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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO
MARIA VALQUIRIA MAGRO
CAMINHOS CRUZADOS DE FANNY ABRAMOVICH: A RECEPÇÃO DA
NARRATIVA PELO LEITOR JOVEM
MARINGÁ - PR
2007
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MARIA VALQUIRIA MAGRO
CAMINHOS CRUZADOS DE FANNY ABRAMOVICH: A RECEPÇÃO DA
NARRATIVA PELO LEITOR JOVEM
Dissertação apresentada à Universidade Estadual de
Maringá, como requisito parcial para a obtenção do grau
de Mestre em Letras, área de concentração: Estudos
Literários.
Orientadora: Profª Drª Alice Áurea Penteado Martha.
MARINGÁ – PR
2007
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil)
Magro, Maria Valquiria
M212c Caminhos cruzados de Fanny Abramovich : a recepção da
narrativa pelo leitor jovem / Maria Valquiria Magro. --
Maringá : [s.n.], 2007.
98 f. : il.
Orientadora : Prof. Dr. Alice Áurea Penteado Martha.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de
Maringá. Programa de Pós-graduação em Letras, 2007.
1. Leitura. 2. Mediadores de leitura. 3. Teoria da
Estética da Recepção - Obra literária. 4. Fanny Abromovich.
I. Universidade Estadual de Maringá. Programa de Pós-
graduação em Letras.
Cdd 21.ed. 028.5
MARIA VALQUIRIA MAGRO
Caminhos Cruzados de Fanny Abramovich: a recepção da narrativa pelo leitor jovem
Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação
em Letras (Mestrado) da Universidade Estadual de
Maringá, como requisito parcial para a obtenção do grau
de Mestre em Letras, área de concentração: Estudos
Literários.
Aprovada em 11 de dezembro de 2007.
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Alice Áurea Penteado Martha
Universidade Estadual de Maringá - UEM
Presidente
Profa. Dra. Marilurdes Zanini
Universidade Estadual de Maringá - UEM
Prof. Dr. José Batista de Sales
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS
A todos os que acreditam na arte como
fonte de transformação da alma humana.
DEDICO
Agradecimentos
A Deus, Senhor da vida, minha luz sempre acesa em momentos de penumbra.
À minha mãe, pelas noites sem dormir, cuidando de mim ou ajudando a cuidar dos
meus filhos. Sem sua força, nada em minha vida seria possível.
Ao meu pai (in memoriam) que, embora tenha partido tão cedo, deixou profundas
marcas em minha existência.
Ao meu filho, Rafael, tesouro da minha vida, com quem cresci e dividi tudo o que de
bom construí, sejam meus sonhos, sejam minhas realizações.
Às minhas filhas, as gêmeas Kamille e Karolline, presentes Divinos que chegaram
para encher de beleza e de alegria a minha casa e toda a minha existência.
Ao meu amado Irineu, sonho impossível que alimento a cada dia de minha vida.
Aos meus irmãos, Waldir, Alceu e Edvaldo, sempre ausentes de corpo e de alma. Sinto
falta de um abraço irmão, mas agradeço por isso também. Essa lacuna em minha vida nunca
me deixou esquecer que estou viva, que sou capaz de amar.
À minha orientadora, Professora Alice. Sem palavras...
À Fanny Abramovich, a quem aprendi a admirar. Seu trabalho é um presente a todas
as crianças, jovens e adultos, sobreviventes de um mundo tão marcado por diferenças e
injustiças.
Aos leitores que participaram dessa pesquisa, por tantas vezes ameaçada. Vocês
formam o alicerce desta conquista.
À Fernanda, braço forte e amigo nos momentos de fraqueza.
À Bia, chefe e amiga, que tantas vezes dividiu comigo as tarefas, possibilitando
minha dedicação a este trabalho.
À Andréa, secretária do PLE, sinceros agradecimentos pela racionalidade e respeito
com que me ajudou a superar as dificuldades enfrentadas.
À Bruna Gusmão, parte de minha família, a quem confio a felicidade de uma de
minhas mais preciosas realizações.
Aos amigos e aos nem tão amigos assim que passaram pela minha vida. Guardo dessa
convivência muitas lembranças, alegres e tristes. Aprendi muito com todos.
MAGRO, Maria Valquiria. Caminhos cruzados de Fanny Abramovich: a recepção da
narrativa pelo leitor jovem. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Estadual de Maringá, Maringá, Paraná.
Resumo
Nas últimas décadas, têm se intensificado os estudos acerca da leitura. Nesse campo, as
diversas áreas do conhecimento se articulam ou, às vezes, isolam-se, buscando diminuir a
distância entre os jovens e o livro que tem dividido espaço com o DVD, a mídia, os jogos
eletrônicos e outros atrativos da vida moderna. Todos os textos podem instigar à leitura, mas
o texto literário, farto da fantasia necessária e indispensável ao homem, reúne características
que vão além do papel pedagógico: forma pela gratuita capacidade de envolvimento com o
leitor. É neste contexto de realidades e necessidades que esteve pautada esta dissertação.
Nosso objetivo foi, a partir da Teoria da Estética da Recepção, proposta por Hans Robert
Jauss, observar a recepção da obra Cruzando caminhos, de Fanny Abramovich, pelo leitor
jovem, por meio de suas habilidades intrínsecas, seu conhecimento de mundo e suas próprias
expectativas diante do material literário em mãos. O grupo pesquisado foi composto por nove
jovens, entre 15 e 18 anos, moradores de um bairro de classe média baixa e estudantes do
ensino médio da rede pública que, por meio de questionários, registraram suas situações
econômicas e culturais e suas impressões de leitura da obra citada. Os instrumentos de
registro dos dados e obras de Fanny Abramovich, de Marisa Lajolo, de Regina Zilberman,
de Hans Robert Jauss, de Ezequiel Theodoro da Silva, de Antonio Candido, de Robert
Escarpit, entre outros, embasaram este trabalho. Os resultados da pesquisa demonstraram que
houve o cumprimento das funções leitoras por parte dos sujeitos da pesquisa, alicerçados na
forma de construção da narrativa, cujo tema, personagens e, principalmente, a linguagem
permitiram a aproximação entre leitor e obra.
Palavras-chave: Narrativa Juvenil; Fanny Abramovich; Cruzando Caminhos; Recepção.
MAGRO, Maria Valquiria. Crossed ways from Fanny Abramovich: The reception of the
narrative by the young reader. 2007. Dissertation (Master’s degree in letters) – State
Univsersity of Maringá, Maringá, Paraná.
Abstract
The past few decades the studies in reading have increased. In this field, the several areas of
knowledge articulate among themselves or, sometimes, isolate themselves with the purpose of
shorten the distance between the teenager and the book, that has sharing space with DVD,
media, electronic games and other attractive things of modern life. All the texts can instigate
the reading, although the literary text, rich in fantasy necessary for the men, have
characteristics that go beyond the pedagogical purpose: forms by the free capacity of
involving the reader. It is in this context of realities and necessities that this dissertation was
based on. Our objective was, starting in the Theory of Esthetic of Reception, proposed by
Hans Robert Jauss, to observe the reception of the opus Cruzando Caminhos, by Fanny
Abramovich, by the young reader, though his/her intrinsic abilities, the knowledge of world
and his/her own expectations when facing the literary material. The group used in the research
was composed by nine students, from 15 to 18 years old, residents of lower-middle class and
high school students from public schools that, though questionnaires, registered aspects of
their socio-economical situation and their reading impressions about the book mentioned. The
answers of the questioned people and the opus of Fanny Abramovich, of Marisa Lajolo, of
Regina Zilberman, of Hans Robert Jauss, of Ezequiel Theodoro da Silva, of Antonio Candido,
of Robert Escarpit, among others, were used as a base for this research. The results of the
research showed that the reading functions happened in part of the subjects of the research,
reinforced in the way the narrative was built, which theme, characters and, specially,
language, permitted the approach between the reader and the opus.
Key-words: Youth Narrative; Fanny Abramovich; Cruzando Caminhos; Reception.
Sumário
1 Considerações iniciais ...................................................................................................... 9
2 A pesquisa: caminhos percorridos ................................................................................ 15
2.1 Natureza da pesquisa ................................................................................................. 15
2.2 Instrumentos e métodos............................................................................................. 16
3 Literatura, leitura e leitor: caminhos da discussão ..................................................... 19
3.1 Leitura: abrindo o livro.............................................................................................. 19
3.2 Literatura: concepções e funções............................................................................... 23
3.3 Sociologia da Leitura................................................................................................. 32
3.4 Estéticas da Recepção................................................................................................ 37
4 Fanny Abramovich: produção estética e crítica .......................................................... 42
4.1 Apresentando a autora ............................................................................................... 42
4.2 Criação e escrita: os resultados.................................................................................. 45
4.3 Livro, leitura e literatura: a opinião de quem vivencia.............................................. 49
5 A recepção de Cruzando caminhos, de Fanny Abramovich........................................ 57
5.1 Cruzando caminhos: com a palavra, a autora............................................................ 58
5.2 Conhecendo os leitores – Questionário Socioeconômico e Cultural......................... 60
5.3 Cruzando caminhos: impressões de leitura ............................................................... 71
6 Considerações finais ....................................................................................................... 90
7 Referências ...................................................................................................................... 96
Apêndices............................................................................................................................ 99
1 Considerações iniciais
Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
Geir Campos
1
No Brasil e no mundo, as pesquisa sobre leitura têm ganhado fôlego em todas as áreas
do conhecimento: na pedagogia, na sociologia, na psicologia, na lingüística, nas ciências
sociais, na literatura. Com os avanços obtidos, afloram também os problemas encontrados
para minorar as dificuldades que muitos ainda enfrentam para usufruir de todas as vantagens
de ser leitor, os quais envolvem desde políticas governamentais até a própria estrutura social
marcada pelas transformações da modernidade.
Neste trabalho, partimos da seguinte premissa: os jovens lêem, gostam do texto
literário e dele se apropriam de diferentes formas, guiados pelas diferenças inerentes a cada
um e que são construídas pelas histórias que envolvem suas vidas, bem como pelas
características próprias de cada indivíduo. Nosso objetivo é verificar, a partir das respostas
obtidas com os questionários intitulados Socioeconômico e Cultural e Impressões de Leitura,
a recepção da obra Cruzando Caminhos (2005), de Fanny Abramovich, por leitores jovens.
Os conceitos que embasam esta dissertação advêm dos estudos sobre leitura, Estética da
Recepção e Sociologia da Leitura. A entrevista com Fanny Abramovich e algumas de suas
obras, nas quais estão registradas suas concepções de leitura e literatura e o processo de
criação de Cruzando caminhos, contribuem para os resultados obtidos.
A obra escolhida como corpus está de acordo com as orientações de Bordini e Aguiar
(1982), pois os sujeitos da pesquisa são jovens leitores pouco experientes e, portanto,
1
Pedrosa, Israel (org). Geir Campos - Antologia Poética. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial Ltda, 2003,
p. 89.
identificam-se com textos menos longos, mais permeáveis, com uma linguagem próxima a
eles e, principalmente, que os envolvam em atitudes e situações próprias da juventude.
Algumas inquietações norteiam este trabalho:
- Quais as concepções de literatura, leitura e leitor apresentados pelos críticos?
- Quais as concepções de literatura, leitura e leitor de Fanny Abramovich?
- Como se caracteriza o processo de construção da obra Cruzando caminhos?
- Quais as formas de acesso à cultura dos sujeitos da pesquisa?
- Quais as suas histórias de leitura, suas vivências com o texto escrito e,
principalmente, com a literatura?
- Que juízos de valor da obra Cruzando caminhos são registrados pelos sujeitos da
pesquisa?
- Quais as identificações possíveis com as personagens de Cruzando caminhos?
- Quais as visões sobre os temas tratados pela obra, principalmente sexo e morte, são
construídas por meio das ações das personagens?
Durante a trajetória como educadores, cruzamos os caminhos de muitos jovens
adolescentes cujo contato com a leitura, muitas vezes, não passa da descrição impressa no
papel que envolve o chiclete, amigo inseparável de moças e rapazes dentro ou fora da escola.
Como professores da rede pública de ensino, trabalhando com adolescentes carentes,
fora da idade para a série escolar em que se encontram, percebemos a falta de contato com os
livros como o maior problema de leitura existente. Um trabalho de envolvimento e
disponibilidade para carregar algumas caixas de livros, passeios rotineiros pela pequena
biblioteca da escola, recortes de jornais velhos, idas e vindas pelos gramados próximos em
busca de um melhor lugar para ler poesia e pronto: a maioria dos jovens envolvidos já não diz
mais que odeia ler; já lê razoavelmente textos em prosa e a poesia já preenche alguns
momentos de suas vidas.
Todas essas palavras estão aqui para aproximar o leitor deste trabalho dos primeiros
contatos com o tema pesquisado, o qual envolve literatura, jovens e preferências de leitura.
Paralelo a esta vivência direta com os problemas de leitura entre os jovens, tivemos nosso
primeiro contato (via internet) com Fanny Abramovich, autora de, entre outras obras,
Cruzando caminhos, livro de literatura escolhido como corpus de pesquisa para este estudo.
Fanny, como permitiu chamá-la, contou, em um dos e-mails, que se acostumou a formar
bibliotecas por onde passou e sempre com bons resultados:
Depois conto, se quiser, as bibliotecas que andei formando por aí... Na
guarita do meu prédio, na lavanderia... etc... com pessoas como os
seus alunos...Diferente, porque não é escola, não tem sala de aula, não
tem horário, não tem classe pra esperar/acompanhar... Informal e
acontecente... Na procura dos textos.
2
Esta dissertação já estava encaminhada por ocasião da conversa com Fanny e tinha
como foco a descrição de um trabalho realizado com os alunos, que envolveria incentivos à
leitura da obra Cruzando caminhos e o estudo da recepção deste texto pelos jovens dentro do
contexto escolar e encaminhamentos do professor.
Às voltas com as leituras para este trabalho, deparamos com outros aspectos e tivemos
oportunidade de pensar sobre outra realidade. Tendemos a ver a escola como local de
construção do conhecimento e, logo, espaço maior, se não único, de desenvolvimento da
leitura. Contudo, as pessoas lêem independente da escola; iniciam, muitas vezes, sua trajetória
de leitura nela, mas continuam lendo mesmo depois que deixam a instituição escolar,
formados, para ocupar diferenciados espaços no mercado de trabalho; ou, ainda, permanecem
em casa, cuidando dos filhos, educando, civilizando, formando, lendo. Pensando nisso,
modificamos a forma de abordagem dos sujeitos da pesquisa, passando de um trabalho no
qual teríamos o envolvimento do grupo em atividades com o livro, para um enfoque nos
resultados de uma leitura solitária. Os efeitos desta leitura seriam, assim, a apropriação dos
valores da obra individualmente, sem a mediação do professor ou do grupo, mas considerando
os mediadores de leitura que acompanham os indivíduos durante a vida toda, como a família,
a sociedade, as bibliotecas, a mídia.
Os fundamentos para esta pesquisa decorreram de várias leituras, principalmente, de
Ezequiel Theodoro da Silva que, em Elementos da Pedagogia da Leitura (1993), observa que
o processo de leitura leva a um movimento do sujeito que busca compreender e conhecer a
razão de tudo. Essa opinião instiga a reflexão sobre a importância da valorização da leitura,
enquanto atividade promotora de socialização, de compreensão e de atuação crítica na
sociedade.
2
Estas palavras foram escritas por Fanny Abramovich, em conversa informal por e-mail, em 28/07/2006.
A leitura escolarizada, na maioria das vezes, possui objetivos alheios à necessidade e
ao interesse do sujeito, mas, por meio desses objetivos, determinados pelo encaminhador do
processo, pode-se chegar ao estabelecimento de objetivos eleitos ou construídos pelo próprio
sujeito. Quando de posse de um objeto de leitura, esses objetivos contribuem para a formação
dos objetivos estéticos e pessoais e, conseqüentemente, colaboram para a fruição da leitura.
As diversas modalidades de textos, verbais ou não verbais, garantem ao leitor
subsídios para aprimorar conhecimentos, realizar analogias, viabilizar a compreensão do
mundo. A leitura do texto literário vai mais além, pois, conforme a opinião de Antonio
Candido (1972), a literatura educa, como a vida, com altos e baixos, levando o indivíduo a um
mundo de fabulação necessário para sua existência como forma de facilitação ao
enfrentamento das dificuldades que vivencia. Segundo o autor, o ser humano não conseguiria
prender-se à realidade por todo o tempo de sua existência. A fantasia, fartamente encontrada
na literatura, constitui o alicerce para a sobrevivência humana.
O texto literário não cumpre objetivos específicos e não está preocupado com o
cumprimento de funções, com a promoção de ensinamentos, ou com o estabelecimento de
modelos. É também aí que reside sua riqueza, pois, com ele não ocorre o condicionamento do
leitor, mas a transformação natural, gratuita, construída com o envolvimento entre quem lê e o
texto lido. A apropriação do bem incompressível do prazer da leitura é o resultado de como o
leitor recebe o texto, das representações que ele cria. (CANDIDO, 1972).
Hans Robert Jauss, com a Teoria da Estética da Recepção, dedicou-se a observar o
processo de recepção da obra pelo leitor. Em seus estudos, pesquisou a recepção dos textos
literários pelos leitores, evidenciando que o objeto da literatura é o próprio texto literário e,
aprofundando os estudos estruturalistas, observou que o efeito que a leitura causa está
condicionado aos juízos históricos do leitor. Seu conhecimento prévio influencia a atualização
da leitura de forma diferenciada de leitor para leitor, porque a recepção da obra não é igual
para todos, como também suas histórias de vida não são as mesmas.
Uma obra literária nunca está pronta, acabada. Ao disponibilizá-la ao público, o
escritor pôs no papel o seu conhecimento de mundo, levou em conta a sua percepção das
coisas e, ainda, não esgotou as possibilidades de interpretação do real. Quando o leitor, que se
caracteriza como autônomo e solitário, entra em contato com o texto, impõe sobre ele suas
próprias impressões e seu conhecimento prévio. Além disso, tem o poder de escolher o
momento em que irá dedicar seu tempo à leitura da obra, cuja escolha, em muitos casos,
determinará como o texto será recebido. O resultado é a atualização do texto em muitos
aspectos, se não em todos, pois, com a literatura, dado o seu caráter naturalmente
plurissignificativo e atemporal, as possibilidades de reconstrução se alargam, oportunizando o
crescimento irrestrito do leitor.
Com a literatura infanto-juvenil isso não é diferente. O bom texto literário, escrito
inicialmente com o objetivo de encantar crianças e adolescentes, reúne todas as características
do texto literário idealizado para adultos. As fantasias que dele emergem permitem viagens
que vão além de uma única interpretação e a recepção desses textos atraem diferentes leitores
e de formas distintas.
Contudo, uma frágil política de incentivo à leitura que vigora em nosso país, o
crescente aumento das atrações que o mundo moderno disponibiliza, além de outras situações
próprias da sociedade moderna afastam os sujeitos da atividade de leitura. Ler é uma tarefa
solitária, cujo prazer advém da disponibilidade com que o leitor empreende a tarefa. Mas,
apesar de tudo, nossos jovens ainda lêem e vêem sentido no que lêem, elaboram estratégias de
recepção do texto de forma diferenciada, obtendo diferentes resultados com a leitura.
[...] ao ler, o leitor experimenta uma situação desencadeada tão
somente pela leitura: ele consegue ocupar-se com os pensamentos do
outro. Graças a essa propriedade da leitura, o leitor substitui a própria
subjetividade por outra, abandonando temporariamente suas
disposições pessoas e preocupando-se com algo que até então não
conhecia. (ZILBERMAN, 2001, p. 52).
Embora as pesquisas sobre como o leitor recebe a obra literária tenham crescido ao
longo dos últimos anos, e o livro escolhido para este trabalho tenha sido escrito por uma
escritora notadamente reconhecida por sua qualidade estética, não encontramos dissertações
ou teses que abordem Fanny Abramovich e sua obra. Alguns trabalhos envolvem o tema do
qual tratamos, mas não especificamente com o enfoque e obra escolhidos. Podemos citar,
unicamente, o texto Cruzando caminhos: alcoolismo e morte na literatura juvenil, de A. A.
Penteado Martha, publicado nos Anais da ABRALIC, de 2006.
Esta dissertação está dividida em seis capítulos. Neste, expomos nossos objetivos e as
idéias principais de autores que se dedicam ao assunto e com cujas obras tivemos contato ao
longo de nossa vida acadêmica.
O segundo capítulo destina-se a descrever os caminhos da pesquisa, a metodologia e
os instrumentos utilizados para a pesquisa bibliográfica, para a coleta e discussão dos dados
obtidos.
No terceiro capítulo, discorremos sobre as concepções de diversos autores sobre
literatura, leitura e leitor, entre eles, Antonio Candido e Terry Eagleton. Também discorremos
sobre a Teoria da Estética da Recepção, de Hans Robert Jauss, e sobre os trabalhos
desenvolvidos em Sociologia da Leitura.
O capítulo quatro constitui-se um espaço para uma breve exposição do trabalho de
Fanny Abramovich, autora de Cruzando caminhos, além de outras inúmeras obras voltadas
para os mais diferentes públicos, como crianças, jovens e educadores. Além de obras
publicadas, entrevista com a escritora e conversas informais pela internet embasam o capítulo.
No capítulo cinco, discutimos os resultados dos questionários respondidos pelos
sujeitos da pesquisa, relacionando com as concepções formuladas pela fundamentação teórica
envolvendo literatura, leitura e leitor, expostas nos capítulos anteriores.
Nas Considerações finais, retomamos conceitos básicos descritos neste trabalho, bem
como os resultados obtidos com a relação de todos os levantamentos feitos para a elaboração
desta dissertação.
Por fim, as Referências e os Apêndices, estes compostos pelos instrumentos de
pesquisa por nós elaborados: Roteiro da Entrevista concedida por Fanny Abramovich,
Questionário Socioeconômico e Cultural e Questionário de Impressões de Leitura.
2 A pesquisa: caminhos percorridos
Nem as copas das árvores
Nem o topo do mundo
Me bastam!
Quero arranhar o céu,
Rasgar o azul e descobrir
A verdadeira face dos anjos.
Denise Bragotto
3
Neste capítulo, expomos as etapas seguidas para o desenvolvimento da pesquisa.
Divide-se em dois tópicos: o primeiro aborda a natureza da pesquisa, explicitando sua
natureza e alcance; o segundo tópico destina-se à descrição dos instrumentos adotados para
coleta, apresentação e discussão dos dados.
2.1 Natureza da pesquisa
Esta pesquisa se caracteriza como qualitativa e interpretativa, pois busca verificar, em
uma situação específica, a recepção de uma obra literária por um determinado grupo de
jovens, interpretando as formas de apropriação dos valores estéticos da obra.
Segundo Erickson
4
(1988, p. 289-90), a interpretação pode aludir a todo um conjunto
de pontos de vista da pesquisa observacional participativa. A pesquisa interpretativa “centra-
se em aspectos específicos do significado e na ação da vida social que se desenvolve em cenas
concretas de interação face a face na sociedade que norteia a cena da ação”
5
. Dessa forma:
“A investigação interpretativa do ensino [...] não é somente um método distinto, mas uma
perspectiva diferente de como funciona a sociedade e de como funcionam as escolas, as
aulas, os professores e os alunos na sociedade.” (ERICKSON, 1988, p.294)
6
.
3
BRAGOTTO, Denise. Plenitude. Campinas: Copola, 1998, p. 38.
4
As citações de Erickson foram por nós traduzidas, a partir da versão da obra em espanhol citada nas
Referências desta dissertação.
5
“[...] se centra em los aspectos específicos del significado y la accion de la vida social que se desarrola em
escenas concretas de interacción cara a cara y em la sociedade que rodea a la escena de la accion”
6
La investigación interpretativa de la ensenãnza [...] no es sólo un método distinto, sino que entraña una
perspetiva diferente de cómo funciona la sociedad y cómo funcionan las escuelas, las aulas, los docentes y los
alumnos en la sociedad.
O procedimento metodológico utilizado justifica-se por melhor satisfazer às nossas
expectativas, uma vez que o interesse é descrever e analisar a recepção de Cruzando
Caminhos (2005), de Fanny Abramovich, por leitores jovens, observando a apreensão dos
valores estéticos da obra.
2.2 Instrumentos e métodos
Segundo Gil (1999), o homem busca sempre conhecer o mundo em que vive, com o
intuito de melhor despertar a consciência e, assim, promover sua satisfação pessoal e a do
grupo. Para isso, desenvolve formas cada vez mais elaboradas para registrar suas inquietudes,
explicar suas descobertas, entender melhor o mundo. O sucesso de uma pesquisa depende,
também, da elaboração e escolha de procedimentos adequados para a coleta, registro,
discussão e apresentação dos dados, os quais constituirão o método de trabalho do
pesquisador em busca de seus objetivos.
Gil (1996) aponta que, para o levantamento de dados, podem ser utilizadas diferentes
formas de interrogação: o questionário, a entrevista e o formulário. Todas se mostram úteis
para a obtenção de informações acerca do sujeito pesquisado. Optamos pela entrevista e pelo
questionário:
Por questionário entende-se um conjunto de questões que são
respondidas por escrito pelo pesquisado. A entrevista, por sua vez,
pode ser entendida como a técnica que envolve duas pessoas numa
situação face a face e em que uma delas formula questões e a outra
responde. Formulário, por fim, pode ser definido como a técnica de
coleta de dados em que o pesquisador formula questões previamente
elaboradas e anota as respostas. (GIL,1996, p. 90).
A opção pelo questionário justifica-se pelo fato deste ser, conforme aponta Gil (1996,
p. 90) “[...] o meio mais rápido e barato de obtenção de informações”. Sobre a entrevista, o
mesmo autor assinala que “[...] dentre todas as técnicas de interrogação, a entrevista é a que
apresenta maior flexibilidade”.
