmo!!! nunca admitem!!” – linha 159).
Ao fazer isso, Rose, a meu ver, estaria sendo contraditória em relação à sua própria
condição de estar construindo para si uma outra identidade social de gênero, uma vez
que, no mundo real, ela se constrói, como já foi mencionado neste capítulo de análise,
como um tipo de menino que não se encaixaria no padrão hegemônico de
masculinidade. Contudo, acredito que tal discurso, que busca tentar uniformizar o
comportamento do homem, se deve também em função do fato de ela estar se
166
construindo identitariamente, no mundo virtual, como uma menina que se enquadraria
num padrão de feminilidade hegemônica, o que poderia, de uma certa forma, justificar
sua reprodução de discursos essencialistas.
Em seguida, Rose toma um posicionamento de primeira ordem para perguntar a
André a respeito de sua namorada. Ele, então, se posiciona deliberadamente em
relação a sua namorada, fazendo elogios sobre ela (“ela é massa, pô acho ela linda e
maneira, tem um papo maneiro” – linha 162). Ainda no seu turno, André se posiciona
moralmente ao se recusar querer contar para Rose sobre sua vida sexual, por ela ser
uma mulher (“mas naum vo te falar do resto porque tu é mulher!!!!!” – linha 162). Cabe
aqui ressaltar que André se posiciona dessa maneira por legitimar um construto
cristalizado no senso comum de que homens e mulheres não deveriam confidenciar
entre si assuntos relativos a sua vida amorosa ou sexual, por exemplo.
Na seqüência, Rose se auto-posiciona deliberadamente na tentativa de
desmistificar tal construto (“ai nada a ver!!!” – linha 164), e, ainda nesse turno, toma um
posicionamento de primeira ordem com o intuito de buscar saber sobre o
relacionamento íntimo de André com sua namorada (“ai, fala aí, já rolou coisa seria?–
linha 164). Ele, então, assume um auto-posicionamento deliberado para confirmar que
ainda não houve algo mais sério entre os dois (“Ah naum rolou nada ainda de serio!!!” –
linha 165). Rose, no entanto, se mostra um tanto incrédula acerca disso, o que se
percebe por meio do uso de duas pistas de contextualização: o marcador
conversacional “aha!!!” e o item lexical “Acredito” (linha 166), que contribuem para
imprimir um tom irônico ao seu discurso. Rose ainda se auto-posiciona deliberadamente
para insistir que ele fale a respeito do assunto, lembrando-o de que ela é uma pessoa
muito curiosa (“aha!!! Acredito vc sabe q eu sou mto curiosa, fala logo!!! – linha 166).
167
André, então, continua se posicionando moralmente, ratificando que não poderia
contar para Rose detalhes de sua vida sexual com sua namorada por ela ser uma
mulher (“ah q tu quer sabe os detalhes? Naum te conto, ah tu e mulher!!!” – linha 167).
Rose, novamente, busca desconstruir o discurso hegemônico de André ao afirmar que
ele estaria sendo “machista” por pensar assim (“ai, vc ta sendo machista!!! Só porque
eu sou mulher vc naum quer falar!” – linha 168 e 169). Isso faz com que André encerre
seu turno assumindo um posicionamento reflexivo (de segunda ordem) ao reconhecer
que, de fato, não haveria problema algum em conversar com sua amiga a respeito do
seu relacionamento com sua namorada (“é, ta certo nada a ver mesmo!!! então quando
rolar o machista te conta!! vou sair amiga, bjo” – linhas 170 e 171).
Nesse sentido, é possível compreender que o posicionamento moral, assumido
tanto por Rose quanto por André, se constitui como um saber, e, como todos os
saberes socialmente legitimados, não são universais, mas se instituem enquanto
verdades, ou melhor, como “regimes de verdade” num processo que produz poder, cuja
relatividade não pode ser validada em nenhuma instância metafísica ou exterior à
realidade social (FOUCAULT, 1981 – Ver seção 2.3). Em outras palavras, esses
saberes socialmente construídos, que se instituem enquanto verdadeiros (num sentido
não absoluto, mas relativo), estão imbricados em relações de poder particulares, como
na prática de letramento digital na qual Rose e André se engajam, que representam a
instrumentalização do poder associado aos saberes que legitimam essa prática.
