Download PDF
ads:
unioeste
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
CAMPUS DE TOLEDO
ELEMAR KLEBER FAVRETO
DELEUZE E A UNIVOCIDADE DO SER
UM NOVO AGENCIAMENTO PARA
UMA FILOSOFIA DA DIFERENÇA
TOLEDO
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
ELEMAR KLEBER FAVRETO
DELEUZE E A UNIVOCIDADE DO SER
UM NOVO AGENCIAMENTO PARA
UMA FILOSOFIA DA DIFERENÇA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação, em Filosofia, do Centro
de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Estadual do Oeste do
Paraná - Campus de Toledo, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Eládio
Constantino Pablo Craia.
TOLEDO
2007
ads:
iii
ELEMAR KLEBER FAVRETO
DELEUZE E A UNIVOCIDADE DO SER
UM NOVO AGENCIAMENTO PARA
UMA FILOSOFIA DA DIFERENÇA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação, em Filosofia, do Centro
de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Estadual do Oeste do
Paraná - Campus de Toledo, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre.
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. Eládio C. P. Craia (orientador)
Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Jr. (membro)
Prf. Dr. Alberto M. Onate (membro)
TOLEDO, 26 de julho de 2007.
iv
À Rô, por despertar em mim
um sentimento tão intenso...
E ao Korolard, por se
tornar um novo simulacro
de um suposto “eu
mesmo”...
v
AGRADECIMENTOS
À Capes, pelo apoio financeiro.
À UNIOESTE, por Alma Matter.
Ao professor Eládio, por me apresentar Deleuze, por me orientar nestes caminhos tão
alegres de sua escrita e por me ensinar portunhol tão perfeitamente.
Ao professor Luiz B. L. Orlandi, pela sua dedicação em filosofia, pelas traduções das
obras deleuzianas e pelos trabalhos, artigos e seminários, tão preciosos para nós, deleuzianos.
Ao professor Hélio Rebello Cardoso Júnior, por aceitar participar deste projeto.
Aos professores Alberto Marcos Onate e Luis Manoel Lopes, pelas orientações e pelas
inúmeras contribuições na qualificação, além das diversas discussões filosóficas que tive o
prazer de participar.
A todos os professores da UNIOESTE, em particular aos professores do programa de
pós-graduação em Filosofia.
A todos os colegas do programa de pós-graduação em Filosofia da UNIOESTE, em
especial a Vanessa, Belei, Evandro, Samir, Vitor, Otacílio, Paulo, Rafael, Célia, Ricardo, Joel
e Daniel.
Ao professor Horácio e à sua família, por nos receber em Rosário e por nos apresentar
às diversas belezas dessa cidade tão acolhedora.
Ao professor Célio Escher, pelo valioso auxílio na correção dos meus vários deslizes
do português.
Ao amigo Cleber, por compartilhar comigo as suas leituras de Nietzsche, Heidegger e
Husserl, tão significativas para o desenvolvimento deste e de outros trabalhos.
Aos amigos, colegas e professores: Alterlei, Gládis, Gisleine, Portela, Jadir e Perin,
pelas conversas sobre filosofia.
Aos velhos e novos amigos, que, de alguma forma, me apoiaram nas diversas fases de
minha vida.
À Natália, por nos auxiliar com nossas dúvidas burocráticas, por aturar nossas idas e
vindas da secretaria de pós-graduação e por organizar os jantares tão saborosos.
À Rosangela, não só por ter compartilhado comigo das euforias e tensões deste
processo, mas por me suportar desde o tempo de graduação.
Aos familiares, em especial aos meus pais e irmãos, pela vida e experiência que me
proporcionaram.
À pura imanência, pela vida mesma e as singularidades que a constituem.
vi
A filosofia se confunde com a ontologia, mas a ontologia se confunde com a
univocidade do ser (a analogia foi sempre uma visão teológica, não
filosófica, adaptada às formas de Deus, do mundo e do eu). A univocidade
do ser não significa que haja um só e mesmo ser: ao contrário, os existentes
são múltiplos e diferentes, sempre produzidos por uma síntese disjuntiva,
eles próprios disjuntos e divergentes, membra disjuncta. A univocidade do
ser significa que o ser é Voz, que ele se diz em um só e mesmo “sentido” de
tudo aquilo de que se diz. Aquilo de que se diz não é, em absoluto, o
mesmo. Mas ele é o mesmo para tudo aquilo de que se diz.
Gilles Deleuze
vii
FAVRETO, Elemar Kleber. Deleuze e a univocidade do Ser - Um novo agenciamento para
uma filosofia da diferença. 208 páginas. Dissertação de Mestrado em Filosofia – Área de
concentração: Metafísica e teoria do conhecimento – Programa de Pós-Graduação em
Filosofia, Centro de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
Campus de Toledo.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo principal a questão deleuziana acerca
da univocidade do Ser. Em um primeiro momento, a presente pesquisa aborda os diversos
agenciamentos feitos por Deleuze dos principais autores do platonismo, pensamento que
constituiu as bases da representação e da transcendência através de quatro raízes: identidade,
semelhança, analogia e oposição. Seguidamente é agenciada a filosofia que, segundo Deleuze,
ainda pode nos trazer uma interpretação do não-Ser como negativo, ou melhor, que ainda
pode nos trazer o niilismo como forma de pensamento. Em um terceiro momento, o
agenciamento deleuziano percorre as principais filosofias que constituem o que ele chamou de
“momentos do unívoco”. Tais momentos caracterizam as principais teorias que combatem a
transcendência e a representação como princípios, invocando a imanência e a repetição como
suas principais armas. Finalmente, o horizonte ontológico deleuziano que compreende um
sentido único para o Ser é alcançado, vislumbrando um vasto campo de análise, que nos leva
a pensar o sentido como acontecimento, o Ser como expressão e a síntese disjuntiva como
afirmação do Ser.
Palavras-Chaves: Ser, agenciamento, univocidade, diferença, ontologia.
viii
FAVRETO, Elemar Kleber. Deleuze and the unique sense of Being - A new agency to a
philosophy of difference. 208 pages. Dissertation of Master's degree in Philosophy –
Concentration area: Metaphysics and theory of the knowledge – Program of Master’s degree
in Philosophy, Center of Sciences Humanities and Social - State University of the West of
Paraná, Campus of Toledo.
ABSTRACT
The present work has for main objective the Deleuze’s question concerning
the unique sense of Being. At first, the present research approaches the different agencies
done by Deleuze of the principal authors of Platonism, thought that constituted the bases of
the representation and transcendence through four roots: identity, similarity, analogy and
opposition. Next, the philosophy that, according to Deleuze, can still bring us an interpretation
of not-Being as negative, or better, that can still bring us the Nihilism as form of thought is
negotiated. In a third moment, the Deleuze’s agency reports the main philosophies that
constitute what he called “moments of the unique sense”, such moments characterize the main
theories that oppose the transcendence and the representation as principles, invoking the
immanence and the repetition as their principal weapons. Finally, the horizon of the Deleuze’s
ontology that understands an only sense of Being is accomplished, antecipating a vast field of
analysis that leads us to think the sense as an event, the Being as expression and the
disjunctive synthesis as the assertion of Being.
Key-Words: Being, agency, unique sense, difference, ontology
ix
LISTA DE ABREVIATURAS
B: Bergsonismo.
CO: Conversações, 1972-1990.
DR: Diferença e Repetição.
F: Foucault.
LS: Lógica do Sentido.
MP: Mil Platôs.
NF: Nietzsche e a Filosofia.
QPh: O que é a Filosofia?
SPE: Spinoza e o problema da expressão.
x
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................01
CAPÍTULO I
DELEUZE E A “QUÁDRUPLA RAIZ DA REPRESENTAÇÃO”: A IMAGEM
DOGMÁTICA DO PENSAMENTO.......................................................................................11
INTRODUÇÃO........................................................................................................................12
A “REVERSÃO DO PLATONISMO” - Simulacro e Representação......................................14
Apresentação.............................................................................................................................14
1. O Âmbito Moral (ou Político) da Questão............................................................................17
1.1. A “Dualidade Manifesta” como Divisão do Conhecimento..............................................18
1.2. A “Dualidade Latente” como Condenação do Sofista.......................................................22
1.3. O “Ideal Ascético” como Motivação Moral do Platonismo...............................................27
2. O Âmbito Ontológico da Questão.........................................................................................29
2.1. A Crítica Deleuziana ao Platonismo ou à Imagem Dogmática do Pensamento................30
2.2. Um Retorno a Platão – Deleuze e a Dialética....................................................................32
3. Da “Quádrupla Raiz da Representação”...............................................................................38
3.1. Da Semelhança Platônica...................................................................................................38
3.2. Das Categorias do Platonismo ou do Platonismo Aristotélico..........................................44
3.2.1. Da Identidade e da Oposição Aristotélica.......................................................................45
3.2.1.1. Da Analogia.................................................................................................................50
4. Do Simulacro Deleuziano.....................................................................................................53
CONCLUSÃO..........................................................................................................................57
CAPÍTULO II
DELEUZE E A "ILUSÃO DO NEGATIVO".....................................................................60
INTRODUÇÃO........................................................................................................................61
DO NEGATIVO - O Cuidado sobre a Interpretação da Diferença..........................................64
Apresentação.............................................................................................................................64
1. Da Oposição Hegeliana e do Não-Ser como Negativo.........................................................65
1.1. Da Oposição Hegeliana......................................................................................................66
1.1.1. A Volta à Terceira Raiz da Representação.....................................................................67
1.2. Da Dialética Hegeliana e do Não-Ser como Negativo.......................................................71
xi
2. Do Dasein e do Nada Heideggerianos e da Diferença como Margem à Interpretação do
Negativo....................................................................................................................................76
2.1. O Dasein como Interpretação Negativa do Ser: a Dobra, o Ser-para-a-morte e a
Compreensão Pré-Ontológica do Ser........................................................................................78
2.1.1. Do Dasein como Dobra Ontológica...............................................................................79
2.1.2. Do Dasein como Ser-para-a-morte................................................................................83
2.1.3. Da Compreensão Pré-ontológica do Ser.........................................................................86
2.2. Heidegger e o Ser como Negativo do Nada.......................................................................91
CONCLUSÃO..........................................................................................................................95
CAPÍTULO III
“DOS MOMENTOS DO UNÍVOCO”.................................................................................98
INTRODUÇÃO........................................................................................................................99
DOS TRÊS MOMENTOS DO UNÍVOCO – Duns Scott, Espinosa e Nietzsche..................101
Apresentação...........................................................................................................................101
1. Duns Scott e o Ser Neutro como Ser Unívoco....................................................................102
1.1. Das Três Questões que Fazem de Duns Scott um Legítimo Representante da Univocidade
do Ser......................................................................................................................................103
1.2. Sobre as Duas Distinções em Scott: Formal e Modal – Ou sobre o Ser Neutro como Ser
Unívoco...................................................................................................................................106
1.2.1. A Distinção Formal – Univocidade e Atributos............................................................108
1.2.2. A Distinção Modal – Intensidade e Multiplicidade......................................................109
1.3. Espinosa e Scott – Semelhanças e Influências.................................................................110
2. Espinosa e a Voz Expressiva do Ser...................................................................................111
2.1. A Substância Única e a sua Expressão.............................................................................113
2.1.1. Os Atributos e a Lógica da Distinção Real...................................................................114
2.1.2. Da Potência...................................................................................................................119
2.1.2.1. Potência e Atributos...................................................................................................121
2.1.2.2. Potência e Modos.......................................................................................................122
2.1.3. Os Modos Existentes e a Distinção Extrínseca.............................................................124
2.1.4. Da Expressão.................................................................................................................127
2.2. De Espinosa a Nietzsche..................................................................................................129
3. Nietzsche e o Eterno Retorno da Vontade de Poder...........................................................131
3.1. Da Vontade de Poder.......................................................................................................132
3.2. Do Eterno Retorno do Mesmo como Retorno da Diferença............................................136
xii
3.2.1. O Aspecto Ético e Ontológico do Eterno Retorno........................................................137
3.2.1.1. A Seleção Ética do Eterno Retorno............................................................................137
3.2.1.2. A Seleção Ontológica do Eterno Retorno..................................................................139
3.3. Eterno Retorno e Vontade de Poder – Repetição e Diferença.........................................142
CONCLUSÃO........................................................................................................................145
CAPÍTULO IV
DELEUZE E O SER COMO DIFERENÇA......................................................................149
INTRODUÇÃO......................................................................................................................150
O QUARTO MOMENTO DO UNÍVOCO – Deleuze e a Diferença.....................................152
Apresentação...........................................................................................................................152
1. O Outro Sentido do “Sentido”............................................................................................152
1.1. A Quarta Dimensão da Proposição: O Sentido-Acontecimento......................................155
1.2. Chrónos e Aiõn – As Duas Naturezas do Tempo.............................................................162
2. Univocidade do Ser – Síntese, Expressão, Repetição e Diferença.....................................169
2.1. Da Síntese Disjuntiva.......................................................................................................170
2.2. Do Ser como Diferença Expressiva e da Repetição como Repetição da Diferença........173
CONCLUSÃO........................................................................................................................178
CONCLUSÃO.......................................................................................................................181
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................190
Obras de Gilles Deleuze..........................................................................................................191
Obras de Comentadores..........................................................................................................192
Obras de Outros Autores.........................................................................................................193
INTRODUÇÃO
2
Durante séculos a filosofia, as religiões, e, nos últimos tempos, a “ciência
moderna” procurou o “sentido do existente”, ou daquilo que se apresenta como mundo, como
humano e como Deus. Por milênios acreditamos em um fundamento, um “Ser Supremo”, que
criou o cosmos e que se oculta aos nossos olhos, como se fôssemos ainda impuros para vê-lo,
ou percebê-lo. Julgamos ter sido o mundo um produto desta identidade primeira, um produto
deste “Um”, desta unidade; que tenha sido o “Um” quem deu forma ao “Dois”, ao “Três” e ao
múltiplo. Apegamos-nos ao “Um”, como se ele mesmo tivesse uma existência real e concreta,
uma existência separada deste mundo temporal, e como se fosse ele a fonte da nossa própria
existência. Talvez acreditemos nisso ainda por razões morais, para que a vida em sociedade
seja possível; por questões estéticas, para que o Belo possua um fundamento; por motivos
ontológicos, para que o Ser não seja corrompido pelo movimento; ou por tantas outras razões
que ainda não imaginamos.
Não podemos, todavia, negar que o pensamento, desde a Antigüidade, se
formou dessa gota de caos que se insere no mundo, desta fagulha de diferença que se coloca
no tempo. Pensamos porque precisamos explicar por que mudamos; por que o vento sopra;
por que envelhecemos; por que a chuva cai. O porquê das coisas. Parecem ser os
questionamentos que nos fazem pensar, os porquês que nos fazem refletir e parece ser a
diferença que move os problemas e as questões. Não somos corpos estáticos perdidos num
mundo atemporal, não somos sombras imóveis erguidas numa eternidade imóvel. Somos
movimento puro, pura diferença que se propaga por um tempo que sempre nos consome, mas
também que nos guia e nos faz “marchar”.
Tais apontamentos parecem se direcionar a uma única questão: “Por que há
simplesmente a Identidade e não antes a Diferença?”. A questão, aparentemente sem sentido,
parece ser, na verdade, uma das questões primordiais da filosofia, como se a história do
pensamento não cessasse de percorrê-la, não parasse de se reportar a ela, mas também dela
sempre fugir e se afastar. O problema é que a identidade ainda nos parece ser uma boa
alternativa para fugirmos do caos e do “fluxo”, já que não podemos conceber uma diferença
anterior à unidade, pois é a unidade idêntica que configura o comércio entre Deus, o mundo e
o homem. Mesmo assim, a questão ora apresentada ainda perdura e se oculta por detrás de
todas as perguntas propriamente filosóficas, não como um fundamento ontológico, mas como
um problema que se abre e se desenrola em novas “questões-problema”. E é através delas que
o pensamento parece encontrar novos pontos de vista e novas perspectivas, enfim, parece
encontrar novos rumos para o seu desenvolvimento.
3
Não será, porém, nosso intuito neste trabalho investigar quais foram as
causas deste abandono da diferença em prol da identidade, nem as causas históricas deste
ocultamento. A questão que nos envolve é determinar e apresentar os principais aspectos e
características da Univocidade do Ser em Gilles Deleuze; e tal problema transitará por aquilo
que Deleuze denominou como o conceito de agenciamento
1
. O agenciamento é a forma que
ele encontra para visitar a história da filosofia e destacar entre seus diversos autores aqueles
que indicaram o âmbito desta problemática, ou que dela se desviaram para encontrar no
“modelo superior” um ponto de apoio e fundamento.
Não queremos, com a problemática aqui apresentada, fazer da própria
filosofia deleuziana uma espécie de doutrina ou um modo de fundamento para organizar
qualquer outra forma de pensamento; ao contrário, queremos apenas expor seus
questionamentos e configurações problemáticas quanto a estes agenciamentos maquínicos que
fazem com que o seu pensamento se torne um novo território, ou uma nova maneira de se
conceber o pensamento. A reflexão deleuziana em torno da Univocidade do Ser é, como ele
1
O agenciamento é, em última instância, a marca de uma certa configuração, seja ela material, social, ou, neste
caso, conceitual. A tarefa deleuziana é fazer com que o agenciamento seja um processo pelo qual produzimos
novos e diversos conceitos (ou a tarefa da filosofia segundo O que é a filosofia?) em cima destas configurações
conceituais já existentes. Por exemplo: os signos eterno retorno, vontade de poder, potência, substância única,
etc., remetem a algumas configurações conceituais já existentes na história da filosofia, como Nietzsche e
Espinosa; entretanto, Deleuze resgata estes conceitos com o intuito de trazer à tona um novo ponto de vista
sobre eles, ou uma nova configuração conceitual. O conceito de agenciamento vem substituir, segundo
Zourabichvili, em seu O vocabulário de Deleuze (vocábulo Agenciamento), depois de Kafka. Por uma
literatura menor, o conceito de Máquinas Desejantes, que se remetia ao desejo como uma construção
maquínica. Não é, entretanto, nosso intuito aqui resgatar esta discussão acerca do agenciamento e das
“máquinas desejantes” e sim resgatar uma leitura do agenciamento como sendo esta configuração a que nos
referíamos acima. Assim Zourabichvili comenta: “Esse conceito pode parecer à primeira vista de uso amplo e
indeterminado: remete, segundo o caso, a instituições muito fortemente territorializadas (agenciamento
judiciário, conjugal, familiar etc.), a formações íntimas desterritorializantes (devir-animal etc.), enfim ao campo
de experiência em que se elaboram essas formações [...]. Dir-se-á portanto, numa primeira aproximação, que se
está em presença de um agenciamento todas as vezes em que pudermos identificar e descrever o acoplamento
de um conjunto de relações materiais e de um regime de signos correspondente” [ZOURABICHVILI, François.
O vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. (Conexões; 24), p. 20.
Em diante (Zourabichvili, 2004)]. A leitura que aqui podemos fazer com respeito à tarefa em que nosso filósofo
se empenha a realizar por meio do agenciamento pode ser pensada através de um outro conceito deleuziano
surgido no Anti-Édipo: o conceito de desterritorialização. A configuração de um agenciamento pode ser vista,
nesta leitura, como um território; e a produção desta configuração caracteriza uma territorialização. A filosofia
como produção, contudo, não pode ser vista como hierárquica, e sim como uma filosofia nômade. Sendo
nômade, ela cumpre um papel que não visa apenas um único território a ser explorado, mesmo que este
território já signifique uma multiplicidade de signos, e sim uma diversidade de territórios; deste modo, para
pensar a filosofia de Deleuze (ou de Deleuze e Guattari), devemos pensar também através desta
desterritorialização. A desterritorialização é o processo pelo qual o filósofo “desmonta” um território e o
“remonta” em uma nova “região”, constituindo assim um novo processo de territorialização, ou a chamada
reterritorialização. Isso fará com que um novo território seja produzido com os mesmos signos e materiais,
mas sem que seja o mesmo, senão sempre diferente. A filosofia deleuziana e deleuzo-guattariana se constituem
como esta produção de novos territórios sempre através destes dois processos, a desterritorialização e a
reterritorialização. Veremos posteriormente como o agenciamento deleuziano nos colocará em contato com o
problema que nos leva à imagem do pensamento e às quatro raízes da representação e como, também através
dele, há esta tentativa, por parte de nosso filósofo, de fugir desta imagem dogmática do pensamento.
4
mesmo parece definir, um quarto momento na história do pensamento que se reporta ao Ser
como unívoco, portanto, antes dele haveria outros que apontaram para este questionamento.
Desta maneira, não podemos conceber a sua filosofia como a única forma de se pensar o Ser
em um único sentido, como se ela se fechasse num sistema que delimita a questão formulada.
Ao contrário, não há um “sistema fechado” em Deleuze, mas, sim, um “sistema aberto”, que
age como um sistema-radícula ou um rizoma
2
, sem morada fixa e sem um profundo ponto
fundante. É importante ressaltar esta questão para que não caiamos em certas armadilhas do
pensamento, que nos levam a postular um caráter doutrinário ou fundacional da filosofia.
Teremos como base de investigação neste trabalho dois textos principais de
nosso autor, que trazem com maior especificidade a questão da univocidade como uma
releitura e como uma nova maneira de pensar o Ser; estes textos são: Diferença e repetição e
Lógica do sentido. Este centramento não descartará, entretanto, a nossa remissão ao restante
de sua obra e nem significará um engessamento da questão referida nestas duas obras
principais. Diferença e repetição e Lógica do sentido servirão de base para a nossa
investigação, mas, como vimos, a filosofia de Deleuze não possui um ponto profundo e
fundante. Ao contrário, essa filosofia deve ser vista como um rizoma, como uma
multiplicidade e não como uma unidade. Ela, por ser um pensamento feito por agenciamentos,
deve ser vista como uma diversidade de raízes secundárias que se ligam uma à outra de uma
forma que não há um fundamento primeiro e profundo, um abismo onde se esconde a base ou
a raiz principal, e sim uma ramificação de pequenos bulbos fundantes que se estabelecem por
si mesmos desde a superfície que se coloca
3
. Não tendo este caráter de fundamento, é
importante frisar que o recorte que aqui fazemos sobre a univocidade não deve ser pensado
neste sentido, como um fundamento para a filosofia de Deleuze. A questão que aqui
colocamos tem unicamente o caráter de um recorte investigativo e não de um conceito
2
O conceito de rizoma é trabalhado por Deleuze, junto com Guattari, na introdução de Mil platôs. Ele funciona
como este sistema aberto que não tem ponto fixo. O rizoma não possui uma raiz principal, mas uma
multiplicidade de raízes secundárias que se ramificam e se colocam em marcha para o desenvolvimento: “É
preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira
simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o
uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser construída;
escrever n-1. um tal sistema poderia ser chamado de rizoma. Um rizoma como haste subterrânea distingue-se
absolutamente das raízes e radículas. Os bulbos, os tubérculos, são rizomas” (MP, V. I, p. 14-5). O sistema-
rizoma, assim, não se fecha sobre uma unidade específica. Ao contrário, abre-se para uma multiplicidade
sempre diferencial. A filosofia deleuziana pode ser dita, deste modo, como uma filosofia rizomática, já que não
se fecha num conceito-fundamento último. Pelo contrário, seus múltiplos conceitos é que formam o
fundamento de todo o sistema, de uma maneira sempre imanente e insistente. Para uma melhor visualização
deste conceito, cf. MP, V. I, Introdução: Rizoma.
3
MP, V. I, p. 13-4.
5
privilegiado sobre os outros diversos que aqui poderíamos usar para empreender uma
investigação.
Devemos ressaltar ainda, antes de continuarmos, que Deleuze absorve o
néctar dionisíaco-nietzschiano na construção de seus conceitos; contudo, ele também se
distingue da filosofia de Nietzsche. Não que Deleuze vá mais longe que o filósofo alemão, ou
que a sua filosofia o supera. Longe disso, o pensamento deleuziano apenas se diferencia, já
que ele constrói uma malha de conceitos, personagens conceituais
4
e agenciamentos distintos
dos que Nietzsche cria; enfim, nosso filósofo cria um novo plano de imanência
5
. Os conceitos
de acontecimento, síntese disjuntiva, imanência, repetição, entre outros, são exemplos deste
novo plano de imanência que é criado. Mas, se dizíamos que o filósofo francês bebeu da fonte
nietzschiana, como a sua filosofia pode ser distinta desta? A questão é que o agenciamento
que Deleuze faz de Nietzsche se ressalta entre os outros, pois se mostra como um novo
momento na história da filosofia, um novo re-começo. Como não se cansa de repetir Deleuze
em Nietzsche e a filosofia, trata-se da criação de uma nova forma de pensar, a nova imagem
do pensamento
6
. O filósofo alemão é o primeiro, segundo nosso autor, a fazer uma filosofia
4
O personagem conceitual não é unicamente um personagem de diálogo, mesmo que seja privilegiado entre os
outros, não pode ser confundido como um interlocutor ou um representante do autor. O personagem conceitual
é, segundo Deleuze e Guattari, um legítimo criador de conceitos e também aquele que articula toda esta malha
de conceitos criados e agenciados. Não é o personagem que serve o filósofo. É o filósofo que serve os seus
personagens; o filósofo fala por eles, doa sua linguagem para que os seus personagens falem, para que eles
produzam e propaguem os seus conceitos. A questão dos personagens conceituais não será trabalhada nesta
dissertação, mas é uma das passagens mais fortes e belas de O que é a filosofia?. Para maiores esclarecimentos,
cf. QPh, p. 83-109.
5
Se a filosofia deleuziana, como dizíamos anteriormente, é uma filosofia rizomática, composta de bulbos e
platôs sempre expostos na superfície, o plano de imanência compõe a única forma possível de unidade destes
rizomas, ou seja, a própria superfície em que estes se colocam. O plano de imanência não pode ser visto como
uma unidade no sentido platônico, pois não é um conceito primeiro de que todos os outros derivam. Ele é uma
unidade que contém a multiplicidade, o todo onde se encontram as partes sempre múltiplas e diferentes. É a
imagem do pensamento de um filósofo, onde ele pisa e constrói uma estrada. A letra deleuzo-guattariana leva a
pensar mais claramente o plano de imanência como imagem do pensamento: “O plano de imanência não é um
conceito pensado ou pensável, mas a imagem do pensamento, a imagem que ele se dá do que significa pensar,
fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento... Não é um método, pois todo método concerne
eventualmente aos conceitos e supõe uma tal imagem. Não é nem mesmo um estado de conhecimento sobre o
cérebro e seu funcionamento, já que o pensamento não é aqui remetido ao lento cérebro como estado de coisas
cientificamente determinável em que ele se limita a efetuar-se, quaisquer que sejam seu uso e sua orientação.
Não é nem mesmo a opinião que se faz do pensamento, de suas formas, de seus fins e seus meios a tal ou tal
momento. A imagem do pensamento implica uma severa repartição do fato e do direito: o que concerne ao
pensamento, como tal, deve ser separado dos acidentes que remetem ao cérebro, ou às opiniões históricas”
(QPh, p. 53). Não sendo um conceito, nem um método, o plano de imanência como imagem do pensamento
deve ser pensado como “[...] um deserto que os conceitos povoam sem partilhar. São os conceitos mesmos que
são as únicas regiões do plano, mas é o plano que é o único suporte dos conceitos. O plano não tem outras
regiões senão as tribos que o povoam e nele se deslocam. É o plano que assegura o ajuste dos conceitos, com
conexões sempre crescentes, e são os conceitos que asseguram o povoamento do plano sobre uma curvatura
renovada, sempre visível” (QPh, p. 52-3). Para uma leitura integral sobre o plano de imanência, cf. QPh, p. 51-
79.
6
Vimos que o plano de imanência é pensado como imagem do pensamento, entretanto devemos esclarecer aqui
uma distinção entre imagem do pensamento no sentido de plano de imanência e imagem do pensamento no
6
isenta de pressupostos e pré-conceitos. Nietzsche trouxe uma outra espécie de “redenção”
para a humanidade, não mais uma liberação do pecado, e sim uma libertação da
transcendência e da representação. Libertos destes dois “males” que assolavam a filosofia,
podemos pensar sem que “verdades eternas” turvem a nossa visão filosófica.
Assim, a univocidade do Ser em Deleuze, vista através do agenciamento,
será investigada por meio de um percurso que envolve quatro pontos principais: a “reversão
do platonismo”, ou reversão à imagem do pensamento que postula as quatro raízes da
representação; a crítica ao negativo, ou à filosofia que estabelece que o Ser seja de alguma
forma atravessado por um não-Ser negativo; a releitura deleuziana dos três primeiros
momentos do unívoco, ou da filosofia que, antes de nosso filósofo, postulava o Ser como uma
instância que possui um único sentido; e, finalmente, o ponto em que este agenciamento nos
convida a encontrar o quarto momento do unívoco, a perspectiva deleuziana da univocidade
do Ser, pensada através de um agenciamento maquínico.
O primeiro ponto nos remete à linha de pensamento que se inicia
verdadeiramente, segundo Deleuze, com Nietzsche, mas que, para alguns pensadores, já havia
sido empreendida desde Aristóteles: a “reversão do platonismo”. A reversão é muito mais
abrangente do que simplesmente uma inversão da filosofia de Platão; entendemos por
platonismo aqui não apenas a filosofia platônica, mas toda a filosofia que, criticando Platão
ou não, ainda se fundamenta em uma filosofia carregada de conceitos, doutrinas, ou mesmo
“fantasmas” de uma ontologia puramente platônica. A pergunta é: Até onde uma certa
tradição filosófica (aquela que postula a representação) deixou realmente de lado todos os
pressupostos que herdaram de Platão? Segundo Deleuze, a filosofia da representação levou às
últimas conseqüências o pensamento do ateniense, já que, mesmo tentando uma suposta
reversão do platonismo, ampliaram o leque de conceitos que o discípulo de Sócrates lhes
sentido de um pensamento por imagem. O primeiro remete à superfície como unidade dos conceitos de uma
filosofia, ou melhor, uma superfície unitária onde os conceitos se colocam de forma múltipla e diferente. Esta
unidade deve ser pensada como uma imanência pura, já que os conceitos se colocam no mundo dos entes, o
mundo das palavras e das coisas. Já o segundo se refere a um pensamento que sempre postula uma imagem, já
que possui uma unidade transcendente como modelo; segue daí que o pensamento só pode ser construído a
partir de uma imagem que se assemelhe a este modelo, uma representação deste modelo. A imagem do
pensamento como plano de imanência abrange esta outra espécie de imagem do pensamento (que é
denominada mais especificamente, por nosso filósofo, de imagem dogmática do pensamento, ou simplesmente
“platonismo”), mas também pode ser dito de um pensamento sem imagem, um pensamento que não postula um
modelo, não havendo modelo o que há é apenas a pura superfície de uma imagem que a nada se assemelha, que
a nada se vincula, um pensamento sem a presença de um pressuposto ou de um pré-conceito. A nova imagem
do pensamento, que Deleuze parece remeter a Nietzsche em Nietzsche e a filosofia, se diz desta imagem do
pensamento, no sentido de plano de imanência, de um pensamento ausente de pressupostos, de um pensamento
que vaga pela pura superfície, pela pura imanência de um mundo de coisas e de palavras. Com respeito à nova
imagem do pensamento, cf. NF, p. 85-91.
7
apresentou. Este primeiro ponto de nosso trabalho nos conduzirá ao agenciamento que
Deleuze faz de alguns filósofos gregos e escolásticos. É de suma importância este
empreendimento, para que possamos identificar a sua filosofia com o pensamento
nietzschiano, já que é a partir desta “reversão do platonismo” que o autor francês irá procurar
um caminho para se pensar o Ser não mais como uma instância idêntica que postula uma
semelhança, uma analogia e uma oposição; ou seja, é revertendo efetivamente o platonismo,
através da permuta da transcendência pela imanência e da representação pela repetição
(conceitos buscados na filosofia de Espinosa e Nietzsche), que a filosofia da diferença pode
ser pensada com maior intensidade.
É com certo rigor de filósofo, e não de historiador, que o autor de Diferença
e Repetição se remete aos pensadores que ainda postulavam a representação – através de suas
quatro raízes (identidade, semelhança, analogia e oposição) – e a transcendência, pois eram
estas as causas de a diferença ainda ser considerada um efeito da identidade, de o Ser ser visto
como um modelo exterior ao mundo da experiência e de o eterno retorno ser pensado como o
retorno da identidade. Assim, neste primeiro ponto de nossa investigação estaremos
percorrendo a leitura que Deleuze faz de Platão, Aristóteles e São Tomás. Platão é focalizado
por ser o maior representante da semelhança; Aristóteles, da identidade e da oposição; e São
Tomás de Aquino, da analogia do Ser.
Se, inicialmente, este primeiro ponto nos remete à tarefa deleuziana
(embalada pela crítica nietzschiana), de uma “reversão do platonismo”, percebemos que a sua
tarefa se coloca, deste modo, como uma crítica a uma imagem dogmática do pensamento e à
postulação de uma nova imagem do pensamento. Não nos reservaremos, contudo, percorrer
com maior especificidade esta “nova imagem do pensamento”, que parece equivaler aqui ao
seu Empirismo transcendental
7
. Aprofundar-nos-emos apenas na problemática que nos leva a
conceber o Ser através de um sentido único.
7
“Empirismo Transcendental” é um termo utilizado por Deleuze em Diferença e repetição que se direciona
basicamente a esta crítica radical que faz da imagem, postulando um pensamento sem imagem. A filosofia
deleuziana é marcada pelo transcendental, e embora não a tratemos, neste texto, por meio deste conceito
específico, procuramos abordá-la como um pensamento que visa o incorporal e o subsistente, signos que estão
implícitos também no conceito de transcendental. O conceito de acontecimento, que será parte crucial da
presente pesquisa no quarto capítulo, é tido em Deleuze como este incorporal que está no meio das coisas e das
palavras, o transcendental que, ao mesmo tempo em que funda as coisas, nelas se inscreve, como um
fundamento já desde sempre visto na superfície. Não há fundamento profundo na filosofia deleuziana: o
acontecimento é um fundamento que já está na superfície, que já está nas palavras e nas coisas de um modo
intrínseco: não há acontecimento sem corpos, mas também não há corpos sem acontecimento. O empirismo
transcendental é marcado pelo agenciamento, ou a técnica de colagem, de Hume e Kant. Há, portanto, uma
larga discussão deleuziana com estes dois filósofos. Mas, apesar de resgatar o termo transcendental de Kant,
Deleuze se coloca numa posição contrária à do filósofo alemão com respeito à sua doutrina das faculdades, ou
8
Esta forma dogmática de pensar postulava o Ser como aquilo que
permanecia no tempo, ou melhor, como aquilo que não era afetado por ele. Para Deleuze, a
imagem dogmática do pensamento equivale ao próprio platonismo de uma forma geral, isto é,
à filosofia da representação e da transcendência.
Este trabalho será dividido em quatro capítulos, cada capítulo
correspondendo a um dos quatro pontos elencados anteriormente.
O primeiro capítulo tentará expor, com maior precisão, a crítica deleuziana
ao platonismo, ou à imagem dogmática do pensamento, que postulou, desde Platão, o Mesmo
como modelo e o Semelhante como parâmetro, ou como princípio. Veremos, entretanto, que o
platonismo aqui colocado não se remete unicamente à filosofia de Platão, como já dizíamos,
mas a uma gama de filosofias que, de certa forma, seguiram os passos platônicos. Deste
modo, veremos que – além de termos recebido de Platão a herança de uma Semelhança como
parâmetro para se distinguir o conhecimento verdadeiro do falso conhecimento – foi com
Aristóteles que esta imagem do pensamento teve a sua mais profunda formulação; já que foi
com ele que conhecemos o Idêntico enquanto tal, e os planos das categorias que fundaram, de
certo modo, a oposição e, mais tarde, com a filosofia de Tomás de Aquino, a analogia.
Enquanto tentamos abordar estas questões sobre os quatro princípios básicos do platonismo -
e da imagem dogmática do pensamento: a identidade, a semelhança, a oposição e a analogia -,
perceberemos que a única forma de inverter este modo de pensar é pensar não mais através da
identidade, e sim da diferença.
O segundo capítulo tentará resgatar a crítica deleuziana mais dirigida às
filosofias que, com maior vigor, postularam a diferença como o “não” do não-Ser, enquanto
negativo do Ser, enquanto negação dele; ou seja, as críticas que Deleuze dirige àqueles que
pensaram (ou deram margem a tal pensamento) a diferença como negativo, ou mesmo o
próprio Ser como negativo. Estas críticas são direcionadas aqui, com maior ênfase, a Hegel –
por ser ele o pai da contradição e da diferença como o nada de Ser, como o contrário daquilo
melhor, com respeito às faculdades possuírem uma relação harmoniosa. Para o nosso filósofo, o pensamento
não é, segundo Roberto Machado em sua obra Deleuze e a filosofia, um “[...] exercício natural de uma
faculdade em harmonia com as outras” [MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal,
1990, p. 141. Em diante (Machado, 1990)]. O pensamento se torna livre de pressupostos quando é associado a
um “empirismo superior”, um empirismo onde as faculdades possuem uma relação sempre disjunta, sempre
divergente. A divergência já é uma relação, uma relação de perspectiva de um ponto sobre o outro. A questão
da síntese disjuntiva ou da relação disjunta será trabalhada com maior clareza no decorrer deste trabalho; no
entanto, a questão das faculdades não terá lugar no presente estudo, já que demandaria realizarmos um estudo
mais abrangente, o que fugiria do recorte específico que aqui tentamos empreender. Mas indicamos a leitura da
obra, já citada acima, Deleuze e a filosofia, de Roberto Machado, para uma conferência mais detalhada deste
assunto, mais especificamente o ponto 2 da 4º parte.
9
que é, um não-Ser completo – e a Heidegger – por ter deixado margem ao pensamento do Ser
como um nada, já que, ao postular o ocultamento do Ser
8
quando o ente aparece, postulou
também um certo niilismo no âmbito deste, não no sentido forte do termo, pois ele mesmo diz
que a sua filosofia não é niilista, mas no sentido de que ainda persiste um resquício de nada no
pensamento sobre o Ser.
No terceiro capítulo, nos acercaremos dos três momentos do unívoco que
Deleuze postula na história do pensamento. Num primeiro momento, abordaremos o
agenciamento deleuziano de Duns Scott, que pensa o Ser como uma instância unívoca porque
o postula como neutro. Ele só é unívoco em Scott porque ele se remete a uma neutralidade,
nem ao geral e nem ao particular, e sim ao neutro. Scott, além do mais, parece inaugurar a
distinção formal e modal como partes intrínsecas do Ser neutro, sendo a distinção formal
relativa aos atributos e a modal aos modos do Ser. O problema de Scott, segundo nosso
filósofo, parece estar na neutralidade. Um Ser neutro não possui a potência de afirmar, não é
afirmativo e nem positivo, é apenas indistinto. Com Espinosa, o segundo momento do
unívoco, o Ser se revelará positivo, não mais uma instância neutra e indistinta, mas uma
substância única que se afirma em seus atributos e seus modos. Ele é unívoco em Espinosa
porque se diz de uma substância única que, no fim, é a própria expressão. O Ser se expressa
em seus atributos e em seus modos, portanto ele é também imanente ao mundo das palavras e
das coisas. A expressão e a imanência espinosana são as duas chaves para a leitura de
Deleuze, que também serão partes integrantes da filosofia propriamente deleuziana. O
terceiro momento do unívoco é caracterizado pela filosofia nietzschiana. Deleuze agencia,
como iremos ver, dois importantes conceitos da filosofia de Nietzsche: o eterno retorno e a
vontade de poder. O Ser se mostra unívoco em Nietzsche porque se diz da uma dupla
afirmação realizada por estes dois conceitos agenciados. A primeira afirmação é o retorno que
sempre faz com que o próprio retorno retorne, mas também que a vontade de poder retorne
neste retornar do retorno. Um só pode ser compreendido através do outro. A vontade de poder
funciona neste esquema como o invólucro que envolve o retorno eterno, fazendo com que o
8
No decorrer deste trabalho, pode ser que nos utilizemos de termos e conceitos propriamente heideggerianos
assim como nietzschianos, espinosanos, etc.; entretanto, temos a consciência das colagens feitas por nosso
autor e também da afinidade intelectual que Deleuze tinha com certos filósofos, especialmente Nietzsche.
Devemos, contudo, tomar o cuidado de não confundir os conceitos que o filósofo francês resgata e cola através
de um agenciamento e os conceitos que dizem respeito unicamente à filosofia dos autores que ele coloca em
questão. Ao longo de nosso texto tentaremos, portanto, tomar este cuidado, assim como tentaremos também
esclarecer e distinguir estes conceitos que estão fora do agenciamento, mas que utilizaremos aqui com o intuito
de fornecer ao leitor uma visualização mais ampla das questões que serão abordadas.
10
próprio mundo, que é sempre diferente e divergente, se produza e se reproduza neste
processo.
No quarto capítulo, depois da colagem feita por Deleuze neste processo de
agenciamento, nos entregaremos à instância deleuziana que se diz do Ser como uma
univocidade: o acontecimento. O acontecimento é um conceito que Deleuze resgata da
filosofia estóica e que se remete ao incorporal, àquilo que não possui forma ou existência no
mundo, mas que, no entanto, está sempre presente nas coisas e nas proposições de uma forma
insistente e persistente. O único sentido do Ser em Deleuze possui uma variedade de sentidos
formais, já que poderá ser dito como acontecimento, como diferença, como síntese disjuntiva,
etc.; entretanto, ele possui um único sentido ontológico, o de que ele só pode ser dito da
diferença e enquanto tal é que ele é unívoco. Estas questões serão trabalhadas, porém, de uma
maneira mais ampla no decorrer deste estudo.
Espera-se, portanto, ao final deste trabalho, que a questão que colocávamos
no início desta introdução (“Por que há simplesmente a Identidade e não antes a Diferença?”)
possa ser pensada de uma maneira inversa; onde a identidade e a semelhança só se apresentam
como tais porque há uma diferença a priori, um acontecimento incorporal que se vincula aos
entes como atributos e aos enunciados como sentido.
CAPÍTULO I
DELEUZE E A “QUÁDRUPLA RAIZ DA REPRESENTAÇÃO”:
A IMAGEM DOGMÁTICA DO PENSAMENTO
12
INTRODUÇÃO
Como já vimos na introdução, o objetivo central da presente pesquisa é
analisar a dinâmica da diferença, enquanto única forma de se dizer (e dizer positivamente) o
Ser, na filosofia do pensador francês Gilles Deleuze. Para que possamos abordar tal questão –
e compreendê-la com maior clareza – precisamos começar pelos seus principais
agenciamentos, ou por esta releitura dos principais “personagens” de suas obras, personagens
que, de alguma forma, o levaram a repensar a filosofia. Este repensar da filosofia se inscreve
na trajetória já apontada por Nietzsche e que Deleuze denomina de “nova imagem do
pensamento”
1
e é o que abordaremos aqui apenas neste âmbito da univocidade do Ser.
Devemos ter em mente, todavia, num primeiro momento, o que esta “nova
imagem do pensamento” quer instituir. Ela implica necessariamente uma nova forma de
começar a pensar, não mais através de certos pré-conceitos, e sim através do próprio
pensamento liberto e “nômade”. Vários conceitos vitais são mobilizados neste gesto. Postula-
se, desta maneira, uma nova forma de se começar a pensar através de uma “diferença” como
“repetição”, de um “devir do eterno retorno”. A “nova imagem do pensamento” inaugura um
modo de se pensar novamente a “Idéia”, entretanto, uma Idéia como problema, uma Idéia
diferencial que se dirige ao Ser próprio como diferença. Este modo de pensar, ou esta imagem
do pensamento que se forma a partir da filosofia nietzschiana, abandona os pressupostos que
se inseriram na filosofia, ou que se inseriram e se alongaram por quase toda a história da
filosofia. Assim, ela vem combater a antiga imagem, isto é, a “imagem dogmática do
pensamento”, que se colocou majoritariamente desde a filosofia de Platão. A “imagem
dogmática do pensamento” se define pelo platonismo da tradição, pelo conceito, pela
representação e, principalmente, pelas suas quatro raízes: a identidade, a semelhança, a
oposição e a analogia. Deste modo, para Deleuze, postulam-se duas formas de pensamento na
história da filosofia, ou duas “imagens do pensamento”: o platonismo (imagem dogmática do
pensamento) e sua reversão, o antiplatonismo (nova imagem do pensamento).
1
Devemos deixar claro que a filosofia de Deleuze, antes de ser uma filosofia da imagem, tenta pensar não mais
através de imagens, mas se pauta mais especificamente num pensamento sem imagem, uma filosofia totalmente
livre; ou seja, totalmente isenta de pressupostos, sejam eles morais ou ontológicos. A filosofia de Deleuze se
resume como uma filosofia que tenta se livrar dos pesos dos pressupostos e dos modelos prontos do pensar, ou
das imagens que se instalam no pensamento. Entretanto, utilizaremos aqui o termo “nova imagem do
pensamento” como esta filosofia empreendida por Deleuze, já iniciada (reiniciada) por Nietzsche, pois tal
termo parece, segundo a leitura que fazemos de Nietzsche e a filosofia, rivalizar diretamente com esta forma
dogmática de pensar, forma esta que, segundo nosso autor, Platão instaurou e que uma certa tradição o seguiu.
13
O que se afigura neste primeiro capítulo é esta reversão do platonismo, ou
seja, a crítica deleuziana ao platonismo da tradição filosófica (e esta crítica se vincula, mais
precisamente, a partir de um viés nietzschiano). Nossa investigação, portanto, se coloca na
direção de um abandono, por parte de Deleuze, de um certo modo de pensar por parte da
tradição filosófica, e um encontro com uma nova forma de pensamento; isto é, como vimos, o
abandono deleuziano de uma certa imagem do pensamento, “imagem dogmática”, para a
exaltação de uma “nova imagem”, de um novo encontro, ou de uma forma de pensar sem
imagens, de um novo recomeço para a história na filosofia. Este recorte se coloca, para
Deleuze, como uma tentativa de “reversão do platonismo”, esta “imagem do pensamento” a
qual ele tenta “exorcizar”. Mas, “[...] que significa “reversão do platonismo”? Nietzsche assim
define a tarefa de sua filosofia [...]”
2
. Devemos, desde já, ressaltar que o platonismo, para
Nietzsche e Deleuze, como vimos na introdução deste trabalho, não pode ser pensado como a
filosofia de Platão, mas deve ser pensado como aquele conjunto de pensamentos que
instauram uma certa “imagem do pensamento” e que, no âmbito de seus pressupostos,
utilizam ainda os protocolos e conceitos platônicos como referência, como única estrutura
válida e legítima do pensamento. Isto é, para Nietzsche e Deleuze, o platonismo não se define
única e exclusivamente como a filosofia de Platão, mas como toda a filosofia que, mesmo
criticando o ateniense, parte de uma ontologia que, na sua essência, é platônica. Além disso, o
que devemos ter em mente também é o propósito desta “reversão”, exaltada pela “nova
imagem do pensamento”, e como a mesma deve ser empreendida. Veremos posteriormente
que, por exemplo, para Deleuze, reverter o platonismo não significará abandonar literalmente
a representação, ou mesmo as suas quatro raízes, mas, instaurar a diferença como princípio, a
diferença como voz única do Ser (o que, logicamente, fará com que a representação e suas
raízes se vinculem como produtos dela e não mais como criações ou separações de
diferenças).
Colocamos-nos agora perante esta perspectiva deleuziana do platonismo,
mas iremos perceber, no decorrer do texto, que até mesmo perante a “reversão do
platonismo”, em uma determinada questão, Deleuze celebra a filosofia de Platão. Segundo
nosso autor, Platão talvez tenha sido o primeiro a pensar que a própria “imagem do
pensamento” que ele estava prestes a fundar poderia ser pensada de uma outra forma. Mas,
por que Platão não foi mais longe? Por que ele não ousou pensar em uma filosofia
completamente isenta de forma ou de imagem, ou seja, por que Platão não ousou pensar uma
2
LS, p. 259.
14
“nova imagem do pensamento”? Talvez Platão não tenha ousado porque ainda estivesse
preso, como nos diz mais claramente Nietzsche na sua crítica à Platão, a um âmbito
puramente moral, ou político, no sentido de que ainda lutava contra os seus inimigos sofistas
pela supremacia do pensamento. Desta forma, Platão não poderia ser, de forma alguma, “anti-
platônico”, já que, por um lado, ele estava tentando elevar um certo modo de pensar, uma
certa imagem do pensamento que ainda não se havia formado e, por outro lado, este “anti-
platonismo” (na forma de uma suposta “anti-filosofia”) já era empreendido pelos seus
supostos inimigos, os sofistas. Neste sentido é que Platão ainda estaria preso num âmbito
moral, pois tentava combater, de todas as maneiras, esta forma do pensamento já existente –
forma esta que se mostrava, em sua essência, sem a “prisão”, ou sem os pressupostos, de uma
imagem –, a sofística. Veremos também, ainda neste capítulo, que Platão, ao desprezar o
simulacro, abandona a perspectiva da diferença como guia, pois exalta a cópia (que provém
de uma intenção de copiar diretamente o modelo) como a verdadeira forma de se chegar às
Idéias. De tal modo, Platão acaba assegurando, para a sua filosofia, o modelo como princípio
e a semelhança como fundamento, o que, para Deleuze, não pode ser admitido, pois pensar a
filosofia nestes moldes é pensá-la a partir de pressupostos. Por isso é que autor francês irá
seguir no caminho de uma “reversão do platonismo”, já que é através desta reversão que nos
encontraremos livres de quaisquer tipos de pressupostos, sejam eles morais ou ontológicos.
O que se segue agora é, portanto, uma tentativa de compreensão desta
“reversão do platonismo” iniciada por Nietzsche e seguida por Deleuze.
A “REVERSÃO DO PLATONISMO” – Simulacro e Representação
Apresentação
Se uma das tarefas da filosofia de Deleuze inicialmente se define por esta
“reversão do platonismo” – o que o leva a seguir definitivamente os passos nietzschianos –,
devemos caracterizar o que seria este platonismo e o que faria dele este parâmetro de
“perversidade” ou de “maldade” tal para que tenhamos que revertê-lo.
O que devemos saber, num primeiro instante, é a caracterização filosófica
que Deleuze faz de Platão; devemos identificar os conceitos e dualidades apontadas por
15
Deleuze perante esta releitura, ou agenciamento, da filosofia platônica. Deleuze, deste modo,
critica Platão por ter inserido na história da filosofia conceitos que mais tarde culminariam
num certo tipo de filosofia, ou numa certa “imagem do pensamento”: a filosofia da
representação. É preciso, entretanto, ter ciência de que Deleuze também verifica que, mesmo
Platão, no limiar de sua filosofia, reivindica uma certa reinvenção desta imagem do
pensamento, ou seja, uma primeira tentativa de “reversão do platonismo”. Deleuze celebra
Platão perante a sua posição dialética do problema do Ser, onde ele tenta não pensar o Ser
como negativo, e sim como problemático, ou como aquilo que se apresenta no âmbito dos
questionamentos. Veremos, por isso, como o nosso filósofo rechaça, por um lado, o
platonismo e, como, por outro, faz este resgate de Platão.
Na crítica, o filósofo francês distingue uma dupla dualidade na filosofia de
Platão, e é através desta interrogação sobre as dualidades platônicas que poderíamos pensar
uma primeira definição do que seria o próprio platonismo. A primeira dualidade, denominada
por Deleuze de “dualidade manifesta”, se caracteriza pela divisão entre os dois mundos
platônicos, ou entre os dois planos de existência de Platão: o mundo sensível, mundo da
aparência; e o mundo inteligível, mundo das formas, das Idéias. Esta distinção marcou
também grande parte da tradição filosófica, já que a filosofia, de um certo modo, não
conseguiu mais escapar dela, pois se viu presa a um mundo onde reinava a sensibilidade e as
imagens, estas que são obstáculos para o verdadeiro pensamento, para a verdadeira essência
do mundo, o inteligível, as formas no plano indicado como ideal. Mas, se tudo o que a
filosofia passou a ter e o que ela poderia conceber eram apenas fenômenos, ou apenas aquilo
que aparece ao entendimento (numa linguagem mais platônica, se tudo o que ela poderia
pensar, conceber e perceber eram apenas as imagens que estão dispostas neste mundo de
aparência) como ela poderia vislumbrar o inteligível?
Talvez pudéssemos dizer que o que se afigura em Platão, em princípio,
possa ser caracterizado, com muito cuidado, como uma configuração mítica, como uma
“membrana mitológica” que ainda envolveria toda a sua teoria, já que a postulação de um
mundo inteligível, ou de um mundo das formas, nos remeteria a pensar o verdadeiramente
inteligível como algo que só poderia ser alcançado no plano da eternidade, onde tudo seria
imutável, onde tudo se mostraria através de uma verdadeira “luz eterna” (divina) e não mais
através das sombras de uma imagem, de um mundo aparente. Mas, como poderíamos alcançar
este plano eterno? Somente a alma poderia vislumbrar com realidade o plano da eternidade,
mas não qualquer alma, apenas aquelas que estivessem preparadas, aquelas que alcançassem
16
sua verdadeira purificação
3
na terra
4
. Este plano mítico, entretanto, ainda é uma questão
muito discutida e suscetível a muitas dúvidas na teoria de Platão. Ficaremos aqui, desta forma,
apenas com esta interpretação deleuziana de Platão, que se depara mais amplamente com um
plano puramente epistêmico das formas, ou com um plano das formas puramente no nível do
conhecimento e não da religião.
Encontramos, nesta dualidade que se coloca perante as imagens, uma
distinção entre aqueles que trilham pelo verdadeiro caminho das formas e aqueles que
caminham pelas sombras. Esta segunda dualidade é chamada por Deleuze de “dualidade
latente”, onde temos não mais a distinção entre dois planos do conhecimento, mas entre, como
dito, duas espécies de imagens que se inserem no plano da aparência: a boa imagem, a
imagem do filósofo (este que se encontra no verdadeiro caminho), a cópia legítima; e a má
imagem, a imagem do sofista (que se encontra num mundo de sombras), o simulacro. Esta
distinção nos mostra a superioridade da cópia sobre o simulacro, mesmo estando ambas
colocadas num mundo de aparências. A cópia seria, para Platão, a melhor maneira de se
encontrar a verdadeira “purificação”, já que sempre estaria em vista da semelhança de um
modelo eterno, enquanto que o simulacro simularia o modelo, pois estaria em vista da própria
cópia. É desta forma que Platão condena o Sofista e faz dele apenas um “charlatão”, um
simulador, um simulacro de filósofo.
3
Referência ao orfismo-pitagórico, a que Platão tenta dar uma fundamentação filosófica, servindo-lhe de base
para a sua teoria da imortalidade da alma. O termo purificação, aqui utilizado, seria, assim, um desprendimento
da alma sobre o corpo; estando o indivíduo, na hora de sua morte, preparado para a mesma, portanto, preparado
para seguir para um plano mais elevado. Cf. o Fédon, de Platão, que nos traz um diálogo sobre a imortalidade
da alma. Vemos este discurso, num sentido menos religioso e mais epistêmico, também no Sofista em um
trecho em que o Estrangeiro de Eléia tenta explicar a Teeteto sobre a purificação da alma através do
afastamento do mal e a conservação do bem: “ESTRANGEIRO: A maldade, na alma, é para nós algo de
diferente da virtude?TEETETO: Naturalmente. ESTRANGEIRO: Pois bem: purificar não é afastar tudo o que
possa haver de mal, conservando o resto? TEETETO: Exatamente. ESTRANGEIRO: Então, estaremos sendo
conseqüentes conosco mesmos ao chamar, também com relação à alma, de purificação, a todo meio que
possamos encontrar para suprimir o mal” [PLATÃO, O Sofista. In: Diálogos. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz
Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores), trecho: 277d. Em diante (Platão, 1979)].
4
Marcio Soares, em belas páginas sobre Platão, publicada pela UPF em uma obra intitulada A ontologia de
Platão – um estudo das formas no Parmênides, esclarece, baseado no Diálogo platônico Parmênides, com
maior afinco a questão lógica e ontológica de Platão; ele nos mostra que a ontologia platônica é expressa e
fundamentada na sua teoria das formas e da participação, o que nos leva diretamente a pensar a transcendência
delas; ou seja, o que nos leva a pensar no seu suposto “mundo das idéias”. O aspecto mítico, no caso, deve ser
amplamente considerado em Platão, segundo Soares, já que é ele que sustenta, de certa forma, toda a teoria
platônica: “[...] a teoria das Formas, tal como Platão a concebeu e apresentou em Diálogos anteriores ao
Parmênides, como o Banquete, o Fedro, a República e o Fédon, não é apenas lógica e ontologia, como no
Diálogo que analisamos; é também teoria do conhecimento e, sobretudo, uma explicação religiosa, mística,
praticamente mítica, da realidade. Os Diálogos da maturidade, [...] estão abarrotados de passagens em que
Platão se refere às Formas como coisas divinas; neles, o fator místico e religioso da teoria pesa muito mais do
que qualquer questão de coerência lógica.” [SOARES, Marcio. A ontologia de Platão – um estudo das formas
no Parmênides. Passo Fundo: UPF, 2001. (Série Filosofia), p. 140-1. Em diante (Soares, 2001)].
17
Pensando nesta última questão, perceberemos que o nosso primeiro
movimento de análise do platonismo deve se direcionar, querendo ou não, ao seu âmbito
moral; já que o platonismo, de alguma forma, foi uma espécie de negação dos valores
políticos e gregos daquela época, como se as “verdades filosóficas” colocadas por Platão
nesta “imagem dogmática do pensamento” insistissem em banir o espírito político (pólis)
presente naquele tempo, em prol de um espírito individual, ou de valores que só poderiam ser
alcançados individualmente. Poderíamos dizer até que este primeiro âmbito se mostra,
aparentemente, como um embate político, já que Platão parece, inicialmente, caminhar por
esta estrada com o propósito único de desmascarar os sofistas e os retóricos, como se fossem
eles o mal da sociedade grega. Para o autor da primeira denúncia do platonismo, Nietzsche,
este âmbito moral da questão é o principal pilar da crítica apontada a Platão, e é também um
dos principais e mais importantes motivos para a própria “reversão do platonismo”. Por tal
motivo, e mesmo sendo o nosso intuito chegar até onde chega Deleuze (perante uma crítica
puramente ontológica), devemos, num primeiro momento, trilhar este caminho, já que é ele,
segundo o filósofo francês, que nos conduzirá para a sua ontologia, ou para o seu âmbito
ontológico e epistêmico. Vejamos, portanto, o que nos diz Deleuze, a partir da crítica
nietzschiana, com relação ao problema platônico que se configura em torno de sua completa
“aversão” aos sofistas.
1. O Âmbito Moral (ou Político) da Questão
Como vimos, para Platão, a questão se abre como uma questão moral, já que
esta distinção entre modelo e imagem, cópia e simulacro, se direciona mais especificamente
aos seus oponentes, ou aos oponentes de seu mestre, os Sofistas; e também à sociedade de seu
tempo, que, de uma maneira ou de outra, condenaram Sócrates e sua filosofia.
Platão inaugura, inicia, porque evolui numa teoria da Idéia que vai tornar possível o
desenvolvimento da representação. Mas, justamente, o que se declara nele é uma
motivação moral em toda sua pureza: a vontade de eliminar os simulacros ou os
fantasmas tem apenas uma motivação moral. O que é condenado no simulacro é o
estado das diferenças livres oceânicas, das distribuições nômades, das anarquias
coroadas, toda esta malignidade que contesta tanto a noção de modelo quanto a de
cópia
5
.
5
DR, p. 369.
18
Neste sentido, talvez a grande interrogação que se colocaria fosse a da
própria definição do platonismo (afinal, platonismo ou socratismo?), já que Platão parece
seguir Sócrates numa eterna luta contra os princípios sofistas. No entanto, este tipo de análise
– se o mérito dos escritos platônicos é dele próprio ou de Sócrates – demandaria um outro tipo
de exame; exame este que não caberia ao trabalho que estamos pretendendo. A nossa intenção
nesta investigação não é encontrar o verdadeiro pai do platonismo, mas ressaltar os principais
pontos do platonismo, agenciados por Deleuze, para a sua posterior “reversão”. A verdadeira
fonte do platonismo, seja ela Platão ou Sócrates, não terá tanta importância aqui, já que nos
basta saber que algo sobreviveu e que o denominamos platonismo. Enfim, o que nos importa
pensar é no que foi construído em cima de tais teorias: o discurso e a reflexão apontada por
Platão e pelos precursores deste platonismo, ou desta imagem dogmática do pensamento
6
.
O que devemos ter em mente no momento é como se caracterizou, na
história da filosofia, esta imagem do pensamento; para tanto, seguimos a interpretação
deleuziana quanto a esta dupla caracterização do conhecimento em Platão, os dois tipos de
dualidades.
1.1. A “Dualidade Manifesta” como Divisão do Conhecimento
Como vimos, a questão moral do platonismo se apresenta, segundo o prisma
de um parâmetro diferente com relação aos costumes e crenças daquela época, já que a
6
O que podemos dizer é que, segundo alguns comentadores, existem pelo menos duas interpretações dos
diálogos platônicos quanto ao seu personagem Sócrates. Enquanto alguns consideram que boa parte da doutrina
platônica das idéias (formas) tenha surgido já com Sócrates e que Platão estaria apenas disseminando a
filosofia de seu mestre, outros julgam que Sócrates não passava tão-somente de um moralista, e que toda a
filosofia platônica teria sido teorizada exclusivamente por Platão. Claro que separar Platão de Sócrates talvez
seja uma tarefa muito árdua, porque demandaria um vasto conhecimento das obras platônicas, entretanto, não
pretendemos separar este suposto Sócrates moralista do Platão idealista, mas sim colocá-los num mesmo
patamar: a imagem dogmática do pensamento. Soares, na sua já referida obra, comenta que os diálogos
platônicos foram divididos por seus comentadores basicamente em três períodos; esta divisão se deu tanto pelo
seu estilo literário quanto por seu conteúdo. Os três grandes grupos são: os escritos da juventude, escritos da
maturidade e os escritos da velhice; sendo estes últimos considerados uma tentativa de se pensar a diferença no
âmbito da sua própria filosofia. Soares ainda sublinha que nesta divisão poderia, talvez, ser possível divisar as
obras de Platão que se referem ao socratismo, ou à doutrina de Sócrates, e as obras que se referem
exclusivamente à sua filosofia: “[...] a compreensão da filosofia de Platão depende de sabermos de onde partiu
o filósofo e aonde chegou em mais de cinqüenta anos de atividade literária e discussões na Academia; em que
período de sua vida e, portanto, de sua maturação intelectual escreveu cada peça; que Diálogos se ligam entre
si, formando grupos, e quais se expõem por si mesmos, se é que estes últimos existem; quais apresentam a
filosofia de Sócrates, os chamados socráticos, e quais são platônicos propriamente ditos; quais são
especulativos e quais são doutrinas etc. Todas essas questões, algumas mais e outras menos, estão ligadas à
ordenação cronológica dos Diálogos.” (Soares, 2001, p. 34). Mas, como dito, nosso intuito não é encontrar e
separar o platonismo do socratismo. Seguindo Deleuze, pretendemos expor e tentar contrapor o platonismo
como imagem do pensamento, seja ele advindo da filosofia socrática ou teorizada unicamente por Platão.
19
moralidade platônica dependia de algo que não se encontrava mais apenas entre os homens,
pois o agir moral não visava mais apenas o âmbito da práxis, mas também um âmbito
puramente teórico. Este âmbito teórico estava sempre em vista de modelos e formas que não
se encontravam no mundo e que, no entanto, permeavam todas as nossas ações “com este
mundo”: as idéias, ou formas, de Bem, Belo e de Verdade
7
. Entretanto, esta doutrina (de
idéias que nos servem como modelos) tira do homem a capacidade de agir com justiça, com
bondade e mesmo de dizer a verdade, já que o homem, enquanto estiver preso a este corpo
que lhe serve de cárcere, não poderá contemplar com realidade tais formas, apenas formar
imagens destas. Neste ponto, julgamos que o que está em jogo, para a leitura deleuziana deste
parâmetro moral, são os seguintes motivos: a moral platônica se funda perante esta
contemplação do Bem, do Belo e da Verdade, que ele julga ser em vista destes três
princípios primeiros que a virtude se abre e se coloca como possível; e, é na distinção entre
cópia e simulacro que Platão focaliza as suas principais críticas àqueles que não corroboram
os ideais filosóficos, acusando-os de se encontrarem no plano da mera opinião (doxa) e não
do verdadeiro saber (episteme).
Nesta perspectiva, talvez o que possamos vislumbrar com maior propriedade
em Platão, num primeiro momento e nesta luta contra os sofistas, seja o seu orgulho, ou
melhor, o seu suposto egoísmo filosófico; o que caracteriza, mais especificamente, a primeira
dualidade apontada por Deleuze: a “dualidade manifesta”. Nietzsche parece nos mostrar
melhor esta questão; em sua obra Sobre verdade e da mentira no sentido extra-moral ele
sublinha que o filósofo, o “filósofo platônico”, se apresenta sob uma áurea de orgulho e
egoísmo:
[...] e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais
orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo
telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar. [...] Aquela altivez associada ao
conhecer e sentir, nuvem de cegueira pousada sobre os olhos e sentidos dos homens,
engana-os pois sobre o valor da existência, ao trazer em si a mais lisonjeira das
estimativas de valor sobre o próprio conhecer. Seu efeito mais geral é o engano –
mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caráter
8
.
O orgulho do filósofo mascara o seu agir e pensar, já que ele se ilude com a
sua verdade, esquece que ela não foi conquistada pública e socialmente, e, portanto, pode não
7
Estas três idéias estão mais bem representadas na República, de Platão, onde ele comenta, ainda meio enevoado
em uma áurea mítica, ser o Sol a idéia de Bem e de Belo, a Luz a idéia de Verdade, as cores como formas das
idéias, entre outras alegorias. Cf. República - 509a-511e.
8
NIETZSCHE, Friedrich W. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: Nietzsche. Trad. Rubens
Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 53. Em diante (Nietzsche, 1999).
20
passar de mais uma entre tantas outras; ele não percebe que a sua verdade pode ser apenas
mais uma interpretação do mundo em meio à diversidade de interpretações já existentes. Tal
orgulho não pode, porém, ser pensado aqui moralmente, isto é, não podemos condenar ou
salvar Platão por isso. Devemos apenas ressaltar que este orgulho filosófico possui dois lados,
o lado da transcendência (lado que nos leva a pensar os princípios morais como algo separado
do mundo) e o lado do individualismo (onde temos a elevação de princípios que são
conquistados individualmente; ou seja, o caminho em que se alcançam os princípios morais
através de uma decisão filosófica feita pelo indivíduo). Também não podemos dizer que este
egoísmo, segundo Nietzsche e posteriormente Deleuze, deva ser considerado como uma
idiossincrasia de Platão, ou como uma instância psicológica; ao contrário, ele deve ser
pensado unicamente como forma (ou imagem) do pensamento, deve ser pensado unicamente
como uma decisão filosófica de Platão
9
.
O que fica muito bem caracterizado é que este egoísmo se pauta numa busca
pela Verdade, pelo Bem e pelo Belo, princípios estes que eram buscados por todos os gregos;
mas, ao invés de Platão buscá-los coletiva ou socialmente, através de discussões públicas e
abertas, fazia isso individualmente através de diálogos privados e fechados, o que poderia
acarretar uma via única ou até bipolar, mas nunca múltipla. Que os princípios
socráticos/platônicos também eram princípios universais não podemos negar. O caminho até
se chegar a tais princípios não era, contudo, de forma alguma político, já que a política grega
sempre estava em vista dos interesses coletivos, dos interesses da polis, e eram sempre
discutidos pública e socialmente, para que tais interesses públicos se mantivessem públicos;
ou seja, para que tais interesses, baseados em certos princípios, se mantivessem de domínio
coletivo e não particular. O filósofo socrático/platônico, destarte, funda uma única maneira de
contemplar e ver o mundo, um ponto de vista único entre todos os outros, e, além disso, uma
perspectiva um tanto quanto antipolítica, uma perspectiva quase que totalmente individualista;
sendo ela, e tão-somente ela, a única maneira, segundo estes filósofos, de se chegar à
Verdade, ou a única forma possível de se enxergar a verdadeira “Verdade”
10
. Não haveria
9
O egoísmo filosófico de Platão não pode ser pensado, exclusivamente, como o seu modo próprio e pessoal de
combater a sofística, enquanto embate individual, mas como forma do pensamento pregada por ele; este
egoísmo não se refere, de modo algum, ao pessoal, constituído pelo ardor de uma vingança contra a sofística,
mas ao modo filosófico de pensar, à forma do pensamento que se remete a certos pressupostos e princípios.