A entrevista com Fanny Abramovich foi realizada com o objetivo de registrar um
contato mais próximo com a autora de Cruzando Caminhos. Nas questões, buscamos focalizar
o pensamento da autora sobre literatura, leitura e leitor, bem como sobre o processo de criação
da obra em questão, uma vez que não encontramos trabalhos publicados sobre o assunto e
buscávamos reunir dados que embasassem satisfatoriamente a interpretação dos dados obtidos
e a relação com os demais instrumentos adotados, ou seja, os questionários.
A entrevista foi constituída por quinze questões abertas (Apêndice 01), elaboradas de
maneira a possibilitar e incentivar ao máximo a argumentação por parte da entrevistada. As
quinze questões resultaram em 17 laudas, abordando detalhadamente aspectos formais e
estéticos da obra da escritora.
O Questionário Socioeconômico e cultural e o Questionário de Impressões de Leitura,
cujos modelos representam, respectivamente, Apêndices 02 e 03 deste trabalho, foram
utilizados para a obtenção dos dados sobre os sujeitos da pesquisa no tocante à formação
social e cultural e quanto à recepção da obra Cruzando caminhos.
Quanto à abordagem dos sujeitos participantes da pesquisa, os jovens foram
interpelados e convidados, um a um, a participarem de nosso trabalho, colaborando com a
leitura do livro e respondendo a dois questionários. Salientamos que a opção de chamá-los
jovens e não alunos é em virtude do fato de que, embora tenham sido identificados como
alunos de uma determinada escola, não houve nenhum trabalho que os envolvesse com o livro
escolhido dentro do contexto escolar.
Para a pesquisa, 26 (vinte e seis) jovens foram contatados; 14 (quatorze) concordaram
em participar e foram informados de que não seriam identificados. Em seguida a esse
contado, os 26 jovens receberam o livro Cruzando caminhos, para leitura, juntamente com o
Questionário Socioeconômico e Cultural (Apêndice 02), visando à verificação da situação
desses indivíduos no contexto social, bem como o contato com a linguagem escrita e, mais
especificamente, com o texto literário. Este questionário não inclui o nome da escola em que
estudam, nem o endereço dos sujeitos, mas todos pertencem à mesma escola, a turmas
diferentes e residem no mesmo bairro, de classe média baixa.
Os jovens também receberam o Questionário de Impressões de Leitura (Apêndice 03),
visando ao registro de elementos percebidos na obra Cruzando caminhos a partir de uma
leitura solitária, tendo como mediadores suas histórias de leitura, suas vivências pessoais ou
em grupo. Não houve nenhuma orientação por parte do pesquisador para a leitura e nenhuma
influência da escola para o desenvolvimento da pesquisa. Dos 14 (quatorze) jovens
potencialmente sujeitos da pesquisa, apenas 09 (nove) devolveram os questionários
respondidos, número de jovens, portanto, considerado para as discussões neste trabalho.
Assim, o grupo pesquisado ficou constituído de 09 (nove) jovens, com idade entre 15 e
18 anos, regularmente matriculados no 2º ano do Ensino Médio, período noturno, de uma
escola Estadual, periferia da cidade de Maringá, Paraná.
Sem em nenhuma orientação prévia para a leitura, conforme já mencionado, os jovens
tiveram um prazo de mais ou menos 30 dias para as atividades, que incluíram a leitura da
obra, preenchimento e devolução dos questionários ao pesquisador. Os questionários foram
devolvidos em um prazo que variou entre 26 e 42 dias. A variação no tempo de leitura ou de
devolução dos instrumentos não foi considerada para efeito de análise dos resultados, mesmo
porque não houve, por parte do pesquisador, estabelecimento de data específica para o
cumprimento das atividades.
O material resultante da entrevista com Fanny Abramovich, autora de Cruzando
caminhos, é discutido em capítulo à parte. Os Questionários Socioeconômicos e Culturais e os
de Impressões de Leitura da obra têm suas perguntas e respostas refletidas à luz da Estética da
Recepção e da Sociologia da leitura, ancorados, também, nas considerações da autora da obra.
No capítulo que se segue, discutimos os principais tópicos das teorias que embasam
esta pesquisa e as concepções de leitura, literatura e leitor defendidas por diversos
pesquisadores, procurando estabelecer um diálogo entre estes pensamentos e os construídos
ao longo de uma formação acadêmica e profissional.
3 Literatura, leitura e leitor: caminhos da discussão
Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de
objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção,
enquanto construção.
Antonio Candido
7
Neste capítulo, discorremos sobre as concepções de leitura, literatura e leitor,
ancorados em pesquisadores que elaboram conceitos e debatem sobre a importância da leitura
e sua socialização e também sobre a atuação do texto literário no imaginário e na vida dos
indivíduos. Antonio Candido constitui alicerce deste capítulo por o considerarmos expoente
de uma linha de pensamento que concebe a literatura como a transformação de uma dada
realidade, cujo distanciamento produzido pelo efeito estético permite ao indivíduo melhor
atuação no meio social. Também abordamos as pesquisas em Sociologia da Leitura,
evidenciando os mediadores, condição sine qua non para a fruição da leitura. A Teoria da
Estética da Recepção, de Hans Robert Jauss, contribui para entendermos o processo de
recepção de textos literários pelos leitores. As pesquisas de Regina Zilberman, Terry
Eagleton, Antoine Compagnon, Ezequiel Theodoro da Silva, entre outros, colaboram com
importantes considerações.
3.1 Leitura: abrindo o livro
Estabelecer claramente um conceito de leitura parece tão difícil quanto conceituar
literatura, pois se trata de uma atividade multiforme que, muitas vezes, associa-se à escrita,
mais especificamente, a jornais, revistas, folhetos, livros. No entanto, o ato de ler vai além da
escrita. Não consiste, apenas, em decodificar um código gráfico. Pode-se ler um objeto, uma
figura, um quadro, uma música etc., desde que se acrescente algo de nosso, que seja o
resultado de uma experiência, a capacidade de viver a fantasia, ou a satisfação da necessidade
mais íntima e mais secreta. Segundo Evangelista (2001), a leitura deve estar ligada ao
processo de formação global do indivíduo, à sua capacitação para o convívio e atuação social,
política, econômica e cultural.
7
CANDIDO, Antonio. Vários escritos, 3 ed. Revista e atualizada. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 245.
Desde os gregos e romanos, ler e escrever significa poder integrar-se na sociedade.
Entre eles, a atividade de leitura e escrita era um privilégio de poucos e não exigia grandes
esforços mentais. Mas, com a complexidade da sociedade moderna, a evolução tecnológica, o
aumento significativo de textos escritos, a atividade de leitura tornou-se mais exigente,
cobrando do leitor mais sistematização de conduta diante do que lê. Conduta que determina o
nível de aproveitamento da leitura, seja ela feita com o intuito de aprender, de divertir ou de
exercer o direito de apropriar-se do prazer solitário por ela proporcionado.
A partir dos anos 70, começa a preocupação com a crise de leitura que atingia os
estudantes, e a escola assume papel importante nessa problemática:
A entidade que assegura a integração a um governo de participação
popular é a escola. [...] é a mudança do indivíduo em leitor que, do
âmbito individual, oferece o requisito primeiro para a atuação política
numa sociedade democrática. (ZILBERMAN, 1991, p. 21).
Para Zilberman (1991), a leitura é uma prática indispensável para o posicionamento
correto e consciente do indivíduo perante o real. É um processo amplo e apresenta um
componente democrático que lhe é inerente, ainda que sua difusão, no início, tenha decorrido
de interesses econômicos e ideológicos da burguesia.
A leitura é, portanto, uma atividade fundamental para a vivência individual e do
grupo, que deve ser despertada pela escola, mas também incentivada por toda a sociedade,
pois permite que o indivíduo estabeleça contato com diferentes realidades socioculturais.
Assim, o contato com a diversidade textual constitui a condição ideal para que o indivíduo
amplie seu conhecimento de mundo. Silva acrescenta:
[...] a leitura caracteriza-se como um dos processos que possibilita a
participação do homem na vida em sociedade, em termos de
compreensão do presente e do passado e em termos de possibilidade
de transformação sociocultural futura. (SILVA, 1993, p. 24).
Evangelista (2001), ao definir leitura, considera-a uma atividade presa à escrita e,
principalmente, ao texto literário e propõe que ela seja vista como um processo de
compreensão do mundo e de participação do indivíduo nele. O ato de ler não significa
conhecer as letras e poder formar palavras, nem conhecer as regras gramaticais. A
decodificação não significa que houve leitura. Ela é resultado da percepção de algo por meio
dessa decodificação e, para haver leitura, é preciso ir além: ser capaz de ver nas palavras a
interação receptiva e criadora com o real. Para a autora, a leitura constitui um processo
individual, depende da capacidade de compreender sinais, está mais ligada à vivência do que
ao conhecimento sistemático da língua. Trata-se, portanto, de um processo social, construído
conforme prerrogativas estabelecidas pela sociedade.
O homem, através da linguagem oral ou escrita, pode comunicar-se com outros
homens, trocar experiências. E esse instrumento de comunicação, a linguagem, nasce da
convivência social, conforme a necessidade estabelecida para o intercâmbio do grupo.
O livro, por sua vez, registra a linguagem verbal, fazendo uso da escrita, conservando
a expressão da raça humana, seus costumes e idéias ao longo da história. Por meio da leitura,
o homem toma conhecimento de outras culturas distantes da sua, no tempo e no espaço. Isso
possibilita uma socialização que vai além da comunicação direta, ou seja, da linguagem oral.
Com as trocas lingüísticas, o indivíduo se certifica de seu conhecimento de mundo e dos
outros homens, assim como de si mesmo, ao mesmo tempo em que participa de
transformações em todas essas esferas.
[...] é através da linguagem que o homem se reconhece como ser
humano e, através do código escrito, é possível registrar e conservar o
conteúdo da consciência humana individual e coletiva. [...] Ao
decifrar o texto, o leitor estabelece elos com as manifestações
socioculturais que lhe são distantes no tempo e no espaço. (BORDINI
e AGUIAR, 1988, p. 09).
A sociedade vigente tende a substituir a atividade de leitura por atividades que mais
rapidamente promovem o acúmulo do capital. Paralelamente, a indústria cultural aparece cada
vez mais preocupada com uma produção de consumo rápido, sem o compromisso com a
transmissão e manutenção da cultura e do hábito de leitura. Essa idéia encontra respaldo
diretamente na sociedade, em grupos com pouco contato com a leitura, principalmente, de
textos literários, cuja apropriação de valores é individual e varia conforme a recepção que
cada um faz do texto e que, por sua vez, envolve seu horizonte de expectativa.
O processo de construção da leitura pode ser lento e só se efetiva se o indivíduo sente
necessidade de novos conhecimentos e isso acaba sendo um pré-requisito para a construção
de um bom leitor. Essa necessidade, aliada ao estímulo, às dificuldades encontradas com o
texto e recompensas, contribuirá para a construção de uma efetiva atividade de leitura.
Foucambert (1997) considera o fato de o indivíduo sempre elaborar motivos os mais
variados para a leitura. Pode ser para adquirir conhecimento, cumprir uma obrigação ou
satisfazer uma necessidade estética.
De acordo com o posicionamento do autor, podemos verificar que a leitura é efetivada
a partir de uma expectativa que o leitor cria sobre o material em questão. Assim, um leitor é
também aquele que, por iniciativa própria, seleciona, de acordo com suas necessidades e
interesses, o que ler entre os vários tipos de textos que circulam socialmente. Leitor é,
portanto, aquele que consegue reconstruir o significado do texto a partir de seus objetivos e de
seu conhecimento de mundo. Promove uma leitura crítica e inteligente, na qual se observa
como personagem principal do processo de construção de significados.
A escola tem enfrentado muitas dificuldades quando o assunto é leitura. Mas o sujeito
não passa o tempo todo de sua vida na escola. Como lembra Foucambert (1997), o indivíduo
vai deixar a escola algum dia, mas vai continuar a ler o mundo, a ter contato com os diferentes
textos e a constituir diferentes recepções desses textos. Por isso, é preciso resgatar o leitor da
palavra escrita, sensibilizar a criança e o adolescente para o livro e, assim, formar leitores
competentes, independente do contexto escolar, uma vez que a atividade de leitura
acompanha o indivíduo em todas as etapas da vida.
Marisa Lajolo (1997) enfatiza que o ato de ler pode ser comparado ao trabalho de um
artesão, em que o significado do texto é o resultado do trabalho executado. A autora compara
a produção moderna do livro didático à história da tecelagem. Esta produção moderna
resultou na massificação da leitura, provocando o risco de alienação e destruição do
significado do texto e do ato de ler, assim como aconteceu com a indústria têxtil, cujos novos
modelos de produção transformaram o prazer do artesanato em buscas cada vez mais rápidas,
mais exigentes, pouco prazerosas. Originalmente, a leitura é uma atividade individual,
reflexiva, mas as transformações sociais têm feito do ato de ler algo voltado para o lucro.
Podemos dizer, enfim, que o problema de leitura não está intimamente ligado à escola,
mas faz parte dela. Embora o indivíduo deixe a escola um dia, sempre estará direta ou
indiretamente ligado a ela, seja através de um filho, de um irmão, de um amigo, ou do outro
lado da moeda: como professor. E, mesmo que esteja totalmente alheio aos problemas
restritos ao enfileiramento de carteiras próprio do espaço escolar, a existência, potencialidades
e dificuldades dos textos escritos constituem verdades inquestionáveis na vida de cada um.
Portanto, a formação do leitor, o desenvolvimento da capacidade de ler e do gosto pela leitura
em muito extrapolam os limites escolares; mas é impossível desassociar entidade escolar e
leitura, devido ao próprio grau de responsabilidade que essa instituição chamou para si com
aquiescência da sociedade. Na verdade, a responsabilidade ainda está longe de ser atribuída a
alguém, pelo menos no sentido da imposição de medidas que venham, mesmo a longo prazo,
acabar com o problema.
3.2 Literatura: concepções e funções
Discorrer sobre concepções e funções da literatura pressupõe considerar o indivíduo e
a realidade que o cerca, pois a natureza do texto literário está intimamente ligada ao objeto de
que ele é construído: a realidade e o homem.
Antonio Candido
8
, no texto Estímulos da criação literária (1976), aborda os
problemas decorrentes das diferentes visões sobre a criação literária. Trabalha com a dialética,
com a adição, e critica a visão maniqueísta da sociedade, salientado que, para o homem
primitivo, a fantasia é maior que a capacidade generalizadora de cunho lógico, característica
do homem civilizado. Para Candido, a palavra-chave para o conceito de literatura é
“transfiguração”, ou seja, a literatura é a transfiguração do real: “[...] é uma transposição do
real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de
ordem para as coisas, os seres, os sentimentos.” (1976, p. 53).
Candido (1976) distingue três funções da literatura: função total, função social e
função ideológica, salientando que somente a observação do conjunto das três permite a
leitura da obra literária. A primeira diz respeito às representações individuais e sociais, que
são atemporais e universais, ou seja, vão além do imediato e do local:
A função total deriva da elaboração de um sistema simbólico, que
transmite certa visão do mundo por meio de instrumentos expressivos
adequados. Ela exprime representações individuais e sociais que
transcendem a situação imediata, inscrevendo-se no patrimônio do
grupo. (CANDIDO, 1976, p.47).
A função social está diretamente ligada à natureza da obra, independente de seu
criador ou leitor. Incide sobre o papel que o texto literário desempenha no contexto social e,
conforme escreve Candido:
[...] comporta o papel que a obra desempenha no estabelecimento de
relações sociais na satisfação de necessidades espirituais e materiais,
8
A primeira edição deste texto é de 1965.
na manutenção ou na mudança de uma certa ordem da sociedade.”
(CANDIDO, 1976, p.46).
A função ideológica, por sua vez, é considerada por Candido (1976, p. 46) menos
importante, embora esteja contida na função social. Refere-se a “[...] um sistema definido de
idéias.”
Nem sempre a intenção do autor com o texto será respondida pelo público leitor na
mesma medida; mesmo porque a linguagem, instrumento de que a literatura se utiliza para
expressar idéias, é sempre reconstruída pelo leitor.
Em A literatura e a formação do homem (1972, p. 804), Candido apresenta
considerações sobre a literatura e sua capacidade de confirmar a humanidade do homem:
“Como algo que exprime o homem e depois atua na própria formação do homem.”
Conceitua função como o papel que algo desempenha num contexto e acrescenta que a
função deve ser considerada ao lado da estrutura, pois um enfoque não substitui o outro. O
enfoque estrutural é mais estático; enquanto a função, opostamente, envolve atuação,
processo, sucessão, história, o que resultaria na idéia de valor, desprezada pelo estruturalismo.
Não são, portanto, enfoques excludentes, mas que se completam. Outra característica do
enfoque em relação à função diz respeito à preocupação com o escritor e o leitor. Em
literatura, quando falamos em função, pensamos no todo, em função de determinada obra, em
função do autor, em função do leitor.
Há, no estudo da obra literária, um momento analítico (científico) que despreza o
autor, o valor, enfatizando a obra como objeto de conhecimento; e um momento crítico que
indaga a realidade da obra e sua função como síntese e projeção do homem. Somente a
observação desses dois momentos permite a visão do todo e os questionamentos necessários
para que a leitura se processe.
É importante lembrar que as opiniões aqui tratadas são de 1972. Portanto, há cerca de
35 anos, no momento em que teorias como Sociologia da leitura e Estética da Recepção eram
pouco conhecidas no Brasil, Candido externava preocupação com a atuação do leitor na obra.
Ao conceber a obra como capaz de conter uma força humanizadora em relação ao
leitor, Candido (1972) destaca três funções da literatura e discute cada uma delas: função
psicológica, baseada na necessidade que o homem tem de ficção e fantasia; função formativa,
voltada para a construção do conhecimento; e função humanizadora, voltada para a relação
estabelecida entre os homens.
Quanto à primeira, Candido (1972) aponta que o ser humano sempre buscou a
satisfação de sua necessidade de fantasia em diversas formas ficcionais. Eis o porquê do
vínculo entre fantasia e realidade ser ponto crucial do potencial da literatura quando se trata
de cumprir a função psicológica.
Ao discorrer sobre a função formativa, Candido (1972) aponta que, do ponto de vista
psicológico, isso é complexo. Para ele, a literatura forma, mas não como veículo do
verdadeiro, do bom, do belo. Ela educa, como a vida, sem prever os resultados, sem
preestabelecer um modelo. Temendo a perversão ou a subversão, moralistas e educadores, às
vezes, expulsam-na ou fazem adaptações a um modelo que vai ao encontro das concepções
sociais desejadas.
Ressaltamos, neste ponto, que as idéias de Candido parecem muito mais claras nos
dias de hoje em que a obra literária tem “competido” com tantos outros meios de fabulação
desenvolvidos com a modernidade. Contudo, a riqueza do texto literário e que o destaca das
demais formas de fabulação é exatamente a sua capacidade de promover diferentes sensações
em diferentes momentos da vida. Assim, a literatura, ao cumprir a função de satisfazer à
necessidade de fantasia, contribui para a formação da personalidade, o que, na verdade, é uma
forma de educar, não com o sentido próprio da palavra, mas construindo, com transformações
incapazes de serem previstas pela pedagogia.
Ao se ater ao estudo da função humanizadora, Candido (1972, p. 806) questiona se
“[...] teria a literatura uma função de conhecimento do mundo e do ser.” Aponta que muitas
correntes acreditam ser a literatura forma de conhecimento, forma de expressão e formação de
consciência de objetos autônomos. O difícil é apontar qual a predominante. Candido prefere
não optar e se atém à relação entre a obra literária e a realidade concreta, exemplificando com
o tratamento literário dado ao regionalismo brasileiro. Neste caso, Candido mostra que a obra
literária foi instrumento humanizador e alienador, conforme autor e aspecto considerado.
Coelho Neto (1864-1934) e Simão Lopes (1865-1916), exemplos citados por Candido,
escreveram na mesma fase, ocupando-se de tipos humanos, paisagens e costumes, mas pontos
simples assinalam algumas diferenças entre eles. A tendência do primeiro foi basear-se em
uma distância muito grande entre o escritor e seu personagem, confinando o homem rústico
ao ridículo, objeto exótico aos olhos do homem da cidade, garantindo a integridade do
narrador, que é superior na linguagem, nas atitudes. Trata-se de uma falsa admissão do
homem rural, ao inverso do privilégio aos valores éticos e estéticos.
Simão Lopes, por sua vez, conseguiu um equilíbrio narrativo que concebeu às suas
obras um caráter humanizador, princípio primeiro do Regionalismo. Ao criar um narrador
rústico, com linguagem próxima à da personagem, impediu que o sertanejo fosse retratado
como um ser estranho, contemplado pelo homem culto. Evitando a dualidade entre quem
narra e o objeto da narrativa, permitiu que o leitor se nivelasse à personagem e, assim,
participasse da narrativa e incorporasse aquela visão de realidade à sua existência humana.
Em O direito à literatura (1995, p. 236)
9
, Antonio Candido, retomando o caráter
humanizador da literatura, disserta sobre os direitos humanos e literatura e inicia seu texto
refletindo mais amplamente sobre os direitos humanos. Chama a atenção para o fato de que o
conhecimento técnico deveria resolver grande parte dos problemas da humanidade, mas,
muitas vezes, “[...] os mesmos meios que permitem o progresso podem provocar a degradação
da maioria.”
Durante muito tempo, acreditamos que o saber e a técnica levariam o homem à
felicidade, mas isso não aconteceu porque pensamos muito pouco na distribuição dos bens,
embora a técnica permita que pensemos muito. Candido demonstra indignação quanto à
forma de distribuição dos bens em toda a humanidade e ressalta que considerar os direitos
humanos seria desejar ao outro tudo o que consideramos importante para nós, mas ainda falta
muito para essa consciência.
Segundo Candido (1995), a sociedade afirma que todos têm direito à comida, casa,
saúde, mas questiona o direito de todos a ler Dostoiesvski ou a ouvir Beethoven e faz isso
porque não estendem todos os direitos a todos os seres humanos. Para falar sobre isso,
Candido lembra termos utilizados por Pedro Louis Joseph Lebret
10
: bens incompressíveis
(que não se pode negar a ninguém, como o alimento, a casa, a roupa) e bens compressíveis
(aqueles dispensáveis, como cosméticos, enfeites). Ocorre que, embora pareça fácil a
distinção entre os dois termos, a fronteira entre eles nem sempre é tão simples: depende do
9
Publicação original: CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e Literatura, In. Direitos Humanos e..., Org.
Comissão Justiça e Paz, São Paulo: Brasiliense, 1989.
10
Pedro Louis Joseph Lebret, em 1941, fundou o movimento "Economia e Humanismo" a partir do qual, em
companhia de François Perroux, construiu e ilustrou a problemática e a prática da Economia Humana,
preocupada, fundamentalmente, em gerar uma nova aproximação dos estudiosos sociais à realidade, abrindo-se a
uma visão global da dinâmica das sociedades e das culturas.” Fonte: http://www.corecon-rj.org.br.
modo como concebemos os bens incompressíveis, os quais variam de uma cultura para outra
e de uma época para outra. A própria educação influi na determinação desses valores.
Para Candido, é preciso, do ponto de vista individual, ter consciência da necessidade
do outro; do ponto de vista social, haver leis que garantam isso. Salienta, ainda, que são, para
ele, bens incompressíveis a alimentação, a saúde, a instrução, itens capazes de garantir uma
sobrevivência física decente, mas também são bens incompressíveis aqueles que garantem a
integridade espiritual, como o direito à crença, à opinião, ao lazer e à arte e à literatura. O
pesquisador acrescenta que a arte e a literatura só serão bens incompressíveis se, dentro da
sociedade, forem considerados bens cuja não satisfação representar qualquer forma de
desorganização social.
Para resolver tal impasse, inicia a discussão com o conceito de literatura:
Todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos
os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que
chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e
difíceis da produção escrita das grandes civilizações. (CANDIDO,
1995, p. 242).
Assim, a literatura se põe, para Candido (1995, p. 42), como a manifestação universal
de todos os homens e tempos. E acrescenta: “Não há povo e não há homem que possa viver
sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação.”
Conclui que não é possível haver equilíbrio psíquico sem o contato com a fantasia e, sem o
equilíbrio individual, a sociedade se desequilibra. A literatura, fonte inesgotável de satisfação
dessa necessidade humana, é um bem universal, indispensável e, portanto, um direito de
todos.
Cada sociedade cria suas manifestações ficcionais, enfatizando os valores que prega
ou que considera prejudiciais e estes estão presentes na poesia, na ficção e na ação dramática.
A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate,
fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.
[...] ela não corrompe nem edifica, portanto; mas trazendo livremente
em si o que chamamos o bem e o que chamamos mal, humaniza em
sentido profundo, porque faz viver. (CANDIDO, 1995, p. 243 – 244)
Candido (1995, p. 234-235) distingue três aspectos da literatura: estrutura e
significado, forma de expressão e forma de conhecimento. O efeito da produção literária no
indivíduo e posteriormente na sociedade é a atuação desses três aspectos que, juntos,
contribuem para a organização da mente, dos sentimentos e, logo, torna o homem capaz de
organizar a visão de mundo, embora seja o primeiro aspecto o “crucial, porque é o que decide
se a comunicação é literária ou não”.
Discutindo o primeiro aspecto, acrescenta que toda obra literária, seja um romance,
um provérbio, uma quadrinha, pressupõe uma ordem especial de distribuição das palavras,
dos acontecimentos, “sugerindo um modelo de superação do caos. (CANDIDO, 1995, p.
245), o que representa, para ele, o primeiro nível humanizador. E humanizar para Candido se
caracteriza pelo
[...] processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição das emoções, a
capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a
percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do
humor. (CANDIDO, 1995, p. 249).
Neste contexto: “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em
que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”.
(Idem).
Para explicar a consideração sobre estrutura e significado, exemplifica com o caso de
poemas aparentemente herméticos, cujo valor humanizador existe exatamente na ordem
obtida com o trabalho do artista, cuja mão transforma o material bruto da literatura, a
realidade, em algo lapidado, ordenado, transformado. O mesmo acontece com o caos interior,
que se ordena e é superado.
