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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
FERNANDO CESAR COELHO DA COSTA
A ADOLESCÊNCIA NA MEDICINA:
um olhar antropológico
Niterói
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
FERNANDO CESAR COELHO DA COSTA
A ADOLESCÊNCIA NA MEDICINA:
um olhar antropológico
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Antropologia da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção
do Grau de Doutor.
Vínculos Temáticos
Linha de pesquisa do orientador: Transmissão de Patrimônios Culturais
Projeto do orientador: Um Olhar (e uma ação) sobre o Corpo Adolescente:
um estudo sobre concepções e intervenções da medicina hebiátrica
Niterói
2007
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Banca Examinadora
_______________________________________
Profª. Orientadora Drª. Simoni Lahud Guedes
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________
Profª. Drª. Jaqueline Teresinha Ferreira
Fundação Oswaldo Cruz
_______________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Duarte
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_______________________________________
Profª. Drª. Delma Pessanha Neves
Universidade Federal Fluminense
________________________________________
Prof. Dr. Paulo Carrano
Universidade Federal Fluminense
4
Em memória do médico amador Antônio José Coelho (1911-2006), de
quem tive a sorte de ter sido neto.
5
AGRADECIMENTOS
Em primeiríssimo lugar, a Prof.ª Dr.ª Simoni Lahud Guedes por tudo que fez por mim,
tanto no ensinamento de antropologia quanto de vida, consagrada por uma cuidadosa e
carinhosa orientação.
A Denise pelo amor que continuamos a partilhar... Além da compreensão não apenas nas
horas difíceis dessa tese como também em outras, que (juntos) nos deparamos na vida.
A Carolina que chegará em breve, enchendo nossas vidas de mais felicidade.
Ao queridos amigos Gilda e Ronaldo pelo compartilhar de alegrias e tristezas, além do
incentivo fundamental à realização desse trabalho.
Aos velhos companheiros de angústias e peraltices juvenis, Marcos e Anderson por nunca
terem se ausentados de minha vida por razão de intensa amizade.
Aos colegas Wilson, Darcy (Davi), Genilson e Dilma, pelo apoio e paciência em momentos
finais desta tese.
Ao meu pai Firmiano da Silva Costa pela compreensão e assistência em horas simples e
muito complexas.
Aos meus sogros Nehemias e Delci pela confiança em muitos momentos.
A Profª. Miriam Cléa Conte de Almeida Caíres pela revisão do abstract da presente tese.
Aos professores Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto e Fabíola Rohden pelas valiosas
contribuições no momento de qualificação dessa tese.
Aos professores do PPGA pelos ensinamentos diluídos em graduação, mestrado e
doutorado.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio
financeiro, sem o qual não seria possível a realização deste trabalho.
A Ricardo, que não me indicou caminhos, mas possibilidades...
E, por fim, a todos os profissionais de saúde vistos, lidos ou ouvidos, que me receberam
com paciência e simpatia.
A todos, e não apenas a esses, o meu muito obrigado!...
6
7
RESUMO
A presente tese pretendeu interpretar o olhar dos novos responsáveis pelo saber e
intervenção sobre os corpos dos indivíduos denominados adolescentes em sociedades
contemporâneas os médicos de adolescentes –, como percebem seu objeto de estudo e
atuam em sua intervenção; como polemizam internamente sobre os melhores meios de criar
condições para a existência de uma “adolescência saudável”. Sua premissa é a de que a
instituição médica, bastante eficaz na “cura” de organismos humanos seria tributária do
reconhecimento da maior parte dos indivíduos nas sociedades modernas, trabalhando
também, senão principalmente (ao menos junto aos “adolescentes”), em uma esfera
denominada físico-moral. Operando, através de um conhecimento que modela, consagra ou
repele comportamentos tidos como próprios à sua saúde e idade nas sociedades
contemporâneas, uma forma educativa, frente aos padrões contemporâneos. A medicina
“científica” institucionalizaria, além da possibilidade de “cura” de corpos, um padrão de
comportamento entendido como o mais adequado à vida humana, dentro da faixa etária em
foco; o que pode excluir, por intermédio do convencimento, outros saberes sobre o
organismo humano e tratamento de seus males. Utilizo o olhar antropológico para
demonstrar o aspecto educativo, senão moral, e simbólico da intervenção médica sobre
esses pacientes fundamental, aliás, entre os que sentem, de forma direta ou indireta, o
efeito da modernidade.
Palavras-chave: Antropologia; Medicina do Adolescente; Hebiatria; Adolescentes.
8
ABSTRACT
The present thesis intended to analyse the looking of the new responsible for knowledge an
intervention about the people’s bodies called adolescents in contemporary societies the
physicians of adolescents the way they become aware of their object of study and act in
their intervention; how they polemize inside the better ways of creating conditions for the
existence of a “healthy adolescence”. Its purpose is that medical instituion, too much
efficient in the “cure” of human organisms would contribute for recognition of the larger
part of individuals in modern societies, also working, saving mainly (unless beside
“adolescents”), in a sphere called physical moral. Executing its work throughout
knowledge, which shapes, consecrates or repels behavior, which are characterized as
peculiar to their health and age in contemporary societies, an educative way, in the presence
of contemporary standard. “Scientific” medicine would institutionalize, beyond possibility
of “cure” of bodies, a standard of behavior understood as the most fit for human life, in the
age-bracket in focus; this can exclude, by means of convention, other knowledge about the
human organism and treatment of its illnesses. I use the anthropological eyes to
demonstrate the educative aspect, saving moral and symbolical of medical intervention
about those fundamental patients, otherwise, between the ones who feel, in a direct or
indirect manner, the effect of modernity.
Keywords: Antropology; Medicine of Adolescent; Hebiatrics; Adolescents.
9
SUMÁRIO
Introdução ...............................................................................................................p. 1
Capítulo 1: Sobre Corpos, Educação e Medicina ...................................................p. 7
Capítulo 2: Biológico?!... Psicológico?!... Psicossocial?!.......................................p. 44
Capítulo 3: Como (se) Adolesce um Corpo?...........................................................p. 91
Capítulo 4: Entre Polêmicas: de escolas, de categorias, de mercados.....................p.120
Capítulo 5: Nas Trilhas da Lei.................................................................................p. 152
Considerações Finais ..............................................................................................p.179
Referências...............................................................................................................p. 183
10
Introdução
Nunca é demais começar com poesia.
Divisamos Assim o Adolescente
Mário Faustino
Divisamos assim o adolescente,
A rir, desnudo, em praias impolutas.
Amado por um fauno sem presente
E sem passado, eternas prostitutas
Velam por seu sono. Assim, pendente
O rosto sobre o ombro, pelas grutas
Do tempo o contemplamos, refulgente
Segredo de uma concha sem volutas.
Infância e madureza o cortejavam,
Velhice vigilante o protegia.
E loucos e ladrões acalentavam
Seu sono suave, até que um deus fendia
O céu, buscando arrebatá-lo, enquanto
Durasse ainda aquele breve encanto.
O poema aborda o adolescente
1
pela via da possibilidade de iniciação sexual, dos
conflitos e das incompreensões; como fase transitória e especial da vida. Momento em que
as possibilidades não são maiores do que as dúvidas individuais e o desconhecimento
parcial das regras próprias à vida social. Assim, alguns de nós nos sentimos quando
lembramos dela. E assim parece pensada pelo poeta. Ao menos de acordo com uma
interpretação como essa – que não se pretende literária.
1
Apesar das exceções inevitáveis, como o deparar com palavras estrangeiras, as palavras em itálico
representarão termos que se constituem como categorias de meus entrevistados.
11
A adolescência seria, então, uma “fase da vida” que, pela poesia (tão dúbia quanto a
“fase” que pretende registrar), estaria num meio andar entre a “infância e madureza [que] o
corteja(va)m”... Um período aprendiz, portanto. A despeito de “loucos e ladrões” (que
trazem a possibilidade de “insanidade” e “maus hábitos”), com o privilégio de ser protegido
pelos “mais velhos”; aqueles que conhecem o “melhor” percurso, por uma sabedoria que
afasta o adolescente do “caminho errado”, de uma forma ou de outra. Num momento feito
francamente liminar.
É visível a necessidade (seria melhor reivindicação?...) de atenção de nossos jovens.
A sociedade contemporânea os fez assim. Construiu, com dizeres específicos, de acordo
com cada conjuntura social, algumas das “confusões” e “impasses” que vivem; muito
embora parte deles seja notada em localidades diversas, como alertam as palavras de alguns
profissionais de saúde entrevistados ou consultados pela bibliografia que oferecem. Se não
por outro motivo, pelo impacto das transformações orgânicas, dificilmente poder-se-ia
pensá-los fora da possibilidade da regulação; especialmente em sociedades que trazem em
si parte da herança moderna
2
. Afinal, precisariam de assistência. E de várias... Porém, essa
nem seria propriamente a questão antropológica fundamental, mas como diferentes
sociedades, em tempos diversos, compreendem esta fase mais ainda do que suas
necessidades curativas e pretensamente universais
3
. E o que fez com elas. Quais os sentidos
de cada empreitada classificatória.
2
No segundo capítulo, discuto, a partir das questões levantadas por um autor referendado na medicina do
adolescente (BUCHIANERI, 2004) um pouco sobre a possibilidade de convivermos com elementos estranhos
à ordem moderna típica, podendo significar que estaríamos fora de seu escopo originário. Pontos de discussão
futura, que, enquanto não se cunha termo melhor, podem ser chamados pós-modernos (SANTOS, 1994).
3
Independente do acompanhamento de ações similares em diversas sociedades, a questão que me ocupa,
seguindo os passos de Geertz, está vinculada ao sentido específico que o às suas ações (GEERTZ, 1989);
questão de origem francamente weberiana (WEBER, 1994).
12
Trata-se, assim, de educá-los. Curar o físico e o mental/social, ajudar a descobrir ou
controlar suas tendências, e, por fim, a adaptar-se às regras do mundo (social). Oferecer-
lhes aquilo que possa aliviar as dores do “corpo” e da “alma”, não facilmente diferenciados,
porque categorias do pensamento humano e não da natureza bruta.
Muitas palavras são utilizadas para definir adolescentes. E estão em todo lugar, por
modos, dizeres, olhares e linguagens... Os meios de comunicação não cansam de prosar
sobre eles, através de reportagens, filmes, programas especiais. Além disso, existem as
manifestações próprias, advindas de livros, falares e reivindicações deles mesmos.
Necessitam de ajuda, oferecida por muitos meios. Inclusive os científicos.
Seguindo esse princípio, meu trabalho pretendeu interpretar o olhar dos novos
responsáveis pelo saber e intervenção sobre os corpos desses indivíduos em sociedades
contemporâneas os médicos de adolescentes –, como percebem seu objeto de estudo e
atuam em sua intervenção; como polemizam internamente sobre os melhores meios de criar
condições para a existência de uma “adolescência saudável”.
Assim, pelo intermédio do instrumental teórico da antropologia social, busquei
perceber até que ponto o saber médico (alvo de tantas discussões epistemológicas), o
mesmo responsável nas sociedades modernas pela manutenção de corpos fisicamente
saudáveis, é sustentado por um discurso sobre a adolescência ideal, admitindo variações
sobre o mesmo tema, no interior de sua especialidade pediátrica, a que está formalmente
ligada como área de atuação, instaurando uma pedagogia voltada a eles, adaptada, apesar
das matizações, às demandas sociais de uma sociedade em possível transição.
13
Afinal, trazem mensagens de origem distante das físicas e curas de males de origem
outra, embora seja o curar orgânico o seu conhecimento técnico mais destacado. Mensagens
com visível cuidado educativo evitando que seus atendidos saiam das possibilidades
previstas por seus ambientes sociais originários. Daí a abordagem de temas como gravidez
na adolescência, uso e abuso de drogas, obesidade, violência doméstica e urbana, entre
outros.
Estamos em momento delicado da “trajetória” ocidental. A mesma força que leva a
filmes e objetos de consumo especificamente endereçados aos jovens, podendo embutir em
si o germe do problema social, traz formas específicas de tratamento. Por isso o olhar
desconfiado, muito embora compreensivo. Estariam em “fase” delicada, sem preparo; não
completamente “prontos”.
Seguindo esse ponto de vista, resolvi elaborar um trabalho que, recorrendo ao
instrumental teórico-metodológico disponível à antropologia cultural, contribuísse para
uma maior reflexão sobre o saber médico voltado ao corpo adolescente e seus meandros
micro-políticos na sociedade brasileira, a partir de frentes destacáveis.
Realizei 14 entrevistas com profissionais de saúde que trabalham com a questão
adolescente. Além disso, visitei dois centros de atendimento específico, sem deixar de
consultar livros por eles produzidos. Entre entrevistas, visitas e consulta bibliográfica, pude
agregar os conhecimentos próprios da antropologia contemporânea. Nesse tempo, estive
entre profissionais dos municípios de Vitória e do Rio de Janeiro. No último caso,
especialmente os vinculados ao Ambulatório de Adolescentes da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e ao Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA), que faz
14
parte dos serviços oferecidos no Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Busquei entender como os médicos de adolescentes constroem suas interpretações
sobre distúrbios que entenderei como físico-morais (Duarte, 1986) dos integrantes dessa
“fase da vida” e sobre através de que meios as tornam aplicáveis mediante consultas e
iniciativas médicas gerais. Parti da idéia de que, diluído no processo clínico, encontra-se a
tentativa de instaurar uma pedagogia sustentada no conhecimento médico, que interpreta
cientificamente os corpos, em especial os voltados ao comportamento adolescente
cotidiano e a resolução de seus principais problemas; logo, consoante com os discursos
mais contemporâneos, como o que enfatiza a necessidade de atividades multiprofissionais.
Daí a utilização de grupos interdisciplinares de estudo e atendimento, além da insistência na
abordagem de aspectos “sociais” para o sucesso da intervenção que buscam realizar.
Nesse sentido, estive entre nativos iguais. Entre indivíduos que freqüentam a vida
acadêmica. E que vivem algumas de nossas perspectivas metodológicas gerais e a
influência de alguns modismos intelectuais. Como nós da antropologia. que por
caminhos diferentes, por outra tradição; o que, inevitavelmente diferencia o olhar.
Procurei não desvincular o caráter orgânico das intervenções que realizam de suas
expressões mais propriamente educativas mesmo porque nem sempre encontram
desmembramento nas falas e nos escritos dos médicos que ouvi e li. Afinal, estariam,
segundo os seus próprios termos, simultaneamente dispostos à cura dos males físicos que
chegam até eles como também à responsabilidade pedagógica de auxiliar na moldagem de
futuros bons cidadãos; o que não é tarefa pouca.
15
A presente tese foi organizada em cinco capítulos. No primeiro, abro a discussão
sobre os veículos pedagógicos das sociedades que possuem instituições modernas de
organização da vida e suas formas de moldagem e regulação dos corpos humanos. Entre
outros mecanismos, destaco a maneira pela qual a medicina realiza uma intervenção
simultaneamente orgânica e pedagógica sobre os indivíduos que dela se servem. A partir
desses parâmetros, disponho do arcabouço necessário para a apresentação dos dados
construídos a partir da pesquisa de campo e da literatura médica consultada.
No segundo, atenho-me à interpretação das visões de uma medicina especificamente
voltada para os adolescentes no que concerne a categorias largamente utilizadas por eles,
como biológico, psicológico e psicossocial, buscando perceber a oscilação no interior desse
ramo médico entre versões que enfatizam um ou outro desses pontos como mais
determinante dos “males adolescentes” o que permite a compreensão das várias correntes
e discussões internas desse ascendente saber médico.
No terceiro, tenciono discutir as visões dominantes sobre a adolescência entre os
médicos consultados, relacionando-os com as formas de compreensão que circulam no
interior das sociedades contemporâneas (através, por exemplo, dos meios de comunicação)
ao mesmo tempo em que ressalto o caráter de construção social da categoria e sua não
completa aplicabilidade universal.
No quarto, detenho-me às muitas polêmicas presentes no interior da medicina do
adolescente, acerca do papel do mercado, à sua conveniência ou não como área de atuação
da pediatria (portanto, como ramo alocado no interior da Sociedade Brasileira de Pediatria)
e aos embates políticos, ali representados, principalmente, pelo intermédio de dois grandes
16
serviços de adolescência existentes na cidade do Rio de Janeiro: o serviço de adolescência
do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Núcleo de
Estudos da Saúde do Adolescente (NESA), vinculado ao Hospital Universitário Pedro
Ernesto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Nesse caso, torna-se evidente
como a medicina do adolescente, da mesma forma que outras instituições sociais, é um
campo de disputa e como a construção de consensos provisórios e, certamente, mutáveis – a
depender dos posicionamentos e locais de atuação – opera em seu interior.
No quinto, especifico o caráter pedagógico do trabalho realizado pela medicina do
adolescente e suas muitas frentes de atuação sobre os jovens que pretendem curar do mal
físico e moral. Nesse espaço, destaco a ênfase de resgate comportamental dos serviços,
demonstrando como, no seu flanco adolescente, a medicina insere-se mais destacadamente
que outros ramos médicos naquilo que chamam de psicossocial.
17
Capítulo 1: Sobre Corpos, Educação e Medicina
A escola se constituiu como a instituição moderna mais responsabilizada pela
manutenção ou reconstrução de valores norteadores, destinados, prioritariamente, às
crianças e aos jovens
4
. Estaria, nesse caráter formador, o motivo de sua constante presença
nos discursos políticos dos mais variados matizes.
Muitos discursos tomam os chamados “problemas sociais”, entendidos no quadro da
desigualdade capitalista, como causas únicas ou centrais para o que se entende como
“delinqüência juvenil”. Mesmo as crianças e adolescentes considerados em “situação de
risco” (segundo a expressão atualmente correta) justificam seus “delitos” como resultado de
“problemas sociais” vividos no âmbito familiar; onde se destacam as explicações sobre a
pobreza da família (comumente expressa pela imagem da “fome”) e sobre a agressão
sofrida por parte de pais ou padrastos. Nesses casos, a escola quase sempre é apresentada
como instituição de resgate. No período das eleições, essa crença se destaca com a aparição
de “candidatos da educação” que se propagam pela concordância de muitos a respeito de
que o caminho para um país melhor seria aquele que levasse a um número maior de escolas
de qualidade para todas as crianças. Alguns prometem realizar verdadeiras “revoluções”
pela educação, como o candidato Cristovam Buarque, postulante à presidência no pleito de
2006. Da esquerda à direita, todos parecem indicar a educação como panacéia para a
4
Este trabalho acompanha o entendimento de que a juventude é apenas uma palavra (BORDIEU, 1983;
MEAD, 1981). E não somente ela. A construção social das categorias etárias já é uma premissa da
antropologia, indicando variações culturais de noções usadas com naturalidade no cotidiano ocidental. Por
enquanto, utilizo os termos “crianças” e “jovens” sem maiores contextualizações, apenas para significar o que
têm de geral nas compreensões correntes. Mais adiante, passarei a especificar de que “crianças” ou “jovens”
trato; ou sob que discursos são constituídos.
18
criação de indivíduos íntegros e politicamente participativos, além de competitivos em um
cada vez mais complexo mercado de trabalho.
Eis um mandado da modernidade: assim que se completa a universalização do
ensino, todos devem passar pela escola (ARIÈS, 1981)!... Por intermédio do ensino
obrigatório, a quase ninguém é permitido ausentar-se de suas formas de conhecer e de seus
modos de ser. Praticamente todos devem abdicar de desafios e deixar-se sujeitar pela
inflexibilidade na aplicação de regras nem sempre levadas às últimas conseqüências nos
círculos familiares, uma vez que agora se é um numa turma de muitos. Qualquer infante é
chamado à imposição de cenários e contatos que o familiariza com a onipresença do
olhar
5
... Logo, logo, as crianças “tomam conhecimento” de que não podem conversar em
certas situações, nem concentrar atenção em qualquer atividade não instituída ou legitimada
pelo professor. Na escola é ensinado o respeito a tempos e a espaços; o momento e o lugar
de cada coisa, mais, ainda, que sua constituição; principalmente, por intermédio de
atividades pré-determinadas e uniformizadoras. Ainda assim é perceptível o aumento de
“pedagogias livres” que, no rastro de alterações sociais fundas, vêm incentivando a
espontaneidade e liberdade dos estudantes.
Segundo princípios modernos típicos, quanto mais “organizada” uma escola,
principalmente no que diz respeito à disciplina de seus alunos, maior o seu prestígio. Tanto
assim, que, até pouco tempo
6
, ao menos no Brasil, um perfil de rigidez (inclusive moral)
5
Michel Foucault argumentou que nas sociedades modernas, racionalizadas e disciplinadas, ao contrário do
que ocorria em outros períodos, a mais destacada técnica de domesticação é exercida pela inculcação da idéia
de constante vigia (FOUCAULT, 1991). Havia se tornado fundamental à formação, desde a mais tenra idade,
de disposição temerosa e respeitosa diante do olhar, permeado em um sem número de instituições
normalizadoras como a escola.
6
Nos últimos anos, no rastro da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação promulgada em 20 de dezembro
de 1996, houve significativa revisão de práticas na chamada escola tradicional. Em parte pela crítica
construída, no cenário internacional e brasileiro (BOURDIEU E PASSERON, 1982; FREIRE, 1999), dentro e
fora das especialidades pedagógicas ao longo das décadas de 60, 70 e 80; mas também pelas relações
19
era considerado sinônimo de eficácia quanto ao “controle” daqueles que deveriam se tornar
adultos íntegros e responsáveis, além de competentes; e, portanto, distintivo de uma “boa
escola”.
Candidatos políticos, pais, professores e membros de movimentos sociais não foram
os únicos a atribuir à escola o papel de transmissora e guardiã de valores, prioritariamente,
às “crianças” e aos “adolescentes” de uma sociedade
7
. Cedo a sociologia identificou a
“tarefa” e perspectivas mais moleculares da questão não deixaram de ser formuladas por
intermédio de constatação ou de crítica.
São antigas, fundadoras, as aventuras da reflexão sociológica pela instituição
escolar marcada em sua própria existência, pelo desenvolvimento da Escola Sociológica
Francesa enquanto Durkheim, seu mestre maior, via-se vinculado academicamente à
pedagogia. No final do século XIX, fiel à causa da justificação científica da sociologia e ao
mapeamento de suas possibilidades, Durkheim, em sua aula inaugural como professor da
Universidade de Sorbonne, realiza uma vigorosa exposição sobre as relações entre
sociologia e pedagogia (DURKHEIM, 1967).
Para ele, toda educação, mediada ou não por um sistema escolar, visa a atender aos
pressupostos entendidos como verdadeiros, corretos ou úteis por uma determinada
sociedade humana. No caso moderno, os objetivos sociais da escola, unidade básica do
alteradas entre “jovens” e “adultos” pós-transformações comportamentais do período. Autoritarismos e falta
de polifonia foram denunciados e condenados ao mesmo tempo em que foram impulsionados métodos
alternativos de ensino-aprendizagem, como o chamado construtivismo, que busca maior “espontaneidade” de
seus alunos, ou as orientações pedagógicas que se abrem a expressões de matrizes culturais não exatamente
ligadas à tradição européia.
7
Como foi afirmado, são comuns os discursos salvacionistas em relação à escola, que geralmente lhe
imputam a capacidade de impedir que “crianças” e “adolescentes” entrem para o chamado “mau caminho”.
Tal entendimento é anualmente reforçado pela campanha Criança Esperança promovida pela Rede Globo de
Televisão. Tanto pelo destino das doações telefônicas: instituições e programas sociais ligados à educação,
quanto pelo testemunho de adultos resgatados pela ação educativa é enfatizado que, sem o auxílio da escola,
as “crianças” não conseguiriam se livrar da delinqüência, dos maus hábitos e da criminalidade.
20
sistema, se fazem visíveis (a) pela necessidade de difusão de conhecimentos ordenadores da
realidade, como os saberes científicos, e do aprendizado do aparato técnico fundamental à
realização econômica; (b) pela orquestração de padrões estéticos; como também (c) pela
imposição dos valores considerados mais dignos, aceitáveis ou recomendáveis aos
membros da sociedade. Desta forma, nela estariam presentes: conhecimento, estética e
ética. Contudo, a dimensão ética, parece, no caso, a que mais o impressiona e interessa.
Sua compreensão de que nas sociedades modernas predomina o que chamou de
solidariedade orgânica (DURKHEIM, 1972), caracterizada pela diversidade harmoniosa e
complementar de tarefas (admitindo formas também diversas de comportamento), reforça
dialeticamente a necessidade de existência da escola universal, uma vez que se tornaria
responsável pelo anúncio do que a todos compete saber
8
, principalmente para o
estabelecimento de comportamentos condignos. Para o serviço tranqüilo da lei e da ordem.
Inspirado nessa tradição, Pierre Clastres afirma que a Lei precisa de meios para que
sua dureza seja lembrada. Entre vários, haveria predominado em nossas sociedades o
sistema escolar; público e gratuito, muitas vezes integral, segundo padrões europeus,
impedindo que alegações de desconhecimento de seus preceitos viessem à tona. Uma vez
acessível a todos, sobre todos poderia ser aplicada (CLASTRES, 2003: p. 195).
Para Clastres, no que denomina “sociedades primitivas”, os ritos de passagem
9
se
constituíram como uma outra forma de recordação da Lei mais direta do que a realizada
8
A julgar pelo que nos têm dito sociólogos, geógrafos, economistas do trabalho (BELL, 1977; ANTUNES,
1995; OFFE, 1989; HARVEY, 1993; PASTORE, 1992), um sem número de jornalistas, administradores de
empresas, empresários (SOROS, 1998) e escritores de disfarçada auto-ajuda (TOFFLER, 1994), estamos
presenciando forte ênfase na informação e destacada reestruturação produtiva. Transformações gerenciais e
tecnológicas fizeram mudar o perfil dos trabalhadores e de seus afazeres, pela exigência prioritária de pessoal
“qualificado” em termos escolares (HARVEY, 1993).
9
A exposição mais clássica dos ritos de passagem em antropologia encontra-se em VAN GENNEP (1978),
sendo assim definidos: “(...) considero ritos de passagem todos os que têm por objetivo fazer a criança entrar
no período liminar, que dura, segundo os povos, de 20 a 40 dias ou mais.” (VAN GENNEP, 1978: p. 61).
21
pela mediação escolar, posto que a expectativa social é sentida no corpo, ao invés de
“pensada”. Nesse caso, o corpo seria a base de escrita da Lei. Marcel Mauss, antes de
Clastres, havia salientado que “... o grande momento da educação do corpo [em sociedades
entendidas como simples pela literatura antropológica] é o da iniciação” (MAUSS, 2003a:
p. 413).
Se, como argumenta Clastres, equivalência entre os ritos de passagem/iniciação
das “sociedades primitivas” e as escolas de “nossas” sociedades quanto à tarefa de
reconhecimento da força da Lei, fácil concluir que a base dessa escrita entre os tais
“primitivos” seria o “corpo”, e entre os modernos, a “mente”.
Mas não precisamos ser cartesianos em demasia
10
. Tal conclusão não informa que
todo processo educativo em sociedades simples se dê pelo corpo, nem, muito menos, que
não haja “educação do corpo” em nossas complexas sociedades modernas. Aponta para
predomínios. E também para “cegueiras epistemológicas” próprias do entendimento
moderno da realidade. Voltarei ao ponto.
De todo jeito, nos ritos de passagem de sociedades chamadas “primitivas”, pelo
caminho da dor, a Lei é marcada diretamente no corpo do neófito, moldando o distintivo
necessário à condição de “adulto”. Dor sentida como um chamado à coletividade, que torna
o separado, junto, posto que todos são igualmente marcados, “condecorados” pelo alcance
da fase adulta, como também foram seus ancestrais. Dor que faz crescer, ascender
socialmente.
10
Acompanho a perspectiva de Dumont sobre o caráter classificador dos valores (DUMONT, 1985). Como
ficará mais claro mais à frente, tento levar em consideração sua demonstração de que apenas os modernos
separaram as dimensões epistemológica e ética, o “ser” do “deve ser”, cindindo “conhecimento” e “moral”.
Acredito ser frutífero voltar a conectar analiticamente idéias e valores, como numa tentativa de “controle” da
tendência cartesiana de nossos pensamentos modernos – certamente refletida também no texto que escrevo.
22
Por reclusões e torturas, o “jovem” acompanha (com os sentidos “aguçados” por um
medo que pode ultrapassar a dor) a construção dos marcos físicos/sociais que trarão
impressos no corpo pelo resto da vida. Onde estarão visíveis os acentos orgânicos
esteticamente aprováveis ou considerados os mais bem equipados para atender os anseios
de seu povo nas lutas coletivas pela vida; onde poderá manter ativa a lembrança da dor (e
do horror) tida como necessária à compreensão de seu pertencimento a uma comunidade,
entre outras, de seres humanos. Àquela que deve honrar e preservar até a morte do corpo
que absorveu a dor-mensagem por torturas infringidas pelos seus e não por seus inimigos. E
que deve ter seus valores repassados, na forma também de marca, ao corpo de um filho.
A constatação de que as atividades escolares são indolores em termos físicos,
principalmente, quando comparadas à prática da escarificação, dos estiletes enfiados nas
chagas, dos enforcamentos e das carnes rasgadas dos iniciantes Guayaki em processo de
inserção no mundo adulto (CLASTRES, 2003), não chega a minimizar o fato de que a ação
de seus agentes faça impelir dor, ainda que diversa; oriunda de outro tipo de golpe
11
. De
uma agressividade que é mantida na medida do desconhecimento de quem a recebe; na
surpresa advinda da crença na positividade que aparentemente evoca: a condição
“universal”, logo “democrática”, da escola, estendida cada vez a mais sujeitos. Afinal,
esperança não faltaria ao anúncio: todos teriam o direito (levado à (quase) toda criatura...)
de “vencer na vida” o que poderia representar a satisfação do desejo de reconhecimento
social. Trata-se daquilo que BOURDIEU e PASSERON (1982) e BOURDIEU (1996)
caracterizou de “violência simbólica”.
11
O dicionário Aurélio apresenta os seguintes verbetes para a palavra golpe: “1. Movimento pelo qual um
corpo se choca com outro; pancada. 2. Lesão, contusão. 3. Acontecimento súbito e inesperado. 4. Abalo,
choque. 5. Manobra desonesta para lesar outrem” (FERREIRA, 1987: p. 241). Curiosamente, a dubiedade do
vocábulo golpe no idioma português é perfeita para expressar o duplo sentido da noção de violência simbólica
de BOURDIEU (1982 e 1996).
23
Sem a necessidade de qualquer castigo corporal, as escolas dão sentido
universalizante a categorias do pensamento, afinadas com setores privilegiados da
sociedade, a todo o conjunto de estudantes. Desse modo, organizações intelectuais de
classes sociais não dominantes, acompanhadas de suas possibilidades simbólicas e
materiais, são desconsideradas ou minimizadas pela e na escola, não sendo compatíveis
com princípios lá instituídos como os naturalmente mais corretos e definitivos.
Por mecanismos não relevantes para os objetivos do presente trabalho, Bourdieu
demonstra como o campo escolar, embora relativamente autônomo frente aos
condicionantes mais gerais das sociedades modernas, torna-se elemento central da
reprodução social, através do privilégio dos padrões cognitivo (e valorativo) dos grupos
sociais hegemônicos, que, ao mesmo tempo em que distanciam os que deles não partilham,
reforçam os laços de naturalização do arbitrário, dados, por vias próprias, em outros
campos de trocas simbólicas (BOURDIEU e PASSERON, 1982).
A escola seria, sob essa ótica, reprodutora principalmente de categorias
intelectuais
12
, mas também de valores e práticas sociais consagradas, violentando os
sujeitos envolvidos com mbolos de outros matizes, que, por não dominantes, são abolidos
dos espaços escolares. A imposição de estranhos quadros de referência e o desrespeito pelas
construções coletivas mais familiares a estudantes de estratos menos favorecidos da
população são vividos como uma violência não física, mas que abre chagas de difícil
cicatrização na trajetória de vida de algumas pessoas; principalmente na dos “estudantes
12
É preciso reforçar que Bourdieu critica Durkheim e seus seguidores por enfatizar o aspecto de integração
moral da escola como o mais relevante por ela exercido. Para ele, a dimensão lógica, que fortaleceria a
comunicação e os modos de apreensão de conhecimentos entre os indivíduos, é mais desenvolvida na escola
do que a moral (BOURDIEU, 1992a).
24
que não deram certo” muitos provenientes de setores economicamente carentes da
população.
Clastres, levemente distante de Bourdieu, parece destacar a proeminência da escola
como instituição de reprodução da Lei, tomada aqui em ampla significação.
Posicionamento que, nos seus pontos de maior destaque, encontra-se cristalizado na
compreensão formadora de Durkheim e sua explícita caracterização moral da escola: como
via de realização de fins sociais; principalmente, relacionados às formas de comportamento
de mulheres e homens de determinada época e cenário (DURKHEIM, 1967). Bourdieu
enfatiza os elementos mais cognitivos fornecidos pela escola; mesmo sem discordar
inteiramente dos princípios gerais dos demais autores.
De todo jeito, a pedagogia moral das sociedades modernas não poderia mesmo ser
um monopólio do sistema escolar. A realização dessa “tarefa” estaria fracionada por tantas
instâncias sociais não solidárias entre si, que seria mesmo impróprio que fosse a mesma,
posto que não respondem ao comando de um todo social reconhecível e consciente. Afinal,
BOURDIEU (1989) demonstra que, muito embora articuladas pelos ditames mais gerais
das sociedades onde estão inseridas, essas diversas esferas particulares de interação
simbólica possuem suas próprias regras e moedas. Esses campos, no dizer de Bourdieu,
trariam recortes próprios, em relativa desarmonia com os dos demais, ainda que possam ser
circulantes os indivíduos que deles se fazem partícipes; sem a percepção de suas
multiplicidade e maleabilidade.
Da advertência gráfica do Ministério da Saúde à conversa sem propósito em uma
fila de banco, um cardápio de recomendações morais não conciliáveis podem nos ser
apresentadas. Todos querendo se apresentar como bons conselhos!...
25
Um dos mais populares discursos para a explicação de males comportamentais é o
da “desestruturação da família”, que entendida como instituição molecular da moral – posto
que “célula mater da sociedade” não se encontraria nas mesmas condições de antes,
provocando o desarranjo social vigente. Mas, concorrentes atribuídos não faltam!... Nem
“restauradores” de vários calibres.
Além disso, é realidade registrada na fala dos professores dos mais diversos níveis
do sistema educacional brasileiro, refletida exemplarmente em manuais sociológicos de
educação (GOMES, 2005), o papel de protagonista demandado (e parcialmente
conquistado) pelos alunos, através da reivindicação de falas e atendimentos diferenciados
quando não especiais. Os estudantes, aliados a setores pedagógicos, passaram a cobrar de
seus professores relações estreitas entre os conhecimentos levados à sala de aula e
elementos de sua realidade cotidiana, compelindo-os ao uso de recursos lúdicos de fontes
variadas a fim de tornarem suas aulas mais empolgantes e significativas.
Parecem almejar mais do que o uso de uma “linguagem acessível”, que os fizessem
compreender melhor, e de forma mais abrangente, os conhecimentos tipicamente oferecidos
pelas disciplinas escolares, mas a utilização expressa, oficializada (não apenas como
“recurso didático”), de “sua linguagem”. Sua hierarquização própria do mundo, portanto;
nem sempre em harmonia com a de seus “pais e mestres” e, muito menos, com as
consagradas nas (e pelas) tradições escolares. Portanto, a “mobilização juvenil” parece
menos ligada à busca de suprimento de alguma necessidade de informação ou de orientação
do que a intenção exigente de fazer da escola mais um de “seus” espaços.
13
13
um sem número de produtos voltados ao público jovem. E não apenas no campo geralmente
denominado bens materiais. Também na esfera religiosa espaço para a exclusividade ou preferência. “Há
igrejas neopentecostais criadas especialmente para fiéis mais jovens. Uma delas, a Bola de Neve, usa uma
prancha de surfe como altar” (VEJA, 08/2003: p. 29).
26
O quadro geral de referência dos “jovens” pode ser oriundo de instâncias sociais,
senão adversárias, nem sempre compatíveis com a escola típica em relação aos temas, às
dinâmicas de discussão e, principalmente, às regras gerais dominantes
14
se considerados
os conhecimentos e valores modernos, usualmente associados à noção de “esclarecimento”
e a uma visão emancipadora.
Estamos muito distantes do período histórico em que contaria com franca
sustentação empírica o entendimento durkheimiano da escola como instituição através da
qual as gerações mais velhas moldariam o comportamento e os saberes das mais novas pelo
intermédio de seus professores (DURKHEIM, 1967). Afinal, à disposição desses “mais
novos” se encontra um sem número de produtos (materiais e ideais) especialmente a eles
endereçados, com um grau de ressonância nada secundário em suas vidas, principalmente
quando comparados à atenção dispensada às “matérias do colégio”. Mais fácil os elementos
das chamadas “culturas jovens”
15
se agregarem às práticas da escola, ou, no mínimo, por
ela não serem questionados, do que seus professores moldarem, explicitamente ao menos,
sem qualquer negociação, as condutas morais dos “jovens” da atualidade (GOMES, 2005).
E cada vez mais. As chamadas “culturas jovens” se expandem de forma vertiginosa
e diluída, delineando-se entre uma miríade de “tribos urbanas” (tão diversas e rotativas
quanto a disposição de fidelidade de seus adeptos); entre variantes musicais juvenis
14
Paul WILLIS (1991) desenvolveu de forma primorosa a questão a partir do trabalho de campo realizado em
uma escola operária inglesa com “jovens” prestes a completar a idade máxima para o ensino obrigatório e a
entrar no mercado de trabalho. Identificou a opção pelo trabalho manual de certos estudantes, considerados
“rebeldes” por professores e demais agentes escolares, mesmo quando o acesso a dimensões do trabalho
intelectual seria possível; principalmente em atividades ligadas a escritórios de profissionais liberais. Sua
conclusão é a de que suas visões de mundo não seriam compatíveis com o conhecimento e valores escolares,
uma vez que oriundas da valorização do saber prático, conforme os ditames de uma cultura de trabalhadores
(GUEDES, 1991 e 1992). Dessa forma, demonstra a distância dos princípios escolares das realidades
específicas de muitos jovens de nossas contemporâneas sociedades.
15
Simoni GUEDES (1991) destaca a importância da atenção à classe social nas pesquisas sobre as
construções “jovens” contemporâneas, a fim de evitar a naturalização da categoria juventude, apresentada
muitas vezes como auto-definidora e, portanto, independentes do meio social em que foi representada.
27
renováveis, como o rock’n’rol, ou entre outras mais recentemente incluídas no escaninho
“jovem”, como o hip hop e o funk; além de danças, festas, lugares da moda, reivindicações
e literaturas moldadas, muitas vezes, por suas mãos, com o auxílio de gostos, interesses e
fantasias
16
próprios.
Diante desse cenário, ao contrário do que já se pensou, os professores podem não
estar adaptando seus estudantes à estrutura escolar, à “vida adulta” e, exemplarmente, aos
comportamentos adequados, como os seus. Ou: na condição de educadores, aprendendo
mais com seus educandos, como gostam de propagar as vertentes pedagógicas
estimuladoras das modificações em curso.
Sem querer minimizar a capacidade de criação de modelos morais da escola, é
preciso notar que outras instituições de inculcação de valores vêm expandindo seu contato
com o “mundo jovem”, através de abordagens e de imagens consideradas mais
“apropriadas” à “sua fase de vida”. Exercendo sua influência, inclusive, sobre a mesma
base de aplicação dos ritos de passagem nas sociedades primitivas: o corpo. E também
instituindo ou consagrando Leis.
De todo modo, paralela à generalização da escola como veículo de formação lógico-
moral nos países ocidentais (e a despeito dos “questionamentos” contemporâneos),
transformações em outros setores, com histórias (muitas histórias...) próprias, também
auxiliaram na configuração ética geral do que identificamos como ordem moderna.
Norbert ELIAS (1993 e 1994), orientado por uma das muitas dimensões de pesquisa
presentes ou possíveis na obra de WEBER (1992 e 1994), relaciona a trajetória de
apaziguamento do Ocidente, parcialmente concluída com o controle satisfatório do uso da
16
Há um número crescente de livros destinados aos jovens, produzidos por eles mesmos, sobre temas,
experiências e fantasias particulares (VEJA, 2003).
28
violência nas mãos do Estado, à preocupação quanto às normas sociais de convívio
cotidiano: as “regras de etiqueta”, que tão intimamente se ligam à noção de “civilização”.
17
Seu argumento é que o monopólio da violência física se tornou viável pela
vagarosa transformação histórica da conduta social mais comezinha, ocorrida entre os
séculos XVI e XIX nos principais países europeus, ainda que se possa encontrar origem e
extensão menos precisa
18
, destacando seu caráter processual. Um denso processo
civilizador que cristalizou o desarmamento concreto dos cidadãos e de seus espíritos,
ajudando a formar seres humanos pacíficos ao mesmo tempo em que cordiais no trato inter-
pessoal.
Em caso de necessidade de segurança justamente em relação àqueles que,
presumidamente, não são/estão suficientemente “civilizados” seria preferível recorrer às
instituições estatais de repressão do que empreender uma penosa, arriscada e desnecessária
administração privada da violência, correndo o risco eventual de confusão de personagens.
Por princípio, um homem suficientemente “civilizado” nunca se utilizaria, ele próprio, das
armas da violência física. Para isso lhe servem as do Estado
19
.
As maneiras polidas, que confirmam a capacidade racional frente a uma sociedade
com feições cada vez mais burguesas, tornaram-se preferíveis à rudeza necessária a um
pronto revide em caso de ataque violento; antes, certamente, mais apropriado (ELIAS, 1993
17
Para ELIAS (1994), a noção de civilização é uma espécie de “auto-consciência” do Ocidente; àquilo que o
faz acusar outras sociedades de “primitivas” ou “bárbaras” transmitindo-lhe segurança e orgulho. Isso não
diz que o termo, e o que quer significar, ostente mesma importância entre as diversas nações da Europa. O
vocábulo alemão “kultur”, muito mais presente entre eles, evoca o mesmo tipo de orgulho que a civilização
entre franceses e ingleses, dando destaque à “qualidade” superior de alguns afazeres humanos mais do que à
“superficialidade” distintiva de suas “maneiras” aparentes.
18
É sempre tarefa menos importante que mapear processos buscar o marco zero, o ano fundante, de qualquer
fenômeno social. Nesse caso, bem como sobre as origens da modernidade ou outras categorias
sociologicamente correntes fundamental é analisar os elementos mais marcantes de seu desenvolvimento.
19
Certa vertente da teoria política liberal do século XVII ajudou a construir uma dupla imagem moderna: a de
um Estado funcionário (LOCKE, 1973), contratado para assegurar a paz, a tranqüilidade e a propriedade dos
cidadãos, e a de um indivíduo racional, respeitador das regras que lhes são impostas para a manutenção do
bem comum.
29
e 1994). Por esse motivo, os atores sociais acabariam por depender expressamente do
respeito dos demais membros da comunidade política para que pudesse concretizar seus
objetivos, entre outros espaços, em um mercado competitivo. O que os leva a uma dupla
preocupação: (a) com o apreço ou, ao menos, com o não desapreço de seus conterrâneos e
(b) com a eficácia do aparelho de segurança estatal.
Tal dinâmica tornou premente cuidados, antes desconhecidos ou ignorados, com o
corpo. Higiene, boa educação e “traquejos sociais” básicos, como o uso de guardanapos e
talheres, vão se generalizando; tomando formas civilizadas no fluxo dos anos, das décadas,
dos séculos... Em solo europeu, a começar pelas camadas mais altas em status social,
elevou-se a preocupação com as chamadas “boas maneiras”, tão somente possíveis por um
persistente auto-controle de emoções e sentimentos, exercido cotidianamente (Elias, 1993 e
1994). Ao mesmo tempo em que decresceu o uso privado da violência até entre os de maior
apelo aristocrático, como o duelo, desnecessários em uma configuração burguesa de vida.
Seria essa a relação entre a transformação de comportamentos que fizeram com que
os mais “naturais” modos medievais, ligados até aos setores da elite econômica e política,
como pôr a bota em cima da mesa de refeições, escarrar publicamente ou comer com as
mãos; e o estancamento forçoso de iras repentinas, tocaias suscitadas por vingança ou
pilhagens aleatórias; antes razoavelmente comuns ou generalizados (ELIAS, 1993 e 1994).
Os deveres para com a “civilização” dos costumes foram transmitidos, entre outros meios,
por manuais de boas maneiras e pela observação de pessoas consideradas de maior
“educação” (normalmente oriundas de camadas sociais mais elevadas). Mais tarde, seriam
transmitidos vivamente também por veículo mais eficaz e positivo: a medicina clínica.
A expansão do processo civilizador nada “natural”, no sentido usual do termo
(como oposto de “cultural”) depende da lembrança exemplar dos benefícios pessoais
30
oriundos do cuidado com o corpo.
20
Portanto, de sua positividade subjetiva. E não mais,
como no início do processo, para os outros
21
. Foi necessária uma legítima disposição de
agir, naturalizando possibilidades, em busca de uma “vida saudável”.
A disciplina perpetrada diretamente sobre os corpos tornou-se imperativa para a
sustentação dessa noção de “qualidade de vida”, que, ressaltando o olhar sobre ele,
limpando suas sujeiras, endireitando suas posturas, curando-o de muitos males, pôde se
apresentar frente a uma sociedade livre da violência não controlada de outros seres
humanos, pela mediação do Estado. Uma leitura da conexão expressa acima indica
significativamente a associação (com inúmeras representações discriminatórias) de dois
“males modernos”: falta de civilização e violência
22
.
Poderia se alegar que a compreensão de Elias é refém de seu tempo
23
; da geração
anterior à Segunda Guerra Mundial. Constituiria-se, assim, como reflexo da surpresa e
credulidade de seus contemporâneos, por sofrerem mais diretamente os primeiros impulsos
da modernidade, marcados por ascetismo e moralismo. Ou ainda que, na atualidade, diante
20
FOUCAULT (1991) traz-nos a idéia de que após fins do século XVIII, com a chegada de novas estratégias
de poder, muitas instituições passaram a fabricar corpos ceis à disciplina necessária à sustentação da ordem
moderna. Trata-se do estabelecimento de uma condição constante e cotidiana de sujeição, entendida, na maior
parte das vezes, como positiva, necessária e saudável. Cabe ressaltar que enquanto o enfoque de ELIAS (1993
e 1994) é senão de louvor ao menos de fatalidade em relação ao processo civilizador, o de FOUCAULT
(1991) parece bem mais crítico ou libertário, uma vez que enfatiza todos os duros mecanismos de instituição
da disciplina.