Assim, a Verdade torna-se a principal conquista de Platão, e por isso a sua principal “arma filosófica”, e o
egoísmo só se instala nele porque ele não recua, não abandona a Verdade e os princípios e pressupostos que
com ela sobrevoam este modo de pensar.
10
Esta aspereza e rigidez pode parecer aplicável apenas a Sócrates, não sendo possível talvez com relação à
filosofia realmente platônica, mas, lembremos que não estamos aqui separando uma filosofia da outra, e sim
resgatando um pensamento que surgiu na Grécia Antiga e que passamos a chamá-lo de platonismo.
21
caminho oposto ou adjacente. Tudo deveria correr para o eterno, para o transcendente, para
uma verdade fora do mundo, que fundaria, desde si mesma, o próprio mundo, pois este era o
caminho individualista do filósofo socrático. Não havia outra perspectiva, outros valores,
outras interpretações de mundo. Tudo deveria ser visto a partir daquilo que se mostrava fora
do tempo, fora do devir eterno (devir este em que, desde sempre, estamos imersos e que move
o mundo sensível).
Perante esta perspectiva socrático/platônica, se funda uma certa identidade,
já que o filósofo não busca um consenso, não busca uma verdade, mas, sim, “a” Verdade, esta
forma imutável, esta forma que sempre se mostra como o mesmo do Mesmo. Desta maneira,
estar sempre em vista das mesmas coisas e acerca dos mesmos assuntos é a tarefa do filósofo
platônico, pois é através da identidade do Mesmo que se funda o Modelo
11
. Estar em vista do
Mesmo, é, porém, desprezar o tempo e o devir. É, de um modo geral, desprezar o que se
mostra neste mundo sensível e, neste sentido, seria também desprezar a própria vida, já que a
vida se coloca diante deste mundo mutável, diante da mudança e da diferença deste mundo
12
.
Assim, a imagem do filósofo se afigura como aquela que busca sempre o mesmo do Mesmo,
como aquela que não muda de posição, pois se pauta na Verdade, ou na intenção de Verdade
através da semelhança, e não na mera opinião
13
. Aqui se evidencia, portanto, de modo mais
11
Estar em vista do Mesmo é a tarefa platônica, já que é através dele que se pode, segundo ele, encontrar estes
princípios primeiros: o Bem, o Belo e a Verdade. Tal afirmação se mostra no Diálogo Górgias, escrito por
Platão em meados de 393 e 387 a.C., onde Sócrates acusa a Cálicles, discípulo do orador e retórico Górgias,
de nunca dizer as mesmas coisas sobre os mesmos assuntos: “SÓCRATES: Estás vendo, excelente Cálicles,
de quão diferentes defeitos nos acusamos um ao outro? Tu dizes que eu estou sempre repetindo as mesmas
coisas e me censuras; eu, ao contrário, acuso-te de jamais dizeres as mesmas coisas a respeito dos mesmos
assuntos.” [PLATÃO, Górgias ou a oratória. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1970, trecho: 491c. Em diante (Platão, 1970)]. Dizer, assim, as mesmas coisas sobre os mesmos assuntos
remete sempre a se repetir sobre o Mesmo; a mesmidade, ou a identidade em primeiro grau, parece ser o
único caminho para o filósofo socrático/platônico, já que é a partir do Mesmo (modelo) que se pode ter a
intenção de cópia, ou a intenção de Verdade.
12
Deleuze, já ao final da vida, escreve um pequeno, mas envolvente, artigo para a revista Philosophie intitulado
L’immanence: une vie... (A imanência: uma vida...), onde retrata a vida como uma pura imanência, sem os
pesos do bem e do mal que só o sujeito traz; a vida para Deleuze é impessoal, imanente e singular: “Uma vida
está em toda parte, em todos os momentos que este ou aquele sujeito vivo atravessa e que esses objetos
vividos medem: vida imanente que transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais do
que se atualizar nos sujeitos e nos objetos” [DELEUZE, G. L’immanence: une vie... (A imanência: uma
vida...). Trad. Tomaz Tadeu. In: Educação e Realidade. Vol. 27, nº 2 – jul./dez. de 2002, p. 14. Em diante
(Deleuze, 2002)]. A vida é pensada, portanto, como um puro devir, como uma imanência pura que se instala e
se atualiza. A questão da imanência, do acontecimento e do devir puro, entretanto, serão trabalhados
posteriormente quando abordaremos com maior precisão a questão da univocidade. Queríamos aqui apenas
expressar como Deleuze compreende a Vida, já que esta compreensão difere da compreensão que o
platonismo tem da mesma.
13
No Górgias também podemos perceber uma certa divisão entre “ciência” e “crença”, sendo, para esta
interpretação, a primeira divisão ou a primeira dualidade, a “dualidade manifesta”; assim, tal é o caso, no
referido Diálogo, onde os retóricos e oradores expressam, segundo o personagem platônico, Sócrates, uma
persuasão originada na crença, isto é, no campo da doxa, da opinião. Desta forma nos mostra Platão quando
Sócrates interroga a Górgias a respeito do que vem a ser a arte da oratória: “SÓCRATES: Na tua opinião,
22
geral, esta separação platônica entre o mundo da doxa (mundo das hipóteses) e o mundo da
episteme, mundo do verdadeiro conhecimento (dos princípios imutáveis). O mundo
epistêmico de Platão é onde se instalam estas três principais idéias do platonismo em geral, a
Verdade, o Bem e o Belo; restando ao mundo opinativo unicamente a via das imagens que
tentam imitar estes princípios, alguns através das cópias que, segundo Platão, sempre visam o
modelo e outros através dos simulacros que, ainda segundo ele, visam apenas o teatro, o
espetáculo.
1.2. A “Dualidade Latente” como Condenação do Sofista
A filosofia platônica, neste sentido, se articula a partir de um caminho
dialético que conduz à “ciência”, que se desdobra numa linha ascendente para o conhecimento
que é, no caso, dividido em duas instâncias, o plano da opinião (doxa) e o plano da Verdade
ou do verdadeiro conhecimento (episteme). Na apresentação deste capítulo, vimos que
Deleuze divide o plano dualístico de Platão em dois tipos: a “dualidade manifesta”, que é a
dualidade entre os dois tipos de mundo, ou melhor, os dois tipos de conhecimento: doxa e
episteme; e a “dualidade latente”, que se manifesta como a divisão entre dois tipos de
imagens: cópia e simulacro. É importante notarmos, porém, que esta última dualidade se
coloca diretamente no plano do conhecimento onde impera a doxa. Tanto a cópia quanto o
simulacro expressam, portanto, um certo tipo de opinião; mas o que interessava a Platão não
saber e crer, ciência e crença, são a mesma coisa ou diferem? GÓRGIAS: Afigura-se-me, Sócrates, que
diferem. SÓCRATES: E estás certo. Podemos verificá-lo pelo seguinte: se alguém te perguntasse: “Existe,
Górgias, uma crença falsa e uma verdadeira?”, tu responderias que sim, penso eu. GÓRGIAS: Realmente.
SÓCRATES: E daí? Existe uma ciência falsa e uma verdadeira? GÓRGIAS: De maneira alguma. [...]
SÓCRATES: Devemos, a teu ver, distinguir duas sortes de persuasão, das quais uma infunde a crença sem o
saber e outra, a ciência? GÓRGIAS: Perfeitamente. SÓCRATES: Então, qual das duas persuasões cria a
oratória, nos tribunais e demais ajuntamentos, a respeito do justo ou injusto? Aquela donde se origina o crer
sem o saber, ou aquela donde provém a ciência? GÓRGIAS: Não há dúvida nenhuma, Sócrates; é aquela
donde nasce a crença.” (Platão, 1970: 454d-454e). Sendo a oratória uma arte colocada na opinião, ela não
apresentaria rigor, e mais, não apresentaria objeto específico, já que, em tal diálogo, também se coloca a
dificuldade de se caracterizar este objeto da oratória que, segundo Górgias e seus discípulos, é a palavra; no
entanto, Sócrates desbanca este argumento, já que todas as artes e práticas também se utilizariam das
palavras. Assim, na citação acima, além de podermos perceber claramente o orador Górgias afirmando que a
oratória estaria no mero campo da crença, estando, portanto, num patamar abaixo das artes que buscam a
verdadeira “ciência”, também evidenciamos esta separação entre crença (doxa) e ciência (episteme). Outro
texto que nos reporta a esta divisão é A República, livro VI, mais precisamente entre os trechos: 509a-511e,
onde encontramos a “passagem da linha”. Neste trecho podemos perceber mais claramente a divisão platônica
entre o “plano das hipóteses” e o “plano dos princípios imutáveis”, onde as hipóteses servem apenas de
trampolins para os princípios, mas elas mesmas não possuem verdades concretas em si mesmas, a não ser
através da relação de semelhança que possuem com os princípios. Outros principais escritos de Platão que nos
remetem a esta distinção, à sua “Teoria das Formas”, são: o Parmênides, o Sofista, o Fédon e o Fedro.
23
era que a cópia expressasse o verdadeiro conhecimento, ou a episteme, e sim que ela se
assemelhasse a ele, tivesse a intenção de semelhança com o verdadeiro conhecimento. Deste
modo, para que esta exposição moral tenha uma maior claridade, devemos agora focalizar
com maior precisão a definição mesma de “dualidade latente” colocada por Deleuze, já que a
definição da primeira dualidade (“dualidade manifesta”) foi apresentada nos parágrafos
precedentes.
Como vimos até aqui, a primeira dualidade platônica se evidenciou pela
separação entre crença (doxa) e “ciência” (episteme). Neste ponto era onde, segundo a
interpretação que aqui acompanhamos, se localizava o que foi postulado anteriormente como
egoísmo platônico (tal egoísmo, lembremos, deve ser pensado e postulado como decisão
filosófica e não como escolha psicológica de Platão), aquilo que considerava apenas poucas
artes, estando a filosofia no topo delas, como detentoras deste conhecimento realmente
científico (episteme). Destarte, a filosofia e estas artes que buscam o verdadeiro
conhecimento, segundo o Sócrates de Platão, podem ser consideradas “ciências”, pois estão
em constante vislumbre do modelo, e seu saber se aproxima deste por produzirem imagens
que são cópias diretas dele, se aproximam da Forma por se assemelharem com este modelo. A
segunda dualidade se forma nesta semelhança, já que a cópia, aquela que pertence a uma boa
linhagem, tem a intenção de copiar diretamente o modelo, enquanto que o simulacro, o
fantasma sem linhagem, não tem esta preocupação, não tem esta relação direta com o modelo;
o simulacro apenas copia, segundo Platão, a própria cópia
14
. Assim, o Sofista, o Orador e o
Retórico se caracterizam como tentativas de copiar o filósofo; são, portanto, “aberrações”, já
que copiam algo que na realidade já é uma cópia. Eles perdem o modelo de vista e carregam
as chagas da linguagem como única verdade. A linguagem, por ela mesma, não possui
parâmetros de verdade, segundo o platonismo, já que ela tanto pode afirmar uma coisa como o
seu contrário. É desta forma que Platão condena a sofística e celebra a filosofia como única
via para o verdadeiro conhecimento. Nesta perspectiva, o filósofo e os “cientistas” (ou artistas
da episteme) seriam produtores de cópias, produtores de verdades em segundo grau, enquanto
que aqueles que não se dedicam a vislumbrar o modelo, pois vivem no campo da mera
14
Esta divisão está no Sofista, quando o Estrangeiro divide a mimética em duas partes: “ESTRANGEIRO: E esta
primeira parte da mimética não deve chamar-se pelo nome que anteriormente lhe havíamos dado, arte de
copiar? TEETETO: É certo. ESTRANGEIRO: Mas que nome daremos ao que parece copiar o belo para
espectadores desfavoravelmente colocados, e que, entretanto, perderia esta pretendida fidelidade de cópia
para os olhares capazes de alcançar, plenamente, proporções tão vastas? O que assim simula a cópia, mas que
de forma alguma o é, não seria um simulacro?” (Platão, 1979: 236b).
24
opinião, são produtores de imagens de imagem, ou seja, são produtores de simulacros, ou de
falsas verdades.
Todo o platonismo está construído sobre esta vontade de expulsar os fantasmas ou
simulacros, identificados ao próprio sofista, este diabo, este insinuador ou este
simulador, este falso pretendente sempre disfarçado e deslocado. Eis por que nos
parecia que, com Platão, estava tomada uma decisão filosófica da maior
importância: a de subordinar a diferença às potências do Mesmo e do Semelhante,
supostamente iniciais, a de declarar a diferença impensável em si mesma e de
remetê-la, juntamente com os simulacros, ao oceano sem fundo. Mas, precisamente
porque Platão ainda não dispõe das categorias constituídas da representação (elas
aparecerão com Aristóteles), é em uma teoria da Idéia que ele deve fundar sua
decisão. O que aparece, então, em seu mais puro estado, é uma visão moral do
mundo, antes que se possa desdobrar a lógica da representação. É por razões morais,
inicialmente, que o simulacro deve ser exorcizado e que a diferença deve ser
subordinada ao mesmo e ao semelhante
15
.
O simulacro é aquilo que cria apenas perspectivas, interpretações do mundo
a partir de algo que já se encontra nele, que já se encontra desligado de um mundo outro e
transcendente. O simulacro é a “dobra” perversa da cópia. Segundo Platão, as práticas que não
se dedicam ao verdadeiro conhecimento, e que emitem apenas opinião e perspectivas, não
são, portanto, dignas de se dizerem detentoras da absoluta Verdade, pois nunca a
vislumbraram diretamente, e o que fazem é apenas simulá-la. Os políticos, os sofistas e
oradores daquela época não passavam de “bajuladores”, segundo Platão, pois iludiam o povo
com seus belos discursos, fazendo-os decidir acerca de interesses que não eram realmente
coletivos, mas sempre referentes a uma única parcela do todo, pois, como dito anteriormente,
a linguagem por si só não poderia servir de critério de verdade, e também de critério político,
já que não consegue se fundamentar nos Modelos.
A verdade poderia, segundo uma análise política mais contemporânea
acerca da dualidade platônica, ser admitida perante dois aspectos: a “verdade filosófica”, que
se liga diretamente às essências, às formas, às idéias, ou seja, a verdade do filósofo, que seria,
segundo Platão, a única, pois não teria a preocupação de bajular, mas unicamente de se chegar
aos princípios que regem o mundo como um todo através da semelhança; e a “verdade
factual”, que se liga aos fatos, aos acontecimentos do mundo, ou seja, àquilo que está, desde
sempre, impregnado pela opinião, pela perspectiva e, sobretudo, pelo devir e pelo tempo.
Teríamos, deste modo, também dois tipos de imagem: a cópia, imagem do filósofo, que se
caracterizaria pelo vislumbre direto do modelo, da Verdade, do Bem e do Belo, enquanto
absolutos, visitados sempre de uma forma individualista; e o simulacro, imagem do sofista,
15
DR, p. 185.
25
que se fundaria num “fundo de superfície” (como diria Deleuze), numa inexistência de
fundamento, pois não se pautaria nesta “verdade filosófica”, não se colocaria individualmente,
mas, sim, política, coletiva e, sobretudo, socialmente. Sendo a “verdade filosófica” a única
verdade, a filosofia se encontraria, portanto, num campo privilegiado de conhecimento,
porque estaria em contato direto com o inteligível, com os modelos e as formas, sempre
através da semelhança. Resta à “verdade factual” apenas as conjecturas e interpretações, isto
é, a mera opinião, pois se encontra num mundo de mudanças, num mundo histórico, colocado
diante de um tempo e de um devir
16
.
O filósofo, tendo alcançado sua verdade a partir de princípios individuais –
a partir de princípios que o elevam ao universal, mas sem percorrer o caminho público, ou
ainda a discussão pública –, eleva o seu agir e o seu pensar a patamares altíssimos, julgando-
os os melhores, mais verdadeiros e mais belos perante todo o contexto em que está inserido.
Desta forma, expressa-os como princípios morais de conduta e pensamento, ele mesmo
servindo, então, como o próprio modelo para se alcançar a verdadeira virtude.
Ele, o filósofo, não se apercebe, no entanto, de sua ilusão, visto que a
política não pode estar no âmbito desta suposta “verdade filosófica” (tal verdade não pode ser
16
Encontramos em Châtelet uma interpretação de Platão que nos orientaria para esta identificação da opinião
com os fatos; em seu texto Platão, ele nos deixa claro que, aos olhos de Platão, o que a opinião faz é lidar
com fatos, sendo estes expressos num mundo de mudanças, portanto, num mundo onde imperam os exemplos
e a crença e não a Verdade: “Em que é que a opinião se apóia? Quais são os seus argumentos? Quer se
alimente da tradição quer seja armada pelo ‘ensino novo’, ela invoca para sustentar os seus raciocínios o que
chama factos. Utiliza a técnica dos exemplos. Esses exemplos extrai-os ela sem discernimento, daqui e dali,
da literatura edificante, do dado mítico, da história, da vida quotidiana.” [CHÂTELET, François. Platão.
Trad. Souza Dias. Porto: Rés, 1981. (Col. Diagonal), p. 71. Em diante (Châtelet, 1981).]. Mas, é com a
pensadora da política e da sociedade contemporânea, Hannah Arendt, que podemos perceber mais claramente
esta divisão política da Verdade. No entanto, esta visão política servirá aqui apenas como exemplo desta
divisão e não como parte crucial desta argumentação; sendo assim, ela nos coloca diante desta questão em sua
obra Entre o passado e o futuro, mais precisamente num capítulo intitulado Verdade e política, explicando-
nos melhor o próprio equívoco socrático/platônico de levar a sua verdade, a “verdade filosófica”, à praça
pública, já que, no contato com o público, ela já se torna também uma opinião. O domínio da política, assim,
não estaria no âmbito da “verdade filosófica”, já que tal verdade só pode ser conquistada individualmente,
mas no âmbito da “verdade factual”, já que seria ela consensual e/ou interpretativa: “[...] a verdade de Platão,
encontrada e realizada na solidão, transcende, por definição, o âmbito da maioria, o mundo dos negócios
humanos. (Pode-se compreender que o filósofo, em seu isolamento, ceda à tentação de utilizar sua verdade
como padrão a ser imposto sobre os assuntos humanos; [...] e pode-se compreender igualmente que a
multidão resista a esse padrão, visto que ele deriva na realidade de uma esfera que é alheia ao âmbito dos
negócios humanos e cuja conexão com este só se justifica por uma confusão.) A verdade filosófica, ao
penetrar na praça pública, altera sua natureza e se torna opinião, pois ocorreu uma autêntica [...] modificação
que não é meramente de uma espécie de raciocínio para outra, mas de um modo de existência humana para
outro. [...] A verdade fatual, ao contrário, relaciona-se sempre com outras pessoas: ela diz respeito a eventos e
circunstâncias nas quais muitos são envolvidos; é estabelecida por testemunhas e depende de comprovação;
existe apenas na medida em que se fala sobre ela, mesmo quando ocorre no domínio da intimidade. É política
por natureza. [...] Fatos informam opiniões, e as opiniões, inspiradas por diferentes interesses e paixões,
podem diferir amplamente e ainda serem legítimas no que respeita à sua verdade fatual.” [ARENDT, Hanna.
Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 295].
26
política, já que é alcançada individualmente), pois não se volta ao todo, ao comum, senão
apenas ao individual, àquilo que é essencialmente alcançado por um só indivíduo
17
. Se a
“verdade filosófica” for colocada num lugar comum, na praça pública, por exemplo, deixa de
lado o seu critério de verdade, porque sempre será expressa como uma nova opinião, uma
nova forma de ver o mundo; a “verdade filosófica” deixa de lado a semelhança com a pura
Forma, com a pura Idéia, para tornar-se cópia de cópia (simulacro), para tornar-se crença
dentro de um mundo sensível. Mesmo que o orgulho e o egoísmo do filósofo o levem a
acreditar que a conquista de sua verdade ainda possa ser levada a público sem que seja
alterada a sua natureza, o seu rigor, ela será uma imposição, uma espécie de “tirania”, visto
que se colocará como única e mais elevada forma de se alcançar a verdade sobre todas as
outras formas. O suposto egoísmo individual do filósofo, como já colocado no início deste
questionamento moral, é, enquanto “verdade filosófica”, elevado a princípio moral que
deveria reger a todos os outros, ou a todos aqueles que não são filósofos. O agir do filósofo
seria o único agir justo, o único agir que se elevaria ao Bem, que estaria em vista da
verdadeira virtude. Deste modo, o “homem mais orgulhoso” (como dizia Nietzsche), o
filósofo, não se apercebe de sua própria ilusão, pois se ilude acerca de uma verdade única e
imutável, de uma “verdade filosófica”, como se a própria ciência e o conhecimento não
estivessem também em constante avanço e devir
18
. Quando falamos do âmbito epistêmico
(científico) no horizonte grego, devemos entender que, de um modo geral, ele não era
vislumbrado através do tempo, através de um mundo mutável; para eles, a “ciência” não tinha
a mesma conotação que hoje temos de ciência. Essa conotação só veio com a modernidade,
portanto, ela não poderia ser inserida no devir, naquilo que muda. As ciências deveriam ser
pensadas num patamar superior, quase que divinas, onde só poderiam ser vislumbradas como
sabedorias imutáveis, como sabedorias que visam o divino e o eterno. A política, como arte
17
A interpretação aqui não quer sugerir que toda a episteme seja política, ou vice-versa, ou que os dois conceitos
sejam sinônimos, mas que a política, enquanto arte que visa ao Bem (bem comum), esteja sempre em vista do
modelo de Bem, assim, ela seria também uma ciência nos moldes platônicos. A crítica que se faz é, no
entanto, que a política, enquanto bem comum, não pode ser elevada à ciência (platônica), porque ela não
poderia estar no campo desta “verdade filosófica”, pois a idéia de Bem de Platão é Una e se pauta num mundo
imutável e transcendente, enquanto que a idéia de bem comum da política requer discussão: a minha idéia de
bem pode não estar de acordo com a sua idéia de bem.
18
Outro ponto em que recorremos novamente a Nietzsche; na sua obra O Anticristo, § 20, ele nos traz esta
perspectiva de um “egoísmo pessoal elevado a conduta moral”. Embora tenhamos em Nietzsche outra
conotação, creio que podemos ver claramente que o filósofo socrático se individualiza em sua busca da
Verdade, pois julga ser ela a única forma de se chegar à verdadeira Verdade entre todas as outras formas;
entretanto, esta individualização se mostraria como uma libertação de si mesmo se ela fosse imposta como
princípio moral a ser seguido única e exclusivamente por si mesmo, já que é o indivíduo que deveria impor as
suas próprias regras e formas de buscá-las, no entanto, o que se mostra no platonismo, pelo menos na sua luta
contra a sofística, a retórica e a oratória, é uma imposição desta busca pela verdade como único princípio
verdadeiro, e que deveria ser seguido por todos aqueles que querem agir com virtude.
27
que visa ao bem comum, como arte humana, entretanto, só poderia ser pensada no mundo do
devir; ela só poderia estar em vista daquilo que é mutável e não do que é eterno; desta forma,
ela não poderia ser tratada como “ciência” (sabedoria imutável), como tentou Platão e o
posterior platonismo, porque era uma arte humana e que se via no devir humano. Isto se
mostrou, de alguma maneira, como uma das limitações desta forma de pensar do platonismo,
desta “imagem dogmática do pensamento”, e do próprio ambiente grego daquela época,
pensar a ciência e/ou a política ainda através de formas imutáveis, ou de formas
transcendentes.
1.3. O “Ideal Ascético” como Motivação Moral do Platonismo
Aqui há outro ponto que merece um momento de nossa investigação: o
platonismo como “imagem dogmática do pensamento”. Por que o platonismo, segundo
Deleuze, se coloca como uma imagem dogmática?
Tudo culmina com o grande princípio: que, apesar de tudo e antes de tudo, há uma
afinidade, uma filiação, ou talvez seja melhor dizer philiação, do pensamento em
relação ao verdadeiro, em suma, uma boa natureza e um bom desejo, fundados em
última instância na forma de analogia do Bem, de modo que Platão, que escreveu o
texto da República, foi também o primeiro a preparar a imagem dogmática e
moralizante do pensamento, que neutraliza esse texto e só o deixa funcionar como
um “arrependimento”
19
.
Talvez Nietzsche tenha maior relevância neste ponto, já que é a partir da
análise da filosofia nietzschiana que Deleuze parece recolocar-nos perante esta questão. No
seu texto de 1962, Nietzsche e a filosofia, Deleuze nos coloca perante esta “nova imagem do
pensamento”, uma imagem, como já dito anteriormente, que se instaura como uma nova
forma de pensamento, um novo modo de pensar a diferença – uma diferença como repetição
no eterno retorno. Como vimos na introdução, não trabalharemos nesta dissertação,
entretanto, todos os aspectos desta “nova imagem do pensamento”, como um novo modo de
pensar. Investigaremos exclusivamente um dos pontos que nos remetem a ela, a univocidade
do Ser, que terá um maior aprofundamento no decorrer deste trabalho, assim como o texto de
62. O que devemos ter em mente no momento é que a imagem dogmática se caracteriza como
tal porque ela se volta para um certo “ideal ascético”, como nos diz Nietzsche na Genealogia
19
DR, p. 207.
28
da moral, e é através dela que todo o platonismo se fundamenta, já que despreza o corpo, as
sensações e o devir, em prol de um fortalecimento do “espírito”, ou melhor, em prol de uma
verdade que não se encontra no mundo e não pode ser alcançada pelo corpo, pelas sensações e
pelo tempo. Deleuze nos mostra isso com maior propriedade quando comenta acerca desta
imagem dogmática: “O mais curioso nessa imagem do pensamento é a maneira pela qual o
verdadeiro é, aí, concebido como universal abstrato”
20
. O âmbito moral se caracteriza em
Platão e no platonismo porque esta imagem dogmática, este “ideal ascético”, corrobora a
vontade louca de expulsão do simulacro, e do simulador, do próprio campo do pensamento,
ou, no caso de Platão, das decisões expressivas da polis.
Sabemos que a crítica nietzschiana e a sua “reversão do platonismo” se
direcionam, mais especificamente, a este parâmetro moral, já que, depois da filosofia
nietzschiana, a filosofia tomou um novo rumo (um novo recomeço), e não mais se remeteu a
esta transcendência platônica que se seguiu por quase toda a tradição, pois encontrou em
Nietzsche um novo modo de pensar, uma nova imagem do pensamento, que introduziu na
história da filosofia o marco do “eterno retorno” como expressão da diferença e não mais do
imutável. E assim como em Nietzsche, em Deleuze também passamos a nos haver com este
mundo do puro aparecer, com esta “imanência” e este “plano de imanência” que se abrem aos
nossos olhos, e não mais com um mundo ideal que funda tudo aquilo que é aparente e
sensível; desta forma, não é apenas através da “[...] abolição do mundo das essências e do
mundo das aparências [...], a dupla recusa das essências e das aparências [...]”
21
que
poderemos realizar esta reversão, mas podemos realizá-la na inserção do devir-louco nesta
perspectiva de mundo, trazendo-nos este novo aspecto da presença do caos que cria e que faz
marchar todas as perspectivas e pontos de vista, ou seja, toda a espécie de simulacros.
Neste sentido, a questão se abre como uma questão moral, mas não
podemos negar que ela percorra também, e até com maior intensidade segundo Deleuze, um
âmbito ontológico. Encurralar o sofista foi o projeto platônico no seu diálogo O sofista.
Separar as boas imagens (cópias) das más (simulacros) foi sua tarefa, pois só assim poderia
combater duramente os seus inimigos, aqueles que, de alguma forma, condenaram e mataram
o seu mestre; seria assim que Platão se remeteria a um âmbito moral.
20
NF, p. 85.
21
LS, p. 258.
29
Resta, então, verificar como se caracteriza este âmbito propriamente
ontológico, e como Deleuze elabora a sua crítica a Platão e, posteriormente, como ele
celebraria o mesmo em outro ponto de sua filosofia.
2. O Âmbito Ontológico da Questão
Depois de exposto o âmbito moral, que, segundo a leitura deleuziana que
aqui recortamos, nos colocaria diante do real problema do platonismo que aqui tentamos
recuperar, passamos agora a esta questão: a ontologia do platonismo e sua imagem do
pensamento.
Retomando rapidamente as questões abordadas no outro âmbito, temos
inicialmente as duas dualidades. A primeira dualidade se fundamentaria em distinguir modelo
de imagem, idéia de cópia, sensível de inteligível; talvez fosse neste sentido em que Platão
teria seguido Parmênides, na medida em que distinguiu o mundo do puro Ser, da pura forma,
e o mundo da mescla, da mistura entre Ser e não-Ser. Platão, portanto, parece ter tentado
fundamentar esta concepção de mundo que já se colocava entre os teóricos e pensadores da
época (talvez pudéssemos dizer até mesmo entre os gregos de uma forma geral), a qual
muitos, apesar de serem julgados por Platão como sofistas, já haviam tentado e se empenhado
em uma possível explicação (Górgias, Protágoras, etc.), mas poucos haviam alcançado a
consistente teoria em que teria chegado Platão
22
.
Num segundo momento, na dualidade “latente”, Platão, segundo Deleuze,
teria distinguido duas espécies de imagens: a cópia e o simulacro. Sabemos assim que coube
ao filósofo a boa linhagem, a Cópia, que possuía uma semelhança direta com o modelo, e ao
sofista, a má linhagem, o Simulacro, que apenas copiaria a Cópia, sendo desta forma apenas
22
Podemos definir aqui, como ponto culminante deste argumento, a interpretação de Roberto Machado, que
utiliza o trecho, já mencionado neste trabalho, 509a-511e da República, a chamada passagem da linha, para
analisar esta questão: “O que evidencia esse texto é que para Platão não pode haver verdadeiro conhecimento
do sensível. O que corresponde ao domínio do sensível é apenas opinião – conjectura e crença – e não saber,
conhecimento, ciência. Só do inteligível, das essências, das idéias é possível haver verdadeiro conhecimento.
Mas, do mesmo modo que há uma hierarquia do inteligível com relação ao visível, o domínio do inteligível
não é homogêneo, também é hierárquico. E por que a filosofia – dialética, a noesis – é um saber superior a
todos os outros... [...] O que acarreta uma dupla superioridade da filosofia [é:] Em primeiro lugar, ela não
recorre a nada que seja sensível: ela não se serve absolutamente de imagens. [...] Em segundo lugar, o filósofo
utiliza as hipóteses não como princípios, mas como pontos de apoio para se elevar até os princípios últimos
ou primeiros... [...] Assim, a dialética é ascendente: vai das hipóteses ao arché; eleva-se cada vez mais alto até
o princípio absoluto de inteligibilidade, até o princípio de tal modo claro que não tem necessidade de
explicação” (Machado, 1990, p. 25-6, grifo nosso).
30
uma cópia da cópia, um reflexo indistinto de uma imagem imperfeita. Devemos ressaltar que
é, entretanto, nesta última distinção que o ateniense se utiliza de toda a sua “astúcia”, já que
privilegia a cópia, aquela que detém a semelhança perante o modelo, colocando a identidade e
a unidade do modelo como instâncias primeiras, em detrimento ao simulacro, ao fantasma,
que é exorcizado, pois não traz em si o âmago da semelhança e a necessidade de uma unidade
e uma identidade. Destarte, o grande trunfo platônico foi agarrar a cópia como única
possibilidade de se chegar ao verdadeiro conhecimento através de sua similitude com a
essência, jogando ao sofista, desta forma, a culpa do erro, já que este se mostraria como a
expressão do próprio falso, através do simulacro.
É claro que Platão só distingue e mesmo opõe o modelo e a cópia para obter um
critério seletivo entre as cópias e os simulacros, de modo que as cópias são fundadas
em sua relação com o modelo e os simulacros são desqualificados porque não
suportam nem a prova da cópia nem a exigência do modelo. Portanto, se há
aparência, trata-se de distinguir as esplêndidas aparências apolíneas bem fundadas e
outras aparências, malignas e maléficas, insinuantes, que não respeitam nem o
fundamento nem o fundado. É essa vontade platônica de exorcizar o simulacro que
acarreta a submissão da diferença. Pois o modelo só pode ser definido por uma
posição de identidade como essência do Mesmo (αύτò χαθαύτό), e a cópia só pode
ser definida por uma afecção de semelhança interna como qualidade do
Semelhante
23
.
Já vimos o motivo moral de Platão quanto à sua distinção entre cópia e
simulacro, mas, qual seria, segundo Deleuze, o seu motivo ontológico quanto a esta distinção
entre imagens? Se grande parte da filosofia contemporânea postula a diferença, enquanto
movimento puro (devir puro), como poderíamos ainda pensar esta questão platônica? Seria
uma “reversão do platonismo”, uma “reversão da imagem dogmática do pensamento”, a
postulação da superioridade da imagem sobre o modelo, ou do simulacro sobre a cópia e/ou
sobre o modelo?
2.1. A Crítica Deleuziana ao Platonismo ou à Imagem Dogmática do
Pensamento
Em duas de suas principais obras, Diferença e repetição e Lógica do
sentido, ambas de 1969, Deleuze nos mostra que, para uma verdadeira reversão do
platonismo, precisamos pensar não numa instauração da superioridade da imagem sobre o
23
DR, p. 368-9.
31
modelo, ou num abandono da distinção entre imagem e modelo, entre fundamento e fundado.
Seguindo Nietzsche, Deleuze procura “[...] destruir os modelos e as cópias para instaurar o
caos que cria, que faz marchar os simulacros e levantar um fantasma [...]”
24
. Como podemos,
porém, destruir esta “dualidade manifesta” e instaurar o resquício de uma “dualidade latente”
como aquilo que circula no devir; ou seja, como podemos destruir a dualidade Modelo/Cópia
e resgatar o simulacro como expressão da diferença?
Talvez precisemos, antes de tudo, resgatar certos valores esquecidos pela
tradição, ou postulados por ela como parte de um mundo de imagens: o devir, o movimento e
a diferença. Assim, uma das principais críticas deleuzianas ao platonismo é a questão da
negação da diferença, e de certos pressupostos que ainda persistiam nesta imagem do
pensamento. No terceiro capítulo de Diferença e repetição, intitulado “A imagem do
pensamento”, Deleuze nos traz oito postulados que são, na verdade, a totalidade dos
pressupostos do platonismo, ou desta forma dogmática de pensar, desta imagem dogmática do
pensamento:
Recenseamos oito postulados, tendo cada um deles duas figuras: 1.º, postulado do
princípio ou da Cogitatio natura universalis (boa vontade do pensador e boa
natureza do pensamento); 2.º, postulado do ideal ou do senso comum (o senso
comum como concórdia facultatum e o bom senso como repartição que garante essa
concórdia); 3.º, postulado do modelo ou da recognição (a recognição instigando
todas as faculdades a se exercerem sobre um objeto supostamente o mesmo e a
possibilidade de erro que daí decorre na repartição, quando uma faculdade confunde
um de seus objetos com outro objeto de uma outra faculdade); 4.º, postulado do
elemento ou da representação (quando a diferença é subordinada às dimensões
complementares do Mesmo e do Semelhante, do Análogo e do Oposto); 5.º,
postulado do negativo ou do erro (no qual o erro exprime ao mesmo tempo tudo o
que pode acontecer de mal no pensamento, mas como produto de mecanismos
externos); 6.º, postulado da função lógica ou da proposição (a designação é tomada
como o lugar da verdade, sendo o sentido tão-somente o duplo neutralizado da
proposição ou sua reduplicação indefinida); 7.º, postulado da modalidade ou das
soluções (sendo os problemas materialmente decalcados sobre as proposições ou
formalmente definidos pela possibilidade de serem resolvidos); 8.º, postulado do fim
ou do resultado, postulado do saber (a subordinação do aprender ao saber e da
cultura ao método)
25
.
Estes oito postulados nos mostram, em um âmbito geral, o que foi o
platonismo, ou melhor, quais foram, para Deleuze, os seus princípios e pressupostos, fazendo
desta imagem do pensamento uma forma dogmática de pensar. Segundo o próprio Deleuze, a
imagem dogmática do pensamento se resumiria, entretanto, num pensamento acerca do
Mesmo e do Semelhante; a “reversão do platonismo”, assim, se resumiria na dissipação destes
24
LS, p. 271.
25
DR, p. 239-40.
32
dois princípios fortes do pensamento, e também na eliminação do negativo, na eliminação
desta ilusão que tomou grande parte da tradição filosófica. Os postulados elencados por
Deleuze seriam, deste modo, desdobramentos da imagem que evoca o Mesmo, o Semelhante
e a sua representação:
Se cada postulado tem duas figuras, é porque ele é uma vez natural e uma vez
filosófico; uma vez no arbitrário dos exemplos e uma vez no pressuposto da
essência. Os postulados não têm necessidade de ser ditos: eles agem muito melhor
em silêncio, no pressuposto da essência como na escolha dos exemplos; todos eles
formam a imagem dogmática do pensamento. Eles esmagam o pensamento sob uma
imagem que é a do Mesmo e do Semelhante na representação, mas que trai
profundamente o que significa pensar, alienando as duas potências da diferença e da
repetição, do começo e do recomeço filosóficos
26
.
É claro que estes postulados nos convidam a pensá-los com maior afinco.
Não podemos, no entanto, perder de vista o real objetivo deste capítulo: mostrar o que
caracterizaria, com maior vigor, o platonismo, quais seriam os seus principais elementos e
noções. Desta forma, ficaremos, nesta pesquisa, unicamente com esta brecha que nos deixa
Deleuze no final deste capítulo de Diferença e repetição, já citado acima, a questão do
Mesmo, do Semelhante e da representação. Quanto aos desdobramentos desta imagem do
pensamento que se inicia com Platão, teremos que deixar de lado, no momento, talvez uma
pesquisa maior sobre os postulados deleuzianos acerca da imagem dogmática do pensamento
possa ser empreendida posteriormente.
O que se segue agora é um retorno deleuziano a Platão, ou melhor, uma
releitura do filósofo francês acerca da dialética platônica, sendo que ela, enquanto questão que
se volta para o Ser ou enquanto um “complexo questão-problema”, se caracteriza como ponto
da celebração deleuziana de Platão. Voltaremos, posteriormente, com a questão sobre a
semelhança platônica.
2.2. Um Retorno a Platão – Deleuze e a Dialética
Já nos dizia Deleuze, em um apêndice à Lógica do sentido: não parece
irônico ser o próprio Platão o primeiro a indicar a reversão do platonismo
27
? É isso que se
afigura no diálogo O sofista, já que o seu método de divisão, de uma forma ou de outra, não
26
DR, p. 240.
27
LS, p. 262.
33
se remete somente a “[...] dividir um gênero em espécies contrárias para subsumir a coisa
buscada sob a espécie adequada [...]”
28
; ou seja, o método da divisão de Platão não necessita
da mediação, este conceito empregado como crítica por Aristóteles à filosofia platônica. A
mediação, segundo Aristóteles, traria “[...] a identidade de um conceito capaz de servir de
meio-termo
29
. Segundo a interpretação deleuziana, o método da divisão platônica não se
propõe a uma especificação (o contrário de uma generalização), mas a uma espécie de
seleção, onde “Não se trata de dividir um gênero determinado em espécies definidas, mas de
dividir uma espécie confusa em linhas puras ou de selecionar uma linhagem pura a partir de
um material que não o é”
30
. Platão seria, assim, o primeiro a indicar a reversão do platonismo
por colocar em questão os próprios conceitos de Modelo e de Cópia, na medida em que
procura definir o que vem a ser o Simulacro, ou na utilização de uma seleção de linhagens
para estabelecer uma “dialética da diferença”. O que se mostra nesta seleção, ou nesta
“dualidade latente”, é, como dito anteriormente, um encurralamento ou, ainda, uma captura do
sofista
31
, na medida em que é ele, segundo Platão, que se caracterizaria como o Ser do próprio
simulacro
32
. Neste sentido, Platão, na obra O sofista, busca definir a ocupação do sofista e, de
certo modo, o que ele vem a ser, por este motivo se demora em intrincados paradoxos, pois o
sofista parece fugir a toda a tentativa de capturá-lo, mostrando-se, deste modo, como o
próprio paradoxo. Tais paradoxos colocavam em dúvida, de certa forma, o Ser e o não-Ser,
colocando em dúvida também a própria fundamentação de um modelo e de uma imagem, já
que, ao analisá-los, Platão se lança numa fundamentação daquilo que se caracteriza como
ilusório, daquilo que seria, para ele, no fim das contas, cópia de cópia: simulacro.
28
LS, p. 259.
29
DR, p. 98.
30
DR, p. 99.
31
O sofista aparece como o elemento maligno desta dualidade; o elemento que representa a própria expressão do
falso, já que perdeu o modelo de vista. Sua produção é uma imitação, no entanto, uma imitação de um objeto
que não conhece realmente; sua produção não passa, assim, de um ponto de vista desigual. Platão parece
empregar todas as suas forças para esta captura do sofista: “ESTRANGEIRO: Eis, pois, o que ficou decidido:
dividir sem demora a arte que produz imagens e, avançando nesse esconderijo, se, desde logo, nos aparecer o
sofista, apanhá-lo conforme o edito do rei, entregando-o ao soberano, e declarando-lhe a nossa captura. E se,
nas sucessivas partes da mimética, ele encontrar um covil onde esconder-se, persegui-lo passo a passo,
dividindo logo cada parte em que se resguarde, até que ele seja apanhado. Nem ele, nem espécie alguma,
poderá jamais vangloriar-se de se haver esquivado a uma perseguição levada a efeito tão metodicamente, em
seu todo e em seus pormenores” (Platão, 1979: 235e).
32
A última definição do sofista para Platão aparece no final do Sofista e é como Platão o define definitivamente:
“ESTRANGEIRO: Assim, esta arte de contradição que, pela parte irônica de uma arte fundada apenas sobre a
opinião, faz parte da mimética e, pelo gênero que produz os simulacros, se prende à arte de criar imagens; esta
porção, não divina mas humana, da arte de produção que, possuindo o discurso por domínio próprio, através
dele produz suas ilusões, eis aquilo de que podemos dizer ‘que é a raça e o sangue’ do autêntico sofista,
afirmando, ao que parece, a pura verdade” (Platão, 1979: 268d).
34
[...] é possível que o fim do Sofista contenha a mais extraordinária aventura do
platonismo: à força de buscar do lado do simulacro e de se debruçar sobre seu
abismo, Platão, no clarão de um instante, descobre que não é simplesmente uma
falsa cópia, mas que põe em questão as próprias noções de cópia... e de modelo
33
.
Platão estaria, assim, no Sofista
34
, colocando questões que em outras obras
não havia colocado, muitas vezes questões que iam contra certas configurações de sua própria
teoria; voltamos, deste modo, novamente ao dizer deleuziano: – Não seria ele, Platão, o
primeiro a iniciar a “reversão do platonismo”?
Outro aspecto da divisão que deve ser ressaltado aqui é a sua “potência
mítica”; é através do mito que o suposto modelo a ser colocado, ou ainda a ser seguido pelos
seus “pretendentes”, é posto como tal. Desta forma é que os diversos pretendentes poderão ser
selecionados, ou dados a participar eletivamente deste modelo mítico.
[...] na realidade, o mito não interrompe nada; ele é, ao contrário, elemento
integrante da própria divisão. É próprio da divisão ultrapassar a dualidade entre o
mito e a dialética e reunir em si a potência dialética e a potência mítica. O mito, com
sua estrutura sempre circular, é realmente a narrativa de uma fundamentação. É ele
que permite erigir um modelo segundo o qual os diferentes pretendentes poderão ser
julgados. O que deve ser fundado, com efeito, é sempre uma pretensão. É o
pretendente que faz apelo a um fundamento e cuja pretensão se acha bem fundada
ou mal fundada
35
.
A teoria platônica da participação talvez possa ser melhor explicada através
deste aspecto do método da divisão de Platão, onde temos um “fundamento”, que é o
imparticipável, ou aquilo que doa a participação para os participantes; um “objeto de
pretensão”, que é o participável do participante, isto é, aquilo que é a participação doada pelo
imparticipável; e, por fim, o “pretendente”, que é o participante da participação doada pelo
imparticipável
36
.
O fundamento é o que possui alguma coisa em primeiro lugar, mas que lhe dá a
participar, que lhe dá ao pretendente, possuidor em segundo lugar, na medida em
que soube passar pela prova do fundamento. O participado é o que o imparticipável
33
LS, p. 261.
34
O Sofista, segundo os comentadores de Platão, teria sido escrito num período de velhice do mesmo, portanto,
num período em que, juntamente com o Parmênides, Teeteto e O político, Platão estaria refletindo sobre a
questão do Outro e da Participação; seria um período onde ele supostamente iria contra alguns princípios de
sua própria teoria, já que se afastava de muitas afirmações que estavam em outras obras precedentes, tais
como: República, Górgias, Mênon, Fédon, etc. Cf. Soares, 2001.
35
LS, p. 260.
36
Devemos deixar claro que a teoria da participação referida aqui não se estende diretamente ao diálogo
platônico “O sofista”, já que é neste que encontramos em Platão a potência da reversão de sua própria teoria,
mas, mais estritamente aos seus diálogos da maturidade, tais como O político, Mênon, Fedro, etc.
35
possui em primeiro lugar. O imparticipável dá a participar, ele dá o participado aos
participantes: a justiça, a qualidade de justo, os justos. E é preciso distinguir, sem
dúvida, todo um conjunto de graus, toda uma hierarquia, nesta participação eletiva:
não haveria um possuidor em terceiro lugar, em quarto etc., até o infinito de uma
degradação, até àquele que não possui mais do que um simulacro, uma miragem, ele
próprio miragem e simulacro?
37
.
Neste trecho, Deleuze, além de nos explicar melhor esta questão do
imparticipável, da participação e do participante, se pergunta novamente sobre o simulacro:
– Afinal, haveria um participante em terceiro ou quarto grau?
Os participantes que não gozam do segundo lugar como grau de sua
similitude são chamados simulacros, já que não se assemelham mais ao modelo, pois não
estão ligados diretamente pelo “objeto de pretensão”; ou seja, pela participação direta ou, com
mais propriedade, pela “intenção de reprodução” direta do modelo. Ao contrário, são
colocados de lado pela sua “dessemelhança” com a Forma, com a Idéia. Eles não gozam do
mesmo plano que as cópias-ícones, pois trata-se apenas de fantasmas, simulacros-fantasmas.
Assim, Platão trata de glorificar as cópias, colocando-as num patamar mais elevado, elevando
também todos aqueles que trilham o caminho das cópias, os filósofos; trata também de
marginalizar os simulacros, afirmando a sua dessemelhança com o modelo, fazendo dele
apenas uma cópia imprecisa da cópia, um ponto de vista desigual, uma “diferença completa”
do modelo, desprezando todos aqueles que se entregam a esta arte, os sofistas.
Podemos notar aqui um aspecto importante na questão da dialética
platônica: que a dualidade “manifesta” (dualidade modelo/imagem) só se efetiva para fundar a
dualidade “latente” (dualidade cópia/simulacro), já que os verdadeiros pretendentes, aqueles
que possuem a intenção de copiar o modelo, só são selecionados entre os falsos, aqueles que
simulam a cópia, porque a Semelhança, ou a intenção de semelhança, lhes garante a
participação com a unidade e a identidade do modelo, do fundamento. Desta maneira, vamos
da unidade/identidade do modelo/fundamento à semelhança da cópia-ícone, por fim, à
exclusão do simulacro-fantasma pela sua dessemelhança com este modelo/fundamento.
Chegamos, de tal forma, às “figuras da dialética platônica” que Deleuze nos
descreve em sua obra Diferença e repetição:
As quatro figuras da dialética platônica são, portanto, as seguintes: a seleção da
diferença, a instauração de um círculo mítico, o estabelecimento de uma fundação, a
posição de um complexo questão-problema. Mas, por meio destas figuras, a
37
LS, p. 261.
36
diferença é ainda remetida ao Mesmo ou ao Uno. Sem dúvida, o mesmo não deve ser
confundido com a identidade do conceito em geral; ele caracteriza sobretudo a Idéia
como sendo a coisa “mesma”. Mas, na medida em que ele desempenha o papel de
um verdadeiro fundamento, não se vê bem qual é seu efeito, a não ser o de fazer com
que o idêntico exista no fundado, o de servir-se da diferença para fazer com que o
idêntico exista
38
.
Tais figuras expressam o próprio método da divisão de Platão e, logo, nos
mostram que a suposta seleção da diferença não passava de uma fundamentação da identidade
e unidade de Parmênides. Destarte, a ontologia de Platão se faz aparecer sob a perspectiva do
sepultamento da diferença, mas aquela ainda a reivindica como Outro subordinado ao Mesmo.
Deste modo, a caracterização da própria dialética se mostra como a rivalização do Mesmo e
do Outro dentro da Idéia, do Ser e do não-Ser subordinado à Unidade Ideal. Este Outro é
visto, contudo, como “um complexo questão-problema”; isto é, mesmo em Platão, segundo
Deleuze, o não-Ser não é o mesmo que o negativo do Ser. Pelo contrário, o “não” do não-Ser,
antes de ser o negativo do Ser, é o positivo da questão-problema. Ele representa outra coisa
que a negação de Ser. Representa o próprio problema da questão do Ser.
A dialética é a arte dos problemas e das questões, e a combinatória é o cálculo dos
problemas como tais. Mas a dialética perde seu poder próprio – e, então, começa a
história de sua longa desnaturação, que faz que ela caia sob a potência do negativo –
quando ela se contenta em decalcar os problemas sobre as proposições
39
.
A questão-problema aparece em Platão como o indeterminado, ou ainda
como a pura diferença. A diferença, no entanto, nunca é negação de Ser, mas sempre
afirmação dele; não há negação determinada, mas apenas uma negação indeterminada: a pura
diferença
40
. A instauração desta diferença, deste não-Ser que se mostra como problema, se
38
DR, p. 105.
39
DR, p. 227.
40
A questão do negativo nos remete a certos aspectos, segundo Deleuze, de quase toda a história do pensamento,
desde o próprio Platão e Aristóteles a Leibniz e Hegel, e até mesmo na própria ontologia contemporânea, já
que quando Heidegger tenta fundamentar o Ser a partir de algo que não é ente, ou seja, ao romper com a
tradição filosófica, postulando o Ser como diferente daquilo que se mostra ao nosso entendimento, diferente
do fenômeno, acaba postulando-o como um Nada que tudo cria. Isso nos leva a pensar, entretanto, apesar de
não ser esta a intenção de Heidegger, num certo niilismo; isto é, nos leva a pensar que o Ser é justamente este
não-Ser, e que este “não” do não-Ser não expressa a própria diferença em si mesma, e sim a própria negação
de tudo, de ente e de Ser. Isso não seria um encontro com um paradoxo intransponível, onde Ser e não-Ser
seriam a mesma coisa? Como dito, a intenção heideggeriana não era dar esta interpretação da questão do Ser,
porém este problema nos coloca em um outro agenciamento deleuziano; cremos, portanto, não ser o momento
ainda para abordarmos definitivamente esta problemática, por isso ela será trabalhada posteriormente, num
capítulo subseqüente, onde abordaremos exclusivamente a questão do negativo. Veremos que é a partir desta
postulação negativa do Ser que Deleuze tentará postular a sua teoria da Diferença, não mais através de um
tom negativo, mas puramente positivo.
37
afirmou, porém, como a instauração de um critério de verdade para a existência do idêntico
através da referência desta diferença ao Mesmo.
Na verdade, a distinção do mesmo e do idêntico só é proveitosa se levarmos o
Mesmo a submeter-se a uma conversão que o remeta ao diferente, ao mesmo tempo
em que as coisas e os seres que se distinguem no diferente sofram de modo
correspondente uma destruição radical de sua identidade. É somente sob esta
condição que a diferença é pensada em si mesma e não representada, mediatizada.
Todo o platonismo, ao contrário, é dominado pela idéia de uma distinção a ser feita
entre “a coisa mesma” e os simulacros. Em vez de pensar a diferença em si mesma,
ele já a remete a um fundamento, subordina-a ao mesmo e introduz a mediação sob
uma forma mítica. Subverter o platonismo significa o seguinte: recusar o primado de
um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem. Glorificar o reino dos
simulacros e dos reflexos
41
.
Deleuze, portanto, nos coloca novamente a “reversão do platonismo”
(subversão do platonismo), e esta reversão se dá através da superação da dualidade
“manifesta”. Não havendo mais modelo, não havendo mais fundamento, o que resta é apenas
a superfície de uma imagem; mas, como a cópia, na dualidade “latente”, só se mostra superior
na semelhança com o modelo, não haveria mais razão de sua superioridade sobre o simulacro.
E este se mostraria como a expressão da diferença esquecida, como um fundo que se mostra
sempre na superfície, pois o fundamento perde sua profundidade subindo à superfície e se
mostrando na suposta má linhagem colocada por Platão, o simulacro-fantasma.
O autor francês considera ser o simulacro a expressão da própria diferença
e, enquanto expressão desta, manifestação do próprio Ser no ente, da própria diferença no
ente, ou do ente como diferente. Sendo desta forma, o simulacro não corresponde nem à
Cópia, como reprodução, nem à Forma, como modelo, já que não traz vinculado, em seu
âmago, a idéia de semelhança e de representação.
O que se segue, por conseguinte, é uma tentativa de compreensão, através
dos textos deleuzianos, da representação em Platão e no platonismo em geral, ou nas
filosofias que levaram a “teoria da representação” como “paradigma” para o pensar, como
uma imagem de seu próprio pensamento. É tentativa também de mostrar a alternativa
apontada pelo nosso filósofo para se pensar esta empreitada supostamente iniciada pelo
próprio Platão no final de sua obra, a “reversão do platonismo”, ou a superação desta imagem
dogmática do pensamento. Devemos, porém, mais uma vez, deixar claro que os postulados
colocados por Deleuze não farão parte separadamente desta análise; o que fará parte deste
41
DR, p. 105-6.
38
exame será unicamente aquilo que foi evocado anteriormente como sendo o centro da crítica
deleuziana (que forma uma unidade através do conjunto dos postulados): os conceitos de
representação e suas raízes. Deste modo, deixaremos em suspenso aqui, por algumas páginas,
a questão do simulacro, para nos reportarmos ao quadro deleuziano (postulado antes por
Foucault) da “quádrupla raiz da representação”.
3. Da “Quádrupla Raiz da Representação”
Pensar o conceito de representação nos remete a pensar toda a teoria
platônica e, em certa medida, todo o platonismo da tradição filosófica que se seguiu desde
Platão, já que será este platonismo da tradição que será visto por Deleuze como uma imagem
dogmática. Segundo o autor francês, só podemos compreender a representação na história da
filosofia se nos remetermos à quádrupla raiz da representação, já exposta por Foucault nas
Palavras e as coisas, onde se tem a “identidade do conceito”, a “oposição do predicado”, a
“analogia no juízo” e a “semelhança na percepção”
42
. Não será, no entanto, nosso intuito aqui
resgatar toda a crítica que Deleuze faz à história da filosofia, mas apenas os principais pontos
deste platonismo que se apresentou na tradição filosófica, aqueles que constituíram mais
claramente as quatro raízes da representação. Estas quatro raízes serão melhor visualizadas
em: inicialmente Platão, não só pela própria noção de representação, mas pela idéia de
Mesmo e de Semelhança; Aristóteles através dos conceitos de Identidade e Oposição; e, por
último, a interpretação de Tomás de Aquino acerca de Aristóteles, que nos trouxe a
perspectiva e a noção de Analogia.
3.1. Da Semelhança Platônica
Vimos anteriormente como Deleuze faz o resgate e a leitura acerca da
filosofia platônica. Devemos agora retomar certos aspectos desta leitura para que possamos
clarear alguns de seus principais aspectos, já que serão eles que nos guiarão pelo caminho
tortuoso que foi (e, poderíamos dizer, que ainda é) o platonismo em geral.
42
DR, p. 365.
39
Retomamos aqui esta leitura deleuziana sobre a filosofia platônica. Vimos
que a representação seria a forma própria de nos havermos com a Idéia, já que, ao não
podermos acessar diretamente o modelo (a forma, o fundamento), pois vivemos num mundo
que sempre se mostra como aparente (como sensível, ou seja, que sempre se mostra como
imagem, como sombra da verdade), o que podemos fazer é selecionar as boas imagens
(cópias) das más (simulacros). A seleção platônica, ou a dialética seletiva, aparece aqui como
o espírito da representação, já que o modelo, esta unidade em si mesma, esta identidade em
primeiro grau, só seleciona por “Semelhança”, só seleciona os pretendentes do “objeto de
pretensão”, por se assemelharem a ele; ou, como chamou Deleuze, o Pai só seleciona os
pretendentes à mão de sua filha por serem semelhantes a ele. A Semelhança torna-se uma
espécie de identidade em segundo grau, já que é através dela que o pretendente pode alcançar
o objeto pretendido, e, desta forma, participar, através deste objeto, da Idéia (da Forma, do
Original) pela imitação. Por exemplo: só a Coragem (modelo) é corajosa, pois é idêntica a si
mesma, mas a Coragem dá a participar a sua qualidade de ser corajosa (objeto de pretensão),
mas só é corajoso aquele que se assemelha com o modelo de Coragem (pretendente), ou que o
imita, e apenas ele é quem tem o direito de ser corajoso (participação). Para conferir isso,
vejamos o que nos diz Deleuze:
O modelo platônico é o Mesmo: no sentido em que Platão diz que a Justiça não é
nada além de justa, a Coragem, corajosa etc. – determinação abstrata do fundamento
como aquilo que possui em primeiro lugar. A cópia platônica é o Semelhante: o
pretendente que recebe em segundo lugar. À identidade pura do modelo ou do
original corresponde a similitude exemplar, à pura semelhança da cópia corresponde
a similitude dita imitativa
43
.
Apesar de Deleuze se referir à representação de um modo geral quando nos
diz remeter a representação às suas quatro formas, também poderíamos relacionar estes quatro
aspectos da representação em geral com a própria representação platônica, ou melhor, com a
filosofia de Platão, recorrendo aqui à sua “Teoria das Formas”. Deste modo, primeiramente,
não podemos negar a identidade que se forma com a instauração de um modelo, a idéia de
Mesmo; o modelo, ou a Forma, seria o seu primeiro aspecto, já que se identifica com si
mesmo: só a Justiça é justa, só a Coragem é corajosa, etc. Esta identidade, enquanto
identidade primeira, se colocaria como uma identidade completa (ou absoluta), se mostrando,
por sua vez, através do conceito, afinal, seria ele quem definiria a sua unidade e a sua
permanência numa igualdade expressa através do logos; ou seja, seria o conceito de Bem que
43
LS, p. 264.
40
definiria os seus limites, que garantiria a sua unidade e a sua identidade e que extirparia as
suas diferenças. Em segundo lugar, teríamos igualmente em Platão uma oposição que se
mostraria como uma identidade negativa, ou melhor, uma “diferença completa”; onde
teríamos tudo aquilo que se opõe completamente ao conceito, ou que não se assemelha, de
alguma forma, ao modelo, e opõe-se a ele como os seus limites, as suas diferenças. Por
exemplo: o Bem não é Mal; a Forma Mal se opõe ao conceito de Bem, não há relação, ou
entrelaçamento, entre a Forma Mal e a Forma Bem. O que há, assim, é a dessemelhança entre
ambos, pois são completamente opostos. Em terceiro lugar, também poderíamos nos colocar a
possibilidade da analogia, enquanto uma diferença parcial, já que quase todas as Formas
podem se relacionar (se entrelaçar) com outras, se assemelhando uma à outra por analogia, no
entanto, mesmo se entrelaçando, nenhuma Forma perde totalmente a sua identidade própria, a
sua unidade. Em quarto lugar, teríamos a semelhança, como identidade parcial, onde teríamos
novamente um entrelaçamento entre as Formas, e, neste entrelaçamento, uma Forma se
assemelharia à outra por participarem conjuntamente de uma só Forma. Por exemplo: a Forma
Ser possui todas as outras Formas como participantes de sua constituição, como a Forma do
Belo, do Justo, do Bem, etc. Estas Formas se entrelaçam e se assemelham porque participam
igualmente de uma só Forma, a Forma de Ser, como se uma identidade em segundo grau as
igualasse e as colocasse num mesmo patamar
44
.
44
A “Teoria das Formas”, exposta na República, no Fédon e no Fedro, através da divisão dos dois mundos, nos
é colocada com maiores detalhes no Parmênides, onde Platão divide as coisas sensíveis das formas
universais. Regras gerais desta teoria e também da teoria da participação podem ser retiradas, portanto, do
Parmênides; Márcio Soares assim nos expõe com maior claridade estas regras: “[...] podemos concluir: (a)
não há participação entre coisas sensíveis, mas apenas entre Formas e coisas sensíveis e entre as próprias
Formas; (b) Formas relativas a um determinado tipo de coisas não participam entre si; por exemplo, as
Formas de Homem e de Cavalo não participam entre si; (c) Formas relativas a um determinado tipo de coisas
participam de Formas mais abstratas, isto é, mais universais no que tange à participação; em nosso exemplo,
tanto a Forma de Homem como a de Cavalo participam da Forma de Animal; igualmente, as Formas de
Animal e Vegetal participam da Forma de Ser Vivo; (d) no topo dessa ascensão abstrativa estão as Formas
universalíssimas [μέγιστα τών γενών], por exemplo, Ser, Outro, Mesmo, Unidade, Pluralidade, Movimento,
Repouso, Semelhança, Dessemelhança, etc.” (Soares, 2001, p. 66). Como pudemos perceber, teríamos,
segundo Soares, Formas que se mostrariam como “universalíssimas”, ou que estão num patamar acima
daquelas que se mostram como universais, portanto, Formas que, de uma maneira ou de outra, podem dar a
participar com todas as outras Formas; isto é, Formas que podem se relacionar (ou se entrelaçar) com todas as
outras Formas. Já as Formas universais, ou “abstratas”, como chama Soares, são aquelas que dão a participar
de Formas relativas a coisas concretas, ou sensíveis. Concluindo, teríamos: primeiramente, as Formas
“universalíssimas”, que estariam num grau acima de todas as outras, pois se mostrariam mais participativas;
em segundo lugar, as Formas universais, que se mostrariam participativas quanto às coisas sensíveis, ou às
Formas de coisas sensíveis; em terceiro lugar, as Formas de coisas sensíveis, que não se relacionariam entre
si, mas unicamente com as Formas abstratas ou as próprias coisas sensíveis; e, por último, as coisas sensíveis,
que poderiam se relacionar unicamente com as Formas. Com Soares percebemos que, no Parmênides, o que
se destaca é esta relação entre as Formas e as coisas sensíveis, ou as Formas entre si; já no Sofista, temos uma
seleção, o método da divisão de Platão nos traz uma outra perspectiva de sua teoria, o que faz com que ela
possa ser colocada também em dúvida. A teoria das formas de Platão, neste último texto, se mostra através de
uma seleção de linhagens, recepcionando os bons pretendentes e marginalizando os maus. Uma aparente
41
Colocando esta problemática em relação com o pretendente e a pretensão,
temos: um modelo que possui uma identidade completa sobre si mesmo; um objeto pretendido
que gera uma participação; e um pretendente. O objeto pretendido pode colocar o pretendente
tanto como oposto a um outro pretendente, que não tem a mesma pretensão de semelhança
com tal modelo, ou colocá-lo, por semelhança, numa relação direta com o modelo. Neste
último caso, ele poderá estar numa mesma posição que qualquer outro que venha a participar
com ele deste modelo; entretanto, ao mesmo tempo em que esta pretensão assemelha todos os
pretendentes entre si, também os difere um do outro, por analogia, já que cada um possuirá a
sua própria relação como o modelo.
Apesar de podermos fazer estas comparações através da quádrupla raiz da
representação em geral com alguns aspectos da própria filosofia de Platão, a questão
deleuziana, ou a crítica deleuziana quanto a Platão, se dirige mais especificamente às noções
de “Mesmo” e de “Semelhante”. São estes dois conceitos platônicos que garantem à Cópia a
superioridade sobre o Simulacro, e que também garantem a distinção entre as duas formas de
“dualidade” em Platão.
Segundo Deleuze, é neste sentido que a diferença está subordinada à própria
identidade e semelhança, já que ela ou se coloca como diferenciadora de linhagens, ou como
não-Ser completo (diferença negativa) que separa as Formas uma da outra, não deixando,
assim, que as mesmas se relacionem aleatoriamente.
Julga-se que o modelo goze de uma identidade originária superior (só a Idéia não é
outra coisa a não ser aquilo que ela é, só a Coragem é corajosa e a Piedade, piedosa),
ao passo que a cópia é julgada segundo uma semelhança interior derivada. É mesmo
neste sentido que a diferença vem apenas no terceiro nível, após a identidade e a
semelhança, e só pode ser pensada por elas. A diferença só é pensada no jogo
comparado de duas similitudes, a similitude exemplar de um original idêntico e a
similitude imitativa de uma cópia mais ou menos semelhante: é esta a prova ou a
medida dos pretendentes. Mais profundamente, porém, a verdadeira distinção
platônica desloca-se e muda de natureza: ela não é entre o modelo e a cópia, mas
entre duas espécies de imagens (ídolos), cujas cópias (ícones) são apenas a primeira
espécie, sendo a outra constituída pelos simulacros (fantasmas). A distinção modelo-
cópia existe apenas para fundar e aplicar a distinção cópia-simulacro, pois as cópias
são justificadas, salvas, selecionadas em nome da identidade do modelo e graças à
sua semelhança interior com este modelo ideal. A noção de modelo não intervém
opor-se ao mundo das imagens em seu conjunto, mas para selecionar as boas
imagens, aquelas que se assemelham do interior, os ícones, e para eliminar as más,
os simulacros
45
.
seleção de diferenças, no entanto, como pudemos ver, uma latente forma de subordinar a diferença à
identidade e à unidade.
45
DR, p. 184-5.
42
A representação platônica, desta maneira, só pode ser colocada como tal por
causa do conceito de Semelhança, que serve como uma segunda identidade que envolve o
mundo do sensível e do aparente. O imanente (aquilo que se mostra num campo de
experiência, numa superfície)
46
é, assim, subordinado ao mundo do fundamento: através do
platonismo não podemos enxergar a superfície sem recorrer, antes de tudo, ao artifício do
aprofundamento; devemos, primeiro, desenterrar a essência das profundezas, ir buscar o
modelo no fundo do abismo para que então possamos vislumbrar com propriedade esta
superfície que se coloca, esta “imanência” que se posta. “Reverter o platonismo”, portanto, é
não mais se prender às profundezas, não mais ter que ir buscar o fundamento; revertê-lo é
fundar a imanência (o campo de sentido da experiência), é fundar a superfície a partir de si
mesma. O simulacro seria, neste sentido, aquilo que foge à identidade e à semelhança, aquilo
que se furta da representação; não há mais re-apresentar no jogo dos simulacros-fantasmas, há
apenas repetir, retornar. O simulacro seria aquilo que retorna, aquilo que nos traz novamente a
perspectiva do dionisíaco, que desvanece tanto o fundamento (o modelo, o idêntico, o uno),
quanto a cópia (a reprodução, o semelhante). O simulacro é a expressão própria da
embriaguez esquecida, do caos que gera e que cria, colocado em meio aos próprios entes
47
.
Nesta perspectiva é que podemos dizer que Deleuze, levando em
consideração a visão platônica, seria um sofista, pois agarra o simulacro como aquilo que
expressa, como aquilo que é a única forma de nos havermos com as coisas do mundo,
deixando de lado o fundamento do modelo e a semelhança da cópia.
46
Há uma distinção em Deleuze entre “plano de imanência”, que explicamos rapidamente na introdução desta
pesquisa, e “imanência”. O “plano de imanência” de Deleuze é uma conceituação do final de sua obra e não
será trabalhado em maiores detalhes neste trabalho, já que demandaria uma investigação mais direcionada,
por isso ficaremos aqui unicamente com esta perspectiva do conceito de “imanência” que nos remete a um
conceito que rivaliza com a transcendência. Este conceito, contudo, será elaborado com maiores detalhes no
terceiro e quarto capítulo desta investigação. Para maiores detalhes acerca do “plano de imanência” e do
conceito de “imanência”, cf. Zourabichvili, 2004, p. 74-89.
47
Devemos lembrar novamente, para um melhor esclarecimento, que a filosofia platônica se remete mais
precisamente a uma tripla operação, ou melhor, uma tripla separação: Modelo, Cópia e Simulacro; o primeiro,
junto com a imagem (onde os dois últimos estão colocados), ligado à “dualidade manifesta” e os dois últimos
ligados à “dualidade latente”. Esta é também a interpretação de Jose Luis Pardo em sua obra Deleuze:
violentar el pensamiento: “[...] o platonismo se define por uma tripla operação que instaura a representação:
estabelecimento de um modelo (o Mesmo), seleção da semelhança (a Cópia) e expulsão da diferença (o
Outro). Esta é a tríade da metafísica: Original, Cópia e Simulacro. Se as coisas (corpos) só são na medida em
que se assemelham à Idéia, os simulacros, que são precisamente os que não se assemelham, os diferentes, as
diferenças, aquilo que não se acomoda ao modelo inteligível do sensível, são forçosamente o que não é.”