Quanto à segunda forma de humanização, Candido (1995) aponta que a literatura
humaniza por meio das emoções e da visão de mundo, o que é um processo inconsciente, não-
planejado pelo autor e construído pelo receptor. A união dos elementos que constituem a
literatura, ou seja, a forma e o conteúdo, atuam no subconsciente e no inconsciente,
promovendo o enriquecimento da percepção do mundo e redundando em conhecimento.
Candido (1995), voltando-se para a literatura enquanto capacidade de descrever e
promover uma tomada de consciência diante das diferenças sociais que atingem a sociedade,
aponta que a qualidade de uma obra literária está na capacidade de criar formas pertinentes,
capazes de transformar a realidade, mas sem deformá-la.
No século XIX, primeiro com o romance humanitário e depois com o romance social,
começa a inclusão do pobre como personagem de foco. A literatura passa a retratar a miséria
causada pela concentração urbana e as mudanças sociais que se instalavam, descrevendo a
classe menos favorecida de forma denunciadora e, ao mesmo tempo, com o tratamento
estético merecido. Esse foi um passo muito importante no que se refere aos direitos humanos
no tocante à literatura.
Assim, a organização da sociedade é responsável pela fruição do bem humanizador
que é a literatura. O homem do povo é, em nossa sociedade, praticamente privado de
aproveitar a literatura de Machado de Assis ou de Mário de Andrade, por exemplo. Resta-lhe
somente a literatura de massa, o folclore, a sabedoria popular e espontânea, as quais, na
opinião de Candido, são muito importantes, mas não suficientes para satisfazer a todas as
necessidades do homem.
Sobre essa restrição delegada aos pobres, Candido faz duas considerações. Uma diz
respeito às formas de difusão da literatura erudita e a outra à comunicação entre os meios de
produção literária:
Para que a literatura chamada erudita deixe de ser privilégio de
pequenos grupos, é preciso que a organização da sociedade seja feita
de maneira a garantir uma distribuição eqüitativa dos bens. Em
princípio, só numa sociedade igualitária os produtos literários poderão
circular sem barreiras. (CANDIDO, 1995, p. 257).
E conclui: “Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos e a fruição
da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.”
(CANDIDO, 1995, p. 263).
Podemos dizer que, no pensamento de Candido, é impossível conceituar literatura sem
pensá-la sob dois aspectos: a forma e o conteúdo. A forma está ligada à organização das
palavras que promovem significados diversos. O conteúdo é o resultado da organização dessa
forma pelo leitor, por meio do qual satisfaz sua necessidade de fantasia, desenvolve
conhecimentos e sensibilidade para atuar na sociedade. A literatura é fonte inesgotável de
fantasia e o homem necessita da fabulação para poder viver. Com ela, percebe a realidade de
forma transformada pelos valores estéticos, desenvolvendo habilidades para atuar crítica e
humanamente no meio social. Se desta atuação depende um controle psíquico que, conforme
Candido, obtemos através da literatura que ajuda a controlar o caos interior, a organização
social está ligada, mesmo que indiretamente, ao acesso à literatura. Isso a torna um bem
incompressível, tomando emprestado um termo do já citado Lebret, e, portanto, um direito do
homem e saciá-lo é obrigação das autoridades.
Muita mudança tem se registrado, a exemplificar com a quantidade de obras que
abordam questões ligadas à leitura, literatura e disseminação das obras. Contudo, ainda há
muito que ser feito e, a nosso ver, a prioridade está em respeitar e valorizar as manifestações
literárias como direito que se estende a todos os indivíduos, pois, assim, será possível a
atuação humanizada em todas as esferas sociais.
Terry Eagleton (1997), teórico marxista, reflete sobre conceitos de literatura, aponta e
discute alguns itens contidos na definição do termo. O primeiro aspecto diz respeito à
literatura enquanto ficção (imaginação) em oposição ao fato e acrescenta que essa afirmação
não dá conta de uma definição, uma vez que a filosofia e a ciência também são imaginativas.
Outro aspecto é quanto ao fato de a literatura fazer uso da linguagem de forma
transformada, intensificada, diferentemente da fala do cotidiano. Neste item, Eagleton lembra
que esse foi um conceito de literatura estabelecido pelos formalistas russos durante a década
de 1920, que pensavam essa diferença da linguagem enquanto um “desvio da norma”. Para
Eagleton, a linguagem literária é um uso especial que contrasta com a linguagem comum e
não necessariamente se distancia. Além disso, não existe somente uma norma.
A capacidade de provocar a catarse (estranhamento) com o uso de artifícios de
linguagem é outro item discutido pelo pesquisador, acrescentando que a estranheza não é uma
característica específica do texto literário. Muitos textos podem causar estranheza em igual
medida; dependerá do uso, do lugar, dos interesses com que se utilizam determinados textos.
Definir literatura pela riqueza de ambigüidades que o texto literário produz também
falha, porque há textos literários riquíssimos em informações ou que são verdadeiros tratados
históricos. Quanto a ser a literatura uma escrita valorativa, esta se torna uma definição frágil
porque dependeria de juízos de valor e estes se alteram na sociedade visivelmente, conforme a
época. A literatura enquanto sinônimo de escrita bonita também é questionada por Eagleton.
O autor considera que, se essa verdade não fosse refutável, não haveria literatura de má
qualidade, pois o senso de bonito e feio é variável de indivíduo para indivíduo, uma vez que o
juízo de valor também é transitório.
Eagleton (1997) considera, portanto, as definições existentes, mas argumenta a
fragilidade de cada uma delas, se considerarmos contextos isolados ou desconsiderarmos o
leitor, seus momentos, suas peculiaridades. Prefere definir literatura de forma mais próxima
de uma realidade que se transforma constantemente. Assim, não há uma “essência da
literatura”. “A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável,
distinguida por certas propriedades comuns, não existe.” (EAGLETON, 1997, p. 15).
Para Eagleton, quem transforma algo em literatura é o leitor, dependendo do uso que
quer, naquele momento, fazer do texto. Nesse sentido, uma obra pode ser considerada literária
em um século e deixar de ser em outro, da mesma forma que, conforme exemplifica o autor, o
Homero que conhecemos hoje não é o mesmo que a Idade Média conheceu. Valores são
construídos pela sociedade que, na mesma medida, reconstroem, nas releituras, as obras,
atribuindo-lhes novos valores, conforme os que construíram em suas vivências.
Um paralelo entre Antonio Candido e Terry Eagleton evidencia, na visão do primeiro,
a obra literária como um conjunto formado pelo autor, leitor e obra, cuja força humanizadora
resulta da organização proposta pela estrutura. Para Candido, a literatura não é um conjunto
de obras, mas um conjunto de valores, valores estéticos que atuam no homem, humanizando-
o. Eagleton aproxima-se do pensamento de Candido à medida que, ao discutir concepções de
literatura, valoriza o leitor como sujeito capaz de criar perspectivas literárias nos diversos
tipos de textos, tornando-os literários ou não.
Antoine Compagnon (2001, p. 30) também discute o conceito do termo literatura e,
como Eagleton, ressalta a dificuldade em estabelecer tal concepção, mas propõe a necessidade
de relação do texto literário com a intenção, a realidade, a recepção, a língua, a história e o
valor. Lembra que o termo literatura é muito novo (séc. XIX) e em muitas línguas trata-se de
um termo intraduzível: “Literatura é o que se chama aqui e agora de literatura.”
Compagnon (2001) constata que, no conceito de literatura, há sempre uma contradição
entre dois pontos de igual importância: o ponto de vista histórico, que é o documental, e o
lingüístico, que diz respeito à arte da linguagem. Na tentativa de explicar o termo literatura,
descreve-a do ponto de vista da extensão, da função, da forma do conteúdo, da forma da
expressão, da literariedade, privilegiando, dessa forma, o ponto de vista histórico e o
lingüístico.
O autor aponta que a literariedade não pode distinguir um uso literário do não literário,
pois não existem elementos lingüísticos puramente literários. O que caracteriza um texto é a
visão da sociedade que o cria e utiliza e ela decide se um texto é ou não literatura.
A exemplo de Eagleton, Compagnon não define claramente literatura, mas faz outras
considerações sobre o termo, apresentando um conceito amplo e um restrito: no sentido
amplo, literatura seria tudo aquilo que é impresso (ou manuscrito); em sentido restrito, seria
variável segundo a época e as culturas. A primeira concepção negaria a literatura oral e a
segunda deixaria o campo de definições ainda mais amplo. Com as palavras de Compagnon,
literatura é
[...] aquilo que as autoridades (os professores, os diretores) incluem na
literatura. Seus limites, às vezes, se alteram, lentamente,
moderadamente, mas é possível passar de sua extensão à sua
compreensão, do cânone à essência. (COMPAGNON, 2001, p. 46).
A respeito dos conceitos, há relações estreitas entre o pensamento de Candido,
Eagleton e Compagnon. Para Candido, a literatura é um tratamento especial de forma e
conteúdo, por meio do qual ocorre a transformação da realidade em fantasia necessária para a
organização social e coletiva. Para Eagleton e Compagnon, o conceito de literatura está ligado
à forma de abordagem do texto literário e, portanto, seu conceito torna-se uma tarefa muito
complexa, preferindo os pesquisadores que o leitor, em contato com o texto, atribua-lhe os
valores estéticos necessários para o valor literário.
É necessário o acesso ao texto literário para que o contato estabelecido entre autor,
leitor e obra promova a satisfação de necessidades psicológicas do indivíduo, cumprindo a
função humanizadora, abordada por Candido. Mas a socialização do livro ainda é objeto de
muitas pesquisas e o direito à literatura ainda não está garantido, mesmo porque, para isso,
primeiro, é preciso consciência de que se trata de um bem incompressível e direito de todos.
A Sociologia da Leitura, entre outros enfoques, discute essas questões.
3.3 Sociologia da Leitura
Em 1930, nos Estados Unidos, os estudos sistematizados sobre leitura tiveram início,
considerando a leitura um conjunto de práticas sociais e não um termo passivo de
significação. Na década de cinqüenta, a França engatinhou nas primeiras pesquisas em
“Sociologia da Leitura.” Os objetivos incluíram desde melhorar as condições de acesso aos
livros até verificar o como e o porquê se lia. Daí em diante, as pesquisas cresceram e os
objetivos se alargaram, no sentido de melhorar a prática e diminuir a distância entre a classe
baixa e a cultura. (ESCARPIT, 1958).
Essa distância ainda está longe de diminuir, mesmo porque a política de distribuição
gratuita ou as possibilidades de aquisição do livro ainda é precária e ele não chega às mãos de
todos, o que dificulta a familiarização do indivíduo com ele, impedindo a fruição da leitura.
Escarpit (1974, p. 22) escreveu: “O livro é uma máquina de difundir a palavra”
11
muito importante e eficaz no tocante à transmissão dos acontecimentos entre os homens, pois
possibilita seu registro e sua permanência no tempo e no espaço. Contudo, o acesso ao livro e
aos resultados dos questionamentos acerca dos objetivos e modos de leitura tem constituído
desafios ainda a serem vencidos pela Sociologia da Leitura.
Ao longo da história, muitas mudanças positivas ocorreram, mas, paralelamente,
multiplicaram-se as dificuldades. Com o surgimento da imprensa, no Brasil somente em 1808,
com a chegada da família real, e, evidentemente, maior possibilidade de socialização do texto
escrito, difundiu-se mais a leitura. Mas, no início, o livro estava muito preso à corte, lugar
onde se concentravam os poucos que detinham o domínio da linguagem escrita.
O surgimento da burguesia, em fins do século XIX, resultou no aparecimento de um
novo público e, entre os escritores, na oportunidade de estabelecer critérios e padrões de
gostos. Muitos escritores, que viviam de presentes, começaram a ganhar dinheiro com a
literatura, o mesmo acontecendo com os editores, que se tornaram sócios dos escritores.
Enquanto isso, o leitor se tornava parceiro inconsciente do processo de legitimação da
indústria cultural, tentando, em vão, conquistar o direito de acesso ao livro, objeto consumido
por quem podia. E seu acesso se tornava cada vez mais restrito. (PERONI, 2003).
A eterna busca da burguesia pelo poder, bem como a necessidade de dar conta de uma
expansão industrial emergente, transformou a alfabetização em massa em uma prioridade
constante. Foi tirada de cena a teoria da leitura grega, com base no cânone, sacralizando a
literatura e concebendo-a como um tipo de texto ligado aos detentores do saber poético,
priorizando, para as classes menos favorecidas, textos de maior acessibilidade, com
finalidades que a escola, a mídia, o poder consideram mais importantes. Essa atitude veio
cercear o direito à leitura de textos aprimorados, de valor estético, capazes de promover
reflexões individuais e sobre o coletivo.
Outro aspecto importante a ser considerado em Sociologia da Leitura diz respeito à
fatia financeira que o livro representa na formação do mundo capitalista. Wellershoff (1970)
discute a relação existente entre a produção literária, o mercado, a crítica e os escritores,
11
Tradução do autor da pesquisa. Texto original: “El libro es una máquina de difundir la palabra, [...]
considerando ser a obra artística uma mercadoria. Esse caráter de mercadoria acaba por fazer
um corte entre o social e o político-financeiro e, no mundo capitalista, o enfoque dado às
cifras prevalece sobre o social. Ao conceber o livro como uma mercadoria, o acesso a ele fica
restrito aos que detêm o poder de possuí-lo, tornando-o um bem compressível. Enquanto isso,
o prazer da leitura, os resultados positivos que ela proporciona na vida do indivíduo, os bens
incompressíveis para Cândido, tornam-se cada vez mais inatingíveis
12
.
Wellershoff (1970) preceitua que a indústria cultural financia obras que satisfazem a
um público demasiadamente envolvido com as imposições do mundo capitalista e que aprecia
obras que legitimam sua posição na sociedade. Dessa forma, constrói leitores, escritores e
críticos condizentes com essa forma de consumo, mas desmotiva a fruição da leitura, pois
nem sempre a imposição de obras proporciona o prazer de ler.
Em Sociologia da Leitura, o processo de fruição da leitura leva em conta o indivíduo e
sua relação com o meio, o qual inclui a família, a sociedade, a escola, enfim, os mediadores,
entre eles: o indivíduo e o texto. Às voltas com as leituras sobre o papel dos mediadores de
leitura, deparamo-nos com o trabalho de Petit (1999) que, através de depoimentos coletados
durante pesquisas, pôde observar a importância desses mediadores no processo de construção
e manutenção do gosto pela leitura. O autor observa que esse gosto pode ser algo dado, nato,
mas que o fato de se ter estado desde muito pequeno em contato com livros constitui fator
importante para a construção desse gosto. Não se pode amar aquilo com o qual não se tem
contato, não se envolve.
Petit (1999) enumera várias possibilidades de mediadores: o bibliotecário, o
documentarista, o livreiro, o professor, um militante sindical, um amigo. Mas, para ele, o
professor e o bibliotecário assumem papel preponderante por estarem clara e realmente de
posse do objeto: o livro. Além de, teoricamente, estarem aptos para promover a leitura e
viabilizar o processo de construção dessa prática.
Os depoimentos de jovens, participantes das pesquisas de Petit e descritos em seu
trabalho, apontam para uma grande importância do trabalho dos bibliotecários na indicação de
livros, na preocupação que alguns demonstram com o envolvimento do jovem com o livro e
12
A origem e significado dos termos compressíveis e incompressíveis estão discutidos no item anterior.
na possibilidade de sua participação ativa na biblioteca, como na arrumação dos livros nas
estantes, por exemplo. A biblioteca, além de lugar de troca de conhecimentos, é, segundo os
entrevistados de Petit, lugar vivo, lugar de desenvolvimento natural e gratuito do saber, uma
vez que os livros, dispostos em prateleiras, disponíveis, amigos, podem levar o jovem a um
mundo de grandes descobertas. O autor salienta que: “A leitura de um livro proibido, atrás de
uma porta fechada, em uma noite de neve, é um dos maiores prazeres da vida.” (PETIT, 1999,
p. 153).
A leitura é uma atividade individual, cujo prazer também se constrói de forma
individual, mas isso não impede, ou melhor, muitas vezes, exige a participação de um
mediador como contribuição para o desenvolvimento da capacidade de usufruir desse prazer.
Ainda com Petit, vimos que a fruição da leitura é um processo construído e que a
escola pode ser a experiência mais negativa do jovem. É muito importante a mediação do
mestre nesse processo e a imposição do livro por ele torna-se o ponto nevrálgico desse erro.
Por outro lado, a biblioteca, até mesmo pela característica própria do lugar, constitui
espaço de fruição natural do gosto pela leitura, mesmo porque a freqüência a este lugar é
quase sempre espontânea. Os bibliotecários, por sua vez, dado, até mesmo ao lugar que
ocupam nesse universo tão rico, podem fazer a diferença com atitudes simples, como ser
amigo do leitor, perguntando sobre suas leituras, permitindo que o livro desça do altar, seja
dessacralizado, torne-se algo tocável, permissível e não um objeto intocável, que já está
acabado e você só precisa adorá-lo.
Os resultados das pesquisas de Petit mostram que a leitura é liberdade, aprendizado,
busca de si mesmo, crescimento e a biblioteca é o lugar perfeito para saciar essas
necessidades, constituindo-se um importante mediador entre o leitor e a leitura.
Zilberman (2001) denuncia o resultado da dissociação entre o literário e o não
literário como resultado pouco promissor no processo de formação do leitor:
A dissociação faz com que a literatura permaneça inatingível às
camadas populares que tiveram acesso à educação, reproduzindo-se a
diferença por outro caminho, respondendo os letrados não mais por
aqueles que sabem ler, e sim pelos que lidam de modo familiar com as
letras, os especialistas [...] Até um certo período da história do
Ocidente, ele era formado para a literatura; hoje, ele é alfabetizado e
preparado para entender textos escritos, mas nem sempre a literatura
se apresenta no horizonte, porque ainda é sacralizada pelas instituições
que a difundem. (ZILBERMAN, 2001, p. 71).
Até este ponto, apresentamos alguns aspectos que envolvem a leitura no tocante ao
direito de acesso e ao caráter elitista que o mundo capitalista a delegou, no momento em que o
livro se tornou uma mercadoria e, logo, restrito ao poder aquisitivo.
A Sociologia da Leitura ocupa-se do campo da leitura e das peculiaridades de seu
processo. Considerando a leitura um processo social, preocupa-se, conforme vimos acima,
com os mediadores na formação de leitores, visto ser a leitura não um processo mecânico que
se aprende, mas uma atitude desenvolvida através do contato com o objeto de leitura, o livro,
associada aos estímulos e possibilidades de comunicação com o código.
Buscando compreender os envolvimentos da Sociologia da Leitura e os caminhos que
esta percorre, também deparamos com a obra Histórias de lectura. Trajectorias de vida e de
lectura (2003), de Michel Peroni, o qual esclarece que o campo da Sociologia da Leitura
ainda não está totalmente constituído, levando em conta o ranço que traz de estudar o
problema da leitura como se ela fosse uma técnica a ser ensinada. E não é. O autor acredita
que, para analisar a qualidade de nossos leitores, é preciso levar em conta a distribuição social
dos meios de cultura, em especial, do livro, pois, segundo ele, não há processo sólido de
formação de leitor sem a possibilidade de acesso ao livro e sem as formas de mediação entre
este e o indivíduo.
O campo da leitura, sua qualidade e dificuldade do qual a Sociologia da Leitura se
ocupa, envolve problemas ligados à indústria cultural que estão intimamente ligados ao livro,
pois diz respeito às formas de disponibilidade do material impresso. Fanny Abramovich
(2005, p. 81)
13
antecipa a idéia de Peroni (2003) e considera o acesso às histórias, o contato
com o livro, fator único para a formação do leitor: “Eu nunca ouvi falar de criança que tivesse
ouvido história, que tivesse uma estante de livros em casa e não tivesse se tornado uma leitora
na idade adulta.”
A Sociologia da Leitura, então, ocupa-se de todas as questões de leitura e leitor na
sociedade, focando todos os grupos e classes. A mediação do professor, da escola, da família,
da sociedade como um todo constitui o foco desta disciplina, cujo desenvolvimento tem se
intensificado nas últimas décadas. O importante nesse contexto, em acordo com a Sociologia
13
A primeira edição é de 1994.
da leitura, é não perder de vista que o objeto da leitura é o livro e, portanto, o acesso irrestrito
ao livro constitui o primeiro e principal subsídio para minorar a dificuldade que nossos jovens
têm de se habituar a e ler e gostar de fazê-lo.
3.4 Estéticas da Recepção
Segundo Eagleton (2001), em 1918, Edmund Husserl, um filósofo alemão, criou um
método denominado Fenomenologia, que trata da essência das coisas através da percepção.
Com relação às obras literárias, essa teoria visa a uma leitura do texto em que todos os seus
aspectos semânticos e de estilo são percebidos como parte do todo e cuja essência unificadora
é a mente do autor. Para a Fenomenologia, entender o texto não depende de conhecer a vida
de seu autor, porém interessa o modo como o autor manifesta sua percepção das coisas. Para
que o leitor seja capaz de fazer isso, ele deve se manter de forma imparcial e preocupar-se
apenas com o que é apresentado na obra.
Edmund Husserl (1859-1938) é considerado o pai da Fenomenologia. De forma
sucinta, podemos afirmar que essa teoria repensava o problema da separação entre sujeito e
objeto, consciência e mundo, enfocando a maneira pela qual os objetos e a realidade são
percebidos pela consciência. Assim, esses estudos procuram questionar as condições de
construção do conhecimento.
Se a Fenomenologia assegurava, de um lado, um mundo cognoscível,
por outro, estabelecia a centralidade do sujeito humano. Na verdade,
ela prometia ser nada menos do que uma ciência da própria
subjetividade. O mundo é aquilo que postulo, ou que “pretendo”
postular: deve ser apreendido em relação a mim, como uma correlação
de minha consciência. (EAGLETON, 2001, p. 63).
Aplicando a Fenomenologia à literatura, um texto seria um puro fenômeno que
dependeria sempre de uma consciência que o percebesse e o experimentasse. Os livros
passaram a ser vistos como um potencial de efeitos que só poderiam ser atualizados pelo
leitor no ato da leitura. Dessa forma, a Fenomenologia foi o ensinamento que abriu as portas
ao leitor e, posteriormente, às teorias da recepção.
A Teoria da Recepção surgiu como resposta ao Formalismo, ao New Criticism e a
algumas abordagens marxistas, contrapondo-se a estudos que enfatizavam apenas os aspectos
estruturais do texto e que procuravam observar a interação dos traços verbais sem se
preocupar em atribuir historicidade a esses fatos.
Hans Robert Jauss foi um teórico alemão reconhecido no âmbito da teoria literária por
ter se dedicado ao estudo da historicidade da literatura. Jauss apresentou, em 1967, sua
conferência: A historia da literatura como provocação à teoria literária (1994), na
Universidade de Constança, na Alemanha. Suas palavras foram consideradas uma
manifestação da estética da recepção e, por isso, uma verdadeira afronta àqueles que
privilegiavam métodos de ensino tradicionais da história da literatura. Então, Jauss sugeriu
um procedimento que associou à teoria a história da literatura.
De acordo com Jauss, a obra literária é condicionada, tanto do ponto de vista artístico
como histórico, pela relação entre literatura e leitor. Assim, essa relação dialógica tem
implicações estéticas e históricas. As implicações estéticas condicionam um julgamento, uma
avaliação do valor estético em comparação com outras obras lidas anteriormente; já as
históricas tratam da recepção dos leitores que pode ter continuidade de uma geração à outra,
tornando evidente sua qualidade estética. Para Jauss, uma boa leitura proporciona ao leitor
liberdade “das opressões dos dilemas de sua práxis de vida, na medida em que o obriga a uma
nova percepção das coisas.” (JAUSS, 1994, p. 52).
Segundo Zilberman, em Estética da Recepção e história da literatura (1989), Jauss
traz para a literatura um novo conceito de história literária. Para ele, estudar literatura não é
apenas estudar vida e obra de autores, mas é colocar a obra na história pela recepção do leitor.
O processo de análise literária de Jauss se liga ao processo hermenêutico de Gadamer (1997),
considerando que a hermenêutica literária compreende três etapas: compreensão,
interpretação e aplicação. A percepção é o ponto de partida da leitura e resulta na
compreensão; a interpretação acontece quando o leitor lê a obra, desestruturando-a; e a
aplicação é a recuperação dessa obra ao longo do tempo.
Baseado em contribuições e críticas, Jauss sedimentou sua teoria em sete postulados.
O primeiro postulado fundamenta-se na historicidade da literatura e o teórico chega à
conclusão de que esta não se estabelece numa seqüência de fatos literários, mas na interação
entre leitor e obra. O leitor se torna um co-produtor da obra já escrita pelo autor, no momento
em que o contexto histórico do leitor o torna um observador singular da obra em questão.
O segundo postulado sugere que cada leitor, ao preencher de forma singular a leitura
de um mesmo texto, pode caracterizar uma interpretação extremamente intimista da obra, mas
Jauss renega toda crítica a sua teoria em se tratando de uma possível abertura ao subjetivismo
e psiquismo puros do leitor, no momento da recepção. Esclarece que uma obra apresenta
“avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu
público para recebê-la de uma maneira bem definida” (JAUSS, 1994, p.28). Dialogando com
Jauss, Zilberman (1989, p. 34) afirma que cada leitor reage individualmente a um texto, “mas
a recepção é um fato social, uma medida comum localizada entre essas reações particulares.”
Dessa forma, o fator histórico é imprescindível para Jauss, pois ele vê o homem imerso em
sua historicidade, sujeito a apresentar a mesma leitura de seus contemporâneos.
O terceiro postulado aborda o valor estético de uma obra. Segundo o teórico, este
surge a partir do pressuposto de que a obra provoca uma percepção estética no leitor,
principalmente, se essa percepção fugir do usual, romper com suas verdades. O caráter
artístico da obra é atribuído à distância entre ela e o horizonte de expectativa do leitor.
Portanto, quanto menos a obra se aproximar das expectativas do leitor em relação a ela, maior
será seu valor artístico. Nesse ponto, a Estética da Recepção se aproxima dos formalistas e
estruturalistas, por abordar o “estranhamento” que a leitura de uma obra deve proporcionar ao
leitor.