E, ao construírem identidades sociais por meio desses “regimes de verdade”,
presentes na interação que estabelecem entre si, tanto Rose quanto André estão,
outrossim, assumindo algumas de suas características mais marcantes, dentre elas o
próprio caráter contraditório através do qual as identidades sociais também se
168
constituem. Tal concepção se coaduna com a base epistemológica com a qual estou
operando no presente estudo, que compreende as identidades sociais dentro de uma
visão socioconstrucionista (MOITA LOPES, 2003 – Ver seção 2.2), na qual as relações
de sujeitos e de sentidos (nas quais as identidades sociais são constituídas) e seus
efeitos podem ser múltiplos e variados, e, portanto, heterogêneos e contraditórios,
constituintes das práticas discursivas nas quais atuamos (ORLANDI, 2001).
No último excerto da presente análise dos dados, Rose interage com uma de
suas amigas virtuais: Aline. Na conversa, elas tratam do comportamento de Aline em
relação ao seu namorado e de do fim do relacionamento de um amigo seu que é “gay”.
Excerto 9: ROSE E ALINE
“ai eles tiveram uma briga e vc sabe como é “gay” quando brigam é porque a
coisa ta feia”
(173) ROSE - Oi, Aline, td bem?
(174) ALINE – td bem. meu namorado é q ta
comigo
(175) ROSE - porque?
(176) ALINE – ah vc sabe q eu naum paro em casa. saio direto com as minhas
(177) amigas. Se tiver festinha to em todas!!! e ele fica naum gosta
(178) ROSE – mas bem q ele tem razão, né!!! vc apronta!!!
(179) ALINE – ai ele é legal, amiga adoro ele mas vc sabe como é (rsrs...)?
(180) ROSE – mas vc gosta dele?
(181) ALINE – ai eu gosto mas naum gosto de me sentir presa, sabe?
(182) ROSE – e vc fica com outros carinhas?
(183) ALINE - a já fiquei e ele nem sabe de nada!!!
(184) ROSE – ai, amiga, me desculpa ach q vc ta errada. se vc gosta dele naum
(185) da só pra ficar saindo assim muito menos ficando com outros carinhas.
169
(186) ALINEnossa amiga, naum briga!!!! Mas ach q vc tem razão. Vou pegar
(187) leve!!!
(188) ROSE – ta bom.
(189) ALINE –ai, falando nisso..... sabe aquele meu amigo “gay” q tem
(190) falei, o Luizinho. O namorado dele terminou com ele. ele ta arrasado!!!!
(191) ROSE – me conta como foi!!
(192) ALINE – ai eles tiveram uma briga e vc sabe como é “gay” quando brigam é
(193) porque a coisa ta feia. Foi o seguinte. meu amigo me contou q e viram o
(194) namorado dele saindo com outro cara. ai já vc viu. Po e agente até estranha
(195) porque vc sabe q “gay” é assim bem mais certinho, naum fica traindo o parceiro.
(196) ROSE – é verdade acho q é mais difícil de “gay” trair, mesmo. Mas ele ta bem?
(197) ALINE – agora ele ta até melhor mais ele ainda gosta muito dele.
(198) ROSE – mas ele vai ficar bem.
No começo do excerto 9, o foco do assunto gira em torno da relação entre Aline
e seu namorado. Aline inicia seu turno se posicionando deliberadamente em relação ao
seu namorado para dizer que ele estaria furioso com ela (“meu namorado é q ta
comigo” – linha 174). Em seguida, ela assume um auto-posicionamento deliberado para
explicar a Rose que o motivo pelo qual ele estaria assim com ela se deve ao seu
comportamento, do qual ele não gosta (“ah vc sabe q eu naum paro em casa. saio
direto com as minhas amigas. Se tiver festinha to em todas!!! e ele fica naum gosta”
linhas 176 e 177). Rose, então, se posiciona deliberadamente em relação à Aline ao
afirmar que seu namorado teria, de fato, razões para estar com raiva dela (“mas bem q
ele tem razão, né!!! vc apronta!!!” – linha 178).
Logo em seguida, Aline toma um posicionamento deliberado do outro para se
referir ao seu namorado, em que ela se mostra contraditória quanto aos seus desejos:
por um lado, reconhece que ele é “legal” e que o “adora”, mas, por outro, deixa
170
transparecer, de forma até irônica (por meio da pista de contextualização “(rsrs...)” –
linha 179) ser um tipo de pessoa que teria dificuldades de construir vínculos amorosos
muito sérios (linha 179). Rose, então, assume um posicionamento de primeira ordem
com o intuito de questioná-la acerca do que ela sentiria por ele (linha 180). E Aline,
mesmo reconhecendo que gosta do seu namorado, se auto-posiciona deliberadamente
para ratificar sua idéia de que não gosta de se sentir “presa” (linha 181).