[PARDO, Jose Luis. Deleuze: violentar el pensamiento. Bogotá: Editorial Cincel Kapelusz, 1992. (Serie
historia de la filosofia), p. 63, tradução nossa. Em diante (Pardo, 1990)]. Percebemos aqui que a Cópia é o elo
de ligação de Platão. Somente ela possui um pé tanto no inteligível, pela sua intenção de copiar a Idéia
(modelo), quanto no sensível, por não passar de uma imagem, ou por estar, a seu modo, também sujeita a toda
a espécie de dessemelhança, assim como o simulacro.
43
Uma questão, todavia, ainda permanece: – Toda a imagem, seja ela Cópia
ou Simulacro, já não carrega em si uma parcela tanto de semelhança como de dessemelhança?
Não seriam assim a cópia e o simulacro semelhantes e dessemelhantes ao modelo?
É claro que podemos perceber, pelo menos em Platão, este jogo de
semelhança e dessemelhança na questão da imagem. O simulacro não é privado da própria
noção de semelhança, pois até mesmo ele se subordina a tal noção. O que difere, no entanto,
uma imagem da outra é a questão da intenção. É a intenção de semelhança com o modelo que
faz Platão exaltar a cópia como uma imagem superior ao simulacro, sendo ele,
conseqüentemente, jogado “às margens da filosofia” pela sua despreocupação com o próprio
modelo; não é o fundamento que interessa ao sofista, ao simulador, mas o espetáculo, o teatro
que o simulacro, ou a simulação, pode oferecer a si e ao outro. A caracterização do simulacro,
como dessemelhante ao modelo, não se faz pela sua real dessemelhança com o fundamento,
mas pela sua intenção, ou melhor, pela sua falta de intenção de copiar diretamente o modelo.
A crítica deleuziana ao platonismo se volta, deste modo, para a
subordinação de todo o conhecimento fenomênico, bem como do próprio Ser à identidade; ou
melhor, a redução da diferença (multiplicidade) à identidade (unidade), através da similitude
entre idéia e cópia, e o descarte do simulacro por não ser ou por não ter a intenção de ser
análogo à Idéia, mas por ser uma perspectiva, um ponto de vista da mesma, já que se forma,
segundo Platão, na tomada da cópia como o próprio modelo, ou na tomada da imagem como
ponto fundante.
Vimos em Platão, portanto, a primeira raiz da representação, a Semelhança,
que faz com que a própria representação se caracterize como um aprofundamento, como uma
busca pelo fundamento e pela essência. Não obstante, o próprio Deleuze já nos adverte:
Não se pode dizer, contudo, que o platonismo desenvolve ainda esta potência da
representação por si mesma: ele se contenta em balizar o seu domínio, isto é, em
fundá-lo, selecioná-lo, excluir dele tudo o que viria embaralhar seus limites. Mas o
desdobrar da representação como bem fundada e limitada, como representação
finita, é antes o objeto de Aristóteles: a representação percorre e cobre todo o
domínio que vai dos mais altos gêneros às menores espécies e o método de divisão
toma então seu procedimento tradicional de especificação que não tinha em Platão.
Podemos designar um terceiro momento quando, sob a influência do Cristianismo,
não se procura mais somente fundar a representação, torná-la possível, nem
especificá-la ou determiná-la como finita, mas torná-la infinita, fazer valer para ela
uma pretensão sobre o ilimitado [...]. Leibniz e Hegel marcaram com seu gênio esta
tentativa. Contudo, se ainda assim não saímos do elemento da representação é
porque permanece a dupla existência do Mesmo e do Semelhante
48
.
48
LS, p. 264-5.
44
Percebemos, segundo esta visão deleuziana, que Platão foi apenas um dos
precursores do conceito de representação, não sendo ele, entretanto, o único desenvolvedor da
mesma. Aristóteles, depois de Platão, numa tentativa de inversão da filosofia de seu mestre,
talvez tenha sido, como nos diz Deleuze, o primeiro a apontar mais nitidamente o caminho
para a teorização de toda a tradição filosófica da representação, através da identidade do
conceito e de uma primeira teorização da oposição dos predicados. Seguindo o estagirita,
teríamos a interpretação de Tomás de Aquino sobre a questão do Ser em Aristóteles: a
instauração do conceito de analogia, onde se tem o Ser como uma unidade invisível por trás
da série das categorias. É claro que, neste recorte, o próprio Deleuze nos lembrou que em
Leibniz e Hegel temos a idéia de representação infinita, conceito este que tentou, de alguma
forma, ultrapassar as barreiras da própria representação, mas que acabou se limitando nela
mesma. Devemos lembrar, antes de prosseguirmos, que não é nosso intuito resgatar aqui uma
história da filosofia, e nem mesmo ostentar uma relação causal entre uma teoria e outra, mas
unicamente ressaltar os principais aspectos do platonismo, apontados por Deleuze
49
.
3.2. Das Categorias do Platonismo ou do Platonismo Aristotélico
Sabemos que, segundo Deleuze, a motivação platônica da submissão da
diferença (e do simulacro como expressão desta) à identidade/unidade era uma motivação
moral, já que era apenas através da exaltação da semelhança da cópia que Platão valorizaria o
filósofo e jogaria ao sofista a culpa do erro e do falso. Mesmo tendo tal motivação, ela ainda
não foi o suficiente para que Platão pudesse seguir um completo desenvolvimento e
teorização de uma filosofia da representação:
É verdade que o platonismo já representa a subordinação da diferença às potências
do Uno, do Análogo, do Semelhante e mesmo do Negativo. É como o animal em
vias de ser domado; seus movimentos, numa última crise, dão melhor testemunho,
do que em estado de liberdade, de uma natureza logo perdida: o mundo heraclitiano
freme no platonismo. Com Platão o resultado é ainda duvidoso: a mediação não
encontrou completamente seu movimento. A Idéia ainda não é um conceito de
49
Devemos esclarecer também que não será nosso objeto de estudos, neste capítulo, a questão da representação
infinita, já que nos basta exemplificarmos e esclarecermos estas quatro raízes da representação já expostas na
representação finita. Temos ciência, entretanto, de que Leibniz e Hegel desempenham um papel importante na
própria história da representação, e que com Hegel também temos uma teorização mais radical de uma destas
raízes aqui expostas, a oposição como contradição. A questão hegeliana, porém, será tratada posteriormente
onde também analisaremos esta suposta negatividade que surge com a contradição, ou a identificação da
diferença ao negativo, à negação de Ser. Ficaremos aqui unicamente com a perspectiva aristotélica e tomista
acerca das três raízes restantes da representação.
45
objeto que submete o mundo às exigências da representação, mas antes uma
presença bruta que só pode ser evocada no mundo em função do que não é
“representável” nas coisas
50
.
Não podemos negar que foi Platão mesmo quem primeiramente pensou os
conceitos de semelhança e de representação, mesmo partindo de uma motivação moral. Claro
que o platonismo que se seguiu após Platão não deixou de lado completamente este viés
moral; podemos dizer que tal motivação foi, ao longo do tempo, se ocultando e se escondendo
cada vez mais por trás de cada palavra e conceito desenvolvido pelos filósofos que ampliaram
o leque da filosofia da representação.
No caminho que traçamos, o que queremos trazer à tona é, todavia, esta
glorificação, não mais como motivação moral, mas como consagração ontológica da
representação ante à repetição, já que percebemos que grande parte da tradição utilizou os
conceitos platônicos como seus e incorporou-os à sua filosofia de forma que eles proliferaram
como um novo platonismo. Apesar de muitos deles também terem tentado uma espécie de
reversão da teoria platônica, como foi o caso de Aristóteles, eles acabaram apenas por
corroborar a própria teoria platônica; podemos, assim, na história da representação, considerá-
los como platônicos, como filósofo da representação. Vejamos, na seqüência, como
Aristóteles, de alguma forma, “seguiu” os passos de seu mestre e, mesmo tentando “reverter”
a filosofia de Platão, fez da sua própria filosofia este parâmetro para um novo platonismo.
3.2.1. Da Identidade e da Oposição Aristotélica
Apesar de ter tecido várias críticas à teoria de seu mestre, Aristóteles acabou
desenvolvendo, como comenta Deleuze em Diferença e repetição, uma “lógica da
representação”, elevando os princípios platônicos da representação. Destarte, Aristóteles se
coloca como um novo filósofo do platonismo, subordinando novamente a diferença à
identidade ou, ainda, teorizando melhor esta subordinação, já que foi com ele que a própria
identidade e oposição foram acrescentadas, segundo nosso filósofo, como raízes da
representação.
Assim expõe Deleuze em Diferença e repetição:
50
DR, p. 97.
46
O que há de insubstituível no platonismo foi bem visto por Aristóteles, embora ele
faça precisamente disso uma crítica contra Platão: a dialética da diferença tem um
método que lhe é próprio – a divisão –, mas esta opera sem mediação, sem meio-
termo ou razão, age no imediato e se reclama das inspirações da Idéia mais que das
exigências de um conceito em geral
51
.
Segundo Deleuze, Aristóteles abandona Platão porque a sua dialética, o seu
método de divisão, não agia por mediação, e porque não havia uma identidade conceitual que
lhe conferisse rigor em sua seleção. O estagirita, deste modo, propõe uma reformulação, um
meio-termo que pudesse unir duas proposições, que pudesse conferir ao silogismo uma forma
correta, um conceito que pudesse servir de ponto comum ao gênero e à espécie que se quer
determinar. Por exemplo: poder-se-ia dizer que toda a arte de aquisição possui a característica
de adquirir algo; a pesca com linha adquire algo, o peixe; logo, a pesca com linha pertence ao
gênero da arte de aquisição. Talvez esta fosse a fórmula utilizada por Aristóteles para inserir o
seu conceito mediador e acrescentar o que Platão, segundo ele, havia esquecido ou não havia
pensado. Como vimos anteriormente, Platão não pretendia, porém, uma especificação, e sim
uma seleção de imagens que possuíssem a intenção de copiar um modelo; ou seja, uma
seleção das cópias e um descarte dos simulacros por não possuírem esta intenção, mas que
apenas se preocupavam com o espetáculo, com o teatro. Já com Aristóteles, vemos que a
mediação, enquanto meio-termo, tira do método de divisão (da dialética platônica) o seu
caráter de seleção e implanta uma nova forma de divisão, a especificação. Neste sentido,
Aristóteles inscreve a diferença na identidade de um conceito determinado; isto é, subordina a
diferença à identidade do conceito
52
. Como se dá esta especificação e esta subordinação?
Segundo Deleuze, Aristóteles, inicialmente, distingue a diferença da
diversidade e da alteridade e procura encontrar a maior das diferenças: “Qual é, nestas
condições, a maior diferença? A maior diferença é sempre a oposição”
53
. Postulada a maior
das diferenças como a oposição, ele se pergunta pela mais perfeita forma de oposição: “Mas,
de todas as formas de oposição, qual é a mais perfeita, a mais completa, aquela que melhor
‘convém’?”
54
. Assim, Aristóteles distingue quatro tipos de oposição: a relação, a privação, a
contradição e a contrariedade; sendo esta última, portanto, a estabelecida pelo estagirita como
a mais perfeita
55
, já que é ela que “[...] representa a potência que faz que o sujeito, ao receber
51
DR, p. 97-8.
52
DR, p. 60.
53
DR, p. 58.
54
DR, p. 58.
55
Podemos perceber com claridade esta superioridade da contrariedade sobre as outras formas de diferença na
Metafísica: “Como as coisas podem diferir mais ou menos das outras, há também uma diferença extrema, à
qual chamo contrariedade. Que a contrariedade é a maior das diferenças, conclui-se por indução. Com efeito,
47
opostos, permaneça substancialmente o mesmo (pela matéria ou pelo gênero)”
56
. Sendo a
contrariedade a mais perfeita forma de oposição, nos termos expostos por Deleuze, já
poderíamos observar a subordinação da diferença à identidade. O discípulo de Platão, no
entanto, ainda nos reserva mais algumas surpresas nos meandros de sua filosofia da diferença.
Vejamos. A contrariedade, por sua vez, também pode ser dividida em duas outras formas, já
que nem toda a contrariedade possui as mesmas características: uma “contrariedade acidental
e material” e outra “contrariedade essencial e formal”. Assim, de um lado temos uma
diferença comum ou própria: uma diferença que diz respeito aos acidentes de um sujeito,
tanto os comuns, como, por exemplo, movimento e repouso, quanto os próprios, como macho
e fêmea; e uma diferença que é essencial a um ser, pois se diz da forma pela qual um difere
intrinsecamente do outro
57
. Parece-nos que chegamos aqui ao método de especificação
aristotélico, contudo Deleuze nos alerta sobre alguns pontos quanto à questão da diferença
específica:
A diferença específica é, portanto, pequena em relação a uma diferença maior
concernente aos próprios gêneros. [...] É que a diferença específica é o máximo e a
perfeição, mas apenas sob a condição da identidade de um conceito indeterminado
(gênero). Ela é pouca coisa, ao contrário, quando comparada à diferença entre os
gêneros tomados como conceitos últimos determináveis (categorias), pois estes já
não estão submetidos à condição de ter, por sua vez, um conceito idêntico ou gênero
comum
58
.
entre as coisas que diferem em gênero não há passagem possível; separa-as uma distância tão grande que não
se pode compará-las. Quanto às que diferem em espécie, os extremos de que procede a geração são os
contrários, e a distância entre os extremos – entre os contrários, portanto – é a maior possível”
[ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969. Livro X, cap. 4. Em diante
(Aristóteles, 1969)].
56
DR, p. 58.
57
“Pode-se perguntar por que a mulher não difere do homem em espécie, já que a diferença entre o masculino e
o feminino é uma contrariedade; e por que a fêmea e o macho de um animal não diferem em espécie, embora
essa diferença resida na sua própria natureza e não seja acidental como a cor branca ou preta: tanto o
masculino como o feminino pertence ao animal enquanto animal. Esta questão é quase idêntica à outra: por
que uma contrariedade torna as coisas diferentes em espécie e outra não, como ‘dotado de pés’ e ‘dotado de
asas’, por um lado, e a cor branca ou preta pelo outro. Talvez por serem as primeiras modificações peculiares
ao gênero, ao passo que as segundas o são menos. E, como um dos elementos é a definição e o outro é a
matéria, as contrariedades que se incluem na definição constituem uma diferença de espécie, mas o mesmo
não se dá com as que se encontram no ser concreto – essência e matéria reunidas. E assim a palidez ou a cor
morena num homem não constitui uma diferença de espécie, nem há tal diferença entre o homem pálido e o
homem moreno, ainda que cada um deles seja designado por uma palavra diferente. Porquanto o homem está
sendo considerado aqui pelo seu lado material, e a matéria não cria uma diferença: ela não faz com que o
indivíduo seja uma espécie de homem, muito embora sejam distintos os ossos e a carne de que são formados
este homem e aquele. O ser concreto é outro, porém, não outro em espécie, por não haver contrariedade na
definição” (Aristóteles, 1969, livro X, cap. 9). Para maiores esclarecimentos acerca destas definições
aristotélicas segundo o pensamento deleuziano, cf. Machado, 1990, p. 39.
58
DR, p. 61.
48
A diferença específica, portanto, ligar-se-á ao conceito, ou à identidade de
um conceito em geral, pois ela só poderá ser considerada “maior” neste sentido, no âmago
desta identidade, já que maior que ela é ainda a diferença genérica. Entretanto, é apenas a
diferença específica que especifica, ou que carrega consigo tanto o “[...] gênero [quanto] todas
as diferenças intermediárias”
59
. Deste modo, a diferença específica não pode ser colocada
como um “conceito universal”, uma Idéia como em Platão, mas também não pode ser tratada
como uma particularidade específica, ela “[...] designa um máximo inteiramente relativo, um
ponto de acomodação para o olho grego [...]”
60
, uma mediação encadeada, uma representação
desenvolvida. A especificação, segundo Deleuze:
[...] encadeia a diferença com a diferença nos níveis sucessivos da divisão, até que
uma última diferença, a species infima, condense na direção escolhida o conjunto da
essência e da sua qualidade continuada, reúna este conjunto num conceito intuitivo e
o funde com o termo a ser definido, ela mesma tornando-se uma coisa única
indivisível
61
.
A diferença genérica, como vimos, de modo algum pode conseguir esta
especificação, que apenas a diferença específica é capaz de carregar, já que ela se coloca entre
os gêneros
62
. O Ser, em Aristóteles, não é um gênero superior, porque não pode ser dito de
algo que reuniria as diferentes coisas existentes; ao contrário, ele seria uma essência que se
diria sempre diferente para cada coisa
63
. Quando Aristóteles nos diz que o Ser se diz de forma
múltipla, ele não parece querer dizer que esta equivocidade esteja colocada unicamente no
âmbito da diferença específica, que modificaria o gênero dentro de si mesmo, mas também, e
59
DR, p. 59-60, grifo nosso.
60
DR, p. 60.
61
DR, p. 60.
62
Aristóteles nos diz que a diferença específica se coloca dentro do próprio gênero, mas que este gênero não
pode ser pensado como o Ser da coisa, como veremos. Sobre a diferença específica e genérica recortamos
aqui um trecho da Metafísica, onde Aristóteles coloca a diferença específica no interior do gênero, e a
diferença genérica como aquilo que modifica o próprio gênero, não podendo estar contido nele, portanto, a
unidade conceitual que definiria uma coisa como sendo ela mesma: “A diferença em espécie é a diferença
entre uma coisa e outra dentro de algo que deve ser comum a ambas; p.ex., se se trata de um animal diferente
em espécie, ambos são animais. Portanto, as coisas diferentes em espécie devem pertencer ao mesmo gênero.
Com efeito, por gênero entendo esse algo idêntico que é predicado de ambos e se diferencia não por simples
acidente, quer o concebamos como matéria, quer de outro modo. Pois não só a natureza comum deve
pertencer às coisas diferentes, isto é, não só devem ser ambos animais, mas é preciso que essa própria
animalidade seja diferente para cada um (p. ex., num caso a natureza eqüina e no outro a humana), de sorte
que essa natureza comum difere especificamente num e noutro. Um deles será, pois, em virtude de sua própria
natureza, uma espécie de animal; e outro outra espécie: um será um cavalo e o outro, um homem. Esta
diferença deve ser, pois, uma variedade do gênero, pois chamo ‘diferença no gênero’ a uma variedade que
modifica o próprio gênero” (Aristóteles, 1969, livro X, cap. 8).
63
Para uma maior exposição acerca deste ponto, indicamos a leitura do texto de Pierre Aubenque: AUBENQUE,
Pierre. El problema del ser en Aristóteles. Trad. Vidal Pena. Madrid: Taurus, 1974. Sobretudo a partir da p.
200.
49
principalmente, no domínio da diferença genérica, visto que o Ser não pode ser dito como um
gênero determinado (como coletivo); restando à diferença específica a tarefa mais particular
de carregar a identidade de um conceito em geral
64
. Deste modo, estando esta equivocidade,
sobretudo na diferença genérica, já que nela se coloca a diversidade dos conceitos mais
gerais, o Ser sempre irá se mostrar como “distributivo e hierárquico”: o “[...] conceito de Ser
não é coletivo, como um gênero em relação a suas espécies, mas somente distributivo e
hierárquico [...]”
65
. O que quer dizer, porém, o filósofo francês quando diz que o Ser
aristotélico é distributivo e hierárquico?
Inicialmente, é na diferença genérica também que aparecem as categorias,
pois elas estão diretamente ligadas, em uma íntima relação, com o próprio Ser. As categorias
são, de modo geral, partes constituintes dele, pois, como dito, o Ser aristotélico deve ser
pensado como equívoco, ou através de uma multiplicidade de sentidos; sendo, portanto, as
categorias estes múltiplos sentidos do Ser. No entanto, o Ser equívoco de Aristóteles é, na
verdade, um equívoco “relativo”, já que os seus diversos sentidos são relativos a um “sentido
comum” inscrito no plano das categorias. Neste “sentido comum”, o Ser se mostra
distributivo, pois se apresenta e permanece presente em cada categoria, entretanto, cada
categoria só se relaciona com ele interiormente, pois a unidade de sentido que se forma entre
elas não é explícita, não é diretamente visível. Poder-se-ia pensar que a relação que as
categorias possuem com o Ser consiste numa analogia, porém Deleuze descarta a
possibilidade de analogia em Aristóteles, dizendo que este conceito é propriamente medieval,
formado pelos escolásticos através de uma leitura interpretativa de Aristóteles
66
. A relação
das categorias com o Ser só é possível através de uma unidade invisível, que esteja por trás da
visibilidade da determinação categorial, que mantenha esta relação; parece haver, portanto,
uma certa unidade distributiva, onde em cada sentido desta unidade se vislumbra o Ser,
64
Cf. Machado, 1990.
65
DR, p. 71.
66
“Sabe-se que Aristóteles não fala de analogia a propósito do ser. Ele determina as categorias como πρòς έν e,
sem dúvida, também como έφεξής (são os dois casos, fora da equivocidade pura, em que há “diferença” sem
gênero comum). – Os πρòς έν se dizem em relação a um termo único. Este é como um sentido comum; mas
este sentido comum não é um gênero, pois ele forma somente uma unidade distributiva (implícita e confusa),
e não, como o gênero, uma unidade coletiva, explícita e distinta.” (DR, p. 63n). Deleuze deixa clara aqui a sua
posição, dizendo que πρòς έν se diz distributivamente e não coletivamente, como é o caso da analogia.
Entretanto, veremos que Deleuze, em um certo sentido, parece concordar com a escolástica quando ela traduz
πρòς έν por “analogia de proporcionalidade”. Esta questão da analogia será melhor explicitada
posteriormente, quando falaremos da interpretação de Tomás de Aquino quanto ao Ser aristotélico.
50
embora cada sentido, em si, não se confunda com os outros, nem mesmo com a unidade que
as mantêm
67
.
Poderíamos dizer que as categorias aristotélicas se apresentam como numa
série, onde se tem: substância, qualidade, quantidade, relação, lugar, tempo, posição, ação,
paixão; mas, apesar de cada termo desta série estar ligado diretamente com o Ser – já que
cada categoria mantém esta relação direta com ele, ao mesmo tempo em que se vislumbra o
Ser em cada uma delas, também podemos separá-las dele –, cada um desses termos mantém
uma relação diferente da que o outro mantém. Assim, o Ser se coloca como um fundamento,
uma essência de uma série que se relaciona com ele por hierarquização. Todas as categorias
são sentidos do Ser, no entanto há ainda esta unidade invisível, enquanto “sentido primeiro”,
que os coloca serialmente: antes de ser dito como qualidade, o Ser é dito como substância, e
assim por diante. Esta unidade que posta as categorias de uma forma serial é a ousia
(substância primeira) que é, antes de uma categoria, o Ser que se coloca e se diz nas próprias
categorias: “[...] todas as categorias se dizem em função do Ser; e a diferença se passa no ser
entre a substância como sentido primeiro e as outras categorias que lhe são relacionadas como
acidentes”
68
. Esta série das categorias poderia, porém, dar margem a outras interpretações,
como foi o caso da escolástica, que nos trouxe uma nova interpretação de Aristóteles e com
isso um novo conceito: a analogia do juízo.
3.2.1.1. Da Analogia
Aqui entramos num novo âmbito da questão do Ser em Aristóteles, qual
seja, a interpretação escolástica da filosofia aristotélica. Sabemos, segundo a interpretação que
aqui analisamos, que Aristóteles parece postular uma distribuição e hierarquização, como já
foi comentado anteriormente, e que são estes dois conceitos que fazem da diferença genérica
esta espécie de “representação finita”. Algo ainda não foi esclarecido, contudo, sobre a
questão da distribuição e da hierarquização. Tanto uma quanto outra só são asseguradas pela
instância do juízo, ou seja, ambas são funções próprias do juízo. “Neste sentido, toda filosofia
67
Encontramos novamente em Roberto Machado uma melhor abordagem do tema: “Para Aristóteles, o sentido
do ser não pode ser separado dos sentidos irredutíveis que as categorias determinam; a unidade do ser
enquanto ser não existe fora das categorias que são os sentidos irredutíveis do ser, os sentidos primitivos dos
quais o ser se diz, e que nem podem ser reduzidos à unidade nem são radicalmente heterogêneos. A relação de
cada categoria com o ser é interior a cada uma delas, isto é, cada uma se define pela interioridade da relação.
Existem, portanto, vários sentidos e, ao mesmo tempo, uma unidade entre eles.” (Machado, 1990, p. 42).
68
LS, p. 7-8.
51
das categorias toma o juízo como modelo [...]”
69
. O juízo é o que serve de parâmetro para as
categorias, é o que serve de fundamento, de “quase-identidade” para o plano das categorias.
Sabendo, assim, que “A analogia é a essência do juízo, mas a analogia do juízo é o análogo da
identidade do conceito”
70
, vemos que a analogia do juízo nos traz certa identidade do
conceito, já que é nela que as categorias receberão o juízo como uma unidade, ou “quase-
identidade”, capaz de percorrer o plano das categorias de um modo geral
71
. Esta questão é
melhor explicada por Deleuze em Diferença e repetição:
As duas [distribuição e hierarquização] constituem a justa medida, a “justiça” como
valor do juízo. Neste sentido, toda filosofia das categorias toma o juízo como
modelo – conforme se vê em Kant e até mesmo em Hegel. Mas com o seu senso
comum e seu sentido primeiro, a analogia do juízo deixa subsistir a identidade de um
conceito, seja sob a forma implícita e confusa, seja sob a forma virtual
72
.
Depois de exposta a questão do Ser como distributivo e hierárquico,
percebemos mais claramente o que Deleuze queria dizer quando afirmou que Aristóteles,
depois de Platão, também subordinou a diferença ao idêntico (ou à unidade e identidade de
um conceito indeterminado) através da “diferença específica”, ou de uma “quase-identidade
dos conceitos determinados”. Apesar de a filosofia da diferença de Aristóteles postular, num
certo sentido, uma multiplicidade de sentidos do Ser, isto é, uma diferença no próprio
conceito de Ser, ainda vinculou esta diferença à identidade do “sentido primeiro” (ousia) no
próprio conceito de Ser.
Deleuze compartilha, assim, com a interpretação contemporânea feita por
alguns filósofos de não determinar especificamente o conceito de analogia à filosofia
aristotélica; segundo ele, trata-se de um conceito escolástico, uma interpretação tomista da
filosofia aristotélica. Deleuze, entretanto, parece concordar, em certos aspectos, com a tese
tomista de traduzir πρòς έν por “analogia de proporcionalidade”, já que ele aceita que, em
Aristóteles, pelo menos no âmbito das categorias, o que se tem é uma “relação interior”. Desta
maneira, segundo Deleuze, Aristóteles não teria, em nenhum momento de sua obra,
especificado um conceito como este, sequer teria falado em analogia, mas em distribuição e
69
DR, p. 63.
70
DR, p. 63.
71
Vemos mais claramente esta interpretação deleuziana da analogia do juízo no texto (tese de doutotamento) de
Eládio Craia, intitulado Gilles Deleuze e a questão da técnica: “A analogia conecta, de uma forma essencial e
não apenas acidental, o juízo à equivocidade, e, deste modo, toda a reflexão sobre o estatuto do ser fica
circunscrita pelo horizonte em que a identidade se manifesta no modelo do juízo” [CRAIA, Eládio C. P.
Gilles Deleuze e a questão da técnica. Campinas: [s.n.], 2003. (Tese de doutorado – Universidade Estadual
de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas), p. 110. Em diante (Craia, 2003)].
72
DR, p. 63, grifo nosso.
52
hierarquia, ambas colocadas na instância do juízo. A escolástica – sobretudo Tomás de
Aquino
73
– sim, teria dito que o que existe entre o Ser e as categorias é uma espécie de
semelhança imperfeita, e por isso esta “relação interior”, onde não se tem nem univocidade e
nem equivocidade, mas relação, analogia
74
. Cada termo da série das categorias teria uma
mesma relação parcial com o Ser, num certo sentido, mas, em outro sentido, uma relação
parcialmente diferente. Cada termo teria uma relação intrínseca com ele, num sentido
essencial, e uma relação de diferença, num sentido acidental.
Deleuze parece procurar não se estender muito nesta questão, deixando
claro que – apesar de a escolástica tomar a filosofia aristotélica como análoga, sendo que o
próprio Aristóteles parece não a ter especificado nestes termos –, de uma maneira ou de outra,
a analogia foi inserida na filosofia, e nesta inserção uma nova “raiz da representação” se fez
presente no platonismo, na filosofia da representação, ou nesta imagem dogmática do
pensamento. E novamente, tanto em Aristóteles como em Santo Tomás, a diferença se oculta
sob as luzes ainda pulsantes da identidade e da unidade:
[...] não podemos esperar que a diferea genérica ou categorial, não mais que a
diferença específica, nos comunique um conceito próprio de diferença. Enquanto a
diferença específica se contenta em inscrever a diferença na identidade do conceito
indeterminado em geral, a diferença genérica (distributiva e hierárquica) se contenta,
por sua vez, em inscrever a diferença na quase-identidade dos conceitos
determináveis mais gerais, isto é, na analogia do próprio juízo
75
.
73
Podemos perceber, em algumas passagens de O ente e a essência, uma das primeiras obras de Santo Tomás,
exemplos desta analogia tomista. No primeiro capítulo, temos: “[...] o nome de essência não deriva de ente,
dito do segundo modo, pois, deste modo, algo, que não tem essência, é dito ente, como é evidente nas
privações; mas, essência deriva de ente dito do primeiro modo. [...] E, visto que, como já se disse, o ente dito
deste modo é dividido por dez gêneros, é preciso que a essência signifique algo comum a todas as naturezas,
pelas quais os diversos entes são colocados em diversos gêneros e espécies, assim como a humanidade é a
essência do homem e igualmente a respeito dos demais” [TOMÁS DE AQUINO. O ente e a essência. Trad.
Carlos Arthur do Nascimento. Petrópolis: Vozes, 2005, cap. 1, § 4. Em diante (Tomás de Aquino, 2005)].
Percebemos, nesta citação, que algo é dito em comum de todas as naturezas dos dez gêneros. Este algo em
comum seria dito de uma unidade invisível por trás das séries das categorias: o Ser análogo. Já no sexto
capítulo, ele nos diz: “E porque os acidentes não são compostos de matéria e forma, assim o gênero não pode
ser neles tomado da matéria, e a diferença da forma, como nas substâncias compostas. Mas é preciso que o
gênero primeiro seja tomado do próprio modo de ser, na medida em que o ente é dito dos dez gêneros dos
predicamentos diversamente de acordo com o anterior e o posterior; assim como a quantidade é denominada
por ser medida da substância, a qualidade na medida em que é disposição da substância e igualmente quanto
aos demais [...]” (Tomás de Aquino, 2005, cap. 6, § 80). Neste trecho, percebemos a postulação de um gênero
primeiro que seria tomado como o Ser, que, por sua vez, colocaria em marcha os outros dez gêneros que a ele
se submetem.
74
A analogia, segundo o filósofo francês, não é um conceito empregado apenas pela escolástica. Ele também foi
amplamente utilizado por diversos outros filósofos. Citamos aqui dois exemplos: Descartes e Leibniz. No
entanto, para vias de exposição, ficaremos unicamente com esta perspectiva, ora apresentada, quanto à
filosofia aristotélica da escolástica.
75
DR, p. 63-4.
53
Sabemos, por conseguinte, que a filosofia da representação (reservada, mais
especificamente, aos filósofos do platonismo) postula esta superioridade da identidade e da
unidade sobre a diferença e a multiplicidade. Compreendemos, assim, por que Deleuze coloca
em Aristóteles a suposta responsabilidade de ter elevado os princípios da representação; já
que foi com ele que as categorias, a identidade do conceito e a oposição dos predicados,
pressupostos básicos de toda a teoria da representação, foram apresentados, deixando
margem, ainda, para que a analogia do juízo fosse melhor representada.
Voltamos agora ao quadro das raízes da representação. Vislumbramos, em
Aristóteles e no tomismo, a segunda (primeira na ordem teórica), a terceira e a quarta raízes
representativas, a “identidade do conceito”, a “oposição dos predicados” e a “analogia do
juízo”. É na identidade que a essência (fundamento) postula sua morada, é na analogia que
esta unidade é distribuída pela série das categorias, e é na oposição que o outro (a diferença) é
colocado (jogado), resguardado como negativo; isto forma, assim, toda uma teorização da
representação como filosofia.
4. Do Simulacro Deleuziano
76
Desde o início nosso intuito aqui foi seguir Deleuze neste caminho tão
conturbado que é o da “reversão do platonismo”, ou inversão da imagem dogmática do
pensamento; passamos, desde então, por alguns pontos principais na história da representação,
mas ainda permanece a dúvida: – Como podemos reverter este idealismo que Platão instituiu
e que Aristóteles supostamente desenvolveu?
Deleuze nos mostra um novo caminho e um novo âmbito desta reversão: a
nova imagem do pensamento, ou o que ele chama, em Diferença e repetição de Empirismo
Transcendental. Em que consistiria tal empirismo? A filosofia deleuziana se resume num
Empirismo Transcendental por não se prender mais às formas eternas, ou num pensamento
que se afaste completamente deste mundo onde vivemos (como o fez a imagem dogmática); a
76
Estamos cientes de que Deleuze, ao final de sua vida, parece deixar de lado a sua conceituação sobre o
Simulacro para abraçar um outro conceito como parte de seu itinerário: o ritornelo. O ritornelo funciona
como uma palavra-valise para expressar a Diferença e a Repetição, assim como para expressar a
desterritorialização e reterritorialização. Não fará parte deste trabalho, todavia, esta construção deleuzo-
guattariana de ritornelo. Ocupar-nos-emos apenas da questão referente ao Simulacro, que se encontra mais
especificamente em Diferença e repetição e Lógica do sentido. O termo ritornelo é trabalhado por Deleuze e
Guattari no quarto volume de Mil platôs: MP, vol. 4, cap. 11 (1837 – Do ritornelo). Para um maior
esclarecimento acerca deste conceito, também indicamos Zourabichvili, 2004, p. 94-7.
54
filosofia deleuziana é um empirismo, e se estabelece como uma nova imagem do pensamento,
porque lida com as coisas que se apresentam a nós, ou que estão postas no mundo, de uma
forma que são elas que nos levam a um plano do conhecimento. Isto é, a imanência não é
deixada de lado em prol de uma transcendência, como o foi em Platão, e como o foi também
no platonismo em geral; ao contrário, Deleuze nos traz a perspectiva do próprio
Transcendental a partir de si mesmo, através dos acontecimentos presentes nesta imanência
77
.
Voltemos aqui ao objeto de pesquisa que nos perseguiu neste primeiro
capítulo deste trabalho, a questão do simulacro. Já vimos, através de uma interpretação
deleuziana, como Platão entende o simulacro e o que o mesmo representa para ele;
precisamos agora nos voltar para aquilo que Deleuze nos afirma sobre o simulacro: – Como o
simulacro pode ser esta expressão da diferença?
O simulacro, para Deleuze, difere do factício (que seria aquilo que
representa uma cópia de cópia, uma imagem indistinta de um modelo), pois seria a expressão
pura de um devir-louco, de um caos criador que não representa nada, justamente por não estar
em vista de um modelo, e que não se assemelha a nada, já que ele, pelo contrário, apenas
difere, apenas se dá a repetir num “Eterno Retorno”. O simulacro nega tanto o modelo quanto
a cópia, tanto aquele que se auto-identifica através da forma do Mesmo, quanto aquele que se
assemelha com este idêntico, através da Semelhança. O Outro, em Platão, como sabemos,
também não passa de uma Forma; deste modo, o Outro também se subordina, de uma maneira
ou de outra, ao Mesmo, isto é, a diferença se subordina à identidade. O simulacro platônico é
a expressão de uma diferença que, no final das contas, se mostra sempre através de uma
identidade primeira. Deleuze, por sua vez, destrói os modelos e as cópias, destruindo com isso
a primeira das duas dualidades platônicas, a “dualidade manifesta” (modelo/imagem);
extinguindo esta dualidade, recupera o mundo das imagens, acabando por aniquilar também a
“dualidade latente” (cópia/simulacro), já que, na falta de um modelo, a cópia também se
desvanece. Assim, tudo o que ainda permanece, o único resquício da “dualidade latente”, é
aquilo que antes foi desprezado por Platão como a imagem que não se assemelha ao modelo, a
expressão do falso, o simulacro. Este simulacro inclui tanto o observador das impressões que
77
A questão do Empirismo Transcendental, enquanto nova imagem do pensamento, nos leva a pensar outras
questões que fogem do objetivo que nos propomos na introdução deste trabalho; por exemplo, ele tenta
postular uma doutrina das faculdades, mas diferente de Kant, para quem as faculdades possuíam uma
harmonia. Deleuze diz que as mesmas não são harmônicas, e sim anárquicas; além disso, haveria várias outras
características a serem levantadas, mas ficaremos aqui unicamente com esta primeira abordagem a que nos
colocamos por objetivo, ou seja, a univocidade do Ser, que, por sua vez, nos demanda a pensar nos conceitos
de: acontecimento, imanência, síntese disjuntiva, diferença e repetição. Tais conceitos serão melhor
trabalhados no terceiro e quarto capítulos desta pesquisa.
55
se postam, como o próprio ponto de vista que se forma, portanto, “[...] há no simulacro um
devir-louco, [...] um devir sempre outro, um devir subversivo das profundidades, hábil a
esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo,
mas nunca igual”
78
. Este é o motivo pelo qual a imagem dogmática do pensamento não
poderia aceitá-lo, não poderia exaltá-lo, já que colocaria a pura diferença como produtora e
não como mero produto. Deleuze, ao destruir as dualidades, acaba destruindo também a
própria fundamentação da representação, pois não haveria mais um modelo que expressaria a
unidade e a identidade. Haveria unicamente aquilo que expressaria a própria diferença nos
entes. A representação, desta maneira, não é totalmente descartada por Deleuze, mas colocada
como outro produto da diferença, e não mais como um dos fatores que causavam a mesma.
E é desta forma que o simulacro deleuziano se remete ao eterno retorno.
Devemos, contudo, esclarecer aqui duas espécies de eterno retorno, o “manifesto”, que se
refere diretamente à imagem dogmática do pensamento, onde a simulação está diretamente
ligada à identidade e à semelhança, isto é, onde “[...] ele representa então a maneira pela qual
o caos é organizado sob a ação do demiurgo e sobre o modelo da Idéia que lhe impõe o
mesmo e o semelhante. O eterno retorno, neste sentido, é o devir-louco controlado,
monocentrado, determinado a copiar o eterno”
79
. E seria neste sentido que a diferença se
subordinaria, pois, nesta imagem do pensamento ainda se pensava o eterno retorno através da
idéia de representação, de uma repetição que copiava, que imitava o eterno, ou de um re-
apresentar do Mesmo através da Semelhança. Foi com Nietzsche, segundo nosso filósofo, que
encontramos a significação “latente” do eterno retorno, e com ele também esta nova imagem
do pensamento. Nesta significação não nos ligamos mais à representação, a esta subordinação
da diferença e do simulacro à identidade e à semelhança; neste ponto a filosofia encontrava
um novo recomeço e passava a pensar o eterno retorno como um retornar do próprio
simulacro, um retornar da própria diferença. Este retornar da diferença é designado por
Deleuze de Repetição.
A repetição deleuziana se caracteriza também como uma “[...] potência de
afirmar o caos”
80
. O caos, ou o “Uno Primordial” de Nietzsche, é aquilo que se repete e se
afirma, sendo ele a própria diferença. O simulacro deleuziano se manifesta, nestes moldes,
como a diferença que se apresenta nas coisas, ou como aquilo que a própria coisa se mostra
em seu retornar; não há uma identidade na coisa que volta, não há nem mesmo um modelo
78
LS, p. 264.
79
LS, p. 269.
80
LS, p. 269.
56
para que esta identidade se efetive, portanto, também não há uma cópia que se assemelhe. O
que há é apenas a coisa que aparece, como aquilo que se manifesta no eterno devir, no eterno
vir-a-ser.
O simulacro é o verdadeiro caráter ou a forma do que é – “o ente” – quando o eterno
retorno é a potência do Ser (o informal). Quando a identidade das coisas é
dissolvida, o ser escapa, atinge a univocidade e se põe a girar em torno do diferente.
O que é ou retorna não tem qualquer identidade prévia e constituída: a coisa é
reduzida à diferença que a esquarteja e a todas as diferenças implicadas nesta e pelas
quais ela passa. É neste sentido que o simulacro é o próprio símbolo, isto é, o signo
na medida em que ele interioriza as condições de sua própria repetição
81
.
Quanto ao eterno retorno, ele seria aquilo que coloca os simulacros em
marcha, aquilo que estabelece a diferença do ente em si mesmo. Se a identidade ou
semelhança surgem desta marcha, não passarão de fenômenos secundários, pois a diferença é
a primeira manifestação da repetição no simulacro. A repetição contém, no entanto, em si
diversos outros aspectos relevantes a serem destacados, mas ficaremos aqui unicamente com a
questão do simulacro deleuziano, sendo este aquilo que desvanece a representação e
estabelece a repetição, o retornar do eterno retorno, entretanto um retornar do diferente e não
mais do idêntico
82
.
Devemos deixar claro que o simulacro deleuziano “[...] é o sistema em que o
diferente se refere ao diferente por meio da própria diferença”
83
, ou seja, é um sistema que se
agrupa em séries, sendo que cada série possui termos; estas séries e termos são, porém,
divergentes, e descentrados, já que não possuem semelhança com nenhum modelo. Havendo
apenas a divergência neste sistema, cada série é diferente uma da outra, contendo em si
termos completamente diversos, uma multiplicidade contida em outra multiplicidade; a
passagem de uma série à outra, através da repetição, se dá pela diferença que posta uma série
após a outra, num retornar eterno. A única convergência nestas séries seria o caos, já que cada
série comporta um elemento que se repete univocamente, o caos, a diferença.
O sistema é aquilo que abrange a divergência dos termos de uma série e a
divergência (diferenças múltiplas entre as séries) e convergência (único termo que se repete
univocamente em cada série, ou seja, o caos) das séries, colocando-os num panorama
anárquico. Assim, a hierarquia da representação é substituída por esta anarquia da repetição,
81
DR, p. 106.
82
A questão da repetição (eterno retorno) como retorno da diferença e sua associação à vontade de poder para a
formação de uma dupla afirmação serão trabalhados no terceiro capítulo desta investigação, onde
abordaremos mais precisamente a interpretação deleuziana de Nietzsche.
83
DR, p. 384.
57
ou da nova significação do eterno retorno. O eterno retorno se mostra aqui como seletivo,
mas, diferente de Platão, não há uma seleção daquilo que se assemelha, daquilo que converge.
Pelo contrário, há uma seleção daquilo que diverge (há uma exclusão daquilo que se coloca
como idêntico e semelhante antes de ser diferente e divergente).
Para finalizar, devemos deixar claro que a diferença, um dos elementos
principais de toda a teoria deleuziana – juntamente com os conceitos e pensamentos acerca do
acontecimento, do virtual, da vida como imanência, das máquinas desejantes ou abstratas, etc.
–, e também de grande parte da filosofia contemporânea, se coloca aqui como um dos pontos
cruciais da glorificação do simulacro e destruição dos modelos e das cópias; isto é, coloca-se
como um dos princípios de toda a rejeição da representação e da imagem dogmática do
pensamento.
CONCLUSÃO
Seguindo Deleuze nesta “campanha” nietzschiana da nova imagem do
pensamento e, portanto, da própria “reversão do platonismo”, encontramos um novo
recomeço na forma de pensar filosoficamente. Claro que, para se chegar à teorização desta
nova imagem do pensamento, teríamos, inicialmente, que compreender as bases deste
platonismo, ou desta imagem dogmática do pensamento, para que então pudéssemos
empreender esta reversão.
Vimos, neste capítulo, que a questão que se abriu, inicialmente com Platão,
era, na verdade, uma questão moral, onde a pretensão platônica seria a de encurralar os falsos
pretendentes, ou o sofista, o orador e o retórico. Segundo Deleuze, tivemos uma instauração
de duas dualidades nesta forma de pensar do platonismo: a primeira, que se caracterizou como
“manifesta”, seria uma divisão entre o modelo/fundamento e a imagem/reflexo, uma distinção
entre o mundo inteligível (mundo das formas eternas, das idéias) e o mundo sensível (mundo
da aparência, das imagens imperfeitas); a segunda, chamada por Deleuze de “dualidade
latente”, seria a distinção entre os dois tipos de imagens, a cópia-ícone e o simulacro-
fantasma. A primeira dualidade estaria, assim, em vista da segunda, já que seria através desta
que Platão teria distinguido (no início moralmente) os verdadeiros pretendentes dos falsos.
Vimos, posteriormente, que o platonismo se caracterizava pela
representação. Deste modo, tanto a teoria das formas quanto a teoria da participação
58
corroboravam a idéia de re-apresentação, ou de representação. Teríamos, portanto, quatro
aspectos da representação em geral, que poderiam também ser colocados nesta representação
platônica: a identidade, a oposição, a analogia e a semelhança. Sabemos que a identidade se
mostrou, nesta imagem do pensamento, sob o âmago do modelo (Mesmo), que se identificaria
a si mesmo numa unidade; já a oposição se daria no Outro (diferença) enquanto um não-Ser
completo entre duas Formas. A analogia se colocaria numa relação entre as Formas, ou
enquanto uma Forma que participaria de outra, mas, onde cada uma possuiria a sua própria
unidade e identidade; já a semelhança se mostraria como aquilo que faria com que as Formas
participassem uma da outra: seria por semelhança que os pretendentes participariam do
modelo, e seria igualmente por semelhança que as Formas participariam uma da outra.
Não dissemos, porém, que a nossa tarefa era a “reversão do platonismo” e
da imagem dogmática do pensamento através deste agenciamento deleuziano? Sim, em até
certo ponto investigamos, neste trabalho, as razões para tal campanha e chegamos ao
platonismo pós-Platão, isto é, à tradição que se seguiu depois de Platão. Desta maneira, vimos
em Aristóteles a questão da identidade do conceito e da oposição dos predicados como sendo
dois dos quatro pontos (raízes) da representação, onde se colocaria uma mediação, através do
termo médio, perante a seleção platônica. Vimos também a analogia do juízo na escolástica,
que nos trouxe à tona uma interpretação aristotélica do Ser que culminou numa
fundamentação do conceito de analogia
84
.
Depois, tentamos expor, brevemente, a concepção deleuziana de inversão da
imagem dogmática do pensamento deixando de lado, por exemplo, o conceito de
representação para abraçar a repetição do eterno retorno – um eterno retorno não mais
platônico, e sim nietzschiano, onde não seria em vista do idêntico, do Uno e do Mesmo que a
repetição do eterno se daria; mas em vista do diferente, do divergente e do múltiplo.
Máscaras, talvez este seja o segredo do simulacro deleuziano, tudo o que se mostra são
máscaras e quanto mais tentamos arrancá-las, mais nos perdemos em novas máscaras. Isto só
pode ser concebido se não pensarmos mais num fundamento que funda a superfície, mas num
84
A tese que se mostra é a questão que Nietzsche, e posteriormente Châtelet, se colocaram: a tradição é platônica
porque ainda estaria presa a uma certa “vontade de verdade”, ou esta suposta “Verdade Eterna” que moveu,
até Hegel, toda a história da filosofia; ou então como poderíamos entender esta tentativa frustrada de
“reversão do platonismo” empregada desde Aristóteles (segundo Deleuze, desde o próprio Platão), se não
fosse uma “reversão” fingida? Como diria Deleuze se referindo a Hegel: “Sua embriagues é fingida.” (LS, p.
265). Segundo Châtelet, toda a crítica da tradição contra a teoria de Platão ainda estava baseada em elementos
da própria ontologia que Platão criara, ou ainda estava baseada na própria racionalidade platônica. Para uma
verdadeira “reversão do platonismo” seria necessário, de certa forma, elevar a instintividade e a sensualidade
acima da própria razão.
59
fundamento que se dá através da própria superfície. Seria na imanência que o próprio
fundamento se colocaria, seria nas coisas e no estado de coisas que o campo transcendental se
abriria. Destarte, a perspectiva que se colocou foi a da reversão da representação, ou melhor, a
substituição da representação pela repetição.
Logo, o que se coloca como tarefa agora é uma análise de um novo
problema que surge perante esta imagem dogmática do pensamento, a questão da diferença
como repetição. Devemos, entretanto, ter cuidado em colocar a diferença no âmago da
repetição e mesmo da representação, já que esta diferença pode ser vista como algo negativo,
como um não-Ser, não mais pensando o “não” do não-Ser como Platão tentou pensá-lo em
sua dialética, como problema, como questão, mas, como nada, ou contradição pura. O que
segue, deste modo, é uma tentativa de compreensão e esclarecimento quanto ao postular da
diferença na questão da filosofia. Escolhemos, para uma melhor caracterização do problema,
apenas dois filósofos, entre muitos que pensam, segundo Deleuze, a diferença como pura
negação: Hegel e Heidegger. Parece ser com Hegel que encontramos, na radicalização da
oposição aristotélica, uma maior expressão da diferença como negação na contradição, ou da
diferença como negativo. Em Heidegger, vemos igualmente uma perspectiva desta diferença
como negação de Ser, embora ele mesmo tenha nos alertado acerca deste perigo e afirmado
que a sua intenção era contrária a esta interpretação.
CAPÍTULO II
DELEUZE E A “ILUSÃO DO NEGATIVO”
61
INTRODUÇÃO
Vimos, no capítulo anterior, como Deleuze postula uma “reversão do
platonismo”, uma inversão do pensamento dogmático ou da imagem dogmática do
pensamento. O autor francês não considera o Mesmo, o Semelhante, o Oposto e o Análogo
como pontos a serem totalmente desconstruidos, totalmente abandonados pelo novo
pensamento que se forma a partir de Nietzsche; considera-os, sim, como conceitos
subordinados à diferença originária. A diferença é o principal sustentáculo da nova imagem
do pensamento e, juntamente com o Acontecimento, a Virtualidade, o Empirismo
Transcendental, etc., formam o centro de todo o pensamento deleuziano. Entretanto, como
vínhamos dizendo, nosso intuito neste trabalho não é nos aprofundarmos em todos os aspectos
desta nova imagem do pensamento, mas apenas no ponto em que Deleuze estabelece o Ser
como unívoco.
Antes de prosseguirmos na discussão acerca do Ser unívoco, devemos nos
deter na questão que vínhamos pesquisando deste o capítulo anterior e que aqui ainda
permanece sob a perspectiva da diferença, qual seja: – Se nada é igual, nada é idêntico, não
voltaríamos a Aristóteles, ou a uma equivocidade do Ser, isto que, num plano ontológico,
Deleuze também combate? Na filosofia deleuziana, como sabemos, não há equivocidade; ao
contrário, o Ser só pode ser pensado como puramente unívoco, pois ele só pode possuir um
único sentido, uma única voz, a pura diferença, e é enquanto diferença que ele é unívoco, o
Ser é a pura diferença. Ela é, assim, o princípio unívoco de todo o existente, é a única a se
repetir no retorno eterno, e esta repetição envolve as noções tanto de sujeito, quanto de mundo
e até mesmo de Deus; afinal, tudo retorna na diferença, tudo retorna neste único sentido, pois
é este sentido do Ser que garante a volta de todas as coisas como diferentes. O pensamento de
Deleuze (como já observamos no capítulo anterior) se volta para uma luta contra o
platonismo, a representação e o pensamento dogmático, pois é na reversão destas formas de
pensar que esta nova imagem do pensamento (pensamento sem imagem) pode ser evocada.
Segundo o nosso autor, não é mais o idêntico que prevalece sobre a diferença, mas o
contrário; portanto, é a diferença que envolve e que se coloca no devir, produzindo tanto a
forma de uma identidade quanto a aparência de uma semelhança.
Quando nos debruçamos sobre a questão da diferença em toda a história da
representação e do pensamento dogmático, descobrimos, contudo, que a grande maioria
destes filósofos, de uma forma ou de outra, se ocupou em teorizar com maior profundidade
62
esta diferença; apesar disso, ela quase sempre se mostrou como um produto, como algo que
ainda se subordinava ao Mesmo ou ao idêntico. A diferença tornou-se, deste modo, o Outro, o
“gênio maligno” que trazia a mudança e embalava o devir, fazendo com que o idêntico, ou o
Ser (o Uno, o Imóvel, o Eterno) se ocultasse nas profundezas do ente. Ele só poderia ser
encontrado num aprofundamento, numa busca ao centro oculto, num salto ao abismo
profundo.
Se a diferença foi o invólucro do Ser, já que era ela que o orientava no devir,
no movimento eterno, será que podemos, então, pensar que seja ela que nos traz a perspectiva
do próprio não-Ser, daquilo que não é, da negação de Ser? A diferença poderia ser pensada
como o não-Ser, a negação, o negativo?
Para muitos filósofos da imagem dogmática do pensamento, ou do
platonismo em geral, ela representou esta privação ou negação, já que eles ainda postulavam o
Ser como algo que se encontra fora do devir. Expressões deste modo de pensar são, entre
outras, a divisão entre o céu e a terra, entre os planos supralunares e sublunares, entre o eterno
e o mortal, entre o infinito e o finito; enfim, uma divisão que embala o pensamento e nos faz
concebermos uma espécie de transcendência. É esta transcendência que ainda nos leva ao
idêntico, fazendo com que a própria imanência seja submetida a ela. Depois de Nietzsche
encontramos, contudo, uma nova perspectiva para se pensar a diferença, e nos vimos não mais
apenas como sombras, ou através delas, já que passamos a pensar não apenas num mundo
outro que guardava o Ser (o eterno e o idêntico), mundo este que guardava a Verdade e a
verdadeira sabedoria, mas numa imanência de mundo. Com Nietzsche encontramos uma nova
forma de pensar, uma nova imagem do pensamento, que nos levou a um recomeço em
filosofia, mesmo que o antigo pensamento (imagem dogmática) ainda possa ser sustentado
por muitos nesses novos tempos. Foi com Nietzsche que o Ser foi vislumbrado novamente na
imanência, foi com ele que tiramos das profundezas ou das alturas este “sentido de mundo”;
ficando o “sentido” impregnado nas coisas que se encontram ao nosso alcance, neste campo
próprio da imanência. Com Nietzsche aprendemos a pensar a diferença como “motor”, como
princípio e não mais como produto, nem como negação de Ser, pois, não havendo mais
transcendência, não haveria mais mundo que conservasse o mesmo como Mesmo, ou o
idêntico como Idêntico. O que haveria seria apenas o movimento puro, a diferença pura, já
que a imanência é movimento, é devir, é diferença, é tempo. Parece que depois da filosofia
nietzschiana, com esta imagem do pensamento que se forma (nova imagem do pensamento),
as questões filosóficas girariam em torno desta diferença enquanto tal, como problema da
63
questão do Ser; e mais, que estas questões se propusessem a pensá-la como puramente
positiva nesta problemática do Ser e não mais como algo que ainda renderia tributo ao
negativo.
Neste novo recorte filosófico que se forma, o negativo, todavia, ainda parece
ter persistido, a negatividade ainda parece ser reivindicada em algumas interpretações da
diferença enquanto tal; e, de algum modo, a transcendência ainda pode ser igualmente
interpretada nesta nova imagem do pensamento
1
.
Como mencionado no capítulo anterior, não é nosso intuito aqui resgatar
toda esta história da filosofia, ou mesmo de uma filosofia da diferença, mas apenas apontar
alguns, dos vários filósofos agenciados por Deleuze, que contribuíram para a questão
presentemente colocada. O que faremos agora será um recorte nestas duas imagens do
pensamento, resgatando o pensamento de dois principais expoentes do negativo, de dois
principais filósofos que, segundo a acusação deleuziana, pensaram o Ser como negativo. O
primeiro deles, veremos que ainda estava ligado, de algum modo, à imagem dogmática do
pensamento, enquanto que o segundo, à imagem do pensamento fundada por Nietzsche.
Resgatamos aqui, portanto, a filosofia do negativo de Hegel e de Heidegger,
respectivamente
2
.
Escolhemos Hegel por resgatar a “oposição” aristotélica e elevá-la à
contradição, fazendo com que a diferença, colocada na antítese, fosse expressa como
contrária, ou como negação de Ser, subordinando-se ao Mesmo, colocado na tese; e
escolhemos Heidegger por ainda se prender, de certo modo, ao negativo, ou por não ter
deixado clara a problemática do Ser na diferença, mesmo depois de Nietzsche nos ter levado
ao caminho da imanência e da diferença como positiva. Claro que foi com Heidegger que,
mais propriamente, conhecemos a diferença entre Ser e ente, entre aquilo que é (ente) e entre
1
O que se afigura aqui é a questão da imagem dogmática do pensamento. Embora tenhamos encontrado em
Nietzsche uma nova maneira, uma nova forma de pensar a diferença, a antiga forma ainda persiste em algumas
filosofias; o “dogmático” não foi totalmente derrubado, entretanto, a “reversão do platonismo” foi empreendida
(desde Nietzsche) e com ela um recomeço no pensamento. Nietzsche aparece, neste recorte, como um “divisor
de águas”, já que foi através de suas marteladas que foi possível vislumbrar esta “reversão”, mas devemos
deixar claro que este “platonismo” ainda vigora em nossos tempos. As duas imagens do pensamento se
mostram, portanto, presentes na filosofia contemporânea.
2
Poderíamos escolher vários outros, pois foram muitos os que pensaram a diferença como negativo ou que
poderia nos levar a interpretar desta maneira; na verdade, poderíamos resgatar esta questão, se fosse nosso
intuito fazer uma história da filosofia da diferença, desde os primórdios da filosofia, com Platão e Aristóteles,
até Heidegger e Sartre, passando por Hegel, Leibniz, etc., mas ficaremos aqui com este recorte, exposto acima.
Tais filósofos parecem nos expressar com maior vigor esta questão: o primeiro, como dito, por ainda estar
preso à filosofia da representação; e o segundo, por representar um momento onde prevalecia uma filosofia da
diferença como afirmação, como problema, mas que, mesmo assim, nos deixou margens à interpretação dela
como negativa.
64
aquilo que (não)-é, mas que faz com que as coisas sejam (Ser), a chamada “diferença
ontológica”; mas esta diferença, mesmo sendo tratada como puro problema, ainda nos deixa
margens a interpretações dela como o negativo do Ser, ou mesmo do Ser como negativo.
DO NEGATIVO - O Cuidado sobre a Interpretação da Diferença
Apresentação
Como vimos, com Deleuze encontramos um meio, ou um novo meio, para
pensar a diferença e, conseqüentemente, o próprio Ser como positividade expressa; porém
devemos ainda nos remeter à crítica deleuziana (enquanto agenciamento), mas agora à crítica
que se direciona ao negativo, ou à crítica que Deleuze dirige à maneira como alguns filósofos
postularam a questão do Ser, o que, muitas vezes, nos faz conceber a diferença e mesmo o Ser
de um modo negativo. Tal censura se dirige aos “filósofos do negativo” (se é que assim
podemos nomeá-los) que, por um lado, postulam, como em Hegel, a diferença como não-Ser,
subordinando o Ser ao não-Ser ou o não-Ser ao Ser; ou, por outro, postulam, como Heidegger,
a diferença como não-Ser, não deixando claro que este “não” do não-Ser não se trata
especificamente de uma negação de Ser, e sim como a interrogação, o problemático que se
encontra na própria questão do Ser:
Há como que uma “abertura”, uma “fenda”, uma “dobra” ontológica que remete o
ser e a questão um ao outro. Nesta relação, o ser é a própria Diferença. O ser é
também não-ser, mas o não-ser não é o ser do negativo, é o ser do problemático, o
ser do problema e da questão. A diferença não é o negativo; ao contrário, o não-ser é
que é a Diferença: έτερον, não έναντίον. Eis por que o não-ser deveria antes ser
escrito (não)-ser, ou, melhor ainda, ?-ser. Acontece, neste sentido, que o infinitivo, o
esse, designa menos uma proposição que a interrogação que se supõe esteja sendo
respondida pela proposição. Este (não)-ser é o Elemento diferencial em que a
afirmação, como afirmação múltipla, encontra o princípio de sua gênese. Quanto à
negação, ela é apenas a sombra deste mais elevado princípio, a sombra da diferença
ao lado da afirmação produzida. Quando confundimos o (não)-ser com o negativo, é
inevitável que a contradição seja levada ao ser; mas a contradição é ainda a
aparência ou epifenômeno, a ilusão projetada pelo problema, a sombra de uma
questão que permanece aberta e do ser que, como tal, corresponde a esta questão
(antes de lhe dar uma resposta)
3
.
3
DR, p. 103-4.
65
A questão do Ser, colocada aqui como problemática, não pode, segundo
Deleuze, ser confundida com a negação de Ser, ou o Ser do negativo (como o não-Ser
propriamente), e sim como a pura interrogação do Ser. Devemos, portanto, ter cuidado ao
pensar ou interpretar o Ser/diferença como não-Ser, ou como negação, como contradição;
devemos, antes de tudo, pensá-lo como um “complexo questão-problema”, como um “virtual-
real” que abarca tanto a questão, como acaso afirmado, quanto os problemas, como
singularidades expressas. Para que possamos compreender esta interrogação que Deleuze
coloca no âmbito do não-Ser – ou para que possamos compreender esta problemática que ele
aponta na questão própria de sua filosofia da diferença – é necessário, como já dito
anteriormente, que antes analisemos como a diferença, ou como o próprio Ser, foi interpretada
ou levada a ser interpretada como negativo, como contradição
4
.
A problemática que se abre nos remete a uma certa “doutrina” interpretativa
do outro e da diferença que, como dito, se encontra tanto neste pensamento dogmático, quanto
numa filosofia que tenta pensar sem pressupostos. Esta suposta “doutrina” abrange desde os
filósofos da representação e da transcendência até os filósofos contemporâneos (pós-
nietzschianos), que, na sua grande maioria, tentam pensar a diferença enquanto tal – tentam
pensar este devir em meio ao próprio Ser.
1. Da Oposição Hegeliana e do Não-Ser como Negativo
No primeiro capítulo procuramos encurralar, assim como o fez Platão com o
sofista, a representação; para tanto, investimos numa análise deleuziana acerca de Platão e de
Aristóteles. Na história da filosofia encontramos, contudo, muitos outros filósofos que,
mesmo criticando o platonismo, ampliaram e produziram estes e outros conceitos, de forma
que a imagem dogmática do pensamento (platonismo representativo) se desenvolveu e se
4
Devemos deixar claro que Deleuze, em Diferença e repetição, faz uma distinção entre “questão” e “problema”,
e que – embora tenhamos utilizado aqui, muitas vezes, os dois conceitos como sinônimos – não podemos
deixar de considerar esta importante distinção. Para Deleuze, a “questão” parece se colocar como o “lançar
único dos dados”, como o acaso que se afirma a cada instante, enquanto que o “problema” se manifesta como
aquilo que se revela num campo próprio de imanência, como singularidade expressa na imanência deste
mundo. Esta distinção parece nos remeter, de alguma forma, à própria distinção deleuziana entre
Acontecimento, o campo transcendental que abre a perspectiva de mundo (Sentido, recorte do caos), e
acontecimentos, as singularidades (campo de individuação) que se formam desta abertura, deste recorte do
caos. Para uma maior clareza desta distinção entre questão” e “problema”, cf. DR, 276 a 285. Devemos
ressaltar que o tema do acontecimento, enquanto sentido, será aprofundado no quarto capítulo, onde
abordaremos também a diferença como voz unívoca do Ser.
66
elevou a patamares antes nem ao menos imaginados. Poderíamos, no recorte que fizemos,
portanto, ter nos referido à analogia cartesiana e à oposição hegeliana, no entanto
permanecemos apenas numa visão mais grega das quatro raízes da representação por três
motivos: primeiro, porque este caminho foi alvo da grande maioria das críticas da filosofia
moderna que, lembremos, ainda se prendia, em sua maioria, a esta imagem do pensamento
dogmático; segundo, porque Deleuze parece traçar este mapa para o seu agenciamento;
terceiro, este caminho talvez expresse, com maior vigor, a tentativa de se fugir da diferença
como princípio, de se fugir da diferença como forma de expressão primeira ou, ainda, a
tentativa de expulsão do devir do próprio âmago do Ser
5
. Não podemos negar que haveria
muitos filósofos, como já explicamos, que se encaixariam nesta forma de pensar a diferença.
Apesar disso, nosso recorte recaiu aqui a Hegel e a Heidegger. O primeiro foi escolhido por
ainda estar preso à filosofia da representação (ao próprio platonismo), e o segundo, por
representar a contemporaneidade, ou seja, uma filosofia que tenta pensar a pura diferença.
Iniciando este recorte nos remetemos a Hegel. Para que possamos
compreender melhor a sua “lógica-ontológica” devemos, porém, primeiramente, compreender
o que faz de Hegel também um representante das raízes da representação, principalmente pela
noção de oposição
6
. Será justamente o conceito de oposição que nos levará, assim, à
identificação de sua filosofia da diferença como negativa, como expressão da própria
negação.
1.1. Da Oposição Hegeliana
A filosofia hegeliana, assim como a aristotélica, se propõe a uma tentativa
de reversão do platonismo; isto se vê mais propriamente em Hegel, já que esta reversão tentou
se colocar também como uma reversão do próprio conceito de representação. Esta empreitada
hegeliana se deu como uma tentativa de derrubada da dualidade, apontada por Deleuze, entre
modelo e imagem (“dualidade manifesta”), desta dualidade entre fundamento e fundado.
5
Claro que não podemos negar as várias fendas que se mostraram na história desta filosofia, na história desta
imagem do pensamento; fendas estas que, de uma maneira ou de outra, tentaram encontrar um novo
pensamento da diferença como parte do próprio ser enquanto problemático.
6
Com Pardo encontramos uma certa exemplificação desta questão – das quatro raízes da representação
(identidade, semelhança, analogia e oposição) –, onde o mesmo caracteriza e organiza, em uma tabela, os
principais conceitos que se identificam com estas quatro formas da representação, conceitos estes idealizados e
produzidos pelos principais expoentes filosóficos da imagem dogmática do pensamento: Platão, Aristóteles,
Descartes, Leibniz, Kant e Hegel. Cf. Pardo, 1992, p. 89.
67
Segundo Deleuze, Hegel parece, porém, não ter conseguido derrubar completamente tal
dualidade, já que acabou postulando mais especificamente a cópia, esta imagem de
semelhança da “dualidade latente”, como fundamento. Poderíamos nos perguntar: – E não é
isso que o sofista faz, e que o próprio Deleuze, em certa medida, também faz? Sem dúvida,
podemos afirmar que não é isso que ocorre. Platão considerava, sim, que o sofista agisse desta
maneira, no entanto nem o sofista e nem Deleuze elevam a cópia aos patamares de
fundamento, ou de modelo; ao contrário, eles acabam com a própria idéia de modelo, já que,
como exposto no capítulo precedente, a distinção entre cópia e modelo só é possível porque
haveria uma distinção entre modelo e imagem. Se acabássemos verdadeiramente com a idéia
de modelo, tudo o que restaria seria a imagem e não haveria, então, distinção entre uma e
outra; esta distinção só se apresenta porque a cópia tem a intenção de copiar o modelo,
enquanto que o simulacro não teria esta pretensão. Sem modelo não haveria, portanto,
pretensão e também não haveria cópia. Haveria apenas o simulacro, pois toda a cópia também
ficaria livre da pretensão. Assim, se em Hegel esta distinção entre cópia e modelo, de algum
modo, ainda persiste, é porque ainda se postula uma certa identidade. Veremos com maior
clareza estas questões no decorrer desta exposição.
1.1.1. A Volta à Terceira Raiz da Representação
A filosofia hegeliana constitui várias grandes questões. Nossa seleção,
contudo, recai naquela que o levou a tentar esta inversão da representação através da queda da
“dualidade manifesta”, qual seja: a dialética, ou, mais propriamente, a postulação de um
método dialético. Devemos, neste sentido, compreender como se caracteriza este método para
Hegel, segundo esta intervenção deleuziana.
Diferente de Platão, que pensou a dialética como um método de seleção
entre imagens (entre linhagens: boas e más linhagens), Hegel parece postular o seu método
dialético como uma oposição entre identidade e diferença, uma oposição entre tese e antítese
ou, ainda, entre Ser e não-Ser. Segundo Deleuze, antes de Hegel pensar este “não” do não-Ser
como a expressão de uma problemática do próprio Ser, ou como a questão que se coloca
diante do Ser, Hegel considera, porém, este “não” como a pura contradição, ou como a
própria negação de Ser, entendido enquanto tese, ou identidade.