No quarto postulado, Jauss discute a relação entre o texto e a época em que foi escrito
e a história de sua recepção. O teórico propõe a reconstrução do horizonte de expectativa sob
o qual uma obra foi concebida e recebida no passado, para que ela não fique sujeita a
nenhuma forma de compreensão clássica ou moderna. Para Jauss (1994), só há literatura
quando um leitor, na recepção de uma obra, leva em conta o seu horizonte de expectativa, ou
seja, quando considera seus conhecimentos, comportamentos e idéias pré-concebidas sobre
essa obra. Esse horizonte de expectativa pode ser influenciado por fatores sociais, culturais,
religiosos, ideológicos e de ordem afetiva.
Segundo Zilberman (1989, p. 37), os três últimos postulados podem ser considerados
como programas de ação. No quinto postulado, Jauss enfatiza a recepção de uma obra sob o
aspecto diacrônico, “relativo à recepção das obras literárias ao longo do tempo”. Partindo
desse pressuposto, uma obra deve ser vista não somente no momento histórico de sua leitura,
mas é necessária uma revisão de leituras anteriores em relação à atual. Assim, esse postulado
implica a inserção da obra em uma série literária, ou seja, inclui a obra em uma história de
recepções.
Jauss explica que a sexta premissa revela um amplo sistema de relações na literatura
de um determinado momento histórico, pois a literatura que surge para o público se põe sobre
o que era comum em seu gênero, ou seja, há uma articulação entre as obras constituintes de
um determinado momento histórico. O leitor percebe as obras da atualidade e as relaciona a
outras, fazendo da diversidade uma “unidade de um horizonte comum e significativo de
expectativas”. (JAUSS, 1994, p. 48).
A última tese relaciona a literatura à sociedade. Este ponto se refere à história
particular dos leitores e à função social que é dada à literatura. A história literária só cumpre
seu papel quando a obra atinge a função social, isto é, quando ela penetra no horizonte de
expectativa do leitor, alterando seu comportamento social, libertando-o das opressões do dia-
a-dia, conduzindo-o a uma diferente visão das coisas.
A função social somente se manifesta na plenitude de suas
possibilidades quando a experiência literária do leitor adentra o
horizonte de expectativa de sua vida prática, pré formando seu
entendimento do mundo, e, assim, retroagindo sobre seu
comportamento social. (JAUSS, 1994, p. 50).
De acordo com Jauss (1994, p. 52), a função social se revela quando a experiência
literária é inserida no horizonte de expectativas do leitor, quando a literatura cooperar para
estabelecer a relação entre outras formas de comportamento social. Assim, o momento da
“frustração de expectativas” é o mais importante, tanto para as bases de uma nova ciência
quanto para a ampliação de experiências de vida.
Essa condição de ruptura dada pela arte por meio das possibilidades de inovação de
horizontes e a verificação da experiência estética entre obra e leitor é de suma importância
para que se estabeleça o exercício da função comunicativa da produção artística. Mas o que
viria a ser a experiência estética?
A experiência estética não se inicia pela compreensão e interpretação
do significado de uma obra; menos ainda, pela reconstrução da
intenção de seu autor. A experiência primária de uma obra de arte
realiza-se na sintonia com seu efeito estético, isto é, na compreensão
fruidora e na fruição compreensiva. (JAUSS, 2002, p. 69).
14
Jauss (1994) chama a atenção para o fato de que na compreensão já está o início da
interpretação e a interpretação é, portanto, a forma explícita da compreensão. Como a
compreensão deflagra o processo inteiro, a explicação deste começa aí, fundamentada na
lógica da pergunta e da resposta. O pesquisador acrescenta que a compreensão equivale a
14
A primeira edição é de 1979.
compreender algo como resposta, afirmação na qual está incutida uma proposição
metodológica. Se o texto corresponde à pergunta, compreendê-lo significa responder às
perguntas propostas.
Zilberman (1989) mostra que, em sua obra, Jauss (1994) apresenta um método de
análise literária segundo sua estética. Este processo também é dividido em três partes,
baseado na “herança” que teve da Hermenêutica de Gadamer. A primeira parte corresponde
ao horizonte progressivo da experiência estética, reconstruindo o texto pela leitura; a segunda,
ao horizonte retrospectivo da construção interpretativa; a terceira corresponde à leitura
reconstrutiva que permite a elucidação dos aspectos ligados à obra, ou seja, sua compreensão.
Segundo Jauss (1994), deve-se tomar cuidado para não conceber a Estética da
Recepção como uma nova forma de impressionismo, dada sua aparente carga de subjetivismo.
As impressões de leitura de que a Estética da Recepção se ocupa não são totalmente
subjetivas, embora sejam construídas pelo indivíduo, pois essa “construção” se vale de
elementos encontrados externamente, resultantes de experiências reunidas ao longo da vida.
Identificar e compreender os caminhos perpassados pelo leitor na recepção da obra
literária constitui objeto de estudo da Estética da Recepção. Esta teoria concebe o processo de
fruição da leitura como o resultado da união de elementos internos e externos à obra,
entendido o primeiro como o texto em si e o segundo como a visão de mundo construída ao
longo da história de vida do leitor.
Ao concluir este capítulo, algumas questões podem ser pontuadas. Quanto ao ato de
ler, trata-se de um processo social, fundamental para a atuação do indivíduo na sociedade.
Como literatura, entendemos as expressões artísticas cujos valores estéticos, formados por um
uso especial da linguagem, contribuem para a satisfação da necessidade de fantasia própria do
homem. E, por fim, o leitor que, quando de posse do objeto de leitura, caracteriza-se pela
capacidade de construir significados a partir de seus próprios objetivos, construídos por sua
história de vida.
No capítulo que segue, apresentamos e discutimos os resultados das pesquisas sobre
Fanny Abramovich. Textos publicados, ou não, conversas informais e respostas à entrevista
concedida pela autora constituem os subsídios para o trabalho pretendido.
4 Fanny Abramovich: produção estética e crítica
É sempre uma baita de uma alegria pôr outro filho no mundo. E cada
livro novo te dá essa emoção. Que fica batendo forte, fino, forte, fino.
Um arrepio de gostosura.
Fanny Abramovich
15
O prazer da criação literária é um discurso que perpassa toda a história de Fanny
Abramovich e sua produção estética e crítica reflete uma forma de viver voltada para a arte
em todas as suas dimensões, seja vivenciando, seja incentivando novas vivências, seja
produzindo novas formas de fruição do prazer proporcionado pela arte.
Neste capítulo, apresentamos um pouco da vida e da obra de Fanny Abramovich,
autora de Cruzando Caminhos, com quem tivemos a oportunidade de compartilhar parte das
dificuldades e alegrias durante as pesquisas para esta dissertação. Também abordamos as
concepções de leitura, literatura e leitor da autora, perpetuadas em livros publicados e
facilmente perceptíveis na entrevista por ela concedida, cujo roteiro segue anexo a este
trabalho, e em conversas informais que tivemos ao longo dos últimos dois anos.
Salientamos que não temos o objetivo de descrever a biografia de Fanny Abramovich,
a qual pode ser consultada na sua obra Ziguezagues: andanças de uma educadora e escritora
(1996). Contudo, um pouco da sua história, suas experiências, sua forma de fazer arte são
ferramentas indispensáveis para discutirmos em conjunto todos os elementos que constituem
este trabalho.
4.1 Apresentando a autora
Fanny Abramovich, de família judia, nasceu e viveu sempre em São Paulo. Ao
completar 14 anos, foi informada pela mãe de que chegara a hora de começar a trabalhar, para
mandar na própria vida. Não foi difícil encontrar formas de ganhar dinheiro, pois sempre fora
boa aluna e não faltavam jovens e crianças que precisassem de sua ajuda. Aos dezesseis anos,
responsabilizou-se pela primeira vez por uma turma: eram imigrantes, mesclados em falantes
do russo, hebraico e francês, que precisavam ser aprovados em uma prova no Brasil para
15
ABRAMOVICH, Fanny. Ziguezagues: Andanças de uma educadora escritora. Ilustrações de Marilda
Castanha. 3. ed. São Paulo: Atual, 1996, p. 54
.
serem aceitos em escolas brasileiras. O desafio foi grande, mas vencido. Formou-se em
Pedagogia na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Entre seus
professores acadêmicos, destaca-se Maria José Garcia Werebe.
Passou um período de sua vida em Paris, no final da década de 60, por conta de uma
bolsa de estudos do governo francês e com suporte de uma campanha feita entre pais de
alunos, colegas de trabalho, da comunidade progressista do Bom Retiro, com a qual arrecadou
roupas de inverno, calçados e a passagem. Ao final da bolsa francesa, em Roma, estudou na
RAI - Radio Audiozioni Italia e, depois da volta ao Brasil, centrou-se em arte-educação.
Esteve na Argentina, Venezuela, Cuba, dando palpites, conselhos. Em Cuba, jantou com
Fidel Castro, com quem posou para foto que pode ser vista na obra Ziguezagues: Andanças de
uma educadora escritora (1996, p. 34).
Como educadora, dedicou-se à tarefa de ensinar, ministrando aulas de Didática em
grandes Faculdades de São Paulo, como a Faculdade de Belas Artes e a FAAP - Fundação
Armando Álvares Penteado, e Literatura Infantil, no Anhembi - Morumbi. Também foi
professora do, para ela inesquecível, Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem, onde
trabalhou por onze anos. No Instituto de Educação Padre Anchieta, ministrou aulas para
alunas do curso de aperfeiçoamento do Normal, um trabalho pouco gratificante, devido à
necessidade de cumprimento de rígidas, excessivas e desnecessárias regras. Também
coordenou escolas pré-primárias, além de registrar sua passagem pela história da educação
pela arte com o CEA – Centro de Educação para a Arte, sua escolinha voltada para o fazer
arte de maneira livre, centrada no movimento espontâneo, no desejo, na soltura criativa da
criança e do adolescente. Lá, não existiam concursos, nem exposições das crianças ou de suas
produções; todo o espaço, métodos e encaminhamentos eram voltados para a criança e sua
liberdade
16
. Uma particularidade: a escolinha funcionou, na sua etapa final, em uma enorme
casa que pertenceu a Mario de Andrade, em celebrado endereço da Rua Lopes Chaves, em
São Paulo.
16
Maiores detalhes sobre o CEA podem ser encontradas na obra Ziguezagues: andanças de uma educadora e
escritora, 1996.
Fanny Abramovich também trabalhou como consultora editorial. Começou na Editora
Giroflé, passando também pela Summus Editoria, Editora Escrita, Editora Klaxon, Editora
Salesiana Dom Bosco, para citar apenas algumas.
Paralelo ao seu trabalho como educadora, encontramos o teatro, sua grande paixão
juvenil. Foi atriz de teatro e de televisão, quando ainda era feita ao vivo, no TESP- Teatro
Escola São Paulo, dirigida por Julio Gouveia. Também foi orientadora pedagógica do Teatro
de Arena. Neste palco, Fanny Abramovich já estivera muitas vezes, representando para
crianças e: “Agora pra lidar com o diretor, o cenógrafo, o figurinista e os atores, para que o
espetáculo ficasse o melhor possível para a criança espectadora.” (ABRAMOVICH, 1996, p.
16).
Enfim, apresentar Fanny Abramovich é muito difícil, pois ela esteve sempre envolvida
em muitas atividades e a marca temporal não é uma preocupação da autora, o que dificulta
traçar uma linha dos acontecimentos, organizando as transformações, as descobertas dessa
educadora que se tornou escritora. Mas, sem dúvida, estamos diante de alguém que tem
marcado sua passagem pela arte, pela educação, pela vida. Seu trabalho como educadora
inclui mais de cem cursos, mais de trezentas palestras pelo país e infindáveis consultorias,
com temas envolvendo teatro-educação, teatro infantil, criatividade na educação e literatura
infantil. Foi professora de crianças, de jovens, de adultos. Viajou pelo Brasil falando de arte-
educação, ou seja, unindo dois pólos tão próximos pela sua própria natureza e tão distantes,
devido às inúmeras peculiaridades que envolvem o processo ensino-aprendizagem.
Entrevistou pessoas famosas e indiscutivelmente marcantes na crítica literária, como Antonio
Candido, por exemplo, cujas idéias são apresentadas e discutidas nesta dissertação
17
.
As participações de Fanny Abramovich em júris de premiação são incontáveis; muitas
decepcionantes, poucas extremamente gratificantes, conforme aponta a própria escritora. Uma
delas resultou em sua primeira publicação:
Um dia, havia acabado de ser membro do júri de um concurso de
dramaturgia infantil [...]. Li tantas besteira, que fiquei zonza [...]
Fiquei colérica. [...] copiei uns trechos de várias delas e montei um
artigo com comentários debochados. Entreguei para um amigão, o
17
Maiores detalhes sobre essa entrevista poderá ser visto no livro Quem educa quem?, de Fanny Abramovich, de
1985.
jornalista Wladimir Soares, do Jornal da Tarde. [...] Quando voltei,
encontrei em cima da minha escrivaninha o tal artigo. Publicado no
Jornal da Tarde [...]. Primeira vez que via meu nome impresso,
assinando uma matéria. (ABRAMOVICH, 1996, p. 34).
Daí em diante, as publicações nunca mais pararam. Os cursos que ministrava
ganharam nova força, agora com o desejo de registrar suas experiências, passando pela escrita
de livros para professores e, aos poucos, caminhando para a criação literária dirigida às
crianças e jovens e que adultos também lêem.
4.2 Criação e escrita: os resultados
O artigo citado acima foi publicado sob o título de Uma tragédia e para crianças, em
15 de outubro de 1977, no Jornal da Tarde, e, conforme aponta Abramovich (1996, p. 34),
quando ela ainda jurava “de mãos e pés juntos que não sabia escrever”. Foi o primeiro de uma
longa série. A convite do Jornal, em contato imediatamente posterior à publicação do artigo, a
pedagoga sugeriu treze assuntos variados. Maurício Kubrusly, então editor do caderno de
variedades do Jornal, escolheu todos, priorizando o de literatura infantil. O resultado foram 40
laudas, as quais tiveram que ser reduzidas ao formato compatível com o espaço do jornal.
Desconsolada, cumpriu o exigido. Fanny Abramovich colaborou durante quatro anos com
este Jornal.
Depois do Jornal da Tarde, outros contaram com a colaboração de Fanny
Abramovich: Folha de S.Paulo, Lira Paulistana, Fazendo Artes, Era uma Vez. Paralelo, as
revistas Nova Escola e Psicologia Atual, às quais se seguiram a televisão: Rede Globo e TV
Cultura.
Descobri outros jeitos de falar com as pessoas. A Distância. Por
escrito ou via televisão. Descobri que sabia escrever. [...] Adorei esses
trabalhos. Foram uma abertura grandona na minha vida. Das mais
ricas e estimulantes. Só valeu! (ABRAMOVICH, 1996, p. 37).
Fanny Abramovich começou a ser lida “quando suas cartas, vindas de Paris, eram
lidas em voz alta e por muitos ao mesmo tempo...” Passando a ter um público maior quando
começou a escrever para o Jornal.
Leu Jorge Amado, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Manoel de
Barros, Manoel Bandeira e conheceu as maravilhas que Narizinho espalhou pelo mundo,
personagem criada por Monteiro Lobato. Também constam na sua interminável lista muitos
nomes grafados em diferentes idiomas, como Mark Twain, Dorothy Parker, Paul Auster e B.
Malamaud.
Seus primeiros livros publicados foram de pedagogia, aproveitando seus textos
escritos e escrevendo novos, “[...] mas todos centrados em cutucar, ampliar os referenciais,
fazer pensar e repensar o processo educacional, mexer em velhos dramas, etc.”
18
Diferentes editoras publicaram os livros de Fanny Abramovich, voltados para a prática
docente, entre eles: Teatricina (1979), Editora Funarte; O estranho mundo que se mostra às
crianças (1983) e Quem educa quem? (1985), ambos da Editora Summus; Meu filho me vê
desse jeito (1984), Editora Almed; Literatura infantil - gostosuras e bobices (1988),
Scipione,; O professor não duvida! Duvida? (1990), Editora Gente; e Ziguezagues: andanças
de uma educadora e escritora (1996), Editora Atual.
Teatricina, primeira obra publicada pela autora, é o resultado da experiência com o
CEA – Centro de Educação e Arte, fechada, em 1974, após sete anos e meio em atividade.
Segundo a autora, que fala com pesar sobre o fim do Centro, a introdução da disciplina de
Arte no currículo escolar afastou os alunos, deixando a escola em dificuldades. Os pais não
viam a necessidade de manter uma escola de arte separada e preferiam optar pelo inglês.
(ABRAMOVICH, 1996, p. 26).
Depois de Teatricina (1979), foram anos sem publicar livros, mas incontáveis artigos.
Em 1981, publicou a primeira antologia que organizou: O Sadismo de nossa infância. Eram
contos, poesias, depoimentos, narrando crueldades cometidas na infância. A ela se seguiram
O mito da infância feliz (1983), que pretendia “[...] acabar com a história de que toda infância
é uma felicidade só. Mentira. É só ter um bocadinho de memória.” (ABRAMOVICH, 1996, p.
38). Ritos de passagem da nossa infância e adolescência (1985) foi a terceira antologia, cujo
tema envolvia todos os conflitos vivenciados pelos adolescentes, suas frustrações pelas
transformações do corpo, suas angústias pela insatisfação e outros. Abramovich teve textos
publicados nas três antologias, as quais tratavam de temas polêmicos da literatura,
inaugurando uma temática ainda distante da literatura infantil e da escola, principalmente,
pela dificuldade em abordá-la.
18
As citações que não trouxerem a referência bibliográfica fazem parte da entrevista concedida por Fanny
Abramovich.
Essas três antologias me deram muita satisfação. Autores de primeira,
cabeças privilegiadas, textos bonitos ou divertidos, cutucantes ou
tristonhos, contando sobre esses três assuntos. Temas que a escola
ainda não discutia. Fazia de contar que não era com ela.
(ABRAMOVICH, 1996, p. 39).
O primeiro livro de ficção de Fanny Abramovich foi Espelho, espelho meu (1988),
uma novela juvenil, de apenas trinta laudas, estreando seu promissor lugar entre os escritores
de histórias para jovens. Para esta obra, a autora fez consultas ao seu ginecologista, à
psiquiatra infantil Dra. Dulce Marcondes Machado, participou de festas de crianças de 13
anos, fotografou mentalmente, aproveitou tudo e construiu Débora, a personagem menina-
moça da obra. O livro teve, nas palavras de Fanny, um resultado minguado, mas foi reescrito
tempos depois, com novas reformulações que fizeram a narrativa crescer, ficar mais
conflitante e interessante. Depois dele, Fanny Abramovich escreveu mais de 40 livros
dirigidos ao público infantil. Entre eles estão: As voltas do meu coração (1989), Quem manda
em mim sou eu (1988), Que raio de professora sou eu (1990), Cruzando caminhos (1994)
19
,
Vamos nessa? (1996), Roda mundo (1998) e Pacto de sangue (2006).
Deixa isso pra lá e vamos brincar (1988), com ilustração de Walter Ono, foi o
primeiro livro de Abramovich especificamente para criança. Foi mal editorado, mal ilustrado
e decepcionante. Sua lista de livros juvenis é imensa, com uma linguagem descontraída,
constantemente provocando a catarse, uso abusivo de neologismos e um texto fartamente
pontuado, caracterizando frases curtas, períodos simples e com as reticências sempre
presentes. Cruzando caminhos (2005) é riquíssimo de exemplos:
“Talvez tivesse uma segunda chance... (pág. 15)
“Tornando claro que ele era um garotinho... (pág. 17)
“Prontas pro que viesse... (pág. 25)
Os verbos formam seqüências que tendem à enumeração, mas sem o empobrecimento
das construções, com a aproximação necessária para um público ainda se acostumando com o
ritmo longo dos textos escritos, como nesta parte de Cruzando caminhos (ABRAMOVICH,
2005, p. 60), referindo-se a David: “Pigarrreou, começou a falar, gaguejou.”
19
A edição lida pelos sujeitos desta pesquisa é de 2005, 6. edição.
As palavras nos textos de Fanny saem espontaneamente, com a intenção única de
interagir com o leitor, deixando-o à vontade, livre para imaginar significados, criar
expectativas, vivenciar. E isso podemos observar não só nas obras de ficção como também
nas dirigidas a educadores, bem como em Ziguezagues: andanças de uma educadora e
escritora, seu livro autobiográfico. Nesta obra, deparamos com termos como “narradadeiras”,
“ensinantes”, “mergulhante”, “barataço”, “amarelecidas”, “infelicidadona”, “belezura”,
“paradeza” e muitas, muitas outras estranhezas pouco vistas em livros.
Cruzando caminhos (ABRAMOVICH, 2005. p. 45) registra essa característica
marcante da autora em vários trechos: “Alguns buscaram onde ela terminava e fazia uma
piscina natural. Maravilhosamento!” E também em “Melhorou o humor, se espraiou, praiou,
feriadou.
Em princípio, poderíamos dizer que o abuso de neologismos poderia dificultar a
leitura, pela incompreensão dos textos. Mas isso não ocorre, conforme poderemos observar no
capítulo seguinte que trata da recepção de Cruzando caminhos pelo leitor jovem. Ao
contrário, os leitores não tiveram dificuldades em compreender a obra.
Assim é o resultado do trabalho de Fanny Abramovich, cujo processo de criação
literária envolve uma realidade conhecida, observada, compreendida, com a qual compõe uma
outra realidade, embelezada, transformada em arte e que se aproxima do universo do leitor,
sem os muros intransponíveis de uma linguagem complicada, distante no tempo e no espaço:
Estou passeando pelas ruas e escuto uma conversa interessante.
Anoto. Coloco na pasta, estou lendo um livro ou revista, vejo uma
frase bonita, uma belezura insuspeita. Anoto e ponho na pasta [...].
Assim e sempre. Tenho três pastas. Uma azul, pros livros infantis;
outra, vermelha, pros juvenis; outra, amarela, pros de adultos. [...]
Quando está na hora de começar um livro novo, tiro todos os
papeizinhos da pasta de idéias. (ABRAMOVICH, 1996, p 49).
Na criação das histórias, aproxima-se do cinema. Como se estivesse criando cenas. Na
tentativa de se aproximar do cineasta Robert Altman, cria seus cenários como se a história
fosse ser projetada diretamente ao leitor e, assim, vai “aproximando, agregando, colando,
superpondo, montando”
20
. O resultado é claramente percebido em Cruzando caminhos, a
focalização se movimenta, mas o resultado é a articulação em sua totalidade.
4.3 Livro, leitura e literatura: a opinião de quem vivencia
Neste tópico, apresentamos, das leituras que fizemos da produção de Fanny
Abramovich e, principalmente, das respostas obtidas com a entrevista, as principais idéias da
autora sobre leitor, leitura e literatura.
A primeira questão indagou sobre as razões que levaram Fanny Abramovich a se
tornar escritora. Conta que começou “[...] sendo uma leitora voraz. Insaciável. Desde
pequenina, desde alfabetizada. Aos 9 anos fui aprender inglês, por faltar mais e novos livros
infantis em português, para eu ler [...]”. Com tanto apego à leitura, sempre foi muito exigente
com o que lia e com o que escrevia. Começou a ter suas obras lidas quando escrevia ainda
para jornais, passando pelos livros de pedagogia e culminando com Espelho, espelho meu, sua
estréia na ficção literária.
Ao ser questionada sobre a influência de outros escritores ou obras, a autora responde
um categórico “NÃO”. Considera sim os parâmetros que sempre a acompanharam, como
Monteiro Lobato e Millôr Fernandes, ao lado de Oswaldo de Andrade, Drummond, Ítalo
Calvino e tantos outros citados por ela. Mas acrescenta que cada autor teve sua reverência por
tempo significativo: “Cada qual, no seu tempo de ir fechando seu ciclo dentro de mim.”
Um parêntese para discutir esse item, que demonstra muito da personalidade
inquietante da autora, sempre em busca do novo. Embora acredite ser o texto literário
permeável, passivo de novas descobertas e reconstruções, conforme vimos neste trabalho,
Abramovich, muitas vezes, prefere experimentar novos sabores, de novos escritores e, assim,
leu uma quantidade incontável de obras.
A questão três questionou sobre seu processo criativo e sua resposta não desmente
tudo o que havíamos lido sobre a autora: “Faço. Variando conforme a busca do assunto
20
Dados obtidos com a entrevista.
procurado. Como constante: prosear, pedir socorro, tirar dúvidas, buscar apoio na opinião e
conceitos de/e com crianças e/ou adolescentes (conforme a idade dos personagens).”
Acrescenta à resposta um pouco do trabalho com cada livro:
“Em Olhos vermelhos, a pesquisa começou com animais domésticos,
até eu escolher um para ser o protagonista da história [...] Um
hamster... Aí enveredei pelos cuidados exigidos por um hamster [...]
Não gosto de animais e não tenho [...] A pesquisa representou total
novidade informática e tentativa de gerar um afeto que tornasse
plausível o carinho do personagem (Edu) por ele.
Em Três desejos tão desejados aconteceram movimentos paralelos:
imaginário criando os personagens/papo com crianças, pré
adolescentes de hoje, observações em lojas e shoppings freqüentados
por passantes com a idade dos personagens [...]
Esta longa citação registra um processo criativo que vai além da inspiração. A autora é
audaciosa, aceita o desafio de escrever sobre assuntos com os quais não se identifica e não
esconde o que pensa. Mas se preocupa com a construção das personagens que cria, buscando
“viver” o mundo da sua “criatura” para ser capaz de pôr nelas a vida necessária para a
identificação do leitor.
Sobre o papel da literatura e a função do escritor contemporâneo, Fanny Abramovich é
contundente em sua explanação. Em oito palavras diz o que toda a sua obra esmiúça sobre seu
conceito de literatura: “Despertar, aguçar, manter o prazer de ler. Alimentar.” Dividiu sua
visão de literatura em dois pontos de vista: como judia e pessoa pertencente ao povo do livro
e como escritora, educadora e esteta. Quanto ao primeiro, escreveu: “[...] acho primordial,
ainda mais necessário que distribuir pão, é distribuir livros! Cuidar da preservação da cultura,
do saber, do sabor”.