Ainda na função de questionadora, Rose assume novamente um posicionamento
de primeira ordem com o fito de saber se Aline já teria, alguma vez, “ficado” com outros
meninos (linha 182). Aline, então, se auto-posiciona deliberadamente para confessar a
sua amiga que já fez isso e que o seu namorado sequer tem idéia disso (“a já fiquei e
ele nem sabe de nada!!!” – linha 183). Ao saber disso, Rose toma um posicionamento
deliberado do outro para mostrar sua opinião de reprovação em relação às atitudes da
sua amiga (“ai, amiga, me desculpa ach q vc ta errada. se vc gosta dele naum da só pra
ficar saindo assim muito menos ficando com outros carinhas” – linha 184 e 185). Em
face disso, Aline se posiciona reflexivamente (posicionamento de segunda ordem), em
que, depois de ter tido suas atitudes questionadas por Rose, ela passa a reconhecer as
suas críticas e se posiciona a seu favor (“nossa amiga, naum briga!!!! Mas ach q vc tem
razão. Vou pegar leve!!!” – linhas 186 e 187).
Contudo, se nos dispusermos a olhar para o contexto sócio-histórico mais amplo,
perceberemos que o comportamento de Aline talvez não pareça ser tão contraditório,
uma vez que os relacionamentos amorosos, sobretudo para os mais jovens, tendem a
se tornar na contemporaneidade, segundo Bauman (2005, p. 70 – Ver seção 2.1), um
“modo consumista”. Dentro dessa concepção de relacionamento, deseja-se que a
“satisfação precise ser, deva ser, seja de qualquer forma instantânea, enquanto o valor
171
exclusivo, a única “utilidade”, dos objetos é a sua capacidade de proporcionar
satisfação”.
Sob essa perspectiva, ainda podemos afirmar que o embate discursivo gerado
entre Rose e Aline se deve ao fato de elas estarem construindo para si identidades
sociais diferentes, mesmo sendo ambas meninas: Rose, se construindo
identitariamente como uma menina com ideais mais conservadores; e Aline, por sua
vez, com uma visão mais condizente com o ideal de relacionamento da juventude
global do mundo atual. Nesse sentido, devemos, pois, pensar as relações de gênero e,
em particular, as feminilidades como realizações plurais de categorias construídas
socialmente e, por isso, sempre abertas a re-significações (BUTLER, 2003 – Ver seção
3.3).
Ao tomar o turno, Aline muda o foco do assunto para conversar sobre o
relacionamento de um amigo “gay”: o Luizinho. Ela, então, assume um posicionamento
deliberado do outro, em que afirma que Luizinho, depois de ter sido deixado por seu
namorado, ficou, segundo ela, muito “arrasado” (“ai, falando nisso..... sabe aquele meu
amigo “gay” q tem falei, o Luizinho. O namorado dele terminou com ele. ele ta
arrasado!!!!” – linhas 189 e 190). Na seqüência, Aline continua se posicionando
deliberadamente em relação ao seu amigo para contar para Rose sobre o motivo pelo
qual o casal teria terminado o relacionamento (linhas 192 a 195).
Ainda no seu turno, no entanto, Aline assume um posicionamento moral, em que
ela, ao se referir ao seu amigo “gay”, toma como base aspectos da vida social,
supostamente cristalizados e legitimados socialmente, como o de que todo casal “gay”
só brigaria quando o problema fosse realmente sério, e o de que os “gays” não trairiam
seus parceiros (“vc sabe como é “gay” quando brigam é porque a coisa ta feia”. Po e
172
agente até estranha porque vc sabe q “gay” é assim bem mais certinho, naum fica
traindo o parceiro” – linhas 192 a 195). Rose, do mesmo modo, se posiciona
moralmente ao corroborar tal asserção de que os “gays” seriam supostamente mais
fiéis aos seus parceiros (“é verdade acho q é mais difícil de “gay” trair, mesmo” – linha
196).
No tocante à parte final deste excerto, é possível perceber que, se por um lado
Rose busca construir para si outras identidades ao transitar por outros contextos e
discursos, o que a possibilitaria compreender o quanto as identidades sociais podem
ser múltiplas e heterogêneas, por outro, ela, junto com sua amiga, ainda reverbera
discursos essencialistas que tentam, de outro modo, atribuir às identidades sociais um
caráter fixo e homogêneo. Isso nos conduz a afirmar que neste excerto, assim como no
anterior, Rose se constitui igualmente por meio de discursos contraditórios que ora
buscam desestabilizar determinados “regimes de verdade” (FOUCAULT, 1981 – Ver
seção 2.3), ora os reforçam como verdades inquestionáveis.
