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A Tradução do Humor em The Importance of Being Earnest de Oscar Wilde
George de Azevedo Madeiro
Faculdade de Letras – UFRJ
2007
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2
por
George de Azevedo Madeiro
A Tradução do Humor em The Importance of Being Earnest de Oscar Wilde
Volume Único
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar de Lingüística
Aplicada, Faculdade de Letras, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
Interdisciplinar de Lingüística Aplicada.
Orientador: Heloisa Gonçalves Barbosa
Rio de Janeiro
2007
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3
FOLHA DE APROVAÇÃO
George de Azevedo Madeiro
A Tradução do Humor em The Importance of Being Earnest de Oscar Wilde
Rio de Janeiro, 27 de junho de 2007
Professor Orientador:
__________________________________________________
Heloisa Gonçalves Barbosa
Professores Titulares:
__________________________________________________
Luiz Edmundo Bouças Coutinho
__________________________________________________
Aurora Maria Soares Neiva
Professores Suplentes:
__________________________________________________
Angela Maria da Silva Corrêa
__________________________________________________
Kátia Cristina do Amaral Tavares
4
“The world has always laughed at its own
tragedies, that being the only way in which it
has been able to bear them.”
Oscar Wilde em A Woman of No Importance.
5
RESUMO
MADEIRO, George de Azevedo. A Tradução do Humor em The Importance of Being
Earnest de Oscar Wilde. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Lingüística
Aplicada) Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2007.
Estudo comparativo de duas traduções brasileiras da peça The Importance of
Being Earnest de Oscar Wilde. Foram selecionados para análise, a partir da classificação
de Redman (1952), vinte e oito epigramas humorísticos que refletem a temática da obra do
autor. Tais epigramas versam sobre pessoas, hábitos, instituições e, finalmente, entidades
abstratas. São detectados e analisados pares “solução + problema”, por meio de comparção
das traduções com o original, conforme sugere Toury (1980, 1985). A partir desta análise,
são depreendidos os recursos tradutórios utilizados, conforme descritos e classificados por
Martins (2002). Além disso, identifica-se o traço de economia nas traduções, que tal
característica é considerada essencial para o discurso humorístico, conforme Almeida
(1999) e Rosas (2002), devendo, portanto, ser mantida nas traduções. Finalmente, é feita
uma análise quantitativa que compara os recursos utilizados nas duas traduções
examinadas.
6
ABSTRACT
MADEIRO, George de Azevedo.
A Tradução do Humor em
The Importance of Being
Earnest de Oscar Wilde. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Lingüística
Aplicada) Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2007.
This is a comparative study of two Brazilian translations of the play The
Importance of Being Earnest, by Oscar Wilde. Based on Redman’s (1952) classification,
twenty-eight humoristic epigrams that reflect the author’s themes were selected for
analysis. These involve people, habits, institutions, and finally, abstract entities. By
comparing the translations and the original, “solution + problem” pairs were detected and
analysed, as suggested by Toury (1980, 1985). This analysis served as a basis for the
identification of the translational resources used, as described and classified by Martins
(2002). Additionally, the feature of economy is detected, since this characteristic is
considered essential for humoristic discourse, according to Almeida (1999) and Rosas
(2002), and should, therefore, be maintained in a translation. Finally, a quantitative
analysis is made comparing the resources employed in the translations under examination.
7
Sumário
1. Introdução ......................................................................................................................
8
2. Oscar Wilde, sua época e sua obra ..............................................................................
2.1 Oscar Wilde e seu tempo .......................................................................................
2.2 Oscar Wilde e suas peças ......................................................................................
2.3 Oscar Wilde e seus epigramas ...............................................................................
12
12
16
21
3. Os Estudos Descritivos da Tradução ...........................................................................
3.1 Mudança de paradigma ..........................................................................................
3.2 A teoria dos poli-sistemas .....................................................................................
3.3 Os Estudos Descritivos da Tradução .....................................................................
3.4 Crítica e contra-crítica aos Estudos Descritivos da Tradução ...............................
25
25
27
32
40
4. Humor e Tradução .......................................................................................................
4.1 Características do discurso humorístico ................................................................
4.2 A tradução do discurso humorístico ......................................................................
4.2.1 A possibilidade de tradução do discurso humorístico ...............................
4.2.2 A Teoria do Humor Verbal e a tradução do discurso humorístico ............
4.2.3 A tradução lingüística e funcional do humor ............................................
4.2.4 A tradução do jogo de palavras .................................................................
4.2.5 A tradução do trocadilho elizabetano ........................................................
4.3 O texto teatral e algumas semelhanças com o texto humorístico ..........................
47
47
63
65
70
77
82
90
92
5. Análise de traduções de epigramas humorísticos na peça ...........................................
5.1 Epigramas relativos a pessoas ...............................................................................
5.2 Epigramas referentes a instituições e hábitos ........................................................
5.3 Epigramas relativos a entidades abstratas .............................................................
5.4 Recursos tradutórios empregados ..........................................................................
95
99
109
114
121
6. Considerações Finais ...................................................................................................
7. Referências Bibliográficas ............................................................................................
124
125
8
1. Introdução
Muito se teorizou e se discutiu sobre o humor. Vandaele (2002, p. 170) aponta
para o fato de que Barthes, Lévi-Strauss e Freud são as referências sobre o assunto em
questão, embora suas abordagens careçam de estudos empíricos. Possenti (1998, p. 20)
ressalta, no entanto, que antropólogos, sociólogos e, mais recentemente, lingüistas têm
realizado análises do discurso humorístico. Contudo, assinala, todas as idéias decorrentes
dessas áreas de estudo trazem poucas novidades e são pouco práticas. Considera o teórico
que, na verdade, excluem a natureza lingüística do humor (repetindo as referências
tradicionais e as autoridades no assunto). Conclui que há, portanto, uma necessidade de
estudos empíricos mais amplos, assim como de estudos de caso de ordem mais prática.
Pode-se considerar que esta mesma observação seja válida quanto à investigação na
área da tradução. Cada vez mais se fazem necessários novos estudos que o enfatizem
juízos de valor e não priorizem o produto final da tradução, práticas comuns nessa área de
estudo. Rosas (2003, p. 16) ressalta que há, também, uma carência de estudos a respeito do
humor e, principalmente, que tratem da tradução desse tipo específico de texto, devido à
extrema complexidade de ambos os fenômenos: tradução e humor.
É na tentativa de ajudar a preencher essa lacuna que a presente dissertação faz uma
reflexão sobre os Estudos da Tradução, que sofreram grande mudança a partir da década de
70, devido à proposta denominada “Estudos Descritivos da Tradução”. Fundamentado
nesses estudos, este trabalho propõe uma comparação entre duas traduções brasileiras da
peça The Importance of Being Earnest de Oscar Wilde, focalizando especificamente alguns
epigramas humorísticos nelas contidos. É feito um levantamento de pares “solução +
problema” conforme sugerido por Toury (1985). Uma vez depreendidos os recursos
9
tradutórios utilizados nesses pares, tais recursos são classificados de acordo com a proposta
de Martins (2002). São identificados também os traços de economia que aparecem nas
traduções, uma vez que a economia, ou brevidade, é considerada essencial para o discurso
humorístico, conforme Almeida (1999) e Rosas (2002), sendo ideal, portanto, que seja
mantida nas traduções. Com base nessas análises, foi feito um estudo quantitativo e
comparativo dos recursos utilizados pelos tradutores.
A obra escolhida para análise, The Importance of Being Earnest, constitui um
marco na criação humorística, sendo de grande complexidade no que diz respeito ao
discurso teatral humorístico. Além disso, por mais que seja uma peça produzida e encenada
no século XIX, continua ainda muito atual devido aos temas que aborda e que registra em
seus epigramas, tais como o homem, a mulher, o casamento, as aparências etc., ou seja,
temas que eram uma preocupação da sociedade de então e que continuam a sê-lo ainda
hoje. Além de várias outras classificações, a obra analisada pode ser considerada uma
comédia de costumes que, segundo Cuddon (1977, p. 137), é um nero que tem por tema
principal o comportamento do homem e da mulher que vivem sob determinados códigos
sociais. A peça, porém, vai além desses padrões ao radicalizá-los e criticá-los por meio do
nonsense, do exagero, além de várias outras técnicas.
O capítulo 2 desta dissertação trata de Oscar Wilde e do período em que viveu e
escreveu a “época vitoriana”, permeada por paradoxos e incertezas. Apresenta algumas
das principais influências na obra de Wilde, tais como os movimentos literários, o
panorama sócio-político e outros autores contemporâneos. Wilde pinta um retrato realista
do século XIX nas suas obras e se destaca como grande autor em diversos gêneros. Sua
produção culmina com The Importance of Being Earnest, considerada pelo próprio autor
sua melhor obra. A peça pode ser considerada uma comédia fársica epigramática, embora
suas características muito sui generis quase impeçam uma classificação. Algumas
10
características relevantes com relação à linguagem e a criação de Wilde são também
tratadas nesse capítulo.
O capítulo 3 trata da grande mudança de paradigma proporcionada aos Estudos da
Tradução por meio da incorporação a eles da teoria dos poli-sistemas, o que veio dar
origem ao que se denominou “Estudos Descritivos da Tradução”. A proposta desses
Estudos envolve análises de cunho relacional e funcional e que substituam os estudos que
enfatizavam apenas o produto final da tradução e faziam juízos de valor. O capítulo
apresenta também algumas críticas contra os Estudos Descritivos da Tradução, bem como
uma contra-crítica a estas.
No capítulo 4, inicialmente, é feita uma caracterização do discurso humorístico de
acordo com os estudos realizados por Possenti (1998), Almeida (1999) e Rosas (2000).
Logo em seguida, é apresentada uma discussão sobre a possibilidade da tradução do texto
humorístico, mais especificamente a piada, em que autores como Schmitz (1996) e
Brezolin (1997) divergem com relação a seus pontos de vista. O capítulo também faz
referência à tradução lingüística e à tradução funcional tratadas respectivamente por
Possenti (1998) e Rosas (2000). As idéias de diferentes teóricos que se propuseram a
analisar o texto humorístico também são abordadas no capítulo, a saber: Attardo (2002),
que desenvolveu a Teoria do Humor Verbal; Toury (1985), Delabastita (1996) e Attardo
(2002), que discursaram sobre a tradução do jogo de palavras propriamente dito; e Martins
(2004), que propõe uma classificação dos recursos tradutórios aplicados na análise de
trocadilhos, mais especificamente do trocadilho elizabetano. O capítulo finaliza com uma
comparação entre o texto teatral e o texto humorístico feita a partir das observações de
Bassnett (2002) e Marinetti (2005).
11
Finalmente, o capítulo 5 analisa os epigramas humorísticos em The Importance of
Being Earnest de Wilde e compara duas traduções brasileiras da peça em questão. Pela
classificação desenvolvida por Redman (1952), vinte e oito epigramas humorísticos, que
tratam de temas referentes a pessoas, hábitos, instituições e entidades abstratas, foram
escolhidos com base na relevância para o estudo do humor. Foram levantados pares
“solução + problema”, conforme proposto por Toury (1980 e 1985), de modo a possibilitar
uma comparação entre o texto de origem e os textos alvo. Além disso, foi utilizada, na
análise dos epigramas, a descrição dos recursos tradutórios elaborada por Martins (2002) a
partir de seu estudo sobre os trocadilhos elizabetanos. É importante ressaltar que foi
observado também a presença ou asuência do traço de economia nas traduções, que tal
característica é considerada essencial para o discurso humorístico, conforme Almeida
(1999) e Rosas (2002). Ao final da análise, um levantamento quantitativo foi desenvolvido
em que se comparam os recursos utilizados nas duas traduções examinadas, destacando-se
as características gerais que se manifestam nos textos alvos.
12
2. Oscar Wilde, sua época e sua obra
O presente capítulo trata de alguns aspectos relacionados a Oscar Wilde, suas obras
literárias, mais especificamente suas peças teatrais, sua época e as influências sociais e
culturais experienciadas pelo escritor, assim como de sua linguagem peculiar.
2.1 Oscar Wilde e seu tempo
De acordo com Carter e McRae (1997, p. 271-272), o termo Victorian Age é
utilizado para cobrir todo o século XIX. Conforme descrevem os autores, a rainha Vitória é
coroada em 1837, num momento em que a monarquia, enquanto instituição, não era tão
popular. Quando a rainha sobe ao trono, Londres possuía cerca de dois milhões de
habitantes. À sua morte em 1901, Londres tinha aumentado sua população para 6,5
milhões. Essa época é, pois, marcada por uma expressiva expansão econômica e rápidas
mudanças, principalmente a mudança de uma vida rural para uma vida moderna e urbana
baseada no comércio internacional respaldado por instituições financeiras. A Grã-Bretanha
foi um dos primeiros países do mundo a se industrializar e a reinvestir os lucros em
desenvolvimento industrial. O Reino Unido tornou-se o centro da filosofia do “Livre
Comércio”, das novas tecnologias e das contínuas invenções industriais. Havia um
otimismo no ar e um sentimento de que tudo continuaria a se expandir e a melhorar.
Apesar dessa atmosfera positiva, o século XIX foi também uma época de paradoxos e
incertezas. Conforme avalia Gagnier (1997, p. 18), na época vitoriana, os valores de
progresso, tecnologia, mercados globais e o individualismo tornaram-se cada vez mais
13
marcantes, e a sociedade era muito influenciada por esses valores o progresso era,
portanto, uma questão política e moral assim como a tecnologia e a economia.
Para Carter e McRae (1997, p. 272), o contraste entre a intranqüilidade social,
ligada aos movimentos de mudança, e a afirmação de valores e padrões considerados
“vitorianos” são elementos essenciais que compõem o paradoxo da época. O
“compromisso vitoriano” é uma forma de interpretar esse dilema, o que implica num tipo
de padrão duplo entre o sucesso nacional e a exploração dos trabalhadores das classes mais
baixas do país e das colônias estrangeiras; um compromisso entre filantropia, tolerância e
repressão. Como grande representante dessa época, destaca-se Wilde, e Holland (1997, p.
3-4), por analogia, descreve-o como um personagem que possui uma dualidade em vários
aspectos, pois era anglo-irlandês com simpatia nacionalista; era protestante com tendências
católicas ao longo de sua vida; foi casado dentro dos padrões vitorianos e também
manifestou uma vida homossexual; era considerado um músico das palavras e um pintor da
língua que, uma vez, confessou que escrever o deixava entediado, ou seja, encarnava o
paradoxo na sua própria pessoa. Holland (1997, p. 15) ressalta, ainda, que várias foram as
tentativas de classificar Wilde. Parte da academia insistia que Wilde era um fenômeno
sócio-cultural passageiro e um autor de obras populares de peso leve; outros o
classificavam como um pensador moderno que ligava dois séculos, um crítico e
comentador astuto, um “rebelde conformista”. Contudo, para Holland (1997, p. 4), por
conta dessa dualidade, Wilde ultrapassa os limites de todas essas classificações. É da
seguinte maneira que Coutinho (2006, p. 9) caracteriza Wilde:
Defensor e culminador do esteticismo, Oscar Wilde (...) postulou
um transtorno de papéis (...) o antinatural passou a ser o referente
da nova estética, cumprindo na senda do artifício o seu destino
decadentista.
14
Carter e McRae (1997, p. 272) afirmam que a literatura da época vitoriana reflete
todas as preocupações sociais do período. O romance como forma tornou-se amplamente
popular e foram os romancistas, no lugar dos poetas, quem se tornaram os representantes
literários. Havia um movimento em favor da democracia, assim como no resto da Europa.
Contudo, enquanto a Europa continental sofria com revoluções e agitações políticas, na
Grã-Bretanha, o governo controlava fortemente o país. Os movimentos da classe
trabalhadora, dos grupos republicanos, dos sindicatos e das expressões dissidentes do
governo eram contidos ao máximo. A expressão literária, porém, florescia.
Para Carter e McRae (1997, p. 307-308), a insistência do movimento estético na
questão da “Arte pela Arte” era, na verdade, uma busca por novos valores como em
qualquer movimento filosófico ou político, mas seus valores e motivações foram
questionados com maior propriedade por Wilde (a figura mais marcante a partir de 1878).
A atribuição de valores a coisas abstratas como a arte, a beleza e a cultura é parte da busca
instaurada ao final da era vitoriana em um universo que mudava muito rapidamente. Para
os teóricos mencionados, o movimento estético remonta às idéias de Keats, em um de seus
poemas, de 1819, denominado Ode on a Grecian Urn. Porém, a reavaliação da arte e suas
conseqüências filosóficas são encontradas mais significantemente nas obras dos críticos
mais influentes da época: John Ruskin e Walter Pater (mestres de Wilde).
Segundo Carter e McRae (1997, p. 309), as várias tendências na escrita dos fins da
época vitoriana estão presentes nos trabalhos de Wilde, que muito é lembrado como o
autor de comédias teatrais e pelo humilhante fim de carreira ao ser sentenciado a dois anos
de trabalhos forçados por ter infringido a lei com sua conduta homossexual. A dicotomia
entre o espirituosismo social e elegante e a frivolidade aparente dos enredos cômicos, a
vergonha e o escândalo da vida pessoal de Wilde são emblemáticos da crise moral
vitoriana. A ética transgressora de Wilde era um completo jogo consciente com as
15
pressuposições vitorianas. Uma das histórias de Wilde que mais efetivamente explora os
valores e padrões vitorianos acerca de uma variedade de temas incluindo a arte é The
Picture of Dorian Gray (1891). Até hoje, esse texto continua sendo controverso e tem sido
lido como várias formas de crítica uma crítica feita ao movimento da “Arte pela Arte”,
uma crítica ao amor próprio superficial e uma crítica à sociedade vitoriana, que não
reconhece suas próprias responsabilidades morais. Com seus ensaios The Truth of Masks
(1885) e The Soul of Man Under Socialism (1891), Wilde sonda a fachada vitoriana e
avalia os detalhes e as implicações das hipocrisias o padrão da época. Dessa forma, a
Carter e McRae (1977) consideram que Wilde retrata de forma realista o século XIX, um
século que a sociedade não gostaria de aplaudir ou de ser forçada a reconhecer, porém essa
mesma sociedade aplaudiu e apreciou a realidade que vivia ao vê-la encenada nos palcos
teatrais.
Conforme apontam Carter e McRae (1997, p. 340-341), houve um período de forte
censura no teatro entre 1737 e 1968. Por cerca de 230 anos uma grande variedade de
tópicos não puderam ser tratados sob a forma dramática. Após esse período, Tom
Robertson traz uma nova tendência realista que se iniciou em 1860 e se estendeu por
aquela década. Robertson foi o primeiro escritor de teatro a insistir em incluir elementos da
vida real no cenário. As questões sociais, apresentadas de maneira quase não controversa,
tornaram-se mais polêmicas nas décadas de 80 e de 90 daquele século. A essa época, as
obras de Emile Zola e Thomas Hardy eram queimadas publicamente devido ao ultraje
moral que causavam. No drama, o mesmo ocorreu com as traduções das peças de Henrik
Ibsen. Suas primeiras peças foram escritas no final dos anos 60 daquele século, porém foi
apenas em 1880 que Os pilares da sociedade foi encenada na Inglaterra. O ensaio de
Bernard Shaw denominado The Quintessence of Ibsenism, publicado em 1891, deu grande
visibilidade às obras de Ibsen. Wilde escreve nesse mesmo ano The Soul of Man Under
16
Socialism a partir do novo fluxo de idéias socialistas, fabianistas (o socialismo de Shaw) e
estéticas.
Após essa contextualização da época de Wilde e algumas das suas influências, a
próxima subseção trata de suas obras teatrais.
2.2 Oscar Wilde e suas peças
Carter e McRae (1997, p. 341) apontam que as mais famosas peças de Wilde foram
escritas e encenadas num período de três anos, entre 1892 e 1895. Conforme os autores,
são peças brilhantemente espirituosas, que podem ser classificadas como comédias
epigramáticas e que revelam uma preocupação social nas entrelinhas.
Pearson (1946, p. 221), também ao caracterizar as peças de Wilde, relata que todas
foram escritas enquanto o autor estava de férias, e os nomes dos personagens eram
geralmente inspirados nos lugares que o dramaturgo visitava ou de sua vizinhança, ou seja,
em elementos que o cercavam. Suas peças eram álbuns de recorte nos quais colava partes
das lembranças de suas próprias conversas, ou de outras obras suas. Por exemplo, Raby
(1995, p. xxii), no prefácio de uma das coletâneas das obras completas de Wilde, ressalta
que o trocadilho com o nome “Ernest” foi uma elaboração a partir da peça A Woman of No
Importance, em que Mrs. Allonby fora levada a acreditar que seu marido não se apaixonara
por ninguém antes dela.
Carter e McRae (1997, p. 342) ilustram também essa característica, de inspirar-se
em sua própria obra para definir a temática textual, e o tom das falas dos personagens, ao
apontar para o fato de o ensaio The Truth of Masks de Wilde ser a chave para as suas
comédias. A análise de Coutinho (2006, p. 12) corrobora esta avaliação:
17
Ao longo de The Truth of Masks, Oscar Wilde traceja as moldagens
do cruzamento entre o ético e o estético, consagrando o papel do
artista nas simulações do palco da vida. Nessa tarefa, ele se destaca
como o grande propagador da afetação fin-de-siècle, que abalou os
disfarces do Decadentismo nos exotismos de efeito engenhoso que
mobilizaram as cenas dirigidas pela fala do dandy.
Retomando a questão dos temas tratados pelo dramaturgo, Carter e McRae (1997,
p. 342) os descrevem como se segue: em A Woman of No Importance (1893), o tema
principal é o nascimento ilegítimo; o tema presente em Lady Windermere’s Fan (1892), e
em An Ideal Husband (1895) são indiscrições culpáveis; The Importance of Being Earnest
(1895) aborda origens sociais obscuras. Desse modo, parece provável que a primeira serviu
de inspiração para a última, assim como a segunda criação influenciou a terceira.
Conforme ressalta Pearson (1946, p. 223), a primeira peça de Wilde, Lady
Windermere’s Fan, foi um grande sucesso já na sua primeira apresentação, em 1892. Nada
se comparava a esta obra desde The School for Scandal, uma das peças de Sheridan, 120
anos antes. De acordo com Pearson (1946, p. 225), poucos foram os críticos que elogiaram
a peça, e muitos se recusaram a admitir seu humor devido à “petulância insolente” de
Wilde. Popularmente, a peça foi muito comentada, e os epigramas que continha eram
citados em todos os lugares.
Conforme descreve Pearson (1946, p. 227-229), Salome, a segunda peça de Wilde,
a princípio seria uma ligeira parábola em inglês, mas tornou-se uma peça em francês.
Salome foi inicialmente publicada em Paris em fevereiro de 1893. Somente após um ano
uma versão traduzida para o inglês apareceu em Londres. Em junho de 1892, a peça foi
proibida como conseqüência de uma lei antiga que protegia temas e personagens
religiosos. A indignação de Wilde foi enorme, e muitos críticos ficaram do seu lado, pois
acreditava que esse ato, na verdade, insultava os palcos como forma de arte, e não a ele
próprio. Pela primeira vez, Wilde perdeu seu senso de humor e anunciou num jornal
18
parisiense que tinha a intenção de se tornar cidadão francês. No entanto, devido a sua
grande fama com Lady Windermere’s Fan, e reconhecendo que havia julgado os ingleses
com excessivo rigor, Wilde voltou atrás.
Segundo Pearson (1946, p. 236-237), A Woman of No Importance foi encenada pela
primeira vez em 1893 e repetiu o sucesso da primeira peça de Wilde. Apesar das brigas e
discordâncias entre os críticos e o dramaturgo, o público continuava a aclamá-lo. Contudo,
conforme descreve Pearson (1946, p. 239-244), o extraordinário sucesso das duas peças
produziu efeitos negativos na vida de Wilde. Com o dinheiro jorrando de suas comédias,
com os intermináveis convites da aristocracia, com o mundo artístico e social londrino
infestado pelos diálogos de suas peças, com seu nome na boca de todos, Wilde alcançava
seu grande desejo. Sua fama cruzou o Canal da Mancha e, pela primeira vez, os parisienses
aclamaram um autor britânico. Dois anos vivendo essa vida produziram, em Wilde, uma
personalidade bastante diferente daquela dos anos 80. Conforme relata o biógrafo, Wilde
considerava qualquer crítica como ofensa, demonstrava uma arrogância anormal, e suas
atitudes para com aqueles que não o elogiavam ou o agradavam era desdenhosa. Conforme
se tornava mais próspero, mais se tornava absurda sua conduta, e o ódio por sua pessoa,
que começou a ser fomentado a partir de então por certas figuras, perseguiu-o até o fim de
sua vida. Conforme ressalta Pearson (1946, p. 244), Wilde tinha poucos amigos no círculo
literário. Na década de 90, não possuía nenhum, o que sugere que ele mesmo se
considerava um fenômeno único — muitos até achavam que tinha enlouquecido.
Pearson (1946, p. 247-248) comenta que An Ideal Husband foi encenada em janeiro
de 1895 com sucesso instantâneo. A peça demonstra um considerável avanço na sua
construção e na caracterização dos personagens em comparação com as duas comédias
anteriores. Bernard Shaw, que era renomado crítico nesta época, fez justiça a Wilde
como escritor teatral, criticando-o de maneira positiva por essa peça.
19
The Importance of Being Earnest, de acordo com Pearson (1946, p. 251-257), foi
fruto da situação em que Wilde se encontrava no verão de 1894. O dramaturgo ia muito
mal financeiramente e vendeu os direitos de uma peça que ainda o tinha escrito. A
princípio, a trama era bastante complexa, e envolvia um caso de dupla identidade. Mas,
após algumas mudanças, a encomenda deu lugar à genialidade de Wilde que transgrediu o
estilo e os costumes do culo XVIII, rompendo seus padrões. Wilde descreveu essa peça
como um tipo de comédia fársica e a considerava a melhor já escrita por ele próprio.
Conforme avalia Raby (1995, p. xxiii), no seu prefácio à peça, qualquer que seja a
classificação dessa obra, Wilde criou algo que transcendeu o gênero da farsa. Para Pearson
(1946, p. 259), a perfeita fusão do lado emocional imaturo de Wilde com seu lado
intelectual super maduro produziu uma obra de arte e The Importance of Being Earnest
é essa obra de arte. Não classificação para esta peça, segundo o teórico, posto que o
se pode compará-la a nenhuma farsa, comédia ou comédia fársica já escrita a peça não
segue nenhuma regra e cria suas próprias leis; é, portanto, sui generis. Ridiculariza tudo o
que o ser humano considera sério: o nascimento, o batismo, o amor, o casamento, a morte,
o funeral, a ilegitimidade e a respeitabilidade etc. Corroborando essa idéia, Raby (1995, p.
xxi) aponta para o fato de que Wilde, com essa peça, embarcou em um gênero
completamente novo.