Do segundo ponto de vista, registrou que é preciso
[...] prover a mente com o imaginário! Também fundamental, é aguçar
a vontade de traçar paralelos. Provocar a necessidade de ler outros
livros do mesmo autor, assuntando como abordou outros temas, como
retornou a antigas teimas, curiosando a ler outras completas... a
comparar traduções/edições [...].
Paralelamente:
A função do escritor contemporâneo suponho e torço pra que seja
cutucar, questionar... Surpreender, fissurar, deixando o leitor
aprisionado, desfolegado até fechar a última página. Arrematar.
Seduzir! Abrir portas do ainda desconhecido (do leitor). Mobilizar
para reflexões, papos, anotações, trocas, empréstimos....
Embora afirme não ter a influência de nenhum escritor em suas obras, a visão de
literatura de Fanny Abramovich vai ao encontro à de Antonio Candido em vários aspectos.
Esse encontro inicia por considerar a literatura fonte de prazer inesgotável e direito
inalienável do homem e culmina com a consideração de que o contato constante com livros,
desde a mais tenra idade, é condição indispensável para se formar leitores. E a Sociologia da
Leitura avaliza estas idéias em sua totalidade, conforme descrito neste trabalho. As palavras
da escritora, ainda na questão quatro, registram: “Minha mãe, que só tinha curso primário,
aprendeu francês sozinha, só virando páginas de livros dos seus poetas amados [...] Leu e
saboreou!”
Sobre o risco que a literatura corre de perder seu lugar para outras formas de
manifestação, Fanny Abramovich escreveu que não em si, mas:
Corre mais pela mediocridade, pela burrice, pela preguiça, pela
letargia, pela repetição oca... do que por uma batalha significativa
entre papel X computador... ou caneta X máquina ou qualquer outra
forma de antagonismo que se queira agrupar.
Para ela, que brinca dizendo ter sido alfabetizada por Guttemberg e não por Bill Gates,
o prazer da leitura está em recomeçar e parar a qualquer momento, marcar páginas, estar em
contato e, por isso, nenhuma outra forma de manifestação poderá substituí-lo o livro. Prefere,
sempre, o material impresso, o qual fecha e abre em qualquer lugar, a qualquer hora. Portanto,
o livro, para ela, movimenta as descobertas. Cinema é outra paixão; encantamento, mas o
mundo não seria o mesmo sem a palavra escrita e isso pode ser comprovado na sua extensa
produção escrita e visualizada nesta entrevista.
A questão seis versou sobre a possibilidade de sua literatura ser contaminada por
outras formas de linguagem. A autora prefere vê-la como “porosa, aderente, passível de
entrega.” Acrescenta que sua “[...] literatura é só linguagem. É nela que reside sua expressão,
sua comunicação, sua criação.” Contudo, acrescenta que o clima de suas narrativas é o cinema
e o ritmo é o da dança. Conta que, às vezes, tem dificuldade para terminar uma história
porque as soluções encontradas só deram certo no cinema e exemplifica com o caso de Pai
que é mãe. No final, uma porta giratória decide os acontecimentos e este momento, mesmo
com muito trabalho narrativo, acabou ficando pobre. Robert Altman é o cineasta que a
inspira. Em Cruzando caminhos, percebemos bem esta técnica. A narrativa se desenvolve
como se olhássemos através de uma câmara, focando os episódios, as personagens, sempre
diretamente, sob ângulos diferentes, construídos. Suas palavras explicam: “Tento fazer, à
maneira dele, grandes painéis, e ir aproximando, agregando, colando, supondo, montando, me
surpreendendo com o acontecido.”
Sobre quem é o seu público leitor, Fanny não nos surpreendeu, principalmente pelas
concepções de literatura que defende: “Acredito que escrevo para quem folheia e se identifica.
[...] Quem só precisa duma empurradela pra sair por aí, procurando seus próprios caminhos...
e que isso tudo não depende de faixa etária ou escolaridade.”
Nas conversas que tivemos e em tudo o que lemos da autora, pudemos perceber que
algumas obras foram solicitadas por editoras, mas todas tiveram o mesmo viés no momento
da criação: vivências com o tema, de perto e de longe, em busca de construir, sempre,
histórias que permitem identificação com o leitor. Seus pontos marcantes incluem o uso de
uma linguagem simples, criativa; na forma de construção dos parágrafos, às vezes, longos,
mas com frases curtíssimas; na enumeração de verbos de ação, no uso das reticências,
deixando sempre alguma coisa para a imaginação do leitor criar: “Quero escrever [...] para
quem se identifique com meus pensamentos e diga baixinho: Nossa, sou eu escritinho.”
Quanto à existência de uma literatura para crianças e como ela deveria ser, a autora só
se manifesta com relação às diferenças próprias da criança ainda não alfabetizada,
esclarecendo que estas possuem suas próprias habilidades de construir significados diante do
texto, restando ao escritor apenas permitir seu envolvimento com a obra. E acrescenta:
A literatura pra crianças e jovens, como qualquer outra, deveria se
contentar e deleitar em ser boa literatura. [...] A linguagem solta,
fluída, emocionada. Poética, com humor. Sem tatibitates ou
infantilismos. De preferência sabendo o que dizer e sabendo como
dizer... Capaz de surpreender. Se assim for, será gostoso para a
criança, o adolescente, o adulto...”
Questiona o uso do texto literário na escola como pré-texto para o ensino de
gramática, de geografia, de história e outros tantos conteúdos escolares.
21
Para ela, um texto
pode reunir todas as características próprias para encantar, prender, fruir, mas precisa existir
por si e pelo leitor e não como ferramenta de trabalho.
21
Em Literatura infantil: Gostosuras e bobices (2001), Fanny Abramovich apresenta caminhos para o trabalho
com literatura na escola nas diversas etapas escolares.
É sabido que a escola deveria abordar o texto literário pelo seu valor estético e não
pedagógico, mas nem sempre isso acontece. Em muitos casos, embora com enfoque
distorcido e pouco adequado, é na escola que muitas crianças e jovens têm os únicos contatos
com o texto literário. Isso delega ao professor uma tarefa de grande responsabilidade e para a
qual, muitas vezes, ele não está preparado ou não possui ferramentas adequadas para assumir.
A Sociologia da Leitura tem se preocupado com os mediadores de leitura, entre os quais estão
inclusos os professores, mas os programas de capacitação ainda estão muito voltados para
preparar para o vestibular ou para uma prática cujos resultados sejam igualmente mais rápidos
e visíveis, rechaçando a fruição da leitura.
Grande foi a surpresa que tivemos com a visão da autora sobre o hábito de ler do
jovem em nossa sociedade. Ela acredita num mundo leitor, acrescentando, na resposta à
questão nove da entrevista:
“[...] me surpreendo, cada vez que proseio com leitores em escolas,
bibliotecas, feiras de livros e acontecências do gênero. Lêem bastante.
Alguns devorando. Contudo, ainda há uma grande quantidade de
crianças, jovens e adultos, e o que é impactante, profissionais ligados
à leitura, como professores, bibliotecários, jornalistas, produtores de
TV, que não lêem.”
Essa situação tende a complicar os demonstrativos sobre o número de leitores, porque
são eles, os profissionais ligados à leitura, os agentes mais ouvidos nos levantamentos e que
se tornam os maiores responsáveis pelos resultados.
Talvez o jovem não esteja lendo o que gostaríamos que ele lesse. Da mesma forma,
talvez os jovens não estejam se identificando com os poucos livros postos a sua disposição, o
que nos leva a considerar, para efeito de levantamentos, a socialização do livro e os
mediadores de leitura com os quais os jovens convivem. Há, portanto, duas faces da mesma
moeda.
À Fanny Abramovich também questionamos sua opinião sobre o papel dos pais,
professores e governo na questão da leitura. Neste item, a autora reafirma a proximidade entre
seu pensamento e o de Antonio Candido no que diz respeito à importância das primeiras
histórias contadas pelos pais às crianças: “Os pais, contando as primeiras histórias, podem
deixar marcas deliciantes dum livro ou afastar do aborrecimento e chatice dum livro. Em casa,
são eles que lêem. Ou não”. E continua a autora por mais de 30 linhas, apontando diversas
formas de os pais contribuírem para a promoção do prazer da leitura, como falando de livros,
passeando nas bibliotecas, lendo para dormir, facilitando o acesso ao livro em casa, nas
bolsas, na escola. Além disso, são os pais que permitem ou não, por meio da aquisição
(compra, troca, empréstimo), as primeiras visões do livro pela criança. Os professores, por sua
vez, em primeiro lugar, deveriam gostar de ler, depois, serem capazes de dividir suas leituras
com os alunos e com todos os que gostam ou não de ler. “E este professor, posicionando-se
como leitor apaixonado e crítico, está se permitindo compreender que se seu aluno se limitar a
responder uma ficha elaborada, encartada e enviada pela editora, a leitura não significará
absolutamente nada para ele”.
Na verdade, é preciso permitir mais liberdade para o ato de ler, desprendendo o livro
das fichas e dos roteiros formalistas que priorizam o tempo, o espaço, o enredo, como se não
houvesse nenhum vínculo entre o livro e a realidade.
Quanto ao papel do governo, a questão onze abordou o problema de forma mais
pontual. Neste item a autora aponta projetos isolados que apresentam maiores resultados do
que os governamentais, como “O Mala de Leitura - do Mauricio Correia Leite – andante pelos
sertões e matas por décadas; o jegue carregando livros nas estradas poeirentas [...].” A autora
cita outros, inclusive o caso de duas bibliotecas, amadrinhadas por ela, que ficam no interior
da Bahia. São, segundo ela, de grande envolvimento comunitário, responsáveis por levar o
livro para pessoas que nunca teriam acesso a ele não fossem esses projetos.
Em nossa experiência, temos presenciado muitas tentativas frustradas de programas
governamentais voltados para a leitura. Uma delas propiciou a entrega de livros de literatura
infantil para todos os alunos do ensino fundamental da escola pública há poucos anos. Mas a
falta de espaço adequado e a incompatibilidade entre o tempo para a leitura e o currículo
básico exigido fizeram com que os livros fossem levados para casa, nas bolsas dos alunos e,
muitos deles, desapareceram sem serem lidos. Faltaram ferramentas e preparo das instituições
de ensino para um trabalho promissor com aquele material, um trabalho de mediação capaz de
diminuir a distância entre o livro e o jovem.
As questões doze, treze e quatorze tratam especificamente da obra Cruzando caminhos
e, apenas a título de organização do nosso trabalho, retomaremos estes itens no capítulo
seguinte, que trata da referida obra.
Na questão quinze, perguntamos a Fanny Abramovich se ela tem acompanhado a
recepção de Cruzando caminhos pelo leitor. Lembra a autora que o livro foi lançado há treze
anos (1994) e está na 5º edição. Na época, houve vários convites para falar sobre o livro, mas
eles não acontecem mais. Informou que, ainda em 2007, o livro terá uma nova edição, com a
qual ela espera maior correspondência do leitor.
A última questão da entrevista deixa um espaço livre para o relato das experiências e
projetos: “Quero continuar a escrever, como ando escrevendo nos últimos tempos. Na
gostosura. Na gargalhada.”
Descontraída, brincalhona, sempre disposta a novos desafios na tarefa de aprender,
ensinar e escrever, Fanny Abramovich tem planos de se dedicar à escrita de textos voltados
para as crianças entre sete e oito anos e, como ela mesma diz, na última questão proposta pela
entrevista, aos poucos, “chegar na petitita, da pré-escola... Voltar à idade com que comecei
como professora.”
O resultado das leituras sobre Fanny Abramovich, as informações que nos enviou em
artigos publicados ou não, nossas conversas pela internet permitiram observar que a autora
sempre acreditou e acredita na eternidade do livro para todos os que conhecem o prazer
incomparável do contato com esse objeto: “Ler sem livro na mão?? Tout a fait impossible...
Leitura dum livro é sensorial, táctil, corporal. Mais ou melhor. Livro é manuseado, amassado,
entortado, agarrado”.
22
Em suas andanças, tomando emprestado um de seus termos, ensinou e aprendeu,
procurando ensinar a partir das descobertas do que considerava impróprio, alienante, ruim. Na
produção literária, partiu do mesmo pressuposto, o que podemos observar na história de sua
primeira publicação: um texto mostrando grandes preocupações com o que e como deve ser o
texto para jovens e crianças.
Leitura? Sua paixão desde muito, muito pequena. Da sua obra Literatura Infantil:
gostosuras e bobices (1997), selecionamos algumas linhas que dão conta de registrar
satisfatoriamente o que é leitura para a autora:
Ler, para mim, sempre significou abrir as portas pra entender o mundo
através dos olhos dos autores e da vivência das personagens... Ler foi
sempre maravilha, gostosura, necessidade primeira e básica. Prazer
insubstituível... E continua, lindamente, sendo exatamente isso!
(ABRAMOVICH, 1997, p. 14).
22
Citação extraída do texto escrito e enviado por Fanny Abramovich O futuro do livro- uma visão brasileira, de
setembro de 2006, e que, segundo a autora, ainda não foi publicado.
O jeito de Fanny Abramovich escrever, como se estivesse conversando com um amigo
em tempos de adolescência, reflete o quanto saboreou Monteiro Lobato, o quanto se encantou
com Emília, Emília cheia de graça, Emília cheia de planos, fascinada pelo poder da palavra.
Assim... Acontecente, como diz Fanny.
Enfim, falar da produção intelectual e ficcional da educadora e escritora Fanny
Abramovich, bem como dos aspectos formais de sua obra, é mergulhar em uma teia que
cresce assustadoramente. Além do registrado em suas publicações, a escritora está sempre
disposta a remexer seu baú e relembrar as façanhas em que se envolveu na busca do aumento
no número de leitores. É educadora, escritora, dedicou-se ao trabalho com arte-educação,
lecionou por todo o Brasil e, na produção ficcional, preocupou-se em pesquisar o modo de
vida das pessoas que inspirariam suas personagens, sem copiar tipos conhecidos, sem
reproduzir o visto, mas transformando, adaptando, fazendo arte com a realidade e vice-versa.
Suas produções têm o objetivo de cutucar, de encantar, de mexer, promovendo identificação,
reconstrução, leitura. Buscou ajuda, se disponibilizou, aprendeu e, em nosso trabalho,
verificando a recepção de Cruzando Caminhos, temos uma mostra de que os resultados do
fazer artístico de Fanny Abramovich são gratificantes.
No capítulo seguinte, retomamos algumas considerações de Fanny Abramovich sobre
a obra Cruzando caminhos. Também apresentamos e discutimos os dados obtidos por meio
dos registros dos sujeitos da pesquisa nos questionários Socioeconômico e Cultural e de
Impressões de Leitura da obra citada, à luz das teorias discutidas neste estudo.
5 A recepção de Cruzando caminhos, de Fanny Abramovich
__ Nós não entendemos bem a linguagem uma da outra, mas vejo que
estás em grandes apuros. Esconda-se aqui, junto de meus filhos.
Afinal de contas, apesar de você ser inseto e eu ave, somos filhas do
mesmo Deus, não é?
Lúcia Machado
23
Selecionamos esta citação para abrir este capítulo com o intuito de lembrar as
inúmeras possibilidades de apropriação dos valores de uma obra. A fala da ave, personagem
da obra de Lúcia Machado de Almeida, reproduz um discurso utilitário, “ensinando” sobre a
igualdade dos seres que ocupam a terra e a necessidade de respeito mútuo? Por que não? Mas
de que forma? A literatura, conforme refletimos com a visão de Antonio Candido, por
exemplo, neste trabalho, pode transmitir ensinamentos e organizá-los, mas sem essa pretensão
como objetivo primeiro. Os valores estéticos do texto literário saciam as necessidades de
fantasia próprias do homem e o aprendizado é construído de forma gratuita, desprendido de
obrigatoriedade.
Neste capítulo, apresentamos e discutimos os registros feitos pelos sujeitos da pesquisa
nos instrumentos adotados: Questionário Socioeconômico e Cultural e Questionário de
Impressões de Leitura. O primeiro visa a conhecer melhor os leitores, evidenciando seus
meios de apropriação dos bens culturais. O segundo questionário, respondido pelos leitores a
partir da leitura da obra Cruzando Caminhos, visa ao registro das impressões de leitura do
livro. As respostas aos instrumentos de coleta de dados serão discutidos à luz da Sociologia da
Leitura e da Teoria da Estética da Recepção. Para melhor embasamento de nossa análise,
primeiramente, retomamos parte da entrevista concedida por Fanny Abramovich,
especialmente os itens que tratam da obra Cruzando caminhos, evidenciando as expectativas
da autora e os modos de construção das personagens, do enredo, da linguagem e de outros
itens pontuados na entrevista.
23
ALMEIDA, Lucia Machado de. O caso da borboleta Atíria. Série Vaga-lume. 7. ed. São Paulo: Ática, 1978,
p. 64.
5.1 Cruzando caminhos: com a palavra, a autora
Para melhor entendimento dos elementos que este item do trabalho contempla,
iniciamos com um pequeno resumo de Cruzando caminhos. Conta a história de quatro jovens
que passam um final de semana na praia. Seus caminhos se cruzam de formas diferentes.
Vivem as mesmas emoções, mas cada um sob seu ponto de vista. Pelo menos três pontos
podem ser considerados culminantes: o suicídio do menino alcoólatra e a entrega sexual de
Leila e Bill e de David e Joana. Ao término do final de semana e do livro, todos voltam para
suas casas com novas, inesquecíveis, mas passageiras experiências.
Com relação ao processo de criação da obra, questão doze da entrevista concedida por
Fanny Abramovich, a autora explicou que recebeu um convite da Editora Ática para escrever
um livro para a Série Sinal Aberto. Em busca do tema: “Assuntei, procurei, chequei....” A
escolha nasceu de um velho desejo, conforme citado no capítulo anterior, de escrever uma
história como se tivesse utilizando uma câmara de cinema, sob pontos de vista diferentes. E
“com a câmara na mão, criei Leila, David, Cléa e Nelson. Os coadjuvantes foram nascendo,
um a um.
Três personagens, praticamente anônimos, “acabam tendo papel decisivo nas
acontecências.” São eles: Bill, Joana e o menino alcoólatra. Ancorados nas intervenções de
Fanny, percebemos que os dois primeiros respondem pela primeira entrega sexual vivida
pelas personagens centrais, Cléa e David. O segundo suscita um tema polêmico que propõe ao
leitor uma identificação com as personagens que têm reações diferentes diante do mesmo
acontecimento.
Conforme escreve Fanny Abramovich, “a invenção da trama não demanda especial
trabalho.” O trabalho mais representativo aparece após a tessitura do enredo e a construção
das personagens merecem redobrada atenção, constantes retomadas, cortes, recortes. “É
assim até terminar a primeira versão da narrativa”. Uma segunda, terceira leitura; novos
cortes, novas substituições, alterações dos parágrafos, páginas, capítulos nos quais os
acontecimentos se desenvolvem, “até considerar que posso colocar FIM”.
Como vimos, Cruzando caminhos não surgiu somente de uma inspiração, mas é
resultado de um trabalho estético, artístico e de sensibilidade e respeito para com o leitor.
Sobre o tratamento diferencial da linguagem utilizado na narrativa, décima terceira
questão, ressaltamos que foi o principal elemento da narrativa que observamos no primeiro
contato com a obra, o que descobrimos se tratar do estilo que caracteriza a escritora: “Nos
meus livros de ficção juvenis, infanto-juvenis e infantis, meu texto é ágil, rápido. Frases
curtas, curtíssimas.” Na verdade, em suas obras dirigidas a professores, este estilo é
facilmente identificado.
Fanny Abramovich assinala que os neologismos neste livro ainda não são abundantes,
mas não é preciso folhear muitas páginas para deparar com palavras como “tristezura”,
“belezura”. “lindezura” “transadérrimas”. Eles vão, como diz, “pipocar”, em obras
posteriores.
Interessante como a escritora se reporta ao final da história. “Os personagens, na
medida em que vão crescendo [...] resolvem seus próprios caminhos.” Nós, leitores, podemos
observar isso claramente no relacionamento entre Joana e David, cujas atitudes levam direto
para um relacionamento platônico, cujas chances de amadurecimento eram mínimas. E a
própria Fanny chama a atenção para o fato de que a intenção era exatamente esta: “nenhuma
das relações entre os vários personagens teria chance de continuar”. Segundo ela, a escolha de
um final de semana para todos os acontecimentos da narrativa foi fazer com que tudo tivesse
o sabor da juventude, da adolescência, rapidamente, sem retornos… E a história, os caminhos
que as personagens seguirão dali em diante ficam como Fanny Abramovich gosta das coisas:
“um imenso ponto de interrogação.” (ABRAMOVICH, 1996, p. 15).
A questão quatorze abordou o ponto de vista a partir do qual o fato é narrado. Fanny
Abramovich esclareceu que esta forma de narrar “surgiu do meu desejo de usar um conhecido
recurso cinematográfico. [...] Cada virada da câmara é o novo ponto de partida para um
recomeço do retrato. Sempre fascinante.”
Apaixonada por cinema, cita filmes como Rashomon e seu produtor Akira Kurosawa;
A condessa Descalça, de Manskiwiecz, e todos os filmes de Robert Altman como exemplos
de utilização “deste olhar mutável, arrepiante, versátil, seguindo a ótica de cada personagem e
só através dela.” A obra O quarteto de Alexandria, do escritor Lawrence Durrell, completa
sua lista de inspiração para a focalização tão diferenciada que marca o estilo em Cruzando
caminhos.
Com relação aos temas polêmicos abordados pela obra a partir do ponto de vista em
movimento, a autora relembra e comenta cada um deles, os mais presunçosos, como o sexo e
o suicídio; os mais modestos, como a rebeldia, a fraqueza, o medo, o sentimento de
impotência, a coragem, mitos na literatura, parte da vida de todos os jovens, tão intensamente
vividos por eles em todas as esferas da sociedade.
Explicitar a situação que cada “câmera” de Fanny Abramovich focalizou em Cruzando
caminhos consiste em falar da vivência de cada personagem diante dos assuntos tratados pela
obra, que gira em torno de dois temas polêmicos maiores: sexo e morte. Nelson, fragilizado,
impotente, cônscio de sua fraqueza física, chora por não ter conseguido salvar o menino que
se joga no mar, enquanto desiste de Leila, por considera-la supostamente virgem. David,
apesar de sua frágil aparência física, atrai Joana, mulher experiente e bela, que se aproxima
dele, tira sua virgindade e o abandona, deixando o menino em frangalhos. Leila paquera
muito os adolescentes dali, mas se entrega a Bill, um desconhecido, estrangeiro, deixando
fluir toda a gana do adolescente de viver momentos únicos, rápidos, admiravelmente belos.
Enfim, para nós, uma obra de muitos leituras pelo mesmo leitor. Basta escolher uma
personagem, ligar a “câmera” e deixar fluir a leitura, num mundo jovem, cheio de estilo, que
abusa da linguagem “adolescental”, própria da idade das grandes descobertas, decepções,
frustrações e muitas alegrias.
5.2 Conhecendo os leitores – Questionário Socioeconômico e Cultural
Neste tópico, abordamos o instrumento de coleta de dados (Apêndice 02) intitulado
Questionário Socioeconômico e Cultural. Este questionário é formado por 15 questões,
mescladas em optativas e dissertativas, e tem como objetivo conhecer as formas de
apropriação dos bens culturais pelos sujeitos da pesquisa.
Para identificação dos leitores, omitimos os nomes e optamos por enumerá-los, em
seqüência, iniciando pelo número 01, preservando, assim, a identidade deles. A escolha da
ordem em que foram enumerados foi aleatória.
Os 09 (nove) leitores que constituem os sujeitos da pesquisa são alunos regularmente
matriculados no 2º ano do Ensino Médio de uma escola pública de Maringá-Pr, situada em
bairro afastado do centro da cidade; têm entre 15 e 18 anos e são do sexo feminino. Todos
residem no mesmo bairro ou nas imediações, cujas residências, a maioria construída em
padrão estabelecido pela Prefeitura do Município, contam com razoável estrutura
habitacional. Apesar de omitirmos os nomes, os leitores entregaram os questionários
identificados, permitindo conhecer o sexo deles. São, portanto, jovens com baixo poder
aquisitivo, mas que vivem protegidos por infra-estrutura e saneamento básicos compatíveis
com a necessidade humana.
Passemos à discussão dos dados obtidos com os instrumentos adotados.
Na questão um, foi solicitado aos leitores que se identificassem, informando, também,
a idade. Os leitores 01 e 04 têm 18 anos; os leitores 02, 03, 06, 08 e 09 têm 16 anos; os
leitores 05 e 07 têm 15 anos.
A questão dois interrogou ao leitor se estava regularmente matriculado em uma escola
e qual a série. Com exceção do leitor 08, que não entregou o Questionário Socioeconômico e
Cultural
24
, foi registrado que todos estão regularmente matriculados na segunda série do
Ensino Médio, lembrando que, para a participação nesta pesquisa, estabelecemos como
critério o fato de estar estudando, embora não delimitássemos a série. Ao relacionar idade e
série em que estão matriculados, observamos que há razoável compatibilidade. Apenas os
leitores 01 e 04 poderiam estar em séries mais adiantadas.
O terceiro item questionou aos respondentes se trabalham ou não e qual a ocupação.
Apenas o leitor 09 atua no mercado de trabalho. É balconista, mas não informou a área de
atuação. O leitor 01 acrescentou: “Leio, assisto televisão e estudo”. O leitor 05 informou que
é estudante e, embora todos sejam estudantes, os demais leitores não consideraram essa tarefa
um trabalho.
Entre as classes menos favorecidas, poucos têm a oportunidade de se dedicar somente
ao estudo. A própria família do adolescente incentiva o trabalho para ajudar no orçamento da
casa ou como forma de ocupação do tempo livre, evitando o envolvimento com os problemas
típicos dos jovens, como as drogas, para citarmos apenas um.