68
Assim, Hegel parece ir, de certa forma, na contramão de Aristóteles, pois,
como vimos no capítulo anterior, o estagirita, ao postular a oposição como a maior das
diferenças, postulou a contrariedade como a mais perfeita forma de oposição; Hegel, por sua
vez, abandona a noção de contrariedade, formulada por Aristóteles, e concebe a contradição
como a mais perfeita forma de oposição, pois, segundo ele, é ela que vai até o infinito.
Segundo Hegel, parece que a “contradição” suscita muito pouco problema. Ela tem
uma função totalmente distinta: a contradição se resolve e, resolvendo-se, resolve a
diferença, ao remetê-la a um fundamento. O único problema é a diferença. O que
Hegel critica em seus predecessores é o terem permanecido num máximo totalmente
relativo, sem atingir o máximo absoluto da diferença, isto é, a contradição, o infinito
(como infinitamente grande) da contradição
7
.
Deleuze ainda adverte: “[...] a introdução do infinito acarreta, neste caso, a
identidade dos contrários ou faz do contrário do Outro um contrário em Si”
8
. Hegel, ao
efetivar a contradição, acaba postulando uma resolução dos problemas, no caso uma síntese.
E, efetivando a resolução dos problemas na síntese, ele acaba abandonando a potência mais
própria da dialética, o questionamento. Deixemos, porém, em suspenso, por ora, a questão da
problemática que suscita a resolução dialética de Hegel e foquemos a nossa análise mais
propriamente na oposição enquanto contradição.
Segundo Deleuze, a única forma que Hegel encontrou para levar às últimas
conseqüências a questão da diferença foi colocá-la como pura contradição. A noção de
contradição não derruba, contudo, definitivamente a representação, pois não postula uma
repetição como permanência do diferente, mas coordena uma nova forma de re-apresentar a
identidade
9
. O representar (re-apresentar) da identidade, na questão da contradição, se diz
através de uma “representação infinita”, ou seja, de uma tomada da identidade como
“princípio puro infinito”, de uma forma da identidade como negação do positivo, ou como
puramente negativo. A representação infinita se distingue da “representação finita (orgânica)”
(mais circunscrita ao âmbito aristotélico) justamente porque a primeira postula o “infinito
como elemento”, o infinito como um elemento diferenciador, ou um meio de diferenciação. A
representação infinita, no entanto, ainda nos traz a perspectiva do idêntico, da identidade, já
que “[...] a representação infinita não se desprende do princípio de identidade como
7
DR, p. 78.
8
DR, p. 78.
9
“[...] superar a representação clássica no mesmo terreno em que parecia haver alcançado seu grau máximo (a
concepção da diferença) e remover o velho obstáculo aristotélico representado pelo princípio de não-
contradição. Os dois objetivos são um só, empurrar a diferença até a sua mais alta potência significa, para
Hegel, elevá-la à classe de contradição […]” (Pardo, 1992, p. 83, tradução nossa).
69
pressuposto da representação. [...] A representação infinita invoca um fundamento”
10
. Sendo
assim, a negação, apesar de se colocar como elemento infinito, como pura diferença, acaba se
voltando, neste eterno círculo hegeliano, como uma identidade circulante, como uma “[...]
circulação infinita do idêntico por meio da negatividade”
11
. Hegel, deste modo, coloca o
“fundamento como um princípio primeiro”, pois ainda parece se subordinar à representação,
mesmo sendo ela uma representação infinita ou, como chamou Deleuze, “representação
orgíaca”
12
. Deleuze estabelece, assim, as principais diferenças nestas duas formas de
representação:
Se os marcos da representação finita são tratados como duas determinações
matemáticas abstratas, que seriam as do Pequeno e do Grande, observa-se ainda ser
totalmente indiferente a Leibniz (como a Hegel) saber se o determinado é pequeno
ou grande, o maior ou o menor; a consideração do infinito torna o determinado
independente desta questão, submetendo-o a um elemento arquitetônico que
descobre em todos os casos o mais perfeito ou o melhor fundamento. É neste sentido
que se deve dizer que a representação orgíaca estabelece a diferença, pois ela a
seleciona ao introduzir este infinito que a remete ao fundamento (seja um
fundamento pelo Bem, que age como princípio de escolha e de jogo, seja um
fundamento pela negatividade, que age como dor e trabalho). E se os marcos da
representação finita, isto é, o Pequeno e o Grande, são tratados como base no caráter
ou no conteúdo concretos que lhes dão os gêneros e as espécies, ainda aí a
introdução do infinito na representação torna o determinado independente do gênero
como determinável e da espécie como determinação, retendo num meio-termo tanto
a universalidade verdadeira, que escapa ao gênero, quanto a singularidade autêntica,
que escapa à espécie. Em suma, a representação orgíaca tem o fundamento como
princípio e o infinito como elemento – contrariamente à representação orgânica, que
guardava a forma como princípio e o finito como elemento. É o infinito que torna a
determinação pensável e selecionável: a diferença aparece, pois, como a
representação orgíaca da determinação e não mais como a sua representação
orgânica
13
.
Assim, tendo a representação finita, ou orgânica, dois pólos matemáticos,
como diria Deleuze, ou dois extremos, o “Pequeno” e o “Grande”, ela ainda não consegue
“observar com bons olhos” a diferença. Ela ainda não consegue pensar a diferença
plenamente em seus termos. Claro que, como visto na citação, a representação infinita
também pode ser vislumbrada através do grande e do pequeno, contudo estes dois pólos não
10
DR, p. 84.
11
DR, p. 85.
12
Na filosofia da representação finita – que se define, segundo Deleuze, como orgânica justamente pelo seu
estado aparente de organização, ou pelo limite que se posta na sua forma de conceber o conceito (mínimo e
máximo relativos) – tanto o grande quanto o pequeno não conseguem se reportar à diferença, pois se postam
como extremos relativos e não absolutos. Já na filosofia da representação infinita – vista em Deleuze como
orgíaca porque se reporta ao conceito como “Todo”, ou o conceito se reporta agora ao seu estado absoluto e
infinito (infinitamente pequeno e infinitamente grande) – o mínimo e o máximo expressam a diferença,
entretanto, esta diferença é sempre reportada a um fundamento, que se desdobra em uma diferença que
explicitamente o nega.
13
DR, p. 76-7.
70
se colocam mais como simplesmente relativos, e sim como absolutos; ou seja, na filosofia da
representação orgíaca, o que se mostra é o infinitamente pequeno e o infinitamente grande
14
.
Com a representação infinita (orgíaca), a diferença é mostrada como uma das questões
fundamentais da filosofia hegeliana, porém mesmo esta diferença permanece subordinada a
um fundamento, a uma identidade primeira. A diferença, nesta representação orgíaca, se
mediatiza, pois tem o fundamento como princípio. A dialética hegeliana opera, portanto, com
uma diferença ainda subordinada à identidade, com uma multiplicidade ainda subordinada à
unidade, com uma antítese sempre subordinada à tese, já que ela (diferença) nunca se mostra
em si mesma. Ela só pode ser pensada como negação (oposição) do fundamento, do princípio,
pois é somente nesta negação do fundamento que a síntese, enquanto unidade mediatizada, se
manifesta como o movimento último da tese, como o movimento último do fundamento
15
.
14
Esta diferença entre os dois pólos do infinito, entre o pequeno e o grande, na filosofia da representação orgíaca
também corresponde a dois filósofos da imagem dogmática do pensamento. Segundo Deleuze, o
infinitamente pequeno corresponde à Leibniz, e o infinitamente grande à Hegel. Embora esta diferença entre
estes dois filósofos não faça parte deste trabalho, devemos deixar anotada esta caracterização deleuziana e
também a importância de Leibniz na filosofia da representação infinita. Assim, cremos que tal questão é
melhor apresentada na tese de doutoramento, já mencionada em nota no capítulo anterior, de Eládio Craia:
“Na opinião de Deleuze, dois nomes se destacam no pensamento do Infinitamente Grande e do Infinitamente
Pequeno, ao deixarem atrás de si os limites aristotélicos: Leibniz e Hegel. Foi Leibniz quem, ao demonstrar
que uma essência está formada pelo inessencial, conseguiu superar a primeira das dificuldades herdadas do
aristotelismo acima mencionadas. Seria possível dizer -segundo esta interpretação de Leibniz-, que cada
indivíduo é formado por uma série de infinitos acidentes, e que o ‘mundo’ no qual este indivíduo existe é a
continuidade destes acidentes inessenciais (os quais, portanto, in extremis não são tão inessenciais). Mas a
convergência dos acidentes em um ponto metafísico determina, por sua vez, uma Mônada, ou seja, uma
essência. Todos os acidentes, inessenciais, e infinitamente pequenos, na medida em que são ‘diferentes’, vice-
dizem (vice-dit) em relação ao igual. É como se a identidade, como essência, se encontrasse atravessada pela
diferença, enquanto esta é inessencial e infinitamente pequena. [...] No que toca à segunda das dificuldades
que foram herdadas do aristotelismo, isto é, à limitação imposta pelo Princípio de Contradição (a
impossibilidade de se atribuir, a um mesmo Sujeito, dois predicados contraditórios), é preciso que nos
adiantemos até o pensamento de Hegel para encontrar uma superação. Não será, neste caso, em nome do
Infinitamente Pequeno (como inessencial) que o problema da contradição será ultrapassado: este movimento
será, pelo contrário, obtido através do pensamento do Infinitamente Grande” (Craia, 2003, p. 161-2). Craia
ainda nos revela que, segundo o nosso filósofo, com Hegel a contradição é colocada como a maior diferença;
neste sentido, a diferença seria equiparada à própria contradição. Elas se equivalem, se identificam. A
diferença se coloca como o próprio negativo: “De acordo com a análise de Deleuze, com Hegel a diferença
parece ser, por fim, decididamente afirmada, já que o pensador alemão aponta, como proposta metodológico-
filosófica, a tarefa de levar a diferença até o máximo, de chegar até a maior diferença possível, até ‘a Maior’.
Só que agora a diferença Maior é a própria contradição, e, portanto, a fim de se conseguir chegar até a maior
diferença será preciso levar a contradição até o infinito. A ‘nova’ Dialética não se poderá satisfazer com o
movimento de ‘vice-dicção’. Ela quer mais: quer que a diferença se lance até a ‘contradição’; que se
reconheça a potência de toda diferença quando esta é empurrada até o seu próprio contrário. Para o
pensamento do Infinitamente Grande não é suficiente perguntar por uma diferença relativa ou intermediária:
será preciso, mais do que isso, incluir no horizonte da filosofia a diferença absoluta, infinita. Nesta exaltação
da diferença está implícito um deslocamento profundo e decisivo do pensar. A contradição não determina
uma inconsistência ou um equívoco de ordem lógica; muito menos uma dramática impossibilidade
ontológica. Ela é, pelo contrário, ‘diferença’. A contradição é a Maior Diferença, e a diferença é, desde
sempre, e por essência, contradição” (Craia, 2003, p. 162-3).
15
Mais uma vez Jose Luis Pardo nos mostra o problema hegeliano com relação à diferença; segundo ele, a
própria afirmação da diferença só surge em Hegel através da sua negação: “E a prova fiel desta continuidade
na submissão é que, na dialética, a diferença aparece como uma ampliação do negativo, um produto residual
71
Conjeturada aqui a questão da oposição e da contradição em Hegel,
resgatemos agora a questão que havia ficado em aberto anteriormente: da contradição como
negativo, ou da dialética hegeliana como um método de negação, uma negação vista como um
salto para o Nada e não como um passo para os “problemas” e as “questões”, como o era em
Platão.
1.2. Da Dialética Hegeliana e do Não-Ser como Negativo
Vimos anteriormente como Hegel trouxe o problema aristotélico à tona, um
problema crucial para a sua própria filosofia, a questão da oposição. Hegel postula, entretanto,
uma oposição como método, uma oposição que se funda como contradição; a contradição se
constitui, portanto, como a base da sua própria dialética. Neste sentido, Hegel retira da
“representação finita” um conceito que lhe permite desdobrar uma filosofia que pensa a
representação não mais como finita e orgânica, mas como infinita e orgíaca.
Para pensar a dialética hegeliana precisamos, inicialmente, remeter-nos à
sua Lógica. Hegel parece identificar a sua lógica dialética com a própria ontologia, como uma
teoria “lógica-ontológica”, ou como uma “ontologia-lógica”. Ele divide, deste modo, através
de seu método dialético (tríade dialética: tese, antítese e síntese), a teoria do Ser em três
momentos (sempre com vistas ao absoluto). Primeiramente uma “teoria do Ser”, depois uma
“teoria da Essência” e, finalmente, uma “teoria do Conceito”
16
. Parece ser na Ciência da
da negação, algo que não possui em si mesmo a capacidade de afirmar-se nem a possibilidade de ser
afirmado. A afirmação, como afirmação da diferença, só surge em Hegel como resultado da negação, da
negação da diferença que é a grande reconciliação com a identidade, incluindo aqui também a aristotélica
‘oposição dos predicados’ que se converteu em ‘contradição dos sujeitos: a reconciliação se efetua sempre
em detrimento da diferença e na órbita dos círculos monocêntricos” (Pardo, 1992, p. 84). Nesta citação,
percebemos também que Pardo deixa claro que, apesar de ter sido Aristóteles o pai da oposição – seja ela dos
predicados como se mostra inicialmente no aristotelismo, ou dos sujeitos, sempre em conjunto com a sua
diferença categorial –, não podemos deixar de pensar que foi Hegel quem levou a oposição às últimas
conseqüências, ou quem a elevou à contradição e, conseqüentemente, à negação.
16
Não temos como intuito aqui resgatar a obra lógica de Hegel, mas apenas deixar mais clara a questão da lógica
na ontologia hegeliana. Podemos, desta forma, encontrar, com maior detalhamento, a teoria do Ser de Hegel
na obra de Roger Garaudy: Pour connaître la pensée de Hegel, traduzido para o português pela L&PM
Editores. Nesta obra Garaudy explica melhor a questão da divisão dialética do filósofo alemão: “A
experiência individual da Fenomenologia já nos fez seguir, no espelho da consciência, estas etapas da
experiência da espécie. Nós as reencontramos na Lógica. Consideramos primeiramente as coisas tal como são
em si, com as determinações inerentes a seu ser, suas propriedades. É o ponto de vista da percepção, que se
vincula ao Ser imediato. Depois estudamos as coisas em suas relações com as outras, e, como relações, estas
mediações mesmas. Estas relações constituem sua essência. É o ponto de vista da reflexão. Enfim,
ultrapassando, ao integrá-las a uma visão mais completa, estes dois pontos de vista, apreendemos o real ao
mesmo tempo em-si-e-para-si, como substâncias e como sujeito, no próprio conceito que dele temos. Tais
serão os três momentos essenciais da Lógica: 1. A lógica do Ser; 2. A Lógica da Essência; 3. A Lógica do
72
lógica, portanto, que a própria ontologia hegeliana é apresentada, ou aquilo que poderíamos
chamar de dialética do Ser. Deleuze, por sua vez, diz que Hegel, ao formular a sua lógica do
Ser, tenta acordar, assim como Platão, a unidade e a multiplicidade, mas, diferente do
ateniense – que os distinguia, que os dividia no próprio âmago do Ser –, ele tenta “combiná-
los” neste mesmo âmbito, já que, para ele, a multiplicidade, enquanto negação da unidade
(fundamento), é que se mostra como essência da própria unidade, pois sintetiza esta e aquela.
Em filosofia, conhecemos muitas teorias que combinam o uno e o múltiplo. Elas têm
em comum a pretensão de recompor o real com idéias gerais. Dizem-nos: o Eu é uno
(tese), é múltiplo (antítese) e é, em seguida, a unidade do múltiplo (síntese). Ou,
então, dizem-nos: o Uno já é múltiplo, o Ser passa ao não-ser e produz o devir
17
.
O devir se torna, em Hegel, um produto da unidade, pois esta já se manifesta
como multiplicidade, já que é na negação, ou na contradição, que o Uno (Mesmo) se coloca
como múltiplo. O devir se afigura, de tal modo, como algo que é formado a partir desta
combinação do Uno e do múltiplo. A diferença, enquanto vir-a-ser, enquanto movimento
puro, se prende à relação, se prende à síntese que, de alguma forma, ainda é a mescla, ainda é
parte tanto da tese (fundamento, Ser) quanto da antítese (negação, não-fundamento, não-
Ser)
18
.
Não podemos vislumbrar em Hegel, segundo Deleuze, o que, de alguma
forma, observamos em Platão, o “não” do não-Ser como problema, como questão do próprio
Ser. Em Hegel, a negação é o único “não” que o não-Ser exprime. Deleuze assim designa o
que foi a filosofia hegeliana na história da dialética:
Começa a longa história de uma desnaturação da dialética, história que tem como
resultado Hegel e que consiste em substituir o jogo da diferença e do diferencial
pelo trabalho do negativo. Em vez de se definir por um (não)-ser como ser dos
problemas e das questões, a instância dialética é agora definida por um não-ser
como ser do negativo. A complementariedade do positivo e do afirmativo, da
posição diferencial e da afirmação de diferença, é substituída pela falsa gênese da
afirmação, produzida pelo negativo e como negação de negação. Para dizer a
verdade, tudo isto nada seria sem as implicações práticas e os pressupostos morais
de uma tal desnaturação. Vimos tudo o que significa essa valorização do negativo, o
Conceito” [GARAUDY, Roger. Para conhecer o pensamento de Hegel. Trad. Suely Bastos. Porto Alegre:
L&PM Editores, 1983, p. 73. Em diante (Garaudy, 1983)].
17
B, p. 33.
18
Isso está muito claro na Ciência da lógica: “O ser no vir-a-ser, enquanto um com o nada, e assim o nada,
enquanto um com o ser, são apenas evanescentes: o vir-a-ser, por sua contradição dentro de si mesmo, colapsa
na unidade em que os dois são suprassumidos; seu resultado é, pois, o ser-aí” [HEGEL, Georg Wilhelm
Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio: 1830 – V. 1: A Ciência da lógica. Trad.
Paulo Meneses e José Machado. São Paulo: Loyola, 1995. (O pensamento ocidental), p. 185. Em diante
(Hegel, 1995)].
73
espírito conservador de um tal empreendimento, a trivialidade das afirmações que se
pretende engendrar assim, a maneira pela qual somos, então, desviados da mais
elevada tarefa — a que consiste em determinar os problemas, em neles inscrever
nosso poder decisório e criador. Eis por que os conflitos, as oposições, as
contradições nos pareceram efeitos de superfície, epifenômenos da consciência, ao
passo que o inconsciente vive de problemas e de diferenças. A história não passa
pela negação e pela negação da negação, mas pela decisão dos problemas e pela
afirmação das diferenças
19
.
A diferença se vincula a um não-Ser negativo, a um não-Ser que nega a
afirmação, mas que, ao mesmo tempo, nega a negação da afirmação, formando uma nova
afirmação, entretanto uma afirmação já desde seu início “envenenada pelo néctar do mal”, ou
envenenada pela negação do não-Ser negativo, do nada engendrado no coração do Ser
20
.
Hegel não seria aquele que derrubaria a representação de seu altar, embora esta fosse a sua
pretensão. Ao contrário, foi ele, de alguma forma, um dos que elevou a representação ao seu
máximo, ao seu mais alto patamar, elevando-a ao infinito, ao infinitamente grande da
negação. A contradição deixou, deste modo, a sua marca na filosofia da representação,
acarretando uma nova forma de vislumbrar a mesma, uma nova maneira de se pensar a
representação no âmago do Ser
21
. O fundamento retorna como positivo da negação negada
22
,
entretanto um positivo que já é desde sempre negação de Ser e não problematização dele:
19
DR, p. 372.
20
O não-Ser funciona dentro do próprio Ser, chegando este a ser dito daquele: “Ora, esse puro ser é pura
abstração, e portanto o absolutamente-negativo que, tomado de modo igualmente imediato, é o nada” (Hegel,
1995, p. 178). O Ser é dito como o próprio negativo, ou o absolutamente-negativo. Deste modo, ele é jogado à
máxima contradição, mas sempre em vista desta síntese formada pelo Ser e sua contradição, o vir-a-Ser. Esta
síntese é, portanto, uma negação negada, uma identidade que sempre retorna como princípio. O fundamento
só é afirmado na medida em que a identidade é jogada ao máximo da diferença (nada): “O fundamento é a
unidade da identidade e da diferença; a verdade daquilo como se produziu a diferença e a identidade: a
reflexão-sobre-si, tanto como a reflexão-sobre-o-outro; e vice-versa. É a essência posta como totalidade”
(Hegel, 1995, p. 237).
21
“Na verdade, não se produz em Hegel nenhuma liberação da diferença, pois subsiste ainda na Dialética a
sombra da negatividade. Isto se percebe claramente ao recordarmos os movimentos mais simples do sistema
hegeliano: primeiramente, a diferença (contradição) se determina através da oposição dos contrários, já que
toda determinação ‘pressupõe’, sempre, a sua determinação contrária (P contém não-P). E, por outro lado,
todo contrário determinado ‘produz’, por sua vez, o seu próprio contrário, não como oposição de predicados,
mas como contradição dos sujeitos (S produz não-S). Assim, o elemento que trabalha desde o interior da
própria Dialética não é senão a negatividade, e, se o Ser é contradição e diferença, somente o é como
operação ou produto do negativo. Tudo o que é real carrega em si o seu negativo, aquilo de que mais se
diferencia” (Craia, 2003, p. 163-4).
22
Uma passagem da Ciência da lógica mostra mais claramente esta questão do fundamento, enquanto
positividade, como negação da negação: “Algo, na relação com um outro, já é ele mesmo um Outro para com
esse Outro; por conseguinte, como aquilo, para o que passa, é exatamente o mesmo que aquilo que passa, os
dois não têm outra determinação a não ser uma só e a mesma determinação: a de um Outro; e assim Algo, em
seu passar para Outro, só vem a juntar-se consigo mesmo; e essa relação para consigo mesmo, no passar e no
Outro, é a verdadeira infinitude. Ou, considerado negativamente: o que é alterado é o Outro; ele se torna o
Outro do Outro. Desse modo, o ser é resultado, mas como negação da negação; e é o ser-para-si” (Hegel,
1995, p. 191). Já uma outra passagem revela a postulação do fundamento, enquanto um jogo que vai do
positivo ao negativo dentro do próprio âmago do Ser: “O positivo é esse diverso, que deve ser para si e, ao
mesmo tempo, não-indiferente à sua relação para com o seu Outro. O negativo deve ser também autônomo –
74
Tal é a contradição como movimento da exterioridade ou da objetivação real,
constituindo a verdadeira pulsação do infinito. Nela, portanto, encontra-se
ultrapassada a simples identidade dos contrários, como identidade do positivo e do
negativo. Com efeito, não é da mesma maneira que o positivo e o negativo são o
Mesmo; o negativo é agora, ao mesmo tempo, o devir do positivo, quando o positivo
é negado, e o retorno do positivo, quando ele nega a si próprio ou se exclui. Sem
dúvida, cada um dos contrários determinados como positivo e negativo já era a
contradição, “mas o positivo só é esta contradição em si, ao passo que a negação é a
contradição posta”. É na contradição posta que a diferença encontra seu conceito
próprio, é determinada como negatividade, se torna pura, intrínseca, essencial,
qualitativa, sintética, produtora, e não deixa subsistir a indiferença. [...] Assim, a
diferença é levada até o extremo, isto é, até o fundamento, que é tanto seu retorno ou
sua reprodução quanto seu aniquilamento
23
.
A colocação do “não” do não-Ser como negativo do Ser, ou como negação
da identidade, e não como problematização, como questionamento ao próprio Ser, faz de
Hegel um dos maiores expoentes do negativo, já que a sua positividade sempre se vincula a
esta negatividade expressa em sua dialética da contradição. Assim, a suposta força hegeliana,
que o levaria à superação da metafísica, do platonismo (talvez até a uma inversão do
dogmatismo desta imagem do pensamento) e da própria representação, é, como diria Deleuze,
fingida, já que não consegue sair do centro ao qual tentou superar, voltando novamente ao seu
ponto de partida, como um círculo que volta sobre e para si mesmo.
[...] para Hegel, mostrou-se recentemente até que ponto os círculos da dialética
giravam em torno de um só centro, repousavam num só centro. Monocentragem dos
círculos ou convergência das séries, a filosofia não deixa o elemento da
representação quando parte à conquista do infinito. Sua embriaguez é fingida. Ela
persegue sempre a mesma tarefa, Iconologia e adapta-a às exigências especulativas
do Cristianismo (o infinitamente pequeno e o infinitamente grande). E sempre a
seleção dos pretendentes, a exclusão do excêntrico e do divergente, em nome de uma
finalidade superior, de uma realidade essencial ou mesmo de um sentido da
história
24
.
Diz-se que a diferença é a negatividade, que ela vai ou deve ir até a contradição,
desde que seja impelida até o fim. Isto só é verdade na medida em que a diferença já
esteja posta num caminho, num fio estendido pela identidade, na medida em que é a
identidade que a impele até lá. A diferença é o fundo, mas apenas o fundo para a
manifestação do idêntico. O círculo de Hegel não é o eterno retorno, mas somente a
a relação negativa para consigo, ser para si – mas ao mesmo tempo, enquanto pura e simplesmente negativo,
deve ter essa sua relação para consigo – o seu positivo – somente no Outro. Os dois são essa contradição
posta; os dois são o mesmo, em si. Os dois são também para si, enquanto cada um é o suprassumir do Outro e
de si mesmo. Assim, os dois vão a fundo. Ou seja: a diferença essencial é imediatamente – enquanto diferença
em si e para si – apenas diferença de si consigo mesma: contém portanto o idêntico; assim, a totalidade da
diferença essente em si e para si, pertence, pois, tanto à própria diferença quanto à identidade. Enquanto
diferença que se refere a si mesma, já foi expressa igualmente como aquilo que é idêntico a si mesmo; e o
oposto é, em geral, o que dentro de si contém o Uno e o seu Outro, a si mesmo e o seu oposto. O ser-dentro-
de-si da essência, assim determinado, é o fundamento (Hegel, 1995, p. 237).
23
DR, p. 78-9.
24
LS, p. 265.
75
circulação infinita do idêntico por meio da negatividade. A audácia hegeliana é a
última e a mais poderosa homenagem prestada ao velho princípio
25
.
Não há, no filósofo alemão, o descentramento a que ele mesmo se propôs.
Ao contrário, o círculo continua centrado no fundo da diferença, entretanto é uma diferença
que sempre se reporta à identidade, à unidade. O mundo eterno, através da “dualidade
manifesta”, em conseqüência, acabou não sendo desconstruído. Ele apenas ganhou um novo
elemento, o infinito. Assim, como podemos pensar o descentramento do círculo, como postula
Deleuze? Será com a filosofia contemporânea que este descentramento aparece, que este
“não” do não-Ser se mostra como afirmação, como “questão” do próprio Ser? Se o Ser deve
ser pensado como problemático, como descentrado e como algo exterior ao conceito de
representação, como podemos pensá-lo nesta filosofia que, desde Platão, se mostrou como
platônica; isto é, se mostrou como centrada num fundamento último, num aprofundamento e
numa ontologia representacional?
De antemão, como já viemos falando até aqui, podemos afirmar que,
segundo Deleuze, é só com Nietzsche e com a nova imagem do pensamento que a filosofia
toma realmente novos rumos. Afinal, é com ele que a filosofia deixa o seu caráter
representativo para se tornar uma filosofia da repetição, uma filosofia do “Eterno Retorno”,
do devir como movimento do Ser e como repetição da diferença criadora, do caos gerador.
Antes de nos entregarmos à análise deleuziana acerca da filosofia nietzschiana, ou desta
filosofia que – juntamente com algumas outras “fendas” – compõe a própria filosofia de
Deleuze, devemos, porém, nos entregar, primeiramente, a um outro representante do negativo.
Devemos investigar acerca de uma outra filosofia que, mesmo depois de Nietzsche e desta
nova interpretação da questão do Ser, ainda persiste na negação dele, ou melhor, na
interpretação do Nada como o próprio Ser. Assim, passamos agora à análise da filosofia da
diferença de Heidegger, filosofia esta que, de alguma forma, tentou trazer a diferença aos ares
do positivo, julgando que todos os seus esforços para tal empreitada não deixariam dúvidas de
que a diferença devesse ser pensada como positividade; contudo, veremos que mesmo
Heidegger deixou transparecer uma certa negatividade na diferença
26
.
25
DR, p. 85.
26
A abordagem de Heidegger aqui, antes de adentrarmos numa interpretação deleuziana da filosofia
nietzschiana, se dá justamente porque Deleuze observa na sua filosofia uma interpretação que nos levaria a
pensar o (não)-Ser como negação, ou o “não” do não-Ser como nihil, como Nada. Deixaremos, portanto, a
interpretação deleuziana de Nietzsche para o próximo capítulo, já que é através desta interpretação que
adentraremos mais propriamente numa nova imagem do pensamento (pensamento sem imagem, sem
pressupostos).
76
2. Do Dasein e do Nada Heideggerianos e da Diferença como Margem à
Interpretação do Negativo
A questão que nos leva a Heidegger como pensador do negativo difere do
caminho traçado por Deleuze quanto à negatividade hegeliana. Como vimos, Hegel, ao tentar
superar os problemas encontrados na filosofia aristotélica, acaba se embrenhando no outro
lado da representação. Ele acaba percorrendo as fendas da representação infinita; um tipo de
representação que acabava, em princípio, com o problema da diferença em Aristóteles, no
entanto levantava muitos outros problemas no interior da própria filosofia da diferença. Neste
tipo de representação (orgíaca), a diferença era vista como o contrário da identidade, como o
próprio negativo, no caso de Hegel como a contradição pura. Destarte, Hegel ainda se prendia
ao conceito de representação, onde a própria diferença se remetida, de alguma maneira, à
identidade, ou ainda era pensada como produto do idêntico, ainda se subordinava ao
Mesmo
27
.
Heidegger nos parece, em um primeiro momento, estar fora deste âmbito, já
que com Nietzsche acabamos deixando de lado (ao menos para a grande maioria dos filósofos
contemporâneos) o conceito de representação e de transcendência; encontrávamo-nos em
novos “ares” do pensamento, em um recomeço em filosofia. Heidegger, ao seguir os passos
nietzschianos, parecia estar livre para pensar a diferença como puramente positiva, como a
pura questão do Ser, como o retorno eterno daquilo que difere, mas a interpretação que faz
Deleuze da obra heideggeriana tem um outro âmbito; tal interpretação se coloca a pensar
Heidegger como um novo representante do negativo, ou do Ser como negativo. Segundo o
filósofo francês, Heidegger acaba identificando a diferença com o não-Ser. Este “não” do não-
Ser, entretanto, foi compreendido como Nada, como o puramente negativo; ao menos seria
isso que transparecia na sua filosofia da diferença, já que o filósofo alemão não parecia deixar
brechas para uma interpretação diferente, de modo a expressar a diferença, ou este não-Ser,
como positividade pura. Claro que pareceria um contra-senso dizer que o não-Ser poderia ser
visto como positivo, já que ele é a própria expressão do não, isto é, é a pura negação de Ser.
Deleuze, todavia, vê com outros olhos esta questão:
27
Devemos ressaltar novamente que a questão sobre a representação infinita em Deleuze nos reporta a dois
nomes da história da filosofia, Hegel e Leibniz. O primeiro com o infinitamente grande da contradição e o
segundo com o infinitamente pequeno da vice-dicção. A importância que Leibniz exerce nesta questão foi
brevemente exposta neste capítulo em nota anterior, cf. nota 14. Como dito, porém, não será nossa tarefa
entrar em maiores detalhes acerca da vice-dicção leibniziana neste trabalho.
77
[...] o erro das teorias tradicionais é impor-nos uma alternativa duvidosa: quando
procuramos conjurar o negativo, declaramo-nos satisfeitos se mostramos que o ser é
plena realidade positiva e não admite qualquer não-ser; inversamente, quando
procuramos fundar a negação, ficamos satisfeitos se chegamos a colocar no ser, ou
em relação com o ser, um não-ser qualquer (parece-nos que este não-ser é
necessariamente o ser do negativo ou o fundamento da negação). A alternativa,
portanto, é a seguinte: ou não há não-ser, e a negação é ilusória e não fundada; ou há
não-ser, que põe o negativo no ser e funda a negação. Todavia, talvez tenhamos
razões para dizer, ao mesmo tempo, que há não-ser e que o negativo é ilusório
28
.
Se, como afirma nosso filósofo, “o negativo é ilusório” apesar de ainda
haver não-Ser, como deveríamos pensar este não-Ser? Tal pensamento, para o filósofo
francês, se colocaria como problemático, ou melhor, o “não” do não-Ser, como já dizíamos
desde a nossa leitura deleuziana de Platão, não quer dizer negação de Ser, mas que este se
mostra como problemático, como questão, como a própria interrogação. Embora o próprio
Heidegger, em algumas obras, tenha tentado nos dizer que a diferença se encontrava entre Ser
e ente, como Diferença Ontológica – diferença esta entendida como questão, como problema
ontológico –, ainda podemos ver a sua filosofia como uma filosofia que possui certos vínculos
interpretativos com o negativo, já que ele não consegue vincular a sua filosofia a uma
univocidade, como Deleuze; desta forma, ela parece ainda se atrelar a uma visão do “nãodo
não-Ser como negatividade expressa
29
.
O filósofo alemão, segundo esta perspectiva deleuziana, pode ser
compreendido, deste modo, segundo dois momentos em sua filosofia da diferença – não como
duas filosofias antagônicas, ou como duas filosofias opostas, ou mesmo como dois
Heideggers diferentes, como os seus comentadores costumam dividi-lo, mas como dois
28
DR, p. 117.
29
Alberto Gualandi, em sua obra Deleuze, coloca como um ponto culminante na filosofia deleuziana a
interrogação que o mesmo faz da interpretação do Ser e da diferença como negativo em Heidegger. Segundo
Gualandi, Deleuze toma o cuidado de não recair sobre uma interpretação negativa do Ser, pois pensa a
positividade da diferença no âmago da univocidade do Ser, enquanto devir, enquanto Eterno Retorno: “O
eterno retorno é a mais alta afirmação da diferença pois o eterno retorno é o Ser do Devir. Mas por que, para
Deleuze, é tão importante poder afirmar esta identidade ontológica última, segundo a qual o Ser é Tempo na
forma do Devir?” [GUALANDI, Alberto. Deleuze. Trad. Danielle Ortiz Blanchard. São Paulo: Estação
liberdade, 2003, p. 80-1. Em diante (Gualandi, 2003)]. Gualandi ainda nos leva a afirmar que Deleuze critica
a filosofia heideggeriana quanto à questão de uma interpretação do Ser como negativo, justamente para que
ele mesmo tenha o cuidado de não deixar margens para uma possível interpretação deste como negativo.
Qual é, então, o problema de Heidegger que nos deixa margens a esta interpretação? Gualandi assim nos
esclarece: “Toda experiência participa da tensão temporal que tem sua raiz na finitude do Dasein, no ser
mortal do homem. Sein und Zeit conclui-se no entanto sem dar uma resposta positiva à questão do Ser, o que
não deixou de intrigar. A análise existencial que descobriu a conexão necessária entre Ser e Tempo parece
limitar o questionamento filosófico no horizonte da finitude e da negatividade do Dasein. A doutrina
heideggeriana do Ser parece dizer o Ser apenas de uma forma negativa.” (Gualandi, 2003, p. 81). Embora o
que se afigure aqui é esta interpretação através da obra Ser e tempo, veremos que é no chamado Segundo
Heidegger que a interpretação negativa da diferença se encontra com maior vigor, já que ele identifica, em
certos aspectos, o próprio Ser ao Nada, ao não-Ser negativo.
78
modos de observação da diferença, duas formas de se pensar a diferença enquanto tal –,
entretanto, segundo Deleuze, estes dois modos, em Heidegger, ainda se colocam numa
interpretação da diferença como negativa.
2.1. O Dasein como Interpretação Negativa do Ser: a Dobra, o Ser-para-
a-morte e a Compreensão Pré-Ontológica do Ser
O primeiro momento heideggeriano, segundo o nosso autor, se estabelece
em sua primeira obra: Ser e tempo.
Publicada em 1927, Ser e tempo nos coloca diante do Dasein (na tradução
brasileira pre-sença, ou, literalmente, ser-aí, eis-aí-ser). O Dasein, para Deleuze, parece se
mostrar como um dos problemas heideggerianos para a positividade do Ser, já que, entre as
suas diversas acepções, traria principalmente três que não estariam de acordo com esta
interpretação positiva da diferença.
Primeiramente, Heidegger se põe diante de uma certa unificação da
diferença, diante de uma dobra ontológica que reúne tanto o que é interno quanto externo;
mas esta dobra, segundo Deleuze, ainda estaria vinculada a uma intenção, a uma
“intencionalidade recalcada”. A intenção ainda renderia a Heidegger um certo vínculo com
Husserl e com a fenomenologia, um vínculo com aquilo que Deleuze, de certa forma, tenta
abolir de sua filosofia: a subjetividade.
Em segundo lugar, ou um outro problema que podemos verificar nele,
diante desta interpretação deleuziana, é a sua relação com a morte. O Dasein seria um ente
que se colocaria diante do próprio problema do Ser, um ente que seria o aberto da questão do
Ser, um ente que se mostraria como temporalidade, ou síntese temporal. Para que este “ente
superior”, este Dasein, possa ser pensado como temporalidade expressa, ou como síntese do
tempo, ele precisa se colocar diante da morte, ele precisa ser consciente de sua própria
finitude. Assim, o Dasein só sintetiza, ou só reúne as três formas do tempo enquanto for
vislumbrado como ser-para-a-morte. É em sua finitude que o Dasein se diz diante da
totalidade do tempo, é em sua finitude que ele vislumbra o tempo como uma unidade
diferencial. Para Deleuze, no entanto, a morte seria apenas um acontecimento entre tantos
outros, não seria ela que caracterizaria esta síntese temporal, já que não seria o sujeito, ou uma
“subjetividade pura”, que abriria o retorno da diferença; a síntese temporal seria feita pelo
79
próprio devir, enquanto “eterno retorno” (repetição). É o devir que faz com que as
singularidades diferenciais se coloquem diante do tempo, diante da temporalidade e de sua
síntese. Isso faz com que o próprio indivíduo se dissolva, mas, ao mesmo tempo, se prolongue
para além de sua própria morte
30
.
Em terceiro lugar, ou a terceira acepção do Dasein que não estaria de acordo
com uma filosofia positiva do Ser, seria a sua interpretação como ser-com. O ser-com do
Dasein poderia ser visto, segundo Deleuze, como uma compreensão pré-ontológica do próprio
Ser, portanto, como um pressuposto ontológico, como um “axioma matemático” que fundaria,
desde si, a própria ontologia.
Este primeiro momento da filosofia heideggeriana da diferença, segundo a
compreensão deleuziana, nos levaria a três principais problemas: o Dasein, enquanto
consciência temporalizada que se vê perante a questão do Ser, a dobra heideggeriana; a morte
como findar, como fim da pre-sença, ou como finalidade do Dasein no tempo; e, por fim, a
“axiomática” heideggeriana instalada no ser-com do Dasein, o que formaria, então, uma
compreensão pré-ontológica do Ser.
2.1.1. Do Dasein como Dobra Ontológica
O primeiro problema nos remete a pensar Heidegger como um
fenomenólogo, como um discípulo de Husserl, que, apesar de criticar e tentar reverter a
filosofia de seu mestre, ainda mantém uma certa perspectiva fenomenológica, uma certa
intencionalidade recalcada
31
. Claro que não podemos deixar de ressaltar que o próprio
Deleuze observa que a tentativa heideggeriana foi um marco na história da filosofia da
diferença, já que deixa de lado, em certos aspectos, o movimento fenomenológico da
intencionalidade em prol da questão ontológica: “[...] em Heidegger, [...] o ultrapassar da
intencionalidade se fazia em direção ao Ser, à dobra do Ser. Da intencionalidade à dobra, do
30
Cf. Gualandi, 2003, p. 82.
31
Observamos mais claramente esta crítica deleuziana a Heidegger na obra de Alain Badiou, Deleuze – o clamor
do ser, onde ele nos coloca, entre outras coisas, o próprio limite de Heidegger, ou o porquê de Heidegger não
ter elevado ao máximo a própria questão da diferença: “Podemos então dizer o que, para Deleuze, é o limite
de Heidegger: a sua aparente crítica da intencionalidade em proveito de uma hermenêutica do Ser fica a meio
caminho, porque ela não eleva até a radicalidade da síntese disjuntiva. Ela mantém o motivo da relação,
mesmo sob uma forma sofisticada” [BADIOU, Alain. Deleuze: o clamor do ser. Trad. Lucy Magalhães. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 32. Em diante (Badiou, 1997)].
80
ente ao ser, da fenomenologia à ontologia”
32
. Quebrar a barreira da intencionalidade implica,
igualmente, quebrar a barreira da interioridade que havia entre a consciência e o objeto, entre
a noese e o noema husserlianos. Heidegger precisou abandonar a luz da “consciência de...” da
fenomenologia para traçar um novo parâmetro para se pensar diretamente o Ser, uma
ontologia que lhe renderia uma diferença como unidade temporal. Terá Heidegger
abandonado definitivamente esta relação interiorizada com aquilo que não é puramente
consciência, com aquilo que é exterior à própria consciência? Terá Heidegger abandonado
definitivamente a própria noção de intencionalidade?
Segundo o autor de Diferença e repetição, Heidegger abandona a
intencionalidade porque coloca como perspectiva para a sua ontologia uma espécie de dobra,
isto que seria melhor trabalhado por Merleau-Ponty e, posteriormente, conceitualizado por
Foucault (que, por sinal, parece ter vindo de uma tradição fenomenológica heideggeriana para
depois abandoná-la quase que definitivamente). Seguindo Deleuze, numa interpretação da
filosofia foucaultiana, em sua obra Foucault observamos que a dobra (este conceito não
propriamente heideggeriano, mas que, segundo os seus discípulos, expressa com maior
propriedade a questão ontológica de Heidegger) é esta duplicação que se coloca num certo
plano ontológico, é “[...] a dobradiça do Aberto, a unicidade do desvelar-velar”
33
. A dobra é
aquilo que faz o exterior se comunicar com o interior, é a própria comunicação do Fora com o
Dentro. Esta duplicação é que fazia com que, de certo modo, a intencionalidade fosse afastada
da ontologia heideggeriana, pois o Fora (o exterior) não mais se vinculava diretamente com o
Dentro (o interior) através de uma “consciência de...”, através de uma relação interna para
com um mundo externo. Deleuze, entretanto, critica a dobra heideggeriana (e,
conseqüentemente, a dobra merleau-pontyana) porque ela ainda se vinculava a uma certa
relação interna. Para Heidegger, o Dasein só abriria mundo, só poderia doar sentido ao
mundo, perante uma dobra que fundiria a visão com a linguagem, que fundiria um “se-
vidente” com um “se-falante”:
[...] a dobra do ser, segundo Heidegger e Merleau-Ponty, só supera a
intencionalidade para fundá-la na outra dimensão: eis por que o Visível ou o Aberto
não fazem ver sem também fazerem falar, pois a dobra não constituirá o se-vidente
da visão sem constituir também o se-falante da linguagem, a ponto de ser o mesmo
mundo que é falado na linguagem e que é visto através da visão. Em Heidegger e em
32
F, p. 117.
33
F, p. 117.
81
Merleau-Ponty, a Luz abre um falar tanto quanto um ver, como se as significações
obcecassem o visível e o visível murmurasse o sentido
34
.
Segundo o nosso filósofo, isto ainda acarretaria uma subordinação do
Dasein, de alguma forma (mas sem que isso pudesse ser conjeturado com maior propriedade),
à intencionalidade; não mais, contudo, uma intencionalidade como o fora para Husserl, mas
uma intencionalidade como dobra, como duplicação do mundo – uma duplicação que se
funda numa unidade do mundo visível e do mundo falado através de uma intenção.
Para Deleuze, assim como para Foucault (na verdade, segundo Deleuze,
teria sido esta questão que teria feito com que Foucault se desligasse de alguma maneira da
fenomenologia heideggeriana)
35
, esta dobra não pode ser intencional, pois ela singulariza
tanto o mundo da linguagem quanto o mundo da visão. Na verdade, a dobra deleuzo-
foucaultiana duplica tanto o Fora quanto o Dentro disjuntivamente; eles não constituem um
duplo intencional, como uma superioridade do interior sobre o exterior, mas singularidades
disjuntas, isto é, um saber que se coloca tanto em um quanto em outro, um saber que é tanto
um quanto outro:
[...] ver e falar é saber, mas nós não vemos aquilo de que falamos, e não falamos
daquilo que vemos; e, quando vemos um cachimbo, não deixamos de dizer (de
várias maneiras) “isso não é um cachimbo...”, como se a intencionalidade se negasse
a si própria, desabasse sozinha. Tudo é saber, e esta é a primeira razão pela qual não
há experiência selvagem: não há nada antes do saber, nem embaixo dele. Mas o
saber é irredutivelmente duplo, falar e ver, linguagem e luz, e esta é a razão pela
qual não há intencionalidade
36
.
Assim, esta primeira instância do Dasein se coloca perante a forma de
pensar a “unidade ontológica” de Heidegger. Deleuze, seguindo Foucault, não pode deixar de
ainda ver no filósofo alemão uma “unidade ontológica” falha: o Dasein ainda não conseguiria
sustentar a univocidade do Ser, pois ainda não conseguia compreender todos os sentidos do
Ser em um só sentido. Mesmo que Heidegger postule uma relação entre a visão e a
linguagem, entre o ver e o falar, ele ainda não consegue vislumbrar a singularidade que o
saber produz através do Ser unívoco. O autor de Ser e tempo, segundo a concepção
deleuziana, não consegue ir até a radicalidade com a unidade do Ser (entendido aqui como
univocidade), pois ainda se prendia em suas amarras aristotélicas; portanto ele ainda estaria
preso à equivocidade, mesmo partindo de uma unidade ontológica do Ser. Heidegger, de
34
F, p. 118-9.
35
Cf. F, p. 101 a 130.
36
F, p. 117.
82
algum modo, ainda seguiria os postulados aristotélicos de que a linguagem diz o mundo, de
que o discurso só se coloca como possível quando é colocado diante do mundo, diante do ver,
do observável do mundo
37
.
A ontologia heideggeriana, segundo esta leitura que aqui seguimos, ainda se
inscreveria sob os pressupostos da fenomenologia através da dobra ontológica, já que o
Dasein se colocaria como uma unidade temporal que duplicaria e relacionaria o saber,
fazendo desta relação uma nova forma intencional de pensamento, fundindo a fala com a
visão, a luz com a linguagem
38
. Isso, de certo modo, afastaria a unidade ontológica do Dasein
de uma verdadeira efetivação da diferença como “unidade sintética disjuntiva” (univocidade),
já que não vislumbraria a singularidade própria da diferença em si mesma:
[...] o Ser-luz remete apenas às visibilidades e o Ser-linguagem aos enunciados: a
dobra não poderá fundar uma nova intencionalidade, pois esta desaparece na
disjunção, entre as duas partes, de um saber que jamais é intencional
39
.
Enfim, para Deleuze, Heidegger se perde em uma armadilha de sua
ontologia hermenêutica, pois acaba não radicalizando a univocidade do Ser, acaba não indo
até o fim com a positividade do Ser através da unidade ontológica do Dasein. Uma questão,
porém, ainda resta acerca desta suposta unidade ontológica: – Como o Dasein se vislumbra
como unidade ontológica? Como ele se coloca diante do tempo para formar esta unidade?
Aqui acabamos entrando em um outro problema, o problema do ser-para-a-
morte, já que é através desta determinação do Dasein que ele se coloca enquanto unidade
ontológica temporalizada, ou unidade temporal.
37
Novamente recorremos a Badiou para nos esclarecer com maior propriedade este ponto: “Heidegger interpreta
a unidade do Ser como convergência hermenêutica, como relação analógica decifrável entre as dimensões em
que ele se expõe (aqui, o visível e a linguagem). Ele não vê (ao contrário de Foucault) que a unidade
ontológica tem como conseqüência não uma harmonia ou uma comunicação entre os entes, nem mesmo um
‘entre-dois’ onde pensar a relação fora de todo fundamento substancial, mas a não-relação absoluta, a
indiferença dos termos a todas as relações. [...] O verdadeiro motivo do contraste entre Deleuze e Heidegger,
no interior da sua comum convicção de que a filosofia se sustém com a única questão do Ser, é o seguinte:
para Deleuze, Heidegger não mantém até o fim a tese fundamental do Ser como Uno. Ele não a sustenta,
porque não assume as conseqüências da univocidade do Ser. Heidegger não cessa de lembrar a máxima de
Aristóteles: ‘o Ser se diz em vários sentidos’, em várias categorias. Com esse ‘vários’, Deleuze não pode
consentir” (Badiou, 1997. p. 29-30).
38
Para Deleuze, no Foucault, tanto a linguagem como a visibilidade (visão) devem ser pensadas como
singularidades expressas: os enunciados não visam às coisas do mundo, na verdade, eles não visam nada,
apenas o próprio “ser-linguagem”, a própria linguagem; já as visibilidades não remetem a um campo
“antepredicativo”, onde se constituiriam os enunciados lingüísticos referentes a tais visibilidades. Ao
contrário, estas visibilidades remetem unicamente ao seu “ser-luz”, que lhes dão forma. Cf. F, p. 116.
39
F, p. 119.
83
2.1.2. Do Dasein como Ser-para-a-morte
O segundo problema, ainda inseridos neste primeiro momento
heideggeriano, nos levaria a pensar Heidegger, de certo modo, como um finalista, já que é na
morte, ou na finitude, que o Dasein se vislumbraria como uma unidade temporal, ou como
uma temporalidade totalizada. Seria só na finitude que o Dasein se mostraria como síntese
unificadora, que o Ser do Dasein se revelaria como uma espécie de unidade, uma espécie de
unicidade, de “síntese unívoca”.
Seria, assim, na finitude que o Dasein se veria diante do Tempo – que este
ente humano que se interroga pelo Ser se veria diante da temporalidade – e que o passado, o
presente e o futuro se sintetizariam numa unidade temporal, numa totalidade temporalizada. O
Dasein seria, portanto, o “presente vivo”, mas um presente que sintetiza tanto o passado
quanto o futuro, numa unidade consciente. Este “ser” que se mostra presente, se coloca tanto
temporalmente quanto existencialmente, já que ele é sempre presente no tempo (unidade
temporal) e sempre presente no mundo, existência pura. Neste sentido, o Dasein pode ser lido
como pre-sença e como ser-no-mundo. A pre-sença (Dasein) só pode ser consciente de si
mesma e das coisas que a cercam porque está enredada pelo próprio mundo. Não é fora dela
que ele se encontra, não é através de uma “atitude transcendental”, como foi em Husserl, que
este ente que se interroga pelo Ser pode se encontrar em seu estado puro. A pre-sença só se
interroga por que está colocada num mundo que lhe doa o encontro, que lhe doa as
possibilidades de um encontro; isto é, é o mundo que outorga um campo de possibilidades
para que o pensamento se dê, e para que o pensar, o problematizar, se coloque diante do
Dasein.
O problema que se afigura no momento é o seguinte: – Por que o Dasein,
enquanto ser-para-a-morte, é visto como ponto de negatividade em Deleuze?
A morte, de certa forma, nos remete a um tipo de “fim”, enquanto findar da
pre-sença, enquanto desaparecimento do ser-no-mundo de um Dasein; o mundo já não é mais
presente, nem passado e nem expectativa de futuro para este Dasein, esta consciência humana
que finda. A existência já não é mais um “presente vivo”, mas apenas lembrança ou
rememoração na consciência de outro Dasein que ainda não findou. Neste sentido, a morte é
um fim. A morte se coloca como ponto último da finitude humana. Tal acontecimento, para
Heidegger, era o que fazia com que a pre-sença se acabasse, não no sentido de completude,
84
mas de algo dado, já que o Dasein encontraria uma certa totalidade de seu ser-no-mundo com
a morte (a morte seria o último instante, não haveria mais devir para aquele Dasein)
40
.
A morte, para Heidegger, parece se mostrar, deste modo, como o próprio
fim do ser-no-mundo – não como completude, já que é nela que ele se finda, se exaure e
também se acaba como algo simplesmente dado –, enquanto fim da síntese unificadora da
pre-sença, isto é, a pre-sença já não é mais para si mesma, mas para o outro, ou para outra
pre-sença. Deleuze parece não aceitar, no entanto, a concepção heideggeriana de ser-para-a-
morte, já que a morte, aparentemente, traria o fim do devir, o fim da diferença expressa no
retorno eterno. A morte, para o filósofo francês, não pode ser o fim, não pode ser vista como
findar do devir, mas como fase deste, como um outro acontecimento entre tantos outros que
estão sempre em curso no devir.
Claro que o Ser do Dasein, perante esta interpretação, realmente parece se
colocar como uma unidade sintética do tempo, entretanto há um problema em se pensar o
Dasein como esta unidade sintética ainda envolto com a finitude, ainda preso no conceito de
morte. Para Deleuze, a finitude desvanece se pensarmos a morte não mais como um ponto
fixo e último neste devir que se coloca, mas como uma fase, um acontecimento deste mesmo
devir
41
. Assim, a própria subjetividade do Dasein desapareceria, não haveria mais “sujeito
puro” que pudesse se colocar numa certa relação com a sua própria finitude. Não havendo
este “sujeito”, não haveria a necessidade de se pensar a morte como fim. O problema de
Heidegger, segundo o nosso filósofo, é pensar que o Dasein funda a singularidade e a própria
40
Heidegger nos mostra mais claramente estas questões na segunda parte de Ser e tempo, dizendo que o findar,
enquanto fim da pre-sença, pode se caracterizar como totalidade da própria pre-sença: “O findar implicado na
morte não significa o ser e estar-no-fim da pre-sença, mas o seu ser-para-o-fim. A morte é um modo de ser
que a pre-sença assume no momento em que é. [...] Enquanto ser-para-o-fim, o findar reclama um
esclarecimento ontológico haurido no modo de ser da pre-sença. E, presumivelmente, apenas a partir da
determinação existencial do findar é que se fará compreensível a possibilidade do caráter existencial de um
modo de ser do ainda-não que se encontra ‘antes’ do ‘fim’. O esclarecimento existencial do ser-para-o-fim
poderá fornecer a base suficiente para se delimitar o sentido possível em que se fala de um totalidade da pre-
sença, desde que essa totalidade seja constituída pela morte, entendida como ‘fim’” [HEIDEGGER, Martin.
Ser e tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2002. Vol. II, p. 26-7. Em diante (Heidegger,
2002)].
41
Podemos observar com maior claridade esta questão, a saber do ser-para-a-morte de Heidegger e da
contraposição deleuziana, no texto, já mencionado em notas anteriores, de Alberto Gualandi: “O ser-para-a-
morte ‘encerra’ o horizonte da existência porque ele sintetiza os três ‘ek-stases’ temporais da consciência – o
futuro, o passado e o presente: o ser-na-frente-de-si, no ser-já-em-um-mundo, como-ser-junto da existência
humana – em uma forma existencial unitária, na forma da finitude. O ser-para-a-morte constitui o objeto
autêntico da existência pois o Dasein que enfrenta a morte reporta-se ao tempo como a uma totalidade. Para
Deleuze, por sua vez, o objeto autêntico da dialética do tempo é desfazer o horizonte da finitude mostrando
que a morte é apenas uma fase do devir, um acontecimento entre outros dentro da totalidade infinita e aberta
do Ser unívoco. Aquilo que, no Cosmo, retorna eternamente não é a forma acabada do Dasein humano, mas a
diferença singular, jamais completamente atualizada, que prolonga um indivíduo além de sua identidade e de
sua morte ‘pessoal’” (Gualandi, 2003, p. 81-2).
85
diferença nesta interrogação pelo Ser. O problema é pensar que esta subjetividade, mesmo que
seja pensada enquanto dobra, é anterior à diferença singular.
Para Deleuze, não é esta subjetividade que dá forma à síntese temporal. Ao
contrário, são as três sínteses do tempo que farão com que a individuação seja afirmada. A
subjetividade humana é um produto do próprio Ser unívoco, ou da própria diferença. A
individuação, portanto, é formada a partir das três sínteses do tempo: o presente vivo, o
passado puro e o futuro inovado. A primeira se caracteriza pelo hábito e pela linha, e pode ser
dita como a fundação do tempo, ou o presente que constitui e que passa no tempo. A segunda
se mostra através da memória e do círculo, e pode ser dita como fundamento do tempo, já que
nesta síntese é o passado que se caracteriza como fundo de todo o presente que sempre já se
coloca como passado. A terceira é posta através do eterno-retorno e da espiral, e pode ser dito
desmoronamento do tempo; é nesta síntese que se reencontra o elemento pré-individual do
tempo, o caos diferenciador, ou o eterno-retorno que faz a diferença circular numa espiral
seletiva. Enquanto Heidegger subordina o Dasein à sua morte própria, fazendo da
interrogação pelo Ser uma interrogação também sobre a morte, sobre o fim da consciência no
tempo, Deleuze concebe um campo pré-individual (o que mais tarde se confundirá com o seu
“campo transcendental sem sujeito”) que faz com que todos os acontecimentos se reportem
seletivamente ao caos. Assim, estas três sínteses temporais darão contorno a uma “forma
vazia do tempo”, o que mais tarde tornar-se-á, de alguma maneira, aquilo que produzirá a
própria subjetividade humana
42
. A questão das sínteses do tempo será tratada com maior
profundidade no quarto capítulo, onde abordaremos também o principal aspecto da nova
imagem do pensamento, ou seja, a univocidade do Ser deleuziana. Veremos, entretanto, que
estas três sínteses se resumem em duas leituras do tempo, Chrónos e Aiõn, onde o primeiro
funciona sob a perspectiva do presente e o segundo sob a perspectiva do passado-futuro. Por
ora, podemos perceber que o que caracteriza o ser-para-a-morte de Heidegger, para o filósofo
42
Recorremos novamente a Gualandi para que possamos compreender melhor a questão acerca das três sínteses
temporais de Deleuze: “Na doutrina do tempo de Deleuze, o tempo tem uma tripla natureza que se constitui
ao longo de uma ‘dialética’ de três fases. Deleuze chama essas fases as três sínteses do tempo. A primeira
síntese é a fase de fundação linear do tempo, constituindo o presente vivo dos hábitos infinitos que formam a
multiplicidade de durações das coisas existentes. A segunda síntese é a fase do fundamento circular do tempo,
síntese de um passado puro que faz que todo presente passe, já que o presente é aqui apenas a atualização de
um tempo, ‘desde sempre’ já passado. A terceira síntese resume, enfim, as duas outras dando uma nova
ordem para o tempo, pois submete o passado (tempo da condição) e o presente (tempo das identidades
produzidas pelo hábito) ao futuro inovador. A terceira síntese garante o caráter criador da atualização, mas ao
mesmo tempo desfaz a ordem linear do tempo que vai do virtual ao atual. Ela não é nem fundação, nem
fundamento, e sim princípio de desmoronamento do tempo, pois toda criação pressupõe uma libertação e uma
reconvocação do Ser pré-individual. Eterno-retorno é o nome do Ser pré-individual, do Caos criador que
seleciona tudo aquilo que existe e faz voltar apenas aquilo que difere” (Gualandi, 2003, p. 71-2).
86
francês, como um ponto que nos leva para o Ser como negativo é a questão da seleção do
eterno retorno; isto é, é a espiral seletiva (deleuziana) que nos recoloca perante o campo pré-
individual do devir-eterno (eterno-retorno, caos primordial, sentido-acontecimento).
Ocorre que toda esta questão, tanto do Dasein como dobra, e do Dasein
como ser-para-a-morte, nos remetem a uma terceira crítica deleuziana: a compreensão pré-
ontológica de Heidegger.
2.1.3. Da Compreensão Pré-Ontológica do Ser
O terceiro problema, deste primeiro âmbito deleuziano sobre Heidegger, se
resume em pensar a questão do Dasein enquanto ser-com, ou a compreensão pré-ontológica
heideggeriana. Que compreensão seria esta que levaria Deleuze a expressar a sua crítica
contra Heidegger?
Um dos principais pontos desta compreensão é pensado por Deleuze em
Diferença e repetição, os “pressupostos subjetivos”:
Tal atitude, que consiste em recusar os pressupostos objetivos, mas à condição de se
dar pressupostos subjetivos (que, aliás, talvez sejam os mesmos sob uma outra
forma), é ainda a de Heidegger, ao invocar uma compreensão pré-ontológica do
Ser
43
.
O que seriam estes pressupostos subjetivos?
De alguma maneira estes pressupostos se encaixam numa forma de, como
diria Deleuze, “todo mundo sabe...”, ou seja, num certo “senso comum”. Os conceitos que
formam os primeiros princípios ontológicos destes “filósofos ortodoxos”, dentre os quais,
segundo a interpretação deleuziana, Heidegger, em certos aspectos, poderia ser considerado
um deles (mas não o é por pensar a diferença enquanto tal), estão postos sob a perspectiva de
que haja um plano pré-filosófico ou pré-ontológico que os funda. Haveria, assim, um plano
anterior ao qual estes conceitos se colocam, sendo ele um plano em que todos estariam
inseridos, enquanto seres capazes de pensar, e onde se dariam os pressupostos para tais
conceitos. O exemplo mais freqüente de Deleuze é o exemplo do cogito cartesiano, onde o
“Eu penso, logo sou” já implicaria um conhecimento prévio do que seria “pensar”, do que
43
DR, p. 189-90.
87
seria “ser”, “duvidar”, etc.; e o conhecimento destes conceitos se daria neste plano pré-
filosófico.
Procuremos melhor o que é um pressuposto subjetivo ou implícito: ele tem a forma
de “todo mundo sabe...”. Todo mundo sabe, antes do conceito e de um modo pré-
filosófico... todo mundo sabe o que significa pensar e ser... de modo que, quando o
filósofo diz “Eu penso, logo sou”, ele pode supor que esteja implicitamente
compreendido o universal de suas premissas, o que ser e pensar querem dizer... e
ninguém pode negar que duvidar seja pensar e, pensar, ser... Todo mundo sabe,
ninguém pode negar, é a forma da representação e o discurso do representante.
Quando a Filosofia assegura seu começo com pressupostos implícitos ou subjetivos,
ela pode, portanto, bancar a inocente, pois nada guardou, salvo, é verdade, o
essencial, isto é, a forma deste discurso
44
.
Isso acarretaria à filosofia um certo contraste, já que, desde os seus
primórdios, ela combate o conhecimento vindo exclusivamente da doxa, ou o conhecimento
daquele que pensa apenas através de opiniões (Eudoxo); enquanto prega um conhecimento
que se origina na verdade, no verdadeiro, naquilo que, de certo modo, está isento de
pressupostos (Epistemon). Seguindo Deleuze, entretanto, vimos que mesmo este suposto
conhecimento “sem pressupostos” se vincula ainda, de alguma maneira, ao próprio
conhecimento de um “senso comum”, já que, é neste campo que se resguardaria o plano pré-
filosófico, o lugar comum, a forma de “todo mundo sabe...”. A filosofia combateria, deste
modo, aquilo que forma a sua própria maneira de pensar, já que seguindo esta interpretação
deleuziana do pensamento, como pressupostos implícitos, estaria novamente um plano em que
não somente os filósofos estão inseridos, mas “todo mundo”; um campo pré-filosófico que
renderia ao próprio conhecimento verdadeiro os seus pressupostos. Esta é uma forma de a
própria filosofia se resguardar ao âmbito do pressuposto, pois a filosofia se apresenta como
um conhecimento isento de pressupostos, já que é no “senso comum” (pré-filosófico) que se
encontram estes pressupostos; o que a filosofia faz é apenas iniciar depois do pressuposto,
iniciar sempre através de “princípios filosóficos”.
[...] o pensamento conceitual filosófico tem como pressuposto implícito uma
Imagem do pensamento, pré-filosófica e natural, tirada do elemento puro do senso
comum. Segundo esta imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro,
possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro. E é sobre esta
imagem que cada um sabe, que se presume que cada um saiba o que significa
pensar. Pouco importa, então, que a Filosofia comece pelo objeto ou pelo sujeito,
pelo ser ou pelo ente, enquanto o pensamento permanecer submetido a esta Imagem
44
DR, p. 190.
88
que já prejulga tudo, tanto a distribuição do objeto e do sujeito quanto do ser e do
ente
45
.
Voltemos aqui e agora a nossa atenção novamente a Heidegger. Se a
filosofia em geral, pelo menos aquela que postula uma imagem dogmática do pensamento,
sempre se volta, de alguma forma, a este âmbito pré-filosófico, como poderia Heidegger –
este que, juntamente com Nietzsche, seria um dos filósofos que tentaram desconstruir esta
filosofia essencialmente platônica – ainda se voltar para um âmbito pré-filosófico?
Claro que não podemos dizer que o âmbito pré-ontológico de Heidegger
seja propriamente este mesmo âmbito pré-filosófico postulado por esta imagem dogmática do
pensamento, mas o que podemos dizer é que Heidegger também se pautou, segundo Deleuze,
em pressupostos implícitos ou subjetivos. Já vimos anteriormente que Heidegger ainda se
prendia numa espécie de subjetividade, através da dobra da linguagem e da percepção e
através do ser-para-a-morte que nos trazia a perspectiva de nossa morte própria como uma
síntese unificadora da temporalidade do Dasein. O que ainda não havíamos comentado é o
signo heideggeriano do ser-com; ao Dasein, além de muitos outros sentidos que não serão
comentados neste trabalho, não está reservado apenas o sentido da dobra, do ser-para-a-
morte e do ser-no-mundo, mas também o sentido do ser-com, que é a forma com que a pre-
sença se depara com o outro.
Ser-com significa, essencial e resumidamente, ser-com-o-outro. O Dasein se
depara com o outro no mundo, ele se vê diante de outros Daseins que também se colocam
num mundo – um mundo que seria em “comum”. Talvez o ser-no-mundo já signifique um
pouco disso, afinal, o Dasein é ser-no-mundo e, enquanto tal, ele é: com as coisas que estão à
mão, que ele manipula tecnicamente; com a sua morte própria, que se coloca como a sua
finitude, ou como aquilo que o designa como temporalidade pura; com os outros Daseins, que
também se encontram neste mundo ôntico; e, por fim, com o próprio Ser, já que é apenas
diante do questionamento de seu próprio Ser que ele se manifesta como a própria
possibilidade ou abertura de mundo.
Por que o ser-com se mostra, em Heidegger, como este âmbito pré-
ontológico?
Um modo mais simples de responder a esta questão é tentar pensar, como já
exposto anteriormente, o ser-com como um âmbito que se projeta a todos os Daseins, ou seja,
45
DR, p. 192.
89
um Dasein que se coloca diante de outro Dasein como tal e não como uma coisa que se
coloca à mão, ou como um outro ente qualquer. Pensar este âmbito desta maneira, remete-nos
a pensar um certo “senso comum” entre ambos os Dasein, já que ambos se mostrariam
portadores de uma “consciência em comum” do mundo em que estão inseridos, ambos se
colocariam como duas formas de abertura de mundo completamente diferentes uma da outra,
com possibilidades diferentes, com visões e perspectivas diferentes, entretanto estariam
ambos enredados num “mundo comum”, num campo de abertura em comum, num horizonte
em comum. Assim, se o ser-com de Heidegger se coloca como a sua compreensão pré-
ontológica é porque se vislumbra nele este sentido de “senso comum”, esta potência de
mostrar, de algum modo, o “Mesmo” num mesmo plano, onde todos os Dasein comungariam:
É verdade que Heidegger conserva o tema de um desejo ou de uma φιλία, de uma
analogia, ou melhor, de uma homologia entre o pensamento e o que existe para ser
pensado. É que ele guarda o primado do Mesmo, apesar de supor que este reúne e
compreende a diferença como tal. Daí as metáforas do dom, que substituem as da
violência. Em todos estes sentidos, Heidegger não renuncia ao que chamamos
anteriormente de pressupostos subjetivos. Como se vê em l’Être et le temps [...], há,
com efeito, uma compreensão pré-ontológica e implícita do ser, se bem que, precisa
Heidegger, o conceito explícito não deva dela derivar
46
.
O “Mesmo” a que Deleuze se refere aqui talvez seja o “Mesmo” do próprio
pressuposto subjetivo, isto é, a perspectiva do “Mesmo” numa unidade pré-ontológica, onde
os pressupostos que formam a “subjetividade pura” e consciente do Dasein se unificam e se
organizam. Isto seria, para Deleuze, a perspectiva do negativo na questão do Ser, já que
Heidegger ainda não postularia a univocidade do Ser, pois se prenderia ainda a uma certa
unidade do “Mesmo”, ou o “Mesmo” enquanto unidade, através de sua compreensão pré-
ontológica e seus pressupostos subjetivos. Destarte, talvez estes pressupostos, como já dito
anteriormente, sintetizem, de algum modo, as duas primeiras acepções do Dasein que
colocávamos anteriormente: o Dasein enquanto dobra e o Dasein enquanto ser-para-a-morte;
colocados aqui num ser-com que abre o próprio campo problemático, campo este onde se
coloca a própria questão ontológica, a pergunta pelo Ser.