21
Antes da instituição da sociedade disciplinar, os meios de expressão de poder estavam ligados, no campo
repressivo, ao suplício (FOUCAULT, 1991). Um modo de relação de poder que dependia do estabelecimento
de intensa dor física e de penas espetaculares, exemplarmente exibidas à comunidade como uma forma de
dissuadir seus membros de rebeliões e desordens.
22
A “falta de civilizaçãoé normalmente vinculada à violência em sociedades modernizadas. Talvez por isso
sejam tão comuns expressões como “coisa de índio ou de “vândalos” quando da constatação de estragos
cometidos por estranhos em certo local, sem justa causa. Também o porquê de muitas pessoas preferirem
pagar um pouco mais para estar em uma boate ou casa de espetáculos entendida como “mais bem
freqüentada”, “civilizada” ou “de gente de bem”, longe de supostos “baderneiros” ou “favelados”. Elias e
Scotson afirmam que a classe operária britânica era mencionada pelos aristocratas como “os grandes mal
lavados” (ELIAS E SCOTSON, 2000), forma explícita de mencionar sua superioridade sobre eles. A
“ausência de civilização” serveria, dessa maneira, como um dos principais instrumentos de discriminação e
preconceitos em relação a condições de indivíduos considerados “inferiores” ou “subalternos”.
23
O Copyright de O Processo Civilizador é de 1939.
31
de seres e cenários que se “pós-modernizam”, seria estranho ouvir sobre “boas maneiras” e,
muito mais, sobre “auto-controle”.
Contudo, parece-me ingenuidade imaginar que o processo civilizador tenha se
estancado, dado margem à prática de irrestrita “liberdade” de tratamentos corporais,
preferências, atitudes, gestos e desejos, como fizeram crer aos desavisados
24
. Continuou a
se relacionar, sob forma mais diluída, com o comportamento de seres que, ávidos de
controle sobre os outros, tornaram-se controladores de si mesmos, pela “causa” da
“civilização”.
Muitos reflexos desse processo continuam à mostra nos dias de hoje, dando
visibilidade a ações francamente ousadas em relação à manipulação do corpo, à intervenção
em seu “funcionamento”, ao molde de suas formas, e, por fim, à recordação de seus
deveres. Vividos na individualidade da vergonha, da angústia, da sensação de impotência,
da competitividade...
A obsessão pelo “corpo em forma”, por uma aparência que evoque perfeição e
domínio de si, tem sido regra para crescentes setores de nossas sociedades. Reproduz-se
nos controles alimentares (de suas qualidades, porções, funções e horários) e na expansão
da prática de atividades físicas (fazendo maior o desafio da conciliação dos “deveres”
urbanos), que mantêm viva a esperança de um “corpo dos desejos” sempre no horizonte.
Um padrão que se aproxima do ascetismo em vários aspectos; notado nos graus
assimétricos de esforço e relaxamento. Sem mencionar a ironia do uso de esteróides
24
FREUD (1974), dez anos antes de O Processo Civilizador, parecia pessimista quanto à possibilidade de
conciliação entre felicidade (e certa concepção de liberdade) e “civilização”.
32
anabolizantes (SABINO, 2002): tanto mais destrutivos quanto maior a exacerbação deste
tipo de “cuidado” com o corpo.
25
Alguns se destacam pela hiperbolização dessa tendência, transformando-se em
verdadeiros modos de ser da “cultura do músculo”. São mostras vivas de como o corpo
pode ser transformado em fonte concomitante de espetáculo e controle; ou, como seria mais
preciso: transformado em espetáculo quando controlado (COURTINE, 1995).
mensagem em suas atitudes. Não tão sutis.
Nada de festa, de hedonismo pós-hippie, de consagração do prazer; muito menos
de descuido, de obscuridade e de relaxamento nesses comportamentos; coisa nenhuma de
explosão dionisíaca. Teriam mais lugar entre Apolo
26
. Entre imagens de “força moral”,
como obstinação, luminosidade, perfeição. Um corpo domesticado; que evoca dor, esforços
e riscos espetaculares,
27
e formas que são uma caricatura do belo. Como uma armadura de
museu: ajeitado para o olhar e não para qualquer realização.
Jean-Jacques COURTINE (1995) destaca que a disciplina necessária à construção e
à manutenção de corpos hiper-atrofiados teria entre seu cabedal de raízes a mesma ética
protestante que, segundo Weber, contribuiu para o desenvolvimento do “espírito do
capitalismo” (WEBER, 1992). Haveria densidade histórica nas origens puritanas do body
building. E também em atitudes caras ao capitalista moderno, fundamentalmente no início
25
O uso de estrogênios anabolizantes é percebido como um problema diretamente ligado os seres humanos
entendidos como adolescentes, ávidos por uma estrutura corporal viril e musculosa (VEJA, 06/2004). Há,
inclusive, uma enfermidade similar à anorexia que tem dado assunto aos médicos de adolescente. Trata-se da
vigorexia. A diferença é que, em vez de se ver “gordo” frente ao espelho, suas representações levam a crer
que esteja fraco, franzino e flácido, fazendo com que aumentem os exercícios físicos de forma absurda, além
da ingestão de anabolizantes.
26
A série de interpretações sobre as imagens dos deuses gregos Apolo e Dionísio e suas utilizações como
conceitos aplicáveis a tipos e estruturas “comportamentais” modernas derivaram-se de NIETZSCHE (1993).
Ver também SABINO (2002).
27
Um dos maiores deles é o uso de esteróides anabolizantes (SABINO, 2002) – drogas de Apolo; do
autodomínio, disciplina e racionalidade.
33
de seu percurso, como o dinamismo combinado à contenção. No século XIX, muitas
denominações protestantes estimularam a prática de exercícios físicos regulares ao mesmo
tempo em que popularizaram uma imagem atlética de Cristo, condizente com o trabalho de
salvação (COURTINE, 1995).
No espaço de ação do body builder, o prazer sensual não encontra muito espaço;
bem como qualquer atividade que, por assim dizer, amarrote o seu corpo. Afinal, como
informa COURTINE (1995: p. 86), têm amor pelo liso, polido, fresco, esbelto e... jovem. A
aparência juvenil torna-se canto de sereia aos dispostos a pagar,
28
através dos “viciantes”
esforços da malhação, pelo “corpo atlético”.
A preocupação maior dos amantes da “perfeição corporal” é a exibição do resultado
de seus esforços em competições de fisioculturismo ou em espaços onde sua forma física
desperte alto grau de admiração, como entre alguns, mas não entre todos, freqüentadores de
academia. Assim, causa surpresa identificar o prêmio pela abdicação do prazer e
convivência com a dor, conseguidos em horas de malhação; pelas abstinências e uso de
suplementos alimentares, e pelos os riscos orgânicos do uso de anabolizantes. Trata-se
apenas do olhar admirado. Como se presos estivessem em si.
Mas os body builders não são mais do que exemplos, extremos, é verdade, da
corpolatria
29
crescente nas sociedades contemporâneas. Um entre outro “projeto de ser
humano”, simultaneamente “belos e bons”, segundo as vistas de seus arquitetos. São
resultados possíveis da administração humana; frutos de tempos e espaços próprios; e de
saberes. Além de técnicas. De poder, especificamente.
28
A associação, especialmente em instituições militares, entre pagamento e execução de tarefas físicas como
castigo por conduta considerada fora da regra ou inapropriada sempre me pareceu curiosa. Remete a idéia de
que todo mal deve ser reparado; portanto, pago. Ou, por outro lado, que todo benefício como a conquista de
um “corpo bonito” – possui o “seu” preço.
29
Uso aqui o termo na acepção que tomou com MALYSSE (2003).
34
Exemplos de outro tipo de arquitetura seriam os que convivem com o “distúrbio” da
anorexia ou da bulimia; condicionados que estão pela exacerbação dos padrões de magreza,
também dominantes. Como uma caricatura de outro acento, outro valor social, incorporado
em forma de peso reduzido e forma enxuta. No outro extremo do lo, como rebeldes da
“boa forma” (pela negação do princípio da preservação e da reconstrução, pela malhação
e/ou contenção, programação, alimentar), estariam os obesos
30
. Mas os menos
extremados.
Uma série de pessoas sem preocupação com exercícios de alto impacto, concursos
de fiosioculturismo e uso de anabolizantes pegaram a onda do “cuidado com o corpo”,
freqüentando academias (esporadicamente ou com relativa constância) ou
matinais/verpertinas caminhadas regulares realizadas onde forem possíveis: calçadões de
praias, parques, “ruas perigosas”.
31
Recomendados por pessoas diversas, de médicos a
apresentadores de TV, chegando ao grupo de amigos, um extenso cardápio de receitas de
“saúde e beleza
32
é proposto a toda criatura. Mas nem sempre os indivíduos, escolhendo
alguns de seus tópicos, conseguem ser inteiramente fies às doutrinas da “boa forma” no
almoço do final de semana ou na cerveja pós-expediente de trabalho. Compensam a vida
sedentária e o farto consumo de alimentos, típicos das organizações urbanas, com idas à
academia de ginástica e uma ou outra forma de diminuir calorias da alimentação. Mas
30
Por não conformarem, por motivos variados, sua aparência física ao padrão de magreza tomado como ideal,
os obesos compensam compulsoriamente a forma de seu corpo com força, espetáculo ou zombaria
(FISCHLER, 1995) podendo também se destacar por uma simpatia de tipo humorístico, muito
característica.
31
Uma das entrevistadas ilustrou perfeitamente a associação entre a prática de exercícios físicos,
freqüentemente recomendados por médicos, e condições “ideais” de vida, nem sempre possíveis entre setores
da população do país. Segundo ela, um paciente ironizou a prescrição médica de caminhada rotineira,
afirmando que se a cumprisse morreria, provavelmente de bala perdida, uma vez que seu bairro registra alto
índice de violência.
32
As categorias saúde e beleza são geralmente fundidas nesses discursos. Demonstrando a confiança no
caráter de índice de saúde da “boa aparência” uma das características da contemporaneidade. Quiçá, um
entendimento que faz ligeira fusão entre ética e estética!...
35
distantes, muito distantes até, do rigor dos body builders; embora também cobrados (pelos
outros e por si) pelos “excessos corporais” entendidos como frutos de “pecadinhos”.
Além dos exercícios físicos, um sem número de cosméticos para tratamentos faciais
e corporais de mulheres e homens se encontra disponível no mercado (SANT’ANA, 1995).
Ampliam consideravelmente os alcances civilizatórios, uma vez que aumentam a cada dia
as preocupações com uma “pele boa”; expandidos após a formulação de regras de “bons
modos” fundamentais e da necessidade de “boa aparência”, instaurados nos primeiros
momentos modernos. Portanto, em grande medida, estamos a viver uma hiperbolização do
processo civilizador que, de tão expandido, pôde ter “desviado” do caminho típico ou
encontrado surpresas no seu “percorrer”.
Com o passar do tempo tem aumentado a capacidade heurística do inspirador artigo
de Marcel Mauss acerca das “técnicas corporais” (MAUSS, 2003a).
33
Especialmente
quando aplicado às sociedades contemporâneas. E não apenas pela presença de práticas
excêntricas como a dos body builders, mas principalmente, pelo desfile de corpos
“trabalhados” ou modificados por cirurgias estéticas, em profusão pelas ruas das cidades;
sem que deles se possa com facilidade distinguir classe social, faixa etária ou localidade.
Se, por um lado, nossas “técnicas (civilizatórias) de cuidado com corpo” (MAUSS,
2003a) estão ancoradas na trajetória moderna e em seus construtos racionalizadores; por
outro, podem manifestar, se bem que não exclusivamente, uma espécie nova de
adestramento humano
34
; menos visível ou possível, por exemplo, na década de 30 do século
33
Mauss a define da seguinte forma: “Entendo por essa expressão as maneiras pelas quais os homens, de
sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo”. (MAUSS, 2003a: p. 401).
34
Em outros capítulos, deixo mais clara minha dívida com a noção de sociedade de controle cunhada,
sucintamente, por DELEUZE (1992). Apesar da brevidade de sua exposição, parece-me uma boa contribuição
às relações de poder no mundo contemporâneo, muitas vezes denominado pós-moderno.
36
XX momento, aliás, em que a noção foi desenhada por Mauss
35
. E também das reflexões
de Elias e de Freud sobre a civilização.
Em resumo, quero dizer que especificidades do cenário contemporâneo
36
podem
indicar mudanças também qualitativas nos “cuidados corporais”. E não apenas a sua
expansão, notados em sua visibilidade e intensidade.
São muitas as pistas sociológicas!... Abundantes os resultados de intervenção
cultural em nossas sociedades (em lojas, salões de beleza, shoppings, praias e parques), que
se torna quase impossível não dar olhos ao que está acontecendo; passando... Acredito que,
pela onipresença da temática: nos meios de comunicação, nas divisões domésticas, na
partilha do tempo diário – da alimentação ao lazer –, Mauss não deixaria as anotações sobre
o uso social (especialmente em sua dimensão de “cuidado”) do corpo preencher a categoria
“diversos” por muito tempo; principalmente se em questão estivesse o Ocidente de hoje.
37
Relevância ainda maior seria notada no caso da sociedade brasileira, e ainda mais no da
carioca.
38
35
As Técnicas do Corpo foi uma comunicação originalmente apresentada à Sociedade de Psicologia em 17 de
maio de 1934.
36
Em andamento se encontra um debate sobre as características paradigmáticas da contemporaneidade. Fala-
se em pós-modernidade (HARVEY, 1993; LYOTARD, 1996; ANDERSON, 1999; SANTOS, 1994), em
supermodernidade (AUGÉ, 1994) ou, mais “modestamente” em crise da modernidade (GIDDENS, 1991).
Meu entendimento é que, modismos e falta de cautelas à parte, estamos frente a elementos desconhecidos da
modernidade típica, caracterizada por ênfase “racional” destacada e pela crença declarada, estendida por
instituições como a escola, em “grandes narrativas” (LYOTARD, 1996), fossem liberais, socialistas ou de
outras roupagens, que dão suporte a uma inerente noção de progresso.
37
Afirmara Mauss sobre a classificação instituída por seu seminal artigo: “Imediatamente, toda a imensa
categoria daquilo que, em sociologia descritiva, eu classificava como ‘diversos’ desaparece dessa rubrica e
ganha forma e corpo: sabemos onde colocá-la”. (MAUSS, 2003a: p. 406).
38
MALYSSE (2002) parece entender o Rio de Janeiro como o lugar de esplendor do que chama corpolatria.
Por seu artigo, compara formas de embelezamento e cuidados corporais na cidade do Rio de Janeiro e em
partes da França. Por outro lado, GONTIJO (2002) lembra a generalização freqüente e errônea, realizada
entre produções e disposição cariocas e características gerais da cultura brasileira. Apropriadamente, rascunha
elementos de uma realidade prenhe de reflexões, a carioquidade.
37
No começo deste milênio, os discursos sobre os “cuidados com o corpo” e as
práticas de “correção” se encontram bastante popularizados
39
; principalmente, na cadência
da corpolatria. Fizeram-se mais visíveis, estendendo-se por toda à parte, de camadas sociais
e gêneros diferentes... Suscitando alterações nas aparências e nos status. “Melhoras”. Mas,
embora presentes em quase todos os grupos, são significados de maneira diferente, de
acordo com cada espaço social; cada forma específica de interação simbólica. Pois as
“modas” não podem ser as mesmas no baile funk e na ilha de Caras. Nem, necessariamente,
nas muitas variantes do mundo gay e entre heterossexuais masculinos de pequenas cidades.
Mas o interesse, a atenção sobre o corpo, pode falsear o tamanho de sua
importância. Para David Le Breton, tem sido local de tantas interferências que dificilmente
continuará a ser visto como um destino (LE BRETON, 2003). É facilmente tonificado,
tranqüilizado, espetacularizado. Mas não apenas isso. Por tantas vezes modificado, trocado,
ainda que em parte, quase nada parece faltar para seu abandono definitivo; redundando na
busca de suportes mais eficazes para estruturar fantasias humanas
40
. Portanto, segundo LE
BRETON (2003), estaríamos presenciando a transformação de características inatas de um
indivíduo em mero detalhe orgânico; tal o andamento das intervenções sobre sua estrutura
biológica.
Remodelam-se as mais diversas partes do corpo, corrigindo suas “imperfeições”;
alteram-se sexos; propagam-se, principalmente para o emagrecimento, dietas milagrosas;
faz-se enxertos ou retirada de excessos inadequados; regula-se o humor por psicotrópicos;
escolhe-se as características de um filho (LE BRETON, 2003). A modificação,
39
O Brasil é o país com o maior número de cirurgias plásticas per capita do mundo (EDMONDS, 2002: p.
193).
40
Le Breton faz referência ao acúmulo de projetos de substituição do corpo físico em futuro próximo (LE
BRETON, 2003).
38
remodelagem ou completa transformação física quase não encontram limites, chegando à
reconstrução total do fenótipo dado pela base genética do sujeito, a compor indivíduos
irreconhecíveis.
41
Sem mencionar as propostas de gravidez masculina, levadas a sério.
Tamanha intervenção corporal pôde tornar-se viável pela concordância da
medicina, ainda que sob “posicionamentos fracionados” pelas tendências de suas
especialidades e mercados próprios, posto que é a instituição moderna tipicamente
responsabilizada pela “cura” em nossas sociedades, e participa diretamente do processo de
alteração do corpo não somente através da medicina estética como também pela ação
farmacológica de algumas linhas da psiquiatria (LE BRETON, 2003). Mas podem ser
silenciosas suas ações, precisamente as mais interventoras; identificadas, muitas vezes e de
várias formas, pela literatura ligada à filosofia e às ciências humanas contemporâneas.
Seguindo a forma de uso da clássica afirmação de Max Weber por BOURDIEU
(1989), poderia se entender a medicina como a instituição que detém o monopólio sobre a
manutenção da saúde legítima
42
nas sociedades ocidentais. Como se sabe, no Brasil, apenas
os formados em alguma faculdade reconhecida pelo Ministério da Educação, devidamente
autorizada pelas entidades médicas reguladoras, podem exercer a medicina, desde que
integrados às normas de conduta também reguladas; qualquer outro é considerado charlatão
e sofre os rigores da lei
43
.
41
Uma das mais caricatas personagens desse tipo de alteração corporal é o cantor Micheal Jackson.
42
Saúde legítima também porque “comprovada pela ciência” e pela racionalidade própria aos entendimentos
modernos (WEBER, 1992).
43
Sampaio demonstra o quanto o monopólio médico não era respeitado ao final do século XIX, havendo um
número sem fim de curandeiros, práticos e religiosos de todas as espécies (SAMPAIO, 2001) propagando
curas de tipos variados; para muitos “males”. Ressalta ainda o quão feroz era a concorrência entre os próprios
médicos, que trocavam acusações de ineficácia nos jornais de grande circulação do Rio de Janeiro, a fim de
desacreditar suas competências e ganhar clientelas.
39
Mas é bom lembrar que a cura (entendida como restabelecimento de saúde
44
) ao
menos a que se propõe a oferecer, ultrapassa os limites do “físico”; dos “males” usualmente
reconhecidos como orgânicos, chegando a uma esfera denominada psicossocial
45
- onde
fenômenos de características não biológicas são alocados. Mas associações da cura com o
restabelecimento de uma ordem entendida como ideal podem ser mais do que metafóricas.
Muito embora sua tarefa de solucionar “enfermidades orgânicas”, atestada por sua
habilidade técnica, seja o que mais a caracteriza frente à sociedade, sua intervenção
pretende ser mais do que “física”, não se limitando à realização de “cura” de “doenças”
geralmente identificadas como orgânicas. Talvez exatamente por induzirem que uma
habilidade (a “cura” daquilo que eles mesmos identificam como de ordem “biológica”) leva
a outra (intervenção em esferas mais claramente ligadas aos ordenamentos psíquico-
sociais).
A recomendação de uma perspectiva mais “integrada de atendimento médico é
feita por suas próprias instituições internacionais. E não apenas identificadas pela
interpretação de pesquisadores das ciências sociais ou da filosofia. É explicitada no próprio
discurso médico. Categorizada, portanto. Aceita como mais um “dever” da profissão
46
.
44
É preciso estar a par do que alerta Georges Canguilhem: “A saúde perfeita não passa de um conceito
normativo, de um tipo ideal. Raciocinando com todo o rigor, uma norma não existe, apenas desempenha seu
papel que é de desvalorizar a existência para permitir a correção dessa mesma existência. Dizer que a saúde
perfeita não existe é apenas dizer que o conceito de saúde não é o de uma existência, mas sim o de uma norma
cuja função e cujo valor é relacionar esta norma com a existência a fim de provocar a modificação desta. Isto
não significa que saúde seja um conceito vazio.” (CANGUILHEM, 2002: p. 54). Para ele, a saúde não é
propriamente “restabelecida”, o corpo encontra um novo equilíbrio frente ao seu funcionamento.
45
A categoria psicossocial é amplamente utilizada pelos médicos de adolescentes. No próximo capítulo
abordarei a questão de forma mais cuidadosa, tentando entender o significado da categoria entre eles como
também o que pode representar em termos pedagógicos.
46
Um médico de adolescentes, em entrevista concedida a Buchianeri e anexada à sua dissertação de mestrado,
chega a dizer que o bom profissional da área “não deve ter medo de se meter na vida do adolescente”
(BUCHIANERI, 2004: anexos).
40
A Organização Mundial de Saúde (OMS) é precisa em sua definição: “saúde é o
estado de completo bem-estar físico, mental e social” (LAPLANTINE, 1991: p. 243) de um
indivíduo.
Poderia sempre haver à espreita um freudiano proclamando inviável a “plena
satisfação” anexada à definição; especialmente quando concomitante, para o gozo
“completo” de saúde. Ainda não faltaria quem argumentasse que sua completude tornaria
ainda mais distante do horizonte a sonhada “vida saudável”, que tantos esforços continua a
nos “pedir” no presente. E implicaria admitir que existe um número maior de doentes do
que geralmente se supõe. Além, claro, de uma maior necessidade da medicina. Logo, entre
outros sentidos, acaba por servir como demonstrativo de uma compreensão medicalizada de
sociedade. Uma justificativa para a amplitude da regulação médica.
Contudo, outra indicação interessante em questão: a de que a tarefa da medicina
seria tratar dos corpos não somente na “dimensão” geralmente entendida como “física”,
mas também adentrar em searas “psicológicas” e “sociais”, o que remete a um papel de
regulação sobre o que pode ou não ser considerado diagnóstico legítimo de doentio em
quaisquer dessas “esferas”.
Assim, torna-se clara a dimensão da intervenção médica; sua abrangência maior do
que a normalmente pensada pela maior parte dos indivíduos. Além da esfera estrita, da cura
dos males reconhecidos como físicos, no quadro de representações típicas da ordem
moderna, atua como reguladora de outras “saúdes”
47
.
47
A atuação autoritária dos higienistas no Brasil do século XIX ilustra bem a exacerbação dessa visão
totalizante de saúde que, por conseguinte, acaba por pretender uma intervenção ainda mais abrangente dos
médicos. Pretendia definir formas arquitetônicas e de vida para as pessoas, entre outros campos. Sobre o
assunto ver SAMPAIO (2001) e COSTA (1989).
41
Mas o que pode ser compreendido como bem-estar “físico”, “psíquico” ou, mais
ainda, “social”? Como saber o que deve ser restabelecido ou mesmo curado nesses “outros”
campos? Por que os “demais aspectos” devem ser também entendidos (e, por isso:
atendidos...) por profissionais
48
de formação basicamente biológica?...
Nas sociedades modernas, muitos esforços foram dispensados para o
desenvolvimento da pesquisa médica e de suas mais diversas aplicações, redundando em
formas de alívio do que, segundo cada tempo e espaço, constituíram-se como enfermidades.
Não vida de que, pelo empenho oriundo de muitas fontes sociais, os saberes médicos
propiciaram a manutenção da vida ou aumento de suas possibilidades, tanto pelo
estancamento de doenças antes fatais como pelo tratamento, senão convivência, de uma
miríade de males sem correção atual, e o aumento da longevidade humana, resultantes de
“curas” e prevenções de doenças (ADAM e HERLICH, 2001).
A medicina teve que fazer da saúde, primeiro, uma urgência, e depois, um problema
passível de resolução. Apresentou resultados concomitantes na manutenção da saúde e no
seu discurso, obtendo sucesso nos dois campos. Contudo, nem sempre foi assim: por
exemplo, instituições que hoje lhe são associadas, residências de seu domínio, antes tinham
servido, como o clássico exemplo do Hospital Geral da França do século XVII, de local de
confinamento de personagens sociais díspares como mendigos, loucos, libertinos,
homossexuais; sem qualquer ênfase de cura (FOUCAULT, 1999). Esses “males”
pertenceram um tempo em que era ainda fraca a dissociação entre perturbações físicas e
morais (DUARTE, 1986). Por isso parte da medicina de então estar mais preocupada com
as características da doença do que com as formas de cura. O foco era menos sobre o corpo
48
A autoridade médica está presente em muitos campos de atuação social. É usada para justificar muitas
“causas” e “interesses”, desvinculados de consultórios, clínicas e hospitais. Por exemplo, como forma de
credenciamento junto a um eleitorado.
42
do doente do que sobre o corpo da doença. Era a chamada medicina das espécies
(FOUCAULT, 1994), baseada em classificações das doenças por suas principais
características, com pouca eficácia no tratamento de males particulares.
A ordem moderna consagrou o cuidado com o corpo e a busca de cura de seus
“males”, não apenas desenvolvendo pesquisas médicas, como também inculcando
promoções e prevenções, “deveres com o corpo” (em relação à higiene ou ao controle,
programação, alimentar, entre outros), a servir como anteparos às doenças; sem mencionar
as campanhas de vacinação, acompanhamentos neonatais e ginecológicos todas essas
atividades articuladas de acordo com o modelo médico.
Foi, portanto, dupla sua intervenção: (a) no atendimento realizado em caso de
“enfermidade” (fosse “física”, “psicológica” ou “social”) e (b) na construção de um
discurso sobre a normalidade corporal em todos os seus aspectos; que podem ser
vinculados pelos muitos meios de comunicação disponíveis e reproduzido em escolas e
consultórios.
Quando vamos a um médico de qualquer especialidade para consultas periódicas ou
eventuais, pela vivência de algum mal-estar físico, compramos a versão de que, no mundo,
estamos constantemente expostos ao ataque de seres danosos à nossa saúde ou a disfunções
geralmente oriundas da falta de empenho em evitá-las, por formas inadequadas de hábitos
alimentares e corporais. Viveríamos, sob a versão alopata da medicina, como numa guerra
sem fim contra a doença (LAPLANTINE, 1991). Teríamos que fortalecer constantemente
43
nossas defesas para melhor combater “o” inimigo. Numa batalha diária (LUZ, 1988). Pelas
armas da medicina
49
.
François Laplantine nos recorda:
Um dos principais valores, na verdade o valor supremo característico da
cultura ocidental contemporânea, é certamente a saúde, considerada
como ausência total da doença. Esta idéia-força, que exprime ao mesmo
tempo sob a forma de um direito (...) e de um dever (...), mobiliza (...)
parte tão grande de nossa energia e é objeto de uma tal convicção, que
convém, em nossa opinião, qualificá-la de mitológica.” (LAPLANTINE,
1991: p. 120)
A exacerbação do cuidado com uma doença sempre disposta a fazer com que o
“mal” vença o “bem”; continuamente à espreita, pelas condições de um corpo que tende à
degeneração (MINER, 1993), leva-nos a uma expressão moral da atividade médica e de seu
entendimento dominante que, aliás, em nada invalida seus saberes propriamente técnicos.
Afinal, a afirmação de que a medicina, como outros saberes, participa da moldagem de
comportamentos, tornando dóceis os corpos modernos à moda de FOUCAULT (1991 e
1994), não redunda necessariamente na desqualificação de seus princípios e de seus
profissionais; nem, como a entendo, na negação de sua serventia no tratamento do que é
vivido como “desordem” e do que pode ser “curado” pelos saberes por ela constituídos.
Minimizar tais saberes seria o mesmo que advogar que todo ensinamento concretizado na
escola é apenas moral (ou “ideológico”...) por reconhecer a moralidade presente nas salas
de aula. A meu ver, dois equívocos sociológicos graves porque desconsideram a validade
significativa desses saberes e instituições junto aos que deles afirmam se beneficiar
50
.
49
Curiosamente, a perspectiva alopata sofre críticas de campos adversários entendidos como “vitalistas”,
entre os quais se destaca a homeopatia, por não ser hipocrática (LUZ, 1988).
50
Como lembrou certa vez Foucault: a noção de ideologia sempre carrega consigo uma certa pretensão de
Verdade (FOUCAULT, 1979a).
44
Isso não significa, certamente, que a pedagogia do “bem viver” se concentre tão
somente na medicina ou, mais amplamente, sob a forma de educação pelo corpo; assim
como em nenhuma instituição isolada ou sob um único meio. Ainda mais hoje, quando a
fala ascendente é a fragmentação... Não é meu intento substituir a interpretação que atribui
à escola o papel de ordenamento moral da realidade, por outra que coloque o saber médico
em seu lugar. Existem muitos espaços (e palavras) para muitas coisas. Quanto mais em
nossos dias. Mas é preciso pensar detidamente sobre formas que podem processar
ensinamentos necessários ao estabelecimento de limites e marcas sociais. Realizados,
concomitantemente, por muitas instituições da modernidade. A medicina impetra em parte
tal educação. Tanto visível quanto mais admitido o seu caráter biopsicossocial (SETIAN,
1979), sempre diluído na carne de seu discurso. Ele pode se apresentar típico e fresco entre
frentes novas, como a medicina do adolescente. E é esse o lugar dessa tese.
Por perspectivas diversas, muitos trabalhos trouxeram à reflexão as alterações
sociais que tiveram lugar pelo advento da medicina anátomo-clínica em princípios do
século XIX e suas conexões com entendimentos “epistemológicos” e políticas ascendentes
na Europa (FOUCAULT, 1979b e 1979c; LUZ, 1988) ou no Brasil (COSTA, 1989 e
ROHDEN, 2001). Outros estariam mais interessados em destacar o papel e a forma de
funcionamento da medicina nas sociedades modernas (PARSONS, 1965a) ou em sua crítica
explícita ou presumida; no último caso, destacando imposições de classe ou de gênero
(LUZ, 1979 e VIEIRA, 2002).
Entre os que relacionam modificações “estruturais”, ocorridas nas formas de
compreensão ocidental e características gerais da medicina moderna, destaca-se Michel
Foucault.
45
Na cadência das especificidades de temas e momentos, esse autor acabou nos
legando uma arqueologia dos saberes que, somada à sua genealogia dos poderes,
demonstrou, através de vários casos, a descontinuidade entre dois tempos históricos: (a) o
moderno, assumido a partir do século XIX, com a conclusão de marcos sócio-políticos
centrais, onde, para ele, destaca-se o novo quadro de aplicação de saberes, ascendente no
final do século XVIII e aplicável nas revoluções de vários setores da vida social, ligadas às
formas, também novas, de relação de poder; e (b) o clássico, caracterizado pela confluência
do suplício como forma de expressão de aplicação de penas dolorosas e espetaculares,
exercido através de torturas e execuções públicas (FOUCAULT, 1991), com uma expressão
de saber distante das dimensões mais práticas da existência, como a medicina das espécies
(FOUCAULT, 1994 e 1999), no espaço dos séculos XVII e XVIII.
Até o período moderno, os seres humanos nunca tinham ouvido falar seriamente de
“ciências do Homem” (FOUCAULT, 1992). Não eram possíveis sob os alicerces
aristotélicos do pensamento ocidental.
Por exemplo, a medicina clínica erguida no final do século XVIII, bem dramatizada
pelo “mito da libertação dos loucos por parte de Pinel
51
, inauguraria um novo
entendimento sobre a “loucura”. De onde viriam novas justificativas e práticas para o seu
internamento.
No campo do “mal agir”, a oposição típica do período clássico era entre Razão e
Desatino e não, como veio a se constituir depois, entre o normal e o patológico. Portanto, os
sujeitos em débito com a sociedade por uma vida considerada não ajuizada eram vistos
51
Trata-se da lenda, segundo ROUDINESCO (1994), inventada por Étienne Esquirol durante a restauração,
de que no período jacobino da Revolução Francesa, Pinel teria mandado retirar as correntes dos loucos do
hospital de Bicêtre. Seria uma demonstração de que aqueles, antes misturados com desatinados, deveriam
agora receber outro tratamento, simultaneamente mais científico e humano: como “doentes mentais”
(FOCAULT, 1999).
46
como desatinados; independente se loucos, homossexuais, mendigos ou blasfemos. A
“doença mental” ainda não se destacava entre eles, e menos ainda o entendimento de
normalidade que lhe esteia. Um outro tipo de visão sobre os comportamentos “atípicos”,
imorais ou simplesmente impróprios e desviantes (FOUCAULT, 1999) tinha vez entre os
europeus dos séculos XVII e XVIII.
Com a reforma que culminaria no nascimento da psiquiatria moderna, ergue-se a
idéia de “doença mental”, como um estado de anormalidade e, portanto, de inocente (muito
embora nocivo) proceder. Dessa forma, mesmo excluído, o louco passa a ocupar escaninho
diferente de seus antigos companheiros de confinamento. Afinal, o “sabe” o que faz;
refém que está de sua loucura. No que deve, portanto, ser curado; trazido à normalidade;
através da intervenção médica e de instituições restauradoras (da ordem “interna” e externa)
como o moderno hospital psiquiátrico (FOUCAULT, 1999).
Em O Nascimento da Clínica, Foucault desloca os olhos da psiquiatria e da idade
clássica para as imagens modernas de compreensão da medicina como um todo; suas falas e
afazeres na nova configuração de saber/poder.
Ele constatou que houve no século XIX o rasgo de um véu: a derrubada da
interdição de Aristóteles sobre a possibilidade de uma ciência do Homem (FOUCAULT,
1992 e 1994; PORTOCARRERO, 2000). Além disso, a medicina das espécies, tão somente
possível pela estrutura aristotélica de classificação orgânica (FOUCAULT, 1994), perde
sustentação, sendo substituída pela investigação direta do corpo.
Também o caráter especulativo dos discursos sobre o corpo humano cede lugar a
um outro, mais objetivo e preciso, justamente pela “verdade” conseguida através da
iluminação da intimidade das entranhas. Trata-se de um conhecimento empírico, realizado
pela pesquisa sobre o material que quer tornar visível e transparente para o molde, para a
47
disciplina... Que almeja um corpo humano submetido às suas verdades e não à das
moléstias que o pode acometer. O olhar muda de direção; chega ao “espírito” dos seres
humanos. Pela invasão de seus corpos (FOUCAULT, 1994).
A mais básica das características da medicina anátomo-clínica, ascendente no
século XIX, é sua visibilidade. Sua dependência do olhar. Olhar voltado à morte, pela
anatomia, e à vida, pela clínica; direcionado de toda a forma ao corpo; elegendo-o como
alvo, morto ou vivo. Transformando um paciente único em um ser iluminado, como espécie
e particularidade; pela comparação das observações anatômicas com a visualização de seus
sintomas com auxílio de ausculta e de exames laboratoriais (FOUCAULT, 1994). Pela
perseguição do olhar, enfim; aqui e ali; no distante e no muito próximo. Investigação que
leva à cura; que preserva, mantém, reconstrói... Todo e parte.
Por essas indicações, Foucault demonstra sua antipatia pela medicina. Por exemplo,
em mesma época, era clara a sua preferência pela literatura (MACHADO, 2000).
52
Contudo, não parece decidido a atacar as qualidades técnicas de seus profissionais. Seria
contrário aos seus argumentos mais preciosos. Afinal, quer lembrar que a garantia da
eficácia da relação de poder estabelecida entre médico e paciente é dada exatamente pelo
grau de sucesso na resolução de alguns “problemas” a eles encaminhados. Na capacidade
que a medicina teria de “salvar (convencendo que “pode salvar”
53
) vidas”. E de que deve
52
Foucault dava grande importância à literatura exatamente pelo caráter desinteressado do empreendimento;
por não pretender estabelecer ou “apreender” nenhuma Verdade objetiva (MACHADO, 2000).
53
Laplantine associa as palavras saúde e salvação, que, em idioma francês, possuem mesma origem. Isso,
para ele, seria como uma pista de que a dimensão de cura (“salvação física”), realizada através de muitas
formas disponíveis, inclusive a medicina moderna, tem ligação direta com a dimensão religiosa
(LAPLANTINE, 1991).
48
ser usada para diminuir a dor física, com auxílio da farmacologia
54
; ou tão somente a “falta
de explicação” sobre os males que “descreve”; servindo de amparo à outra espécie de dor.
No entanto, intérpretes de sua obra, inspirados, talvez, nessa mesma antipatia ou nas
posições defendidas por movimentos sociais de contestação moderna que usam o seu nome
(ERIBON, 1990), parecem ceder à idéia de que a atuação médica sobre os corpos e sua
maneira de reforçar laços disciplinares exigidos pela sociedade burguesa, principalmente
pela especialidade psiquiátrica, encontra a resistência de atores sociais que priorizam
manipulações simbólicas com base em manifestações geralmente diagnosticadas como
“doenças” a “loucura”, por exemplo através de interpretações místicas solidificadas em
seus próprios saberes (LOYOLA, 1984). No que correm o risco de não oferecer lugar
sociologicamente adequado à especificidade do saber médico.
Outros autores (NEVES, 1984 e CANESQUI, 1994) são enfáticos em ressaltar o
equívoco da “perspectiva da resistência”; principalmente, pela rapidez do olhar; que se
distancia da prática de pesquisados que não parecem pretender fazer de seus sistemas
religiosos e práticas particulares de cura substitutos completos da medicina oficial e suas
dinâmicas de tratamento
55
. O “mundo” parece menos dividido do que plural. Pois as
instituições religiosas, ao menos no Ocidente, convivem pacificamente, sem conflitos
articulados por parte de seus atores, com os saberes médicos ou com os a eles integrados.
Suas clientelas podem servir a muitos senhores
56
.
54
PINTO (1999) lembra que a medicina é, ao mesmo tempo, uma atividade socialmente dominante, muito
embora cientificamente dominada por saberes como a Genética e a Farmacologia.
55
Um dos exemplos mais vivos dessa perspectiva é o trabalho de LOYOLA (1984). Mas pode ser visto em
muitos outros (LUZ, 1979; VIEIRA, 2002).
56
ALVES (1994) estuda o caso de uma senhora que busca tratamento para as perturbações “mentais” de sua
filha em várias agências diferentes de cura, pelos conselhos de parentes e vizinhos, do centro espírita à
medicina oficial.
49
Concordo inteiramente com as considerações de Sérgio Carrara a respeito da
inadequação presente no “menosprezo” de alguns estudiosos das ciências sociais pela
dimensão propriamente técnica do saber médico (CARRARA, 1994)
57
. Afinal, reconheço a
capacidade da medicina em “restabelecer”, nos limites das observações realizadas por
CANGUILHEM (2002), àquilo geralmente denominado como “saúde física”, através de
saberes que, nós antropólogos, não dispomos como “especialistas”, mas partilhamos como
membros de sociedades que, mesmo possuindo outras formas de resolução de
“perturbações” diversas, dão ainda forte valor à ciência
58
e, principalmente, às suas
aplicações no campo médico.
No entanto, CARRARA (1994) parece atribuir a todos os que se propõem a estudar
a medicina por um prisma antropológico, a atitude de desconsideração frente aos seus
resultados clínicos. Como se apenas a arrogância pudesse justificar o “excesso sociológico”
de fazer dela um objeto de estudo.
Ao contrário, penso que a medicina deve ser estudada sociologicamente exatamente
pela centralidade que ocupa nas sociedades contemporâneas. Podendo servir à compreensão
de algumas de suas características mais marcantes, uma vez que entranhada nos valores-
idéias nelas disponíveis. Reflexão que deve se ater à observação das dinâmicas de cada
especialidade, além das conseqüências políticas e éticas de seus empreendimentos
59
.
57
Segundo ele, esse entendimento é fruto de um movimento sociológico conhecido como construcionismo
(CARRARA, 1994). Tal formulação questionaria o próprio trabalho médico, reduzindo-o a expressão de
relações de poder e veículo ideológico, responsável pela manutenção do quadro de referência cultural para as
sociedades ocidentais.
58
Boaventura de Souza SANTOS (2000) advoga o nascimento de uma ciência pós-moderna que, ao contrário
da moderna, permitiria uma aproximação maior entre as elaborações acadêmicas e as formulações e
necessidades do chamado senso comum. Também a objetividade e neutralidade científicas, tidas como básicas
na era moderna, seriam abandonadas, uma vez que admitidos os parâmetros interpretativos do fazer humano.
Mesmo o científico.
59
Seria possível, por analogia, perceber o quanto a ação médica, visando à “cura física” dos corpos de seus
pacientes poderia ter como conseqüência não esperada um quadro comportamental disponível às instituições
modernas, inclusive ao capitalismo; assim como os puritanos de Weber passando a entender o trabalho como
50
Minha atitude pode ser de respeito pelos profissionais médicos, que com muita
seriedade e generosidade me receberam quando com eles estive para a realização da
pesquisa que deu base a essa tese, e de reconhecimento da importância de seus pensares e
afazeres no quadro dos conhecimentos ocidentais, de que, obviamente, também me sirvo
quando necessário. Caso não fossem fundamentais, sequer se justificaria a realização de
pesquisa antropológica.
Não me cabe, como pesquisador, questionar ou mesmo traçar, “sem qualquer
controle” de meus pontos de vista, juízos que impossibilitassem, diálogo e compreensão
fundamentais à pesquisa antropológica. O que não significa que, mesmo assim, não
escorram de meu texto.
Trata-se apenas, sem querer desconhecer os bias inevitáveis ao trabalho de campo,
fazer com que não impeçam o questionamento constante dos dados construídos, ou o olho
no olho do outro. Pois ainda acredito que a boa interpretação antropológica surja da relação
do pesquisador com os sujeitos com quem conviveu até redigido o texto apresentado aos
seus pares (GEERTZ, 2002); como um anúncio daqueles. O foco, o objetivo, é a
compreensão antropológica parcial, relacional, fragmentada etc –, apenas possível pelo
intermédio de uma etnografia, limitada em seu alcance e intenção, mas fundamental para
indicar a intensidade de símbolos vividos por mulheres e homens no quadro de uma cultura
específica (GEERTZ, 1989).
Meus “nativos” (e não me parece desrespeitoso tratá-los assim!...) foram os
profissionais de uma nova área de atuação da medicina, às vezes, chamada de hebiatria.
Médicos de adolescentes, geralmente ligados à especialidade pediátrica, que só puderam ser
uma vocação acabou por ajudar a construir as bases éticas do capitalismo e mesmo da modernidade (WEBER,
1992). Ainda assim, deve ser considerado que os médicos, especialmente os de adolescentes, reconhecem,
ainda que sob outras nomenclaturas, a intervenção social que realizam.
51
alvos de minha pesquisa porque antes foram também pesquisadores de um outro objeto: o
corpo adolescente.
No Brasil, desde a década de 1970, muitas especialidades médicas discutem como
deve ser realizado o atendimento de indivíduos de idade entre 10 e 20 anos incompletos.
Principalmente pediatras, mas também médicos ligados à clínica médica, à dermatologia, à
ginecologia e à endocrinologia, iniciaram a construção de uma medicina específica para
adolescentes, através de grandes serviços a eles destinados. E assumiram também suas
especificidades em seus próprios consultórios particulares.
Na década de 90, após o desfecho de muitas discussões e lutas políticas, a medicina
do adolescente foi reconhecida no Brasil como área de atuação da pediatria
60
.
Este trabalho pretende compreender o aspecto pedagógico da regulação médica,
explicitada na medicina do adolescente pela admissão de seu caráter biopsicossocial.
Entende-se que sua concepção de corpo, reunida em pesquisas e intervenções clínicas, pode
estar ligada também a uma pedagogia claramente moralizante do corpo. Associada ao seu
tratamento e a técnicas para evitar “disfunções” e “riscos” (especialmente sociais).
Aplicáveis na resolução de uma série de “problemas” típicos de nossa sociedade, como
violência urbana, tráfico e consumo de drogas ilícitas, gravidez precoce, difusão de doenças
sexualmente transmitidas, obesidade...
Como sugerido (BUCHIANERI, 2004), pode ter se tornado possível tão somente
pela urgência de sua causa pelos momentos de indecisão e perplexidade em que vivemos,
vinculados a ventos novos.
60
A partir de 1998, a Sociedade Brasileira de Pediatria passou a conceder o título de médico de adolescentes a
todos que prestassem uma prova sobre conhecimentos básicos e formas de atendimentos destinados aos
pacientes dessa faixa etária.
52
Considerando que o pensamento moderno foi o único a separar, em seus esquemas
mentais mais do que em suas pesquisas empíricas, “ser” e “dever ser”, a dimensão
epistemológica da ética (DUMONT, 1985), tem-se a impressão de que os que acreditam
tratar “objetivamente” dos “males físicos” dos seres humanos, estão, igualmente, dando
resolução aos seus “males morais” – sob mesmo princípio: o científico; isto é, de forma tida
como objetiva e neutra; pretensamente desinteressada, portanto. De mesma maneira,
organizando e dando sentido a um mundo. E estabelecendo normas cotidianas.
Esse seria o elemento chave da pedagogia do corpo desenvolvida pela medicina.
Perpetrada nos adolescentes através, agora, de uma medicina específica. Que pode
legitimamente falar de seu corpo; de suas doenças, de seus distúrbios e normalidades. Para
assim poder encaminhar à sua cura. Poder juntar palavras sobre o seu funcionamento.
Construir discursos. Tanto para os consultórios médicos quanto para os meios de
comunicação. E difundi-los pedagogicamente. Por informações e conselhos. Mas também
pelo corpo. Pelo tratamento.