Lamentável realidade, uma vez que a escola deveria dar conta de envolver os jovens
em atividades de retorno positivo para toda a sociedade. Sem tender a uma visão maniqueísta
da sociedade, pois os adolescentes da classe média e alta não estão protegidos dos males do
mundo, a escola pública tem afastado os jovens do convívio acadêmico. Desprovida de uma
24
O leitor 08 não entregou o Questionário Socioeconômico e Cultural e, por isso, não será mais citado na
discussão deste tópico. Este leitor não foi excluído da pesquisa porque entregou o Questionário de Impressões de
Leitura, item apresentado posteriormente.
estrutura que vá ao encontro das expectativas da sociedade e da família, tem, no máximo,
mantido estes jovens em seu interior de forma limitada, cumprindo um índice de freqüência
suficiente para não abortar os planos de divulgação de índices educacionais dos governos. Por
diversas razões que não constituem objeto deste estudo, a escola pública, incluindo o espaço
físico e o material humano que a sustenta, não tem sido valorizada pela sociedade que,
conseqüentemente, não valoriza a construção do conhecimento por ela produzido. Assim,
estudar não é um trabalho, uma profissão, pois os resultados financeiros, objetivo primeiro de
uma sociedade capitalista, não são visíveis a curto e, muitas vezes, nem a longo prazo.
Na questão quatro, listamos alguns itens para que fossem enumerados conforme a
preferência dos leitores. As respostas foram muito variadas
Observamos que apenas o leitor 02 apontou a leitura como principal item de suas
preferências. Os leitores 03 e 05 citam ler em segundo lugar, enquanto o leitor 09 põe a leitura
em terceiro lugar. Estudar também não é prioridade como passatempo de nossos leitores: 3º
lugar para os leitores 01 e 02.
As prioridades dos nossos leitores envolvem sempre atividades que não necessitam de
dinheiro para serem desenvolvidas, como passear, namorar, assistir à televisão ou conversar
com amigos. Ir ao cinema, por exemplo, ocupou, no máximo, o 5º lugar e de apenas um leitor.
Apenas um leitor, de 16 anos, trabalha e apontou esta atividade em 1º lugar em suas
preferências. Provavelmente, os demais sujeitos da pesquisa nunca trabalharam e, como
vivem em um bairro distante do grande centro e possuem poder aquisitivo baixo, o
envolvimento com novas formas de ocupação do tempo é bastante restrito. O acesso ao livro
também é difícil, pois o bairro não possui Biblioteca Pública e a da escola que freqüentam é
pequena, não tem bibliotecário e conta com uma política de utilização bastante seletiva: os
alunos só podem utilizá-la durante as aulas de Língua Portuguesa. A questão seguinte foca
este ponto.
Quanto à freqüência a bibliotecas, questão cinco, apenas o leitor 06 assinalou a opção
“sempre”. Os demais optaram por “muito pouco”. A prática docente constata que a maioria
dos alunos só vai à biblioteca quando levados pelo professor, principalmente, alunos do
período noturno. Algumas delas, como a da escola freqüentada pelos respondentes, só
permitem que o aluno visite o espaço destinado aos livros durante as aulas de Língua
Portuguesa, conforme comentado acima. Assim, com maior intensidade no noturno, que conta
com um revezamento de alunos presentes e, conseqüentemente, maior dificuldade para o
cumprimento do planejamento, não é possível visitar a biblioteca toda semana, o que dificulta
ainda mais o acesso ao livro. Contudo, percebemos que, quando essa visita é possível, há o
encantamento geral. Seja folheando uma revista, seja admirando o tamanho de alguns livros,
todos se envolvem, questionam, levam livros para casa, demonstram curiosidade e interesse.
Lembrando Fanny Abramovich e outros autores citados neste trabalho, o contato com os
livros desde pequeno é condição sine qua non para a formação de leitores e os participantes
desta pesquisa, nesta e em outras questões, evidenciam o pouco contato com obras impressas,
o que representa pontos negativos quanto à formação de leitor.
Aos leitores, na questão seis, foi indagado sobre o tipo de material que buscam na
biblioteca. Apresentamos alguns itens para que assinalassem suas preferências e as opções
não variaram muito. Os leitores 01, 03 e 04 escolheram “livros didáticos” e “romances”, os
leitores 02 e 06 escolheram somente “romances”; os leitores 07 e 09 optaram pela “poesia”; o
leitor 05 escolheu “poesia” e “livro de aventuras”. A opção pelo livro didático justifica-se, a
nosso ver, pela solicitação de trabalhos pelos professores. Os livros didáticos trazem as
informações em número reduzido de texto e os alunos copiam os parágrafos menores, fazem
uma capa, colocam o nome e entregam ao professor como parte de avaliação. As revistas não
foram citadas por nenhum dos sujeitos da pesquisa, embora constassem entre os itens e
constituíssem material abundante na biblioteca da escola. Nenhum dos respondentes deixou
de citar romance ou poesia, o que demonstra não haver aversão ao texto literário, conforme
relatam muitos professores.
A questão sete abordou as preferências dos leitores quanto ao gênero literário.
Apresentamos ao leitor as opções “narrativa ou poesia” e indagamos o porquê da opção. Os
leitores se dividiram nas respostas. O leitor 01, na questão anterior, não havia citado a poesia
como item que buscava nas bibliotecas (questão seis), mas a citou aqui como preferência de
gênero literário. Também preferem a poesia os leitores 05, 07 e 09, os demais preferem a
narrativa. As opções pela poesia apresentam justificativas surpreendentes:
L01: “A maioria das poesias fala de amor, felicidade, um pouco daquilo que as
pessoas sentem e não sabem explicar.”
L05: “Pois a narrativa é apenas uma pessoa narrando uma história e a poesia expressa
os sentimentos e as emoções de uma pessoa.”
L07: “A maioria fala de amor.”
L09: “Porque envolve sentimento.”
Da mesma forma, surpreenderam as justificativas dos leitores que optaram pela
narrativa:
L02: “Porque tem mais emoção, é mais interessante. Parece que você está vivendo
aquela emoção.”
L03: “Tem mais realidade, me identifico mais por isso. Já a poesia expressa algo
platônico, distante da realidade.”
L04: “Entendo mais um texto narrativo do que um poético.”
L06: “Narrativa é menos enjoativo.”
Conforme observado nesta e na questão anterior, nenhum dos leitores disse não gostar
de literatura. Apenas uma observação um pouco negativa registrada pelo leitor 06, que
considera a narrativa “menos enjoativa”. Isso leva a crer que ele considera narrativa e poesia
gêneros enjoativos, embora o primeiro com menos intensidade.
Positivamente, fomos surpreendidos com a associação feita pelos leitores entre poesia
e sentimentalismo, ligando a narrativa mais à realidade. Essa atitude parece ser causada pela
própria escola que, na ânsia de aproximar a literatura da realidade, eleva a poesia ao grau
máximo de subjetivismo, como se os sentimentos de que ela trata fossem exclusivos do poeta,
impossível de serem vivenciados pelo leitor. A plurissignicação da poesia, possível com o uso
dos recursos de linguagem, da sonoridade, exige do professor maior empenho no sentido de
instigar as associações, reconstruindo as imagens, levando o leitor a perceber a transfiguração
do real que a poesia constrói por meio de uma simbologia, às vezes, de forma mais hermética
que na narrativa. Salas de aula lotadas, com alunos cansados, falta de material são alguns dos
problemas que desestimulam este trabalho.
Marisa Lajolo, na obra Do mundo da leitura para a leitura de mundo (1997), assinala
que muitos dos problemas das aulas de literatura estão ligados ao despreparo do professor.
Assim, mistifica-se a poesia, enquanto a narrativa é trazida excessivamente à realidade, sem
haver um vínculo entre esta e a fantasia, tão necessária ao homem e tão presente nos textos
em prosa.
Por outro lado, a poesia é vista pelos leitores como um texto que fala somente de
amor, como se nunca tivessem tido contato com a poesia do ultra-romantismo, por exemplo,
que lembra o feio, o sombrio, o triste. Poesia, enfim, é, para o leitores, sinônimo de amor e
isso pode ser visto como reflexo das respostas à questão 03: ocupam muito de seu tempo
namorando, conversando e, portanto, o amor move seus passos. Vale observar que são todos
do sexo feminino, cujo sentimentalismo, nessa idade, está bastante aguçado.
Na questão oito, buscamos observar o porquê das leituras. Foram apresentados aos
leitores quatro itens para que fosse(m) escolhida(s) a(s) justificativa(s) para a leitura. A
maioria dos questionados, leitores 01, 02, 03, 05, 06 e 09, optaram pela resposta “porque
gosta e considera importante”. Os leitores 04 e 07 responderam que lêem “para satisfazer as
imposições da escola”. Estamos acostumados a pensar que o jovem é inimigo da leitura, por
isso as respostas surpreenderam. Na verdade, os comentários feitos à questão cinco mostram
outra realidade: quando de posse do objeto de leitura, o livro, os jovens não o rejeitam. Petit
(1999), citado neste trabalho, também comprovou essa realidade em suas pesquisas, opinião
também de Fanny Abramovich.
25
Ao serem questionados sobre a freqüência com que lêem por obrigação, questão nove,
cinco leitores responderam que não é comum lerem por obrigação (leitores 01, 02, 03, 05 e
06), ratificando as respostas dadas à questão anterior. Nenhum desses leitores fez algum
comentário sobre sua resposta, nem há menção à palavra “pesquisa” ou ao ato de ler pelo
prazer da leitura como justificativa por lerem sempre espontaneamente.
As respostas afirmativas lembram os trabalhos escolares. Os leitores 04 e 07, que
responderam afirmativamente, citaram tal tarefa. O leitor 04 acrescentou: “Quando preciso
fazer trabalhos de literatura, resumo de livros etc.” As atividades com a leitura na escola
trazem uma carga excessiva de tarefa a ser realizada com pontos bastante definidos: começo:
olhar o texto; meio: verificar a relação do visto com o solicitado pelo professor; fim: copiar
alguma coisa que comprove o contato do aluno com o texto.
O convívio com a realidade escolar evidencia que a escola possui a prática de solicitar
trabalhos envolvendo leitura e cuja realização é obrigatória para se obter nota. Mas a palavra
“leitura” é, na maioria das vezes, somente citada na disciplina Língua Portuguesa,
contemplando, no Currículo da Escola Pública do Paraná, a gramática, a redação, a literatura
25
Esta opinião sobre a formação do leitor pode ser verificada em todo o discurso de Fanny Abramovich,
registrado na entrevista concedida para este trabalho e obras discutidas nesta dissertação.
e, em algumas séries, as demais artes. Talvez por ser “leitura” uma palavra acentuada somente
nesta disciplina, cujo conteúdo é bastante exaustivo, e, nas demais, haver a preferência por
“trabalhos escolares”, ”respostas a questionários”, muitos leitores responderam negativamente
a questão. Quando faz trabalhos para as outras disciplinas, mesmo que a atividade envolva
fisicamente o livro, a maioria dos alunos não considera que foi obrigado a ler; apenas a fazer
o trabalho. Podemos dizer que temos aqui dois lados da mesma moeda: um negativo e outro
positivo. O lado positivo diz respeito ao fato de que, ao fazer um trabalho para outras
disciplinas, estão lendo sem perceber que estão sendo obrigados a isso. Por outro lado, não ter
consciência de que aquela atividade se trata de leitura, muitas vezes, torna-a mecânica,
resultando em cópias de partes de textos, com pouquíssimo aproveitamento quanto à
formação de leitor.
Na questão dez, tivemos o intuito de registrar se há diferença entre ler por obrigação e
ler por iniciativa própria. Somente o leitor 07 respondeu que não, mas parece que houve
confusão na hora de assinalar, pois, em seus argumentos, deixa claro que percebe a diferença.
Os comentários dos respondentes tendem para o mesmo resultado, salientando o prazer, a
fruição, o aproveitamento do texto lido espontaneamente, em detrimento da falta de interesse
que a leitura obrigatória provoca.
L01: “Sim. Porque a leitura por iniciativa traz benefício como a boa escrita a boa
leitura etc. E ler por obrigação não traz nada disso, pois você não está fazendo o que gosta.”
L02: “Sim. Quando vc lê por imposição própria fica mais fácil de entender a história.
Quando é por obrigação a pessoa não entende é como não tivesse lido o livro.”
L03: “Sim. Ao ler por iniciativa própria vc vai sentir-se bem no que está fazendo vai
tirar o máximo proveito dessa leitura. Já ao ler forçado você sente-se aborrecido, sem gosto
pelo que está fazendo.”
L04: “Sim. Na leitura por obrigação você tem pressa em terminar e não se envolve
tanto com as emoções do livro.”
L05: “Sim. É diferente pois a leitura por iniciativa própria é muito melhor, afinal tudo
o que a gente faz é bom se gostamos disso, já por obrigação nem vamos entender o que o livro
quer dizer.”
L06: “Sim. Se for por iniciativa própria você lê com prazer porque gosta, mas se foi
por obrigação vira um tédio e acaba não tendo serventia.”
L07: “Não. Se você quer ler você fica mais interessada, quando é uma obrigação é sem
graça.”
L09: “Sim. Quando a gente lê por iniciativa própria a história fica envolvente e
interessante, mas quando lemos por obrigação é porque é forçado a fazer isso.”
As respostas à questão dez levam a refletir sobre a necessidade de estabelecermos
metodologias envolvendo os jovens com a leitura, sem torná-la uma tarefa enfadonha,
repulsiva. Bem sabemos que, na realidade, muitos jovens só lêem quando obrigados a isso,
mas as respostas registradas para esta questão demonstram que essa obrigatoriedade diminui,
ou, até mesmo, rechaça a fruição da leitura. Então, como levá-los à leitura para o
cumprimento das tarefas escolares, mas de forma prazerosa? Levando em conta as respostas
dos jovens, eis aqui um desafio ainda a ser vencido.
Na questão onze, os entrevistados foram convidados a enumerar, segundo a
preferência, o que costumam ler em casa. As opções foram bastante variadas. O livro está em
primeiro lugar na preferência de apenas dois leitores. Os jornais e as revistas também foram
bastante citados. Talvez por isso, quando lhes foi perguntado sobre o que buscam nas
bibliotecas, as revistas e os jornais não foram citados. As respostas à questão onze
demonstram tratar-se de materiais cujo acesso é comum em seu convívio doméstico e, como o
jovem está constantemente em busca de novidades, procura, na biblioteca, material
diferenciado. Registramos outra evidência dos resultados das pesquisas sobre leitura
discutidas neste trabalho: para a formação do leitor, é primordial a disponibilidade do material
de leitura. Sem acesso ao livro, não se forma leitores.
Quanto ao tempo semanal que disponibilizam para atividades lúdicas ou culturais,
questão doze, os leitores também se dividiram. Os leitores 01 e 03 dedicam mais de cinco
horas por semana a essas atividades, os leitores 02 e 09 dedicam quatro horas, os de número
05 e 06 dedicam três horas e os leitores 04 e 07, apenas duas horas. Tendo em vista as
respostas da questão quatro, que aborda a ocupação do tempo livre, recebemos estranhamente
as respostas à questão doze. Naquela questão, somente dois leitores indicaram a leitura como
passatempo favorito e, nesta, o mesmo número assinalou o tempo mínimo (duas horas) como
espaço disponibilizado semanalmente para a leitura. Ou seja, se considerarmos as duas
respostas, veremos que em algum lugar o processo falhou, pois, se o passatempo preferido é,
de longe, a leitura, como o tempo destinado a tal tarefa não é, para a maioria dos leitores, a
opção que ele dedicaria menor tempo à leitura? Considerando o tempo que passam na escola,
cerca de 4 horas diárias em contato com o texto escrito, talvez as respostas levassem em conta
parte deste período. Contudo, talvez fosse necessária uma investigação mais aprofundada
para resolver tal impasse.
Ao serem questionados sobre o hábito de comprar livros, jornais ou revistas, questão
treze, apenas dois leitores afirmaram comprar algum desses itens: L04: “Revista Veja, Revista
Cláudia etc.” L05: “Senhora, A viuvinha, Jornal: O Diário”. A opção do leitor 05 vem ao
encontro das práticas escolares, pois os livros citados são altamente recomendados pela escola
pública e “O Diário” é vendido no bairro. Ressaltamos que aqui se trata de uma comunidade
de poder aquisitivo bastante baixo, cujas prioridades, até mesmo por tradição, são outras e,
por isso, esperávamos por estas respostas.
A questão quatorze questionou os sujeitos da pesquisa quanto ao fato de se lembrarem
de terem ouvido histórias em casa quando eram crianças e sobre quem as contava. Dois deles
responderam sim e citaram as histórias. Os leitores 02, 05, 06, 07 e 09 apenas responderam
não, enquanto os leitores 01, 03 e 04 fizeram algum comentário:
L01: “Sim. Os três porquinhos, Pinóquio, Chapeuzinho vermelho. Não era diretamente
em casa que eu as ouvia, mas na creche, e eram contadas pelos professores”.
L03: “Sim: Ouvia histórias reais, portanto, elas não tinham título. Minha mãe
principalmente.”
L04: “Não lembro de ouvir histórias quando criança”.
Salientamos que nosso questionamento especificou o ambiente familiar, talvez por
estar mais atento, o leitor 01 indicou que ouvia as histórias na creche. Muitos dos jovens do
bairro freqüentaram pré-escolas e creches, o que provavelmente ocorreu com outros
participantes desta pesquisa que também devem ter ouvido histórias nesses ambientes. O
leitor 03 afirmou ter ouvido histórias contadas pela mãe, figura que, normalmente, está mais
próxima do filho, física e psicologicamente; mas lembra tratar-se de histórias reais, sem título,
mas que marcaram sua vida, caso contrário não teriam sido citadas.
Ao serem questionados sobre a importância dessas histórias em suas vidas, questão 15,
os leitores 01, 03 e 04 fizeram comentários. O leitor 05 escreveu alguma coisa, mas apagou.
Das letras ligeiramente visíveis, foi possível perceber que ouvira histórias da mãe, embora
não tenha respondido isso na questão anterior, e que isso contribuiu positivamente.
L01: “Sim, a que me deu mais sabedoria foi os três porquinhos, pois fala em força de
vontade, união, e amor. Tudo o que formos fazer na nossa vida temos que fazer bem feito
mesmo se for para outra pessoa, temos que fazer como se fosse para nós mesmos.”
L03: “Com certeza, estar ligada à realidade desde cedo me fez amadurecer
rapidamente e todas as histórias reais me ajudaram nisso. Algumas falavam de amor, outras
de morte. Algumas personagens agiam certo, outras erradas. Tudo isso me fez crescer tendo
noção do que é realmente a vida. Aprendi a vê-la como é. Aprendi que não devemos iludir-se
por “felizes para sempre”, quando a realidade é bem diferente.”
L04: “Não ter ouvido histórias durante a minha infância fez com que eu não me
sentisse uma criança como as outras. Essas histórias que eu tinha que ter ouvido quando
criança só ouvi depois de grande, hoje me lembro direitinho p/ contar p/ meu filho.”
No que se refere às histórias reais citadas pelo leitor 03, tudo leva a crer tratar-se dos
“causos” contados em volta de uma roda familiar. Nesses “causos”, realidade e fantasia se
misturam de forma tão homogênea que, até mesmo para leitores mais experientes, às vezes,
fica difícil delimitar as fronteiras entre o verdadeiro e o fictício. Os “causos”, conforme nossa
experiência de vida, são contados como histórias reais, acontecidas com um amigo ou parente
próximo da família, mas de forma transformada, transfigurada, para usar um termo de
Antonio Candido, tendendo ao fantástico, muitas vezes. Observamos, nesse leitor, um
resultado formador, pois, mesmo aos dezesseis anos, tem bastante maturidade para falar da
vida, embora não seja preciso muito esforço para perceber certa amargura com que fala de
seus embates com a realidade, como, por exemplo, sobre a visão negativa que possui da
felicidade eterna.
O leitor 04 possui uma particularidade: tem um filho, que conhecemos há pouco
tempo. Seu texto deixa clara a importância que atribuiu às histórias que não ouviu quando
criança, mas que ouviu depois de grande e tudo leva a crer que será um contador de histórias
para o filho. Não sabemos em que momento esse leitor ouviu essas histórias, mas pode ter
sido na escola mesmo, do professor ou dos colegas. Interessante como fica clara a lacuna que
a falta de histórias na infância provocou na jovem, deixando claro o quanto a magia das
histórias fascinam os pequenos e o quanto essa fascinação permanece durante a vida. Como a
jovem, mesmo mais tarde, teve contato com essas histórias, pôde perceber a beleza e a
importância dessa magia.
O leitor 06 escreveu vários pontos de interrogação no espaço destinado à resposta
desta pergunta. Não foi possível especificar se houve ou não o entendimento da questão, se
quis marcar a dificuldade de escrever sobre o assunto, ou se a intenção foi registrar que não
deveria escrever nada, uma vez que informou nunca ter ouvido histórias.
As respostas obtidas com o Questionário Socioeconômico e Cultural surpreenderam e
mostraram que os problemas quanto à formação de leitor estão intimamente ligados às
restritas formas de acesso aos bens culturais existentes. Demonstraram que os respondentes
possuem um poder aquisitivo baixo e que não há tradição ou incentivo para aquisição de
material de leitura. Também não parecem movidos por grandes expectativas financeiras e
sociais, uma vez que não apontam a necessidade de estudar ou de trabalhar como elementos
que podem contribuir para uma melhoria na qualidade de vida intelectual e financeira. A
ocupação do tempo livre se restringe às atividades que podem ser desenvolvidas no próprio
bairro e sem investimento financeiro, o que os afasta dos cinemas, de teatros, de bibliotecas
maiores e que contam com mediadores mais preparados. A própria escola, sem que haja a
intenção de fazê-lo, restringe o acesso ao livro, devido à falta de funcionários, de espaço e,
principalmente, de livros em número suficiente para atender a todos.
Apesar de todas as dificuldades expostas pelos jovens no instrumento adotado para
observar pontos relativos à cultura, resultados positivos merecem destaque. O nível de
interesse pela leitura de textos literários não é muito baixo, conforme ressaltam muitos
professores, uma vez que nenhum leitor informou não gostar de literatura, embora esse gosto
seja bastante prejudicado pela dificuldade de acesso às obras e pela falta de estímulos para o
contato com o texto literário enquanto fonte de prazer. Os jovens possuem uma razoável
noção de literatura, observada, por exemplo, pela associação que fazem entre poesia e
sentimentalismo, pela noção de realidade e fantasia que o texto literário apresenta e pela
importância dada às histórias, além de outras respostas registradas, retomadas em conjunto
com o tópico que será discutido em seguida.
Outro ponto que pudemos observar, embora não fosse objeto deste estudo, diz respeito
a um bom relacionamento com o texto escrito, se comparados com a clientela de escolas
públicas com a qual estamos acostumados a conviver. Isso demonstra uma proximidade com a
leitura, atividade que contribui para o bom desenvolvimento da escrita, da argumentação.
Tivemos cuidado na elaboração dos questionários e percebemos que não houve dificuldade na
compreensão dos itens, o que também indica um bom nível de interpretação de enunciados e,
conseqüentemente, de leitura.
Deste tópico, concluímos ter sido válido o instrumento adotado para os registros
necessários para a pesquisa, com os quais foi possível uma visão ampla dos elementos que
constituem o nível cultural dos sujeitos envolvidos. No tópico seguinte, apresentamos os
resultados obtidos com o Questionário de Impressões de Leitura do livro Cruzando caminhos,
cuja discussão retoma dados do Questionário Socioeconômico e Cultural. As premissas da
Sociologia da Leitura, da Estética da Recepção e demais teorias abordadas neste trabalho,
além das contribuições da entrevista concedida por Fanny Abramovich constituem a base
teórica para a discussão pretendida.
5.3 Cruzando caminhos: impressões de leitura
Neste tópico, apresentamos e discutimos o Questionário de Impressões de Leitura
(Apêndice 03), respondido pelos sujeitos da pesquisa a partir da leitura da obra Cruzando
caminhos. Composto por 13 questões, constitui importante ferramenta para a verificação da
recepção da referida obra pelos jovens leitores.
O primeiro item deste questionário indagou aos sujeitos da pesquisa se já haviam lido
algum livro de Fanny Abramovich. Todos os leitores registraram resposta negativa.
Esperávamos por isso, principalmente porque são jovens com pouco hábito de leitura,
conforme observado no Questionário Socioeconômico e Cultural. Além disso, os livros de
Fanny Abramovich não constam da “lista” de indicação de leitura das escolas públicas do
Paraná, de onde vêm todos os leitores participantes desta pesquisa. São livros que ocupam
poucos espaços nas bibliotecas, bem como são pouco comentados e lidos por professores de
literatura. Salientamos que na biblioteca da escola em que os sujeitos da pesquisa estudam,
não havia, até o início desta pesquisa, nenhum exemplar de obras escritas por Fanny
Abramovich.
Ao perguntar-lhes de qual personagem mais gostaram, questão dois, percebemos que
os jovens não se distanciaram muito de suas preferências. A maioria, leitores 02, 04, 05, 07 e
09, elegeu Leila. O fato de ser decidida e extrovertida chamou a atenção, demonstrado nos
argumentos apresentados:
L02: “É decidida. Sabe o que quer e soube aproveitar o final de semana.”
L04: “É aventureira. Identifica-se comigo por dentro e por fora.”
L05: “Divertida. Sabe aproveitar as oportunidades.”
L07: “é divertida e extrovertida.”
L09: “é decidida e extrovertida. Sabe o que quer.”
Por serem meninas, parece normal que a maioria se identificasse com a personagem
feminina. Além disso, são adolescentes, fase da vida cuja aparência e atitudes liberais são
intensamente valorizadas, características bastante aguçadas em Leila.