8.2 Respondendo às questões de pesquisa
Com base na análise das seqüências da entrevista e dos excertos extraídos das
conversas nas salas de bate-papo, apresentados na seção anterior, e nos pressupostos
teóricos explicitados ao longo da presente pesquisa, procuro a seguir destacar os
pontos mais relevantes do processo de interpretação, com o fito de responder às
perguntas que norteiam esta investigação, a saber:
173
1) Como o sujeito de pesquisa (re)constrói sócio-discursivamente sua
identidade social de gênero ao participar de conversas em salas de bate-papo no
ciberespaço?
2) Como as práticas de letramento digital com as quais ele se envolve
promovem outras possibilidades de viver sua experiência identitária de gênero?
Ao analisar os dois corpora desta pesquisa, busquei investigar o modo como
Johnny (re)constrói sua identidade social de gênero com base nos seus
posicionamentos discursivos e nos significados que co-constrói comigo (na entrevista –
Ver subseção 8.1.1) e com os seus amigos(as) virtuais (nas salas de bate-papo do
ciberespaço – Ver subseção 8.1.2).
Desse modo, com o objetivo de responder à primeira questão de pesquisa, pude
perceber que Johnny / Rose se posiciona de várias formas no processo de sua
construção identitária. Como parto do princípio de que a análise dos posicionamentos
discursivos propicia acesso aos processos de construção de nossas identidades sociais
(Ver seção 2.4), entendo que os múltiplos e variados posicionamentos de Johnny
possibilitaram a compreensão dos processos de (re) construção de sua identidade
social de gênero. Não houve, portanto, a construção de uma identidade homogênea e
unificada, ou seja, Johnny / Rose não se construiu como homem ou como mulher da
mesma forma em todos os seus posicionamentos discursivos. Ao contrário, se
constituiu sócio-discursivamente por meio de idéias múltiplas e, por vezes,
contraditórias acerca do que é ser homem ou ser mulher.
Essas contradições, que, a meu ver, se mostraram muitas vezes antagônicas,
ocorreram com uma certa freqüência, tanto nas seqüências da entrevista quanto nos
excertos relativos às conversas das salas de bate-papo do ciberespaço. Isso parece
174
revelar que Johnny, de fato, conhece os pressupostos que caracterizam a
masculinidade e feminilidade hegemônicas e aqueles que, por outro lado, indexicalizam
outras formas do que significa ser homem ou ser mulher que não são legitimadas
socialmente pelos regimes de verdade tradicionais (Ver seção 2.3).
Quanto à entrevista, pude perceber, nas seqüências 1 e 3, por exemplo, que
Johnny, por um lado, demonstra um grande entusiasmo em relação à possibilidade de
poder construir outras identidades sociais para si no mundo virtual. Todavia, ao ser
interpelado por mim sobre a possibilidade das pessoas com as quais interage estarem
igualmente construindo outras identidades e, portanto, estarem fingindo ser outras
pessoas, ele parece, de uma certa forma, duvidar de que isso possa ser possível (Ver
seqüência 1).
Na seqüência 2 da entrevista, por exemplo, Johnny se constrói discursivamente
como alguém que não se enquadraria no padrão da masculinidade hegemônica por
meio de discursos não-hegemônicos (CONNELL, 2000 – Ver seção 3.2), não só ao
ponderar que o fato de uma pessoa não ter uma namorada não faz dessa pessoa um
“gay”, como também ao se posicionar veementemente contra as pessoas que não
respeitam a sexualidade dos outros. Contudo, ainda na seqüência 2, mesmo
reconhecendo que seja possível se construir através de outras formas de
masculinidade, como é o seu próprio caso, Johnny admite que ser chamado de “gay”
pelos meninos da sua turma o incomoda. Isso porque essa identidade social de “gay”
talvez o faça se sentir estigmatizado no ambiente escolar, uma vez que os “regimes de
verdade” construídos nesse contexto, em geral, só legitimam a masculinidade
heteronormativa.
175
É importante ressaltar que é provável que esses posicionamentos de Johnny na
entrevista tenham ocorrido dessa maneira devido à minha presença como homem que
ele vê como heterossexual na interação. Acredito que se a pesquisa tivesse sido
conduzida por uma mulher heterossexual, por exemplo, seus posicionamentos
possivelmente seriam outros. Em outras palavras, a minha presença como pesquisador
e interlocutor homem heterossexual pode ter influenciado o modo como ele
(re)construiu sua identidade social de gênero e sua masculinidade.