53
Capítulo 2: Biológico?!... Psicológico?!... Psicossocial?!...
A fim de uma interpretação da educação do corpo (explícita, como tento
demonstrar, mais, ainda, do que em outras frentes médicas) realizada pela medicina do
adolescente no espaço aqui entendido como físico-moral
61
, neste capítulo pretendo discutir
seus alvos predominantes. Busco compreender a que conjunto de problemas se quer dar
“solução” ou “reparo” e o que é apresentado como passível de “cura” ou o que é concebido
como “são”. De que tipo seriam as “perturbações” que se encarregaria em dar fim; e, por
conseguinte, em que campo estaria suas necessidades de promoção, prevenção e
restabelecimento de saúde
62
.
Há certo predomínio de análises críticas advindas da filosofia, das ciências humanas
e de setores dos movimentos sociais acerca do papel da psiquiatria na regulação social.
Mesmo sem condições de analisar o alcance e o desenvolvimento de cada pesquisa, sempre
me pareceu que, a despeito da riqueza argumentativa de algumas delas, mais acentuaram as
polarizações vigentes do que as discutiram. De todo modo, a intervenção médica inicial,
entre adolescentes, construtora de um dizer que pretende abarcar todas as dimensões do
atendimento de saúde por profissionais vinculados ao campo “biológico”, permite observar
as sutilezas da regulação social e sua conivência com a “eficácia técnica” desmembráveis
61
A análise sociológica de “perturbações” físico-morais presentes em setores da sociedade brasileira foi
desenvolvida por Luís Fernando DUARTE (1986) por intermédio do estudo da categoria “nervoso” e suas
variantes, entre frações das classes trabalhadoras urbanas. São assim localizadas: “... compreendem um núcleo
mais ou menos constante de sintomas ‘físicos’, embora possam eventualmente, e num sentido que se espera
vir a explicitar, abarcar quase toda a ágama de problemas, dores ou doenças que acomete o organismo
humano” (DUARTE, 1986: p. 29). Dentro desse quadro, pretendo compreender os “problemas” nomeados
pela medicina do adolescente.
62
Madel Luz relaciona criticamente a concepção médica alopática dominante no Ocidente à regulação tentada
pela sociologia (LUZ, 1988). Para ela, os dois saberes teriam destacados papéis reguladores. Em ambos, a
questão central seria exatamente o estabelecimento do normal e do patológico; do permitido e do proibido.
54
apenas analiticamente. Com a vantagem de ilustrar a tendência moderna de polarização de
elementos e de patologização dos problemas humanos.
Desse modo, tentarei pensar nos elementos chaves do saber nomeado, por alguns,
como hebiátrico
63
; no que o justificaria socialmente e em como é utilizado dentro do
mercado médico, oferecendo “respostas” clínicas em instituições de saúde e discursos que
apontam características, tendências e limitações “naturais” noutros espaços sociais de
“adolescimento” de corpos.
Por exemplo, muitos veículos de comunicação encaminham tais respostas, vistas,
ouvidas e sentidas
64
em programas radiofônicos ou televisivos; matérias e artigos de
revistas, direcionados aos adolescentes” e aos seus pais
65
; e em uma miríade de sites
voltados à sexualidade, aos cuidados com o corpo e às formas de prevenção de “riscos
sociais”; patrocinados, muitas vezes, por instituições de proteção da criança e do
adolescente; internacionais ou nacionais; públicas e privadas.
No primeiro capítulo, tive a oportunidade de reforçar o destaque dado por
LAPLANTINE (1991) à abrangência do conceito de saúde propagado pela Organização
Mundial de Saúde (OMS). Através dele, os profissionais da medicina não apenas
transformam-se em guardiães e promotores do bem-estar físico (dimensão mais diretamente
“lembrada” pelos membros das sociedades que utilizam a regulação médica), como
63
Nem todos os profissionais ligados à medicina do adolescente aceitam, sem ressalvas, a denominação
hebiatria para designar o conjunto de tarefas de que se tornaram partícipes. Apenas os adeptos da autonomia
da medicina do adolescente em relação à pediatria utilizam o termo; mesmo assim, alguns deles ao menos,
sequer se preocupam com a questão terminológica em si. Na medida do possível, indicarei a posição dos
atores mencionados quanto à conveniência ou não de autonomia para a medicina do adolescente. Trato
melhor destas questões no capítulo 4.
64
Renato Ortiz entende a expansão dos meios de comunicação como a peça chave para o desenvolvimento do
que denomina mundialização; e, por conseguinte, para a difusão dos conhecimentos e instituições modernos
(ORTIZ, 2000).
65
Por exemplo, duas das edições especiais Veja Jovens (VEJA, 08/2003; VEJA, 06/2004) são, de acordo com
suas próprias apresentações, simultaneamente, endereçada aos jovens e aos seus pais.
55
reforçam seus outros lugares, que contemplam também o tratamento de mal-estares
psíquicos e sociais.
Compêndios médicos consultados são unânimes em enfatizar a necessidade do
atendimento biopsicossocial do adolescente; de abordagens que sejam “holistas”,
polifônicas e humanistas
66
(SETIAN, 1979; COATES, 1993), como no texto que segue.
“Com as alterações aceleradas das últimas décadas, especialmente sociais, o
adolescente passou a ser mais vulnerável (...) É o adulto de amanhã que irá
assumir a responsabilidade de decidir os destinos do mundo. A defesa de sua
saúde orgânica, psicoemocional e social é um dever, uma obrigação da
sociedade e, naturalmente, da medicina. Tem de ser (sic) protegido como uma
unidade indissolúvel, biopsicossocial.”(COATES, 1993: introdução).
Curioso perceber como mesmo na superfície do discurso encontram-se mostras da
obrigação (do dever...) de proteção “naturalmente” delegada à medicina, que reforça a
possibilidade de identificá-la analiticamente como a instituição que detém o monopólio da
saúde legítima em nossas sociedades, amparado no próprio ponto de vista dos pesquisados
– elemento fundamental do fazer antropológico.
E também como a “constatação” da vulnerabilidade dos adolescentes
contemporâneos serve de justificativa e incentivo ao aumento da proteção médica nos
campos “psíquicos” e sociais”. Afinal, a mesma medicina que zelou pela manutenção
física da criança
67
, diante dos principais problemas da adolescência”, continuará a lhe
66
Como veremos a seguir, Buchianeri insiste no caráter s-moderno dos conhecimentos e das práticas da
medicina do adolescente. E, por isso, em sua suposta tendência umbilical de aproximação aos saberes
produzidos pelas ciências humanas (BUCHIANERI, 2004).
67
Isso certamente não quer significar que, no caso da infância, a medicina não exerça regulação no campo
comportamental; assim como que os adolescentes não possam ser tratados, de acordo com os recursos
técnicos disponíveis, de males compreendidos como físicos. A questão é a ênfase no atendimento integral dos
adolescentes; como um ser indissolúvel, biopsicossocial. o me parece a forma de intervenção típica da
pediatria sobre a criança; ou, ao menos, sua ênfase primordial.
56
oferecer “amparo” para o cultivo do comportamento condizente com um “corpo saudável”;
que deve alcançá-lo bem disposto na fase adulta.
muito se ressalta a importância do componente psicossocial
68
na medicina do
adolescente. Pode se dizer que esteve presente desde o nascimento do movimento que
gerou a futura subespecialidade. De acordo com a pediatra Verônica Coates, artigos e livros
médicos da primeira década do século passado já discorriam sobre a amplitude do
tratamento de saúde dos adolescentes, dando ênfase à multiplicidade de suas
“perturbações”; quase nunca “restritas” ao orgânico (COATES, 1993: p. 3).
Publicações médicas informativas, destinadas ao público geral (SOUZA, 1999),
ilustram como a medicina do adolescente, na condição de área de atuação médica
69
,
transcende a esfera entendida como biológica, sem dela se ausentar completamente, como
se verá adiante. Versam sobre as “descobertas corporais” da adolescência; os “problemas”
de aprendizagem ou de relacionamento escolar; os grupos de amigos e seus “perigos”; a
alimentação e prática de exercícios físicos; entre outros assuntos, com especial acento nos
aspectos emocionais das transformações em curso e na melhor forma de “administrá-los”.
Nesse tipo de literatura, nota-se a proximidade de temas oriundos da psicologia e
sociologia; sob roupagem e legitimidade médicas; reproduzindo a concepção de saúde
propagada por instituições como a OMS.
68
A categoria psicossocial é utilizada como oposto de biológico. Ou seja, a fusão do aspecto psíquico e social
não pareceu seguir a qualquer outro critério se não para a discriminação dos componentes que não possuem
origem orgânica.
69
No capítulo 4, torna-se claro que até o momento a medicina do adolescente (assumida por grande parte dos
entrevistados como hebiatria) é reconhecida oficialmente como uma área de atuação da pediatria, não se
constituindo como especialidade médica destacada, com sociedade e instituições próprias. Embora qualquer
médico possa atendê-lo, apenas pediatras contam com condições suficientes para a obtenção do título de
médico de adolescente. Nesse sentido, é mais uma das muitas áreas de atuação presentes na pediatria, como
são também a neonatologia, a gastrologia pediátrica, a cardiologia pediátrica etc. A tendência da Sociedade
Brasileira de Pediatria em abarcar funções de outras especialidades faz com que irrompam acusações de que a
pediatria tenta monopolizar subáreas “compartilhadas” com outras especialidades. Isso ocorre quando a
Sociedade exige, por exemplo, que uma criança hiper-tensa seja tratada por um pediatra subespecializado em
cardiologia pediátrica. Nesse ponto está também uma questão de mercado.
57
A medicina do adolescente trouxe luz à extensão das práticas médicas – nem sempre
restritas aos recursos clássicos da clínica (ausculta, toques, iluminação de cores e
volumes...) ou da etiologia (exames laboratoriais, radiografias, biópsias...). Ao seu agir
sobre “males” não redundantes da ação de parasita ou de disfunção orgânica; ou seja, nem
frutos de lesão física nem da insuficiência de órgãos internos, como sempre se discorreu,
entre polêmicas, nos tratados de história da medicina (ADAM e HERLICH, 2001). Uma
forma de intervenção mais comum a assistentes sociais e administradores públicos
70
.
Exercida por profissionais de saúde, fundamentados em saberes anatômicos, fisiológicos e
patológicos. Legitimados pela natureza, portanto. Pela própria biologia humana.
O foco integral do atendimento acabou por se sobressair nessa medicina.
71
Tanto
que as vantagens da clínica ampliada e da interface com os “problemas sociais” costumam
ser os elementos mais destacados pelos adeptos da “adolescente” subespecialidade
72
; logo
nos minutos iniciais das entrevistas e no prefácio ou introdução dos livros consultados
(SETIAN, 1979; COATES, 1993) como a demonstrar a importância, a distinção, de seus
conhecimentos. Indicando uma conquista; um passo à frente em relação às práticas médicas
consagradas.
70
Muitos (SAMPAIO, 2001; COSTA, 1989; RODHEN, 2001) abordam a atuação dos médicos higienistas
que ajudaram a estabelecer um sem número de modificações nas práticas e conhecimentos urbanos, definindo
padrões entendidos como corretos de comportamento e convivência no Império nascente. A Junta Central de
Higiene foi criada em 1850 e tinha como objetivo auxiliar na superação do “atraso colonial” (SAMPAIO,
2001). Assim, é reflexão sobre os limites da intervenção médica não é nem recente e nem tão pouco
despropositada.
71
É importante ressaltar o fenômeno mais precocemente visualizado na intervenção sobre idosos, gerada pela
geriatria, e, mais amplamente, por um campo interdisciplinar de estudos e tratamento chamado gerontologia
(GUEDES, 2000). Essa “frente de saúde” também dá ênfase a um tratamento holista e integrado a seus
pacientes; muito embora, dependente da (e direcionados pela) orientação médica (GUEDES, 2000). À frente
volto à questão.
72
A despeito das polêmicas, a medicina do adolescente, ou hebiatria, foi reconhecida como uma área de
atuação da pediatria pelo Conselho Federal de Medicina. Através da resolução n. 1654/2002 o Conselho
definiu o que poderia ou não ser considerado área de atuação e que normas estariam a elas ligadas
(BUCHIANERI, 2004). Assim pode ser definida: (...) modalidade de organização do trabalho médico,
exercida por profissionais capacitados para exercer ões médicas específicas, sendo derivada e relacionada
com (sic) uma ou mais especialidades.” (BUCHIANERI, 2004).
58
A “clínica médica de adolescentes” é apresentada como uma forma mais humana de
exercício da medicina, posto que aberta a outras perspectivas da área de saúde ou fora
dela – ao mesmo tempo em que compromissada com múltiplos aspectos da atenção à saúde.
Como me informou uma das entrevistadas, não por acaso, os clínicos gerais foram um dos
segmentos médicos a se queixar do que consideram a tentativa de monopólio da pediatria
sobre a medicina do adolescente. É importante ressaltar que, no Rio de Janeiro, ela teria
nascido nas enfermarias do Hospital Universitário Pedro Ernesto vinculado à UERJ.
Nasceu então pela clínica médica; pela compreensão de necessidade de enfermarias
especiais para o atendimento de adolescentes, uma vez que naquele período se postulava
que poderia trazer melhores resultados para o internamento dos indivíduos pertencentes a
essa faixa etária.
Alguns acreditam que os afazeres alternativos aos modos médicos picos estariam
a minar os pilares da tradição alopata ocidental, ligados a concepções modernas; além de
indicar caminhos futuros para a prática médica como um todo.
Sem desconsiderar os índices orgânicos relacionados
73
, cabe pensar no porquê
sociológico de crianças, (agora) adolescentes, mulheres
74
e idosos merecerem
especialidades ou áreas de atuação próprias no interior da medicina alopata. Uma vez que
os demais ramos médicos se valeram da concepção geopolítica do corpo (condizente com o
espírito de batalha característico) ou da busca de solução para enfermidades específicas,
73
Afinal, é reconhecida a predominância, por exemplo, de enfermidades típicas na infância; o que sugere uma
intervenção específica pela pediatria. Isso não significa que não sirva como intermediadora educativa das
mães; ensinando-lhes hábitos, posturas e valores. Promovendo saúde.
74
Fabíola RODHEN (2001) analisou as formas do olhar médico sobre o corpo feminino presentes no século
XIX a partir do conteúdo das teses então necessárias à obtenção do título de graduado em medicina e do caso,
muito debatido e difundido em jornais da época, de Abel Parente. Esse médico italiano havia criado e
difundido métodos contraceptivos, utilizados por senhoras “da sociedade”. De posse desses elementos de
época demonstra como tais teses justificavam posições sociais dominantes, especialmente em relação à
sexualidade feminina.
59
porém potencialmente graves como o câncer; ou coletivas e inesperadas como as
epidemias. De todo modo, a maior parte das especialidades permaneceu a tratar do setor do
corpo humano sob sua alçada (LAPLANTINTE, 1991; LUZ, 1988), tencionando combater
“seus inimigos” ou realizar restaurações pontuais que lhes assegurem senão a vida ao
menos a eficaz continuidade de suas tarefas cotidianas.
Por isso a validade de pensar até que ponto especialidades etárias ou de gênero,
como a pediatria, a medicina do adolescente, a geriatria e a ginecologia servem também,
mas não exclusivamente, à regulação social de seus respectivos pacientes; possivelmente
vistos como mais necessitados de cuidados, tanto físicos quanto sociais.
Talvez a estranheza causada por pesquisas sociológicas que tomem a medicina
como objeto de estudo advenha justamente da compreensão corrente de que existiria certa
contradição entre o tratamento físico (e seus fundamentos) e a possibilidade de regulação
social a oprimir cérebro e coração dos modernos. Tal compreensão torna qualquer
investida sociológica potencialmente suspeita de tentar deslegitimar os conhecimentos
médicos; técnicos, por assim dizer (CARRARA, 1994). Minha posição é a de que não
como estabelecer limite claro entre “causas” biológicas, psíquicas ou sociais para os mal-
estares humanos; ou entre a “realidade orgânica das doenças” e os símbolos a ela
vinculados. Entretanto, vale menos minha posição sobre o tema do que leitura rigorosa da
que me parece mais próxima da feita pelos estudados. Mesmo porque são sujeitos de forte
autoridade em nossas sociedades; para nós mesmos. Portanto, fornecem valioso testemunho
sobre nossas instituições e entendimentos-valores. E, ao contrário de chefes e pajés, que,
em certo nível, são apreciados e respeitados somente pelos “outros” estudados, não se
constituíram como alvos prioritários da tradição antropológica. A indicação médica de
caminhos para a vida social pode não impedir o sucesso de suas poções e performances.
60
Enfim, não invalida a “cura”; ou, como expresso na ngua de LAPLANTINE (1991), a
“salvação” dos pacientes. Nesse sentido, não apresento qualquer versão crítica da medicina
como um todo; nem pretensão de negar sua intervenção sobre os adolescentes. Considero,
inclusive, a “eterna suspeita” refém, em outro nível, dos valores-idéias modernos
(solidificados fortemente nos meios acadêmicos e científicos), que sustentam a versão de
que a dimensão do conhecimento é absolutamente distinta da vinculada aos valores
(DUMONT, 1985), em natureza e vontade. Dessa forma, qualquer discurso que se pretenda
“sério”, “verdadeiro” ou “comprovado” deveria, para assim continuar, estar isento de
valores.
A leitura da integralidade de suas características e necessidades (especiais quando
comparados aos que recorrem à clínica de um especialista por alguma ocorrência pontual,
na ocasião de qualquer enfermidade ou mal-estar considerado físico) pode não estar
dissociada dos tratamentos técnicos da medicina moderna
75
ou equivalente à dos que a eles
recorrem.
As próprias palavras dos pesquisados demonstram que um cesto de razões para
relacionar essas especialidades ao “risco (de desvio) social” de seus pacientes e suas
necessidades de socialização mesclado ao sucesso em minorar dimensões do sofrimento
humano. Mulheres, crianças, adolescentes e idosos/velhos
76
cada um ao seu modo
75
Já foi mencionada a impossibilidade de limites claros entre a cura de doenças consideradas físicas e a
regulação social; sua própria imprecisão e a de suas causas atribuídas. De mesma forma, é conhecida a
tendência, etnocêntrica não dúvida, de cada profissional eleger os elementos com que trabalha como os
determinantes de uma enfermidade ou comportamento. São comuns disputas entre psicólogos, médicos e
enfermeiros sobre a “dimensão” mais determinante dos comportamentos típicos de cada faixa etária ou tipo de
doença. O “ser” da doença pode receber várias características; segundo a imagem e a semelhança das
inclinações discursivas dos profissionais em jogo e suas tradições.
76
Na dúvida sobre que termo escolher para figurar na frase, optei pelas duas. Muito embora assemelhadas e
reconhecíveis no cotidiano brasileiro, representam sentido levemente diferente, a depender do contexto de uso
e das motivações embutidas. Sobretudo por que distinções referentes à “correção” de um e outro termo em
termos “políticos”; sendo a categoria velho entendida como pejorativa na maior parte das situações.
61
podem ser vistos como mais estranhados do que os demais no que diz respeito às alterações
sociais em curso; ou especialmente precisados de auxílio frente a muitos “outros” pais,
maridos, filhos, netos, “comunidade” etc. Por isso, priorizados pelo olhar médico. Para que
se tornem velhos, mulheres, adolescentes e crianças saudáveis, em muitos sentidos. E
defendidos, quando necessário.
Na medicina do adolescente, a ação moral é relativamente manifesta; pronta a evitar
que jovens se exponham a “riscos sociais” considerados crescentes, como gravidez precoce,
tráfico e uso de substâncias tóxicas, violência urbana, “distúrbios psíquicos” e alimentares
etc. A idéia de missão, de defesa, é inerente ao discurso sobretudo em situações que
envolvem atos de violência (não apenas físicos) contra adolescente, por seus iguais ou
próximos que podem se configurar como aliados em outras ocorrências. Esta questão pode
ser percebida nas orientações do Ministério da Saúde endereçadas aos profissionais dos
serviços existentes
77
.
“Empenhado na construção de uma agenda nacional para a saúde e
desenvolvimento da juventude, ao lado de outros setores do Governo e da
sociedade civil, o Ministério da Saúde vem realizando, em parceria com estados
e municípios, ações voltadas para a educação em saúde e prevenção e assistência
a doenças e agravos que mais afligem adolescentes e jovens brasileiros
gravidez não desejada, uso de drogas, contaminação por DST/AIDS, acidentes,
violência”. (BRASIL. MINSTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
Muitos entrevistados afirmam que antes do surgimento da medicina do adolescente,
ou hebiatria, os adolescentes estavam órfãos.
77
Este material específico, realizado pelo Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA), que abordarei
à frente, é direcionado ao treinamento de profissionais de saúde que trabalham com adolescentes (BRASIL.
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
62
Doutora Maria
78
: É, na verdade, a pediatria atendia até o início da puberdade. A
criança ficava púbere, adolescente, então era abandonada. ficava ali entre o
pediatra e o clínico geral. Coisa de mais ou menos... vinte anos... tem que ver
aqui [aponta para um livro que tem as mãos]. Então o pediatra começou a
perceber que esse menino estava abandonado né?! E começaram a surgir por
conta da modernidade, da... você sabe melhor do que eu que estudou isso aí... o
pessoal da sociologia... mudanças sociais e tudo. Os adolescentes começaram a
ter problemas: problemas como a gravidez, problemas com doenças
sexualmente transmissíveis, a violência... Então... é... contra... gravidez... DST...
é... o uso de drogas da década de 70 pra cá, que começou... Então a gente
começou a perceber que esse adolescente ele tinha que ter um atendimento.
Não, claro, um atendimento... Ele adoece também; com certeza, o adolescente
adoece também; tem pneumonia, tem gripe, tem tudo
79
.
A declaração acima pode indicar a urgência da intervenção de “especialistas”
dispostos a apoiar os pais na tarefa de educação de seus filhos; ajudando-o a entender “sua
linguagem” e a inseri-los mais adequadamente no mundo adulto, principalmente diante de
“novos problemas”. A ajuda educacional “extra” viabiliza a conquista, por parte desses
profissionais, de uma nova fatia do mercado médico.
É preciso notar que a médica acima citada afirma que “o pediatra começou a
perceber que esse menino estava abandonado”, enfatizando o papel da pediatria no
atendimento do adolescente. Contudo, como ficará mais claro em outros locais desta tese,
quem defenda uma independência da medicina do adolescente da pediatria; isto é, sua
desvinculação do campo pediátrico e a formação de uma nova especialidade.
De todo modo, por enquanto, importante é destacar a necessidade de um
atendimento médico voltado ao adolescente, como também é enfatizado no trecho de
entrevista que segue.
78
O nome de todos os entrevistados foram alterados no intuito de preservar o sigilo de suas identidades.
79
Muitos entrevistados fizeram a mesma menção. Literalmente, afirmam que antes da criação da medicina do
adolescente ou hebiatria, os adolescentes estavam órfãos. No que parecem revelar a compreensão de que os
adolescentes necessitam de um “auxílio paterno” para além de suas residências.
63
Doutor Marcelo: (...) O adolescente hoje é completamente órfão. E o adolescente
hoje é uma força de consumo, é uma forma com vontade própria. Quer
dizer, na verdade, a hebiatria está demorando... a medicina está demorando pra
perceber o que já aconteceu no consumo há dez anos. Há dez anos que a gente já
tem revista pro adolescente; consumo voltado pro adolescente... Tudo... E o
adolescente sente falta disso. Você fala com um garoto de 14 anos que ele vai no
pediatra, ele tem um treco. Se você... E claro porque ele quer... porque ele quer
ser reconhecido como um adolescente.
Mais uma vez, a necessidade da medicina “olhar” de forma particular para o
adolescente é enfatizada, uma vez que uma série de outras instituições fez isso o que
remete a um atraso em relação a outras instituições sociais, tal a urgência atribuída ao
atendimento médico dessa faixa etária. Contudo, na declaração acima, o termo utilizado
para o ramo médico que lidará com o adolescente é a hebiatria, demonstrando diferença de
entendimento em relação à exposição de Dra. Maria.
Para o pediatra e psicólogo social Luís Guilherme Buchianeri
80
, as “novidades”
clínicas e ambulatoriais da medicina do adolescente refletem as transformações
paradigmáticas em andamento (BUCHIANERI, 2004); seriam epifenômenos da transição
pós-moderna erguidos, de mesma forma geral, em outros campos da ciência ou em suas
aplicações. A posição de BUCHIANERI (2004) sobre os “novos paradigmas da ciência” é
tributária da obra recente de Boaventura de Souza SANTOS (1994 e 2000), logo, receptora
de suas versões sobre o que poderia ou não ser considerado pós-moderno.
Santos reuniu bom número de argumentos e indicadores empíricos para defender
que o paradigma moderno tem sido substituído por outro que, na ausência de termo melhor,
80
Para que o discurso possa ser entendido no interior de seu quadro de referências, torna-se necessário
registrar que Buchianeri é médico pediatra, com mais de vinte anos de atuação na subespecialidade, e mestre
em psicologia social. Sua dissertação (BUCHIANERI, 2004) me foi muito útil não apenas por atualizar a
visão dos médicos de adolescentes sobre o seu próprio fazer (categorizando sobre ele; sobre seu nascimento,
papel e características), como também por trazer, em seu anexo, a transcrição de quatro entrevistas com
médicos pioneiros e consagrados do campo, amplamente utilizadas na presente análise.
64
não seria demais chamá-lo pós-moderno
81
(SANTOS, 1994). Mais precisamente, afirma
que conviveríamos, no olho do furacão, com elementos tradicionais, modernos e pós-
modernos, combinados num processo de transição paradigmática; na direção dos últimos.
Nele, formas fragmentadas de “apreensão/construção” da realidade seguiriam a mesma
cadência, sem ser por eles estritamente determinados como se pensou, das alterações
produtivas decorridas da reestruturação do quadro operacional capitalista dos últimos 30
anos (HARVEY, 1993; OFFE, 1989). Transformações que deslocariam problemáticas e
práticas nos campos epistemológico, valorativo e estético secionados na versão moderna
do mundo –, que questionam a razoabilidade de posições filosóficas e políticas
totalizadoras, como o marxismo. Dúvidas acerca das promessas modernas chaves (como
igualdade, liberdade, democracia...) verossímeis somente pela idéia-crença de
universalização constante de um padrão de “Razão” e de progresso, entendido no sentido
econômico e moral (SANTOS, 1994).
Novos ares paradigmáticos propiciariam o aumento da crítica às formas clássicas
do fazer científico e aos seus dogmas mais inabaláveis. Sobretudo, ao autoritarismo
implícito nos modos de compreensão da racionalidade e da universalidade. Mas também
aos mecanismos “neutralizadores”, de legitimação de modelos políticos e econômicos;
formas de vida; visões de mundo. Sem mencionar sua história de desconsideração pelo
“meio ambiente” e, mais ainda, por saberes provenientes do chamado senso comum
81
Boaventura de Souza Santos admite o uso provisório do termo pós-modernidade até que se encontre
definição mais precisa para os múltiplos movimentos sintetizados em seu nome (SANTOS, 1994); ainda que
possa admitir que é expressivo em sua tentativa de classificação das novidades contemporâneas
apresentadas muitas vezes de forma pouco refletida e caricata. Se nenhum outro problema perturbasse sua
manifestação, a própria condição de “pós”, implicaria numa dependência estrutural dos parâmetros anteriores;
modernos, obviamente; como, aliás, alerta Renato ORTIZ (2000). Mas o grande problema da discussão
continua sendo o seu modismo inerente, o que pode fazer ceder à falta de crítica e ao uso indiscriminado de
interpretações.
65
(SANTOS, 2000) entendido como o espaço da expressividade cotidiana, oposto ao da
ciência – ou de estruturas sociais tradicionais.
Cúmplice desse quadro de referências, Buchianeri percebe o desenvolvimento da
hebiatria (termo encampado por ele) como um reflexo das mudanças paradigmáticas de
larga escala; mesmo processo que atingiria todas as instâncias de aplicação científicas. O
diferencial da medicina do adolescente seria sua conformação, desde o nascimento, às
condições evocadas como fundamentais à ciência pós-moderna (SANTOS, 2000;
BUCHIANERI, 2004). Como os Estados Unidos da América nasceram modernos de forma
silenciosa, a medicina do adolescente teria nascido pós-moderna, a despeito da expressão
oficial de suas instituições.
Buchianeri elencou características dos primeiros momentos da medicina do
adolescente, supostamente derivadas das transformações pós-modernas (BUCHIANERI,
2004) ou com elas afinadas.
Em primeiro lugar, a questão biopsicossocial; o tratamento integrado. A medicina
moderna, predominantemente alopata, tendeu a parcelar o corpo por setores e
especialidades respectivas, para melhor atendê-lo. Seus críticos centraram fogo em sua
concepção mecanicista e na desconsideração dos aspectos emocionais e coletivos de seus
pacientes (no campo clínico típico); mas também no descompromisso (freqüentemente
debatido) com o atendimento físico integral (LUZ, 1988). Ou seja, falta de “visão de
totalidade” em duas dimensões. Uma vez que a medicina do adolescente estaria, ao mesmo
tempo, a considerar os aspectos básicos da atenção à saúde simultaneamente à intervenção
na totalidade física de seus pacientes.
66
Em segundo (na qualidade de extensão do ponto anterior, da ênfase holista das
críticas pós-modernas), o tratamento multidisciplinar ou interdisciplinar
82
; capaz de agregar
um número suficiente de conhecimentos em torno dos serviços de adolescentes que
existem. Médicos pediatras e de outras especialidades, em intercâmbio com profissionais de
outras categorias (nutricionistas, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais),
partilhariam, em graus variados, técnicas e concepções em serviços de atendimento integral
de adolescentes.
83
Em terceiro, a aproximação com os saberes humanísticos; provenientes mais
particularmente da psicologia, do serviço social e da pedagogia; com ecos indiretos da
sociologia e da antropologia
84
. Supostamente a revelar a tendência de intercâmbio entre
ciências naturais e humanas; característica do que é entendido por Santos de “nova
realidade acadêmica” (SANTOS, 2000).
Em quarto, a utilização de saberes do chamado senso comum (prova de abertura
epistemológica?...); construídos sob linguagem não reconhecida como científica
85
. Por
exemplo, pela experiência clínica de longos anos. Apenas condizente com a crença-idéia de
que estamos, ou deveríamos estar, na direção de uma sociedade onde seriam maiores as
82
BUCHIANERI (2004) afirma ser o termo transdisciplinaridade mais apropriado para o caso, posto que,
segundo ele, uma quebra de barreiras disciplinares, e não mera junção de abordagens, estaria sendo construída
nos serviços conhecidos de atendimento à adolescência. Com essa afirmação, aproxima ainda mais seu objeto
de pesquisa da posição defendida por Boaventura de Sousa Santos e dos reflexos das mudanças
paradigmáticas sobre a ciência.
83
Por exemplo, no serviço de adolescentes do Hospital das Clínicas da USP e no Núcleo de Estudos da Saúde
do Adolescente (NESA) do Hospital Universitário Pedro Ernesto da UERJ. A equipe de ambos conta com
especialistas médicos de diversas áreas, além de profissionais da nutrição, do serviço social, da enfermagem e
da psicologia.
84
Curiosamente, o Dr. José Ottoni Outerial, uma referência da medicina do adolescente, cursou,
simultaneamente, a graduação de medicina e de ciências sociais, na Universidade do Rio Grande do Sul
(BUCHIANERI, 2004).
85
SOUZA (1999), por exemplo, afirma que parte de seus livros foi escrita pelas observações conseguidas em
sua experiência clínica mais do que por estudos sistemáticos, característicos da ciência.
67
possibilidades de troca entre as instâncias escolares e populares (SANTOMÉ, 2003)
86
.
Reino do multiculturalismo.
Os limites do presente trabalho não permitem uma discussão alongada acerca do
surgimento dos debates sobre o geralmente denominado pós-moderno
87
ou quaisquer de
suas causas primeiras. Contudo, parece aceitável que começaram a ganhar força no
Ocidente entre o final da década de 60 e o início da década de 70 do século passado
(HARVEY, 1992; LYOTARD, 1996; SANTOS, 1994; ANDERSON, 1999); exatamente
no momento de expansão e institucionalização da medicina do adolescente
88
.
Nos capítulos seguintes, tentarei tornar mais claro o funcionamento dos serviços de
adolescentes visitados ou informados por literatura própria e a estrutura organizativa dessa
modalidade médica. Cabe ressaltar a coincidência, relativa se considerada em perspectiva
abrangente, do advento simultâneo ou próximo dos dois mais referenciados centros de
atendimento de adolescentes: no ano de 1974: no Hospital das Clínicas da Universidade de
São Paulo (USP) e nas dependências do Hospital Pedro Ernesto da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro; que, hoje
89
, suporte às três áreas de atenção à saúde da regulação
médica brasileira
90
. Entretanto, é possível que atendimentos específicos tenham surgido
86
Versões ibéricas dos ideais pós-modernos são curiosamente otimistas quanto à possibilidade de construção
de uma nova sociedade – não apenas socialista – mas, sobretudo, multicultural (SANTOMÉ, 2003).
87
As formulações sobre a existência de um processo diferente do irradiado pela modernidade em curso na
contemporaneidade têm encontrado muitos adeptos e críticos. Além de autores que aproveitam a discussão
para elaborar novas perspectivas analíticas para sua disciplina; no caso da antropologia, isso ocorreu com
Marc AUGÉ (1994) e sua caracterização do que denomina super-modernidade.
88
Nem o funcionamento regular desde os anos 50 adiantou o reconhecimento oficial como especialidade
médica, conseguida em 1977 pelos profissionais norte-americanos (BUCHIANERI, 2004).
89
O caminho tomado pelo atendimento de adolescentes, atualizado na ação do Núcleo de Estudos da Saúde
do Adolescente (NESA), foi curioso. Começou na enfermaria (na atenção terciária, portanto) para mais
tarde ganhar lugar no atendimento ambulatorial.
90
A forma de partilha do trabalho médico brasileiro, instituída pelo o Sistema Único de Saúde (SUS), é a de
que a chamada atenção primária seria responsável pela promoção e prevenção de saúde; a atenção secundária
estaria ligada ao atendimento ambulatorial; ou seja, as instâncias responsáveis pelo atendimento clínico de
pacientes diante alguma ocorrência em que haja necessidade de intervenção médica pontual; enquanto a
68
antes das instituições mencionadas; sobretudo em consultórios particulares
91
. Além do
mais, não garantias suficientes de que foram mesmo os primeiros serviços por mera
carência de registro oficial.
De todo modo, não identifiquei consenso absoluto a respeito do objeto prioritário do
tratamento de adolescentes no Brasil entre os médicos consultados, apesar da unificação do
discurso em torno da abordagem integral. A concordância absoluta dependeria de um rígido
acordo entre os diferentes grupos médicos conectados ao mercado e as entidades de
representação e regulação dessa medicina
92
, impossibilitado, ao que parece, entre outros
motivos, pelas disputas políticas internas.
O atendimento pode dar mais ênfase ao aspecto bio do que ao psicossocial das
perturbações físico-morais (DUARTE, 1986) de que são vítimas os adolescentes e vice-
versa, a depender das opções metodológicas e mercadológicas de muitos matizes.
Defensores de um ou outro aspecto da questão foram unânimes em reafirmar o caráter
biopsicossocial do atendimento oficialmente instituído. Mas garantido, pelo que se vê, por
limites diferentes.
Há, por exemplo, médicos e instituições inclinados a priorizar as “ocorrências
biológicas” da saúde do adolescente, por defenderem que elas apresentam tratamento mais
regular, além de maior demanda dos pacientes. Ou seja, propensos a pensá-las como alvos
atenção terciária seria a responsável pelo internamento de pacientes que precisariam de um cuidado mais
detido e, por isso, realizado em enfermarias dos diversos hospitais da rede pública ou privada do país.
91
É relativamente comum na sociedade brasileira a constatação de que pediatras desde muito tempo
ocuparam o lugar de médicos regulares de pacientes adolescentes que atenderam quando criança, o que os
levavam a intervir, portanto, na saúde de pessoas com mais de 12 anos de idade. Isso ocorre bem antes da
recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria, conhecida apenas em 1998. Talvez a gênese da
necessidade que redundou futuramente na criação da medicina do adolescente como área de atuação da
pediatria e mesmo por sua reivindicação pelo ramo.
92
foi mencionado o quanto posições sobre a melhor forma de atendimento de um paciente adolescente
passam também pelas articulações políticas assumidas no campo. O que está longe da mera constatação de
que se constituiriam como reflexos simples de questões políticas. Afinal, não são apenas contaminadas por
elas, são o seu centro. Voltarei ao ponto.
69
prioritários dos procedimentos médicos e da reivindicação primária de qualquer atendido
93
.
Segundo essa vertente, os problemas não orgânicos do atendimento à saúde seriam
encaminhados, uma vez identificados na triagem, a algum dos profissionais da equipe
multiprofissional (freqüentemente mencionada como ideal para esse tipo de atendimento)
aos psicólogos, enfermeiros ou nutricionistas tão somente mediante necessidade
identificada pelos médicos.
No serviço de adolescência do Hospital Universitário da UFRJ, apesar da
possibilidade de interconsulta
94
, são os médicos, especialmente seus coordenadores, que
indicam os adolescentes que serão ou não encaminhados para o tratamento psicológico, ou
qualquer outro, com membros da equipe multiprofissional.
Foram os primeiros a questionar a afirmação de que “adolescente não adoece”, no
sentido de não serem “facilmente” acometidos por distúrbios orgânicos característicos, que
redundem em dor física, risco de morte ou degeneração das funções orgânicas. A depender
do enfoque, essa compreensão diverge da dominante em setores do chamado senso comum
ou em frentes menos biologizantes da atual subespecialidade, que costumam não priorizar
as recorrências clínicas de “base” orgânica, especiais ou habituais, acentuadas nesse
“período da vida”, mas sua potencial rebeldia ou falta de capacidade de adaptação ao meio
social.
Vejamos o que afirmam os defensores de uma ênfase mais orgânica do atendimento
do adolescente nessas passagens de entrevista.
93
Certamente, isso não significa que não se atenham aos aspectos psicológicos do atendimento que formulam.
Apenas não supõem que os problemas advindos dos adolescentes sejam essencialmente de origem não
orgânica, como, aliás, ficará claro nas palavras de um médico defensor desses princípios.
94
Consulta realizada por mais de um profissional da saúde.
70
Dr. Pedro: A Maria já deve ter falado, mas eu gosto sempre de frisar. Nós
frisamos sempre isso. Você vem da área da antropologia... Quer dizer... tem
(...)... o mesmo raciocínio: que [no caso dos] (...) adolescentes, grande parte dos
problemas, são psicológicos. Nada disso. (...) Nós temos problemas clínicos; nós
temos gastrite; nós temos hipertensão, obesidade, colesterol alto, todos os
problemas clínicos normais, tanto de criança quanto de adultos... E alguns
problemas realmente que são da esfera psicossocial. Mas não venha... Não é...
Há uma idéia generalizada de que adolescente é atendido por psicólogo. Não.
Fernando Costa: (...) uma idéia de que o adolescente o adoece; ou adoece
tão pouco que é residual.
Dr. P: Não.
FC: Estou dizendo porque de fato é uma coisa que...
Dra. Helena: Essa visão errônea de achar que o adolescente tem problema
emocional faz com que muitas vezes a própria situação que o adolescente traz
seja rotulada como uma situação psicossocial e deixa de... de diagnosticar
patologias orgânicas importantes.
Dra. Helena: Até pra gente não psicopatologizar demais. Às vezes a gente
percebe que o adolescente traz... Aquilo que ele traz o é uma queixa; não é
uma doença. É uma etapa normal do desenvolvimento daquele ser humano.
Que a família com dificuldades de lidar às vezes tende a querer patologizar. E se
a gente também manda direto pra psicologia (...) reafirma essa condição. Então
passa pela gente pra gente ver se é um adolescente normal ou se (...) realmente
precisa do encaminhamento para a psicologia.
Sobre as principais queixas trazidas aos consultórios:
Dra. Helena: Nós somos um hospital de referência. Então a população que a
gente atende aqui... As patologias que a gente atende aqui... A gente muita
patologia que todo mundo em cada unidade de saúde. Mas (...) patologias
que a gente o em outras unidades. (...) Então se a gente for ver em termos
de diagnóstico... É uma questão assim meio perigosa de cara descobrir quais os
diagnósticos mais comuns porque o nosso... quadro de diagnóstico é como eu
falei um pouco viciado. Porque a gente tem muita doença crônica. Porque
também o poucos hospitais no Rio de Janeiro que (inaudível) o tratamento de
doenças crônicas. Agora a gente tem como queixa mais freqüente é a cefaléia;
dor de cabeça. Como queixa é a cefaléia. (inaudível) doenças respiratórias. As
rinites... Os narizes escorrendo e as tosses... As dores abdominais são
relativamente freqüentes. Mas agora: a gente tem um número muito grande de
dores articulares; de quadros mais severos, porque nós somos referência. Então
tudo que é mais grave acaba parando aqui também.
Dr. Pedro: Isso da parte orgânica. Se você for perguntar uma parte mais
emocional, o que a gente vê muito é a rebeldia. Quer dizer, as mães não sabendo
lidar com a rebeldia dos filhos... E problemas escolares. Ou seja, os problemas
escolares que é um erro da medicina brasileira... Passa em um posto de saúde ou
um ambulatório geral e eles encaminham para o psicólogo ou pro neurologista.
Como aqui não vai pro psicólogo; primeiro passa pela gente; nós muitas vezes
verificamos que o problema foi uma história mal verificada no... no... no local de
71
origem. Ou seja, o pessoal pensou “ah, mal na escola; está mal na escola vai
pra psicologia...” Não; vai ver que o mal é na escola. O professor falta; é área de
risco e tem que fechar a escola; os pais o sabem ler... Têm outros fatores que
influenciam. (...).
Fernando Costa: E quadros de... (...) obesidade?...
DR. P.: Lotado; lotado. Inclusive... (inaudível) praticamente... Eu não sei o que
aconteceu nas últimas... quatro semanas... A gente está atendendo obesidade
e pressão alta. Não sei drenou sem querer...
FC: Que é comum na obesidade. Pressão alta é mais comum na obesidade.
Dr. P.: Muito, muito.
FC: E casos?... Quer dizer, casos devem ter... Mas assim... freqüência de
hipertensão sem obesidade?
Dr. P.: Tem, mas é menor. É menor; é menor...
Dra. Helena: É menor; bem menor; muito menor... A principal causa é a
obesidade. Sedentarismo. Associação da obesidade com o sedentarismo
também...
95
Essa é a versão predominante no ambulatório de adolescentes do Hospital
Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro, reproduzida, como se vê, nas
entrevistas dos médicos que chefiam o serviço, mas também dos residentes integrados ao
Programa de Educação Continuada (PEC) da instituição. Endossada até mesmo pelos
demais membros da equipe – que, além dos pediatras e seus alunos, conta com duas
psicólogas e uma enfermeira (também orientadora de estagiários em sua área) não
exatamente por concordância absoluta ou inocência em relação aos inevitáveis conflitos
internos; mas por conformação com a versão oficial, como também ocorre em outras
esferas sociais.
Cabe demonstrar o antagonismo entre o elemento orgânico e o emocional à amostra
no conjunto de palavras acima. Por conseqüência de seu posicionamento a favor da
determinação orgânica da maior parte das enfermidades, os médicos que dirigem o serviço
de adolescentes da UFRJ questionam a decisão de encaminhamento para a psicologia
tomada em postos de saúde ou outros locais de atendimento imediato; muitas vezes sem a
95
Muitas citações de entrevistas serão longas para que delas se aproveite o fio discursivo desenvolvido pelos
atores sociais, fundamentais a contextualização necessária ao aumento da densidade do dado que se quis
construir; da questão a que me propus debater.
72
consulta prévia de um profissional da medicina
96
. Segundo o entendimento desses médicos,
primeiro deveria se averiguar a possibilidade de existência de causas orgânicas para
depois, se fosse o caso, realizar o encaminhamento para o tratamento psicológico.
Por exemplo, podem interpretar que os problemas de aprendizagem estariam mais
relacionados aos fenômenos que contam com “causas” sociais (falta de professores,
condições da escola...) do que aos psicológicos. O que possivelmente reflete os conflitos
político-organizativos entre emissores desses discursos e seus inimigos
97
mais destacados:
exatamente os médicos que dialogam com conhecimentos oriundos do campo psi,
geralmente dissidentes da orientação de anexação da adolescência pela pediatria.
certa afinidade entre os profissionais mais abertamente “biologizantes” da
medicina do adolescente, em oposição aos posicionamentos provenientes do flanco
psicológico, e os que pretendem mantê-la como área de atuação da pediatria. Esses, além de
denunciarem o exagero das concepções que priorizam a esfera emocional do tratamento do
adolescente, acabam por considerá-lo potencialmente prejudicial, pelo atraso dos
diagnósticos mais precisos, posto que orgânicos. E tentam provar a existência de doenças
típicas ou predominantes na adolescência, justificadoras de sua ênfase biológica.
96
Essa discussão reproduz em pequena escala a pertinência ou não da regulação do chamado Ato Médico,
alvo de intensas discussões por vários setores dos profissionais de saúde. Segundo esse princípio, haveria
severa limitação dos serviços de profissionais do campo da saúde (como fisioterapeutas, psicólogos,
nutricionistas etc), uma vez que precisariam, para realizar seus atendimentos, da autorização de um médico a
comprovar sua “necessidade”.
97
O uso do vocábulo inimigo deriva da compreensão partilhada com Carl Schimitt sobre a definição da
política (SCHIMITT, 1992). Afirma ele: “O político precisa (...) situar-se em algumas distinções últimas, às
quais pode reportar-se toda ação especificamente política. Admitamos que as distinções últimas no âmbito
moral sejam bom e mau; no estético, belo e feio; no econômico, útil e prejudicial ou, por exemplo, rentável e
não rentável. A questão, então, é se também existe uma distinção peculiar não semelhante ou análogo às
demais, porém independente delas, auto-suficiente, e como tal evidente, como critério simples do político, e
em que ela consiste.
A distinção especificamente política a que podem reportar-se as ações e os motivos políticos é a
discriminação entre amigo e inimigo (SCHIMITT, 1992: p. 51).
