103
Acho que no final Ponciá se apazigua, porque, se viver a loucura até as últimas
conseqüências é uma forma de apaziguamento, ela se apazigua. Em seu momento de
ausência, no olhar vazio, ela via muito mais do que outras pessoas. Mas há muitas
interpretações, como a morte de Ponciá, um afogamento... Já me pediram que
escrevesse outro romance a partir do final deste, mas acho que nunca será Ponciá
novamente. Admito que há uma tristeza que persegue a personagem e acredito que essa
tristeza é a própria solidão do ser humano.
9 - Sabemos que seus dois romances demoraram a chegar ao público. Como é seu
tempo de elaboração da escrita?
Eu demoro a escrever. Não acho que preciso correr. Tenho dificuldade para cumprir os
prazos [risos], meu tempo é outro. Mas essa demora ocorre primeiro, porque tem a
questão da insegurança: “será que esse texto está bom mesmo? Será que já posso
mostrá-lo?”. Aí se junta a dificuldade de publicar um livro também. Ponciá só foi
publicado porque a professora Maria José Somerlate, depois de tomar conhecimento do
livro, insistiu que eu o publicasse, mas apesar da vontade, eu tinha inibição. Então
Maria José me apresentou a Mazza, que publicou o livro através de sua editora.
10 - Na Literatura Afro-brasileira são comuns as apropriações e as paródias.
Como é o caso de Oliveira Silveira e a "Outra Nega Fulô", também "Licença, meu
branco", de Márcio Barbosa, que parodia Manuel Bandeira. Esses são exemplos
de poemas, mas, no seu caso, podemos considerar Ponciá Vicêncio uma
apropriação do gênero "romance de formação"?
Olha, quando li seu texto e o de Eduardo percebi que a trajetória de Ponciá Vicêncio
não é uma trajetória do herói clássico, parece que ela chega ao final sem nada. E Luandi
joga fora aquela vitória, aquela farda e vai começar por outro caminho, que não seria o
chamado “vitorioso”. Em Becos da Memória, temos Vó Rita, que também não tinha
bens materiais, e sua trajetória no final ganha outros contornos. Zilá Bernd, por exemplo
afirma que Zumbi representa esse grande herói porque, além de ser um escravo, ele era
um escravo fugido. Em Salvador, nas comemorações dos 300 anos de Zumbi, foi
declamada uma frase que ficou entre nós: “estamos comemorando 300 anos da
imortalidade de Zumbi”. Fiquei pensando nessa trajetória de heróis que a gente conhece
e fiquei pensando nesse Zumbi cuja vitória nós ali ainda comemorávamos 300 anos
depois. Sua heroicidade vem da resistência e persistência. Por isso foi um herói negro,
embora hoje seja considerado um herói nacional. Quando Solano Trindade canta que
sua voz é a voz de Zumbi, ele se sente seu herdeiro. Então, a heroicidade de Zumbi não
se completa nele, ela se faz ao longo dos anos na própria coletividade que ele
representa. Daí fico pensando: será que os textos Ponciá Vicêncio e Becos da Memória
não apontariam uma forma diferente de desenrolar a história? O que indica que Ponciá
perdeu? Será que encontrar sua ancestralidade é uma perda? Será que Vó Rita
continuando todo trabalho dela, saiu sem nada? A narradora de Becos tem a certeza,
desde o início, que um dia escreveria aquela história. Essa forma de escrever ou
reescrever apresenta sim uma paródia, mas não explícita. Uma vez ouvi Marina
Colasanti lendo um conto seu lindíssimo que se chama “Menina de vermelho a caminho
da lua”. Quando ela acabou a leitura, alguma coisa me incomodou. Em conversas com
Miriam Alves, tentava descobrir o que era, pensei que se fosse uma de nós escrevendo
aquela história, seria diferente. Porque a personagem que faz uma prostituta era culpada