Conforme Pearson (1946, p. 257), a primeira encenação de The Importance of
Being Earnest ocorreu em fevereiro de 1985 e foi mais um sucesso de grandes proporções.
Os críticos da época esforçaram-se para encontrar defeitos na peça mas, dessa vez, tiveram
de admitir que era extremamente engraçada. Contudo, para grande surpresa da mídia,
Shaw discordou dos críticos, dizendo que a peça era realmente divertida, mas que sentia
que tinha perdido seu tempo ao assisti-la.
20
Além disso, Raby (1995, p. xxiv-xxv), expressa que The Importance of Being
Earnest constituiu um estilo cômico verbal em que personagens falam um tipo de
linguagem bela e sem sentido que tem grande comicidade, misturada com fantasia. O
diálogo, para Wilde, era o artifício para a criação de suas peças. Nessa peça em especial,
Wilde consegue subjugar a trama ao diálogo tão bem que parece que nada poderia afetar a
confiança de seus personagens ao proferir suas falas. Wilde alcança a total suspensão da
crença, criando um espelho impecável no qual sua platéia contemporânea poderia
enxergar, se desejasse, a si mesma. A peça consegue desconcertar e tornar eficazes os
padrões tradicionais e, ao mesmo tempo, sugere que o têm relevância para os
participantes. Apesar de destacada da realidade social, a peça constitui uma crítica ao
absurdo de todas as formas e convenções.
Para Raby (1995, p. xxiii), The Importance of Being Earnest o é “nem uma peça
superficial, nem trivial, mas trata puramente das aparências, envolve puramente o jogo de
palavras”. As aparências, o estilo, e a ficção são tratados como essência, não apenas pelos
personagens espirituosos e pelos dândis, mas também pelo mordomo, o guardião “sério”, a
matriarca, a ingênua e, finalmente, pela governanta e pelo clérigo.
É importante, ainda, mencionar que, segundo Gagnier (1997, p. 20), na crise da
legitimação dos valores modernos vitorianos, Wilde conseguiu enxergar que o “eu” não era
inevitavelmente indubitável, racional e progressivo, mas socialmente construído. Percebia
que esse “eu” era construído pela linguagem e, por isso, subvertia os padrões
convencionais do discurso. Considerava esse “eu” como sendo construído por instituições
sociais como a escola, o casamento, a família, a medicina, a lei, a prisão instituições
pelas quais exerceu suas faculdades críticas. Para a mesma autora (GAGNIER, 1997, p.
25), Wilde, através do diálogo e do debate, era um filósofo que tornava públicas suas idéias
em uma sociedade de massa composta de públicos com vários interesses em conflito. Para
21
a teórica (GAGNIER, 1997, p. 27), Wilde expunha sem piedade a superficialidade e a falta
de conteúdo moral de seu público enquanto, ao mesmo tempo, criava representações tão
glamurosas e poderosas desse mesmo público que acabavam por perdoá-lo, e até mesmo
aclamá-lo. Ou seja, mesmo criticando sua própria sociedade, Wilde era uma das figuras
mais populares de seu tempo, o que reforça mais uma vez seu aspecto de duplicidade,
mencionado anteriormente por Carter e McRae (1997, p. 272). Conforme ressalta
McCormack (1997, p. 97), Wilde apropriou-se do discurso vitoriano íntegro e simplificado
e propôs uma fala dupla, irônica e espirituosa. A partir da afirmação de que a máscara
representa um elemento mais eloqüente comparado ao rosto, Coutinho (2006, p. 10)
ressalta que
Essa afirmação sintetiza o comportamento que rege o apenas a
operação de seu teatro, mas a importação de toda sua escrita, o
ponto de vista da pose e do discurso, a marcação cênica e cínica do
dandy, acomodando a pontuação da retórica responsável pelo tom
de conversa que conduz seu desempenho, favorecendo-lhe as
renovações de epigramas e boutades de efeito, assegurando-lhe
especialmente os ganchos pelos quais a conversação sustenta a
ciranda dos paradoxos.
A próxima subseção trata da linguagem de Wilde.
2.3 Oscar Wilde e seus epigramas
Pearson (1946, p. 191) descreve Wilde como sendo alguém superior comparado a
qualquer outro homem tanto na capacidade de comunicação, como na arte de conversar,
quanto em presença de espírito. O autor, para quem Wilde supera seus contemporâneos,
tais como Whistler, Henley, Shaw e Carson, elenca várias situações em que Wilde
demonstrou essa superioridade. Parte da espirituosidade de Wilde, para Pearson (1946, p.
22
192) é refletida em suas peças, mas muito pouco. Para o biógrafo, o humor de Wilde era
completamente espontâneo e realizado sem o menor esforço. Por esse motivo, a alta
sociedade londrina sempre desejava sua companhia, pois todos estavam certos de que se
divertiriam ao lado dele. Qualquer que fosse o tema, Wilde estava pronto para usar de seu
humor de imediato, sendo a frivolidade seu tema central. O que os outros consideravam
sério, Wilde tratava com humor; o que o público em geral tomava por trivial era tratado
por Wilde com grande solenidade. Seu método favorito de ridicularizar padrões
convencionais era mudar uma ou duas palavras em um provérbio ou clichê, e incluir um
toque de verdade, como por exemplo: Work is the curse of the drinking classes.”; I can
resist everything except temptation.”, Whenever I think of my bad qualities at night, I go
to sleep at once.”, “He is old enough to know worse.” etc.
Para Pearson (1946, p. 193-194), a maioria das melhores frases de Wilde constitui
um misto de diversão e profundidade, e a razão pela qual Wilde ainda é lido com prazer é a
sua comicidade peculiar, que fez dele um dos humoristas mais espirituosos de todos os
tempos. Pearson (1946, p. 195-197) lista uma série de situações em que Wilde demonstra
esse seu lado humorístico exacerbado, como por exemplo: a) após Coulson Kernahan ter
exposto um resumo honesto de sua crença religiosa, Wilde exclamou: You are so
evidently, so unmistakably sincere, and most of all so truthful, that... I can’t believe a
single word you say.”; b) ouvindo os maldosos ataques sobre sua pessoa relatados por um
de seus conhecidos, Wilde comentou sobre a situação com um tom de pesar e indignação:
It is perfectly monstrous, and quite heartless, the way people go about nowadays saying
things against one behind one’s back that are absolutely and entirely... true.”; c) Lorde
Avebury tinha publicado sua lista dos cem melhores livros e pediu a Wilde, como
celebridade da época, que também o fizesse, mas este lhe respondeu: I fear that would be
impossible ... Because I have only written five.
23
Além disso, Pearson (1946, p. 197) afirma que Wilde era um mestre no absurdo
satírico. Como exemplo de situações, cita (p. 199): a) no início da década de 1890, a
Inglaterra estava prestes a entrar em guerra contra a França, e a Wilde foi pedida uma
opinião sobre o acontecimento: “We will not go to war with France ... because her prose is
perfect.”; b) What a terrible weather we are having”, disse uma solene intelectual que
jantava com Wilde. Yes, but if it wasn’t for the snow, how could we believe in the
immortality of the soul?”, respondeu ele. “What an interesting question, Mr. Wilde! But tell
me exactly what you mean. contrapôs a intellectual. E Wilde redarguiu: I haven’t the
slightest idea.
Conforme analisa Pearson (1946, p. 199), Wilde podia ser tão profundo quanto
fingia ser superficial, e sua genialidade lhe permitia condensar em uma frase o que outros
tentariam explicar em um livro: ninguém jamais produziu tantas idéias profundas
disfarçadas pelo paradoxo. Ao transformar os pontos de vista, Wilde forçava seus ouvintes
a enxergar a vida por ângulos incomuns e, então, ampliava os limites da verdade. A frase
seguinte, citada por Pearson (1946, p. 200), ilustra essa característica: “The only way to get
rid of a temptation is to yield to it.Cabe ressaltar aqui a idéia de Gagnier (1997, p. 32) de
que Wilde era público, erótico, ativo, dialogicamente formal e preocupado com as
inversões dialéticas da linguagem e da vida da classe média.
É também relevante a idéia de McCormack (1997, p. 103) no que diz respeito à
obra de Wilde:
o que o marca como escritor é sua preferência pela fantasia em
lugar do realismo, por uma linha narrativa que opera em vários
níveis e que se suspende a si mesma e se torna complexa por uma
série de digressões; por uma ruptura entre o roteiro e o discurso, na
qual a ação é suspensa indefinidamente por um tipo de logorréia, de
24
modo que o seu interesse se volta para um comprometimento com a
linguagem, que em si própria é um tipo de decoração verbal.
1
McCormack (1997, p. 98) ao avaliar as obras de Wilde, determina que o
dramaturgo se fez através de seus comentários notáveis. Essas frases consideradas
espirituosas, as piadas, os jogos de palavra eram distribuídos pelos personagens e por
outros textos. Uma vez criada uma frase, era provável que reapareceria em alguma outra de
suas obras. Dessa forma, Wilde tornou-se seu próprio plagiador, improvisando sobre uma
série de frases que mantinha em sua mente, um criador da tradição oral com seus próprios
critérios Beer, the Bible and the seven deadly virtues have made our England what it
is”.
São essas surpreendentes frases lapidares que são conhecidas como os “epigramas
de Wilde” e que permeiam sua obra. De acordo com Cuddon (1997, p. 230-231),
originalmente o epigrama era uma inscrição em um monumento ou estátua que se
transformou em um nero literário primeiramente na Grécia (século X a.C.) e
posteriormente em Roma. Essa forma foi bastante cultivada no século XVII na Inglaterra
por Herrick, William Drummond of Hawthornden, Dryden e Swift, e no século XVIII por
Pope, Prior, Richard Kendal, Burns e Blake. Outros famosos epigramáticos foram Lord
Chesterfield, Byron, Bernard Shaw, F. E. Smith e Wilde. Mais recentemente, o epigrama
constitui uma declaração espirituosa e curta em verso ou em prosa que pode ser elogiosa,
satírica ou aforística, ou seja, que contém alguma verdade.
Como mencionado no capítulo 1, esta dissertação faz uma comparação entre duas
traduções brasileiras de The Importance of Being Earnest. O próximo capítulo, portanto,
abordará a teoria da tradução utilizada como arcabouço teórico para esta análise.
1
Esta e todas as demais traduções de textos citados escritos originalmente em inglês são de minha autoria.
25
3. Os Estudos Descritivos da Tradução
O presente capítulo tem por objetivo traçar um breve histórico das mudanças
ocorridas nos Estudos da Tradução a partir dos anos 70, determinar o ponto de partida
dessas mudanças e indicar quais foram as conseqüências relevantes dessas mudanças para
os Estudos em questão, a saber, o desenvolvimento da vertente denominada Estudos
Descritivos da Tradução, desenvolvida por Gideon Toury (1980, 1985). Além disso, este
capítulo também apresenta alguns contra-argumentos para a proposta desses estudos,
constituindo uma discussão fundamental para a evolução da pesquisa envolvendo o campo
teórico da tradução.
3.1 Mudança de paradigma
De acordo com a avaliação feita por Hermans (1985, p. 10), em meados da década
de 70, surge um grupo de pesquisadores no âmbito internacional que tentou quebrar o
paradigma até então vigente nos Estudos da Tradução, mais especificamente nos estudos
da Tradução Literária. Conforme o teórico (HERMANS, 1985, p. 10-11), o objetivo dos
estudiosos que formavam esse grupo era o de estabelecer novas diretrizes com relação ao
estudo da tradução literária com base em uma teoria mais abrangente e em uma pesquisa
pragmática mais constante. Esse grupo não constituía uma escola, mas um elenco de
pesquisadores geograficamente espalhados com interesses amplos variados, e que
possuíam alguns conceitos básicos em comum, como por exemplo:
a) considerar a literatura como um sistema complexo e dinâmico;
26
b) acreditar numa relação contínua entre modelos teóricos e estudos de caso de
ordem prática;
c) abordar a tradução literária de maneira descritiva e orientada para o texto alvo,
de modo funcional e sistemático; e
d) interessar-se pelas normas e limitações que governam a produção e a recepção
das traduções, bem como interessar-se pela relação entre traduções e outros
tipos de texto, assim como pelo papel e pelo lugar das traduções em uma
determinada literatura e na interação entre as literaturas.
Hermans (1985, p. 11) refere-se ao importante fato de que o conceito de literatura
como sistema surgiu com o Formalismo Russo (formalistas de Leningrado) e com o
Estruturalismo Checo (estruturalistas de Praga). Esse conceito foi desenvolvido pelo grupo
de estudiosos que revolucionaram os Estudos da Tradução a partir da década de 70.
Hermans (1985, p. 11) destaca, ainda, que o trabalho de Itamar Even-Zohar (um dos
teóricos do grupo), da Universidade de Tel Aviv, em particular, influenciou diretamente
para o desenvolvimento dessa nova abordagem dos estudos da tradução.
Foi Even-Zohar quem desenvolveu a noção de literatura como poli-sistema.
Segundo o próprio teórico (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 1), a teoria dos poli-sistemas surgiu
de uma necessidade de resolver problemas oriundos da teoria da tradução até então
vigente. Para Vieira (1996b, p. 124), Even-Zohar propôs essa nova abordagem a partir da
sua insatisfação com o legado positivista científico de registrar e classificar. Esse legado é
oriundo, conforme descreve Bassnett (2002, p. 12), de uma longa tradição que disseminou
um conceito de tradução bastante restrito. A tradução era considerada uma atividade
secundária, um processo mecânico, que não permitia o exercício da criatividade. Os
estudos realizados, segundo a teórica, ou ofereciam juízos de valor sobre as obras de
27
grandes escritores considerados canônicos, ou analisavam o produto. Em outras palavras, o
texto final traduzido era enfatizado em vez de o processo em si. Esses estudos, segundo
Bassnett (2002, p. 7), baseavam-se em comparações entre o original e a tradução, e
geralmente se inventariava o que foi perdido” ou o quão o original fora “traído” após o
processo tradutório. Dentro dessa tradição, segundo Bassnett (2002, p. 13), o papel do
tradutor era o de um agente sem a possibilidade de ser criativo, e, portanto, subserviente ao
texto fonte.
A subseção seguinte descreve a teoria dos poli-sistemas desenvolvida por Even-
Zohar (1990, 1997).
3.2 A teoria dos poli-sistemas
Para Even-Zohar (1990, p. 4-5), a necessidade de novas hipóteses no campo dos
estudos literários derivou da falta de interesse pelas teorias nos campos de estudo cultural e
lingüístico existentes e que não eram adequadas. De acordo como o autor:
trabalhar com o Funcionalismo Dinâmico em geral, e com a teoria
dos poli-sistemas em particular, é completamente incompatível
com o espírito que permeia atualmente as grandes direções tomadas
pela comunidade acadêmica literária. (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 6)
A citação em questão aponta para a insatisfação do autor para com a tradição dos
estudos literários e a necessidade, em sua opinião, de uma mudança no paradigma vigente
na época.
Sob o ponto de vista de Even-Zohar (1990, p. 9), o fenômeno semiótico literário
poderia ser mais bem compreendido e estudado se considerado como um grupo de
sistemas. A literatura, para Even-Zohar (1990, p. 2), não é considerada uma atividade
28
isolada na sociedade, mas um fator integral, muito forte e geralmente central. Além disso,
segundo o autor, essa nova abordagem propunha a substituição do modo de coleta de dados
positivista por uma abordagem funcional baseada numa análise relacional. Fazia-se
necessária, segundo o mesmo estudioso, como meta principal, a “detecção de leis que
governam a diversidade e a complexidade de um fenômeno, em vez de seu registro e de
sua classificação”. Como define Even-Zohar (1990, p. 11), o sistema semiótico pode ser
uma estrutura aberta e heterogênea, e portanto, raramente, um sistema único. A partir daí,
como definição, um poli-sistema é
um sistema múltiplo, um sistema de vários sistemas que se cruzam
e se sobrepõem, utilizando opções diferentes simultaneamente,
mesmo assim funcionando como uma estrutura completa, cujos
membros são interdependentes. (Even-Zohar, 1990, p. 11)
No âmbito da teoria dos poli-sistemas, é importante ressaltar a noção de repertório.
Segundo Even-Zohar (1990, p. 17), o repertório consiste de um grupo de leis e elementos
que determinam a produção de textos. Conforme avalia o autor (EVEN-ZOHAR, 1997, p.
21), sem um grupo de repertórios compartilhados em comum, nenhum grupo de
indivíduos, parcial ou completamente, poderia comunicar-se ou organizar-se de uma
maneira aceitável e significativa para os membros do grupo o mesmo é válido para a
produção da literatura. O repertório será comparado à noção de script, desenvolvida
posteriormente pela Teoria do Humor Verbal, no capítulo 4.
Segundo Even-Zohar (1997, p. 26), é rara uma sociedade que não possua um
repertório estabelecido. Para o teórico, ao mesmo tempo em que os repertórios podem ser
anônimos, podem ter sido desenvolvidos por grupos com objetivos em comum, até porque
muitas vezes um único indivíduo não possui a força que um grupo teria para mudar a
sociedade. Os grupos de indivíduos ou o indivíduo, segundo Even-Zohar (1997, p. 27-28),
29
que controla(m), domina(m) e regula(m) a cultura são ativos na produção de seu próprio
repertório. Muitos criam, a partir daí, o senso do “eu próprio” ou de identidade coletiva.
Como conseqüência, um determinado produto, ou seja, qualquer grupo de signos ou
materiais, até mesmo um comportamento, não podem ser produzidos sem se basearem num
repertório.
Pensando em Wilde, pode-se considerar que o autor tratava, em suas obras, dos
repertórios que mais interessavam e/ou afligiam a sociedade (o nascimento, o batismo, o
amor, o casamento, a morte, o funeral, a ilegitimidade, a respeitabilidade etc. (como
mencionado anteriormente) e, ao mesmo tempo, criticava esses repertórios, produzindo
outros novos através do absurdo e do cômico. Wilde quebrou e criou vários outros padrões,
não só na produção de seu próprio texto, como também ao criticar a sociedade nas
entrelinhas de suas obras.
Dentro dessa dinâmica proposta pela teoria dos poli-sistemas, Wilde seria o
produtor que, como define Even-Zohar (1997, p. 30-31), é o indivíduo que produz ao
operar ativamente um repertório e até realiza a produção de “novos” produtos são os
intelectuais ou homens das letras, como exemplifica o autor, aqueles que adquirem em
determinadas sociedades um status de legítimos produtores de repertórios para a sociedade
como um todo. Produtores individuais, segundo o teórico, muitas vezes não causam
nenhum impacto na cultura, no sentido de ações que acarretam mudança, ou melhor,
alterações no próprio repertório. Por outro lado, há indivíduos que se engajam numa
produção inovadora e, às vezes, como parte de um grupo organizado, causam um impacto
que muda a sociedade é o caso de Wilde. O consumidor é o indivíduo que lida com um
produto feito, operando passivamente um repertório. Esse agente encarrega-se da
identificação das relações entre o produto e o conhecimento de um repertório, ou seja,
reconhece, compreende, soluciona e decifra — são os leitores.
30
A literatura, para Even-Zohar (1990, p. 17), nessa perspectiva, não pode ser
concebida como um grupo de textos, um agregado de textos ou um único repertório. Os
textos e o repertório são, portanto, manifestações da literatura. Além disso, os textos,
segundo Even-Zohar (1997, p. 29) podem circular dentro de um mercado de maneiras
variadas como textos integrais ou como fragmentos textuais. também de se ressaltar
que o produto da literatura é constituído de itens do repertório cultural: modelos de como
se organiza, se e se interpreta a vida. São, pois, para o teórico, uma fonte para modelos
adotados, ou seja, hábitos que prevalecem em vários níveis da sociedade, ajudando a
direcioná-la, preservá-la e estabilizá-la.
Conforme Even-Zohar (1990, p. 25), dentro da dinâmica dos poli-sistemas, uma
literatura pode ser influenciada por outra literatura, como resultado das propriedades que
são transferidas de um poli-sistema a outro. A literatura traduzida, para o mesmo teórico,
constitui um exemplo desse processo. E o estudo dos textos traduzidos, dentre outros,
constitui objeto indispensável para o entendimento de como e por que as conversões
ocorrem, dentro e entre os sistemas. O teórico (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 20) define
conversão como qualquer transformação que ocorra de um sistema para outro.
Como avalia Hermans (1980, p. 11), a teoria dos poli-sistemas enxerga a literatura
como sendo um elemento dentre vários na constante luta pela dominação entre as várias
subdivisões e camadas do sistema. Para ele, do ponto de vista da literatura alvo, toda
tradução implica num determinado grau de manipulação do texto fonte para um
determinado fim. Considera, também, o teórico, que a tradução representa um exemplo
crucial do que ocorre na relação entre diferentes sistemas lingüísticos, literários e culturais.
De acordo com Hermans (1980, p. 12), a teoria do poli-sistema fornece uma estrutura
adequada para o estudo da literatura traduzida.
31
Hermans (1985, p. 12-15) defende, pois, que esse método descritivo toma o texto
traduzido como ele é e tenta determinar os vários fatores que podem explicar sua natureza
particular. Logo, o pesquisador não pode ter uma postura permeada por noções
preconceituosas sobre a tradução e a análise de qualquer texto deve começar pelo texto
traduzido em si, do fato empírico. Assim, o trabalho prático deve ser descritivo e orientado
pelo texto alvo. Além disso, essa visão deve considerar em termos funcionais as estratégias
textuais que determinam como uma tradução aparenta ser e, mais amplamente, como a
tradução funciona na literatura receptora (alvo).
A partir dessa análise, é importante lembrar que, para Even-Zohar (1997, p. 15), a
idéia de ‘sistema’ torna possível um estudo sem a necessidade de nomenclaturas e
classificações intricadas. Em vez disso, um grupo relativamente pequeno de relações
poderia ser formulado como hipótese para se explicar um grande e complexo arranjo de um
determinado fenômeno. Espera-se da teoria dos poli-sistemas, de acordo com o autor
(EVEN-ZOHAR, 1997, p. 18), que sirva como ambiente teórico para o estudo da cultura,
permitindo o desenvolvimento de ferramentas versáteis que possibilitem o manejo da
heterogeneidade e da dinâmica.
Como conseqüência dos estudos de Even-Zohar, Gideon Toury desenvolveu suas
idéias. De acordo com Toury (1985, p. 16), nenhuma ciência empírica pode considerar-se
completa e autônoma a menos que tenha desenvolvido um ramo descritivo. O autor
acreditava que, até aquele momento, os Estudos da Tradução não tinham desenvolvido esse
ramo, devido ao paradigma vigente. De acordo com o mesmo teórico (TOURY, 1985, p.
17), fazia-se necessário um ramo científico sistemático, baseado em suposições claras e
munido de uma metodologia e técnicas de pesquisa as mais explícitas possíveis. Essa nova
forma de tratar os Estudos da Tradução denomina-se Estudos Descritivos da Tradução, a
qual será descrita na seguinte subseção.
32
3.3 Os Estudos Descritivos da Tradução
De acordo com Toury (1985, p. 18), os textos traduzidos e seus elementos
constituintes são fatos observáveis. Em oposição, os processos tradutórios podem ser
supostos ou reconstituídos sem muita certeza. Para o teórico, qualquer pesquisa deve
iniciar-se pelos fatos que são observáveis (assim como acredita Even-Zohar, 1997), ou
seja, pelo próprio texto traduzido. Além disso, o autor (TOURY, 1980, p. 82) defende que
os textos traduzidos são fatos que pertencem a apenas uma ngua e a apenas uma tradição
textual a língua receptora, ou seja, a tradução que, para o teórico (TOURY, 1985, p.
19), é condicionada pelos objetivos aos quais atende, e esses objetivos são determinados
no(s) e pelo(s) sistema(s) receptor(es). Conseqüentemente, o estudioso aponta para o fato
de que os tradutores operam primeira e principalmente segundo os interesses da cultura
para a qual o texto está sendo traduzido. Conforme Toury (1985, p. 19),
as traduções o fatos de um único sistema: o sistema alvo. (...)
Não apenas deixaram o sistema fonte para trás, como também não
estão em posição para afetar suas normas e regras textuais e
lingüísticas, sua história textual, ou o texto fonte como tal. Pelo
contrário, as traduções podem muito bem influenciar a cultura e a
linguagem receptora.
A citação demonstra que, para o autor, o texto fonte não terá relevância
fundamental para o estudo descritivo de uma tradução, idéia que nega a canonização e a
sacralização do texto original decorrente do paradigma estabelecido anteriormente para os
estudos da tradução.
33
Segundo Toury (1985, p. 21-22), para se realizar uma análise de tradução adequada,
é aconselhável que se sigam as seguintes diretrizes dentro do arcabouço dos Estudos
Descritivos da Tradução:
a) Primeiramente, deve-se considerar os textos avaliados como sendo traduções do
ponto de vista intrínseco da cultura alvo, sem referência aos seus textos fonte
correspondentes, e estudá-los do ponto de vista de sua aceitabilidade em seu
novo sistema, como textos na língua alvo e/ou como traduções na língua para a
qual foram traduzidos segundo o autor (TOURY, 1980, p. 55), é a adoção
das normas do pólo receptor que torna um texto aceitável;
b) o segundo passo deve ser mapear esses textos, através de seus elementos
constitutivos, como fenômenos de tradução, em seus equivalentes no sistema
fonte apropriado, identificados como tais no curso de uma análise comparativa,
como soluções para os problemas de tradução;
c) em seguida, deve-se identificar e descrever as relações (unidirecionais e
irreversíveis) que existem entre os membros de cada par; e
d) finalmente, deve-se classificar essas relações através de uma noção de
equivalência relacional-funcional, estabelecida como pertinente ao corpus em
estudo, com relação ao conceito geral de tradução que subjaz ao corpus.
De acordo com Toury (1985, p. 25), as relações funcionais obtidas a partir dos
textos traduzidos e outras áreas do sistema alvo são suplementadas por um segundo grupo
de relações, as relações entre o sistema alvo e o sistema fonte. Essas relações, segundo o
autor, são consideradas as relações de tradução propriamente ditas, pois remetem os
problemas correspondentes no texto fonte às soluções no texto traduzido, estabelecendo a
34
relação tradutória como pares “problema + solução”. Dessa forma, de acordo com o
teórico, o problema (no texto fonte) e a solução (no texto meta) são mutuamente
estabelecidos no curso da análise comparativa e inevitavelmente apresentam-se como um
par associado.