Claro que esta explicação, exposta neste pequeno trecho, não seria suficiente
para declamar toda a extensão que o conceito de ser-com quer exprimir, mas ela abrange ao
menos aquilo que se vincula à crítica deleuziana, à compreensão pré-ontológica de Heidegger.
46
DR, p. 210n.
90
Afinal, já que Deleuze critica Heidegger por se prender a estes pressupostos, como ele fugiria
dos mesmos?
Para Deleuze, não haveria verdadeiro começo neste modo de pensar da
filosofia, já que tudo seria, desde sempre, prejulgado de antemão, mesmo sendo num plano
pré-filosófico. Vejamos o que nos diz Deleuze em Diferença e repetição:
Assim, aparecem melhor as condições de uma Filosofia isenta de pressupostos de
qualquer espécie: em vez de se apoiar na Imagem moral do pensamento, ela tomaria
como ponto de partida uma crítica radical da Imagem e dos “postulados” que ela
implica. Ela encontraria sua diferença ou seu verdadeiro começo não num acordo
com a Imagem pré-filosófica, mas numa luta rigorosa contra a Imagem, denunciada
como não-filosófica. Ela encontraria, assim, sua repetição autêntica num
pensamento sem Imagem, mesmo que fosse à custa das maiores destruições, das
maiores desmoralizações, e com uma obstinação da Filosofia que só teria como
aliado o paradoxo, devendo renunciar à forma da representação assim como ao
elemento do senso comum. Como se o pensamento só pudesse começar, e sempre
recomeçar, a pensar ao se libertar da Imagem e dos postulados. É em vão que se
pretende remanejar a doutrina da verdade, se antes de tudo não forem arrolados os
postulados que projetam esta imagem deformadora do pensamento
47
.
O único modo que Deleuze observa para um verdadeiro começo em
filosofia é através de um “pensamento sem imagem”, e aqui voltamos novamente ao
simulacro como questão. Começar em filosofia através de um “pensamento sem imagem” não
quer dizer voltar à Idéia, ou ao Mesmo como modelo. Ao contrário, se nos jogarmos no mais
puro simulacro, resgataremos a imagem como a única forma de podermos pensar. “Pensar
sem imagem” quer dizer justamente pensar sem modelo, pois, ao destruirmos o modelo,
também não haverá mais imagens, e, não havendo mais imagem que copie o modelo, haverá
apenas a pura imanência que se posta através da repetição da diferença, ou da repetição
diferencial. A questão do “pensamento sem imagem”, ou de uma nova forma de pensar a
diferença, pode ser vista através da postulação de um único sentido para o Ser, a univocidade
do Ser, que será tratada, com maior propriedade, no quarto capítulo deste trabalho. Ficaremos
agora unicamente com a questão deleuziana sobre o segundo momento da filosofia da
diferença de Heidegger.
47
DR, p. 193.
91
2.2. Heidegger e o Ser como Negativo do Nada
Se em Ser e tempo Heidegger não deixa margens a uma interpretação do Ser
como positivo, nas obras posteriores, como, por exemplo, Introdução à metafísica, Heidegger,
ao contrário do que se pensava, acaba nos induzindo mais fortemente a uma doutrina negativa
do Ser.
O segundo momento heideggeriano se apresenta, assim, como uma
interpretação mais negativa da diferença e do próprio Ser, já que Heidegger identifica, de
certo modo, o Ser ao não-Ser, àquilo que, por um lado, é Nada, e, por outro, é a mais
completa possibilidade de que tudo seja.
Heidegger, logo no início e em toda a extensão da obra Introdução à
metafísica, se pergunta: “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?”
48
. Sabemos
que foi com Aristóteles que encontramos a primeira distinção entre Ser e ente, entre aquilo
que existe no mundo e entre aquilo que faz com que as coisas existam. É com Heidegger,
contudo, que encontramos uma completa ausência de ontificação do Ser; segundo ele (ao
menos neste período em que os seus comentadores costumam chamar de Segundo Heidegger),
a filosofia, até Nietzsche, se baseou num Ser que, no final das contas, sempre se mostrava ou
era pensado como um outro ente, um ente primordial. Platão pensou a Idéia; Aristóteles, o
Motor Imóvel; a filosofia medieval pensou Deus; Descartes, o Cogito; etc. Nenhum destes
pensadores compreendeu, segundo Heidegger, a verdadeira extensão do problema que se
apresentava sobre o Ser, nenhum deles se perguntou realmente se o Ser que postulava não se
remeteria novamente àquilo que eles mesmos tentavam abandonar à princípio, o plano ôntico.
Perante este problema, Heidegger se volta novamente aos estudos sobre os
pré-socráticos, sobre o conceito de physis e sobre a essência da meta ta physika. Assim, ele
percebe que ela, a metafísica, nesta história da filosofia que se seguiu desde Platão, não
passava de uma “Física”, pois possuiu, desde o início, um limite ontológico que os próprios
filósofos se colocaram: pensar metafisicamente não era entrar propriamente num pensamento
metafísico, pensar metafisicamente era se deparar com este limite, o ente e a sua origem.
Ocorre que pensar através da metafísica, ou inserido na própria questão metafísica, é
ultrapassar este limite, é ultrapassar o pensamento unicamente sobre o ente e se ver diante de
48
HEIDEGGER, Martim. Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. 2. ed. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1978, p. 33. Em diante (Heidegger, 1978).
92
um novo limite
49
. A obra Introdução à metafísica parece se resumir, não como uma breve
explicação e introdução desta questão meramente metafísica (no sentido de “Física”), mas,
como um pensar dentro do horizonte metafísico, um pensar inserido num problema puramente
metafísico; e, inserido neste problema, ela tenta ultrapassar o próprio limite que se apresenta,
o limite essencial da metafísica, o ente. Como vimos, outro limite parece se colocar a partir
desta introdução no cerne do problema metafísico: o Nada.
Antes de adentrarmos esta questão sobre o Nada, outro problema deve ser
aqui analisado. Sabemos de antemão que Heidegger não abandona, neste segundo momento
de sua produção intelectual, a temporalidade como guia para se pensar o problema do Ser (já
que este parece ter sido, por toda a extensão de sua obra, o horizonte de sentido de seu
pensamento), mas que ela ganha uma nova roupagem, ou uma nova visão. A temporalidade é
pensada a partir da diferença ontológica entre Ser e ente, da diferença ontológica entre o
existente e seu Ser. O Dasein, neste segundo momento, parece ser descaracterizado, pelo
próprio Heidegger, como fonte transcendental geradora do horizonte temporal, e o conceito de
acontecimento parece ocupar este lugar. Não seria mais o ser-para-a-morte, impresso no
próprio horizonte do Dasein, que sintetizaria as três fases do tempo, não seria mais a finitude
do Dasein que colocaria o tempo como totalidade numa espécie de síntese temporal, mas o
acontecimento (Ereignis). O acontecimento se revelaria, para o filósofo alemão, como uma
espécie de movimento, de deslocamento do Ser para o ente e do ente para o Nada; o Ser, de
alguma maneira, pode ser dito aqui como Nada, já que ele se oculta quando o ente aparece: o
ente oculta, em sua aparição, o próprio horizonte da síntese temporal, a própria temporalidade.
Se o Ser é aquilo que faz com que todos os entes apareçam, ele mesmo não aparece neste
processo, pois, quando o ente aparece, ele se vela novamente, ele se retira de cena. O Ser,
neste sentido, é o inominável, já que não pode ser encontrado no âmago do ente (este que é o
único plano passível de análise), por ser o próprio horizonte; entretanto, não é o horizonte que
observamos: o horizonte abre o espetáculo dos entes observáveis, mas nunca é visto. O
acontecimento é, de tal modo, o movimento do Ser que tanto se abre como horizonte para que
o ente se dê e permaneça num mundo de luz e de fala quanto para se retirar deste mesmo
49
Esta questão está bem clara e muito bem colocada na obra já citada anteriormente: “A questão, ‘por que há
simplesmente o ente e não antes o Nada?’, caracterizada por nós como sendo a primeira em dignidade, é pois
a questão metafísica fundamental. Metafísica é o nome para designar o centro decisivo e o núcleo de toda a
filosofia. [...] De acordo com a explicação, physis significa o Ser do ente. Quando se trata de investigar peri
physeos, sobre o Ser do ente, então o tratado sobre a physis, a física em sentido antigo, já está além de ta
physika, além do ente. Já está no Ser. A ‘Física’ determina assim desde o princípio a Essencialização e a
História da meta-física. Mesmo na doutrina do Ser como actus purus (S. Tomás de Aquino) ou como conceito
absoluto (Hegel) ou como eterno retorno da mesma Vontade de Potência (Nietzsche), a metafísica permanece
sempre sem oscilações ‘Física’” (Heidegger, 1978, p. 47-8).
93
mundo de luz e de fala; o Ser está ali, como horizonte, mas está oculto para o nosso pensar e
observar
50
.
Pensando desta maneira, podemos perceber que o Ser em Heidegger é,
como dito anteriormente, completamente inominável, já que corresponde, por assim dizer, a
este Nada possibilitador, ou a este Nada como abertura, como horizonte. Há, portanto, um
abismo neste pensamento, pois o próprio Ser se coloca como um “sem fundo”, que não possui
um fundamento específico, já que não pode ser encontrado enquanto modo de pensar,
enquanto forma de pensamento; o pensamento, segundo Heidegger, não consegue seguir
através deste limite, e não podemos ultrapassá-lo, pois tentar dizer o Nada é cair em um
paradoxo, é dizer o próprio não-Ser. Tudo o que podemos fazer é forçar o pensamento,
através de uma linguagem poética, sobre este novo limite que se apresenta, sobre este Nada
que se coloca como condição de que o ente apareça e permaneça.
Há uma outra questão sobre o Ser como Nada que deve ser esclarecida.
Heidegger toma o cuidado de dizer, em suas obras do segundo período, que o Ser não é
negativo, que este “não” do não-Ser não significa negação completa de Ser, senão a pura
possibilidade de que o próprio Ser como existente se dê. Para Heidegger, o “não” do não-Ser
poderia ser nomeado como Deleuze já nos convida a considerá-lo em Diferença e repetição,
como a questão, a interrogação que não se cala, como voz do próprio Ser; esta referência do
filósofo alemão ao Nada e à sua não-postulação de uma univocidade do Ser, entretanto, faz
com que a sua filosofia deste segundo período também se vincule a uma interpretação
negativa do Ser:
Parece que os principais mal-entendidos que Heidegger denunciou como contra-
sensos sobre sua Filosofia, após Ser e tempo e Que é metafísica?, incidiam sobre o
seguinte: o NÃO heideggeriano remetia, não ao negativo no ser, mas ao ser como
diferença; e não à negação, mas à questão. [...] As teses de Heidegger podem assim
50
“O conceito de acontecimento (Ereignis) sintetiza este movimento de desvelamento do Ser que fundamenta
toda coisa e toda verdade humana em um ‘sem fundo’ sombrio e silencioso, em um Ser que é ao mesmo
tempo um Nada, porque aquilo que surge e permanece no ente é também aquilo que se retira nele mesmo,
ficando, para nós, oculto e inominável. [...] Ora, não é difícil reconhecer profundas analogias entre a doutrina
do acontecimento de Heidegger e a de Deleuze. As três tensões temporais do Ereignis: a abertura, o repouso e
a retirada tornam-se, em Deleuze, as três fases temporais pelas quais o Ser abandona seu ‘estado pré-
individual’ para desvelar-se em estados de coisas (o ente), objetos e sujeitos ‘individuados’ onde ele
permanece um certo tempo antes de retirar-se em si mesmo graças à ‘desdiferenciação’ que a morte realiza.
[...] Mas o que se deve principalmente reconhecer é a diferença entre as duas doutrinas. Mesmo em seu
segundo período, a ontologia de Heidegger continua uma ontologia negativa, pois o pensamento, para ele, não
pode ultrapassar as determinações temporais que caracterizam o Ser como acontecimento. Todo o discursso
que tenta pronunciar o acontecimento de outro modo é um forçamento metafísico que encontra não o Ser, mas
o Nada. Deleuze, por seu lado, acha que o pensamento nunca deve designar uma instância de outro modo
inominável.” (Gualandi, 2003, p. 82-3).
94
ser resumidas: 1.º, o não não exprime o negativo, mas a diferença entre o ser e o
ente. [...] 2.º, esta diferença não é “entre...”, no sentido ordinário da palavra. Ela é a
Dobra, Zwiefalt. Ela é constitutiva do ser e da maneira pela qual o ser constitui o
ente no duplo movimento da “clareira” e do “velamento”. [...] 3.º, a diferença
ontológica está em correspondência com a questão. Ela é o ser da questão que se
desenvolve em problemas, balizando campos determinados em relação ao ente. [...]
4.º, assim compreendida, a diferença não é objeto de representação. A representação,
como elemento da metafísica, subordina a diferença à identidade, relacionando-a a
um tertium como centro de uma comparação entre dois termos julgados diferentes (o
ser e o ente). [...] 5.º, portanto, a diferença não se deixa subordinar ao Idêntico ou ao
Igual, mas deve ser pensada no Mesmo e como o Mesmo. [...] Guardamos como
fundamental esta “correspondência” entre diferença e questão; entre a diferença
ontológica e o ser da questão. Pode-se perguntar, todavia, se o próprio Heidegger
não favoreceu os mal-entendidos com sua concepção do “Nada”, com sua maneira
de “barrar” o ser, em vez de colocar entre parêntese o (não) do não-ser. Além disso,
basta opor o mesmo ao Idêntico para pensar a diferença original e arrancá-la das
meditações? Se é verdade que certos comentadores puderam reencontrar ecos
tomistas em Husserl, Heidegger, ao contrário, está do lado de Duns Scot e dá um
novo esplendor à Univocidade do ser. Mas será que ele opera a conversão pela qual
o ser unívoco só deve dizer-se da diferença e, neste sentido, girar em torno do ente?
Concebe ele o ente de tal modo que este seja verdadeiramente subtraído a toda
subordinação à identidade da representação? Não parece, levando-se em conta sua
crítica do eterno retorno nietzschiano
51
.
As cinco teses principais de Heidegger, que Deleuze expôs muito bem neste
trecho, poderiam levá-lo a pensar o Ser como positivo, ou a pensar o Ser como “Idéia
problematizante”; poderiam levá-lo ainda, mais precisamente, a pensar a univocidade do Ser
(um Ser que já se diz como diferença), como ele mesmo tentou postular, para a sua diferença
ontológica. Este entendimento, entretanto, não o deixou pensar sem os parâmetros do
negativo, sem esta sombra que nos assola por quase toda a história da filosofia.
É neste sentido, de que o Ser não pode ser pensado (pois ele se oculta e se
mostra unicamente como Nada) e da tarefa não levada devidamente a cabo da univocidade do
Ser, que fazem com que Deleuze rejeite, em parte, a filosofia heideggeriana. Para ele, pensar
o Ser como puramente positivo é se voltar para uma única voz do Ser, para um único sentido
do Ser e para uma teoria da “Idéia”. Deve, entretanto, esta teoria ser pensada a partir desta
univocidade, a partir do postulado de que o Ser é a mais pura diferença.
A crítica do negativo só é eficaz quando denuncia a indiferença da oposição e da
limitação, denunciando, assim, o elemento conceitual hipotético que conserva
necessariamente um ou outro e mesmo um no outro. Em suma, é a partir da Idéia, do
elemento ideal, diferencial e problemático, que deve ser feita a crítica do negativo. É
a noção de multiplicidade que denuncia, ao mesmo tempo, o Uno e o múltiplo, a
limitação do Uno pelo múltiplo e a oposição do múltiplo ao Uno. É a variedade que
denuncia, ao mesmo tempo, a ordem e a desordem, é o (não)-ser, o ?-ser que
denuncia, ao mesmo tempo, o ser e o não-ser. A cumplicidade do negativo e do
hipotético deve sempre ser desfeita em prol de um liame mais profundo do
51
DR, p. 104-5-6n.
95
problemático com a diferença. A Idéia, com efeito, é feita de relações recíprocas
entre elementos diferenciais, completamente determinados em suas relações, que
não comportam nunca termo negativo nem correlação de negatividade. [...]
Devemos reservar o nome positividade para designar o estatuto da Idéia múltipla ou
a consistência do problemático
52
.
Assim, a “Idéia diferencial”, enquanto um único sentido para o Ser, é o que
Deleuze prega como forma de fugir a esta interpretação do Ser como negativo, pois é somente
ela que poderá nos reservar uma nova forma de pensar a diferença. Para fugir do negativo não
basta unicamente pensar o “não” do não-Ser como problemático, como interrogação de Ser,
como ?-Ser. Também é necessário que esta interpretação venha acompanhada de uma
univocidade. É preciso que o Ser se diga unívoco para que o negativo não seja interpretado na
filosofia da diferença. E mais, é preciso que esta univocidade seja pensada também a partir de
uma “teoria da Idéia”, não uma Idéia como o era em Platão, mas uma Idéia como problema,
como instância problemática que nos traz sempre novos problemas que não dependem
diretamente de suas soluções determinadas. Essa Idéia, como instância problemática, não será
tratada neste trabalho, já que foge ao âmbito da univocidade, este aspecto da nova imagem do
pensamento que aqui tentamos abordar e que será trabalhado nos capítulos que seguirão.
Temos nos detido, até o momento, numa crítica deleuziana a uma certa
imagem do pensamento, imagem dogmática do pensamento, partindo de teorias e filosofias
que não são propriamente de Deleuze, mas que ele mesmo acompanha, desenrola e agencia.
Cremos, contudo, que este percurso nos tenha levado a pensar, de algum modo, como uma
parte da tradição filosófica fez com que nosso pensamento seguisse certos postulados e
pressupostos E fez também com que nos apegássemos a um certo pensamento do Ser de uma
maneira negativa ou, ainda, com que a diferença fosse subordinada à Identidade. Assim, feito
o acompanhamento deste agenciamento crítico de Deleuze, devemos agora nos elevar a uma
superação destes problemas ora levantados Devemos nos ater em seguida, com maior
profundidade, numa teorização mais precisa da univocidade do Ser.
CONCLUSÃO
Neste capítulo tentamos caracterizar a crítica deleuziana ao negativo. Claro
que o negativo pode ser vislumbrado, segundo Deleuze, por quase toda a história da filosofia,
52
DR, p. 286-7.
96
desde Platão até Merleau-Ponty; entretanto, para que este trabalho não acabasse se alongando
unicamente por esta via, já que o seu objetivo é outro, acabamos fazendo um recorte
conceitual, ou seja, selecionamos, entre muitos pensadores, aqueles que, de alguma maneira,
expressam com maior vigor esta negatividade: Hegel e Heidegger. O primeiro, por expressar
o negativo através da contradição e o segundo, através do Dasein e do Nada.
Observamos, inicialmente, em Hegel, através deste agenciamento
deleuziano, o seu vínculo com a “oposição dos predicados” e com a filosofia da
representação; vimos que ele seguiu Aristóteles até encontrar a oposição, mas, para tentar
superá-lo, ele se desliga da contrariedade e postula a contradição como mais perfeita forma de
diferença. Foi com a contradição e com o seu método dialético (tese, antítese e síntese) que
encontramos em Hegel esta perspectiva do negativo, já que, ao introduzir o não-Ser da
antítese na identidade da tese, vislumbramos uma unificação da identidade com a diferença,
portanto, uma vinculação do não-Ser com o próprio Ser. A diferença tanto se vê como
negativo no “não” do não-Ser, como negação de Ser (contradição), quanto a este prender-se à
identidade, pois a diferença da antítese está sempre vinculada à identidade da tese.
Depois, também observamos em Heidegger vários motivos, segundo a
leitura deleuziana, para se interpretar o Ser e a diferença como negativos. Num primeiro
momento do pensamento de Heidegger, o Dasein é visto em uma tripla partição: a dobra, que
ainda se volta a uma interioridade, a uma certa intenção, pois une a fala e o ver, a linguagem e
a percepção numa dobra ontológica do interior com o exterior; o ser-para-a-morte, que nos
traz a perspectiva da finitude como fim, a morte como findar do ser-no-mundo, portanto, uma
temporalidade finita na morte; e o ser-com, que traz o âmbito de uma compreensão pré-
ontológica, uma compreensão que se resume como um certo tipo de “senso comum”, onde
estão colocados os pressupostos subjetivos de Heidegger. Num segundo momento da filosofia
heideggeriana, Deleuze também encontra uma interpretação do Ser como negativo. Quando
Heidegger pensa o acontecimento (Ereignis) como movimento de desvelamento e velamento,
quando o Ser é visto como Nada, ou como aquilo que se oculta quando o ente aparece,
também aí se observa uma certa negatividade do próprio Ser. Ocorre que esta negatividade se
acentua quando Heidegger deixa de estabelecer com maior propriedade a univocidade do Ser,
enquanto diferença expressa.
A crítica de Deleuze ao negativo é, portanto, a nossa segunda acepção do
agenciamento crítico deleuziano que queríamos expressar aqui, já que não basta deixarmos de
pensar através da identidade e da semelhança, pensando a diferença como o negativo do
97
próprio Ser. Para Deleuze, o “não” do não-Ser, antes de ser tratado como negatividade, ou
como negação de Ser, deve ser considerado como a problemática deste, ou o Ser como
problemático sempre inserido numa filosofia da Idéia (Idéia aqui entendida como uma
unidade problematizante através da univocidade do Ser). Assim, nos capítulos que se
seguirão, nos encontraremos com estas questões, ou com os agenciamentos deleuzianos
acerca da univocidade e também com a filosofia unívoca de Deleuze.
CAPÍTULO III
“DOS MOMENTOS DO UNÍVOCO”
99
INTRODUÇÃO
O Ser possui um só e único sentido; esta é a proposição ontológica
“máxima” de Deleuze. Na história da filosofia ele aponta como a grande tradição filosófica
empregou seus esforços em demonstrar que o Ser deve ser pensado como equívoco ou
análogo; esta preocupação vai contra o caminho traçado por nosso filósofo. O Ser possui uma
só voz apesar de grande parte da história da filosofia dizer o contrário e, embora ela tenha se
preocupado com o análogo e o equívoco, alguns filósofos, apontados por Deleuze, trazem à
tona a discussão acerca do unívoco. A univocidade pode ser vislumbrada já em Parmênides,
através de sua postulação do Ser como Uno e infinito e de sua identificação ao pensamento; e
também em Plotino, que pensava uma certa forma de imanência, ainda que subordinada a um
princípio emanativo. É, no entanto, com três outros grandes filósofos que Deleuze irá
dialogar, e deste diálogo brotará a sua própria interpretação do Ser como unívoco: Scott,
Espinosa e Nietzsche. Apesar de nosso trabalho ser pautado no desvelar das linhas da
univocidade segundo Deleuze, nos ocupamos inicialmente, no primeiro capítulo, em resgatar
o pensamento deleuziano acerca de certa região do pensamento na qual o Ser foi pensado a
partir de um fundamento primeiro
1
. Esta região do pensamento foi assim denominada por
nosso autor: imagem dogmática do pensamento. Tal imagem, apesar de suas variações e
nuances, não conseguiu expressar (ou não quis expressar) esta univocidade, já que se
caracterizou e se baseou em quatro principais pilares do pensamento: a identidade, a
semelhança, a analogia e a oposição
2
. Estes quatro conceitos levaram a filosofia a caminhar
por uma linha que não propagava a univocidade propriamente, mas o “fundamento” ou a
“fundamentação”.
O fundamento traz à tona uma outra discussão que já vínhamos trabalhando
no decorrer dos capítulos anteriores: a transcendência. O Ser, pensado como fundamento, é
bruscamente expulso do mundo – entendido aqui no sentido de um mundo imanente, ou
melhor, um plano de existência corporal –, e jogado em um plano eterno onde o devir e o
1
Claro que Deleuze nos adverte sobre um outro aspecto (não presente no decorrer de todo este trabalho) do
“fundamento”, ou da “fundamentação”, mas ainda presente na tradição filosófica majoritária (ou mais
propriamente na tradição metafísica), o aspecto do Sujeito da modernidade clássica. Este aspecto, todavia, não
foi e não será abordado aqui por se remeter a um outro movimento desta pesquisa que acabou sendo deixado de
lado no momento (mas que será retomado numa pesquisa futura): a questão do campo transcendental sem
sujeito.
2
Trabalhamos estes quatro pilares centrais da filosofia da representação no início deste trabalho, quando
falávamos também das origens, segundo a interpretação deleuziana, da representação e da transcendência. Para
maiores detalhes, cf. o ponto 3 do capítulo I.
100
tempo não podem perturbá-lo. O Ser, assim resguardado, funda, a partir deste plano
transcendente, toda uma realidade ôntica e ontológica para os seres sempre presentes e
enredados no tempo e no devir; ele, desde este lugar atemporal onde se encontra, faz com que
o mundo seja reapresentado num plano temporal, onde funda a representação. O mundo passa
a ser uma representação de um plano eterno, uma imagem de um outro mundo, um mundo
transcendente. Desta maneira, pensar através da identidade é pensar que o Ser é idêntico a si
mesmo e que, portanto, não pode conter a carga ontológica de tudo aquilo que difere
temporalmente a cada instante (o Ser é transcendente); pensar a semelhança é dizer que tudo
aquilo que difere, os entes, se assemelha ao Ser eterno, destarte, os modos de ser são apenas
imagens da transcendência; pensar analogamente é arrazoar que o Ser fundamenta e perpassa
por toda a série de diferenças em que as imagens dele se apresentam, assim, os entes e as suas
diferenças se mostram como tais apenas porque o Ser os percorre e os funda – o Ser, sabemos,
se mostra de novo como transcendente; pensar a oposição é raciocinar sobre a diferença, mas
uma diferença sempre fundada pela identidade do Ser eterno, logo a diferença é negativa e se
mostra sempre subordinada à identidade (o Ser, enfim, é novamente transcendente). Como
pudemos observar, o Ser sempre se apresenta, em todas as quatro instâncias ontológicas desta
imagem dogmática do pensamento, como transcendente. Conseqüentemente, não pode haver
uma voz única dele nesta imagem do pensamento, já que, se houvesse, ele seria dito da
diferença e não da identidade. Pensar o Ser dogmaticamente é pensá-lo não como diferença
imanente, mas como unidade transcendente.
Deleuze, de tal modo, tenta se deslocar desta vereda que postula o
pensamento através de uma imagem, ou melhor, que postula uma imagem do pensamento. A
sua filosofia se mostra como um pensamento totalmente sem imagem, ou sem o postulado
dogmático da mesma. Mostramos, nos capítulos precedentes, com certa demora, alguns dos
pontos que o levaram a esta maneira de pensar, ou a esta forma de filosofar. Para nós,
entretanto, a nossa pesquisa só poderá ser dita completa quando realmente “encontrarmos”
Deleuze através de um de seus conceitos mais densos. Com efeito, ainda não nos detivemos
completamente no ponto que inicialmente nos propusemos: a univocidade do Ser. Por isso,
este capítulo terá como objetivo mostrar os passos deleuzianos que postulam e organizam a
univocidade, ou esta voz única do Ser. Para tanto, voltar-nos-emos agora àquilo que Deleuze
chama de “momentos do unívoco”; estes momentos refletem com maior propriedade como se
deu a busca pela compreensão deste sentido único. Tais momentos se expressam com maior
vigor, como dito acima, em três pensadores: Jonh Duns Scott, Baruch de Espinosa e Friedrich
101
Willian Nietzsche. Deste modo, Deleuze, neste agenciamento, seria um quarto momento do
unívoco.
Este capítulo tenta fazer um breve resgate, através desta leitura deleuziana,
destes três primeiros momentos da univocidade, para que então possamos emergir na
superfície do pensamento unívoco de Deleuze.
DOS TRÊS MOMENTOS DO UNÍVOCO – Duns Scott, Espinosa e
Nietzsche
Apresentação
O percorrer destes três momentos da univocidade – momentos estes que se
mostram cravados na própria história da filosofia, mas não como pensamentos da tradição
filosófica metafísica, e sim como momentos exclusos desta – nos guiará e nos propiciará um
ambiente salutar para pensar o Ser como imanente, ou como imanência pura; em
contraposição à transcendência da tradição metafísica. A imanência se opõe à transcendência
porque não vincula o Ser a um plano exterior. Pelo contrário, a imanência vincula o Ser, que
possui um sentido único, aos entes. Mas antes que ele seja pensado como ente, ele é pensado
como aquilo que proporciona a multiplicidade e a pluralidade de entes. O Ser só possui um
sentido em Deleuze (ele é unívoco) porque se diz da diferença que constitui os entes.
Se, por um lado, a transcendência postulava a imagem como a forma mesma
de se dar dos entes e do mundo temporal, enquanto ao Ser estaria reservado um espaço
atemporal, ou eterno; a imanência, por outro lado, resgata a diferença “esquecida”, já que
coloca o Ser no mundo, ou no plano da mudança, do fluxo, do tempo. Como, porém, já havia
indagado Heidegger: – Estando o Ser no mundo dos entes, não haveria o perigo de confundi-
lo com um outro ente? Claro que deve haver alguns cuidados na interpretação deste ambiente
imanente do Ser: tudo é ente, corpo ou coisa, mas o Ser mesmo pertence a outro registro; ele
se constitui como a instância que permite o aparecimento do ente sem deixar de ser imanente.
É a própria maneira de o mundo acontecer, é a forma de o mundo se dar, entretanto, ele não se
encontra fora do mundo, já que não é eterno e atemporal. Tal instância é a diferença que cada
ente, coisa ou estado de coisas manifesta a cada instante. Já que o Ser se diz de uma só forma,
102
ele possui uma só voz. Dizer, portanto, que o Ser é unívoco é dizer que ele se diz em um
único sentido para todas as coisas que diferem no tempo.
Com efeito, o essencial na univocidade não é que o Ser se diga num único sentido. É
que ele se diga num único sentido de todas as suas diferenças individuantes ou
modalidades intrínsecas. O Ser é o mesmo para todas estas modalidades, mas estas
modalidades não são as mesmas. Ele é “igual” para todas, mas elas mesmas não são
iguais. Ele se diz num só sentido de todas, mas elas mesmas não têm o mesmo
sentido. É da essência do ser unívoco reportar-se a diferenças individuantes, mas
estas diferenças não têm a mesma essência e não variam a essência do ser – como o
branco, que se reporta a intensidades diversas, mas permanece essencialmente o
mesmo branco. Não há duas “vias”, como se acreditou no poema de Parmênides,
mas uma só “voz” do Ser, que se reporta a todos os seus modos, os mais diversos, os
mais variados, os mais diferenciados. O Ser se diz num único sentido de tudo aquilo
de que ele se diz, mas aquilo de que ele se diz difere: ele se diz da própria
diferença
3
.
Se o Ser se diz da diferença e não da identidade, ele deve conter em si
mesmo, ou na sua “natureza”, toda a potência de ser outro e diferente. Há uma dinâmica do
Ser para o ente, onde o ente é a expressão do Ser que se expressa como devir outro em um
mesmo plano, não em planos diversos. É o que parece ocorrer com estes três momentos do
unívoco que Deleuze destaca: Scott, Espinosa e Nietzsche. O primeiro, por não pensar mais
duas instâncias separadas ontologicamente: Deus e suas criaturas, o infinito e o finito, etc.;
mas por reportá-las a uma única instância: o Ser neutro. O segundo, por postular o Ser como
voz expressiva, ou melhor, como única voz expressiva: o Ser (substância) se expressa em seus
atributos e seus modos. E o terceiro, por possibilitar uma nova significação, a do eterno-
retorno e por imputá-lo à vontade de poder: o Ser se expressa através do eterno-retorno da
vontade de poder, pois ele é a vontade de retorno eterno de uma potência que é sempre outra;
em um único termo: eterno-retorno-da-diferença.
Assim composto este quadro, vejamos como a interpretação deleuziana
desdobra cada um destes três momentos do Ser unívoco.
1. Duns Scott e o Ser Neutro como Ser Unívoco
Duns Scott, segundo Deleuze, seria o primeiro a postular, com mais clareza,
a univocidade do Ser. Podemos encontrar três questões fecundas que teriam levado Deleuze a
pensar deste modo quanto à filosofia do doutor sutil: a primeira se referiria à tentativa de
3
DR, p. 66-7.
103
Scott em dividir a ontologia, ou filosofia, da teologia; a segunda se remeteria à crítica scottista
à analogia do Ser, visualizado com maior intensidade em Tomás de Aquino; e a terceira, ao
modo como Scott concebeu o próprio Ser. O doutor sutil não tentou pensá-lo como uma
instância análoga, ou como um modelo por trás das séries acidentais às quais as coisas
deveriam se reportar, mas como uma instância neutra que se voltaria para a diferença, em seu
sentido positivo
4
, através de duas distinções: a distinção formal e a distinção modal. Antes de
nos determos nestas duas distinções, deveremos abordar, porém, com maior precisão, estas
três questões expostas acima.
1.1. Das Três Questões que Fazem de Duns Scott um Legítimo
Representante da Univocidade do Ser
O pensamento cristão, desde seu início, se questionou sobre a relação entre a
filosofia e a teologia, mas pouco se fez para distinguir estas duas disciplinas. Tanto é que, na
escolástica, não poderíamos distingui-las precisamente. Por exemplo, Tomás de Aquino,
talvez o maior representante do pensamento cristão, ao postular que toda a coisa finita e
acidental deveria necessariamente derivar ou depender de uma instância infinita e
ontologicamente primeira e originária (Deus), fez com que todo o pensamento fosse visto
como uma revelação divina. A submissão da filosofia à teologia não deixou espaço para que a
ontologia
5
fosse vista então como uma matéria separada, independente da discussão e da fé
em um Deus. Toda a filosofia (ontologia), desta forma, era um pensamento acerca da essência
divina e de suas revelações, isto é, era sempre um discorrer sobre uma essência (Deus) e seus
acidentes (pensamentos e/ou objetos).
Pergunta-se: – Como Duns Scott se afastou desta discussão e levou o Ser a
um patamar em que não se equiparava mais a Deus propriamente? Scott abandona uma certa
configuração do pensamento escolástico – e com isso também se afasta do comentador árabe
de Aristóteles: Averróis – da analogia do Ser, e postula uma nova maneira de pensá-lo: o Ser
4
Diferença no sentido positivo deve ser entendida aqui como uma diferença que não é um “nada puro”, ou um
não-Ser completo, como o foi em Hegel, mas como um não-Ser que é a questão do Ser e não a sua negação
pura.
5
Devemos ter em mente aqui que a questão é pela metafísica e não propriamente pela ontologia, mas utilizamos
ontologia para expressar a nossa preocupação pelo Ser não mais visto de um modo a resgatar a representação e
a transcendência; o ponto que queremos ressaltar é que tanto a ontologia quanto a metafísica se diziam na
perspectiva da pergunta pelo Ser. Assim, devemos entender que a disciplina que se questionava pelo Ser não
tinha um lugar específico, já que a teologia abarcava esta questão de um modo geral, fazendo com que, ao nos
perguntarmos pelo Ser, nos perguntássemos por Deus e não por uma instância diferente dele.
104
neutro, que não se equipara nem à substância (Deus) e nem aos acidentes (coisas). Pensar o
Ser enquanto neutro e separado desta dupla conceitual (substância/acidente), nos leva a
separar definitivamente a filosofia da teologia, e com isso destacar a ontologia como uma
disciplina independente
6
. Scott, assim, parece colocar Aristóteles contra si mesmo para que
pudesse levar a cabo o que o próprio estagirita havia se proposto: pensar o ser enquanto ser.
O doutor sutil, ao abandonar o comentador Averróis (talvez por este ser tomado como a base
de interpretação aristotélica da escolástica
7
), referencia algumas interpretações de Avicena
sobre Aristóteles, principalmente na distinção que este faz sobre os três tipos ou estados da
essência. Sendo que o primeiro estado se reportaria ao universal ou geral e o segundo ao
singular ou particular, mas a essência mesma não estaria em nenhum desses dois estados, e
sim no terceiro, que não seria nem geral e nem particular, portanto, indiferente a ambos.
Deleuze também parece reconhecer a importância de Avicena nesta distinção dos estados da
essência em sua obra Lógica do sentido:
O filósofo Avicena distinguia três estados da essência: universal com relação ao
intelecto que a pensa em geral; singular com relação às coisas particulares em que se
encarna. Mas nenhum destes dois estados é a essência mesma: Animal não é nada
além de animal, animal non est nisi animal tantum, indiferente tanto ao universal
como ao singular, tanto ao particular como ao geral
8
.
Deleuze, por sinal, acrescenta, nesta obra, que o terceiro estado da essência
seria para ele algo que expressaria realmente um âmbito puramente transcendental aos outros
dois estados. Transcendental no sentido de que não seria nem uma substância, um Ser
Supremo (Deus), e nem os seus acidentes, as suas revelações (coisas e estados de coisas), mas
seria aquilo que permeia o universal, enquanto uma identidade latente, e o singular, enquanto
multiplicidade manifesta
9
. O terceiro estado da essência seria o próprio sentido
(acontecimento):
6
“[...] Deus não é sujeito da metafísica [...]”. [SCOTT, Duns. Reportata parisiensia. In: Duns Scott. Trad. Carlos
Arthur Nascimento e Raimundo Vier. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 343. Em diante (Scott, 1979)].
7
Para conferir esta afirmação, verificar a obra já citada, nos capítulos anteriores, de Jose Luis Pardo, mais
especificamente a página 86, onde o mesmo comenta acerca do pensamento de Duns Scott na obra deleuziana.
8
LS, p. 37.
9
O termo transcendental é expresso aqui no sentido propriamente deleuziano que, ao resgatar a filosofia estóica
acerca do acontecimento e do sentido, acaba postulando estes dois como uma única instância transcendental. A
questão do sentido como acontecimento, entretanto, será trabalhada no capítulo seguinte, onde nos
aprofundaremos no quarto momento da univocidade: a teoria deleuziana sobre o Ser como diferença. O
transcendental não fará parte de nossa pesquisa neste trabalho, embora o sentido-acontecimento possa ser
pensado como tal.
105
O primeiro estado da essência é a essência como significada pela proposição, na
ordem do conceito e das implicações de conceito. O segundo estado é a essência
enquanto designada pela proposição nas coisas particulares em que se empenha. Mas
o terceiro é a essência como sentido, a essência como expressa: sempre nesta secura,
animal tantum, esta esterilidade ou esta neutralidade esplêndidas. Indiferente ao
universal e ao singular, ao geral e ao particular, ao pessoal e ao coletivo, mas
também à afirmação e à negação etc. Em suma: indiferente a todos os opostos
10
.
Não há dualidade ou oposição no sentido, ou no ser enquanto ser. Pensar o
Ser como esta instância puramente neutra é, portanto, postular novamente um lugar para a
filosofia, ou para a ontologia. É separá-la dos conteúdos e gestos próprios da teologia. A
ontologia se mostra como a ciência que busca o ser enquanto ser e nada mais além disso; o
Ser como um conceito que não engloba nem a identidade e muito menos a pura
multiplicidade, mas que, no entanto, se mostra como o próprio sentido da identidade e da
multiplicidade.
Segundo Deleuze, quando Duns Scott percebeu esta questão elaborada por
Avicena, não pôde deixar de exaltá-la e colocá-la no centro de toda a sua crítica ao
pensamento escolástico de cunho aristotélico. Isto coloca em questão não só a analogia do
Ser, mas também a tese aristotélica da equivocidade. O Ser não pode mais ser dito de várias
maneiras, já que recairíamos em um certo tipo de conflito e até mesmo de oposição: o Ser dito
como substância e como os seus acidentes, é contraditório, pois ora é substância, ora é
acidente. E, mesmo que a analogia diga que toda a série de acidentes seja organizada pela
substância latente em cada termo e que cada termo se remeta à substância, ainda assim, não
deixa de remeter o Ser à mudança, e de colocá-lo como contraditório em si mesmo, ou mesmo
de colocá-locomo negativo, já que o Ser enquanto acidente nega, de alguma forma, o Ser
enquanto substância. Por isso, pensar o Ser em si mesmo, como aquilo que não é nem
substância e nem acidente, nem universalidade e nem particularidade, é pensá-lo como esta
instância puramente neutra que não remete a nada, mas que é a própria possibilidade de que
esta dualidade se organize. Isto é, o Ser neutro pode não se remeter a nada do que se diz, mas
tudo aquilo que se diz se remete a ele. O geral e o individual se remetem a este Ser que é
sempre voz, que é sempre expressão de tudo. Este é o principal motivo pelo qual a escolástica
não poderia postular o Ser como neutro, já que, se assim o fizesse, demandaria pensar que o
próprio Deus é uma criação dele e não o próprio Ser.
Destarte, as três questões se interligam. Uma questão não pode ser separada
da outra, já que a postulação de um Ser neutro faz com que a analogia seja, em certo sentido,
10
LS, p. 37.
106
desconstruída e, ao mesmo tempo, encontra o lugar da filosofia, enquanto ontologia, como um
pensamento acerca do ser enquanto ser. Não há dualidade ou oposição neste caso. Há apenas
uma neutralidade da essência, ou uma essência neutra, que não se encontra nem no universal
divino da escolástica e nem na singularidade particular das ciências específicas. Ao retomar
Duns Scott, Deleuze coloca novamente em sua voz o tom sempre questionador que quebra
com as barreiras impostas pela grande maioria da tradição filosófica, neste caso específico: o
dogmatismo escolástico, ou a analogia do Ser; que sempre requer uma equivocidade anterior
que a legitime e não uma univocidade, uma única voz do Ser, ou melhor, como chamou
Aristóteles e como Scott tentou resgatar – colocando o próprio estagirita contra si mesmo –, a
voz do ser enquanto ser.
1.2. Sobre as Duas Distinções em Scott: Formal e Modal – Ou sobre o
Ser Neutro como Ser Unívoco
Vimos, acima, que Duns Scott, ao resgatar o terceiro estado da essência de
Avicena, resgata também o pensamento do ser enquanto ser, ou do lugar mesmo da filosofia
(ontologia) como disciplina distinta da teologia. Ocorre que postular a neutralidade do Ser
levou Scott não só a separar a teologia da filosofia (ontologia), mas também a superar a
analogia do Ser e a proclamar uma via “menor”, não tão transitada e apreciada pela história da
filosofia: a univocidade do Ser
11
.
Deste modo, para o doutor sutil, há dois problemas específicos: primeiro, a
questão de pensar o Ser como um dado absoluto que nos levaria a confundir a ontologia com a
teologia, ou seja, voltar a postular a analogia como a forma de pensar o próprio Ser,
subordinando a filosofia à revelação divina, ou ao discurso teológico; segundo, o problema de
se pensar a ontologia através de dados acidentais ou particulares, que seria o mesmo que
postulá-la como uma ciência específica e particular, e não mais como uma ciência que busca
uma instância que não é simplesmente particular e específica. Isto o fez refletir acerca do
postulado de Avicena em torno do terceiro estado da essência. É partindo desta reflexão que
Scott elabora a noção de Ser enquanto neutro, como uma instância puramente unívoca e não
11
“[...] nada se conheceria das partes essenciais da subsncia, a não ser que o ser seja algo de unívoco, comum a
elas e aos acidentes” [SCOTT, Duns. Opus oxoniense. In: Duns Scott. Trad. Carlos Arthur Nascimento e
Raimundo Vier. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 342. Em diante (Scott, 1979)]. “Portanto, em resumo, o
ser é unívoco em relação a tudo” (Scott, 1979, p. 342).
107
mais equívoca como em Aristóteles, ou análoga como na escolástica. O Ser neutro diz dos
outros estados essenciais, isto é, ele é voz, ele é a expressão de tudo aquilo de que ele se diz.
Só há um sentido para todo o conjunto do existente: o Ser; mas ele não comporta uma
configuração determinada, ele apenas é, na medida em que expressa o seu Ser. Cada coisa,
cada pensamento ou conceito é dito pelo Ser, que se diz de uma só maneira, pois ele é a
instância pura que difere, ele é a diferença em si mesma.
No Opus oxoniense, o maior livro de ontologia pura, o ser é pensado como unívoco,
mas o ser unívoco é pensado como neutro, neuter, indiferente ao infinito e ao finito,
ao singular e ao universal, ao criado e ao incriado. Duns Scott merece, pois, o nome
de “doutor sutil”, porque seu olhar discerne o ser aquém do entrecruzamento do
universal e do singular. Para neutralizar as forças da analogia do juízo, ele toma a
dianteira e neutraliza antes de tudo o ser num conceito abstrato. Eis por que ele
somente pensou o ser unívoco
12
.
Ainda resta, contudo, uma questão: pensar o Ser como aquilo que difere,
como a expressão de tudo aquilo que é e que existe não é recair numa espécie de panteísmo?
Assim seria se o Ser neutro fosse pensado como uma positividade ou uma negatividade moral
ou gnosiológica (um deus bondoso ou um “gênio maligno”, para utilizar a expressão
cartesiana), o que não ocorre. Ele é, como dito até agora, uma instância puramente neutra, que
não se vincula nem a Deus e nem às suas revelações. O Ser é unívoco porque se diz da
neutralidade. Só há um sentido, uma voz para o Ser em Scott, e este sentido é a neutralidade,
mas esta neutralidade se desdobra em diversos atributos e modos que farão com que ele se
diga também de uma forma positiva ou negativa.
Vê-se o inimigo que ele [Duns Scott] se esforça por evitar, em conformidade com as
exigências do cristianismo: o panteísmo, em que ele cairia se o ser comum não fosse
neutro. Todavia, ele soube definir dois tipos de distinção que reportavam à diferença
este ser neutro indiferente
13
.
Se é verdade que a distinção em geral reporta o ser à diferença, a distinção formal e
a distinção modal são os dois tipos sob os quais o ser unívoco, em si mesmo, por si
mesmo, se reporta à diferença
14
.
Aqui adentramos nas distinções que o doutor sutil nos convida a refletir: a
distinção formal e a distinção modal. Ambas reportariam, como nos disse Deleuze acima, o
Ser neutro à diferença, ou melhor, tais distinções nos fariam pensar o Ser como unívoco sem
12
DR, p. 71.
13
DR, p. 71, grifo nosso.
14
DR, p. 72.
108
perder de vista a multiplicidade que ele implica. O Ser neutro se diz como diferença, pois é a
expressão de tudo aquilo que é dito, ou de todas as coisas de que se pode dizer.
1.2.1. A Distinção Formal – Univocidade e Atributos
A primeira distinção apontada por Scott – e recortada de modo original pela
interpretação deleuziana – é a distinção formal. Esta distinção não deixa que o Ser neutro se
multiplique e se esfacele em diversos outros sentidos, como na equivocidade aristotélica e na
analogia tomista, onde o Ser, como já indicamos, se diz de várias maneiras, pelo menos de
duas: substância e acidentes. A distinção formal não rompe com a univocidade, pois ele
continua sendo dito de uma única forma, no entanto os atributos são diversos, “[...] todos
dizem ‘o mesmo’ por caminhos diferentes”
15
; isto é, todos os atributos dizem o “mesmo”,
mas de formas diversas, diferentes. Dizer que os atributos possuem formas diferentes não
muda em nada daquilo que o Ser mesmo é ou, melhor, não muda em nada a sua voz, a sua
maneira de ser dito. Ele continua tendo um único sentido, e o que os seus atributos fazem é
dizê-lo sempre da mesma maneira, mas de formas, ou caminhos, que não são necessariamente
os mesmos. Assim, esta distinção é uma distinção real, que ocorre dentro do Ser unívoco, mas
que não o exporta, não o coloca como outro fora de si mesmo, mas sempre no seu interior,
portanto, podemos distinguir os atributos e a instância ontológica em que eles se inserem.
A distinção formal, com efeito, é uma distinção real, pois é fundada no ser ou na
coisa, mas não é necessariamente uma distinção numérica, porque se estabelece
entre essências ou sentidos, entre “razões formais” que podem deixar subsistir a
unidade do sujeito a que são distribuídas. Assim, não só a univocidade do ser (em
relação a Deus e às criaturas) se prolonga na univocidade dos “atributos”, mas, sob a
condição de sua infinitude, Deus pode possuir estes atributos unívocos formalmente
distintos sem nada perder de sua unidade
16
.
A distinção formal é uma distinção real, porque expressa as diferentes camadas de
realidade que formam ou constituem um ser. Nesse sentido é chamada formalis a
parte rei ou actualis ex natura rei. Mas é um mínimo de distinção real, porque as
duas coisidades realmente distintas se coordenam e compõem um ente único. Real e,
portanto, não numérico, tal é o estatuto da distinção formal. Assim, deve
reconhecer-se que, no finito, duas coisidades, como animal e racional, não se
comunicam senão através do terceiro termo com o qual são idênticas. Mas não é
15
Pardo, 1992, p. 87.
16
DR, p. 71
109
assim com o infinito. Dois atributos levados ao infinito serão distintos formalmente,
sendo, ao mesmo tempo, ontologicamente idênticos
17
.
A distinção formal, portanto, faz com que o Ser não possa ser dito de outra
forma que não seja si mesmo, não deixa que o Ser seja dito de várias maneiras. Os atributos,
sim, dizem a diferença, mas apenas formalmente, já que sempre estão dizendo o mesmo
ontologicamente.
Há, em Scott, uma outra distinção que faz com que os atributos expressem a
variedade de individualidades existentes: a distinção modal.
1.2.2. A Distinção Modal – Intensidade e Multiplicidade
A distinção modal reivindica a diferença intensiva das individualidades, ou
seja, cada atributo, apesar de dizer sempre o mesmo com relação ao Ser, desdobra-se em
diferenças intensivas, ou graus intensivos, que formam as singularidades existentes. Cada
individualidade é uma instância singular, diferente e única, no entanto elas se comunicam com
o Ser unívoco através dos atributos. Os modos intensivos não mudam a essência neutra e
primeira, mas atualizam os seus atributos de modo que eles sempre sigam caminhos diversos,
contanto que sigam tais caminhos com a mesma voz em curso.
[...] a distinção modal, estabelece-se entre o ser ou os atributos, por um lado, e, por
outro, as variações intensivas de que eles são capazes. Estas variações, como os
graus do branco, são modalidades individuantes das quais o infinito e o finito
constituem precisamente as intensidades singulares. Do ponto de vista de sua própria
neutralidade, o ser unívoco não implica, pois, somente formas qualitativas ou
atributos distintos, eles mesmos unívocos, mas se reporta e os reporta a fatores
intensivos ou graus individuantes que variam seu modo sem modificar-lhe a essência
enquanto ser
18
.
Deleuze resgata um exemplo de Duns Scott, na obra Spinoza e o problema
da expressão
19
, para nos esclarecer melhor a questão dos modos intensivos:
[...] a brancura, diz [Scott], tem intensidades variáveis; estas não se agregam à
brancura como uma coisa ou outra, como uma figura se agrega à muralha sobre a
qual é colocada; os graus de intensidade são determinações intrínsecas, modos
17
SPE, p. 57-8. Todas as traduções do espanhol de Spinoza y el problema de la expresión são nossas.
18
DR, p. 71-2.
19
Tese apresentada em 1969, juntamente com Diferença e repetição, para a obtenção de seu doutorado.
110
intrínsecos da brancura, que permanece univocamente a mesma, seja qual for a
modalidade a qual seja considerada
20
.
O branco, deste modo, não é outra coisa que branco; porém seus atributos
são atualizados através de seus modos intensivos para que uma dada singularidade do branco
seja mais clara ou mais escura. Não há como acrescentar uma diferença intensiva a uma
essência primordial, apenas inserir a diferença através de modos intensos que mudem
formalmente os atributos de uma essência
21
. O que Deleuze parece nos dizer é, contudo, que
não há essência, apenas os modos intensivos que formam a individualidade de cada coisa, no
exemplo as diversas individualidades do branco. A essência não seria nada mais do que um
conceito abstrato, uma neutralidade que só pode ser vislumbrada através dos modos intensos;
ou seja, o branco nada mais é que um conceito sem presença concreta, e ele só pode se
concretizar através das suas diversas individuações, através das diversas intensidades de
branco que podemos perceber.
Assim, a distinção modal não é outra coisa a não ser a diferença intensiva
que se instaura nos atributos, já que estes também são unívocos – pois dizem sempre “o
mesmo” (dizem sempre o Ser neutro) –, fazendo-os sempre caminhar por estradas não
percorridas, por singularidades individuais, porém, sem perder a univocidade.
1.3. Espinosa e Scott – Semelhanças e Influências
Estas duas distinções fazem com que o Ser unívoco se comunique com a
diferença, já que não mudam o sentido único do Ser, mas fazem com que o mesmo seja
atualizado sempre de formas e modos intensivos diversos. Segundo Deleuze, estas duas
distinções também estão explícitas em Espinosa, já que este restaura, de algum modo, a
distinção formal como atributos da substância única, e a distinção modal como os modos
intensos em que estes atributos se desenrolam.
20
SPE, p. 189, grifo nosso.
21
“Os graus de pura intensidade podem variar sem que a essência seja modificada em coisa alguma, dado que
esta se refere, univocamente, ao ser. De acordo com o célebre exemplo de Duns Scot, os graus de brancura
(de intensidade do branco) não são acrescentados ao branco como algo que dele difere. As intensidades do
branco constituem a individualidade do branco, são o branco atualizado. Não se acrescenta um grau de
intensidade a uma essência, que, como tal, é primeira, mas antes atualiza-se um atributo através de um modo
intensivo” (Craia, 2002, p. 72).
111
Ainda segundo nosso filósofo, esta influência de Scott sobre Espinosa
parece não ter sido uma influência direta, já que era improvável que Espinosa tivesse lido
alguma obra de Scott. Talvez estas questões tenham chegado a Espinosa através de Juan de
Prado, que certamente tinha um grande conhecimento das obras de Duns Scott
22
.
Deixando esta questão mais histórica de lado (não é nosso intuito aqui
resgatá-la, mas apenas ressaltar a existência desta influência), cremos que, mesmo assim,
podemos notar muitas semelhanças de Espinosa com a teoria scottista. Espinosa é, portanto,
para Deleuze, o segundo momento da univocidade do Ser.
2. Espinosa e a Voz Expressiva do Ser
Espinosa, como vimos acima, parece receber algumas influências, mesmo
que indiretamente, de Duns Scott; mas, ao mesmo tempo em que exalta algumas das teorias
scottistas, também vai contra a principal delas: o Ser neutro. Para Espinosa, o Ser não é mais
neutro (indiferente), e sim um objeto de afirmação, uma substância universal e única que se
expressa em seus atributos e seus modos. É esta afirmação, para Deleuze, que faz de Espinosa
o segundo representante da univocidade do Ser.
Com o segundo momento, Espinosa opera um progresso considerável. Em vez de
pensar o ser unívoco como neutro ou indiferente, faz dele um objeto de afirmação
pura. O ser unívoco se confunde com a substância única, universal e infinita: é posto
como Deus sive Natura
23
.
Espinosa, assim como Scott, também empreendeu os seus esforços para
combater a analogia, pois era ela que trazia a equivocidade novamente em discussão, no
entanto o seu principal adversário não era mais Tomás de Aquino, mas Descartes, aquele que
resgatou, em certo aspecto, a analogia escolástica através da distinção entre os dois tipos de
substância.
[...] a luta que Espinosa empreende contra Descartes não é sem relação com aquela
que Duns Scott conduzia contra São Tomás. Contra a teoria cartesiana das
substâncias, totalmente penetrada de analogia, contra a concepção cartesiana das
distinções, que mistura estreitamente o ontológico, o formal e o numérico
22
Cf. nota 28 do capítulo III de Spinoza y el problema de la expresión.
23
DR, p. 72.
112
(substância, qualidade e quantidade) – Espinosa organiza uma admirável repartição
da substância, dos atributos e dos modos
24
.
A repartição da substância em seu próprio interior é o segredo de Espinosa
para driblar a analogia e a equivocidade, já que interioriza a diferença, mas, ao mesmo tempo,
faz dela a única voz da substância. Assim, a expressão desta, a voz da substância, se resume
em seus atributos e seus modos; são eles que se reportam à diferença, já que os atributos
trazem em si uma distinção real, portanto formal e não numérica, e os modos uma distinção
numérica, modal e individuante.
Desde as primeiras páginas da Ética, ele defende que as distinções reais nunca são
numéricas, mas apenas formais, isto é, qualitativas ou essenciais (atributos
essenciais da substância única); e, inversamente, que as distinções numéricas nunca
são reais, mas somente modais (modos intrínsecos da substância única e de seus
atributos). Os atributos comportam-se realmente como sentidos qualitativamente
diferentes que se reportam à substância como a um sentido ontologicamente uno em
relação aos modos que o exprimem e que, nela, são como fatores individuantes ou
graus intrínsecos intensos. Decorrem daí uma determinação do modo como grau de
potência e uma só “obrigação” para o modo, que é desenvolver toda sua potência ao
seu ser no próprio limite. Os atributos são, pois, absolutamente comuns à substância
e aos modos, se bem que a substância e os modos não tenham a mesma essência; o
próprio ser se diz num mesmo sentido da substância e dos modos, se bem que os
modos e a substância não tenham o mesmo sentido ou não tenham este ser da mesma
maneira (in se e in alio). Toda hierarquia, toda eminência é negada, na medida em
que a substância é igualmente designada por todos os atributos em conformidade
com sua essência, igualmente exprimida por todos os modos em conformidade com
seu grau de potência. É com Espinosa que o ser unívoco deixa de ser neutralizado,
tornando-se expressivo, tornando-se uma verdadeira proposição expressiva
afirmativa
25
.
É, como vimos, através destas distinções que Espinosa, na sua teoria, faz do
Ser um objeto de afirmação e expressão. Não há uma diferenciação da substância fora de si,
mas a diferença ocorre em seu interior, em que os diferentes atributos qualitativos e os modos
intensivos fazem da substância o único sentido do Ser. A substância se torna expressiva
enquanto diferença, mas não perde a sua voz única, a sua univocidade. Vejamos como estas
distinções são melhor trabalhadas por Deleuze.
24
DR, p. 72.
25
DR, p. 72.
113
2.1. A Substância Única e a sua Expressão
Segundo Deleuze, para Espinosa só há uma substância e a diferença só se dá
nela e por ela; senão fosse deste modo, voltaríamos ao negativo como ponto de partida. Não
há negativo, não há uma diferença externa, mas apenas interna que se desdobra em atributos e
modos (diferenças formais e de intensidade): “A filosofia de Espinosa é uma filosofia da
afirmação pura”
26
. Esta substância conteria em si todos os atributos, que não dispersariam a
sua unidade ontológica pela lógica da distinção real; e também todos os modos, que
interagiriam com a substância e seus atributos através da distinção numérica.
Não há várias substâncias de igual atributo. De onde se conclui, desde o ponto de
vista da relação, que uma substância não é produzida por outra; desde o ponto de
vista da modalidade, que existir pertence à natureza da substância; desde o ponto de
vista da qualidade, que toda substância é necessariamente infinita. Mas esses
resultados estão como que englobados no argumento da distinção numérica. É ele, o
que nos leva novamente ao nosso ponto de partida: “Não existe senão uma só
substância de igual atributo”. Agora bem, a partir da proposição 9 parece que
Espinosa muda de objeto. Se trata de demonstrar, que já não há uma substância por
atributo, senão que só há uma substância para todos os atributos. [...] A distinção
numérica jamais é real; reciprocamente, a distinção real jamais é numérica. O
argumento de Espinosa se converte no seguinte: os atributos são realmente distintos;
logo a distinção real não é numérica; portanto, não há senão uma substância para
todos os atributos
27
.
Deleuze, neste trecho da obra Spinoza e o problema da expressão, parece
confirmar a existência de uma única substância, e também nos introduz no problema da
distinção real e numérica. A substância infinita é a única existência possível e necessária,
portanto, real; desta maneira, há um único Ser infinito e unívoco, há um único sentido para
tudo o que existe, este sentido é o Ser enquanto substância infinita. Assim, mesmo havendo
um único sentido para tudo aquilo que existe – mesmo havendo uma única existência real –,
tudo aquilo que existe é um desdobramento real e numérico desta substância infinita e
absoluta. Este desdobramento se dá através de seus atributos e de seus modos, fazendo com
que toda a diferença existente seja interiorizada no próprio Ser. Logo, o Ser se diz como
diferença; a substância absoluta e infinita se diz como uma diferença expressiva.
26
SPE, p. 53.
27
SPE, p. 29-30.
114
2.1.1. Os Atributos e a Lógica da Distinção Real
A distinção real, como nos explicou Deleuze na citação anterior, difere da
distinção numérica; isto é, a distinção numérica não é real e a distinção real não é numérica.
Isto ocorre pelo fato de que a distinção real é, na verdade, uma distinção formal, qualitativa e
não uma distinção quantitativa. É através da filosofia cartesiana que Espinosa, segundo
Deleuze, parece reclamar a distinção real e, ao mesmo tempo, dar-lhe um novo perímetro, um
contorno positivo e não mais opositivo e análogo:
Neste ponto, podemos perceber como Espinosa encontra, para fazer uso dela, uma
idéia cartesiana. Pois a distinção real pretendia dar ao conceito de afirmação uma
verdadeira lógica. Com efeito, a distinção real, tal como Descartes a utilizava, nos
poria sobre o caminho de um descobrimento profundo: os termos distinguidos
conservavam toda sua positividade respectiva, em vez de definir-se por oposição do
uno com o outro. Non opposita sed diversa, tal era a fórmula da nova lógica. A
distinção real parecia anunciar uma nova concepção do negativo, sem oposição nem
privação, mas também uma nova concepção de afirmação, sem eminência e sem
analogia. Agora, se este caminho não conclui no cartesianismo, é por uma razão que
temos visto precedentemente: Descartes ainda dá à distinção real um valor
numérico, uma função de divisão substancial na natureza e nas coisas. Concebe toda
qualidade como positiva, toda realidade como perfeição; mas nem tudo é realidade
numa substância qualificada e distinguida, nem tudo é perfeição na natureza de uma
coisa. É em Descartes, entre outros, que pensa Espinosa quando escreve: “Dizer que
a natureza da coisa exigia a limitação e, portanto, não poderia ser de outra maneira, é
dizer nada, pois a natureza de uma coisa nada pode exigir enquanto ela não é”. Em
Descartes há limitações que a coisa “exige” em virtude de sua natureza, idéias que
têm tão pouca realidade que quase poderia dizer-se que procedem do nada, naturezas
a que falta algo
28
.
Descartes trazia, desta forma, uma certa negação, já que a sua distinção real
era vista de um modo numérico, de um modo que ainda se mostrava como “falta de algo”. O
problema de Descartes foi confundir o absoluto com o relativo
29
; ou seja, o filósofo francês
(Descartes) ainda dava uma caracterização numérica à distinção formal, já que caracterizava
duas substâncias distintas uma da outra. Assim, tínhamos uma substância pensante que
possuía em si somente o atributo do pensamento, e uma substância extensa, que só possuía em
seu âmago o atributo da extensão. Cada substância continha um único atributo e, portanto, se
expressava de uma forma distinta da outra. Em Espinosa isso não ocorre, já que ele não
28
SPE, p. 53-4.
29
A confusão do relativo com o absoluto, segundo Deleuze, era uma crítica mais leibniziana que espinosana,
porém Espinosa, de uma forma mais branda que Leibniz, também se refere a ela em alguns pontos de suas
obras.
115
postula mais a distinção real como numérica, mas unicamente como formal e qualitativa
30
.
Isto lhe rende a possibilidade de pensar a substância como absoluta, onde não haveria mais
uma distinção de substâncias, mas uma unidade substancial que conteria infinitos atributos,
não somente o atributo do pensamento e da extensão, embora sejam estes os únicos que
podemos pensar no momento. Esta unidade substancial não externaliza a diferença. Ao
contrário, a diferença de atributos é visualizada como diferença formal e, posteriormente,
intensiva. Neste caso, o que se apresenta é um seguimento de Duns Scott, como se Espinosa
resgatasse alguns termos e conceitos do doutor sutil; ou seja, o que há é apenas uma distinção
formal como distinção real e, em seguida, uma distinção modal como distinção numérica.
[...] Espinosa restaura a distinção formal, assegurando-lhe inclusive um alcance que
não teria em Scott. É a distinção formal que dá um conceito absolutamente coerente
de unidade da substância e da pluralidade dos atributos, é ela que dá à distinção
real uma nova lógica. Se perguntará aqui por que Espinosa não emprega jamais esse
termo, falando somente de distinção real. É que a distinção formal é certamente uma
distinção real
31
.
Destarte, o termo que Espinosa retira de Descartes só pode ser
compreendido à luz de Duns Scott. Por isso temos aqui uma lógica diferente de Descartes
com relação a tal conceito, no entanto, em alguns aspectos também diversos de Scott, já que a
distinção real (formal) possui certas características que não poderiam ser visualizadas no
doutor sutil. A principal diferença entre Espinosa e Scott quanto à distinção formal (real) é a
questão que, especificamente, nos leva ao Ser como unívoco. Enquanto Scott ainda se prende
em um Ser neutro, isto é, indiferente; Espinosa nos entrega a substância como ponto de
afirmação, portanto, como instância absoluta. Assim, Scott, por ser também um teólogo, tenta
evitar o panteísmo em que cairia se vinculasse o Ser unívoco ao absoluto; já Espinosa não se
furta a essa afirmação do Ser. Cabe, contudo, perguntar: – Por que o Ser unívoco se vê como
objeto de afirmação pura perante este panteísmo espinosano?
A afirmação do Ser se dá, como já sugerimos, porque não há mais
neutralidade e nem negativo, já que, com a substância absoluta, não há diferença externa,
30
Podemos observar a afirmação espinosana de que há apenas uma e única substância logo nas primeiras
proposições da Ética: “Duas substâncias que tenham atributos diversos nada têm em comum entre si. [...] De
coisas que nada tenham de comum entre si, uma não pode ser causa da outra. [...] Duas ou mais coisas que
sejam distintas distinguem-se entre si ou pela diversidade dos atributos das substâncias ou pela diversidade
das afecções das mesmas substâncias. [...] Na natureza o podem ser dadas duas ou mais substâncias com a
mesma propriedade ou atributo. [...] Uma substância não pode ser produzida por outra substância”
[ESPINOSA, Baruch de. Ética – Demonstrada à maneira dos geômetras. In: Espinosa. Trad. Joaquim de
Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os
Pensadores), p. 87-8. Em diante (Espinosa, 1979)].
31
SPE, 59.
116
apenas interna e intensiva; e a neutralidade desaparece porque o Ser é vislumbrado de um
modo imanente e não mais transcendente e criacionista como a teoria scottista ainda poderia
nos remeter.
[...] a univocidade em Scott parecia comprometida pela preocupação de evitar o
panteísmo. Pois a perspectiva teológica, a dizer “criacionista”, o forçava a conceber
o ser unívoco como um conceito neutralizado, indiferente. Indiferente ao finito e ao
infinito, ao singular e ao universal, ao perfeito e ao imperfeito, ao criado e ao
incriado. Em Espinosa, ao contrário, o Ser unívoco está perfeitamente determinado
em seu conceito como o que se diz em um só e mesmo sentido da substância que é
em si, e dos modos que são em outra coisa. Com Espinosa, a univocidade se
converte em objeto de afirmação pura. A mesma coisa, formaliter, constitui a
essência da substância e contém as essências dos modos. É, pois, a idéia de causa
imanente a que, em Espinosa, toma o lugar da univocidade, liberando esta da
indiferença e da neutralidade em que a mantinha a teoria de uma criação divina. E é
na imanência que a univocidade encontrará sua fórmula propriamente espinosista:
Deus se supõe causa de todas as coisas no mesmo sentido (eo sensu) em que se
supõe causa de si
32
.
Uma vez esclarecidas as principais diferenças entre Espinosa e Scott quanto
a esta questão da distinção real (formal), devemos nos concentrar agora em tentar apreender
melhor como se dá esta dinâmica sobre a substância e os seus atributos.
Temos de tomar cuidado ao pensar a substância única, os seus atributos e os
seus modos. Deleuze postula, neste sentido, três tríades
33
para a compreensão da filosofia de
Espinosa; a primeira poderá ser observada com claridade já neste ponto da reflexão. Trata-se
da tríade: atributo-essência-substância. “Os atributos constituem a essência da substância, mas
em nada constituem a essência dos modos ou das criaturas
34
. Os atributos são expressões da
substância e expressam a essência ou as qualidades da substância. A substância existe
formalmente por causa dos atributos. Deste modo, não há substância sem atributos, já que não
há substância sem essência
35
. Ocorre, contudo, que os atributos não são essências dos modos
32
SPE, p. 60-1.