No que diz respeito aos excertos analisados, relativos às conversas nas salas de
bate-papo virtuais, Johnny / Rose parece, de fato, ter se apropriado de diversos
recursos lingüístico-discursivos (pistas de contextualização) que o construiriam
identitariamente como uma menina (usando inclusive o nome fictício Rose – Ver
seqüência 1) dentro do padrão de feminilidade hegemônica (Ver excertos 1, 3, 4, 5, 7 e
8). Tal construção identitária se torna ainda mais evidente no excerto 2, em que Rose
começa a se envolver num relacionamento heterossexual como um menino (Beto).
Muito embora Johnny / Rose, em princípio, construa para si uma identidade
social de gênero como uma menina no padrão hegemônico heteronormativo, seus
posicionamentos, por vezes, evidenciam contraditoriamente também que ele / ela não
aceita algumas das imposições discriminatórias dos padrões de masculinidade e
feminilidade hegemônicos referendados por alguns de seus amigos virtuais (Ver
excertos 8 e 9).
Percebo, por conseguinte, a construção da identidade social de Johnny / Rose
como um fato um tanto curioso, pois, de um lado, trata-se de um menino cuja
masculinidade não se enquadraria no padrão hegemônico, mas que, por outro lado, se
constrói identitariamente no ciberespaço como uma menina nos moldes do esteriótipo
176
feminino heteronormativo. Se esse caráter contraditório que as identidades sociais
podem assumir já se constitui como um fator presente no mundo real, na Internet, isso
parece se tornar uma das características mais notórias. Tal asserção nos encaminha,
portanto, para a resposta a minha segunda questão de pesquisa.
Com base na análise de todas as práticas de letramento digital com as quais o
meu sujeito de pesquisa se envolve ao interagir com as pessoas no ciberespaço, é
possível notar que este, de fato, disponibiliza múltiplas possibilidades de (re)construção
da identidade social de gênero de Johnny.
Pude perceber isso logo na entrevista, em que ele já manifesta, nas seqüências
1 e 3, que a principal razão pela qual ele prefere interagir com pessoas na Internet seria
porque este ambiente fornece àqueles que dele fazem uso um acesso quase ilimitado à
complexidade e à pura multiplicidade da experiência das subjetividades humanas
(LANKSHEAR & KNOBEL, 1997 – Ver seção 5.2). Isso porque, no ciberespaço, o fator
da presença é re-significado pela intervenção da técnica e de como o usuário manipula
suas informações pessoais e sociais, que lhe são inscritas, uma vez que a vantagem do
anonimato lhe proporciona isso (CARDOSO, 1997 – Ver seção 5.2).
É por meio das análises das conversas entre Johnny / Rose e seus amigos
virtuais que essa possibilidade de ele viver outras experiências identitárias se torna
mais notória. No excerto 3, por exemplo, Johnny, já identitariamente assumido como
Rose, se posiciona perante a Joana como uma pessoa que não só sente atração por
meninos, como também descreve para a sua amiga o esteriótipo de homem que mais
lhe interessa, o que a constrói identitariamente como uma menina. No excerto 2, isso se
torna ainda mais evidente quando Rose interage com um menino (Beto) que se mostra
interessado por ela. Ela, por sua vez, se permite envolver num jogo de sedução em que
177
Beto se auto-posiciona como o “conquistador”, posição típica da masculinidade
hegemônica, e Rose, por outro lado, numa posição relacional passiva de “conquistada”,
se construindo, portanto, como um exemplo de feminilidade hegemônica. Chamo ainda
a atenção para o excerto 6, em que Rose afirma para sua amiga Rê já ter tido um
relacionamento com um menino que, segundo ela, seria bonito mas chato (linha 127), o
que corrobora, de fato, sua construção identitária como uma menina.
Nesse sentido, a Internet pode, como apontei anteriormente, se configurar como
um lugar, antes de tudo, não discriminatório, um “espaço libertário” para a sua própria
experimentação (LONDON, 1997 – Ver seção 6.2), o que faz com que Johnny possa
interpretar identidades sem que, preliminarmente, seja questionado sobre a sua
veracidade e, por conseguinte, se sentir à vontade, sem medo do que os outros
poderiam pensar ou falar sobre ele.