Além disso, Toury (1985, p. 28) afirma que os problemas tradutórios são sempre
reconstruídos em vez de determinados. São reconstruídos através de uma comparação
“alvo-fonte”. Conforme o teórico (TOURY, 1985, p. 30), a partir do estabelecimento dos
pares “problema + solução”, uma tentativa de traçar os padrões regulares que os governam
pode ser realizada. O teórico (TOURY, 1985, p. 31) descreve o processo de
estabelecimento dos pares associados, dentro de um poema, por exemplo, como o seguinte:
primeiramente escolhe-se um sintagma do texto alvo, caso o seja possível substituí-lo
por uma unidade sintático-semântica correspondente do sistema fonte, então move-se para
uma unidade maior dentro do próprio verso, caso ainda o seja possível o procedimento
de substituição, move-se para uma unidade maior no mesmo verso, ou no próximo verso,
ou na estrofe sucessivamente.
Segundo Toury (1985, p. 34), um dos principais objetivos da determinação dos
pares associados problema + soluçãoe do estabelecimento das mudanças na tradução é
tornar possível a descrição e a explicação das relações de tradução que de fato existem
entre os membros dos pares.
Teorizando na mesma linha de raciocínio, Van Den Broeck (1985, p. 57), determina
que uma tradução adequada não constitui um texto propriamente dito, mas sim uma
reconstrução hipotética das relações e funções textuais do texto fonte. O teórico aponta
para a existência de dois tipos de mudança no processo tradutório mudanças
obrigatórias, que são governadas por regras, ou seja, impostas pelas regras do sistema
cultural e lingüístico alvo; e mudanças opcionais, que são determinadas pelas normas do
35
tradutor. A ocorrência de tais mudanças indica a preocupação do tradutor de criar um texto
alvo aceitável, ou seja, um texto consoante às normas do sistema alvo o tradutor pode
não apenas quebrar normas alvo como quebrar regras alvo. Cabe ressaltar aqui o conceito
de equivalência adotado dentro da abordagem descritiva. Segundo Toury (1985, p. 36),
esse conceito diferencia-se dos conceitos tradicionais segundo os quais se estabelece uma
única relação alvo-fonte com base nesse ou naquele tipo de constante. O conceito relevante
para o autor é um conceito funcional-relacional. Para Toury (1980, p. 37), uma tradução,
dentro do âmbito dos Estudos Descritivos da Tradução, será qualquer enunciado na língua
alvo que seja considerado como tradução pela cultura alvo.
A partir das idéias formuladas pelos Estudos Descritivos da Tradução, Lambert e
Van Gorp (1985, p. 44-45), propõem um esquema que lhes permite demonstrar que o
sistema literário fonte e o sistema literário alvo são sistemas abertos que interagem com
outros sistemas. As possíveis relações que o esquema dos teóricos (LAMBERT e VAN
GORP, 1985, p. 44-45) propõe são as seguintes:
a) T1 --- T2
(relações entre o texto original e sua tradução);
b) A1 --- A2
(relações entre autores);
c) R1 --- R2
(relações entre leitores);
d) A1 --- T1
A2 --- T2
(intenções autorais nos sistemas fonte e alvo, e suas correlações);
e) T1 --- R1 T2 --- R2
((cor)relações pragmáticas e de recepção nos sistemas fonte e alvo);
f) A1 --- A1’, A2 --- A2’
(situação do autor em respeito a outros autores, em ambos os sistemas);
g) T1 --- T1’, T2 --- T2’
(situação do original e da tradução enquanto textos em relação a outros);
h) R1 --- R1’, R2 --- R2’
(situação do leitor dentro dos sistemas respectivos);
i) Sistema Alvo --- Sistema Literário
(traduções dentro de uma dada literatura); e
j) Sistema (Literário) 1 --- Sistema (Literário) 2
36
(relações em termos de conflito ou harmonia entre ambos os sistemas).
Os autores (LAMBERT e VAN GORP, 1985, p. 44) ressaltam que, como toda
tradução é o resultado de relações particulares entre os parâmetros mencionados no
esquema, deverá ser tarefa do acadêmico estabelecer quais as relações mais importantes.
Portanto, as relações priorizadas na presente pesquisa envolvem as relações T1 T2, as
relações entre o texto original e suas traduções, tendo em vista que compara duas traduções
e traça suas respectivas relações com o texto fonte.
Para Lambert e Van Gorp (1985, p. 46), as características estilísticas de uma
determinada tradução podem ser primariamente orientadas pelo sistema alvo; contudo,
suas referências sócio-culturais podem ser extraídas do texto fonte. De acordo com os
autores, nenhuma tradução jamais aceitará o texto fonte ou o sistema fonte como seus
modelos exclusivos, conterá, pois, inevitavelmente, todos os tipos de interferências
derivadas do sistema alvo, idéia consonante com a proposta de Toury (1985).
Acresce que, para os teóricos (LAMBERT e VAN GORP, 1985, p. 46),
considerando que a tradução é essencialmente o resultado das estratégias de seleção
originadas e pertencentes aos sistemas de comunicação, a tarefa do acadêmico deve ser
estudar as prioridades — as normas e modelos dominantes — que determinam essas
estratégias. O mesmo prevê Toury (1980, p. 112-113) ao teorizar que qualquer comparação
textual é indireta, ou seja, serão as categorias selecionadas pelos estudiosos a partir de um
construto hipotético que serão relevantes para um determinado estudo. Além disso, não se
pode comparar os textos apenas justapondo-os, mas também se faz necessário uma
referência que venha a ser identificada com o texto fonte e uma combinação de categorias
colhidas nos textos alvo e fonte.
37
Conforme Lambert e Van Gorp (1985, p. 47), é também impossível resumir todas
as relações envolvidas na atividade da tradução. Logo, é necessário estabelecer prioridades,
ser sistemático, evitar julgamentos e convicções e localizar os aspectos e relações
observados dentro de um esquema de equivalência geral. Em cada análise com objetivos
sistemáticos, deve-se tentar determinar quais as ligações dominantes e quais são as suas
funções precisas.
Além disso, conforme Lambert e Van Gorp (1985, p. 51), todo aspecto particular
do processo de tradução deveria ser descrito e discutido não apenas em termos do sistema
Autor-Texto-Leitor, mas também em termos do sistema de tradução e, talvez, até de outros
sistemas culturais. Deve-se, portanto, segundo os teóricos, evitar uma preocupação
exclusiva com tradutores individuais e com textos individuais ou a sua recepção. o se
podem analisar apropriadamente traduções específicas se não se levar em consideração
outras traduções que pertençam ao mesmo sistema. Para os autores, não constitui absurdo
nenhum estudar um único texto traduzido ou um único tradutor; porém, é um absurdo
desconsiderar o fato de que essa tradução ou esse tradutor tenham ligações com outras
traduções e tradutores. Dessa forma, o presente estudo compara dois textos produzidos no
sistema alvo a partir de um mesmo texto fonte.
Complementando o esquema de Lambert e Van Gorp (1985, p. 44-45), Van Den
Broeck (1985, p. 58) propõe os seguintes estágios para uma comparação de um texto alvo
com seu texto fonte:
a) análise do texto fonte que leva à formulação de uma tradução adequada
essa análise compreende todos os níveis textuais nos quais elementos
lingüísticos e extra-lingüísticos tenham relevância funcional. Inclui
componentes fonéticos, lexicais e sintáticos, variação lingüística, figuras
38
retóricas, estruturas poética e narrativa, elementos de convenção do texto
(seqüências textuais, pontuação, italização etc.), elementos temáticos, e
assim por diante — há ainda que se ressaltar que deve ser dada prioridade
a certos aspectos relacionados à estruturação hierárquica dos vários
componentes textuais e suas inter-relações;
b) comparação dos elementos do texto alvo correspondentes aos seus
equivalentes, levando-se em consideração as várias mudanças (ou
desvios) com relação ao texto fonte e
c) descrição generalizada das diferenças entre a exata equivalência do texto
alvo/texto fonte e a tradução adequada, com base na comparação dos
elementos equivalentes essa descrição determinará o grau ou o tipo de
equivalência entre o texto alvo e o texto fonte.
De acordo com Van Den Broeck (1985, p. 58), uma descrição da tradução
cientificamente embasada não pode ser confundida com uma análise de erros pois, apesar
de tal análise ter seu fundo didático, não oferece um sério embasamento crítico.
Geralmente, a análise de erros considera mudanças (adaptações, ou seja, qualquer
procedimento que diferencie o texto alvo do texto fonte) como procedimentos errôneos,
principalmente quando a análise não coincide com a norma do tradutor. A análise proposta
pelo teórico tem uma natureza diferente, posto que não se interessa por a tradução ser
“adequada”, “correta”, ou “bem sucedida”. A análise deve se ater aos “comos”, às “razões”
dos textos traduzidos.
Um modelo apropriado de descrição de tradução, segundo Van Den Broeck (1985,
p. 59) deve levar em consideração as múltiplas relações entre o texto fonte e o sistema de
textos similares e/ou outros textos originados da mesma língua, cultura e tradição; entre os
39
sistemas fonte e alvo; entre o texto alvo e outras traduções do mesmo texto fonte, e assim
por diante.
Para o autor (VAN DEN BROECK, 1985, p. 60), dizer que o objetivo da crítica de
tradução, pelo menos implicitamente, começa a partir de uma base descritiva é admitir que
o ofício da crítica da tradução é uma ocupação acadêmica, que requer habilidades literárias
assim como competência inter-cultural e inter-lingüística. Seria, portanto, uma questão
mais de conhecimento do que de gosto, de compreensão do que de avaliação.
É papel do crítico, segundo o autor (VAN DEN BROECK, 1985, p. 60-61),
concordar ou discordar dos métodos escolhidos pelo tradutor para uma determinada
finalidade. É o crítico quem deve duvidar da eficácia das estratégias escolhidas, criticar
decisões tomadas para com certos detalhes. Contudo, o crítico não pode confundir suas
normas com as do tradutor. É função também da crítica contribuir para uma maior
conscientização das normas dentre todas aquelas envolvidas na produção e recepção das
traduções. Dessa forma, toda tradução implica em uma forma de crítica do seu original.
Logo, o crítico de tradução é o crítico da crítica, pois traz seu juízo de valor para avaliar
um fenômeno constituído de juízos de valores.
A última subseção deste capítulo descreve e contra-argumenta algumas críticas aos
Estudos Descritivos da Tradução.
3.4 Crítica e contra-crítica aos Estudos Descritivos da Tradução
Conforme avalia Bassnett (2002, p. 6-7), a teoria dos poli-sistemas constituiu um
desenvolvimento radical dentro dos Estudos da Tradução, pois diminuiu a ênfase dos
debates infrutíferos sobre fidelidade e equivalência com relação ao texto traduzido. Além
disso, para a autora, essa teoria promoveu as bases para um novo tipo de estudo
40
interdisciplinar dentro dos Estudos de Tradução. Essa nova abordagem tomou uma nova
direção em que se procurava não mais avaliar, mas sim compreender as mudanças
ocorridas no processo tradutório dos textos de um sistema literário para o outro.
Corroborando a mesma idéia, Vieira (1996b, p. 128) declara que essa mudança de
paradigma foi algo extremamente benéfico para os Estudos da Tradução, pois trouxe um
momento de desenvolvimento e de superação da estagnação estabelecida pelas abordagens
anteriores que tendiam a focar “na unidade operacional da palavra, a serem normativas e
centradas no autor”.
Para Vieira (1996a, p. 105), foi no final da cada de 70 e nas décadas
subseqüentes que as teorias desenvolvidas contribuíram para que os Estudos da Tradução
transcendessem a unidade operacional da palavra, passando a abarcar a macro-estrutura da
História e da Cultura, incorporando, ainda, o papel do leitor no processo. Tais teorias, a
partir da insatisfação com aquelas centradas no texto, desenvolveram outras novas que
contemplassem as questões de pragmática e de contextualização. E ainda foram possíveis
formulações teóricas mais amplas em torno do problema do leitor e do pólo receptor.
Contudo, para Vieira (1996, p. 105-106), tais contribuições, ou seja, a teoria da
recepção formulada por Jauss e Iser
2
da Escola de Constância, a teoria dos poli-sistemas
apresentada por Itamar Even-Zohar
3
e desenvolvida por Gideon Toury
4
, ambos da Escola
de Tel Aviv, e a teoria das refrações ou reescrita formulada por Lefevere
5
possuem um
caráter fragmentário e pontual.
2
ISER, Wolfgang (1979). A interação e o leitor: textos de estética da recepção. Sel., trad., introd., Luiz Costa Lima. Rio
de Janeiro: Paz e Terra; JAUSS, Hans Robert. (1980). Esthétique de la recéption et communication littéraire. In:
Congress of the International Comparative Literature Association. Innsbruck: Verlag des Institutes für
Sprachwissenschaft der Universität Innsbruck.
3
EVEN-ZOHAR, Itamar (1979). Polysystem Theory. Poetics Today, Tel Aviv, v. 1, n.1/2. p. 287-310
4
TOURY, Gideon (1980). In Search of a Theory of Translation. Tel Aviv: The Porter Institute for Poetics and Semiotics.
5
BASSNETT, Susan and LEFEVERE, André (eds.) (1990). Translation, History & Culture. Londres e Nova York:
Pinter Publishers.
41
De acordo com Vieira (1996, p. 108 e p. 130), o construto de Even-Zohar e Toury
contempla a relação entre a literatura traduzida e a receptora. Porém, o sistema literário,
para esses autores, não inclui a dimensão humana, embora seja difícil conceber um sistema
literário sem editores, tradutores e leitores (os produtores e os receptores dos signos).
Segundo Vieira (1996, p. 131), o raciocínio funcional e relacional de Even-Zohar pode ser
prejudicado pela exclusão da dimensão humana, o que pode tê-lo levado a se apoiar
bastante em oposições binárias característica dos Formalistas Russos embora de
forma relacional. Para a autora, as oposições binárias podem ser insuficientes quando
usadas para descrever o fenômeno eminentemente humano que é a cultura. Além disso,
para a teórica, um modelo respaldado em oposições binárias pode levar a um raciocínio
maniqueísta e a generalizações apressadas.
Fica evidente que a autora desprezou a idéia dos agentes envolvidos na produção
literária, desenvolvida por Even-Zohar (1997, p. 21-28). O autor, ao definir sua noção de
repertório, ressalta a importância do produtor, do consumidor e da literatura como agentes
e produto da dinâmica estabelecida pelos poli-sistemas. Dessa forma, é relevante para a
teoria a questão do humano, principalmente se se considerarem as contribuições feitas por
Lambert e Van Gorp (1985) assim como as idéias de Van Den Broeck (1985), que vão
além da utilização dos pares “problema + solução” para uma análise de tradução e que
utilizam também elementos extratextuais que influenciam a produção textual.
Segundo Vieira (1996b, p. 131-132), a teoria dos poli-sistemas constitui um
avanço, mas não uma resposta ao problema da contextualização da tradução e à percepção
de Even-Zohar de que uma tradução deve ser examinada dentro de um conjunto de
traduções é metodologicamente viável.
Uma outra questão apontada por Vieira (1996b, p. 125) relaciona-se com a
definição de poli-sistema criada por Even-Zohar. De acordo com a autora, foi com o intuito
42
de enfatizar o caráter dinâmico e heterogêneo dos sistemas que o teórico cunhou esse
termo. Em vez de ‘sistema’ um poli-sistema seria uma rede fechada de relações na qual
os seus membros assumem um determinado valor através de seus respectivos opostos. Mas
um poli-sistema também constitui uma estrutura aberta composta de várias redes
simultâneas de relações ou seja, o termo ressalta a idéia de uma multiplicidade de
relações na heterogeneidade da cultura.
Nessas condições, Vieira (1996b, p. 125) ressalta que, através de movimentos
centrífugos e centrípetos, os fenômenos são levados do centro para a periferia e vice-versa.
— são as denominadas conversões. A teórica postula que tais mudanças ocorrem posto que
as conversões se dão em decorrência da crescente inabilidade das propriedades
canonizadas e situadas no centro de atender a necessidades funcionais estrato
canonizado versus não canonizado um existe senão pelo outro e vivem numa tensão
dinâmica. Uma cultura se mantém se houver tensões dinâmicas essas tensões
produzem ao mesmo tempo o equilíbrio para que o sistema não entre em colapso e a
tensão também produz a evolução do sistema (VIEIRA, 1996b, p. 126).
De acordo com a análise de Vieira (1996b, p. 126), essas oposições binárias, para
Even-Zohar, conferem dinamismo à teoria dos poli-sistemas, ao contrário das abordagens
neo-positivistas, desde que essas oposições sejam vistas à luz das tensões geradas por sua
luta pelo domínio. Segundo a autora, “é essa feição essencialmente dinâmica que o levou a
postular que o seu objeto de estudo o pode ser restrito a textos individuais; com uma
rede de relações, é necessário que se trabalhe com uma multiplicidade de textos” (VIEIRA,
1996b, p. 126). Assim, conforme defende Vieira (1996b, p. 126), a teoria dos poli-sistemas
é suficientemente abrangente para acomodar estudos descritivos da literatura tendo a
cultura como unidade operacional.
43
Pela avaliação de Vieira (1996b, p. 127) segundo Even-Zohar
6
,
a literatura traduzida não é apenas um sistema em si, mas também
um sistema participando plenamente da história do poli-sistema.
(...) A literatura traduzida pode ser inovadora, conservadora,
simplificada, estereotipada etc. (...) e pode participar ou não de
mudanças.
Para a mesma teórica, caso a literatura tenha um papel primário, será parte
integrante de forças inovadoras introduzirá novos modelos de realidade, nova
linguagem poética, novas matrizes técnicas. Essa literatura constituirá força primária
especialmente se uma literatura receptora for periférica ou frágil ou quando há reviravoltas,
crises ou cuos numa literatura. A literatura traduzida, se for primária, pode influenciar
normas, comportamentos e estratégias tradutórias, violará convenções da literatura
receptora buscando adequação ao se aproximar do original.
Conforme aponta Bassnett (2002, p. 6-7), até o final dos anos 80, os Estudos da
Tradução foram dominados pela abordagem sistemática pioneira de Even-Zohar e Gideon
Toury. Como citado anteriormente, segundo a autora, a teoria dos poli-sistemas constituiu
um desenvolvimento radical, pois mudou o foco de atenção dos estudos até então
realizados. A abordagem de Toury, decorrente dos Estudos Descritivos da Tradução foi
refutada por muitos acadêmicos devido a sua ênfase exagerada no sistema alvo (TOURY,
1980, 1985). Toury (1985, p. 19), por sua vez, mantém sua idéia, posto que considera que
qualquer tradução é realizada principalmente para atender a uma necessidade na cultura
alvo. Além disso, Toury (1985, p. 19) rejeita explicitamente qualquer idéia que indique que
a teoria da tradução sirva para melhorar a qualidade das traduções, pois considera que a
tarefa dos teóricos é muito diversa da tarefa dos tradutores.
6
EVEN-ZOHAR, Itamar (1978) The Position of Translated Literature within the Literary Polysystem. In: HOLMES, J.
S. et al (ed.) Literature and Translation: New Perspectives in Literary Studies. Leuven: Acco. p. 117-127.
44
Segundo Bassnett (2002, p. 7), as idéias de Toury não são universalmente aceitas,
mas o amplamente respeitadas. Tanto é que, observa a autora, durante os anos 90, fez-se
uma grande quantidade de trabalhos sobre normas de tradução e persistiu o alerta para a
necessidade de uma maior cientificidade nos Estudos da Tradução.
Conforme avalia Vieira (1996, p. 132), a teoria desenvolvida por Toury tem como
características uma formalização maior e uma radicalização da teoria dos poli-sistemas. A
autora prossegue, afirmando que, apesar de se distanciar dos estudos especulativos, a
abordagem de Toury focaliza traduções realmente existentes: o produto e não o processo
da tradução e, portanto, há uma ênfase no pólo receptor e nas soluções nele encontradas.
Segundo Vieira (1996, p. 133), Toury faz uma certa confusão ao defender que a
tradução centrada no original gera um trabalho de natureza diretiva e normativa, por se
considerar a tradução como uma reconstrução do original. Na verdade, segundo a autora,
tudo isso depende do conceito de fidelidade que se utiliza. Se concebermos a tradução
como reescrita, a visão de cópia especular deixa de fazer sentido, assim como o caráter
normativo. Para a teórica, a mera transposição nos eixos temporal e espacial imprime um
novo estatuto ontológico ao texto original.
Conforme avalia Vieira (1996, p. 133-134), a postura radical de que as traduções
são fatos apenas do sistema receptor é problemática. Essa postura elimina referenciais
como a fonte, e impede a descrição de traduções como um fenômeno bidirecional em
decorrência da reversibilidade do signo. Uma colocação menos radical, segundo a teórica,
daria maior flexibilidade à teoria de Toury (1985).
Desta forma, segundo a autora (VIEIRA, 1996b, p. 135), é excessiva a
formalização da teoria de Toury, ou seja, a visão de tradução como comportamento
regulado por normas e a busca de universais de comportamento tradutório. Essa orientação
universalista só faz sentido se se adotar a visão de tradução como comportamento e a visão
45
de literatura e da cultura como normas. Do contrário, uma teoria geral faria desaparecerem,
inevitavelmente, as especificidades culturais.
Aplicando o modelo de Toury em um estudo de caso prático, Mota (1996, p. 255)
conclui que “os modelos, por natureza, são limitados a um determinado aspecto do
fenômeno que investigam”. Toury, segundo a autora, não detalha, em nenhum momento,
como aplicar a terceira parte de sua análise, em que o autor propõe que se deve reconstruir
os processos de tomada de decisão realizados pelos tradutores. Nesse caso, conclui a
autora, o analista pode inferir baseando-se em evidências lingüísticas dos textos, o que
muita vezes não é suficiente para explicar um processo de tomada de decisão (MOTA,
1996, p. 255).
Conforme analisa Mota (1996, p. 255), o modelo de Toury é produtivo em relação à
análise comparativa entre texto fonte e texto alvo análise menos intuitiva do processo
baseada nas noções de equivalência e adequação do texto fonte/texto alvo. O modelo de
Toury, portanto, necessita de refinamento com relação à última parte da análise, que sugere
a reconstrução de tomada de decisão feita pelo tradutor. Deve-se reconhecer, na opinião da
autora, que uma análise com uma abordagem lingüística apenas não é suficiente para dar
conta de todas as características, ou explicar a complexidade de um texto. É necessário
levar em consideração variáveis sociológicas envolvidas em sua construção.
A lacuna existente na teoria de Even-Zohar (1997) e Toury (1985), citadas por
Vieira (1996b) e por Mota (1996), pode ser adequadamente complementada pelas
sugestões de análise de Lambert e Van Gorp (1985), assim como as de Van der Broeck
(1985) em que fatores que vão além da produção textual em si são relevantes para uma
análise de tradução.
46
O próximo capítulo trata das questões do humor e de alguns instrumentos para
análise de tradução dos textos humorísticos, baseados nos pontos de vista lingüístico e
funcional.
47
4. Humor e tradução
O presente capítulo apresenta questões relacionadas ao humor assim como teorias
que envolvem a tradução do discurso humorístico.
4.1 Características do discurso humorístico
Conforme Almeida (1999, p. 18-20), no processo comunicativo, o indivíduo, de
maneira consciente ou não, pretende obter eficiência ao transmitir sua informação ser
eficiente, para o autor, significa “maximizar a produtividade das informações”
(ALMEIDA, 1999, p. 19). Ainda, para o mesmo autor, o recebedor da mensagem pode
inferir outras informações; para que esse processo aconteça, o indivíduo necessita do
conjunto de hipóteses pertencentes à memória conceitual, que provêm de quatro fontes: da
percepção, da codificação, da memória enciclopédica e do processo dedutivo (ALMEIDA,
1999, p. 20). Para o teórico, qualquer processo de comunicação informativo possui regras
que devem ser observadas pelos interlocutores e tal processo prioriza a inteligibilidade e
veracidade de seu propósito. Há, portanto, conforme caracteriza o estudioso, o
estabelecimento de um acordo tácito e consensual em que as regras são respeitadas de
forma recíproca. O autor aponta para o fato de que, na relação cômica, ao contrário do que
ocorre na comunicação informativa, deve existir a desobediência de certas normas para que
o humor seja possível. Segundo Almeida (1999, p. 40), ser irônico é desobedecer a uma
regra básica da comunicação, comum aos interlocutores: a suposta adesão ao conteúdo
proposicional do enunciado”.
48
Essa idéia também é considerada por Possenti (1998, p. 141), posto que, para o
teórico, “existem restrições sobre certos discursos que, no entanto, são violadas, e existem
regras discursivas que, no entanto, nem sempre são seguidas” essa dinâmica é
constitutiva do texto humorístico, mais especificamente, da piada.
Conforme aponta Almeida (1999, p. 39), o maior sintoma do cômico é o riso, e sua
principal característica, o distanciamento que predomina sobre a identificação. O cômico,
conforme esclarece Almeida (1999, p. 41), é fruto
de um processo interpretativo individual em que a qualidade
cômica atribuída a um indivíduo, além de ser formulada por uma
instância externa a ele e além de possuir um caráter depreciativo,
está relacionado à obtenção de prazer.
Existem várias razões para que o humor aconteça. Para Almeida (1999, p. 12), o
humor pode ser conseqüência de um deslocamento, em que o indivíduo se distancia de
alguma forma de determinada situação para constituir seu ponto de vista. Além disso, para
o autor (ALMEIDA, 1999, p. 13), o cômico também tem por característica um desvio, em
outras palavras, uma inabilidade (e, portanto, tem menos importância que outros gêneros);
por outro lado, esse desvio pode causar uma auto-reflexão. Segundo Almeida (1999, p. 21),
o cômico também pode ser fruto da observação de um desvio de comportamento em que o
observador toma por base, em sua memória, um conjunto de hipóteses derivadas de um
padrão de comportamento que gera modelos de condutas. Almeida (1999, p. 22) também
ressalta que os indivíduos podem não dividir o mesmo ambiente cognitivo em
determinados casos. Logo, esses mesmos indivíduos podem não ser capazes de realizar as
mesmas hipóteses. Neste caso, esse compartilhamento pode se dar apenas parcialmente.