33
Na verdade, poderíamos desenrolar várias tríades neste texto deleuziano sobre Espinosa, entretanto nos
ocuparemos aqui mais especificamente das três tríades que formam a expressão: substância-absoluto-
potência. Estas tríades podem ser definidas também pelas expressões seguintes: 1º) atributo-essência-
substância; 2º) perfeito-infinito-absoluto; e, 3º) essência do modo – partes extensivas – relação de
correspondência.
34
SPE, p. 40.
35
Devemos tomar o cuidado de não confundir a essência da substância como algo primeiro e originário, ou seja,
como um fundamento. A essência deve ser compreendida, tanto em Espinosa como na interpretação
deleuziana, como natureza da substância. Assim, os atributos e os modos se diferenciam da substância porque
possuem uma diferença de natureza. Por exemplo: enquanto a substância é única, eterna, expressiva, etc.,
(formam a essência ou são as qualidades da substância); os atributos são diversos, infinitos, expressivos, etc.,
(formam a natureza ou a essência dos atributos). Os atributos e modos, portanto expressam a essência da
substância, pois expressam a sua natureza, mas eles mesmos possuem uma outra natureza que se distingue da
natureza da substância; mesmo assim eles ainda são englobados pela essência da substância, já que a
117
ou criaturas, mas os implicam diretamente, e isto faz com que os modos se relacionem com a
substância absoluta. Os atributos não expressam diferentes substâncias, não expressam
diferenças exteriores que se aproximam, se identificam ou se negam; expressam, sim, uma
única substância, mas de formas diferentes e de modo a diferir da essência das coisas. A
unidade substancial continua sendo unívoca, isto é, continua tendo um único sentido de tudo
aquilo que se diz, ou de tudo aquilo que expressa, entretanto aquilo que ela expressa (o
expressado, os modos) difere essencialmente da substância expressiva. Há uma diferença
interna: diferença de forma, já que as diversas qualidades formais da substância são garantidas
pelos atributos substanciais
36
; e pela diferença de intensidade, já que os modos diferem em
essência da substância e, portanto, diferem dos atributos, mas são implicados por eles. A
distinção formal (real) é o modo que a substância encontra para expressar a sua essência e as
suas diversas qualidades sem perder a sua unidade ontológica. Logo, os atributos expressam
uma unidade ontológica, mas são formalmente distintos desta unidade; são expressões
diversas, mas que sempre dizem “o mesmo”, pois dizem da substância única. Os atributos são
unívocos:
Os atributos, segundo Espinosa, são formas de ser unívocas, que não mudam de
natureza ao mudar de “sujeito”, a saber, quando ela predica-se do ser infinito e dos
seres finitos, da substância e dos modos, de Deus e das criaturas. [...] Os atributos
são formas de ser infinitas, razões formais ilimitadas, últimas, irredutíveis; estas
formas são comuns a Deus do que constituem a essência e aos modos que as
implicam em sua própria essência. Os atributos são verbos que expressam
qualidades ilimitadas; essas qualidades estão como que englobadas nos limites do
finito. Os atributos são expressões de Deus; estas expressões de Deus são unívocas,
constituem a natureza mesma de Deus como Natureza naturante, estão englobadas
na natureza das coisas ou Natureza naturada que, de certa maneira, voltam as
expressar por sua vez
37
.
substância mesma possui como essência (como natureza) a unidade, a eternidade, etc., deste modo, ela é
única, mas se desdobra em (é expressa por) uma multiplicidade de atributos e modos. Deleuze nos deixa clara
esta distinção entre a essência da substância e a essência dos atributos, e como ocorre a expressão da essência
da substância, por parte de seus atributos, logo nas primeiras páginas de Espinosa e o problema da expressão:
“[...] Ora, Espinosa disse: cada atributo expressa uma certa essência eterna e infinita, uma essência
correspondente ao gênero do atributo. Ora: cada atributo expressa a infinidade e a necessidade da existência
substancial, a saber, a eternidade. E, sem dúvida, Espinosa mostra bem como se passa de uma fórmula a outra.
Cada atributo expressa uma essência, mas enquanto expressa em seu gênero a essência da substância; e como
a essência da substância engloba necessariamente a existência, é função de cada atributo expressar, junto à
essência de Deus, sua existência eterna” (SPE, p. 11).
36
Há uma ressalva a ser feita aqui: Deleuze observa, na obra citada sobre Espinosa, que há uma diferença que
deve ser considerada entre atributos e propriedades. Não podemos confundir em Espinosa estes dois termos,
já que os atributos se referem direta e essencialmente à substância, portanto expressam a sua essência de
diferentes formas, e se dizem como agentes de uma mudança interna, formal e intensiva; enquanto as
propriedades não possuem esta característica, isto é, elaso expressam a substância de diferentes formas, são
apenas adjetivos da mesma – não a explicam, não constituem a sua essência, apenas se mostram como
modalidades (entendida como geral e não enquanto modo) da essência, tal como ela se expressa. Cf. SPE, p.
43-5.
37
SPE, p. 42-3.
118
Os atributos se dizem unívocos em seu gênero, pois expressam formalmente
a essência da substância. Eles se dizem da diversidade que é a própria substância. A
substância é unívoca – possui um só e único sentido –, mas sua natureza é múltipla, já que se
expressa através de infinitos atributos. Cada atributo, por sua vez, possui um único sentido
para si mesmo, pois a extensão só pode ser dita como extensiva, o pensamento só pode ser
dito como pensar, etc. A essência da substância é múltipla, e os atributos se expressam através
desta multiplicidade, deste modo, não há um único atributo, e sim diversos atributos que
expressam a unívoca voz do Ser (substância). Por isso podemos dizer que os atributos
constituem a essência da substância, já que expressam as suas diversas qualidades.
[...] os atributos por sua vez contêm ou compreendem as essências de modo, e que as
compreendem formalmente, não eminentemente. Os atributos são, pois, formas
comuns a Deus do que constituem a essência, e a dos modos ou criaturas que os
implicam essencialmente. As mesmas formas se afirmam de Deus e das criaturas, ao
que as criaturas e Deus diferem tanto em essência como em existência.
Precisamente, a diferença consiste no seguinte: os modos são somente
compreendidos abaixo dessas formas, que se reciprocam ao contrário com Deus.
Esta diferença não afeta a razão formal do atributo tomada enquanto tal
38
.
Os atributos, além de formarem a essência da substância, como explicado
acima, são também um elo entre a unidade ontológica (substância) e seus modos ou criaturas.
Os modos dependem essencialmente dos atributos e expressam uma diferença de intensidade
com relação à substância. Eles apresentam uma relação distinta da relação que os atributos
mantêm com a substância e formam uma afinidade quantitativa com os atributos e com a
substância, pois possuem uma distinção numérica ou modal com relação a ambas.
Ainda com relação aos atributos, Espinosa, segundo esta interpretação
deleuziana, critica Descartes com relação às provas da existência de Deus. A crítica se faz às
provas que partem do infinitamente perfeito, que para Espinosa ainda pode conferir a Deus
uma contraditoriedade, já que é uma propriedade atribuída a Deus e não propriamente aquilo
que constitui a sua essência mesma. Por isso Espinosa parte desta essência mesma de Deus: o
absolutamente infinito. Deus, enquanto substância única, é absoluto e infinito, pois contém
em seu âmago toda a infinidade de atributos; cada atributo, além do mais, é completamente
distinto um do outro e infinitamente perfeito. Para que Deus possua a propriedade de
infinitamente perfeito, através de seus atributos, é necessário, entretanto, que ele exista
necessariamente, já que sem a existência seria apenas uma possibilidade e uma possibilidade
38
SPE, p. 41.
119
não é infinitamente perfeita. Assim, Deus existe necessariamente e o absolutamente infinito é
a razão suficiente do infinitamente perfeito
39
. E esta é a segunda tríade deleuziana: perfeito-
infinito-absoluto. Esta tríade nos convoca a postular a igualdade entre a multiplicidade dos
atributos e a unidade substancial; os atributos são ditos no mesmo sentido que a substância,
entretanto há uma diferença formal ou real entre ambas, já que os atributos possuem uma
caracterização qualitativa em relação à substância que é uma unidade ontológica.
Esclarecemos aqui brevemente a problemática da distinção real, mas antes
de prosseguirmos com a distinção modal, ou numérica, devemos investigar a relação que os
atributos possuem com a potência, um outro importante conceito espinosano; já que será ela
(potência) que nos trará com maior propriedade a questão de que a substância absoluta pode
ser afetada de diversas, ou infinitas, maneiras (as afecções que os modos causam na
substância se dão através da sua potência).
2.1.2. Da Potência
Quando Deleuze ingressa na discussão sobre a potência espinosana,
observamos que novamente ele se apóia nos apontamentos do pensador judeu para
desenvolver e empreende uma nova crítica a Descartes. Há, assim, uma dupla acusação
deleuziana quanto às provas cartesianas da existência de Deus, que é onde se inserem as
reflexões sobre a potência. Esta dupla acusação se refere à rapidez e à facilidade cartesianas;
a primeira fazia com que Descartes confundisse o relativo e o absoluto (como já foi
examinado anteriormente); a segunda se refere ao uso filosófico das palavras “fácil” e
“difícil”, empregadas várias vezes pelo pensador francês nas Meditações metafísicas. Apesar
de Deleuze ter observado que é em Leibniz que a primeira crítica aparece com maior vigor,
ele reconhece, porém, que em Espinosa ela possui uma dedicação menor, mas não menos
39
Há uma questão no texto de Roberto Machado, Deleuze e a filosofia, onde ele resgata a discussão acerca de
uma substância por atributo e uma substância para todos os atributos. O ponto é que: pensar uma substância
por atributo não se encontra apenas em Descartes, mas também em Espinosa, no primeiro livro da Ética.
Espinosa, entretanto, postula uma substância por atributo apenas para que possamos distinguir um atributo do
outro, como uma série de proposições que nos levam a uma outra série onde a substância é postulada como
única e absoluta:“O fundamento da posição de Espinosa, segundo Deleuze, é que os atributos, as substâncias
qualificadas, se distinguem qualitativa, formal ou qüiditativamente, mas não quantitativa ou ontologicamente.
Dizer que há uma substância por atributo significa dizer que os atributos são realmente distintos; dizer que há
uma substância para todos os atributos significa dizer que os atributos são elementos diferenciais de uma
substância que os integra como suas formas ou qualidades” (Machado, 1990, p. 54).
120
importante. Deste modo, tanto na prova a priori quanto na a posteriori, Descartes teria
tomado um relativo como um absoluto:
Descartes tem tomado o relativo pelo absoluto. Na prova a priori, Descartes tem
confundido o absoluto com o infinitamente perfeito; mas o infinitamente perfeito
não é senão um relativo. Na prova a posteriori, Descartes toma a quantidade de
realidade ou de perfeição por um absoluto; mas esta novamente não é senão um
relativo. O absolutamente infinito como razão suficiente e natureza do infinitamente
perfeito; a potência como razão suficiente da quantidade de realidade: tais são as
transformações correlativas a que Espinosa suplanta as provas cartesianas
40
.
Estas transformações correlativas que Deleuze cita acima e que afirma que
Espinosa expõe em detrimento aos elementos das provas da existência de Deus de Descartes,
são sugeridas e trabalhadas pelo filósofo judeu já em suas primeiras obras (Tratado breve,
Tratado da reforma e Princípios da filosofia de Descartes), perdurando pelo resto de sua obra
– com maior ênfase, ainda que com algumas modificações, na Ética. Aqui adentramos na
teoria da potência de Espinosa (segundo a concepção deleuziana), e parece ser ela a grande
articuladora da substância com as suas diferenças intensivas e extensivas. Assim, Espinosa
estaria substituindo os argumentos cartesianos que se vinculam à quantidade de realidade por
um outro argumento baseado estritamente na potência, já que seria ela a razão suficiente da
quantidade de realidade. Assim, voltando à questão acima levantada, que indica que Espinosa
acusaria Descartes pela sua facilidade e pela sua rapidez, encontramos uma tentativa de
superação deste problema nos Princípios da filosofia de Descartes, onde as principais teses
estão melhor resumidas por Deleuze em Espinosa e o problema da expressão:
Espinosa condena violentamente o emprego da palavra “fácil” em Descartes.
Proporia um raciocínio totalmente distinto: 1) Quanto mais realidade ou perfeição
tenha uma coisa, maior é a existência que engloba (existência possível
correspondente aos graus finitos de perfeição, existência necessária correspondente
ao infinitamente perfeito). 2) Quem tem a potência (potentiam o vim) de conservar-
se não tem necessidade de causa alguma para existir, não somente para existir “de
existência possível”, senão “de existência necessária”. Quem tem a potência de
conservar-se existe, pois, necessariamente. 3) Eu sou imperfeito, logo, não tenho a
existência necessária, deste modo, não tenho a potência de conservar-me; sou
conservado por outro, mas por um outro que tem necessariamente o poder de
conservar-se a si mesmo, que, portanto, necessariamente existe
41
.
Este raciocínio nos leva, em primeiro lugar, a nos separar do pensamento
que se volta para a facilidade e a rapidez, pois nos conduz a pensar uma substância absoluta
que possui a potência de conservar-se, bem como uma existência necessária. Assim, não se
40
SPE, p. 78-9.
41
SPE, p. 81-2.
121
confunde mais o absoluto com o relativo, já que o absoluto é a substância; isto é, há uma
única substância, uma substância absoluta (não relativa) que se diz de uma única maneira e
que se expressa de diversas formas. Esta substância existe necessariamente, uma vez que
possui a potência de auto-conservar-se. Deste modo, o Ser é unívoco e existe
necessariamente. E, em segundo lugar, nos leva a abandonar as palavras “fácil” e “difícil”
como conceitos filosóficos, porque não há uma separação de natureza (substancial) entre os
atributos; não havendo esta separação, todos os atributos possuem as mesmas características e
não há um atributo que seja mais fácil de conhecer do que outro, já que todos fazem parte de
uma mesma substância. A questão levantada acima, acerca da facilidade e rapidez cartesianas,
é, portanto, abandonada e o que se verifica, em Espinosa, é a formação da essência da
substância pelos atributos e a identificação da essência com a potência.
2.1.2.1. Potência e Atributos
Apesar de haver uma infinidade de atributos da substância em Espinosa, só
conhecemos dois deles. Os outros ainda nos são ignorados e desconhecidos. São eles: o
pensamento e a extensão. Quanto à potência, a substância não possui uma infinidade de
potências, mas apenas duas: potência de pensar e potência de existir. Não podemos,
entretanto, confundir o atributo pensamento com a potência de pensar e nem o atributo
extensão com a potência de existir. Os atributos se revelam como a condição da potência, mas
não como ela própria. A potência se identifica aqui à essência da substância, uma dupla
essência: a essência formal que é a expressão da substância, através da potência de existir, em
seus atributos formais; e, a essência objetiva que é a expressão da substância, através da
potência de pensar, na idéia que a representa.
Aparece mais claramente como a prova a posteriori da Ética dá lugar a uma prova a
priori. Basta constatar que Deus, tendo todos os atributos, possui a priori todas as
condições nas quais se afirma de alguma coisa uma potência: tem, pois, uma
potência “absolutamente infinita” de existir, existe, pois, “absolutamente” e por si
mesma. Mais ainda, veremos que Deus tem um atributo que é o pensamento, possui
igualmente uma potência absoluta infinita de pensar. Em tudo isso os atributos
parecem ter um rol essencialmente dinâmico. Não que eles mesmos sejam potência.
Mas tomados coletivamente, são as condições nas quais se atribui à substância
absoluta uma potência absolutamente infinita de existir e de atuar, idêntica a sua
essência formal. Tomados distributivamente, são as condições nas quais se atribui
aos seres finitos uma potência idêntica a sua essência formal, no entanto, esta
essência está contida em tal ou tal atributo. Por outra parte, o atributo pensamento
tomado em si mesmo é a condição a que se refere à substância absoluta uma
122
potência absolutamente infinita de pensar idêntica a sua essência objetiva; no que,
também, se atribui às idéias uma potência de conhecer idêntica à essência objetiva
que as define respectivamente
42
.
O que aparece neste trecho é que, sendo o atributo a condição da potência,
devemos entender que o preenchimento da potência de existir não se faz por um único
atributo, mas pela sua totalidade, o que se identifica à sua essência formal; já o preenchimento
da potência de pensar é feito exclusivamente pelo atributo pensamento, se identificando à sua
essência objetiva. Assim, Deus ao mesmo tempo é causa de si mesmo e causa de todas as
criaturas, já que ele possui a potência absolutamente infinita de existir, o que acarreta também
um poder de ser afetado de uma diversidade de modos. Através da coletividade dos atributos,
Deus preenche a sua potência de existir e de ser afetado, logo é causa de si e de todas as
coisas existentes; tomado distributivamente, o atributo pensamento preenche a potência de
pensar acarretando assim a idéia de si mesmo e a capacidade de conhecer todas as coisas.
Deus, portanto, existe por si mesmo, conhece a si mesmo e produz e conhece todas as coisas,
já que estas são partes dele. Esta conclusão nos leva a pensar Deus não mais como uma causa
transcendente ou emanativa, mas exclusivamente como causa imanente, pois permanece em si
mesmo e não exterioriza o efeito; Deus é uma causa imanente em si e possui um efeito em si
mesmo. Este é o panteísmo espinosano, onde Deus é identificado à natureza. Para que Deus
seja pensado como causa de si e de tudo o que existe sem que o efeito lhe seja exterior é
necessário que o pensemos com um único sentido ontológico; ou seja, existe apenas um Ser
que, ao causar a si mesmo, causou todas as coisas, e por esta razão ele é imanente e não
transcendente. A imanência garante que o efeito não “fuja” de si; ao causar algo, ele causa
dentro de si mesmo. Não há um mundo exterior onde este efeito possa se refugiar a não ser o
próprio Deus criador.
2.1.2.2. Potência e Modos
A relação entre potência e modo deve ser entendida, antes de tudo, através
de duas distinções modais que se encontram no seio da problemática dos modos: a distinção
intrínseca, que diz respeito mais precisamente ao que se pode chamar de primeiro infinito
42
SPE, p. 84.
123
modal, ou à essência dos modos e à sua potência; e a distinção extrínseca, segundo infinito
modal, que se pauta mais precisamente na existência dos modos.
Tudo nos faz pensar, pois que cada atributo é afetado por duas quantidades, elas
mesmas infinitas, mas divisíveis em certas condições, cada uma a sua maneira: uma
quantidade intensiva, que se divide em partes intensivas ou em graus; uma
quantidade extensiva, que se divide em partes extensivas
43
.
Neste tópico nos apoiaremos na primeira distinção, já que ela diz respeito
também à potência, ou à relação da essência dos modos com a potência.
Segundo Deleuze, há uma profunda diferença, em Espinosa, entre a essência
da substância e a essência dos modos no que diz respeito à relação destas essências com a
existência mesma: a essência da substância envolve a existência, assim a substância existe
necessariamente; já a essência dos modos não possui esta equivalência com a existência,
portanto a sua existência não é necessária. Neste momento cabe a pergunta: – Por que a
essência dos modos não possui esta relação necessária com a existência? Basicamente, porque
o modo é uma quantidade e não uma qualidade, isto é, a essência dos modos não possui uma
exterioridade com relação aos atributos da substância, ela depende essencialmente do atributo
a que pertence. Não há distinção extrínseca entre a essência dos modos e as formas
qualitativas do atributo a que estes modos pertencem. Destarte, não podemos distinguir uma
essência de modo do atributo e nem das outras essências de modo circunscritas na
interioridade deste mesmo atributo. Não há exterioridade na essência dos modos, há apenas
interioridade, por isso a única distinção que pode ser feita entre um atributo e as essências de
modo que ele possui é esta distinção intrínseca, esta diferença de intensidade. Deus, portanto,
enquanto causa de si e causa de tudo aquilo que o pode afetar, é causa eficiente também das
essências dos modos, já que é causa dos atributos. Os atributos, por sua vez, possuem uma
diferença qualitativa e real da substância que é Deus, e são, deste modo, qualidades eternas,
infinitas e indivisíveis. Cada atributo contém, no entanto, em si mesmo uma distinção
intrínseca quantitativa, ou cada atributo possui uma diferença de quantidade em si mesmo,
que são as essências dos modos.
As essências de modos são por certo partes de uma série infinita. Mas em um
sentido especial: partes intensivas ou intrínsecas. [...] Uma essência de modo é uma
pars intensiva, não uma pars totalis. [...] A substância é como a identidade
ontológica absoluta de todas as qualidades, a potência absolutamente infinita,
43
SPE, p. 184.
124
potência de existir em todas as formas e de pensar todas as formas; os atributos são
as formas ou qualidades infinitas, como tal indivisíveis. O finito não é, pois, nem
substancial nem qualitativo. Mas, tampouco é aparência: é modal, é quantitativo.
Cada qualidade substancial tem uma quantidade modal intensiva, ela mesma finita,
que se divide atualmente em uma infinidade de modos intrínsecos. Estes modos
intrínsecos, contidos todos em conjunto no atributo, são as partes intensivas do
atributo mesmo. Por isso mesmo, são as partes da potência de Deus, no atributo que
as contêm
44
.
Devemos deixar claro aqui, antes de prosseguirmos, que, tanto para Deleuze
quanto para Espinosa, a essência é potência, seja ela a essência da substância ou a dos modos.
Não podemos, todavia, confundir as duas potências-essências. A essência de um modo é parte
da essência da substância, ou da potência infinita de Deus. A relação que há entre uma e outra
é uma relação de todo e parte, onde as diversas partes que são as essências de modo se
interiorizam em um todo que é a essência de Deus. Por isso a diferença que existe com
relação aos modos é uma diferença de intensidade, já que ela é interna e quantitativa. Cada
modo possui uma essência que se distingue quantitativamente do atributo e se distingue das
outras essências de modo através de seus graus de intensidade. O problema que ainda restaria
para Deleuze é: – Como o modo passa à existência? Será a essência do modo a causa da sua
existência? Ele nos revela uma nova interpretação espinosana deste problema, que o levará a
uma nova questão: – Como se dá a individuação?
2.1.3. Os Modos Existentes e a Distinção Extrínseca
Como vimos, os atributos contêm em si uma quantidade infinita, já que são
indivisíveis; isto é, os atributos, enquanto qualidades substanciais, são indivisíveis em si
mesmos, pois possuem uma distinção real da substância, formando a sua essência diversa,
mas diversa no sentido real, qualitativo e formal. Os atributos são distintos formalmente da
substância absoluta, mas são infinitos e eternos, são indivisíveis. Apesar disso, estas
qualidades infinitas (atributos) possuem uma diferença de quantidade em seu interior,
possuem uma diferença de intensidade que são as essências dos modos. Os atributos possuem
quantidades infinitas que se desdobram essencialmente, mas que se distinguem dos mesmos
intrinsecamente. Isso tudo diz respeito à essência dos modos. Agora, quanto à existência dos
modos, há uma outra distinção a ser feita.
44
SPE, p. 191-2.
125
Segundo Deleuze, neste resgate de Espinosa, a existência dos modos se dá
através de uma distinção extrínseca com relação aos atributos da substância. Assim, não é a
essência dos modos a causa da existência deste mesmo modo, mas um outro existente. A
essência do modo também se vincula à sua existência, no entanto não é a sua causa, porque,
se fosse, acarretaria à existência uma passagem, a que Deleuze quer evitar, da possibilidade à
realidade. Não há esta passagem na filosofia deleuziana, e, portanto, também não há nesta
interpretação de Espinosa.
A distinção extrínseca do modo existente, com relação ao atributo que o
pertence, é uma distinção extensiva e não mais intensiva, já que não há interioridade do modo
no atributo, e sim exterioridade; o modo extrapola o atributo, pois se encontra fora de sua
abrangência essencial. O que liga o atributo à existência dos modos é a essência destes que
estão diretamente relacionadas ao atributo, entretanto, como vimos, esta essência não é a
causa da existência dos modos. Esta distinção é melhor compreendida através da lógica da
distinção quantitativa ou modal, que trabalharemos a seguir, onde podemos observar que o
modo possui uma infinidade de partes e que estas partes possuem uma natureza e uma relação
entre si.
Uma essência de modo existe, sem que o modo mesmo exista: a essência não é
causa da existência do modo. A existência do modo tem, pois, por causa outro
modo, ele mesmo existente. Mas esta regressão ao infinito não nos diz nada em que
consiste a existência. De toda maneira, se é verdade que um modo existente “tem
necessidade” de um grande número de outros modos existentes, podemos pressentir
já que ele mesmo está composto de um grande número de partes, partes que chegam
de mais além, que começam a pertencer-lho desde que exista em virtude de uma
causa exterior, que se renovam no jogo das causas, enquanto exista, e que deixam de
pertencer-lhe a partir do momento em que morrem. Agora, podemos dizer em que
consiste a existência do modo: existir é ter atualmente um número muito grande de
partes (plurimae). Estas partes componentes são exteriores à essência do modo,
exteriores umas às outras: são partes extensivas
45
.
A natureza das partes do modo não se vincula ao atributo a que o modo
pertence, nem a qualquer outro atributo. Elas não são partes interiores intensivas dos
atributos, mas partes exteriores extensivas da substância infinita. Ou seja, somente as
essências dos modos se caracterizam como interiores e intensivas, já que estão inseridos num
atributo específico e dele fazem parte como expressões do atributo; já as partes dos modos
não se vinculam a um atributo, não se inserem nele e nem fazem parte do mesmo. Elas são
45
SPE, p. 193.
126
exteriores aos atributos e à essência dos modos
46
. Além do mais, cada parte possui uma
natureza distinta uma da outra. Assim, são completamente externas umas às outras, ou, dito de
outro modo, completamente diferentes umas das outras.
Quanto à relação que as partes dos modos possuem umas com as outras, é
uma relação de composição e decomposição, de acordo (ou agregação) e desacordo (ou
desagregação). Estas infinitas partes, ao se comporem ou se afetarem entre si, formam a
existência de um modo. Um modo só poderá existir concretamente, no entanto, se a
composição das partes corresponder à essência do modo. Desta forma, não é a essência do
modo que causa a existência dele, mas a correspondência das partes extensivas de um modo
com a essência do mesmo. “A existência de um modo não deriva, pois, de sua essência.
Quando um modo passa à existência, é determinado a fazê-lo por uma lei mecânica que
compõe a relação na qual se expressa, a saber, que obriga uma infinidade de partes extensivas
a entrar nesta relação”
47
. Aliás, como vimos na citação acima, quando o modo deixa de
existir, a sua essência não deixa de existir juntamente com ele. O que deixa de existir na
essência é a correspondência que havia com o modo existente.
A partir desta abordagem, a individuação
48
, ou seja, a existência de um
corpo, depende exclusivamente da relação em que as partes deste corpo ou indivíduo se
comporão e corresponderá com a sua essência mesma. É esta relação do modo com a sua
essência que dará a forma individual de um corpo, ou de uma existência. Chegamos, por
conseguinte, à terceira tríade, a que nos referíamos no início desta exposição: essência do
modo – partes extensivas – relação de correspondência.
46
“Qualquer coisa singular, ou, por outras palavras, qualquer coisa que é finita e tem existência determinada, não
pode existir nem ser determinada à ação se não é determinada a existir e a agir por outra causa, a qual é
também finita e tem existência determinada; e, por sua vez, esta causa também não pode existir nem ser
determinada à ação se não é determinada a existir e a agir por outra causa, a qual também é finita e tem
existência determinada, e assim indefinidamente” (Espinosa, 1979, p. 111).
47
SPE, p. 204.
48
A questão da individuação é trabalhada por Deleuze em várias de suas obras. Em Diferença e repetição ele a
apresenta como puramente intensiva: “O indivíduo não é uma qualidade nem uma extensão. A individuação
não é uma qualificação nem uma partição, nem uma especificação nem uma organização. O indivíduo não é
uma espécie ínfima, nem um composto de partes” (DR, p. 347). Ele diz ainda que toda a intensidade já é
sempre individuante. Deste modo, vemos que o processo de individuação, nesta obra, difere um pouco do
processo que ele apresenta na sua interpretação de Espinosa. Em Espinosa e o problema da expressão, a
individuação, como vimos, é produzida também pela intensidade do modo, a essência do modo, e também
pelo outro aspecto do modo, a sua parte extensiva – que é uma espécie de reflexo da intensidade; este reflexo
não é produzido pela essência e nem está contido nos atributos da substância, mas é causado por um outro
modo extensivo, ou melhor, por uma diversidade de partes extensivas. A individuação é uma relação entre a
intensidade da essência do modo com a extensividade do modo existente. Para uma leitura acerca da
individuação, cf. DR, p. 345-364 e SPE, p. 193-225. A questão, que aqui tentamos apresentar, é que Deleuze,
em Diferença e repetição, não está apenas fazendo um agenciamento das diversas filosofias que ele
interpreta, mas trazendo à tona o que mais propriamente vai se caracterizar como o quarto momento da
univocidade e, posteriormente, como o seu Empirismo transcendental.
127
2.1.4. Da Expressão
O conceito de expressão em Deleuze é fundamental para se compreender a
sua ontologia unívoca, e ele retira este conceito especificamente desta interpretação da
filosofia de Espinosa. Como vimos, a expressão não é um conceito que se emprega
unicamente em um determinado ponto ou aspecto da teoria ontológica de Espinosa. Ela
emana em todas as partes de sua ontologia. É a chave para que possamos conceber a
substância como o Ser unívoco imanente que é causa de si e de todas as coisas, na medida em
que é o todo e as suas partes ao mesmo tempo. Assim, a substância absolutamente infinita se
expressa em seus atributos de uma forma qualitativa e real, e cada atributo expressa de uma
maneira intrínseca a essência dos modos, e, de certa forma, de uma maneira extrínseca, a
existência deles.
[...] Deus atua como se compreende e como existe, portanto, nos atributos que
expressam por sua vez sua essência e sua existência. Produz uma infinidade de
coisas, mas “em uma infinidade de modos”. A saber: as coisas produzidas não
existem fora dos atributos que as contêm. Os atributos são as condições unívocas nas
quais Deus existe, mas também nas quais atua
49
.
Sabemos que a substância também possui uma certa relação direta com os
modos. Isso ocorre de duas formas: de uma forma intrínseca e de outra extrínseca. A primeira
se caracteriza pelo seguinte: a essência dos modos é potência, assim a própria substância
possui uma certa relação direta com a essência dos modos, já que a sua essência também é
potência e se distingue da essência dos modos através de uma relação de todo e partes. A
potência da substância se expressa, portanto, na potência dos modos, pois estas são partes
intrínsecas da própria potência da substância. A segunda se pauta na relação que os modos
existentes possuem com a substância; a substância possui uma existência necessária e os
modos existem porque possuem partes extensivas existentes no exterior dos atributos.
Voltamos, desta maneira, na relação dos modos com os atributos, quando vislumbramos que
as partes extensivas formam um elo com a essência do modo existente no interior dos
atributos, o que forma uma correspondência entre o modo existente e a essência do modo que
existe no atributo.
Assim, Deus, que necessariamente é existente, se expressa na existência das
criaturas através de uma relação da substância com as modificações que ela mesma produz
49
SPE, p. 97.
128
(relação causa e efeito), já que a substância, ao mesmo tempo em que é causa de si, possui a
capacidade de afetar-se de uma infinidade de maneiras (causa de si e causa das próprias
afecções).
Em primeiro lugar, a substância se expressa em seus atributos, e cada atributo
expressa uma essência. Mas, em segundo lugar, os atributos se expressam por sua
vez: se expressam nos modos que eles dependem, e cada modo expressa uma
modificação. Veremos que o primeiro nível deve compreender-se como uma
verdadeira constituição, quase como uma genealogia da essência da substância. O
segundo deve compreender-se como uma verdadeira proposição de coisas. Com
efeito, Deus produz infinidades de coisas porque sua essência é infinita, mas porque
tem uma infinidade de atributos, necessariamente produz essas coisas em uma
infinidade de modos dos quais cada um remete ao atributo no qual está contido. A
expressão não é em si mesma uma produção, mas chega a sê-lo em seu segundo
nível, quando por sua vez é o atributo o que se expressa. Inversamente, a expressão-
produção encontra seu fundamento em uma expressão primeira. Deus se expressa
por si mesmo “antes” de expressar-se em seus efeitos; Deus se expressa constituindo
por si a natureza naturante, antes de expressar-se produzindo em si a natureza
naturada
50
.
Sendo Deus uma expressão de si mesmo e uma criação de todas as coisas,
não há outra substância que não seja ele e não há também um outro plano de existência que
não seja a sua própria produção; deste modo, Deus, ao se expressar como tal, também se
expressa em uma multiplicidade de coisas que se distinguem dele essencialmente, já que tanto
os seus atributos quanto os seus modos possuem essências diferentes da essência da
substância. Deus é um Ser imanente porque não expressa seus atributos e modos de uma
forma transcendente; Deus é unívoco porque não há outra substância que não seja ele. A
ontologia da expressão em Espinosa funda também a ontologia da imanência, já que a
substância permanece em si mesma para produzir e não precisa de uma identidade
transcendente para produzir ou se auto-produzir; ela é causa de si e de todas as coisas. Não
obstante, a substância ao produzir algo não o exterioriza, pois Deus (substância infinita) é
causa de si e das coisas, ao mesmo tempo em que é si mesmo e as próprias coisas; as criaturas
são partes do todo que é Deus.
A expressão se apresenta como uma tríade. Devemos distinguir a substância, os
atributos, a essência. A substância se expressa, os atributos são expressões, a
essência é expressada. [...] a substância e os atributos se distinguem, mas, cada
atributo expressa uma certa essência. O atributo e a essência se distinguem, no
entanto, cada essência se expressa como essência da substância e não do atributo. A
originalidade do conceito de expressão se manifesta aqui: a essência, enquanto
existe, não existe fora do atributo que a expressa; mas, enquanto é essência não se
50
SPE, p. 10.
129
refere senão à substância. Uma essência é expressada por cada atributo, mas como
essência da substância mesma
51
.
Se aquilo que é expresso é a essência da substância através das expressões
que são os atributos, já temos aqui a primeira diferença que a expressão nos revela, a primeira
relação diferencial: da substância e dos atributos (a diferença formal). Os atributos não se
equiparam à substância, pois não constituem a essência da substância em sua totalidade, mas
apenas parcialmente. Há, portanto, uma diferença de natureza entre ambos, mas esta diferença
se constitui como uma diferença formal, dado que formalmente os atributos se destacam da
substância. Já a segunda diferença que podemos observar na expressão é a diferença entre
atributos e modos (diferença modal intensiva), pois os modos se distinguem numericamente
dos atributos e da substância. A essência de modos é intrínseca aos atributos, não se separa do
atributo a que se relaciona, é, por conseguinte, um modo intensivo, já que é uma intensidade
da substância. A terceira diferença existente na expressão (diferença modal extensiva) é a
diferença entre modos e substância, onde a substância é causa dos modos existentes, já que
constitui suas partes extensivas. As duas partes dos modos, a intensidade e a extensividade, ao
se relacionarem, formam um corpo, ou seja, um indivíduo. É o processo de individuação da
expressão espinosana. Um corpo é uma modificação que ocorre dentro da própria substância,
é a produção de uma parte dentro de um todo já constituído.
Assim, a expressão caracteriza-se como a diferença interior da própria
substância unívoca. O Ser unívoco se expressa e, ao se expressar, se modifica, se diferencia,
mas ao mesmo tempo não perde a sua própria univocidade. Esta é a ontologia da expressão
segundo a interpretação deleuziana da filosofia de Espinosa.
2.2. De Espinosa a Nietzsche
Vimos até aqui alguns pontos privilegiados da ontologia espinosana, aos
olhos da interpretação deleuziana. Na Ética de Espinosa encontramos, entretanto, uma outra
preocupação que nos leva à ética propriamente dita. O segundo aspecto da obra do filósofo
judeu é a sua concepção ética do homem, e neste ponto podemos notar um circuito conceitual
que depois aparecerá, de modo mais vigoroso, em Nietzsche. Como sabemos, o filósofo
alemão já havia declarado a sua dependência da filosofia de Espinosa para deflagrar seu
51
SPE, p. 23.
130
próprio pensamento às marteladas
52
. Não abordaremos, todavia, o aspecto ético da teoria de
Espinosa. Só queremos expressar aqui algumas semelhanças e possíveis influências de sua
filosofia com a filosofia de Nietzsche, a que Deleuze chamou de terceiro momento do
unívoco.
Basicamente, esta concepção ética de Espinosa se pauta num amoralismo
ou, melhor, num desprendimento de valores de bem e mal, o que para muitos é considerado
como os principais pilares de toda a ética. Espinosa separa ética de moral, o que lhe rende
pensar o homem não mais como um ente moral, e sim ético; que baseia sua conduta em
normas de vida ou modos de existência. Para Espinosa, o que há é um bom ou um mau
encontro numa relação entre os corpos ou entre as idéias de corpos (alma); um bom encontro
se caracterizaria para ele através da composição, já que na relação entre dois ou mais corpos
um deve se unir ao outro de modo que os diferentes corpos formem um único corpo; já um
mau encontro se dá numa relação em que ocorre uma decomposição, ou seja, um desgaste ou
aniquilamento de corpos. A composição e decomposição trazem, além do mais, o afeto, que
se divide basicamente em dois: alegria e tristeza. O primeiro, constituído pela composição,
aumenta a potência de um corpo para agir. Já o segundo diminui a potência de agir de um
corpo e é característico do mau encontro, da decomposição. A base desta teoria parece nos
levar, de alguma forma, a Nietzsche, já que este anuncia a sua luta contra a moral, que, de
uma forma ou de outra, sempre acaba nos impondo uma transcendência, através da postulação
entre o bem e o mal, ou entre um ser de bondade e um ser maligno.
Apesar de Deleuze ter nos evidenciado o seu profundo apreço por Espinosa,
através da leitura de Espinosa e o problema da expressão e Espinosa: filosofia prática e de
alguns trechos de Diferença e repetição, não é a filosofia de Espinosa que Deleuze aponta
como a principal teoria acerca da univocidade do Ser. É em Nietzsche, o terceiro momento do
unívoco em sua geografia da univocidade, que podemos perceber para o que as leituras
deleuzianas e a sua própria filosofia apontam. A filosofia nietzschiana, que o nosso filósofo
interpreta neste agenciamento – que ele modifica e da qual também se apropria em alguns
termos –, se fundamenta em dois principais alicerces: o eterno retorno do mesmo e a vontade
de poder. Veremos agora como o filósofo francês interpreta estes dois principais conceitos de
52
Roberto Machado nos enuncia com maior precisão esta declaração nietzschiana: “Em 30 de julho de 1881,
Nietzsche, escrevendo a seu amigo Overbeck, diz estar surpreso e encantado de encontrar em Espinosa um
predecessor capaz de transformar sua própria solidão em uma solidão a dois. Ele enumera, então, cinco
pontos – todos temas éticos – da doutrina de Espinosa que coincidem com seus próprios pontos de vista: a
negação da vontade livre, a negação dos fins, a negação da ordem moral universal, a negação do altruísmo e
finalmente – e é o que nos interessa neste momento – a negação do mal” (Machado, 1990, p. 66).
131
Nietzsche e, posteriormente – no capítulo seguinte –, como ele os modifica e os apropria em
seu próprio pensamento.
3. Nietzsche e o Eterno Retorno da Vontade de Poder
Com o terceiro momento do unívoco, Deleuze acaba postulando uma nova
interpretação do “eterno retorno do mesmo” de Nietzsche. Para Deleuze, este momento é o
que consagra a sua própria filosofia, já que é através dele que pode chegar a concebê-la como
uma filosofia da diferença e da repetição; isto é, o Ser dito em um só e mesmo sentido para
tudo aquilo de que ele se diz, um Ser imanente e não mais transcendente ou eminente.
A leitura que Deleuze propõe do eterno retorno de Nietzsche é mais uma das
polêmicas interpretações seletivas que o filósofo francês constrói a partir de pequenos trechos
e sutis operações conceituais. Assim, o que o filósofo alemão nos deixou sobre esta doutrina –
que, como já foi dito, não é mais que uns poucos textos nos quais ele expôs a questão do
eterno retorno – são re-lidos, de modo tangencial, por Deleuze. O principal texto em que
Deleuze se baseia para esta interpretação do eterno retorno é o “Assim falou Zaratustra”,
entretanto ele também utiliza a obra A vontade de potência para fazer a sua interpretação da
vontade de poder
53
(que está diretamente ligada com a do eterno retorno), que hoje sabemos
se tratar de um texto apócrifo. Como, porém, a intenção de Deleuze era fazer uma
interpretação que o levasse a conceber uma ontologia própria, cremos que o que veremos
agora é mais deleuziano do que propriamente nietzschiano, assim como quase todas as outras
interpretações destes recortes da história da filosofia feitas por Deleuze.
Já vimos, no primeiro capítulo, que o nosso filósofo traz uma abordagem
semelhante à feita por ele com respeito a Platão, isto é, divide a sua interpretação do eterno
retorno em dois conteúdos distintos: o conteúdo manifesto e o conteúdo latente. O primeiro,
ligado diretamente à letra de Nietzsche no “Assim falou Zaratustra” – mas, com aquilo que
diz respeito às palavras do Anão e dos animais de Zaratustra e não propriamente ao que este
tinha em mente do que era o eterno retorno –, se refere ao eterno retorno concebido pela
53
Devemos deixar claro que estamos cientes que há uma problemática muito discutida atualmente no que diz
respeito à tradução de Wille zur Macht, que tanto pode ser traduzida como vontade de potência como vontade
de poder, e o mesmo pode ser dito da expressão utilizada por Deleuze nos textos originais volonté de
puissance. Não é nosso intuito, entretanto, resgatar esta problemática, que se refere mais aos estudos de
Nietzsche do que propriamente de Deleuze. Por isso, apenas nos limitamos a utilizar a tradução de Edmundo
Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias do conceito deleuziano no seu texto Nietzsche e a filosofia.
132
tradição filosófica, ou melhor, pela filosofia da representação, que invoca sempre uma
identidade prévia e transcendente. Para eles, o retorno é um retorno da identidade, mas uma
identidade que se dá por semelhança, por analogia e por oposição com aquilo que é diferente.
O segundo, ligado ao que Deleuze pensa ser o que o próprio Nietzsche – através de seu
personagem Zaratustra (ao declarar ao Anão que o que retorna é o devir puro através de sua
exposição acerca do “portal chamado momento”
54
) – pensava acerca do eterno retorno, se
refere ao eterno retorno como retorno da diferença ou da própria repetição como diferença
pura, onde não há mais uma identidade prévia e transcendente, mas um Ser imanente e
unívoco. Esta primeira definição do eterno retorno, como doutrina cosmológica e física (para
repetir Deleuze), e a distinção de seus conteúdos não bastam, contudo, para explicar como ele
faz retornar o devir e como este devir é pensado univocamente, já que ainda haveria na
genealogia, segundo o nosso filósofo, duas espécies de devir: o “devir ativo” e o “devir
reativo”
55
. É para instaurar, no seio da problemática do devir, um único sentido a tudo aquilo
que revém, dito de outro modo, é para instaurar a univocidade do Ser na problemática do
eterno retorno, que Deleuze utiliza a concepção da vontade de poder nietzschiana.
3.1. Da Vontade de Poder
Para solucionar o problema deste duplo sentido do devir na genealogia (o
que nos leva ao problema do niilismo de alguma forma, já que o devir reativo se liga a uma
certa vontade de nada, como veremos), Deleuze se pautou em pensar este conceito
nietzschiano como aquilo que é o princípio da própria diferença, o devir puro. Assim,
inicialmente e retomando Espinosa em alguns termos, Deleuze se questiona sobre o corpo e
logo o define como sendo uma multiplicidade de forças, umas dominantes e outras
dominadas:
54
“’Alto lá, anão!’, falei. ‘Ou eu ou tu! Mas eu sou mais forte dos dois: tu não conheces o meu pensamento
abismal! Esse – não poderias suportá-lo!’ Então, aconteceu algo que me aliviou: porque o anão pulou das
minhas costas ao solo, esse curioso! E foi encarapitar-se numa pedra à minha frente. Mas tínhamos parado,
justamente, diante de um portal. ‘Olha esse portal, anão!’, prossegui, ‘ele tem duas faces. Dois caminhos aqui
se juntam; ninguém ainda os percorreu até o fim. Essa longa rua leva para trás: dura uma eternidade. E aquela
longa rua leva para frente – é outra eternidade. Contradizem-se,esses caminhos, dão com a cabeça um no
outro; e aqui, neste portal, é onde se juntam. Mas o nome do portal está escrito no alto: ‘momento’. Mas quem
seguisse por um deles – e fosse sempre adiante e cada vez mais longe: pensas, anão, que esses caminhos iriam
contradizer-se eternamente?’” (Nietzsche, 1977, p. 166).
55
Estamos cientes da grande polêmica que existe, entre os comentadores de Nietzsche e a interpretação
deleuziana, quanto à distinção entre forças ativas e forças reativas. Não é nosso intuito aqui resgatar, contudo,
tal polêmica, e sim o pensamento deleuziano, embora, como visto, ele possa ter acarretado uma divergência
no pensamento de Nietzsche.
133
O que é o corpo? Nós não o definimos dizendo que é um campo de forças, um meio
provedor disputado por uma pluralidade de forças. Com efeito, não há “meio”, não
há campo de forças ou de batalha. Não há quantidade de realidade, toda realidade já
é quantidade de força. Nada mais do que quantidades de força “em relação de
tensão” umas com as outras. Toda força está em relação com outras, quer para
obedecer, quer para comandar. O que define um corpo é esta relação entre forças
dominantes e forças dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo: químico,
biológico, social, político. Duas forças quaisquer, sendo desiguais, constituem um
corpo desde que entrem em relação; por isso o corpo é sempre o fruto do acaso, no
sentido nietzscheano, e aparece como a coisa mais “surpreendente”, muito mais
surpreendente na verdade do que a consciência e o espírito. Mas o acaso, relação da
força com a força, é também a essência da força; não se perguntará então como
nasce um corpo vivo, posto que todo corpo é vivo como produto “arbitrário” das
forças que o compõem. O corpo é fenômeno múltiplo, sendo composto por uma
pluralidade de forças irredutíveis; sua unidade é a de um fenômeno múltiplo,
“unidade de dominação”. Em um corpo, as forças superiores ou dominantes são
ditas ativas, as forças inferiores ou dominadas são ditas reativas. Ativo e reativo são
precisamente as qualidades originais que exprimem a relação da força com a força.
As forças que entram em relação não têm uma quantidade sem que, ao mesmo
tempo, cada uma tenha a qualidade que corresponde à sua diferença de quantidade
como tal. Chamar-se-á de hierarquia esta diferença das forças qualificadas
conforme sua quantidade: forças ativas e reativas
56
.
Este trecho de Nietzsche e a filosofia traz muitas questões que serão
discutidas no decorrer deste tópico. De tal modo, pudemos confirmar, inicialmente, como
pode ser definido um corpo, para Deleuze, nesta interpretação da filosofia nietzschiana: um
corpo é uma multiplicidade de forças, dominantes e dominadas, que compõem uma unidade,
mas o corpo só pode ser visto como tal enquanto estas forças estiverem em relação, pois não
há corpo sem relação entre forças. E toda a relação entre uma força e outra se mostra também
como a essência da força, como o acaso que constitui um corpo. Desta maneira, é a diferença
que constitui a essência da força, ou a diferença entre uma força e outra. Essa diferença se
coloca como a quantidade da força e é ela que determinará a qualidade da força, é ela que
determinará se uma força é ativa ou reativa, dominante ou dominada. A diferença é a essência
da força e, portanto, a sua qualidade, a relação qualitativa entre uma força e outra; já a força
em si, determinada por esta qualidade que é a sua essência, se mostra quantitativamente, isto
é, como ativa e reativa, como dominante ou dominada. Cabe, porém, perguntar: – Não dizia
Deleuze, na citação acima, que a qualidade da força é a sua definição como ativa ou reativa?
Sim. Ativa e reativa são as qualidades da força, mas o que define uma força
ser ativa ou reativa é a sua relação, portanto a sua essência. Assim, a qualidade da força é a
relação, é a essência dela. Já a força por si mesma é uma quantidade, que só se define como
dominante ou dominada pela sua relação com as outras forças. Seguindo no texto de Deleuze,
podemos entender melhor esta questão: “A própria quantidade não é, portanto, separável
56
NF, p. 32-3.
134
da diferença de quantidade. A diferença de quantidade é a essência da força, a relação da
força com a força”
57
. E, mais adiante, ele conclui: “A qualidade não é outra coisa senão a
diferença de quantidade e corresponde a esta em cada força em relação”
58
. Se a diferença de
quantidade é a qualidade, a essência da força é a qualidade. A qualidade mesma não é
separável desta ou daquela força com a qual faz esta relação; destarte, a qualidade é
inseparável da quantidade e a força só pode ser definida como ativa ou reativa por causa desta
inseparabilidade, já que é a qualidade que define a diferença de poder entre uma e outra força,
mas é a quantidade que define o seu grau de poder. Há um princípio genealógico entre as
forças, que as definem qualitativa e quantitativamente. Este princípio ou elemento
genealógico é a vontade (vontade de poder). Deleuze distingue, portanto, força (e todas as
suas implicações quantitativas e qualitativas) de vontade. A vontade de poder é o elemento,
para usar a linguagem kantiana como Deleuze o faz, transcendental que define os elementos
empíricos que são as forças. A distinção entre ambas, então, não é uma mera distinção de
modo, onde a força se mostra ou se dá de um modo e a vontade de poder de outro; há uma
distinção formal, ou substancial, entre uma e outra; uma distinção de nível.
A vontade de poder é, portanto atribuída à força, mas de um modo muito particular:
ela é ao mesmo tempo um complemento da força e algo interno. Ela não lhe é
atribuída à maneira de um predicado. Com efeito, se fazemos a pergunta: “Quem?”,
não podemos dizer que a força seja quem quer. Só a vontade de poder é quem quer,
ela não deixa delegar nem alienar num outro sujeito, mesmo que este seja a força.
Mas, então, como pode ser “atribuída”? Lembremo-nos de que a força está em
relação essencial com a força. Lembremo-nos de que a essência da força é sua
diferença de quantidade com outras forças e que esta diferença se exprime como
qualidade da força. Ora, a diferença de quantidade, assim compreendida, remete
necessariamente a um elemento diferencial das forças em relação, o qual é também o
elemento genético das qualidades dessas forças. A vontade de poder é, então, o
elemento genealógico da força, ao mesmo tempo diferencial e genético. A vontade
de poder é o elemento do qual decorrem, ao mesmo tempo, a diferença de
quantidade das forças postas em relação e a qualidade que, nessa relação, cabe
a cada força. A vontade de poder revela aqui sua natureza: ela é princípio para a
síntese das forças. É nesta síntese, que se relaciona com o tempo, que as forças
repassam pelas mesmas diferenças ou que o diverso se reproduz. A síntese é a das
forças, de sua diferença e de sua reprodução; o eterno retorno é a síntese da qual a
vontade de poder é o princípio
59
.
A vontade de poder é o único “quem quer”. Não há outro sujeito que possa
querer, nem mesmo a força. A vontade de poder não pode, entretanto, ser separada das forças.
Elas são inseparáveis, já que isso acarretaria uma abstração metafísica, mas também não
podemos confundi-las, senão ignoraríamos o princípio da diferença entre as forças. “A força é
57
NF, p. 35.
58
NF, p. 36.
59
NF, p. 40-1.
135
quem pode, a vontade é quem quer”
60
. Assim, a vontade de poder é o princípio da síntese das
forças, é o princípio do eterno retorno. O eterno retorno aqui age como um repetir da
diferença, uma diferença entre forças que é a própria essência da força. Veremos com maior
propriedade no tópico subseqüente esta relação existente entre a vontade de poder e o eterno
retorno. Antes nos deteremos nas qualidades da vontade de poder.
Sendo a vontade de poder o “princípio transcendental” das forças (que se
relacionam qualitativa e quantitativamente), ela possui qualidades diferentes das qualidades
das forças, no entanto qualidades estas que se relacionam com aquelas. As qualidades das
forças, ativa e reativa, correspondem às qualidades da vontade de poder, negação e afirmação,
e se relacionam com elas por necessidade. Já estas últimas são indispensáveis para a
determinação das primeiras. Por conseguinte, toda a força ativa corresponde necessariamente
à qualidade de afirmação da vontade de poder, e toda a força reativa, à qualidade de negação.
A negação e a afirmação estão, portanto, em um outro nível da ação e reação, mas são essas
duas qualidades que dão suporte transcendental para as mesmas. Não há ação sem afirmação e
não há reação sem negação. Ocorre, porém, que as qualidades da vontade de potência
ultrapassam os limites das qualidades das forças, pois são qualidades do próprio devir; deste
modo, a afirmação é o poder ativo do devir e a negação o reativo
61
:
[...] ativo e reativo designam as qualidades originais da força, mas afirmativo e
negativo designam as qualidades primordiais da vontade de poder. Afirmar e negar,
apreciar e depreciar exprimem a vontade de poder assim como agir e reagir
exprimem a força. (E assim como as forças reativas também são forças, a vontade de
negar, o niilismo são vontade de poder [...]. Por um lado é evidente que há afirmação
em toda a ação, que há negação em toda a reação. Mas, por outro lado, a ação e a
reação são antes meios, meios ou instrumentos da vontade de poder que afirma e que
nega: as forças reativas, instrumentos do niilismo. Por outro lado ainda, a ação e a
reação necessitam da afirmação e da negação como algo que as ultrapassa, mas que
é necessário para que realizem seus próprios objetivos. Enfim, mais profundamente,
a afirmação e a negação transbordam a ação e a reação porque são as qualidades
imediatas do próprio devir: a afirmação não é negação, e sim o poder de se tornar
60
NF, p. 41.
61
Devemos novamente lembrar que esta distinção de forças em ativo e reativo é uma caracterização deleuziana
do pensamento de Nietzsche; entretanto, acreditamos que a leitura deleuziana não é apenas um resgate do
pensamento nietzschiano, mas também uma base para a sua própria filosofia da diferença. Segundo Eladio
Craia, em um artigo intitulado Um acercamento da leitura deleuziana de Nietzsche, Deleuze parece querer
retratar um Nietzsche não metafísico, como o fez Heidegger, já que tenta tirar da Vontade de Poder o caráter
de fundamento que ele parece ter com a interpretação heideggeriana: “[...] a interpretação deleuziana é, ao
mesmo tempo, uma base para a sua própria ontologia e uma refutação à crítica heideggeriana, pois, por este
caminho, a vontade de potência não pode, por si só, ser Fundamento, exigência básica de toda essência
metafísica” [Craia, Eládio C. P. Um acercamento da leitura deleuziana de Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche,
nº 20. São Paulo: Editora Unijuí, 2006, p. 65, nota 3. Em diante (Craia, 2006)]. De modo geral, a abordagem
deleuziana parece reivindicar uma análise qualitativa acerca das forças, além da costumeira análise
quantitativa, trazendo, desta forma, um novo parâmetro para se pensar também a Vontade de Poder e o Eterno
Retorno.
136
ativo, o devir ativo em pessoa; a negação não é simples reação, mas um devir
reativo. Tudo se passa como se a afirmação e a negação fossem ao mesmo tempo
imanentes e transcendentes em relação à ação e à reação; elas constituem a corrente
do devir com a trama das forças. É a afirmação que nos faz entrar no mundo glorioso
de Dionísio, o ser do devir; é a negação que nos precipita no fundo inquietante de
onde saem as forças reativas
62
.
Neste trecho vemos ainda a importância da afirmação nesta interpretação
deleuziana de Nietzsche, já que é ela que nos permite fugir do niilismo, ou desta vontade de
nada. O niilismo, vontade de nada, ainda é uma vontade de poder, já que ela é a vontade da
negação e está em relação com as forças reativas. Destarte, o niilismo é responsável pelas
forças reativas e ainda as ultrapassa. Vai além da reação. Ele é o puro devir reativo. Deleuze
vai tentar eliminar a negação desta interpretação, se resguardando assim para não cair no
niilismo, ou na vontade de nada. Pergunta-se: – Como ele pode não cair no niilismo se este é
uma das qualidades da vontade de poder? Veremos que isso só pode ser conseguido com a
relação da vontade de poder com o eterno retorno.
3.2. Do Eterno Retorno do Mesmo como Retorno da Diferença
O eterno retorno possui, em Deleuze, dois aspectos: o cosmológico e físico,
como vimos anteriormente; e o ético e ontológico. O primeiro aspecto não será trabalhado
neste tópico, já que foi melhor explicado no primeiro capítulo deste trabalho, quando
falávamos também de Platão
63
. O que podemos dizer é que este primeiro momento não basta
para explicar o eterno retorno como uma doutrina da univocidade do Ser. Deleuze “retoma” a
suposta interpretação de Nietzsche do eterno retorno, dizendo que ele possui um conteúdo
manifesto, o conteúdo onde o eterno retorno é pensado como um retornar do idêntico e do
semelhante; e um conteúdo latente, a interpretação nietzschiana, onde o eterno retorno é um
retornar do devir, e o que retorna é o próprio retorno, a diferença. Este pensamento
cosmológico só pode nos guiar até o retornar do próprio retorno como devir, entretanto, ainda
deixa brechas para pensarmos uma certa equivocidade, já que o devir não é um conceito
unívoco até este ponto. Ele possui dois lados: o devir ativo e o devir reativo. Como vimos, o
devir ativo se mostra como a própria qualidade de afirmação da vontade de poder e o reativo,
a de negação. Neste primeiro sentido do eterno retorno, portanto, o devir reativo ainda é capaz
62
NF, p. 44.
63
Cf. ponto 4 do capítulo I.
137
de voltar, isto é, o niilismo, enquanto vontade de nada ou vontade negada, também pode
voltar neste retorno. Para Deleuze e Nietzsche, o niilismo não pode ser algo que volta. Tudo o
que volta é só um devir ativo, uma afirmação da vontade de poder. Então, como é possível
expulsar o devir reativo deste retorno? Como é possível pensarmos um eterno retorno
puramente afirmativo? A resposta para esta questão está no aspecto ético e ontológico do
eterno retorno.
3.2.1. O Aspecto Ético e Ontológico do Eterno Retorno
O eterno retorno é seletivo. Este é o princípio deste aspecto ético e
ontológico
64
do eterno retorno e isto é o que faz com que ele selecione apenas o devir ativo
como seu único devir que retorna.
Um devir-ativo, não sendo nem sentido nem conhecido, só pode ser pensado como o
produto de uma seleção. Dupla seleção simultânea: da atividade da força e da
afirmação na vontade. Mas quem pode operar a seleção? Quem serve de princípio
seletivo? Nietzsche responde: o eterno retorno
65
.
Há, portanto (como vimos na citação acima), duas espécies de seletividade
neste segundo momento do eterno retorno: uma que se refere às forças diretamente (atividade
da força) e estabelece uma regra prática, deste modo podemos chamá-la de seleção ética; e
outra que se remete mais precisamente à vontade (afirmação da vontade) e estabelece uma
regra ontológica, desta maneira se caracteriza como uma seleção ontológica.
3.2.1.1. A Seleção Ética do Eterno Retorno
A seleção ética do eterno retorno, como dito, se refere mais especificamente
às forças como um todo, já que é uma seleção das forças que possuem maior poder em
detrimento das que possuem menor poder. Dito de outro modo, é uma seleção daquilo que
64
Apesar de estarmos indicando, até o momento, o aspecto ético e ontológico conjuntamente, devemos ressaltar
que eles possuem diferenças e singularidades específicas e que serão tratadas nos tópicos seguintes.
Decidimos colocá-los juntos porque ambos expressam uma única proposição, que já mencionamos acima, “o
eterno retorno é seletivo”.
65
NF, p. 56.
138
chamamos “forças em ascensão” e uma castração das “forças em depressão”. Esta
característica da seleção estabelece também uma regra prática, pois faz com que a vontade de
poder busque sempre as forças que possuem maior intensidade e elimine as que possuem
menor intensidade.
[...] na qualidade de pensamento, dá uma regra prática à vontade. O eterno retorno
dá à vontade uma regra tão rigorosa quanto a regra kantiana. [...] Como pensamento
ético, o eterno retorno é a nova formulação da síntese prática: O que tu quiseres,
queira-o de tal modo que também queiras seu eterno retorno. [...] Uma coisa no
mundo enoja Nietzsche: as pequenas compensações, os pequenos prazeres, as
pequenas alegrias, tudo o que se concede uma vez e nada mais do que uma vez.
Tudo o que só se pode refazer no dia seguinte com a condição de ser dito na véspera:
amanhã não o farei mais – todo o cerimonial do obsessivo. E nós também somos
como essas velhas senhoras que permitem um excesso apenas uma vez, agimos
como elas e pensamos como elas. [...] Uma preguiça que desejasse seu eterno
retorno, uma tolice, uma baixeza, uma covardia, uma maldade que desejassem seu
eterno retorno, não seria mais a mesma preguiça, não seria mais a mesma tolice...
Vejamos melhor como o eterno retorno opera aqui a seleção. É o pensamento do
eterno retorno que seleciona. Faz do querer algo completo. O pensamento do eterno
retorno elimina do querer tudo o que cai fora do eterno retorno, faz do querer uma
criação, efetua a equação querer = criar
66
.
A regra prática que Deleuze postula, através desta interpretação de
Nietzsche, se dá, como vimos, também pela interpretação do imperativo categórico
kantiano
67
. É uma modificação deste. É, porém, uma modificação fundamental da regra, já
que o meu querer já não se aplica mais à universalidade de quereres, mas ao eterno retorno
deste querer, isto é, à plena afirmação deste querer: afirmar ele de tal modo que através dele
eu tenha a plenitude de minha vontade de poder. Assim, o que esta primeira seleção faz é
eliminar os meio-quereres
68
, as meia-vontades, e a afirmação de uma vontade completa, de
uma vontade plena. A vontade plena, a pura vontade de poder, possui, contudo, dois lados: ela
tanto pode ser uma vontade plena de afirmação, como também uma vontade plena de
negação. O eterno retorno, como seleção, faz da afirmação da vontade uma afirmação
completa, mas também faz do niilismo incompleto (ou da negação da vontade que se
apresentava nas forças reativas de menor intensidade) um niilismo completo, já que seleciona
somente as forças que possuem sua vontade completa, neste caso uma vontade completa de
nada.
66
NF, p. 56.
67
Deleuze não só modifica o imperativo categórico kantiano nesta interpretação de Nietzsche, como também o
utiliza como uma regra que fará com que a vontade no eterno-retorno seja expressa de modo tão forte e
radical como Kant o fazia com o imperativo.
68
“Ah, se eliminássemos de vós todo o meio querer e vos resolvêsseis pela indolência ou pela ação! Ah, se
compreendêsseis a minha palavra: ‘Fazei, pois não, tudo o que quiserdes – mas sede, antes, daqueles que
sabem querer!”. (Nietzsche, 1997, p. 179).
139
Temos, deste modo, três principais tipos de forças reativas: as forças
reativas que são apenas vontades de obedecer, ou seja, forças que são apenas meias-vontades,
pois não se afirmam como tais; as forças reativas que já foram ativas, que eram vontades
plenas, mas que deixaram de ser pela corrupção do niilismo que fez com que elas se
voltassem contra o seu próprio poder e se tornassem reativas; e as forças reativas que estão no
máximo de seu poder, que se desenvolveram de tal modo que corrompem as forças ativas e as
levam até a sua máxima vontade de negação, até a vontade plena de nada. Os dois primeiros
tipos podem ser excluídos através da primeira seleção, já que dizem respeito à força e à sua
intensidade de poder; elas não estão ligadas diretamente à vontade plena, mas unicamente às
meias-vontades, isto é, àquilo que não é uma vontade completa. Já o terceiro tipo se liga à
vontade de poder em sua plenitude, pois tais forças reativas chegaram até o seu ápice, se
tornaram devires-reativos e se ligaram ao niilismo puro e completo. Caímos, então, assim
como vimos com Hegel e Heidegger, num novo niilismo? Encontramo-nos numa bifurcação
intransponível, onde, de um lado, temos a afirmação plena e, de outro, o niilismo completo?
Como eliminar o niilismo de uma vez?
O niilismo só pode ser eliminado, segundo Deleuze nesta interpretação
nietzschiana, através de uma segunda seleção deste segundo aspecto do eterno retorno: a
seleção ontológica ou a afirmação da vontade.
3.2.1.2. A Seleção Ontológica do Eterno Retorno
A seleção ontológica se encontra num outro nível de argumentação de
Deleuze; já não lidamos mais com as forças, que são os diversos graus de intensidade da
vontade, mas com a vontade plena, com a pura vontade de poder. Estas vontades possuem
uma única intensidade, a máxima intensidade, no entanto diferem por serem vontades
afirmativa e negativa, uma que diz respeito à plena afirmação (vontade de ser) e a outra, ao
niilismo completo (vontade de nada). Este seria, segundo Deleuze, um dos pontos que fazem
de Nietzsche um dos maiores pensadores contemporâneos, maior até que Heidegger que,
como vimos no capítulo anterior, ainda não conseguiu se desprender do niilismo, pois ainda
esteve preso, de alguma forma, à interpretação do negativo
69
. Deleuze interpreta o eterno
69
Não nos aprofundaremos aqui na divergência entre Deleuze e Heidegger quanto à interpretação de Nietzsche
porque julgamos ter deixado várias brechas para esta interpretação no capítulo anterior, quando “incitamos”
diretamente Deleuze contra Heidegger. Cf. ponto 2 do capítulo II.
140
retorno nietzschiano como uma negação do próprio niilismo. Deste modo, ele postula um
segundo momento da seleção e estabelece, ao que podemos aqui somente interpretar da leitura
de Nietzsche e a filosofia, uma regra ontológica: fazer da própria vontade de nada uma
autodestruição do niilismo.
O que se passa quando a vontade de nada é relacionada com o eterno retorno? É
somente aí que ela quebra sua aliança com as forças reativas. Somente o eterno
retorno faz do niilismo um niilismo completo, porque faz da negação uma
negação das próprias forças reativas. O niilismo, por e no eterno retorno, não se
exprime mais como a conservação e a vitória dos fracos, mas como a destruição dos
fracos, sua autodestruição
70
.
O que Deleuze postula, portanto, é o que ele chama de destruição ativa. A
destruição ativa é uma inversão da vontade de nada, isto é, a vontade de nada se afirma e é
levada a seu máximo de tal modo que acaba afirmando-se como uma vontade negativa de
poder, mas as próprias forças reativas neste caso são negadas, sobrando somente a vontade
neste processo; a vontade agora é vista através das forças ativas, já que as reativas foram
negadas.
A destruição ativa significa o ponto, o momento de transmutação na vontade de
nada. A destruição torna-se ativa no momento em que, estando rompida a aliança
entre as forças reativas e a vontade de nada, esta última se converte e passa para o
lado da afirmação, relaciona-se com um poder de afirmar que destrói as próprias
forças reativas
71
.
A questão é que parece haver aqui uma negação da negação, onde a vontade
de nada nega a si mesma, sobrando um nada de vontade de nada (uma autodestruição), logo,
apenas uma vontade. Há uma transvaloração, uma transmutação de valores, onde a vontade
negativa de poder se torna uma vontade afirmativa de poder, já que a negação mesma é
negada resultando na pura afirmação da vontade
72
.
70
NF, p. 57.
71
NF, p. 146.
72
Devemos tomar o cuidado de não confundir a transvaloração dos valores como uma espécie de dialética
hegeliana. Deleuze deixa muito claro que tanto o super-homem de Nietzsche quanto a transvaloração se
dirigem justamente contra a própria dialética: “[...] o super-homem é dirigido contra a concepção dialética do
homem e a transvaloração contra a dialética da apropriação ou da supressão da alienação” (NF, p. 7). Na
interpretação deleuziana da transvaloração dos valores também há uma luta contra a dialética, já que não há
uma negação prévia com a qual a afirmação entraria em conflito, há simplesmente uma afirmação anterior. A
negação é posterior, mas ela envenena a afirmação, já que nos faz pensar que ela é que é anterior. O filósofo
francês, portanto, ao interpretar a afirmação nietzschiana, não nos traz novamente o âmbito da dialética, já
que não há contradição, apenas uma afirmação originária. Deleuze também nos deixa claras estas questões
logo no início de Nietzsche e a filosofia: “Em Nietzsche, a relação essencial de uma força com outra nunca é
concebida como um elemento negativo na essência. Em sua relação com uma outra, a força que se faz
141
A segunda seleção no eterno retorno consiste então no seguinte: o eterno retorno
produz o devir-ativo. Basta referir a vontade de nada ao eterno retorno para
aperceber-se de que as forças reativas não retornam. Por mais longe que elas vão e
por mais profundo que seja o devir-reativo das forças, as forças reativas não
retornarão. O homem pequeno, mesquinho, reativo não voltará. Pelo e no eterno
retorno, a negação, como qualidade da vontade de poder, transmuta-se em
afirmação, torna-se uma afirmação da própria negação, torna-se um poder de
afirmar, um poder afirmativo. É isto que Nietzsche apresenta como a cura de
Zaratustra e também como o segredo de Dionísio: “O niilismo vencido por si
mesmo”, graças ao eterno retorno. Ora, esta segunda seleção é muito diferente da
primeira: não se trata mais de eliminar do querer, pelo simples pensamento do eterno
retorno, o que nele não pode entrar sem mudar de natureza. Não se trata mais de um
pensamento seletivo, mas sim do ser seletivo, pois o eterno retorno é o ser e o ser é
seleção
73
.