E, muito embora Johnny se construa algumas vezes por meio de discursos
contraditórios acerca dos seus posicionamentos quanto à sua construção identitária,
pude perceber que as práticas de letramento digital se constituem para ele como o meio
mais importante de desestabilizar sentidos hegemônicos cristalizados acerca da
identidade social de gênero, possibilitando, com isso, a construção para si de um novo
olhar para os diferentes modos de se produzir sentido sobre as identidades sociais na
contemporaneidade.
Tendo em vista a complexidade da questão, que busca compreender o modo
como as práticas de letramento digital com as quais Johnny se envolve podem
promover outras possibilidades de (re)construção identitária do seu gênero, reconheço
que acenar com respostas definitivas e imediatas seria, no mínimo, incoerente. No
entanto, acredito veementemente que o ciberespaço seja um meio através do qual
178
Johnny, não só tenha a oportunidade de se (re)construir identitariamente de forma
múltipla, mas também, e principalmente, um lugar onde ele possa vislumbrar a
possibilidade de construir relacionamentos afetivos e amorosos, como o que foi
mostrado no excerto 2 entre ele e Beto, por exemplo, e, com isso, poder experimentar,
de forma ainda mais plena, outros modos de viver a multiplicidade da sua experiência
humana, ou seja, para além dos esteriótipos e moldes do que podemos ser e viver.
179
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente estudo, propus-me a investigar o processo de (re)construção
identitária de gênero de um menino em práticas de letramento digital do ciberespaço.
Com isso, procurei observar como seus posicionamentos relativos à sua identidade
social de gênero, tanto na entrevista quanto nas salas de bate-papo virtuais, são sócio-
discursivamente (re)construídos.
Para realizar tal investigação, realizei um estudo de caso (ver seção 6.3), com o
intuito de tentar explorar, em profundidade, um contexto e um sujeito de pesquisa
específicos. Procurei também filiar minha pesquisa a um paradigma interpretativista,
que se pauta por uma compreensão do conhecimento como “uma produção construtiva-
interpretativa” (REY, 1999, p. 37). Para dialogar com essa concepção de pesquisa,
adotei neste estudo uma visão socioconstrucionista do discurso e das identidades
sociais (MOITA LOPES, 2003), cuja base epistemológica compreende que os seres
humanos estão constantemente (re)construindo suas identidades, as identidades dos
outros e o mundo social por meio das práticas discursivas das quais participam.
Sob essa perspectiva, busquei, ao longo deste trabalho, operar com uma visão
das identidades sociais como um processo de construção social, cujo eixo central é
corroborado pelo princípio de que as relações de sujeitos e de sentidos (nas quais as
identidades sociais são constituídas) são múltiplas e variadas, isto é, são entendidas
como heterogêneas, contraditórias, e em fluxo, constituintes das práticas discursivas
nas quais atuamos (ORLANDI, 2001).
Ao tentar relacionar a questão das identidades sociais com as práticas de
letramento, filiei-me a uma concepção de letramento como prática social (Ver capítulo
180
4), portanto, “sócio-culturalmente determinada e, como tal, os significados específicos
que a escrita assume para um grupo social dependem de contextos e instituições em
que ela foi adquirida” (KLEIMAN, 1995, p. 22). Nesse sentido, as práticas de letramento
passam a ser um meio através do qual os sujeitos estabelecem e negociam relações e
identidades sociais (MOITA LOPES, 2005). Foi, então, partindo dessa visão de
letramento que situei as conversas nas salas de bate-papo virtuais como uma prática
social, na qual o sujeito de pesquisa, num processo dialógico (BAKHTIN, 1981) com
outros participantes, (re)constrói e negocia significados e identidades sociais.
Para interpretação dos dois corpora da pesquisa (Ver seção 8.1), utilizei a noção
de posicionamento discursivo (VAN LANGENHOVE & HARRÉ, 1999 – Ver seção 2.4)
como construto teórico-metodológico, por compreender, em consonância com Davies &
Harré (1990, p. 48), que, ao interagir a partir de uma posição, as pessoas estão
“trazendo para a situação particular suas histórias como um ser subjetivo, isto é, a
história de alguém que esteve em múltiplas posições e engajado em diferentes formas
de discurso”. Ainda fiz uso também do conceito de pistas de contextualização
(GUMPERZ, 1999 – Ver seção 2.4), cuja função se presta a designar quaisquer traços
nas formas lingüísticas e paralingüísticas presentes nas estruturas discursivas que
contribuem para assinalar as pressuposições contextuais do falante e que os
interlocutores interpretam. Desse modo, é possível inferir que é, portanto, por meio de
nossos posicionamentos discursivos e das pistas de contextualização das quais
fazemos uso que constituímos o mundo e nossas identidades sociais, o que ficou
bastante evidente no modo como Johnny (re)constrói sua identidade social de gênero.