49
Em várias histórias, o cômico decorre de os personagens produzirem ambigüidade a
partir de um enunciado e/ou contexto interpretativos diferentes. O autor cita uma série de
exemplos que ilustram esse aspecto, como o seguinte:
Ao passar diante da casa do amigo, cuja janela se encontrava
aberta, o matuto mineiro uma olhada para dentro e percebe o
amigo diante da televisão ligada. Ele o saúda dizendo: Tarde
amigo! Firme? O outro responde então: Não, futebor. (ALMEIDA
1999, p. 22)
Para Almeida (1999, p. 143-144), a inferência de uma intencionalidade é
importante para a compreensão de qualquer tipo de texto. A relação espirituosa se apóia
em implicitações, subentendidos e alusões, cuja apreensão exige tanto o conhecimento de
proibições e de padrões de comportamento, quanto uma capacidade interpretativa
satisfatoriamente produtiva, capaz de fazer associações, deduções e perceber desvios e
contradições. Em compensação, constituirá um prazer suplementar para o leitor o fato de
ter enxergado o materialmente invisível e compreendido aquilo que não foi dito e que está
fora do alcance dos indivíduos cômicos. Tendo identificado o tipo de contrato proposto e
aceito previamente suas regras, ao iniciar a exploração do texto, o leitor partirá em busca
de sinais que poderão levá-lo ao estabelecimento de, pelo menos, dois tipos de relação.
Numa primeira relação possível, a observação de um comportamento inadequado,
incoerente, um desperdício, uma inabilidade ou falta de senso crítico, que torna o
personagem cômico favorece a relação cômica, de caráter unívoco, que ocorre apenas
no sentido leitor-personagem. Numa segunda relação, em termos menos conscientes, o
leitor participa de uma relação espirituosa com o autor a partir da habilidade deste de
provocar o riso por meio da narrativa se é objetivo do autor suscitar o prazer do leitor,
em contrapartida, será o alvo do reconhecimento deste.
50
Essa mesma idéia é defendida por Rosas (2002, p. 34):
Como em todas as situações em que alguma troca verbal, aquelas
que envolvem o humor também implicam cooperação e, por isso
mesmo, estão sujeitas a conflitos. Mas isso não quer dizer que haja
revogação sumária de toda possibilidade de contrato, pois também o
conflito se sob contrato: é um des-acordo, que “une”, de qualquer
forma, as partes envolvidas. No caso do texto humorístico, é preciso
que o leitor/intérprete identifique o novo contrato que lhe está sendo
proposto e aceite suas regras tipifique o novo contrato que lhe
está sendo proposto e aceite suas regras que cumpra, portanto, a
sua parte. Sua recompensa na relação espirituosa que estabelece com
o emissor está tanto na apreensão de alusões e subentendidos que
demandam o conhecimento de padrões e o reconhecimento de
contradições e desvios quanto na verificação de sua própria
capacidade de produzir associações, analogias e inferências,
detectando o que está além da percepção do observado — ou seja, do
alvo ou personagem cômico.
Segundo Almeida (1999, p. 145), dois movimentos simultâneos que
caracterizam o contrato humorístico. Por um lado, o distanciamento crítico do leitor em
relação ao personagem ridículo no caso da relação cômica; por outro, uma aproximação e
uma cumplicidade entre as instâncias de caráter extratextual, autor e leitor, no caso da
relação espirituosa, visto que compartilham, com exclusividade, hipóteses através das
quais se referem crítica ou ironicamente a personagens e situações. O contrato espirituoso
possui uma dinâmica compensatória em que a aliança entre as instâncias comicizantes se
alimentam da exclusão e da depreciação a que se submete o personagem cômico a
importância do fato cômico não reside tanto nas suas características, mas no modo como é
percebido e nas relações que se estabelecem a partir dele: o isolamento do indivíduo
ridículo e a conseqüente aproximação que se cria entre aqueles que desfrutam da cena,
tenham eles uma existência extratextual ou diegética. Em termos cognitivos, o personagem
cômico é isolado sobretudo porque não tem acesso a determinadas informações que
estariam ao alcance do leitor e, às vezes, de outros personagens ou pela sua própria
51
incapacidade de tratá-las com um grau elevado de produtividade. Não fosse o caso, seria
capaz de formular as mesmas hipóteses que os outros, sem as quais estes também estariam
expostos ao isolamento e ao ridículo.
Para Almeida (1999, p. 41-42), todo indivíduo possui um conceito de
comportamento padrão relativo às atitudes em geral. O efeito cômico poderá surgir de um
desvio de comportamento. Quanto mais o desvio for inconsciente e mecânico, maior
poderá ser o efeito cômico. A observação do desvio desencadeia o riso, que é um modo de
evidenciar esta ruptura, e até mesmo de corrigi-la socialmente.
Ainda dentro dessa análise social, Almeida (1999, p. 127) defende que a
comicidade proporciona um prazer que advém da observação de comportamentos que se
distanciam um do outro o comportamento definido como padrão, normal, lógico e
previsível contrastado com o imprevisível, com algo insólito e transgressor.
Nessa dinâmica, conforme observa Almeida (1999, p. 43), todo indivíduo avalia a
imagem do outro a partir de sua percepção e é ao mesmo tempo incapaz de identificar
como é analisado pelo outro. Todos são alvo da percepção e da crítica de outros. O
observador, ao depreciar o indivíduo cômico, obtém prazer em decorrência da percepção
de que o indivíduo do qual se ri, o qual se despreza, não é ele próprio. Contudo, o
observador, ao sentir-se superior, manifesta sua própria inferioridade ao ser projetado para
a consciência do outro. Ainda assim, para o teórico, o ridículo deriva do convívio social,
ou seja, é uma característica da condição humana.. Conforme avalia o autor,
o humor desprende-se do particular e termina por abalar o princípio
do sério, desprezando o controle, as oposições, a rigidez. Com a
vista alcançando para além das regras sociais, o homem acede a
uma dimensão mais ampla onde o riso é também consciência e
aceitação da relatividade, da alternância, da renovação
(ALMEIDA, 1999, p. 43).
52
Comparado a essa dinâmica, Rosas (2002, p. 25-26) traz a distinção entre o cômico
e o espirituoso, que podem ser conceitos muitas vezes intercambiáveis. Para a autora,
quando rimos de nosso interlocutor (porque ele fez ou disse algo
ridículo), nós: a) não nos identificamos com ele e b) somos
superiores a ele. quando rimos com nosso interlocutor (porque
ele disse algo espirituoso acerca de si mesmo, de nós ou de um
terceiro), nós: a) nos identificamos com ele e b) não podemos ser,
portanto, nem superiores nem inferiores a ele. Isso pode ocorrer
porque, enquanto na relação cômica bastam dois elementos
(observado e observador) entre os quais se exige distanciamento, na
espirituosa de haver três: o observador comunica aquilo que
sabe do observado (que, independe de ser ele próprio ou o receptor
da mensagem, é funcionalmente o segundo elemento na relação) a
um terceiro. O observado se torna, portanto, o emissor de uma
mensagem sobre a situação ou o indivíduo cômico (o observado)
que visa a aliciar o receptor, provocando-lhe o riso através da
identificação e da cumplicidade na observação compartilhada. (...)
A relação cômica é uma relação de primeira mão, que pode abrir
mão do verbal, de modo que o riso tem um caráter de antagonista,
menosprezador e marginalizante; enquanto que a relação
espirituosa é de segunda o, posto que o receptor tem um relato
formulado sobre o observado que lhe é comunicado.
Possenti (1998, p. 134) corrobora essa idéia ao definir que o discurso humorístico é
também uma forma de expressão do racismo e, como conseqüência, o riso não passaria,
pois, de um substituto de um desejo de agressão, um substituto característico dos
civilizados — o humor também tem, portanto, um caráter social, conforme indica Possenti
(1998) em consonância com as idéias de Almeida (1999) e Rosas (2002).
Para Almeida (1999, p. 12), “o humor desperta a consciência crítica”. Além disso,
tanto o humor quanto a ironia, para o teórico, rompem
com os valores criteriosamente estabelecidos (...) A consciência
irônica substitui o absoluto pelo relativo, pois é capaz de apagar as
fronteiras entre o certo e o errado, o positivo e o negativo, o grave e
o irrisório, o fundamental e o acessório. (...) Constitui um
movimento de recuo da consciência e traz uma nova perspectiva.
53
Assim, o humor representa a vitória do prazer sobre a dor. A
atitude humorística toma o lugar da ira e do descontentamento,
quando o indivíduo muda seu posicionamento em face de uma
situação que causa sofrimento e consegue reverter a tendência à
dor. (ALMEIDA, 1999, p. 44)
O enunciado cômico, segundo Almeida (1999, p. 21-22), pode ser espirituoso tanto
pelo desvio que gera quanto pela produtividade pela qual é formulado. Assim, o processo
de representação do cômico tem por características a economia e o duplo sentido. Para
Almeida (1999, p. 87), o conceito de economia distingue-se do conceito de redução, pois a
redução pertence ao processo de representação e é um processo básico de qualquer código.
Já a economia
é uma tendência pessoal que o sujeito manifesta de modo mais ou
menos acentuado através do seu discurso (...) é obtida através de
um comportamento produtivo, que por si , pode desencadear o
riso e marcar um discurso espirituoso (...) pode ser situada em dois
níveis: na pertinência de traços em relação à sua capacidade de
representar os objetos e na pertinência da situação representada em
relação aos efeitos contextuais que produz. (ALMEIDA, 1999, p.
87)
Além disso, conforme o autor, também “a capacidade de um enunciado
desencadear hipóteses adicionais à luz das quais será feita sua própria interpretação é uma
característica da economia” (ALMEIDA, 1999, p. 92).
Uma importante distinção dentro do gênero cômico é a diferença entre o espírito de
palavras e o espírito de pensamento. Conforme define Almeida (1999, p. 46), o primeiro
gera ambigüidade no enunciado. Essa característica humorística possibilita duas vias
interpretativas diferentes. A condensação se faz presente nesses tipos de construção e, para
exemplificar tal característica, o autor cita como exemplo a seguinte situação cômica:
54
A indignação de um cidadão carioca diante da falta de princípios e
de honestidade da classe política brasileira expressava-se num
adesivo colado no vidro traseiro de um carro, em 1992, nos
seguintes termos: Vote nas putas, nos filhos não adianta.
(ALMEIDA, 1999, p. 46)
o espírito de pensamento, para o teórico, não depende da estrutura lingüística. O
desvio deriva de algo ilógico diferente do comportamento padrão. A principal técnica
desse tipo de representação é o deslocamento que provoca estranhamento e surpresa. Uma
outra técnica do espírito de pensamento é a representação indireta, que ocorre ao se
estabelecerem alusões, metáforas e/ou comparações. Como exemplo, o autor cita a
seguinte piada:
a história do escriturário, orgulhoso de seu temperamento prático e
econômico, que conta ao colega um episódio que lhe ocorreu na
véspera: Cheguei em casa, e vi minha mulher na cozinha
descascando cebola, com os olhos encharcados. Então, contei uma
história triste para aproveitar as lágrimas. (ALMEIDA, 1999, p. 47)
Cabe ainda ressaltar que, para Almeida (1999, p. 47), são inúmeras as conexões
entre todas essas técnicas; e o uso de uma não exclui a utilização de outras.
Caracterizando o humor, Vandaele (2002, p. 159) ressalta que dois tipos de
sentimentos de humor: um sentimento causado por atos (provavelmente) intencionais
(atribuição interna) em oposição ao humor de situação, no qual a percepção do humor é
atribuída a causas externas, não intencionais. Além disso, é preciso questionar se na
situação um comunicador, uma intenção e/ou efeito humorístico aparente. Tais
questionamentos, segundo o autor, levam a quatro possíveis situações: a) quando o
comunicador (ou seja, nenhuma intenção) uma situação cômica que pode ser
incongruente (a forma de uma nuvem ou uma situação embaraçosa); b) quando um
comunicador aparente, nenhuma intenção, porém um efeito humorístico se faz presente
55
o humor não intencional que pode causar vários efeitos no emissor (de sentimento de
inferioridade a uma rápida compreensão da incongruência); c) quando há um comunicador,
uma intenção humorística aparente e um efeito humorístico, constitui-se o humor
intencional, mesmo que o humor intencional possa diferir do efeito humorístico; e d)
quanto um comunicador evidente, uma intenção humorística óbvia mas não há efeito
humorístico, ocorre o humor inalcançado, mais uma vez seguido de todos os tipos de
implicações emocionais subseqüentes. Como conseqüência do humor intencional, segundo
Vandaele (2002, p. 161), os sentidos intencionais do comunicador reconstruídos a partir de
seu comportamento verbal ou não verbal causam no receptor a percepção da intenção do
humor, o que pode ser avaliado espontaneamente ou artificialmente através de um
sorriso/riso fisiológico inevitável, um sorriso/riso não fisiológico realizado, ou qualquer
outro possível sinal como raiva, silêncio etc.
Uma outra característica importante do discurso humorístico, identificada por
Almeida (1999) e Rosas (2002), é que a linguagem do humor deve ser ambígua, mas nunca
redundante. Dessa forma, a economia se torna imprescindível para o cumprimento do
objetivo do emissor, que é o de provocar o riso. Na tradução de uma piada, conforme
Rosas (2002, p. 54), deve-se observar a questão da bitextualidade, posto que o tradutor
deve selecionar as estruturas e/ou itens fonéticos, lexicais que possam transcriar um efeito
semelhante em outra língua. A bitextualidade, segundo a estudiosa, está “presente na
origem do caráter fundamentalmente dúplice do texto humorístico” (ROSAS, 2002, p. 54).
Assim como Almeida (1999) e Rosas (2002) defendem a idéia da ambigüidade,
Possenti (1998, p. 37) ao descrever as características da piada, afirma que [elas] ilustram
de forma brutalmente clara a tese da ambigüidade, ou, ainda melhor, do equívoco que a
linguagem pode produzir”. Tipicamente, segundo Possenti (1998, p. 39), uma piada possui
algum elemento lingüístico com pelo menos dois sentidos possíveis, e o leitor não tem
56
apenas de identificar tais sentidos, mas descobrir que um dos dois, o mais óbvio, deve ser
deixado de lado, enquanto que o outro, menos óbvio, deve ser considerado relevante e
dominante. As piadas operam, segundo Possenti (1998, p. 40), com ambigüidades, sentidos
indiretos, implícitos etc. e, portanto, para se compreender qualquer piada, se faz necessário
“mover-se” pelo texto. Ainda em diálogo com Almeida (1999), Possenti (1998, p. 38)
observa que “todas as piadas veiculam, além do sentido mais apreensível, uma ideologia,
isto é, um discurso de mais difícil acesso ao leitor”.
Ao ressaltar a importância dos elementos que constituem a piada, Possenti (1998, p.
24) afirma que estes são dados de tipo crucial, com as vantagens de que se encontram em
grande quantidade (provavelmente em todas as culturas) e o dados efetivamente
enunciados pelos falantes, e que não precisam ser criados ad hoc para experimentos, são
portanto dados e/ou exemplos autênticos (situação que se contrapõe a muitos estudos
lingüísticos).
De acordo com análise de Possenti (1998, p. 25-26), as piadas são interessantes
para os estudiosos uma vez que existem piadas sobre temas socialmente controversos.
Basicamente, o autor elenca os temas que o universo das piadas compreende:
sexo, política, racismo (e variantes como etnia e regionalismo),
canibalismo, instituições em geral (igreja, escola, casamento,
maternidade, as próprias línguas), loucura, morte, desgraças,
sofrimento, defeitos físicos (também são considerados como
defeito a velhice, a calvície, a obesidade, órgãos genitais pequenos
ou grandes) etc. (POSSENTI, 1998, p. 25-26).
Desse modo, Possenti (1998, p. 43) argumenta que as piadas são relativamente
poucas, ou seja, as mesmas piadas ou as mesmas idéias são repetidas com pequenas
variações, trocando-se às vezes os personagens. Como exemplo, Possenti (1998, p. 43) cita
as piadas sexistas que repetem estereótipos que poderiam ser considerados universais. Essa
57
universalidade ocorre “não no sentido de que provavelmente todos os povos produzem
piadas, mas no sentido de que elas versam sobre poucos tópicos, sempre os mesmos, e
apenas variam como decorrência de certas especificidades lingüísticas” (POSSENTI, 1998,
p. 44).
Uma outra característica da piada, segundo Possenti (1998, p. 26), é a utilização de
estereótipos, que veiculam uma visão simplificada dos problemas, pois, assim, tornam
possível a compreensão de interlocutores não-especializados.
Um outro traço marcante da piada seria a possibilidade de veiculação de um
discurso proibido, subterrâneo, não oficial, que não se manifestaria, talvez, através de
outras formas de coletas de dados as piadas, portanto, promovem discursos não
explicitados correntemente. Muitas vezes, as piadas, segundo Possenti (1998, p. 142),
dizem os discursos que muitos de nós gostaríamos de dizer em nosso próprio nome, não
houvesse as regras sociais que nos controlam.
Possenti (1998, p. 27) considera ainda que, do ponto de vista estritamente
lingüístico, as piadas constituem peças textuais que demonstram ter seu autor um domínio
da ngua de alguma forma complexo. Apesar de complexo, Possenti (1998, p. 27-36)
afirma que é possível classificar as piadas com base no nível, ou no mecanismo lingüístico
que esses tipos de texto acionam. Obviamente, um mesmo texto humorístico, ou uma
mesma piada, pode acionar mais de um mecanismo simultaneamente. Existem, de acordo
com o teórico, piadas que se utilizam de mecanismos fonológicos, morfológicos, lexicais,
dêiticos, sintáticos, de pressuposição, de inferência, de conhecimento prévio, de variação
lingüística e de tradução.
Possenti (1998, p. 42), ao avaliar o que muitos pensam sobre a piada, ataca a idéia
de que as piadas sejam culturais. Ora, a rigor, argumenta, tudo é cultural, não só as piadas.
Tal fato, segundo o autor, não contribui para a explicação ou caracterização da piada. É
58
preciso, pois, segundo Possenti (1998, p. 42), que se evidencie quais fatores culturais são
relevantes para quais aspectos das piadas e, mais importante ainda, quais fatores culturais
distinguem as piadas produzidas em um país ou em uma cultura.
Consoante com essa idéia, Rosas (2002, p. 39) destaca que “é impossível alijar o
elemento cultural o qual, mais que subjacente, é formador por excelência desse
conhecimento. Assim, com o intuito de negar valor, interesse ou viabilidade ao estudo
lingüístico do humor ou ao de sua tradução –, afirma-se muitas vezes que ‘as piadas são
culturais’”. A autora afirma que isso tudo é óbvio, mas não apenas com relação às piadas; é
preciso conhecer a cultura para entender piadas e rir delas, como também para entender
“canções, histórias infantis, mitos, receitas culinárias, leis, regras políticas etc.” (ROSAS,
2002, p. 39).
Um outro “lugar-comum” sobre o que se pensa sobre as piadas é a idéia de que uma
piada mal contada não funciona. Para Possenti (1998, p. 44), qualquer texto mal
organizado não funcionaria, o que ocorre também com a piada. O que não pode faltar, além
da organização, é o elemento que traga uma ambigüidade relevante para a configuração da
piada (POSSENTI, 1998, p. 45). O riso, segundo o autor, ocorre devido à presença de uma
passagem do texto que parece ter uma interpretação óbvia e, de repente, descobre-se que
pode ter uma outra ainda mais óbvia.
Um outro aspecto controverso levantado por Possenti (1998, p. 45) é a quantidade
de riso que uma piada provoca. Muitos pensam que quanto mais se ri, melhor é a piada. Ou
alternativamente, por conseqüência, pessoas que teatralizam ou representam melhor a
piada são melhores contadores de piadas que os outros. Nesses domínios, para o teórico,
aspectos diferentes estão sendo confundidos, posto que grandes piadas podem não
provocar gargalhadas, mas apenas sorrisos leves. Por outro lado, atores que fazem seu
público rir podem estar produzindo tal efeito através de uma série de outros recursos que
59
não tenham relação com a piada. Muitas histórias engraçadas não são piadas, avalia o
teórico. Logo, o que faz com que uma piada seja uma piada, segundo Possenti (1998, p.
46), não é o tema em si, mas o modo como o texto apresenta tal tema ou uma tese sobre
esse tema. Portanto, para esse estudioso, a piada envolve uma técnica, e não uma série de
“lugares-comuns”. Além disso, como aponta Rosas (2002, p. 43) “a intencionalidade
humorística de um texto não é o suficiente para provocar o riso”.
Um outro “cliché” sobre o humor é a defesa de que este sempre é crítico. Para
Possenti (1998, p. 49), “o humor nem sempre é progressista”. Uma característica comum
do humor é a possibilidade de se dizer algo um tanto proibido, idéia também defendida por
Almeida (1999). Mas tal elemento proibido, o necessariamente precisa ser crítico,
revolucionário, contrário às normas. O humor, segundo Possenti (1998, p. 4),
pode ser extremamente reacionário, quando é uma forma de
manifestação de um discurso veiculador de preconceitos, caso em
que acaba sendo contrário a costumes que são, de alguma forma,
bons ou, pelo menos razoáveis, civilizados, como os tendentes ao
igualitarismo, sem dúvida melhores que os seus contrários.
Uma outra característica importante da piada, apontada por Possenti (1998, p. 52-
53), envolve a questão da interpretação textual. Os textos em geral são abertos e permitem
uma multiplicidade de interpretações sobre esses textos o leitor deve trabalhar para
obter as interpretações possíveis, ou descobrir e ficar com as outras todas. Mas existem
textos que impõem uma leitura única. Tais textos, se não interpretados da maneira deles,
não produzem seu principal efeito e, portanto, desautorizam qualquer outra leitura. A
maioria das piadas têm essa característica, posto que a sua interpretação é comandada por
regularidades lingüísticas. Apesar dessa dinâmica imposta pela piada, Possenti (1998, p.
61) deixa claro que:
60
um texto que impõe a seus leitores uma leitura única, sob pena de
não entenderem sua razão de ser, não é a mesma coisa que dizer
que o leitor é um receptor passivo de um texto, diante do qual
lhe resta a mera decodificação, isto é, o agenciamento puro e
simples de seu conhecimento lingüístico.
Esses textos, segundo o teórico (POSSENTI, 1998, p. 61), na verdade, têm sua
estratégia de imposição de leitura, em que apresentam ao leitor diversas possibilidades,
para em seguida impedir-lhe algumas.
Assim como Possenti (1999), Rosas (2002, p. 53-54), ao comparar a linguagem do
humor à da poesia, defende que ambas requerem como condição necessária para suas
configurações a presença da ambigüidade, ao contrário de outros tipos de texto. Contudo,
na poesia, a ambigüidade não pode ser resolvida, a fim de gerar várias possibilidades de
interpretações. No caso do humor, segundo a autora (ROSAS, 2002, p. 53-54), “em que a
mente também é levada a saltos cognitivos”, uma diferença, posto que a ambigüidade
não pode gerar outros sentidos, mas sim, uma interpretação alternativa, cujo equívoco será
revelado ao final do texto, com o desfecho ou punchline (frase que conclui a piada).
Uma outra crítica feita por Possenti (1998, p. 80) envolve o fato de que a lingüística
voltada para a análise do humor desenvolveu estudos tradicionais que enfocam apenas a
palavra e, no máximo, avaliam o duplo sentido. A palavra, segundo Possenti (1998, p. 81)
tem outros humores além do duplo sentido, e possui uma infinidade de complexidades
lingüística ou de temas recalcados. Muitas vezes, o efeito cômico surge da subversão de
um valor (Possenti, 1998, p. 82), a partir de uma analogia (Possenti, 1998, p. 84), de uma
referência extensiva anafórica (Possenti, 1998, p. 138), de uma técnica que joga com a
diferença entre uso e menção (Possenti, 1998, p. 145), do simples uso de um elemento
surpresa (Possenti, 1998, p. 150), não necessariamente de uma ambigüidade. O humor
61
baseado na palavra, segundo Possenti (1998, p. 92), não é um humor simples de ser tratado
do ponto de vista lingüístico.
Almeida (1999, p. 153) sintetiza a questão do humor da seguinte forma:
a alternância das posições eu/outro, crítico/criticado,
comicizante/cômico faz do sucesso e do fracasso o verso e o
reverso da mesma moeda, do alto e do baixo, situações necessárias
à unidade; da morte, uma etapa do ciclo da vida; do fim, um novo
ponto de partida. O rigor baseado em critérios de verdade é
suplantado por sentimentos de relatividade e de temporalidade; a
crítica abre espaço à tolerância e à compaixão. Dentro de um
contexto social e histórico mais amplo, a verdade oficial e a
seriedade surgem como visões parcializantes de um todo, fruto de
incessantes tentativas de se controlar o mundo e o homem através
das instituições. Esta é a dimensão mais nobre e terapêutica do
humor, pois, além de constituir-se como um mecanismo de prazer,
tem a vantagem de combater a exacerbação da vaidade, da ambição
e do sentimento de levar-se tão a sério, mostrando ao homem a
medida de seu próprio consolo, e dimensionando seu sucesso na
proporção da sua própria dor.
Complementando as idéias de Almeida (1999), Vandaele (2002, p. 151) define o
que o é humor. Segundo este autor, o humor não é uma forma convencional de
expressão em que se atribui em sentidos a formas lingüísticas lexicalizadas; o humor não
se atribui a significantes, embora alguns itens lexicais (palavras ou sintagmas) sejam
convencionalmente considerados humorísticos; o humor não é necessariamente uma
conseqüência de sentidos literais meramente das frases, ou seja, de seu conteúdo
proposicional. Segundo o mesmo teórico (VANDAELE, 2002, p. 155), considerar uma
mensagem humorística significa simplesmente considerar a natureza séria de outras
mensagens. É geralmente aceito que o texto sério possua um grande número de
subgêneros, os quais possuem diferentes propósitos e efeitos: o texto informativo, o texto
emotivo, o texto instrutivo, o texto persuasivo etc. O humor, por outro lado, tanto pode ser
simplesmente considerado o efeito de um texto, assim como a seriedade dos textos rios
62
pode ser considerada como uma característica geral desse tipo de texto. Dessa forma, para
o teórico, o humor pode ser subdividido em tipos mais específicos: a sátira, a paródia etc.
Possenti (1998, p. 13), ao fazer um histórico sobre os estudos humorísticos afirma
que “são incontáveis os estudos sobre o humor”. Contudo, para o mesmo estudioso, a
maioria das obras que tratam do assunto envolvem questões filosóficas, psicológicas e
sociológicas, enquanto muito poucas tratam dos aspectos lingüísticos envolvidos na
produção do humor. Tais explicações, segundo Possenti (1998, p. 20), baseadas nos
campos sociológicos, psicológicos etc. tornaram-se banais e repetitivas.
Falta no campo do humor, segundo Possenti (1998, p. 14), “pontos de vista novos”,
ou seja, considerar as piadas a partir de um ponto de vista exclusivamente lingüístico, ou
seja, falta descrever o que é especificamente lingüístico na piada. Para tanto, dever-se-ia
explicar o “como” e não o “porquê” do humor, conforme se tem feito. Possenti (1998, p.
17) indica a necessidade de uma descrição das “chaves lingüísticas que o o meio que
desencadeia nosso riso”.