Ao observar as respostas, a princípio, tivemos a impressão de que elas foram
discutidas entre os leitores ou, até mesmo, de que houvesse cópia, mas, aprofundando a
análise, observamos tratar-se da opinião de cada um deles, justificada pela própria
caracterização da personagem, conforme comentado acima. Leila é mais madura que as outras
personagens, sabe o que quer da vida, é independente. É a única que não dá satisfação de suas
atitudes a ninguém, nem mesmo aos parentes que a acolhem em casa, os quais parecem
bastante tranqüilos com as atitudes da jovem. Além disso, Leila é apresentada pelo narrador
como a própria imagem da beleza e da sensualidade (pág. 10)
26
, características perfeitas e
desejadas pelos jovens que buscam sempre evidenciar sua capacidade de gerir a própria vida.
Os leitores 01 e 08 elegeram a Cléa e argumentam:
L01: “passa a idéia de uma menina sonhadora, romântica, emotiva, que acredita em
um príncipe que vai amá-la para sempre.”
L08: “Identifica-se gosta de sentir a natureza.”
Conforme dito anteriormente, os respondentes são do sexo feminino e, na questão sete
do questionário anterior, a maioria citou a poesia como gênero literário preferencial,
argumentando com o romantismo, com o amor que evoca. Portanto, aqui, Cléa, que se
caracteriza pela delicadeza dos sentimentos, cativou mais. Por outro lado, vale ressaltar que
Leila e Cléa são muito diferentes, enquanto a primeira é mais liberal, vaidosa a outra se
mostra mais sensível, apegada à natureza. Contudo, Leila também é romântica, o que pode ser
26
Abramovich, Fanny. Cruzando Caminhos. 6. ed. Coleção Sinal Aberto, São Paulo: Ática, 2005.
Ao nos referirmos à obra Cruzando Caminhos, deste ponto em diante, citaremos somente o número da página.
percebido em sua recusa em ir para a cama com Benjamim “sem romantismo”. Prefere
prepara-se para se entregar a Bill, valorizando o carinho, a paixão, o que demonstra
sensibilidade. Para Nelson, ela passa, inclusive, a imagem de “virgem de carteirinha” (pág.
51).
Embora se dividam na escolha, essas preferências dos leitores apontam para o fato de
que os jovens se identificam com a liberdade de Leila, mas valorizam o romantismo de Cléa,
também presente em Leila que, embora não comentado, impossível não ser notado durante a
leitura. Resumindo, são românticos, sentem-se atraídos por atitudes envolventes, o que é
demonstrado, também, na opção que fazem pela poesia, no tempo que dispensam ao namoro,
à conversa, conforme respostas ao questionário 01. As opções por Nelson também
demonstram isso. Esta personagem é a preferida de dois leitores, que argumentam
L03: “coragem e determinação.”
L06: “sempre de bem com a vida, um alto astral incomparável.”
Os argumentos dos leitores que escolheram Nelson se distanciam das observações
feitas pelos leitores que elegeram Cléa e Leila. Aqui, as atitudes da personagem diante de
fatos importantes chamaram mais a atenção, em detrimento da aparência. Contudo, fica claro
que a caracterização das personagens e de suas ações contribuiu para as escolhas,
evidenciando um bom nível de leitura. Ao nos referimos à sétima questão, retomaremos este
item com outros comentários.
Ao perguntar-lhes sobre qual personagem menos gostaram, questão quatro, também
houve uma grande divisão entre os leitores, caracterizando o que a autora de Cruzando
caminhos, Fanny Abramovich, chamou de “Questão de olho”. Três leitores não gostaram de
Leila e fizeram comentários diversos:
L01: “Tem o tipo menina oferecida e só pensa em si mesma e que vê a vida só como
diversão, acha que tudo tem que ser como ela quer.”
L03: “Confunde curtição com ser vulgar.”
L06: “Para ela tudo dava certo. Sem se sacrificar. Nunca acontecia nada errado.”
Sem avaliar o verdadeiro ou o falso na personalidade de Leila, mas olhando pelos
olhos dos leitores, percebemos a preocupação com o certo e o errado, construída com a
caracterização de Leila. Neste texto literário, os leitores tiveram a oportunidade de verificar
sentimentos e atitudes que a sociedade reprova, condena, discurso sempre presente em suas
vidas, inclusive, na escola da qual fazem parte. Reproduzir esse discurso pode ter sido uma
maneira de reforçar o vivenciado o tempo todo e que precisa ser combatido, como o sexo
antes do casamento, situação que Leila vive sem constrangimentos, desde que satisfeitas as
suas exigências, que envolvem carinho e respeito. Vale salientar algumas particularidades
desses leitores. O leitor 01 é mais velho, tem 18 anos e, assim, um pouco mais amadurecido.
O leitor 03 apresenta esta maturidade na maioria de suas respostas, atribuindo essa
característica às histórias reais que ouviu quando criança. O leitor 06 registrou estar
trabalhando, o que evidencia maior responsabilidade com os atos e, talvez, por isso tenha
observado o ponto negativo desta, para ele, vulgaridade. Contudo, até mesmo ao rejeitar
Leila, os leitores evidenciam a valorização ao respeito.
A rejeição a Nelson, feita por dois dos leitores, também surpreendeu. Como essa
personagem acaba centralizando o ponto de maior questionamento da obra, que seria o
suicídio do menino alcoólatra, pensávamos que Nelson seria, por unanimidade, eleita a
personagem preferida da obra: não foi. Os leitores também observaram pontos negativos na
personagem:
L02: “Não aproveitou o final de semana. Deixava o irmão se aproveitar dele. Criava
uma imagem que não era a dele.”
L07: “Ele queria ser melhor que os outros.”
Talvez as atitudes mais amadurecidas de Nelson o distanciaram da visão de jovem que
a obra parecia transparecer: feliz, livre, capaz de fazer o que queria, mas responsável,
altruísta. Externando opiniões e/ou sendo sempre cauteloso, deixou no leitor 07 a idéia de que
ele era falso. Durante a análise, tendemos a associar essa atitude do leitor a uma atitude de
descaso com o outro, com o olhar para suas necessidades. Contudo, nossa leitura não se
reforçou, porque, além de ter sido rejeitado apenas por dois leitores, a atitude de Nelson de
salvar o menino que se afogava foi bastante apreciada pelos leitores, demonstrando que eles
perceberam a coragem e a disponibilidade de Nelson para a solidariedade, conforme
observaremos em questões adjacentes.
Cléa foi rejeitada pelo leitor 04. Preferiu Leila, personagem mais aventureira, e com a
qual se identificou melhor:
L04: “É muito boba, inocente e sem graça, não sabe se divertir.”
David, que não havia ainda aparecido nas impressões de leituras dos jovens, surge
aqui rejeitado pelo leitor 08:
27
L08: “Ele se achava feio, sem graça”
Observamos aqui a preocupação com a aparência. Ser feio ou não ser compatível com
o padrão de beleza estabelecido pela sociedade causa grande incomodo aos jovens. Por outro
lado, a preocupação exagerada com isso, como fez David, traz à tona as próprias angústias do
leitor que, muitas vezes, sente- se incluído no grupo dos diferentes e sofre com isso. Contudo,
David consegue, pelo menos temporariamente, conquistar a mulher desejada, embora nenhum
leitor tenha comentado esse fato por este ângulo. Importante ressaltar que, mesmo de famílias
humildes, os leitores participantes desta pesquisa têm boa aparência, enquadram-se nos
padrões mínimos da moda e estão constantemente preocupados com o visual, seja
representado pelo que vestem, seja pela forma física que ostentam. O Questionário
Socioeconômico e Cultural demonstrou que não há preocupação em acumular conhecimento,
nem grandes expectativas com relação a um futuro financeiramente promissor, uma vez que
não externam apego ao estudo, à pesquisa, nem realçam a necessidade do trabalho. A
preocupação comum a essa faixa etária é a liberdade e o total aproveitamento das situações
momentâneas. Na leitura da obra, os pesquisados demonstraram isso quando deixam de
realçar o fato de as personagens serem de classe mais avantajada financeiramente, pois
podiam freqüentar barzinhos na praia, a família de Nelson tinha uma lancha e outros pontos
que assinalam um melhor poder aquisitivo. Chamaram mais a atenção a aparência física e as
atitudes diante dos fatos vivenciados.
O leitor 09 alega ter gostado de todas as personagens e não faz comentários.
A questão cinco interrogou qual situação vivida pelas personagens considerou mais
importante. Dos nove leitores sujeitos da pesquisa, quatro escolheram o momento em que o
menino morreu afogado, apontando Nelson como a personagem que viveu a situação.
L02: “Quando um deles teve que salvar um menino que se afogava, Infelizmente o
menino morreu.”
27
Lembramos que o leitor 08 não respondeu ao Questionário Socioeconômico e Cultural, mas respondeu ao
Questionário de Impressões de Leitura, discutido neste tópico.
L03: “Pular em alto mar para realizar um salvamento de alguém que lá havia caído.”
L06: “A de Nelson, quando ele tentou salvar a vida de um garoto no mar.”
L09: “A morte de um menino que morreu afogado.”
Na questão seis, a tarefa foi comentar a atitude das personagens diante do fato dado
como resposta à questão anterior. O leitor 02 escreveu: “Todos ficaram espantados, com
medo que acontecesse algo mais sério com o menino que se afogava. Ficaram admirados com
a coragem de Nelson, ele foi corajoso de ter pulado no mar agitado.”
Para o leitor 03, a atitude de Nelson significou: “Determinação em 1º lugar. Nelson
dispõe-se totalmente a salvar o garoto. A atitude dele, com certeza, é bem diferente das de
muitos jovens por aí, que estão preocupados só consigo mesmo.”
Ressaltamos que este leitor, no questionário 01, contou ter ouvido, quando criança,
“histórias reais”, explicando que isso o ajudou a “amadurecer rapidamente”. Apesar dos seus
16 anos, possui maturidade para observar e comparar a atitude da personagem com a dos
jovens com quem convive. É a fantasia cumprindo seu papel formador, discutido neste
trabalho por meio da visão de Antonio Candido. Pelas histórias ouvidas, a jovem amadureceu
pontos de vista que permitem questionar e entender melhor a realidade, observando, na
personagem, pontos que a diferenciam da maioria dos jovens.
O leitor 06 também se preocupou com a atmosfera de tristeza que invadiu o local e
observou a grandiosidade do fato. Esta preocupação aparece em seu comentário: “Depois do
afogamento aquela praia ficou vazia e todos saíram de perto, ficaram transtornados, pois não
era um afogamento qualquer, era um suicídio.” Este leitor afirmou, no questionário 01, gostar
de romances, por considerá-los “menos injoativo”. Sua escolha se justifica pela visão ampla
que teve do acontecimento, observando a descrição de fatos em sua amplitude. Também
registrou visitar bibliotecas com freqüência, fatos que o aproximam das peculiaridades do
texto, pois tem mais contato com a leitura.
Ao comentar sua resposta, o leitor 09 aponta que: “A atitude de Nelson foi bastante
responsável e sem medo, pois ele arriscou sua vida para salvar outra.”
Observamos que os leitores que elegeram tal situação ligaram-na diretamente a Nelson
e, ao que tudo indica, por considerá-lo protagonista do acontecimento, uma vez que foi ele
quem entrou no mar para salvar o menino. Apreciaram a atitude corajosa e não pensaram em
demonstração de orgulho pelo ato praticado, ratificando que a recepção da obra, neste ponto,
revela uma admiração por personagens heróis, capazes de se sacrificar pelos outros. Mais uma
vez a caracterização das personagens e a descrição dos fatos foram pontos enriquecedores de
Cruzando caminhos, pois permitiram questionamentos e observações aprofundadas dos fatos.
O leitor 05 também elegeu a morte do menino como situação mais interessante, mas
acrescentou a Nelson o seu irmão Ney como protagonista dessa história:
L05: “Quando eles esbarraram com a morte de um menino da mesma idade que eles.”
Ao comentar esta resposta, considerou-a “[...] muito bem pensada, eles tentaram
ajudar o menino da forma que puderam e infelizmente não adiantou.” Ney pilotou o barco
com grande competência e disponibilidade para ajudar, mas sua participação pouco foi notada
pelos leitores que se identificaram mais com Nelson, o qual interage diretamente com eles,
pela coragem, determinação, responsabilidade, qualidades que parecem passar despercebidas
nos jovens e que chamaram a atenção dos leitores.
O leitor oito enveredou por outro caminho. Elegeu a mesma situação, mas enfocou a
condição da família, citou o garoto embriagado como o vivenciador da situação:
L8: “Achei triste na hora que o garoto bêbado se suicida, difícil para sua família.”
Em seu comentário, lembrou a tristeza de Cléa, além de apontar a participação de
cada um no episódio. A seu modo, atribui a todos igual participação no episódio da morte do
menino: “Cléa, mesmo não conhecendo o garoto deu uma grande vontade de chorar ficou
pensando à noite na praia para tirar as imagens da mente. David não estava presente. Nelson
tentou salvá-lo. Leila também” (L8).
O leitor 01 escolheu uma das situações vividas pela personagem David:
L01: “A mais divertida foi a paixão repentina que o David sentiu pela Joana, uma
mulher bem mais velha que ele.”
A expressão “mais divertida” do leitor 01 abriu um leque de interpretações difíceis de
serem comentadas. Por que “divertida”? Por se tratar de jovens com pouca riqueza vocabular,
talvez tenha aproveitado uma das palavras contida na questão, sem atentar para o significado
que teria em sua resposta. Por outro lado, o comentário feito para o próximo item, questão
sete, abre novas possibilidades: “David ficou um pouco sem graça em chegar e dizer a Joana
que a acha uma mulher muito bonita. Pelo fato dele ser um jovem de dezessete anos e ela uma
mulher de aproximadamente 25 ou 26 anos.”
O preconceito existe entre os jovens. Além disso, conceitos de velho e novo não estão
muito claros para eles. O envolvimento com uma pessoa mais velha é sempre motivo de
admiração, pois não entendem bem esse interesse que mais parece materno. Salientamos que
o texto deixa claro que a personagem Joana era uma mulher cheia de qualidades, mas o
entusiasmo de David se deu, principalmente, devido à experiência de Joana. O leitor não
comentou a sensualidade dos acontecimentos minuciosamente descritos na obra (pág. 56).
O leitor 07 não se ateve a uma situação. Achou interessante a maneira como Cléa e
Melissa se divertiram: “Elas souberam se divertir” e seu comentário também se restringiu
somente à situação: “Elas souberam aproveitar suas férias, se divertindo.”
O leitor 04 preferiu a situação que mostra Leila se envolvendo com Bill:
L04: “Hora em que Leila conheceu Bill. Gostou e logo se entregou.”
Estamos acostumados com essa aparente liberdade dos jovens, mas o enfoque desse
leitor evidenciou outro lado da moeda. Se tal situação chamou a atenção, parece que, de
alguma forma, causou estranhamento. Para comentar sua opção, citou parte do texto: “Ela
sentiu medo no começo, não sabia se era isso mesmo que devia fazer, mas se entregou gostou,
delirou, viajou, foi extasiante. foi show.” Este leitor, na questão três, citou Leila como a
personagem que mais gostou, exatamente por ser aventureira.
Na idade em que se encontram os sujeitos da pesquisa, a sensualidade está bastante
aguçada. A descrição do momento em que Leila se entrega a Bill é bastante detalhada, com a
apresentação da cena de forma envolvente (pág. 48). O mesmo acontece com o
relacionamento entre David e Joana (pág. 56, 69). A princípio, pensávamos que a
sensualidade fosse atrair um número maior de leitores. Se isso aconteceu, alguns preferiram
não externar suas opiniões. O leitor 01 selecionou este fato, discutido juntamente com a
questão cinco.
A questão sete teve o intuito de observar quais características da personagem
ajudaram no enfrentamento da situação citada na questão anterior. Os leitores que escolheram
a atitude de Nelson, vivendo a situação em que tenta salvar um menino de afogamento,
leitores 02, 03, 05, 06 e 09, descreveram suas opiniões de forma bastante homogênea,
ressaltando a coragem e a responsabilidade.
L02: “Além de saber nadar, teve coragem e solidariedade, pois ajudou alguém que não
conhecia.”
L03: “Principalmente o amor pela vida do próximo, é, então, quando demonstra
coragem e determina-se a tentar salvá-lo.”
L05: “Eu acho que foi atrevimento de Nelson pois se ele não fosse atrevido e sim
medroso não tinha pulado do barco para salvar o menino.”
L06: “Ele foi autoconfiante o suficiente para tentar salvar a vida uma pessoa, mesmo
sendo inutilmente.”
L09: “Coragem e responsabilidade.”
Conforme dito anteriormente, a exemplo dos comentários registrados para a questão
cinco, coragem e responsabilidade foram as características mais marcantes da personagem. A
sociedade tem apostado na ausência dessas marcas nos jovens como pontos-chave para
justificar a rebeldia deles. Mas esta pesquisa, repetidas vezes, comprovou que a literatura
cumpre o papel de levar o adolescente a questionar as atitudes, separando o joio do trigo e
percebendo o valor do amor ao próximo, do respeito, da necessidade de se sacrificar pelos
outros e fazer disso um prazer. Nelson sentiu-se frustrado por não conseguir salvar o garoto e
isso deixa transparecer que seu sacrifício teria sido prazeroso se tivesse conseguido fazer o
salvamento.
O leitor 08 apresentou uma resposta um pouco confusa.
L08: “Ao saber que ele não se afogou porque não sabia nadar, mas sim que se
suicidou, deixando claro com uma carta aos pais.”
Embora confusa, sua resposta tende a enfocar o menino como alguém corajoso
também, pois, de certa forma, foi audacioso em sua empreitada, deixando uma carta aos pais
contando sobre o que iria fazer. Vale aqui o comentário do parágrafo anterior.
O leitor 01, que elegeu a situação que envolve David conquistando Joana, considerou:
L01: “O fato dele ser um garoto educado atencioso e inteligente.”
O leitor quatro, elegendo o envolvimento de Leila com Bill, comenta:
L04: “Seu jeito de mulher experiente, certa de tudo o que faz contribuiu para que tudo
na relação saísse como gostaria.” Para este leitor, “Ela é superinteressante.”
O leitor 09, que apenas citou o fato de Melissa e Cléa terem se divertido muito por
saberem aproveitar as férias, apontou a simpatia das garotas como característica marcante nas
personagens e que contribuiu para que o final de semana fosse bem aproveitado.
As respostas dos leitores 01, 04 e 09 surpreenderam, pois as atitudes dos jovens,
despojados, despreocupados com a polidez na linguagem, deixam a impressão de que seus
valores são outros, ou seja, que eles estão ligados mais à moda, ao visual. Contudo, a visão
que tiveram das personagens descortina a preocupação com outros valores, como educação,
inteligência, experiência, responsabilidade, situações passíveis de serem despertadas pela obra
de Fanny Abramovich. Por meio do texto ficcional, não foi difícil para os leitores, mesmo
muito jovens e pouco experientes, perceber a importância dessas características, as quais não
são visivelmente valorizadas. Ao observá-los diante do olhar para as personagens de ficção,
deparamos com outros jovens, questionadores, participativos, destemidos, no sentido de não
se intimidar em apostar nas escolhas que fazem. Podemos perceber, assim, como a literatura
pode, gratuitamente, suscitar idéias, construir juízos de valor.
Ao indagarmos se as atitudes das personagens contribuíram para a compreensão de
situações e acontecimentos de suas vidas, questão oito, pensávamos que os leitores fossem
levar em conta, especificamente, as atitudes abordadas nas questões cinco e seis, mas isso não
aconteceu com todos os leitores. Alguns observaram as atitudes das personagens em toda a
obra ou em situações específicas, mas ainda não comentadas em suas respostas. E se
dividiram: cinco responderam que sim; um se omitiu
28
e três responderam que não. Suas
respostas são bastante diferenciadas.
L01: “Sim. Um exemplo disso é a Leila que queria ser mais que todo o mundo, e na
verdade não era nada. Só usada pelos homens.”
Este leitor havia citado o envolvimento de David com Joana e, nesta questão, voltou-
se para Leila, portanto, não abandonou a idéia anterior de observar, avaliar as atitudes certas
ou erradas das personagens.
O leitor 03 respondeu:
L03: “Sim. Ajuda, por exemplo, se você estiver passando por situações como Leila
que se achava “a gostosa” e foi apenas usada. É hora de mudar.”
28
O leitor seis entregou o restante do questionário em branco. Portanto, não será citado na discussão das
questões seguintes.
Este leitor havia citado a atitude de Nelson tentando salvar o menino do afogamento,
mas a atitude de Leila também chamou sua atenção. Observamos, também neste leitor, a
preocupação com a formação do indivíduo. Pensou na ingenuidade de Leila que, em sua
opinião, não se tratava de alguém aproveitando a vida, mas sendo aproveitada por ela. A
maturidade desse leitor é percebida em muitos pontos de seu relato.
Já o leitor 05, referindo-se à tentativa de salvamento feita por Nelson, afirmou:
L05: “Sim. Eu acho que isso foi como uma lição, pois ele deixou sua vida para salvar
outro dá pra se pensar bastante quando enfrentamos uma situação como essa.”
O leitor 08, por sua vez, escreveu:
L08: “Sim. como levar o fora e bola pra frente e o jogo continua ou seja a vida
continua.”
Este leitor, na questão anterior, ainda demonstrava uma visão da situação como um
todo, focando, neste momento, a atitude central de Leila.
O leitor 09 respondeu:
L09: “Sim. Vai me ajudar, pois vou ter mais responsabilidade se chegar a acontecer
comigo.”
Os leitores 05 e 09 buscaram nas personagens comportamentos nos quais pudessem se
espelhar, na tentativa de modificar atitudes em situações semelhantes às vividas pelas
personagens. A forma de identificação, os questionamentos com os quais analisam os fatos
confirmam uma aproximação com a obra, em uma visão que se modifica de leitor para leitor.
Os leitores 02 e 07 não fizeram comentários significativos:
L02: “Não. Porque as minhas atitudes são diferentes das dele.”
L07: “Não. Cada um tem seu jeito de entender os acontecimentos da vida.”
A questão nove interrogou: Em sua opinião, a visão da personagem é a única possível?
Comente? Os leitores 03, 05, 08 e 09 responderam que sim e registraram seus argumentos:
L03: “Sim, pois ao ver uma pessoa se debatendo em alto mar, o que pensamos
primeiramente é que ela está se afogando e não se suicidando.”
L05: “Sim. Pois eu teria tentado teria feito o máximo que eu pudesse.”
L08: “Sim, pelo fato que mesmo não conhecendo a pessoa você acaba ficando triste;
em meio à praia.”
L09: Sim, pois ele é corajoso.”
Dos argumentos registrados pelo leitor 03, pudemos fazer duas leituras. A princípio,
pensamos que ele está se referindo à visão que seria possível ter do acontecimento, da cena
do afogamento, e não da atitude diante do fato. Por este ângulo, em sua opinião, não há como
ter outra visão do fato, pois alguém se debatendo no mar só poderia ser um afogamento. Por
outro lado, ele pode estar se referindo à atitude de Nelson e que só houve a tentativa de
salvamento porque ele pensou que o menino estava se afogando; se percebesse tratar-se de um
suicídio, não tentaria o resgate, pois respeitaria o direito do menino ao livre arbítrio. Contudo,
a fragilidade dessa segunda interpretação se torna visível à medida que não percebemos
progressão neste argumento e ele não aparece em respostas de outros sujeitos da pesquisa.
O leitor 05, por sua vez, comentando a atitude de Nelson, avalizou sua visão dos fatos,
considerando que qualquer pessoa tentaria salvar o menino, pois, diante de um afogamento, a
tentativa de salvar a vítima é a única forma de ver a situação. Ele próprio faria o mesmo.
O leitor 08 abordou o suicídio na questão cinco, mas apontando o suicida como
protagonista da situação. Nesta questão, parece estar falando da tristeza de Cléa pela morte do
menino, acentuando a dor da perda, mesmo que seja de um desconhecido. A visão que este
leitor tem da morte mostrou-se mais ampla, pois observou os sentimentos do outro, do que
fica e avalia o acontecimento. Para ele, a tristeza pela morte é uma reação comum a todas as
pessoas, não há como ser diferente.
O leitor 09, também se referindo à atitude de Nelson, considera a visão da personagem
a única possível diante da situação, mesmo porque a personagem se caracteriza pela coragem.
Seria, então, covardia não se arriscar.
Os leitores 01, 02, 04 e 07 responderam que não, ou seja, afirmam não ser a visão da
personagem diante da situação a única possível.
L01: “Não, pois ele tinha muito complexo de ser um jovem magro e desajeitado, eu
acho que as pessoas devem gostar de nós como somos.”
L02: “Não, pois ainda existem pessoas solidárias.”
L04: “Não. Ela poderia pegar ele de jeito e começar, mas ela foi se entregando aos
poucos.”
L07: “Não, depende da situação.
O leitor 01 percebeu que David sofreu por pensar que não conseguiu conquistar
definitivamente Joana devido ao fato de não ser um modelo de beleza. Na verdade, outras
diferenças separavam o casal, como a diferença de idade, de modos de vida, mas o leitor não
comentou isso. Ele havia citado o fato vivido por David e o tinha caracterizado como
educado, atencioso e inteligente. Sua resposta a esta questão lembra a descrição que o
narrador faz da personagem: “No caminho se envergonhou da magreza e brancura, de seu
jeito desajeitado, de suas pernas e braços compridos e desengonçados.” (pág.16).
Observamos que os adjetivos abstratos se contrapõem às expressões concretas,
utilizados pela autora para caracterizar David e que acabam prevalecendo, fazendo com que o
leitor julgue a personagem como diferente, inferior, mesmo porque os adjetivos que envolvem
a moral e os bom costumes demoram muito a serem observados pelos jovens, cuja observação
tende mais rapidamente ao concreto, ao visível. Para este leitor, o conceito de belo e de feio
não é igual para todos e as pessoas devem saber respeitar as diferenças.
O leitor 02 respondeu negativamente à questão, ou seja, para ele, há outras formas de
ver a situação. Sua resposta revela dificuldade para interpretar a questão. Ao incluir em seu
argumento a palavra “ainda”, o leitor abre a possibilidade de pensarmos que, para ele, a
atitude de Nelson foi solidária, pois somente pessoas solidárias se arriscam pelo outros, mas
nem todas as pessoas têm essa característica.