Esses construtos ainda possibilitaram-me, outrossim, investigar como práticas
sociais de letramento digital (ver seção 4.2) permitem a (re)construção das identidades
181
sociais. Em minha primeira questão de pesquisa, cujo foco central era o de observar a
maneira como o meu sujeito de pesquisa (re)construía sócio-discursivamente sua
identidade social de gênero ao participar de conversas em salas de bate-papo no
ciberespaço, procurei analisar sua (re)construção identitária de gênero com base nos
posicionamentos discursivos ao interagir comigo (na entrevista – Ver subseção 7.1.1) e
com os seus amigos(as) virtuais (nas salas de bate-papo do ciberespaço – Ver
subseção 7.1.2). Pude perceber, com base na interpretação dos dados, que os
múltiplos e variados posicionamentos que ele assume constroem sócio-discursivamente
sua identidade social de gênero de maneiras diferentes nas suas interações (ver seção
7.2).
Na segunda questão de pesquisa, minha intenção era a de investigar o modo
como as práticas de letramento digital com as quais Johnny se envolve promovem
outras possibilidades de (re)construção identitária do seu gênero. Para tanto, busquei
entender como o ciberespaço fornece àqueles que dele fazem uso um acesso quase
ilimitado à complexidade e à multiplicidade da experiência das subjetividades humanas,
devido à maneira como o fator da presença é re-significado não só pela intervenção da
técnica que o ambiente virtual disponibiliza ao usuário, mas também pelo modo como
este é capaz de manipular suas informações pessoais e sociais, já que a vantagem do
anonimato lhe permite fazer isso (Ver seção 5.2).
Ao analisar os dois corpora da pesquisa, pude perceber que Johnny se constrói
por meio de alguns discursos não hegemônicos, como na seqüência 2 da entrevista,
em que ele se posiciona veementemente contra as pessoas que não respeitam a
sexualidade dos outros. Contudo, mesmo reconhecendo que seja possível se construir
182
através de outras formas de masculinidade, como é o seu próprio caso, Johnny admite
que ser chamado de “gay” pelos meninos da sua turma o incomoda.
Essas contradições, que, conforme mencionei anteriormente (Ver seção 8.2),
puderam me mostrar que Johnny, de fato, conhece os pressupostos que caracterizam a
masculinidade e feminilidade hegemônicas e os que, por outro lado, indexicalizam
outras formas do que significa ser homem ou ser mulher que não são legitimadas
socialmente pelos regimes de verdade vigentes (Ver seção 2.3).
Desse modo, a análise dos dados mostrou que, apesar de apresentar, por vezes,
discursos contraditórios acerca dos seus posicionamentos quanto à sua construção
identitária, as práticas de letramento digital se constituem para Johnny como o meio
mais importante de desestabilização de estereótipos e crenças naturalizados sobre a
identidade social de gênero, possibilitando, com isso, a construção para si de um novo
olhar para os diferentes modos de se produzir sentido sobre as identidades sociais.
A realização desta pesquisa indica, portanto, que não existe uma receita pronta
para a construção social do gênero. Por outro lado, se estamos buscando compreender
as identidades sociais como entidades múltiplas, heterogêneas e até contraditórias,
devemos, por conseguinte, buscar uma interpretação ativa frente a uma realidade sem
sentido metafísico, que possibilite a criação constante de novas formas de agir.
Devemos, então, tentar sempre construir identidades, e subvertê-las quando estas não
mais nos servirem (BUTLER, 2003), sempre com base em princípios éticos.
E, ao tratar do mundo virtual, a compreensão desse construto se evidencia
ainda mais, uma vez que o ciberespaço nos permite que sejamos sempre nômades,
pois “em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma extensão
dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade ao seguinte. Os
183
espaços se metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forçando-nos à heterogênese”
(LÉVY, 1996, p. 25).
O que quero dizer é que se entendemos que (re)construímos quem somos de
forma discursiva, e isso, é claro, se configura nas mais diversas práticas de letramento
nas quais nos engajamos, isto é, por meio da interação que estabelecemos com o(s)
outro(s) frente a uma certa realidade, ainda que esta seja uma realidade virtual, então,
isso significa que podemos, a partir dessa perspectiva, sempre atribuir novos sentidos e
uma nova liberdade ao modo como interpretamos essa realidade.