A partir de sua experiência, Possenti (1998, p. 20) conclui que não existe uma
lingüística do humor, posto que
não uma lingüística que tenha tomado por base textos
humorísticos para tentar descobrir o que faz com que um texto seja
humorístico, do ponto de vista dos ingredientes lingüísticos; no
caso de se concluir que o humor o tem origem lingüística, que
ele não é da ordem da língua, não uma lingüística que explicite
ou organize os ingredientes lingüísticos que são acionados para que
o humor se produza; e o uma lingüística que se ocupe de
decidir se os mecanismos explorados para a função humorística
têm exclusivamente esta função ou se se trata do agenciamento
circunstancial de um conjunto de fatores, cada um deles podendo
ser responsável pela produção de outro tipo de efeito em outras
circunstâncias ou em outros gêneros textuais.
63
Possenti (1998, p. 21) argumenta que o que existe na verdade são lingüistas que
trabalham eventualmente sobre ou a partir de dados colhidos em texto humorísticos e, com
esses dados, pode-se discutir os efeitos produzidos nos níveis sintático, morfológico,
fonológico, pelas regras de conversação, inferências, pressuposições etc. Para o autor,
imaginar a existência de uma lingüística do humor implicaria a existência de um grupo de
humoristas ou produtores de piadas que decidissem apenas produzir textos de humor e que
explorassem determinado aspecto de determinada língua ou da linguagem, o que não existe
— os aspectos explorados pelo humor são os mais variados.
Para que as piadas se tornem importantes dentro do campo da ciência lingüística,
seria preciso, segundo Possenti (1998, p. 22), considerar os aspectos tipicamente
lingüísticos do humor, deixando em segundo plano — mas sem excluí-las — outras
questões que fossem relevantes. Dentro do âmbito lingüístico, a pergunta que a lingüística
deveria buscar responder é “qual a característica textual, verbal da piada?” (Possenti, 1998,
p. 23).
Além disso, Vandaele (2002, p. 155) afirma que uma necessidade de ampliação
e refinamento do sentido do humor e, para isso, se faz necessária uma investigação do
humor em que se deve analisar suas causas lingüísticas ou o lingüísticas e seus efeitos
intencionais e não intencionais.
A próxima seção aborda a tradução do discurso humorístico.
4.2 A tradução do discurso humorístico
Segundo Vandaele (2002, p. 150), a existência do aspecto humorístico sugere que a
tradução do humor seja qualitativamente diferente de outros tipos de tradução. Para o
teórico, não se pode comparar a tradução do humor a outros tipos de tradução. quatro
64
aspectos importantes para a tradução que se destacam ao se analisar o discurso
humorístico: a) o humor tem por conseqüência a manifestação/exteriorização do riso; b)
de se distinguir entre a apreciação do humor e sua produção, posto que são duas
habilidades distintas; c) a apreciação do humor varia individualmente um tradutor pode
identificar uma situação supostamente cômica e o considerá-la engraçada e d) a
racionalização do humor através do processo tradutório pode modificar o efeito do humor.
Vandaele (2002, p. 151), baseando-se nas teorias pragmática, dinâmica e funcional,
conclui que a equivalência tradutória pode ser concebida em termos cognitivos, mentais e
intencionais, como uma relação entre dois textos (fonte e alvo) capaz de produzir o mesmo
efeito ou um efeito similar, como resultado da reconstrução da intenção do texto fonte e na
recodificação no texto alvo pelo mesmo efeito intencional. O humor, segundo o autor, pode
ser facilmente reconstituído como efeito humorístico e, portanto, a tradução do humor teria
por objetivo alcançar o mesmo efeito humorístico alcançado pelo original.
Para Vandaele (2002, p. 165), a tradução é potencialmente uma atividade ética
enquanto comunicação informativa (a comunicação dita bona-fide), contudo, não é bem
assim no que se refere à tradução do humor. O humor pode constituir uma força muito
positiva, mas é potencialmente também um mecanismo retórico forte que não está muito
atrelado à ética. Para Vandaele (2002, p. 166), como conseqüência disso, não deve haver
regras éticas associadas à tradução do humor, mas é importante estabelecer regras quanto
às funções do humor.
Vandaele (2002, p. 168) ressalta que, embora não exista uma receita para o humor e
que o cômico derive de um processo semântico criativo induzido por qualquer significante
possível existem padrões e sinais que têm potencial cômico humour moves in
mysterious but traceable ways” (VANDAELE, 2002, p. 170).
65
Vandaele (2002, p. 170) aponta para o fato de que Barthes, Lévi-Strauss ou Freud
são as referências enquanto autoridades no âmbito dos estudos do humor como um
substituto pobre de estudos empíricos mais aprofundados. Assim, o teórico defende que os
estudos de caso devem continuar a ser conduzidos e não podem simplesmente ser
substituídos por um conhecimento comparativo da fonte e do alvo, pois nem sempre a
comparação dos modelos de competência da fonte e do alvo podem prever o desempenho
da tradução do humor.
A próxima subseção discute a possibilidade de tradução do discurso humorístico.
4.2.1 A possibilidade da tradução do discurso humorístico
Possenti (1998, p. 36) acredita que é possível traduzir algumas piadas e outras não,
posto que a tradução pode causar a perda da característica crucial da piada. Possenti (1998,
p. 43) afirma que existe um tipo de piada que não pode ser repetida, dita não-transcultural,
pois depende de fatores estritamente lingüísticos e, portanto, pode funcionar no interior
de uma língua ou de línguas aparentadas. Essa idéia, conseqüentemente, reforça a
impossibilidade de tradução em determinados casos, uma vez que qualquer variação faria
da piada uma nova piada.
Segundo Schmitz (1996, p. 94), o humor é um fenômeno humano básico, que todas
as culturas, sociedades e classes sociais conhecem. É difícil, pois, pensar numa sociedade
ou grupo que não conheça alguma manifestação de humor. Conforme resenha o autor,
vários especialistas, respaldados por uma variada gama de disciplinas, têm estudado o
humor. Um dos pioneiros desse estudo é o psicanalista austríaco Sigmund Freud.
Antropólogos, sociólogos, psicólogos e mais recentemente lingüistas têm analisado o
humor e o papel dele na sociedade humana. Mas todas as idéias decorrentes desses
66
pensamentos, conforme defende Possenti (1998, p. 14), não são originais, são pouco
práticas e deixam de lado a natureza lingüística do humor.
O teórico (SCHMITZ, 1996, p. 87), ao discorrer sobre a tradução do discurso
humorístico e da possibilidade de traduzi-lo, defende que essa empreitada é possível em
parte, assim como acredita Possenti (1998, p. 36). Segundo Schmitz (1996), não
problemas quando o humor depende do contexto ou da situação. Por outro lado, quando o
humor envolve ambigüidade fonológica, semântica ou sintática, sua tradução fica mais
complicada devido às diferenças estruturais entre a língua-fonte e a língua-alvo. Ao mesmo
tempo, o autor acredita que a meta da tradução deve ser seu efeito geral, explicando que:
o critério para a tradução de piadas de uma determinada língua para
outra não deve ser baseado na reconstrução de um determinado
texto humorístico original. O essencial não é a fidelidade ao texto
original mas o comprometimento de (re)criar um efeito humorístico
na língua de chegada (SCHMITZ, 1996, p. 88).
Schmitz (1996, p. 88) afirma, ainda, que o humor constitui um discurso, ou melhor,
um gênero, bastante complexo, que está intimamente ligado à cultura de um povo. O que é
considerado engraçado é subjetivo, argumenta, posto que:
existem milhares de piadas, chistes e adivinhações para todos os
gostos. indivíduos que dificilmente apreciam o humor de um
determinado tipo de piada. Outros que o toleram as piadas,
tachando-as com os adjetivos “infantis”, “ridículas”, “horríveis”, ou
“infames”. Por outro lado aqueles que se deleitam com uma
piada ou uma história humorística. Alguns falantes inventam
piadas, guardando-as na memória, para usar num momento
adequado. Em certas situações conversacionais, a piada serve para
ajudar os participantes, facilitando a interação e promovendo
solidariedade entre os mesmos. (SCHMITZ, 1996, p. 88)
67
Schmitz (1996, p. 89) aponta para o fato de que casos de humor possíveis de
traduzir e outros difíceis ou até impossíveis de traduzir sem uma recriação total da situação
ou conteúdo humorístico. Por exemplo, segundo o autor, nem sempre uma determinada
língua tem os recursos lexicais necessários para um jogo de palavras engraçado. Para
elaborar uma tradução na qual o humor do original é mantido, seria necessária uma
reestruturação junto com uma boa dose de criatividade por parte do tradutor. O autor
defende a idéia de que o essencial nesse tipo de tradução é reconstruir ou recriar um efeito
humorístico na própria língua-alvo, ainda que haja mudanças mínimas ou mesmo drásticas
nessa língua. Daí se vê que
é plenamente admissível mudanças do tema e também da situação
do chiste ou piada, pois a fidelidade ao texto original e a insistência
no significado único do mesmo não procedem. Esta postura conduz
em certos casos até uma troca de piada, especialmente quando o
tradutor o encontra recursos adequados na língua de chegada.
(SCHMITZ, 1996, p. 92)
Brezolin (1997, p. 15) produz um artigo com o objetivo de criticar as idéias de
Schmitz (1996) apresentadas anteriormente. Em seu estudo, Brezolin (1997) defende a
idéia de que é possível traduzir o humor, assim como é possível ensinar a traduzi-lo,
resguardadas as devidas dificuldades inerentes ao ato tradutório. O autor acredita que
procedimentos a serem seguidos de modo a recuperar mecanismos lingüísticos,
pragmáticos e culturais, e manter o mesmo, ou quase o mesmo, efeito humorístico no texto
traduzido.
Ambos autores concordam com o fato de que o texto humorístico constitui um
grande desafio para os tradutores. Porém, não existe um consenso entre ambos e até
mesmo entre vários autores com relação à possibilidade de tradução desse tipo de texto.
68
As piadas, segundo Brezolin (1997, p. 16), constituem um universo textual
completo, que permite ao tradutor conhecer o texto todo. Além desse pressuposto, o autor
se preocupa com a resposta para a pergunta: “é possível traduzir o humor?”. Segundo o
autor, a resposta é “sim”, desde que
tenha sido o humor criado com base no contexto ou situação, ou
num mecanismo lingüístico (fonológico, semântico ou sintático), a
tradução do humor sempre será uma tarefa difícil, tão difícil quanto
traduzir qualquer outro tipo de texto, porém praticável
(BREZOLIN, 1997, p. 17).
Para o autor, traduzir um texto humorístico ou não-humorístico o se baseia em
teorias de tradução que tentam, a todo custo, recuperar o significado do original. Uma
visão adequada, segundo o teórico, visa tentar percorrer caminhos que desmascaram a
ilusão de que se pode compreender o original somente por intermédio dos significantes
analisados na hora da leitura.
O significado do texto fonte está muito mais naquele que o lê, pois esse texto
começa apenas a existir no momento em que está sendo lido. Arrojo (1992, p. 78)
corrobora essa idéia ao dizer que “qualquer tradução, por mais simples e despretensiosa
que seja, traz consigo as marcas de sua realização: o tempo, a história, as circunstâncias, os
objetivos e a perspectiva de seu realizador”. De acordo com a teórica (ARROJO, 1992, p.
78), toda tradução revela sua origem numa interpretação exatamente porque o texto de que
parte, o chamado “original”, somente vive através de uma leitura que será sempre e
necessariamente também produto da perspectiva e das circunstâncias em que ocorre.
Para Brezolin (1997, p. 18), o que torna viável a tradução de uma piada, assim
como outros tipos de texto, é necessariamente uma concepção de tradução que, além de
prever as várias interpretações de cada leitor, aceita o recurso de recriação como a única
69
saída para alguns casos, como, por exemplo, um texto em que o humor ocorre em nível
fonológico.
A tradução de piadas, para Brezolin (1997, p. 19), não deve apenas refletir uma
preocupação com o desafio que representa esse tipo de texto, mas também com as
imposições criadas pela estrutura das línguas envolvidas. As piadas possuem diferentes
mecanismos em suas estruturas internas, e determinados elementos criam o humor.
Diversos aspectos, tanto culturais quanto lingüísticos, na língua fonte podem ser trazidos à
discussão antes de se buscar uma solução na língua alvo.
Para Brezolin (1997, p. 19), o resultado de uma tradução está intimamente ligado
aos objetivos a que esta se propõe. Portanto, conclui o autor, o tradutor deve construir um
leitor antes de iniciar a tradução.
Não há grandes dificuldades para a tradução de piadas em que o humor depende do
contexto ou da situação, tanto para Schmitz (1996) quanto para Brezolin (1997). Por outro
lado, acreditam, piadas baseadas em itens lexicais, morfológicos e/ou fonológicos
requerem um tratamento mais elaborado por parte do leitor/ouvinte, pois o humor reside
em aspectos lingüísticos e, portanto, mais difíceis de traduzir. Segundo Brezolin (1997, p.
25), uma vez que se detecta o mecanismo utilizado na piada original, basta buscar um
outro igualmente eficaz na língua de chegada.
Brezolin (1997, p. 29) conclui que o humor pode ser tanto traduzido quanto
ensinado, contanto que se tenha o cuidado de deixar claros alguns fatores, ou seja, para que
o humor seja traduzido e, principalmente, mantido, é necessário que o tradutor: conheça as
línguas envolvidas muito bem para perceber onde a regra está sendo rompida para criar o
humor; tenha interpretado e compreendido o conteúdo da piada, fazendo uso de bom senso
e inteligência e tenha se expressado considerando não apenas os padrões da língua alvo,
mas também as necessidades do público-alvo.
70
A próxima subseção apresenta a Teoria do Humor Verbal e a relaciona à questão da
tradução do texto humorístico.
4.2.2 A Teoria do Humor Verbal e a tradução do texto humorístico
Segundo Attardo (2002, p. 173-174), consoante com Vandaele (2002), a tradução
envolve a conservação do sentido através das línguas essa definição assume, portanto, a
idéia de que o discurso ou a escrita modificados da língua fonte para a língua alvo mantêm-
se constantes. A persistência do sentido entre o que foi dito/escrito na língua fonte e o que
foi produzido na língua alvo é crucial para o processo de tradução. Para o teórico, a
persistência do sentido é a essência da tradução, o que requer um teste de coerência. Um
teste adequado baseia-se na seguinte proposição, segundo Attardo (2002, p. 175): uma
correspondência entre dois textos T
1
e T
2
, de modo que o sentido (M) de T
1
(M
T1
) e o
sentido de T
2
(M
T2
) sejam similares (aproximados) em que M
T1
M
T2
e/ou a força
pragmática (F) de T
1
(F
T1
) e a força pragmática de T
2
(F
T2
) sejam similares/aproximadas
em que F
T1
F
T2
.
A partir dessas considerações, Attardo (2002, p. 176) desenvolve a Teoria Geral do
Humor Verbal, que é uma revisão e também uma extensão da Teoria do Script Semântico
do Humor, que foi desenvolvida pelo próprio autor com o auxílio de Victor Raskin
7
. A
primeira incorpora esta última e, do ponto de vista dessas teorias, a piada pode ser vista
como um conjunto de seis elementos cujos parâmetros são: a linguagem, a estratégia
narrativa, o alvo, a situação, o mecanismo lógico e a oposição de scripts. Assim, para a
Teoria Geral do Humor, uma piada constitui-se da seguinte forma: PIADA {LI
7
ATTARDO, Salvatore (1994). Linguistic Theories of Humor, Mouton de Gruyter: Berlin; ATTARDO, Salvatore
(2001). Humorous Texts: A Semantic and Pragmatic Analysis. Mouton de Gruyter: Berlin; ATTARDO, Salvatore, and
71
(linguagem), EN (estratégia narrativa), AL (alvo), SI (situação), ML (mecanismo lógico),
OS (oposição de script)}. Na verdade, esses recursos, denominados Recursos de
Conhecimento (RC) são organizados hierarquicamente:
OS (Oposição de Scripts)
ML (Mecanismo Lógico)
SI (Situação)
AL (Alvo)
EN (Estratégia Narrativa)
LI (Linguagem)
Attardo (2002) define cada um desses recursos como se segue:
a) LI, ou seja a Linguagem, (ATTARDO, 2002, p. 176) é o Recurso de Conhecimento
que contém toda a informação necessária para a verbalização de um texto. É
responsável pela formatação e pela organização dos elementos funcionais que o
constituem. É importante ressaltar que qualquer frase pode ser reescrita de uma forma
diferente (por meio de sinônimos, outras construções sintáticas etc.) logo, qualquer
piada pode ser reescrita em um grande número de formas sem a mudança de seu
sentido semântico. Dessa forma, segundo o teórico, qualquer paráfrase ou reescrita que
preserve o sentido é considerado um exemplo de uma mesma piada. Conforme analisa
Attardo (2002, p. 185), a abordagem mais simples para uma tradução é “substituir a
linguagem na língua alvo pela linguagem na língua fonte”. Obviamente que certa
liberdade é permitida de modo que a função pragmática seja primeiramente preservada
RASKIN, Victor (1991), p. 293-347. Script Theory Revis(it)ed: Joke Similarly and Joke Representation Model. In:
Humor 4 (3-4).
72
em comparação à função semântica. Como exemplo de piada que ilustre esse aspecto, o
autor cita: How many Poles does it take to screw in a light bulb? Five, one to hold the
light bulb and four to turn the table; que também pode ser reescrita da seguinte
maneira: The number of Polacks needed to screw in a light bulb? Five – one to hold the
bulb and four to turn the table.
Conforme Attardo (2002, p. 177), nas piadas consideradas verbais (em oposição às
referenciais), a exata constituição do desfecho e/ou do conector verbal — que é o elemento
ambíguo que ocorre no texto da piada anterior ao próprio desfecho é extremamente
importante para que um elemento lingüístico seja ambíguo e conecte os dois sentidos
opostos no texto. Tanto a piada verbal quanto a piada referencial comportam-se
identicamente com relação a esse Recurso de Conhecimento.
b) Segundo Attardo (2002, p. 178), a EN, Estratégia Narrativa, é a informação no Recurso
de Conhecimento que se refere ao fato de que qualquer piada deve ser constituída por
uma forma de organização narrativa, como um diálogo, uma (pseudo)charada, um
aparte na conversa etc. Cabe ressaltar que toda piada é narrativa, mas nem toda forma
de humor o é. O autor aponta para o fato de que não há inventários sobre os gêneros do
humor, e seria interessante um levantamento desse tipo (necessidade apontada por
Vandaele, 2002). Teorizando sobre esse Recurso de Conhecimento, para Attardo
(2002, p. 186), não quase necessidade de se modificar a estratégia narrativa de uma
piada, pois a estrutura narrativa não depende da língua especificamente. Algumas
formas narrativas podem ser únicas ou preferíveis por uma determinada língua.
Segundo Attardo (2002, p. 186), é importante para o tradutor respeitar a estrutura
interna do Recurso de Conhecimento e perceber/avaliar que algumas formas narrativas
são intraduzíveis para o inglês ou do inglês para outras línguas, como por exemplo as
73
piadas de knock-knock. Assim, ao traduzir, o tradutor deve procurar uma estratégia
narrativa que mais se aproxime daquela na língua para a qual se traduz, quando não é
possível uma correspondência mais direta.
c) O parâmetro AL, o Alvo, conforme Attardo (2002, p. 178) seleciona os grupos ou
indivíduos, instituições ou padrão sociais estabelecidos (o casamento, o amor
romântico etc.), ou seja, estereótipos (humorísticos). Essa escolha pode ser um
parâmetro opcional, porém as piadas não socialmente agressivas (que não ridicularizam
algo ou alguém) possuem um valor vazio para esse parâmetro. Attardo (2002, p. 186-
187) aponta para o fato de que é importante ressaltar que diferentes grupos escolhem
diferentes alvos para a prática do humor e que cada grupo é alvo devido a
características particulares; é difícil encontrar piadas que envolvem mais de uma
característica ou mais de um grupo ao mesmo tempo. Por exemplo, a piada
estereotipada do “idiota” nos Estados Unidos tem por alvo os poloneses, enquanto na
França o alvo são os belgas, e os calabreses na Itália.
d) A SI, ou seja, a Situação, para Attardo (2002, p. 179) determina que qualquer piada
deve ser sobre algum assunto (trocar uma lâmpada, atravessar a rua, jogar golfe etc.) A
situação da piada pode ser considerada como a sustentação desse texto: são os objetos,
os participantes, os instrumentos, as atividades etc. Obviamente que a sustentação da
piada geralmente deriva dos scripts ativados no texto. Qualquer piada deve ter uma
situação, embora algumas piadas se apóiem mais nessa situação, enquanto outras irão
ignorá-la. O Recurso de Conhecimento da situação não é exclusivo das piadas é
uma função compartilhada pelos textos humorísticos e não-humorísticos. Attardo
(2002, p. 187-188) aponta para o fato de que pode haver situações de humor que não
74
podem ser reconstruídas na língua da tradução. Dessa forma, uma boa solução é
substituir a situação ofensiva por outra, enquanto se respeita os outros Recursos de
Conhecimento.
e) Para Attardo (2002, p. 179-180), o ML, Mecanismo Lógico, é o parâmetro mais
problemático. Este mecanismo está em uma posição errada em relação ao Recurso de
Conhecimento imediatamente antes da situação, mas funciona bem com relação a todos
os Recursos de Conhecimento. O mecanismo lógico incorpora a resolução da
incongruência e como a resolução é opcional no humor (como no nonsense e no
absurdo) esse mecanismo também poderia ser opcional. Alguns estudos determinam a
existência de cerca de 20 tipos diferentes de mecanismos lógicos. Esse parâmetro
incorpora uma lógica local, isto é, uma lógica distorcida, uma lógica divertida que não
necessariamente existe fora do universo da piada. São exemplos de mecanismos
lógicos: inversão de papéis, troca de papéis, mapeamento de potência, reverso no vazio,
justaposição, quiasmo, garden-path (indução ao erro), inversão de figura-base,
raciocínio ilógico, “quase-situações”, analogia, questionamento do eu, inferência de
conseqüências, raciocínio a partir de uma premissa falsa, falta de conexão,
coincidência, paralelismo, paralelismo implícito, proporção, ignorância do óbvio, falsa
analogia, exagero, restrição de campo, cratilismo, meta humor, ciclo vicioso e
ambigüidade referencial. Conforme Attardo (2002, p. 181), os mecanismos lógicos
podem variar desde simples justaposições a erros de lógica mais complexos. Attardo
(2002, p. 188) aponta que é mais fácil traduzir mecanismos lógicos não verbais, posto
que envolvem processos lógico-dedutivos abstratos que são obviamente independentes
da língua.
75
f) O parâmetro da Oposição de Script, OS, lida com a necessidade de
sobreposição/oposição de script desenvolvida pela Teoria do Script Semântico do
Humor de Raskin (1985, apud Attardo, 2002, p. 181-182
8
). Attardo (2002, p. 181) faz
um apanhado dos pontos mais relevantes sobre essa teoria em seu texto: um script é um
conjunto complexo de informações sobre determinado assunto; por exemplo, um objeto
(real ou imaginário), um evento, uma ação, uma qualidade, etc. Além disso, o script
constitui uma estrutura cognitiva internalizada pelo indivíduo que fornece a informação
de como o mundo é organizado, e como se age nele. É, portanto, um objeto semântico
que pode ser comparado à idéia de repertório de Even-Zohar (1990, p. 17), no sentido
de que os repertórios determinam as ações dos indivíduos. Attardo ainda ressalta que
durante o processo de combinação de scripts é possível que partes do texto sejam
compatíveis com mais de uma leitura, ou melhor, com mais de um script. Por exemplo,
uma situação que envolva alguém que se levanta, prepara o café da manhã, deixa sua
casa, etc. pode ser compatível com o script de “ir ao trabalho” como o de viajar”,
logo, partes do texto que podem ser compatíveis com mais de um grupo semântico.
Cabe ainda ressaltar que a sobreposição de dois scripts não necessariamente provoca o
humor, para que isso ocorra, os dois scripts que se sobrepõem devem possuir um
elemento de oposição. É também importante notar que nem todas as línguas possuem
os mesmos scripts disponíveis para o humor.
Attardo (2002, p. 188) ressalta que, quando duas piadas diferem na oposição de
scripts, são percebidas como muito diferentes. Assim, considera, o tradutor deve tentar
evitar ao máximo mudar a oposição de scripts, caso seja possível o uso dessa oposição
naquela determinada língua.
8
RASKIN, Victor (1985) Semantic Mechanism of Humor, Dordrecht, Boston & Lancaster: D. Reidel.
76
De acordo com Attardo (2002, p. 183-184), a medida da diferença entre piadas
segue a hierarquia dos Recursos de Conhecimento, ou seja, duas piadas que se diferenciam
em linguagem são consideradas bem parecidas, enquanto piadas que diferem na oposição
de scripts são consideradas bem diferentes uma da outra. O grau da diferença é percebido
linearmente, ou seja, percebem-se menos diferenças em piadas que diferem na estratégia
narrativa do que nas piadas que diferem em oposição de script. Dessa forma, conforme
avalia o autor, ao se traduzir um texto humorístico, é recomendável que se respeite todos
os seis Recursos de Conhecimento em sua tradução e, se for realmente necessário, permita-
se que a tradução diferencie-se no nível mais baixo por questões pragmáticas. A tradução
que respeita todos os seis Recursos de Conhecimento pode ser utópica e a tradução que não
respeita nenhum não pode ser considerada tradução.
Conforme avalia Attardo (2002, p. 188-189) a questão do script segundo a Teoria
do Script Semântico do Humor: caso um indivíduo não possua o script para didgeridoo
(um instrumento musical indígena australiano); logicamente não se poderá apreciar
nenhuma piada de didgeridoo. Inversamente, pode-se estar extremamente familiarizado
com o script de criança molestada e se recusar o uso desse script para propósitos
humorísticos. O que o tradutor deve ter em mente, segundo o teórico, é o fato de que a
tradução, mesmo livre, tem sucesso desde que o intérprete da piada cause o riso que o
falante busca. A tradução da piada se realizada de maneira funcional, ou seja, se
resguardadas as devidas proporções de efeito humorístico, será bem sucedida; do contrário,
ocorrerá a substituição de uma piada por outra, o que não constitui tradução propriamente
dita. Logo, é possível traduzir qualquer piada no nível pré-locucionário, pois o objetivo
nesse nível é a apreciação universal do humor.
Para Attardo (2002, p. 192), a aplicação da Teoria Geral do Humor Verbal na
tradução contribui para a idéia de que uma certa medida de semelhança entre as piadas.
77
Baseando-se nessa métrica, o tradutor pode estimar o quão diferente a piada traduzida é do
original, e ajustar sua estratégia de tradução adequadamente.
A subseção seguinte discute a questão da tradução lingüística e funcional do humor.