Quanto ao leitor 04, referindo-se à atitude de Leila ao se entregar a Bill, evidenciou
haver outra forma de entregar-se ao ato, diretamente, dispensando o romantismo que a
personagem valorizou. Para este leitor, essa forma de agir pode ser diferente em outras
pessoas.
Não se referindo a nenhuma situação específica, o leitor 07 respondeu que não é
possível ter outra visão da situação. Ao acrescentar “depende da situação”, revelou não ter
entendido o enunciado. Também não aprofundou seus comentários, não sendo possível, com
base nestes dados, comentar sua resposta.
Na questão dez, foi perguntado aos leitores se teriam a mesma visão dos fatos e qual
seria a forma de ver o problema. As respostas foram variadas.
L01: “Não, o fato de ser mais novo que ela não há problema algum nisso.”
L02: “Provavelmente não, pois para pular no mar precisa ter coragem e saber nadar.”
L03: “Com certeza, como já disse parecia que a pessoa estava se afogando por um
acidente e não, um suicídio.”
L05: Sim, pois eu teria tentando, teria feito o que eu pudesse.”
L09: “Não, pois eu não teria a mesma coragem.”
Referindo a David e seu envolvimento com Joana, o leitor 01 enfocou Joana como
tendo tomado a atitude de deixar o rapaz porque ele era mais novo que ela. Afirma não
concordar com Joana e defende, portanto, o amor entre jovens de idades diferentes.
Os leitores 02, 03, 05 e 09 haviam escolhido a tentativa de salvamento que Nelson fez
como situação que mais chamou a atenção, mas, ao comparar as visões dos fatos, os leitores
se dividiram e os argumentos também se diversificam. Somente o leitor 05 afirma,
categoricamente, que teria a mesma visão dos fatos. O leitor 03 continua a realçar
comentários anteriores, deixando perceber que a tentativa de salvamento não deveria ser feita
caso se tratasse de um suicídio. Registrando outra visão dos fatos, temos os leitores 02 e 09,
cujas justificativas se assemelham, embora com algumas particularidades. Ao que tudo indica,
o leitor 02 não sabe nadar e, talvez, por isso, demonstre a dificuldade em ter coragem, mas é
sincero, assume a falta de coragem para ter a mesma atitude da personagem que focou,
demonstrando admiração por ela, mesmo não sendo capaz de imitá-la.
Outras respostas mostram a identificação entre personagem e leitor:
L04: “Claro que veria do mesmo jeito, afinal se me identifico com ela, também iria
devagar.”
O leitor 04 está falando do envolvimento sexual entre Leila e Bill e também não
avançou em possibilidades.
L07: “Não, entendendo o problema.”
Este leitor se perdeu no questionamento. Impossível determinar de que problema ele
está falando. Se considerarmos que citou, na questão 05, a maneira com que Cléa e Melissa se
divertiram, o leitor não teria um problema para entender. Talvez tenha ido além, expondo sua
opinião diante das dificuldades da vida.
L08: “Teria a mesma visão. O problema é que o rapaz da mesma idade se mata porque
não conta com ninguém.”
O leitor 08 esboça uma tentativa de interpretação no sentido de questionar nossas
atitudes diante dos fatos polêmicos que envolvem a humanidade. Deixa transparecer, nas
entrelinhas, uma preocupação com essas atitudes, mas ela não progride, pelo menos não na
escrita do leitor. Foi o único leitor que observou a longa descrição da história que envolvia o
menino suicida, feita pelo narrador no capítulo em que David conta o que sabe sobre aquele
jovem: “Alguém lembrou que tudo isso era sinal duma baita infelicidade, só que ninguém
nunca dera bola. [...] Uma garota disse que tudo isso só demonstrava como queria chamar a
atenção.” (pág. 61).
Ao serem questionados sobre a identificação da época em que a narrativa se passa,
questão onze, os leitores 02, 05, 07 e 09 informaram o ano de 1994, data da publicação do
livro que leram, sem maiores explicações. Essa atitude é comum entre os estudantes,
principalmente devido às análises de livros literários propostas pela escola, as quais
consideram o tempo, o espaço como pontos estanques, marcados por determinantes
específicos como um número e um nome de cidade. Nesse sentido, o local e data da edição da
obra são os dados mais rápidos de serem visualizados.
29
O leitor 01 informou simplesmente: “Em época atual”. A ausência de comentários
impede qualquer comentário sobre as associações que fez entre os elementos da obra e a
atualidade.
Os leitores 03, 04 e 08 argumentaram suas respostas:
L03: Época atual porque esses jovens possuem todas as características encontradas nos
jovens de hoje em dia.
L04: O jeito que eles falam acho que se passa mais ou menos pelo ano de 1990.
L08: Acho que na época 2000 mais ou menos que os romances estão mais liberados
entre os jovens.
29
Devido à dificuldade de encontrar muitos volumes da mesma edição, os sujeitos da pesquisa leram edições
diferentes. O pesquisador leu a edição do ano de 2005, devidamente citada na lista de Referências Bibliográficas
deste trabalho.
Sobre as respostas, é interessante observar a associação que alguns sujeitos fizeram
entre as características das personagens e os jovens da realidade moderna. Fanny
Abramovich, conforme comentado anteriormente, para escrever Cruzando caminhos,
pesquisou atitudes dos jovens, seus costumes, visões de mundo. Pelas respostas de nossos
leitores, a autora conseguiu atingir o objetivo de aproximar o máximo possível a obra de seu
público alvo e da realidade.
Apenas o acréscimo de um comentário sobre o leitor 08 no tocante à palavra romance.
Ele está se referindo ao relacionamento entre pessoas de sexo diferente, o amor carnal e não
ao gênero literário romance. Resposta reconhecidamente interessante, pois o leitor observou
os comportamentos das personagens, os acontecimentos e fez um paralelo entre os elementos
da obra e o momento histórico. Ressaltamos que, no segundo ano do Ensino Médio, série em
que estão matriculados todos os sujeitos da pesquisa, o programa do ensino de literatura é o
Movimento Romântico.
A questão doze solicita ao leitor que “conte com suas palavras o que se passa no
livro”. Com exceção dos leitores 03 e 08, todos ficaram bastante presos ao resumo que o livro
traz na contracapa. Por isso, decidimos transcrever apenas a resposta desses leitores.
L03: “Joana resolveu curtir um final de semana na praia todos querem se divertir,
curtir, zoar. No entanto, ao chegar lá, deparam-se com problemas e acontecimentos que são
vistos de acordo com o ponto de vista de cada um.”
Nesse recontar, ficou claro um misto entre o resumo apresentado pelo livro e uma
personagem que provavelmente chamou a atenção do leitor, embora ela não tenha sido citada
em nenhuma de suas respostas.
O leitor 08 escreveu: “Como se fosse uma novela, quatro jovens no mesmo lugar onde
eles se conhecem a ponto de serem amigos, mas passam pelas mesmas situações.”
Os acontecimentos vistos como tendo núcleos diferentes na narrativa, aproximaram a
obra da novela de televisão, o que remete ao registro no Questionário Socioeconômico e
Cultural de que assistem à televisão com freqüência. Não é possível saber se há o
entendimento claro da diferença entre romance e novela. Acreditamos que não.
Enfim, todas as respostas apresentam um pouco dessa mistura entre o resumo do livro
e as palavras do leitor. Os jovens têm muita dificuldade para fazer resumos e isso constatamos
diariamente na prática docente. Na maioria das vezes, copiam partes do texto e, por isso, as
respostas não surpreenderem, mas todos demonstraram ter entendido o enredo e alguns
esboçam um nível de interpretação positivo.
A última questão solicita aos entrevistados a opinião sobre o livro. Os leitores 01, 03,
04, 05 e 08 afirmam terem gostado do livro e argumentam:
L01: “É um livro que não tem ficção, pois tudo que conta é realmente a realidade de
muitos jovens. [...] Eu gostei [...]”
L03: “De cada personagem dá para tirar uma lição, aprender alguma coisa de verdade,
com o jeito de reagir das personagens. [...] E, é isso. O livro nos dá a oportunidade de
aprender com as situações vividas por cada um deles.”
L04: “Gostei, achei interessante as situações que eles e elas vivem. Cada emoção eu
também sentia. Não tem muito romance, não tem muita ação é um livro bom e gostoso de ler.
L08: “Na minha opinião este livro conta algo que os adolescentes passam, como
paquera, férias sem pai e mãe, situações que acontece, é marcada por toda a vida. E gostei
bem divertido dá pra sentir na pele os fatos.”
Os argumentos apresentados pelos leitores para terem gostado da obra estão ligados,
principalmente, ao fato de as personagens aproximarem-se da realidade deles. Contudo,
lembrando os resultados obtidos com o questionário 01, vale ressaltar que os acontecimentos
nos quais as personagens do livro se envolvem não são especificamente do cotidiano dos
sujeitos da pesquisa, mas, ao mesmo tempo, fazem parte do universo de expectativa de vida
deles, embora pouco façam para atingir tais expectativas. Daí a identificação com a narrativa
e sua aproximação com o real. Além disso, os programas de televisão, passatempo favorito de
muitos deles, constantemente, abordam situações vividas pela classe média e alta. São jovens
sempre envolvidos em festas, a minoria trabalha para se manter, passam férias longe de casa e
não há tabu com relação ao sexo, à paquera, aos envolvimentos.
Os leitores 02 e 09 afirmam não terem gostado e justificam:
L02: “Particularmente não gostei muito. É um bom livro mas acho que precisava ter
mais simplicidade na história, pois a autora “elogiava” demais as personagens.”
Nesta resposta, é interessante observar a palavra “elogiava” entre aspas, o que leva a
pensar em uma ironia por parte do leitor, na tentativa de criticar alguma personagem, atitude
que não se concretiza. O texto de Fanny Abramovich é surpreendentemente descritivo, o que
talvez não tenha agradado a este leitor que, no Questionário Socioeconômico e Cultural, ao
referir sobre seu passatempo preferido, apontou a leitura em 6º lugar, ou seja, tem pouco
hábito de ler literatura para entretenimento. Ele lê, em primeiro lugar, a bíblia. Pensou, talvez,
que se não houvesse tanta descrição, a leitura fosse mais rápida.
L09: “Não gostei muito do livro, pois não é uma história que me interessa ver o final
do livro.”
A resposta parcial do leitor 09 impede um comentário aprofundado sobre sua opinião.
Diferentemente do leitor 02, este leitor havia apresentado até aqui respostas que caracterizam
um bom envolvimento com a obra e, por isso, ficamos surpresos com sua resposta.
Comentando as impressões de leitura registradas pelos leitores, não percebemos
preocupação em estabelecer pontos estanques da obra, como começo, meio e fim, conforme
os resultados de leituras que estamos acostumados a perceber nos alunos. Mas, em muitos
pontos, percebemos que há interesse em tirar alguma lição dos acontecimentos, o que mostra
identificação com as personagens e, consequentemente, atenção às atitudes questionáveis ou
admiráveis.
Cruzando Caminhos, conforme comentado acima, possui um discurso extremamente
descritivo. Personagens, espaços, atitudes e acontecimentos são minuciosamente descritos
pelo narrador, o qual constrói as caracterizações necessárias para a fruição da narrativa,
conforme podemos observar, por exemplo, durante a descrição de um dos momentos de
entrega sexual entre Joana e David:
“Com os olhos fechados pedia mais” (pág. 69).
Ou na descrição da casa onde acontecia o velório do menino:
“Olharam pela casa. Numa mesa, um porta-retratos. Nele, uma foto dum garoto. David
se aproximou curioso. Olhou a foto, emudeceu” (pág. 60).
Com estas duas citações, queremos exemplificar a forma como são construídas as
imagens pelo narrador e reconstruídas pelo leitor, por meio das associações que faz durante a
leitura. Com essas associações, as personagens adquirem vida e os leitores têm a oportunidade
de vivenciar os acontecimentos, aproximar-se deles, conforme foi possível verificar nas
impressões de leitura registradas pelos sujeitos da pesquisa.
Lembramos que nossos leitores não tiveram nenhuma forma de orientação para ler a
obra. Também não foram obrigados a participar da pesquisa, não estavam sendo avaliados e
não sofreram qualquer influência do pesquisador para o registro dos dados. O próprio resumo
da obra apresentado demonstrou essa liberdade e os leitores expuseram os acontecimentos,
sem a preocupação de estabelecer começo, meio e fim da obra, elementos facilmente
percebidas nos trabalhos escolares.
Finalizando este capítulo, ressaltamos o bom desempenho dos leitores, tanto na
compreensão dos enunciados, quanto na capacidade de argumentação de suas respostas. Não
são leitores formados, mas foram capazes de se apropriar dos valores estéticos da obra.
Estabelecendo ligações com seus sentimentos, suas vidas, criticaram, comentaram. Cumprem,
portanto, suas funções leitoras, considerando idade e nível socioeconômico-cultural.
6 Considerações finais
[...] se a própria existência cotidiana
lhe parecer pobre, não a acuse.
Acuse a si mesmo, diga, consigo
que não é bastante poeta
para extrair as suas riquezas.
Rainer Maria Rilke
30
Ao chegar ao final deste trabalho, seria pretensioso falar em conclusões, mesmo
porque, na literatura, podem emergir situações sempre passíveis de novas e impressionantes
possibilidades. Contudo, algumas considerações podem ser retomadas, pontuando
constatações de grande importância para este estudo.
Para a fundamentação teórica, propusemos uma leitura das obras de críticos que se
dedicaram aos estudos literários, especificamente, teóricos que, em suas pesquisas,
construíram conceitos de literatura, leitura e leitor.
Antonio Candido, ao abordar os problemas decorrentes das visões sobre a criação
literária, postula que o homem civilizado está acostumado a ver o mundo pela visão da
maioria que detém o poder, impondo um padrão preestabelecido como ideal: a sociedade é do
adulto, do homem branco, dos perfeitos fisicamente, dos inteligentes. Criticando esta visão
maniqueísta, aponta que, no homem primitivo, a fantasia era maior que a capacidade
generalizadora de cunho lógico. Contudo, não é mais possível questionar: a sociedade é plural
e na literatura é possível essa aproximação entre a lógica e a fantasia, necessária para que haja
equilíbrio do caos que envolve a mente humana e, consequentemente, a sociedade. Aponta
que a palavra-chave em literatura é transfiguração, ou seja, literatura é a transfiguração do
real, a transformação simbólica da realidade, conservando a gratuidade como elemento
essencial.
Terry Eagleton reflete sobre o termo literatura e, embora discuta vários conceitos, não
o define claramente e acredita que a definição do que é ou não literatura é tarefa do leitor.
Estabelece seus próprios juízos de valor, conforme o estatuto do indivíduo. Para o autor, não
há uma essência da literatura; o caráter literário de um texto é definido pela prática da leitura.
30
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta, São Paulo: Globo, 1989, p. 23.
Antonie Compagnon, a exemplo de Eagleton, também ressalta a dificuldade de
conceituar literatura, lembrando tratar-se de um termo que passou a ser discutido muito
recentemente, no século XIX, e, por isso, ainda necessita de amadurecimento. Contudo,
chama a atenção para as contradições que têm surgido entre o ponto de vista histórico (os
documentos) e o lingüístico (arte da linguagem). Na verdade, os termos não são excludentes.
O que caracteriza um texto é a visão da sociedade que é responsável pela criação e utilização
das obras e, para isso, o aspecto histórico e lingüístico sã importantes.
Candido também discute a literatura sob o enfoque da estrutura e da função, apontando
para a necessidade de pensarmos os dois enfoques e, assim, permitir uma visão do texto em
sua totalidade, sem abolir o homem, conforme acontece com a visão apenas estrutural. É
através das correlações entre os elementos do texto e o social que se estabelece a função da
obra.
Ao discutir a função da literatura, Candido assevera que o homem possui necessidade
nata de fantasia, necessidade de desvencilhar-se do real, por meio de alguma forma de
fabulação, para poder entender a realidade e atuar nela, humanizando-se. Essa necessidade é
um direito incompressível ainda não assegurado a todos. Ao perceber a força humanizadora
da obra literária, destaca três funções para o texto: psicológica, formativa e social. A primeira
diz respeito à necessidade e direito à fantasia; a segunda à sua capacidade de formar opiniões;
a terceira ao seu potencial de expressão e de construção de objetos autônomos.
Sobre a necessidade e o direito à fantasia, Candido focaliza os direitos humanos sob
dois ângulos: a literatura é uma necessidade do homem, cuja satisfação é seu direito; ela pode
ser instrumento consciente de desmascaramento, por focalizar situações de restrição dos
direitos humanos. Contudo, somente a melhor distribuição dos bens garantiria que a literatura
chamada erudita deixasse de ser privilégio de pequenos grupos.
Sobre Sociologia da Leitura, em nossas pesquisas, concluímos que esta disciplina tem
se voltado para as questões que envolvem a leitura em todos os grupos sociais. Propõe que o
foco das discussões esteja voltado para o livro como objeto primeiro da leitura, cujo contato,
desde a mais tenra idade, é condição indispensável para formar leitores.
Pesquisas de Michèle Petit com diversos grupos demonstraram que os mediadores
desempenham papel importante no desenvolvimento do prazer da leitura. Os depoimentos de
participantes de suas pesquisas registram a importância de pequenas atitudes de professores,
bibliotecários, família, no tocante à fruição da leitura.
Quanto à socialização do livro, Fanny Abramovich contribui com, entre outras, a
opinião de que toda criança que teve contato com livros em casa, que ouviu histórias, que teve
convivência com a fabulação infantil tornar-se-á leitora quando adulta. Antonio Candido,
sobre isso, em entrevista à Fanny Abramovich, comentada na sua obra Quem educa quem!
(1985), também comenta sobre a importância das histórias para criança, lembrando a magia,
que envolveu seus tempos de criança, ao redor do pai; ouvindo o que ainda não era capaz de
ler.
Com relação à Teoria da Estética da Recepção, proposta por Hans Robert Jauss, cujos
pressupostos constituem o embasamento para a análise do corpus escolhidos para este estudo,
vimos que ela procura identificar e compreender os caminhos seguidos pelo leitor na recepção
do texto literário. Concebe o processo da leitura, ou melhor, da fruição do texto, como o
resultado da união dos elementos pertencentes ao texto com o horizonte de expectativas do
leitor. A partir dessa concepção, entende a leitura como um processo social, construído a
partir da convivência em sociedade.
Fanny Abramovic possui um conceito de literatura que se aproxima substancialmente
do pensamento de Antonio Candido, mas sem se distanciar da subjetividade de Eagleton e
Compagnon. Para ela, literatura é fantasia, percepção, necessidade, cujos valores estéticos
garantem ao ser humano uma vida prazerosa e humanizada. Mas é, também, construção. Ou
seja, a caracterização de um texto é construída pela visão que cada leitor atribui a ele em
diferentes momentos de sua vida.
A autora teve uma vida totalmente voltada para a educação e grande parte dela
dedicada à arte-educação, ou seja, à educação pela arte. Foi professora desde os 14 anos e,
ainda muito jovem, começou escrevendo crítica para jornais, passando a escrever livros
destinados a educadores, entre eles, um recorde de vendas: Literatura infantil: gostosuras e
bobibes. Viajou pelo mundo discorrendo sobre educação, reforçando sempre que o valor do
aprendizado está em construí-lo sobre os alicerces seguros do prazer, fartamente disponível no
fazer artístico.
Cruzando caminhos, obra literária em foco nesta dissertação, é um dos mais de
quarenta livros de literatura de Fanny Abramovich, escritos a partir do primeiro, Espelho,
espelho meu, em 1988. Uma história envolvente, cujo processo de criação partiu de um
antigo desejo: escrever uma história, permitindo que o leitor, por meio das personagens,
pudesse ver a mesma situação por pontos de vista diferentes, como se estivesse usando uma
câmera. O resultado, a nosso ver, foi uma história cheia de encantos exatamente por isso:
permite a visão dos fatos por vários ângulos e, ainda, perpassados pelo narrador,
multiplicando as possibilidades de interpretação e de identificação.
Para a leitura de Cruzando caminhos e, conseqüentemente, para constituir o grupo de
sujeitos da pesquisa, contatamos vinte e seis jovens. Quatorze deles aceitaram o que muitos
chamaram de “desafio”. Apenas nove entregaram os questionários respondidos, número,
portanto, de sujeitos da pesquisa. A maioria dos jovens que se recusaram apresentou como
argumentação o fato de não terem tempo para a leitura, pois trabalhavam, estudavam à noite e
já estavam com o tempo comprometido com os trabalhos escolares. O fato de não gostar de
ler não constou no rol de justificativas. Os sujeitos da pesquisa registraram aspectos de vida
econômica e social e o resultado da leitura da obra citada em questionários específicos.
Quanto ao gosto por leituras, as respostas às questões que envolvem o fato
demonstram que estes jovens não admitem gostar de ler, mas nenhum deles registrou,
categoricamente, sua aversão à atividade. Acreditamos haver aí uma diluição da resposta. Na
verdade, não há um hábito da leitura, o que impede uma opção mais segura, mas não,
necessariamente, a negação do gosto. Por outro lado, poucos deles tiveram consistentes
mediadores de leitura durante sua vida, caracterizando a falta de estímulos como fato
preponderante para que o gosto pela leitura não seja tão marcante. Portanto, não há
necessariamente um hábito, mas não registramos aversão à leitura, o que demonstra que o
problema de leitura tem na mediação e no acesso ao livro pontos importantes para o aumento
no índice de leitores entre os jovens.
As histórias de leituras dos sujeitos da pesquisa envolvem, no máximo, as histórias
que a minoria informou ter ouvido quando criança. O contato com o texto escrito está ainda
muito preso aos trabalhos escolares que, por sua vez, estão muito enraizados na visão
formalista do ensino de literatura. Dessa forma, os jovens de uma forma geral apresentam
dificuldade na fruição da leitura e na identificação e interação com textos literários. Isso os
afasta dos textos indicados pela escola que, para muitos, é o único local de contato com os
livros, reproduzindo a idéia de que os jovens não gostam de ler.
Contudo, os sujeitos da pesquisa apresentaram uma boa recepção da obra Cruzando
caminhos, externando opiniões capazes de caracterizar argumentativamente um juízo de valor
sobre ela. A maioria deles gostou e nenhum demonstrou, em suas respostas, dificuldades para
compreender o texto. Ao contrário, todos demonstraram relativa proximidade com ele,
contrariando muitas opiniões a respeito do ato de ler e reforçando a opinião de que o jovem
não rejeita a leitura de textos com os quais conseguem se identificar e que possibilitem o
rompimento de seus horizontes de expectativas.
Os sujeitos da pesquisa se identificaram com as personagens, salientando
características como coragem, sensibilidade, desprendimento, liberdade. Cada um a seu
modo, identificou-se com as situações retratadas na obra, sendo capaz de argumentar pontos
de vista, registrando a capacidade de visualizar, na obra literária, a realidade esteticamente
retratada.
Morte e sexo são temas fortemente discutidos na obra, embora eles apareçam diluídos
na visão que cada personagem tem do fato. Exatamente por essa diluição, os sujeitos da
pesquisa foram capazes de enveredar por caminhos diferentes, ou seja, cada um teve a
oportunidade de vivenciar os dramas de cada personagem, admirando ou reprovando suas
atitudes.
A leitura é um processo social, construído pelo sujeito a partir de suas histórias de
leitura, de seu contato com o texto escrito. Desse modo, a dificuldade de fruição do gosto pela
leitura também é um problema social, uma vez que o acesso aos bens indispensáveis ao
homem, nos quais está incluso o direito à fantasia, advém da própria estrutura que envolve a
vida em comunidade.
Os instrumentos escolhidos para abordar os sujeitos desta pesquisa, Questionário
Socioeconômico e Cultural e Questionário de Impressões de Leitura, evidenciaram que estes
jovens gostam da leitura, apenas são mais exigentes do que gostaríamos que fossem. Não
admitem imposições, sentem-se mais à vontade com a leitura de textos que se aproximam de
suas vivências e são capazes de construir opiniões a respeito de assuntos diversos. Cumprem
suas funções leitoras, pois não se distanciaram do texto lido e foram capazes de se identificar
com personagens e comportamentos, posicionando-se diante deles.
Contudo, as limitações são bastante evidentes, marcadas, principalmente, pela falta do
hábito de se aproximar do texto literário, usufruindo do seu potencial de interagir com
pensamento, com a construção do indivíduo. A responsabilidade por essa situação está diluída
em diversos segmentos sociais: a família, a escola, os governantes e a sociedade em geral. A
família, preocupada em subsidiar os filhos e garantir os direitos que as restrições da vida
atribuíram como essenciais, como a comida, a roupa, a moradia, tem esquecido as histórias
para as crianças, os passeios ao mundo do livro, elementos essenciais para a fruição do gosto
literário. A escola, dentro da problemática da sociedade moderna, abarcou atribuições que
extrapolam em muito o preparo dos envolvidos na instituição escolar. Os governantes, alheios
a uma visão de leitura que leva em conta a realidade de nossos estudantes, carentes de
instrumentalização para o desenvolvimento de potencialidades, investem em poucos e frágeis
projetos de leitura, sem resultados passíveis de visualização. Por fim, a sociedade em geral,
representada pela mídia, pelas empresas privadas, pelas associações, que, para preservar o
status quo, mantém diferenças existentes e constrói outras, negando-se a vislumbrar a
construção de um mundo leitor, capaz de atuar de forma, crítica, responsável e humana na
sociedade.
Deste trabalho, muitos pontos positivos podem ser assinalados, mas é essencial
evidenciar que os sujeitos da pesquisa pertencem à classe social baixa, sempre estudaram em
escolas públicas, com poucos recursos, e a maioria nunca teve um livro em casa. Suas
famílias sempre estiveram envolvidas com a busca da satisfação das necessidades básicas e o
passatempo preferido desses jovens envolve atividades muito distantes do solitário contato
com o livro. Mesmo com tantas adversidades, a leitura ocorreu, houve a recepção, interação e
o rompimento de horizontes. Além disso, foi faci
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