À luz dessa visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais,
entendemos que nós não somos, no sentido metafísico, homens, mulheres,
heterossexuais e homossexuais, mas estamos, como poderíamos estar outra coisa.
Johnny pode estar se construindo como um tipo de homem em algumas de suas
comunidades de prática, como no contexto escolar, mas está se construindo e sendo
construído como uma mulher ao interagir com outras pessoas numa comunidade de
prática virtual. Isso me leva a crer que, de fato, uma pessoa, ao se ver como mulher ou
homossexual, não está expondo sua natureza, uma suposta essência do seu ser, mas
está se interpretando e se construindo de uma forma que a permita criar sentidos no
mundo social. Nesse sentido, deveríamos, portanto, pensar não mais em identidades
estanques, mas em posições fluídas e múltiplas, em que a repressão e a desigualdade
existem sim, mas que podem ser substituídas pelo próprio movimento dessas
identidades.
E, apesar de estarmos longe de viver em uma sociedade justa no que se refere
às relações de gênero, já é possível encontrar outros discursos que contemplem outras
possibilidades de se constituir como homem ou como mulher na vida contemporânea.
184
Nesse sentido, a mídia, sobretudo, a mídia eletrônica digital, pode ser um forte aliado
na contra-mão de discursos hegemônicos excludentes e discriminatórios (Ver seção
5.2).
Ao se engajar, portanto, em práticas de letramento virtual no ciberespaço,
Johnny se expõe a uma multiplicidade de discursos. Discursos esses que disponibilizam
visões de mundo, conhecimentos, crenças e valores diferentes que podem,
diretamente, colaborar na compreensão da diferença alteritária. Nesse sentido, o
mundo virtual se torna um meio através do qual Johnny não só tenha a oportunidade de
se (re)construir identitariamente de forma múltipla, descobrindo outras formas de “ser
homem” ou “ser mulher”, mas também, e principalmente, um lugar onde ele possa
vislumbrar a possibilidade de construir relacionamentos afetivos e amorosos, por
exemplo, e, com isso, poder experimentar, de forma ainda mais plena, outros modos de
ser humano.
Por isso, tendo em vista a importância das práticas de letramento digital na
constituição das identidades sociais, ou seja, no próprio modo como compreendemos
quem somos e como nos construímos, já que o ciberespaço está deixando de ser
apenas um mundo virtual para se tornar parte cada vez mais integrante do nosso
mundo real, corroboro a idéia de que é crucial que se continuem a desenvolver estudos,
a exemplo dos que já existem e que foram citados no presente trabalho, sobre a
construção identitária em práticas de letramento digital.
Para concluir, espero que os significados gerados nas discussões ao longo desta
pesquisa tenham colaborado, ainda que de forma modesta, para fomentar um repensar
não só sobre os modos como concebemos as identidades sociais, mas também sobre
as próprias práticas sócio-discursivas que possibilitam tais concepções. Talvez tenha
185
chegado o momento de “reinventarmos” as identidades sociais, reinventado, com isso,
as nossas próprias vidas, pois, como nos diz brilhantemente Cecília Meireles na poesia
citada no começo deste trabalho, “a vida só é possível reinventada”. Acredito que esta
dissertação possa ser uma contribuição para isso.
186
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194
ANEXOS
195
(ANEXO 1)
Como acessar uma sala de bate-papo da UOL
196
(ANEXO 2)
A opção da sala de bate papo da UOL “entre amigos” foi escolhida
197
(ANEXO 3)
A tela da sala de bate-papo do MSN
198
(ANEXO 4)
Alguns exemplos de Emoticons
- zangado
- contente
- Beijão
- com raiva
- piscada
- ok
- louco
- indeciso
- gargalhada
- espanto
- desejo
- careta
- com sono
199
(ANEXO 5)
A matéria da Revista Veja Tecnologia: “A nova geração on-line” (página 13)
200
ANEXO 6
A matéria da Revista Veja Tecnologia: “A nova geração on-line” (página 14)
201
(ANEXO 7)
A matéria da Revista Veja Tecnologia: “Do jeito que eu quero ser” (página 21)
202
(ANEXO 8)
A matéria da Revista Veja Tecnologia “Do jeito que eu quero ser” (página 24)
203
(ANEXO 9)
A matéria da Revista Veja Tecnologia “Do jeito que eu quero ser” (página 30)
204
(ANEXO 10)
A matéria da Revista Veja Tecnologia “Do jeito que eu quero ser” (página 31)
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