73
Esse tipo de ênfase encontra bases internacionais. Um informe da OMS de 1977 faz
a seguinte classificação de doenças em adolescentes: (1) doenças que se iniciam em fases
anteriores da vida; (2) doenças específicas da adolescência; (3) doenças que prevalecem na
comunidade geral e são freqüentes na adolescência; (4) doenças que permanecem ocultas
ou inativas que começam a se manifestar na adolescência; (5) doenças que aumentam ou
diminuem durante a adolescência (COLLI, 1979b: p. 110). Com base nessa classificação, a
Dra. Anita Colli argumenta que a suposição da ausência de doenças orgânicas nesse
período da vida acaba por afastar muitos médicos que poderiam estar realizando
atendimento de adolescentes, uma vez que existiriam doenças específicas da adolescência
98
.
Outros médicos e instituições se inclinam a ênfases, projetos e ações voltados à
esfera reconhecida como psicossocial, nunca inteiramente negligenciada por nenhum dos
setores do atendimento do adolescente. Nem mesmo os membros mais “biologizantes”
entre os profissionais dessa medicina parecem dispostos a negar publicamente sua
importância, ainda que a pretendam minimizar; ponto atestado em falas e indicadores
próprios. “E alguns problemas que são da esfera psicossocial...”, reconhecem os defensores
mais aguerridos da ênfase mais biologizante. Problemas não resultantes de “causa”
orgânica direta; mas das modas desses tempos que não se cansam de tão novos. Mas a
questão é de ênfase; de recorte. E também de micropolítica.
De uma forma ou de outra, podemos confirmar os desmentidos acerca da ausência
do elemento bio nas consultas de adolescentes, da suposição de que todo médico dessa área
se preocupe exclusivamente com o aspecto psicossocial de suas “perturbações”. O destaque
dependerá do modelo erguido, entre outras razões, por questões institucionais e políticas
98
As doenças mencionadas são: problemas dentários, problemas nutricionais, corrimento vaginal, problemas
menstruais, gravidez, infecções, acidentes, problemas ortopédicos, epilepsia, neoplasias e problemas oculares.
74
(resolvidos parcialmente nos jogos regionais, inclusive) em diferentes graus. Contudo, o
campo pede respeito à definição de adolescência, não equivalente à de puberdade, ligada a
questões não propriamente orgânicas.
Mesmo sem condições de assegurar generalidade suficiente às palavras proferidas
por médicos de serviços e matizes diferentes, em minha pesquisa, o que ouvi, vi e li
freqüentemente se ligava, mesmo indiretamente, como na demanda por resolução de
problemas de crescimento e desenvolvimento físico, a temas psicossociais pensados pelo
intermédio de interpretações calcadas na dimensão biológica do saber médico. A
“fórmula” se mostrou abundante no campo de pesquisa e nas produções textuais
consultadas.
Dessa maneira, a devoção por assuntos psíquicos e sociais se combina à cura das
doenças consideradas físicas pelos que os procuram, reforçando a autoridade médica na
área (sempre legitimada no seio das sociedades que passaram pelas transformações
modernas exatamente pela capacidade curativa), que conferem a palavras parecidas, efeitos
diferenciados e especiais pelo fato de advirem de pessoas reconhecidas como capazes de
“salvar” vidas, posto que ligadas às “verdades” do corpo físico e, portanto, mais
referendados para indicar preceitos de comportamento. Na maior parte das vezes, seu
domínio técnico dita a preferência diante de outros agentes sociais e domínios, pois suas
recomendações são consideradas mais respeitosas e confiáveis. E não por acaso. Por
estarem fiados em saberes biológicos; sempre considerados fundamentais
99
.
99
Curiosamente, os modernos tenderam a dar pouca importância a elementos considerados menos concretos
da vida, como os de ordem simbólica. Pois vejam que incrível contradição: exatamente a sociedade que se
pretende mais “avançada” que as demais, ignora a sofisticação das criações dos humanos como seres não
condicionados diretamente pelo estômago ou pelos genes. Ver SAHLINS (2003).
75
Nunca existiu uma medicina do púbere ou da puberdade. Ficaria restrita, caso fosse
criada, ao tratamento de problemas relacionados à maturação sexual e à formação das
capacidades físicas, questões vinculadas às modificações corporais dos indivíduos humanos
em processo de desenvolvimento, geralmente encaminhadas aos profissionais da
endocrinologia
100
. Não foi o pretendido. A intenção era criar uma genuína medicina do
adolescente, que abarcasse o tratamento orgânico em eventualidades clínicas, mas também
o esclarecimento de “dúvidas” sobre as transformações típicas da faixa etária, nesse caso,
em todos os aspectos, mesmo finalizado o período da puberdade e sua série de questões
vinculadas ao crescimento e desenvolvimento dos órgãos humanos.
Mas o ponto central consiste na constatação de inexistência de uma medicina da
puberdade ou dos púberes; de que essa não seria a problemática obrigatória (BOURDIEU,
1992a) dos profissionais que ouvi e li mesmo entre os mais dispostos a defender a origem
orgânica de seus problemas mais urgentes. Os primeiros serviços dão prova do fenômeno.
Como insiste Buchianeri, muitos eventos de origem não orgânica foram neles debatidos
desde os momentos iniciais (BUCHIANERI, 2004), chegando a serem considerados os
mais dignos de atenção, em alguns casos pelos movimentos próprios de seus alvos: os
membros da faixa etária atendida por sua constante capacidade de mutação social e
diversidade
101
que tornaria inócua qualquer perspectiva não atenta à mutabilidade
inerente aos seres humanos; em especial os que se encontram em transição.
Esse é o motivo da definição de adolescência estar geralmente vinculada à dimensão
psicossocial. Em parte um reconhecimento das mutações comportamentais ligeiramente
100
Nos compêndios de medicina do adolescente consultados (SETIAN, 1979; COATES, 1993), eram os
endocrinologistas os responsáveis pela apresentação dos problemas de desenvolvimento precoce ou adiantado
etc., estando, por isso, mais ligados a explicações sobre os eventos relacionados à puberdade.
101
São tantas as chamadas tribos urbanas existentes que se torna tarefa difícil sua atual classificação.
76
concomitantes com o período de transformações orgânicas mais significativas como os
processos de crescimento e desenvolvimento, ou os de completude da maturação sexual.
“Marcas” que os levariam, em sociedades ditas “primitivas”, às deixadas pelos ritos de
passagem; onde ficam evidentes os mecanismos de construção de seres humanos para o
meio social.
Portanto, não falta quem entenda a tarefa prioritária dessa nova frente médica como
a de intervenção nas manifestações desviantes dos adolescentes, uma vez que nimas sua
necessidade de tratamento de saúde física. Como disse um médico entrevistado por
Buchianeri, “o profissionial tem que ter a ‘coragem de se meter na vida do adolescente’ e
‘disponibilidade real de aceitar as dificuldades do adolescente’” (BUCHIANERI, 2004: p.
84). Nesse caso, esse “se meter” teria lugar na área psicossocial, no campo
comportamental e valorativo.
Uma médica entrevistada discorda da possibilidade da hebiatria ter sucesso fora do
serviço ampliado, multiprofissional; desacreditando em sua aplicação regular e exclusiva de
atendimentos médicos isolados
102
. Para ela, ao contrário do que sugerem as palavras acima,
o adolescente não adoeceria com facilidade; inexistindo doenças específicas dessa faixa
etária que justificassem o tratamento médico em larga escala, como no caso da pediatria.
Afinal, não seria razoável imaginar que conte com a mesma demanda que as crianças em
relação ao atendimento em consultórios privados, e também porque vários "problemas" dos
adolescentes estariam associados às questões psicológicas e sociais. Por isso, defende o
aberto caráter educativo e, em certa medida, restaurador dessa medicina argumentando que
102
A instituição privada que visitei algumas vezes, onde fiz duas de minhas entrevistas, está voltada ao
atendimento de adolescentes. Mas também atendiam crianças, uma vez que muitos dos profissionais filiados a
essa clínica eram pediatras, o que indica certa dificuldade mercadológica em atender o público originalmente
pretendido.
77
ela deveria se ater mais diretamente ao sentido promocional e preventivo de sua
intervenção, em campos não propriamente orgânicos.
Pode ser que esse discurso advenha da própria especificidade do trabalho da
doutora, ligado à atenção primária. Analisemos de forma mais ampla algumas de suas
declarações.
Dra. Alice: Hoje em dia o que dá visibilidade à adolescência certamente não são
as doenças dos adolescentes. São questões mais relacionadas à sexualidade, à
violência, ao uso de drogas. Que tem uma... parte... desses problemas que dizem
respeito à área da saúde, que desembocam na área da saúde, mas que não são
problemas de saúde-doença, vamos dizer assim, que seja do nosso campo
médico só. E... Então daí a questão da especialidade médica de adolescente não
ter uma aceitação ou um conhecimento maior por parte da população, porque os
adolescentes o ficam doentes; a adolescência é uma etapa da vida saudável.
Então você não procura dico quando está na adolescência. E quando você
tem uma doença, geralmente, é uma doença grave. Que não é uma doença da
adolescência; é uma doença que está acontecendo na adolescência. E você
geralmente procura o especialista naquela doença. Então você tem, por exemplo,
um problema renal. Você tem uma doença que é mais prevalente na
adolescência do que em outras faixas etárias. Você tem (inaudível), (inaudível),
febre reumática; alguns (inaudível); alguns problemas relacionados a
crescimento e desenvolvimento. E que, de forma geral, você vai procurar o
especialista naquilo e não em adolescência. (...) O médico que é especialista em
adolescência na realidade ele não trabalha sozinho. Não consegue trabalhar
sozinho. Porque ele não lida com as questões sozinho. Porque está envolvido em
questões sociais, psicológicas, culturais... Então o nosso trabalho... pra você
oferecer uma... uma... uma boa saúde ao adolescente você precisa de uma
equipe. Então eu não considero... que... é... a hebiatria como uma especialidade
médica que o cara pode sozinho, abrir um consultório e viver disso. Enquanto
você... como pediatra pode fazer porque existe volume de crianças doentes que
justificam a procura de um médico. No caso da adolescência não. Então qual é a
importância de um profissional de saúde, médico, dentro dessa área de
adolescência?!... É mais a questão da promoção de saúde, a prevenção de
doenças... do que propriamente do tratamento. Agora, nosso serviço aqui
[NESA Hospital Pedro Ernesto], ele se organizou de uma forma totalmente
diferente disso que eu estou te falando. O serviço surgiu dentro de uma
enfermaria.
Ou em outro momento:
78
Dra. Helena: Eu costumo perguntar pros meus alunos: me fala uma doença da
adolescência, que seja da adolescência? eles pensam, pensam, pensam e não
conseguem responder. Aí eu falo: é, vocês não sabem porque não tem. Acho que
a única que eu conheço é acne!... (risos).
Fernando Costa: E que pode não ser grave, mas que perturba bastante o
adolescente... (risos)
Dra. Helena: Mas, enfim, é uma doença própria da adolescência. As outras são
de outras faixas etárias às vezes mais prevalentes na adolescência.
Ou pelas palavras de outro médico:
Dr. Marcelo: (...) O adolescente, ele está numa fase em que ele fica pouco doente.
A verdade é assim. A gente tem picos de doença: a criança fica muito doente;
doenças orgânicas... É resfriado, dor de garganta, dor de barriga, cólica, otitite...
Quem teve filho sabe... Toda pessoa que tem uma lembrança boa da infância
sabe, que na infância você fica muito doente. Na adolescência você passa um
período com poucas recorrências clínicas!... E tanto a adolescência quanto o
adulto jovem... E depois é que você vai voltar a ter outros problemas. Então é
uma fase que as doenças orgânicas... Não que uma doença psiquiátrica, ainda
mais eu que sai da psiquiatria, da psicologia, não seja uma doença. Você tem
uma quantidade menor de doenças. Você fica doente muito menos vezes.
Principalmente doenças agudas (inaudível). Você tem pouco. E o que (...) vai
aparecer?!... A grande sacada do adolescente... É uma fase de transição, ao meu
ver, (inaudível) a gente perdeu os grandes marcos de transição... Hoje existe
adolescência socialmente falando, antigamente não existia. Existia... É uma coisa
interessante. Antigamente existia puberdade e não adolescência. Hoje a gente
tem puberdade em conjunto com a adolescência, com a síndrome da
adolescência. Essa é uma visão que eu tenho. E o que acontece?!... Hoje a gente
tem isso. Então, uma grande parte das queixas: é queixa de socialização, é
queixa psiquiátrica... Entendeu?!... Então assim... Não é que o adolescente [seja]
(...) tudo doido, é tudo (inaudível) mental; não é!... Mas existe uma grande
parcela. Outra parcela dos adolescentes doentes... é... tem uma grande parcela
de adolescentes doentes cronicamente. Que tem febre reumática, que tem um
problema renal. Por isso que eu falo é melhor um clínico geral atender o... do
que... que o pediatra. O clínico geral, ele está com mais... a pessoa que fez a
residência de clínica médica tem mais visão de doença crônica do que o pediatra
no geral.
Fernando Costa: Que está muito mais vinculado (inaudível) aquelas doenças
típicas da infância.
Dr. Marcelo: Mais típicas... Tem doenças crônicas, mas é muito diferente. É
muito... Uma coisa é você trabalhar uma criança com HIV, outra coisa é você
tratar um adolescente com HIV. A dinâmica e as demandas do adolescente são
muito mais compatíveis com um cara de trinta anos com HIV: (inaudível)
sexual, adesão ao tratamento. Muito mais parecido. Por exemplo... Na prática, o
pediatra não tem que se preocupar muito com a adesão ao tratamento. É uma
preocupação, é. Mas o é uma preocupação final. Se ele pega gente com mais
recursos, ele sabe que grande probabilidade da criança aderir ao tratamento
porque a mãe quer, a mãe que faz o tratamento. Agora, o adolescente não; o
79
adolescente está no limbo. Por isso que ele tem um... vamos dizer assim... um
funcionamento de vida como adulto nessa partes, mas (inaudível) vai ter que ser
adulto. Então assim funciona muito mais pro adulto que pra criança.
Segundo essas palavras, os maiores problemas do período de vida adolescente
estariam no campo social, como na ênfase da doutora, ou no psíquico
103
, como destacado
pelo doutor. De todo jeito, registrados em dimensões não biológicas dos males. Não por
acaso, os dois estavam integrados, no momento das entrevistas, ao quadro de profissionais
do Núcleo de Estudos da Adolescência (NESA) do Hospital Universitário Pedro Ernesto da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A primeira como coordenadora de um dos setores
e o segundo como residente.
Esse serviço é bem mais amplo do que o que está em funcionamento na UFRJ (entre
outros motivos pela existência de atenção terciária
104
e de um quadro maior de categorias
profissionais envolvidas
105
), além de claramente mais interessado no atendimento de
questões psicossociais e no desenvolvimento de pesquisa acadêmica na área. Nesse espaço,
críticas à Sociedade Brasileira de Pediatria, especialmente, à suposta tentativa de
monopólio da medicina do adolescente, podem ser expressas sem constrangimentos.
Enquanto no serviço da UFRJ, a tônica é de absoluto respeito pela Sociedade e suas
diretrizes.
Para os profissionais do NESA, suas preocupações de promoção e prevenção da
saúde em amplo sentido podem ser observadas nos programas de forte ênfase educativa,
103
É preciso destacar que o médico em questão afirmou ter vivido parte de sua graduação em medicina,
interessado em questões ligadas à psiquiatria, o que poderia, em parte, explicar sua preocupação ligada ao
campo psíquico.
104
O serviço de adolescência da UFRJ não possui enfermaria separada para o internamento de adolescentes.
105
“A estrutura do NESA compreende três níveis de atenção: primário, secundário e terciário. A equipe fixa
conta com 83 profissionais, dos quais 45 são de nível superior das áreas de Medicina (10 especialidades),
enfermagem, nutrição, odontologia, psicologia, serviço social, fisioterapia, fonoaudiologia, biblioteconomia,
comunicação e programação de sistemas de informática – e 38 de níveis médio e elementar. Na área docente o
seu principal compromisso é a formação de profissionais críticos, competentes, capazes de intervir e
transformar a realidade.” (BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002: Apresentação).
80
especialmente voltados à discussão da sexualidade adolescente, em três deles citados pela
entrevistada: o Clinisex, o Elos e o Pros.
O Clinisex procura atender a qualquer demanda de informação ou tratamento
relacionado à sexualidade, da busca de subsídios para o reconhecimento de dificuldades em
relação ao desempenho sexual ao tratamento de doenças sexualmente transmissíveis. Mas
além dos atendimentos clínicos e das informações provenientes de suas pesquisas, os
profissionais envolvidos participam de atividades de promoção de saúde em escolas, feiras
de saúde ou qualquer outro espaço onde possam desenvolver palestras sobre a sexualidade
adolescente. Dessa maneira, é um programa que pode ir além dos muros onde o Núcleo se
organiza administrativamente e realiza os atendimentos ambulatoriais dos adolescentes.
Elos é a abreviatura de Espaço de Livros de Orientação em Sexualidade; que
funciona simultaneamente como biblioteca e videoteca, contendo material educativo
diverso, à disposição, por empréstimo, de qualquer pessoa. De estudante de nível
secundário de escolas próximas
106
a professores a procura de material para trabalhar com
seus alunos e pesquisadores em antropologia, como eu, todos podem ter acesso aos livros e
fitas sobre vários aspectos da adolescência
107
. É freqüentemente chamado de sala três, por
ser esse o seu lugar nas dependências do NESA. Nesse caso, o Elos é um espaço de
consulta e não propriamente um programa de ação que pode ser móvel.
A sala dois é o Pros (Programa de Orientação em Sexualidade), onde adolescentes
são atendidos individualmente ou em grupos, a escolha deles, para receber orientações,
principalmente, sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e métodos
106
Curiosamente, próximo ao Hospital Pedro Ernesto e ao anexo que abriga o NESA, duas escolas ligadas
ao Governo do Estado do Rio de Janeiro.
107
Vários livros e documentos por mim consultados foram conseguidos nesse local; entre outros, os ligados
ao Ministério da Saúde. Tanto os que versam sobre o treinamento de profissionais que atendem adolescentes
quanto os documentos relacionados particularmente à sua sexualidade.
81
contraceptivos. Ali, são distribuídos gratuitamente preservativos femininos
108
e masculinos.
Ao contrário do Clinisex, a ênfase recai mais sobre a orientação do que sobre o
atendimento.
Cabe ressaltar que todos esses programas contam com a colaboração de estudantes
de diferentes cursos da universidade, como matemática, ciências sociais, comunicação
social, odontologia etc; incentivados por bolsa de iniciação científica
109
. Afinal, o realizar
desses programas não depende de formação médica uma vez que quase não abordam o
tratamento de perturbações de destaque orgânico, o que deixa ainda mais claro o aspecto
educativo dessas ações.
Ainda sobre as dimensões mais marcantes das “perturbações” adolescentes, é
preciso considerar a dificuldade de desmembramento dos elementos biológicos,
psicológicos ou sociais diante de queixas recorrentes como a cefaléia a famosa “dor de
cabeça”. Mesmo porque, segundo uma das enfermeiras entrevistadas no serviço da UFRJ,
“adolescente adora sentir dor de cabeça”. Qual seria então “a” sua causa predominante?
Ao mesmo tempo em que sentida pelo jovem como dor física, de origem orgânica
(podendo ser, por exemplo, originária de um distúrbio ocular), nunca é totalmente
desvinculada de algum evento de ordem psicológica (CHIOZZA, 1987). Como também,
pela regularidade (constância) na faixa etária, razões para que seja imputada ao
aprendizado inconsciente dos seres classificados como adolescentes de uns para os outros;
na condição de grupo. Quiçá uma forma de alertar que não se sente bem em aspectos que
podem ser diferentes!...
108
Segundo a entrevistada, o NESA é o único lugar do Rio de Janeiro que distribui preservativos femininos
para adolescentes. A iniciativa é fruto de convênio com o Ministério da Saúde.
109
Curiosamente, segundo a entrevistada, não alunos de medicina ligados a esses programas como
bolsistas. A justificativa é a carga horária dita “puxada” do curso.
82
Portanto, a cefaléia é exemplar em sua confusão. Em sua capacidade de negar
tranqüilidade aos classificadores. Como ilustração das dificuldades em generalizar sobre as
perturbações humanas. Muito embora sob amparo de suas próprias palavras; ou, ao menos,
sob o relato médico do que foi extraído diretamente do dizer dos membros dessa faixa
etária.
À guisa de síntese, interessa destacar, de um lado, a existência de médicos que
reconhecem a presença de doenças típicas da adolescência, minimizando o alcance dos
problemas psicossociais ao mesmo tempo em que defendem a direção da medicina frente
aos serviços de saúde de adolescentes; e, de outro, os que insistem na predominância dos
“males” vinculados ao campo psíquico e social, propondo a criação de grandes projetos
multi ou interdisciplinares de intervenção, quase sempre tendentes à crítica quanto à
permanência da medicina do adolescente como área de atuação da pediatria.
Pode-se vincular a ênfase mais orgânica aos defensores mais aguerridos da
permanência da medicina do adolescente como área de atuação da pediatria, o que, de
forma não manifesta, traz a mensagem de que a adolescência teria vinculações diretas com
elementos construídos pelos indivíduos que por ela passam e o meio social que os
incentivam ou não a certas práticas. Afinal, sem mencionar questões de ordem política,
quanto maior a ligação com as instituições de atendimento de crianças, mais destacada a
ênfase biológica dos médicos envolvidos no atendimento de adolescentes. Considerando o
alto índice de doenças orgânicas entre crianças (faixa etária de clássica intervenção
pediátrica), supõe-se que quanto mais distante dela, mais afastado se estaria também das
perturbações orgânicas. O que foi lido nos discursos e na prática dos profissionais
observados.
83
Informações sobre gostos, modas e hábitos dessa faixa etária são difundidas por
veículos comunicantes diversos, como mercadorias
110
, canais e programas de TV, revistas e
sites próprios
111
– prontos a serem manipulados por interessados na compreensão dos
condicionantes da explosão contemporânea da adolescência assim como dos significados
presentes nas instituições que falam em seu nome (VIANNA, 2003), ponto sobre o qual,
parcialmente, me atenho no próximo capítulo.
A acusação, que em superfície irrompe como piada, de que todo adolescente é, na
verdade, um aborrescente figura entre os temas mais populares que gravitam em torno da
faixa etária, apontando para o entendimento social, razoavelmente generalizado, de que a
disposição para o trabalho, a paciência e a resignação diante de “chateações”
112
são os
requisitos básicos para lidar com eles. Tal destaque pode ser visto em matérias de revistas
veiculadas nacionalmente.
Por exemplo, a Revista Veja abordou esse e outros assuntos típicos nas três edições
especialmente direcionadas aos adolescentes e aos seus pais lançadas neste século. A
primeira chegou às bancas em setembro de 2001; a segunda, em agosto de 2003; por fim,
em agosto de 2004, a terceira. Na apresentação de cada uma delas, somos informados sobre
a consulta, dentro do possível, de especialistas para a fundamentação das matérias. Há, de
mesma maneira, indicações sobre o farto uso de palavras dos próprios adolescentes, pela
110
Octávio Ianni tem razão em destacar que a mercadoria carrega consigo valor e significado e não apenas
valor de uso ou de troca (IANNI, 1995). Marshal Sahlins dedica-se a demonstrar o caráter simbólico das
escolhas realizadas pelos seres humanos no que diz respeito à alimentação e ao vestuário (SAHLINS, 2003).
Assim, entendo que há neles também capacidade comunicativa.
111
Por exemplo, os seguintes sites abordam particularmente questões relacionadas à adolescência:
www.adolescencia.org.br; www.adolec.br; www.asbrabr.com.br; www.fia.rj.gov.br; www.therapon.org.br.
112
A idéia de que o adolescente aborrece é encontrada na própria literatura hebiátrica. Defendendo o
atendimento de adolescentes por pediatras, Marcondes afirma que eles teriam um dos quesitos fundamentais
ao atendimento do adolescente: a paciência (MARCONDES, 1979). No que reforça a idéia de que é preciso
uma disposição diferente do médico em relação ao adolescente, de “desconto” (como no dizer popular), que
clínicos, por exemplo, estariam pouco dispostos a ter.
84
formação de uma linguagem própria e diferenciadora. O que, contudo, não impediu a
manutenção da linguagem jornalística em suas sínteses.
curiosa oscilação interpretativa entre momentos biologizantes e psicossociais
percebida nas matérias que tentam “desvendar” as causas dos “comportamentos
característicos” dos adolescentes. Em uma mesma edição, hormônios eleitos por uma
matéria como os responsáveis pela atitude de qualquer indivíduo cuja idade varie entre 10 e
20 anos incompletos (período da adolescência de acordo com a Organização Mundial de
Saúde) podem ser, em matéria seguinte, por situação ligeiramente diversa, destronados de
seu papel determinante em detrimento de fatores psicológicos ou sociais, se em pauta se
encontrarem os reflexos culturais da globalização da economia ou do descentramento das
relações sociais. Ainda sem desconsiderar os aspectos propriamente psíquicos e sociais da
adolescência, cuja ênfase é procurada em alguns dos especialistas consultados, nunca
perdem de vista a possibilidade de explicação orgânica; preferindo-a na medida do
possível
113
.
Nesses casos, o tema que mais chamou atenção, por exemplar quanto às guinadas
que favorecem a explicação através da biologia humana, foi o dedicado às diferenças
comportamentais dos adolescentes como reflexo da falta de desenvolvimento de áreas
específicas do cérebro; ou seja, que identifica a raiz cerebral da “estranha” normalidade
aborrescente, abordada por matérias específicas em pelo menos duas das revistas especiais.
Entretanto, a matéria que está mais diretamente conectada à abordagem tipicamente
biologizante ganhou espaço apenas na última edição da série, exatamente na seção Saúde,
sendo intitulada A Ciência Explica o Aborrescente. Nela, condições cerebrais são
113
É possível que tal preferência corresponda ao próprio pensar-valorar moderno, que tende a imaginar os
elementos orgânicos como os mais facilmente apreensíveis pela mente humana se não pela de todos, ao
menos pela mente dos cientistas a eles vinculados.
85
relacionadas diretamente às causas das “chateações características” dos adolescentes, como
falta de atenção, mudança de humor e explosões emocionais sem nenhuma ponderação
sobre quaisquer outros condicionantes (VEJA, 06/2004: p. 35).
De acordo com ela, certas regiões do cérebro se tornariam maduras a partir dos
16 anos; enquanto outras, apenas aos 20. O que traria atrasos ao estabelecimento do
comportamento maduro, definitivamente adulto; estimulando a atitude típica dos
adolescentes (pós?-)modernos. Pela responsabilidade de cérebros incompletos; não
plenamente “otimizados”. Sem que nada pudesse ser feito... Sem que eles próprios ou seus
pais tenham qualquer coisa com isso!... Toda responsabilidade recairia sobre a “sábia”
natureza.
Ao lado do mapeamento do cérebro, um quadro demonstrativo do que poderia ou
não ser considerado normal entre adolescentes. Como uma síntese possível somente pela
suposição de que o percebido como distúrbio na fase adulta deve ser tolerável nessa faixa
etária ou deliberadamente esperado
114
. Entre os comportamentos adolescentes considerados
normais foram listados: "matar" aulas, ouvir som no último volume, arrumar confusões
com colegas... Entre os patológicos: quebrar a mobília, tirar dinheiro da carteira dos pais
sem permissão, usar drogas e álcool, ameaçar se matar diante de contrariedades...
Interessante imaginar como "matar aulas" pode ser considerado "natural" pela
carência de algum elemento em qualquer região do cérebro, uma vez que a escola e a ida
regular de seres como nós a instituições como ela precisaram ser sentidos como
necessidades em certos arranjos sociais e não pela ação mecânica de gen humano ou área
desocupada nas profundezas de nossas cabeças. Uma vez que a escola, suas determinações
114
Aí estaria o cerne da construção social da adolescência. A profecia que se auto-cumpre: a suposição de que
o adolescente, até mesmo pela sua condição orgânica, disporia de certos álibis diante de atitudes vedadas aos
seres considerados adultos nas sociedades contemporâneas.
86
e regras, conta com cambiantes, porém históricas, certidões de nascimento social (ARIÈS,
1976).
Mas a questão se torna menos curiosa e mais alarmante quando pensamos na forma
despreocupada com que fronteiras entre normalidade/anormalidade são apresentadas nos
meios de comunicação, desprovidas de critérios mínimos para qualquer classificação
razoável, supostas como pacíficas tão somente porque relacionadas à dimensão que mais
incita o convencimento sobre a interpretação acerca dos seres humanos em sociedades que
passaram por construções modernas: a biológica.
Mesmo especialistas competentes, que obtivessem êxito, através de exames e
medicamentos, na cura de males que agem sobre o organismo humano, não teriam como
explicar, sem qualquer matização, por classificação universal, à variedade de
comportamentos de seres que dispõem de modelos cognitivo e valorativo diversos, como os
humanos.
É preciso frisar que atitudes adolescentes estão sendo reduzidas, de maneira
apressada, ao plano biológico pela suposição do que diriam seus especialistas. Nas ondas (e
nos cabos) dos meios de comunicação de massa... Atitude contrária a dos médicos
consultados para a realização dessa pesquisa, mesmo os que dispõem de discursos
biologizantes, posto que estariam de acordo quanto ao fato de ser a adolescência um
fenômeno fundamentalmente psicossocial
115
ou, no mínimo, por reconhecerem a não
exclusividade das necessidades orgânicas de sua clientela típica. Não obstante, profissionais
da medicina proferem depoimentos em contrário, fornecendo seus nomes e títulos à
115
Poderia se argumentar, pressupondo inocência, que eles apenas reproduziram o esperado por um
entrevistador antropólogo. Muito embora, tal suposição se mostre parcialmente correta, uma vez que já é de
conhecimento antropológico que a posição do pesquisador altera o colorido das informações recebidas dos
entrevistados em um campo de pesquisa (BERREMAN, 1990), dados construídos a partir da própria literatura
médica assegurariam a não contradição dessas palavras; validando sua ênfase no psicossocial.
87
legitimação jornalística... Tais “vulgarizações” podem advir do uso, comum em jornalismo,
de especialistas para conferir autoridade às suposições presentes no esboço da matéria, sem
que suas palavras ganhem espaço condizente com o tempo disponível ao jornalista no
resultado final do trabalho informativo.
Trago a discussão à amostra apenas para ressaltar o quanto ensinamentos que
arrogam legitimação orgânica, supostamente médica inclusive, independem, muitas vezes,
da aprovação explícita de seus profissionais, como no caso acima; o que facilita o
estabelecimento de verdades cuja validade é imposta como universal sem sequer passar
pelo crivo do corpo médico.
O caso acima prevê a determinação cerebral dos comportamentos entendidos como
típicos na adolescência. Mas o que aconteceria com os que não apresentam tais “sintomas
naturais”? Seriam anômalos por sua “normalidade” (sob padrões adultos)? Teriam o
cérebro deficiente pela própria “inexistência” de “deficiências”? Seriam responsáveis (esses
sim!...) por sua maturidade?... Ou estariam ultrapassando os limites esperados dos
adolescentes, passando de desaforado (desatinado?!...) à doente, à anormal?
Se, por um lado, tais explicações isentam o adolescente de qualquer
responsabilidade, no sentido de torná-lo "vítima" de seu “despreparo” orgânico; por outro,
dizem ser um “inadaptável por natureza”; direcionando-o a um papel de passividade social
(BOURDIEU, 1983). Assim, podem ser entendidos sem serem respeitados; tolerados, sem
que se precise “levá-los a sério”... Como aborrescentes... Se não “conseguem” se
comportar condignamente, que então se contentem com o comando dos pais e de outros
adultos através da naturalização de suas práticas e da formulação de classificações sobre
seu comportamento anômalo, mecanismos que sempre possibilitaram boas imposições. A
isso pode levar o argumento cerebral acima.
88
Na última revista da série, as causas da aborrescência, pretensamente identificadas
no mapeamento cerebral do adolescente, contam com um número maior de ingredientes.
Argumenta-se, por exemplo, que o não desenvolvimento do córtex pré-frontal, encarregado
pelo senso de responsabilidade
116
seria a fonte das atitudes "intempestivas e irrefletidas"
dos adolescentes.
A “natureza” seria taxativa:
"Do sexo sem preservativo à imprudência na direção, os adolescentes assumem
comportamentos irresponsáveis em parte porque as estruturas mentais que
inibem respostas intempestivas ainda não se consolidaram" (VEJA, 06/2004: p.
35).
Diante de tal argumento, a explicação biológica ocupa lugar de destaque entre as
que pretendem entender a saúde do adolescente; de revelação conectada à “verdade
verdadeira” (como no dizer reproduzido/induzido às/das crianças) de seus comportamentos.
Dimensões culturais não encontrariam discussão. Aliás, daí deriva uma nova curiosidade.
Vi
117
no universo jornalístico uma tendência a cindir o âmbito de exposição dos
diversos especialistas: quando as questões discutidas são interpretadas como “sociais”,
chamam-se profissionais do campo sociológico; frente a considerações pretensamente
universais sobre o comportamento adolescente, procuram-se neurologistas e outros
profissionais, ligados ao grande campo da biologia ou com ele afinado como no caso das
116
Curiosamente, nunca é posta em questão o extremo cuidado com que o mesmo jovem que parece limpar os
pés nas etiquetas sociais pode cuidar com afinco de sua coleção de discos ou com o rigor de sua aparência
descuidada; afinal, pode demonstrar extrema responsabilidade em relação aos ensaios e à aparelhagem sonora
de sua banda de trash metal.
117
Estou entre os que, pensando o fazer antropológico como uma forma de interpretação de elementos
particulares conectados no interior de sistemas simbólicos (GEERTZ, 1989 e 2001a), procura ler construções
culturais como produções textuais.
89
psicólogas abaixo. Tal cisão beneficia, claramente, a explicação biologizante dos males;
como se solo firme se constituísse para as alterações “meramente” culturais.
A matéria Além da "aborrescência", publicada pela Veja em 16 de agosto de 2006,
volta ao tema desta vez ressaltando a ocorrência de estresse na adolescência
118
. Duas
psicólogas dão depoimento sobre as principais causas do mal. Por encomenda da revista,
uma delas constrói uma escala com vinte itens, cuja aferição poderia indicar se o
adolescente estaria estressado, podendo servir de guia para sua avaliação, desde que não
entendido como diagnóstico, de acordo com o alerta da própria reportagem, ao mesmo
tempo em que trata a encomendada criação da doutora como uma forma de atestar se um
adolescente está ou não estressado. Testes típicos de revistas populares, tomados como
índice de estresse juvenil. Se dos vintes itens listados, onze forem marcados, é sinal de que
índices de estresse no adolescente. Assim... A matéria descreve, em detalhes, o caso
vivido por um adolescente estressado.
Abaixo, analiso algumas questões salientes apresentadas.
Em primeiro lugar, a idéia de que todo adolescente é, por natureza, um
aborrescente. Um ser estruturalmente necessitado de compreensão especial, dentro de
limites seguros ainda que mascarado por discursos pouco mais maleáveis, posto que por
trás de permissão deliberada pode se esconder estratégias de mando e conservação ainda
mais severas. Dizeres sustentados na suposição de fronteira entre o normal e o patológico.
A despeito da justificação das "diferenças" e do reconhecimento de formas alternativas de
comportamento (de maneira geral, aceitas nessa faixa etária mais do que em outras), das
118
Trata de demonstrar que o estresse adolescente não se apresenta de acordo com as mesmas características
do estresse adulto, possuindo causas e manifestações próprias.
90
múltiplas identidades. Pois apontam para uma irresponsabilidade passiva. Um
descompromisso imaturo e dependente.
Em segundo, o curioso sustentáculo da matéria, erguida por psicólogas. Ainda que o
campo "psi" seja demasiado vasto para permitir qualquer avaliação de conjunto, e que
métodos mais complexos e menos imediatos, como a psicanálise, não sejam vistos,
geralmente, como a "melhor escolha" profissional para atendimentos pontuais
119
, confesso,
não esperava ler argumentos tão biologicamente endossados por profissionais inseridos no
campo "psicólogo". Mas, “pré-noções” antropológicas de lado: segundo elas, os
componentes tidos como fundamentais à vida adolescente seriam impedidos em sua
manifestação pelo estresse específico que o acomete, podendo trazer potenciais
conseqüências futuras.
Em terceiro, a quantificação dos comportamentos que oferece “certeza" talvez
demasiada aos pais; como a da ausência de parâmetros claros para separar uma tristeza
intensa de um quadro depressivo. Afinal, pontos de vista diferentes podem fazer com que
pareçam "normais" possíveis "estressados" (a seguir as categorias oferecidas) e vice-versa.
Dependerá, por exemplo, de se estar mais interessado em "ver problemas extras" em seus
filhos; ou, ao contrário, em observar a extravagância de atos "alternativos" (dentro dos
“critérios estabelecidos" pela lista "normais") sem que nada os faça pensar.
Em quarto, a ausência de consideração sobre diferenças entre classes sociais ou
qualquer outro agrupamento de natureza social. Todos os adolescentes seriam iguais;
119
Por exemplo, na entrevista a mim concedida, as psicólogas do serviço de adolescentes da UFRJ afirmam
não ser possível, o que é facilmente explicável pelo tempo e a forma de trabalho de que dispõem, a utilização
de métodos como a psicanálise com os grupos de adolescentes que chegam até elas. Muito embora, admitam
que trazê-lo como “pano de fundo” de suas análises.
91
independente de onde vieram; de que símbolos os norteiam, e de como se comportam como
membros de grupos específicos. Agindo por pura “natureza”.
De forma geral, a explicação psiquiátrica e psicológica sobre a adolescência (muitas
vezes complementar ao discurso apresentado pela hebiatria; senão em sua integridade, ao
menos, em flancos fundamentais de seu fazer em território brasileiro) tende a universalizar
a categoria adolescente. Não propriamente como um reflexo das transformações corporais
em si, como descrito acima, mas pelo impacto dessas modificações orgânicas sob a psique
humana. Adolescentes de todo mundo estariam unidos pelo império de lutos (ou perdas)
vistos como provenientes das alterações corporais e dos novos papéis assumidos; para os
quais estariam despreparados tanto quanto os seus pais.
“a adolescência é uma verdadeira e autêntica fase evolutiva do ser humano e (...)
deve ser considerada desde os vértice biológico, social e psicológico,
aprofundando cada área para integrá-los na compreensão da personalidade
adolescente de nossa época. Entretanto, deve-se marcar claramente que a
adolescência não é simples produto de um tipo de sociedade ou sistema sócio-
político, nem situação ligada a determinado nível sócio-econômico da população
e sim uma parte o período fundamental de todo o processo de
desenvolvimento humano, no qual os fatores sócio-político-econômicos
participam de forma intensa” (KNOBEL, 1993: p. 30).
O trecho do artigo citado reforça a visão de que, a despeito da “participação intensa”
de fatores sociais, a adolescência seria mesmo um processo evolutivo vivido de forma
universal; com angústias e realizações próprias.
Dra. Gisela: É... Eu diria assim: a fase inicial do adolescente, da adolescência, eu
diria assim: ela traz uma dificuldade maior de manejo. E de adequação daquele
adolescente. Por quê?...
Fernando Costa: Em relação ao mundo?!...
Dra. Gisela: Porque aquela história que a gente fala dos lutos; dos lutos do corpo
infantil, do pai infantil. Quer dizer, é onde o adolescente, ele está meio fora de
linha, ele não sabe direito o que está fazendo ali, ele não é criança, ele não é
92
adolescente. O corpo muda. As (inaudível) mudam; os interesses mudam; os
pais também mudam. Quer dizer, eles também estão perdendo o filho infantil,
estão tendo que dar mais autonomia pra aquele filho. Isso cria uma série de
conflitos às vezes na família. O adolescente querendo; os pais não deixando; o
pai o sabendo se é o momento ou não; aquela dificuldade: é o momento de
dar orientação ou não?... Os medos, as aflições. Então, esse início de
adolescência, a gente pode situar assim, como uma coisa assim, por ser mais
aflito e mais tumultuado essa relação, porque é uma coisa nova pra essa família,
da gente ter uma procura maior até dos pais a (...) receber orientação. Nós aqui
no Instituto, nós trabalhamos com uma clientela, daqui das mediações, que tem
uma carga e uma experiência de vida diferente daquele adolescente que vai pro
consultório. Quer dizer, ontem mesmo você... A gente falou naquela reunião,
que ela falou assim: “menina prostituta na maré com quinze anos já está velha!”.
Nós temos, o nosso adolescente aqui ele tem uma vivência... A gente tem
muito... tem casos de abusos. Nós temos caso...
O discurso reproduzido acima é típico entre interpretações do campo psi voltadas à
adolescência. Em seus fundamentos, a noção de que, na adolescência, teriam lugar três
perdas fundamentais: (a) a do corpo infantil; (b) a dos pais da infância, e (c) a da identidade
e papel sócio-familiar infantil (KNOBEL, 1993); também chamados lutos, como na
entrevista com a psicóloga referida. Levisky acrescenta um outro (sob sua linguagem) luto:
(d) o da bissexualidade infantil (LEVISKY, 1979).
Interessante perceber que no prosseguimento do trecho selecionado, depois de
assumido o discurso típico
120
sobre a adolescência (o que revela a tendência generalizante),
uma perspectiva particularista é assumida ao diferenciar, não apenas por hábitos, mas
também por formas visíveis do corpo, as adolescentes prostitutas da Maré (que com quinze
anos estariam velhas!...) das meninas atendidas em consultórios psicológicos
direcionados à classe média. Em certa medida, essa passagem faz com que sejam
reconhecidas diferenciações sociais ausentes em outros momentos dos discursos proferidos.
120
Como disse anteriormente, o campo psi é vasto demais para que seja possível a generalização de tais
afirmações. Por isso, uso o termo “discurso típico”. Porque encontrado na fala de muitos profissionais e
reproduzido na maior parte dos livros dedicados à medicina do adolescente.
93
Outra interpretação freqüente ao campo psi é a de que, apesar das contestações e
rebeldias, o adolescente estaria tentando garantir atenção, e até mesmo “repressão”, de
forma inconsciente, com as atitudes que tomam frente aos seus pais. Estaria,
simultaneamente, se afirmando, pedindo limites e testando a seriedade das normas
impostas. Ou seja, essa percepção tende a ler nas expressões dos adolescentes um chamado
ao controle, à educação e, por fim, à própria repressão dos atos considerados hostis ou
inapropriados.
“... o jovem para auto-afirmar-se agride e desvaloriza seus pais. Isto não
significa que o jovem o goste deles, pelo contrário, necessita deles com sua
presença e supervisão à distância.” (LEVISKY, 1979: p. 81)
Contudo, outros especialistas em adolescente reconhecem que nem todos
apresentam quadros destacados de rebeldia e comportamentos considerados possivelmente
desviantes para a maior parte dos adultos. Essa “maioria silenciosa” não se encaixa nas
caricaturas sobre a faixa etária e, talvez por isso, é pouco mencionada nos meios de
comunicação e setores da própria medicina.
“... nem todos os adolescentes passam irremediavelmente por um período de
turbulência neste período de vida” (SOUZA, 1999: p. 18).
Ou:
“Apesar de haver ainda muitos preconceitos e alguns tabus cercando a consulta
do adolescente, é importante lembrar que em muitos casos, senão na maioria
deles, o jovem atravessa a adolescência sem qualquer problema que chame, por
demais, a atenção. Bem adaptados na família, na escola, no trabalho e na
sociedade como um todo, esses adolescentes preparam o dia de amanhã com
calma, equilíbrio e amadurecimento, desmentindo assim o mito de que todo
adolescente seria problemático” (SANTANA, 1993: p. 11)
94
Toma vulto entre profissionais de saúde e meios de comunicação (A GAZETA,
11/03/2007) a identificação do bullying, que consiste na intimidação ou constrangimento
causados por implicâncias e agressões verbais ou físicas, principalmente nas escolas, mas
também em outros locais de agrupamento de adolescentes, sem mencionar as cobranças
abusivas e depreciativas advindas dos próprios pais. Esse “mal” tem sido percebido como
causa de fortes distúrbios psicológicos, podendo implicar em comportamentos agressivos
na fase adulta. O indivíduo que sofre escárnio nessa faixa etária tenderia à violência e à
dificuldade de relacionamentos presentes e futuros. Dessa forma, as interações adolescente-
adolescente e adolescente-pais podem causar danos irreparáveis à saúde mental de alguém.
Dra. Gisela: A outra dificuldade escolar... E que ontem, a nessa reunião foi
abordada ali, que é o pior caso, que eu acho, não vi a criança que foi colocada ali,
mas que é muito freqüente, é a questão do bullying daquele adolescente que
sofre as depreciações e, com isso, ele começa a apresentar uma queda escolar; ele
rejeita ir à escola porque ele o consegue esse enfrentamento com os colegas...
pra ele é uma coisa muito sofrida... Então o bullying, hoje, é uma coisa que está
sendo muito vista... A nível das... das escolas, a nível do... De como o
adolescente... O que ele sofre. E o bullying pode vir através de um professor,
pode vir através de um grupo, pode vir através de um colega, isso é uma coisa
que a gente percebe muito aqui. E existe a questão também do adolescente que
sofre abuso psicológico apor parte da família. Que é aquele adolescente que
desde criança apresenta uma dificuldade escolar e ele é comparado o tempo
todo. E ele: “ah, você é burro! Você é isso!” E o pai e a mãe cobram: “Você é um
imbecil! Você está na escola...” E aquele adolescente não consegue realmente
melhorar essa performance dele porque é o sentimento de menos valia” dele, a
auto-estima está muito... Está muito depreciada.
Nessa abordagem por fim os pais foram vistos como responsáveis pelas
dificuldades fundamentais do adolescente (principalmente por seu “não saber lidar”), o que
remeteria à necessidade de ajuda informativa extra (de especialistas); ou, inversamente, por
taxar como problema o que é comum a todos os adolescentes. Ou seja, tanto por não saber
dar limites claros aos filhos quanto por cobrar demais deles, a depender dos casos. Porém,
destacadamente, o acento recaiu sobre a ausência de responsabilidades em relação ao
95
comportamento dos filhos, atribuindo a outrem o que seria tarefa sua; como se professores,
babás e especialistas (como os psicólogos) pudessem desempenhar “sozinhos” o papel de
educadores
121
.
Dra. Gisela: (...) até pela condição do momento histórico que a gente está
vivendo, pelas dificuldades de vida, de trabalho, de permanência em casa; de
vida. Então os pais delegam a outras pessoas a questão da educação daquele
filho. Estou falando de maneira geral, de uma maneira geral... Classe média,
classe alta, não sei quê... A gente muito na classe dia alta, a questão do
papel da babá. É... Ba que leva filho pro médico; é a babá (inaudível); babá
que (inaudível) os horários; a mãe da criança (inaudível) determinada roupa.
Então você começa a perceber esse tipo de coisa, e aqui também isso acontece...
Então existem alguns casos aqui que a gente percebe claramente o seguinte: “tá
na psicóloga!!...” Está na psicóloga!” Entendeu?!... “Gasto meu tempo pra ir ;
vou toda a semana; gasto dinheiro de passagem!... Está na psicóloga!” Então
você fica repetindo aquela orientação pra aquela mãe, que vê de repente assim
(afina a voz): “A menina não melhora!”
Dra. Joana: “Ela não emagrece!...”
Dra. G: “Ela não melhora!” Aí você vira e olha só: “Como é a sua compra de
supermercado? Como é o seu hábito alimentar?” Por exemplo, seu hábito
alimentar...
Fernando Costa: Mesma questão (inaudível)...
Dra. Gisela: Aí você o xeque mate. “Não, eu faço. A senhora falou. O que a
senhora falou, a senhora me orientou, eu faço! Mas aí fica com minha mãe,
minha mãe ó... o biscoito, três horas da tarde o que ele quiser”. Aí você
o xeque mate. Você fala assim: “mas não adianta nada; eu estou te dando uma
orientação e você tem que chegar pra sua mãe e dizer que isso aí vai ser ruim
pra ele. Você não gosta dele, você não quer o melhor pra ele... Bá, ba, ba, ba...”
Quer dizer, o que a gente percebe hoje, de uma certa maneira, é o seguinte: está
na psicóloga, está bom. Está na escola: professora maravilhosa vai educar, vai
dizer que ele não tem que tirar meleca do nariz; que a menina tem que sentar de
pernas fechadas. E ainda cobra da professora determinados tipos de
comportamentos que não é papel da professora. Então hoje a gente está vendo
muito isso, os pais estão delegando a coisa do social e a coisa do profissional à
educação dos seus filhos.
Contudo, o entendimento psicológico do adolescente não invalida as considerações
sociais; podendo preferi-las, inclusive, às mais claramente biologizantes. Em especial, no
que tange ao impacto de alterações culturais sobre os conflitos psíquicos concomitantes às
121
Jurandir Freire Costa pensa até que ponto os especialistas não seriam responsáveis pela criação de
problemas familiares ao questionar a estabilidade da família contemporânea; criando direções para a sua
resolução que sequer seriam possíveis ou desejáveis (COSTA, 1989). Em outras palavras, idealizando
demasiadamente a própria família como entidade social.
96
modificações corporais características. Por exemplo, pelo anúncio precoce de temas ligados
à sexualidade por muitos meios, percebe-se, no decorrer dos anos, uma diminuição do
período de latência
122
, que levaria, concomitantemente, a um encurtamento da infância e a
uma chegada mais rápida tanto da puberdade quanto de todos os demais aspectos da
adolescência. Tal fenômeno demonstraria a interferência de características sociais sobre o
biológico; de informações recebidas como membros de um grupo social, portanto; e não
apenas sobre a área de organização emocional, que tornam precoces as alterações físicas
que possivelmente só ocorreriam mais tarde.
Muitos médicos de adolescente expandiram seus conhecimentos na direção do
campo psi, especialmente da psicanálise, como os doutores José Ottoni Outeiral. Também
Luís Guilherme Buchianeri realizou tal caminhada, uma vez que esse último defendeu sua
dissertação de mestrado em psicologia social. Além desses, uma de minhas entrevistadas
também afirmou está cada vez mais próxima da psicanálise. Contudo, é importante destacar
que isso não os afasta, por seus próprios pontos de vista, da medicina do adolescente; mas
ao contrário. Como a entrevistada que aborda as questões levantadas pelo intermédio de
uma óptica psicanalítica, no trecho que segue.
Fernando Costa: Por exemplo, quais os problemas que eles apresentam?
Dra. Paula: Por exemplo, a rebeldia; a própria... uma coisa como... o próprio uso
de drogas que é uma coisa que atinge muito. A gravidez na adolescência. São
todos problemas muito sérios dos adolescentes e que, na verdade, a gente
estudando psicanálise a gente que não o problemas dos adolescentes, são
problemas da família dele, pai e e e do contexto que ele viveu a aquele
momento e que desemboca num problema desse. E que o pai vem tratar o
adolescente quando, na verdade, a gente precisava estar tratando,
principalmente, aquela família.
122
O período de latência é um conceito cunhado no interior da tradição psicanalítica. Trata-se de uma etapa da
vida humana compreendida entre os 6-7 anos aas primeiras manifestações da puberdade. Nele, haveria uma
pausa na evolução da sexualidade, o que não significa que a criança não despertaria nenhum interesse sexual
até o momento da puberdade.
97
Disse acima que campos de atuação da medicina, ligados a grupos etários ou de
gênero, além de se aterem a questões particulares do ciclo biológico desses pacientes,
acabam por ajudá-los na regulação de seu comportamento social. Simoni Lahud Guedes,
através do mapeamento dos pressupostos orientadores da geriatria e gerontologia (um
campo interdisciplinar de estudos e tratamento de idosos, que inclui, entre outros
profissionais, geriatras, psicólogos, assistentes sociais), demonstrou o quanto, a despeito do
discurso de inclusão disciplinar, a diretriz sempre é médica. Ou seja, as palavras usadas
para a integração em equipes interdisciplinares, mesmo que transforme os saberes dos
profissionais não médicos em apêndices de seu trabalho, serão sempre eufóricos em relação
à defesa da interdisciplinaridade.
Talvez por acreditar na expansão geral da medicina para a dimensão psicossocial,
Dr. Marcelo, que se interessara, quando estudante de graduação, pela especialidade
psiquiátrica, compara hebiatria e geriatria, argumentando que até pouco tempo essa última
não passava de uma especialidade sem visibilidade, até conquistar tanto mercado quanto
respeitabilidade no meio médico. O mesmo ocorreria, segundo ele, com a medicina do
adolescente, o que demonstraria ser um campo em expansão.
Importa saber que além de se tornar um corpo de saberes e tratamentos sobre os
adolescentes que tenciona evitar que se tornem vítimas de males físicos, busca também
protegê-los dos problemas psíquicos e sociais. Estaria na responsabilidade pela
identificação e possíveis acertos entre o normal e o patológico os traços centrais da
regulação social realizadas pela medicina do adolescente.
Por isso, os sintomas mais destacados estejam relacionados à violência urbana, à
gravidez na adolescência, ao consumo e tráfico de drogas, à obesidade... Além dos
98
distúrbios alimentares razoavelmente recentes como a anorexia, bulimia e vigorexia. Mas
também a vigia quanto aos maus tratos que podem sofrer, muitas vezes de seus pais, tanto
por agressão física como por negligência.
Fernando Costa: Só a questão da violência e eu incluiria, por uma questão de
tempo, outras discussões ligadas aos adolescentes (inaudível) como uso de
drogas e tudo mais... A senhora estava falando dessa questão... Isso é muito
comum, receber aqui, por exemplo, adolescentes que tiveram... Foram vítimas
de violência?...
Dra. Alice: É. Nada de raro; comum demais. E não o adolescente que... Que
veio aqui com essa queixa; mas você detectar em um atendimento comum,
situações de violência.
FC: Escamoteada num primeiro momento então?...
Dra. Alice: E que essa não é a queixa. Violência do tipo... Você tem vários tipos
de violência. Negligência é o mais comum. Então, adolescentes que são... Não
são cuidados pela família. Então, por exemplo, uma menina de 12 anos que eu
atendi, com suspeita de gravidez. 12 anos. Ela veio com uma boneca. eu fui
investigar a situação... Quer dizer, a princípio, um médico comum, faria o quê?!
Faria um teste de gravidez; suspeita de gravidez e tal. Acabaria alí o
atendimento médico. Mas nós aqui não fazemos assim, a gente procura conhecer
a pessoa como um todo. essa menina... é... aum mês atrás, ela morava com
a e e com a avó. a e ficou sabendo que ela “se perdeu” com o
namorado, então mandou ela morar na casa do namorado. Então um mês ela
está morando com o namorado de 18 anos, que é um menino com problema na
justiça, ele já participou de assalto e roubo... Estava em liberdade condicional... E
a menina totalmente... É... Ela é uma menina de 12 anos, apesar de ter
menstruado e de ter tido relações sexuais. Mas essa mãe foi absolutamente
negligente de... Primeiro de não proteger essa menina pra ela não se expor a essa
situação, a esse risco. E segundo que... Te... Expulsou ela de casa pra morar com
o namorado porque ela tinha “se perdido” com ele. Isso é uma violência. Um
exemplo de violência. Outro exemplo: uma vez eu atendi uma menina surda e
muda, tinha um filho, 16 anos... E o... E estava com suspeita de gravidez.
Analfabeta, jamais foi levada pra uma escola especial pra aprender numa
linguagem... (silêncio por uns instantes).
FC: Própria.
Dra. A: Própria. O motivo da consulta o era esse. Era uma consulta clínica. Eu
nem lembro qual o motivo da consulta porque acaba não sendo tão menos
importante o motivo da consulta... E essa menina, o filho dela era do cunhado.
Ela tomava conta, ela era babá, da filha da irmã e o cunhado ficou
desempregado...
FC: Aí houve...
Dra. A: É. Estuprou ela.
FC: Foi estupro então?!... (Nesse momento recebo um olhar fulminante, um
misto de repreensão moral e de imputação de ignorância, por eu ter feito a
pergunta; uma vez que, independente de “permissão” ou não, o caso é visto
como estupro por médicos e justiça). Quer dizer, nesse caso é...
Dra. A: E ela... dois anos tinha a criança. Mas esse não era o motivo da
consulta. Então a gente identifica situações de violência na... No dia-a-dia do
99
nosso atendimento em que essa não é a queixa. Se você (inaudível), tem que
atuar. Você não pode ver uma situação dessas... E... E... Fingir que não viu. Você
tem que fazer algum tipo de intervenção pra proteger, pra melhorar essa
situação. Crianças fora da escola, crianças que trabalham. Enfim, o “n”
situações de violência, que a gente identifica no dia-a-dia do atendimento no
ambulatório e que não é a queixa da pessoa.
A violência foi, portanto, concebida de forma bastante ampla. Tanto que ficou
explícito o entendimento de que é preciso investigar o que está ocorrendo com o
adolescente em sua totalidade. Na tentativa de um saber que além da queixa inicial; o
contrário do realizado por especialistas típicos. O diferencial da medicina do adolescente.
Muito embora, a legitimidade para este tipo de intervenção ganhe em sua capacidade de
curar, de dar jeito no que se tornou patológico, seu principal sustentáculo, reforçando a
legitimidade de sua intervenção, diferenciada de outros campos do saber.
100
Capítulo 3: Como (se) adolesce um corpo?!..
A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera adolescência a fase da vida
humana compreendida entre os 10 e os 20 anos incompletos.
“Segundo relatório de especialistas da Organização Mundial de Saúde,
adolescência corresponderia ao período de vida situado entre 10 e 19 anos, com
dois subperíodos, de 10 a 14 anos e de 15 a 19 anos. Os referidos especialistas
introduzem, também, o conceito de juventude como sendo o período
compreendido entre 15 e 25 anos de idade. Assim, o hipotético limite superior
da adolescência, antes referido de 25 anos, melhor seria o limite da juventude,
que a adolescência terminaria mesmo aos 20 anos de idade”. (MARCONDES,
1979: p. 3 e 4).
De acordo com tal diretriz
123
, haveria jovens adolescentes e adultos; assim como
adolescentes jovens ou não, o que demonstra a frouxidão classificatória para cima e para
baixo das grades terminológicas a que os indivíduos reais, de carne e osso, que constroem
mundos e são construídos por eles, podem habitar. Tal interpretação confirma o que vem
sendo afirmado por várias frentes do saber acadêmico, e pela antropológica em particular,
sobre a inevitabilidade e relativa arbitrariedade das classificações humanas; o quanto pela
necessidade de amarrar o entendido como similar, os seres humanos forçam barreiras e
naturezas, forjando construções que estabelecem segurança ao agir no planeta onde
estamos.
Além disso, pelo uso corrente do termo pré-adolescente, em especial na mediação
realizada pelas produções jornalísticas que costuma englobar nessa categoria indivíduos
123
É preciso destacar que tal conceituação foi encontrada em uma coletânea publicada no final da década de
70 demonstrando não ser recente a classificação ampliada de adolescente. O que não significa fora do
âmbito de atuação médica, que, em outras instâncias, pode servir de localização no mesmo sentido.
101
entre 9 e 13 anos de idade (VEJA RIO, 10/2003)
124
torna-se clara a superposição, senão
indistinção, dos elementos classificatórios. Isso porque os mesmos sujeitos podem,
simultaneamente, serem nomeados como pré-adolescentes ou adolescentes; a depender das
circunstâncias e dos classificadores.
A despeito da reflexão, clássica em antropologia (DURKHEIM e MAUSS, 2001),
sobre o ato de classificar, nota-se como tal fórmula não permite sequer que a terminologia
utilizada agrupe elementos que se mostrem estruturalmente diferentes uns dos outros.
Jovens, adolescentes e pré-adolescentes seriam englobados em categorias que contém
interseções desconcertantes, uma vez que uma mesma idade poderia servir a uma e outra
classificação, sem que menção especial seja feita a respeito; como se a ambigüidade fosse
parte de sua natureza; ou como se seus artífices não estivessem preocupados em afastá-la de
forma oposta à classicamente difundida pelos discursos científicos, que tenta se primar, na
medida da possibilidade humana, pela precisão terminológica. Talvez essa característica
reflita a situação pouco sólida que buscam organizar. Como se a condição dos nomeados
fosse em si subversiva, em conflito com a suposta segurança dos conceitos.
Desse modo, a classificação médica do adolescente (que margem, como se verá
adiante, a imprecisões) espelharia as indeterminações dos próprios seres humanos de que
tratam e classificam. Isto é, a imprecisão dos termos utilizados se deve à oscilação dos
próprios objetos de observação empírica
125
, posto que, no mundo corrente, existiriam
124
É notória a imprecisão da noção pré-adolescente. Por exemplo, encontra-se atribuições dela direcionada a
seres da faixa etária que vai dos 9 aos 11 anos. Assim ocorre, em uma das estruturas organizativas da Igreja
Batista Brasileira, na esfera do que entendem como União de Treinamento reuniões que têm lugar antes do
culto oficial realizadas geralmente no domingo à noite e que tomam a faixa etária ou o gênero como critério
para a definição de seus membros –, existe a classe de juniores (composta de pré-adolescentes), uma vez que
intermediária entre a de crianças e a de adolescentes (COSTA, 1997).
125
Isso não significa que deixe de reconhecer o caráter arbitrário de qualquer classificação humana. Mas,
certamente, algumas parecem mais próximas da tentativa de exclusão de elementos entendidos como opostos;
próprios de outro escaninho conceitual.
102
adolescentes, pré-adolescentes e jovens de todos os tipos, expressões e idades; sem falar
dos não adolescentes compreendidos na faixa etária típica, aceitos pelas classificações; mas
empiricamente abertos a diferentes personagens.
Por isso suponho ser a dificuldade classificatória um epifenômeno das
representações médicas sobre as mutações próprias aos sujeitos que sofrem a intervenção
da medicina do adolescente. Nesse sentido, todos os médicos ouvidos ou lidos foram
unânimes em ressaltar, de forma despreocupada, a relatividade de suas próprias
sistematizações; sendo categóricos ao afirmarem que adolescentes de mesma idade podem
apresentar variações marcantes tanto no aspecto físico quanto nas maneiras de
comportamento social e organização psíquica.
“a aceleração da velocidade de crescimento (...) atinge o seu ponto mais alto
(pico de velocidade de crescimento) por volta dos 12 anos na menina, e dos 14
anos no menino, havendo, no entanto, amplas variações individuais”
(DAMIANI e SETIAN, 1979: p. 22).
E as variações são registradas não apenas no plano orgânico... É possível que as
alterações físicas tenham início antes da maturação psicossocial e vice-versa, sendo fácil
encontrar “crianças crescidas” ou “adolescentes pequenos”.
Geralmente os médicos ligados à endocrinologia se debruçam mais detidamente
sobre o assunto, descrevendo o processo “eminentemente” orgânico da questão nas
coletâneas médicas ou mesmo na participação direta em alguns serviços interdisciplinares;
a discutir problemas hormonais e de crescimento, entre outros; muitas vezes a partir da
polarização de categorias como puberdade precoce e atrasada, chamada muitas vezes de
infantilismo sexual (SETIAN, 1979a e 1979b). Os demais profissionais médicos da equipe
103
se concentram em enfermidades específicas, como as dermatológicas, ou em questões
psicossociais do atendimento adolescente.
“As manifestações físicas podem preceder as de natureza psicossocial e o
resultado será uma criança pubescente, porém portadora de atitudes infantis.
Ou então pode ocorrer o contrário: divergências, contestações e crises
existenciais em um indivíduo de corpo ainda infantil. Em ambos os casos, a
adolescência já começou” (MARCONDES, 1979: p. 2).
De todo jeito, se pelas transformações da puberdade ou pelas “atitudes típicas”,
relacionadas à chamada síndrome da adolescência
126
, sempre haverá lugar para a
intervenção do médico do adolescente, seus especialistas. Afinal, a despeito de suas
discussões internas e de eventuais conflitos políticos, trabalham numa perspectiva
biopsicossocial; buscando tratar o adolescente em sua integralidade. Portanto, assim que
um dos processos dê mostra de início se teria adolescência. E tratamento possível, se
necessário.
Dr. Pedro: Tem pessoas... É uma resposta [sobre as fases da adolescência] que
não é um consenso entre os pediatras; entre os médicos que atendem
adolescentes. Alguns consideram que existe aquela adolescência precoce de dez
a treze anos; média, de quatorze a dezessete; e tardia acima de dezessete. Outros
não consideram isso. O que é importante é que esses dados; esses... Seriam (...)
uma definição. Não é uma (inaudível) prática clínica.
A primeira das citações desse capítulo (extraída de um artigo que veio a público no
final da década de 70) informa existir entre os adolescentes uma divisão interna: entre os de
10 e 14 anos, por um lado, e os de 15 e 19 anos de idade, por outro. A adolescência estaria
cindida em duas fases, portanto.
126
Fica claro a seguir que médicos do adolescente, psiquiatras e psicólogos utilizam o termo para expressar as
experiências potencialmente conflituosas vividas pela faixa etária – problemas vistos como próprios da
adolescência.
104
Bem menos categórico, o doutor Pedro destaca três fases (de 10 a 13, de 14 a 17 e
de 17 a 20 anos de idade), chamadas respectivamente: precoce, média e tardia. Trata-se de
uma classificação com amplitude suficiente para abarcar a gama de variação dos
classificados. Contudo, sua intenção primeira foi a de lembrar a inexistência de definição
unívoca entre os profissionais desse ramo médico e de outros correlatos, como o
psicológico, o que o faz duvidar de sua praticidade clínica ao mesmo tempo em que
reproduz um dos entendimentos disponíveis aos profissionais da área, constituindo-se tão
somente como uma definição.
Fernando Costa: Doutora, qual a diferença do adolescente para o adulto jovem?
Que é uma das coisas...
Dra. Carolina: Pois é, nós estamos falando pra você. Se você falar de... de... físico,
de corpo, o adolescente é aquele que está maduro fisicamente, seu corpo está
maduro, ele acabou... terminou o estágio de seu crescimento físico, ele
está com a maturidade para exercer sua maturidade sexual, ele tem corpo pra
trabalhar fisicamente e tudo; agora, socialmente, algumas... Alguns jovens,
mesmo antes de 20 anos, estão trabalhando, casando, (...) mantendo a família.
Os pobres m que... que se tornar adultos mais cedo, às vezes, né. Socialmente
falando, né. E pessoas abastadas continuando com vida social e... ao longo da...
às vezes, até os 30, né. Então essa diferença em termos físicos isso é bem
delimitado, o indivíduo parou de crescer está maduro e tudo. Agora
socialmente, emocionalmente ele tanto pode ser imaturo aos 20 anos, como até
obrigado por circunstâncias alheias, em ter que assumir coisas de adulto mais
cedo. Então...
FC: Então... Então, mas o adulto-jovem começaria mais ou menos com que
idade?
Dra. C: O adulto-jovem ele começa aos 20 anos, e quando ele está emancipado
de sua família; quando ele (...) trabalha por conta própria; vive uma vida
independente; emocionalmente ele está seguro de não precisar mais do amparo
familiar, ele já é um adulto maduro. Entendeu?...
FC: certo. Então o adulto jovem... O adulto jovem seria, mais ou menos, uma
transição...
Dra. C: É, essa transição.
Perguntada sobre as diferenças entre adolescentes e jovens, doutora Carolina acaba
por ampliar mais um entendimento diluído nos escritos e falas da hebiatria: o de que a
adolescência varia de acordo com a classe ou organização social onde os indivíduos estão
105
inseridos, sendo mais ou menos prolongada, de acordo com suas origens. Mais uma vez, a
definição rigorosa cede lugar a matizações derivadas de observações socioculturais muito
embora, em várias circunstâncias, marque-se o aspecto orgânico; onde, se fui feliz na
proposta de interpretação do capítulo anterior, se legitima a prática médica.
Sua fala deixa claro o quanto o critério estipulado não foi o etário. O destaque
recaiu sobre como o adolescente dependerá do grau de maturidade em sentido amplo
(quase sempre ligado à idéia de autonomia) para ser elevado à condição de adulto jovem
(em um primeiro momento) ou maduro (em um segundo). Este critério estabelecerá os
marcos de transição no processo de maturação completa do ser humano, segundo esse
prisma.
Sem pretender adiantar discussão, é preciso ressaltar que a doutora Carolina lembra
o rápido amadurecimento dos mais pobres em relação aos que pertencem a estratos
economicamente mais elevados das populações urbanas. A própria condição vivida por
casamentos precoces, entrada mais cedo no mercado de trabalho e dificuldades financeiras
conduziria à responsabilidade típica dos adultos. De acordo com isso, a própria “dureza
da vida” propiciaria uma maturação mais rápida, adiantando processos.
Dra. Maria: !... Mas por que essa discussão adolescente/jovem? Por que ela
entrou? Por que ela entrou?!... Porque existe uma diferença aí... Uma divisão na
juventude. Eu o sei explicar pra você. Eu sei que vai de dez a quatorze anos,
de quinze a dezenove, de dezenove a vinte e quatro anos.
Fernando Costa: Então tem...
Dra. M: Tem uma divisão. Três níveis do que a gente chama de jovem
genericamente... Do que chama de jovem genericamente. Então até vinte e
quatro anos é considerado jovem depois...
FC: Então eu não sou mais jovem. (risos).
Dra. M: Não, você é adulto; não sei se adulto-jovem. Mas adulto.
FC: Tem que ver onde eu me encaixo aí.
Dra. M: É. Até vinte e quatro anos é considerado jovem. Jovem. Então de dez a
vinte e quatro. Com as escalas no meio... A juventude vai de dez a vinte
106
quatro, sendo que a adolescência vai a dezenove anos. Pela Organização
Mundial de Saúde... Pela Organização Mundial da Saúde a adolescência vai de
dez a dezenove anos.
FC: Então de dezenove aos vinte e quatro devem ser...
Dra. M: São jovens.
FC: São jovens.
Dra. M: Só jovens; não são adolescentes.
No último caso, três fases da juventude genérica foram expostas: dos 10 aos 14
anos; dos 15 aos 19, e dos 19 aos 24 anos de idade. Segundo tal avaliação, foram incluídos
na categoria sujeitos de 10 aos 14 anos, ausentes da classificação acima.
Dra. Ana: Até porque a adolescência é dividida em algumas fases. Tem um
primeiro momento que tem a estranheza, tem a dificuldade da situação da
mudança; depois tem a fase intermediária que é mais divertida, mas tem uma
fase final que é mais (inaudível), está curtindo a adolescência mesmo, o corpo
está mais formado, está curtindo isso, está namorando, está aceitando mais.
Então de acordo com cada idade tem as queixas; os pais têm as queixas, então...
A rebeldia vai surgir com 13 anos, 14 anos então... se tem... perfil (inaudível).
Mas é muito sutil. Porque têm aqueles que estão mais infantilizados, têm
aqueles que estão mais amadurecidos. Então o é fácil de achar... De pegar um
prontuário: “ah, esse tem 14 anos eu vou me deparar com isso!”
Mais uma vez a divisão interna da adolescência é apresentada em forma tripartite;
embora sob ênfase bipolar. Tanto que desemboca sobre dois momentos marcantes para os
adolescentes: (a) o caracterizado pelas maiores dificuldades em relação às transformações
do corpo e à realidade dos novos papéis, e (b) o identificado pela curtição da nova fase:
aproveitada, principalmente, por namoros e saídas, experimentações e descobertas. Na
última delas, possível pela conquista de alguma autonomia decisória nem sempre afetiva
ou financeira.
O que importa na discussão desencadeada não é tanto a percepção de ausência de
respostas seguras sobre a melhor ordem classificatória, virtualmente consensual entre
médicos, compostas como oficiais em seus artigos e entrevistas. Nem mesmo a
107
interferência de fatores irrelevantes à compreensão geral do tema, como a falta de memória
ou de fontes documentais precisas – compreensíveis nesses casos, mas quanto o seu próprio
objeto de intervenção seria movediço. Pois os adolescentes de 14 anos não seriam mesmo
todos iguais.
Não como postular que os marcos centrais da adolescência sejam percebidos da
mesma forma por todos os membros da faixa etária que a caracteriza. Poderiam existir
adolescentes de 30 e adultos jovens de 18 anos, o que não quer significar que encontrem
qualquer impedimento à leitura de suas características, através de definições. Não é
desconhecido o fato de sempre precisarmos de base classificatória para a estruturação de
nossas ações em um mundo sem ordem segura em muitas dimensões.
Tais questões me fazem recordar das sugestões de Geertz, retomando uma questão
fundante da antropologia, a respeito da dimensão social do pensamento humano (GEERTZ,
1989). Do quanto o sentido dos elementos materiais e ideais do mundo pode ganhar
existência individual mediante as orientações significativas disponíveis em um sistema
simbólico partilhado com outros membros em um corpo social específico (GEERTZ, 1989;
DURKHEIM e MAUSS, 2001).
Não apenas pensamentos (aspecto cognitivo) como também comportamentos
(aspecto ético) coletivos serviriam de guias para a realização do nomeado como
adolescente em indivíduos de variado estágio de maturação orgânica. Todos pensados
como adolescentes até que, pelas experiências pessoais em momentos diferentes de cada
vida, por força dos novos aprendizados, sejam chamados de adultos. Se for o caso de serem
assim pensados por seus concidadãos, depois de completado o inevitável ciclo de
108
maturação biológica. Afinal, destaca-se como reclamação pública, a existência, no mundo
adulto, de “crianções”.
Ao longo da história do Ocidente, diferentes visões predominaram sobre os
“períodos da vida” que hoje denominamos infância e adolescência. No clássico estudo
sobre a história da criança e da família, Philippe ARIÈS (1981) não apenas busca recuperar
recomendações morais similares dirigidas aos pais e ao que chamamos crianças nos
últimos séculos do final da Idade Média, através do aprendizado direto, como salienta que a
própria idéia de infância, e mais ainda de adolescência, seria desconhecida.
Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não
tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência
ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância
nesse mundo. (ARIÈS, 1981: p. 50).
Houve, portanto, momentos do Ocidente em que nossas frágeis crianças não foram
mais do que “homens pequenos”; o que ficou expresso em manifestações artísticas
variadas, como pinturas, esculturas, gravuras etc. A infância poderia não representar
nenhum valor especial nada denotando de específico senão o de um período em que os
seres humanos seriam considerados incompletos, não plenamente desenvolvidos; nada
oferecendo de interessante, por exemplo, ao campo pictórico. Foi o caso da arte medieval
(ARIÈS, 1981) anterior ao século XII, posto que a iconografia sacra do período apresentara
cenas de crianças em passagens bíblicas conhecidas, com estrutura muscular, expressões
faciais e vestuários de homens adultos, apresentados em tamanho reduzido.
109
Em espaços diferentes, pela observação da prática cultural de povos que, em
primeiro momento, foram (e talvez ainda sejam) estranhos ao Ocidente, o trabalho
antropológico demonstrou, em vários episódios, a relatividade das categorias infância e
adolescência (MEAD, 1981); provando, pela observação e sistematização de experiências
de outras sociedades, não constituírem um consenso humano.
Aliás, registra-se na história da antropologia um grande número de pesquisas que
comprovam a interferência, talvez fosse melhor dizer combinação, de elementos simbólicos
com o funcionamento “natural” do organismo humano (MAUSS, 2003; MEAD, 1981 e
1988; BERGER e LUCKMAN, 1999; GEERTZ, 1989; SAHLINS, 2003)
127
. Seus
resultados têm questionado a reação direta dos estímulos orgânicos sobre as atitudes e
práticas humanas, como faria supor uma compreensão excessivamente rígida do
comportamento. Certamente a grande diversidade de soluções para problemas similares ou
inteiramente divergentes fez com que se tornasse possível notar a clareza dos aspectos
culturais.
Tomando a afirmação de que a natureza não nos molda de forma absoluta e que
podemos construir coletivamente diferentes formas de vida (cada uma julgada a mais
correta e universal por seus tributários), possibilidades particulares de relações dos seres
humanos entre eles e com o mundo físico, não parece exagero entender como reducionistas
os discursos que isolam os fatores orgânicos de maneira a imaginar que sozinhos (e talvez o
127
Certamente, tal perspectiva não precisa ser levada às últimas conseqüências a ponto de dar margem a um
construcionismo extremo. Há, de fato, limitações orgânicas que se sobrepõem aos homens. Há também,
segundo nossa forma de representá-los “até” o momento, parasitas das mais variadas espécies. A questão está
mais na relação entre os aspectos biológico e social do que no biológico em si o que é imputado como
orgânico e está mais ligado a construções humanas específicas. Minha (minha?) premissa é que deixado
livremente, o aparato orgânico seria uma espécie de brutalidade amorfa, necessitando de significados para ser
posto em funcionamento, apenas adquiridos na inserção do indivíduo em um quadro simbólico de referências.
Sobre esse tema ver CARRARA (1994).
110
ponto seja mesmo esse “sozinhos”) possam dar conta de todo o complexo aparato de
comportamento disponível à humanidade.
Prefiro pensar, nas trilhas da disciplina acadêmica que abracei, nos comportamentos
humanos como construções simbólicas possíveis associadas, ou associáveis, às
possibilidades orgânicas da espécie humana. Ocorre que nos livros biomédicos a ênfase
será uma; nos de antropologia, outra
128
. O que também acontecerá em relação às palavras
veiculadas por um e outro saber sobre a adolescência, uma vez que, para o último dos
conhecimentos, a ação hormonal não estaria em contradição com os fatores oriundos do
aprendizado, enquanto para o outro, esse seria sua causa primordial. Tradições diferentes
apenas.
Não é difícil compreender o porquê da preocupação com os mais diversos aspectos
da vida dos adolescentes frente à pura aplicação de recomendações médicas gerais, diluída
em especialidades a que recorrem os adultos, a ponto de “merecer” uma área de atuação
médica separada. Nós, como membros da sociedade contemporânea, inventamos a
medicina de adolescentes. Posto que, de acordo com a linguagem moderna, de que nossa
antropologia também é fruto, busca resolver parte de nossos “novos problemas”, nossas
atitudes diferenciadas frente àqueles que em tempos próximos, como nos anos 50, eram
menos considerados em suas vontades e “reprimidos” pelos pais. Oriunda da tentativa de
resolução de problemas de nossas sociedades ocidentalizadas que ainda recorrem a
128
Weber recorda o quanto o nosso ofício (de cientista) consiste em exagerar (WEBER, 1979b).
111
especialistas e a “respostas científicas” para a administração dos principais dilemas da vida,
ao mesmo tempo em que repensa o papel da ciência
129
.
Talvez não pareça bombástica, mera excentricidade sociológica, a afirmação de que
a juventude é apenas uma palavra (BOURDIEU, 1983). Em populares programas de
televisão se apresenta a “questão adolescente” como mais uma astuta construção social
humana
130
. De todo modo, os indivíduos que atendem às classificações de adolescência da
OMS corresponderiam, em 1998, a 21,77% da sociedade brasileira de acordo com dados do
Ministério da Saúde. Um número nada desconsiderável.
Crianças e adolescentes residentes no Brasil (1998)
Idade Número %
5-9 16.896.178 10,44
10-19 35.226.328 21,77
5-19 52.122.506 36,21
População Total 161.790.311 100,00
Fonte: DATASUS/MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999.
A convivência com membros de gerações passadas oferece ainda mais
sustentabilidade à premissa de que a categoria adolescência pode ser pensada por prisma
mais relativo
131
. No Programa Fantástico, exibido em 15 de agosto de 2004, pela Rede
129
Já mencionei o questionamento da ciência moderna, realizado, principalmente, por Boaventura de Souza
SANTOS (2000).
130
No dia 15 de agosto de 2004, foi exibido, no Programa Fantástico da Rede Globo de Televisão, uma seção
especial dedicada à discussão sobre adolescência. Para minha surpresa, a apresentadora Regina Casé indicava
o caráter arbitrário da categoria, exemplificando, por intermédio de personagens históricos o quanto às
características hoje atribuídas aos jovens entre 10 e 19 anos dependem do contexto social e dos significados
nele atribuídos.
131
Emprego o termo pela ausência de outro melhor. Afinal, sigo os cuidados de GEERTZ (2001b) em relação
à sua utilização; uma vez que estaria mais ocupado em combater uma postura anti-relativista do que
112
Globo de Televisão, um adolescente (que, segundo palavras próprias, não sabia porque
adolescente, ainda que soubesse que era...) levou Regina Casé até a casa de sua avó de 102
anos, que residia próximo dele em um morro do Rio de Janeiro. Uma vez lá, enquanto
descrevia os afazeres do garoto, suas preferências e generosidades, a senhora recebeu
pergunta certeira da apresentadora: “Então seu neto é um bom adolescente?Sem saber o
que responder, a senhora resolveu seu problema com outra pergunta: “o que é
adolescente?” Ela desconhecia a categoria; segundo ela, seu neto era menino.
Mas meninos são também os de quatro anos. Mesmo, ao que parece, para a avó de
nosso adolescente, o que é demonstrado na ausência de distinção dos seres humanos em
três fases: crianças, adolescentes ou adultos como no caso dos médicos acima.
A surpresa da senhora entrevistada encarna diversas implicações sociológicas: ainda
que homens e mulheres passem por variações orgânicas significativas durante o entendido
como o seu “ciclo de vida”, a forma de classificá-las, ordená-las, atribuir-lhes funções, não
será a mesma, interagindo com os critérios erigidos como mais adequados por determinado
grupo social em um dado espaço e tempo.
Torna-se pouco frutífera a atribuição de padrões comportamentais à mecânica
mutação orgânica dos corpos humanos, pois, além de hormônios, os seres humanos servem-
se de teias de significados para atribuir valor e “funcionalidade” às suas concepções etárias,
tentando naturalizar o arbitrário (BOURDIEU, 1989), e descaracterizá-las como construção
histórica. Já mencionei o fato da idéia de infância ser desconhecida, no Ocidente, do
período que vai do esplendor do Império Romano até o século XII de nossa era.
propriamente em abraçar uma suposta interpretação relativista dos comportamentos sociais – propensa a
muitas interpretações indesejadas.
113
A escola de antropologia norte-americana chamada Cultura e Personalidade, a partir
das lições recebidas de Franz Boas, buscou desenvolver pesquisas que desmistificassem a
idéia de uma natureza humana rígida, que fizesse com que nossa espécie respondesse
unilateralmente aos apelos de uma abstrata natureza.
As pesquisas de Margareth Mead, especialmente as que se debruçam sobre a relação
entre sexo e temperamento (MEAD, 1988) ou sobre as repartições etárias (MEAD, 1981)
em sociedades chamadas à época “primitivas”, levam ao questionamento da visão dos
comportamentos humanos como meros reflexos de variações orgânicas.
A autora levou a cabo pesquisas nessas direções exatamente porque gênero e idade
são categorias que tendem, no seio das sociedades modernas, a serem facilmente vistas
como determinadas, sem qualquer matização, por imperativos orgânicos.
Por isso, estuda três sociedades que habitavam a Nova Guiné no início da década
de 30 a fim de perceber a interferência do “sexo”
132
sobre seus temperamentos
característicos. A despeito da acusação de bias, seus estudos demonstraram, nos três povos
pesquisados, formas diferentes de relação entre sexo e temperamento.
Na primeira delas, os Arapesh da montanha, não encontrou nenhuma diferença
destacável entre o temperamento de homens e mulheres. Os dois possuíam personalidade
dominante voltada à cordialidade e à mansidão. Ambos, homens e mulheres agiam de
acordo com o padrão tido como feminino nas sociedades ocidentais. Na segunda, os
Mundugumor do rio, grupo que contou com perceptível antipatia da pesquisadora, homens
132
No período de desenvolvimento das pesquisas de Margareth Mead na Nova Guiné (primeiros anos da
década de 30 do século passado) não era praxe, como hoje, a discussão em termos de gênero.
114
e mulheres também não demonstravam nenhuma diferença significativa de comportamento;
agindo de forma similar a dos homens na sociedade de origem de Mead: eram agressivos,
autoritários, dispostos à violência etc. Por fim, esteve entre os Tchambuli do lago, que, ao
contrário das outras nações, possuía diferença entre os temperamentos típicos de homens e
mulheres invertidos em relação ao padrão ocidental: mulheres empreendedoras e
solidárias e homens preocupados com a manutenção da vaidade física e entregues a
atividades manuais e artísticas.
Esse é um dos casos em que vale mais a mensagem que o meio utilizado para se
chegar a ela: mesmo que haja uma coerência estreita entre os casos apresentados a ponto de
parecerem “bonitos demais”
133
, o fundamento é válido para a discussão a que me propus
contribuir: a interferência do quadro simbólico nas questões aparentemente limitadas à
biologia. Pois seria descrer demais no trabalho da autora supor que nada do que está em
seus escritos tenha por base a sua estada entre aqueles povos; ainda que passível de críticas.
A mesma Margareth Mead, dedicou-se a uma intensa pesquisa de campo
134
na ilha
de Samoa no início da década de 20, tencionando encontrar delimitações etárias diferentes
das vistas como naturais nos sistemas simbólicos do Ocidente. Dessa vez, o objeto de
estudo incidiu diretamente sobre um dos eixos de minha pesquisa: a adolescência. Entre os
samoanos, dedicou-se à observação de membros femininos consideradas adolescentes em
nossas sociedades, chegando à conclusão de que a faixa etária atribuída à adolescência não
responde mecanicamente à leitura ocidental dos “impulsos naturais” ou “rebeldias” como
133
No prefácio à Edição de 1950 de Sexo e Temperamento, a autora busca refutar as críticas a ela dirigidas. A
principal delas é a de que tudo estaria “perfeito demais”, pronto para sua sustentação argumentativa (MEAD,
1988). Acredito que essa seja uma boa ilustração do ponto que vem sendo desenvolvido por Clifford Geertz
quanto à importância da construção do texto (do “estilo”) para a elaboração de quadros gerais advindos de
etnografia (GEERTZ, 2002).
134
A autora passou nove meses no campo.
115
esperado pelos arautos da determinação biológica. Fosse assim, deveria manifestar-se onde
houvesse seres humanos, inclusive em Samoa. Ao contrário da rebeldia e um tipo de falta
de responsabilidade justificados, no quadro ocidental, por questões hormonais, as jovens
samoanas viviam dominadas pela responsabilidade de cuidar dos irmãos mais novos, sobre
quem exerciam forte mando.
A realização de sua tarefa central, o cuidado com os ainda mais jovens não lhes
causava nenhuma revolta particular. A vida seguia seu curso... Sem James Dean ou idéia de
extravio por determinação orgânica. Aliás, na época em que estava entre os ilhéus, nem
mesmo os Estados Unidos havia descoberto totalmente os meandros do mundo adolescente,
sendo nesse aspecto menos propensos à idolatria das culturas jovens de hoje. Mas,
utilizando-se de expressiva fonte de verificação empírica, refuta a universalidade da
categoria adolescência, tentando desamarrar os homens de sua biologia – através das
pegadas, por boa aluna que era, do mestre Boas. Sem dúvida, uma das mais expressivas
figuras, logo em um primeiro momento, a apontar a superioridade da razão simbólica em
antropologia (SAHLINS, 2003).
Se a adolescência não é uma categoria universal, se é desconhecida de muitos
povos, precisa ser definida, distinguida por fronteiras etárias precisas, de acordo com os
valores-idéias sociais vigentes. No caso das sociedades modernas/pós-modernas, que
contam com a ciência como principal suporte explicativo da realidade, parte dessas
distinções será elaborada na instância responsável cientificamente pelo tratamento e cura de
enfermidades humanas: a medicina.
116
Donzelot aborda o papel da medicina na construção do modelo de família típica do
Ocidente de hoje. Tal papel inicia-se, principalmente a partir da preocupação com as
crianças, desencadeada no século XVIII, quando antes nenhuma atenção lhes era
dispensada (DONZELOT, 1980). A emergência da questão estaria ligada diretamente ao
maior reconhecimento social que passaram a ter a partir daquele período, segundo o
processo descrito por Ariès, apresentado acima (ARIÈS, 1981). Ademais, oferece uma
sólida interpretação de como o governo dos seres humanos pode ser assegurado pela
instituição familiar de hoje, organizada em moldes burgueses.
A partir do final do século XVIII uma extensa literatura sobre o cuidado com as
crianças veio à baila, não apenas proveniente da medicina, como também de militantes
inflamados dos "tempos novos" que se iniciavam. Robespierre, inclusive, foi um deles.
Tratava-se de prevenir o futuro. Elemento sempre considerado mediante à importância de
outras instituições sociais, como as nobiliárias – que, sob os auspícios da revolução, em sua
versão mais inflamada, deveriam ser suprimidas.
Oriundas da novidade desses entendimentos, condenações diferentes da conhecida
até esse período emergiram; entre outras, à prática dos hospícios de menores abandonados,
à inconveniência da criação dos filhos por amas-de-leite e à "educação artificial" das
crianças ricas. Por exemplo, muitos autores do período revolucionário francês acreditavam
que a criação de indivíduos em orfanatos públicos viria a suscitar nelas uma “gratidão
patriótica”, que poderia futuramente ser usada em frentes como colonização, marinha ou
outras tarefas nacionais (DONZELOT, 1980).
Também no Brasil do século XIX, as amas-de-leite foram responsabilizadas por
muitos males sociais supostamente transmitidos pelo leite que jorrava de seus seios negros
117
à boca branca da criança do senhor. O racismo era implícito (?) à recomendação. Todos os
cuidados deveriam ser tomados para que se instaurasse, por fim, uma verdadeira sociedade
burguesa nos trópicos, com parâmetros mais civilizados de convívio e trocas entre iguais e
desiguais (COSTA, 1989).
Aliás, para o caso brasileiro, Costa enfatiza que a medicina alia-se às mães
participando da gestão de uma nova sociedade: burguesa e higienizada; possível pela
interferência de médicos na família e da modificação dos costumes herdados do período
colonial; com destacada presença maior das instituições públicas.
Sobre a regulação de crianças e adolescentes não apenas pela Justiça, mas também
por mecanismos acessórios, Donzelot passa a analisar os tribunais de menores, constituídos
no século XX, mas idealizados desde o final do século XIX, demonstrando o surgimento de
uma série de novas profissões (DONZELOT, 1980); entre elas, os assistentes sociais, os
educadores especializados e os orientadores de muitas ordens
135
. Esses profissionais
passaram a prestar serviço ao Estado, exercendo “valioso auxílio” no controle da população
e na definição de "normalidades" tendo por base trabalhos psiquiátricos, sociológicos,
psicanalíticos...
Em seus termos, surge um grande complexo tutelar, tendo um de seus tentáculos
mais reconhecíveis centralizado na psiquiatria, no que denomina de jurisdição
extrajudiciária. Nesse contexto, analisa o quanto essa especialidade médica passa a viver
uma "crise"; uma vez que, em território francês, a loucura foi deixando de ser exceção,
enchendo os hospícios de uma população similar a do antigo Hospital Geral, que veio,
135
Ao nascimento da categoria “social” (em sentido não sociológico), Deleuze, de maneira precisa, dedica
interessante reflexão no prefácio ao trabalho de Donzelot (DELEUZE, 1980).
118
justamente, a substituir. Afinal, muitos excluídos foram identificados como loucos, sendo
enquadrados nos locais a eles destinados.
Além disso, invade a escola, realizando intervenções normalizadoras sobre alunos.
Por exemplo, sob seus princípios, o "perverso" não poderia ser confundido com um simples
aluno rebelde ou “bagunceiro”, como se costuma dizer, mas um doente identificável e, pela
psiquiatria, identificado, até mesmo, diante da turma que freqüenta. Claro que muitos
educadores se opuseram a tais iniciativas quando realizadas no interior da instituição
escolar; mas, de todo jeito, chegaram a serem aplicadas (DONZELOT, 1980).
Este mesmo autor, inclusive, descreve três tipos de famílias "problema",
necessitadas de intervenção médicas, de acordo com os saberes psiquiátricos dominantes no
esplendor moderno do século XX: 1) as desestruturadas (com ausência de estabilidade,
moralidade, asseio etc); 2) as super-protetoras, que "sobrecarregam" todos os filhos ou um
deles com responsabilidades excessivas, e 3) as carentes da manteiga e do pão, necessitadas
de condições sócio-econômicas básicas.
Hoje, após muitas e detidas críticas, oriundas de frentes distintas, desde posições
antimanicomiais às psicanalíticas, parte dos mecanismos psiquiátricos utilizados ao longo
do século XX está sendo desmontado. Especialmente, muitos que contavam com o auxílio
repressor da reclusão, com a utilização de práticas que passaram a ser reconhecidas como
desumanas ou exageradas no seu interior. Entretanto, apesar das críticas e do desmonte de
parte deste aparelho normalizador, não se pode deixar de reconhecer a continuidade dos
mesmos processos, sob novas formas.
De forma geral, psiquiatras, além de muitos setores do genericamente chamado de
psicologia, que se aproximaram da medicina do adolescente ou foram a ela incorporados,
tenderam a universalizar a categoria adolescente; aliás, tema abordado no capítulo 2
119
dessa tese. A própria Margareth Mead afirmara que os livros de psicologia tentavam provar
que a adolescência seria um período de dificuldades e antagonismos inevitáveis (MEAD,
1981); condenando os indivíduos dessa faixa etária às uniformidades dos padrões
psicológicos entendidos como “normais” em sua “anormalidades”; independentes de
considerações culturais mais detidas. Uma crise necessária, como muitos afirmam
(CLERGET, 2004).
Vejamos o que escreve um psiquiatra sobre a generalidade da categoria adolescente
no trecho abaixo.
Apesar de o processo da adolescência depender de fatores extrínsecos e
regionais, há aspetos que podem ser considerados universais por terem sido
encontrados em diferentes sociedades, desde civilizações primitivas até as
consideradas modernas e progressistas. (LEVISKY, 1979: p. 65).
Talvez haja mais questões a apontar do que a oposição entre “civilizações
primitivas” e as consideradas modernas e progressistas. Afinal, a antropologia
contemporânea não trabalha mais com a idéia de uma escala evolutiva dos primitivos à
civilização, ainda que sobre espaço, entre os fatores extrínsecos e regionais, para questões
vinculadas ao aprendizado dos seres como membros de uma sociedade específica.
Mas acompanhemos um pouco mais as informações típicas advindas de parte do
campo psi através de um trecho de artigo mais recente. Agora sobre normalidade.
O jovem, normal e adequado ao seu processo evolutivo, deve contestar e
reivindicar um mundo, uma sociedade, uma humanidade melhor, mais justa e
mais cheia de amor. Se fosse o caso, só por isso seria necessário entender e
respeitar certas atitudes adolescentes, que ainda apavoram muitos adultos
(KNOBEL, 1993: p. 33).
120
Nesse caso, mesmo em concordância com a pauta de reivindicação juvenil
formulada e em posição de atestá-los como comuns às representações ocidentais, teria
dificuldades de aceitá-lo como “normal e adequado ao seu processo evolutivo”, sem mais
considerações. Nem tudo que se nos adolescentes é reivindicação. Nesse caso, clara
padronização de possibilidades e um evidente processo indutivo, pois como afirmado no
capítulo 2, nem todos os adolescentes atendidos por hebiatras manifestam turbulências
dignas de nota.
A chamada “síndrome da adolescência” foi questionada por Margareth Mead no seu
trabalho de campo nas Ilhas Samoa
136
. Lá, não se observou nenhuma manifestação especial
de contestação aos pais ou à autoridade estabelecida nem encontrou qualquer “rebelde”
com ou sem causa samoano nos moldes vistos nos cinemas ou nas histórias em quadrinhos
veiculadas nos Estados Unidos da América.
Ao invés, a própria responsabilidade por irmãos mais novos conferida aos membros
femininos do agrupamento denominado adolescente por setores de nossas culturais
ocidentalizadas forneceria bom quinhão na estrutura geral de mando sobre os mais novos
(MEAD, 1981), além da ausência de ansiedade sobre papéis futuros. Fatalidade inerente às
considerações do próprio grupo sobre muitos outros fenômenos, segundo relata.
Uma questão a se ater quanto à abordagem da medicina aqui enfocada foi sua
necessidade de contraste entre adolescência e puberdade. uma oscilação a respeito. Em
alguns momentos, os médicos parecem inclinados a definir adolescência tão somente como
o período de transformações psicossociais dos indivíduos, enquanto em outros destacam a
136
A pergunta que a autora levou ao campo foi se as perturbações dos adolescentes se devem a natureza ou
aos efeitos da civilização. Para respondê-la passou nove meses entre os samoanos, particularmente entre
meninas consideradas adolescentes pelos ocidentais. E a resposta foi precisa: o período descrito como típico
da adolescência não seria de dificuldades e antagonismos inevitáveis, ao menos de acordo com o dizer
ocidental.
121
integralidade dessas modificações com as orgânicas, combinadas, para sua plena
realização. Por isso, utilizarem a expressão biopsicossocial para descrever a forma de
abordagem própria da medicina do adolescente.
Puberdade seria o período das transformações orgânicas do indivíduo, podendo ou
não coincidir com o que chamam síndrome da adolescência sobre o qual me atenho à
frente. De forma geral: “O período da puberdade é bem menor do que o período da
adolescência” (MARCONDES, 1979: p 3). Corresponde ao processo que leva o corpo
humano a se tornar completamente capacitado às funções reprodutivas; com um início
perceptível, nas meninas, pela menarca; e nos meninos, pela produção de sêmen. Logo,
presente em todas as sociedades.
A puberdade pode ser apresentada como o sinônimo das transformações orgânicas
vividas no período de mutações psíquicas e sociais.
Puberdade (...) digamos que é o componente ‘bio’ da adolescência, portanto é
parte dela embora não seja admissível que os dois termos (adolescência e
puberdade) sejam utilizados um pelo outro” (MARCONDES, 1979: p. 2).
Ou como um subperíodo no interior da adolescência.
“o termo puberdade é utilizado para designar todo processo de maturação
biológica inserido no período da adolescência, simbolizada pela primeira
menstruação, no sexo feminino, e pela produção de secreção espermática, no
sexo masculino. É o período de vida em que o indivíduo se torna apto para
procriação, isto é, adquire a capacidade física para exercer a função sexual
madura”. (BUCHIANERI, 2004: p. p. 33 e 34).
Podendo surgir após os primeiros “sintomas” das manifestações típicas do período.
122
“A adolescência é um processo psicossocial que pode apresentar os primeiros
sinais antes do início da puberscência e terminar depois da parada do
crescimento físico.” (SOUZA, 1999: p. 14)
A despeito da discussão de filigranas, não como confundir puberdade e
adolescência no quadro das compreensões ocidentais, principalmente pela exposição cada
vez maior das especificidades comportamentais consideradas próprias à adolescência.
Enquanto o primeiro dos termos traz o pensamento para as transformações orgânicas
ligadas à maturidade sexual, o segundo o relaciona prioritariamente ao campo psicossocial.
Nesse último caso, podendo estar desprovido de forma biológica, como depois de
completado o período de transformação orgânica.
O encerramento do momento considerado típico da adolescência, da mesma forma
que seu início, destaca-se como ponto de relativização generalizada. Por exemplo, todos os
termos definidores apresentados abaixo podem não ser vividos com facilidade em termos
ditos “objetivos”; principalmente pela ausência de prazo delimitado. Contudo, também
nesse caso a impossibilidade não é camuflada, mas utilizada, simultaneamente, como
ferramenta de compreensão e de criação de normas sobre a natureza dos atendidos.
O término da adolescência ocorre, segundo o Comitê sobre Adolescência (USA):
1) pelo atendimento da separação e da independência dos pais; 2) pelo
estabelecimento da identidade sexual; 3) pela submissão ao trabalho; 4) pelo
desenvolvimento de um sistema pessoal de valores morais; 5) pela capacidade
de relações heterossexuais e 6) pelo regresso aos pais numa nova relação
baseada numa igualdade relativa. (LEVISKY, 1979: p. 85).
Em suma, todos os pontos levam a um: a necessidade de autonomia como condição
de passagem do estágio adolescente ao adulto. Pois a adultícia chegaria pela formação de
um indivíduo autônomo nos quadros de uma sociedade capitalista e ocidental capaz de se
123
submeter ao trabalho, ter identidade sexual estabelecida e estar imbuído de valores morais,
entre outras características.
Estar amadurecido, portanto, pode significar estar plenamente socializado,
completamente apto, em muitos aspectos, para uma vida em sociedade; sem a necessidade
de quaisquer rituais de passagem como entre sociedades tradicionais. A dor perpetrada é
outra, como alertada no início desse trabalho. Sentida com angústia, sensação de
impotência, medo e auto-cobrança, muitas vezes, velados. Registrados em arquivos não
corporais, naqueles que permitem a preparação da adolescência. E essa preparação não é
propriamente física. Por isso a variação do estágio por fatores temporais e espaciais, como
o aventado pela Doutora Carolina nas palavras acima.
Tais conclusões fariam chegar à idéia de que a adolescência seria um genuíno
estágio de transição
137
da evolução humana. Porém, a colocação ontogênica dos
adolescentes no cenário da vida humana sustentou mais de uma polêmica da medicina do
adolescente.
Acompanhemos primeiro (digamos...) a versão “clássica”:
A sexta edição de “Pediatria sica” define a adolescência como (...) o período
de transição entre a infância e a idade adulta, caracterizado por intenso
crescimento e desenvolvimento que se manifesta por marcantes transformações
anatômicas, fisiológicas, mentais e sociais” (COLLI apud MARCONDES, 1979:
p. 1).
Nesse caso, aparece como a fase intermediária entre a infância e a idade adulta,
prolongando-se até a chegada da maturação completa do indivíduo, do exercício pleno das
labutas sociais.
137
De mesma forma que o período clássico, séculos XVII e XVIII, seria uma fase de transição entre o
Renascimento e a sociedade burguesa moderna pela ótica de certos autores (FOUCAULT, 1994 e 1999).
124
Vejamos o que nos informa doutora Alice, talvez, não por acaso, crítica da
vinculação da hebiatria com a pediatria e também de soluções mais sociais para os
problemas dos adolescentes.
Dra. Alice: E muita gente fala da adolescência como uma fase de transição, entre
a criança e a fase adulta. A gente aqui não trabalha com essa idéia de transição
de jeito nenhum. Porque transição a impressão de uma coisa de menor
importância...
Fernando Costa: Apenas ponte...
Dr. A: A gente trabalha... É... Se a gente for pensar assim, todos os estágios da
vida, é de transição entre uma coisa e outra. É uma etapa da vida de grandes
transformações biológicas, psíquicas, sociais, que se inicia com o início da
puberdade, que é a parte biológica da adolescência, que às vezes começa aos 8
anos... Uma menina que menstrua aos 10 anos ela (inaudível). E ela termina
quando você se torna um adulto do ponto de vista biológico, social e
psicológico. E a gente tem uma grande defasagem entre essas maturidades.
Maturidade biológica é atingida no momento em que você tem uma capacidade
reprodutiva. Então a menina quando menstrua, os meninos quando já tem...
quando podem engravidar alguém são adultos do ponto de vista biológico.
Do ponto de vista social quando você tem a potencialidade de se tornar um
indivíduo economicamente ativo e independente. E do ponto de vista
psicológico, quando você tem uma identidade própria, independente de seus
pais. E isso é muito variável de pessoa pra pessoa; de classe social pra classe
social. Têm pessoas que não saem da adolescência nunca, que são eternamente
dependentes emocionalmente da família.
Recortei a entrevista de forma a fazer com que o trecho servisse a duas questões: a
impropriedade da visão de que a adolescência seria apenas uma fase de transição entre a
infância e a vida adulta, além de novas considerações sobre a relatividade da categoria.
Enfim, do quanto é possível existir adolescentes de várias idades.
Outra polêmica destacável é a que se refere à informação dos membros da sociedade
assim reconhecidos acerca das precauções de possíveis problemas oriundos de sua prática
sexual, principalmente no que tange às doenças sexualmente transmissíveis, mas também à
possibilidade de gravidez precoce.
125
setores que defendem um aumento de informação sobre a sexualidade
adolescente, supondo insuficiência, enquanto outros preferem interpretar que, na verdade, a
carência maior estaria ligada à estrutura emocional e não à desinformação sobre o uso de
preservativo ou outras formas contraceptivas, tanto como causa das doenças sexualmente
transmissíveis quanto em relação à gravidez indesejada das adolescentes.
Vejamos duas interpretações divergentes sobre o mesmo assunto.
Fernando Costa: A senhora acha, por exemplo, em relação à AIDS... (grande
trecho inaudível) muitas vezes ao adolescente: uso de drogas, AIDS, sexualidade
precoce... Eles estão informados?
Dra. Carolina: Mal informados. Porque a família, quase sempre, ensina na
base do risco, da ameaça, da opressão, da ameaça, né. As revistas pornográficas
que ensinam mesmo sacanagem. Um estímulo muito mais voltado para o uso
do corpo como um objeto, de si mesmo ou do outro, como um objeto. É uma
coisa; é a coisificação. Prazer imediato, o uso do corpo de maneira não
responsável. Que trata o indivíduo como... coisificação mesmo, objeto. E as
novelas que dão um padrão de que tudo dá certo no final.
FC: Que a irresponsabilidade pode acontecer.
Dra. C: E eles têm assim... uma idéia... uma idéia que o correspondem às suas
próprias necessidades, de seus anseios. Hoje em função da... da mídia;
(inaudível), da internet, os contatos virtuais ocupando o lugar do real. O mundo
virtual ocupando este espaço de se esforçar pra conquistar, pra aprender, o
contato físico. Então a satisfação virtual, então... Eles têm dificuldade; medo,
medo de enfretamento da realidade, que eles têm esse prazer imediato muito
na base do voyerismo; ver do que fazer e conquistar através de um esforço;
então há muito... muita desinformação.
Fernando Costa: São... questões vinculadas à sexualidade eles apresentam de
forma clara ou eles ficam rodeando um pouco?
Dra. Paula: É...
FC: Imagino que tenha dúvidas em relação à sexualidade, em relação ao seu
próprio corpo.
Dra. P: Eles sabem... Eles são muito bem informados. A minha opinião é essa.
Que quando você começa a conversar sobre isso eles não tem muitas dúvidas;
eles sabem que tem que usar camisinha; eles a sabem como é que usa, “eu
aprendi na escola!”. Mas falta realmente neles... E esse é uma outra questão que
surge nesse grupo: é a dor da gravidez na adolescência também... quando elas
foram mães ou são mães ou estão grávidas elas colocam isso com muita dor. A
própria gestação da adolescente... é... é... eu já acompanhei algumas gestações de
adolescentes e é muito doloroso pra elas essa fase. E... eu avou citar um caso
que aconteceu na semana passada: que a chefe do meu posto veio me chamar
pra mim... pra ver se eu passava um anticoncepcional pra uma adolescente de 13
anos, porque ela foi ao médico, e o médico negou porque ela é muito nova. Mas
ela está tendo relação sexual normalmente. Como que você vai impedir que
126
essa adolescente pare de ter relação sexual e... Se eu não ajudo essa adolescente
nessa hora, ela vai engravidar. É outra coisa que acontece muito no... é elas me
pedirem anticoncepcional. Elas m com muita freqüência me pedir
anticoncepcional; receita de anticoncepcional. E eu estou... Agora... o que falta
nos adolescentes é realmente o lado emocional pra que elas tenham
maturidade... porque você sabe que o conhecimento da sexualidade não impede
elas de engravidar. Em momento algum. Elas engravidam... É... Por isso que tem
um pessoal, que não enxerga o lado emocional, e fica (muda a voz): “Eu não sei
porque eu ensino esses adolescentes! Dou palestra disso, dou palestra daquilo e
elas engravidam!...” Realmente tem que engravidar porque são todos diferentes.
FC: E no uso do preservativo também tem uma coisa assim. Sabendo...
Dra. P: Claro. Sabem, conhecem, sabem. E você pergunta: “você quer
engravidar?”, “não”; “você tem comprimido?” “tenho”; “você tem camisinha?”
“tenho”. “Por que você engravidou?” É o emocional. Porque a sexualidade é
uma coisa que é inconsciente; é... é... não é controlado pela consciência. Eu falo
pra eles, até eu comento muito isso nos grupos.
A primeira passagem questiona a qualidade da informação recebida pelo
adolescente através de Internet e outros recursos. Para ela, ao invés de ajudar, essas fontes
estariam dificultando a prevenção correta de problemas relacionados à sexualidade.
A ênfase mais psicológica evoca a ausência de maturidade afetiva e não de
campanhas informativas como motivo do não uso de preservativos pelos adolescentes.
Estaria nas suas carências psíquicas e não propriamente nas cognitivas a incidência de
doenças e de gravidez precoce decorrente dessa causa.
Fernando Costa: Agora... a senhora então se despertou mais, vamos dizer assim,
pra a questão do adolescente lá...
Dra. Paula: Foi lá em Minas, antes de vir pra cá.
FC: Que coisas aconteceram que foram levando a doutora...?
Dra. P: É... Eu acho... uma das coisas é a gente ver um filho crescerem... a dor do
adolescente me chama a atenção. Eu acho até porque eu fui uma adolescente que
sofri muito também (entonação emocionada). Olha, chega até... me emociona.
Então eu sempre tive muita pena do adolescente. Porque realmente eu fui uma
adolescente que sofreu muito. E as conseqüências foram graves. Não foram
pequenas o. Mas... E daí vem a vontade de você estar podendo ajudar porque
eu aprendi com a dor; e eu posso estar ajudando eles sem a dor.
A dor, presente, de uma forma ou de outra, em qualquer adolescência, nesse caso
psicológica, seria um dos incentivos dos médicos que compreendem seus problemas como
127
eminentemente ligados ao campo psicológico. Essa posição pode ser confirmada pelo
entendimento do psiquiatra Stéphane Clerget, ao afirmar que o adolescente vive uma crise
necessária em convívio com a possibilidade depressiva (CLERGET, 2004). Dessa forma,
todo adolescente viveria em convívio constante com a possibilidade de distúrbios de fundo
depressivo – o que explicaria suas crises constantes frente às cobranças que lhes são
endereçadas.
Tais dores são agravadas pela informação sobre eles por parte de pais e demais
adultos. De acordo com membros de equipes de planejamento público, como o professor
João, especialmente pela forma como são abordados nos meios de comunicação de massa.
Pela atribuição do lugar de problema social ou de incômodo.
Fernando Costa: Como os meios de comunicação têm se relacionado... têm
falado da temática que envolve o adolescente?
Professor João: Eu acho que é exatamente isso. Os meios de comunicação têm
colocado o adolescente muito no lugar do problema. Aquele que é problema,
aquele que é aborrescente ou... Tem tido umas posturas mais preconceituosas.
Nunca colocando o adolescente como um espaço de possibilidades. Como
alguém que constrói; alguém que é um sujeito capaz. Então esse... Meios de
comunicação têm colocado muito essa... Essa... Nessa... O adolescente nesse
lugar de problema. E (inaudível) um pouquinho mais. O que a gente precisa
reverter é exatamente isso. Tirar desse lugar e colocar ele pra outro lugar.
Mas, independente de quaisquer concepções, das variações sobre o mesmo tema, a
definição de adolescência continuará a figurar como um marco de importância nas várias
instâncias disciplinares, das naturais às humanas, e uma das formas de organizar esse
mundo cada vez mais rápido em suas transformações. Um mundo que adolesce
constantemente, inclusive pela atuação de meninos e meninas chamados de adolescentes.
“As diversas concepções de adolescência mostram que cada disciplina, tanto
nas ciências naturais como das ciências humanas, procura uma definição que
128
organize os conceitos sobre essa fase da vida. A Medicina segue esse mesmo
processo e é por esse motivo que, no final do último século, surge esta nova área
de atuação: a Medicina do Adolescente”. (BUCHIANERI, 2004: p. 38).
Dessa forma, a necessidade geral de busca de uma conceituação para os
denominados adolescentes seria parte de um processo maior, um fluxo de causas que
trazem os chamados novos tempos pós-modernos? e, em forma reduzida, a medicina se
propõe a ajudar a decifrar, a entender, senão a resolver por conhecimentos próprios ou a
outros associados. Inclusive através da adolescência.
129
Capítulo 4: Entre Polêmicas: de escolas, de categorias, de mercados...
Como indicado desde o início, polêmica interna nunca faltou à medicina do
adolescente; em especial, as veiculadas pelos diferentes centros de atendimento. Percorre os
serviços médicos, privado e público, por informações e treinamentos de fontes variadas,
nos consultórios de pediatras, médicos de adolescentes ou hebiatras a depender das
preferências terminológicas.
Em um primeiro momento, informado tão somente sobre a existência da hebiatria
como novidade do campo médico, mas sem dispor de todas as discussões internas, pensei
em acioná-los pelo intermédio da Sociedade Espírito-santense de Pediatria (SOESPE). Os
dados construídos tomariam, assim, caráter mais particular.
Até então, no período anterior à entrada efetiva no campo de pesquisa, a Sociedade
representava mais do que um ponto de partida para os consultórios médicos, destacando-se
como uma instância de síntese dos profissionais da área no Espírito Santo, além de foco de
irradiação das decisões nacionais acordadas na Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)
138
.
Mas esse ponto do projeto teve que ser redimensionado.
Pelo contato com profissionais de saúde que trabalham com adolescentes no
município de Vitória e observação realizada nos ambulatórios que os atendem na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ) pude perceber a realidade do serviço sob o ponto de vista de seus
profissionais. Elemento fundamental à análise da prática médica em seus próprios espaços,
138
A Sociedade Espírito-santense de Pediatria (SOESPE) está filiada à Sociedade Brasileira de Pediatria
(SBP).
130
que, somada às informações obtidas nos livros consultados e ao diluído em suas falas, traria
uma maior abrangência de compreensão desse saber-fazer.
A observação dos dois centros universitários de atendimento se mostrou frutífera no
que se refere ao conhecimento de como se processa essa forma de medicina em sua prática
diária e nos símbolos distribuídos pela organização de objetos e pessoas no interior de suas
instalações.
Afinal, algumas diretrizes gerais são gestadas naqueles ambientes; sem mencionar o
fato de exercerem influência pedagógica destacável sobre os médicos que realizam
residência nesses locais, fazendo-os acumular a experiência necessária para que, mais tarde,
atendam adolescentes em seus consultórios ou outros espaços públicos. Dessa forma,
apresentam-se como instituições de difusão de conhecimentos e práticas médicos em todas
as áreas. No caso recortado, o interesse recaiu sobre a maneira em que ali é feita a medicina
do adolescente.
As alterações metodológicas realizadas frente às opções sugeridas à banca
examinadora de qualificação desse trabalho no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF)
139
permitiram uma
investigação mais detida nos centros de atendimento público de adolescentes além do
acesso ao material empírico fundamental à pesquisa, como os dados provenientes das
clínicas particulares de atendimento pediátrico/hebiátrico e de todo o material dedicado aos
dessa faixa etária, em forma de publicações médicas e afins.
139
Os seguintes professores participaram da banca de qualificação dessa tese: Dra. Simoni Lahud Guedes
(orientadora), Dra. Fabíola Rodhen e o Dr. Paulo Gabriel da Rocha Pinto. Muitas das sugestões e referências
foram incluídas no texto final, sem, como se costuma dizer, que lhes possa ser atribuída responsabilidade
pelas imprecisões e desvios teóricos cometidos.
131
Muito embora tivesse também o interesse de realizar pequena etnografia sobre o
atendimento de adolescentes no Hospital Cassiano Antônio de Moraes, denominado
popularmente de Hospital das Clínicas e vinculado à Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES), uma série de fatores me fez concentrar atenção nos serviços instalados no
Rio de Janeiro. Dos profissionais que trabalham no Hospital das Clínicas, entrevistei
uma enfermeira, que participou de um atendimento de puericultura
140
que também envolveu
adolescentes, mais não apenas eles, no mesmo hospital, na década de 80
141
.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) foi fundada pelo doutor Fernandes
Figueira em 1910 e desde essa data é o órgão máximo do grande campo
142
da pediatria no
Brasil. É a maior sociedade de especialidade médica brasileira e a terceira maior do mundo
em pediatria, segundo seus próprios dados
143
. Possui mais de 25 mil sócios, além de 27
sociedades regionais filiadas e 27 departamentos científicos em atividade.
Em 13 de agosto de 1993, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) enviou
comunicado aos pediatras, às cooperativas médicas e às instituições públicas e privadas que
prestam atendimento médico recomendando ao pediatra que passasse a atuar sobre
140
Sem qualquer explicação dos próprios atores sociais sobre o termo puericultura, recorri ao dicionário.
Segundo a definição do Dicionário Aurélio puericultura seria “Arte de assegurar o perfeito desenvolvimento
físico, mental e moral da criança, desde a gestação até à puberdade” (FERREIRA, 1977: p. 391).
141
“O ambulatório de Pediatria foi implantado em 17 de abril de 1978, com dois serviços com características
distintas: o ambulatório da manhã e o ambulatório da tarde. O último atende, ainda hoje, no sistema
convencional, isto é, atende, crianças de qualquer região do Estado ou fora deste (...). O ambulatório da
manhã, objeto de interesse desta pesquisa, visava inicialmente propiciar condições para as práticas dos Cursos
de Enfermagem e Obstetrícia, Medicina e Serviço Social e desenvolver atividade assistencial em pediatria,
com ênfase especial para os aspectos preventivos da saúde da população infantil moradora na área
circunvizinha ao HUCAM – Área Programática de Maruípe.” (RAMOS, 1992: p. 2 e 3).
142
Como dito em outro lugar desta tese, a medicina do adolescente é apenas uma das muitas áreas de atuação
da pediatria.
143
Esses dados foram conseguidos no site da SOESPE: www.soespe.com.br
132
indivíduos menores de 18 anos de idade
144
; ou seja, que atendessem adolescentes. Até esse
momento, a recomendação era a de que o atendimento fosse feito conforme a necessidade
de seu tratamento, por especialidades não etárias, a partir dos 12 anos de idade. A
incorporação dos adolescentes pela pediatria denotou a compreensão de que deveriam ser
tratados por especialistas próprios, muito embora fosse praxe a continuidade de muitos
atendimentos de indivíduos dessa “fase da vida” por aqueles que haviam sido seus pediatras
por continuidade automática, confiança familiar ou conhecimento de longa data.
Desde a constituição federal de 1988, o Ministério da Saúde oficializou o Programa
de Saúde do Adolescente (PROSAD) que deu visibilidade, no interior da área pediátrica à
sua temática. Em 1998, foi realizado o primeiro concurso para médico de adolescente no
interior da SBP. Concomitantemente, cresceu o interesse pelo assunto entre instâncias do
senso comum, como os meios de comunicação de massa. Uma miríade de programas de
TV, filmes de ação, espetáculos de teatros e livros de aventuras ganharam o mercado das
sociedades ocidentais, como produtos explicitamente voltados aos adolescentes ou os
tomando como tema prioritário (VEJA, 08/2003; VEJA, 06/2004). Phillipe Ariès que havia
dito que o século XX seria o século da adolescência talvez ficasse ruborizado ao perceber
que, no XXI, a tendência iniciada ganhou ainda maior destaque.
A estrutura organizativa da medicina pediátrica é piramidal: cada estado pode
fundar sua própria sociedade virtualmente ligada à instância nacional
145
. Desse modo, a
Sociedade Espírito-santense de Pediatria (Soespe) nasceu em 5 de setembro de 1972 e
144
Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleça que adolescente é o indivíduo que esteja na
faixa etária entre 10 a 19 anos de idade, aspectos legais da regulação do Estado brasileiro, como a minoridade
penal, fazem com que os profissionais pediátricos limitem sua atuação clínica até os 18 anos.
145
Não tenho como afirmar se isso ocorre em outras sociedades médicas – ainda que suspeite que sim.
133
desde esta data organiza congressos e seminários, contando com vários departamentos
internos. O Departamento de Adolescência possui caráter multidisciplinar, absorvendo a
presença de psicólogos e assistentes sociais, por entender que seu atendimento envolve
aspectos não apenas contempláveis pela literatura e tradição médicas. Apesar de possuírem
titulados filiados, grande parte dos pediatras dedicados ao atendimento dos adolescentes
não possui ainda diplomas oferecidos pela SBP que os oficiariam como médico de
adolescentes ou simplesmente ignoram a importância desse título.
Como disse acima, a estratégia inicial de pesquisa era primeiramente procurar a
SOESPE para a coleta dos dados. Foi o que fiz. Procurei o site da instituição na Internet,
percebi que havia uma possibilidade de contato virtual, descobri também telefone e entrei
em contato pelas duas vias. Aguardei a secretaria comunicar aos responsáveis pela
Sociedade e me retornar a ligação. Em alguns dias, estabeleceu contato telefônico
indicando o nome de uma pediatra para a entrevista uma médica de adolescentes.
Curiosamente, a doutora recomendada trabalhava em um organismo de planejamento da
secretaria municipal de saúde. Recebi, por intermédio dessa primeira entrevista, várias
recomendações sobre observação e possíveis novos entrevistados, o que, indiretamente,
afastou-me da Soespe e das organizações umbilicalmente vinculadas à Sociedade Brasileira
de Pediatria.
Encontrei a doutora em seu local de trabalho no órgão da secretaria de saúde do
município. Já naquela oportunidade pude me deparar com a discussão sobre a nomenclatura
utilizada pelos profissionais médicos que atendem adolescentes. Doutora Maria acredita
que a denominação hebiatra é indevida, uma vez que a Sociedade Brasileira de Pediatra
reconhece todo pediatra como apto a atender adolescentes. Mas, ao contrário, do que
134
conclui em um primeiro momento, a discussão é bastante mais abrangente, com destacado
aspecto político.
O termo hebiatria passou a ser mais usado principalmente após 1998, quando a
Sociedade Brasileira de Pediatria tratou de conceder diploma àqueles que tiverem interesse
em se sub-especializar em medicina do adolescente muito embora todos os pediatras
sejam oficialmente recomendados pela Sociedade a realizar o atendimento de
adolescentes
146
. Como existe em outros países desde a década de 50, como, por exemplo,
nos Estados Unidos, serviços específicos de adolescentes, independente da pediatria,
muitos profissionais passaram a se denominar hebiatras
147
, muitas vezes sem prestarem
concurso para receber o título da SBP. A partir desse primeiro encontro, soube das disputas
do campo médico dedicado efetivamente a essa faixa etária e de como entre outros embates
está a questão de saber se a medicina do adolescente deve ou não se tornar uma
especialidade futura ou, ao menos, não estar ligada umbilicalmente a Sociedade Brasileira
de Pediatria (SBP).
Após a primeira entrevista, mantive contato com mais duas médicas ligadas a um
centro privado que prioriza o atendimento de adolescentes no município de Vitória, que não
viam inconveniente maior em serem chamadas de hebiatras, muito embora tenham prestado
residência médica em pediatria. Além disso, entrevistei um educador, formado em
146
Muito provavelmente, a recomendação e o próprio título conferido foi conseqüência da disposição da
Sociedade em fazer com que a medicina de adolescentes fosse abarcada pelo grande campo pediátrico, uma
vez que outros profissionais médicos como os clínicos gerais poderiam reivindicar a atuação oficial na
área.
147
Sobre o assunto é bom ver o que diz Doutor Marcelo: “Se você pega os principais livros de pediatria do
mundo, que é o Manual (inaudível), da medicina da (nome da autora inaudível), ela usa o termo hebiatry.
Ela usa o termo hebiatria e é hebiatria. Eu acho o seguinte: a gente tem que seguir quem tem tradição e quem
está fazendo uma coisa bem feita muito tempo. Eu acho que é fácil inventar moda quando a gente está
começando agora”.
135
educação física, que trabalha no mesmo setor de planejamento da secretaria municipal de
Vitória que a primeira entrevistada o que ilustra bem a guinada multiprofissional das
atividades voltadas à saúde do adolescente. Depois de realizar tais entrevistas, detive-me
também, seguindo as orientações recebidas pela banca de qualificação, aos ambulatórios de
adolescentes ligados a hospitais universitários com centros de atendimento e treinamento
de futuros médicos de adolescentes. Vejamos alguns resultados da pesquisa empírica que
resultaram das observações realizadas.
O Ambulatório de Adolescentes do Hospital Universitário da UFRJ
Realizei algumas visitas ao Instituto de Adolescência da UFRJ, localizado no
Hospital Universitário, na Ilha do Governador, parte integrante do Instituto de Pediatria da
Universidade, no início de 2005. Desde que tive a oportunidade de concretizar a primeira
da série de entrevistas que deram base às interpretações presentes nesta tese, recebi a
promessa de contato com os coordenadores do serviço. Afinal, a entrevistada havia sido
“aluna”
148
. Não ficou claro em que modalidade, mas provavelmente em adolescência.
Por intermédio dela, marquei entrevista com uma das coordenadoras do Instituto. Muito
atenciosa, a doutora me prometeu contato com toda a equipe, no momento de uma reunião
interdisciplinar regular, diária; além de fornecer telefones de membros do comitê de
adolescência da Sociedade Brasileira de Pediatria.
148
O serviço da UFRJ é reconhecido pela qualidade de sua residência médica, particularmente na área de
adolescência. Contudo, apenas pediatras, que passaram pelo treinamento infantil, podem realizar residência
no Instituto de Adolescência. Naquele local, Doutora Maria havia concluído sua residência médica.
136
Cheguei ao Instituto de Adolescência por volta das 9h30min do dia 6 de janeiro,
“em cima da hora” combinada com a coordenadora. Esperava chegar um pouco antes para
me situar em espaço diferente à minha perspectiva corrente e reconhecer mais claramente
parte do ambiente. Não foi possível. Chegando ao balcão de informações no térreo, fui
informado que a doutora estaria na sala 14 dedicada, segundo inscrição na porta à
adolescência e à endocrinologia (pediátrica, no caso). Todo o prédio é dedicado à pediatria,
funcionando como um anexo do Hospital Universitário.
Logo que abri a porta da sala, com certo constrangimento, a coordenadora me
identificou. “Você é o antropólogo que veio para a entrevista?!”, perguntou. Fui então
encaminhado a uma pequena sala onde, juntamente com um colega, orienta os médicos da
prefeitura que foram mandados para fazer residência em adolescência.
Ela é uma das coordenadoras do Programa e age como professora. O outro
coordenador estava de férias. A equipe de orientadores médicos é composta por três
profissionais. Um chefe e dois coordenadores.
A todo momento chegavam médicas (todas que vi eram do sexo feminino), muito
jovens, para comentar um caso ou para pedir alguma ajuda sobre os pacientes. Havia cerca
de quatro delas quando cheguei na pequena sala. Até então nenhum homem
149
.
Pediu que me sentasse e aguardasse um pouco até que pudesse conceder a
entrevista. Falava naturalmente com as médicas que chegavam até ela sem demonstrar
nenhum constrangimento quanto à minha presença. Ao contrário, parecia preocupada em
mostrar como funciona o “serviço de adolescência” na “prática”. Depois de um tempo,
149
É destacado o predomínio feminino tanto na pediatria quanto na medicina do adolescente.
137
entrou na sala o único profissional masculino dos primeiros dois dias de trabalho de campo
naquele local. Como ela, aparentava uns quarenta e cinco anos. Era o chefe do serviço no
momento. Na reunião geral (que descrevo a seguir) foi tratado com extrema reverência por
algumas “alunas” (termo amplamente utilizado para designar as médicas em treinamento).
Fomos, após uns quinze minutos de espera, entre a minha estadia sozinho e a
acompanhada do médico referido, para outra sala ao lado. Na verdade, um consultório.
Nada lembrava que estávamos em um ambiente exclusivamente dedicado a adolescentes;
nenhum quadro “alternativo”; nenhum objeto destacado; qualquer gravura ou revista que
lembrasse jovens ou adolescentes. Os “utensílios” do consultório eram muitos simples,
típicos do serviço público brasileiro.
Começamos então a entrevista conjunta. A primeira de uma série realizada no
Instituto. O chefe do serviço, pouco mais falante que a coordenadora, deu o tom da
entrevista, assumindo claramente sua condição hierárquica. Aos poucos, porém, a
coordenadora assumiu parte das respostas. Falante e impressionantemente parecida com a
entrevistada de Vitória que, afinal, a tinha “apresentado”, tomou dos complementos às
respostas do chefe as rédeas da entrevista.
Ela possui título de mestre. Ele conta com a graduação, larga experiência no
campo, além dos cursos e muitos seminários de que participou. Além disso, após encerrada
a reunião, vi um livro escrito por ela e outro autor nas mãos de uma “aluna”. As referências
foram anotadas algo como Adolescência: uma abordagem prática. Porém, por motivos
diversos, infelizmente, nunca tive acesso a ele.
138
O ponto alto da entrevista foi o da reação do médico mediante a utilização da
palavra hebiatra. Segundo ele, o termo não deveria ser utilizado, denotando apenas a
necessidade de alguns médicos dele se apropriar para fins de marketing. Chegou a
mencionar o uso do termo como algo ligado a mineiros, que não iria pegar no Rio de
Janeiro. Depois explicou que um grupo que tenta separar a hebiatria do campo geral da
pediatria. Seus principais adversários no que diz respeito ao uso da categoria, segundo suas
palavras, atuariam no estado de Minas Gerais.
Após o término da entrevista, passamos à reunião. Como éramos muitos não foi
possível sua realização na primeira sala em que estive, local onde normalmente acontece.
(E, como disse acima, que havia sido convidado a participar desde a marcação com a
coordenadora.). As reuniões interdisciplinares são chamadas de round
150
.
Pegaram, por isso, uma sala emprestada do serviço social que nenhuma relação
direta possui com o serviço de adolescência. Saímos do conjunto de salas que se abrem a
partir da porta com o número 14 e fomos para outra. Fui orientado a seguir outros membros
da equipe, pois logo estariam lá. Fiquei cerca de dez minutos em uma sala também
minúscula, com pessoas que não havia sido apresentado e que, provavelmente,
perguntavam-se, com razão, quem era aquele indivíduo estranho. Depois de um tempo,
apresentei-me e falei de meus objetivos. Estavam lá: a enfermeira que participa da equipe
permanentemente e algumas “alunas” de enfermagem. Aos poucos, todos chegaram. Ao
todo, contando comigo, estavam ali umas quinze pessoas. Apenas eu e o chefe do instituto
éramos do sexo masculino. Ficamos literalmente imprensados pelo pouco espaço.
150
Mesmo sem ser possível ter clareza completa do porquê do uso do termo, é possível que seu sentido tenha
sido extraído do boxe. Afinal, sabe-se que chamam “round” os vários períodos de luta desse esporte.
139
A reunião foi realmente muito interessante. O trabalho pareceu muito bem
organizado. O objetivo era que todos com “pepinos” a apresentar os socializem com a
equipe. Em tese, todos os “casos” complicados, confusos ou apenas curiosos foram postos
em debate. A princípio, a totalidade dos que trabalham no serviço puderam se manifestar;
no entanto, foi pedido a alguns deles o auxílio naquilo que estaria mais próximo de sua
atuação profissional. Além dos médicos, apenas três profissionais de outra área se
manifestaram. Uma psicóloga e duas enfermeiras uma delas “aluna”. Apesar do
predomínio numérico e substantivo dos médicos, todos eram convidados à fala. Pela
importância da experiência, relato abaixo os pontos ou casos postos em discussão.
(a) A coordenadora referida abriu os trabalhos com o exemplo de um caso que tinha
pegado. Era o de uma menina de 14 anos, muito tímida, que havia extraído um pulmão.
Segundo ela, apresentava um quadro realista de seu possível futuro. Isso porque de
acordo com sua análise, até os 13 anos os seres humanos costumam manifestar uma visão
fantasiosa da realidade. Meninas e meninos tenderiam a pensar que podem ter profissões
difíceis à sua condição social.
Como exemplo, destaque ao garoto pobre e “atrasado na escola” que afirmara
vir a ser médico “quando crescesse”. Nesse momento, outro ponto abordado foi a
necessidade de comprovação de que a realidade apresentada na fala corresponderia à
realidade vivida. Disse que, diante dessa menina, tímida, retraída etc, etc, etc, quis ver se
estava depilada. Afinal, sua timidez aparente poderia ser “desmentida” pelo fato de estar
depilada. A finalidade não ficou clara. Por que a busca dessa “verdade”
151
?
151
Nietzsche aborda a tendência do pensamento ocidental em procurar extrair, artificialmente, da realidade
aspectos que seriam considerados falsos, irreais; enfim, não verdadeiros. Essa “vontade de verdade” estaria
140
(b) Após essa abertura, teve espaço a história de um menino de 12 anos com escabiose. O
relato foi realizado por uma residente (que após a reunião acabou me concedendo
entrevista). Ao que parece o adolescente não estava fazendo o tratamento porque o remédio
sugerido causava ardências na região genital. A coordenadora alertou que essa também é
uma doença sexualmente transmissível.
Como se verá, a possibilidade de doenças sexualmente transmissíveis e abusos
sexuais foram uma constante na reunião. O que torna perceptível o caráter de procura de
causas não apenas orgânicas para os males acometidos pelos adolescentes que buscam o
serviço.
(c) O terceiro caso, apresentado pela mesma residente, diz respeito a um menino de 11 anos
que estava com “sangue vivo” nas fezes. No decorrer da discussão, os médicos usaram
outro termo. O acontecimento gerou forte polêmica. O chefe começou a perguntar a todos
os profissionais presentes (e frisou que com exceção de mim, que era antropólogo, todos
poderiam levantar suas hipóteses sobre as causas). A coordenadora indagou se a médica
havia examinado o ânus do menino. Respondeu que não, dizendo que havia “engolido
mosca”, com linguagem popular. Foi “salva” por Doutor Pedro que disse ser cúmplice da
situação que o caso foi levado a ele. Muitas hipóteses foram levantadas; inclusive de
hemorróidas, fissura anal e violência sexual.
(d) Após a série de debates provenientes da discussão anterior, foi a vez de ser objeto de
reflexão um menino de 11 anos com problemas escolares. Especialmente falta de atenção e
rebeldia. Muitos presentes afirmaram o equívoco diante de quadros como aquele. Dizia-se o
relacionada à tendência metafísica de nossas concepções, que buscam Verdades não contaminadas pela
aparência das coisas (NIETZSCHE, 1981).
141
quanto é errado encaminhar, como no caso, para psicólogo e neurologista. O menino
deveria mesmo procurar um médico de adolescentes. Mesmo as psicólogas presentes
diziam concordar com o que era dito. Ou a se resignar diante disso. Havia um agravante no
caso: o menino fazia “cocô na calça” sem sentir (que recebeu um termo técnico não captado
por mim) sem ligar para a zombaria constante dos colegas. Ao contrário, parecia se divertir
com a “zoação” sobre ele. Além disso, o garoto tem hepatite C, apenas adquirível através
de relações sexuais ou uso de seringa contaminada. Houve forte polêmica diante do caso,
com formas de interpretar que tomavam direções diversas.
Uns defendiam a hipótese de uso prematuro de drogas injetáveis; outros
imaginavam que ele havia sido molestado sexualmente. As duas hipóteses tornavam-se
plausíveis pelo histórico da família. O pai, falecido, fazia uso intensivo de cocaína e
álcool e possuía tendências suicidas. A fonte da hepatite poderia ser o pai. O caso foi
apresentado pela enfermeira da equipe, através de informações da mãe, no momento da
triagem. De todos, foi o debate mais acalorado e em que o tempo foi mais utilizado.
(e) Apresentado por uma médica que auxilia na orientação dos residentes foi exposto o caso
de uma adolescente de 15 anos que reclamava de intensa dor de cabeça. Foi até o serviço
sem marcar consulta e queria ser atendida na hora que chegou. Doutor Pedro afirmou ter
dito a ela que se não esperasse, poderia ser atendida em outro dia, assim mesmo após
marcar consulta.
Esperou e foi atendida. E, segundo ele, não voltou a se manisfestar de forma
desrespeitosa. Doutora Vilma afirmou que, durante a consulta, a queixa que a levou até o
ambulatório não apareceu; ou seja, em momento nenhum falou mais da “forte” cefaléia. Ao
142
contrário, discorreu sobre seus problemas familiares e sexuais. Portadora do HPV, vírus
similar ao HIV, que, geralmente, faz desenvolver o câncer do colo do útero, mostrava certo
distúrbio psicológico. Mais particularmente, narrou a separação dos pais e seus reflexos em
sua vida. Foi deliberado que a mãe deveria ser chamada para esclarecer alguns pontos
obscuros. Caso essa não comparecesse, o caso seria encaminhado ao Conselho Tutelar.
(f) Outro paciente cuja situação envolvia “distúrbio de comportamento” (especialmente
escolar) veio à baila. Uma residente entrevistada após a reunião afirmou que um garoto
(infelizmente não anotei a idade), além de obeso, apresentava comportamentos
considerados atípicos. Por exemplo, reclamava de fortes dores urinárias porque, segundo
seu próprio relato, “não se sente livre para fazer xixi”. Segundo a mãe, é muito retraído e
quase não tem amigos. Os adolescentes de sua idade implicam com ele pelos seus trejeitos
aparentemente femininos. A própria doutora reconheceu tais trejeitos. Foi pedido para ele
se auto-desenhar. E mostrado o desenho realizado ao grupo. Realmente o desenho era
curioso e fantasioso. Tinha inscrições como “cavaleiros do zodíaco” e outros nomes,
aparentemente sem sentido. Ele se desenhou com quatro braços dois na linha da cintura
(segundo a mãe, o menino tem mania de ficar com a mão nas cadeiras” ou passando
continuamente no cabelo o que lhe faz sofrer críticas constantes dos colegas de classe) e
dois para o alto. Afirmou para médica que não se bem com o pai no momento do
atendimento separado da mãe e que nunca perdoará o que fez com ele. Mais uma vez a
suspeita generalizada é de abuso sexual. Sobre o desenho, a psicóloga presente alertou que
não se deve pedir para os adolescentes se desenharem. Segundo ela, pela fuga, sempre
farão desenhos fantasiosos e esteriotipados, como aquele. Além disso, o desenho pode
ajudar na análise se acompanhado do histórico do paciente.
143
Levantados e debatidos os casos, com bastante bom humor, deu-se por encerrada
a reunião, depois de uma piada, sem nenhuma relação com os assuntos abordados, contada
por uma das psicólogas presentes. Foi quando solicitei a quaisquer deles entrevistas que
pudessem contribuir para a pesquisa.
Duas “alunas” médicas se propuseram a concedê-la naquele mesmo momento.
Elas fazem parte do Programa de Educação Continuada (PEC), que recebe médicos que
trabalham na rede municipal de saúde para realizar treinamento em medicina do
adolescente. Estão, assim, na condição de estagiários na instituição e realizam a maior parte
dos adolescentes que procuram a instituição sempre orientados de perto pelos
coordenadores do serviço.
Pode-se perceber claramente a gama de problemas voltados para além das
dimensões propriamente orgânicas levantadas nas consultas e levadas à reunião observada.
Nela, discutiu-se elementos emocionais, relações sexuais e doenças sexualmente
transmissíveis, obesidade e abuso sexual. Assim, as doenças que chegam até os médicos
que lá atuam sempre parecem visto pela bitola do psicossocial, ainda que não tenha sido
essa a intenção primordial de quem procurou o atendimento e nem o discurso oficial dos
organizadores do serviço, nesse caso. Assim, além de cura física, sempre está embutido
algum tipo de esclarecimento sobre os riscos que correm no campo não-orgânico de suas
perturbações e as principais formas de evitá-los.
Outro ponto de destaque do atendimento oferecido aos que são atendidos no
serviço de adolescentes do Instituto de Pediatria da UFRJ é a presença estreita entre
144
supervisão e médicos-alunos que põem em prática a maior parte das consultas. Como
destaca o chefe do serviço abaixo, com clara intenção comparativa.
Dr. Pedro: A grande vantagem do nosso serviço é que nós [os médicos
responsáveis por sua chefia] atendemos. Em alguns serviços, os profissionais
não atendem; supervisionam. Nós o. Nós estamos sempre ali na linha de
frente. Fazemos questão de sentar e atender.
O diferencial foi também observado por mim com apoio nas visitas e entrevistas
realizadas. Talvez pelo enfoque maior na atenção secundária, os médicos do serviço da
UFRJ trabalham de forma integrada. Chefe, coordenadores, alunos-médicos, outros
profissionais da equipe e seus alunos possuem forte laço de convivência e discussão,
emoldurando os casos que chegam até eles de forma parcialmente coletiva, muito embora
sobre perceptível e declarada direção médica. Será visto que no Núcleo de Estudos da
Saúde do Adolescente as atividades correm paralelamente, sem a centralização observada
entre os profissionais da UFRJ.
Em outro dia, cheguei cedo ao Instituto. Fui direto em busca da(s) psicóloga(s)
para a entrevista. Na sala 14 (a dedicada à adolescência e à endocrinologia), fui informado
que estariam ao lado na sala própria ao atendimento psicológico. A funcionária que havia
me comunicado onde se localizava a sala pediu que batesse na porta.
No local de espera, vi poucas pessoas que pudessem ser chamadas de
adolescentes. A maior parte era composta por crianças pequenas acompanhada de pais. Os
poucos adolescentes pareciam tão novos que quase não dava para distinguir pacientes e
145
acompanhantes. Vi uma menina de uns 17 anos, grávida, acompanhada de duas crianças e
uma senhora provavelmente sua mãe. Ao que parecia, a consulta era para os filhos, mas,
pela faixa etária, poderia ser para ela. Talvez tenha sido o caso de uma gravidez na
adolescência. Vi mais umas três ou quatro meninas de uns 11 ou 12 anos. E só. A
predominância era de crianças pequenas, acompanhadas de possíveis pais e mães.
O Instituto de Pediatria, onde o serviço de adolescência está alocado, funciona em
um prédio ao lado do dedicado aos adultos do Hospital Universitário da UFRJ. O prédio, de
dois andares, é uma típica instalação de serviço público, do piso, com rachaduras, ao tipo
de iluminação e volume de pessoas. Como é um centro de pediatria, a tônica é o burburinho
e a correria das crianças.
O atendimento é realizado no segundo andar do prédio, cujo acesso se dá por uma
longa rampa dividida em dois “lances”: o primeiro, para esquerda de quem entra, e logo
após para a direita. várias salas (consultórios?) dedicados ao atendimento pediátrico por
subespecialidade ou à administração. Algumas salas são funcionais, como a que fica à
frente do local de onde fiz essas anotações: a do anfiteatro do ambulatório. No lado
contrário a que estava (a de entrada através do acesso à rampa) encontram-se banheiros
masculino e feminino, com um bebedouro no meio.
Curiosamente, não muitos “motivos” infantis no ambulatório, com exceção de
uma pequena casa de madeira (reprodução de uma) ao lado da sala do anfiteatro (referida
apenas como sala 3).
Há desenhos tipicamente infantis de “ursinhos” em parte do início do “telhado” da
casa e nas laterais, na altura da maçaneta. A porta possui (também pouco acima da
146
maçaneta) uma janelinha de vidro fumê. Na lateral, o mesmo tipo de vidro em um quadrado
bem maior do que o da porta. A casinha deve ter uns 3 por 2 metros. Fica ao lado esquerdo
de quem chega pela rampa.
Havia umas 200 pessoas esperando consulta ou acompanhando os pacientes
entre crianças, pais e agregados. O predomínio é de crianças correndo, brincando, se
alegrando... Como disse, não vi (nem em frente da sala dedicada aos adolescentes) muitas
pessoas que pudessem ser assim chamadas. vários bancos de madeira (formado de ripas
vazadas), razoavelmente confortáveis. Estão dispostos no centro do grande corredor de
espera e na lateral paralela à rampa. Além disso, uma espécie de sala de espera com uma
concentração de bancos. Fica do lado direito da rampa. Estava lotada.
Embaixo, no térreo, há, à direita de quem chega, uma sala (aberta com uma porta
com grades) donde se marcam as consultas – pelo menos é o que está escrito em uma placa.
À frente (na entrada da rampa), após um espaço de mais ou menos uns dez metros, a
entrada de acesso à rampa. O acesso é controlado por um funcionário que fica à frente de
um balcão com três pessoas fazendo triagem.
A marcação da consulta é feita, primeiro, no prédio “de cima” (segundo um
funcionário que estava na sala em que se lia “marcação de consultas”) e depois marcada
“em baixo”. Depois é feita a triagem. Não ficou muito claro como.
Parte dessas observações “arquitetônicas” se deu enquanto esperava um melhor
momento para bater de novo à porta da sala de psicologia. Em cima, antes de ser atendido
pelas psicólogas; e embaixo, depois de encerrado o trabalho de entrevistas. Voltei e bati de
novo e a porta se abriu. Uma das psicólogas veio me receber. Estavam duas delas na sala e
147
a entrevista se deu em uma mesa pequena, de criança; elas sentadas em cadeirinhas e eu
em uma cadeira normal, de adulto.
Realizada a entrevista com as psicólogas, tentei contato com outros profissionais
do instituto. Fui informado que a enfermeira que faz parte da equipe, estaria me esperando.
Não a encontrei na “sala das enfermeiras”, e, logo, houve certa mobilização de funcionários
para ver onde estava. Logo apareceu e fomos para a sala em que havia sido feita a reunião
do dia anterior, a que foi tomada de empréstimo à assistência social que não possui
nenhum profissional oficialmente ligado à equipe de atendimento ao adolescente.
Uma passagem deu a tônica de como o trabalho de saúde com adolescentes tende
a ser multiprofissional, assim como alertou para as reivindicações latentes dos não médicos
sobre a importância do desenvolvimento de seus saberes junto à equipe. Nesse caso, a
enfermeira acabou por demonstrar, por um lado, as vantagens do trabalho multiprofissional
e, por outro, os confrontos naturais entre as visões de cada tradição de cada segmento. Por
exemplo, pareceu concordar com o ponto de vista médico de que nem todos os problemas
dos adolescentes devem ser encaminhados às psicólogas ou supostos como de causa
emocional em sentido estrito. Ainda assim, pareceu destacar certa dureza do entendimento
médico, principalmente sua desconfiança em relação ao trabalho de outros membros da
equipe, particularmente ao do enfermeiro
152
.
152
Durante a entrevista buscou demonstrar os “preconceitos” que sofrem os profissionais da enfermagem,
ressaltando as principais características da consulta por eles realizada e o papel que podem desempenhar em
uma equipe de atendimento de saúde. Segundo ela, apenas o diagnóstico e o exame clínico detalhado não
podem ser feitos por eles. Contudo, as recomendações educacionais e a sondagem sobre o quadro geral da
família e do próprio adolescente ficam sob sua responsabilidade. Possuem destacada importância na
realização da triagem dos pacientes; no caso, sua principal função na equipe.
148
Lembrou que a triagem dos pacientes era realizada anteriormente apenas pelos
profissionais de enfermagem. Agora todas as triagens são conjuntamente feitas por ela e
pelo doutor Pedro chefe do serviço. Contudo, tal metodologia é recente. Antes, ela como
membro da equipe, sozinha, fazia todo este trabalho. É a única enfermeira entre os
participantes oficiais do serviço; mas não a única no Hospital. Há mais três enfermeiras que
trabalham em outros setores. Os demais que atuam com adolescentes são estagiários que
ficam sob sua orientação e que, cumprindo o tempo de estágio, dão lugar a outros
interessados em um treinamento para trabalhar com adolescentes. Nesse ponto da
entrevista, justificou que, agora, tem menos trabalho, dividindo-o com o doutor Pedro,
mesmo que ressaltasse que poderia fazer toda a triagem sozinha e que, eventualmente, isso
é possível ainda, uma vez que a atividade está sob sua responsabilidade.
De certa forma, pareceu-me que o campo estabelece alianças diferenciadas,
conforme cada contexto de atuação. Como são três os segmentos de profissionais na
equipe, imagino que as “contradições” ou “choques” entre eles podem ser vistos em um
continum, onde em um lo estariam os psicólogos, no extremo oposto os médicos e no
centro, os enfermeiros
153
. Cada um justificando seus próprios afazeres e metodologias. Esse
continum, que pode variar pela característica pessoal dos profissionais envolvidos, é fruto
das relações de poder vivenciadas e da demonstração de competência maior ou menor para
a abordagem de alguns assuntos. É preciso, no entanto, destacar que meu próprio olhar está
metodologicamente imbuído de uma pressuposição de que o poder é sempre relacional e
está presente em todos os setores das sociedades em que vivemos.
153
Certamente, essa polarização diz respeito à proximidade maior ou menor das ciências humanas ou naturais.
149
O Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA)
O Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA) pertence ao corpo de
serviços prestados à sociedade carioca pelo Hospital Universitário Pedro Ernesto, situado
em Vila Isabel. O hospital é vinculado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro, servindo
de local de residência para os estudantes de medicina da universidade.
Fui informado que o NESA ficava ao lado do pavilhão geral do hospital, em uma
rua sem saída atrás do Banco de Sangue. O prédio bege/creme (?) e azul cheirava à tinta.
Trata-se do Pavilhão Floriano Stoffel
154
, edifício de dois andares com um subsolo. O prédio
serve exclusivamente ao atendimento de adolescentes. Bem conservado por fora, com
entrada arborizada e ambulâncias paradas à frente (que poderiam ser de unidades de saúde
distantes da cidade do Rio, o que não ficou claro...), destaca-se marcadamente do padrão do
atendimento público brasileiro.
Entrando pela passagem "oficial" (há um acesso para o restante dos "pavilhões"
não parecem pavilhões, mas são assim chamados pelos fundos) se pode ver à esquerda
uma pequena sala de espera com pouca gente em frente a consultórios. Não foram
identificadas as especialidades. No entanto, havia, próximo à porta, um funcionário em um
pequeno stand. Acima dele, um quadro de avisos, em letras em plástico, com as
especialidades disponíveis. Seguindo em frente (da perspectiva de quem entra...) uma
escada que acesso à sobreloja, chamada de primeiro andar, e outra para o subsolo. Nesse
último uma sala de espera mais ampla (o funcionário chamou de varandão), onde se tem
que passar para ir aos banheiros do lado de fora. uma TV com giro-visão ligada em
154
Além dos trabalhos desenvolvidos nessa localidade, está de mesma forma vinculado à Uerj e ao próprio
NESA, a Policlínica Piquet Carneiro, oferecendo atendimento de atenção primária e secundária.
150
canal de desenhos animados (acredito que estivesse no horário do Programa da Xuxa da
Rede Globo de Televisão). À esquerda, quatro portas escritas, respectivamente:
ginecologia, serviço social, saúde mental e nutrição. À direita, quatro janelas e uma porta
que dá para o lado de fora de onde estava sentado, no momento que escrevi a primeira parte
desse relato.
O local do lado de fora é arborizado (duas amendoeiras fazem sombra), algumas
cadeiras de cimento ao ar livre e, à frente, quatro portas de alumínio, escritas
respectivamente (da esquerda para a direita): banheiro feminino, banheiro masculino,
banheiro feminino (de novo) e simplesmente banheiro, talvez unissex, para funcionários. O
masculino é limpo, com mictório e sanitário, mas individual. A pia estava com a torneira
com defeito, porém bem melhor do que outros pontos de saúde pública. Mais à direita
existe uma pequena sala que supus ser uma cozinha. À esquerda outra passagem, como
já disse, tipo corredor (mas ao ar livre).
Além do piso de entrada, outro acima. Supus, em um primeiro momento, que a
maior parte dos consultórios ficassem principalmente pela existência de alguns
aparelhos de ar-condicionado. Depois percebi que não passavam de salas "administrativas".
O varandão tem à frente de si uma porta que acesso aos atendentes; está
escrito: "sala de enfermagem". Possivelmente é a sala de triagem. Mudei de lugar mais uma
vez atrás de outra perspectiva; passei ao varandão e observei os possíveis pacientes e
pessoas com aspecto de mães (invariavelmente, quando havia) acompanhantes. Antes,
porém, observei o que havia atrás dos banheiros, na passagem para o hospital referida.
Como disse, dá para outros setores de atendimento do Pedro Ernesto.
Estava no varandão. Havia 19 pessoas sentadas, contando comigo. A maior parte,
adolescente. Pelo que vi, grande parte estava na "casa" dos 14, 15 anos. Curiosamente
151
muito mais meninas do que meninos (pode ser pelo atendimento em ginecologia). A espera
é limpa e agradável. Arejada por seis ventiladores de teto (um parado). Há duas
lixeiras médias ao lado de dez fileiras com cinco cadeiras de plástico cada uma. (Não havia
sequer um papel de bala no chão...). As cadeiras são do tipo "sala de espera". Bem
arrumadas (em fileiras), poucas fora de lugar. A televisão é grande e de excelente imagem.
À frente, a sala de enfermagem. Atrás de onde estava, na última fileira, havia um quadro de
giz móvel, com pés. Ao lado, ao fundo da sala, sentido contrário da descida, uma porta
de ferro diferente das outras, parece indicar que é própria para funcionários. Entra mais
gente, uma menina é chamada pelo nome para o atendimento. Não pude saber quantas
"especialidades" havia. Nem mesmo se eram todos "pediatras".
Curiosidades:
(a) no quadro de giz estava escrito em preto, quase apagado no verde: "Eu amo as Spice
Girls"; provavelmente por algum adolescente;
(b) havia pequena aglomeração em frente ao "vidro" (tipo "aquário") de atendimento, de
onde eram chamados os adolescentes;
(c) alguns adolescentes trajavam uniforme de colégios;
(d) os próprios médicos chamavam os pacientes.
A sala, ao lado do quadro de giz, acima descrito como se fosse para acesso de
funcionários, na verdade, era a passagem pela qual desci. (Esse ponto demonstra o quanto
nossa percepção muda depois da estada por mais tempo em um local). A escada fica por
dentro. A escada aparente, onde pensei ter descido, para uma série de consultórios (piso
único, sem acesso a lugar mais algum). Estava escrito na porta "consultório médico". Subi à
"sobreloja". Entre um lance e outro de escadas (diferentes do varandão). uma mesa
entre a série de duas cadeiras; atrás, cartazes sobre AIDS (maioria), exploração sexual de
152
crianças e adolescentes e um mais vago com o desenho de uma série apenas de crianças
respondendo a pergunta "o que eu queria fazer na minha vida?".
Depois da observação inicial, fui até o funcionário da entrada perguntar a quem
poderia procurar para uma entrevista. Mantive certa "falta de objetividade" na pergunta
curioso para saber para quem ele iria me mandar. Pediu que procurasse a secretaria no
primeiro andar. Procurada, essa mencionou a presença da coordenadora da atenção
primária. Depois de esperar um pouco, fui chamado à sua sala. Disse-me que só poderia me
atender no dia seguinte às 10 horas. Ficou marcado. Deu-me duas revistas sobre a
instituição: uma sobre sua história e outra com artigos científicos
155
.
No outro dia, cheguei pouco mais cedo do que a hora marcada para a entrevista.
Fiquei observando o movimento no varandão. Depois subi à sala da coordenadora da
atenção primária, acoplada à secretaria. eram 10 horas, estava lá, mas, como previsto,
tive que esperar. O balcão da secretaria é típico para atendimentos administrativos. Local
de trabalho tipo escritório. Esperei em pé, um pouco constrangido pela conversa animada e
descontraída entre a secretária, até onde pude perceber oficial, e uma outra funcionária de
outro setor.
Enfim fui chamado. Primeiro expliquei os objetivos da pesquisa e um pouco do que
havia feito. Depois mencionei o serviço de adolescência da UFRJ. A grande diferença,
nesse caso, seria o tipo de dado que teria de uma forma ou de outra, dando ciência de minha
estadia em outro centro ou simplesmente não mencionando o fato. A menção, em certos
momentos, marcou as diferenças – políticas, organizativas, intencionais...
155
Uma delas é uma publicação comemorativa dos 30 anos de fundação do NESA; a outra se intitula
Adolescência e Saúde. Revista oficial do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente/UERJ. Vol. 1, n. 1
(jan/mar. 2004). Rio de Janeiro: Diagraphic, 2003.
153
A coordenadora ouvida mostrou-se muito concentrada em suas próprias posições
sobre a medicina do adolescente, relação com a pediatria e com iniciativas sociais, fazendo
questão de responder detalhadamente a tudo que lhe era perguntado. Disse-me apenas que
tinha um compromisso às 11 horas, o que fez com que o tempo se encerrasse antes das
perguntas que eu tinha projetado. Mas não foi prejudicial. Confirmou minha percepção de
que o serviço de adolescentes, principalmente em seus aspectos visíveis, se destaca dos
demais existentes no Pedro Ernesto.
Perguntei, ao final da entrevista, se não havia um residente que eu pudesse
entrevistar. Disse que possivelmente sim, mas que procurasse a funcionária da secretaria.
Não fez nenhuma intermediação. Procurei a secretária que, ligando para o "varandão",
identificou a staff do dia. Entrei no "aquário" (sala com ampla cobertura de vidro) com a
funcionária. Ela me levou até a doutora responsável pelo dia.
Disse que estava ocupada com um e-mail que tinha a “passar”, mas logo me
concederia uma entrevista. Perguntou se teria necessariamente que ser com um residente,
mostrando-se disponível. Disse que não. Enquanto isso chegaram dois deles. Fui então
apresentado aos dois. Ela então aconselhou que os entrevistasse enquanto terminaria o que
estava fazendo. Um disse que não poderia (claramente sem "paciência" para a tarefa); o
outro, ao contrário, pareceu disponível à entrevista.
Fomos, eu e o médico residente que se mostrou interessado à empreitada, para um
consultório pequeno. O residente, muito atencioso e sério (além de bastante jovem, entre 25
e 28 anos). Pareceu muito empolgado com o início da carreira. Veio de Juiz de Fora para
estudar medicina do adolescente na UERJ. Possui grande interesse por psiquiatria e é
bastante veemente na defesa de que não é necessário fazer pediatria para trabalhar com
adolescentes. Talvez faça parte da “ala mineira” do debate sobre a pertinência ou não de
154
uma hebiatria independente da pediatria, que segundo o chefe do serviço de adolescente da
UFRJ teria principal defesa no estado de Minas Gerais, mas que ali parece “discurso
oficial”, uma vez que o assunto foi mencionado quase da mesma forma pela Doutora Alice.
Voltamos conversando animadamente sobre adolescentes até a sala da doutora que
coordenava os residentes do dia. Chegando lá, na verdade, quase lá, no caminho, ela disse-
me que havia tido um problema e que não poderia me conceder entrevista. Contudo,
ofereceu telefone e e-mail para um futuro contato. Peguei o e-mail perguntando se
poderíamos fazer uma entrevista virtual. Concordou. Teria assim uma fala intermediária:
nem coordenadora nem residente. Por motivos variados, nunca obtive a entrevista.
Satisfeito com o trabalho do dia, saí pelo caminho que leva direto ao hospital. É
marcante o contraste entre o pavilhão de adolescentes e o restante dos ambulatórios. A
precariedade é percebida logo que se sai do pavilhão onde está o NESA.
A "saída informal" desembocava em um pequeno portão fechado por um guarda,
como se não fosse para ser usado cotidianamente, ainda que utilizado de forma clara.
Desemboca em uma rua típica para a passagem de ambulâncias. Apesar disso, o Pedro
Ernesto não possui serviço de urgência.
Vi algumas entradas para ambulatórios outros. Cheguei ao de pediatria. Certifiquei-
me que atendem pessoas até os 11 anos completos, como a pediatria de meu tempo. O
local de atendimento é apertado, sujo e de aparência precária padrão típico de serviço
público. Ao que parece, não nenhuma relação entre um pavilhão e outro. O prédio de
adolescentes é completamente independente
156
.
156
É preciso destacar que o NESA possui uma farta rede de convênios com empresas e organizações não
governamentais, além de contar com recursos do Governo Federal, por serviços prestados na confecção de
material utilizado no treinamento de profissionais de saúde que pretendam trabalhar com adolescentes e na
155
Enquanto o primeiro dia foi o da observação geral e dos contatos e o segundo o das
entrevistas, o terceiro foi o da busca de material escrito. Ao contrário dos outros, fui à tarde
uma vez que a prioridade não era o atendimento. Mas havia atendimento. Fui informado
que havia material diverso sobre adolescentes na sala 3, onde funciona o ELOS, uma
espécie de biblioteca sala especial com material sobre sexualidade e adolescência de
forma geral.
Depois de observar o varandão, fui ao Elos. Chegando lá, encontrei, em espaço
exíguo, pequena estante, um pouco desordenada, sem fichário para consulta, com livros e
vídeos sobre adolescentes. De um lado, uma televisão para a consulta ao material em vídeo;
de outro, um computador onde se procura a referência do material "catalogado". Um
funcionário, quase adolescente, adulto-jovem, como dizem, atendeu-me com paciência e
simpatia. Durante o período em que estava lá, chegou uma "pesquisadora", possivelmente
médica pelo uso do branco das roupas, atrás de material para prevenção sobre drogas.
Pegou um vídeo e começou a assisti-lo ali mesmo. Tratava-se de um programa feito com
fantoches. Não me ative ao seu conteúdo.
Além do encontro, consegui um relevante material escrito sobre adolescência,
medicina e intervenção em projetos sociais. Foram quatro volumes para tirar xerox. Deixei
documento de identidade e fui à rua reproduzir os volumes que consegui. Quando voltei, a
funcionária que me atendeu já havia ido embora; outras duas assumiam seu lugar.
A importância dos documentos conseguidos, parte dele formulado pelos próprios
profissionais do NESA, reside no fato de ser indicações do Ministério da Saúde para o
atendimento de adolescentes. Isto é, um material orientador para os próprios médicos, o que
realização de trabalhos em “comunidades carentes” ou meios de comunicação, fornecendo informação ou
estimulando promoção e prevenção de saúde.
156
uma dimensão de unidade aos procedimentos imaginados como ideais. Terminado o
trabalho de coleta de material, fui embora dando fim à primeira série de visitas ao Pedro
Ernesto.
Uma Síntese Possível
Os dois serviços são diferentes e até conflitantes em muitos aspectos. O principal
deles seria o que tange à discordância oficial sobre a melhor nomenclatura para a medicina
do adolescente. Afinal, os profissionais do Ambulatório de Adolescentes da UFRJ tendem a
se denominar pediatras que priorizam o atendimento adolescente por gosto e treinamento e
não propriamente hebiatras; enquanto os do NESA pretendem, até onde pude ver,
incorporar ao campo a utilização do termo hebiatria, mesmo sem tomá-lo como
fundamental, enfatizando sua independência estrutural em relação à pediatria e a
especificidade de seu trabalho, uma vez que estaria ainda mais ligado ao campo
denominado psicossocial, sendo flexível quanto ao direcionamento médico notado no outro
caso. Ou seja, seus profissionais estariam mais francamente abertos à intervenção mental e
social recomendada pela OMS.
De toda forma, as diferentes posições remetem diretamente a um posicionamento
frente à Sociedade Brasileira de Pediatria, posto que esta regula, sem restringir o
atendimento de adolescentes por quaisquer médicos, o uso do título de médico de
adolescente. Afinal, segundo seus princípios, desde 1998, quando implantado o concurso
para atender esses indivíduos, todo médico com título em adolescência, deveria realizar,
primeiramente, residência em pediatria para só depois prestar prova de título de acordo com
seus padrões para, se fosse o caso, prestar serviços médicos à adolescência de maneira
oficial, reconhecido por autorização específica. Daí a questão de um dos entrevistados.
157
Dr. Marcelo: Então, você se forma médico; médico generalista, clínico geral.
Depois você entra pra especialização. Têm duas formas de especialização no
Brasil reconhecidas pelo MEC: a residência médica e os cursos de pós-graduação
lato sensu. Hierarquicamente, sempre a residência tem uma preferência. Você
teve uma formação mais sólida. A... Até dois anos atrás, a residência em
medicina do adolescente era acesso direto, você saia da Faculdade e enfrentava
ela direto. Por manobras políticas da Sociedade Brasileira de Pediatria, ela
englobou a residência de medicina do adolescente e transformou em uma
subespecialidade da pediatria. Quer dizer, foi uma manobra política pra ganhar
uma reserva de mercado. Daí a pessoa tem que fazer obrigatoriamente agora
residência em pediatria, em 2 anos; depois prova pra medicina do adolescente.
Não é incomum a afirmação de que a Sociedade Brasileira de Pediatria teria
pretendido manter a adolescência sob seus domínios por razão de mercado. Afirmação, por
outra via, rebatida pelos defensores da Sociedade, que argumentam que, ao contrário, o
outro campo, o “não alinhado”, pretenderia “inventar” uma outra especialidade, desgarrada
completamente da pediatria, para fortalecer politicamente seus idealizadores ou, de mesma
forma, para aumentar seu poder no mercado médico.
Mesmo os defensores da Sociedade não negam inteiramente tal estratégia de
mercado. Afinal, ao que parece, estava nos planos da Sociedade Brasileira de Pediatria um
aumento no mercado médico, sempre desejável (BUCHAIANERI, 2004) a qualquer
especialidade e de nenhuma forma ilegítima. Essa posição é francamente destacada pela
Doutora Maria Ignez Saito, médica bastante reconhecida pelos que atuam na área.
“De repente [por] (...) uma questão de mercado de trabalho, os pediatras
começaram a o encaminhar com 12 anos para o clínico, por um contexto de
mercado de trabalho mesmo, e então você tinha seu paciente por mais tempo”.
(SAITO, Maria Ignez apud BUCHAIANERI, 2004: anexo III, p. 139).
Porém, defesas da continuidade do atendimento de adolescentes pela pediatria
prevalecem desde os primeiros serviços de adolescência no Brasil, sustentados na
158
afirmação de que ela estaria mais apta a tal tarefa por sua experiência em relação às
questões ligadas ao crescimento e desenvolvimento humanos.
“Os livros clássicos de pediatria abordam a adolescência como um apêndice ou
uma extensão dessa especialidade, entendendo essa fase da vida com o período
pubertário, estudando biologicamente o crescimento e o desenvolvimento,
preocupando-se com orientações de pais e dando alguma ênfase aos aspectos
socioculturais do adolescente”. (BUCHIANERI, 2004: p. 15).
Ou pelas palavras da Doutora Maria Inez Saito:
“Os adolescentes o seres em crescimento e desenvolvimento e esta definição é
da pediatria. Ainda está valendo esta premissa. Quando se fala em
especialidade, o risco é se perder a noção do todo, portanto, é possível que a
Medicina do Adolescente se torne uma especialidade e a preocupação será que
esse especialista não se volte totalmente para as patologias da adolescência,
deixando de perceber o indivíduo adolescente.” (SAITO, Maria Ignez apud
BUCHIANERI, 2004: anexo III, p. 149).
Quanto à predominância “não pediátrica”
157
do NESA pode estar assentada, de
forma umbilical e velada, em sua própria história. Afinal, o atendimento de adolescentes
naquele espaço nasceu do trabalho realizado na enfermaria, ligado especificamente à clínica
médica, da atenção terciária, e não da iniciativa ambulatorial de pediatras ou da Sociedade
Brasileira de Pediatria.
A organização e divulgação da medicina do adolescente, mesmo no que diz respeito
à literatura sobre o tema, mostram-se intimamente solidárias aos centros que constituíram
essa área de atuação. Por exemplo, a coletânea Adolescentes, publicada em 1979, já
mencionada, estava diretamente vinculada ao serviço de adolescentes da Universidade de
São Paulo, enquanto Medicina do Adolescente de 1993, mesmo contando com profissionais
157
É bom ressaltar que, mesmo sem dar importância ao fato, os médicos com que tive contato são pediatras.
159
de muitas instituições e discussões diversas de ênfase orgânica, permanece com destacado
tom ligado ao Serviço de Adolescência do Departamento de Pediatria da Santa Casa de
Misericórdia de São Paulo.
O primeiro dos livros mencionados foi compilado apenas cinco anos após o advento
do serviço de adolescentes da USP e mostra um pouco de suas características e diretrizes
centrais. Todos os articulistas estão vinculados a esta Universidade. Inclusive, há um
artigo coletivo "assinado" por todos os membros da equipe que trabalham com adolescentes
naquela instituição. Entre todos os que assumem autoria dos artigos estão: 2 médicos
assistentes (que suponho serem clínicos gerais); 2 nutricionistas; 2 endocrinologistas; 2
enfermeiras; 2 assistentes sociais; 1 psiquiatra e 1 dermatologista. Contudo, nenhum
profissional fora da medicina assina sozinho ou em combinação com outros um único
artigo da coletânea sem a presença médica o que demonstra, ao menos à época, a direção
médica do serviço e seus principais empreendimentos naquele espaço. Todos os
profissionais não-médicos são "englobados" pelos médicos, especialmente no artigo
coletivo encabeçado pela Dra. Anita Colli (COLLI, 1979a). Tal fato demonstra inequívoco
direcionamento médico nos serviços de adolescência no Brasil.
Algo similar ocorre nos campos da geriatria e da gerontologia, estudados por
Simoni Guedes (2000). também, mesmo que o discurso interdisciplinar (em especial no
caso da geriontologia que se constitui como um serviço de atendimento interdisciplinar de
idosos) predomine, é possível perceber amplo domínio dos saberes médicos e, por via de
conseqüência, de fundo biologizante.
Essas práticas e entendimentos podem denotar o quanto o aspecto biológico dos
problemas humanos serve, no quadro geral do Ocidente, de acordo com os parâmetros
modernos, como uma espécie de âncora para o “mal”. Na medida em que, ao contrário de
160
outras sociedades (EVANS-PRITCHARD, 2005), os distúrbios (quase sempre) têm no
orgânico a sua fonte prioritária.
Mas o que importa assinalar são as divergências de termos, de organização e de
mercados. E o quanto, de uma forma ou de outra, trabalham direta ou indiretamente sobre
questões que ultrapassam o âmbito propriamente curativo, adentrando por questões de
ordem psicológica e social, ainda que seus discursos oficiais possam os levar a outras
direções. São educadores do corpo, de toda forma.
161
Capítulo 5: Nas Trilhas da Lei
Nesta virada de milênio, uma série de discussões e polêmicas acerca da infância e
adolescência tem merecido destaque no seio da sociedade brasileira, como demonstrado.
Implementa-se a ampliação do escopo legal de atendimento aos cidadãos compreendidos
nessas faixas etárias por intermédio de estatutos específicos, que, segundo muitas
instituições da sociedade civil e especialistas de setores diversos da academia (como a
pedagogia, a psicologia, a sociologia etc.), ou por eles orientados, visam a romper os
“estereótipos” e “desmandos do passado”, objetivando garantir convívio mais “saudável”
entre crianças ou adolescentes, de um lado, e adultos, de outro. Por isso, foram
estabelecidos mecanismos cuja intenção seria criar uma rede de proteção: os primeiros
precisariam de garantiasem relação aos segundos. Dessa forma, a legislação que aborda
o tema, consubstanciada no Brasil pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado
em 5 de setembro de 1992, aborda a relação das crianças e adolescentes com os pais, a
sociedade como um todo e com o próprio Estado.
Em sentido amplo, os direitos e deveres da infância e da adolescência estão na
ordem do dia; fornecendo pautas para coberturas midiáticas dos mais diversos matizes
dedicadas à denúncia de sua violação ou à exigência de maior rigor para com suas atitudes
“desviantes” ou francamente criminosas.
No campo dos direitos, por exemplo, é notória a constante substituição de termos
antes largamente utilizados para se referir homogeneamente a todos os indivíduos
considerados à margem do entendido como “saudável” à faixa etária atribuída à infância e à
adolescência. Algumas nomenclaturas endereçadas aos membros que desviam do padrão
162
não adulto considerado “ótimo” pela maior parte da sociedade brasileira, como “menor”,
“criança abandonada”, “meninas e meninos de rua” etc. têm sido contestadas, na tentativa
de minimizar os preconceitos sociais em relação a indivíduos nomeados por tais termos.
Por outro lado, não se pode dizer que seja incomum a circulação de discursos que
apontem responsabilidade de “modelos tidos como desviantes de criança e,
principalmente, adolescente, como principais responsáveis por eventos “desagradáveis”
tanto pelo crescimento da violência urbana e do tráfico e consumo de drogas, por um
suposto desregramento social e maior incidência de mortes por doenças sexualmente
transmissíveis quanto pelo aumento do consumismo e da chamada cultura de massa.
Fala-se em crise de valores, denunciam-se desvios morais, contesta-se a violência
ascendente e sua relação com a juventude, seja pelo crescimento do consumo e tráfico de
drogas ilícitas ou pela reunião juvenil em gangues de rua ou até mesmo, o que felizmente
ocorre em baixa escala no Brasil, pela agregação em grupos de extrema direita. O mesmo
adolescente que merece respeito e legislação própria é freqüentemente entendido como um
“problema” a ser resolvido. E, não raro, como forma mais apropriada para solucionar os
“inconvenientes” dos (ou gerados por) adolescentes é o encaminhamento a profissionais
disponíveis ao seu tratamento e compreensão; embora, da parte de alguns, haja dúvidas
sobre até que ponto os problemas não seriam construídos ou reforçados por eles (Costa,
1989). Muito embora, se encontre quem imagine que sua resolução esteja no aumento do
aparato punitivo.
163
É indiscutível a necessidade da Lei
158
. Mesmo porque a sua não internalização plena
poderia estar relacionada a tais eventos desagradáveis, cometidos por adolescentes. De todo
modo, outro ponto relevante é o que a explosão, em amplo entendimento, da adolescência
pode revelar a respeito dos ocidentais nesse momento histórico. Quais as bases dos mais
recentes comportamentos humanos e em que novos paradigmas estariam assentados se
pressupomos, como é típico do pensar ocidental, que constituem uma espécie de
“vanguarda” no campo comportamental. Deixemos...
No primeiro capítulo, tive a oportunidade de considerar que, segundo Clastres, a Lei
é instituída em grande parte das sociedades ditas tradicionais por intermédio dos ritos de
passagem, enquanto nas ocidentais típicas pelo sistema escolar (CLASTRES, 2003).
Argumentei que, por diversas razões, não existe no quadro ocidental uma única instância
reguladora dos comportamentos, e que cada uma delas pode indicar maneiras inteiramente
conflitantes de ação no mundo. Entre tais instâncias, estariam as dedicadas aos adolescentes
pela medicina, mescladas às suas formas de interferência sobre o corpo em sua dimensão
física.
Diante da população, a cura de doenças orgânicas justificaria a intervenção médica
em seara mais abrangente; sob a base dupla de visibilidade: do geral e do particular.
Sustentada na morte pelas conquistas dos estudos anatômicos e na vida pela presença de um
paciente em um consultório específico por sua atuação clínica, em busca de cura
(FOUCAULT, 1994) a medicina ganhou extrema legitimidade social, o que lhe permitiu
158
Utilizamos o termo Lei, nesse caso, não como sinônimo de regras instituídas e reguladas pelo Estado, mas
como normas sociais a que estão sujeitos os membros de quaisquer sociedades, que vedam ações consideradas
não ajustadas aos comportamentos entendidos como os mais corretos e desejados.
164
caminhar
159
dialeticamente junto a outras conquistas, aproximando-se das atividades de
caráter sócio-educativas.
Voltemos a Dumont. Classicamente, a postura moderna tem sido a de cindir “ser”
de “deve ser”; a de separar, como amplamente divulgado pelo universo científico, questões
cognitivas (e mesmo “naturais”) das morais, tendendo a advogar um conhecer destituído de
“juízos de valor”, comprometedores da Verdade a respeito das coisas do mundo e dos
corpos. Dessa maneira, buscou-se purificar o trabalho médico, no sentido de entendê-lo
como ausente de implicações morais; de considerações sobre quais corpos e
comportamentos pretendemos ver cultivados em nós mesmos e em nossos filhos. Ou, ao
inverso, imputar-lhes “verdades naturais e objetivas” que permitissem uma pretensa
intervenção social “científica”, como a propagada pelos higienistas. Segundo um pólo ou
outro, deixou-se de ter clareza sobre o aspecto também social do fazer médico e suas muitas
implicações valorativas.
De acordo com a perspectiva que tomei nesse trabalho, o saber técnico não
necessita ser pensado, ao menos a princípio, como dissociado de sua influência reguladora.
Outros campos do saber põem em andamento o mesmo processo. Há, inclusive, quem
considere que a sociologia
160
também faça isso (LUZ, 1988). Técnica e comprometimento
social andariam de mãos dadas
161
. Daí o seu valor e possibilidade.
159
Porém, é preciso lembrar que o trabalho de intervenção da medicina anátomo-clínica desde seu
nascimento, não apenas em sentido formal, institucionalmente reconhecido, mas também simbólico, esteve
sempre ligado à intervenção social (FOUCAULT, 1979b). A medicina imediatamente anterior a ela, como
mostrei acima, estava mais preocupada com a classificação das doenças do que com o corpo dos atendidos.
160
É preciso entender que tomo aqui uma classificação ampla de sociologia. Nela estariam incluída aquilo
que, no Brasil, recebeu o nome de ciências sociais.
161
Tomando de empréstimo um termo caro a POLANYI (1980), poderia dizer que todo o fazer científico
estaria entranhado nas considerações comportamentais de seu período histórico, sem que possa ser dele
transcendido.
165
Não me parece que haja fosso destacável entre a pretensão de “cura” de um e outro
tipo; mesmo que possam ser analiticamente desmembrados, a depender das ênfases
profissionais e das imagens a elas ligadas. Especialmente no que diz respeito às suas
possíveis práticas de restauração, virtualmente gestoras da unidade das dimensões
“orgânica” e psicossocial pensadas, aliás, no nascimento da medicina do adolescente,
como já enfocado em outro lugar desse trabalho.
Toda sociedade humana possui padrões reguladores de comportamento,
constitutivos de sua realidade
162
. Mais do que apenas nos livrarmos da “guerra de todos
contra todos”, construímos, através deles, nossas formas de ser e de viver, humanizando-
nos diversamente, conforme os elementos culturais que recebemos ao longo da vida, sob
várias socializações.
Como disse alguém: o ser humano é o animal que moraliza
163
. O que torna o vazio
moral (ou ético, por outra medida) impossível a seres que recebem ensinamentos
norteadores de convivência de seus pares, dada a “limitação” dos sinais advindos de sua
estrutura orgânica. Ensinamentos esses que se estabelecem como parâmetros fundamentais
a serem seguidos diante do conjunto de concidadãos e das múltiplas maneiras de resolver
suas necessidades (materiais e ideais, dialeticamente associadas), postando-se como um ser
plenamente embebido nos quadros referenciais da cultura que lhe deu face humana.
162
Acompanho a perspectiva de Peter BERGER e Thomas LUCKMAN (BERGER e LUCKMAN, 1999)
sobre a construção social da realidade. Para eles, ao contrário de outros animais, os seres humanos precisam
dos ensinamentos recebidos no interior de dado quadro social para que possam organizar-se no mundo,
dotando-o de sentido. Em certa medida, uma das dimensões do trabalho de FREUD aponta em direção similar
ao fazer com que a humanidade se constitua no interior de um corpo de regras desconhecidas dos demais
animais; ainda que sua ênfase recaia sobre como essas regras, ao mesmo tempo em que os constituem como
seres, os aprisionam (FREUD, 1974).
163
Ao contrário do que geralmente se imagina, NIETZSCHE, o autor da imagem acima, não descarta a idéia
de que sempre traremos alguma referência comportamental, certo quadro de valores. Sua crítica estaria mais
centrada na moral ocidental de seu tempo que, segundo ele, estabelecia-se como uma moral de rebanho
(NIETZSCHE, 1981 e 1989).
166
A construção social da realidade, o estabelecimento de um nomos
164
, um corpo
orientador de sentidos que nos forneça direção frente ao aparente caos de um mundo sem
ordem natural ou de ordem desconhecida, não possui apenas uma dimensão cognitiva,
como enfatizaram BERGER e LUCKMAN (1999), mas também valorativa. Ou, como
tentei demonstrar ao longo desse trabalho, com o auxílio de autores como DUMONT
(1985) ou DUARTE (1986), através de valores-idéias ou idéias-valores, pressupondo que
os parâmetros morais hierarquizam, classificam, põem em ordem, os elementos
considerados “dignos” do pensamento, selecionando a apreensão humana, sem que possam
ser “naturalmente” dele dissociados. A distinção presente em textos clássicos de nossa
disciplina, como em GEERTZ (1989)
165
, advém, sobretudo, da maneira de classificar
própria da “tradição” moderna. Já toquei suficientemente no ponto em outro local da
presente tese.
Independente da discussão sobre os aspectos valorativo ou cognitivo de
ordenamento da realidade humana nunca apreensíveis diretamente, sem mediações
sociais de quaisquer tipos, presentes nos diversos seres que constroem realidades díspares
debaixo do céu e acima da terra – a questão é que, desde a mais tenra idade, o conjunto dos
humanos divididos ou pluralizados em muitos quadros culturais de referência, recebem a
Lei instituída pelos canais operantes de estabelecimento de convivência, senão harmônica,
ao menos regulada, estabelecendo o caráter de sua própria humanidade, se levarmos em
164
BERGER (1985) entende nomos como a ordem significativa construída pelos diversos seres humanos,
dada a “fraquezade condicionamentos orgânicos. É preciso, porém, ressaltar a ênfase dada por ele ao caráter
organizador da experiência humana em sua dimensão cognitiva e cosmológica, enquanto, pelos os interesses
de meu trabalho, e apenas por eles, venho enfatizando elementos ligados aos planos comportamental e
valorativo.
165
Assim esclarece Clifford GEERTZ sobre a forma que o debate antropológico tem conduzido a questão:
“Na discussão antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos) de uma dada cultura, os elementos
valorativos foram resumidos sob o termo ‘ethos’, enquanto os aspectos cognitivos, existenciais, foram
designados pelo termo ‘visão de mundo’”. (GEERTZ, 1989: p. 93).
167
conta o pressuposto de parte da teoria antropológica contemporânea que associa o conceito
de Homem ao de cultura (GEERTZ, 1989).
Assim, o certo e o errado, o “razoável” e o interdito, são construídos socialmente a
fim de ajustar o ser ao mundo, fornecendo-lhes os princípios de convivência, pela punição e
pelo prêmio; pelo que seria passível de sim ou de não, de aplauso ou de crítica,
organizando, ou alicerçando, corações e mentes. Certamente, a instituição escolar possui
destacado papel de regulação de condutas, como na ênfase durkheimiana exposta
166
. No
entanto, cada vez mais, as fontes de estabelecimento de orientação moral o variadas;
fragmentadas, seguindo o jargão paradigmático mais recente.
Bem mais comuns, são as “reclamações” provenientes de professores,
administradores públicos, profissionais ligados às instâncias policiais e até mesmo de
pais
167
sobre a falta de “limites” das crianças e adolescentes em sociedades ocidentalizadas
como a brasileira. O “descontrole” e a “ausência” de referências em relação à manutenção
“ordeira” do corpo social. Muito embora, possam ser vistos também como outra forma de
controle e de referência, gestadas entre eles; de todo modo, estranhos a muitos indivíduos
considerados adultos
168
.
166
Como ressaltei no primeiro capítulo dessa tese, DURKHEIM (1967) concedia à escola a primazia do
ensinamento moral esperada por cada sociedade em dada condição histórica.
167
É constatação corrente entre profissionais que trabalham com adolescentes, visível entre muitos
profissionais da educação, o ato de delegar todo o “trabalho educativo” a especialistas de muitos matizes.
Uma de nossas entrevistadas, chega a afirmar que ouviu de certa mãe que não sabia mais o que fazer com o
seu filho que “estava na psicóloga” conforme seu próprio dizer –, como se nada tivesse com o fornecimento
de parâmetros básicos de sua orientação comportamental.
168
Em certa medida, é curiosa a diferença de reivindicações e expectativas juvenis em períodos como os
chamados de “contracultura”, vividos, por exemplo, em fins da década de 60 e início dos 70 do século
passado em relação às de hoje. A tendência daquela época era uma ênfase na contestação do mundo burguês
típico, calcados no trabalho, no consumo e na família nuclear típicos. Tal tendência remetia a juventude à
busca de prazeres corporais diversos e a independência frente a pais e instituições reguladoras, como a escola
e a família. Nos novos “novos tempos”, aumentaram em muito a busca pelos os prazeres ligados ao consumo
capitalista e uma maior dependência em relação aos elementos materiais e simbólicos oferecidos pelos pais,
ainda que com pretensão de controle sobre eles.
168
Acusações sobre o comportamento juvenil suscitam não apenas legislações próprias
quanto a abordagens particulares de convencimento sobre o melhor caminho para eles
tanto no sentido de “ajudá-los” quanto de punir suas possíveis infrações. Com mais de 15
anos de idade, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
169
é visto, ao mesmo tempo,
pela lente da afirmação de seus direitos quanto da reivindicação de mudanças, muitas vezes
ao calor da hora, por algum acontecimento criminoso ou entendido como “bárbaro” ou
“desconsertante” em que jovens estejam envolvidos
170
.
Na condição de “vítimas” ou de “réus” de muitos incidentes nefastos, os
adolescentes brasileiros são mais do que nunca olhados pelo Estado e pelo conjunto da
sociedade, suscitando debates de coloridos político-ideológicos variados e metodologias de
ação improvisadas, de múltiplos lados, que buscam dar conta do explodir de suas
“energias” e iniciativas. A visibilidade adolescente, porém, ultrapassa o âmbito da
denúncia, do noticiário criminal, atingindo vários pontos de discussão e instituições
próprias das contemporâneas sociedades a brasileira, incluída. Por exemplo, em torno das
chamadas culturas jovens, cada vez mais diversas.
Talvez o século XXI tenha não apenas prolongado ainda mais o debate acerca dos
adolescentes (quem são, como agem, quais as melhores formas de lidar com eles...) como
também sua própria extensão o que torna mais ainda relevante a visão antropológica
típica, advinda, por exemplo, dos trabalhos de Margareth MEAD (1965 e 1981) e a
insistência em seu caráter localizado e construído; mutável, portanto
171
.
169
O Estatuto da Criança e do Adolescente é equivale a Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 (BRASIL, 2002;
BUCHIANERI, 2004).
170
Por exemplo, são comuns propostas de diminuição da maioridade penal quando da ocorrência de crimes
envolvendo os chamados “menores de idade”, como se a simples modificação legal fosse dar fim a tais
acontecimentos.
171
Antes de negar os fatores orgânicos envolvidos no processo de constituição daquilo que é nomeado como
adolescente, pode-se perceber a combinação desses fatores com os de ordem significativa exatamente pelas
169
Adolescentes de 8 e de 30 anos, uma vez estendidos, para baixo ou para cima, fora
dos limites classificatórios da Organização Mundial de Saúde, tornaram mais largo o
espectro dessa “fase da vida” tanto em um pólo (antes associado à infância) quanto em
outro (antes vinculado ao “mundo adulto”), transformando antigas crianças e alguns
senhores em nada mais, nada menos, do que adolescentes. Sobre o último dos fenômenos,
explica Doutor Marcelo.
Dr. Marcelo: Você... aumenta a adolescência porque é aquele período que você
tem algumas regalias, mas não é adulto de tudo... Por causa disso. Você não tem
como ser autônomo. Você vai entrar no mercado de trabalho aos trinta anos,
depois de você fazer um doutorado, que é o que acontece muito na Europa.
Você vai morar, dentro de casa, com sua família. É muito difícil você ser adulto,
junto com seu pai, na mesma família. Então se estende a adolescência.
De todo modo, o aumento do mero de adolescentes, por visibilidade, extensão e,
como no dizer de muitos, “problema”, trouxe espaço para a necessidade de mais canais
reguladores e educativos, uma vez que sua própria independência em construção de
símbolos particulares e a visão de que esses poderiam causar “transtornos” ao conjunto da
sociedade cresceram de maneira concomitante. Curiosamente, muito embora tenha
aumentado sua “independência simbólica”, tomou destaque sua dependência material e,
muitas vezes, afetiva. Como questão social (em amplo entendimento), e não apenas de
polícia como se pensou, os adolescentes ganharam orientadores (especialistas) para além
da esfera familiar ou da escola, o que tornou possível a atuação dos médicos de
adolescentes.
transformações corporais advindas de maior ou menor estímulo social ao seu desenvolvimento. Já mencionei
a discussão entre médicos de adolescentes da antecipação da menarca, o que, paulatinamente, diminuiria o
tempo próprio do que é reconhecido como infância, adiantando, senão a adolescência, a puberdade.
170
A despeito do caráter técnico, de cura de enfermidades consideradas meramente
físicas, mas nunca inteiramente dissociáveis do padrão requerido pelas mais diversas
sociedades, por serem vistos como necessitados de pouca recorrência clínica, alargou-se o
aspecto educativo do trabalho com adolescentes, tornando viável a constituição de uma
destacada medicina para esse fim. Destacada em certo sentido, posto que associada a
múltiplos profissionais e a um sem número de instituições.
Cabe ressaltar que uma série de perturbações físico-morais (DUARTE, 1986)
dependeria mais de recomendações sobre qual o melhor comportamento a seguir do que de
medicamentos, exames ambulatoriais e intervenções orgânicas dignas de nota, muito
embora possam ser aplicadas de forma combinada. Trata-se de questões como obesidade,
tráfico, uso e abuso de drogas, doenças sexualmente transmissíveis, delinqüência urbana
etc. Eventos que, apesar de não se constituírem como “doenças”, no sentido clássico do
termo, não deixaram de interessar à intervenção médica no sentido de cuidado corporal,
ainda que de outra ordem; sob alvo anatômico menos determinado.
Essa esfera de perturbações, em que se associam elementos biológicos e
psicossociais, especialmente ligados a comportamentos entendidos como os mais
condignos à vida saudável, que, como afirmo acima, são impossíveis de inexistir em
qualquer sociedade, tem sido parte de suas atribuições, senão as que francamente
diferenciam essa forma de medicina – ligada aos adolescentes – dos demais ramos médicos.
Ou, por outro lado, faz retornar em outros termos, saberes e metodologias, o caráter mais
francamente interventor vivido em outros períodos históricos
172
.
172
A enfermeira Cristina Ramos, uma de minhas entrevistadas, aborda em sua dissertação de mestrado a
diferença entre uma puericultura que denomina de autoritária, desenvolvida na esteira do higienismo do
século XIX, de outra chamada por ela de “consciente”. Esta última buscaria uma interface com os
conhecimentos ligados ao “senso comum”, o fazer dos atendidos e suas expectativas (RAMOS, 1992).
171
Afinal, se flagrante a presença de médicos na regulação da vida social e política de
meados do século XIX ao início do século XX, atuando como árbitros e gestores de
iniciativas supostamente “civilizadoras” da sociedade (COSTA, 1989; SAMPAIO, 2001),
torna-se evidente que a situação atual é outra, acumuladas as críticas e os graves equívocos
do passado, o que torna o diálogo inevitável; não apenas com o público atendido, como
também com os saberes oriundos de esferas diferentes de organização intelectual e
comunitária não médicos, portanto. O meio médico abre-se para o trabalho em equipe,
ainda que, na maior parte dos casos, mediante a sua óbvia direção. O que não afasta de todo
o caráter interventor geral de seus empreendimentos.
Tal característica é um dos motivos, mas não o exclusivo
173
, para a destacada
ênfase multi, inter ou transdisciplinar do atendimento médico de adolescentes, que reúne
muitas vezes um número expressivo de profissionais de outras áreas de saúde ou mesmo do
campo das humanidades, como psicólogos, enfermeiros, nutricionistas, assistentes sociais e
educadores de forma geral. O enfoque multiprofissional indicaria os vários aspectos ou
campos de visão fundamentais ao atendimento das necessidades dos indivíduos
beneficiados por suas diretrizes. Afinal, a cura das enfermidades entendidas como físicas
seria apenas uma dimensão desses afazeres, e, a depender do enfoque, nem mesmo o
essencial; uma vez que outros especialistas médicos poderiam dela dar conta sem a
necessidade de integração, caso houvesse algum distúrbio orgânico devidamente catalogado
pelas diversas especialidades já existentes.
173
O trabalho em equipe, as atividades interdisciplinares e as tarefas multiprofissionais não são uma
exclusividade do atendimento de saúde de adolescentes. Ao contrário, têm se generalizado nos ambientes de
trabalho, nas escolas e em outras esferas sociais. Talvez a direção, desde que entendida de forma matizada,
possa ser mesmo mais freqüentemente a inversa. Ou, como ressalta SANTOS (2000), uma característica de
homens e mulheres que se dizem ou são ditos como pós-modernos. De uma forma ou de outra, o isolamento
interdisciplinar e funcional são paulatinamente mais caracterizados como estéreis.
172
Fernando Costa: “E o modelo clássico, antigo, você também não acha
conveniente? Ele ir a um especialista, como um adulto?
Dr. Marcelo: O problema é que um médico adulto ele não tem paciência, ele não
gosta de atender o adolescente.
FC: Mas tem formação?...
Dr. M: Formação tem; formação sica. Você pega muita coisa de clínica geral e
(inaudível) clássicas. Entendeu?!... Eu acho que formação a teórica ele teria.
Talvez ele não teria o engajamento da hebiatria. O adolescente de 15 anos está
melhor tratado por um clínico geral do que por um pediatra. É mais perto da
realidade do clínico geral do que da realidade do pediatra.
Ou:
Dr. M: Por isso que eu falo é melhor um clínico geral atender o... do que... que o
pediatra. O clínico geral, ele está com mais... a pessoa que fez a residência de
clínica médica tem mais visão de doença crônica do que o pediatra no geral.
Dra. Maria: Então a consulta, na verdade, ela pode ser muito sensível; ela pode
chegar o adolescente e o médico não querer perceber que ele está ali pra falar,
pra escutar, pra conversar e ali não acontecer uma consulta médica ou ela... ou
quando ela acontece como consulta médica ela tem toda a característica da
consulta médica sendo que o dico se aprofunda mais, ele vai querer saber
como o adolescente está na família, qual o padrão de relacionamento familiar,
com os amigos, se ele usa algum tipo de droga, se ele é sexualmente ativo... E
a consulta ela tem não o objetivo curativo como o objetivo educativo
também.”
Para além das questões psicossociais envolvidas no atendimento (ou seja, a não
exclusividade da cura de enfermidades orgânicas) é enfatizado também, nesse caso, o tipo
de abordagem realizada. A pressuposição em baila é a de que o maior conhecimento sobre
as dificuldades da faixa etária em questão, o engajamento em relação ao seu completo bem-
estar e a paciência necessária para ouvir suas dificuldades fariam com que os médicos de
adolescentes estivessem mais preparados para atendê-los, uma vez que mais familiarizados
com suas linguagens e prioridades, obtendo mais sucesso no diálogo com os atendidos e,
concomitantemente, uma maior proteção à sua saúde. Portanto, mais preparados
metodologicamente para com eles lidar, o que, em certa medida, evidenciaria que
173
dificilmente outros profissionais de medicina conseguiriam compreender plenamente suas
demandas, suas formas de expressão e suas “angústias” particulares questões, por assim
dizer, subjetivas dos que compõem essa “fase da vida”. Condição que remete essa nova
abordagem médica a um tipo específico de atendimento, com treinamento conseguido tão
somente em centros de formação próprios, geralmente públicos e universitários.
174
Haveria,
nesse caso, um destacado processo de expansão cuja direção seria do meio universitário
para outras organizações da sociedade, como postos de saúde, hospitais, organizações não
governamentais e até mesmo, caso haja mercado para tal, consultórios médicos particulares.
Aliás, o predomínio de instituições públicas desse fazer é uma característica
marcante. Não parece mera coincidência a constatação de que ele nasce sob as mãos de
profissionais de duas universidades públicas, a UERJ e a USP, e se mantém vinculada a um
molde distinto de outras frentes médicas que, ao invés de priorizar, por exemplo, o
atendimento individual e especializado em consultórios, tende a programas integrados em
instituições que pretendem fornecer também outros recursos aos atendidos, como literatura
própria, informações sobre temas de sua predileção e indicações quanto a lazer e esportes,
além de noções básicas de cuidado corporal. Nesse caso, a ênfase é não apenas
multiprofissional como ligada a projetos educativos e sociais. Freqüentemente pode tomar
um caráter grupal, como nas escolas – mesmo versando sobre assuntos mais amplos;
direcionados, usualmente, a temas do campo da saúde ou dele aparentados.
É importante lembrar iniciativas de discussão em grupo, seja em atendimentos
psicológicos, onde se partilha experiências emocionais, assim como debates sobre temas
174
Infelizmente, os limites desse trabalho não permitiram uma comparação da forma que a medicina do
adolescente se estruturou no Brasil em relação à sua constituição em outras partes do globo; o que seria
bastante frutífero à especificidade brasileira. Por exemplo, seria curioso se em algumas delas houvesse um
início em esferas públicas como em nosso caso.
174
diversos e cada vez mais em voga, como gravidez precoce, namoro, sexo, cuidados com a
beleza e a higiene, substâncias tóxicas. Ou ligadas às atividades de lazer e arte, com intuito
socializadores, como os desenvolvidos em torno dos esportes ou oficinas de música, dança
ou teatro, sempre receptivos, a depender da forma de aplicação, entre os jovens atendidos.
Nesse caso, por mais que a cura de enfermidades consideradas físicas não deixe o
espaço cativo que conquistou junto aos profissionais de saúde, de que a instância médica
nunca poderia se privar por sua própria história, a amplitude das tarefas condizentes com
essa nova modalidade, em si, transborda os limites do corpo físico, buscando alcançar o
cuidado com as necessidades psicológicas e sociais dos adolescentes, tomando-as como
essenciais
175
. Mesmo os profissionais informados mais diretamente pelas instituições
pediátricas, defensores de uma ênfase mais orgânica da medicina do adolescente, parecem
aceitar que os elementos chamados psicossociais possuem grande importância junto à
abordagem desses jovens e suas queixas mais correntes.
Muitas frentes são enfatizadas para a realização do trabalho sócio-educativo
amalgamado às atividades da medicina moderna junto aos adolescentes, considerados
fundamentais à saúde de seus atendidos no campo mais claramente coberto pelas
perturbações que, por empréstimo, entendo aqui como físico-morais (DUARTE, 1986).
Uma delas é a que cobre os distúrbios alimentares, no mais das vezes mesclados a
questões de estética corporal e disfunções orgânicas. Os casos atualmente tornados mais
visíveis nos meios médicos e de comunicação são a anorexia nervosa
176
, a bulimia
177
, a
175
foi mencionado que o conceito de saúde da OMS inclui as dimensões mental e social. O que torna os
empreendimentos da medicina do adolescente compatíveis com princípios nada recentes e nem um pouco
estranhos às organizações médicas internacionais.
176
A anorexia nervosa consiste em um distúrbio em que adolescentes, geralmente do sexo feminino,
impulsionados por padrões de extrema magreza dominantes em alguns grupos sociais, imaginam-se
extremamente obesos, mesmo diante da constatação de sua imagem no espelho ou avisos de familiares e
175
vigorexia
178
e a obesidade
179
. Todos esses “transtornos” estão claramente ligados à estrutura
social e simbólica contemporânea
180
. Revelam nossas formas de classificar o bonito e o
feio, o saudável e o doentio, o saboroso e o sem gosto. Afinal, além de desconhecida,
nenhuma dessas “enfermidades” seria “digna de assunto” em outros períodos históricos ou
organizações sociais, dando margem a tantos relatos e investigações, sejam médicos,
jornalísticos, psicológicos... Em algumas conjunturas ou localidades não teriam lugar ou
simplesmente poderiam ser aceitos ou até recomendados, não se constituindo como
transtornos, posto que ligados a setores específicos da população, ou simplesmente
ignorados pelos que deles não faziam prática.
Pela falta, descontrole, excesso ou abuso de alguns nutrientes, esses distúrbios
contemporâneos figuram como centrais nos discursos captados nas entrevistas ou na
literatura da medicina do adolescente, difundindo-se cada vez mais e sendo incluídos nas
pautas ligadas às resoluções prementes de saúde pública.
Dra Carolina aborda a questão, apontando as contradições dos discursos diluídos em
muitos canais sociais que, ao mesmo tempo, exige dos jovens um corpo com aparência
reconhecida como saudável geralmente magro, “definido” ou musculoso a depender de
amigos, submetendo-se a dietas exageradamente rigorosas, o que os tornam desnutridos ou propensos ao
comprometimento de alguns órgãos vitais, podendo levar ao óbito.
177
A bulimia é um distúrbio também ligado à busca de um padrão de magreza rígido. Contudo, o indivíduo a
ele submetido tende a ingerir de forma abrupta uma grande quantidade de alimentos, fazendo com que, pela
culpa redundante do ato considerado prejudicial à sua aparência, o leve a provocar vômitos ou a utilizar
laxantes, como forma de se conformar ao padrão desejado. Após certo tempo, o vômito torna-se simplesmente
espontâneo, podendo levar ao comprometimento dos tecidos do esôfago e outros órgãos.
178
A vigorexia tende a se apresentar como um distúrbio ligado mais diretamente ao sexo masculino, fazendo
com que o adolescente admirador de um padrão de musculatura ultra-desenvovido veja-se flácido e
franzino diante do espelho o que, geralmente, o leva a recorrer à ingestão de esteróides anabolizantes para
aumentar de forma exagerada a sua massa muscular.
179
“Definimos obesidade como sendo o aumento de tecido adiposo devido a um excessivo armazenamento de
gordura, resultado de um desequilíbrio energético e o gasto calórico” (AGOSTINO, 1979: 169).
180
Não deixa de parecer estranho o fato de meninas de famílias de classe média ou mesmo burguesas, que
claramente poderiam nutrir todas as suas necessidades alimentares sem quaisquer dificuldades, morrerem de
fome, por razões ligadas a uma aparência que supostamente lhes trariam ganhos materiais e simbólicos
destacáveis no circuito da moda ou entre seus admiradores diretos e indiretos. Estaria uma das comprovações
de que os seres humanos são animais para além das necessidades meramente orgânicas.
176
meios sociais e gêneros específicos tornam disponíveis e desejáveis formas de
alimentação que dificilmente poderiam concretizar tal aparência.
Dra Carolina: “Por questões nutricionais, porque em geral hoje a mídia, o
marketing está todo em cima de criança comer muito doce, muita bala, muito
hambúrguer, muito refrigerante... E a mesma indústria que produz tudo isso,
depois com light, o diet pra perder peso, pra aquilo e aquilo outro. Então... é...
em geral, os adolescentes... as crianças comem muito mal. Hoje os pais estão
comendo muito mal. Estão comprando alimentos excessivamente calóricos,
protéicos e isso, aquilo e aquilo outro... E depois querem os adolescentes com o
corpo bonito, saradão, né. Então... Então, os adolescentes devem fazer
musculação só. Às vezes antes de estar com a maturidade óssea; então eu quero
ficar seco...
Torna-se perceptível o quanto certas fontes de cobrança de padrões de beleza
difíceis de serem alcançados sem brutal disciplina corporal e claros danos à saúde física são
chamados posteriormente a minorar os efeitos deletérios causados por suas próprias
recomendações, estabelecendo regras que evitem a degeneração do corpo físico contrárias
às antes incentivadas. A profissional citada se refere ao padrão de alimentação. Contudo,
outros elementos podem ser refletidos sob mesma condição geral, ainda que em relação aos
modelos de beleza física.
Um dos casos mais divulgados é a incidência da anorexia entre manequins e
postulantes a top models. Após a primeira onda de cobrança de magreza extrema para quem
quisesse figurar nos mais badalados desfiles internacionais de alta costura, uma série de
mortes de jovens por desnutrição ou complicações advindas de dietas absurdas, noticiadas
na imprensa internacional, fizeram com que os organizadores de alguns desses eventos
tivessem que flexibilizar os padrões anteriormente aceitos como os melhores, instituindo
limites inversos aos recomendados até então; isto é, que as modelos contratadas para esses
desfiles não pudessem estar abaixo de certo peso. Talvez cada vez mais essa preocupação
177
se generalize por pressões de vários setores da sociedade, muito embora não haja garantia
plena de sua concretização.
Outra frente de ação educativa na pauta da medicina do adolescente, também
vinculada às perturbações físico-morais, é a “marginalização” possível desses jovens pela
proximidade do que é muitas vezes chamado de “mundo das drogas”. A presença de um
crescente número de meninas e meninos “envolvidos” como usuários ou traficantes de
substâncias tóxicas no interior das sociedades ocidentais tem aumentado à atenção dos
agentes de saúde para a questão não apenas no sentido de tratar de desintoxicá-los ou
oferecer laudos para sua punição.
181
Informa-nos dados obtidos pelo DATASUS
182
:
“... a iniciação no uso de drogas se muito cedo: 51,2% dos estudantes
pesquisados tinham usado álcool antes dos 12 anos de idade; 11%, tabaco;
7,8%, solventes; 2%, ansiolíticos e 1,8%, anfetamínicos;
- álcool e tabaco são usados rotineiramente por, respectivamente, 15% e 6,2%
dos escolares; as outras drogas consumidas com essa mesma freqüência são:
solventes (1,3%), maconha (1,1%), ansiolíticos e anfetamínicos (0,7% cada) e
concaína (0,4%);
- é crescente a tendência de uso pesado de maconha e álcool (dez cidades)”.
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999: p. p. 7 e 8).
Em programas de terapia em grupo com adolescentes o assunto, de uma forma ou
de outra, está sempre presente e pode ser captado por alguns profissionais ligados à
psicologia, como se pode constatar abaixo.
181
Tem sido flagrante o crescimento da presença de jovens de classe média no tráfico de drogas, o que retira o
estigma dos adolescentes de camadas desprivilegiadas da população como únicos a figurar nesse tipo de
“problema”. Por exemplo, entorpecentes como LSD e ecstasy têm sido distribuídos em festas e danceterias
por diversas razões não acessíveis aos adolescentes de periferia.
182
É destacado que a categoria drogas aparece aqui descrita em sentido amplo, não apenas no de substância
tóxica proibida pela legislação, mas também em relação as que seus usuários crônicos ou eventuais não estão
sujeitos a penalidades legais, como o álcool e o tabaco. Nesse caso, droga seria entendida como toda
substância que provoca alteração orgânica perceptível.
178
Fernando Costa: E ele chega a comentar isso no grupo, por exemplo. De alguma
forma? (inaudível). Trabalho no tráfico!... Mas...
Dra. Gisela: Essas coisas...
FC: Talvez ele apresente como (inaudível) diferencial...
Dra. G: o, essas coisas, às vezes... Ela surge muito... é... como é que eu vou te
explicar?!... Às vezes por uma percepção nossa na consulta. A postura do
adolescente; a maneira dele... as expressões que ele usa; até a maneira da
vestimenta dele; o lugar em que ele mora...
FC: São algumas pistas.
Dra. Joana: O padrão de vida que ele tem... (inaudível).
Dra. G: Ele tem alguns... diria... sinalizadores, tá!... Têm alguns sinalizadores.
Por exemplo, aquele adolescente que a mãe... “ah, ele apareceu com isso em
casa... Entendeu?!... Ele começa a apresentar um comportamento diferente; de...
não de rebeldia; mas de uma auto... Entendeu?!... independência... Uma coisa
assim... Começa a aparecer com dinheiro; começa a... a... a... te dar relatos, que
você sente que naqueles relatos, tem alguém ali no grupo maior... Eles começam
a te dar essas pistas. E você com essas pistas na o, com esses sinalizadores na
mão, você vai seguindo aquele caminho junto com ele; de uma certa maneira,
você vai encurralando, e você consegue chegar lá. Na nossa experiência aqui,
com o nosso serviço, quando a gente percebe que esse adolescente ele possa
estar participando de um grupo de risco, o que que a gente tenta?!... A primeira
coisa que a gente tenta fazer é preencher a vida desse adolescente com alguma
coisa positiva. Então se ele gosta de futebol, se ele gosta de esportes; se a menina
gosta de dança... se gosta de computação... É a gente tentar com os recursos que
a gente na comunidade, que não são muitos, oferecer opções de amostragem a
esse adolescente que existem outras coisas positivas e gratificantes pra ele e que
ele possa seguir um caminho de menos risco”.
A profilaxia acerca de questões ligadas à violência, na tentativa de evitar o “canto
de cisne” do tráfico
183
, especialmente em alguns bairros ou favelas onde é forte sua
presença, estaria em torno de atividades consideradas “positivas” em que o adolescente
poderia ser engajado, como nos campos das artes e dos esportes. Essas atividades poderiam
funcionar como anteparos e formas de “resgate” desses jovens, diminuindo a série de riscos
a que poderiam estar sujeitos.
Dessa forma, a ênfase dos agentes de saúde tem sido a de criar condições educativas
sobre os efeitos e problemas ligados ao “envolvimento” com essas substâncias, em especial
183
É preciso pensar mais seriamente não apenas nas dimensões materiais, financeiras, para a entrada de
adolescentes em uma quadrilha de traficantes de drogas, mas também em suas dimensões propriamente
simbólicas, como o suposto “respeito” que ganharia, portando uma arma, por exemplo, diante de outros
moradores de favelas e periferias, e mesmo a atratividade sexual frente ao sexo oposto.
179
em relação aos adolescentes ligados ao seu tráfico, do que meios de reprimi-los através de
prisão ou outras formas punitivas. Nesse caso, segundo esses agentes de saúde, a educação
seria mais eficaz do que as grades para trazê-los a um convívio considerado mais correto
pela sociedade como um todo no momento histórico em que vivemos.
“A prevenção do uso indevido de drogas e o tratamento da dependência são
prioritários em relação à repressão do uso. As ações educativas e preventivas e a
atenção a crianças e adolescentes usuários de drogas devem ser
responsabilidade dos sistemas de educação e saúde e nunca do sistema policial”
(BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999: p. 11).
Outros profissionais de saúde vêm tentando demonstrar a ineficácia de ações apenas
repressivas para o combate ao uso de drogas ilícitas, insistindo em formas alternativas de
debate da questão, ligadas, por exemplo, a política de redução de danos (Diálogos,
12/2006), indicando as vantagens no que concerne à recuperação e ao equilíbrio emocional
dos usuários, ou, ao menos, maneiras de fazê-lo ver outras possibilidades de prazer e
sentido para sua vida.
Porém, não por acaso, o assunto mais ventilado entre os médicos de adolescentes e
profissionais a eles ligados nos centros destinados ao seu atendimento parece o vinculado à
sexualidade: à iniciação sexual, à gravidez precoce e, muito especialmente, às doenças
sexualmente transmissíveis (DSTs)
184
com destaque para a AIDS. Neste último caso, a
vulnerabilidade dos adolescentes é apontada como a principal causa de sua exposição a
esses tipos de enfermidades. Como se pode perceber por uma publicação ligada ao
Ministério da Saúde.
184
“As DSTs podem ser classificadas como curáveis e incuráveis. As curáveis mais comuns são: gonorréia,
infecção por clamídia, sífilis, tricomoníase, linfogranuloma venéreo, cancro mole e donovanose. As DSTs
causadas por infecções virais (HIV, vírus da hepatite B, vírus da hepatite C, papiloma vírus humano e vírus
herpes simplex) podem ser tratáveis, preveníveis, mas não curáveis.” (BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2002).
180
Recentemente, por ocasião da cerimônia de lançamento da Campanha Mundial
de AIDS de 1999, o Diretor Executivo do Programa Conjunto das Nações Unidas
em HIV/AIDS Unaides, Senhor Peter Piot, em seu discurso, lembrou de
maneira bastante clara e indiscutível, o fato da vulnerabilidade própria da
criança, adolescente e jovem, e das diferentes formas de comportamento mais ou
menos próximas a essas fases de estruturação e formação do ser em sociedade,
facilitarem o risco de infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, o HIV”.
(CHEQUER, 1999: p. 4).
As crianças e os adolescentes são encarados como ainda mais expostos à
possibilidade de contração de DSTs, não apenas pela desinformação sobre esses males
quanto pelo desconhecimento no que diz respeito ao uso de preservativos que poderia evitar
sua contaminação. Isso sem mencionar o aspecto de despreparo emocional considerado
“normal” entre os indivíduos dessa faixa etária. Particularmente no que diz respeito a um
suposto “pensamento mágico” a noção de que certos eventos desagradáveis ocorrem
com os outros.
Mais uma vez é o trabalho educativo e não a simples repressão da sexualidade o
meio apontado como condição básica para evitar ou minorar o problema. Afinal, de acordo
com a UNESCO, a primeira relação sexual ocorre aos 14 anos de idade no caso dos
meninos e aos 15, no das meninas (VEJA, 08/2003), independente da vontade de pais ou
instituições religiosas; fase em que tais indivíduos encontram-se sem as referências sociais
que serão socialmente amadurecidas ao longo de sua vida, estando mais amplamente
preocupados com as condições do momento em que essas relações se dão. Diante dessa
realidade e não de perspectivas e idealismos de muitas ordens, o meio pensado para
diminuir os problemas ligados ao mau cuidado com o corpo e a prevenção de certas
doenças estaria na orientação possível em instituições prontas a atendê-los.
181
“A educação, certamente, tem um papel fundamental para orientar essas
crianças e adolescentes, preparando-os para enfrentar com convicção e presteza
os desafios contemporâneos, ensinando-os a se colocar, cada vez mais, como
sujeitos conscientes e responsáveis no seu processo de crescimento e
amadurecimento, com segurança, felicidade e saúde. Este documento [As
Diretrizes para o Trabalho com Crianças e Adolescentes do Ministério da Saúde
sobre Sexualidade, Prevenção das DST/AIDS e Uso Indevido de Drogas] é
destinado à orientação dos profissionais e voluntários dedicados à nobre e
urgente missão de educar os nossos jovens sobre doenças sexualmente
transmissíveis, HIV e uso indevido de drogas, em tempos de AIDS.”
(CHEQUER, 1999: p. 4).
O material necessário a informação sobre sexualidade e formas de contágios de
DSTs, iniciação sexual e outros recursos educativos são conseguidos, por exemplo, no
Elos, uma sala reservada a esse tipo de material, ligado ao Núcleo de Estudos da Saúde da
Adolescência (NESA), que, como mencionado, até o momento da entrevista com uma de
suas coordenadoras, era o único centro de atendimento de adolescentes que realizava
distribuição gratuita de preservativos femininos para a sua devida proteção, simultânea, em
relação às DSTs e à gravidez indesejada.
Dra Alice: Tem adolescente também que vem aqui em busca de orientação de
sexualidade. Ele já entra na sala dois.
Fernando Costa: Ele vem direto pra isso?
Dra. Alice: Ele vem direto pra isso. Ele sabe. Outros vêm aqui também pro
ELOS, buscar material educativo, assistir vídeo, porque a gente tem televisão.
Vídeos pra eles assistirem aqui também se não quiserem levar pra casa.
Nesse caso, os adolescentes procurariam as dependências de um hospital apenas
para aprender sobre como se proteger frente a questões ligadas ao seu comportamento
sexual, evitando riscos que poderiam levá-los até ele de uma outra forma.
A vinculação da adolescência ao crescimento de doenças sexualmente
transmissíveis é lembrança cada vez mais freqüente em várias instâncias sociais,
aumentando iniciativas como a mencionada distribuição de preservativos para ambos os
182
sexos e maior debate acerca dos cuidados a serem tomados na iniciação sexual e frente a
possíveis parceiros. A conversa sobre o assunto é ponto pacífico entre os profissionais
dessa medicina, muito embora existam discordâncias sobre a melhor forma de abordá-lo.
É cada vez maior o número de adolescentes que se transformam em pais
precocemente, trazendo inúmeras dificuldades para o seu desenvolvimento no interior das
sociedades em que vivemos, seja no campo afetivo, profissional ou familiar; isso sem
mencionar os problemas futuros vinculados as crianças oriundas dessas relações precoces,
na maior parte das vezes indesejadas
185
.
Sobre o ponto dúvidas quanto à “verdadeira” causa de tal precocidade, existindo
quem dê ênfase maior à questão da desinformação dos jovens, enquanto outros alertam para
o seu despreparo propriamente emocional. Muito embora, de uma forma ou de outra, a
questão da responsabilidade em si, o cuidado com o próprio corpo e seu fomento pelas
instâncias médicas se põem como fundamentais para evitar o problema.
Dra Paula: O índice de gestação na adolescência é altíssimo na população como
um todo. Parece que chega a mais de 25%. Dados do Ministério da Saúde. Eu vi
isso até naquele programa da... A Voz do Brasil” outro dia. Mais de 25% são
adolescentes. Mas quer dizer... E se você conversar com elas... Eu já vi em
palestra de congresso o pessoal falando: ‘A gente não tem uma explicação
porque a gente ensina, educa e eles engravidam!’ Porque é o emocional dele; não
tem nada a ver com o intelecto nem com a consciência nem com o aprendizado.
É outro campo...
Dra Carolina: As meninas hoje em dia... as meninas elas têm muitas questões da
sexualidade pelo sexo precoce e a falta... O próprio machismo que ainda
predomina em nossa sociedade do homem ameaçar a largar a parceira se ela não
transar, não fizer isso ou aquilo... Então elas às vezes fazem sexo mais por uma
imposição do que por vontade, desejo próprio, né. Então existe isso. Agora, a
família ainda incita o homem a fazer sexo de qualquer maneira, sem qualquer
cuidado. Mas hoje a gente quando trabalha com prevenção, desde precoce, no
início da adolescência, a gente conversa muito sobre a responsabilidade. De os
185
Segundo dados do DATASUS (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999: p. 6), 49,1% dos filhos de mães
adolescentes são indesejados.
183
sexos, independente do gênero, masculino ou feminino. É... Então a gente está
trabalhando sobre esses mitos que o homem pode tudo, que a mulher não pode
nada. Ter cuidado. Que a mulher que tem que se cuidar; que o homem tem
que ser o garanhão; que tem sempre que avançar o sinal e tudo mais. Hoje
uma liberdade maior para se conversar sobre isso.
Fernando Costa: A Doutora fala...
Dra. C: Sobre paternidade responsável, a gente está trabalhando; porque os
adolescentes, em geral, não se preocupam com a paternidade. E a menina sabe
que se ela engravidar, ela vai sofrer, às vezes, o veto da sociedade, o preconceito,
mais do que o homem que se torna pai adolescente. Então são essas questões
que a gente... que são importantes.
A gama de questões acima mencionada é exposta pelos profissionais ligados à
medicina do adolescente em termos de risco
186
, fatores de risco
187
, comportamento de
risco
188
e situação de risco
189
. Muito embora, hajam muitas outras condições consideradas
por esse prisma que poderiam vir a afetar a saúde dos adolescentes, fazendo advir outras
perturbações físico-morais a que me refiro nesse capítulo.
Acima listei apenas as mais freqüentes situações a que os adolescentes , segundo os
médicos a eles dedicados, estariam expostos; aquelas que são amplamente lembradas nas
entrevistas e na literatura propriamente ligada à medicina do adolescente. Muitas outras
poderiam ser listadas, como depressão e ansiedade; evasão escolar e distúrbios de
186
Definição de risco: “... é a probabilidade da ocorrência de algum evento indesejável. Os riscos não estão
isolados ou independentes do contexto social. Estão interrelacionados a uma complexa rede de fatores e
interesses culturais, históricos, políticos, sócio-econômicos e ambientais” (EISENSTEIN e SOUZA, 1993: p.
18).
187
Definição de fatores de risco: “... são elementos com grande probabilidade de desencadear ou associar-se
ao desencadeamento de um determinado evento indesejado, ou maior chance de adoecer ou morrer. Assim,
fator de risco não é necessariamente o fator causa. Quando o fator de risco não é a causa do evento, ele é
chamado ‘modulador’ ou ‘marcador’, porque ele marca ou influencia o aumento da probabilidade da
ocorrência do agravo” (EISENSTEIN e SOUZA, 1993: p. 18).
188
Definição de comportamento de risco: “... é qualquer alteração da conduta, ou atuação repetida e fora de
determinados limites, que possa comprometer ou desviar o desenvolvimento psicossocial normal, durante a
infância e a adolescência, com repercussões danosas à vida atual e futura.” (EISENSTEIN e SOUZA, 1993: p.
18).
189
Definição de situação de risco: “Entende-se situação de risco como uma circunstância que oferece risco a
toda uma comunidade ou sub-grupo social. Por exemplo, as más condições de esgoto de um determinado
bairro colocam em risco toda esta população, da mesma forma a permissividade ao uso das drogas põe em
risco todos os jovens de uma determinada comunidade. Ou seja, a situação de risco transcende ao
comportamento individual.” (EISENSTEIN e SOUZA, 1993: p. 18).
184
aprendizagem; prostituição, incesto e abuso sexual, etc. (EISENSTEIN e SOUZA, 1993).
De maneira ampla, são vistos como facilmente debeláveis desde que o conjunto da
sociedade, em sentido lato, e a medicina do adolescente, em sentido particular, consigam
fornecer aquilo que entendem como fatores protetores
190
. Esse seria o principal papel da
medicina do adolescente e sua frente mais destacável no plano do que chamam
psicossocial. Entre os fatores protetores estariam: bom funcionamento familiar; atenção,
afeto e apoio emocional; saneamento ambiental; bom estado de nutrição, bons hábitos
alimentares etc. Contudo, o que mais chama a atenção; os mais destacados para o trabalho
que realizam, sem dúvida alguma, são os fatores de proteção ligados à educação.
É necessário perceber que diante de tantas questões vinculadas ao ponto moral ou
educativo, os próprios profissionais podem ser cobrados por suas atitudes e valores
correntes. Propriamente indagados sobre sua capacidade de orientadores mais adequados
dos adolescentes que buscam cuidar, dando suporte ao trabalho realizado por pais e
professores. Há, inclusive, casos policiais de repercussão nacional que aguçam a pergunta a
respeito da exigência de idoneidade dos membros dessa iniciante medicina. Um dos
acontecimentos mais destacados que trouxeram questionamentos nesse campo foram os
abusos sexuais cometidos pelo Dr. Eugênio Chipkevitch, até então destacado quadro da
medicina do adolescente no Brasil, diretamente ligado, aliás, ao estudo e clínica de questões
vinculadas ao campo sexual (CHIPKEVITCH, 1993).
No dia 21 de março de 2002 foi decretada a prisão preventiva do médico
pediatra/hebiatra, por ser acusado de abusar sexualmente de adolescentes em seu
consultório, no Brooklin, São Paulo. Eugênio Chipkevitch foi indiciado após a divulgação
190
Definição de fatores protetores: “... são recursos pessoais ou sociais que atenuam ou neutralizam o impacto
do risco.” (EISENSTEIN e SOUZA, 1993: p. 19).
185
em vídeo de cenas de abuso sexual contra adolescentes, sedados em seu consultório
“caso” de forte repercussão nacional. Cerca de 40 crianças e adolescentes foram
molestados pelo profissional referido, segundo as imagens divulgadas. Muitas delas
gravadas em vídeo, supostamente pelo próprio autor. O escândalo tornou necessária a
divulgação da realidade das atividades dos médicos de adolescentes, na medida em que se
fez imperativa a separação entre joio e trigo; exatamente pela forte característica moral de
seus empreendimentos profissionais.
O esclarecimento acerca dos benefícios da intervenção realizada pela chamada
“comunidade médica” sobre os adolescentes, em especial a que se abriga no interior do
grande campo pediátrico, tornou-se fundamental. Afinal, antes da repercussão do “caso”
nos veículos de comunicação, Chipkevitch desfrutava de destacado papel entre
profissionais de sua especialidade
191
. Motivo que tornou ainda mais imprescindível um
esclarecimento tanto da honestidade quanto da eficiência dos profissionais de medicina
ligados ao trabalho com adolescentes.
Fácil reconhecer a decepção vigente em nossas sociedades em relação a crimes
como os acima referidos. Especialmente porque os médicos de adolescentes parecem tomar
para si o papel de tutores do corpo de seus atendidos. Ainda que haja reconhecimento geral
de que maus profissionais existem em qualquer atividade humana, estando sua atuação,
infelizmente, presente na ordem do dia.
Os responsáveis pelo cuidado físico das crianças e dos adolescentes podem estar se
responsabilizando e sendo responsabilizados pelos seus cuidados comportamentais. O
escândalo causado pela prisão preventiva do pediatra/hebiatra paulista Eugenio
191
Há, inclusive, um artigo de sua autoria ligado ao diagnóstico de problemas ligados ao órgão reprodutor
masculino (CHIPKEVITCH, 1993).
186
Chipkevitch, mencionado acima seria um índice desse fenômeno. O que médicos de
adolescentes, ou hebiatras como querem alguns, e membros da Sociedade Brasileira de
Pediatria pareciam perguntar sobre o “caso” é como alguém que deveria se preocupar com
o “bem-estar dos adolescentes”, ajudando a evitar violações como aquelas, pode ter feito
uma coisa dessas?
Afinal, assim como se espera que professores cuidem e defendam as crianças e
adolescentes com quem trabalham, o mesmo ocorreria com esses médicos. O que reforça a
imagem pedagógica ligada a tal medicina. Imagem não completamente estranha a outros
ramos, porém menos visível pela ação orgânica mais amplamente satisfeita pelos outros.
No caso adolescente, a medicina faz da educação sua ação primordial, ilustrando
perfeitamente o quanto “necessidades” sociais podem ser satisfeitas por profissionais
ligados diretamente ao cuidado corporal, que, também se mostra comportamental, uma vez
que o corpo pensado como mais apropriado em qualquer sociedade sempre será o que
responde a certas expectativas de comportamento.
Por isso a afirmação da profissional abaixo:
Dra Carolina: “Então tem que ter um serviço específico pro adolescente. Eu acho
que se isso não acontecer nós vamos continuar tendo esse monte de violência,
abusos, suicídios, gravidez na adolescência, paternidade não reconhecida, tudo
isso, né”.
Dessa forma, não seria demais dizer que, mesmo sem abrir mão da cura de doenças
orgânicas a que podem estar sujeitos os corpos adolescentes, a abertura de mais essa frente
médica se justifica, sobretudo, por se constituir como uma pedagogia que age sobre os seus
atendidos a fim de indicar-lhes os melhores comportamentos a seguir no interior de uma
187
sociedade que cada vez mais se preocupa com uma série de eventos que tem nos
adolescentes seus principais atores.
188
Considerações Finais
Estive refletindo sobre questões precisas: a forma que certo entendimento sobre o
corpo adolescente (nunca completamente distante de suas compreensões gerais acerca da
vida e de discussões políticas específicas nos locais em que atuam) acaba por funcionar
como uma pedagogia que tenta oferecer respostas que o encaixe melhor no mundo
contemporâneo.
Se fui feliz em minha exposição, ficou claro que tal problemática não contradiz os
saberes curativos inerentes às reflexões e práticas médicas. Mas, ao contrário, se sustenta
nelas. Servem, concomitantemente, a dois senhores: a cura física e a moral; uma pela outra.
Exatamente por trazer contentamento em relação à cura física dos corpos que a
medicina pôde realizar o trabalho em outra esfera.
Mas é preciso não dissociar o indissociável. Imaginar que seja mais que ênfase, as
elaborações de campos inteiramente diferentes de discussão como a medicina e a
antropologia, ainda que ambas tenham nascido dos movimentos inaugurados pela ordem
moderna.
O corpo pode também ser visto como um conjunto de mecanismos orgânicos, de
expectativas e realidades sociais, não claramente destacáveis. O destaque advém do sentido
dotado pelos indivíduos que partilham símbolos similares. Para que possamos nos
organizar no mundo; nos acharmos diante da falta de ordem inerente as incapacidades
189
humanas e de sinais seguros advindos da natureza física ou orgânica. Ou, exatamente, às
suas capacidades.
De todo modo, precisa de sentidos que completem suas atividades. E esses sentidos
só podem ser sociais.
Ainda assim não pretendi afirmar que seja o único meio de realização do corpo
adolescente; ao menos, como o vemos nas ruas, shoppings e academias. Existem outras
formas, muitas delas vinculadas às organizações não-governamentais, meios de
comunicação e até mesmo regras familiares. Não apenas através da medicina. E nem de
formas institucionalizadas como as “científicas”.
Estive mencionando a caracterização deleuziana de que poderíamos estar entrando
em uma nova forma de administração do corpo (DELEUZE, 1992). Uma sociedade de
controle, que poderia ser expressa por intermédio da seguinte mensagem: “Sorria, você está
sendo filmado!!!” E diluída em supermercados, lojas de departamento, postos de gasolina e,
pelo que apontam alguns índices, locais de trabalho
192
.
Sua base está nas possibilidades técnicas como a telemática e a arranjos econômicos
e sociais, como a globalização. Diluídas em reality shows, comunidades de Internet,
câmeras escondidas e aparelhos celulares multifuncionais.
Sua reflexão não invalida o que foi entendido no quadro foucaultiano como
sociedade disciplinar (FOUCAULT, 1991); ao contrário, o amplia.
192
Por exemplo, se menciona testes para detectar a possibilidade de HIV, gravidez ou uso de drogas para
certificar a conveniência da manutenção de alguns funcionários por parte de algumas empresas.
190
Afinal, o confinamento tornou-se quase obsoleto; praticamente um recurso de
último caso. Daí a não necessidade de amplas internações psiquiátricas, nem a mesma
rigidez comportamental nas escolas ou um número excessivo de gerentes, mestres e contra-
mestres nas empresas capitalistas. Vivemos tempos mais sutis, porém mais interventores
193
.
Tanto que mesmo certa disciplina construtora pode ser vista como “obsoleta”.
Mas não sejamos tão compartimentalizadores. A convivência entre a chamada
sociedade disciplinar de Foucault pode não contradizer os últimos apontamentos da
sociedade de controle. Deleuze não desmente Foucault. Apenas o amplifica.
Assim podem ser também localizadas outras dimensões. Por exemplo, fala-se em
pós-modernidade. Se pudermos encarar o termo como mais uma forma de classificação
humana e não como elemento definitivo de ordem empírica, talvez aceite algumas
considerações. Combinadas umas as outras; as antigas e as contemporâneas.
Parece clara a guinada frente aos entendimentos imaginados por teóricos de várias
fontes como definitivas do quadro social moderno. Entre outros elementos, a diferença, e
não mais a igualdade, parece cada vez mais figurar como discurso mais freqüente daquilo
que se entendia na modernidade como “vanguarda” – apesar dessa noção também cair com
o restante do edifício implodido. Como construção merece cada vez mais atenção
antropológica. Como os indígenas priorizados no início de nossa tradição profissional.
Isso poderia representar, ao contrário do que imaginam alguns, um aumento do
processo civilizador amplamente analisado. Mais controle, portanto. Especialmente no que
193
A visibilidade mais ampla de tudo e de todos pode ser expressa pela idéia de que o mundo é hoje menor do
que antes fora.
191
concerne aos cuidados do corpo. Talvez mais ainda internalizados, muito embora diante de
maior fragmentação de instâncias reguladoras e modelos prescritivos.
Dessa maneira, espero ter conseguido discutir a partir da riqueza do saber
antropológico, formas de intervenção sobre os corpos dos adolescentes e sobre suas
atitudes em tempos menos precisos que o anterior. Deixando esboços para uma reflexão
maior sobre o nosso tempo; suas novas características, perspectivas e, porque não dizer,
manutenções.
192
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