4.2.3 A tradução lingüística e funcional do humor
Dentro de sua proposta lingüística, Possenti (1998, p. 72) prevê uma forma de
análise do texto humorístico, em especial as piadas. Para uma interpretação cabal, o teórico
defende que é necessário acionar diversos tipos de fatores, e um deles é o que o autor
chama de fator epilingüístico. Esse termo se refere a qualquer operação ativa que o
intérprete efetua sobre dados lingüísticos, analisando-os de um certo modo. Uma das
operações possíveis é a segmentação alternativa da cadeia lingüística da piada. Essa
operação destina-se a descobrir morfemas ou formas de alguma maneira semelhantes a
eles, ou seja, partes da cadeia às quais usualmente se atribui ou se pode atribuir um sentido.
Para Possenti (1998, p. 72), entender uma piada não demanda apenas decodificar
um texto, mas interpretá-lo. As operações epilingüísticas resultam em duas versões do
“mesmo” enunciado. Existe a possibilidade de segmentações alternativas e de comparação
implícita (POSSENTI, 1998, p. 74). Ressalta o teórico que operações desse tipo podem ser
realizadas tanto em língua materna, quanto em enunciados de língua estrangeira, desde que
haja alguma semelhança de escrita ou fala que lhes forneça suporte.
Além disso, Possenti (1998, p. 93-94) discorre sobre a duplicidade de sentidos de
palavras ou de outro tipo qualquer de expressão que não depende jamais de uma ação
interpretativa livre do leitor, retomando a questão da interpretação da piada, que não pode
ser livre. O duplo sentido depende sempre de um princípio, de uma regra ou de uma teoria,
parecendo agir apenas localmente, mas que é sempre a mesma. Nos procedimentos de
78
descoberta do duplo sentido, o autor defende a idéia de que se segue um princípio, uma
regra ou teoria. A operação de descoberta de sentidos inesperados é efetuada, de forma
talvez surpreendente, com base em uma “teoria” peculiar do sentido literal e de um método
de descoberta típico da lingüística estrutural, tendo em vista os objetivos, os efeitos de
sentido que a ocorrência desses dados procura.
Esse processo de descoberta, segundo Possenti (1998, p. 95), pode dar-se pela
aplicação de um procedimento lingüístico denominado método de comutação que consiste
na localização de um elemento funcional (significativo) e na sua substituição por outro
ou por nada, caso em que se pode encontrar um exemplo de morfema zero. “Caso resultem
dessa operação unidades gramaticais e/ou de sentido, o processo propicia a descoberta de
uma unidade em uma língua. Do contrário, descobre-se que se trata de mera e coincidente
identidade material, sem papel estrutural e/ou significativo” (POSSENTI, 1998, p. 95).
Possenti (1998, p. 96) também constata que esse procedimento de segmentação
alternativa é um dos mais poderosos meios de produzir humor, já que produz a maioria dos
jogos de linguagem conhecidos. A regra, de acordo com Possenti (1998, p. 99) também
pode passar por um processo inverso em que um determinado significado que não possua
um significante “adequado” que o veicule passe a ter um novo; dessa forma, “o princípio
age para fazer com que seja adaptado um significante disponível e bastante semelhante
para que o veicule adequadamente”.
Tagnin (2001, p. 9), no prefácio do livro de Rosas (2002), contra-argumenta as
idéias de que “não piada que resista a uma análise lingüística”, e de que “o humor
invariavelmente se perde na tradução”, apesar de haver várias opiniões que dão suporte a
essas concepções. O estudo de Rosas (2002), para Tagnin (2002), vai justamente contra as
idéias pré-concebidas sobre o humor. Segundo Tagnin (2002, p. 9), o humor deriva de uma
incongruência entre algo que é esperado e o que de fato ocorre é o que se chama
79
também de quebra de expectativa. Para ambas autoras, é possível recuperar ou até mesmo
superar o efeito humorístico na tradução. Dessa forma, além das questões lingüísticas, as
teóricas defendem que as questões culturais ganham a merecida relevância no processo
tradutório, demonstrando que o conhecimento partilhado é essencial para a compreensão e
transmissão do humor (Tagnin, 2001, p. 9). Essas idéias de tradução de humor, portanto,
estão situadas dentro de uma perspectiva funcional em que se argumenta que é possível
traduzir qualquer texto humorístico.
Rosas (2002, p. 11), ao analisar as piadas, enfatiza a importância de uma análise
lingüística. A autora define a piada como algo que “além de ser um texto breve, contém em
si todas as informações necessárias ao contexto que criam: trazem em si, princípio, meio e
fim.” A tradução, para Rosas (2002, p. 11), permite evidenciar com muita nitidez os
contornos dos mecanismos lingüísticos utilizados na produção do humor. A visão de
tradução defendida por Rosas (2002, p. 14) pressupõe “a indissociabilidade entre os
elementos lingüísticos e os culturais, a função do texto traduzido e o papel de intérprete
que cabe ao tradutor no cumprimento de sua tarefa.”
Segundo Rosas (2002, p. 16), a linguagem do humor constitui um campo de estudo
que implica necessariamente a multidisciplinaridade. Apesar de haver problemas com
relação aos estudos da tradução e do humor, como aponta Rosas (2002, p. 20), ambos os
campos “estão centrados na linguagem e a linguagem, meio que o homem utiliza para
construir sua relação com o mundo, é uma forma individual de expressão, por mais que
também seja social e coletiva.” Daí a complexidade de ambos os campos de estudos, pois
envolvem diversas disciplinas para uma compreensão mais ampla e adequada (ROSAS
2002, p. 17).
Isso explica, segundo a autora, as dificuldades a que estiveram submetidos os
estudos teóricos das áreas em questão, assim como indicado por outros autores. Houve
80
problemas advindos da influência da lingüística descritiva (estruturalista e gerativista) que
excluíram os estudos das questões semânticas e problemas advindos do preconceito para
com o humor, que é considerado um campo de estudo menor no âmbito acadêmico (Rosas
2002, p. 17-18). Uma outra dificuldade para esses estudos diz respeito à questão da
produção do sentido, que necessariamente envolve o problema da interpretação, fator
essencial ao estudo do humor e da tradução (ROSAS, 2002, p. 20). Segundo a autora, hoje
se admite que a interpretação seja condicionada por contingências culturais, econômicas,
sociais, ideológicas, históricas e por toda sorte de idiossincrasias (ROSAS 2002, p. 20).
É importante ressaltar, no âmbito dos estudos do humor, que, para Rosas (2002, p.
35),
embora possam transmitir informação confiável, todas as piadas,
sem exceção, se inserem no modo de comunicação o-confiável.
Por conseguinte, o emissor não se compromete com a verdade de
sua mensagem nem está interessado em fornecer muita
informação ao receptor. Pelo contrário, valendo-se do
conhecimento compartilhado — aquilo que em inglês se diz shared
knowledge, ou seja, um sistema de referências e interdições comum
aos membros de uma determinada cultura —, o emissor elabora ou,
simplesmente, veicula um discurso cujas lacunas serão preenchidas
de um modo que ele pode prever com razoável segurança. Assim, o
ouvinte previsível e necessariamente coopera, buscando encontrar
as informações que faltam em um universo de expectativas do qual
tanto ele quanto o falante partilham, que pertencem à mesma
comunidade interpretativa.
Além disso, para Rosas (2002, p. 21), a leitura, conforme as assunções
interpretativas que a precedem, é capaz de produzir significação independente do texto em
si ou da intenção que o autor possa ter pretendido. Para Rosas (2002, p. 23), “a
interpretação constitui elemento chave na decodificação da linguagem humorística,” assim
como o senso de humor, que “se encontra na dependência de diversos fatores sociais e
também individuais” (Rosas 2002, p. 23). A decodificação de um discurso humorístico em
81
seu contexto original, sua transferência para um ambiente diferente e, muitas vezes,
discrepante em termos lingüísticos e culturais, e sua reformulação em um novo enunciado
que tenha sucesso na recaptura da intenção da mensagem humorística original, suscita no
público alvo uma reação de prazer e divertimento equivalentes. Essa decodificação deve
ser entendida simplesmente como uma das condições para o sucesso da comunicação. O
receptor/intérprete/tradutor precisa dispor de informações lingüísticas e culturais
suficientes para saber por que um determinado enunciado poderia ser considerado
engraçado. E para dar-se conta de que, de seu ponto de vista, a intenção da mensagem
humorística original tem importância secundária diante do efeito dessa mensagem.
Em linhas gerais, Rosas (2002, p. 55) afirma que a tradução do humor, dentro de
uma perspectiva funcional, repousa na possibilidade de recriação de um efeito análogo
com meios que, a começar pelas línguas, têm de ser diferentes. O duplo sentido, a
bitextualidade, no texto fonte, deve ser recriado, portanto, no texto alvo.
Em sua análise da tradução de piadas, Rosas (2002, p. 57) subdivide o processo
tradutório em quatro grandes grupos: a) casos de tradução literal: são os casos em que as
piadas não dependem de fatores estritamente lingüísticos, e geralmente baseiam-se na
situação e/ou fatores culturais geralmente não apresentam dificuldade para a realização
da tradução; b) casos de coincidência lingüística: casos que envolvem um tipo de humor
baseado em aspectos verbais, mas em que equivalência de estruturas ou sentidos entre
os elementos chave nas línguas/culturas envolvidas, assim como no item a), não
apresentam grandes problemas de tradução; c) casos de falta de correspondência entre
línguas: este caso envolve situações em que não há compartilhamento de referências
culturais, não nenhuma equivalência no nível lingüístico, e geralmente causam
problemas para a tradução, devendo o tradutor valer-se da tradução funcional; e d) casos
culturais e de tradução o-literal: neste caso as piadas exigem do leitor algum
82
conhecimento das línguas para entender as piadas, o leitor deve se valer de processos
epilingüísticos para interpretar a piada.
A subseção seguinte explora a questão das traduções do jogo de palavras.
4.2.4 A tradução do jogo de palavras
Para Cuddon (1977, p. 530), o trocadilho é uma figura de linguagem que envolve
um jogo de palavras e advém do termo grego “paronomásia”. Pode, ainda, possuir uma
intenção humorística ou não. Conforme define Delabastita (1996, p. 128), o trocadilho ou
jogo de palavras é
um nome geral para vários fenômenos textuais nos quais as
características estruturais da(s) língua(s) utilizada(s) são exploradas
a fim de se provocar um confronto significante de maneira
comunicativa de duas (ou mais) estruturas lingüísticas com formas
mais ou menos similares e sentidos mais ou menos diferentes.
Para o teórico, o jogo de palavras contrasta estruturas lingüísticas com sentidos
diferentes com base em sua semelhança formal. A relação pode ser especificada
posteriormente enquanto homonímia (sons e ortografia idênticos), homofonia (sons
idênticos com ortografia diferenciada), homografia (sons diferentes com ortografia
semelhante) e paronímia (pequenas diferenças tanto na ortografia quanto nos sons). Além
disso, as duas estruturas lingüísticas similares na forma podem chocar-se associativamente
ao estarem co-presentes em uma mesma porção de texto (jogo de palavras vertical), ou
podem estar em relação de contiguidade ao acontecerem uma após a outra no texto (jogo
de palavras horizontal).
83
Conforme explica Delabastita (1996, p. 129), o contexto pode ser verbal ou
situacional (definidos por Almeida [1999] como espírito de palavra e espírito de
pensamento). Os contextos verbais, segundo a experiência, demandam uma boa formação
gramatical. os contextos situacionais são cruciais para o funcionamento do jogo de
palavras, pois ativam um sentido secundário do texto verbal que o acompanha. Além disso,
o teórico ressalta que os jogos de palavras não apenas existem por virtude dos textos, mas
funcionam também dentro do texto em uma variedade de formas como a adição à
coerência temática do texto, a produção de humor, a demanda de uma maior atenção do
leitor/ouvinte, a adição de força persuasiva à declaração, a indução a uma outra idéia do
nosso reflexo condicionado socialmente contra tabus, dentre outras.
Para Delabastita (1996, p. 130-131), alguns dos recursos explorados pelo criador do
jogo de palavras são:
a) a estrutura grafológica e fonológica: apesar de as línguas possuírem um número
bem limitado de fonemas e grafemas que podem ocorrer em limitado número de
combinações, a possibilidade da existência de vários pares de palavras sem
qualquer relação que possuem uma forma idêntica ou semelhante. No jogo de
sons (como nas aliterações, nas assonâncias e nas consonâncias), o som fornece
a base para a associação verbal como no exemplo do teórico: love at first bite,
que deriva de love at first sight; enquanto o jogo de palavras anagramático
baseia-se na grafia, como no exemplo: Madame Curie: radium came.
b) a estrutura lexical (polissemia): as línguas possuem várias palavras
polissêmicas, ou seja, palavras com sentidos diferentes que geralmente derivam
da mesma raiz semântica e ainda estão relacionadas de alguma forma, como por
84
metonímia, como em Bilingualism: tongues meeting in lovers’ mouths; ou por
metáfora, como em What’s this that got a heart in its head? A lettuce, ou por
especialização, como no exemplo: Surfers do it standing up.
c) a estrutura lexical (expressão idiomática): as línguas contêm muitas expressões,
ou seja, combinações de palavras que possuem um sentido total que tem suas
bases na história, mas que não pode ser reduzido a combinações dos sentidos
dos seus componentes. É a distância entre o sentido normal e não
composicional da expressão e sua leitura composicional ou literal que permite o
jogo de palavras como em Britain going metric: give them an inch and they’ll
take our mile.
d) a estrutura morfológica: muitas palavras derivadas e compostas acabam por se
tornar parte do vocabulário e podem, nesse processo, perder parte de sua
transparência original. A palavra breakfast não é mais analisada pelos seus
constituintes (históricos), mas considerada como um único morfema. O
resultado disso implica numa distinção entre o sentido total aceito de tais
palavras e seu sentido quando interpretada em termos das palavras integrantes e
das regras morfológicas como em I can’t find the oranges, said Tom fruitlessly.
Na maioria dos jogos de palavras morfológicos as palavras são construídas
como palavras compostas ou derivadas de modo que a etimologia esteja
incorreta, mas seja semanticamente eficaz como em Is life worth living? It
depends upon the liver.
85
e) a estrutura sintática: as diferentes gramáticas construirão sintagmas e frases que
podem ser decompostos gramaticalmente em mais de uma forma. Dessa
maneira, o slogan Players Please”, pode ser lido com um pedido a um
vendedor, ou uma declaração em elogio a essa marca de cigarros.
Para Delabastita (1996, p. 131), uma ou mais dessas características lingüísticas
podem ser aproveitadas simultaneamente a fim de se construir um único jogo de palavras,
ou até mesmo pode-se juntar material lingüístico de outras duas ou até mesmo mais
línguas, o que constitui um jogo de palavras multilíngüe.
Segundo Attardo (2002, p. 189-190), a Teoria Geral do Humor Verbal estipula que
os trocadilhos tenham um tratamento diferenciado de outras formas de humor. Assim, se o
mecanismo lógico pede itens com um par de parônimos, apenas aqueles itens que possuem
estrutura superficial suficientemente mais próximas serão aceitos. Ou seja, a Teoria Geral
do Humor Verbal permite um alto grau de liberdade aos Recursos de Conhecimento mais
baixos da escala (a linguagem e a estrutura narrativa) contanto que se assegurem os níveis
mais altos dos Recursos de Conhecimento (a oposição de scripts, e o mecanismo lógico). A
partir da Teoria Geral do Humor Verbal, deve-se tentar preservar toda a semelhança entre
os textos, começando pela linguagem e, caso seja impossível, deve-se preservar a oposição
de scripts do original. Para o autor, nem todos os Recurso de Conhecimento podem ser
preservados, pois todos dependem de detalhes de características lingüísticas envolvidas no
mecanismo lógico do jogo de palavras. Contudo, é importante respeitar os Recursos de
Conhecimento mais baixos.
À questão “é possível traduzir um trocadilho?”, Attardo (2002, p. 190) responde
que depende. Cada trocadilho irá consistir de um grupo de características diferentes que
pode ou o ser equiparado na estrutura e/ou texto da língua alvo. Os trocadilhos que
86
exibem, na língua fonte, um grupo de características que é coerente com o grupo de
características da língua alvo, de modo que os objetivos pragmáticos da tradução sejam
alcançados, serão traduzíveis. Caso ocorra o inverso, a tradução não será possível.
Conseqüentemente, Attardo (2002, p. 190-191) discute que a tradução absoluta de um
texto é impossível — ou seja, uma tradução que corresponda em todos os aspectos
(conotativo e denotativo) ao texto na língua fonte. Um trocadilho pode depender de um
aspecto específico da forma do texto e, assim, o tradutor deve ser capaz de transferir todos
os aspectos do texto, não apenas sua semântica/pragmática. Para Delabastita (1996, p.
135), muitos jogos de palavras o podem ser transpostos sem modificações substanciais.
Muitas vezes, até mesmo o ambiente textual mais amplo deve ser alterado, ou um novo
contexto deve ser construído para que o trocadilho seja possível no texto alvo.
Ao responder a pergunta “o trocadilho é traduzível?”, Delabastita (1996, p. 127)
cautelosamente responde que depende do tipo de tradução que se tem em mente, ou da
posição em que o indivíduo se coloca frente à tradução, como a de professor de tradução,
de um profissional da área, de um crítico, de um teórico, de um historiador, de um filósofo
da linguagem. Para Delabastita (1996, p. 134), quando se diz que um jogo de palavras não
é traduzível, isso significa que nenhuma das soluções que o autor propõe satisfaz os
requisitos da equivalência de tradução.
Para Delabastita (1996, p. 133), ao se focar no jogo de palavras e na ambigüidade
como fatos do texto fonte e/ou do texto alvo, pode-se ficar tentado a dizer que o trocadilho
e a tradução são quase incompatíveis. Quando o trocadilho não é significante ou não
intencional, espera-se que os tradutores livrem-se do recurso para se evitarem
inconsistências. Por outro lado, quando o trocadilho é relevante no texto original, deve ser
preservado em vez de eliminado. O autor, em momento algum, defende a idéia da
87
intraduzibilidade do jogo de palavras, e propõe uma ampla variedade de métodos que estão
à disposição do tradutor (DELABASTITA, 1996, p. 134):
a) TROCADILHO TROCADILHO: quando o jogo de palavras do texto fonte é
traduzido por um jogo de palavras no texto alvo, que pode ser mais ou menos
diferente do trocadilho original em termos de estrutura formal, semântica, ou
função textual;
b) TROCADILHO O TROCADILHO: o jogo de palavras é traduzido por
um sintagma que não constitui um jogo de palavras, mas mantém ambos os
sentidos, ou é selecionado um dos sentidos suprimindo-se o outro; é possível
que ambos os componentes do jogo de palavras sejam traduzidos de maneira
irreconhecível;
c) TROCADILHO RECURSO RETÓRICO AFIM: o jogo de palavras é
substituído por um outro recurso (repetição, aliteração, rima, falta de clareza
referencial, ironia, paradoxo etc.) que tem por objetivo recapturar o efeito do
jogo de palavras no texto fonte;
d) TROCADILHO ZERO: a parte do texto que contém o jogo de palavras é
omitida;
e) TROCADILHO TF = TROCADILHO TA: o tradutor reproduz o jogo de
palavras do texto fonte no texto alvo, e, possivelmente, seu entorno imediato;
ou seja, sem realmente traduzir;
88
f) NÃO-TROCADILHO TROCADILHO: o tradutor introduz um jogo de
palavras em posições textuais onde o texto original não possui um jogo de
palavras, por meio de uma compensação onde se perdeu um trocadilho em outro
momento do texto, ou por qualquer outra razão;
g) ZERO TROCADILHO: um material totalmente novo é inserido, o qual
contém um jogo de palavras e que não tem justificação aparente no texto fonte a
não ser como um recurso de compensação;
h) TÉCNICAS EDITORIAIS: notas de rodapé ou no fim do texto, comentários
fornecidos pelas palavras do tradutor num prefácio, apresentações antológicas
de soluções supostamente complementares, diferentes para um mesmo
problema do texto fonte etc.
Para Delabastita (1996, p. 134), todas essas técnicas podem ser combinadas em
uma variedade de formas: como no seguinte caso a supressão de um jogo de palavras
(TROCADILHO NÃO-TROCADILHO), seguida de uma explicação da razão
(TÉCNICA EDITORIAL) e com uma posterior compensação de um jogo de palavra em
um outro momento do texto (NÃO-TROCADILHO TROCADILHO).
Pode-se comparar a análise feita por Delabastita (1996) à de Toury (1985, p. 26) em
que se avalia a metáfora como um problema de tradução. Tradicionalmente, para este
autor, a natureza do fenômeno lingüístico-textual da metáfora enquanto problema sempre
fora estabelecida no pólo fonte, ou seja, na base da metáfora da língua fonte. E, como
89
conseqüência dessa abordagem, os pares “problema + solução” estabelecidos pelos
teóricos que seguem essa linha de raciocínio, na sua época, eram três:
a) metáfora transformada na mesma metáfora;
b) metáfora transformada numa metáfora diferente e
c) metáfora transformada em uma não-metáfora.
Para Toury (1985), existe ainda uma outra alternativa um tanto comum, porém
menos aceita que é a da:
d) metáfora transformada em (ou seja, omissão completa).
9
Contudo, do ponto de vista dos Estudos Descritivos da Tradução, esses quatro pares
“problema + solução” devem ser suplementados pelas duas alternativas inversas:
e) não-metáfora transformada em metáfora e
f) (omissão completa) transformada em metáfora.
Segundo o autor (TOURY, 1985, p. 27) os itens e e f podem explicar a descrição de
um possível mecanismo de compensação caso este esteja ativo no corpus estudado. Essas
últimas alternativas, para o autor, também podem levar à formulação de outras hipóteses de
natureza elucidativa e descritiva — como, por exemplo, a hipótese de que o uso das
9
Segundo Toury (1985, p. 27), alguns teóricos relutam em aceitar omissões como sendo soluções legítimas.
90
metáforas no texto alvo é dificultado por certas normas originadas no sistema alvo, ou seja,
não há nenhuma influência do texto fonte propriamente.
4.2.5 A tradução do trocadilho elizabetano
Para Martins (2004, p. 128) a identificação do trocadilho, bem como de qualquer
outro recurso poético reside no ouvido (ou na mente) de quem o escuta (ou lê)”. Desta
forma, a autora aponta para o fato de que oscilações na concepção e na identificação
desse recurso, pois sua interpretação varia de acordo com as estratégias de leitura vigente,
com o prestígio de tais manifestações em determinada época e com a bagagem cultural que
pode levar a produzir sentidos diferentes e contemporâneos. Contudo, argumenta, essa
existência de uma fluidez em relação ao trocadilho não impede que se produzam estudos.
Martins (2004, p. 131-133) subdivide o recurso do trocadilho em: a) trocadilho
propriamente dito (homonímia, homografia, homofonia e paronímia) além dessas
subdivisões, a autora distribui o recurso em dois outros grupos: os da contiguidade (em que
repetição do termo com ênfase numa acepção diferente) e ambigüidade (em que
duplo sentido da palavra) e b) o das impropriedades (ou disparates) em que um termo
aparentemente não intencional tem sentido diverso do usual.
A autora (MARTINS, 2004, p. 134) também propõe uma classificação dos recursos
tradutórios utilizados para com os trocadilhos:
a) recriação: o trocadilho no texto fonte gera um outro trocadilho no texto
traduzido, embora não equivalente ao original em termos de estrutura formal,
estrutura sintática ou função textual;
91
b) reprodução: o trocadilho identificado é reproduzido no texto alvo, mantendo-se
o mesmo contexto;
c) neutralização: o trocadilho identificado no texto fonte é traduzido por estruturas
que não criam o mesmo efeito retórico, embora possam tanto explicar os dois
sentidos da palavra, como manter apenas um dos sentidos dela;
d) substituição: o trocadilho é substituído por algum outro recurso retórico afim
como repetição, aliteração, rima, ironia, paradoxo etc., com o intuito de criar
um efeito retórico substitutivo;
e) omissão: o trecho onde se encontra o trocadilho é suprimido;
f) compensação: o tradutor introduz um trocadilho no texto alvo em passagens nas
quais o texto fonte não apresenta tais recursos o objetivo é compensar os
trocadilhos neutralizados ou omitidos em outros momentos; e
g) explicitação: o trocadilho propriamente dito desaparece no texto alvo, sendo
substituído por paráfrases ou explicações.
A classificação dos recursos tradutórios feita por Martins (2004) pareceu adequada
para a análise a ser feita, nesta dissertação, dos recursos tradutórios empregados na
tradução dos epigramas humorísticos contidos na peça The Importance of Being Earnest de
Wilde e será, portanto, retomada no capítulo 5.
A próxima seção compara e contrasta o texto teatral e o humorístico.
92
4.3 O texto teatral e algumas semelhanças com o texto humorístico
Segundo Marinetti (2005, p. 31), se compararmos a própria piada ao ato de contá-
la, a linguagem do humor aproxima-se bastante da linguagem teatral. Assim como as peças
teatrais, o humor em geral depende do tempo e é gerado pelo contexto; o humor depende
de e funciona no “aqui e agora” da performance/encenação em si. Bassnett (2002, p. 121)
corrobora a idéia quando afirma que o diálogo se desdobra tanto no tempo como no espaço
e está sempre integrado à situação extralingüística. Segundo a autora, o diálogo é
caracterizado pelo ritmo, padrões de entonação, tom e altura da voz elementos que
podem não ser percebidos em uma leitura do texto escrito isoladamente.
Para Marinetti (2005, p. 31), o elemento lingüístico do texto teatral é apenas um dos
sistemas semióticos que constitui o evento do teatro. Assim como para Bassnett (2002, p.
120), o sistema lingüístico é apenas um dos elementos opcionais que compreende o
espetáculo. Conforme Marinetti (2005, p. 31), o texto dramático tem uma natureza
complexa e composta, assim como o texto humorístico. Para Bassnett (2002, p. 119-120), o
texto teatral deve ser lido de modo diferente, pois é algo incompleto, em vez de uma
unidade completamente fechada, pois é apenas na encenação que o total potencial do texto
é realizado. O texto humorístico também pode ser considerado incompleto, até que seja
realizado por um contador, ou piadista, e possui também suas peculiaridades. Logo, ambos
os textos devem ser traduzido de uma maneira que leve em conta suas especificidades.
Marinetti (2005, p. 32) aponta para a existência de três possibilidades de relação
entre o texto escrito e o evento teatral: a) os textos podem funcionar fora do sistema teatral
e o teatro pode existir sem textos escritos; b) há uma interdependência entre o texto escrito
e a performance/encenação; c) existem duas entidades em separado, dois sistemas
93
semióticos diferentes que não são interdependentes, mas simultâneos, o que evita o risco
de o leitor priorizar um em detrimento do outro.
Uma outra questão importante levantada pela autora (MARINETTI, 2005, p. 31),
refere-se à complexidade do texto dramático e a relação entre texto e performance que tem
sido o centro do debate teórico sobre a tradução do teatro. Isso, para Bassnett (2002, p.
120), traz um dilema para o tradutor do teatro, que é o de traduzir o texto teatral como um
texto puramente literário, ou traduzir o texto em sua função específica performática. Para
Bassnett (2002, p. 121), se o tradutor se depara com o critério da performabilidade como
pré-requisito, deve, portanto, realizar uma tarefa diferente daquela que o tradutor de outros
tipos de texto realiza. O tradutor deve, pois, identificar as características estruturais que
fazem do texto algo que pode ser representado, o que pode levar a grandes mudanças no
plano estilístico e lingüístico. Para Bassnett (2002, p. 120), quem tem uma noção de teatro
na qual não se percebe o texto escrito e a performance como elementos indissoluvelmente
ligados irá discriminar aqueles que parecem ofender a pureza do texto escrito. Mesmo
assim, conforme Bassnett (2002, p. 122), textos que são traduzidos pensando-se na
performance e outros que são traduzidos com um público leitor em mente. Contudo, para a
teórica, o elemento lingüístico deve ser traduzido atentando-se para o discurso teatral como
um todo.
Conforme Marinetti (2005, p. 34), o tradutor da piada, assim como o tradutor do
texto teatral, tem de estar constantemente consciente das séries de elementos contextuais e
sócio-culturais envolvidas nesses tipos de texto. Dessa forma, ao avaliar a tradição inglesa
do teatro humorístico, a autora caracteriza esse humor como sendo marcadamente mais
verbal e repleto de jogos de palavras do que gestual tendências bem evidentes nos
textos de Wilde. Para Bassnett (1998, p. 131), o tradutor de teatro que ignora todos os
sistemas que esse tipo de texto envolve corre sério risco; segundo a autora, o tradutor deve
94
levar em consideração a performance e sua relação com a platéia. Assim, deve comportar-
se o tradutor do humor, levando em consideração todas os fatores na produção do humor e
na transposição dessa função para a língua alvo.
No próximo capítulo será feita uma análise das traduções de alguns epigramas
retirados da peça The Importance of Being Earnest de Wilde. Serão comparadas duas
traduções brasileiras, ambas publicadas sob a forma de livro, sendo, portanto voltadas para
a leitura e não para a performance/encenação.
95
5. As traduções dos epigramas humorísticos na peça
Como visto anteriormente, Wilde criou várias peças teatrais até chegar à sua
criação derradeira, sua obra prima The Importance of Being Earnest. Baseando-se em
várias das asserções acerca da peça, pode-se considerá-la uma comédia dramática que
retrata os costumes da sociedade da época e que beira a farsa, com o clássico desfecho do
casamento, neste caso, mais de um casamento. A peça envolve a pilhéria, a sátira, o
absurdo, situações cômicas, qüiproquós, tudo repleto de frases de espírito, de disparates, de
irreverências, de contrastes cômicos, de jogos de palavras a obra cria suas próprias leis
dentro de seu próprio absurdo onde se ridicularizam coisas sérias como o nascimento, o
batismo, o amor, o casamento, a morte, o enterro, a ilegitimidade e a respeitabilidade, de
uma maneira que faz rir, pois o que acontece, e da maneira como ocorre, traz uma aura
cômica. Tudo não passa, pois, de uma grande brincadeira com a sociedade e com os
paradigmas da época vitoriana, ao mesmo tempo que constitui uma crítica — característica
essa do discurso humorístico, mais especificamente do discurso de Wilde.
Como característica marcante das obras teatrais de Wilde, destaca-se a utilização de
epigramas (conforme definidos na seção 2.3 acima). Nos diálogos, seus personagens
proferem seus absurdos de maneira leve e séria; essas frases tonam-se as mais absurdas e
cômicas verdades dentro da atmosfera de nonsense gerada pelas situações da peça. Ao
trazer à tona tópicos relevantes para qualquer sociedade, principalmente temas relevantes
para sua época, Wilde retrata sua sociedade de maneira crítica e bastante irônica.
O dramaturgo, em The Importance of Being Earnest, quebra todos os padrões
atribuídos à comunicação dita informativa e estabelece o cômico através de vários recursos
expressivos. Ao desobedecer às várias regras de comunicação, o autor cria pérolas
96
humorísticas através de seus epigramas humorísticos. O humor de Wilde advém de vários
desvios, ou seja, do deslocamento das regras de comportamento que a sociedade espera,
assim como dos vários momentos de ambigüidade e das quebras de expectativa. O humor
se faz presente como instrumento social, posto que o dramaturgo lida com vários aspectos
sociais e, ao mesmo tempo, com os temas mais recorrentes na sociedade de sua época. O
autor faz uso tanto do espírito de palavra, quanto do espírito de pensamento, ou seja, do
humor lingüístico, assim como do humor situacional (ver 4.1 acima). Além disso, Wilde
utiliza elementos lingüísticos e extra-lingüísticos para compor suas pérolas cômicas.
Desta forma, dada a relevância do humor e dos epigramas de Wilde em The
Importance of Being Earnest, a presente análise detém-se sobre o modo como foi feita a
tradução para o português dos epigramas humorísticos presentes na peça.
O presente estudo foi realizado a partir do texto em inglês da Midpoint Press/David
Dale House e de duas traduções brasileiras. A primeira, de autoria de Guilherme de
Almeida e Werner J. Loewenberg, na edição de 1998, que será denominada Tradução 1. A
segunda, de autoria de Oscar Mendes, na edição de 2003, que será identificada como
Tradução 2.
Foram selecionados para análise vinte e oito epigramas. Como base para esta
escolha, foi utilizada a seleção e classificação de Redman (1952). Este autor realizou uma
seleção e classificação dos epigramas que ocorrem em toda a obra de Wilde (desde as
peças, passando pelos romances e ensaios), classificando-os em grupos, de acordo com os
temas sobre os quais versam, por exemplo: homem (p. 31-35), mulher (p. 36-46), pessoas
(p. 47-51), arte (p. 52-63) , vida (p. 64-74), literatura (p. 75-87), música (p. 88-89), pais (p.
90-92), casamento (p. 93-99), amor (p. 100-105), religião (p. 106-109), conduta (p. 110-
117), Inglaterra (p. 118-121), América (p. 122-127), jornalismo (p. 128-131), política (p.
132-136), aparências (p. 137-140), conversa (p. 141-148), trechos de conversa (p. 149-
97
157), educação (p. 158-160), conselho (p. 161-162), fumo (p. 163-164), comida e bebida
(p. 165-166), juventude (p. 167-169), pecado (p. 170-173), crítica (p. 174-176), egoísmo
(p. 177), relacionamentos (p. 178), saúde (p. 179), prazer (p. 180-181), riqueza (p. 182-
184), pobreza (p. 185-186), amizade (p. 187-189), moral (p. 190-192), verdade (p. 193-
196), história (p. 197-198), sociedade (p. 199-200), genialidade (p. 201-203), beleza (p.
204-206), pensamento (p. 207-211), solidariedade (p. 212-213), jogos (p. 214), emoções
(p. 215-216), tempo (p. 217), trabalho (p. 218-220), experiência (p. 221), os julgamentos
(p. 222-242), prisão (p. 243-247). Observe-se que tais temas são abordados também por
Possenti (1998, p. 25-25 ver 4.1 acima) — pessoas: homem, mulher, pessoas no geral, pais,
parentes e aparências; instituições e hábitos: casamento, educação, trabalho, fumo e música
e, finalmente, entidades abstratas: vida, amor, verdade, prazer, pecado, beleza e amizade.
Para efeitos desta análise, foram selecionados, dentre os grupos citados por Redman
(1952), os epigramas da peça The Importance of Being Earnest relativos a pessoas,
instituições/hábitos e entidades abstratas. Dentre esses, privilegiaram-se os epigramas
considerados mais complexos ou que causariam problemas para a tradução, ou que fossem
relevantes para uma análise sobre a tradução do humor.
Esta seleção, no entanto, o
esgota a possibilidade de que outros epigramas e situações significativos possam também
ser analisados.
A análise se procedeu em seis etapas: a) identificação dos epigramas no texto fonte
e nos textos alvo e; b) confecção de um quadro em que o as traduções e o original foram
justapostos; c) depreensão das estratégias tradutórias utilizadas nos pares problema +
solução” (conforme sugere Toury, 1985) detectados. Em seguida, d) foram feitos
comentários sobre essas estratégias e, finalmente foi feita uma e) listagem das estratégias
tradutórias utilizadas para a elaboração de uma análise quantitativa e comparativa entre as
duas traduções.
98
Na terceira etapa da análise (c), foram consideradas as estratégias tradutórias
descritas por Martins (2004, ver a subseção 4.2.5 acima) a saber: recriação, reprodução,
neutralização, substituição, omissão, compensação e explicitação, tal como aplicadas pelos
tradutores para, de alguma forma, recriar os recursos lingüísticos empregados por Wilde na
criação de seus epigramas humorísticos.
Além das estratégias descritas por Martins (2004), utilizou-se o critério de
economia, por considerar-se este fator preponderante na criação do humor, conforme
Almeida (1999, p. 128, ver seção 4.1 acima), podendo “ser situada em dois níveis: na
pertinência de traços em relação à sua capacidade de representar os objetos e na pertinência
da situação representada em relação aos efeitos contextuais que produz”.
99
5.1 Epigramas relativos a pessoas
Foram selecionados, para análise, doze epigramas relativos ao tema “pessoas”,
cujas traduções serão discutidas abaixo. Os segmentos em exame estão marcados em
negrito.
Epigrama 1
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato II, Srta. Prism
... persistindo em
conservar-se solteiro
, um
homem se converte numa
p
ermanente tentação
p
ública. Os homens
deveriam cuidar que o
seu
celibato
não
tente as
fraquezas
.
Reprodução da quebra de
expectativa
Reprodução do jogo
antitético
Reprodução da aliteração
Omissão da metáfora
Economia
... um homem que se
empenha em
permanecer
solteiro
, se converte em
uma
p
ermanente tentação
p
ública. Os homens
deveriam ser mais
cautelosos;
seu próprio
celibato
é que
faz
naufragarem os barcos
mais fracos
.
Reprodução da quebra de
expectativa
Reprodução do jogo
antitético
Reprodução da aliteração
Recriação da metáfora
... by persistently remaining
single, a man converts
himself into a permanent
public temptation. Men
should be more careful; this
very celibacy leads weaker
vessels astray.
Neste epigrama, o humor recai sobre o fato de o homem que se mantém solteiro
tornar-se uma tentação para a mulher, considerada sempre o sexo frágil”, e que se deixa
seduzir pelo “sexo forte”. Além disso, o autor faz alusão ao texto bíblico (vide I Pedro 3, 7:
Likewise, ye husbands, dwell with them according to knowledge, giving honour unto the
wife, as unto the weaker vessel, and as being heirs together of the grace of life; that your
prayers be not hindered.) ao caracterizar a mulher utilizando o sintagma weaker vessel”.
Há, portanto, uma quebra de expectativa, posto que “ser solteiro” é um pré-requisito social
100
para tornar um homem elegível ao casamento, e não uma tentação pública permanente.
também um jogo antitético para com as palavras celibacy e temptation”, em que o
celibatário não pode permitir que a tentação se consume. Pela Tradução 1 obtêm-se os
pares “conservar-se solteiro + remain single”, “seu celibato + this very celibacye “tente
as fraquezas + leads weaker vessels astray”. Nesse caso, a Tradução 1 mantém a quebra da
expectativa e o jogo antitético; contudo, neutraliza a alusão bíblica ao apresentar uma
tradução mais econômica, pois omissão da metáfora do “barco” o que a torna mais
econômica. a Tradução 2 resulta nos pares “permanecer solteiro + remain single”, seu
próprio celibato + this very celibacye “faz naufragarem os barcos mais fracos + leads
weaker vessels astray”. Dessa forma, há manutenção da quebra de expectativa, assim como
dos termos antitéticos. Com relação à metáfora bíblica, ocorre recriação do sentido, posto
que no original weaker vessel astraycompara a idéia de “perdição” ao “barco à deriva”,
na tradução aquela idéia se pela questão do “naufrágio”. Ambas as traduções
reproduzem a aliteração do fonema /p/ em “a permanent public temptation”.
Epigrama 2
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato II, Cecília
...
um homem de que se
fala muito
não pode deixar
de
ser atraente
.
Reprodução do sintagma a
man who is much talked
about
Reprodução da antítese ou
nonsense pelo adjetivo
attractive
Compensação por litote
Economia
...
um homem de quem se
fala muito
se torna sempre
muito
atraente
. Sentimos
que deve haver algo nele,
afinal de contas.
Reprodução do sintagma a
man who is much talked
about
Reprodução do sintagma
there must be something in
him
Reprodução da antítese ou
nonsense pelo adjetivo
attractive
... a man who is much
talked about is always very
attractive. One feels there
must be something in him,
after all.
101
O epigrama trabalha a idéia do homem público exposto à fofoca ao qual se atribui
más qualidades e/ou hábitos. Esse mesmo homem que deveria ser evitado, torna-se
atraente, alguém que chama a atenção das mulheres. quebra da expectativa, posto que o
homem decoroso e discreto, que geralmente se almeja, lugar àquele de quem muito se
fala. Ao dizer que “deve haver algo” nesse alguém, o script de bom candidato ao
casamento” é também acionado, logo, o nonsense é criado pelo epigrama, posto que
alguém com “maus hábitos” torna-se o objeto de desejo das mulheres. Pela Tradução 1 são
gerados os pares “homem de quem se fala muito + man who is much talked about”, “não
pode deixar de ser atraente + is always very attractivee
+ there must be someting in
him”. omissão do sintagma there must be something in him”, e, portanto, a recriação
de um recurso através do litote. A Tradução 2 mantém todos esses pares numa
correspondência um a um. ainda que se ressaltar que a Tradução 1 também é bem mais
econômica.
Epigrama 3
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato II, Lady
Bracknell
Trinta e cinco anos é uma
idade muito atraente. A
sociedade de Londres está
cheia de damas da melhor
nobreza que, por seu livre
alvitre, estacionaram,
muitos anos, nos trinta e
cinco.
Reprodução do sintagma
free choice”
Recriação do sintagma
“women of highest birth”
Recriação do verbo
“remain”
Trinta e cinco anos é uma
idade muito atraente. A
sociedade londrina está
cheia de mulheres que do
mais alto nascimento que
têm permanecido, por sua
livre e própria escolha, nos
trinta e cinco anos.
Reprodução do sintagma
free choice
Compensação por
pleonasmo
Reprodução de women of
highest birth
Reprodução do verbo
remain”
Thirty-five is a very
attractive age. London
society is full of women of
the very highest birth who
have, of their own free
choice, remained thirty-five
for years.
102
O humor recai sobre o sintagma free choiceposto que não se pode escolher a
própria idade, mas somente mentir sobre ela. Os scripts de “mentir sobre a idade” e
“permanecer jovem” são ativados pelo epigrama. Ambas as traduções mantiveram o
sintagma free choiceo que gerou o par free choice + livre alvitre”, na primeira, e o par
free choice + livre e própria escolha”, na segunda. Na Tradução 2, um pleonasmo,
talvez por compensação, ao se associar os vocábulos “própria” e “livre” com “escolha”.
Ambas as traduções envolvem casos de coincidência lingüística, apesar da inserção do
pleonasmo na Tradução 2. É interessante a tradução do sintagma “damas da melhor
nobreza”, na Tradução 1e por “mulheres do mais alto nascimento”, na Tradução 2. Essa
mesma tradução reproduz o sintagma em questão e a Tradução 1 o recria com outras
palavras que dão a mesma idéia. Ocorre o mesmo com o verbo remain”, que se mantém
na Tradução 2, e se traduziu por “estacionaram”, na Tradução 1.
Epigrama 4
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Algernon
A única maneira de
lidar
com uma mulher
é o
amor
,
se ela for
bonita
;
se não
, é
lidar
com outra.
Reprodução do sintagma
behave to a woman
Substituição do termo
“make love to”
Recriação da repetição
Compensação por repetição
Reprodução do adjetivo
“pretty”
Omissão do adjetivo “plain
A única maneira de
lidar
com uma mulher
é o
amor
,
se é
bonita
ou
amar a
outra
, se ela é
feia
.
Reprodução do sintagma
behave to a woman
Substituição do sintagma
make love to
Recriação da repetição
Reprodução do adjetivo
pretty
Reprodução do adjetivo
plain
The only way to behave to a
woman is to make love to
her, if she is pretty, and to
some one else, if she is
plain.
O epigrama trabalha a questão do tratamento para com a mulher bela e para com a
mulher feia. O homem deve amar a mulher se ela for bela e amar outra, se ela for
103
feia. O humor, mais uma vez, recai sobre a quebra de expectativa, ao sugerir um
tratamento diferente para as feias, e não o mesmo tratamento. O epigrama sugere que uma
sociedade regida por aparências faz isso mesmo, mas o o admite; logo, o dramaturgo,
admitindo isso, está sendo irônico, rindo dessa sociedade. O sintagma behave to a
woman” alude ao script de “ser cortês”, principalmente com as mulheres belas. O epigrama
quebra a expectativa ao sugerir o mesmo tratamento para com as feias, pelo sintagma to
someone else”, ou seja, todas as mulheres devem ser tratadas igualmente, contrário ao que
a sociedade baseada nas aparências sugere, apesar de fazê-lo. A bitextualidade recai sobre
esse tipo de tratamento para com todas as mulheres. O humor vai além do lingüístico
alude e distorce os padrões ditados pela sociedade logo, cabe o recurso da inferência
nesse caso para a interpretação do humor. Ambas as traduções acionam os mesmos scripts
e utilizam o sintagma “lidar com uma mulher” gerando pares semelhantes. Ambas as
traduções apresentam a tradução do sintagma to make love pelo substantivo “amor”.
Contudo a Tradução 1 repete o verbo “lidar”, já na Tradução 2 traduzem-se os mesmos
termos do original (“bonita” e “feia”). A repetição da preposição to”, também contribui
para a criação humorística; a Tradução 1, assim como a Tradução 2 utilizam o pronome
“se”.
Epigrama 5
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato II, Srta. Prism
Admito um
misantropo
,
mas um
feminantropo
,
nunca!
Reprodução do neologismo
Admito um
misantropo
...
um
feminantropo
nunca!
Reprodução do neologismo
A
misanthrope
I can
understand a
womanthrope
, never!
104
O humor recai sobre a contrastação das palavras misanthrope” e sobre o
neologismo womanthrope”. Ter aversão às pessoas é aceitável, contudo ter aversão às
mulheres não o é, segundo a personagem. O trocadilho envolve o recurso morfológico de
recriação de palavra, o que constitui um processo epilingüístico propriamente dito de
reconhecimento de estruturas da língua. Ambas as traduções mantêm o mesmo recurso.
Epigrama 6
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Gwendolen
Quem fala do tempo
sempre idéia de estar
pensando em outra coisa
.
Neutralização do verbo
mean
Economia
Sempre que uma pessoa me
fala do tempo tenho a
absoluta certeza de que quer
dar a entender outra coisa
e...
Neutralização do verbo
mean
Whenever people talk to me
about the weather, I always
feel certain that they
mean
something else
.
O elemento que sugere ambigüidade no epigrama é mean something else”. Falar
do tempo sugere o script “conversar com alguém que não se conhece” ou “falar sobre algo
trivial”. Para a personagem, o fato de alguém mencionar o tempo numa conversa aciona
curiosa e comicamente o script “ter segundas intenções”. A Tradução 1 gera o par mean
something else + estar pensando em outra coisa”, a Tradução 2, mean something else +
quer dar a entender outra coisa”. A Tradução 1 sugere algo no mundo das idéias e a outra,
no mundo das ações o verbo meantransita por dois sentidos, tanto o de querer dizer
algo, quanto o de ter a intenção de fazer algo. Porém, as traduções não utilizam um
vocábulo ou sintagma que tenha os dois sentidos ao mesmo tempo, não mantendo a
bitextualidade, ocasionando um caso de tradução não literal. A Tradução 1 é bem mais
econômica comparada à Tradução 2.
105
Epigrama 7
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, João
Toda gente agora é
espirituosa. Não se pode ir
a parte alguma sem
encontrar
gente espirituosa
.
é mal de todos
.
Quem
me dera que sobrassem
alguns
pobres de espírito
!
Reprodução da repetição do
adjetivo “clever
Recriação de an absolute
public nuisance
Reprodução do paradoxo
Recriação do sintagma I
wish to goodness
Recriação do adjetivo “fool
Economia
Hoje em dia toda gente é
espirituosa. o se pode ir
a parte alguma sem
encontrar
pessoas
espirituosas
. A coisa
chegou a tornar-se uma
verdadeira calamidade
pública
.
peço a Deus
que deixe ainda alguns
pobres de espírito.
Reprodução da repetição do
adjetivo “clever
Reprodução de an absolute
public nuisance
Reprodução do paradoxo
Reprodução do sintagma I
wish to goodness
Recriação do adjetivo “fool
Everybody is clever
nowadays. You can't go
anywhere without meeting
clever people. The thing has
become an absolute public
nuisance. I wish to
goodness we had a few fools
left.
Há, nesse epigrama, uma junção de idéias paradoxais — pessoas “clever” são
consideradas an absolute public nuisance”. quebra de expectativas a partir do
vocábulo nuisance”. Pela Tradução 1 gera-se o par an absolute public nuisanse + é
mal de todos”, e pela Tradução 2, an absolute public nuisanse + uma verdadeira
calamidade pública”. A Tradução 1 recria o sintagma (tradução funcional por falta de
correspondência), enquanto a Tradução 2 o reproduz (tradução por coincidência
lingüística). Ambas as traduções exprimem o adjetivo fool por “pobres de espírito” e
repetem o adjetivo “clever”. Com relação ao sintagma “I wish to goodness”, na Tradução 1
obtém-se o par I wish to goodness + quem me dera” e na Tradução 2 I wish to goodness
+ só peço a Deus”. A Tradução 2 mantém a idéia do apelo divino, o que é eliminado pela
Tradução 1. Há uma tendência pela economia na Tradução 1.
106
Epigrama 8
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Algernon
Todas as mulheres saem às
mães:
é a tragédia delas
.
Os homens não: é a
tragédia
deles
.
Omissão do pronome
their
Reprodução do pronome
their
Reprodução do pronome
his
Compensação por repetição
do substantivo “tragedy
Recriação da preposição
like
Economia
Todas as mulheres chegam a
parecer-se com
suas
mães.
É a tragédia delas. Os
homens não. É a
tragédia
deles.
Reprodução do pronome
their
Reprodução do pronome
their
Reprodução do pronome
his
Compensação por repetição
do substantivo “tragedy
Recriação da preposição
like
All women become like
their
mothers.
That is their
tragedy. No man does.
That’s his
.
aqui o uso repetitivo de pronomes e a evidente repetição do sintagma that’s”.
O humor recai sobre a palavra tragedy” e aciona o script “de os filhos terem os pais como
exemplo”. Para o homem isso é bom, mas o contrário ocorre para a mulher, de acordo com
o epigrama o contrário do que a sociedade espera. Na Tradução 1 o verbo likefoi
traduzido por “sair à”, enquanto na Tradução 2, por “chegam a parecer-se com”. A
Tradução 1 é bem mais econômica, enquanto o sintagma equivalente na Tradução 2 possui
mais palavras. Ambas as traduções compensam a repetição pronominal do original pela
repetição da palavra “tragédia”. Mais uma vez, a Tradução 1 mantém o traço de economia,
porém ambas são traduções funcionais.
107
Epigrama 9
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Lady Bracknell
Perdeu os dois
? Isso
parece
descuido
de sua
parte.
Reprodução do substantivo
carelessness
Substituição da estratégia
narrativa
A ambos
? ... Isso parece
falta de cuidado
.
Recriação do substantivo
carelessness
Substituição da estratégia
narrativa
To lose one parent
... may
be regarded as a misfortune;
to lose both looks like
carelessness
.
O humor é acionado pelo sintagma to lose one parente logo se pensa no script
“tristeza pela perda dos pais”. O assunto é tratado trivialmente como algo controlável. As
duas traduções romperam a estrutura do epigrama ao disseminar o sintagma pelo diálogo.
Os scripts e as idéias foram mantidas, apesar de a tradução do substantivo carelessness
ter gerado o par carelessness + descuido”, na Tradução 1, e o par “carelessness + falta de
cuidado” na Tradução 2. A primeira sendo um caso de tradução por equivalência
lingüística e a segunda, um caso de tradução não literal.
Epigrama 10
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Algernon
Os parentes são
simplesmente uma porção
de gente aborrecida, que não
tem
a mínima
noção de
como se deve viver, nem de
quando convém morrer.
Reprodução dos vocábulos
how e when
(paralelismo)
Omissão de um adjetivo no
grau superlativo e
Reprodução do outro
Economia
Os parentes, são,
simplesmente, uma porção
de gente aborrecida que não
tem
a mais remota
noção
de como se deve viver, nem
o mais ligeiro instinto de
quando se deve morrer
.
Reprodução dos vocábulos
how e when
(paralelismo)
Reprodução dos adjetivos
no grau superlativo
Relations are simply a
tedious pack of people, who
haven’t got the remotest
knowledge of how to live,
nor the smallest instinct
about when to die.
108
O exagero com o uso de superlativos e a presença dos parentes é o tema do
epigrama, o que aciona o script parentes são inconvenientes”. Os dois sintagmas how to
livee when to diesão paralelos um trocadilho com o jogo de palavras antitéticas
live e “die e esse paralelismo. Os adjetivos no grau superlativo são mantidos pela
Tradução 2, e apenas um é mantido na Tradução 1. O paralelismo das estruturas when” e
how” também é reproduzido na Tradução 2, mas não o é na Tradução 1, que é mais curta.
Epigrama 11
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato II, Lady
Bracknell
... é um rapaz
extremamente, direi mesmo
ostensivamente
aceitável
.
Não possui nada
, mas
aparenta tudo
. É quanto se
pode desejar!
Reprodução do sintagma
“has nothing”
Reprodução do sintagma
“look everything”
... é um partido
extraordinariamente, e até
me atreverei a dizer,
ostentosamente
aceitável
.
Não tem nada
, mas
aparenta tudo
. Que mais se
pode desejar?
Reprodução do sintagma
“has nothing”
Reprodução do sintagma
“look everything”
... is an extremely, I may
almost say an
ostentatiously, eligible
young man. He has nothing,
but looks everything. What
more can one desire?