O eterno retorno é o princípio desta transmutação, pois, como nos disse
Deleuze, ele é o próprio Ser e, enquanto tal, é ele que seleciona neste segundo aspecto. Por
isso o segundo aspecto é ontológico, porque está em um outro plano da seleção. Não se
encontra mais ao nível do empírico das forças, mas ao nível transcendental da vontade. Só
através do eterno retorno é que o niilismo pode ser combatido e, melhor ainda, combatido por
ele mesmo. A negação do niilismo é a afirmação do Ser no eterno retorno.
Para Deleuze, esta operação da transmutação do negativo em afirmativo
resulta naquilo que Nietzsche chamou de transvaloração de todos os valores, onde todos os
valores se tornam um só valor na cultura humana: o valor afirmativo da vontade.
Na terminologia de Nietzsche, inversão dos valores significa o ativo no lugar do
reativo (na verdade é a inversão de uma inversão, visto que o reativo havia
começado por tomar o lugar da ação); mas a transmutação dos valores ou
obedecer não nega a outra ou aquilo que ela não é, ela afirma sua própria diferença e se regozija com esta
diferença. O negativo não está presente na essência como aquilo de que a força tira sua atividade, pelo
contrário, ele resulta desta atividade, da existência de uma força ativa e da afirmação de sua diferença. O
negativo é um produto da própria existência: a agressividade necessariamente ligada a uma existência ativa, a
agressividade de uma afirmação. [...] Nietzsche substitui o elemento especulativo da negação, da oposição ou
da contradição, pelo elemento prático da diferença: objeto de afirmação e de gozo. É neste sentido que existe
um empirismo nietzscheano. A pergunta tão freqüente em Nietzsche: o que uma vontade quer? o que quer
este? aquele? não deve ser compreendida como a procura de um objetivo, de um motivo nem de um objeto
para esta vontade. O que uma vontade quer é afirmar sua diferença. Em sua relação essencial com a outra,
uma vontade faz de sua diferença um objeto de afirmação. ‘O prazer de se saber diferente’, o gozo da
diferença: eis o elemento conceitual novo, agressivo e aéreo pelo qual o empirismo substitui as pesadas
noções da dialética e, sobretudo, como diz o dialético, o trabalho do negativo. Dizer que a dialética é um
trabalho e o empirismo um gozo basta para caracterizá-los. E quem nos diz que há mais pensamento num
trabalho do que num gozo? E diferença é o objeto de uma afirmação prática inseparável da essência e
constitutiva da existência. O ‘sim’ de Nietzsche se opõe ao ‘não’ dialético; a leveza, a dança, ao peso
dialético; a bela irresponsabilidade, às responsabilidades dialéticas. O sentimento empírico da dialética, em
suma, a hierarquia é o motor essencial do conceito, mais eficaz e mais profundo do que todo pensamento da
contradição” (NF, p. 7-8). Conferir também a 6º parte do capítulo 5 de Nietzsche e a filosofia, onde Deleuze
expõe com maiores detalhes os argumentos apresentados acima.
73
NF, p. 58.
142
transvalorização significa a afirmação em lugar da negação, e mais ainda, a
negação transformada em poder de afirmação, suprema metamorfose dionisíaca
74
.
[...] porque a transmutação é o niilismo acabado? Porque, na transmutação, não se
trata de uma simples substituição, mas de uma conversão. É passando pelo último
dos homens, mas indo além, que o niilismo encontra seu acabamento: no homem
que quer perecer, que quer ser superado, a negação rompeu tudo o que ainda a
retinha, venceu a si mesma, tornou-se poder de afirmar, já é poder do super-homem,
poder que anuncia e prepara o super-homem
75
.
A transmutação traz, deste modo, uma nova cultura do homem, traz os
valores do super-homem. Destarte, o último dos homens está fadado à superação, porque ele
mesmo assim o quer, ele não quer conservar-se, ele quer ser ultrapassado
76
.
Acrescente-se que com a transformação do negativo em afirmativo,
podemos notar que só o devir-ativo possui um Ser, já o devir-reativo pertence ao niilismo,
portanto não possui Ser. O eterno retorno só faz retornar o devir-ativo (a ação) e não o reativo
(a reação). Assim, chegamos ao Ser unívoco como o devir-ativo do eterno retorno.
Agora que já temos reunidos, de um modo mais consistente, estes dois
conceitos fundamentais da interpretação deleuziana de Nietzsche (o eterno retorno e a vontade
de poder), podemos nos embrenhar com um pouco mais de profundidade nas linhas
deleuzianas de sua interpretação de Nietzsche sobre o Ser como unívoco.
3.3. Eterno Retorno e Vontade de Poder – Repetição e Diferença
A filosofia de Deleuze está marcada pela interpretação de Espinosa e sua
substância absoluta e, principalmente, pela interpretação de Nietzsche e o eterno retorno da
vontade de poder. Muitos dos conceitos de nosso autor e, como viemos dizendo até o presente
momento, de sua ontologia, estão centrados nesta interpretação da filosofia nietzschiana;
portanto, o que iremos expor a seguir ainda se encontra neste terceiro momento do unívoco,
74
NF, p. 58.
75
NF, p. 146.
76
Roberto Machado expõe, com maior clareza, as três figuras do niilismo a que Deleuze se refere em Nietzsche e
a filosofia: “[...] o niilismo em suas diversas figuras, em seus sucessivos estágios: niilismo negativo que nega
o mundo em nome dos valores superiores; niilismo reativo que nega os valores divinos em nome dos valores
humanos demasiado humanos, que põe o homem reativo no lugar de Deus; niilismo passivo, do ‘último dos
homens’ que, diferentemente dos homens negativos e reativos, prefere um nada de vontade a uma vontade de
nada ou que prefere extinguir-se passivamente. É esse terceiro estágio do niilismo que, na interpretação de
Deleuze, possibilita um ‘niilismo completo’ do homem da ‘destruição ativa’” (Machado, 1990, p. 92).
143
mas já é um grande passo para o quarto momento, que se encontra na própria filosofia
deleuziana.
Assim, como vimos até aqui, excluímos as forças reativas de pequena
intensidade, depois tiramos de cena o niilismo, ou a vontade negativa de poder, restando
unicamente a vontade afirmativa de poder, ou unicamente a vontade de poder. A afirmação é,
desta forma, a única coisa que pode retornar no eterno retorno. Devemos, contudo, distinguir
duas espécies de afirmação, como Deleuze a distingue nas últimas páginas de Nietzsche e a
filosofia:
A afirmação não tem outro objeto a não ser ela mesma. Mas, precisamente, ela é o
ser enquanto ela é seu próprio objeto. A afirmação como objeto da afirmação: este é
o ser. Nela mesma e como afirmação primeira, ela é o devir. Mas ela é o ser
enquanto é o objeto de uma outra afirmação que eleva o devir ao ser ou que extrai o
ser do devir. Por isso, em todo seu poder, a afirmação é dupla: afirma-se a
afirmação. É a afirmação primeira (o devir) que é ser, mas ela só é como objeto da
segunda afirmação. As duas afirmações constituem o poder de afirmar em seu
conjunto
77
.
As duas afirmações se entrelaçam, pois uma se diz da outra enquanto uma é
o objeto da outra. A afirmação, como visto na citação acima, não possui outro objeto que si
mesma, mas a afirmação como objeto difere da afirmação como invólucro. Não podemos
separar uma da outra, já que as duas formam um conjunto: a primeira é o círculo que faz
retornar o conjunto como um todo; a segunda é o invólucro que retorna juntamente com o
retorno em si, pois constitui a “alma” do próprio retorno. Podemos dizer, desta maneira, que:
a primeira afirmação é o Ser enquanto devir, mas ela só pode ser concebida como Ser
enquanto for o objeto da segunda afirmação que é a intensidade. O eterno retorno é o Ser
como devir, mas só é o Ser enquanto se diz da diferença intensiva que é a vontade de poder.
[...] o eterno retorno é a univocidade do ser, a realização efetiva desta univocidade.
No eterno retorno, o ser unívoco não é somente pensado, nem mesmo somente
afirmado, mas efetivamente realizado. O Ser se diz num mesmo sentido, mas este
sentido é o do eterno retorno, como retorno ou repetição daquilo de que ele se diz. A
roda no eterno retorno é, ao mesmo tempo, produção da repetição a partir da
diferença e seleção da diferença a partir da repetição
78
.
O eterno retorno não faz retornar o mesmo e o semelhante, mas ele próprio deriva de
um mundo da pura diferença. Cada série retorna não só nas outras que a implicam,
mas por ela mesma, porque ela não é implicada pelas outras sem ser, por sua vez,
integrante restituída como aquilo que as implica. O eterno retorno não tem outro
77
NF, p. 155.
78
DR, p. 74.
144
sentido além deste: a insuficiência de origem assinalável, isto é, a designação da
origem como sendo a diferença, que relaciona o diferente com o diferente para fazê-
los retornar enquanto tais. Neste sentido, o eterno retorno é bem a conseqüência de
uma diferença originária, pura, sintética, em si (o que Nietzsche chamava de vontade
de potência). Se a diferença é o em si, a repetição, no eterno retorno, é o para-si da
diferença
79
.
O eterno retorno é, por conseguinte, eterno retorno da diferença, pois tudo o
que faz retornar é a vontade de poder que é o seu próprio invólucro ou, como nos disse
Deleuze em Diferença e repetição, a vontade de poder é o próprio mundo do eterno retorno.
Entretanto, podemos nos questionar: – Em Nietzsche, o eterno retorno não é dito eterno
retorno do mesmo? Sim. Mas devemos ter em mente o que este mesmo quer dizer. Não é o
mesmo da identidade e da semelhança, mas o mesmo da repetição e da diferença. O único
mesmo que o eterno retorno conhece é ele próprio, o mesmo do eterno retorno é o próprio
retornar, e, como vimos, este retornar é envolvido pela diferença que o tem por objeto; assim,
o mesmo do eterno retorno do mesmo é o eterno retorno da mesma repetição da diferença.
O sujeito do eterno retorno não é o mesmo, mas o diferente, nem é o semelhante,
mas o dissimilar, nem o Uno, mas o múltiplo, nem é a necessidade, mas o acaso.
Ainda mais: a repetição no eterno retorno implica a destruição de todas as formas
que impedem seu funcionamento, categorias da representação encarnadas no caráter
prévio do Mesmo, do Uno, do Idêntico e do Igual. Ou então o mesmo e o semelhante
são apenas um efeito do funcionamento dos sistemas submetidos ao eterno retorno.
[...] o mesmo e o semelhante são ficções engendradas pelo eterno retorno. [...] não é
o mesmo nem o semelhante que retornam, mas o eterno retorno é o único mesmo e a
única semelhança do que retorna. Eles não se deixam também abstrair do eterno
retorno para reagir sobre a causa. O mesmo se diz do que difere e permanece
diferente. O eterno retorno é o mesmo do diferente, o uno do múltiplo, o semelhante
do dessemelhante
80
.
O mesmo, enquanto Mesmo do idêntico, é um erro, ou uma ilusão, como o
foi para toda a filosofia da representação, mas para a filosofia da diferença ele é um produto,
uma simulação, assim como o semelhante, o idêntico, o uno e o igual. A diferença,
juntamente com a repetição, produz simulações, ou fantasmas, que podem ser vistos como
identidades e semelhanças, entretanto estas identidades e semelhanças nunca passarão de
efeitos secundários, já que, para Deleuze, a diferença é sempre anterior. Além do mais, o
eterno retorno, como a primeira afirmação, é o único mesmo que se repete e, ao se repetir, traz
consigo toda a diferença que se expressa na segunda afirmação e que é o próprio mundo do
eterno retorno, a vontade de poder. A duplicação da afirmação não é uma equivocidade, é
79
DR, p. 182-3.
80
DR, p. 183-4.
145
antes uma expressão de um mundo através de um de seus objetos. O Ser como unívoco é dito
do eterno retorno que expressa a diferença a que ele mesmo está contido. Assim, só há um
sentido do Ser: a afirmação.
[...] a afirmação se duplica, a diferença é refletida na afirmação: momento da
reflexão na qual uma segunda afirmação toma a primeira por objeto. Mas assim a
afirmação redobra: como objeto da segunda afirmação ele é a própria afirmação
afirmada, a afirmação redobrada, a diferença elevada à sua maior potência. O devir
é o ser, o múltiplo é o um, o acaso é a necessidade. A afirmação do devir é a
afirmação do ser, etc., mas na medida em que ela é objeto da segunda afirmação que
a leva para esse poder novo. O ser se diz do devir, o um do múltiplo, a necessidade
do acaso, mas na medida em que o devir, o múltiplo e o acaso se refletem na
segunda afirmação os toma por objeto. Assim, é da própria afirmação retornar, ou da
diferença se reproduzir. Retornar é o ser do devir, o um do múltiplo, a necessidade
do acaso: o ser da diferença enquanto tal, ou o eterno retorno
81
.
A afirmação, ao duplicar-se, se eleva ao seu mais alto poder, pois se diz n
vezes de si mesma. E a afirmação se duplica porque se configura como o seu próprio objeto e
esta configuração faz com que ele expresse toda a sua própria diferença – diferença esta
entendida como devir, como multiplicidade e como acaso. Destarte, a repetição se caracteriza
como a primeira afirmação, mas só é dita como tal enquanto se remete à segunda afirmação.
A diferença é a segunda afirmação, e só é tida como diferença porque retorna através da
primeira afirmação. Conclui-se que a vontade de poder é a diferença e se caracteriza como
princípio genético das forças e o eterno retorno é a repetição que se constitui como intensivo
porque se refere à diferença que também o é. Conseqüentemente, o Ser é unívoco porque se
diz enquanto eterno retorno da vontade de poder (eterno retorno da diferença).
CONCLUSÃO
Seguindo com o agenciamento que vínhamos fazendo desde o princípio
deste trabalho, vimos nesse capítulo três importantes momentos da interpretação do Ser como
unívoco. Os recortes na história da filosofia feitos por Deleuze o levaram a pensar o Ser como
neutralidade pura em Duns Scott, como substância única em Espinosa e como afirmação pura
em Nietzsche.
Duns Scott é caracterizado como o primeiro momento do Ser unívoco – não
por ser o primeiro a pensá-lo em um único sentido, já que esta voz única do Ser já podia ser
81
NF, p. 157-8.
146
vislumbrada em alguns outros pensadores, mas pela sua radicalidade com relação a este
pensamento. O empenho de Scott era contra a analogia tomista, o que o levou a tentar superar
esta questão e a postular um Ser neutro. Assim, o doutor sutil acaba distinguindo a filosofia
da teologia, fazendo da primeira uma busca pelo ser enquanto ser de Aristóteles, não levado a
cabo pelos filósofos medievais. Esta distinção entre filosofia e teologia e a luta scottista contra
a analogia tomista constituem as duas primeiras questões que fazem de Duns Scott um
representante da univocidade do Ser, mas a grande questão que Deleuze encontra para
reconhecer este postulado está na terceira questão, do Ser neutro. Na verdade, as três questões
estão diretamente interligadas.
O Ser neutro scottista, por sua vez, possui duas distinções: a distinção
formal, que diz respeito aos seus atributos formais; e a distinção modal, que se refere aos
modos intensivos do Ser. A distinção formal é, para o doutor sutil, uma distinção real e,
portanto, não numérica, que distingue os atributos do Ser. Um atributo é reconhecido como
uma parte formal do Ser, mas esta parte diz respeito a ele próprio. Os atributos são a voz
unívoca do Ser; dizem sempre o mesmo, pois se dizem do Ser neutro, mas em si mesmo
diferem em diversos modos intensivos. A distinção modal é, desta maneira, uma distinção
entre os modos e os atributos e é uma distinção numérica. Os modos diferem dos atributos,
pois não se dizem formalmente do Ser, e sim numericamente, intensivamente. Destarte, o Ser
se desdobra em seus atributos formais que, por sua vez, se desdobram em seus diversos
modos intensivos. O Ser só se diz da neutralidade, ele só possui este sentido, ele é unívoco.
Estas questões também aparecem em Espinosa, o segundo momento do
unívoco para Deleuze, entretanto se desenvolvem de um modo distinto.
Espinosa vai contra a principal tese de Scott, o Ser neutro. Para Espinosa, o
Ser não é uma neutralidade, mas uma afirmação pura; ele é, para o filósofo judeu, uma
substância única e infinita. A substância única possui duas distinções: uma distinção real, ou
formal; e uma distinção numérica, ou modal. A primeira se remete à diferença entre a própria
substância e os seus atributos, onde os atributos são desdobramentos formais da substância
que se expressa neles; e a segunda se refere à diferença entre os atributos e os modos da
substância, onde os modos são expressões quantitativas dos próprios atributos. Há, contudo,
ainda um outro importante conceito que permeia a substância, os atributos e os modos. Este
conceito é a potência (conatus). A potência é a essência da substância, que é formada pelos
atributos e são de dois tipos: potência de pensar e potência de existir. Apesar de os atributos
formarem a potência, não se pode confundi-los com ela. A potência de pensar forma um
147
vínculo intrínseco com os modos, já que os atributos possuem em seu interior a potência dos
modos (ou a sua essência) e é o princípio intensivo destes; no entanto, a potência de existir
forma um vínculo extrínseco com os modos, já que os atributos não possuem diretamente a
existência destes. Eles são gerados por um outro modo existente. Assim se forma o princípio
extensivo dos modos. Desta maneira, a substância se diz de seus atributos essencialmente e os
atributos dizem dos modos também essencialmente. Já a substância pode se dizer dos modos
extensivamente. A substância se expressa qualitativamente em seus atributos e
extensivamente em seus modos. Já os atributos se expressam intensivamente através dos
modos. O Ser só se diz da substância, ou seja, ele só possui um sentido, ele é unívoco.
Quanto ao terceiro momento do unívoco, Nietzsche, através desta
interpretação deleuziana, nos traz à tona uma nova perspectiva do eterno retorno. O eterno
retorno, assim, possui dois aspectos: o aspecto físico e cosmológico e o aspecto ético e
ontológico. No primeiro aspecto, temos dois tipos de conteúdo: o conteúdo manifesto, que em
Deleuze expressa aquilo que o Anão do Assim falou Zaratustra entende por eterno retorno, ou
seja, o retorno do idêntico e do semelhante; e o conteúdo latente, que Deleuze nos diz ser o
que Nietzsche quer dizer com o eterno retorno, isto é, um retorno não mais do idêntico e do
semelhante, mas do próprio retorno. Para compreender melhor este segundo conteúdo, é
necessário adentrar no segundo aspecto do eterno retorno, em seu aspecto ético e ontológico.
Neste aspecto também há uma divisão, um conteúdo prático, que se refere ao seu conteúdo
ético, ou àquilo que Deleuze expõe como uma interpretação do imperativo categórico
kantiano: “O que tu quiseres, queira-o de tal modo que também queiras seu eterno retorno”
82
.
Neste conteúdo já presenciamos o surgimento de um outro importante conceito nietzschiano:
a vontade de poder. Quanto ao segundo conteúdo deste segundo aspecto do eterno retorno, ele
se refere ao seu âmbito ontológico.
O conteúdo ontológico do eterno retorno nos mostra, com maior clareza, o
que Deleuze queria dizer com o eterno retorno da diferença. Primeiro temos uma exclusão das
forças reativas que são, na verdade meias-vontades, depois uma exclusão do niilismo que se
caracteriza ainda como uma vontade reativa, mas como uma máxima vontade, a vontade
negativa de poder. Esta exclusão do niilismo se dá por uma inversão da vontade negativa em
vontade afirmativa: o niilismo vai até o seu máximo, o que se torna um nada de vontade,
restando, em contrapartida, a vontade afirmativa; esta inversão, o filósofo francês a chamou
de destruição ativa. Realizada a destruição ativa, observamos duas espécies de afirmação: a
82
NF, p. 56.
148
afirmação que é o Ser, mas só enquanto se diz da segunda afirmação; e a segunda afirmação,
que é uma espécie de invólucro da primeira, pois a contém. A primeira afirmação é o eterno
retorno, a repetição que sempre retorna, e, ao retornar, traz consigo a segunda afirmação, a
vontade de poder enquanto diferença pura. Assim, temos um eterno retorno da vontade de
poder ou repetição da diferença. O Ser, portanto, é a própria afirmação e só se diz dela. O Ser
é unívoco.
Estes são os três momentos do unívoco que Deleuze resgata e recorta da
história da filosofia; e são também a base para um quarto momento do unívoco, o momento
em que o próprio Deleuze é o protagonista. Estes três primeiros momentos servem, de tal
modo, de modus operandi ou de base para a formulação do quarto momento. A univocidade
do Ser possui, na filosofia deleuziana, uma grande importância, já que ela é aquilo que sempre
volta em cada questão que ele coloca e analisa. Não há filosofia da diferença em Deleuze sem
que a diferença se diga por si mesma e se diga de um modo ontologicamente unívoco. No
próximo capítulo veremos como se dá este último momento da univocidade e como o Ser é
visto como sentido-acontecimento.
CAPÍTULO IV
DELEUZE E O SER COMO DIFERENÇA
150
INTRODUÇÃO
Viemos, até o presente momento, construindo um agenciamento em torno
dos principais conceitos trabalhados por Deleuze na sua abordagem da história da filosofia,
seja como crítica ou enquanto resgate. Esta crítica e este resgate levaram Deleuze a conceber
o seu pensamento como algo despregado tanto da filosofia representativa quanto daquela que
invoca a negatividade como motor. É avançando por esta senda que a sua filosofia se coloca
como um novo momento da univocidade do Ser. Para o nosso filósofo, o Ser só pode ser dito
em um só sentido, pois ele é unívoco para todas as coisas de que ele se diz, entretanto as
coisas de que ele diz não são unívocas, ao contrário, são completamente diferentes umas das
outras. Há, em Deleuze, uma univocidade apenas num plano “ontológico” (incorporal), já que
no plano “ôntico” (das coisas e estados de coisas, que são corpóreos) o que há é uma
equivocidade, pois as coisas se dizem sempre da diferença (que é ontologicamente unívoca).
O Ser, deste modo, é a própria diferença e só pode ser dita como tal. Não há um outro sentido
para ele senão a diferença.
No terceiro capítulo pudemos perceber como Deleuze começa a construir a
sua filosofia da diferença unívoca se pautando em três momentos que ele mesmo recorta da
história da filosofia: os três momentos do unívoco.
O primeiro momento estabelecia o Ser como uma neutralidade; Duns Scot
resgatava o lugar da filosofia, ou da ontologia, e o separava do lugar da teologia. Não haveria,
para ele, um encontro entre estas duas disciplinas, não haveria um objeto único para as duas
(Deus), como o pensamento medieval escolástico insistia em dizer; o objeto da filosofia
(ontologia) é pensar o ser enquanto ser, que se distingue do objeto da teologia, que é: a
natureza da fé e a interrogação sobre Deus. Só há o Ser neutro, mas ele mesmo se divide em
diversas formas e modos. Assim, o Ser, para o doutor sutil, é unívoco, porque é dito
exclusivamente enquanto um “Ser ontologicamente neutro”, mas este Ser se diz de uma
diversidade de formas e modos.
O segundo momento já retirava do Ser este caráter de neutralidade. Ele não
era visto como neutro, mas como afirmação pura. Quando Espinosa re-introduz o pensamento
acerca da substância e lhe dá uma nova arquitetura interna, está dizendo que a substância é a
única existência que pode ser pensada, mas que esta substância se expressa em diversas coisas
e formas. A substância única possui diversos e diferentes atributos que, por um lado, a
151
expressam de uma única forma, em um único sentido e, por outro lado, expressam uma
diversidade de modos. Conclui-se que o Ser é unívoco porque é a única expressão (sentido) de
tudo o que existe, mas esta expressão se desdobra em uma diversidade de atributos e modos.
No terceiro momento do unívoco – e é neste ponto em que Deleuze mais se
sustenta para instaurar o seu próprio pensamento ontológico –, o Ser é visto como a pura
diferença através de uma dupla afirmação. A primeira afirmação se caracteriza como o Ser do
retorno eterno (ou enquanto “eterno retorno”), mas esta afirmação só pode ser pensada na sua
relação com a segunda, que a contém como um invólucro. A segunda afirmação possui a
primeira como objeto e não pode ser vista sem ela. É a vontade de poder que se caracteriza
como a diferença intensiva das forças ativas. Destarte, o eterno retorno, enquanto primeira
afirmação, só pode ser dito como afirmação na sua relação com a vontade de poder que é a
própria diferença: eterno retorno da vontade de poder (repetição da diferença). Logo, o Ser é
unívoco porque é dito somente como afirmação, mas esta afirmação se desdobra no horizonte
aberto pelo eterno retorno e a vontade de poder.
Em vista disso, Deleuze postula a diferença como o “Ser unívoco”, mas esta
diferença só pode ser entendida através da sua repetição; como em Nietzsche, onde a vontade
de poder mantinha uma relação íntima com o eterno retorno e não poderia ser pensada,
segundo o filósofo francês, separada deste. É em torno destes três momentos agenciados por
Deleuze que ele vai agregar diversos outros conceitos importantes oriundos da sua própria
filosofia da diferença, como, por exemplo: a doutrina do acontecimento (que se traduz como a
lógica do sentido que ele resgata dos estóicos), o transcendental (que ele re-elabora a partir de
Kant), as sínteses disjuntivas, o Ser como problema e como questão e também a doutrina das
faculdades (que é o que vai caracterizar a filosofia deleuziana como um “empirismo
transcendental”). Veremos, neste capítulo, algumas destas principais questões, ou melhor,
algumas caracterizações, a partir destes conceitos, que nos levam a pensar diretamente
Deleuze como o quarto momento do unívoco.
152
O QUARTO MOMENTO DO UNÍVOCO – Deleuze e a Diferença
Apresentação
Deleuze representaria o quarto momento da univocidade do Ser por resgatar
vários dos pontos já elencados anteriormente e por equiparar o Ser não mais a uma unidade
idêntica, mas a uma espécie de unidade diferencial; isto é, ele faz da diferença a única voz do
Ser, a sua voz unívoca ou, ainda, uma “idéia problematizante”. Cabe perguntar: – Como
podemos pensar uma unidade que já é diferença, como podemos pensar uma idéia que já é um
problema?
Para o autor de Diferença e repetição, o Ser ou, no sentido clássico, a
essência não é algo primeiro. A identidade não é aquilo que promove a diferença. Ao
contrário, é a diferença que causa qualquer forma de identidade, mas que só é causada através
da repetição desta diferença. O Ser é unívoco, mas não é idêntico. Ele só possui um sentido,
só pode possuir uma voz de tudo aquilo de que ele se diz. Questionar sobre a univocidade do
Ser em Deleuze nos remete, portanto, a uma tentativa de compreensão do que ele mesmo
entende por “sentido”. Pensar a diferença como originária, através de sua repetição (como o
vimos na dupla afirmação da interpretação deleuziana de Nietzsche), requer inicialmente
adentrar mais profundamente na discussão que o nosso autor resgata da lógica e da filosofia
da linguagem, ou seja, a procura pelo sentido. Qual é o estatuto do sentido?
1. O Outro Sentido do “Sentido”
Segundo Deleuze, a problemática a respeito do Ser foi tratada, durante
muito tempo, segundo o modelo do juízo; esse modelo nos leva a pensar não numa
univocidade do Ser, mas numa analogia, que é classificado por nosso filósofo como um modo
aprimorado da equivocidade
1
. O Ser análogo possui vários sentidos, mas estes vários sentidos
estão classificados na ordem do juízo, através de uma distribuição e hierarquização. Estes
dois mecanismos da analogia correspondem às duas faculdades do juízo que Deleuze
1
Acerca da analogia que surge mais precisamente com a escolástica e o tomismo, nesta interpretação que
seguimos, cf. trecho 3.2.1.1 do capítulo I deste trabalho.
153
denominou de bom senso e senso comum. O “bom sentido”, ou sentido primeiro, está
orientado pela hierarquização, já que se diz do modelo pelo qual as séries das categorias se
organizam. Há uma hierarquia das séries, entendida categorialmente
2
, onde uma se diz como
essência (ou ousía) de outras séries, e estas, por sua vez, tomam aquela como um modelo a ser
seguido.
Ora o bom senso se diz de uma direção: ele é senso único, exprime a existência de
uma ordem de acordo com a qual é preciso escolher uma direção e se fixar a ela.
Esta direção é facilmente determinada como a que vai do mais diferenciado ao
menos diferenciado, da parte das coisas à parte do fogo. Segundo ela, orientamos a
flecha do tempo, uma vez que o mais diferenciado aparece necessariamente como
passado, na medida em que ele define a origem de um sistema individual e o menos
diferenciado como futuro e como fim. Esta ordem do tempo, do passado ao futuro, é
pois instaurada com relação ao presente, isto é, com relação a uma fase determinada
do tempo escolhida no sistema individual considerado
3
.
O bom senso age, por conseguinte, como um regulador das séries, que as
coloca em marcha em uma única direção, a direção da identidade conceitual. Uma hierarquia
age por trás das séries de categorias. Esta hierarquia se organiza sob a égide da identidade (ou
essência, ousía); o que coloca as séries categoriais em uma direção única. A questão da
“flecha do tempo” (inscrita na citação), onde a marcha do bom senso nos leva a pensar o
tempo em uma direção única, pensar o passado e o futuro com relação ao presente, será
trabalhada posteriormente, quando abordaremos as duas leituras do tempo em Deleuze.
Quanto ao “sentido comum”, ele está orientado pela distribuição e é ele que
guia todas as outras séries de categorias a seguirem a essência (ousía) como um modelo; ele
generaliza a identidade do bom senso
4
.
No senso (sentido) comum, “sentido” não se diz mais de uma direção, mas de um
órgão. Nós o dizemos comum, porque é um órgão, uma função, uma faculdade de
identificação, que relaciona uma diversidade qualquer à forma do Mesmo. O senso
comum identifica, reconhece, não menos quanto o bom senso prevê
5
.
2
Devemos ressaltar que as séries categoriais são compreendidas, enquanto instâncias da tradição filosófica, num
sentido ontológico, portanto as séries de categorias aqui também devem ser entendidas deste modo.
3
LS, p. 78.
4
Jose Luis Pardo, em sua obra já citada anteriormente Deleuze: violentar el pensamiento, traz uma passagem
que deixa clara esta remissão do bom senso à hierarquização e do senso comum à distribuição: “Assim, as
coisas, o ser como representante da identidade conceitual mais alta (ao que também mais indeterminada
possuem um sentido comum, segundo o qual se reparte distributivamente entre todos os gêneros e categorias,
garantindo sua identidade (e, portanto, de seus ‘indivíduos’ componentes), e um sentido primeiro ou ‘bom
sentido’, ousía, que se impõe hierarquicamente ao resto das categorias (quantidade, qualidade, relação, etc.)”
(Pardo, 1992, p. 71).
5
LS, p. 80.
154
O senso comum funciona como um organismo que distribui as diversas
séries num mesmo plano, pois as coloca diante do Mesmo, do idêntico. Ele organiza as
diversidades seriais na direção que o bom senso indica, na direção em que a hierarquia coloca
a marcha. A questão é que o bom senso e o senso comum estão em constante relação, sempre
um remete ao outro e as suas particularidades: “Bom senso e senso comum, cada um deles
remete ao outro, cada um reflete o outro e constitui a metade da ortodoxia”
6
. Estes dois signos
do sentido, enquanto funções da analogia, formam as duas características da ortodoxia como o
modelo do juízo
7
.
Deste modo, não há um único sentido na analogia, já que ela é uma
classificação – orientada pela identidade do “sentido primeiro” – dos múltiplos sentidos do
Ser; isto é, o Ser ainda se diz de várias formas, mas estas formas se dizem através da
semelhança (senso comum) que possuem com o fundamento primeiro (bom senso). A questão
que permanece é: – Se a problemática do Ser e a teoria do sentido do autor de Diferença e
repetição não estão orientadas neste modelo do juízo (ortodoxia), em que ela está baseada?
Deleuze abandona a égide do juízo, e as funções do bom senso e do senso
comum, para resgatar o modelo da proposição (já inicialmente elaborada pela filosofia
estóica) como campo problemático da sua ontologia e, respectivamente, de sua teoria acerca
do sentido. O modelo da proposição se distingue do modelo do juízo por não se pautar mais a
partir de uma analogia, mas de um sentido único, a univocidade. Enquanto que o modelo do
juízo não se regula na proposição mesma, já que tenta pensar o juízo que se faz da proposição
enunciada; o modelo da proposição reivindica o sentido como parte da proposição, ou como
uma nova dimensão desta. Pensar a proposição e as suas dimensões é, muitas vezes, se deitar
sobre os paradoxos que a linguagem nos reserva; não fugir deles, mas reivindicá-los como
parte integrante de uma lógica do sentido, é reconhecer que a proposição pode nos permitir
pensar o próprio Ser, pode nos levar a uma ontologia mesma. Esta remissão ao modelo
proposicional não quer dizer, no entanto, que ele se apóie unicamente nas teorias da
proposição em seu conjunto e deixe de postular novos conceitos para este campo que ele
aponta; pelo contrário, como sempre, Deleuze é muito crítico e inovador, remetendo-se ao
sentido como algo que não está vinculado diretamente às três dimensões básicas da
proposição (postuladas pela grande maioria dos filósofos da linguagem), mas a uma quarta
dimensão, como veremos a seguir.
6
DR, p. 319.
7
Para um maior esclarecimento acerca do senso comum e do bom senso como partes da ortodoxia, cf. DR, p.
313-21.
155
Deleuze reinventa, deste modo, o molde proposicional, a fim de fazê-lo
invocar a univocidade do Ser e de reclamar à sua própria filosofia um estatuto ontológico –
“[...] em termos de proposição ontológica, e não de um juízo sobre ontologia”
8
.
1.1. A Quarta Dimensão da Proposição: O Sentido-Acontecimento
Em Lógica do sentido, Deleuze nos traz, com maiores detalhes, esta
discussão acerca da proposição. É na obra de Lewis Carroll que ele se apóia para desenvolver
a sua problemática acerca da proposição e das modernas teorias proposicionais
9
, mas é
através da filosofia estóica que ele acaba inovando o modelo proposicional e lhe postulando
um estatuto ontológico.
Nesta obra, Deleuze traça um mapa das “teorias” que as filosofias da
linguagem, de diferentes épocas, propuseram sobre as formas da proposição. Aquilo que de
comum pode ser encontrado neste conjunto de reflexões, segundo Deleuze, é que todas elas
descrevem três únicas dimensões da proposição, formas estas que foram aceitas com maior
intensidade; tais dimensões são: a “designação”, a “manifestação” e a “significação”.
A primeira delas, a designação, diz que toda a proposição designa, isto é,
indica, aponta ou relata um estado de coisas. Este estado de coisas é determinável e
individual, já que se diz disto ou daquilo e não de uma totalidade de coisas dispersas, porém
ele também é exterior à própria proposição, pois faz parte daquilo que é dado à visão e não às
palavras. Na designação temos um designante, aquilo que designa ou representa (a
linguagem) e um designado, aquilo que é designável ou representável (o estado de coisas). A
designação, desta forma, opera segundo uma relação entre o estado de coisas e as palavras que
o representam – uma relação entre as palavras e as coisas –, esta relação é regida por uma
seleção: é preciso selecionar as palavras a serem colocadas no complexo da proposição de
forma que estas representem com maior veracidade o estado de coisas que se apresenta. Há
ainda na proposição, segundo o nosso filósofo, algumas palavras que servem como “puros
8
Craia, 2002, p. 40.
9
As quatro principais obras de Carroll em que Deleuze se apóia para desenvolver tal questionamento são: Alice
(que no Brasil foi traduzido como Alice no país das maravilhas), Do outro lado do espelho [há uma tradução
brasileira comentada destas duas obras: CARROLL, Lewis. Aliceedição comentada. Ilustrações originais,
John Tenniel; introdução e notas, Martin Gardner; tradução, Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2002], Silvia e Bruno [CARROLL, Lewis. Algumas aventuras de Sílvia e Bruno. Trad. S.
L. R. Medeiros. São Paulo, Iluminuras, 1997] e A caça ao Snark [CARROLL, Lewis. A caça ao Snark. Trad.
Manuel Resende. São Paulo: Assírio & Alvim, 2003].
156
designantes”, que não representam propriamente as coisas, mas as indicam; são os chamados
indicadores ou “singularidades formais”: este, esta, isto, etc., e os nomes próprios (como
indicadores especiais e privilegiados). Como elementos da designação temos: o verdadeiro –
quando a representação das coisas pelas palavras é feita de modo satisfatório, seja segundo
seu efetivo preenchimento, a sua indicação ou através de uma boa seleção; e o falso – que
ocorre quando há algum tipo de deficiência em algum dos processos mencionados acima. Na
verdade, a designação parece funcionar aqui como um princípio de adequação da lógica
clássica, mas não será o nosso intuito prosseguir nesta relação.
A segunda dimensão, a manifestação, diz que toda proposição manifesta os
estados subjetivos (desejos, crenças, influência direta do contexto particular, etc.) de um
sujeito falante, ou enunciador. Os estados do sujeito não são relações entre as palavras e as
coisas, mas “inferências causais”; assim, “O desejo é a causalidade interna de uma imagem no
que se refere à existência do objeto ou do estado de coisas correspondente; correlativamente, a
crença é a espera deste objeto ou estado de coisas, enquanto sua existência deve ser produzida
por uma causalidade externa”
10
. Segundo Deleuze, a manifestação poderia ser dita anterior à
designação, já que seria aquela que “tornaria possível” esta, pois a manifestação opera
segundo a ordem do “pessoal” e do singular. Além disso, ela traz outros elementos que não
contradizem os elementos da designação, mas que também não se relacionam diretamente
com estes. São eles: a certeza e o engano. Aqui não há critério de verdade – se aquilo que é
dito de um estado de coisas é verdadeiro ou falso segundo as regras da designação de
preenchimento dos indicadores e de sua boa seleção –, e sim de certeza – se aquilo que é dito
corresponde a algo realmente certo e indubitável ou se é um engano de um sujeito falante.
Aparecem assim os “manifestantes” (como antes os indicadores da designação) como os
caracteres da manifestação: amanhã, sempre, alhures, tu, etc., e o Eu, que corresponde ao
nome próprio da designação, e que possui um caráter especial sobre os outros.
A terceira dimensão, a chamada significação, diz que toda proposição possui
um determinado sistema lingüístico (conceitos universais, implicações sintáticas, gramaticais,
etc.) no qual se encontra inserido. Esta terceira dimensão é a responsável pela relação entre as
proposições, já que todas as proposições se instalam num determinado conjunto de regras que
as regem, umas servindo de premissas, outras de conclusões. Como na designação e na
manifestação, a significação possui caracteres especiais. São os chamados “significantes
lingüísticos” e são eles: implica, se, logo, portanto, etc. Na verdade, estes caracteres
10
LS, p. 14.
157
correspondem aos dois elementos da “demonstração” que definem a significação como esta
relação entre proposições. Tais elementos são: a “implicação”, que relaciona as premissas
com a conclusão; e a “asserção”, “[...] que define a possibilidade de afirmar a conclusão por si
mesma no final das implicações”
11
. Para Deleuze, não devemos compreender a demonstração
apenas desta maneira, “[...] mas também no sentido físico das probabilidades, ou no sentido
moral das promessas e compromissos, sendo a asserção da conclusão neste último caso
representada pelo momento em que a promessa é efetivamente cumprida”
12
. Quanto aos
elementos da significação, a princípio, eles criariam uma certa “condição de verdade” que não
se opõe ao falso e nem ao duvidoso, mas àquilo que não possui significação, isto é, ao
absurdo. O estado de coisas pode ser incerto (engano), ou as palavras podem não se relacionar
adequadamente com as coisas (falsidade) nas premissas, mesmo assim a asserção pode estar
em perfeito acordo com o estado de coisas, o que caracteriza uma proposição com
significação (não absurda); dependendo, de tal modo, do contexto a que as proposições são
colocadas.
Este breve esquema resume o que Deleuze caracteriza como as “clássicas”
dimensões da proposição; entretanto, segundo ele, não bastam estas três dimensões para
fundar uma “ontologia proposicional”. Seria necessária uma quarta dimensão, em que fosse
possível vislumbrar o mais importante elemento da proposição: o sentido.
No esquema acima pudemos verificar uma certa ordem de fundação:
significação, manifestação, designação. No entanto, esta ordem não é uma ordem necessária, e
sim uma ordem relativa, já que a manifestação só é primeira – tanto com relação à
designação, quanto com a significação – na ordem da fala, pois há um sujeito, um Eu que fala
antes de qualquer relação entre as palavras e o estado de coisas correspondente e mesmo antes
da significação dos conceitos (palavras) que se implicam na sua fala. Este é o modelo que
Deleuze utiliza, como, por exemplo, para explicar o Cogito cartesiano como um fundamento
de um mundo extenso e de um Deus não-enganador. Ocorre, porém, que a ordem da fala só
pode ser concebida através de uma outra ordem, a ordem da língua – comparando com o
círculo cartesiano (Cogito/Deus), onde o Cogito é o fundamento na ordem do pensamento
(ordem da fala) e Deus na ordem da existência (ordem da língua) – onde a significação seria
dita primeira, já que “[...] uma proposição não pode aparecer aí a não ser como premissa ou
conclusão e como significante dos conceitos antes de manifestar um sujeito ou mesmo de
11
LS, p. 15.
12
LS, p. 15.
158
designar um estado de coisas”
13
. (Todavia, devemos deixar claro que utilizamos esta
indicação de Descartes meramente como um exemplo – como o nosso autor faz com diversos
outros pensadores –, pois ele não caracteriza uma preocupação expressa de Deleuze.) Mesmo
a língua precisaria de uma outra ordem, onde a designação poderia ser vista como primeira, já
que seria necessária uma relação entre as palavras e o estado de coisas para que não só o
sujeito falante possa manifestar os seus desejos e crenças (senão seria apenas uma associação
com palavras vazias que não possuem relação alguma com o mundo), mas também para que a
conclusão, no final das implicações da significação, e as premissas possam ser afirmadas por
si mesmas. Por outro lado, esta ordem também necessitaria da ordem da fala, pois uma
associação entre palavras e coisas de nada valeria se não fosse dita, e uma proposição, ao ser
dita, é sempre dita por um sujeito que possui desejos e crenças; também não teria significado
se os seus conceitos não tivessem implicações e relações entre si, ou seja, se não houvesse
uma significação.
Como podemos perceber, temos, no esquema acima, um certo círculo
vicioso: não há um primado de nenhuma dessas dimensões sobre as outras, pois, quando uma
dimensão reclama um fundamento de outra dimensão, ela não o recebe, já que aquela também
reclama um fundamento de uma outra, e assim consecutivamente. Este paradoxo só pode ser
resolvido, para Deleuze, com a instalação de um quarto elemento, que, de certa forma,
funcione como um mecanismo fundante, não necessariamente como fundamento e modelo,
mas como uma fundação interior que age de um modo a priori. Este elemento, segundo
Deleuze, seria o sentido.
O sentido não pode, para o filósofo francês, ser dado nem derivado a partir
de uma das três dimensões já postuladas. Ele é uma dimensão completamente diferente das
outras três, pois organiza a proposição de um modo completamente diferente. O sentido não
poderia estar, por um lado, na designação, já que é através dela que dizemos que uma
proposição é verdadeira ou falsa, mas acontece que o sentido não diz se uma proposição é
verdadeira ou falsa; por outro lado, ele também não poderia se encontrar na manifestação,
pois ele não postula um “sujeito fundante”, que oriente o plano da proposição. Poderíamos
muito bem dizer que o sentido estaria na significação, porque ela possui um caráter que já é o
caráter do sentido: a condição de verdade; entretanto, o sentido não pode estar na significação,
uma vez que o paradoxo do círculo vicioso, que vislumbramos acima, nos deixa uma brecha
para postularmos a condição de verdade do sentido não como um elemento da própria
13
LS, p. 16.
159
significação, mas como algo que não pertence propriamente a ela. Segundo o autor de Lógica
do sentido, a condição de verdade se coloca acima do verdadeiro e do falso, pois mesmo uma
proposição falsa pode ter um sentido; assim, a condição de verdade é vista como a
possibilidade de uma proposição de ser verdadeira
14
. Acontece que o paradoxo acima faz
com que a própria condição de verdade, enquanto fundamento de uma proposição (enquanto
forma de possibilidade de uma proposição), nada diga daquilo que funda, a não ser que já a
coloquemos em relação com aquilo que deveria fundar, isto é,
[...] a designação permanece exterior à ordem que a condiciona, o verdadeiro e o
falso permanecem indiferentes ao princípio que não determina a possibilidade de um
deles a não ser deixando-o substituir na sua antiga relação com o outro. De tal forma
que somos perpetuamente remetidos do condicionado à condição, mas também da
condição ao condicionado
15
.
A condição de verdade, portanto, necessita de um outro parâmetro para que
legitime o verdadeiro e o falso sem uma prévia relação com aquilo que já é dito verdadeiro ou
falso. É necessário que o elemento (a natureza) do sentido seja distinto do elemento da
significação, que a condição de verdade (que é o elemento proposicional do sentido) seja dita
de uma dimensão completamente diferente de qualquer uma dessas três já apresentadas. O
sentido é, para Deleuze, a quarta dimensão da proposição.
Sendo deste modo, o sentido seria um elemento “incorporal” – numa
perspectiva muito específica –, que fundaria todos os outros elementos proposicionais e
corporais. Seguindo os Estóicos nesta interpretação, Deleuze o denomina acontecimento e o
define como o expresso da proposição: “O sentido é a quarta dimensão da proposição. Os
Estóicos a descobriram com o acontecimento: o sentido é o expresso da proposição, este
incorporal na superfície das coisas, entidade complexa irredutível, acontecimento puro que
insiste ou subsiste na proposição”
16
. A quarta dimensão da proposição, destarte, poderia ser
denominada, como em Husserl
17
, expressão.
14
LS, p. 19.
15
LS, p. 19-20.
16
LS, p. 20.
17
A expressão, para Husserl, segundo Deleuze, se diz do noema das coisas, que é também o percebido como tal,
o sentido propriamente dito. Por exemplo: o noema de árvore não é a árvore real, que é o designado, mas a
percepção da árvore. A percepção da árvore não corresponde nem à palavra árvore que designamos do objeto
árvore e nem mesmo o objeto a que designamos com tal palavra. O sentido é aquilo que é expresso, a árvore
verdeja, por exemplo, como o sentido de cor de árvore. O verdejar é um atributo da coisa árvore, enquanto
que Verde é um atributo da proposição, é um predicado qualitativo do sujeito árvore; o atributo da coisa, deste
modo, é o verbo. O atributo da coisa árvore é o verbo verdejar. Para maiores detalhes sobre esta problemática
que Deleuze parece resgatar, em certos aspectos, da filosofia husserliana, cf. LS, p. 20-3. Deleuze se
160
A quarta dimensão da proposição, denominada por Deleuze como
expressão, é, desta forma, a dimensão do sentido. O filósofo francês, neste ponto, além de
acompanhar os estóicos, segue também uma vasta gama de outros escritores que retomam ou
se apóiam na filosofia estóica
18
. Os estóicos concebiam o mundo como um todo corpóreo,
onde tudo era corpo, até mesmo os elementos da proposição, que eram vistos como uma
espécie de corpo fonético, ou representação corporal; entretanto, algo ainda fugia da dimensão
corpórea de mundo. Este algo os estóicos denominavam acontecimento.
Os Estóicos, por sua vez, distinguiam duas espécies de coisas: 1) Os corpos, com
suas tensões, suas qualidades físicas, suas relações, suas ações e paixões e os
“estados de coisas” correspondentes. Estes estados de coisas, ações e paixões, são
denominados pelas misturas de corpos. [...] 2) Todos os corpos são causas uns para
os outros, uns com relação aos outros, mas de quê? São causas de certas coisas de
uma natureza completamente diferente. Estes efeitos não são corpos, mas,
propriamente falando, “incorporais”. Não são qualidades e propriedades físicas, mas
atributos lógicos ou dialéticos. Não são coisas ou estados de coisas, mas
acontecimentos
19
.
O acontecimento era tido como o incorporal, o elemento da proposição que
abria o espaço ontológico de todos os outros, mas que em si mesmo não era um corpo, nem
mesmo um corpo fonético, ou representação corporal: trata-se do puro sentido. Para Deleuze,
também há esta divisão de naturezas: de um lado, a natureza dos corpos, coisas e estados de
coisas, a natureza das três primeiras dimensões da proposição; e, de outro lado, a natureza do
sentido-acontecimento, que não pode ser dito como palavra, como estado de coisas, como
desejos e crenças de um sujeito, ou como conceitos e implicações de conceitos universais.
O sentido, o expresso da proposição, seria pois irredutível seja aos estados de coisas
individuais, às imagens particulares, às crenças pessoais e aos conceitos universais e
gerais. Os Estóicos souberam muito bem como dizê-lo: nem palavra, nem corpo,
nem representação sensível, nem representação racional. Mais do que isto: o
sentido seria, talvez, “neutro”, indiferente por completo tanto ao particular como ao
questiona se a fenomenologia não seria esta ciência que nos traria, então, o sentido como acontecimento puro,
como um incorporal que se distinguiria do próprio círculo da proposição. Por um lado, ela parece nos levar
por este caminho, já que redescobre o sentido como expressão e lhe atribui um caráter transcendental, como
Deleuze também parece fazer; mas, por outro lado, esquecemos que há um contraponto na fenomenologia, a
noese, esta instância subjetiva do campo transcendental que ainda nos remete a pensar um sujeito, mesmo que
transcendental, que expressaria, ou que estaria em relação com o expresso, o noema. Deleuze, portanro,
parece acusar a fenomenologia, principalmente a husserliana, de ainda estar presa a um “senso comum”, de
não se desprender totalmente da forma da doxa. Para maiores detalhes da acusação deleuziana, cf. LS, p. 99-
102.
18
Só para citar alguns dos vários autores que ele também cita ou comenta em Lógica do sentido: Meinong,
Husserl, Artaud, Bergson, Lewis Carroll (com o qual Deleuze faz o diálogo em quase toda a extensão da
obra).
19
LS, p. 05.
161
geral, ao singular como ao universal, ao pessoal e ao impessoal. Ele seria de uma
outra natureza
20
.
Sendo o sentido-acontecimento de outra natureza (incorporal), é ele que
coloca em contato a linguagem com o estado de coisas designado, não se confundindo com
nenhum desses dois elementos. Ele não existe no estado de coisas a que se vincula, pois não é
uma coisa, nem um corpo; também não existe na proposição, pois não é nenhuma das três
dimensões da proposição. Mesmo não existindo nem no estado de coisas e nem na
proposição, o sentido não deixa de insistir na proposição e de atribuir-se ao estado de coisas.
Ele é o “expresso da proposição”, ou aquilo que a proposição expressa, e é também o atributo
das coisas. A natureza do sentido-acontecimento não é, pois, a simples existência, e sim,
como já dissemos, aquilo que o nosso filósofo define como “extra-ser” ou “insistência”; é este
“extra-ser” que configura toda a existência sensível dos estados de coisas e toda a existência
proposicional dos conceitos universais e da proposição na qual ele se expressa. O
acontecimento não é propriamente “algo”, não pode ser dito como Ente, como Ser ou como
Nada; ele é o atributo, o “extra-ser” e o expresso. É o incorporal (nem material, nem ideal),
uma instância que não se liga a nada, mas também não é “o” nada, pois não se diz
negativamente, e sim positivamente. Dizer que o sentido, ou acontecimento, é incorporal não
quer dizer que ele seja uma instância ideal – uma Idéia, como em Platão, por exemplo – e
muito menos um corpo –, pois não se diz de um objeto ou de uma instância corporal ou
mesmo proposicional, já que a proposição, de certa forma, também é física: um objeto
fonético ou ortográfico. Não é uma idéia, porque a idéia já é uma instância transcendente,
enquanto que o sentido não pode ser dito transcendente, e sim imanente. Ser imanente é estar
na superfície das coisas e não num profundo abismo ideal e “metafísico”. A questão é que a
idéia transcendente está colocada num plano que não podemos compreender plenamente, que
não é este plano ontológico em que estamos inseridos; já a imanência implica um plano onde
as próprias coisas (enquanto existência concreta) se apresentam, expressando o sentido das
coisas através delas mesmas. Assim, a imanência não implica um âmbito corpóreo, mas uma
condição de aparecimento do sentido do Ser.
O sentido é o expressado na proposição e, desta maneira, não pode ser
exterior à proposição que o expressa; ele não é a proposição, já que não é dito nela, mas é
expresso nela. Ele insiste na proposição que o expressa e, ao mesmo tempo em que insiste na
proposição, ele também se atribui, é atributo das coisas, objetos ou corpos que tal proposição
20
LS, p. 20.
162
designa. O sentido-acontecimento é imanente porque é um efeito, enquanto que os corpos,
fatos e proposições são causas. Dizer que o acontecimento é um efeito e os corpos as causas
não quer dizer que tal efeito seja corporal. Os corpos são causas imanentes que existem no
tempo sempre presente, enquanto que o acontecimento é um efeito que coexiste com os
corpos porque eles lhe trazem uma perspectiva temporal diferente, uma insistência no tempo.
[...] o sentido é sempre um efeito. Não somente um efeito no sentido causal; mas um
efeito no sentido de “efeito óptico”, “efeito sonoro”, ou melhor, efeito de superfície,
efeito de posição, efeito de linguagem. Um tal efeito não é em absoluto uma
aparência ou uma ilusão; é um produto que se estende ou se alonga na superfície e
que é estritamente co-presente, coextensivo à sua própria causa e que determina esta
causa como causa imanente, inseparável de seus efeitos, puro nihil ou x fora de seus
efeitos
21
.
O sentido é um efeito de superfície que se coloca, de um modo imanente, às
suas causas e que insiste nelas; esta insistência se mostra como uma insistência temporal, mas
num tempo diferente do tempo sempre presente da existência corporal. O incorporal possui,
portanto, uma diferença de tempo com relação ao corporal; enquanto este existe e é presente
no mundo, aquele subsiste e é sempre passado e futuro ao mesmo tempo. Deleuze resgata,
deste modo, duas palavras do grego antigo para denominar estas duas espécies de tempo:
Chrónos e Aiõn.
1.2. Chrónos e Aiõn – As Duas Naturezas do Tempo
Estas duas instâncias resgatadas por Deleuze nos mostram uma diferente
concepção do tempo: enquanto tradicionalmente distinguimos três dimensões do tempo
(passado, presente e futuro), ele nos traz uma nova configuração temporal, pautada em apenas
duas dimensões divergentes (mas, como veremos posteriormente, igualmente convergentes):
presente (Chrónos) e passado-futuro (Aiõn).
Chrónos é o tempo da existência concreta e do presente, o tempo
cronológico. As coisas, os entes, os corpos sempre são presentes; não há um corpo passado ou
futuro, apenas um corpo presente, e que só se constitui como tal no presente, já que, ao pensá-
lo como passado ou futuro, estaríamos pensando-o como lembrança ou previsão. Aiõn é o
tempo da insistência, do passado e do futuro, o tempo que dura, isto é, o tempo da duração.
21
LS, p. 73.
163
Enquanto que o presente existe no tempo, o passado e o futuro só podem subsistir nele
22
. Aiõn
divide o presente em passado e futuro, as duas direções ao mesmo tempo, duas eternidades
que se prolongam ao mesmo tempo. Este segundo aspecto do tempo nunca é presente, já que é
o tempo do acontecimento; portanto, o tempo do incorporal que está sempre entre os corpos,
ou em meio ao próprio tempo corpóreo, mas que nunca é existente, apenas insistente ou
subsistente. O incorporal não pode ser vislumbrado nos corpos, já que, ao observar os corpos,
percebemos apenas as causas (os próprios corpos que são sempre o presente e a existência) e
nunca os efeitos (os atributos dos corpos, que são sempre um passado ou um futuro, uma
insistência). Não vemos o passado e o futuro, assim como não lembramos ou prevemos o
presente.
O único tempo dos corpos e estados de coisas é o presente. Pois o presente vivo é a
extensão temporal que acompanha o ato, que exprime e mede a ação do agente, a
paixão do paciente. Mas, na medida da unidade dos corpos entre si, na medida da
unidade do princípio ativo e do princípio passivo, um presente cósmico envolve o
universo inteiro: só os corpos existem no espaço e só o presente no tempo. Não há
causas e efeitos entre os corpos: todos os corpos são causas, causas uns com relação
aos outros, uns para os outros. A unidade das causas entre si se chama Destino, na
extensão do presente cósmico
23
.
Não se pode dizer que existam [os acontecimentos], mas, antes, que subsistem ou
insistem, tendo este mínimo de ser que convém ao que não é uma coisa, entidade
não existente. Não são substantivos ou adjetivos, mas verbos. Não são agentes nem
pacientes, mas resultados de ações e paixões, “impassíveis” – impassíveis
resultados. Não são presentes vivos, mas infinitivos: Aion ilimitado, devir que se
divide ao infinito em passado e em futuro, sempre se esquivando do presente. De tal
forma que o tempo deve ser apreendido duas vezes, de duas maneiras
complementares, exclusivas uma da outra: inteiro como presente vivo nos corpos
que agem e padecem, mas inteiro também como instância infinitamente divisível em
passado-futuro, nos efeitos incorporais que resultam dos corpos, de suas ações e de
suas paixões. Só o presente existe no tempo e reúne, absorve o passado e o futuro,
mas só o passado e o futuro insistem no tempo e dividem ao infinito cada presente.
Não três dimensões sucessivas, mas duas leituras simultâneas do tempo
24
.
Segundo o autor francês, não há três dimensões do tempo como comumente
estamos acostumados a postular, mas duas dimensões mais originárias que se cruzam, duas
22
Chrónos é o tempo das causas, neste sentido, a imagem móvel de Aiõn. Sendo o tempo das causas é o tempo
dos corpos, o tempo dos entes e das coisas, da existência. Chrónos manifesta o presente como a única forma
de se vislumbrar o tempo, e é só no presente que podemos determinar as coisas (corpos, causas), pois há um
constante movimento: o presente agora, outro presente agora... Este passar do tempo em Chrónos representa a
mobilidade de um incorporal transcendental (que possui duas direções ilimitadas: passado e futuro), mas que,
ao mesmo tempo, pode ser pensado na imanência da existência dos corpos. Enquanto Chrónos só pode
mostrar o presente, já que só pode colocar as coisas numa existência, Aiõnpode mostrar aquilo que
percorre as coisas, mas que nunca é vislumbrada nelas mesmas, a insistência.
23
LS, p. 05.
24
LS, p. 05-6, grifo nosso.
164
dimensões divergentes, uma corporal, a outra incorporal, mas que ao mesmo tempo se reúnem
e se misturam.
Na vigésima terceira série de Lógica do sentido, Deleuze nos relata, com
maiores detalhes, as diferenças entre Chrónos e Aiõn, postulando três principais
características de cada um deles. Tais características nos revelam que Chrónos, em primeiro
lugar, diz que apenas o presente existe, como vimos anteriormente, e que, além disso, tanto o
passado quanto o futuro só podem ser concebidos se forem pensados com relação, ou desde o
presente. Não excluímos o passado e o futuro desde a perspectiva de Chrónos, apenas os
relativizamos segundo o parâmetro do presente. “A relatividade do passado e do futuro com
relação ao presente provoca, pois uma relatividade dos próprios presentes uns com relação aos
outros. O deus vive como presente o que é futuro ou passado para mim, que vivo sempre
presentes mais limitados”
25
. Sendo Cronos o Deus, ele é a totalidade de presentes que passam,
enquanto que os presentes que passam e que vivemos são pequenos fragmentos em que nos
inserimos e que contamos um após o outro, mas desde o presente em que sempre estamos
vivendo. Em segundo lugar, o presente é corporal e é também o que mede a ação de um
corpo. É só no presente que os corpos se materializam e os estados de coisas se configuram, e
é também o presente que se constitui como o limite de ação dos corpos que em si se
apresentam. Cada presente remete a um presente ainda maior que seria Cronos (enquanto
figura do Deus), infinito, mas não ilimitado; ele se desdobra, circula em pequenos momentos,
em pequenos presentes de tempo, já que funciona como o limite dos próprios corpos:
O maior presente não é pois de forma nenhuma ilimitado: pertence ao presente
delimitar, ser o limite ou a medida da ação dos corpos, ainda que fosse o maior dos
corpos ou a unidade de todas as causas (Cosmos). Mas ele pode ser infinito sem ser
ilimitado: circular no sentido de que engloba todo o presente, ele recomeça e mede
um novo período cósmico após o precedente, idêntico ao precedente
26
.
Em terceiro lugar, Chrónos é o tempo cronológico, monocentrado e
controlado. O maior presente, enquanto totalidade de pequenos presentes (Cronos), é o
movimento que traduz o existente, pois coloca os vastos presentes em marcha; esta marcha,
entretanto, é sempre uma marcha centrada em um único ponto e este centro do tempo
cronológico se diz sempre como um corporal, um tempo corpóreo e profundo. “Cronos é o
movimento regulado dos presentes vastos e profundos”
27
. Sendo o movimento do existente,
25
LS, p. 167.
26
LS, p. 168.
27
LS, p. 168.
165
Chrónos é devir, um devir-louco, como nos diz Deleuze; contudo, um devir-louco
monocentrado, controlado. Ele é o devir sempre visto aos olhos do presente, aos olhos deste
centro controlador. Este devir-louco é a marcha que faz com que os presentes se disponham
em um vasto e maior presente. Ele quer sempre ser ouvido do fundo da “alma” do Deus, por
isso, Deleuze nos diz: “Cronos quer morrer”
28
; ele quer morrer porque não consegue se
apontar como “puro devir” (sem se prender a um presente profundo)
29
. Neste sentido, o devir
é pensado como esta instância controlada, pois só pode ser entendido desde a base que é o
presente:
O passado e o futuro como forças desencadeadas se vingam em um só e mesmo
abismo que ameaça o presente e tudo o que existe. Vimos como Platão exprimia este
devir, no fim da segunda hipótese do Parmênides: poder de esquivar o presente (pois
ser presente seria ser e não devir). E, no entanto, Platão acrescenta que “esquivar o
presente” é o que o devir não pode (pois ele se torna agora e não pode saltar por
cima do “agora”). Os dois são verdadeiros: a subversão interna do presente no
tempo, o tempo não tem senão o presente para exprimi-la, precisamente porque ela é
interna e profunda. A desforra do futuro e do passado sobre o presente, Cronos deve
ainda exprimi-la em termos de presente, os únicos termos que ele compreende e que
o afetam. É a sua maneira própria de querer morrer. É pois ainda um presente
terrificante, desmesurado, que esquiva e subverte o outro, o bom presente. De
mistura corporal, Cronos tornou-se corte profundo
30
.
Cabe perguntar: – Se Cronos deseja morrer (deseja ouvir esta voz que ruge
dentro de si mesmo), ou tomar este “devir-louco” como uma marcha sem centro, isto não
implicaria escutar a voz de uma outra natureza temporal que seria uma morte cronológica,
mas uma vida segundo o passado-futuro? Ouvir esta voz oculta já não seria morrer segundo a
existência, mas viver segundo a insistência, esta outra natureza do tempo? Em resposta a estas
perguntas é que o nosso autor nos apresenta Aiõn, esta outra leitura do tempo.
Esta última característica de Chrónos nos leva a pensar e postular o próprio
Aiõn. Para Deleuze, é através das características de Aiõn que conseguiremos vislumbrar, com
maior propriedade, a univocidade do Ser. Num primeiro momento, Aiõn nos traz o passado e
o futuro como insistências ou subsistências e não mais como existência, como era o presente
em Chrónos. O passado e o futuro dividem o presente em dois infinitos distintos, mas que
fazem parte de uma mesma natureza de tempo.
28
LS, p. 169.
29
Segundo Platão e uma certa tradição filosófica, ao se tornar “puro devir”, a essência de Cronos não seria mais
vista como Ser, já que se colocaria perante o puro fluxo que insiste nos corpos sempre presentes. Não
entraremos aqui, entretanto, em maiores detalhes acerca da eternidade e da mobilidade em Platão e na
tradição filosófica.
30
LS, p. 169.
166
Segundo Aion, somente o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo. Em
lugar de um presente que absorve o passado e o futuro, um futuro e um passado que
dividem a cada instante o presente, que o subdividem ao infinito em passado e
futuro, nos dois sentidos ao mesmo tempo. Ou antes, é o instante sem espessura e
sem extensão que subdivide cada presente em passado e futuro, em lugar de
presentes vastos e espessos que compreendem uns com relação aos outros o futuro e
o passado
31
.
O que aparece nesta característica de Aiõn não é simplesmente uma
diferença entre Chrónos e o próprio Aiõn, mas uma diferença, sobretudo, entre o devir ainda
corpóreo de Chrónos (o devir-louco das profundidades) e Aiõn, que também é um devir, mas
um devir incorpóreo, um devir da superfície. Enquanto o devir-louco ainda se vê controlado,
preso ao presente como um “agora”, Aiõn é o devir da superfície que se diz do “instante”
32
.
Pensar o devir como superfície e como instante nos remete a uma diferença de natureza entre
estes dois tipos de devir. Enquanto um se diz da circularidade do presente sobre si mesmo, um
desdobramento do presente em passado e futuro; o outro se diz de uma insistência do passado
e do futuro sobre o presente, a linha reta que segue para dois infinitos distintos. Quando o
devir sobe à superfície e faz dela a sua morada, ele transforma a sua natureza, deixa de ser
visto como um devir corpóreo, para tornar-se incorpóreo e ilimitado, mas, ao mesmo tempo,
finito, já que se diz do instante.
Enquanto Cronos exprimia a ação dos corpos e a criação das qualidades corporais,
Aion é o lugar dos acontecimentos incorporais e dos atributos distintos das
qualidades. Enquanto Cronos era inseparável dos corpos que o preenchiam como
causas e matérias, Aion é povoado de efeitos que habitam sem nunca preenchê-lo.
Enquanto Cronos era limitado e infinito, Aion é ilimitado como o futuro e o passado,
mas finito como o instante. Enquanto Cronos era inseparável da circularidade e dos
acidentes desta circularidade como bloqueios ou precipitações, explosões,
desencaixes, endurecimentos, Aion se estende em linha reta, ilimitada nos dois
sentidos. Sempre já passado e eternamente ainda por vir, Aion é a verdade eterna do
tempo: pura forma vazia do tempo, que se libertou de seu conteúdo corporal
presente e por aí desenrolou seu círculo, se alonga em uma reta, talvez tanto mais
perigosa, mais labiríntica, mais tortuosa por esta razão [...]
33
.
Em segundo lugar, Aiõn, a morada dos acontecimentos incorporais, é que
torna a linguagem possível. É ele que separa as palavras das coisas, que distingue o que são
os barulhos dos corpos, do que é linguagem, do que é expressão. É o expresso que define e
fundamenta o que é a expressão, mas sob esta ótica: “[...] é o sentido que faz existir o que o
31
LS, p. 169.
32
A diferença entre o devir das profundezas e o devir da superfície, como “agora” e “instante”, Deleuze
reinterpreta do Parmênides de Platão, uma diferença que este fazia entre a segunda e a terceira hipóteses,
como pudemos ver numa das citações anteriores. Cf. LS, p. 169-70.
33
LS, p. 170.
167
exprime e, pura insistência, se faz desde então existir no que o exprime”
34
. Destarte, o sentido
se faz insistente no expresso, já que é a pura expressão deste; o expresso define e fundamenta
a expressão, porque existe por ela, e a expressão insiste pelo expresso
35
. Isso nos remeterá,
posteriormente, a pensar o próprio Ser, pois será o ente, o expresso, que definirá o que é o Ser,
a expressão, e que a fará insistir no tempo.
Sendo o Aiõn esta insistência no expresso, pertence também a ele,
[...] como meio dos efeitos de superfície ou dos acontecimentos, traçar uma fronteira
entre as coisas e as proposições: ele a traça com toda sua linha reta e sem esta
fronteira os sons se abateriam sobre os corpos, as próprias proposições não seriam
“possíveis”. A linguagem é tornada possível pela fronteira que a separa das coisas,
dos corpos e não menos daqueles que falam
36
.
