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Aline Alves Arruda
Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: um
Bildungsroman feminino e negro
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte
2007
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Aline Alves Arruda
Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: um Bildungsroman
feminino e negro
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de Mestre em Letras – Teoria da
Literatura
Orientador: Professor Doutor Eduardo de Assis
Duarte
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
BELO HORIZONTE
2007
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Aos meus pais,
forças vitais para realização dos meus sonhos,
minhas buscas, minha errância.
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AGRADECIMENTOS
Ao Adélcio, meu querido, pelo amor sincero, paciente, inteligente e
compreensivo sempre, sempre. Pelo incentivo nas horas difíceis e pelas leituras sempre
dispostas e sinceras.
Aos meus irmãos Alisson e Anderson, que, como Ponciá e Luandi, já fizeram a
viagem em busca de dias melhores e nunca deixaram de me apoiar e incentivar, mesmo
na ausência física e dolorida.
Aos meus tios, tias e primos que em Newark vivem um pouco da diáspora e das
múltiplas identidades que este trabalho aborda. Aos tios e primos de Minas, também
incentivadores dos meus caminhos.
Aos meus primos Fabiano, Francis e Flávio pela amizade incessante, atenta e
carinhosa, especialmente em B.H.
Às mulheres da minha família, em especial às minhas avós, Maria e Emília,
forças abençoadas na minha vida.
Aos colegas professores e funcionários do Promove, São Pascoal e CEFET, pela
constante e sincera torcida.
Aos meus alunos e ex-alunos dos Colégios São Pascoal e CEFET pela
curiosidade, atenção, apoio, compreensão e, sobretudo, pelo diálogo após a leitura de
Ponciá; e posterior encanto partilhado diante do romance e da história da protagonista.
À Cíntia, Nícia e Tati, amigas ufevianas, irmãs para sempre.
Ao amigos mais que especiais Bruno, Cris, Dani, Sinésio e Val, que por
telefone, por abraços, mensagens ao celular, e-mails, sorrisos e olhares carinhosos me
empurraram tantas vezes diante do cansaço.
A Elisângela e Fabrício, casal nota mil, revisores de primeira, amigos de shows,
canções, viagens e conversas pra lá de boas, incentivos fundamentais a este trabalho.
À querida Conceição Evaristo, e de Ponciá, pela entrevista, pelas conversas
em Minas ou no Rio e pelo encanto transmitido muito além da literatura.
Aos colegas do mestrado na UFMG, pela troca de experiências e emoções, na
sala de aula, nos corredores ou na cantina da FALE.
Ao Paulinho, felino companheiro dos domingos e feriados à frente do
computador na solidão da escrita.
Aos professores de minha graduação da Universidade Federal de Viçosa,
especialmente às professoras Francis e Maria Carmem, mestras incentivadores de toda
uma vida de pesquisa e procuras.
5
À UFV, pela parte tão intensa e importante de minha bildung.
Aos colegas do NEIA, compartilhantes do encanto pela literatura afro-brasileira.
Aos professores do Poslit: Constância Duarte, Marcos Alexandre, Graciela
Ravetti e Sabrina Sedlmayer pelas aulas primorosas e pelo apoio carinhoso e paciente.
Ao meu orientador, professor Eduardo de Assis Duarte, pelos apontamentos
certeiros, pelas aulas que ganhei com suas orientação, pela simpatia e disponibilidade
nestes mais de dois anos e, sobretudo, por ter me apresentado a literatura afro-brasileira,
especialmente a de Conceição Evaristo.
A todos aqueles que compartilharam dessa minha travessia.
6
RESUMO
Essa dissertação pretende determinar as especificidades do discurso afrodescendente de
Conceição Evaristo, em Ponciá Vicêncio, que tornariam o romance uma apropriação do
gênero Bildungsroman com tons paródicos. Através da comparação com o modelo do
romance de formação burguês, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe,
percorremos a estrutura do gênero comparando-a com a narrativa criada pela autora
mineira. As marcas femininas e étnicas o aqui explicitadas através da relação entre a
memória e a diáspora africana, que acompanham a protagonista em sua errância.
Palavras-chave: Literatura afro-brasileira – Gênero – EtnicidadeMemória – Diáspora
ABSTRACT
This dissertation intends to settle the afro-descendant discourse particularities of
Conceição Evaristo in Ponciá Vicêncio, which made the novel into a rebuild of the
Bildungsroman genre through a parodist coloring. By means of comparison with the
bourgeoisie novel, Wilhelm Meister’s Apprenticeship, written by Goethe, we explore the
genre structure by contrasting it to the narrative created by the author from Minas
Gerais state, Brazil. The female and ethnic categories are explored here through the
relationship linking memory and African Diaspora that follow the protagonist during
her erratic journey.
Key-words: Afro-Brazilian Literature – Genre – Ethnicity – Memory - Diaspora
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................7
CAPÍTULO 1
O Bildungsroman...........................................................................................................17
1.1 - Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister: o modelo de Bildungsroman................22
1.2 - O romance de formação contemporâneo ...............................................................................................26
1. 3 - O mythos da procura....................................................................................................................................28
CAPÍTULO 2
Ponciá Vicêncio e a errância diaspórica......................................................................31
2.1- A literatura afro-brasileira..........................................................................................................32
2.2 - Ponciá enquanto ser diaspórico ..............................................................................................35
CAPÍTULO 3
A memória como formação de Ponciá e motor da narrativa.....................................59
3.1 - A herança de Vô Vicêncio: a memória coletiva..........................................................................64
3.2 - Os orixás como marcas da meria..............................................................................................77
CONCLUSÃO ................................................................................................................90
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................94
ANEXO 1........................................................................................................................01
ANEXO 2 .......................................................................................................................05
ANEXO 3 .......................................................................................................................06
8
Essa dissertação pretende determinar as especificidades do discurso
afrodescendente de Conceição Evaristo, em Ponciá Vicêncio
1
, que tornariam o romance
uma apropriação do gênero Bildungsroman com tons paródicos . A escolha do tema
justifica-se, primeiramente, pelo fato de o romance pertencer à literatura afro-brasileira,
que tem em sua estética marcas identitárias das etnias da diáspora africana que
aportaram em nosso solo desde o século XVI, além de apresentar marcas também da
literatura feminina que constituem, no romance em questão, recursos para essa
apropriação.
A escritora Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946, numa favela
no alto da Avenida Afonso Pena, área valorizada da capital. Com o tempo, a população que
vivia foi desfavelizada, removida para outros bairros da cidade e da área metropolitana,
pois novos prédios e ruas foram construídos na região. Tendo vivido a infância nesse local,
Conceição traz na meria acontecimentos e pessoas desse tempo que, vez ou outra,
participam de suas narrativas. Sua mãe, dona Joana, teve nove filhos, era dostica, lavava
roupas para fora e ainda encontrava tempo para lhes contar hisrias, palavras que também
fazem parte do “acervo” de Evaristo, que se diz nascida rodeada delas. A autora também
trabalhou como dostica na capital mineira enquanto estudava. Formou-se professora no
antigo curso Normal, em 1971, e depois se mudou para o Rio de Janeiro, onde foi aprovada
em um concurso municipal para magisrio e, posteriormente, no curso de Letras na
Universidade Federal daquele Estado. As leituras sempre a acompanhavam: Clarice
Lispector, Graciliano Ramos, Guimaes Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Carolina
Maria de Jesus, Adão Ventura, entre outros, foram de grande inflncia para ela. Conceição
1
A partir daqui, referir-me-ei às citações do romance estudado através da sigla PV.
9
é mestre pela PUC/RJ, onde defendeu, em 1996, a dissertão Literatura negra: uma
poética da afro-brasilidade. Hoje é doutoranda em Literatura Comparada na UFF. A autora
publica poemas e contos na coletânea Cadernos Negros desde 1990, e é chamada para
palestras e congressos em todo o Brasil e no exterior, nos quais aborda as questões de
nero e etnia na literatura brasileira. Ponciá Vicêncio é o primeiro romance de Conceição
Evaristo e vem sendo tema de artigos e discussões no meio acamico desde sua publicação
em 2003. Além da indicação ao vestibular 2008 da UFMG, o livro foi publicado
recentemente em inglês. A obra narra problemas do cotidiano das mulheres
afrodescendentes sob um ponto de vista claramente feminino e negro, num contexto atual
que nos permite propor o presente estudo. Este trabalho propõe a análise de uma obra que
questiona o cânone brasileiro e busca, ao mesmo tempo, suplemen-lo, no sentido
derrideano do termo
2
. Além de Ponciá Vincio, a autora publicou também o romance
Becos da Memória, em 2006, o qual narra a história de personagens que vivem em uma
favela em processo de demolição.
O enredo de Ponciá Vicêncio traça a trajetória de uma mulher negra, a protagonista
que dá nome ao livro, desde sua infância até a idade adulta. Ponciá mora com a mãe, Maria
Vicêncio, na Vila Vicêncio, que concentra, no interior do Brasil, uma população de
descendentes de escravos. Seu pai e seu iro trabalham na lavoura para a família
Vicêncio, que é dona das terras onde todos moram e trabalham, além de serem os donos do
sobrenome dos habitantes da vila, como a falia de Ponciá. O romance tem uma história
fragmentada que, através de flashbacks, narra a inncia da menina na vila junto da mãe e
do artesanato com o barro que as duas fazem. O narrador, na terceira pessoa, nos leva ao
íntimo dos personagens e à introspecção destes através do uso do discurso indireto livre
2
Para Derrida, em seu conceito de desconstrução, toda origem nunca é “original”, pois ela é desde
sempre suplementada por todo um discurso. Segundo Paulo Cesar Duque-Estrada, “o suplemento diz
respeito evidentemente, a alguma forma de construção em que, necessariamente, entram em jogo várias
determinantes, de ordens lingüísticas, sociais, morais, culturais, históricas, institucionais, estratégicas etc”
10
durante toda a narrativa. É assim que conhecemos a alegria da menina Ponciá que, seguindo
uma crendice popular brasileira, brincava de passar por debaixo do arco-íris com medo de
mudar de sexo e se mostrava diferente desde criança, principalmente por sua semelhança
sica com o avô Vicêncio. Este, ainda escravo, num momento de loucura e tremenda
indignação diante da escravidão que ainda perdurava, mata a esposa e se mutila, cortando o
próprio bro. E é esse braço cotó que Poncimita desde pequena. E embora ela fosse
criança de colo quando o avô paterno morreu, apresenta tais semelhanças e modela um
boneco de barro idêntico a ele. Por esses e outros motivos, todos dizem que a menina
carrega consigo a herança do avô. Nêngua Kainda, uma velha sábia da região, é quem mais
enfatiza isso à menina e aos seus familiares. Para ela, Ponciá precisava cumprir sua heraa.
Após perder o pai, Ponciá decide partir para a cidade grande em busca de uma vida melhor.
Sua viagem é feita de trem e demora dias sofridos. Ela chega ao lugar sem referências,
dorme uma noite na porta da igreja e depois consegue um emprego como doméstica.
Enquanto junta seu dinheiro para comprar um barraco e trazer a mãe e o irmão para morar
com ela na cidade grande, na vila Vicêncio, Luandi, seu iro, também decide migrar, para
a tristeza de sua mãe. O rapaz faz a mesma viagem que a ir e chegando à cidade, arruma
emprego de faxineiro numa delegacia, através da indicação do soldado Nestor, negro que
ele conhece na estação de trem. Luandi fica feliz, que seu sonho era ser soldado. Maria
Vicêncio, com a casa vazia, decide viajar sem rumo até que chegue a hora de ir ao encontro
dos filhos. Enquanto isso, Ponciá volta à vila em busca dos seus, mas não encontra
ningm, apenas a certeza, através de sua conversa com Nêngua Kainda, de que um dia,
além de cumprir sua herança, ela reencontrará a mãe e o irmão. De volta à cidade, Ponc se
junta a um homem que conhece na favela. Inicialmente apaixonada, sofre depois com suas
agressões físicas, causadas, principalmente, por causa do estado de apatia que ela se
11
encontra e no qual permanece por longo tempo. As perdas de Ponc foram muitas: a
ausência dos familiares e os sete abortos que sofreu.
Luandi, na cidade, aprende a ler e a escrever e se aproxima cada vez mais do sonho
de ser policial. Conhece Bilisa, uma prostituta, também negra, por quem se apaixona e
juntos fazem planos. Entretanto, a moça é cruelmente assassinada pelo seu guarda costas e
comparsa da cafetina, Negro Climério, fato que interrompe os sonhos do jovem casal. Antes
disso, Luandi, com a farda emprestada do soldado Nestor, também retorna à vila e não
encontra a mãe e a irmã, embora saiba, através de pistas simlicas como o sumiço da
estátua do avô, as cinzas no fogão e a casca de uma cobra, que elas estiveram há pouco.
Ele deixa seu endereço com Kainda a fim de que esta o entregue à mãe para que eles se
reencontrem. Maria Vicêncio, de posse do endero do filho, vai ao encontro dele na cidade
grande. Na favela, Ponciá, em seu delírio com saudades do barro, decide retornar à cidade
natal, e lá, na estação de trem reencontra a família O desfecho do livro traz, além do
reencontro dos três, o encontro de Ponciá consigo e com o cumprimento de sua herança
ancestral, junto do rio, do arco-íris e do barro.
Essa história é narrada com alta dose de lirismo e com marcas culturais, assim como
diversos textos da literatura afro-brasileira, por alguns chamada de literatura negra. Para
Zilá Bernd (s/d, s/p)), "é missão da literatura contribuir para a libertação do povo: libertação
o apenas política, mas mental, fazendo-o compreender em que consiste a liberdade".
Podemos afirmar, portanto, baseados em textos pertencentes a essa literatura, que ela
contribui de forma incisiva para a conscientização e constituão de um novo público leitor.
A presença do afro-brasileiro na literatura representa um importante tema a ser
discutido. Marcada por sua peculiaridade, seus próprios valores e história, essa literatura
vem alavancando muitos estudos nas mais diversas áreas. O aspecto da marginalidade
social que atinge negros e pobres de todas as origens étnicas foi um dos fatores que
12
motivaram nossa pesquisa sobre esse tema, especialmente sua influência e permanência na
literatura brasileira. A presença do negro como um dos sujeitos construtores da identidade
brasileira é inevel. É percepvel, no entanto, que este sujeito ainda sofre diversas formas
de exclusão.
Parece imprescindível, assim, para tais grupos, deixarem sua marca na vida social.
E, então, representações de indivíduos excluídos dessa ordem aparecem freentemente,
sendo ao mesmo tempo "revelação e ocultamento de identidades" (Hall, 2003a, 15). E a
literatura é fator revelador dentro dessa constituição.
A literatura afro-brasileira é ainda um conceito em construção, no âmbito da crítica
e da historiografia literária. Essa literatura se constitui a partir do ponto de vista
afrodescendente do autor ou autora. Como afirma Eduardo de Assis Duarte na apresentação
do site literafro
3
, "sua presença [da literatura afro-brasileira] implica re-direcionamentos
recepcionais e suplementos de sentido à história literária canônica" (2005). É assim a escrita
de Conceição Evaristo, dos conhecidos Cruz e Sousa e Lima Barreto e dos atuais escritores
presentes na publicação anual Cadernos Negros, que levam à literatura sua memória
individual e coletiva. Ou seja, o ponto de vista interno é caractestica definidora e distintiva
que, junto a outros componentes neste trabalho comentados, constitui a perspectiva afro no
âmbito da literatura brasileira.
Ainda segundo Duarte, "desde o peodo colonial, o trabalho dos afro-brasileiros se
faz presente em praticamente todos os campos da atividade artística, mas nem sempre
obtendo o reconhecimento devido" (2002, 35). O mesmo se deu com muitos de nossos
escritores desde o surgimento da literatura brasileira. As obras canicas acabaram
ofuscando o valor dessa literatura que, ainda segundo Duarte, "quando não ficou inédita ou
3
www.letras.ufmg.br/literafro
13
se perdeu nas prateleiras dos arquivos, circulou muitas vezes de forma restrita, em pequenas
edições ou suportes alternativos" (Idem).
A exemplo do que ocorreu com o poeta Ls Gama, cuja obra ainda não mereceu da
crítica literária o tratamento devido. Outro caso semelhante se deu com o romance Úrsula,
de Maria Firmina dos Reis, publicado pela primeira vez em 1859, reeditado recentemente e
totalmente desconsiderado pela grande maioria dos historiadores literários por muitos anos
desde sua última edição. A autora, uma maranhense nascida em o Luís, em 1825, foi
cronista, poetisa, ficcionista, folclorista e professora. Exerceu importante papel na sociedade
maranhense da época, mesmo assim, quase não é lembrada pelos críticos literários
4
.
Poderíamos citar inúmeros exemplos de outros autores que, assim como os aqui lembrados,
ficaram à margem do cânone literário brasileiro.
Diante de aspectos como esses, a literatura afro-brasileira pode ser considerada uma
contra-narrativa da nação porque abala a ideologia do nacionalismo e tem um olhar crítico
sobre o Estado e a identidade nacional; e, ainda, por reescrever a seu modo a História. É o
caso de Conceição Evaristo no romance Ponciá Vicêncio. Ao se apropriar do gênero
Bildungsroman, a autora questiona toda uma tradição de romances nos quais o herói é
homem e burguês, e questiona a identidade nacional brasileira ao criar uma protagonista
que, ao contrário de muitas personagens femininas de nossa literatura, vive uma formação
repleta de percalços que passam por conseências de nossa Hisria escravocrata e racista.
Reescrevendo ao seu modo a procura da personagem no romance, Evaristo suplementa
também nossa história literária brasileira.
No caso de Conceição Evaristo, a autora demonstra seu testemunho de resistência,
individual, a princípio, e coletiva, contra, pelo menos, uma tripla exclusão: a racial, a de
4
Recentemente, em 4 de junho de 2007, a pesquisadora Adriana Barbosa de Oliveira, defendeu sua
dissertação de mestrado, cujo título é “Gênero e etnicidade no romance Úrsula, de Maria Firmina dos
Reis”, no qual ela discorre sobre a construção das personagens do romance situadas no contexto do
Romantismo de José de Alencar e do crítico Francisco Sotero dos Reis, contemporâneos da escritora.
14
nero e a de classe. Exclusão também vivida pela autora de Úrsula. Assim, Ponc
Vicêncio segue os passos de Conceição Evaristo, que também é herdeira de uma linhagem
memorialística feminina na literatura afro-brasileira. Assim como Maria Firmina, Carolina
Maria de Jesus e outras escritoras negras, Conceição transe a voz dos excluídos para a
literatura, expondo ao leitor o pensamento, a ão e a consciência afrodescendente. É essa
conscncia que marca os textos dessas autoras e de tantos autores considerados afro-
brasileiros. A identidade deles é marcada no texto através dos temas tratados e da estética
usada.
Segundo Luiza Lobo, um dos aspectos que define esta escrita é o fato dela ter
surgido "quando o negro passa de objeto a sujeito dessa literatura e cria sua própria história;
(...) quando o negro deixa de ser tema para autores brancos e passa a criar sua própria
escritura(1993, 222). É essa a prática de Conceição Evaristo e de tantos autores desde
culos passados. Ao dar ao personagem negro o direito à fala, esses autores o tornam
porta-voz das narrativas ao mesmo tempo em que também eles, escritores, são sujeitos
literários de um processo histórico que transcende a diáspora africana.
A partir dessa concepção literária, histórica e política, faremos uma leitura de
Ponciá Vicêncio como uma apropriação de um gênero caro ao cânone literário: o
Bildungsroman. O termo se origina do alemão: bildung = formação e roman- romance,
sendo utilizado pela primeira vez em 1810 para indicar aquela forma de romance que
"representa a formação do protagonista em seu início e trajetória até alcançar um
determinado grau de perfectibilidade" (Morgenstern apud Maas, 2000, 19).
Goethe, em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, foi considerado um dos
criadores do gênero Bildungsroman. Colocando no centro do romance a formação do
indivíduo, o autor retratou a sociedade da época na figura de seu protagonista Wilhelm
Meister e dos personagens que rodearam sua história. Foi enquanto romance de formação
15
que este livro do escritor alemão conquistou seu lugar na literatura universal. Para Mazzari
(2006), o Wilhelm Meister é dominando inteiramente pelo termo Bildung, pela idéia de
formação. Lucs (2006), em posfácio ao romance de Goethe, também confirma as
características do Bildungsroman inauguradas pelo autor. Influenciado pelo Iluminismo, o
romancista alemão, na opinião do trico, atribui uma grande importância ao
desenvolvimento humano, à educão. Por isso, em seu romance, encontramos várias
marcas desta orientação pedagógica que contribram para a formação do protagonista, tais
como a sociedade da Torre, a figura do abade, as cartas de aprendizados, dentre outros.
Segundo Lukács:
Com tros muito sutis e discretos, com algumas breves cenas, Goethe a
entender que a evolução de Wilhelm Meister foi desde o princípio controlada e
conduzida de uma forma determinada. (...) Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister é um romance de educação: seu conteúdo é a educação dos homens
para a compreensão prática da realidade (2006, 589-590).
Essa intenção fica explícita, portanto, no romance de Goethe. O que afirmo neste
trabalho é que Conceição Evaristo se apropria do gênero e o parodia, em alguns aspectos,
com as marcas de seu estilo e das literaturas feminina e afro-brasileira. Segundo a
prefaciadora do romance, Maria José Somerlate Barbosa, a história de Ponciá é um romance
de formação, pois descreve “os caminhos, as andanças, as marcas, os sonhos e os
desencantos da protagonista” (2003, 5). Assim, a viagem da menina do povoado onde vivia
para a cidade grande, sua busca por dias melhores, a herança do avô que carrega consigo, as
perdas que sofre ao longo de sua formão e os desencontros com a família vividos durante
a narrativa, são aspectos importantes para nossas proposições sobre essa apropriação.
Importante estabelecer o que entendemos por apropriação e paródia. Não usamos
aqui o termo “apropriação” no sentido de deslocamento ou desvio, o que seria uma
forma de paródia mais forte, mas no sentido de “tomar posse”, de adaptação. Segundo
16
Bakthin (2002), na paródia, semelhantemente à estilização, há uma fala de outro, porém
introduz-se nela algo intencionalmente em oposição ao "original", isto é, a segunda
"voz" entra em discordância com a primeira. Essa segunda voz, uma vez instalada no
discurso do outro, entra em hostilidade com seu agente primitivo e o obriga a servir a
fins diametralmente opostos. Mais forte que a estilização, a paródia é, portanto, o ruído.
Segundo Conceição Flores (2000),
a parodização permite que sejam revelados aspectos que anteriormente não
eram percebidos, inserindo um corretivo na seriedade unilateral do discurso
elevado. (...) A intenção do parodiador é mostrar outra realidade, porque, ao
não aceitar uma concepção monológica do mundo, mostrará com outros
olhos uma nova perspectiva. O discurso da paródia é o de quem não aceita o
mundo como ele é, não aceitando, portanto, suas formas de representação (p.
75).
Percebemos que em rios momentos do romance de Evaristo temos essa
“revelação de aspectos anteriormente não percebidos” e a intenção de mostrar outra
realidade, entretanto, isso não acontece durante todo o romance. Pelo contrário, a autora
subverte algumas características do nero Bildungsroman, mas também se apropria de
outras, como veremos nos capítulos que seguem.
O capítulo 1, “O Bildungsroman”, terá como
objetivo discutir o conceito do
Bildungsroman a partir da leitura dos textos de
Wilma Patrícia Maas,
Mikhail Bakthin,
Cristina Ferreira Pinto, dentre outros teóricos que trataram do tema. Esses teóricos, além
de trazer uma discussão sobre o romance de formação na atualidade, no caso de Maas e
Cristina Pinto, especialmente o romance de formação feminino, permitio uma
associão da teoria do mythos da procura, de
Northrop
Frye (1957), à busca pela
formão trilhada pelos heróis dos Bildungsromane.
O capítulo 2,
Ponc Vicêncio e a errância diaspórica”,
vem introduzido por uma
exposição teórica sobre o conceito de literatura afro-brasileira. Em seguida, temos a
17
discuso sobre o termo “dsporae os significados que a palavra vem ganhando com
os recentes estudos. A discuso do termo no romance de Evaristo é imprescindível,
pois a procura da protagonista é a mefora da dspora, afinal, a formão de Ponciá
passa pela história do navio negreiro, representão o comum na literatura canônica e
marcadamente
freqüente
na literatura afro-brasileira. Demonstrarei, eno, como o navio
e a história da diáspora que o acompanha o valiosos aspectos no romance de
Conceão Evaristo. As idas e vindas das personagens e suas viagens sofridas são
marcas dessa trajetória percorrida por africanos e que permanece presente em nossos
dias. Neste catulo farei uso da teoria de Frye (1957) do mytos da procura na errância
diasrica das personagens de Ponc Vicêncio, especialmente na vida da protagonista,
em sua formão as a sda da vila e a difícil trajeria na cidade grande. Para
fomentar essa discuso serão mencionados também os teóricos Paul Gilroy (2001) e
Franz Fanon (1979). O primeiro, em seu livro O Atlântico Negro, tem importante
destaque nos estudos recentes sobre as hisrias de deslocamentos e identidades. O
segundo, intelectual negro de grande importância para os estudos sobre a identidade e a
desterritorialização sofrida pós- colonialismo europeu.
no catulo 3, A memória como formação de Ponce motor da narrativa”,
dissertarei sobre a memória, motor da narrativa de Evaristo e de tantas narrativas
femininas e afro-brasileiras. A formação da protagonista es atrelada à herança que lhe
foi deixada pelo avô ex-escravo. Heraa esta de natureza cultural, ao contrio daquela
de ordem material que marca os protagonistas masculinos e burgueses dos principais
Bildungsromane. Então, nesse capítulo, discutirei a presença da cultura afro-brasileira no
livro, a aquisição da meria como formação de Ponciá e apropriação feita pela autora no
romance para subverter, em parte, o gênero romance de formação.
18
19
CAPÍTULO 1
O BILDUNGSROMAN
“Formar a mim mesmo, assim
como aqui estou, foi,
obscuramente, desde a juventude,
o meu desejo”
(Wilhelm Meister, em Os anos de
aprendizagem de Wilhelm
Meister, de Goethe)
20
O termo Bildungsroman aparece pela primeira vez, em 1810, na Alemanha, criado
pelo professor de Filologia Clássica Karl Morgenstern. A denominação, entretanto, emerge
para o discurso acamico por meio da obra do filósofo idealista Wilhelm Dilthey.
Morgenstern assim define o gênero:
[Tal forma de romance] poderá ser chamada de Bildungsroman, sobretudo
devido ao seu conteúdo, porque ela representa a formação do protagonista
em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de
perfectibilidade; em segundo lugar, também porque ela promove a formação
do leitor através dessa representão, de uma maneira mais ampla do que
qualquer outro tipo de romance (apud Maas, 2000, 19).
O gênero, nascido na Alemanha diante das necessidades burguesas, constitui então
uma forma literária muito estudada e na qual se encaixam romances canônicos como Os
anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, e as clássicas histórias de Robinson
Crus. Sua característica pedagógica parecia preencher a função da literatura no culo
XIX, tida como instrumento educacional, servindo de exemplo aos leitores das obras. Mas
como afirma Benjamim, "o romance de formação (Bindungsroman), por outro lado, o se
afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance" (1994, 202). Permanecem as
características clássicas do gênero em relação à estrutura e, ainda segundo o crítico alemão,
o romance de formação tamm integra o processo social na vida do personagem.
Entretanto, o hei dessa forma de romance vive um ciclo no qual seu amadurecimento é o
objetivo final. Ele sai da casa paterna, passa por transformações que o mundo lhe
proporciona até chegar ao autoconhecimento e autodescobrimento. Em sua trajeria, passa
por percalços, dificuldades, instabilidades e normalmente tem sua formação através de
instrutores, mentores, pessoas mais velhas e encontros com a arte, com a política e com a
vidablica.
21
Segundo Frye
5
, “em todas as idades, a classe social ou intelectual dominante tende a
projetar seus ideais nalguma forma de esria romanesca, na qual os virtuosos heróis e as
belas hernas representam os ideais, e os vilões as ameaças à supremacia daqueles” (1957,
185). Dentro, portanto, de um contexto hisrico alemão em que a formação do burgs se
torna uma ferramenta para a transão da cultura do mérito herdado para a cultura do
crescimento pessoal adquirido, o romance de formação tem um lugar importante. Para
Wilma Patrícia Maas:
A palavra Bildungsroman conjuga, portanto, dois termos de alta historicidade
no contexto alemão e mesmo europeu. Por um lado, a incipiente classe média
alemã movimenta-se em direção à sua emancipação política, processo que se
reflete na busca pelo auto-aperfeiçoamento e pela educação universal. A par
disso, cristaliza-se o reconhecimento público de um gênero literário voltado
para a representação do próprio ideário burguês, gênero esse que o século XIX
irá conhecer como a grande forma do romance realista (Maas, 2000, 22-23).
Assim, a formação do burguês ascendente coincide com a popularização do
romance. Durante essa propagação do gênero, o Bildungsroman tinha apenas a intenção
pedagógica; a ficção era o pano de fundo para esse objetivo da educação. Lembrando que
segundo Bakthin (2003), essa modalidade específica do nero romanesco surge antes. O
teórico russo considera, por exemplo, a Ciropédia, de Xenofonte um protótipo sico do
nero, assim como Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, ambos anteriores ao
Neoclassicismo.
Sabe-se também que o conceito de romance de formação é maleável, tendo em vista
os estudos recentes sobre o nero e sua transposição para a literatura contemponea.
Segundo Sandra Valenzuela (2004), apesar dessa maleabilidade, é possível distinguir
5
Entendemos como “estória romanesca”, o correspondente a romance em inglês. A diferença, portanto,
entre “estória romanesca” e romance” é a mesma de romance e novel, em inglês. O que os difere, está,
principalmente, segundo Chase (apud Frye, 1957), na maneira como vêem a realidade. O romance ou
novel aborda a realidade mais próxima do cotidiano, enquanto a estória romanesca ou romance segue a
tradição medieval e nos retrata um enredo menos detalhado. Segundo Frye (1957), “a estória romanesca
é, de todas as formas literárias, a mais próxima do sonho que realiza o desejo, e por essa razão
desempenha, socialmente, um papel curiosamente paradoxal” (p. 185).
22
algumas características nas obras analisadas e citadas pelos estudiosos como
Bildungsroman: a crise do sujeito, o estado caótico do mundo burgs, o questionamento
sobre a validade da formação burguesa, entre outras. Tamm segundo Patrícia Maas,
algumas características do protagonista podem ajudar na identificação deste nero
romanesco: a consciência explícita do protagonista sobre o caminho que ele percorre, sendo
sua escolha ligada à orientão no mundo e ao autodescobrimento; a imagem que o
protagonista tem do objetivo de sua trajeria de vida é equivocada, devendo ser corrigida
ao longo de sua formação; e ainda, as experiências típicas do protagonista como a separação
da casa paterna, os mentores e guias presentes na sua educação, as experncias
profissionais, o contato com a arte e com a vida pública.
Bakthin (2003) em Estética da criação verbal teoriza sobre o gênero. Ele afirma
que o romance que produz a imagem do homem em formação é raro. O autor caracteriza o
nero principalmente através do personagem. Para ele, no romance de formação, o herói se
torna uma “grandeza varvel”, a mudança do herói ganha significado de enredo, o tempo
integra a imagem do homem, interioriza-o. Bakthin afirma ainda que essa formação do
homem nesse gênero de romance pode ser muito diversificada. Para o autor, há cinco tipos
de romance de formação: o primeiro, ligado à tradição idílica do século XVIII, que utiliza
ciclos para construir a temporalidade; o segundo, que conduz sempre o protagonista à
desilusão diante do mundo, sendo caracterizado pela representão do mundo e da vida
como experiência, como escola; o terceiro é o do tipo biográfico, nele jáo existe
elemento clico, cria-se o destino do homem; o quarto seria o romance de formação
didático-pedagógico, que é baseado numa idéia pedagógica; e por último o realista, sendo
este o mais importante: "aquele em que a evolução do homem é indissolúvel da evolução
histórica" (Bakthin, 2003, 221). Nesse tipo, o homem, o herói, são formados ao mesmo
tempo que o mundo.
23
Nos primeiros quatro tipos de romance citados por Bakthin, o homem se forma num
mundo pronto, estável. As mudanças que ocorrem não o afetam . O mundo é, nesses
romances, um imóvel ponto de referência para o homem em desenvolvimento. No quinto
tipo, o homem se situa na fronteira de duas épocas, ele é obrigado a se tornar um novo
indivíduo. Nesse Bildungsroman surgem os problemas da realidade humana. Bakthin
afirma ainda que o romance de formação realista não está dissociado dos outros tipos, pelo
contrário, está imediatamente relacionado aos outros e suas características.
Quanto à estrutura, em geral, os romances de formação seguem a ordem aristotélica,
de começo, evolão e fim. Primeiro, o autor exe os motivos da separão do
protagonista de sua terra natal e sua família, para em seguida viajar em busca de sua
formação. O herói é sempre jovem, e parte sozinho nessa viagem. A etapa da evolução seria
a formação propriamente dita, quando o herói vive suas aventuras, encontra seus mentores e
mestres, que lhe guiam na formação. No final, normalmente, o herói encontra-se de volta a
sua família e a sua constituão burguesa, sentindo-se preparado para vida adulta.
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, romance de Goethe publicado entre
1795 e 1796, é um dos mais importantes exemplos de Bildungsroman. Ele se encaixa na
classificação bakthiana do romance de formação realista que, segundo o crítico russo, “é a
manifestação mais característica do Iluminismo alemão” (2003, 223). Ainda segundo o
autor, como Goethe foi herdeiro direto da época do Iluminismo, seu romance tem uma
vio arstica desse tempo histórico. Em seu romance de formação, o escritor alemão atrela
os destinos humanos à história do mundo. Para Valenzuela: “é preciso ter sempre em conta
que a Bildung esdiretamente relacionada com o Iluminismo, do que decorre a idéia de
formação aliada à educação como funções do Estado para a manutenção do bem-estar da
sociedade” (2004, 57).
24
Wilma Patrícia Maas, em seu estudo sobre o Bildungsroman na hisria da
literatura, dedica boa parte de sua análise ao romance de Goethe. Para ela, “a obra de
Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister permanece, para a história da
literatura, como o exemplar mais perfeito do gênero, como a realização ideal de uma
projeção histórica e literia conscientemente exercida por um grupo social” (2000, 133).
1.1 Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister: o modelo de Bildungsroman
A obra é estruturada em oito livros que formam uma longa história sobre a
formação de Wilhelm Meister, jovem de família burguesa. A primeira parte da trajetória do
rapaz consiste na sua paio pelo teatro, ressaltando as aspirações nobres que esta arte lhe
traz. Afinal, segundo Maas, “uma vez que, por uma questão de origem social, os privilégios
concedidos à nobreza lhe são definitivamente negados, Wilhelm Meister acredita que o
teatro seja a única instância na qual um jovem de origem burguesa poderá desenvolver suas
qualidades e seus talentos(2000, 137). no primeiro capítulo, temos as recordações da
infância de Wilhelm, marcadas, sobretudo, pelas marionetes, sua brincadeira favorita. A
paixão do rapaz pela atriz Mariane (que logo o decepciona, preferindo se casar com
Norberg, jovem e rico negociante) também revela sua atração pelos palcos, muito
repreendida por seus pais, especialmente pelo velho Meister, que considera o comércio a
mais nobre ocupação.
Após o rmino do namoro com Mariane, Wilhelm segue viagem a pedido do pai
para cuidar dos negócios em outras cidades. Tal viagem acaba sendo o pretexto do jovem
para buscar sua formação e se aprimorar como ator. É que o rapaz conhece Melina e
junto dela forma uma trupe mambembe de teatro, depois se junta também a Serlo e tem
início novo grupo teatral. As frustrações de Wilhelm com a arte de representar começam
25
com o fim da companhia. Trdo por Melina e Serlo, o protagonista seu grupo
transformado em companhia de ópera, gênero que dava mais dinheiro. Georg Lukács, no
posfácio do livro de Goethe, acrescenta que o teatro, para Wilhelm não era uma missão e
sim um ponto de transição:
A exposição da vida teatral, que constituíra todo o conteúdo da primeira
versão, não ocupa aqui senão a primeira parte do romance, passando
expressamente por confusão do já amadurecido Wilhelm e por desvio de sua
meta. (...) O teatro transforma-se, pois, num mero momento do todo
(Lukács, 2006, 582).
É o personagem Jarno, membro da Sociedade da Torre, quem ajuda Wilhelm a perceber que o
teatro era um equívoco em sua formação. Não é a arte cênica, portanto, o caminho que conduzirá o
personagem de Goethe ao seu amadurecimento. Em carta ao cunhado Werner, Wilhelm se despede do
teatro: deixo o teatro e me junto aos homens, cujo contato haverá de me conduzir, em todos os
sentidos, a uma pura e sólida atividade (Goethe, 2006, 467). Nesse momento o protagonista já havia
perdido os pais e se tornado noivo de Natalie, jovem aristocrata, que abre as portas da nobreza para
Meister. Após a morte do pai, Wilhelm escreve uma carta ao cunhado Werner (que administra os
negócios da família), o que, na opinião de Mazzari, revela as concepções e os ideais do herói e por isso
chega a ser uma espécie de manifesto programático do romance de formação (2006, 14). Isso porque,
na carta, estão expressos desejos do protagonista que se configuram como características fundamentais
do gênero: a idéia de formar-se a si mesmo (autonomia), a totalidade (formação plena), e harmonia,
principalmente em relação às potencialidades artísticas, intelectuais e físicas do herói.
a Sociedade da Torre é uma instituição formadora que intervém ao longo da
narrativa, dirigindo a trajeria de Wilhelm Meister. Seus membros aparecem ao longo da
história num clima misterioso, em encontros furtivos. Só ao final saberemos exatamente de
quem se tratava. O primeiro a aparecer para Meister é um desconhecido, que ao final
saberemos ser o abade. Durante a viagem o mesmo acontece com outros personagens que
26
surgem. As discuses desses desconhecidos com o protagonista sempre giram em torno da
formação, educação e destino das pessoas. O afastamento de Meister do teatro deve-se
muito aos conselhos de Jarno. Sabemos, portanto, que as intervenções desse grupo realizam
o propósito pedagógico do Bildungsroman, representando as intervenções educativas. A
Sociedade da Torre é responsável em grande parte pela formação do rapaz, mas não é a
única influência do herói. Segundo Mazzari:
Embora a Sociedade da Torre exerça influência decisiva sobre o herói, sua formação
resulta também do contato com as várias pessoas atores, aventureiros, burgueses,
nobres, artistas que cruzam o seu caminho ao longo do romance: convivendo com
todos esses tipos, realizando as mais variadas experiências, sua formação vai aos poucos
ganhando forma (2006, 16-17).
O certo é que Wilhelm tem ao redor de si pessoas que interferem na sua formão, direta ou
indiretamente, e que come, no enredo, o objetivo da bildung do personagem. Inclusive
Shakespeare pode ser considerado mestre do jovem protagonista. Segundo Lukács (2006), o
dramaturgo ings é, para Goethe, um grande educador para a humanidade, atras de seus
dramas, modelos de desenvolvimento dos personagens. Suas obras são lidas por Wilhelm a
conselho de Jarno. E o rapaz chega a encenar Hamlet em sua despedida da vida de ator.
Voltando à personagem Natalie, temos nela uma grande imporncia no romance. A
moça aparece no início do livro, ajudando o protagonista após este sofrer um ataque de
salteadores. Quando, no livro VII, o abade declara terminados os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister, o rapaz reencontra a jovem amazona. Para Wilma Patrícia Maas, “o
encontro com Natalie é simbólico, investe-se de uma função organizadora e integradora dos
diferentes episódios vividos por Meister ao longo da narrativa” (2000, 141). É Natalie quem
ajuda Wilhelm a entender os acontecimentos nada fortuitos de sua vida, planejados pela
Sociedade da Torre. A figura do abade também é esclarecida por ela a Wilhelm. Segundo
Maas,. “Natalie apresenta-se portanto como objeto final da busca de Meister. Quando
27
descobre finalmente que a ama, Wilhelm Meister relativiza e põe em xeque seus desejos em
relação ao mundo exterior” (2000, 177). Assim, numa mésalliance bem significativa para
o contexto histórico da época, o Bildungsroman de Goethe termina com a união entre o
burgs Wilhelm e a nobre Natalie.
A continuação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister vem com o último
romance da trilogia: Os anos de peregrinão de Wilhelm Meister, em 1829. O final aberto
do romance anterior leva Goethe a continuar a história de Wilhelm. Neste texto, o jovem
burgs torna-se dico, alcançando uma formação cnica e de acúmulo de capital, ao
contrário do que ele próprio pregava em Os anos de aprendizado. Ainda obedecendo aos
desígnios da Sociedade da Torre, o hei descobre no início do terceiro romance que não
pode permanecer mais do que três dias em um mesmo lugar. O destino do personagem é, ao
final da história (e após ser dispensado da sentença da Sociedade), exercer sua profissão na
América. A diferença entre os dois romances que traçam a vida de Meister é assim
resumida por Maas:
Assim, ao passo que Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister tem sua gênese em um
momento da cultura burguesa no qual foi determinante o desejo e a busca por uma
formação universal, Os anos de peregrinação é produto de uma inteligência política, e
acima de tudo, econômica, que contradiz a universalidade e a arte em sua contrapartida
técnica. Apenas dessa forma paradoxal é que Os anos de peregrinação pode ser
considerado a continuidade e a resolução do livro anterior (2000, 190).
Dessa forma, a procura do herói goetheano continua no segundo romance, mas em
outro contexto e com o personagem mais maduro para fechar seu círculo de formação.
1.2 - O romance de formação contemporâneo
28
O interesse em estudar o Bildungsroman como um nero ultrapassou os anos e
ainda persiste em nossa crítica literária. Os teóricos aqui citados, como Wilma Patrícia
Maas, publicaram grande contribuição às análises contemporâneas. Transgredindo ou
subvertendo o modelo tradicional, muitos são os autores que dedicaram seus romances à
formação de seus protagonistas.
No Brasil, segundo Maas (2000), o termo é recente e aparece em estudos de
Massaud Moisés, em seu Dicionário de termos literários, no qual cita os romances O
Ateneu, de Raul Pomia, Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade e os romances
do ciclo do úcar, como exemplos de Bildungsromane brasileiros. A discussão sobre o
nero aparece também em análises como a de Eduardo de Assis Duarte no livro Jorge
Amado: romance em tempo de utopia, no qual um dos catulos leva o título de “O romance
de formação proletário se referindo ao romance Jubia, do escritor baiano, cujo
protagonista, Baldno, faz um percurso semelhante aos heróis do gênero:
Os vínculos de Jubiabá com essa tradição evidenciam-se a partir da evolução do
personagem, não só em termos de seu aprimoramento enquanto indivíduo, mas também
na medida de sua inserção no devir histórico, na crescente organização e participação dos
trabalhadores no processo político brasileiro (Duarte, 1995, 113).
Para Duarte, portanto, o romance de Jorge Amado é uma “estilizão proletário-
romanesca” do romance de formação burguês, que o Bildungsroman proletário afasta-se
e ao mesmo tempo se aproxima do modelo europeu burguês.
Os estudos da professora Sandra Trabucco Valenzuela também citam a presença do
romance de formação na contemporaneidade, tanto no Brasil, como na América Latina, tal
como demonstra em seu artigo “Romance de Formação: construção do sujeito e identidade
cultural”, de 2004. Nele a autora cita a análise do professor Mazzari (que prefaciou a nova
edição de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister) sobre o livro O Ateneu. Segundo
29
Velenzuela, neste texto, o autor associa a formação do protagonista à escola atual, numa
tentativa de aproximão dos Bildungsromane a uma reflexão sobre a Escola como espaço
social de transformação individual e coletiva.
No gênero literário romance de formação, entretanto, há pouco espaço para a mulher.
Cristina Ferreira Pinto (1990), em seu livro O Bildungsroman feminino: quatro exemplos
brasileiros, faz análise de quatro romances de escritoras brasileiras contemporâneas: Clarice
Lispector, Lygia Fagunds Telles, Raquel de Queiroz e Lúcia Miguel Pereira. A autora afirma que
o Bildungsroman retrata o processo em que a personagem aprende a ser "homem". Ferreira Pinto
verificou ainda que embora existissem romances de aprendizagem cujas protagonistas eram
mulheres, a formação destas enfocava sempre a maternidade e o casamento. Verifica-se, assim,
que, nesses romances, as protagonistas têm sua bildung interrompida pelas "obrigões
femininas". Elas, diferentemente dos personagens masculinos, não chegam à formão final,
confirmando mais uma vez a alteridade da mulher na literatura mundial:
no contexto da sociedade brasileira - e de forma semelhante ao que se vê em outros
contextos sociais -, o "feminino" representa a expressão do que tem sido sempre
subjugado, silenciado, colocado em uma posição secundária em termos culturais
(histórico, político, económico, etc.) (Pinto, 1990, 26).
A afirmação da autora é de fácil comprovação se atentarmos para os exemplos de
Bildungsromane citados em todos os estudos aqui lembrados. Neles, portanto, o
protagonista é homem. A autora enfatiza, contudo, que os finais “truncados desses
Bildungsromane femininos podem ter outro significado: um protesto contra a estrutura
social que exige da mulher submissão e dependência. Dessa forma, a loucura ou a morte,
finais tão comuns às protagonistas desses romances, podem significar uma rejeição aos
limites sociais impostos às mulheres. Seria uma recusa da escritora e da personagem a esses
padrões patriarcais e conservadores.
30
Nos romances analisados por Cristina Ferreira Pinto temos dois Bildungsromane
fracassados: Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira e As três Marias, de Raquel de Queiroz.
Nesses romances, as protagonistas, apesar da consciência adquirida em sua formação, m
um final negativo. No primeiro, a personagem Aparecida termina anulada como indivíduo e
marginalizada sociamente; no segundo, temos Guta, a protagonista, que ao retornar ao meio
provinciano de onde saíra cheia de expectativas tem que enfrentar novamente a
desesperança. Já em Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector e Ciranda de Pedra,
de Lygia Fagundes Telles, os finais são positivos para as protagonistas. Tanto Joana quanto
Virgínia se encontram e se fortalecem após a bildung.
Para Maas, “o romance de formação ou de aprendizagem feminino mostrar-se-ia
pois como um vetor revolucionário, subversivo, pela subvero do próprio modelo textual
ao qual recorre”. (2000, 247). Essa transformação estrutural em relação ao nero
Bildungsroman além de ser alcançada pela literatura feminina, também o é pela literatura
afro-brasileira, como pretendemos desenvolver nessa dissertação com o romance Ponc
Vicêncio. As releituras ideológicas do modelo textual aleo nos mostram, a partir das
características do gênero, as concepções históricas e sociais de cada época, como vimos nas
análises de Cristina Ferreira Pinto e Eduardo de Assis Duarte. Com Conceição Evaristo e
seu primeiro romance, veremos análise semelhante.
1.3 - O mythos da procura
Para Frye, “a forma perfeita da esria romanesca é claramente a procura bem
sucedida” (1957, 185) . Sabemos que a procura é uma marca do Bildungsroman, que a
formação do protagonista passa evidentemente pela busca de si mesmo. Frye acrescenta
ainda que uma forma completa dessa procura é dividida em quatro fases que ele chama de
31
ágon, pathos, sparagmós e anagrisis. O primeiro seria o estágio perigoso da jornada; o
segundo, a luta crucial, quando o hei ou seu adversário morrem; o terceiro, o
despedaçamento ou desaparecimento e o quarto, o reconhecimento do herói. No romance
de formação de Goethe esses estágios ou fases estão bem delimitados e seguem a “idéia
educativa” que Lukács (2006) defende em seu posfácio ao romance.
A procura para Frye (1957) é um elemento essencial da estória romanesca. É a
aventura principal, o elemento que dá forma à história. No caso do romance de formação, a
procura é a própria formação, que constantemente se dá através de uma viagem do
protagonista, quando este sai de sua cidade, de sua casa e vai em busca de si, de sua
formação. É assim com Wilhelm Meister que parte numa viagem logo no início do livro II.
Embora fosse uma viagem de negócios a pedido do pai comerciante, Wilhelm a desvirtua
para uma aventura que será decisiva em sua formação. O ágon que desencadeia a viagem
do protagonista de Goethe é o fim do romance com Mariane, a atriz por quem Wilhelm era
apaixonado. A partir desse conflito, o personagem, desiludido e ainda apaixonado pelo
teatro, contrariando a vontade do pai, parte para viver sua formação. O pathos no romance
do escritor alemão acontece diversas vezes. Temos a morte dos pais do herói, a morte da
amiga Aurelie e da antiga namorada Mariane. Todos esses acontecimentos têm influência
na vida de Wilhelm. A morte de Mariane, por exemplo, é revelada ao herói nos últimos
momentos do livro e lhe traz junto a notícia de que ela teve um filho seu, Felix. O pathos
vem junto com a anagnorísis, o renascimento. O primeiro amor se vai e um novo chega. As
outras mortes trazem reflexões importantes a Wilhelm Meister. A morte de seu pai o leva a
responder uma carta ao cunhado, Werner, na qual o jovem discorre sobre sua condição
burguesa e sua formação. Tal carta exprime com clareza o ideal do Bildungsroman de
Goethe, como comentado anteriormente. A recusa de Wilhelm em seguir os ideais e
32
caminhos burgueses é a chave de sua formação. Sua procura, passa, portanto, por essa
condição.
Quanto ao sparagmós, no conceito de Frye (1957), é o próprio despedamento do
hei, o senso de que o heroísmo e a ação eficaz estão ausentes, desorganizados ou
predestinados à derrota. No caso de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, essa fase
aparece quando ele se decepciona com Mariane, seu primeiro amor; também quando seus
colegas da trupe teatral mudam o objetivo da companhia e esta se torna uma companhia de
ópera. Wilhelm, assim, sente-se traído pelos amigos e decepcionado diante do sonho de ser
ator, que ele acreditava ser seu destino. Nesse momento, o hei se sente perdido, até ser
orientado pela Sociedade da Torre.
As personagens que rodeiam o protagonista, segundo Frye, “tendem a ser favoveis
ou contrárias à procura” (1957, 193). Em relão ao herói goetheano, os elementos da
Sociedade da Torre são os mestres que guiam sua procura.
Agora, vejamos um romance de formação que se apropria e, por vezes, parodia o
nero consagrado por Goethe: Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo.
33
CAPÍTULO 2
PONCIÁ VICÊNCIO E A ERRÂNCIA DIASPÓRICA
A voz de minha
bisavó ecoou criança nos
porões do navio. Ecoou
lamentos de uma infância
perdida. (Conceição
Evaristo, Cadernos Negros
13, 32-33)
34
2.1- A literatura afro-brasileira
Como discutido na introdução deste trabalho, o conceito de literatura afro-
brasileira é ainda polêmico. Estudos recentes na área como os das pesquisadoras Nazareth
Fonseca e Florentina Souza m elucidar um pouco mais a questão. Para Florentina Souza,
“no culo XX, principalmente nas três últimas cadas, escritores auto-definidos negros e
brasileiros, partícipes da construção do país, exigem a inscrição de seus corpos e de suas
vozes como parte de sua textualidade cultural” (2005, 54). Essa inscrão é claramente
percebida nos textos afro-brasileiros, numa representação muito diferente daquela que o
negro teve na literatura brasileira desde escritores como Grerio de Matos, Jo de
Alencar, Aluísio Azevedo, entre outros. Nas obras desses escritores canônicos “o lugar de
produção das falas que se encenam nos textos es ideologicamente determinado” (Fonseca,
2002, 195). Neles o estereótipo do negro innuo, submisso ou da mulata como objeto
erótico. Ao contrio, os textos afro-brasileiros possuem um eu enunciador consciente de
sua identidade que se constitui através de marcas textuais: “o escritor afro-brasileiro está
ciente, também, de que escreve, cita ou narra fatos a partir de uma perspectiva do seu grupo
étnico-minoritário na economia das relações de poder(Souza, 2005, 61).
dificuldades em se identificar o texto afro-brasileiro. A pesquisadora Florentina
Souza nos faz alguns esclarecimentos:
Não será a cor da pele ou a origem étnica o elemento definidor dessa
produção textual, mas sim o compromisso de criar um discurso que
manifeste as marcas das experiências históricas e cotidianas dos afro-
descendentes no país. O conjunto de textos circula pela história do Brasil,
pela tradição popular de origem africana, faz incursões no iorubá e na
linguagem dos rituais religiosos, legitimando tradições, histórias e modos de
dizer, em geral ignorados pela tradição instituída (2005, 61).
É assim, portanto, diante do resgate da memória cultural coletiva que os autores
afro-brasileiros fazem-se reconhecidos em seus textos. Uma imagem que faz identificar essa
35
memória histórica é importante para constituição e caracterização desse grupo identitário.
Essa literatura divulga, assim, seu projeto potico e social além de marcar bem sua
conscncia negra, refoando uma auto-estima que há muito estava apagada. Um dos
maiores representantes dessa literatura e também teórico dela é Luiz Silva (Cuti) que em
seu artigo “O leitor e o texto afro-brasileiro afirma: “a literatura negra brasileira traz
também o desafio da primeira pessoa do negro. Essa experiência para o leitor, depois de
mais de um século e uma década após a Lei Áurea, coma a acontecer, de forma
sistetica, atras da identidade coletiva do escritor negro” (2002, 28). Uma bela
ilustração desse pensamento é o poema do pprio autor, “Sou negro”:
Sou negro
Negro sou sem mas ou reticências
Negro e pronto!
Negro pronto contra o preconceito branco
O relacionamento manco
Negro no ódio com que retranco
Negro no meu riso branco
Negro no meu pranto
Negro e pronto!
Beiço
Pixaim
Abas largas meu nariz tudo isso sim
- Negro e pronto –
Batuca em mim
Meu rosto
Belo novo contra o velho belo imposto
(Cuti, 1978, 9)
A forte afirmação identitária e étnica do eu-rico desde o início do poema nos
revela a subjetividade expcita do poeta negro. A reversão das características sicas como
qualidades, também legitima nossa identificação desse poema como afro-brasileiro. Muitas
o as críticas ao prefixo “afroquando incorporado à literatura brasileira. Importante é
destacar que o prefixo apenas acentua o caráter étnico dessa literatura. Em entrevista ao
jornal O Globo, de 28 de abril de 2007, Eduardo de Assis Duarte afirma que “a literatura
36
afro-brasileira é um ramo dentro e fora da literatura brasileira, um ramo étnico que convive
com a literatura brasileira. Não deixa de ser brasileira de maneira nenhuma, é feita por
brasileiros, mas que fazem questão de assinalar a diferença étnica(2007, 3). O mesmo
ponto de vista também é assinalado por Conceição Evaristo em entrevista anexa a esta
dissertação, em que a autora afirma: “para mim a literatura afro-brasileira é uma produção
literária nascida da experiência de vida do sujeito negro na sociedade brasileira” (2007,
anexo 1, 1).
A queso da diáspora africana é um aspecto marcante nessa literatura. Trataremos
aqui dessa questão e de como ela se repete na literatura afro-brasileira, em especial no
romance de Conceição Evaristo, Ponc Vicêncio. Discutiremos neste capítulo as
especificidades do discurso afrodescendente da autora no romance que o tornam uma
contra-narrativa da idéia de nação. Segundo Doris Sommer (2004), os romances de
fundação na América Latina surgiram a partir das iias iluministas propagadas na
Europa. Acreditava-se que tais obras promoveriam o desenvolvimento latino-americano.
Segundo ela: “os romances iriam ensinar ao povo a sua história, seus hábitos que acabavam
de se formular, e as iias e sentimentos sociais e poticos ainda o divulgados” (2004,
24). Ainda para a autora, o blico alvo desses romances era justamente a elite que, ao se
identificar com os heróis e heroínas, idealizaria os casamentos, realizaria diálogos entre os
setores da nação e provocaria os sonhos ronticos dos burgueses europeus ou
descendentes destes que aspiravam a uma modernidade para a América Latina pica do
velho continente ou próxima da ascendente América do Norte. Afinal, esse era também um
modo de conciliar os conflitos emocionais, econômicos, raciais e de nero que as nações
podiam sofrer. Assim, com textos de cunho pedagico e romântico, tais narrativas
adentraram o Brasil no século XIX e ainda persistem como exemplos de ficções de
fundação, textos imprescindíveis na construção de nossa identidade e de nossa história. Os
37
índios de Alencar e as personagens frívolas de outros autores da época o considerados
marcas da brasilidade e eleitos representantes da construção de nosso nacionalismo.
O romance de formão feminino e negro de Conceição Evaristo transforma essa
idéia de narrativa por tanto tempo estabelecida. Para isso utiliza de contornos paródicos
através de recursos narrativos e formais que trazem para o romance suas marcas identitárias.
A metáfora da diáspora negra é uma dessas marcas e sobre ela enfocaremos a presente
discussão. Afinal, a procura, assim como definida por Frye (1957), discutida no capítulo
anterior, é uma característica do gênero romance e também comum ao romance de
formação. No caso da obra de Evaristo e de muitos textos afro-brasileiros, a procura é a
padia dessa diáspora.
2.2 Ponciá enquanto ser diaspórico
A definão do conceito diáspora, segundo o Dicionário de relações étnicas e
raciais, de Ellis Cashmore, vem dos antigos termos gregos dia (através, por meio de) e
speirõ (dispersão, disseminar ou dispersar). Entretanto, segundo o mesmo dicionário, a
palavra vem sendo usada atras da Hisria com outras conotações, principalmente no
sentido negativo, como é o caso da experiência judaica, da qual se originou a comparação
com os povos africanos e sua dispersão pelo mundo. Na Enciclodia Brasileira da
Diáspora Africana, de Nei Lopes, encontramos, além da definição citada, uma outra: “o
termo Diáspora serve também para designar, por exteno de sentido, os descendentes de
africanos nas Américas e na Europa e o rico patrinio cultural que construíram(2004,
236). Também como forma de conscientização, segundo Gilroy (2001), o termo é usado a
partir do conceito de “dupla consciência” de Du Bois, para significar a simultaneidade de
conscncia de pátrias e culturas. Infelizmente o conceito também é usado para designar um
novo tipo de problema: a visão sobre as comunidades transnacionais como uma ameaça à
38
segurança dos pses mais ricos. Novos estudos sobre a diáspora têm sido apresentados no
contexto dos Estudos Culturais por teóricos como Paul Gilroy e Stuart Hall. O termo, que
também aparece na Bíblia
6
pode ser usado ainda nos estudos afro-brasileiros. Afinal, todos
essas histórias o narrativas de libertação e dispero de povos. O pensamento recente
sobre o conceito de diáspora discute a questão do pertencimento, do conceito de raça e
propõe uma reflexão mais ampla e ambivalente em relação ao nacionalismo e às
identidades. Gilroy afirma que as fronteiras culturais foram alargadas e “a idéia de diáspora
se tornou agora integral a este empreendimento político, histórico e filosófico descentrado,
ou, mais precisamente, multi-centrado(2001, 17). Hall considera que “na situação da
diáspora, as identidades se tornam múltiplas” (2003, 27), elas não são, portanto, fixas e,
num contexto diaspórico, carregam consigo a disseminão, o espalhamento que acaba
multiplicando-as. Além disso, o conceito de identidade es relacionado ao conceito de
memória individual. Para Ricouer (2000), a meria é erigida como critério de identidade e
esa serviço da busca desta. É o que acontece com a protagonista Ponciá, que vive sua
busca a partir da memória afrodescendente herdada de seus ancestrais, em especial de seu
avô Vicêncio.
Muitos autores afro-brasileiros confirmam esse novo pensamento sobre a diáspora
negra e trazem para sua literatura marcas dessa meria coletiva que é, para eles, uma
espécie de motor da narrativa ou da poesia. Através de metáforas como a do navio negreiro,
ingnia da mediação do sofrimento do povo africano, ou da viagem como motivo e objeto
de reflexão sobre a diáspora, esses autores tecem sua literatura suplementando, no sentido
derrideano do termo, a literatura canônica e parodiando-a também.
Na poesia brasileira a figura do navio é uma das meforas mais freqüentes na
literatura abolicionista afrodescendente. O célebre poema de Castro Alves não é o único a
6
O termo, segundo Hall (2003), se origina da história do Grande Êxodo; na Bíblia, no Velho Testamento.
O livro do Êxodo conta a história da saída dos hebreus da opressão do Egito em busca da Terra
Prometida. A diáspora seria essa saída dos escravos do Egito.
39
trazer a imagem do navio negreiro, mas certamente é o mais consagrado e divulgado. É
presença constante nas aulas de literatura como evocação da luta abolicionista no século
XIX. Enquanto nos cantos I e II o eu-lírico nos situa no imenso mar “que Ulisses cortou” e
versos “que Homero gemeu”, no canto III ele clama para que a águia do oceano desça e
presencie a cena “infame e vil”. A partir daí, o eu-ptico descreve o navio negreiro: otinir
de ferros/estalar de oitee numa linguagem eloente, termina o canto VI acusando “um
povo que a bandeira empresta / Pra cobrir tanta infâmia e covardia”. Percebemos, apesar da
dencia explícita do eu-rico, que este se posiciona como a águia citada que desce do
espaço imenso a observar, do alto, o sofrimento do Outro. Todo o poema traz esse ponto de
vista.
Uma abordagem diferente de Castro Alves pode ser percebida em “Navio Negreiro”
de Solano Trindade. O poema, de mesmo título do texto do poeta condoreiro, numa
linguagem simples, transporta-nos para o mundo do tráfico negreiro e anuncia a questão
da diáspora:
Lá vem o navio negreiro
Por água brasiliana
Lá vem o navio negreiro
Trazendo carga humana...
(Trindade, 1999, 45)
Trindade nos mostra outro ponto de vista diante da metáfora: o de quem vive à
procura da identidade afro-brasileira através da memória diaspórica, apontando que a
formação dessa identidade negra passa por um processo político e histórico do qual, neste
caso, o navio é uma das representações máximas. Paul Gilroy, em Atlântico Negro, nos diz
que a diáspora não pode ser vista apenas como sinônimo de movimento. É possível
perceber que a produção dos nossos autores afro-brasileiros vão ao encontro desta mesma
idéia. Nela o conceito é incorporado pelos escritores como forma de modificar e
40
transcender a história. Ainda para Gilroy, “a imagem do navio – um sistema vivo,
microcultural e micropolítico em movimento é particularmente importante por razões
históricas e teóricas” (2001, 38).
Podemos perceber isso claramente no relato impressionante de Mahommah G.
Baquaqua, um africano que se tornou escravo no Brasil e nos conta, neste relato publicado
na Revista Brasileira de História, em 1988, sua experiência pessoal com o navio negreiro e
as atrocidades sofridas durante a escravidão. Eis um trecho do depoimento:
Seus horrores, ah! Quem pode descrever! Ninguém pode retratar seus
horrores tão fielmente como o pobre desventurado, o miserável desgraçado
que tenha sido confinado em seus portais. (...) Mas, vamos ao navio! Fomos
arremessados, nus, porão adentro, os homens apinhados de lado e as
mulheres de outro. O porão era tão baixo que não podíamos ficar em pé (...).
Oh! A repugnância e a imundície daquele lugar horrível nunca serão
apagados da minha memória. (...) Que aqueles indivíduos humanitários, que
são a favor da escravidão, coloquem-se no lugar do escravo no porão
barulhento de um navio negreiro, apenas por uma viagem da África à
América, sem sequer experimentarem mais que isso dos horrores da
escravidão; se não saírem abolicionistas convictos, então não tenho mais
nada a dizer a favor da abolição (Baquaqua, 1997, p.84,85).
Embora o texto de Baquaqua o seja ficção, e isso nos choca ainda mais, sua
descrição confirma os trechos literários aqui citados e nos leva a refletir novamente
sobre a importância dessa sofrida viagem, cujo relato se repete e se renova desde então,
com a semelhança de detalhes, e que tanto marcou alguns escritores afro-brasileiros e
suas obras.
Essa marca está em Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. A escritora
afrodescendente nascida no Maranhão traz, no capítulo IX, a personagem Mãe Susana
que tece uma bela narrativa sobre uma memória difícil de apagar: a amargura deixada
pela liberdade tolhida, pela felicidade que vivia junto da família em sua terra natal e os
maus tratos vividos no porão do navio durante a travessia:
41
Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a
liberdade: os bárbaros sorriam-se de minhas grimas, e olhavam-me sem
compaixão. (...) Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de
infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias
de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é necessário à vida
passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber
a mercadoria humana no porão fomos amarrados em para que não
houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas
matas que se levam para recreio dos potentados da Europa (Reis, 2004, 117).
Atras da voz narrativa de Mãe Susana e de Baquaqua, temos o relato advindo de
um outro lugar de enuncião, diferente daquele utilizado por Castro Alves: o do poo do
navio. É deste lugar de enunciação distinto que a personagem situa sua tristeza e lamenta
sua liberdade tolhida. A terra natal é recuperada atras de recordações marcantes num
momento do romance em que a personagemlio, escravo, comemora sua liberdade
conquistada através da alforria. O relato da personagem Susana vem justamente para
questionar essa liberdade. Isso nos lembra o que diz o historiador Luís Felipe de Alencastro:
Elo perdido da nossa história, esse sistema avassalador de mercantilização de
homens impede que se considere o tráfico negreiro como um efeito
secundário da escravidão, obriga a distinguir o escravismo luso-brasileiro de
seus congêneres americanos e impõe uma interpretação aterritorial da
formação do Brasil (2000, 42).
Em textos como os de Maria Firmina, a África é o mbolo da liberdade perdida
para aquela parcela da sociedade que foi maciçamente desonrada e negada. E que, apesar de
tudo que ocorreu desde então, continua assim, perfazendo o caminho de marginalização e
excluo demarcada pelo tráfico negreiro e a escravidão. A dspora africana é retomada
nesse trecho escrito no século XIX, trazendo à tona a desterritorialização dos povos
africanos e se mostrando uma importante representação para entendermos o presente
contexto de discriminação étnica no Brasil. Maria Firmina nos mostra, assim, a linha
42
diaspórica que outros autores afrodescendentes continuarão escrevendo, como acontece
com Conceição Evaristo e Ana Maria Goalves.
Em seu recente romance de 951 ginas, Um defeito de cor, Ana Maria narra a
história de Kehinde, desde sua infância no reino de Daomé, na África, onde nasceu,
passando pela travessia no navio negreiro rumo à Bahia, cidade na qual viveu a maior parte
da vida. Nessa narrativa, mescla de ficção e realidade, a travessia ganha importante espaço
no capítulo um e nos subcapítulos “A partida”, “A viagem”, quando Kehinde e sua ir
mea Taiwo foram capturadas para serem presenteadas a brancos brasileiros e sua avó,
para segui-las, entrega-se aos comandantes do navio. A partida é narrada de forma
minuciosa, todos os detalhes do navio negreiro são enfatizados através do ponto de vista de
uma menina africana, que, assustada, temia por sua vida e pela vida de sua avó e de sua
irmã. O porão é descrito como um espaço muito apertado, extremamente pequeno e, em
seguida, ao narrar sobre a viagem, temos um relato assombroso das crueldades sofridas
pelos negros escravos:
Durante dois ou três dias, o dava pra saber ao certo, a portinhola no teto
não foi aberta, ninguém desceu ao porão e estava quase impossível respirar.
Algumas pessoas se queixavam da falta de ar e do calor, mas o que
realmente incomodava era o cheiro de urina e de fezes. A Tanisha descobriu
que se nos deitássemos de bruços e empurrássemos o corpo um pouco para a
frente, poderíamos respirar o cheiro da madeira do casco do tumbeiro. (...)
Quando não conseguíamos mais ficar naquela posição, porque dava dor no
pescoço, a minha avó dizia para nos concentrarmos na lembrança do cheiro,
como se, mesmo de longe e fraco, ele fosse o único cheiro a entrar pelo nariz
(...)”. (Gonçalves, 2006, 48)
Depois de perder a irmã e a avó, além de outros companheiros de viagem, a
narradora chega à Ilha dos Frades, em seguida à Ilha de Itaparica, onde trabalhará como
escrava durante anos, vivendo e presenciando inúmeras tragédias cometidas pelos donos
de escravos. Vemos como a narrativa de Ana Maria Gonçalves complementa a de Maria
43
Firmina e confirma nosso ponto de vista a respeito da literatura afro-brasileira e suas
marcas.
Outra marca dessa literatura é a presença da história coletiva vinculada à história
individual está presente também no poema Vozes-Mulheres”, de Conceição Evaristo,
epígrafe deste texto, que transcrevo abaixo:
VOZES MULHERES
A voz de minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoou versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz da minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
44
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
(Cadernos Negros 13, 32-33)
No poema aqui transcrito, a voz feminina e afrodescendente utiliza a figura do
navio para recuperar a memória ancestral. Na primeira estrofe, o eu-lírico recorre à voz
da bisavó; ao longo do poema, o recuperadas também as vozes da avó, da mãe, toda a
linha ancestral feminina até chegar à própria voz que “ecoa versos perplexos com rimas
de sangue e fome”. Num traçado familiar, o eu-lírico recupera, portanto, a memória
diaspórica, que começa com o navio negreiro, passa pela obediência obrigatória aos
“brancos donos de tudo” e chega ao cotidiano da favela, remetendo-nos ao sangue e à
fome que deságuam na voz da esperança representada pela filha que ecoará, segundo o
eu-lírico, a “vida-liberdade”. A errância das vozes ancestrais metaforiza as passagens
temporais desde os tempos da escravidão até os dias atuais para explicar as
conseqüências da diáspora na vida das mulheres negras.
Conceição Evaristo retoma a diáspora em questão em seu romance Ponciá
Vicêncio. A protagonista que nome ao livro é descendente de escravos. O sobrenome
Vicêncio provém do antigo dono da terra e representa a superioridade branca sobre o
povo da região. A marca da escravidão presente nesse sobrenome faz com que a
personagem ache o nome “vazio, distante (PV, 27) e não se identifique com ele,
conforme pode ser percebido na seguinte passagem: “era tão doloroso quando grafava o
acento. Era como se estivesse lançando sobre si mesma uma lâmina afiada a torturar-lhe
o corpo. (...) Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor, de um tal
coronel Vicêncio” (Idem). O estranhamento que o sobrenome causa a Ponciá indicia a
herança da resistência africana e a procura da menina desde criança por suas raízes. O
sobrenome de procedência do senhor branco, escravocrata, é um fato recorrente nas
45
famílias afrodescendentes. Entretanto, a origem do prenome da personagem, Ponciá,
com o qual ela também o se identificava, permanece uma incógnita. Possivelmente
vem do nome Pôncio”, que também origem a “Ponciano”. Segundo alguns
dicionários de origem de nomes, Pôncio, além de nos remeter à figura bíblica de Pôncio
Pilatos, tem procedência latina (Pontius) ou grega (póntios). No caso da origem grega,
significa “vindo do mar”, na latina seria o “original de Ponto, pequeno reino da Ásia
Menor”. A origem latina do nome não nos remete ao passado da protagonista, porém
sua origem grega, “vinda do mar”, lembra-nos a triste história da diáspora que aqui
comentamos a qual pode simbolizar, portanto, a rejeição da menina ao nome: seria a
metáfora para sua recusa ao triste passado escravocrata, especialmente a viagem de
navio.
o nome do irmão de Ponciá, Luandi, remete-nos a Luanda, capital de Angola,
mais uma marca da cultura africana no romance. Maria, nome da mãe de Ponciá e
Luandi, tem origem hebraica e significa “mulher soberana”, pessoa forte e serena. A
imagem cristã de Maria nos confirma o significado encontrado. Para a personagem
Maria Vicêncio, as características do nome também se encaixam, sendo a mãe aquela
que acompanha, mesmo de longe, a formação de Ponciá e que espera com ansiedade e
sabedoria o reencontro com ela e o irmão. Sabedoria revelada também diante dos
conselhos de Nêngua Kainda. Todavia, poucos personagens têm nome no livro. Outro
que se destaca é Nestor, o nome do soldado negro que acolhe Luandi em sua chegada à
cidade grande. Seu nome está associado à inteligência e ao sucesso, exatamente as
características atribuídas por Luandi ao amigo.
Segundo Frye :
O elemento essencial da trama, na estória romanesca, é a aventura, o que
significa que a estória romanesca é naturalmente uma forma consecutiva e
46
progressiva. (...) Podemos denominar essa aventura principal, o elemento
que dá forma à estória romanesca, de procura (1957, 185).
Vemos que em Ponciá Vicêncio esse elemento se distingue da concepção de Frye.
A procura da protagonista é mais ampla, se configura não apenas como uma aventura, mas
como uma busca individual, por si mesma e coletiva. A começar pelo nome e sobrenome
da protagonista, com os quais ela não se identifica. Essa procura de Ponciá vai se
confirmar durante todo o romance como uma importante metáfora da diáspora que nos
remete diretamente à história dos ancestrais de Ponciá e se constitui um recurso estilístico
que parodia a literatura canônica, especialmente o significado da procura nos tradicionais
Bildungsromane. Afinal, no romance de formação tradicional, temos a viagem como um
topos importante na construção do caráter dos heróis. A maioria desses clássicos
protagonistas sai de casa em busca de si mesmos numa viagem que os separa da família e
constitui para seu amadurecimento. A personagem de Goethe, Wilhelm Meister, por
exemplo, junta-se a um grupo mambembe de teatro e sai à procura do próprio aprendizado,
deixando para trás a família e a cidade natal. Acontece o mesmo com as personagens dos
Bildungsromane femininos estudados por Cristina Pinto (1990) como Amanhecer, de
cia Miguel Pereira e As três Marias, de Raquel de Queiroz; também com A hora da
estrela, de Clarice Lispector. Nessas narrativas, as protagonistas abandonam o ambiente
provinciano em que vivem à procura de seus anseios existenciais e intelectuais.
No Bildugnsroman feminino de Clarice, Macabéa também perfaz um ciclo de
formação. Sua história começa após sua migração. Ela, que foi criada com a tia beata e má,
também escapou da prostituição e não se lembra ao menos os nomes dos pais, chega ao
Rio de Janeiro repleta de ilusões, as quais se desfazem com um atropelamento trágico e
lírico ao mesmo tempo. O narrador do último romance de Clarice Lispector, Rodrigo S.
M., afirma que não queria inventar “originalidades”: “assim é que experimento contra os
47
meus hábitos uma história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e chuva
caindo” (Lispector, 1998, 13). Solange Ribeiro de Oliveira, em seu artigo “Clarice
Lispector e o repúdio ao exotismo em A hora da estrela”, afirma que esse romance
“poderia ser lido como a tentativa dos dois sertanejos, Macabéa e Olímpio, de passarem de
meros objetos a sujeitos de sua própria vida” (1987, 860). A autora ainda enfatiza no artigo
em questão que a história de Macabéa é uma paródia do romance regionalista e social dos
anos 30 e, para mim, uma paródia também do romance de formação.
É sobre essa tentativa de passagem da personagem de objeto a sujeito que falamos
aqui em relação também à protagonista do livro de Conceição. Ponciá vai em busca de dias
melhores na cidade, mas acaba desterritorializada numa favela, vegetando ao lado de um
marido que não a compreende. O segundo romance de Conceição Evaristo é Becos da
Memória (2006). Num misto de testemunho e ficção, a autora volta à infância para contar
sobre a vida e os sentimentos dos moradores de uma favela que seria desmanchada e seus
habitantes deslocados (desfavelizados) no final da década de 60. O tema, portanto, além de
estar presente nos dois romances da autora, é parte de sua biografia. Segundo os
pesquisadores Alba Zaluar e Marcos Alvito (2006), as favelas surgiram em decorrência de
tentativas de embranquecimento das grandes cidades, com o objetivo de que estas se
assemelhassem às européias. É nesse lugar marginalizado que a protagonista do romance
de Evaristo se encontra durante sua formação, espaço que para ela se configurava como
um não-lugar. Ainda sobre esses locais, os autores citados acima afirmam:
a favela ficou também registrada oficialmente como a área de habitações
irregularmente construídas, sem arruamentos, sem plano urbano, sem
esgotos, sem água, sem luz. Dessa precariedade urbana, resultado da pobreza
de seus habitantes e do descaso do poder público, surgiram as imagens que
fizeram da favela o lugar da carência, da falta, do vazio a ser preenchido
pelos sentimentos humanitários, do perigo a ser erradicado pelas estratégias
políticas que fizeram do favelado um bode expiatório dos problemas da
48
cidade, o outro”, distinto do morador civilizado da primeira metrópole que
o Brasil teve (Zaluar; Alvito, 2006, 8).
Em um cenário semelhante ao descrito acima, a personagem Ponciá confirma
sua descendência escrava na vida difícil que leva, nos sonhos apagados pela
discriminação e pela marginalização que tanto ela quanto os outros da sua família
sofrem. A personagem passa, então, pelo que Orlando Patterson (1982) denomina
“morte social”, ou seja, a invisibilidade diante da sociedade. Sua condição social e
cultural continua, portanto, sendo regida pelo passado africano. Sua trajetória do espaço
rural para o urbano representa sua condição diaspórica. Assim, mesmo que a viagem
feita pela menina em sua procura não seja a viagem transnacional citada pelos
estudiosos da diáspora, ela se constitui numa metáfora desta, por isso a considero uma
espécie de “diáspora interna”, ou seja, a viagem de Ponciá e de tantos brasileiros dentro
do seu próprio país em busca de uma vida melhor. A passagem em que a menina faz a
viagem de trem para a cidade confirma essa associação:
O inspirado coração de Ponciá ditava futuros sucessos para a vida da moça.
A crença era o único bem que ela havia trazido para enfrentar uma viagem
que durou três dias e três noites. Apesar do desconforto, da fome, da broa de
fubá que acabara ainda no primeiro dia, do café ralo guardado na garrafinha,
dos pedaços de rapadura que apenas lambia, sem ao menos chupar, para que
eles durassem até ao final do trajeto, ela trazia a esperança como bilhete de
passagem. Haveria, sim, de traçar o seu destino (PV, 35).
A personagem resolve migrar para a cidade depois da morte do pai. Ela se
mostra aborrecida e indignada com a vida na vila, com o trabalho artesanal com o barro,
com a exploração dos brancos sobre este trabalho e sobre o trabalho nas plantações feito
pelos homens: “cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para
amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se a todo dia.
Ela acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida nova” (2003, 32).
49
É esse desejo que move também outros protagonistas de romances de formação, embora
a denúncia da desigualdade social feita pela escritora mineira e que se faz presente nos
pensamentos da menina adolescente negra marque sua procura não só por sua formação
individual, como acontece com os outros heróis romanescos da literatura clássica
mundial. O narrador ressalta ainda que nenhum dos parentes da menina “havia ousado
tamanha aventura” (PV, 34), fortalecendo a coragem da protagonista mesmo diante de
sua condição de classe e gênero, que, sabemos, são fatores complicadores num país com
preconceitos tão arraigados. Em prefácio à edição brasileira de O Atlântico Negro, aqui
citado, Paul Gilroy, discutindo a opressão étnica, afirma que:
As diferenças de gênero se tornam extremamente importantes nesta operação
anti-política, porque elas são o signo mais proeminente da irresistível
hierarquia natural que deve ser restabelecida no centro da vida diária. As
forças nada sagradas da bio-política nacionalista interferem nos corpos das
mulheres, encarregados da reprodução da diferença étnica absoluta e da
continuação de linhagens de sangue específicas. A integridade da raça ou da
nação portanto emerge como a integridade da masculinidade (2001, 19).
Essas “forças nada sagradas” se confirmam no romance através dos sete abortos
de Ponciá, da impressão que a menina tinha sobre os homens, sempre mudos, da
vontade, e ao mesmo tempo do medo, de passar por debaixo do arco-íris acreditando
que mudaria de sexo, da violência sofrida em casa, quando apanhava do marido.
Quanto aos abortos que a protagonista sofreu, percebemos a difícil carga recebida pela
mulher de reproduzir a “diferença étnica” citada por Gilroy e a “continuação de
linhagens de sangue”. Ponciá tem sete abortos. Sabe-se o quanto este número é
enigmático e carregado de símbolos em muitas culturas. A literatura se vale sempre
dessa simbologia. Segundo Chevalier e Gheerbrant, “o número 7 é o símbolo universal
de uma totalidade, mas de uma totalidade em movimento ou de um dinamismo total
(2005, 827, grifo do autor). Assim, o número representa o tempo e suas mudanças, seus
50
ciclos. Ainda para os autores, o sete encerra uma ansiedade por indicar a passagem do
conhecido ao desconhecido, um ciclo concluído sem que se saiba o que virá depois. Daí
o enigma que acompanha o número. Para algumas culturas, o número não significa um
ciclo concluído, mas uma renovação positiva e pode significar também fertilidade. Isto
não é o que vemos em Ponciá Vicêncio. No caso dos abortos da protagonista, a
simbologia do número nos leva aos ciclos vividos pela personagem, mas ao mesmo
tempo nos revela mais um fracasso em sua formação. O ciclo da maternidade, vivido
por Ponciá, é interrompido. Ela o consegue reproduzir, dar continuidade a sua
linhagem. O marido, por causa dos fracassos, fica mais distante e mais violento. O peso
das forças da diáspora, como afirmou Gilroy, pesa sobre ela. Segundo Sommer (2004),
os romances de fundação na América Latina trazem heróis e heroínas formadores de
casais idealizados, cujos jovens eram belos e castos, perfeitos para uma união fértil e
produtiva, edificadora de uma “grande” e nobre” nação. Ideais totalmente opostos aos
destinos das personagens da contra-narrativa de Conceição Evaristo, cuja protagonista
não se realiza como esposa ee.
Outra personagem que está sob o esse peso” das forças diaspóricas é Bilisa,
prostituta por quem Luandi, apaixona-se. A moça, que corresponde ao amor do rapaz,
chega a fazer planos de abandonar a vida marginalizada e se casar com ele, mas seus
sonhos são interrompidos por Negro Climério, um cafetão que a assassina friamente
após saber de seus planos com o irmão de Ponciá. A propósito, a personagem Negro
Climério
7
tem importante presença na narrativa. Não pelo assassinato que comete,
mas também pela realidade que representa. Carregando no nome sua cor, a personagem
7
Climério é também o nome de um dos acusados do atentado na rua Toneleros, em 1954, contra Carlos
Lacerda. Climério Euribes de Almeida era membro da guarda pessoal do então presidente Getúlio Vargas.
O guarda, assim como a personagem de Conceição Evaristo, era negro. Logo após o atentado, uma crise
se instala no país e Getúlio se suicida. Outra aproximação possível entre o Climério da vida real e o da
ficção seria o fato de ambos exercerem ofícios parecidos: um guarda o presidente, outro guarda as
prostitutas; ambos cometem assassinatos e são responsáveis, um por uma crise política e o outro pelo fim
dos sonhos de Luandi.
51
é descrito como alguém que era protetor das prostitutas do lugar, sendo uma delas
Bilisa. As mulheres tinham que repartir o dinheiro que ganhavam com a dona da casa
a cafetina e com o “protetor” delas. Antes da morte de Bilisa, o narrador nos avisa
que Climério estava sabendo das intenções da mulher com Luandi e por isso o negro
olhava “de maus modos” para o rapaz e não fazia nada contra ele porque Luandi
trabalhava na delegacia (PV, 114). O ódio do guarda-costas” por perder uma de suas
mercadorias mais cobiçadas motiva o assassinato de Bilisa. Assim, o sonho dela de ficar
livre das explorações de Climério e da cafetina, e de viver um grande amor é
interrompido. Climério representa uma figura surgida como conseqüência da diáspora e
da colonização: o capataz, o capanga, aquele que faz o serviço sujo contra os
semelhantes étnicos. Como assassino de Bilisa, é o verdadeiro capitão-do-mato, nesta
outra forma de mercantilização do corpo: a prostituição.
A “integridade da masculinidade” citada por Gilroy emerge no romance de
Evaristo nas histórias das personagens Ponciá e Bilisa. Daí também discutirmos a
ausência de protagonistas femininos nos romances de formação. Cristina Ferreira Pinto
(1990) afirma que o Bildungsroman retrata o processo em que a personagem aprende a
ser “homem”. A autora confirma esse pensamento valendo-se de várias definições sobre
o gênero em que sempre as personagens o tratados no masculino, como a palavra
male para se referir ao herói, negando a possibilidade de que este pudesse ser uma
mulher, uma heroína. Conforme dito na introdução, Cristina Pinto verificou ainda que
mesmo nos romances de formação protagonizados por mulheres, elas sempre tendiam a
buscar pelo casamento e pela maternidade. Isso não acontece em PoncVicêncio. As
personagens femininas de Conceição Evaristo não passam por esse “aprendizado”
masculino ou sequer têm seu destino fadado apenas ao casamento e à maternidade. Ao
contrário, percebemos nelas outro tratamento narrativo dado pela autora. Maria
52
Vicêncio é quem administra o lar na falta do marido que trabalha na lavoura. ngua
Kainda é a sacerdotisa, mulher respeitada por todos na vila. Bilisa perfaz seu caminho
de dificuldades sozinha, longe da família e não se esmorece diante dos obstáculos, ao
contrário, lida com eles e planeja sonhos a partir de seu encontro com Luandi. E Ponciá
tem toda sua procura calcada numa solidão regida pela herança ancestral e, apesar de se
casar, não consegue ter filhos.
Sobre a errância diaspórica como paródia da procura romanesca, podemos
atrelar a teoria de Frye (1957) à busca de Ponciá. Entretanto, muitas são as diferenças
entre a procura da menina negra e os heróis dos Bildungsroman tradicionais,
especialmente Wilhelm Meister, de Goethe. No caso de Ponciá, essa procura, que
envolve toda sua formação, é permeada por suas sofridas viagens. Segundo Adélcio
Cruz em seu artigo “Ponciá Vicêncio para além das fronteiras: etnia, gênero e classe”:
A estrutura frasal escolhida por Conceição Evaristo retoma as práticas
discutidas por Gay Wilentz (1992). Segundo o artigo de Wilentz, os
escritores do Caribe decidiram o utilizar as formas privilegiadas pelo Alto
Modernismo. Tal escolha não ocorre por mera incapacidade de lidar com
estes modelos e sim porque eles são insuficientes para transcrever as
linguagens e identidades não-européias. (...) Estes artistas, ao reformularem a
linguagem para a coloquialidade pertencente ao cotidiano da diáspora,
propiciam a oportunidade de conhecimento daquelas etnias que normalmente
não poderiam se pronunciar no interior da literatura canônica. Esta prática
ainda de acordo com Wilentz propicia a criação de uma “antinarrativa” e de
uma “linguagem anti-modernista” (2005, 25-26).
Acreditando nessa “antinarrativa”, percebemos que as metáforas da viagem no
romance de Evaristo confirmam essa afirmação. Quanto à linguagem, o lirismo usado
pela escritora mesmo nos momentos trágicos e violentos do livro é uma característica
que insere o romance nessa linguagem anti-modernista. A presença de regionalismos e
costumes mineiros também confirma isso. Mas o “cotidiano da diáspora” é
53
explicitamente expresso no livro através da migração de Ponciá, como a de muitos
brasileiros, para a cidade grande.
Após migrar e juntar o dinheiro suficiente para comprar um quartinho na
periferia da cidade, Ponciá regressa à vila Vicêncio em busca de sua mãe e de seu
irmão. Depois de refazer a viagem desconfortável e dificultosa e andar horas e horas a
a o povoado, ela encontrou apenas a casa vazia, pois sua mãe e irmão haviam
migrado também. Esta mesma decisão foi tomada por muitos outros moradores da vila
Vicêncio. Na cena do livro, quando Ponciá reflete sobre seus sete abortos, ela lembra de
sua infância pobre e diz que o gostaria que os filhos repetissem a vida da mãe. Nessa
recordação, Ponciá, na voz do narrador, nos revela em seu pensamento que essa pobreza
era a condição de todos no povoado. As conseqüências da escravidão persistiram nos
descendentes de escravos da fazenda dos Vicêncio. Nessa reflexão, a personagem acaba
admitindo que vir para a cidade era a solução encontrada por muitos diante da falta de
perspectiva na vila: “os negros eram donos da miséria, da fome, do sofrimento, da
revolta suicida. Alguns saíam da roça, fugiam para a cidade, com a vida a se fartar de
miséria, e com o coração a sobrar esperança” (PV, 82, grifo meu). A escolha do verbo
“fugir” mais uma vez traz a metáfora diaspórica para o texto de Conceição Evaristo.
Embora muito diferentes, a migração dos africanos, personalizados no romance
de Evaristo, se difere daquela que acontece com seus descendentes ainda hoje. Enquanto
a primeira viagem levava os africanos da condição de liberdade para a de escravizados,
a segunda é marcada pela fuga da condição de mercadoria em direção à liberdade, em
busca da reconstrução da identidade perdida. A procura da personagem simboliza isso.
A condição herdada de seus ancestrais e entranhada na menina negra desde antes do seu
nascimento, a ela a coragem de mudar de vida, de tentar aquilo que lhe foi negado e
que foi duramente tirado de seus ascendentes.
54
De volta à cidade grande, no mesmo trem, a personagem tinha os sentimentos
confusos, sua procura não terminara, além de se encontrar, precisava agora encontrar os
seus: “era preciso, então, continuar a viagem e descobrir onde eles tinham feito nova
moradia. (...) Estava só, estava vazia. A viagem lhe pareceu mais longa e mais dolorosa
do que a primeira” (PV, 64). As viagens de Ponciá confirmam a indeterminação e o
conflito que sempre são gerados pela diáspora. E sua permanência na cidade grande,
vivendo em más condições, confirma a marginalização comum aos povos da diáspora
africana nas Américas, especialmente no Brasil. Ponciá vive isso se definhando aos
poucos. Sua mudez constitui uma espécie de recusa e, ao mesmo tempo, de retomada
desse passado afrodescendente. Ser o Outro naquele contexto parece torná-la ainda mais
distante de sua procura e mais alijada da sociedade em que vivia, essa fase seria seu
ágon, a parte conflituosa de sua procura. Procura que passa também pela história de
seus ancestrais, negros trazidos da África e seus descendentes, como Vicêncio. O
pathos, sua luta de morte, não acontece como nos romances europeus, sua morte não é
física, mas social. Para não permitir que esta se concretize, a personagem luta contra a
marginalidade e contra os desencontros com sua família e consigo mesma.
Para o sociólogo Orlando Patterson (1982, 05), a escravidão substituía a morte
causada pela guerra. A condição escrava não eliminava a perspectiva de morte, esta era
suspensa quando o escravo se aquiescesse de sua completa falta de poder. E como o
escravo não possuía nenhuma existência reconhecida socialmente pois estava sob o
poder do seu senhor ele se tornou uma “não-pessoa”, uma pessoa socialmente morta.
Ponciá e muitos outras personagens da literatura afro-brasileira vivem essa “morte
social” num período bem posterior à Abolição, que o apagou as mazelas do regime
escravocrata. Essa marginalidade social também nos lembra o sparagmós da teoria do
mythos da procura (Frye, 1957), o despedaçamento da protagonista, a interrupção dos
55
seus sonhos e a sensação no leitor de que tudo dará errado com a personagem. Esta
sensação é desencadeada, principalmente, quando Ponciá se instala na favela após se
desencontrar da mãe e do irmão. A descrição do cenário onde ela estava nos a
dimensão de sua desorganização interior e falta de perspectivas:
Ponciá Vicêncio correu vagarosamente os olhos pelo cômodo onde
moravam. O avolumava-se por cima do armário velho. Pelos caibros do
telhado acumulavam-se teias de aranhas e picumãs. As trouxas de roupas
sujas cresciam dias e dias pelos cantinhos do quarto. As folhas de jornal, que
forravam prateleiras do armário, estavam amareladas pelo tempo e roídas
nas pontas pelos ratos e baratas. Toda noite ela contemplava o desleixo da
casa, a falta de asseio que a incomodava tanto, mas faltava-lhe coragem para
mudar aquela ambiência (PV, 22).
A procura de Ponciá se interrompe e se torna mais difícil nesse ambiente de vida
marginalizada na cidade grande. A coragem lhe faltava para mudar o ambiente sujo do
barraco e para prosseguir em sua busca. Sua migração, sua diáspora, assim como a de
seus ancestrais, era dura e cruel. Na página seguinte à descrição citada vemos o
desânimo de Ponciá diante de tanta frustração: “Ponciá havia tecido uma rede de sonhos
e agora via um por um dos fios dessa rede destecer e tudo se tornar um grande buraco,
um grande vazio” (PV, 23). Seu sparagmós, portanto, está explícito neste momento de
desalento. Ao contrário de Meister, herói goetheano do romance de formação
tradicional europeu, a protagonista do romance de Conceição Evaristo não tem mentores
fortes como os da “Sociedade da Torre” para guiá-la. Sua condição de gênero reforça
seu despedaçamento ao apanhar do marido que não aceita a condição ausente da mulher.
Os guias de Ponciá são outros: seus ancestrais e sua herança afrodescendente, que a
acompanharão em sua formação, em sua procura.
No romance de Conceição Evaristo vemos ainda a morte em seu sentido literal,
também o pathos se faz presente em diversos momentos. Talvez o mais chocante deles
56
seja a tragédia que envolveu o avô da protagonista. Vô Vicêncio assassina a própria
mulher numa tentativa de preservar a família da morte social, que já viviam na condição
de escravos dos Vicêncio e da morte social futura. A tentativa de suicídio de
Vicêncio pode ser lida como um desejo de poupar a si mesmo e aos seus do sofrimento
a que estariam sujeitos. A autora do livro acrescenta ainda, em entrevista anexa a este
trabalho, que o a auto-mutilação da personagem o faz ser reconhecido pela ausência do
seu braço. O narrador nos diz que o velho escravo só o matou também o filho, pai de
Ponciá, porque este fugiu à procura de socorro. Vô Vicêncio intuitivamente previa o que
ia acontecer aos escravos abolidos e seus descendentes. Afinal, o próprio filho, liberto
pela lei do Ventre Livre, seguia sob o mesmo estigma, servindo de pajem ao filho do
proprietário das terras, sofrendo as humilhações das quais trataremos no próximo
capítulo. Os choros e risos do velho escravo nos remetem ao sparagmós da teoria de
Frye (1957), que no caso do negro Vicêncio é o despedaçamento literal do
personagem. Seu braço mutilado permeia toda a narrativa na memória e no corpo de
Ponciá, simbolizando o despedaçamento diaspórico de seus ancestrais.
O irmão de Ponciá vai para a cidade em busca de seus sonhos: juntar dinheiro e
achar a irmã que há muito havia partido. Sua viagem também marca a diáspora daqueles
que, desterritorializados, perpetuam as histórias do navio negreiro. Luandi chega à
cidade “sem eira nem beira. Tinha perdido pelo caminho o endereço da irmã. Chegou
num dia de chuva e frio. Trazia muita fome também” (PV, 69). Após arrumar emprego
numa delegacia e conhecer o negro soldado Nestor e a prostituta Bilisa, faz seu regresso
ao povoado em busca de notícias da irmã e da mãe. Vestido com a farda do soldado
Nestor para impressionar os parentes, o rapaz enfrenta todo o difícil percurso de volta à
vila onde nasceu. Da mesma forma que Ponciá, não encontra a mãe e a ire retorna à
cidade grande refazendo o caminho traçado por seus ascendentes e pelas mulheres da
57
sua família. O desencontro mais uma vez aparece no romance como metáfora do
conflito diaspórico.
Outra personagem que embarca no “trem negreiro”
8
em busca dos filhos é Maria
Vicêncio. Em uma cena do livro, o narrador nos diz que ela “sabia que, por mais que
relutasse, um dia a cidade também faria parte de sua travessia. Não sentia desejo algum
pela aventura da viagem. Se a sua vida era a da terra, em que ela vivia, o que faria longe
de lá?(PV, 108, grifo meu). A diáspora parece, então, estar intrínseca à família, uma
espécie de saga, de marca, de estigma, desde, sabemos, muitas gerações. A viagem de
Maria Vicêncio ocorre semelhante a dos filhos:
Quando o trem, depois de intermináveis dias e noites, parou na estação,
Maria Vicêncio esticou as pernas com dificuldade. Ficara todo tempo da
viagem encolhida com a trouxa no colo, rezando suas orações. Sentiu a
bexiga pesada, estava com vontade de urinar, mas o medo não permitira que
ela se levantasse e fosse ao banheirinho do trem ou mesmo dos lugarejos em
que aquina parava (PV, 118).
Como ler as passagens acima e não nos lembrarmos dos porões do navio e da
travessia sobre o Atlântico já aqui tão comentados? O desfecho do romance é o regresso
diaspórico da família ao povoado, o anagnórisis (Frye, 1957) do romance de Conceição
Evaristo. Depois de se reencontrarem na estação de trem, marca de todos os
desencontros, ponto de partida e chegada dos três personagens entre tantas promessas,
sonhos e procuras, parece mesmo que aquela estação é a metáfora da vida
9
da família
Vicêncio, de sua história, de sua memória diaspórica. Ao reencontrar a filha depois de
tanto tempo, Maria Vicêncio revivia outras cenas, e recuperava, naquele momento, toda
8
Parodiando a expressão avião negreiro” utilizada pelo cantor e compositor Itamar Assunção em
entrevista à TV. Itamar, paulista bisneto de escravos angolanos, em turnê pela Europa, foi convidado a
morar na Alemanha. Diante do convite, disse que não embarcaria nesse “avião negreiro”. O músico era
conhecido por “maldito” por recusar freqüentemente aparições na mídia, a qual criticava, e por investir em
canções com temas menos comuns, de crítica social e de tom satírico. Sua expressão metafórica nos
lembra as viagens diaspóricas de seus antepassados, assim como os de Ponciá Vicêncio.
9
Lembramos aqui a canção “Encontros e despedidas”, de Milton Nascimento.
58
diáspora vivida pelos ancestrais africanos, pelos negros da vila Vicêncio, pelo avô de
Ponciá e pela própria filha, que no ir e vir do tempo voltava para ela. Como a mãe dizia:
“Para ela, não! A menina nunca tinha sido dela. Voltava para o rio, para as águas-mãe”
(PV, 128).
Assim, a procura de Ponciá termina numa clara referência aos orixás africanos,
em especial a Oxum, que é a orixá das águas doces e que, em uma das histórias que a
envolve, é descrita como uma mulher que procurava ter sucesso na vida. Em outra
história, que narra a criação do mundo, ela usa seu poder sobre a fecundidade para
esterilizar as mulheres dos orixás masculinos quando estes não queriam dividir o poder
com elas. Assim, Oxum os castigava até que eles incluíssem as mulheres nas reuniões e
na divisão de poder. Aqui lembramos dos abortos de Ponciá e da afirmação de Frye
(1957) de que o herói da estória romanesca está associado à “primavera, a alvorada, a
ordem, a fertilidade, o vigor e a juventude” (1957, 186, grifo meu). Essa clara referência
à mitologia africana feita pela autora é uma marca forte no romance que, somada a
outras, justifica sua classificação como afro-brasileiro. A afirmação do autor de
Anatomia da Crítica confirma mais um traço paródico do Bildungsroman negro de
Conceição Evaristo. Outra referência à mitologia africana presente neste último capítulo
que narra o encontro de Ponciá é a presença do arco-íris, alusão a Oxumaré e ao angorô,
que discutirei melhor no próximo capítulo.
O romance de Evaristo, situado no século XX, traz o emblema do Atlântico
negro como o trouxe também Maria Firmina no século XIX e outros autores citados
aqui. Ela mesma, Conceição, traz em sua biografia a história da diáspora. A escritora
mineira, assim como Carolina Maria de Jesus (célebre autora de Quarto de Despejo)
saíram de seus lugares de origem para cidades maiores, repetindo a história de Ponciá e
de tantos outros afrodescendentes que confirmam a afirmação de Gilroy:
59
A diáspora africana pelo hemisfério ocidental lugar aqui à história de
futuras dispersões, tanto econômicas quanto políticas, pela Europa e pela
América do Norte. Estas jornadas secundárias também estão associadas à
violência e são um novo nível da disjunção diaspórica, e não apenas
reviravoltas ou impasses (2001, 21).
Podemos dizer então que canções como as do grupo “O Rappa”
10
e textos como
Ponciá Vicêncio, Úrsula, Um defeito de cor, os poemas de Solano Trindade, dentre
outros textos de autores afro-brasileiros constituem uma contra-narrativa na medida em
que enfrentam o desafio de reconstruir sua história de maneira crítica e denunciar as
conseqüências reais dessa história. As metáforas usadas por estes autores para retomar o
tema da diáspora africana e a desterritorialização que marcou e ainda marca os
afrodescendentes no Brasil, estão, portanto, longe de serem apenas “reviravoltas ou
impasses”, como afirma Gilroy. Mais do que isso, constituem uma janela para fazer
emergir essa narrativa que serve, então, como espelho de um mundo que ainda se
mostra cego diante das imagens vindas da memória diaspórica afro-brasileira.
No caso de Ponciá Vicêncio, a autora descontinua e rasura o romance de
formação (através da apropriação do gênero Bildungsroman) trazendo a viagem como
símbolo da história afro-brasileira e a errância da protagonista como metáfora da busca
identitária e étnica. Afinal, Ponciá percorre um caminho em sua formação muito
diferente daquele feito pelos heróis masculinos dos Bildungsromane; carrega com ela o
legado deixado pelo aex-escravo que, entre choros e risos, resistiu ao abuso mesmo
após a abolição. Enfim, sua busca não é apenas por sua formação, mas pela história
ancestral diaspórica que teve como signo o navio negreiro e as conseqüências do que ele
trouxe.
10
O grupo tem uma história musical de letras que denunciam o racismo e a violência no Brasil. Uma das
canções mais marcantes de Marcelo Yuka, tem como título “Todo camburão tem um pouco de navio
negreiro”, presente no primeiro CD do grupo, de 1994.
60
61
CAPÍTULO 3
A MEMÓRIA COMO FORMAÇÃO DE PONCIÁ E
MOTOR DA NARRATIVA
Ponciá gastava a vida em recordar a vida.
(PV, 93)
62
Neste capítulo analisamos como a memória diaspórica está presente no romance e
como os tros da memória coletiva e individual da protagonista e de outros personagens são
essenciais na construção do romance de formação feminino e negro da autora mineira.
Através da epígrafe deste capítulo percebemos o quanto a memória é fator importante
na construção do Bildungsroman de Conceição Evaristo. Da primeira à última página, a memória
conduz os pensamentos da protagonista e dos outros personagens, além de guiar sua vivência, tão
representativa daquela de seus antepassados. Na primeira página do livro, Ponciá mostra-se
envolta em recordões da infância, de quando pensava que, ao passar pelo arco-íris, mudaria de
sexo. O arco-íris em questão é, na mesma página, denominado “angorô palavra africana de
origem banto que representa um inkice correspondente a Oxumaré na não ketu e no
candomb.
11
Ou seja, a memória individual da protagonista es diretamente ligada à memória de
seus ascendentes africanos. Para Ricoeur (2000), a memória, diferente da imaginão, refere-se à
realidade anterior, às recordões do passado, que passam pelas recordações individuais e
coletivas. Segundo Maria José Somerlate Barbosa (2003), se a memória é a via de acesso de
Ponciá ao seu autoconhecimento, é também através dela, do que a voz narrativa constrói, que s
leitores penetramos no âmago das suas emoções e passamos a conhecer a história pessoal de cada
um” (PV, 6). Durante toda a narrativa, percebemos o atrelamento entre as experiências passadas
da protagonista e a experncia coletiva representada, principalmente, pela figura de seu avô,
Vincio, escravo que fica louco após matar a esposa, se mutilar e tentar matar os filhos diante da
amea de vê-los escravizados para o resto da vida. A semelhança entre Ponciá e o avô é, segundo
alguns personagens, uma marca da heraa que este lhe havia deixado.
Acontecimentos como a tragédia ocorrida com Vicêncio são comuns na
literatura afro.um exemplo de cena semelhante em Beloved (Amada, em português),
de Toni Morrison (1987). No romance, a escrava mata sua própria filha para o vê-la
11
Em entrevista anexa, Conceão afirma que a escolha da palavra de origem banto foi com a intenção de valorizar esta
cultura.africana, que predomina em Minas Gerais.
63
na escravidão. Quase o mesmo acontece no conto “Virginius”, de Machado de Assis
(2007). Nesse texto, Julião, um ex-escravo, também mata a filha, Elisa, para não a ver
desonrada e violentada sexualmente por Carlos, filho do dono da fazenda. Nos navios
negreiros inúmeras são as ocorrências de casos como estes. O filme Amistad, dirigido
por Steven Spilberg em 1997, tem uma forte cena do navio negreiro na qual assistimos a
uma mãe com um beno colo se jogar ao mar, ao se deparar com o açoitamento de
companheiros de viagem e dos maus tratos na tenebrosa passagem pelo Atlântico.
Histórias como estas, segundo Eduardo de Assis Duarte, formam uma “rede discursiva
pela qual se recupera a memória da dor quase sempre recalcada” (2006, 3). No primeiro
flashback da narrativa, encontramos Ponciá, já adulta, relembrando seus tempos de
menina, quando brincava no milharal e era feliz porque gostava de tudo” (PV, 9). O
mesmo arco-íris que trouxe boas lembranças à personagem a leva, em seguida, a
dolorosas recordações. Desta forma Conceição Evaristo constrói sua narrativa, toda
costurada pela memória individual e coletiva de seus personagens. Nos primeiros
capítulos é esse recurso que nos leva ao conhecimento do enredo, do passado de Ponciá
e dos seus.
Paul Ricoeur, relendo o fisofo Santo Agostinho, sublinha três traços do caráter
fundamentalmente privado da memória: o primeiro é a singularidade desta, ou seja, as
recordações pessoais são intransferíveis. Em segundo lugar, o autor enfatiza que na
memória reside o vínculo original da consciência com o passado, e acrescenta
Por esse traço, precisamente, a memória garante a continuidade temporal de
uma pessoa e, mediante esse rodeio, essa identidade cujas dificuldades e
perigos temos afrontado mais acima. Essa continuidade me permite remontar
sem ruptura o presente vivido até os acontecimentos mais distantes de minha
infância. Por um lado, as recordações se distribuem e se organizam em
níveis de sentido, em arquipélagos, eventualmente separados por precipícios;
por outro, a memória segue sendo a capacidade de percorrer, de remontar o
tempo, sem que nada proíba, a princípio, prosseguir, sem solução de
64
continuidade, esse movimento. No relato, principalmente, se articulam as
recordações no plural e a memória no singular, a diferenciação e a
continuidade. Assim, me remeto ao passado, à minha infância, com o
sentimento que as coisas ocorreram em outra época. É esta alteridade que,
por sua vez, servirá de entrave à diferenciação dos espaços de tempo que
procedem à história tomando como base o tempo cronológico. (Ricoeur,
2000, 129)
12
A “continuidade temporal” de Vicêncio é garantida, no romance, por sua
neta Ponciá, que carrega consigo as marcas da lembrança do avô, especialmente o modo
de andar, com um dos braços escondidos às costas e a mão fechada como se fosse cotó.
Embora o avô tivesse morrido quando Ponciá era ainda muito pequena, os primeiros
passos da neta, na infância, já lembravam o seu antepassado. Além disso, a menina,
artesã do barro, fez um boneco igualzinho ao avô, o que deixou sua e preocupada:
“ela era o pequena, tão de colo ainda quando o homem fez a passagem. Como, então,
Ponciá Vicêncio havia guardado todo o jeito dele na memória?” (PV, 19). Ao olhar para
o boneco, o pai de Ponciá reconhece seu próprio pai, inclusive na expressão de dor. O
boneco e as marcas físicas em Ponciá nos mostram o que Ricoeur expôs, acima, sobre o
poder da memória de chegar aos acontecimentos mais distantes da infância do indivíduo
e ter ainda a capacidade de remontar o tempo. O enredo, aparentemente fragmentado
(como a memória), torna-se mais linear à medida que montamos o quebra-cabeça vindo
da memória das personagens e, ainda, da história a que todo o romance nos remete.
E, em terceiro e último lugar, Ricoeur afirma que à memória se vincula o sentido
de orientação no passo do tempo, tanto do passado para o futuro, quanto do futuro ao
passado. Esse vínculo é claro no romance em vários momentos. Como dito, desde a
primeira página percebemos a importância dessa característica para a narrativa de
Evaristo. Logo depois, várias são as lembranças de Ponciá, além daquelas vindas até ela
através das narrativas de outras personagens como a mãe e o irmão. Também a história
12
Tradução minha.
65
de outras personagens como Bilisa, a mulher-dama por quem Luandi se apaixona, é
trazida pelo narrador na volta ao passado triste da mulher que também veio da roça para
a cidade grande com sonhos de uma vida melhor e que acaba sendo acusada pela patroa de
um roubo que não cometeu na casa onde morava e trabalhava. Assim, ela vira prostituta,
chegando ao final trágico de ser assassinada por Negro Climério. Bilisa torna-se, dessa forma,
mais um símbolo da denúncia social feita no livro.
As idas e vindas da família Vicêncio também nos remetem a esse sentido de orientão
no passo do tempo. A ordem atemporal e o linear dos acontecimentos do romance nos lembra,
mais uma vez, essa característica da meria. Além de, claro, como citado no catulo anterior,
nos remeter à história ancestral de Ponciá, através da metáfora entre o trem e o navio negreiro.
A memória individual de Ponciá marca principalmente sua volta à infância na
vila. Dessa forma, ao leitor o passadas as lembranças felizes e trágicas. Essas
recordações vêm à tona principalmente na fase mulher de Ponciá, quando seu olhar
distante e sua letargia diante do mundo real acontecem. Nesses momentos, as
recordações afloram. De um lado, temos, então, as lembranças agradáveis: “nos tempos
de roça de Ponciá, nos tempos de casa de pau-a-pique, de chão de barro batido, de
bonecas de espigas de milho, de arco-íris feito cobra coral bebendo água no rio, a
menina gostava de ser mulher, era feliz” (PV, 24). De outro lado, as recordações
doloridas da menina, marcadas, principalmente, pela sua mudança para a cidade grande.
Quando migrou, Ponciá tinha 19 anos. Além da viagem sofrida passada no “trem
negreiro”, a menina se recorda dos momentos iniciais da nova vida: quando chegou à
estação e não havia ninguém esperando por ela, de ter ido para a igreja depois de sua
chegada, das pessoas e dos santos que viu por lá, da primeira noite passada na rua, ao
relento, e de quando conseguiu seu primeiro emprego na casa de uma senhora.
66
Embora a esperança seguisse com a protagonista durante seu trabalho e seus
sonhos, as pedras foram maiores em seu caminho do que aquelas encontradas por outras
personagens, principalmente dos Bildungsromane europeus. Essa diferença é marcante
no romance de Evaristo. No caso do protagonista de Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister, de Goethe, o rapaz, no início do livro, conta à namorada a sua
infância, quando ganhou de presente um teatro de bonecos, e a sua felicidade ao assistir
às marionetes. As várias páginas do livro sobre isso nos confirmam as diferenças que
marcam os dois romances de formação. Os sonhos de Wilhelm são outros e se realizam
sem muitos obstáculos. Os sonhos de Ponciá vão se dissipando aos poucos, à medida
em que a vida a surpreende com as dificuldades. Dessa forma, a memória da infância,
da menina negra, tão repleta de boas recordações, vai sendo substituída pela memória da
adolescente negra, empregada doméstica e da mulher que apanha do marido, que sofre
sete abortos e se perde dos seus.
Embora as recordações da menina Ponciá nos venham narradas como boas e
felizes, algumas vezes tomamos conhecimento também de tristes lembranças da
infância dela, como a morte do pai na colheita e a trágica história do avô. Essas e outras
lembranças estão intimamente ligadas à memória coletiva da personagem.
3.1 - A herança de Vô Vincio: a memória coletiva
É a própria Conceição Evaristo quem diz, em entrevista ao jornal Estado de
Minas, que “Ponciá Vicêncio nasceu talvez de um acúmulo de memória, de palavras, de
situações vividas e testemunhadas por mim. (...) É uma escrita realista, na medida em
que é a narrativa de fatos relacionados à trajetória dos africanos e seus descendentes no
Brasil” (Sebastião, 2004, 4).
67
Nessa citação é possível atestar que o ponto de vista afrodescendente faz de
Ponciá Vicêncio um romance representativo dessa literatura que resgata a memória
coletiva da escravidão negra brasileira e de seus descendentes. Jacques Le Goff (2003)
afirma que a memória coletiva, nas sociedades sem escrita, funciona como reconstrução
generativa, ou seja, ela o aparece palavra por palavra, mas perpetua as histórias dessa
comunidade ou sociedade. No caso de Ponciá, sabemos que ela é uma das únicas
moradoras da Vila Vicêncio que sabia ler e escrever. As histórias que aparecem no
romance são contadas pelos mais velhos e assim perpetuadas. E a menina, que desde
cedo se mostrou parecida com o avô, parece escolhida para guardar ainda mais
profundamente essa memória coletiva.
A começar pelo sobrenome, Vicêncio, herdado dos fazendeiros antigos donos de
escravos, em vários momentos perecebemos as marcas da história dos africanos e seus
descendentes no Brasil. Logo no início do romance nos é narrado o momento em que o
pai de Ponciá, filho de escravos, é humilhado pelo sinhô-moço, de quem era pajem. Em
um intertexto com uma cena de Memórias Póstumas de Brás Cubas, na qual o
protagonista faz de Prudêncio o seu “cavalo de todos os dias”, o pai de Ponciá “era o
cavalo onde o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras do pai” (PV, 14).
Essa animalização do outro nos lembra as palavras de Fanon em Os condenados da
terra, em que o teórico afirma que o colonizador sempre se dirige ao colonizado de
forma animalesca, numa “linguagem zoológica” (1979, 31). Logo após essa cena,
sinhô-moço, com imensa crueldade, ainda pediu ao pajem que abrisse a boca para ele
urinar dentro dela. O “brutalismo poético”
13
creditado à narrativa de Conceição por
Eduardo de Assis Duarte (2006), pode ser percebido na cena que segue: a urina do
outro caía escorrendo quente por sua goela e pelo canto de sua boca. Sinhô-moço ria,
13
No artigo “Memória Viva”, publicado no jornal Estado de Minas, em 2006, Duarte assim denomina o
procedimento usado pela autora ao narrar com linguagem concisa e densa a história de Ponciá. O lirismo
com que a autora escreve as cenas do romance, mesmo as mais violentas, ratifica o conceito.
68
ria. Ele chorava e o sabia o que mais lhe salgava a boca, se o gosto da urina ou se o
sabor de suas lágrimas” (PV, 14). A memória pós-abolição (abolição que o impediu
que a escravidão continuasse) é aqui relatada de forma dolorida. Os questionamentos do
pai de Ponciá, depois desse episódio, ilustram a indignação do narrador ao fazer uso do
discurso indireto livre:
Se eram livres, por que continuavam ali? Por que, eno, tantos e tantas negras na
senzala? Por que todos não se arribavam à procura de trabalhos? Um dia perguntou
isto ao pai, com jeito, muito jeito. (...) Perguntou e a resposta do pai foi uma
gargalhada rouca de meio riso e de meio pranto. O homem não encarou o menino.
Olhou o tempo como se buscasse no passado, no presente e no futuro uma resposta
precisa, mas que estava a lhe fugir sempre. (PV, 14-15)
Narrados dessa forma (comum à literatura feminina), os questionamentos do personagem
misturados à fala do narrador nos remetem diretamente à denúncia social. É como se a voz
narrativa passasse ao plural e significasse uma indignação coletiva. Outra dessas denúncias que
está associada à história afro-brasileira é a ctica à Igreja. Sobre essa instituição, afima Fanon:
A Igreja nas colônias é uma Igreja dos Brancos, uma igreja de estrangeiros.
Não chama o homem colonizado para a vida de Deus mas para a via do
Branco, a via do patrão, a via do opressor. E como sabemos, neste negócio
são muitos os chamados e poucos os escolhidos (Fanon, 1979, p. 31).
Tal crítica aparece no trecho em que nos é narrada a alfabetização de Ponciá, tão
distinta da educação de outros personagens do Bildungsroman. A menina, ao contrário
do pai, foi além do “saber das letras”. Ela freqüentou a escola dos missonários religiosos
que passaram pela vila. Entretanto, quando estava formando as palavras, a missão
acabou” (PV, 25). O narrador ainda segue nos dizendo que os padres foram para outros
povoados depois de sacramentar casais, crianças e doentes. Doentes que depois sararam
com as garrafadas de Nêngua Kainda, mulher sábia da vila. Os mesmos que depois de
69
receber os missionários, “levantaram-se da cama e tempos de vida tiveram para pecar
outras vezes” (PV, 25). A ironia aqui explícita nos remete à crítica feita por Fanon e
anteriormente comentada.
Segundo Fanon, “para a população colonizada, o valor mais essencial, por ser o
mais concreto, é em primeiro lugar a terra: a terra que deve assegurar o o e,
evidentemente, a dignidade” (1979, 33). Essa questão está bem representada em Ponciá
Vicêncio, principalmente no capítulo que narra o primeiro retorno de Ponciá ao seu
povoado depois de sua mudança para a cidade. No trecho em questão, a protagonista, ao
atravessar de trem a paisagem, avista as terras dos brancos e se lembra de que toda
aquela lavoura fora erguida pelos homens que ali trabalhavam longe de suas famílias,
como seu pai e seu irmão. Quando atravessa a terra dos negros, constata que essas são
bem menores e se lembra também que o produto final ali ainda seria dividido com o
coronel. Percebe-se em todo o romance essa idéia do desenraizamento. As identidades
múltiplas (Hall, 2003b) dos personagens se associam à relação deles com sua história
diaspórica. A divisão entre as “terras dos brancos” e as “terras dos negros” no romance
nos remete diretamente a nossa história de escravidão cujas marcas se estendem até o
momento atual. As idas e vindas dos personagens e a procura de Ponciá estão ligadas às
raízes da família ou à falta delas. De acordo com Gilroy:
A necessidade de fixar raízes culturais ou étnicas e depois utilizar a idéia de
estar em contato com elas como meio de reconfigurar a cartografia da
dispersão e do exílio talvez seja melhor entendida como uma resposta
simples e direta às modalidades de racismo que têm negado o caráter
histórico da experiência negra e a integridade das culturas negras (2001,
224).
É exatamente esse posicionamento que nos revela o narrador de Conceição
Evaristo. Em trechos como esse, vemos através do olhar crítico da protagonista a
70
denúncia pela falta de suas raízes. Suas viagens e as dos outros personagens também
confirmam as palavras de Gilroy sobre a dispersão. Na cidade, Ponciá também está à
procura desse enraizamento, todavia, ela não alcança tal objetivo. Ela passa a morar
num barraco na favela, continuando, assim, à margem da sociedade que a exclui. O final
da protagonista nos revela essa necessidade de fixar raízes” como afirmou Gilroy. O
fechamento do seu ciclo e o cumprimento de sua herança ancestral nos apontam essa
fixação, lembrando que é na terra, no barro, que a menina-moça-mulher se reencontra
consigo e com os seus. O mesmo acontece com Luandi e com Maria Vicêncio. Segundo
Hall,
(...) a globalização é desterritorializante em seus efeitos. Suas compressões
espaço-temporais, impulsionadas pelas novas tecnologias, afrouxam os laços
entre a cultura e o ‘lugar’. Disjunturas patentes de tempo e espaço são
abruptamente convocadas, sem obliterar seus ritmos e tempos diferenciais.
As culturas, é claro, m seus ‘locais’. Porém, não é mais tão fácil dizer de
onde elas se originam” (2003a, 36).
A desterritorialização é uma característica inevitável da diáspora que aqui
associamos à memória. E, para Hall, a “família ampliada – como rede e local da
memória constitui o canal crucial entre os dois lugares” (Hall, 2003, 26). Daí toda
ligação entre Ponciá e sua família, especialmente seu avô. Era ele o canal crucial entre
os dois lugares na vida da neta. A e de Ponciá tem um papel importante nessa
discussão sobre o enraizamento e o valor da terra para a família Vicêncio e,
metonimicamente, para o negro brasileiro. Em suas idas e vindas antes de reencontrar os
filhos, Maria Vicêncio faz uma reflexão sobre a importância das raízes e do solo onde
morava e do qual tirava o barro para o sustento da família através do artesanato. Sua
viagem para a cidade era inevitável, ela “sabia que, por mais que relutasse, um dia a
71
cidade também faria parte de sua travessia” (PV, 108). A dificuldade em se desligar da
terra onde vivia é explicada no trecho a seguir:
Não sentia desejo algum pela aventura da viagem. Se a sua vida era a da
terra, em que ela vivia, o que faria agora longe de lá? Entretanto, preparava-
se para se afastar do lugar onde havia nascido. Da terra que guardava o
umbigo, que ali fora enterrado, selando, pois, a filiação dela com o solo do
povoado. Os filhos tinham ido, mas voltariam um dia, seriam chamados. No
ventre da terra, pedaços do ventre deles também haviam sido enterrados.
Maria Vicêncio repetira com os filhos o mesmo gesto antigo e benéfico que
a mãe dela tinha feito com ela um dia (PV, 108).
É corrente a associação do umbigo ao enraizamento. A tradição de enterrá-lo é
um modo de fixar ali as raízes do recém-nascido. Maria Vicêncio, ao repetir o ato
“benéfico” de seus ancestrais, perpetua a relação dos seus descendentes com a terra que
representa anos de história de seu povo. Embora sem sobrenome, sem terras férteis e
sem um justo tratamento da família de fazendeiros Vicêncio, o povoado negro, a “terra
dos negros”, como a ela se referem vários personagens, traz a idéia do pertencimento,
pois a história ancestral se manifestava ali, as tragédias como a de Vicêncio, as
agruras e angústias de anos de escravidão e pós-abolição estavam enterradas junto aos
umbigos e fazia daquela terra, conforme a simbologia do umbigo, o centro do mundo.
Para Ponciá isso fica claro na necessidade final de cumprir sua herança, de retornar ao
seu lugar, o lugar da memória.
Ainda sobre a questão da terra, faz-se interessante notar as passagens em que o
narrador trata de Luandi e seus sapatos. A primeira vez que os calça é quando viaja para
a cidade, pois “na roça sempre andara de pés no chão” (PV, 69). Depois de uma longa e
sofrida viagem de trem, o irmão de Ponciá chega à cidade debaixo de uma forte chuva,
o que agrava ainda mais o desconforto com os sapatos. Ao regressar para o povoado
pela primeira vez, pega emprestada uma farda do soldado Nestor já surrada, com o
72
objetivo de chegar à vila e causar boa impressão nas pessoas. Nos preparativos para a
primeira volta, limpa as botinas que o trouxeram à cidade grande e novamente faz
referência ao desconforto que estas lhe proporcionavam. Depois de chegar à estação, a
caminho da vila, para onde muito se tinha que andar, o narrador nos enfatiza que “os pés
de Luandi latejavam dentro da bota apertada (PV, 87) e, por isso, o rapaz resolve
descalçá-las. Assim, “os dedos, que estavam espremidos, massacrados uns em cima dos
outros, se espalharam felizes. (...) sentia um prazer intenso por ter os pés no chão” (PV,
88). Segundo Chevalier e Gheerbrant (2005), o sapato é o símbolo do viajante. Além
disso, os autores do Dicionário de Símbolos enfatizam a tradição ocidental do sapato
como símbolo de identificação e pertencimento, direito de propriedade. É
lembrarmos da clássica história infantil de Cinderela e sua identificação com o sapato:
nos s da princesa ele serviria. No caso de Luandi, acontece o inverso, a autora
subverte essa idéia. O rapaz não se identifica com as botinas, seu alívio vem quando
não precisa usá-las, justamente na terra onde nascera. Seu “direito de propriedade” é
exercido com os s no chão, descalços. O sapato pertence a sua vida na cidade, à
profissão de soldado que ele sonhava exercer. Por isso, ao atravessar das terras dos
brancos (representada pela cidade e pelas fazendas dos Vicêncio) para as terras dos
negros, o rapaz sente a necessidade, quanto mais se aproxima dos seus, de tirar as
botinas e deixar os “dedos felizes”.
A questão do pertencimento dessas terras aparece como denúncia para o leitor
nas recordações de Ponciá sobre a divisão injusta delas entre os brancos e os negros.
Isso nos relembra as palavras de Hall citadas acima sobre o efeito desterritorializante da
globalização e o elo que a família, especialmente, representa na fixação das raízes. As
recordações de Ponciá nesse trecho nos revelam que as terras dadas aos negros de
presente” pelo primeiro Coronel Vicêncio eram muito mais vastas e que estas vinham
73
sendo tomadas, aos poucos, pelos descendentes do coronel, “brancos que se fizeram
donos desde os passados tempos” (PV, 62). A menina, de tanto ouvir falar da herança
que receberia do avô, fica intrigada com o que poderia ganhar, que o avô havia
engolido, literalmente, a escritura das terras que “ganhara”. Como já dito neste trabalho,
a herança de Ponciá, diferente de Wilhelm Meister, não é material. Quando Ponciá
recorda sua primeira viagem à cidade, além da rapadura e do café, seus únicos bens
eram a crença, o sonho e a esperança de uma vida melhor. A personagem descobri
o valor de sua herança no final, ao cumprir seu destino e voltar à terra onde estava
enterrado seu umbigo e as lembranças de sua família.
Associando a questão do desenraizamento diretamente à escravidão, denuncia
também o narrador:
tempos e tempos, quando os negros ganharam aquelas terras, pensaram
que estivessem ganhando a verdadeira alforria. Engano. Em muito pouca
coisa a situação de antes diferia da do momento. As terras tinham sido
ofertas dos antigos donos, que alegavam ser presente de libertação. Uma
condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar nas
terras do Coronel Vicêncio. (...) O tempo passava e ali estavam os antigos
escravos, agora libertos pela “Lei Áurea”, os seus filhos, nascidos do
“Ventre Livre” e os seus netos, que nunca seriam escravos. Sonhando todos
sob os efeitos de uma liberdade assinada por uma princesa, fada-madrinha,
que do antigo chicote fez uma varinha de condão. Todos, ainda, sob o jugo
de um poder que, como Deus, se fazia eterno (PV, 48).
Nesse trecho temos uma mudança no tom da voz narrativa. A indignão do narrador se
torna expcita. Sua denúncia alcança facilmente os leitores livremente. Como não perceber o
ponto de vista afrodescendente no trecho acima? Aqui vemos ecoar as vozes revoltadas com a
história que perpetuou a bondade da Princesa Isabel, dos senhores da casa grande e outras
questões idealizadas sobre a escravidão no Brasil. A memória nesse trecho tem o objetivo de
lembrar aos esquecidos a realidade atual e suas causas. É uma memória-dencia. É isso também
74
que diferencia o texto de Conceão Evaristo de outros romances de formação, seu ponto de vista
é marcado pela denúncia.
Essa memória coletiva que tamm denuncia parece entranhada na protagonista. Ponciá
sente as dores e as angústias dos seus ascendentes. Em diversos trechos do romance percebemos
através dela esses sentimentos. No mesmo capítulo de onde retiramos o trecho acima, quando
Ponciá ainda passa pela vila durante seu primeiro retorno, ela tem a impressão de que havia ali
um pulso de ferro a segurar o tempo. Uma soberana mão que eternizava uma condição antiga
(PV, 48). Sua meria resgata novamente o sentimento antepassado. Nesse momento, ela tem a
visão de velhos e crianças entre o passado e o presente. Nesse trecho sentimos forte a herança tão
citada que Vô Vicêncio deixara para ela. Afinal, “a neta, desde menina, era o gesto repetitivo do
avô no tempo(PV, 63).
Outros personagens do livro também são marcados pela memória de seus
antepassados. Para Ponciá, “a mãe e o irmão eram sempre matéria de sua memória”
(PV, 94). E estes também carregavam consigo, além da percepção de que a filha/irmã
era alguém que carregava uma herança especial, a certeza da ligação dessa herança com
o passado de sua etnia. Luandi, em seu sonho de se tornar soldado, representa o que
Fanon chama de cisão no mundo colonizado. Para ele, a linha divisória, a fronteira, é
indicada pelos quartéis e delegacias de polícia” (1979, 28). O irmão de Ponciá Vicêncio
queria se tornar soldado para poder mandar ou simplesmente para “obter poder”. Ao
chegar à cidade grande e ser acolhido pelo soldado Nestor, um policial negro, Luandi
tem a sensação de que naquele lugar os negros mandavam. Sua ilusão sobre a igualdade
racial na cidade aparece em outras páginas do romance. Faxineiro da delegacia onde
Nestor trabalhava, Luandi presencia uma situação em que um ladrão, negro, é
maltratado pelo delegado, o qual afirma que, se dependesse dele, cortaria as mãos de
todos os ladrões. Em seguida, manda Nestor soltar o homem. Ao ouvir isso, Luandi
75
“voltou ao tempo de infância” e lembrou-se do avô e seu braço cotó. Aqui, a autora
relaciona as tragédias da época da escravidão às suas conseqüências, tão visíveis hoje no
sistema prisional brasileiro. Luandi, mesmo após presenciar a cena, persiste em sua
ilusão igualitária (o que chamamos de democracia racial), tão cara também a muitos
brasileiros: “Luandi pensou na figura de Vicêncio, mas, aliviado estava, pois
acreditava que o tempo da escravidão tinha passado. Existia sofrimento na roça.
Na cidade todos eram iguais. Havia até negros soldados!” (PV, 73). A frase atribuída ao
rapaz acaba sendo uma ironia diante de nossa realidade. Tanto é que no final do
romance, depois de vestir a farda e se tornar um soldado, Luandi José Vicêncio muda de
opinião:
E ele que queria tanto ser soldado, mandar, bater, prender, de repente
descobria de que nada valia a realização de seus desejos, se fossem aqueles
os sentidos de sua ão, de sua vida. Soldado Nestor era o fraco e tão sem
mando como ele. Apenas cumpria ordens, mesmo quando mandava, mesmo
quando prendia. Foi preciso que a herança de Vicêncio se realizasse, se
cumprisse na irmã para que ele entendesse tudo. (...) Ele, que levara tanto
tempo desejando a condição de ser soldado, em poucos minutos escolhia
desfazer-se dela (PV, 130).
Foi a herança de Vicêncio realizada em Ponciá e concretizada no reencontro
da família que tornou Luandi consciente de que os problemas da escravidão
continuavam e não seriam resolvidos apenas com os mandos e desmandos de alguns
negros. É como Fanon afirma, ainda sobre esse mundo colonizado cingido em dois: a
originalidade do contexto colonial reside em que as realidades econômicas, as
desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida o logram nunca mascarar as
realidades humanas” (1979, 29). A memória colonial escravocrata persiste entre nós e se
infiltra na realidade social do presente. Conceição Evaristo traz essa memória para seu
Bildungsroman, tornando-o ainda mais negro. Em outro momento da narrativa, a
76
memória coletiva volta a ser transmitida através do personagem Luandi. Num momento
de imensa dor, ao perder “Bilisa-estrela” assassinada por Negro Climério, o rapaz
mistura sentimentos e imagens ao rever a mãe, perdida por tanto tempo. Assim, ele
começa a se lembrar das mulheres que povoam e povoaram sua vida e sua história: a
mãe, a irmã, Bilisa,Vicêncio, pessoas que ele conhecera e “ainda outras mulheres da
família e do povoado, muitas que ele nunca vira e que apenas ouvira falar delas. Eram
só mulheres que naquele momento se acercavam de Luandi” (PV, 121).
Outra diferença marcante do Bildungsroman feminino para o tradicional
romance europeu é o fato de que naquele as mulheres protagonizarem as cenas e
povoarem a vida dos homens. Já no caso do romance de formação negro, temos a marca
feminina como herança africana, como marca de memória coletiva. A personagem
Nêngua Kainda também carrega essa marca e essa simbologia. Segundo Nei Lopes,
Nêngua é um “cargo hierárquico dos cultos de origem angolo-conguesa, correspondente
ao da ialorixá iorubana. Do quicongo némgwa, ´mãe´, ´mamãe´. Também Nêngua de
Inquice” (2004, 475). É ela, então, a sacerdotisa da vila Vicêncio, cujo nome representa
a cultura africana novamente presente no romance de Evaristo. Maria Vicêncio, mãe de
Ponciá, em um momento afirma, através da voz do narrador, que Nêngua era aquela
que de tudo sabia, mesmo se o lhe dissessem nada” (PV, 128). Em entrevista ao site
João do Rio (s/d)
14
, Conceição Evaristo afirma que Nêngua Kainda “era a consciência
do grupo”. Por isso, suas aparições no romance são sempre associadas a sua sabedoria
para cura ou para profetizar sobre os destinos das outras personagens moradoras da vila.
É ela quem profetiza o legado deixado pelo avô à menina. Profetiza também o destino
de Luandi e de Maria Vicêncio. Aqui percebemos outro traço afro-brasileiro.
Novamente trago a comparação. É o caso do já citado Um defeito de Cor, de Ana Maria
14
www.joaodorio.com
77
Gonçalves. A protagonista africana Kehinde é neta de uma sacerdotisa da etnia fon, do
antigo Damoé, que cultuava os voduns
15
. Mesmo depois da morte da avó, Kehinde
continua sentindo sua presença ao longo da vida, por aparições, sonhos ou através de
lembranças deixadas pela avó. A protagonista chega a se iniciar como sacerdotisa,
tentando seguir os passos de sua ancestral, preservando e perpetuando seus cultos.
Embora não nos seja relatado em nenhum momento de Ponciá Vicêncio algum ritual
realizado por Kainda, temos a certeza de sua importância na vila e na vida dos
moradores de lá. Ponciá, em seu primeiro regresso ao povoado, encontra-se com ela e
esta, ao colocar a o sobre a cabeça da moça disse-lhe que embora ela o tivesse
encontrado a mãe e nem o irmão, ela não estava sozinha. Que fizesse o que o coração
pedia. Ir ou ficar? ela mesmo é quem sabia, mas, para qualquer lugar que ela fosse,
da herança deixada por Vô Vicêncio ela não fugiria” (PV, 60).
Nêngua é a personagem que mais enfatiza a influência do avô sobre Ponciá, o
que está sempre presente na memória da menina, mesmo antes de ela entender o que se
passava. O encontro de Nêngua com Luandi, no primeiro regresso do irmão ao
povoado, também nos mostra sua força profética e o mistério que a rondava na opinião
dos mais novos, como o rapaz. Enquanto esperava o trem para retornar à cidade grande,
Luandi visita a velha, pede-lhe a bênção e ela, falando a língua que os mais velhos
entendiam, abençoou Luandi” (PV, 96), Além da nção, Nêngua profetiza: ele
reencontraria a mãe e a irmã; era preciso encontrar Ponciá o mais depressa possível,
antes que a herança se fizesse presente. Em seguida, Nêngua riu da farda emprestada
que Luandi vestia e lhe disse que esse não era seu caminho. Ela profetiza, mais uma
vez, em tom de voz coletiva: “de que valeria mandar tanto, se sozinho? Se a voz de
Luandi não fosse o eco encompridado de outras vozes-irmãs sofridas, a fala dele nem
15
Segundo Nei Lopes, em sua Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, o vôdoun é a representação
objetiva de um atributo do Ser Supremo. Por extensão é uma divindade, como os orixás.
78
no deserto cairia. Poderia, sim, ser peia, areia nos olhos dele, chicote que ele levantaria
contra os corpos dos seus” (PV, 96). As metáforas usadas pela sábia mulher refletem
mais uma vez os traços afrodescendentes desse romance de formação feminino e negro.
Ao usar as palavras “peia” e “chicote” para se referir ao mando de Luandi como
soldado, além de relembrar a História brasileira passada, Conceição Evaristo, através da
personagem, resgata uma memória que denuncia o presente e prepara o futuro. É
voltarmos nossos olhos para os noticiários brasileiros e nos depararmos com a realidade
de nossas polícias, de nossos soldados, em sua maioria, negros, perseguindo os outros
de sua cor, como os capitães do mato de ontem.
16
A realidade cantada pelos artistas brasileiros nos remete, assim como o romance
de Evaristo, a essa história por vezes tão negada e mesmo mal contada, que traz reflexos
importantes ainda hoje. A risada de deboche de Kainda logo depois de sua fala
transcrita acima, soa estranha para Luandi, ainda tão iludido pela idealização da
igualdade racial, mas não para nós, leitores, que conhecemos sua causa. E é assim que
Nêngua servirá também de elo importante entre as três personagens da família Vicêncio.
É ela quem recebe os três durante seus desencontros: Ponciá e Luandi em seus primeiros
regressos e Maria Vicêncio, sempre à procura dos filhos perdidos depois de migrarem
para a cidade grande. É ela quem entrega a Maria Vicêncio o endereço de Luandi, que
este havia lhe confiado, possibilitando, assim, o reencontro entre mãe e filho. Como
uma espécie de oráculo, Nêngua Kainda representa os ancestrais africanos, e toda a
memória ancestral desse povo desde que chegou ao Brasil. Talvez por isso as
personagens de Evaristo sempre enfatizam sua velhice. Kainda é mesmo uma espécie de
memória-viva. Ao obedecer a seus conselhos, a família de Ponciá segue seu destino
16
Aqui nos lembramos também da canção “Haiti” de Caetano Veloso e Gilberto Gil que prega em seus
versos: “Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado/Pra ver do alto
a fila de soldados, quase todos pretos/Dando porrada na nuca de malandros pretos
/
De ladrões mulatos/E
outros quase brancos/Tratados como pretos” (Gil;Veloso, 1993, faixa 1, grifo meu).
79
marcado pela forte presença da memória afrodescendente. Após receber o papel com o
endereço do filho, Maria Vicêncio, a conselho da anciã, que lhe avisa sobre a sabedoria
do tempo, a qual não deve ser desafiada, desiste de partir. É à Nêngua também que
Maria confia um segredo: Ponciá, ainda dentro da barriga da mãe, chorava. Era um
anúncio de que a menina era especial, guardava um destino diferente dos outros.
Diferente também dos outros protagonistas dos Bildungsromane, afinal, ao contrário de
Wilhelm Meister, por exemplo, que tem uma herança material a sua espera, sendo
administrada pelos pais e depois pelo cunhado, Ponciá recebe como herança a
indigência material, entretanto, fica com ela a história e a cultura afrodescendente, que
marca sua vida e a dos seus.
3.2 - Os orixás como marcas da memória
Conforme já citado no segundo capítulo dessa dissertação, os orixás, enquanto
figurações mitológicas presentes no complexo religioso afro-brasileiro, têm importante
presença na literatura afro-brasileira, o mesmo se dá em Ponciá Vicêncio. Durante todo
o romance nos deparamos, com marcas implícitas que nos remetem a essas “entidades
sobrenaturais que guiam a consciência dos seres vivos e protegem as atividades de
manutenção da comunidade” (Lopes, 2004, 499). Portanto, embora nenhuma entidade
seja citada explicitamente no livro, percebemos alusões constantes a elas, o que
constitui mais uma marca da memória coletiva negra presente no romance de Evaristo.
A autora faz alusão principalmente a três orixás: Oxumaré, Oxum e Nanã.
Oxumaré, segundo Prandi , é o arco-íris, (...) o deus serpente que controla a chuva, a
fertilidade da terra e, por conseguinte, a prosperidade propiciada pelas boas colheitas”
(2001, 21). A referência a ele é feita já na primeira página do livro, quando a
protagonista o arco-íris no u e sente um calafrio por causa do medo que sentia na
80
infância de passar por debaixo dele e mudar de sexo. A mitologia africana o caracteriza
como um ser metade homem, metade mulher. Segundo Verger, Oxumaré é ao mesmo
tempo macho e mea. Esta dupla natureza aparece nas cores vermelha e azul que
cercam o arco-íris” (2002, 206). O narrador se refere ao arco-íris, através do discurso
indireto livre, como cobra celeste” (PV, 9). Este orixá está associado ainda à imagem
da serpente que morde a própria cauda
17
. Outro termo usado pelo narrador para se
referir ao arco-íris é “angorô”, ao qual já fizemos alusão neste capítulo. Segundo
Verger, o arco-íris mostra que ele é universalmente conhecido e, como a presença do
arco-íris impede que a chuva caia, demonstra também a sua força” (2002, 206). Essa
força se repete na última página do livro, quando Ponciá regressa ao rio e cumpre sua
herança.
Nei Lopes (2004) atenta para outra simbologia de Oxumaré: a representação
da continuidade, da seqüência das coisas, o ciclo da vida, o movimento, o nascer e o
renascer. Essa idéia do ciclo é lembrada durante todo o romance, Ponciá vive seus
ciclos de menina, moça e mulher. Entre suas idas e vindas, suas viagens, ela completa a
seu modo sua “formação”. Seus movimentos, diferentemente de outros heróis de
Bildungsroman, não o regidos pelos mestres intelectuais, mas pelos seus ancestrais,
pela sábia ngua Kainda e pelos orixás, o que nos remete à memória da diáspora
africana. Ao reencontrar a família na estação de trem, Ponciá “ia e vinha, num caminhar
sem nexo, quase em círculo” (PV, 126), mostrando que estava prestes a se encontrar, a
cumprir seu destino voltando ao rio na vila Vicêncio. O nascer e renascer de Ponciá ao
longo da história nos lembra a representação de Oxumaré presente no início e no fim da
jornada da personagem afrodescendente e também a imagem do Uróboro, que simboliza
um ciclo de evolução.
17
Segundo o Dicionário de Símbolos essa serpente que morde a própria cauda leva o nome de “Uróboro”.
81
Oxumaré é, na mitologia, filho de Nanã, a dona da lama que existe no fundo dos
lagos. Ela é outro orixá marcante no romance, juntamente com Oxum, senhora das
águas doces. Nanã, ou Nanã Burucu, é uma divindade muito antiga. Segundo os autores
do Dicionário de Símbolos, em alguns lugares da África, como na região de Ashanti, o
termo nana é usado para se referir às pessoas mais velhas, idosos. Nanã também pode
ser identificada em Ponciá Vicêncio através da simbologia do barro, tão marcante para a
história, desde a capa. Esta, que traz uma moça com as mãos a modelar o barro
18
,
representa o ofício tão caro a Ponciá e a Maria Vicêncio: “A mãe fazia panelas, potes e
bichinhos de barro. A menina buscava a argila nas margens do rio. Depois de seco, a
mãe punha os trabalhos para assar num forno de barro também. As coisinhas saíam
então duras, fortes, custosas de quebrar” (PV, 18).
O artesanato com o barro é muito comum em diversas regiões do nosso país. No
Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, sabemos o quanto esse ofício é encontrado e
apreciado. Interessante perceber que o trabalho com o barro é feito, na maioria das
vezes, por mulheres.
19
E como vemos, as histórias destas mulheres se cruzam com
aquelas da família Vicêncio. O barro, para elas, faz parte de uma memória que constrói
suas identidades. No final do livro, utilizando novamente o recurso do discurso indireto
livre, o narrador nos diz, através do pensamento de Luandi que : “um dia ele voltaria ao
18
Veja foto da capa no anexo 2, página 4.
19
Em série de reportagens do Jornal Nacional, na Rede Globo, em 2006, assistimos à história
interessante de Ana das Carrancas”. Há algum tempo, para sustentar a casa, depois de se casar com Jo
Vicente, um homem cego e muito pobre, Ana quis pegar o barro do leito do Rio São Francisco, em
Petrolina, para onde tinha ido com o marido andando 400 quilômetros a pé, com os pertences no lombo
do jumento. Porém, não deixaram que ela pegasse a lama dali porque era proibido na área da ferrovia,
Ana então foi a o prefeito e disse: “doutor, eu vim pedir um anzol pra mim pescar e o anzol que eu
quero é que o senhor deixe eu pescar o barro no rio para eu poder saciar a minha necessidade”, como
conta sua filha, Maria da Cruz em reportagem do telejornal. O prefeito não teve como negar o pedido.
Ana agradeceu a São Francisco e então começou um trabalho com o barro que lhe deu o sustento e o de
sua família por anos. A mulher foi condecorada pelo governo e declarada “patrimônio vivo de
Pernambuco”. Ana criou um novo tipo de carranca, de barro, e todas as suas figuras têm os olhos vazados
em homenagem ao marido cego. A reportagem ainda diz que “Ana das Carrancas não transmitiu para as
filhas a arte de tirar beleza da lama. As três foram à escola direitinho, e Maria da Cruz está cursando a
faculdade de pedagogia” (2006, s/p).
82
povoado e tentaria recolher alguns trabalhos dela e da mãe. Eram trabalhos que
contavam parte de uma história. A história dos negros talvez” (PV, 130). O barro conta
a história dessas famílias, dessas mulheres reais ou fictícias. Na história de Ponciá e sua
mãe, por diversas vezes, podemos enxergar isso. Nas lembranças dela, vemos uma
infância pobre na roça e sua mãe pelejando através do artesanato feito do barro. O
narrador sempre afirma, inclusive através do pensamento da mãe e do irmão de Ponciá,
o quanto a menina tinha habilidade com o barro. Outro aspeto a ser destacado, refere-se
à manifestação da memória de Ponciá através do trabalho com o barro. A menina o
molda e faz dele nascer um boneco cujas características se assemelham a do avô que ela
não conhecera – fato este que surpreende a todos, principalmente sua mãe. E o fato mais
marcante que nos mostra a manifestação da memória de Ponciá através do barro é
quando ela faz a figura do avô com características físicas perfeitas, assustando,
principalmente, sua mãe.
Maria Vicêncio se pergunta como a filha pudera se lembrar do avô com tamanha
perfeição. O receio de que a filha seja mesmo a herdeira dele faz Maria Vicêncio ter
vontade de espatifar o boneco, contudo, guarda-o, sem imaginar que aquela imagem
tornar-se-ia o elo entre a família e a memória do ancestral. A arte se torna, portanto,
uma marca definitiva na formação de Ponciá. Toda sua trajetória passa pelo barro.
Mesmo quando ela o esmais em contato com a argila, sente o coçar das mãos, a
falta evidente do artesanato que ela dominava com maestria. Além dessa conotação, a
arte no romance de Evaristo é um recurso para a metalinguagem. Segundo a própria
escritora, na entrevista em anexo, o artesanato na vida de Ponciá é uma metáfora para
seu trabalho como autora. O mesmo cuidado que a menina, moça e mulher têm com o
barro, a escritora afirma ter com a palavra. Daí advém a forte significação da arte no
final do romance.
83
A arte tem também uma marca no romance de formação de Goethe. Wilhelm,
protagonista de Os anos de aprendizado... tem verdadeira obsessão pelo teatro. Desde a
infância o menino se mostra interessado pela dramaturgia. Entretanto, sua família não o
apóia, pois burgueses que eram, sonhavam ver o filho seguidor da profissão do pai,
comerciante. Essa é uma das diferenças entre o rapaz e Ponciá, que, ao contrário, tem de
sua família a admiração pelo seu trabalho. Marcos Vinícius Mazzari, afirma que até o
final do livro V o ideal de formação perseguido pelo herói mostra-se indissociável da
esfera do teatro”. (2006, 15). Entretanto, o herói de Goethe desiste do teatro durante sua
formação outra diferença marcante que configura o tom paródico do Bildungsroman
no tratamento dado à arte na trajetória de Wilhelm. Segundo Mazzari:
Na medida em que avançam sua compreensão das relações sociais e o
processo de autoconsciência, o jovem herói vai também se distanciando do
teatro. (...) Torna-se claro que o teatro por si o é capaz de oferecer-lhe
respostas em sua busca, pois se subordina a um complexo que envolve
ampla gama de valores humanistas. (...) Desse modo, revela-se que a opção
pelo teatro não foi senão um equívoco (2006, 17).
Ele percebe que o fascínio que a arte exercia sobre ele, desde quando, na
infância, via-se apaixonado pelas marionetes, era um erro, seu futuro não era esse. Ao
abrir mão de ser ator e buscar uma aquisição técnica como a medicina, Wilhelm
caminha para seu final burguês e toma rumos diferentes de Ponciá, que, ao contrário,
tem na arte seu final feliz. É através do barro que ela reproduz sua memória individual e
coletiva, como vimos neste capítulo. A arte, para a protagonista do romance afro-
brasileiro de Conceição Evaristo, é a própria resposta de sua busca.
No primeiro regresso de Ponciá ao vilarejo, ela resgata o homem de barro que
ficara para trás em sua casa. Durante a noite que passou na casa, a mulher não dormiu,
ficou escutando os ecos de sua memória, as lembranças que o lugar lhe trazia. Mas o
que mais escutou foram os choros-risos do homem-barro que ela havia feito um dia. Ao
84
sair da casa, Ponciá levou-o consigo e no momento em que o enrolava na folha de
bananeira, como fazia sua mãe, lembrou-se mais uma vez do avô e da herança que ele
lhe deixara. Mais tarde, quando Luandi também regressa ao povoado e a sua casa, ele
reconhece que a irmã esteve ali pela falta que sente do homem-barro. O rapaz logo
entende que ninguém, ao não ser a irmã, poderia ter levado a estátua. A lembrança do
avô serve como ligação entre a família e reforça os ciclos da narrativa. Outro momento
em que o barro serve como memória e reconhecimento acontece quando Ponciá, em seu
primeiro regresso, visita outras casas na terra dos negros e se depara com trabalhos seus
e de sua mãe em todas as casas da vila. O mesmo se com Maria Vicêncio. Em suas
andanças de povoado a povoado, à procura dos filhos, ela
(...) encontrava trabalhos de barro feitos por ela e pela filha. O tempo
passara, a vida também e ela, sempre no fazer, nem percebera o tanto que
havia criado. depois, calma, longe de tudo, podia admirar o que tinha
feito. Em toda casa, em toda fazenda tinha uma criação dela ou da filha. Ela
reconhecia perfeitamente, qual era sua obra e qual era a de Ponciá. Tinha
impressão de que a filha não trabalhava sozinha, algum dom misterioso
guiava as mãos da menina (PV, 85).
A associação entre o barro e o tempo passado vai tecendo a narrativa de maneira
que tudo seja entrelaçado no final. A ênfase no “dom misterioso” de Ponciá também
contribui para que a simbologia do barro participe da certeza da herança do avô na
menina. A força ancestral trabalha junto dela. Outro momento marcante da narrativa
quando o barro se faz reconhecimento e motivo de lembranças fortes é quando Soldado
Nestor visita uma exposição de arte popular com peças de barro, que o fazem lembrar
de seus tempos de roça. O homem leva Luandi até à feira e o rapaz de ouvir o
convite se emociona com a lembrança da mãe e da irmã: “Luandi, à medida que
contemplava os objetos de seu passado presente, a vida da roça aflorava em suas
lembranças. Viu a e criando utilidades e enfeites a partir da massa da terra” (PV,
85
105). Ao encontrar uma canequinha de barro, o rapaz novamente se reconhece nela. O
momento em que Luandi encontra no cartãozinho ao lado dos objetos os nomes da mãe
e da irmã configura-se como o ápice de reconhecimento e identificação. Os objetos
eternizavam as mulheres e suas histórias. Ao lembrar de tudo isso, misturada à alegria
do saudosismo, estava a indignação por causa do nome do “proprietário” escrito no
papelzinho, logo abaixo do nome da irmã e da mãe dele: “Dr. Aristeu Pena Forte Soares
Vicêncio? Quem era aquele? Também eram tantos os brancos parentes e mandantes das
terras do povoado. Todos donos. Alguns mais, outros menos, mas sempre tinham
alguma coisa, ali na terra, ou fora”. (PV, 107). Novamente o tom de denúncia aparece
na narrativa. Nos questionamentos de Luandi volta a indignação pelo sobrenome com o
qual Ponciá nunca se identificou. O trabalho com o barro das duas mulheres da família
de Luandi estava agora associado a um nome de um desconhecido, de um “dono”
desconhecido. A memória da escravidão persiste. mudam os nomes, o os
sobrenomes.
A simbologia do barro percorre toda a narrativa de Ponciá. Sua
representatividade na vida da protagonista é muito forte. Depois de algum tempo longe
do artesanato, vivendo na cidade, Ponciá sente saudades do ofício e por isso apresentava
um incômodo entre os dedos uma coceira que chega a sangrar. Essa imagem aparece
nas cenas finais do romance, quando a protagonista estava prestes a cumprir seu
destino, a receber sua herança. Essa falta que sentia do barro, faz com que Ponciá se
aproxime mais do seu legado deixado por Vicêncio. Nos capítulos finais, portanto,
Ponciá começa a andar em círculos, simbologia que nos lembra mais uma vez Oxumaré
e os ciclos da narrativa, comuns, inclusive, ao Bildungsroman tradicional. Segundo o
Dicionário de Símbolos, um dos significados do rculo é o tempo: “O movimento
circular é perfeito, imutável, sem começo nem fim, e nem variações; o que o habilita a
86
simbolizar o tempo (Chevalier, 2005, 250, grifo do autor) Em outro nível de
interpretação, ainda de acordo com o mesmo dicionário, o círculo simboliza o céu, um
mundo espiritual, invisível e transcendente.
Voltando à história de Ponciá Vicêncio, sabemos que o círculo inicia o romance,
através da imagem do angorô, ou arco-íris. No final, quando a protagonista es
próxima de seu destino, seu andar em círculos nos remete a uma espécie de profecia que
está para se cumprir: “Ponciá precisava apenas de viver os seus mistérios, cumprir o seu
destino” (PV, 123), numa clara alusão também ao seu trabalho artesanal. Assim, ela
segue para a estação, segundo o narrador, à procura do rio. Aqui temos a força da água
aparecendo simbolicamente na narrativa. O rio, para o Dicionário de Símbolos, é a
fertilidade, a morte e a renovação: o curso das águas é a corrente da vida e da morte”
(Chevalier, 2005, 780). Para a tradição africana e afro-brasileira é Oxum o orixá
iorubano das águas doces, da riqueza, da beleza e do amor. Para cumprir seu destino,
sua formação, Ponciá então regressa ao barro, à lama, “símbolo da matéria primordial e
fecunda, da qual o homem, em especial, foi tirado, segundo a tradição bíblica”
(Chevalier, 2005, 533-534). Temos, assim, nesta passagem, o encontro da memória
coletiva de Ponciá, associada ao tempo, à morte e à vida. Durante o encontro com sua
mãe e irmã, Ponciá novamente se reconhece, e aos seus, através do homem-barro,
mostrado ao irmão ainda na estação. A memória-reconhecimento finalmente junta a
família Vicêncio. E é no caminhar sem nexo, em círculos, em sua errância, que Luandi
encontra a irmã, ela estava à procura de seu destino, afinal, segundo sua mãe “o tempo
pedia, era hora de encontrar a filha e levá-la novamente ao rio” (PV, 127). É no rio que
Ponciá, segundo sua mãe, encontraria seu “húmus”, sua “sustância” para viver. Se o
húmus tem grande importância na constituição do solo, sendo fonte de matéria orgânica
para nutrição vegetal, no sentido usado pela autora, é também fonte de força para a
87
personagem seguir a vida que herdou de seus antepassados, cumprir seu destino regido
pela memória coletiva que carrega. A protagonista fecha o círculo do seu destino, da
sua vida.
Um símbolo já comentado aqui e que tem sua representação junto à memória no
romance é a figura da cobra ou da serpente. O animal aparece diversas vezes no
romance e em momentos semelhantes. Além de simbolizar o arco-íris, denominado no
romance “cobra-celeste”, como também imagem do angorô, a cobra aparece em outros
momentos da narrativa. No capítulo que narra a morte do pai de Ponciá, a menção à
cobra indicaria uma profecia: “semanas antes ele tinha estado em casa capinando o
mato que teimava em crescer em volta, servindo de esconderijo para as cobras” (PV,
29). Segundo o Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant, rápida como o
relâmpago, a serpente visível sempre surge de uma abertura escura, fenda ou
rachadura, para cuspir morte ou vida antes de retornar ao invisível” (2005, 815, grifo do
autor). No caso do pai da protagonista, é a morte que o encontra. Ponciá sabia desse
simbolismo, pois em outro momento percebemos o medo dela diante do animal. Isso
acontece no primeiro retorno de Ponciá à vila Vicêncio. Depois de percorrer de trem e a
uma parte do povoado antes de chegar em casa e sentir o peso do passado
escravocrata naquele lugar, a menina chega a sua casinha de pau-a-pique e ao ver o
mato crescido ao redor, sente o medo de encontrar alguma cobra, antes de seguir
adiante. Após a noite de sono nessa casa, Ponciá, envolta em suas recordações, é trazida
para o presente pelo barulho do animal se mexendo no fogão. E mesmo antes de sair de
e voltar à cidade, Ponciá se lembra da cobra que continua enrolada dentro do fogão,
nas palavras do narrador, “calma”. Essa mesma cobra reaparecerá alguns capítulos
adiante, quando Luandi retorna à vila: “uma cobra deixara sua casca ou secara por ali”
(PV, 89). Esta mesma casca é encontrada depois por Maria Vicêncio, em um dos seus
88
retornos a casa. O animal é mais um símbolo que une a família de Ponciá.
Enigmaticamente, a cobra que aparece aos três no fogão, aparentemente interliga a
família em tempos diferentes e ainda mostra o passar do tempo, elemento tão
importante na narrativa de Conceição Evaristo.
As cinzas também aparecem atreladas à cobra e, portanto, ao tempo. No fogão
onde estava o animal, as personagens sempre viam as cinzas que o narrador sempre se
preocupa em citar. Além de aparecer nas cenas do fogão da casa simples da roça, as
cinzas aparecem no capítulo que descreve o barraco de Ponciá na cidade: ela, como
nos tempos de roça ainda, mesmo com a facilidade do fósforo, preferia guardar o fogo
sob as cinzas, para recomeçar o novo dia” (PV, 53). Indicando claramente o recomeço,
a simbologia das cinzas nesse trecho lembra a Fênix, o verdadeiro recomeço que, no
caso de Ponciá, era diário. Ao se associar à cobra no fogão, as cinzas ganham também a
conotação de resíduo, de tempo passado, de morte. E como a morte também lembra o
recomeço, as cinzas acabam anunciando a volta, o retorno de cada membro da família
Vicêncio. Mais uma vez o círculo é retomado, as idas e vindas, o retorno, as voltas que
a narrativa impõe aos personagens. Lembramos também o símbolo de Oxumaré, orixá
tão presente na narrativa: a cobra que morde a própria cauda. Tal simbologia nos remete
ao uróboro, que, embora de tradição diferente, segundo Chevalier e Gheerbrant, além de
representar o rculo, contém idéias de movimento, de autofecundação e, em
conseqüência, de eterno retorno. Para os autores, essa imagem pode ainda significar um
rompimento com uma evolução linear que marca a transformação. Assim, essa serpente
que morde a própria cauda, não pára de girar sobre si mesma como se estivesse
condenada a jamais escapar de seu ciclo: “simboliza então o perpétuo retorno, o círculo
indefinido dos renascimentos, a repetição contínua, que trai a predominância de um
fundamental impulso de morte” (Chevalier; Gheerbrant, 2005, 923). Voltamos a
89
ressaltar a ligação temporal na narrativa: o uróboro, oxumaré, a serpente, o círculo,
enfim, o tempo, a memória.
Segundo Lúcia Castello Branco, o olhar e a memória caminham lado a lado:
afinal, o que é o gesto de memória senão um olhar que se volta para o passado, na
tentativa de resgatá-lo?” (1994, 15). Certamente essa volta ao passado através do olhar é
uma das chaves da estrutura do romance de Conceição Evaristo. Um dos exemplos mais
notáveis é o olhar que todos os personagens lançam à estátua de barro de Vicêncio
reconhecendo nela as características do velho negro. Nesse momento, olhar, memória e
reconhecimento estão lado a lado. É assim com Maria Vicêncio, ao ver a arte feita pela
filha. Acontece o mesmo com o pai de Ponciá; também com o marido dela, que nem
conhecera o avô da mulher e, ao ver a estátua em casa, olha “de soslaio” e se surpreende
com a semelhança entre o homem de barro e a esposa. A menina mostra, assim, que seu
olhar sobre o passado é resguardado por sua herança. A mesma herança que lhe deixou
o olhar vazio:
Sempre que falavam dele [do avô] a conversa era baixa, quase cochichada e
quando ela se aproximava, calavam. Diziam que ela se parecia muito com
ele em tudo, ano modo de olhar. Diziam que ela, assim como ele, gostava
de olhar o vazio. Ponciá Vicêncio não respondia, mas sabia para onde estava
olhando. Ela via tudo, via o próprio vazio”. (PV, 27-28)
A consciência de Ponciá sobre seu vazio nos confirma a introspecção da
personagem e não a loucura, como podem interpretar alguns. Ela parecia saber que o
destino ao lado daquele homem, naquele barraco, que poderia se situar em qualquer
favela do Brasil, não era seu destino. E o olhar indicava isso. Até o marido tinha medo
de penetrar nesse vazio, que na opinião dele, “era dela” (PV, 66). Em um curto
capítulo do romance, esse vazio é melhor explicado. Embora ele o tire da moça sua
consciência, deixa-a perdida, sem saber de si: “(...) era como se um buraco abrisse em si
90
própria, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo com o qual ela se
confundia. Mas continuava, entretanto, consciente de tudo ao seu redor” (PV, 44). A
passagem destacada nos faz lembrar as palavras de Marilena Chauí:
ao término da visão de minha ausência de mim mesma fecho-me
sobre mim. O que a filosofia da visão ensina à filosofia? Que ver não é
pensar e pensar o é ver, mas que sem a visão não podemos pensar, que o
pensamento nasce da sublimação do sensível no corpo glorioso da palavra
que configura campos de sentido a que damos o nome de idéias (1988, 60).
Assim, como Ponciá, a filósofa une visão e pensamento, visão e consciência,
configurando no olhar o ato de pensar, trabalhado pela ausência de si. E o mais
interessante ao final deste capítulo é que Ponciá confessa gostar dessa ausência, de estar
alheia ao seu próprio eu. Talvez esta fosse uma maneira de ela se encontrar com seu eu
verdadeiro, perdido em outro caminho, em outro destino. O “eu” que ela reencontrará ao
final do romance, junto dos seus. E esse encontro, pico dos romances de formação e
tão esperado ao longo da história de Ponciá, é propiciado pelo olhar. Luandi, em seu
primeiro dia de trabalho na estação de trem como soldado, “escorregava seu olhar de
um ponto a outro da pequena estação e eis que, de repente, capta uma imagem de uma
mulher que ia e vinha, num caminhar sem nexo, quase em círculo, no lado oposto em
que ele se encontrava” (PV, 126). Diante do que vira, o rapaz caminha em direção à
irmã e tenta levá-la consigo. Ela, chorando e rindo (antítese tão repetida durante o
romance e que expressa a mistura de tristeza e alegria das personagens e que remete ao
comportamento do avô), “levantou os olhos para ele, mas não se podia dizer se ela havia
reconhecido ou não” (PV, 126). Ao encontrar Luandi, Ponciá pergunta a ele sobre
Vicêncio, fazendo-o ter certeza de que ela precisa cumprir sua herança. Em seguida,
todos voltam à vila, ao rio, ao destino de Ponciá cumprido com sua volta à arte, ao
barro, à simbologia dos orixás.
91
Em sua dissertação de mestrado, Conceição Evaristo afirma que “a literatura
negra é um lugar de memória (1996, 24). Essa literatura, que traz para o leitor as
marcas desse passado não o distante, precisa dessa memória para reafirmar sua
identidade e sua cultura. A memória diaspórica, coletiva ou individual é a marca do
escritor afro-brasileiro, sua motivação e maneira de resgatar o passado, de livrá-lo do
esquecimento em que a sociedade brasileira teima em permanecer. A herança de Ponciá
lhe é intrínseca, assim como a memória o é para a literatura feminina e afro-brasileira.
92
CONCLUSÃO
A história
do negro
é um traço
num abraço
de ferro e fogo.
(Adão Ventura)
93
Identificar as marcas do discurso afrodescendente e feminino na literatura
brasileira foi um dos objetivos desse trabalho. Num momento de atual discussão na
crítica literária sobre tais conceitos, este trabalho surge com uma proposta de mostrar a
força estética dessa literatura através do romance Ponc Vicêncio. O livro de
Conceição Evaristo nos prova que é possível se fazer emergir uma literatura daqueles
autores que os livros didáticos ocultam, reafirmando uma História que sempre os omitiu
e os embranqueceu. Uma Literatura que os renegou e trouxe os personagens negros
encaixados em estereótipos e, na maioria das vezes, mudos e desprovidos, inclusive, do
olhar.
Em diversos momentos da narrativa Conceição se apropria gênero romance de
formação e apenas o modifica, sem subvertê-lo, o que o assemelha bastante ao
Bildungsroman de Goethe, como a presença da arte na vida e na formação da
protagonista; as viagens à procura da formação; os passos da estória romanesca e do
mythos da procura que sempre fizeram parte da trajetória do herói literário; o final do
romance que traz de volta a protagonista para sua origem e a herança pertencente à
personagem principal, legado da família.
Entretanto, a formação de Ponciá passa por caminhos muito diferentes daqueles
por que passaram os heróis romanescos dos Bildungsroman. Vimos na trajetória dessas
páginas os obstáculos que atravancaram o caminho diaspórico da personagem, tão
semelhantes àqueles que seus antepassados viveram, na literatura e na História. As
viagens da menina e de sua família carregam um valor simbólico tão importante, que
percorre todo o livro em um círculo que se fecha no seu final feliz, de reencontro com a
arte e com sua história individual e coletiva.
A memória que costura a estrutura do romance perpassa a linguagem do livro,
repleta de oralidade e de estórias contadas como fazem os griots africanos. A voz
94
narrativa, freqüentemente usada no discurso indireto livre, mistura as vozes das
personagens, e o lirismo que percorre o livro se torna mais intenso. A formação de
Ponciá passa também pelas vozes ancestrais e pelos saberes dos mais velhos,
representados no livro principalmente por Vicêncio e ngua Kainda. Outras
personagens de histórias paralelas à da protagonista também ajudam a alinhavar a
estrutura narrativa memorialística a que a autora se propõe; afinal, Bilisa carrega
consigo o passado de muitas mulheres brasileiras e o trágico final também de muitas
delas. O olhar que marca os textos afrodescendentes em Ponciá se transforma em
ausência/vazio e não deixa de ser janela da alma, reflexão do espírito. A Ponciá mulher
e negra, em seu barraco, acompanhada de um marido que a agride, subverte os heróis
conhecidos dos Bildgunsromane. Os símbolos e mitos que acompanham a formação da
menina-moça-mulher são diferentes dos mestres que educam os heróis masculinos dos
romances europeus. A autora, portanto, se apropria do modelo ocidental do
Bildungsroman para, em parte, subvertê-lo. Os ciclos vividos pela protagonista do
romance configuram-se como paródia das trajetórias de vida das personagens do
romance de formação europeu tradicional.
A apropriação do romance de formação realizada por Conceição Evaristo segue
uma linha histórico-literária feminina e negra construída por escritoras como Maria
Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, citadas neste trabalho. Entrevendo a
literatura delas, percebemos que a coragem dessas mulheres e dos homens como Luiz
Gama, Machado de Assis, Adão Ventura e tantos outros que iluminam hoje os escritores
do Quilombhoje ou de outros quilombos literários é que nos possibilita tantas leituras.
Ponciá Vicêncio se confirma então como um Bildungsroman feminino e afro-
brasileiro, trazendo para a literatura, através da diáspora de sua protagonista e da família
dela, a metáfora desse sofrimento ao mesmo tempo étnico, de gênero e de classe. Como
95
discutimos aqui através dos exemplos e das idas e vindas da própria protagonista, de sua
família e de outros personagens: dos sonhos brutalmente interrompidos de Bilisa; de
Luandi e sua formação através da ilusão de igualdade racial, de Maria Vicêncio e sua
materna intuição de mestre, Nêngua Kainda e suas sábias profecias, e até das
personagens sem nome que surgem na memória-denúncia na apropriação com traços
paródicos abraçada a “ferro e fogo” pela autora.
96
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100
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ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro:
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101
Anexo 1
ENTREVISTA COM CONCEIÇÃO EVARISTO
Realizada dia 18/07/07 em Belo Horizonte
1 Sei que o conceito de Literatura Afro-brasileira ainda é difícil de se fechar.
Muito temos discutido sobre o assunto, mas, para você, em poucas palavras, em
que consiste essa literatura?
Para mim a literatura afro-brasileira é uma produção literária nascida da experiência de
vida do sujeito negro na sociedade brasileira. Refiro-me agora às palavras de Eduardo
de Assis Duarte e de Cuti quando dizem que essa experiência negra se apresenta no
texto de maneira consciente ou inconsciente. Ou seja, se o sujeito se resguarda no tempo
com essa experiência negra, o ato de ele se resguardar é um indicativo. Eu não abro mão
de pensar que essa literatura afro-brasileira tem a ver com a experiência do negro
brasileiro.
2 - É conhecida sua frase "não nasci rodeada de livros, mas de palavras". Comente
como essa sua vivência com as palavras influencia sua literatura.
Essa minha experiência com as palavras me acumulou de histórias. Certamente ela me
ajudou a trabalhar minha sensibilidade diante das narrativas. Isso me provocou um certo
encantamento, uma certa curiosidade em querer ouvir mais. Hoje tenho consciência de
que quando ouço tais narrativas de familiares ou amigos, preparo meu ouvido para o
que poderei aproveitar dali, antes era inconsciente. Meu texto não é somente intuitivo,
eu o trabalho, escolho as palavras, leio-o em voz alta, choro com o texto. Essa
experimentação me trouxe o encantamento pelos sons das palavras. Gosto de ficar
testando-as. É nesse sentido que afirmo o ser intuitivo. Se é intuição, um trabalho
com ela. Eu costumo ficar meses com o texto na cabeça, experimentando-o.
3 – A escolha dos nomes dos personagens são exemplos dessa intuição?
Sim, eu não sei por exemplo, de onde veio o nome Ponciá. O nome Nêngua foi
intuitivo, sonoro. depois de muito tempo, descobri que o significado se encaixava,
como está escrito no dicionário de Nei Lopes. Gosto também de inventar nomes. Fico
procurando aqueles que me lembram a sonoridade das línguas africanas, como Ponciá,
Nêngua e Luandi. O prazer que o som da palavra me , me ajuda na escolha dos
nomes.
4 E os personagens masculinos? Alguns não têm nome como o pai e o marido de
Ponciá...
Me preocupou muito também porque não dei nome para esses dois, e coincidentemente
são personagens masculinos. Não quis dar invisibilidade a eles... E existem no romance
os personagens Luandi, Soldado Nestor, Negro Climério... Quanto a este último nome,
gosto da sonoridade, assim como gosto de Alírio, personagem de Becos da Memória.
o nome Davenga, personagem do conto “Ana Davenga”, surgiu assim: eu estava em
algum lugar quando alguém contou de um Davenga que dançava jongo. Achei na hora o
nome bonito. Agora, em Ponciá Vicêncio, fui ao dicionário banto para escolher palavras
102
como “angorô”. Eu sabia que as pessoas associariam o arco-íris ao mito de Oxumaré,
mas quis valorizar a cultura banto.
5 - O que personagens como Nêngua Kainda e Vicêncio representaram na
criação do romance, já que elas estão tão ligadas à memória coletiva?
Algumas vezes crio primeiro os personagens e depois o enredo do romance. Não me
lembro se foi assim com Ponciá Vicêncio, porque o escrevi muito tempo. Quando
criei a personagem Nêngua, achei-a parecida com o personagem velho e sábio que
nome ao romance Jubiabá, de Jorge Amado. Se foi uma influência, não sei. Lembro
pouco do personagem mas sua imagem de conselheiro ficou na minha memória.
Quando escrevi “Ana Davenga”, a primeira imagem que me veio na cabeça foi a de
“Meu guri”, de Chico Buarque. Com isso quero dizer que interferências, intertextos.
Isso pra explicar que eu realmente não sabia o significado de Nêngua, mas pode ter
havido certa influência intuitivamente, inconscientemente. A escrita tem muito disso.
Às vezes me uma certa insatisfação por ser Vicêncio. Eu acho que eu queria que
fosse uma avó. Depois que reli o texto fiquei pensando: porque eu não coloquei uma
mulher? Também outro aspecto que chama a atenção no romance é que a esperança e a
resolução do enredo vêm através de Luandi, pela sua retomada de consciência.
6 - Em Ponciá Vicêncio, a questão da arte é fundamental para a estrutura do
romance. Como você vê o trabalho do barro feito por sua protagonista?
O barro pra Ponciá é a arte. E eu acho que a arte é uma forma de escapatória. Como foi
para Bispo do Rosário. A arte te a possibilidade de viver no meio de tudo sem
enlouquecer de vez. Ela permite suportar o mundo. O ser humano tem essa necessidade.
O que mantinha Ponciá viva e o que possibilitou o reencontro com sua família foi o
barro. No final, quando ela anda em rculos é como se estivesse trabalhando uma
massa imaginária. Ela cuida das ausências porque estas se percebem e se transferem
para o corpo, como com Vô Vicêncio, com o braço cotó. A ausência de sua mão é que o
faz reconhecido, percebido. Eu trabalhei bastante o texto final do livro. Eu queria falar
da própria arte da literatura. Quando construo o texto e trabalho as palavras, é como
Ponciá trabalha o barro. Aquele cuidado dela é como o que a escritora tem com a feitura
do texto. No final, são passado e presente se juntando. um trecho que ilustra isso [a
escritora abre o livro e lê em voz alta]: “com o zelo da arte, atentava para as porções das
sobras, a massa excedente, assim como buscava ainda significar as mutilações e as
ausências que também conformam um corpo. Suas mãos seguiam reinventando sempre
e sempre. E quando quase interrompia o manuseio da arte, era como se perseguisse o
manuseio da vida, buscando fundir tudo num ato só, igualando as faces da moeda (PV,
131)”. Essa arte é a escrevivência.
7 – E sobre o orixá Nanã e sua relação com o barro no romance?
Quanto ao mito de Nanã, eu não me lembrei dele quando escrevi o romance. Eu sabia
do mito de Oxumaré, embora o tenha me vindo à cabeça quando escrevi o livro. O
arco-íris veio de minhas lembranças de menina.
8 Sobre o final do romance, algumas interpretações que o consideram triste,
com a protagonista terminando louca. O que você acha?
103
Acho que no final Ponciá se apazigua, porque, se viver a loucura até as últimas
conseqüências é uma forma de apaziguamento, ela se apazigua. Em seu momento de
ausência, no olhar vazio, ela via muito mais do que outras pessoas. Mas muitas
interpretações, como a morte de Ponciá, um afogamento... me pediram que
escrevesse outro romance a partir do final deste, mas acho que nunca será Ponciá
novamente. Admito que uma tristeza que persegue a personagem e acredito que essa
tristeza é a própria solidão do ser humano.
9 - Sabemos que seus dois romances demoraram a chegar ao público. Como é seu
tempo de elaboração da escrita?
Eu demoro a escrever. Não acho que preciso correr. Tenho dificuldade para cumprir os
prazos [risos], meu tempo é outro. Mas essa demora ocorre primeiro, porque tem a
questão da insegurança: “será que esse texto está bom mesmo? Será que já posso
mostrá-lo?”. se junta a dificuldade de publicar um livro também. Ponciá foi
publicado porque a professora Maria José Somerlate, depois de tomar conhecimento do
livro, insistiu que eu o publicasse, mas apesar da vontade, eu tinha inibição. Então
Maria José me apresentou a Mazza, que publicou o livro através de sua editora.
10 - Na Literatura Afro-brasileira são comuns as apropriações e as paródias.
Como é o caso de Oliveira Silveira e a "Outra Nega Fulô", também "Licença, meu
branco", de Márcio Barbosa, que parodia Manuel Bandeira. Esses são exemplos
de poemas, mas, no seu caso, podemos considerar Ponciá Vicêncio uma
apropriação do gênero "romance de formação"?
Olha, quando li seu texto e o de Eduardo percebi que a trajetória de Ponciá Vicêncio
não é uma trajetória do herói clássico, parece que ela chega ao final sem nada. E Luandi
joga fora aquela vitória, aquela farda e vai começar por outro caminho, que não seria o
chamado “vitorioso”. Em Becos da Memória, temos Rita, que também não tinha
bens materiais, e sua trajetória no final ganha outros contornos. Zilá Bernd, por exemplo
afirma que Zumbi representa esse grande herói porque, além de ser um escravo, ele era
um escravo fugido. Em Salvador, nas comemorações dos 300 anos de Zumbi, foi
declamada uma frase que ficou entre nós: “estamos comemorando 300 anos da
imortalidade de Zumbi”. Fiquei pensando nessa trajetória de heróis que a gente conhece
e fiquei pensando nesse Zumbi cuja vitória nós ali ainda comemorávamos 300 anos
depois. Sua heroicidade vem da resistência e persistência. Por isso foi um herói negro,
embora hoje seja considerado um herói nacional. Quando Solano Trindade canta que
sua voz é a voz de Zumbi, ele se sente seu herdeiro. Então, a heroicidade de Zumbi não
se completa nele, ela se faz ao longo dos anos na própria coletividade que ele
representa. Daí fico pensando: seque os textos Ponciá Vicêncio e Becos da Memória
não apontariam uma forma diferente de desenrolar a história? O que indica que Ponciá
perdeu? Será que encontrar sua ancestralidade é uma perda? Será que Rita
continuando todo trabalho dela, saiu sem nada? A narradora de Becos tem a certeza,
desde o início, que um dia escreveria aquela história. Essa forma de escrever ou
reescrever apresenta sim uma paródia, mas não explícita. Uma vez ouvi Marina
Colasanti lendo um conto seu lindíssimo que se chama “Menina de vermelho a caminho
da lua”. Quando ela acabou a leitura, alguma coisa me incomodou. Em conversas com
Miriam Alves, tentava descobrir o que era, pensei que se fosse uma de nós escrevendo
aquela história, seria diferente. Porque a personagem que faz uma prostituta era culpada
104
e algoz ao mesmo tempo, o é uma prostituta Bilisa. Então se nós tivéssemos escrito
“Menina de vermelho a caminho da lua”, seria de outra forma, talvez aí esteja a paródia.
105
Anexo 2
Capa do romance publicado em 2003
106
Anexo 3
Capa do romance publicado em inglês em 2006
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