O paradoxo humorístico recai sobre as expectativas sociais de que o homem deve
ter tudo com relação a bens materiais aparentar algo pode estar em segundo plano, e o
epigrama rompe esses paradigmas. Os sintagmas has nothinge looks everythingnão
são aceitáveis socialmente para um homem eligible”. a quebra dos scripts “homem
sério” que “possui bens” e a “aparência nem sempre é fundamental”. As traduções mantêm
os mesmos recursos e scripts gerando os pares has nothing + não possui nada” ou has
nothing + não tem nada”, nas Traduções 1 e 2 respectivamente; e o par look everything +
aparenta tudo” em ambas. Ambos são casos de tradução por equivalência lingüística.
109
5.2 Epigramas referentes a instituições e hábitos
Foram analisados os seguintes epigramas referentes ao grupo “instituições/hábitos”:
Epigrama 12
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato III, Lady
Bracknell
...
sou contrária
aos
noivados longos demais.
Dão aos noivos
oportunidade de
se
conhecer
,
suficientemente
,
o que não me parece
recomendável
.
Recriação do sintagma in
favour of
Recriação do sintagma
finding... characters
Reprodução do adjetivo
advisable
Economia
...
não sou partidária
dos
noivados longos. Dão
oportunidade a que os
noivos
descubram seus
mútuos caracteres
antes do
casamento, o que nunca é
aconselhável
...
Recriação do sintagma in
favour of
Reprodução do termo
finding... characters
Reprodução do adjetivo
advisable
I am not in favour of long
engagements. They give
people the opportunity of
finding out each other’s
characters before marriage,
which I think is never
advisable.
O disparate recai sobre a idéia que se tem de “long engagements”. Essa idéia aciona
o script de “conhecer bem alguém antes de casar”. O epigrama rompe a expectativa ao
dizer que isso o é advisable”. A partir do sintagma finding out each other’s
charactersgera-se o par finding out each other’s characters + se conhecer” Tradução 1
(tradução funcional por falta de correspondência lingüística), e o par finding out each
other’s characters + descubram seus mútuos caracteres” na Tradução 2 (tradução por
coincidência lingüística). O adjetivo advisable é traduzido por recomendável” e
“aconselhável” respectivamente, o mesmo ocorre com o sintagma in favour of que é
traduzido por “contrária” e “partidária”. Ambas as traduções mantêm os mesmos scripts,
contudo a Tradução 1 é mais econômica.
110
Epigrama 13
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Algernon
É deveras
escandaloso
o
número de mulheres em
Londres que namoram os
próprios maridos.
Fica tão
feio
! Isso é simplesmente
lavar a roupa limpa em
público.
Reprodução do adjetivo
scandalous
Reprodução da frase It
looks so bad.
Reprodução da distorção do
provérbio
Omissão da repetição de “-
ly”
O número de mulheres em
Londres que namoram os
próprios maridos torna-se
perfeitamente
escandaloso
.
Fica tão feio
! É
simplesmente a mesma
coisa que lavar a roupa
limpa em público
.
Reprodução do adjetivo
scandalous
Reprodução da frase It
looks so bad.
Reprodução da distorção do
provérbio
Reprodução da repetição de
-ly
The amount of women in
London who flirt with their
own husbands is perfectly
scandalous. It looks so bad.
It is simply washing one’s
clean linen in public.
Há dois recursos empregados no epigrama. Um é a quebra de expectativa ao utilizar
o adjetivo scandalous”. Flertar com o marido é reprovável. O segundo recurso é a alusão
ao provérbio, que é transformado em washing one’s clean linen in public”. Ambos os
recursos são mantidos pelas duas traduções. também a repetição da terminação dos
advérbios, que é mantida apenas pela Tradução 2. As duas traduções são casos de tradução
literal mesmo com a repetição da desinência formadora de advérbios. também a
reprodução da frase “It looks so bad.” Em ambas as traduções.
Epigrama 14
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Algernon
... na vida conjugal
três é
companhia, e dois, não.
Reprodução do provérbio
distorcido
Explicitação do pronome
“none”
... na vida conjugal
três é
companhia e dois, não.
Reprodução do provérbio
distorcido
Explicitação do pronome
“none”
... in married life
three is
company and two is none.
111
Esse é mais um exemplo de humor por alusão ao provérbio. quebra de
expectativa com a troca numérica onde “three” é bom, já “two” nada significa. Os recursos
são reproduzidos por ambas as traduções (traduções literais). A tradução do pronome
none” gerou o mesmo par “none + não”, o que não dá a completa dimensão de “none”.
Epigrama 15
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Lady Bracknell
Não admito nada que
prejudique a ignorância
natural. A ignorância é
como uma
flor exótica
:
murcha
ao primeiro
contato.
Recriação do sintagma
“exotic fruit”
Reprodução do sintagma
“tampers... ignorance”
Recriação do sintagma
“bloom is gone”
Economia
Não aprovo que coisa
alguma
se intrometa com a
ignorância natural. A
ignorância é como um
delicado fruto exótico
:
tocá-lo é
fazer desaparecer
a penugem.
Reprodução do sintagma
“exotic fruit”
Reprodução do sintagma
“tampers ... ignorance”
Reprodução do sintagma
“bloom is gone”
I do not approve of anything
that tampers with natural
ignorance. Ignorance is like
a delicate exotic fruit; touch
it and the bloom is gone.
O humor recai sobre o sintagma tamper with natural ignorance”, ou seja, dá-se
importância à ignorância nessa sociedade paradoxal. Dessa forma, o epigrama distorce o
script de “repulsão à ignorância”. A símile exotic fruite o atributo bloom is gonesão
traduzidos de maneiras diferentes. Na Tradução 1 observa-se o par “fruit + flor” e o
sintagma bloom is goneé substituído por “murcha ao primeiro contato”. na Tradução
2, o vocábulo “fruto” e o sintagma “desaparecer a penugem” são usados. As idéias o
transmitidas por formas diferentes, mas com a mesma idéia de viço” (a Tradução 2 é
literal enquanto a Tradução 1 é mais funcional, por falta de correspondência lingüística). A
Tradução 1, ainda, é bem mais econômica.
112
Epigrama 16
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato II, Algernon
É vulgar
falar de suas
próprias contas
. Só
corretores costumam fazer
isso. E assim mesmo, em
jantares sociais, por aí...
Neutralização do sintagma
one’s business
É muito vulgar
falar de
assuntos próprios
. Somente
os agentes de bolsa o fazem
e isto unicamente em seus
banquetes oficiais.
Neutralização do sintagma
one’s business
It’s very vulgar to talk
about one’s business. Only
people like stockbrokers do
that, and then merely at
dinner-parties.
O sintagma talk about one’s businesssugere duas interpretações falar de coisas
pessoais” e “falar de seus negócios”. Cada uma das traduções optou por uma interpretação,
não mantendo a duplicidade do sintagma parafraseando-se assim a expressão, e levando
a uma conseqüente neutralização (ocasionando, pois, traduções não literais por falta de
correspondência lingüística).
Epigrama 17
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Algernon
Essa questão de música é
importante:
quando é boa
,
ninguém escuta;
quando é
, ninguém conversa...
Reprodução do paralelismo
Recriação da primeira frase
Veja a senhora:
se alguém
toca boa música
, as pessoas
não a escutam, e
se toca
música ruim
, as pessoas
não falam.
Reprodução do paralelismo
Omissão da primeira frase
Of course the music is a
great difficulty. You see, if
one plays good music
people don’t listen, and if
one plays bad music people
don’t talk.
O humor recai sobre play music”. Tanto boa, quanto ruim, não função
importante para esse elemento social. um paralelismo de estruturas repetição de
sintagmas. Os scripts são mantidos em ambas as traduções, modificações quanto à
primeira frase of course music is a great difficulty”, que é omitida na Tradução 2 e
113
reconstruída Tradução 1 (gerando o par music is a great difficulty + música é
importante”).
Epigrama 18
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Lane e
Algernon
Lane: Tenho observado
freqüentemente que em
residências de casais
é raro
o
champanha
ser de
primeira qualidade
.
Algernon: Dos céus! O
casamento é assim o
desmoralizador
?
Reprodução do termo
married households
Reprodução do substantivo
champagne
Reprodução do sintagma
first-rate brand
Reprodução do adjetivo
demoralising
Reprodução da estratégia
narrativa
Lane: Tenho observado
muitas vezes que nas
casas
dos homens casados
o
champanha
é raramente de
primeira qualidade
.
Algernon: Santo Deus! O
casamento é assim
desmoralizador
?
Recriação do termo
married households
Reprodução do substantivo
champagne
Reprodução do termo first-
rate brand
Reprodução do adjetivo
demoralising
Reprodução da estratégia
narrativa
Lane: I have often observed
that in married households
the champagne is rarely of
a first-rate brand.
Algernon: Good heavens! Is
marriage so demoralising
as that?
dois momentos de humor que se configuram no diálogo. O primeiro item de
comicidade recai sobre considerar um bom casamento pelo “champagne”. A segunda
instância é a utilização do adjetivo “demoralising” para a família que serve bebida de baixa
qualidade. Esse adjetivo aciona o script de “um mau casamento por questões sentimentais
e o materiais”. Ambas as traduções mantêm os mesmo recursos humorísticos e a
reprodução de sintagmas o que ocasionam casos de tradução literal, com exceção do termo
married householdsem que a Tradução 1 gera o par married households + residências
de casais” e a Tradução 2, “married households + casas dos homens casados”. A Tradução
2, curiosamente, recria o sintagma, enquanto que a Tradução 1 o reproduz.
114
Epigrama 19
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Lady Bracknell
e João
Lady Bracknel: ...
Fuma
?
João: Sim, devo confessar
que
fumo
.
Lady Bracknell: Folgo em
sabê-lo. Todo homem deve
ter uma
ocupação
qualquer.
Londres tem ociosos
demais.
Reprodução do substantivo
occupation
Reprodução da estrutura
narrativa
Economia
Lady Bracknell:
Fuma
?
João: Bem, sim, devo
confessar que
fumo
.
Lady Bracknell: Alegra-me
sabê-lo. Um homem deve
ter sempre uma
ocupação
qualquer. demasiados
homens ociosos em
Londres.
Reprodução do substantivo
occupation
Reprodução da estrutura
narrativa
Lady Bracknell: ... Do you
smoke?
John: Well, yes, I must
admit I smoke.
Lady Bracknell: I am glad
to hear it. A man should
always have an occupation
of some kind. There are far
too many idle men in
London as it is.
O humor é introduzido pela ambigüidade por meio do substantivo occupatione
por tratar smokingcomo uma atividade digna. O script do bom emprego” é distorcido.
Ambas as traduções mantém os mesmos recursos utilizam o mesmo par occupation +
ocupação” e a mesma estratégia narrativa. Contudo, a Tradução 1 tende a ser mais
econômica (as duas são traduções literais da situação humorística).
5.3 Epigramas relativos a entidades abstratas
Os epigramas analisados que envolvem “entidades abstratas” são os seguintes:
115
Epigrama 20
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, João
Quando a
gente
está na
cidade, diverte-se. Quando
está no campo, diverte os
outros
.
Omissão de repetição
Reprodução do paralelismo
Quando a
gente
está na
cidade, diverte-se. Quando a
gente
está no campo, diverte
os
outros
.
Reprodução da repetição
Reprodução do paralelismo
When one is in town one
amuses one self. When one
is in the country one amuses
other people.
Há repetição pronominal exagerada, paralelismo de estruturas e o humor recai sobre
o verbo amuse e quem amusequem na cidade e no campo. A Tradução 1 é bem mais
econômica, pois omite as repetições (caso de tradução funcional). a Tradução 2 as
mantém (tradução por equivalência de estrutura lingüística).
Epigrama 21
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato II, Cecília,
Algernon
Cecília: No dia seguinte
comprei
este anel
em seu
nome, e esta pulseirinha que
você me fez jurar que havia
de usar sempre.
Algernon: Fui eu quem lhe
deu isto? É muito bonita,
não é?
Cecília: É, você tem um
admirável bom gosto,
Prudente. É a razão que eu
sempre encontrei para
desculpar a vida de perdição
que você levava.
Reprodução da estratégia
narrativa
Recriação do sintagma “bad
life”
Cecília: No dia seguinte,
comprei
este anel
em seu
nome e esta pulseirinha com
o verdadeiro laço de amor
que prometi a você usar
sempre.
Algernon: Fui eu quem lhe
deu isso? É muito bonita,
não é?
Cecília: Você tem um bom
gosto maravilhoso,
Prudente. É a desculpa que
sempre tenho dado à vida
boêmia que você leva.
Reprodução da estratégia
narrativa
Recriação do sintagma bad
life”
Cecily: The next day I
bought this little ring in
your name, and this is the
little bangle with the true
lover's knot I promised you
always to wear.
Algernon: Did I give you
this? It's very pretty, isn't it?
Cecily: Yes, you've
wonderfully good taste,
Ernest. It's the excuse I've
always given for your
leading such a bad life.
116
A desculpa que a namorada para desconsiderar a vida que o namorado leva é o
seu bom gosto. O nonsense é radicalizado pelo fato de ela mesma ter comprado o presente,
o anel, e assumido que o namorado o tinha feito. Ambos conversam sobre a situação de
maneira trivial. O sintagma “bad life” gera o par “bad life + vida de perdição” na Tradução
1, enquanto, na Tradução 2, “bad life + vida boêmia” — nenhum dos dois sintagmas desvia
da idéia do original (ambos os casos são de tradão literal). Cabe ressaltar que ambas as
traduções reproduzem o sintagma “wonderfully good taste”.
Epigrama 22
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Algernon
A verdadeira essência do
romance é a
incerteza
. Se
um dia eu me casar,
farei
tudo por
esquecer essa
situação.
Reprodução do substantivo
uncertainty
Recriação do verbo “try to
A própria essência do
romantismo é a
incerteza
.
Se algum dia eu me casar,
farei de todo possível para
esquecer este fato.
Reprodução do substantivo
uncertainty
Recriação do verbo “try to
The very essence of
romance is uncertainty. If
ever I get married, I’ll
certainly try to forget the
fact.
O humor recai sobre o substantivo uncertainty”, pois rompe a expectativa com
relação ao script do que se espera do romance “algo certo, e constante”. Esquecer o próprio
casamento contribui também para o nonsense irônico do epigrama; é mais um exemplo de
quebra de expectativa introduzida pelo sintagma “I’ll certainly try to”. Ambas as traduções
mantêm parcialmente os mesmo recursos lingüísticos (ambas traduções são funcionais
devido à recriação do verbo “try to”).
117
Epigrama 23
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato III, João
... é tremendo para um
homem que se preza
descobrir, de repente, que
durante toda a sua vida ele
não faz outra coisa senão
dizer a verdade.
Reprodução do sintagma
nothing but the truth
... é uma coisa terrível para
um homem descobrir de
repente que, durante toda
sua vida,
não fez nada mais
do que dizer a verdade
.
Reprodução do sintagma
nothing but the truth
... it is a terrible thing for a
man to find out suddenly
that all his life he has been
speaking nothing but the
truth.
Mais um exemplo de epigrama que rompe a expectativa. Espera-se que um homem
sempre diga a verdade; contudo, o nonsense humorístico quebra esse padrão dizendo o
contrário: descobrir que sempre se disse nothing but the truthé algo terrível. Ambos os
textos traduzidos mantêm os recursos irônicos (são casos de tradução literal).
Epigrama 24
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato I, Algernon
A verdade raras vezes é
pura
e
nunca é simples
.
Muito
aborrecida
seria a
vida moderna, se fosse
uma
coisa ou outra
; e a literatura
moderna seria totalmente
impossível.
Reprodução da litote
Explicitação do pronome
“either”
A verdade rara vezes é
pura
e
nunca é simples
. A vida
moderna seria
aborrecidíssima
, se a
verdade fosse
uma ou outra
coisa
e a literatura moderna
seria completamente
impossível!
Reprodução da litote
Explicitação do pronome
“either”
Substituição do sintagma
“very tedious”
The truth is rarely pure and
never simple. Modern life
would be very tedious if it
were either, and modern
literature a complete
impossibility!
O epigrama define a verdade utilizando um litote negando o que se acredita da
verdade e estende esse conceito para a vida moderna e para a literatura. O pronome
118
eitherfoi parafraseado gerando os pares either + se fosse uma coisa ou outra” e either
+ se fosse uma ou outra coisa”, porém os scripts foram todos mantidos. O sintagma very
tedious” foi um pouco exagerado pela Tradução 2 (mais um caso de tradução funcional).
Epigrama 25
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato II, Algernon
Nunca, de maneira alguma,
o meu
dever
de
cavalheirismo se intrometeu
com meus
prazeres
.
Reprodução da antítese
Reprodução do vocábulo
duty
Reprodução do vocábulo
pleasures
Recriação do sintagma in
the smallest degree
Meu
dever
de cavalheiro
nunca interferiu com os
meus
prazeres
de modo
algum.
Reprodução da antítese
Reprodução do vocábulo
duty
Reprodução do vocábulo
pleasures
Recriação do sintagma in
the smallest degree
My duty as a gentleman has
never interfered with my
pleasures in the smallest
degree.
O jogo de palavras envolve os vocábulos antitéticos duty e pleasures”. O script
acionado pela palavra dutyimplica em o homem sério de reputação”, que é distorcido
pela idéia de que esse homem também se deixa levar pelos prazeres da vida. O sintagma
in the smallest degree gerou o par in the smallest degree + nunca na Tradução 1
(tradução funcional), e “in the smallest degree + de modo algum”, na Tradução 2 (tradução
por equivalência lingüística). Contudo, as idéias são bem similares em ambas traduções.
119
Epigrama 26
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato II, Cecília
Espero que não tenha levado
uma vida dupla, fingindo ser
mau, quando, na realidade,
era
bom
. Isso seria
hipocrisia
.
Reprodução do vocábulo
“good”
Reprodução do vocábulo
“wicked”
Reprodução do vocábulo
“hypocrisy”
Economia
Espero que não tenha estado
levando uma vida dupla,
fingindo ser mau e sendo na
realidade
bom
todo o
tempo. Isto seria uma
hipocrisia
.
Reprodução do vocábulo
“good”
Reprodução do vocábulo
“wicked”
Reprodução do vocábulo
“hypocrisy
I hope you have not been
leading a double life,
pretending to be wicked and
being really good all the
time, that would be
hypocrisy.
O humor do epigrama recai sobre o vocábulo hypocrisyque aciona o script “ter
uma conduta”. É exatamente contrário o desejo da personagem ao jogar com as idéias
antitéticas wicked” e “good”. Ambos os textos mantém esse jogo de contrastes; contudo, a
Tradução 1 apresenta-se mais econômica (ambas são casos de tradução por equivalência
lingüística).
Epigrama 27
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato II, Gwendolen
... até os
homens da mais
nobre mpera moral
são
extremamente suscetíveis
à
influência dos encantos
físicos dos outros.
Reprodução do sintagma
“the noblest possible”
Reprodução do sintagma
“extremely susceptible”
Economia
... até os homens que têm
o
mais nobre caráter moral
possível são
extremamente
sensíveis
à influência dos
encantos físicos dos outros.
Reprodução do sintagma
“the noblest possible”
Recriação do sintagma
“extremely susceptible”
... even men of the noblest
possible moral character
are extremely susceptible to
the influence of the physical
charms of others.
120
O epigrama desorganiza o padrão do homem nobre. O humor recai sobre o
sintagma extremely susceptible pois rompe a expectativa do noblest man”. Esse
sintagma aciona o script do homem ideal despreocupado com as aparências”, e foi
ligeiramente modificado na Tradução 2. A Tradução 1 tende a ser mais econômica. Essa
mesma tradução gera o par the noblest possible moral character + da mais nobrempera
moral”, enquanto a Tradução 2, produz the noblest possible moral character + o mais
nobre caráter moral possível”, que se pode considerar equivalentes lingüisticamente.
Epigrama 28
Ato e Personagem Tradução 1 Tradução 2 Texto Fonte
Ato II, Cecília
É sempre doloroso separar-
se das pessoas que a gente
apenas conheceu. Dos
velhos conhecidos
, suporta-
se bem a ausência; mas
separar-se por pouco que
seja de
pessoas que mal
conhecemos ainda
, é quase
insuportável.
Recriação do sintagma old
friends
Recriação do sintagma
whom ... introduced
Economia
É sempre doloroso separar-
se a gente das pessoas que
conheceu por breve espaço
de tempo. A ausência dos
velhos amigos
pode-se
suportar com serenidade,
mas uma separação, ainda
mesmo momentânea, de
uma pessoa que acabam
de apresentar-nos
, é quase
intolerável.
Reprodução do sintagma
old friends
Reprodução do sintagma
whom ... introduced
It is always painful to part
from people whom one has
known for a very brief space
of time. The absence of
old
friends
one can endure with
equanimity. But even a
momentary separation from
anyone to
whom one has
just been introduced
is
almost unbearable.
O epigrama contrasta old friendse one has just been introduced”. Invertem-se
as expectativas ao se admitir que se sente mais falta de alguém que mal se conhece do que
de um velho amigo. O nonsense mais uma vez se estabelece pela quebra das expectativas.
Os sintagmas são ligeiramente modificados pela Tradução 1, enquanto a Tradução 2 os
mantém. Há uma ligeira tendência à economia na Tradução 1.
121
5.4 Recursos tradutórios empregados
A partir da análise efetuada das traduções, na qual foram detectadas as estratégias
tradutórias empregadas, foi feita uma contagem dessas estratégias, respectivamente na
Tradução 1 e na Tradução 2, verificando-se o padrão de recorrência apresentado no quadro
abaixo:
Quadro 1 – Padrão de Recorrência de Estratégias Tradutórias
Tradução 1 Tradução 2
Recriação
Reprodução
Neutralização
Substituição
Omissão
Compensação
Explicitação
Economia
17
45
02
02
06
03
02
12
11
56
02
03
01
02
02
00
A partir desses dados numéricos, foi possível verificar quais as estratégias
tradutórias empregadas com maior freqüência em cada uma das traduções analisadas. Para
demonstrar isso, foram elaborados os gráficos abaixo:
Gráfico 1 – Número de estratégias tradutórias empregadas na Tradução 1
0
10
20
30
40
50
Rec
r
i
ão
R
epr
oduç
ão
Neutr
al
i
z
ão
S
ubs
titui
ç
ão
Omissão
Compens
ão
E
x
plici
taç
ão
E
c
onomia
122
Gráfico 2 – Número de estratégias tradutórias empregadas na Tradução 2
Pode-se observar que a Tradução 1 tende a ser mais econômica, uma característica
humorística importante a ser mantida, e/ou recriada. Parece que o tradutor teve um cuidado
para com a tradução dos epigramas nesse sentido, de tornar a piada mais dinâmica, mais
condensada. ainda que se ressaltar que a Tradução 1 recria muito mais com relação aos
recursos lingüísticos e humorísticos. Contrariamente a Tradução 2, que possui muito mais
ocorrências de reprodução do que a Tradução 1. A recriação na Tradução 2 ocorre, porém
bem menos que na Tradução 1. É possível que o autor da Tradução 1 tenha se preocupado
com a questão da quantidade de palavras para que uma piada seja mais efetiva, e o segundo
tradutor procurou estar mais próximo e manter os recursos do texto original. Além disso, a
Tradução 1 também omite e compensa um pouco mais que a Tradução 1, o que reforça a
questão da tendência a modificar mais da Tradução 1 comparado à Tradução 2. Os outros
itens o apresentam diferenças significativas, comparando-se as traduções. Pode-se
ressaltar, porém, que a Tradução 1 é mais funcional que a Tradução 2, tendo em vista as
maiores recorrências de neutralização e economia comparadas ao alto índice de reprodução
da Tradução 2. Dessa forma, como conversões relevantes da Tradução 1, podem-se
destacar essas tendências à economia e à recriação em termos de criatividade. Apesar de a
0
10
20
30
40
50
60
Recr
i
ação
Re
prod
ução
Ne
u
tralizaç
ã
o
Su
bs
t
i
tuiç
ã
o
Omissão
Co
m
pe
ns
a
ç
ã
o
E
xplic
i
ta
ç
ão
E
c
o
nom
i
a
123
recorrência de recriações na Tradução 2 não poderem ser comparadas às da Tradução 1,
tendo em vista o baixo índice de ocorrência dessas.
Com relação aos quesitos propostos pela Teoria do Humor Verbal, ambas as
traduções em sua maioria mantiveram a linguagem, o alvo, a situação; poucas foram as
mudanças para com a estratégia narrativa, os mecanismos lógicos e os scripts. Logo pode-
se afirmar que as piadas não foram completamente modificadas, havendo, portanto,
tradução propriamente dita, e não a transformação de um texto em língua estrangeira em
outro completamente diferente na língua alvo. O que varia entra a Tradução 1 e a Tradução
2 são as recriações ou reproduções dos recursos humorísticos. Conserva-se, pois, em sua
maioria, a força pragmática do texto fonte no texto alvo em ambas as traduções, apesar de
suas peculiaridades.
Por ora, a pesquisa restringe-se a enfocar os epigramas e as estratégias tradutórias
empregadas para suas traduções e nas tendências que os dois textos traduzidos apresentam.
Obviamente os recursos humorísticos do texto de Wilde não se restringem a apenas esses
aspectos, outros vários fatores a se analisar quanto à produção do humor,
principalmente em uma obra tão rica de recursos lingüísticos e estilísticos.
124
6. Considerações Finais
As questões relativas ao estudo do humor, assim como as questões que envolvem os
estudos da tradução, são bastante complexas e abrangentes, o que torna o trabalho do
tradutor um desafio constante na empreitada de transpor um texto de uma língua fonte para
a língua alvo. A tradução de um texto de Wilde é considerada ainda mais difícil devido à
gama de recursos utilizados e das nuances de significados no que se refere ao humor.
Contudo, tendo em vista a tradução lingüística, mais precisamente, a tradução funcional do
humor, este trabalho procura demonstrar que é possível realizar essa tarefa, posto que a
tradução nesse âmbito tem por premissa a recriação do efeito humorístico, considerando-se
a estrutura proposta pela Teoria do Humor Verbal. Este trabalho analisou alguns dos
epigramas de Wilde em The Importance of Being Earnest e as soluções de tradução em
dois textos distintos em língua portuguesa. Essa análise de alguma forma aponta para
possibilidades de tradução e para a afirmação de que é possível, sim, traduzir o humor.
Apesar de essa análise apontar para esse fato, o elimina a possibilidade de outras
análises, assim como a comparação de outros textos de humor ou que envolvam o mesmo
autor e os mesmos tradutores, ou outros diferentes atividade proposta pela teoria dos
poli-sistemas e desenvolvida pela vertente dos Estudos Descritivos da Tradução.
125
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