Aiõn é, neste sentido, o tempo incorpóreo do acontecimento (que se vincula
aos estados de coisas) e do sentido (que se relaciona às proposições). O instante ocupa e
percorre toda a sua linha, mas como um ocupante sem lugar, já que, ao percorrer a linha do
tempo, ele mesmo não se encontra no lugar, não é um presente que permanece e que fica, é
um passado-futuro que nunca pára de percorrer as duas direções ao mesmo tempo, pois divide
o presente num passado ilimitado e num futuro igualmente ilimitado. O instante, portanto,
retira do presente as suas singularidades, uma dupla singularidade (pontos singulares), uma
que se projeta uma vez no passado e outra no futuro
37
. A linha temporal percorrida pelo
instante, que sempre extrai os pontos singulares do presente, é também aquilo que separa, mas
34
LS, p. 171.
35
É a expressão que faz com que o expresso exista por si mesmo, entretanto, a expressão mesma não se esconde,
não se encobre, como em Heidegger, ela não existe efetivamente, mas insiste no expresso, já que é a voz
deste. Aqui podemos notar algumas características do acontecimento deleuziano que poderiam parecer, em
alguns aspectos, com o acontecimento (Ereignis) heideggeriano, que funciona como uma espécie de
movimento do Ser para o Ente e do Ente para o Nada. Como já trabalhamos no segundo capítulo desta
pesquisa, Deleuze se contrapõe a este pensamento acerca do acontecimento, já que ele ainda nos levaria a
conceber um certo tipo de niilismo, não um niilismo forte, mas um niilismo enquanto forma de relação do Ser
com o Nada. Para o autor francês, não há este movimento que nos levaria do Ser para o Ente e do Ente para o
Nada. Pelo contrário, a filosofia deleuziana é uma filosofia exclusivamente positiva, que não se vincula a
nenhum tipo de pensamento acerca do Nada. O acontecimento deve ser entendido como esta instância do
sentido, este incorporal que sempre está insistindo nos entes; não há niilismo, a diferença entre os entes e o
acontecimento é uma diferença de natureza, mas não chega a nos levar a conceber o Ser como um Nada que
sempre se esconde e que não pode ser vislumbrado. O Ser deleuziano é, como veremos, a expressão; a
expressão faz com que o expresso exista, enquanto que o expresso faz com que a própria expressão insista.
Por isso, o expresso é tanto o sentido que é expresso pela proposição, quanto o acontecimento que é expresso
pelo estado de coisas. Para uma recapitulação do questionamento deleuziano acerca do acontecimento
(Ereignis) heideggeriano, cf. ponto 2.2 do capítulo II deste trabalho, onde também expomos, brevemente, as
principais diferenças da concepção do tempo entre Deleuze e Heidegger.
36
LS, p. 171.
37
Dizer que o instante retira do presente suas singularidades é dizer que não há um sujeito fundande por trás do
aparecer, há apenas singularidades “nômades” que se relacionam, e não uma subjetividade que relaciona todas
as coisas. O indivíduo é formado por um processo de individuação, um processo composto por singularidades.
168
também contorna e articula os corpos e as proposições, é o que forma a linguagem (mundo
das proposições) e o estado de coisas (mundo dos entes e corpos). Aiõn é a linha que forma
esta superfície que é o mundo dos corpos-linguagem Ele é o sentido-acontecimento.
O acontecimento se relaciona aos estado de coisas, mas como atributo lógico destes
estados, completamente diferentes de suas qualidades físicas, se bem que ele lhes
sobrevenha, neles se encarne ou neles se efetue. O sentido é a mesma coisa que o
acontecimento, mas desta vez relacionado às proposições
38
.
Em terceiro lugar, ao Aiõn pertence uma outra forma de presente. Não é que
ele não possua um presente (como até o momento podemos pensar), ao Aiõn corresponde uma
outra espécie de presente que não é profundo, ou melhor, que não subverte através do fundo e
que não se efetua nas formas. Ao Aiõn pertence o presente sem espessura, o presente das
superfícies lisas que não se vincula aos corpos ou estados de coisas, mas ao acontecimento e
às singularidades. Este presente representa o instante que sempre divide, representa a
operação pura, a contra-efetuação que não deixa que o próprio presente da efetuação ou da
subversão se confunda com o processo que os apresenta (com o incorpóreo que os instala e
que insiste e subsiste neles).
Entre os dois presentes de Cronos, o da subversão pelo fundo e o da efetuação nas
formas, há um terceiro, deve haver um terceiro pertencendo ao Aion. E, com efeito,
o instante como elemento paradoxal ou quase-causa que percorre toda a linha reta
deve ser ele próprio representado. [...] este presente do Aion, que representa o
instante, não é absolutamente como o presente vasto e profundo de Cronos: é o
presente sem espessura, o presente do ator, do dançarino ou do mímico, puro
“momento” perverso. É o presente da operação pura e não da incorporação. Não é o
presente da subversão nem o da efetuação, mas da contra-efetuação, que impede
aquele de derrubar este, que impede este de se confundir com aquele e que vem
redobrar a dobra
39
.
Depois de apresentadas as principais diferenças, características e elementos
de Chrónos e Aiõn, percebemos que há uma relação entre as duas naturezas do tempo, entre o
corpóreo e o incorpóreo e entre as proposições e os estados de coisas. Pergunta-se: – Como
podemos conceber esta relação, como podemos pensar uma comunicação (comércio) entre
Aiõn e Chrónos? Ou, como uma instância incorporal pode se relacionar com uma outra
instância que é corporal? E como esta relação nos ajudará a alcançar nosso objetivo inicial, a
saber: a univocidade do Ser?
38
LS, p. 171-2.
39
LS, p. 172-3.
169
Uma coisa é certa em tudo o que já expusemos neste capítulo: a univocidade
do Ser só pode ser pensada em Deleuze através do conceito de expressão. Como podemos
remeter o Ser, como a pura diferença, aos entes? Como podemos pensar o Ser como uma
diferença imanente? É através da expressão, como veremos, que a diferença pode ser afirmada
como a voz unívoca do Ser e também como a voz que se expressa nos entes de uma forma
imanente. Na verdade, a ontologia deleuziana está quase toda ligada a estes conceitos fortes
de sentido, acontecimento, imanência e expressão. Como veremos na seqüência, o Ser se
expressa nos entes. Ele não existe efetivamente, como uma essência, uma substância ou um
sujeito, mas insiste nas coisas que o expressam.
2. Univocidade do Ser – Síntese, Expressão, Repetição e Diferença
O Ser se expressa nos entes, o Ser é a voz dos entes. Esta é a concepção
deleuziana que nos envolve no manto da univocidade. Como apontamos, pensar o Ser como
voz dos entes nos remonta a pensá-lo também como uma instância imanente aos próprios
entes, já que ele não pode ser expresso fora deles. Não há expressão sem o expresso, assim
como não há expressado sem expressão. A voz envolve o dito, e o dito reflete a voz em seu
dizer. Esta é a dinâmica do Ser e da linguagem na teoria deleuziana. Antes de nos
adentrarmos mais profundamente na univocidade do Ser, é necessário, contudo, que
retomemos algumas questões que ficaram pendentes anteriormente; são questões que nos
levam a pensar o Ser como diferença e, posteriormente, nos levarão a conceber esta diferença
como a sua voz expressiva. A questão que permaneceu foi: – Como podemos conceber uma
comunicação entre os acontecimentos e os corpos e entre os acontecimentos entre si? Como
podemos pensar a relação de causa e efeito que os corpos e os acontecimentos possuem, se
eles são de naturezas diferentes?
Há uma relação entre estes corpos-causas e os acontecimentos-efeitos que é
mais complexa do que uma simples relação entre causa e efeito. Tal relação envolve um outro
importante conceito deleuziano que tentaremos expor a seguir: a “síntese disjuntiva”.
170
2.1. Da Síntese Disjuntiva
O termo síntese disjuntiva poderia parecer um paradoxo para uma grande
parcela de pensadores que ainda seguem a lógica tradicional (que segue os três princípios
básicos da lógica aristotélica: identidade, não-contradição e terceiro excluído); tais pensadores
não poderiam conceber a disjunção inclusa a que o nosso autor quer nos remeter. A relação
que os corpos, que servem como causas, possuem com os acontecimentos, que servem como
efeitos, não é uma relação que envolve a necessidade, como numa “relação lógica” de causa e
efeito, mas é uma relação que envolve a expressão.
Dir-se-ia que as causas corporais são inseparáveis de uma forma de interioridade,
mas os efeitos incorporais, de uma forma de exterioridade. De um lado, os
acontecimentos-efeitos têm realmente com suas causas físicas uma relação de
causalidade, mas esta relação não é de necessidade, é de expressão; de outro lado,
têm entre si ou com sua quase-causa ideal uma relação que não é mesmo mais de
causalidade, mas ainda e somente de expressão
40
.
A síntese de que fala o filósofo francês aqui não é apenas entre os corpos e
os acontecimentos, mas também dos acontecimentos entre si. Tal síntese também é uma
relação de expressão e não de causalidade. A expressão é a afirmação da diferença e não a
negativização dela, como veremos através do conceito que agora apresentaremos.
Inicialmente, devemos distinguir três espécies de síntese no sistema do
pensamento que Deleuze nos apresenta: a “síntese conectiva” (conexa) que se utiliza, na sua
grande maioria, dos signos “se..., então” para expressar a sua conexão, que, no caso, é uma
conexão causal que se coloca na construção de uma única série de proposições, por exemplo:
“se é dia, então está claro”; a “síntese conjuntiva” (conjuncta) expressada pelo signo “e”, que
liga duas séries não exclusivas ou, melhor, que liga duas séries convergentes; e, finalmente, a
“síntese disjuntiva” (disjuncta) que se expressa através do signo “ou” e que separa duas séries
não convergentes, duas séries excludentes, divergentes
41
. Devemos, contudo, deixar claro que
esta remissão que Deleuze faz aos conectores lingüísticos não deve ser confundida como
aquela postulada pela analítica da linguagem. Ao contrário, ele apenas as utiliza com o intuito
de exemplificar as questões que está apontando.
40
LS, p. 175.
41
LS, p. 180.
171
Se há uma síntese na disjunção ela já não se torna uma conjunção? Esta é a
questão que aparece neste emprego do termo síntese para uma disjunção. A resposta
deleuziana seria que a disjunção não deve ser compreendida como uma conjunção; ele não
retira da disjunção o seu contorno disjuntivo transformando-o em uma nova conjunção. Ao
contrário, a disjunção mantém a sua máxima diferença entre as séries que a compõem. Neste
ponto, poderíamos muito bem confundir a síntese disjuntiva com a dialética hegeliana, onde a
identidade (Tese) precisa necessariamente de sua própria negação, de uma não-identidade
(não-Ser, Antítese) para que haja, assim, um elemento restante, uma ligação entre ambos
(Síntese). A disjunção deleuziana não possui, entretanto, este caráter negativo.
Contrariamente, ela é uma instância puramente positiva. A não-relação já é uma relação, mas
no sentido de que esta relação é dita da própria diferença das séries e não em vistas a uma
identidade reafirmada, como em Hegel. Este, por sua vez, se utilizava, segundo Deleuze, da
contradição como um mecanismo que negava a própria diferença, ou melhor, um mecanismo
que fazia da diferença um não-Ser completo, uma negação completa. O autor francês não
nega a diferença, a diferença é afirmada neste processo da disjunção, já que ela só pode ser
entendida como síntese quando a diferença entre uma série e outra pode ser vislumbrada
como a própria relação entre ambas as séries.
Talvez a leitura que Deleuze faz do perspectivismo nietzschiano possa nos
mostrar com maior clareza este aspecto positivo da síntese disjuntiva:
Nietzsche dá o exemplo de um tal procedimento, que não deve em caso algum ser
confundido com não se sabe que identidade dos contrários (como torta de creme da
filosofia espiritualista e dolorista), Nietzsche nos exorta a viver a saúde e a doença
de tal maneira que a saúde seja um ponto de vista vivo sobre a doença e a doença um
ponto de vista vivo sobre a saúde. Fazer da doença uma exploração da saúde, da
saúde uma investigação da doença [...]. Não identificamos os contrários, afirmamos
toda sua distância, mas como o que os relaciona um ao outro. A saúde afirma a
doença quando ela faz de sua distância com a doença um objeto de afirmação. A
distância é, na medida de um braço, a afirmação daquilo que ela distancia. Não é
precisamente a Grande Saúde (ou a Gaia Ciência), este procedimento que faz da
saúde uma avaliação da doença e da doença uma avaliação da saúde? O que permite
a Nietzsche fazer a experiência de uma saúde superior, no momento mesmo em que
está doente. Inversamente, não é quando está doente que perde a saúde, mas quando
não pode mais afirmar a distância, quando não pode mais por sua saúde fazer da
doença um ponto de vista sobre a saúde (então, como dizem os Estóicos, o papel
terminou, a peça acabou). Ponto de vista não significa um juízo teórico. O
“procedimento” é a vida mesma
42
.
42
LS, p. 179.
172
Aqui percebemos que o que é afirmado é a distância, que, em última
instância, é a diferença entre uma e outra, entre a doença e a saúde. A questão é que a
diferença é afirmada neste processo e não a identidade de uma série sobre a outra ou de uma
outra identidade qualquer. A “distância”, afirmada como tal, é a única relação que a disjunção
pode ter para que não seja confundida como uma dialética ou uma negação da diferença em
prol da afirmação da contradição como um princípio; podemos perceber isso claramente neste
trecho de Lógica do sentido: “Trata-se de uma distância positiva dos diferentes: não mais
identificar dois contrários ao mesmo, mas afirmar sua distância como o que os relaciona um
ao outro enquanto ‘diferentes’”
43
. E mais adiante ele nos revela a questão da contradição que,
diferente de Hegel, afirma e revela a diferença como instância positiva:
Não é a diferença que deve “ir até” à contradição, como pensa Hegel no seu voto de
acolher o negativo, é a contradição que deve revelar a natureza de sua diferença
seguindo a distância que lhe corresponde. A idéia de distância positiva é topológica
e de superfície e exclui toda profundidade ou toda elevação que reuniriam o negativo
com a identidade
44
.
Não há negatividade na diferença (na distância), ou entre uma série e outra,
se a pensarmos como esta não-relação que já é, por si mesma, uma relação – no sentido de
que uma série é um ponto de vista sobre a outra, nunca uma negação de uma sobre a outra.
Esta distância também pode ser pensada como um devir de uma série sobre
a outra, por exemplo: não se pode ser racional sem “devir-irracional”, não se pode ser
saudável sem “devir-doença”, etc. A distância entre uma série e outra marca o devir, uma
relação diferencial, primordial entre as duas séries que se apresentam
45
. Esta distância, este
devir, portanto, nos remete ao conceito forte de Diferença que o autor francês atribui ao Ser
como a sua única voz, como o único sentido que ele pode ter. Assim, o itinerário de nossa
leitura nos leva a pensar a univocidade do Ser para depois retomarmos a síntese disjuntiva,
43
LS, p. 178.
44
LS, p. 178-9.
45
A questão da “distância” como devir e como relação diferencial é melhor trabalhada por François
Zourabichvili na obra, já citada nos capítulos anteriores, O vocabulário Deleuze, justamente no termo Síntese
Disjuntiva: “Por que Deleuze conclui daí que ‘tudo se divide em si mesmo’? É aqui que o nome disjunção
inclusa assume um sentido positivo. Consideremos os pares vida-morte, pai-filho, homem-mulher: os termos
aí só têm relação diferencial, a relação é primordial, é ela que distribui os termos entre os quais se estabelece.
Por conseguinte, a experiência do sentido está no duplo percurso da distância que os liga: não se é homem
sem devir-mulher etc.; e ali onde a psicanálise vê uma doença, trata-se, ao contrário, da aventura viva do
sentido ou do desejo sobre o ‘corpo sem órgãos’, da saúde superior da criança, da histérica, do esquizofrênico.
A cada vez, os termos em presença são outros tantos pontos de vista ou casos de solução em relação ao
‘problema’ do qual derivam (o estado, a geração, o sexo) e que se descreve logicamente como diferença
interna, ou instância ‘do que difere de si mesma’” (Zourabichvili, 2004, p. 104-5).
173
esta entendida segundo a releitura deleuziana do eterno retorno de Nietzsche, que a vê como
um retorno seletivo.
2.2. Do Ser como Diferença Expressiva e da Repetição como Repetição
da Diferença
O Ser possui um só e único sentido: ele é diferença. Não há um outro
sentido para expressar o Ser, a não ser a diferença. Ora, mesmo possuindo unicamente este
sentido ontológico, podemos dizê-lo de várias outras formas, se pensarmos estes vários
sentidos através de uma distinção real ou formal, mas isso não muda o seu sentido ontológico
único (que deve ser compreendido segundo a ótica deleuziana já apresentada nas páginas
anteriores).
Dizer que o Ser é unívoco, que possui um único sentido, não quer dizer que
o Ser seja idêntico a si mesmo, que ele seja uma unidade transcendente dita como uma
unidade ontológica; pelo contrário, dizer que ele é unívoco é postulá-lo como um Uno
ontologicamente expressivo, que é dito, mas que difere onticamente de ente para ente.
Devemos distinguir, assim, unidade ontológica expressiva (proposição ontológica) de unidade
ontológica transcendente. A unidade ontológica transcendente corresponde a toda a tradição
que desde o início deste trabalho tentamos, junto com Deleuze, driblar, não nos prendendo em
suas amarras e armadilhas, onde o Ser é pensado como uma instância que funda todos os entes
desde sua morada de fora
46
; já a unidade ontológica expressiva é esta univocidade, este
sentido para o Ser que se expressa sempre nos entes, que pode ser pensado como esta
insistência que percorre os entes e as proposições.
Uma só voz faz o clamor do ser. Não temos dificuldade em compreender que o Ser,
embora seja absolutamente comum, nem por isso é um gênero; basta substituir o
modelo do juízo pelo da proposição. [...] Concebe-se que nomes ou proposições não
tenham o mesmo sentido, mesmo quando designam estritamente a mesma coisa
(como nos exemplos célebres: estrela da tarde-estrela da manhã, Israel-Jacó, tranco-
branco). A distinção entre estes sentidos é uma distinção real (distinctio realis), mas
nada tem de numérico, menos ainda de ontológico: é uma distinção formal,
qualitativa ou semiológica. A questão de saber se as categorias são diretamente
assimiláveis a tais sentidos ou se deles derivam, como é mais verossímil, deve ser
deixada de lado por enquanto. O importante é que se possam conceber vários
46
Não queremos, através desta distinção entre as duas unidades ontológicas, nos referir ao esquecimento do ser
apontado por Heidegger. Queremos apenas apontar aqui uma distinção já feita por outros filósofos perante a
tradição filosófica, apontamentos que encontram em Nietzsche seu principal crítico.
174
sentidos formalmente distintos, mas se reportam, ao ser como um só designado,
ontologicamente uno. É verdade que tal ponto de vista ainda não basta para nos
impedir de considerar estes sentidos como análogos e esta unidade do ser como uma
analogia. É preciso acrescentar que o ser, este designado comum, enquanto se
exprime, se diz, por sua vez, num único sentido de todos os designantes ou
expressantes numericamente distintos. Na proposição ontológica, portanto, não só o
designado é ontologicamente o mesmo para sentidos qualitativamente distintos, mas
também o sentido é ontologicamente o mesmo para modos individuantes, para
designantes ou expressantes numericamente distintos: é esta a circulação na
proposição ontológica (expressão em seu conjunto)
47
.
Compreendida esta distinção entre os dois “sentidos” do Sentido e os dois
sentidos da unidade ontológica, devemos ter em mente que o Ser é a voz dos entes e que ele
se expressa nos entes e nas proposições. O designado é sempre o mesmo, ele é
ontologicamente Uno, pois se diz da diferença primordial e nada mais, no entanto,
onticamente, os seres são múltiplos, por isso há uma infinidade de entes, todos diferentes um
do outro. O Ser é, portanto, diferença e só se diz como tal. Ser diferença é se manifestar
expressivamente em tudo, mas de um modo sempre diverso. Desta forma, o ente expressa o
Ser, pois expressa aquilo que é o seu sentido: ser diferença. O exemplo clássico que Deleuze
utiliza é retirado da obra espinosana: o branco é sempre o mesmo branco, pois só há um único
sentido para ele, entretanto, há diversas tonalidades, ou intensidades, para o branco; assim, o
branco de uma parede pode não ter a mesma intensidade de uma outra, mas continua tendo o
mesmo sentido, a brancura (ambos são brancos).
Com efeito, o essencial na univocidade não é que o Ser se diga num único sentido. É
que ele se diga num único sentido de todas as suas diferenças individuantes ou
modalidades intrínsecas. O Ser é o mesmo para todas estas modalidades, mas estas
modalidades não são as mesmas. Ele é ‘igual’ para todas, mas elas mesmas não são
iguais. Ele se diz num só sentido de todas, mas elas mesmas não têm o mesmo
sentido. É da essência do ser unívoco reportar-se a diferenças individuantes, mas
estas diferenças não têm a mesma essência e não variam a essência do ser
48
.
O Ser se diz num único sentido de tudo aquilo de que ele se diz, mas aquilo de que
ele se diz difere: ele se diz da própria diferença
49
.
A univocidade significa que é a mesma coisa que ocorre e que se diz: o atribuível de
todos os corpos ou estados de coisas é o exprimível de todas as proposições
50
.
47
DR, p. 65-6.
48
DR, p. 66.
49
DR, p. 67.
50
LS, p. 185-6.
175
Este é o ponto crucial: o Ser caminha para os dois lados ao mesmo tempo,
tanto para os acontecimentos quanto para o sentido. Não há sentido sem acontecimento, assim
como não há acontecimento sem sentido. Pensar que o acontecer é também aquilo que se diz,
não é pensar que as palavras e as coisas sejam o mesmo, mas que o Ser é o mesmo para tudo
aquilo que ele diz e para tudo aquilo que acontece, pois o Ser é o próprio sentido-
acontecimento – que é produzido, por sua vez, pela síntese disjuntiva. “O ser unívoco insiste
na linguagem e sobrevém às coisas; ele mede a relação interior da linguagem com a relação
exterior do ser”
51
. O Ser é a “distância” das duas séries da disjunção, e a distância já é em si
mesma positiva, pois não exclui aquela série na confrontação com esta. A distância é o “ponto
de vista” de cada uma das séries sobre a outra, sendo que o ponto de vista já funciona como a
relação entre as duas. O Ser, conseqüentemente, é dito desta disjunção inclusa entre as
palavras e as coisas, entre os estados de coisas e as proposições, é o “entre” os dois, a
distância que forma a síntese.
O Ser se expressa nos entes e nas palavras, pois cada ente ou palavra reflete
uma distância com relação a outro ente ou outra palavra. Não são os entes ou as palavras que
formam uma suposta “essência” (ou o Ser como essência), e nem mesmo este ente superior
que parece observar de fora esta distância (sujeito, subjetividade); ao contrário, a distância é o
próprio Ser. Sendo a distância o Ser, não há um privilégio de um ente ou de um corpo sobre
os outros. O que há é apenas um ponto de vista sobre o outro, um simulacro sobre o outro que
se apresenta sempre na superfície dos entes e das palavras, dito de outro modo, a vida mesma.
A distância, enquanto diferença intensiva entre uma série e outra, é o que define o Ser como
imanente, pois ele já está sempre aí expresso nas palavras e nas coisas, não de uma forma
existente, já que o que existe são apenas os corpos fáticos ou fônicos, mas de uma forma
insistente, que percorre todas as relações disjuntas de todas as coisas. Não há indivíduo,
entendido não como pessoa, mas como coisa ou palavra, sem Ser, já que não há um único
indivíduo, há uma infinidade, uma multiplicidade de indivíduos; e havendo esta
multiplicidade há, portanto, o Ser, a diferença, a distância, o ponto de vista desigual de um
para com o outro.
Esta relação disjunta compreende não apenas os entes e a distância entre
eles, mas também o tempo, na medida em que constitui a síntese entre as duas naturezas
divergentes do tempo: Chrónos e Aiõn. O Ser enquanto distância na síntese disjuntiva resgata
o devir de Aiõn, este instante que passa, como um “ocupante sem lugar” ou, melhor, um
51
LS, p. 186.
176
“lugar sem ocupante”, já que ele não é o ente, é o que o percorre e o que o distancia de um
outro ente. O instante é a síntese disjuntiva de dois infinitos, um que vai para o futuro e outro
que volta do passado. Um instante presente não é o presente de Chrónos, já que não observa o
passado e o futuro desde o ponto de vista do presente. Ao contrário, tanto o passado quanto o
futuro formam um ponto de vista desigual sobre o outro e se ligam nesta síntese, o instante
que pode ser dito presente. Percorrido pela distância (diferença) e marcado pelo retorno
eterno, o devir no instante é único, é singular, não se volta a um mesmo estado de coisas tal
qual havia no instante que passou, no entanto o instante mesmo sempre volta. Ele é a marca
do retorno, a marca da repetição do mesmo, mas o mesmo aqui não é o Uno platônico, é o
mesmo da univocidade do Ser, a diferença.
Não há um sentido formalmente único para o Ser. Pelo contrário, ele possui
uma infinidade de sentidos formais. Isso, entretanto, não desconfigura a sua unidade
ontológica, a sua univocidade, esta instância que percorre os entes desde o seu próprio
interior, esta expressão que percorre os corpos e faz deles seu expresso.
A univocidade do ser não significa que haja um só e mesmo ser: ao contrário, os
existentes são múltiplos e diferentes, sempre produzidos por uma síntese disjuntiva,
eles próprios disjuntos e divergentes, membra disjuncta. A univocidade do ser
significa que o ser é Voz, que ele se diz em um só e mesmo “sentido” de tudo aquilo
de que se diz. Ele ocorre, pois, como um acontecimento único para tudo o que
ocorre às coisas mais diversas, Eventum tantum para todos os acontecimentos, forma
extrema para todas as formas que permanecem disjuntas nela, mas que fazem
repercutir e ramificar sua disjunção
52
.
A concepção da univocidade do Ser de Deleuze não é uma concepção de
unidade ôntica concebida, equivocadamente, como unidade ontológica. Não é uma concepção
de negatividade, de exclusão ou de contradição; é, antes, uma concepção de pura expressão
positiva que afirma tanto a unidade dos entes (entendida aqui como uma identidade
secundária) quanto o devir puro, o fluxo, estas duas instâncias que seriam, em outras
ontologias, de impossível conciliação.
Vislumbrado este contexto deleuziano da diferença como voz expressiva,
como o próprio Ser da distância, devemos nos remeter ao que já mencionamos acima sobre o
instante, isto é, à questão do retorno, da repetição. Se o principal livro de Deleuze, aquele que
ele diz ser o primeiro livro em que “tenta fazer” filosofia, se chama Diferença e repetição, é
porque se remete a estes dois principais conceitos de sua ontologia. Enquanto a diferença se
52
LS, p. 185.
177
diz do Ser como unívoco, a repetição se remete à sua interpretação do eterno retorno
nietzschiano e, principalmente, à síntese disjuntiva, que é o que faz com que a diferença seja
sempre promovida como instância positiva.
Devemos recordar aqui a dupla afirmação da interpretação deleuziana da
filosofia de Nietzsche. Como vimos no capítulo anterior, as duas afirmações não se separam,
pois enquanto uma é o que faz com que o conjunto das duas afirmações retorne, o eterno
retorno, a outra é o invólucro da primeira e o que faz com que as duas afirmações se
constituam como conjunto. Se a primeira é o Ser enquanto devir, a segunda é a diferença
intensiva que sempre volta juntamente no retorno eterno. “O verdadeiro sujeito do eterno
retorno é a intensidade, a singularidade; daí a relação entre o eterno retorno como
intencionalidade efetuada e a vontade de potência como intensidade aberta”
53
. O retorno faz
retornar não só a diferença intensiva, mas o próprio retorno, e a repetição faz repetir a
diferença e a própria repetição. Este é o segredo da síntese disjuntiva: fazer da diferença um
ponto de afirmação através da repetição. Assim, a distância entre uma série e outra, a
diferença, é marcada.
O que exprime o eterno retorno é este novo sentido da síntese disjuntiva. Da mesma
forma o eterno retorno não se diz do Mesmo (“ele destrói as identidades”). Ao
contrário, ele é o único Mesmo, mas que se diz do que difere em si – do intenso, do
desigual ou do disjunto (vontade de potência). Ele é realmente o Todo, mas que se
diz do que permanece desigual; a Necessidade, que se diz somente do fortuito. Ele
próprio é unívoco: ser, linguagem ou silêncio unívocos. Mas o ser unívoco se diz de
existentes que não o são, a linguagem unívoca se aplica a corpos que não o são, o
silêncio “puro” envolve palavras que não o são. Procuraríamos, pois, em vão no
eterno retorno a simplicidade de um círculo, assim como a convergência das séries
em torno de um centro. Se há círculo, é o circulus vitiosus deus: a diferença aí está
no centro e o circuito é a eterna passagem através das séries divergentes. Círculo
sempre descentrado para uma circunferência excêntrica
54
.
O eterno retorno do mesmo é, na verdade, eterno retorno da diferença, uma
diferença que sempre envolve as singularidades e intensidades dos existentes e que envolve
também o próprio retorno, pois o que retorna é esta diferença que forma o conjunto das duas
afirmações. A síntese da disjunção dos existentes, duplamente afirmativa, é o que produz a
conjunção, a identidade e o sentido, pois, ao afirmar a disjunção, afirmamos também a síntese,
já que é a síntese que caracteriza o retorno, que sempre volta para afirmar a afirmação da
distância entre as séries. Na síntese disjuntiva, a disjunção funciona como a segunda
afirmação da interpretação deleuziana de Nietzsche, enquanto que a síntese funciona como a
53
LS, p. 308.
54
LS, p. 308.
178
primeira afirmação: disjunção = Diferença, síntese = Repetição. Os simulacros, os pontos de
vista da disjunção são as singularidades afirmadas, mas só são afirmadas por esta distância e
pelo retorno eterno desta distância entre uma singularidade e outra.
Assim, o eterno retorno é realmente o Todo, mas o Todo que se diz dos membros
disjuntos ou das séries divergentes; ele não faz voltar tudo, não faz voltar nada do
que volta uma vez, do que pretende recentrar o círculo, tornar as séries
convergentes, restaurar o eu, o mundo e Deus. [...] O fantasma do Ser (eterno
retorno) só faz voltar os simulacros (vontade de potência como simulação).
Coerência que não deixa substituir a minha, o eterno retorno é não-senso, mas não-
senso que distribui o sentido às séries divergentes sobre todo o circuito do círculo
descentrado
55
.
Não há outro sentido para o Ser senão a afirmação, como nos mostrava
Deleuze na sua interpretação de Nietzsche. De algum modo ele segue este preceito, e
considera o filósofo alemão o ponto máximo da univocidade, uma univocidade vista como
puramente positiva e afirmativa.
A univocidade do Ser em Deleuze se caracteriza como a repetição da
diferença, já que tudo o que se repete é necessariamente diferente, entretanto, a única coisa
que continua tendo o mesmo sentido, que continua sendo o “Mesmo” é a própria repetição.
Não há, portanto, outro sentido ontológico para o Ser a não ser o eterno retorno da diferença
(embora possamos dizê-lo formalmente de várias maneiras, tais como: repetição da diferença,
síntese disjuntiva, etc.).
CONCLUSÃO
Depois de termos elaborado este percurso pelo agenciamento deleuziano das
filosofias das quais retirou, revisou, interpretou e repensou vários conceitos, investigamos
com maior profundidade a questão que percorreu por todo este trabalho: a univocidade do Ser
em Deleuze.
Diferente das outras visões do Ser como unívoco, a visão deleuziana é,
inicialmente, uma lógica e, posteriormente, uma ontologia. É uma lógica porque ele revisa
toda a problemática do sentido, da proposição e da sua relação com as coisas, formulando
uma nova teoria do sentido (ou o que poderíamos chamar de uma lógica sui gêneris), não
55
LS, p. 308-9.
179
mais como uma instância presente e existente nas já postuladas três dimensões da proposição:
designação, manifestação e significação. A teoria deleuziana, ao contrário desta lógica
proposicional clássica, segue por uma outra via, a descoberta de uma quarta dimensão da
proposição que seria exclusivamente o próprio sentido. O sentido não está compreendido na
designação, pois ele foge a qualquer relação de nomeação das coisas; não está igualmente na
manifestação, já que não se confunde com o sujeito que nomeia e predica; também não se
encontra na significação porque não é uma regra silogística que comunique as proposições por
meio de termos e nomes. O sentido, ao contrário, circula por estas três dimensões sem se
prender a qualquer uma delas; ele foge a qualquer tentativa de encontrá-lo e prendê-lo.
Se o sentido não existe nas dimensões da proposição, não é um corpo,
palavra, etc., o que ele seria? O sentido é o verbo em infinitivo, como nos diz Deleuze, por
isso ele infinitiza qualquer substantivo, fazendo com que uma proposição não diga o seu
próprio sentido, mas expresse o seu sentido de uma forma insistente e não existente na própria
proposição
56
. Descobrindo a quarta dimensão da proposição no sentido, o nosso autor verifica
a incorporalidade deste – termo que resgata dos Estóicos (da relação corporal-incorporal). O
sentido em si mesmo é incorpóreo, já que não existe efetivamente nas coisas ou corpos, mas
apenas insiste neles, sendo o sentido da proposição e o acontecimento nos corpos, ou os
atributos dos corpos. O sentido é, desta maneira, sentido-acontecimento, pois é expresso tanto
através dos corpos quanto das proposições.
A questão do tempo é outra problemática que envolve o sentido. O autor
francês distingue duas naturezas do tempo e não mais três como eram comumente pensadas.
A primeira natureza do tempo, Chrónos, é a natureza do presente, um presente que vislumbra
o passado e o futuro, no entanto sempre desde o ponto em que se encontra, o próprio presente.
Não há insistência nesta natureza do tempo, há apenas existência, já que todo o presente é
existente. A outra natureza do tempo, Aiõn, traz a insistência como conteúdo, já que tanto o
passado como o futuro não existem efetivamente no tempo, mas insistem nele. Assim, o
próprio presente é visto como uma divisão desta dupla infinidade, uma que corre para o futuro
e outra que volta do passado. O instante marca esta natureza do tempo, já que é ele que divide
os dois infinitos em pequenos presentes. O devir marca as duas naturezas, e embora na
primeira ele seja aquilo que tenta derrubar Cronos, derrubar esta instância temporal, ele ainda
56
O sentido se desenvolve numa nova série de paradoxos, que fazem com que ele não exista na proposição, mas
insista nela; tais paradoxos Deleuze agencia na quinta série da Lógica do sentido: “Paradoxo da regressão ou
da proliferação indefinida”; “Paradoxo do desdobramento estéril ou da reiteração”; “Paradoxo da neutralidade
ou do terceiro-estado da essência”; “Paradoxo do absurdo ou dos objetos impossíveis”.
180
é visto como um devir monocentrado, colocado sobre um mesmo centro, o presente; já na
segunda natureza ele é descentrado e percorre livre os dois infinitos através do instante,
expressando-se no presente, mas não existindo nele.
A questão do Ser como unívoco, deste modo, se encontra basicamente no
conceito de expressão. O Ser se expressa, e se expressa sempre nas coisas e nas palavras ao
mesmo tempo. A questão é pensar sobre a relação entre as palavras e as coisas, entre o
corpóreo e o incorpóreo. Como pode haver uma relação entre duas naturezas tão discrepantes?
Aqui entra o conceito que vai nos comunicar com a univocidade e a expressão do Ser, a
síntese disjuntiva.
Inicialmente, pode parecer um absurdo, uma contradição, a coexistência de
duas palavras discordantes numa mesma sentença. A síntese disjuntiva é, entretanto, aquilo
que, através de sua disjunção, relaciona uma série (seja ela uma proposição ou um corpo) com
outra série divergente. O segredo da disjunção inclusa é que a distância entre uma
singularidade e outra já se torna uma relação, na medida em que uma singularidade é um
ponto de vista sobre a outra. Podemos relacionar aqui a síntese disjuntiva ao perspectivismo
nietzschiano, onde, por exemplo, a doença é sempre um ponto de vista desigual da saúde, e a
saúde um ponto de vista da doença; a distância entre a doença e a saúde já faz com que ambas
se relacionem.
A síntese disjuntiva adquire um outro aspecto e Deleuze parece também
encontrar em Nietzsche os conceitos certos para pensá-la: a disjunção inclusa é a repetição da
diferença, o eterno retorno da vontade de poder. A dupla afirmação da interpretação
deleuziana do filósofo alemão é resgatada neste conceito, já que a primeira afirmação,
entendida como eterno retorno, sempre repete uma mesma instância, a própria afirmação; a
segunda afirmação é o mundo da primeira, pois forma o conjunto da diferença sempre
repetida com a repetição que sempre retorna. Assim, o eterno retorno do mesmo de Nietzsche
se transforma em eterno retorno da diferença afirmada.
A univocidade do Ser de Deleuze é, portanto, a repetição da diferença, uma
repetição que não repete apenas a divergência, a distância entre as séries de simulacros
existentes, mas que repete a própria repetição. Repetir é fazer retornar o retorno eterno. O Ser
unívoco se expressa no existente, mas não existe nele. Ele insiste e, nesta insistência, faz com
que um existente seja sempre divergente de outro. A divergência é, por sua vez, a afirmação
do existente como tal e da insistência em si mesma. A relação da divergência marca o retorno
e o retorno é sempre unívoco.
CONCLUSÃO
182
Este trabalho teve como intuito central a exposição das principais
características e aspectos da Univocidade do Ser em Gilles Deleuze, e como ele chega a este
pensamento através do agenciamento de diversos conceitos e personagens – que tanto lhe
servem para um diálogo e crítica, como também os identifica aos seus personagens
conceituais.
Neste sentido, a nossa exposição se pautou numa configuração que levou
em conta um outro importante aspecto da filosofia deleuziana, a seleção. Selecionamos, desta
maneira, alguns dos diversos filósofos com que Deleuze estava em constante diálogo. Não foi
nosso objetivo percorrer necessariamente por este diálogo, mas apontar onde se dava o
“encontro” e/ou “desencontro” entre o nosso filósofo e os seus interlocutores.
A filosofia de Deleuze nos parece querer reivindicar uma alegria e uma
afirmação já esquecida, ou há muito tempo perdida ou, ainda, nunca encontrada. Ele trata com
muita irreverência a história da filosofia, o seu espaço para o pensamento, e é através dela que
ele encontra a sua própria. Seus “inimigos” e seus “amigos” muitas vezes se confundem em
suas obras e principalmente em suas duas fundamentais “enciclopédias filosóficas”
1
:
Diferença e repetição e Lógica do sentido. Foi neste registro, o de que Deleuze encontra uma
nova ou diferente maneira de fazer filosofia, que procuramos desenvolver a nossa pesquisa
sem perder de vista o nosso principal objetivo, a univocidade do Ser, ou melhor, o quarto
momento do unívoco.
Sabendo que a tarefa deleuziana é desenvolver um ponto de vista próprio na
filosofia através de um agenciamento de uma multiplicidade de conceitos e filosofias – no
sentido de que tais conceitos e filosofias revisados por ele se tornavam “filhos monstruosos”
destes autores diversos (“monstruosos” porque eram seus, mas desde o início marcados pelo
sêmen deleuziano) –, a nossa preocupação era saber como fazer a seleção das filosofias que
1
Utilizamos o termo “enciclopédia filosófica” para ilustrar a imagem que estes dois principais livros do filósofo
francês parecem produzir na sua leitura. Há claramente uma remissão a vários filósofos, uma reinterpretação,
uma distorção, etc., no entanto, quase tudo o que ali se encontra não é Hume, Descartes, Kant, Hegel,
Espinosa... é Deleuze. A questão é que a filosofia deleuziana parece dever muito à história da filosofia, já que
muitas foram as monografias que ele desenvolveu ao longo de sua vida, e não apenas sobre filósofos, mas
sobre literatos, pintores e entre outros. Mesmo nestas monografias, contudo, o filósofo francês nos trazia a
descoberta de novas perspectivas e novos pontos de vista na filosofia que colocava em questão; neste sentido,
há uma passagem em uma carta a um de seus críticos, compilada no texto Conversações, em que ele nos
demonstra, com muita ironia, o seu ponto de vista sobre o seu aparente débito com a história da filosofia: “[...]
minha principal maneira de me safar nessa época foi concebendo a história da filosofia como uma espécie de
enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um
autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso. Que fosse seu era muito importante,
porque o autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse
monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de
descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer” (CO, p. 14).
183
entrariam neste agenciamento que empreenderíamos no presente estudo. Selecionamos, assim,
apenas os principais conceitos, contextos, personagens de diálogos e personagens conceituais
que atravessavam as suas duas principais obras, já citadas acima. Escolhemos as censuradas
interpretações que Deleuze faz de: Platão, por ser este o principal inimigo da imanência;
Aristóteles, por ter levado o platonismo, mesmo criticando-o, às últimas conseqüências e por
ser o instaurador da equivocidade; São Tomás, por ter elevado a equivocidade do Ser à
analogia do juízo; Hegel, por ter instaurado a diferença como nada, ou por ter postulado a
contradição como uma espécie de niilismo; Heidegger, por ainda ter se prendido a um certo
nada, mesmo dizendo que a sua filosofia não era um niilismo. Selecionamos também as
interpretações nevrálgicas que o nosso filósofo faz de: Scott, por ter sido um dos primeiros a
reivindicar a univocidade do Ser, através do Ser neutro; Espinosa, por ter retirado do Ser o
seu caráter neutro, visto em Scott, e postulado um caráter extremamente positivo; e,
finalmente, Nietzsche, por ter elevado a positividade espinosana a uma dupla afirmação da
diferença. Esta seleção se mostrou fundamental para a compreensão dos principais conceitos
que o filósofo francês iria produzir para a postulação de sua visão do Ser como uma instância
puramente unívoca. A univocidade do Ser em Deleuze se confunde com a singularidade que
ele produz destas diversas sínteses disjuntivas que ele recorta da história da filosofia. A
seleção se mostra como o seu principal método, como o seu principal ponto de apoio para a
produção de sua filosofia.
A tarefa deleuziana, portanto, é tentar pensar sem pressupostos, a meta de
uma suposta nova imagem do pensamento, sabendo que ela já teria sido empreendida com a
filosofia de Nietzsche. Podemos, contudo, questionar: – Como pode Deleuze reivindicar um
pensamento sem pressupostos se ele se resguarda a pensar uma nova imagem do pensamento?
Deleuze não quer, de forma alguma, restaurar um dogmatismo e uma imagem do pensamento.
Esta suposta imagem que ele parece reivindicar, principalmente no final do terceiro capítulo
de Nietzsche e a filosofia, é simplesmente como ela é chamada, mas ela mesma não busca um
pensamento através de uma imagem, pelo contrário, é apenas através da completa ausência de
imagens do pensamento que, segundo ele, estaremos livres ou, melhor, o pensamento estará
livre para ser pensado. Deleuze procura desconstruir, assim como Nietzsche, o “platonismo”,
ou esta forma de pensar através de pressupostos, tanto objetivos, quanto subjetivos. Para que
este pensamento sem imagens seja possível, é preciso que a diferença seja pensada em si
mesma e, mais, como puramente positiva. Pensar a diferença como positiva exige que a
postulemos como problemática ou, melhor, como a questão que se coloca no âmago do Ser.
184
Desta forma, não pensaremos o devir como o não-Ser, como aquilo que se liga com o Ser para
formar o ente e o mundo. A nossa pesquisa se mostrou, inicialmente, através do agenciamento
que aqui selecionamos, como uma crítica à forma de pensar de uma certa tradição filosófica, à
maneira como os filósofos deste “platonismo” esculpiram os seus conceitos e os seus
personagens conceituais de forma a pensar a identidade antes da diferença, e esta última como
a negação de tudo aquilo que é eterno e imutável, ou a negação deste Ser idêntico.
Há, no agenciamento que fizemos, ou nesta seleção que abordamos neste
trabalho, dois momentos específicos. O primeiro corresponde a uma tentativa, por parte do
filósofo francês, de reverter as principais bases de uma filosofia que predominava na maior
parte dos filósofos da tradição filosófica: o platonismo; ou o pensamento que nos leva ao
Mesmo, ao Semelhante, ao Análogo e ao Oposto. Estes quatro conceitos formam as quatro
“raízes da representação”, que é como Deleuze (lendo Foucault) nomeia estas quatro formas
de se remeter, de alguma maneira, à transcendência. O segundo momento corresponde à
celebração deleuziana dos filósofos que conseguiram escapar desta tradição majoritária que
pensava a transcendência e a quádrupla raiz da representação. Tais pensadores tentaram
superar as imagens do pensamento e postular um pensamento sem pressupostos ou imagens
anteriores. Estas filosofias são resgatadas e singularizadas por Deleuze no seu próprio
pensamento do Ser como unívoco.
Assim, num primeiro momento deste agenciamento, tentamos nos remeter à
crítica deleuziana ao Mesmo e ao Semelhante, caracterizado pela filosofia propriamente
platônica; e, posteriormente, ao análogo e ao oposto – vislumbrados nas filosofias de
Aristóteles e Tomás de Aquino –, estes dois conceitos que fizeram com que o Mesmo fosse
elevado ao mais alto grau das categorias e a diferença fosse pensada como o negativo. Se o
agenciamento selecionado neste trabalho parte da crítica, devemos ter em mente que ela serve
a Deleuze como a questão que deve ser analisada; é só através da questão que podemos
chegar à solução, não uma solução acabada, mas uma solução que se torna uma nova questão.
O segundo momento do agenciamento nos levou a reivindicar a interpretação deleuziana
sobre três principais filósofos que com ele formam os quatro momentos do unívoco: Scott,
Espinosa e Nietzsche. Privilegiamos estes três pensadores porque representam, com maior
precisão, o intuito deleuziano da univocidade do Ser, além de serem eles os precursores de
uma revolução no modo de pensar da tradição filosófica. Outros importantes autores que, com
estes, formam o agenciamento deleuziano, tiveram de ficar de fora desta seleção, tais como:
um certo Hume, Bergson, Tarde, Meinong, Lacan, Carroll, etc.
185
Neste sentido, Duns Scott é o primeiro representante dos quatro momentos
do Ser unívoco por não se prender ao Ser como uma instância propriamente divina, e sim
neutra. O Ser neutro de Scott possui duas distinções: a distinção formal, que diz respeito aos
atributos formais do Ser e que é, para o doutor sutil, uma distinção real e não numérica; e a
distinção modal, que se refere aos modos intensivos do Ser e que é considerada uma distinção
numérica. O Ser é unívoco porque se diz apenas da neutralidade. Em Espinosa, o segundo
momento do unívoco, encontramos certas semelhanças com as teorias de Scott; entretanto, ele
contraria a principal delas, o Ser neutro. Para o filósofo judeu, o Ser não é neutro, mas sim
uma pura positividade; ele é uma substância única e infinita e a substância única possui uma
distinção real, ou formal, e uma distinção numérica, ou modal. A primeira se remete à
diferença entre a substância e seus atributos, onde os atributos são desdobramentos formais da
substância que se expressa neles; e a segunda se refere à diferença entre os atributos e os
modos da substância, onde os modos são expressões quantitativas dos próprios atributos. O
Ser tem só um sentido em Espinosa, ele é unívoco porque se diz, se expressa unicamente na
substância, mas ela se desdobra intensivamente nos atributos e modos e também
extensivamente nos modos. Já em Nietzsche temos uma outra perspectiva de univocidade.
Deleuze pensa a univocidade do Ser em Nietzsche como uma pura afirmação, ou melhor, uma
dupla afirmação: a vontade de poder e o eterno retorno. Assim, ele reinterpreta o pensamento
do filósofo alemão acerca das forças e da vontade. A dupla afirmação se realizada na
destruição ativa, já que a afirmação da vontade se revela como a segunda afirmação, pois a
primeira é a repetição eterna desta afirmação. A primeira afirmação é o eterno retorno do
mesmo, aquilo que sempre retorna, não como o Mesmo, o idêntico, mas o mesmo da vontade;
este mesmo é a vontade, é a vontade que sempre retorna e com ela o próprio retorno.
Acontece que a vontade não é uma identidade senão uma diferença, sempre uma diferença de
intensidade que se instala entre os entes. Temos, desta maneira, um eterno retorno da vontade
de poder ou repetição da diferença. O Ser é unívoco porque só se diz da diferença que sempre
retorna, ou desta dupla afirmação.
Perante este panorama apresentado, através deste agenciamento que aqui
selecionamos, pudemos perceber vários elementos que o próprio Deleuze resgata e retoma em
sua “doutrina” da univocidade. Peguemos um exemplo de cada agenciamento para que
possamos visualizar com maior clareza o que tentamos expressar através deste trabalho de
pesquisa. Primeiramente, Deleuze tentou não cair num platonismo, ou naquilo que ele mesmo
critica; a sua filosofia unívoca não invoca uma unidade transcendente, uma identidade que
186
sirva de modelo e que só podemos pensá-la através de cópias que se assemelham a este
modelo. Platão, apesar de instaurar um método de seleção em sua filosofia, ainda recaía neste
princípio de identidade transcendente, um modelo que era copiado. E Aristóteles, apesar de
postular uma equivocidade do Ser para que não caísse nas armadilhas de seu mestre, ainda
esteve preso a um certo sentido primeiro do Ser, a substância primeira, e a uma oposição dos
predicados; o que fez do estagirita ainda um representante do platonismo. O tomismo
intensificou o sentido primeiro de Aristóteles, pensando-o como uma unidade invisível que
estaria presente em todas as séries das categorias, a analogia. Deleuze não recai nestas
armadilhas. Pelo contrário, ele faz destas quatro raízes da representação efeitos secundários,
que não interferem no pensamento do Ser como uma instância unívoca. O filósofo francês
também não recai numa filosofia que postule o Ser como uma diferença pensada como não-
Ser. A diferença não é o nada, entendida tanto no plano da contradição hegeliana, como do
nada heideggeriano. Não podemos pensá-la como uma instância contrária ao Ser e nem
cogitá-la como aquilo que se oculta e que, portanto, não pode ser pensada. Ela também não
pode ser confundida como uma instância que ainda resgataria algum tipo de subjetividade
prévia. Ao contrário, ela não se remete a princípio algum, mas não se remeter a princípio
algum não quer dizer que seja um nada ou umo-Ser. A diferença é o próprio Ser e é sempre
uma insistência presente nas palavras e nas coisas. Ela é imanente aos entes, não podendo ser
separada deles.
Não recaindo no platonismo e na transcendência e nem mesmo num
niilismo, podemos pensar a filosofia deleuziana como um pensamento sem pressupostos,
ausente de princípios que façam com esta filosofia seja carregada de conceitos que se
comportem como axiomas. Então se pode perguntar: – Onde se encaixa o segundo momento
do agenciamento apresentado neste trabalho; como a filosofia deleuziana pode ser sem
pressupostos, se resgata conceitos já presentes em outros filósofos?
Primeiramente, devemos ter em mente que estes conceitos resgatados por
Deleuze já sofreram uma larga mudança neste processo do agenciamento. O retorno do
conceito já é um retorno da diferença, pois aquele conceito já não é o mesmo, já mudou, já se
transformou em uma “monstruosidade”. Por exemplo: O conceito de “vontade de poder” de
Nietzsche, ao passar pelo crivo do pensamento deleuziano, já se torna um monstro para os
nietzschianos, já não possui o mesmo sentido que havia em Nietzsche; por mais ínfima que
seja a mudança no sentido, ele já não é o mesmo sentido. Em segundo lugar, Deleuze não
187
postula estes conceitos como axiomas, como princípios para a sua filosofia, apenas os
transforma em novos conceitos que servem para explicá-la.
Deste modo, o agenciamento que ele faz de Scott, Espinosa e Nietzsche já é
uma mudança no âmago do conceito para desenvolver a sua própria filosofia. Ao resgatar
Scott, Deleuze transforma o Ser unívoco scottista em uma nova maneira de pensá-lo através
de um sentido único. O Ser neutro deixa de ser neutro e se transforma em afirmativo. Retoma
Espinosa para retratar o Ser como esta instância expressiva; uma expressão sempre imanente,
um Ser que sempre atravessa os entes, mas de um modo sempre insistente e repetido. E
retoma Nietzsche para trazer à tona a dupla afirmação como uma repetição da diferença, onde
o que retorna é a própria diferença repetida. A filosofia deleuziana faz retornar os conceitos,
como visto, mas conceitos sempre transformados.
A univocidade do Ser em Deleuze é, portanto, um pensamento que abrange
estes diversos aspectos do agenciamento que aqui selecionamos. Não há um desprendimento
preciso daquilo que é a sua própria filosofia e daquilo que é o agenciamento de diversos
outros conceitos retirados da sua seleção da história do pensamento.
Em Lógica do sentido, pudemos observar como o nosso filósofo resgata a
discussão acerca do sentido e das dimensões da proposição; descobrindo que o próprio sentido
se mostra como uma dimensão da proposição em separado e não em conjunto com uma das
três onde comumente era colocado. Ele, na verdade, é aquilo que comunica estas três
dimensões entre si, ele circula por elas, mas não se detêm em nenhuma delas em particular.
Para Deleuze, o sentido é o próprio verbo, já que é aquilo que expressa e que insiste na
proposição; ao insistir e persistir, ele faz com que cada proposição tenha e comunique o seu
próprio sentido, sem que para isso precise de uma nova proposição, de um duplo neutro, mas
unicamente deste extra-ser que é o sentido-acontecimento. A quarta dimensão da proposição é
o sentido-acontecimento, este incorpóreo que “habita”, enquanto insistência, tanto nas
proposições, como dimensão, quanto nas coisas, como atributo.
A questão do sentido-acontecimento é ligada a um outro importante tema: o
tempo como insistência. Deleuze designa duas formas de nomeação para o tempo: Chrónos e
Aiõn. O primeiro se diz do tempo cronológico que sempre é uma existência, já que
observamos o passado e o futuro desde um tempo sempre presente. A segunda nomeação se
diz de um tempo que é sempre insistência, pois não existe efetivamente como corporal, mas
como um incorpóreo que atravessa a primeira natureza do tempo. Aiõn divide o presente
corpóreo em passado e futuro, não há mais uma perspectiva de passado e futuro desde o
188
presente, mas uma perspectiva de presente desde estes dois pontos ilimitados, passado e
futuro. Apesar desta distinção entre estas duas naturezas, o devir se coloca como perspectiva
nas duas: como devir-louco monocentrado que tenta derrubar Cronos, já que tenta elevar o
existente à insistência; e como devir descentrado que percorre os dois infinitos ao mesmo
tempo (passado e futuro), sempre dividindo o presente através do instante. O segundo devir é
o devir da expressão, pois não é uma forma existente senão insistente que percorre os corpos e
as proposições, mas de uma maneira sempre expressiva.
O Ser de Deleuze é a expressão. Ele se expressa, mas só pode se expressar
em algo, sendo que este algo pode ser dito das coisas e das proposições. O Ser se expressa de
uma maneira insistente nas coisas e nas proposições, que, por sua vez, são existentes. Esta é a
imanência deleuziana: pensar o Ser não como uma coisa transcendente que funda o ente desde
a sua morada ideal, mas como uma expressão que funda o ente desde a sua própria superfície,
desde a sua própria aparição. A relação entre esta instância incorporal e esta instância
corporal, ou mesmo a relação entre as palavras e as coisas, é uma relação aparentemente
impensável, entretanto, o autor de Diferença e repetição nos traz uma nova perspectiva desta
problemática que surge. Ele nos guia em busca de uma síntese, não no sentido hegeliano da
palavra, mas num sentido que Deleuze parece buscar em Nietzsche, uma síntese disjuntiva.
Uma síntese disjuntiva é uma relação entre séries divergentes. A princípio
pode nos parecer absurdo relacionar o frio e o calor, o pequeno e o grande, o finito e o
infinito, etc., mas a questão é que uma série é sempre uma leitura ou uma releitura da outra. A
distância que há entre uma série qualquer e outra divergente já é uma relação entre ambas,
pois a individualidade de uma é sempre um ponto de vista da outra, um ponto de vista
desigual, sem medida ou meio termo. Podemos perceber aqui a relação que o nosso autor cria
com Nietzsche, já que esta disjunção inclusa pode ser vista como uma releitura do
perspectivismo nietzschiano. Outro aspecto da síntese disjuntiva, que o filósofo francês
também parece encontrar em Nietzsche, é a dupla afirmação que se vislumbra neste processo,
ou o que no terceiro capítulo dizíamos se tratar do eterno retorno da vontade de poder. A
primeira afirmação, que se tratava do eterno retorno, pode ser dita da síntese, já que é a
síntese mesma que sempre volta, mas ela só volta por causa da segunda afirmação, a
disjunção, ou o que era a vontade de poder. Assim, o retorno é a síntese que sempre volta
porque se vincula à diferença que é a disjunção. Uma repetição eterna da diferença sempre
afirmada. A distância é a disjunção que sempre retorna juntamente com o próprio retorno que
sintetiza a divergência.
189
O Ser unívoco de Deleuze é, portanto, imanente, incorpóreo, insistente,
positivo ou afirmativo. É, em uma única palavra: Diferença. Ele se diz unívoco porque é a voz
dos entes e, enquanto tal, ele não é existente, pois não existente no presente, e sim no passado
e no futuro, na insistência; ele não é transcendente, pois não funda o ente desde um outro
mundo fora desde, e sim neste mesmo mundo dos entes, a imanência; ele não é corpóreo, já
que não se diz dos entes ou das proposições que podem ser vistas como corpos fônicos, mas é
dito do sentido-acontecimento que é incorpóreo; ele não é negativo, pois não pode ser
pensado como um não-Ser completo ou como nada, mas como a questão que sempre
permanece na resolução, a insistência que sempre se expressa nas coisas e nas palavras; não é
idêntico e nem semelhante, pois se diz da divergência que está nos entes, nenhum ente é
idêntico ou semelhante por princípio, e sim por conseqüência, ele é a diferença. Estes vários
sentidos formais do Ser não tiram o seu caráter ontológico único: ser diferença. A diferença
abrange todos estes aspectos ou sentidos formais do Ser, mas ela é ontologicamente única, ou
seja, possui um único sentido: ser a própria diferença. O Ser é unívoco porque se diz única e
exclusivamente da diferença. O fundamento é uma diferença que se mostra sempre na
imanência, um fundamento sem fundo, um fundamento que se funda desde a própria
superfície. Deste modo, uma individualidade singular possui uma configuração única, pois é
diferente de qualquer outra. Não há outra individualidade ou singularidade igual ou
semelhante a ela senão por comparação, mas a comparação já não é um princípio, não é a
priori, e sim a posteriori. A única forma de pensarmos a identidade, a semelhança, a analogia,
a oposição e a negação é através de análises a posteriori; a priori tudo é diferença
2
.
Deste modo, pudemos vislumbrar com outros olhos a tarefa realizada por
Deleuze, e com ele aprendemos a pensar sem pré-conceitos, através de pontos de vistas
desiguais e singulares; através de um “princípio” que é sempre uma distância entre um ponto
e outro, uma divergência, uma diferença.
2
Não queremos aqui resgatar uma discussão de Deleuze com Kant, sobre a questão do Transcendental, mas
podemos dizer que o Ser deleuziano não é uma instância transcendente, mas transcendental, já que não é um
corpo, e sim um incorporal, não é uma existência, e sim uma insistência. O Transcendental de Kant possui, com
propriedade, a característica de ser a priori, não no sentido platônico, que se remete a um ente ideal fora de um
mundo imanente, e sim no sentido de que é anterior à própria experimentação, à própria existência, mas que
mesmo assim subsiste na existência das coisas. A leitura do filósofo francês parece percorrer pelo mesmo
caminho, embora Deleuze discorde de Kant com relação às faculdades. Não entraremos aqui, entretanto, em
maiores detalhes desta problemática, porque julgamos não ser este o momento propício para tal discussão.
BIBLIOGRAFIA
191
Obras de Gilles Deleuze:
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. 3. ed. Trad. Luiz B. L. Orlandi. Campinas:
Papirus, 2005.
______________. Bergsonismo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 1999. (Coleção
TRANS).
______________. Conversações, 1972 – 1990. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed.
34, 1992. (Coleção TRANS).
______________. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. 2. ed. Rio
de Janeiro: Graal, 2006.
______________. Différence et répétition. 1. ed. 1969, 11. ed. 2003. Paris: Presses
Universitaires de France (puf), 2003. (Collection ÉPIMÉTHÉE).
______________. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza segundo Hume. Trad.
Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2001.
______________. Espinosa: filosofia prática. Trad. Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São
Paulo: Escuta, 2002.
______________. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. 1. ed. São Paulo: Brasiliense,
1988.
______________. L’immanence: une vie... (A imanência: uma vida...). Trad. Tomaz Tadeu.
In: Educação e realidade. Vol. 27, nº 2 – jul./dez. de 2002, p. 10-18.
______________. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas. 4. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1998.
______________. Logique du sens. 1. ed. 1969. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002.
(Collection “Critique”).
______________, e GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 1.
Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. (Coleção
TRANS).
______________, e GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 2.
Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. (Coleção
TRANS).
______________, e GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 3.
Trad. Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1996. (Coleção TRANS).
______________, e GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 4.
Trad. Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. (Coleção TRANS).
192
______________, e GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 5.
Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. (Coleção TRANS).
______________. Nietzsche. Trad. Alberto Campos. Lisboa: Edições 70, 2001.
______________. Nietzsche e a filosofia. Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily
Dias. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.
______________, e GUATTARI, Félix. O anti-Édipo – capitalismo e esquizofrenia. Trad.
Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.
______________, e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. (Coleção TRANS).
______________. Proust e os signos. Trad. Antônio Piquet e Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Forense, 1987.
______________. Spinoza y el problema de la expresión. Trad. Horst Vogel. Barcelona:
Muchnik & Atajos, 1999.
Obras de Comentadores:
ALLIEZ, Éric. A assinatura do mundo: o que é a filosofia de Deleuze e Guattari? Trad.
Maria Helena Rouanet, trad. dos apêndices I e II de Bluma Villar. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1994. (Coleção TRANS).
___________. Da impossibilidade da fenomenologia – sobre a filosofia francesa
contemporânea. Trad. Raquel de Almeida Prado e Bento Prado Jr. São Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleção TRANS).
___________. (org.). Deleuze filosofia virtual. Trad. Heloisa B. S. Rocha. São Paulo: Ed. 34,
1996. (Coleção TRANS).
___________. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Coordenação da tradução de Ana Lúcia
de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2000. (Coleção TRANS).
BADIOU, Alain. Deleuze: o clamor do ser. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997.
BOUNDAS, Constantin V. e OLKOWSKI, Dorothea. (edited). Gilles Deleuze and theater of
philosophy. New York: Routledge, 1994.
CRAIA, Eládio C. P. A problemática ontológica em Gilles Deleuze. Cascavel:
EDUNIOESTE, 2002.
____________________. Gilles Deleuze e a questão da técnica. Campinas: [s.n.], 2003.
(Tese de doutorado – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas).
193
____________________. Deleuze e as trilhas da univocidade. In: Ensaios de filosofia
moderna e contemporânea: Maquiavel, Descartes, Kant, Nietzsche, Wittgenstein, Deleuze.
Org. Daniel Omar Perez. Cascavel: EDUNIOESTE, 2001. (Série estudos filosóficos; n. 1).
____________________. Um acercamento da leitura deleuziana de Nietzsche. In: Cadernos
Nietzsche, nº 20. São Paulo: Editora Unijuí, 2006, p. 47-68.
FOUCAULT, Michel. Treatrum philosophicum. Trad. Francisco Monge. Barcelona:
Editorial Anagrama, 1995.
GUALANDI, Alberto. Deleuze. Trad. Danielle Ortiz Blanchard. São Paulo: Estação
Liberdade, 2003.
HARDT, Michael. Gilles Deleuze: um aprendizado em filosofia. Trad. Sueli Cavendish. São
Paulo: Editora 34, 1996. (Coleção TRANS).
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção
TRANS).
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2003. (Conexões; 19).
MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
PARDO, Jose Luis. Deleuze: violentar el pensamiento. Bogotá: Editorial Cincel Kapelusz,
1992. (Série Historia de la filosofia).
PATTON, Paul. (edited). Deleuze: a critical reader. Oxford: Blackwell Publishers Ltd, 1996.
ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2004. (Conexões; 24).
Obras de Outros Autores:
ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São
Paulo: Perspectiva, 1997.
ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969.
AUBENQUE, Pierre. El problema del ser en Aristóteles. Trad. Vidal Pena. Madrid: Taurus,
1974.
BADIOU, Alain. O ser e o evento. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed. e Ed. UFRJ, 1996.
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Trad. Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001.
(Coleção Textos Filosóficos).
194
CARROLL, Lewis. A caça ao Snark. Trad. Manuel Resende. São Paulo: Assírio & Alvim,
2003.
_______________. Algumas aventuras de Sílvia e Bruno. Trad. S. L. R. Medeiros. São
Paulo, Iluminuras, 1997.
_______________. Alice – edição comentada. Ilustrações originais, John Tenniel; introdução
e notas, Martin Gardner; tradução, Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2002.
CHÂTELET, François. Platão. Trad. Souza Dias. Porto: Rés, 1981. (Col. Diagonal).
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras,
2005.
________________. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
DESCARTES, René. Meditações. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. (Os Pensadores).
_________________. Princípios da filosofia. 2. ed. Trad. Alberto Ferreira. Lisboa:
Guimarães Editores, 1971.
ESPINOSA, Baruch de. Ética – demonstrada à maneira dos geômetras. In: Espinosa. Trad.
Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões. 2. ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1979. (Os Pensadores).
FOUCAULT, Michael. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GARAUDY, Roger. Para conhecer o pensamento de Hegel. Trad. Suely Bastos. Porto
Alegre: L&PM Editores, 1983.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio:
1830 – V. 1: A Ciência da lógica. Trad. Paulo Meneses e José Machado. São Paulo: Loyola,
1995. (O pensamento ocidental).
HEIDEGGER, Martim. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan
Fogel e Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: 2001.
__________________. Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. 2. ed. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1978.
__________________. O que é isto — a filosofia? Tradução de Ernildo Stein. São Paulo:
Duas Cidades, 1971.
__________________. Que é metafísica? Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Livraria Duas
Cidades, 1969.
__________________. Ser e tempo. Trad. Márcia se Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1993.
Vol. I.
195
__________________. Ser e tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2002.
Vol. II.
HUSSERL, Edmund. L’idée de la phénoménologie (cinq leçons). 8. ed. Trad. Alexandre
Lowit. Paris: PUF, 2000.
_________________. Meditações cartesianas – introdução à fenomenologia. Trad. Frank de
Oliveira. São Paulo: Madras, 2001.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger.
São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores).
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1993. (Coleção TRANS).
MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade: Heidegger e a
reconstrução ontológica do real. São Paulo: FAPESP e Annablume, 1999.
MÜLLER, Maria Stela; CORNELSEN, Julce Mary. Normas e padrões para teses,
dissertações e monografias. 5. ed. Londrina: Eduel, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. W. Assim falou Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém.
Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1977.
______________________. Genealogia da moral – Um escrito polêmico. Trad. Paulo Cesar
Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.
______________________. L’Antéchrist – suivi de Ecce Homo. Trad. Jean-Claude Hémery.
Paris: Folio Essais (Gallimard), 1990.
______________________. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: Nietzsche.
Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os pensadores).
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Trad. Enrico Corvisieri Mirte Coscodai. São Paulo: Nova
Cultural, 1999. (Os Pensadores).
________. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Os
Pensadores).
________. Fédon. Trad. Maria Teresa Schiappa de Azevedo. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado, 2000. (Clássicos Gregos).
________. Fedro. Trad. Carlos Alberto Nunes. Vol. V. Belém: Ed. da UFPA, 1975.
________. Górgias ou a oratória. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1970.
________. Mênon. Trad. Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola,
2001.
196
________. Parmênides. Trad. Maura Iglesias e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro: Ed.
PUC-Rio ; São Paulo: Loyola, 2003.
________. O banquete. In: Diálogos. 2. ed. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril
Cultural, 1979. (Os Pensadores).
________. O político. In: Diálogos. 2. ed. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo:
Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).
________. O sofista. In: Diálogos. 2. ed. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo:
Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).
________. Teeteto. Trad. Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2005.
PELIZZOLI, Luiz Marcelo. O Eu e a diferença: Husserl e Heidegger. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2002. (Coleção Filosofia; 150).
SCOTT, Duns. Opus oxoniense. In: Duns Scott. Trad. Carlos Arthur Nascimento e Raimundo
Vier. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
___________. Reportata parisiensia. In: Duns Scott. Trad. Carlos Arthur Nascimento e
Raimundo Vier. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
SOARES, Marcio. A ontologia de Platão – um estudo das formas no Parmênides. Passo
Fundo: UPF, 2001. (Série Filosofia).
TOMÁS DE AQUINO. O ente e a essência. Trad. Carlos Arthur do Nascimento. Petrópolis:
Vozes, 2005.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo