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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
BENEDITO CÂNDIDO DA SILVA
A LUTA NA TERRA EM BUSCA DA EMANCIPAÇÃO
Histórias orais de vida de agentes do MST do Assentamento Dorcelina Folador no
município de Arapongas, estado do Paraná.
PONTA GROSSA
2007
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BENEDITO CÂNDIDO DA SILVA
A LUTA NA TERRA EM BUSCA DA EMANCIPAÇÃO
Histórias orais de vida de Agentes do MST do Assentamento Dorcelina Folador
no município de Arapongas, estado do Paraná.
Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre em
Ciências Sociais Aplicadas, na área de concentração
Sociedade, Direito e Cidadania, na Universidade Estadual de
Ponta Grossa-UEPG-Paraná.
Orientadora: Profª Dra. Divanir Eulália Naréssi Munhoz
Ponta Grossa
2007
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Dedico aos que são, que foram e que serão meus alunos.
AGRADECIMENTOS
A Deus que age no silêncio.
Aos Professores do programa de Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas da
UEPG.
À Professora Dra. Divanir Eulália Naréssi Munhoz, por sua dedicação e zelo
na orientação desta dissertação.
À Professora Dra. Andréa Paula dos Santos, pela inspiração e orientações
sobre a metodologia utilizada nesta pesquisa.
Ao Professor Doutor Dimas Floriani, pelas sugestões que contribuíram para o
enriquecimento da perspectiva teórica.
À minha família que é meu alicerce e meu porto seguro.
À Marileiva Ferreira Nunes, minha companheira, por sua paciência e
colaboração naquilo que esteve ao seu alcance.
Aos agentes do Assentamento Dorcelina Folador que participaram desta
pesquisa, pela boa vontade e amizade com que me acolheram e colaboraram.
RESUMO
Esta pesquisa é um estudo de caso, utilizando como método de pesquisa as
histórias orais de vida de moradores do Assentamento Dorcelina Folador, do
município de Arapongas, no norte do Paraná, visando a sondar o nível de
emancipação e de inclusão social atingidos, na visão dos agentes pesquisados,
após o ingresso no MST e a conseqüente conquista da terra. Foi observada uma
forte influência da Igreja na formão das identidades na maioria das narrativas, bem
como a existência de contradições em vários níveis, que se articulam desde as
subjetividades de cada um dos entrevistados, até a forma em que se inserem no
contexto social e nacional. Em virtude dos entrevistados serem militantes
identificados com idéias e propostas do Movimento, a pesquisa revela um forte
componente ideológico nas narrativas e, ao mesmo tempo, conflitos de ordem
existencial quando a luta pela terra lugar à luta na terra em busca da
sobrevivência, dentro de padrões compatíveis com a dignidade humana. A idéia de
emancipação assimilada pelos agentes alvos da pesquisa, apresenta-se como mais
do que a conquista da terra, mas, também, como a apropriação de maior
esclarecimento sobre aspectos da conjuntura atual e a evolução na consciência de
direitos de cidadãos. O sentimento de inclusão é determinado pelo fato de se
tornarem sujeitos constituídos dentro de um movimento social e de uma comunidade
de vida, em que comungam idéias e sonhos semelhantes. Observou-se tamm a
necessidade de serem aprofundadas, dentro do MST, reflexões sobre a questão de
gênero, bem como sobre questões existenciais e familiares de militantes que se
envolvem excessivamente nas atividades do Movimento.
Palavras chaves: movimentos sociais, emancipação, cidadania
ABSTRACT
This work is a study of a case using as research verbal histories of Dorcelina Folador
Nesting inhabitants lives’, in the city of Arapongas, North of Paraná, aiming at
investigating the level of emancipation and social inclusion reached, in the
researched agents, after their ingression in the MST and the consequent conquest of
the land. One strong influence of the Church in the formation of identities in the
majority of the narratives was observed, as well as the existence of contradictions in
some levels, that are articulated from the subjectivity of each one that were
interviewed to the form where they insert in the social and national context. By virtue
of the those interviewed are militants identified with ideas and proposal of the
Movement, the research discloses a strong ideological component in the narrative
and, at the same time, conflicts of existential order when the fight for the land gives
place to the fight in the land for the survival, inside the compatible standards with the
human dignity. The idea of emancipation assimilated by the agents, that are object of
the research, is presented not only as the conquest of the land, but also as the
biggest classification about the aspects of the current conjuncture and the evolution
of the citizens’ rights. The inclusion feeling is determined by the fact of they become
citizens inserted in a social movement and in a community, where similar ideas and
dreams commune. It was also observed, inside of MST, the necessity of being
deeper reflections on the sort question, as well as existences and familiar questions
of the militants that get involved excessively in the activities of the Movement.
Keywords: social movements, emancipation and citizenship
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................. 09
1 Emancipação e inclusão no contexto do neoliberalismo e globalização........ 19
1.1 O MST e a concepção de práxis emanciparia............................................... 27
2 Contextualizando o objeto da pesquisa............................................................ 32
2.1 Algumas características do Assentamento....................................................... 46
3 Apresentando os sujeitos: o perfil dos entrevistados, suas vidas antes de
Ingressarem no MST e os motivos que os levaram a ingressar no Movimen-
to........................................................................................................................... 54
3.1 Alencar Hermes..................................................................................................... 56
3.2 Renato Reinehr...................................................................................................... 58
3.3 Regina Sonia Borges dos Santos........................................................................... 62
3.4 Pedrinho (Pedro Antonio Cardoso Carvalho)....................................................... 63
3.5 Rosilda Nogueira Carvalho................................................................................... 69
3.6 Odete Rosilei Kliemaun........................................................................................ 70
4 O ingresso no MST e a influência da Igreja..................................................... 73
4.1 Teologia da Libertação: perspectiva crítica da relação da religião-realidade 75
4.2 A Teologia da Libertação: divergências e reações............................................ 83
4.3 A Comissão Pastoral da Terra-CPT e os resultados da relação entre marxis-
mo e religião.......................................................................................................... 91
5. Emancipação e sentimento de dignidade: consciência política e de direitos
de cidadania- a importância da educação........................................................ 93
5.1 A consciência política e de direitos de cidadania............................................ 97
5.2 A importância da educação promovida pela escola....................................... 118
6 A questão de gênero........................................................................................... 128
7 As lutas, a ocupação do Assentamento e a organização da linha de produ-
ção....................................................................................................................... 138
9
7.1 A militância e a luta pela terra......................................................................... 142
7.2 A luta na terra..................................................................................................... 158
8 Considerações Finais.......................................................................................... 185
Referências................................................................................................................ 199
9
INTRODUÇÃO
Tenho fome, Senhor.
Fome de pão, fome de escola, fome de verdade, fome de justiça, fome de Ti, Senhor.
Quisera saber de ti, Senhor, a quem destinaste toda a criação.
A quem fizeste legítimo dono da terra.
A quem deste o direito de tirar o direito de cada lavrador ter seu pedaço de chão.
Quisera saber de ti, Senhor, se é direito ver os homens da terra viverem sem terra e mais do
que sem terra, sem esperança de justiça.
Quisera saber se é justo quem trabalha viver sem roupa, sem casa e pão.
Quisera saber, Senhor, se concordas com a dor de quem trabalha ao ver seu filho se
entregar nos braços da morte, após definhar no berço da miséria.
Quisera saber, Senhor, se posso comungar teu corpo ao lado de quem escraviza e explora
seu irmão.
Quisera saber, Senhor, se quem explora e destrói as esperanças de quem trabalha,
batendo no peito consegue o teu perdão.
Quisera saber, Senhor, com quem devo estar em comunhão.
(trecho do jogral “Justiça no mundo”, escrito por este pesquisador em 1970).
O impulso que move qualquer pesquisador é sempre a busca de respostas a
certas indagações a respeito de um tema e, mesmo que este seja largamente
explorado e discutido, sempre existe algum fato novo e revelador, até mesmo porque
tudo está em constante mudança e transformação, principalmente no contexto
político e social.
Fazer uma pesquisa sobre assuntos que envolvem o MST , inicialmente, a
impressão de se cair em lugar comum, sem trazer à luz nenhuma informação
relevante a ser acrescentada a tudo o que se pesquisou; entretanto, o estudo de
caso dos agentes integrantes do Assentamento Dorcelina Folador, do município de
Arapongas, revela situações específicas daquela comunidade que, em alguns
aspectos, podem servir de amostragem para uma melhor compreensão de uma
totalidade maior do Movimento.
Um estudo de caso, porém, pode ter inúmeras formas de abordagem,
dependendo do que se pretende investigar, e a abordagem definida para o presente
estudo foi colher informações através de histórias orais de vida.
Sendo uma pesquisa feita a partir de relatos dos momentos mais marcantes
da vida dos assentados, seu objetivo principal foi o de sondar o nível de
emancipação adquirido pelos agentes pesquisados, após o seu ingresso no MST, e
qual o conceito de inclusão social assimilado por eles, considerando que, em geral,
o tidos, aos olhos dos outros segmentos da sociedade, como excluídos ou
marginalizados, formando guetos sociais.
A escolha desse método de investigação foi motivada, inicialmente, pela obra
“Vozes da marcha pela terra” de Santos, Ribeiro e Meihi, que é um registro de
histórias orais de vida de alguns integrantes do MST, participantes da Marcha
Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, realizada em abril de 1997, que
chegou em Brasília no dia 17 daquele mês e ano.
1
Nesse tipo de estudo se destaca a importância da interação entre o
pesquisador e os pesquisados, no caso, que se apresentam como sujeitos em busca
de uma forma de escrever história, a partir da visão do oprimido.
A expectativa é de que a pesquisa a partir de histórias orais de vida, com
base nos relatos dos sujeitos pesquisados na comunidade do Assentamento
Dorcelina Folador, possa trazer à luz informações capazes de contribuir para uma
melhor compreensão do contexto em que se inserem os narradores, sujeitos
participantes do projeto, bem como da realidade enfrentada pela grande maioria dos
Assentamentos.
O que se procura investigar, no conteúdo das narrativas, e a forma como a
investigação se realiza, torna os participantes do projeto sujeitos na construção de
suas hisrias. Isso é reafirmado por Lang (1996, p. 37), em seu artigo "Hisria Oral:
muitas dúvidas, poucas certezas e uma proposta":
O importante a ressaltar é o fato de que o indivíduo, que conta sua história,
ou seu relato de vida, não constitui, ele próprio, o objeto de estudo;
constitui o relato, a matéria prima para o conhecimento sociológico que
1 A marcha por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, reuniu, em Brasília, cerca de 1.300 sem-terra de diversos
estados, para pressionar o governo federal pela realização da reforma agrária. Fonte: Vozes da Marcha pela
Terra. (Santos, Ribeiro e Meihi, 1998).
busca, através do indivíduo e da realidade por ele vivida, apresentar as
relações sociais em que se insere em sua dinâmica.
Tanto Santos, Ribeiro e Meihi, em “Vozes da Marcha pela Terra”, como Ecléa
Bosi, em Memória e Sociedade: lembranças de velhos”, não se limitam a registrar
as narrativas, mas tamm se colocam como narradores, em vários momentos, e
revelam o caráter qualitativo das pesquisas.
Quer na preocupação de compor um registro histórico, em “Vozes da Marcha
pela Terra”, quer na composição de um registro orientado nos princípios da
psicologia social, como é a abordagem de “Memória e Sociedade”, o material é
colhido em segmentos da sociedade que são marginalizados e por tal motivo
possibilitam a observação da realidade por uma perspectiva do oprimido.
Ecléa Bosi (1994, p. 37) argumenta, na introdução de sua obra, que o registro
das narrativas colhidas, além de alcançar uma memória pessoal, “é também uma
memória social, familiar e grupal”. São memórias de “sujeitos sociais que
concretizarão transformações”, como entende Wanderley (1992, p. 141) que, mesmo
sem visibilidade, se propõem a construir sua história, seu mundo, sua identidade e
reivindicam sua condição de ser, seu direito de pertencer a um meio social.
Ainda dentro da noção de sujeitos sociais, caracterizados, por Wanderley, nas
relações do sujeito com a estrutura, o autor refere-se aos “novos sujeitos coletivos a
partir de movimentos sociais populares” (1992, p. 145), que formam, conforme
Sader
2
, uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam práticas
através das quais seus membros pretendem defender interesses e expressar suas
vontades, constituindo-se nessas lutas”.
2
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, citado por
Wanderley. (1992, p.145).
Capturar traços da identidade individual, elaborada na dinâmica do processo
histórico e das lutas por transformões, de uma nova categoria de sujeitos
coletivos, criados pelos movimentos sociais, pode constituir elemento de análise do
sujeito social, enquanto produto do seu meio, e ao mesmo tempo como agente de
mudança do mesmo.
As hisrias orais de vida apresentaram-se como uma forma apropriada para
o projeto de investigação da trajetória percorrida por alguns integrantes da
comunidade do Assentamento Dorcelina Folador, na medida em que proporcionaram
uma maior compreensão da interface do MST com outros segmentos da sociedade.
De acordo com Benjamin (1983, p. 59), referindo-se a narradores como
Leskow, Gotthelf, Hebel e Nodier, que orientam suas narrativas para interesses
práticos, em se tratando de narrativa verdadeira, “clara ou oculta, ela carrega
consigo sua utilidade. Esta pode consistir ora numa lição de moral, ora numa
indicação prática, ora num ditado ou norma de vida”.
Para Benjamin (1983, p. 60), “o narrador colhe o que narra na experiência,
própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua
história”.
A expectativa é, pois, que as narrativas dos agentes pesquisados permitam
que seja resgatada um pouco da tradição oral que, segundo Benjamin, é o
“patrimônio da épica”.
O presente estudo pretende oferecer possibilidades de ser dirigido o olhar
para o mundo e a sociedade na perspectiva do lavrador que se propôs a lutar para
conquistar seu pedaço de terra, justificando essa luta em função do objetivo de
garantir um mínimo de segurança a si mesmo e à sua família, e conhecer como esse
lavrador se vê no contexto social.
É pelo menos uma tentativa de compreender até onde ele se insere na
sociedade como um todo e até onde diverge do restante dessa sociedade, como ele
administra as influências da ideologia do Movimento, em contraponto com a
ideologia dominante. Até onde o projeto coletivo interfere no projeto individual de
cada um e vice-versa.
Para elaborar o caminho deste estudo, foi feita uma visita ao Assentamento,
com o objetivo de explorar as condições de efetuar a pesquisa e definir os agentes a
serem pesquisados.
Foi definido que seriam entrevistados três homens e três mulheres para que
pudesse ser avaliada a perspectiva de ambos os gêneros em relação ao objeto a ser
investigado: o nível de emancipação adquirido pelos agentes pesquisados e o
conceito de inclusão social assimilado por eles. A escolha o foi determinada pelo
pesquisador, mas decidida em reunião, convocada pelos coordenadores dos setores
de educação e de cultura do Assentamento, e que contou com a presença de
aproximadamente quinze pessoas daquele universo e deste pesquisador, quando se
apresentaram os interessados em contribuir.
Dos que se dispuseram a contribuir foram escolhidos, pelos demais, Renato,
Regina, Pedrinho, Rosilda, Odete e Alencar.
O critério básico da escolha, definido na reunião, foi que deveriam ser
pessoas adultas, com família constituída e que estivessem integrados nas propostas
da comunidade.
Para a efetivação da pesquisa foi possível contar com a colaboração de
lideranças do Assentamento que participaram de todo o processo, agendando as
entrevistas e acompanhando aos locais em que morava cada um dos indicados. No
momento de cada entrevista, no entanto, estiveram face a face apenas entrevistador
e entrevistado.
O fio condutor das entrevistas foi a trajetória de vida de cada um, antes e
depois de ingressarem no MST, procurando identificar as causas que determinaram
o seu ingresso no Movimento, as suas lutas, seus sucessos e fracassos, suas
perspectivas de vida e dificuldades enfrentadas após a conquista da terra.
Definido o objetivo da pesquisa e os seis integrantes do Assentamento que
participariam dela, entre eles, quatro coordenadores de setores, a preocupação em
sondar o nível de emancipação e inclusão não foi revelada aos entrevistados, a fim
de evitar que eles direcionassem suas narrativas somente nesse sentido, mas
expusessem aspectos gerais de suas vidas, onde consciência de emancipação e
inclusão pudesse também estar contemplada. Nesse sentido, Lang (1996, p. 35)
alerta que, no relato oral de vida,
quando é solicitado ao narrador que aborde, de modo especial,
determinados aspectos de sua vida, embora dando a ele total liberdade de
exposição, [...] o entrevistado sabe do interesse do pesquisador e direciona
seu relato para determinados tópicos.
Para a gravação das entrevistas foram feitas cinco visitas ao Assentamento,
sendo registrada uma história de cada vez, com excão do último dia em que foi
possível gravar as narrativas de dois participantes.
Depois de gravadas as entrevistas, foi feita a transcrição, tomando-se o
cuidado de não comprometer o pensamento e o significado de qualquer palavra,
frase ou idéia, até porque, como afirma Leydesdorff (2000, p. 78),
as palavras ditas pelo outro podem ter significado simbólico bem diferente e
podem representar sentimentos bem diversos daqueles que pensamos que
elas transmitem.
[...] Quando ouvimos histórias de vida, ouvimos a maneira como as
pessoas pensam que experimentaram suas vidas e certos eventos, tantas
são as transformações que depende de quem está falando com quem.
O fato dos entrevistados terem conhecimento que estão contribuindo para
uma pesquisa acadêmica pode criar certa predisposição na forma de organizar suas
idéias, produzindo resultados artificiais, diferentes dos que se pretende conseguir na
investigação. Assim, na tentativa de conseguir a maior espontaneidade possível por
parte dos sujeitos pesquisados e angariar a confiança de cada um deles, as
entrevistas foram precedidas de alguns encontros anteriores, nos quais foi possível
estabelecer uma relação menos formal e artificial entre pesquisador e pesquisados.
As falas dos entrevistados foram separadas em grandes temas axiais para
facilitar o estabelecimento das relações entre elas, suas semelhanças, suas
diferenças, seus pontos comuns e suas contradições. Esses temas axiais o: 1)
apresentando os sujeitos: o perfil dos entrevistados, suas vidas antes de
ingressarem no MST e os motivos que os levaram a entrar no Movimento; 2) A Igreja
como determinante do ingresso no MST; 3) Emancipação e Sentimento de
Dignidade: consciência política e de direitos de cidadania - a importância da
educação; 4) a questão de gênero; 5) as lutas: a militância dos entrevistados, a
política do Assentamento e as linhas de prodão.
Os sujeitos pesquisados demonstraram grande interesse em conhecer o
resultado final da pesquisa, na expectativa de que ele possa contribuir para a
reflexão e aperfeiçoamento das práticas adotadas pelas lideranças, bem como para
motivação dos demais moradores do Assentamento, muito embora o objetivo da
presente pesquisa, para este pesquisador, não seja de intervenção.
Tanto os sujeitos pesquisados, como algumas lideranças do MST em nível
nacional, de acordo com Renato Reinehr, demonstram preocupar-se com as
contradições internas existentes no Movimento e a pesquisa pode possibilitar que
sejam reveladas algumas dessas contradições.
3
O fato de terem a oportunidade de falar de suas vidas, de suas perspectivas
de visão de mundo, revelou ser motivador e estimulante para os entrevistados que,
de modo geral, evidenciaram estar tendo a possibilidade de contribuir de alguma
forma para o Movimento e para a sociedade, passando também a impressão de que
estavam mais do que participando de um trabalho acadêmico, mas exercendo um
direito de se fazerem ouvir, como se refere Leydesdorff a Passerini: “Passerini
argumentou que a democracia não é apenas uma questão de direito de falar, mas,
em nossa sociedade, é mais uma questão de ânsia de ser ouvido”. (Leydesdorff,
2000 p. 78).
Após os primeiros contatos com lideranças do Assentamento, foi decidido que
tanto lideranças da comunidade como os escolhidos para apresentar seus relatos
sugerissem quando e como isso seria feito, ficando estabelecido que dariam seus
depoimentos em suas próprias casas, a fim de não precisarem interromper, por
muito tempo, suas atividades na lavoura e para dar oportunidade aos agentes
pesquisados de, como afirma Brandão (2001 p. 11), “... conhecer a sua própria
realidade. Participar da produção desse conhecimento e tomar posse dele. Aprender
a escrever sua história de classe. Aprender a reescrever a História através da sua
história”.
Deixando claro aos entrevistados que a pesquisa tinha como foco a história
de cada um, foi cil despertar neles o interesse em colaborar, uma vez que ao
poderem relatar suas vidas e suas experiências, poderiam reviver momentos
marcantes, se realimentarem e se motivarem enquanto narrassem.
3
Renato Reinher e Damasceno, que moram no Assentamento, são lideranças em nível nacional.
A oportunidade de reviver os momentos marcantes de uma trajetória de vida
possibilita, como afirma Ecléa Bosi (1983, p. 20), ... refazer, reconstruir, repensar,
com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado.
Por outro lado, Josso (2004 p. 264) argumenta que a “projeção de si num
futuro mais ou menos próximo obriga, de resto, as pessoas a inventarem cenários
possíveis daquilo em que desejam tornar-se, em seu fazer e em seu ser, em relação
com o mundo”.
No momento da pesquisa, em que os sujeitos relatam sua hisria, enquanto
narram, reavaliam e reinterpretam suas ações, reconstruindo seus valores, seus
ideais, suas crenças e esperanças.
As histórias orais de vida dos sujeitos pesquisados, além de registrar
aspectos importantes da síntese de existência de cada um deles, até aquele
momento, seu papel dentro do Movimento e da sociedade, possibilitam retratar
certas condições da comunidade, que podem contribuir para enriquecer a reflexão
no presente, buscando o aperfeiçoamento das ações empreendidas, a fim de
poderem avaliar os resultados dessa práxis em ocasiões futuras.
Há, portanto, a expectativa de que, através dos relatos, possam ser
identificadas as condições objetivas e subjetivas de vida compatível com a dignidade
humana, os pontos vulneráveis e os consolidados do projeto político da
comunidade, a possibilidade de conhecer outros aspectos da realidade em que se
inserem os assentados e as relações de convivência que se estabelecem entre eles.
Como afirma Holzmann (2002, p. 48), as histórias de vida e os depoimentos
pessoais o excelentes técnicas para a construção de um primeiro levantamento,
uma vez que revelam o cotidiano, o tipo de relacionamento entre os indivíduos, as
opiniões, os valores”.
Os sujeitos ou agentes pesquisados, como serão tratados os entrevistados
durante a exposição deste trabalho, apresentam elementos para enriquecer a
reflexão sobre algumas situações que envolvem a questão agrária do país e a
inserção do camponês no contexto social, como sujeitos constituídos, uma vez que
inseridos num Movimento que luta pela conquista de direitos, juntamente com outros
movimentos sociais; são sujeitos que “constituem forças básicas para a construção
de uma nova sociedade”. (Wanderley, 1992, p. 155).
A escolha de sujeitos, que além de assentados são militantes ativos do MST,
foi no sentido de possibilitar a avaliação dos aspectos motivadores da militância e
seus reflexos dentro da comunidade, como de expor as dificuldades deles
conciliarem seus esforços de luta pela terra com as regras e os valores presentes na
conjuntura maior da sociedade em que necessariamente estão inseridos, em duas
frentes de luta: uma na terra e outra pela edificação de uma nova sociedade.
1 Emancipação e inclusão no contexto de neoliberalismo e globalização
Emancipação e inclusão apresentam-se como conceitos relativos e de
diferentes e mesmo contraditórias interpretações. o categorias teóricas que
podem ter um caráter subjetivo, muito embora seja comum materializá-las na forma
de bens que proporcionem conforto físico, de condições que garantam segurança,
remetendo ao bem-estar material o papel de proporcioná-los. O que representa
emancipação e inclusão para um determinado segmento social, pode ter um caráter
de exclusão para outro.
De certa forma todo mundo é excluído de alguma coisa na sociedade, diante
da variedade de necessidades ou pseudo-necessidades que a modernidade
consegue produzir, e a questão de dignidade humana nem sempre se consegue
com a capacidade de aquisição de bens de consumo que são disponibilizados pelo
mercado.
As múltiplas determinações geradoras da exclusão social e da iniqüidade m
origens históricas, se multiplicam e sofrem metamorfoses constantes, mas a
exclusão
trata basicamente de uma acentuação de desigualdades, mais explicita nas
extremidades da escala social, que engloba distanciamentos em termos de
riqueza e pobreza, segurança e insegurança, poder e falta de poder coletivo
etc. É a exclusão delimitada pela desigualdade, ou efeito último da
desigualdade. (Wanderley, 1992, p. 152).
Uma desigualdade que se acentua e se expande com a globalização, no
processo de definhamento das nações-estados, como bem analisa Bauman (1999,
p.64-74), pelas “forças erosivas das transnacionais”, em que a livre movimentação
das finanças e do mercado torna “a economia progressivamente isentada do
controle político”, produzindo uma expansão da exclusão para todo o mundo,
mesmo para os países mais desenvolvidos.
Os Estados enfraquecidos que se tornam reféns do “capital sem domicílio
fixo” e dos “fluxos financeiros, bem além do controle dos governos nacionais”
(Bauman, 1999 p. 64), não têm como assumir efetivamente políticas econômicas sob
o seu total controle, comprometendo dessa forma a implantação de políticas públicas
inclusivas e efetivas.
O modo de produção capitalista, que sempre foi excludente, se organiza, num
primeiro momento, “em moldes nacionais”; posteriormente, no entanto, transborda
fronteiras, mares e oceanose finalmente atinge uma escala global, influenciando
transformações no próprio modelo de Estados que tendem para a
transnacionalizão, em lugar de Estados nacionais e territoriais, como observa
Otávio Ianni (1999 p.37-38).
O cenário mundial que se descortina nos dias atuais, em constantes
movimentos e transformações, e reflete “o envelhecimento de conceitos como:
noção de três mundos, centro, periferia, imperialismo, dependência, milagre
econômico, sociedade nacional, Estado-nação, projeto nacional, caminho nacional
para o socialismo, caminho nacional de desenvolvimento capitalista” (Ianni, 1999 p.
35), diz respeito a uma conjuntura internacional que acena para um processo
irreversível de globalização.
Sobre as permanentes transformações no cenário mundial, Ianni ainda
acrescenta que
o mundo mudou muito ao longo do culo XX. Não é mais apenas uma
coleção de países agrários ou industrializados, pobres ou ricos, colônias ou
metrópoles, dependentes ou dominantes, arcaicos ou modernos. A partir da
Segunda Guerra Mundial, desenvolveu-se um amplo processo de
mundialização de relações, processos e estruturas de dominação e
apropriação, antagonismo e integração. Aos poucos, todas as esferas da
vida social, coletiva e individual são alcançadas pelos problemas e dilemas
da globalização. (Ianni, 1999 p. 35-36).
Surge “um processo de reestratificação mundial no qual se constrói uma nova
hierarquia sociocultural em escala planetária” e uma nova forma de concentração de
riquezas, nas mãos de forças transnacionais anônimas, de forma que “em 1991,
oitenta e cinco por cento da população mundial recebiam apenas quinze por cento
da renda global”. (Bauman, 1999, p. 78).
A própria classe média vai perdendo dia a dia o seu poder aquisitivo e se
proletarizando cada vez mais, de forma que qualquer um essujeito a ser reduzido
à condição de excluído, em razão das “forças globalizantes [...] que realocam as
pessoas e destroem as suas identidades sociais. Podem transformar-nos de um dia
para outro em vagabundos, sem teto, endereço fixo ou identidade”. (Bauman, 2005,
p. 101).
O crescimento das riquezas não depende mais diretamente da exploração do
pobre pelo rico como se fazia na economia produtiva, que consiste “no
processamento de materiais, criação de empregos e direção de pessoas” (Bauman,
1999, p. 80), mas se processa pela extraterritoriedade do capital e pelo grau de
mobilidade das elites que se beneficiam da liberdade inaugurada com a
desregulamentação dos mercados e do sistema financeiro e “uma das
conseqüências mais fundamentais da nova liberdade global de movimento é que
es cada vez mais difícil, talvez até mesmo impossível, reunir questões sociais
numa efetiva ação coletiva” (idem, p. 76-77).
É um modelo que se universaliza e produz pessoas rejeitadas [...] ou lixo
humano”, que em lugar de serem vitimas da exploração passam a ser vítimas da
exclusão e
é essa exclusão, mais do que a exploração apontada por Marx um século e
meio atrás, que hoje está na base dos casos mais evidentes de polarização
social, de aprofundamento da desigualdade e de aumento do volume de
pobreza, miséria e humilhação.(Bauman, 2005, p. 47).
A guerra civil está presente nas ruas, sem nenhuma bandeira ideológica, mas
visando tão somente ao saque e apropriação do bem alheio. O inimigo do que nada
tem é qualquer um que tenha alguma coisa, da qual ele possa se apropriar.
As drogas e a marginalidade o, em parte, reflexos do descrédito e do
desalento de uma categoria de pessoas que o têm perspectivas de futuro, uma
vez que não crêem na possibilidade de que trabalhar honestamente seja suficiente
para se viver com dignidade, gerando uma guerra civil informal.
Uma “margem constituída de uma parcela considerável da população,
aglutinada em torno de uma bandeira ideológica com propostas transformadoras,
não deixa de representar um perigo para a classe economicamente hegemônica e
para o modelo capitalista de Estado mínimo, que é mínimo inclusive em suas
políticas públicas, voltadas para a promão do bem-estar social.
É por tal motivo que a globalização num modelo neoliberal, com a formação
das “redes de riquezas, tecnologia e poder” (Castells, 2003, p. 83), conseguiu
implantar, com algumas exceções
4
, uma ideologia única para todo mundo, abalando
a bipolaridade entre o Capitalismo e o Socialismo, que produzia tensões suficientes
e necessárias para se buscar aperfeiçoamento nas relações de produção.
Em sua práxis humana social, o homem conseguiu desenvolver acervo
tecnológico que possibilitou melhorar suas condições de sobrevivência no planeta,
dominando a natureza e colocando os recursos naturais a seu serviço; no entanto,
com o surgimento das “redes de riqueza, tecnologia e poder”, que determinam a
globalização, promoveu, de acordo com Barglow (1994 apud Castells, 2002, p. 40)
“a mudança histórica das tecnologias mecânicas para as tecnologias da informação
4
É senso comum que a globalização se consolida num modelo neoliberal, que implica no enfraquecimento dos
Estados diante da força dos grupos econômicos internacionais, pom países a exemplo de Cuba, Venezuela,
ajuda a subverter as noções de soberania e auto-suficiência que serviam de âncora
ideológica à identidade individual”.
“A sociedade de consumo é a sociedade do mercado”, como afirma Bauman
(2005, p. 98), sociedade essa que nos transforma em consumidores e mercadorias
ao mesmo tempo, reforça o individualismo e dificulta o estabelecimento de ações
coletivas em torno de propostas progressistas.
A preocupação em ter o que está na moda, em adquirir o que de mais
novo em termos de tecnologia, para ter a sensação de conquistar o status
necessário e conseguir a aceitação no seu meio, leva o “homem massa”
5
a acreditar
em qualquer coisa que lhe prometa segurança, sucesso e felicidade e perde a em
si mesmo.
Em busca de segurança e enriquecimento, vive mais de reflexos do que de
reflexões e se torna um ser fechado em si mesmo, porém dependente, o tempo todo,
da avaliação alheia. – O que será que pensam de mim?
Sua tendência é de se afastar de projetos coletivos e cada um, ao seu modo,
perseguindo a prosperidade material, coloca nela o sentido da existência, pois, a
nova face do capitalismo provoca “a individualizão e diversificação cada vez maior
das relações de trabalho”. (Castells, 2002, p. 21).
Enche-se de coisas sem perceber a essência das coisas. Acredita numa
emancipação a partir da capacidade de ter, adquirir, consumir, perdendo a essência
da própria vida e o conteúdo do próprio ser. Descarta tudo que lhe parece ser
obsoleto e no fundo sabe que tamm pode ser descartado a qualquer hora.
Colômbia, Coréia do Norte tentam impor resistências às pressões da forças desses grupos e dos governos
atrelados a essa nova face do capitalismo.
5
O “homem massa” é aquele que não toma decisões por si mesmo, mas se deixa levar pelas influências do meio.
É aquele que não atingiu um vel de emancipação suficiente que o torne capaz de analisar criticamente a
realidade e torna-se facilmente objeto de manipulação.
O neoliberalismo não só levou o Estado a transferir, para a iniciativa privada,
setores estratégicos da economia, como também parte da sua responsabilidade
social. Sem critérios definidos, sem normas rígidas a serem cumpridas, deixa nas
mãos do mercado a fiscalização e o controle das políticas adotadas pelas empresas
que só as promovem se lhes convier.
Dependendo basicamente da receita residual, oriunda das taxas e impostos,
apesar de penalizar o setor produtivo com uma política tributária insustentável, o
Estado não consegue arrecadar o suficiente para desenvolver as ações afirmativas
necessárias para promão do bem-estar social.
Para tampar os rombos em seu caixa, o governo emite títulos para o mercado
de ações, comprometendo-se cada vez mais com uma dívida que a população
trabalhadora e produtiva assume sem querer e, na maioria das vezes, sem saber,
pois, nem todos os que trabalham e produzem têm conhecimento de determinados
aspectos que determinam a conjuntura econômica do país.
A dependência do governo de credores externos e internos é histórica, mas
... foi nos anos oitenta que se deu o salto de qualidade responsável pela
transformação da globalização no carro chefe das transformações
capitalistas. Seu impulso inicial, uma vez mais, foi dado por uma série de
decisões estatais, onde se destacam a revalorização do dólar decidida pelo
banco-central norte-americano em 1979, o fim do controle do movimento de
capitais decidido, quase junto com a liberação da taxa de juros, pelos
governos inglês e norte-americano. Iniciou-se ali um vasto processo de
desregulação monetária e financeira que permitiu o surgimento de
mercados de obrigações interconectados internacionalmente onde os
governos passam a financiar seus déficits colocando títulos da dívida
pública nos mercados globais, tornando-se reféns da ditadura dos credores.
(Fiori, 1998, p. 91).
O cidadão que trabalha e luta para garantir sua sobrevivência, quer como
empregado, pequeno empresário ou agricultor, fica à mercê das políticas
econômicas decididas pelas elites nacionais e internacionais, sem qualquer
possibilidade de mudar o quadro que se configura a sua frente e determina a sua
realidade.
Sente-se explorado e injustiçado, porém nem sempre consegue compreender
a conjuntura que historicamente foi erigida para atender a interesses de uma minoria
que se privilegia da exploração das massas humanas.
Os Estados fracos, ou mínimos, como querem alguns, não têm condições de
atender à crescente demanda de direitos dos seus cidadãos, quando ainda não
conseguiram atender sequer os seus direitos básicos previstos em leis, e, mesmo
aqueles países que já haviam atingido um relativo estado de bem-estar social, com o
advento do neoliberalismo, tornaram-se gestores de interesses de grandes grupos
econômicos ou, como prefere Bauman (1999, p. 76), “distritos policiais locais que
garantem o nível médio de ordem necessário para realização de negócios”, que
monopolizam tudo o que pode ser transformado em fonte de lucro, visando ao
interesse exclusivo de acionistas desses grupos.
Adota-se a expressão teoria da conspiração, quando os Estados abrem mão
do seu papel de garantir o atendimento da população, no que se refere a serviços de
educação, previdência social etc., em benefício de grupos econômicos que, além de
se apropriarem de setores estratégicos da economia, que antes eram de
prerrogativa dos governos, apropriam-se também dos recursos naturais que
pertencem a todos, formando agronegócios, hidronegócios, causando danos a
agricultores de países ricos e pobres.
A privatização em diversos veis e a apropriação de grande parte da
biotecnologia por empresas, impõem restrições às pesquisas científicas, precarizam
e limitam o acesso a serviços de saúde e muitos outros, fazendo com que a vida, em
suas diversas manifestações, inclusive a vida humana, passe a ser objeto de
exploração econômica visando à valorização de suas ações no mercado.
Na teoria dos Estados modernos todos têm teoricamente garantido o direito
de cidadania, porém a prática demonstra que categorias diferenciadas de
cidadãos e de grupos de cidadãos, que formam classes distintas, com
desigualdades gritantes.
Considerando que o cidadão é aquele que possui e pode exercer todos os
direitos humanos, constitucional e legalmente garantidos, que não apenas vota, mas
participa da construção de seu futuro, com a detenção dos instrumentos de que
precisa para se autodeterminar como senhor e sujeito do próprio destino, vale
lembrar que “com relação aos direitos políticos e aos direitos sociais, existem
diferenças de indivíduo para indivíduo, de grupo de indivíduos para grupo de
indivíduos”. (Bobbio, 1992, p. 70).
Direitos Sociais (como, por exemplo, saúde, educação, trabalho, lazer)
surgem como meio ou instrumento para que se alcancem os fins desejados,
almejados pelos direitos individuais (liberdade, igualdade, direito à vida digna).
Portanto, não basta a garantia formal de tais direitos, mister é a existência de
possibilidades para sua concretização.
Desta forma, para a o perfeito exercício da cidadania, requer-se igualdade,
não apenas jurídica, mas de oportunidades. Liberdade física, de mobilidade, como
argumenta Bauman, de expressão, educação, saúde, trabalho, cultura, lazer, pleno
emprego, meio ambiente saudável, sufrágio universal e secreto, iniciativa popular de
leis; dentre outros direitos que compõem o quadro dos Direitos Humanos.
O fato de sentir-se incluído não significa, obrigatoriamente, a inclusão plena.
Sentir-se incluído em um grupo, em uma comunidade, o é a mesma coisa que
estar incluído como cidadão, porque a própria comunidade ou grupo social a que o
cidadão pertence pode corresponder a um segmento de excluídos e sem condições
do pleno gozo dos seus direitos.
A concretização desses direitos só é possível num Estado de bem-estar-
social, no qual, em princípio, “o objetivo é que ninguém fique abaixo de um padrão
decente de vida, e que todos possam receber certas proteções contra acidentes e a
má sorte, por exemplo, seguro desemprego e assistência médica...”. (Rawls, 1990 p.
XIII prefácio).
Políticas de inclusão implicam ajustes profundos na sociedade para que sejam
atendidas as necessidades de todos os cidadãos, levando em conta as diferenças
de raça, cor, condição social, integridade sica e as diversidades de hábitos,
culturas, opções de vida, tanto de pessoas quanto de comunidades ou grupos
sociais.
A exclusão tem como uma das principais variáveis de causa a desigualdade
social, gerada pelo modelo econômico que cria enormes lacunas entre ricos e
pobres. Para possibilitar que todos possam participar do cotidiano social e ter uma
vida compatível com a dignidade humana, a própria Unesco
6
reconhece que é
necessário desenvolver o capital social, que significa promover o fortalecimento da
sociedade civil por meio de políticas capazes de produzirem mudanças reais na
qualidade de vida da população.
1.1 O MST e a concepção de práxis emancipatória
Carlos Nelson Coutinho, analisando o conceito gramsciano de hegemonia,
estabelece, como uma de suas características básicas, “a afirmão de que, numa
relação hegemônica, ocorre uma prioridade da vontade geral sobre a vontade
6
Unesco- Organização da Nações Unidas para educação, a ciência e a cultura, fundada em 16 de novembro de
1945.
singular, em outras palavras, do interesse comum sobre o interesse privado”.
(Coutinho, 1996, p. 122).
Regra geral, o ingressar em um movimento social que reivindica idéias,
propostas e projetos comuns, que se contrapõem ao inculcado pelo sistema no
pensamento da maioria dos cidadãos, torna os que ingressam, de certa forma,
diferentes da maioria. Por tal motivo, estes se definem com uma nova identidade,
pois, a identidade é, na verdade, relacional, e a diferença é estabelecida por uma
marcão simbólica relativamente a outras identidades” (Woodward, 2000 p. 14), o
que corrobora com o pensamento de Hall (2000, p. 110), segundo o qual “as
identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela”.
Os agentes pesquisados neste estudo pertencem de modo geral a uma
categoria de sujeitos que passaram por um processo de reestruturação de suas
identidades, a partir de uma mudança de perspectiva em relação ao contexto social
em que estavam inseridos, via de regra motivados por orientações religiosas e
ideológicas que lhes proporcionaram uma nova concepção da realidade, que antes
aceitavam como um determinismo do destino.
A evolução da em uma religião mágica, que é característica do camponês,
como observa Weber, para uma religião orientada por princípios mais éticos e
racionais, sem a subserviência ao rigoroso formalismo diante de Deus e dos
sacerdotes é, segundo o próprio Weber, próprio da religiosidade ética inaugurada
com a Reforma Protestante. Isso, somado à integração em um Movimento que
“concentra-se em afirmar a identidade cultural das pessoas que [a ele] pertencem...”
(Woodward, 2000, p. 34), faz emergir um novo ser humano, que mal se reconhece
naquele que um dia foi.
Munidos de novos referencias, fornecidos pelo MST, uma boa parte dos seus
integrantes passam a construir uma identidade de resistência, dadas as “condições
desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim,
trincheiras de resistência e sobrevivência, com base em princípios diferentes dos
que permeiam as instituições da sociedade” (Castells, 2003, p. 4-5), como forma de
alento e de motivação na luta pela sobrevivência.
Bauman (2005, p.17), reportando-se a Siegfried Kracauer, fala da existência
de comunidades de vida e de destino, “cujos membros ‘vivem juntos numa ligação
absoluta’ e outras que são ‘fundidas unicamente por idéias ou por uma variedade de
princípios’” e, para Bauman,
a identidade surge com a exposição a comunidades da segunda
categoria- e apenas porque existe mais de uma idéia para evocar e manter
unida uma comunidade fundida por idéias’ a que se é exposto em nosso
mundo de diversidades e policultural. É porque existem tantas dessas idéias
e princípios em torno dos quais se desenvolvem essas ‘comunidades de
indivíduos que acreditam’ que é preciso comparar, fazer escolhas, fazê-las
repetidamente, reconsiderar escolhas feitas em outras ocasiões, tentar
conciliar demandas contraditórias e frequentemente incompatíveis.
Isso nos leva a refletir sobre o tipo de identidade que o MST se propõe a
construir, enquanto um dos movimentos sociais mais expressivos da atualidade e
como fazer para manter nos seus integrantes uma idéia de pertencimento, diante
das dificuldades de sobrevivência e das outras influências que o meio exerce.
Além disso, esse Movimento ainda tem a tarefa de manter a coesão dos
militantes em torno das suas idéias e propostas, de articular as diferenças individuais
em torno de objetivos comuns, de consolidar o processo de identificação. Segundo
Hall (2000, p. 106) a identificação “é construída a partir do reconhecimento de
alguma origem comum, ou de características queo partilhadas com outros grupos
ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal”.
O MST é portador de uma identidade enquanto movimento social. No entanto,
essa identidade também essujeita aos efeitos da conjuntura de cada momento,
sofrendo alterações em razão da sua expansão, pelas relações que estabelece com
cada tipo de governo, o que acaba por afetar o modo de ser e de agir dos que
engrossam suas fileiras, redefinindo muitas vezes as identidades de cada um, pelas
relações de poder que são estabelecidas entre o Movimento e a sociedade como um
todo e mesmo dentro do próprio Movimento.
Por outro lado é oportuno considerar que nem todos os que integram o
Movimento correspondem ao “tipo ideal” de militante, que professa as mesmas
crenças e os mesmos ideais dos demais atores sociais e, portanto, não constroem
uma identidade de projeto, “capaz de redefinir a sua posição na sociedade e de
provocar a transformação de toda a estrutura social” (Castells, 2003, p. 5), mas se
integram no Movimento com o objetivo de atender apenas seus interesses de uma
mínima e incerta segurança de vida, muitas vezes retornando para a vida anterior,
quando suas expectativas não são correspondidas a contento.
Além da identidade do Movimento e da identidade do militante no Movimento,
existe o que se chama, de acordo com Castells, identidade de projeto, que é
construída com o material cultural que o Movimento proporciona, para redefinir a
posição social do indivíduo dentro do Movimento e deste na sociedade. E a política
de identidade do MST se concentra em afirmar a identidade das pessoas que
pertencem a um segmento “oprimido e marginalizado [que se torna] fator importante
de mobilização política. (Woodward, 2000, p. 34).
O apelo ao enfrentamento e à luta contra o modelo excludente, bem como ao
espírito de cooperação e companheirismo dentro dos Movimentos, o encontra a
mesma ressonância em todos os que deles participam, porém os que se identificam
mais com as causas que o Movimento defende integram-se em uma comunidade de
vida e destino, em que encontram sentido e significado para viver. E para aqueles
que assim se integram, é como se iniciasse uma nova etapa na vida, enriquecida de
significados existenciais que compensam lutas, dificuldades e sacrifícios de toda
ordem, dando a eles a sensação de sentirem-se diferentes e privilegiados em
relação à massa de cidadãos por eles entendidos a partir de então como alienados
da realidade, massa essa da qual faziam parte antes.
Consideram-se emancipados, muito embora nem sempre apresentem sinais
evidentes de estarem estabelecendo uma resistência efetiva à influência da
“indústria cultural”, resistência que, para Adorno, é uma das condições para se
conquistar a emancipação.
O que se faz oportuno questionar é se a idéia de emancipação pode ser
extraída de uma conclusão pessoal ou de uma consciência grupal, uma vez que,
como uma categoria teórica, é temerário encaixá-la em determinados paradigmas e
proclamar a sua universalidade de aplicação.
Nesses termos, o fato de uma pessoa considerar-se emancipada nem sempre
corresponde a uma real emancipação, a não ser que se reduza a emancipação a
parâmetros muito limitados, conclusivos e definitivos.
A emancipação pode ser, por exemplo, reduzida a conceitos jurídicos, que
determinam a maioridade plena do cidadão, mas nem por isto assegura a
emancipação dos sujeitos em seu sentido pleno, pois, a incapacidade de um
cidadão tomar decisões por si próprio, sem se deixar levar pelas influências do meio,
já revela a condição de sujeito não emancipado.
A presença de um aparelho de televisão, em praticamente todas as moradias
do Assentamento, é suficiente para sugerir uma reflexão no que diz respeito à
influência que ela é capaz de exercer nos assentados, principalmente nos jovens,
levando-se em conta que, na maioria dos programas, é difundida a ideologia do
modelo vigente, de maneira subliminar e muitas vezes até mesmo de forma explícita.
A idéia de Theodor Adorno (1995, p. 143), de que a emancipação “deve ser
inserida no pensamento e também na prática educacional”, não elimina as
dificuldades de se conquistá-la, uma vez que, segundo esse mesmo autor, “a própria
organização do mundo em que vivemos e a ideologia dominante (...) exerce uma
pressão tão intensa sobre as pessoas, que supera toda a educação”.
O importante, no entanto a se considerar, é que se percebe um esforço no
sentido de atingir uma emancipação, enquanto sujeitos sociais, buscando impor, na
medida do possível, resistências à indústria cultural e a outras pressões difusas na
sociedade, como a própria escola, determinadas seitas religiosas etc.
2 Contextualizando o objeto da pesquisa
A sociedade brasileira, formatada num modelo gerador de exclusões e
iniqüidades desde suas origens, teve historicamente uma economia voltada para
fora do país, favorecendo uma minoria, sem preocupar-se com a melhoria do padrão
de vida da classe trabalhadora, o que possibilitaria o fortalecimento do consumo
interno. Por tal motivo ficou dependente principalmente do mercado consumidor
internacional.
Ao lado da mão-de-obra barata, da dependência de exportação de matéria-
prima para o mercado externo, da monocultura agrícola, nossas elites econômicas
sempre tiveram uma postura conservadora e avessa a reformas estruturais,
buscando o enriquecimento à custa da exploração da classe trabalhadora e da
natureza.
A burguesia brasileira, tardia e conservadora, emergiu num momento em que
a burguesia dos países centrais havia perdido seu caráter revolucionário e não
teve a necessidade, nem interesse, de aliar-se às camadas populares e camponesas
para realizar sua revolução.
Uma revolução lenta que teve início na década de 1880 e foi até a década de
1930, sem, contudo consolidar suas relações de produção para fortalecer suas
relações de força no cenário político, uma vez que, até 1930, o domínio político
esteve nas mãos das oligarquias latifundiárias e do capital mercantil; mesmo após a
revolução de 1930, a estrutura agrária brasileira permaneceu arcaica e assentada no
latifúndio, como analisa Buonicore (2004).
Sendo uma revolução atrasada e realizada com a conciliação das oligarquias
rurais, que usaram como moeda de troca a garantia de que o seriam estendidos
aos camponeses os direitos sociais e trabalhistas, mantendo a “maioria do povo
brasileiro na condição de o cidadãos, excluídos dos principais direitos sociais e
políticos, condenados ao analfabetismo, à miria e à dependência pessoal em
relação aos senhores da terra” (Buonicore, 2004, p. 1), pode ser caracterizada como
o fenômeno que Lênin e Lukács denominaram de “via prussiana” e Gramsci chamou
de “revolução passiva” ou “revolução pelo alto” (Idem).
As noções ou categorias de “via prussiana” e de “revolução passiva” para
analisar a modernização conservadora da sociedade brasileira são adotadas por
vários pensadores como Nelson Werneck Sodré, Carlos Nelson Coutinho, Luiz
Werneck Vianna e outros que analisam a transição para o capitalismo por processos
antidemocráticos, nos quais o Estado, autonomizado das classes e dirigido pelas
elites prussianizadas, faz avançar um projeto modernizador de industrialização, com
fortes traços corporativos", sendo, no entanto, preservada "a estrutura agria
atrasada e elementos do antigo sistema político” (Segatto, 1999, p. 9).
O capitalismo dependente das forças imperialistas, como analisa Florestan
Fernandes, e “limitado pelo latifúndio e pela sobrevivência das relações pré-
capitalistas” (Segatto, 1999, p. 8),
gera uma burguesia tímida, que prefere transigir a lutar, débil e por isso
tímida, que não ousa apoiar-se nas forças populares senão episodicamente,
que sente a pressão do imperialismo, mas receia enfrentá-lo, pois receia
mais a pressão proletária. Burguesia que constantemente se vale de
recursospara assegurar a via prussiana e a exploração cômoda e pacífica
da força de trabalho... (Sod, 1990).
A instabilidade da agricultura brasileira é um problema estrutural que existe
desde a colonização e a divisão eqüitativa das terras, segundo Caio Prado Júnior,
seria a alternativa. Para ele,a pequena propriedade é um fator de estabilidade rural;
muito superior neste sentido, em todo caso, que a fazenda” (Prado Júnior, 1975, p.
220).
Para Caio Prado Junior (1975, p. 216),
o verdadeiro agricultor [...] é aquele para quem a terra possuída é o centro
único das suas atenções; e não com vistas apenas a um momento da sua
vida, [enquanto que] a agricultura é para o fazendeiro um negócio, uma
especulação, como seria outra atividade qualquer, comercial ou financeira.
Inverte [investe] seus capitais numa fazenda com o mesmo espírito que o
faria na indústria ou no comércio. É está a razão por que não se liga à terra,
identificando-se com ela, fazendo de sua propriedade função exclusiva de
sua existência. Colchetes nossos.
A agricultura familiar, da pequena propriedade, que poderia contribuir para a
expansão do mercado interno, como ocorreu nos Estados Unidos, após a Lei de
Colonização de 1862, não pôde ser desenvolvida no Brasil pela inexistência de uma
reforma agrária.
As elites econômicas brasileiras, avessas às reformas de base, sempre
adotaram a estratégia de uma contra-revolução, quando ameaçadas pelas camadas
mais radicais da sociedade e
as transformações ocorridas em nossa história, não resultaram de
autênticas revoluções, de movimentos provenientes de baixo para cima,
mas se encaminharam sempre através de uma conciliação de
representantes dos grupos opositores economicamente dominantes.
(Coutinho, 1992, p. 125).
De acordo com José de Souza Martins (2000, p. 189), desde a Revolução de
1930 foi firmado um pacto de classes entre as elites, que impediu a realização de
uma reforma agrária no Brasil. Segundo esse autor,
não houve nenhuma reforma agrária nos países ocidentais que não tivesse
sido feita por uma facção das classes dominantes, da burguesia
modernizadora, industrializadora, contra os proprietários de terra que
restringiam o mercado e criavam dificuldades à própria reprodão do
capital. No caso brasileiro, a ditadura militar optou pela aliança entre o
capital e a propriedade da terra e, ao mesmo tempo, por fazer a
modernização do país com base nessa aliança. Com isso, os militares e as
elites optaram por uma solução política (e econômica) conservadora,
reforçaram de modo provavelmente irreversível as estruturas politicamente
conservadoras da sociedade brasileira.
Florestan Fernandes (1975, p. 285) argumenta que
as classes dominantes e suas elites sempre encontraram um terreno
propício para resolver suas questões conflitantes intra muros, articulando de
modo mecânico os interesses divergentes que pudessem ser compostos
dentro da ordem ou através de revoluções de cima para baixo.
A presença acentuada das elites nas decisões políticas faz parte de uma
tradição, não apenas do Brasil, mas dos países latino-americanos, onde se
organizam os grupos de pressão que influenciam as diversas esferas do poder a
decidirem de acordo com seus interesses. Pensadores de diversas áreas do
conhecimento e
a historiografia latino-americana tem enfatizado o papel das elites nas
sociedades nacionais, principalmente no campo político. Alguns chegam a
afirmar que as transições, maiormente em conjunturas críticas, são
conduzidas pelo alto, por ‘pactos de elites’. A voz do homem médio e
comum caracteriza-os como ‘eles’, os de cima’, ‘os que mandam’.
(Wanderley, 1992, p. 153).
Quando o presidente João Goulart propôs e assinou as Reformas de Base em
13 de março de 1964, nossas elites econômicas, seduzidas pelo poderio norte
americano, conseguiram cooptar a grande massa da população, para em nome da
“paz social” rechaçar suas propostas e, logo em seguida, destituí-lo do poder,
usando como senha, para as Forças Armadas, as “marchas da família, com Deus,
pela liberdade”
7
. Para dar legitimidade ao golpe
praticamente toda a classe média e setores importantes dos trabalhadores
rurais e urbanos estavam ganhos pela propaganda anticomunista. Seus
principais veículos foram organismos financiados pelos Estados Unidos, o
Partido Social Democrático (PSD), a União Democrática Nacional (UDN) e a
Igreja Católica, especialmente sua hierarquia, que se une à agitação contra
o governo, amparada pela grande imprensa, e enseja as célebres marchas
da família, com Deus, pela liberdade. (Brasil Nunca Mais, 1985, p. 59).
A política agrária, no período do Regime Militar que fora implantado inspirado
na ideologia americana da Segurança Nacional, possibilitou ainda mais a
concentração fundiária, tendo como um dos exemplos a entrega de 30 milhões de
hectares a grupos empresariais e a empresas multinacionais, a maior parte na
região amazônica.
8
Enquanto a agricultura de exportação e a agroindústria se consolidavam cada
vez mais, o pequeno proprietário rural ia se descapitalizando, perdendo suas terras e
sua garantia de subsistência. Sem condições de produzir para o mercado cada vez
mais exigente e sem condições de agregar valores a seus produtos para compensar
qualquer investimento, mínimo que fosse, em sua propriedade rural, via-se forçado a
vender suas terras a grandes proprietários, a empresários da cidade ou entregá-las
em pagamento de dívidas ao Banco do Brasil.
7
As “marchas da família com Deus pela liberdade” foi o nome dado às manifestações públicas organizadas para
depor o presidente João Goulart, com receio de que ele implantasse o comunismo no Brasil. Foram
organizadas por setores do clero católico e entidades feministas, com o auxílio da Campanha da Mulher pela
Democracia, da União vica Feminina, da Fraterna Amizade Urbana Rural. Recebeu também o apoio das
classes produtoras do estado, através da Federação e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo.
Congregou setores da classe média temerosos do ‘perigo comunista’ e favoráveis à deposição do presidente da
República. O movimento da Marcha da Família foi uma resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro em 13
de março, durante o qual o presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base. Tendo como
principal articulador o deputado Antonio Sílvio da Cunha Bueno”, a primeira foi realizada em São Paulo, com
o apoio do então governador Ademar de Barros, e contou com aproximadamente trezentas mil pessoas, saindo
da praça da República e terminando na praça da , com uma missa. A iniciativa da Marcha da Família
repetiu-se em outras capitais”. Tais manifestações terminaram com o golpe Militar em 31 de março de 1964
fonte: http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/5995_1.asp. Acessado em 19 de outubro de 2007.
8
- Projeto Jari, do norte-americano Daniel Ludwing (1,5 milhões de hectares);
- Companhia Vale do rio Cristalino, do grupo Volkswagen (140 mil hectares);
- Suiá-Missu (700 mil hectares) hoje pertencente à italiana Liquifarm;
A economia agrícola do Brasil, dependente do mercado externo, penaliza até
os grandes proprietários, que são reféns não apenas das intempéries naturais, mas
principalmente das oscilações do preço e do câmbio internacional e sempre acaba
existindo um motivo para provocar o êxodo rural, expulsando da terra aqueles que
sempre viveram dela.
Com o fim do regime militar, em 1984, surgiu a Nova República, trazendo
consigo novas esperanças. José Sarney assumiu o poder em 1985 como presidente
da República e assinou o decreto 91.766/85, aprovando o plano Nacional de
Reforma Agrária, o que motivou a mobilização dos grandes proprietários de terra,
contrários à democratização da posse da terra, os quais criaram a União
Democrática Ruralista-UDR,
9
que passou a articular a ação dos latifundiários no
plano para-militar e no plano político e o Congresso Nacional facilmente se curvou
às suas pressões.
No governo de Fernando Collor de Melo, que foi afastado pelo Congresso
Nacional
10
, sendo substituído por seu vice Itamar Franco (1991-1994), deu-se a
- Codeara, do Banco de Crédito Nacional (600 mil hectares) e muitos outros pertencentes a diversos grupos,
como Bradesco, Bamerindus, Tamakavy, Sadi, Camargo Corrêa, Frigorífico Atlas, Drury’s Amazônica.
Georgia Pacific, Tomoyenka etc. (Morissawa, 2001, p. 103).
9
A UDR foi criada em 1985 por grandes proprietários agrícolas, em reação ao Decreto 91.766/85.
10
Fernando Collor de Mello foi o primeiro governo civil brasileiro, eleito por voto direto desde 1960. Foi
também o primeiro escolhido dentro das regras da Constituição de 1988, com plena liberdade partidária e
eleição em dois turnos”. O programa de estabilização econômica, lançado por Collor no dia seguinte à sua
posse em 15 de março de 1990, causou um impacto muito grande na população, com o “confisco monetário,
congelamento temporio de preços e salários, reformulação dos índices de correção monetária. Em seguida
tomou medidas duras de enxugamento da máquina estatal, como a demissão em massa de funcionários
públicos e a extinção de autarquias, fundões e empresas públicas. Ao mesmo tempo anunciou providências
para abrir a economia nacional à competição externa, facilitando a entrada de mercadorias e capitais
estrangeiros no país”. No ano seguinte, a frustração do plano Collor comou a minar o governo e
começaram a surgir suspeitas de envolvimento de ministros e altos funcionário em uma grande rede de
corrupção. Com as denúncias feitas pelo próprio irmão do Presidente, Pedro Collor, e novas revelações que
foram surgindo, “o Congresso nacional instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as
denúncias de irregularidades”. Manifestações populares surgiram em todo país pedindo o impeachment do
Presidente e o afastamento de Fernando Collor de Melo foi resultado principalmente do movimento nacional,
promovido pela classe estudantil, liderado pela UNE, denominado os “caras-pintadas”, por conta das pinturas
que faziam no rosto, exigindo o impeachment do Presidente. Essa mobilização foi instigada e reforçada pela
mídia, que tinha o Presidente em desafeto, aumentando o descontentamento da sociedade civil. O fato do
voto do impeachment ser aberto e transmitido para todo país, pelos meios de comunicação, teve forte
influência na postura dos deputados que se preocupavam com a sua sobrevivência política, de forma que,
arrancada para o novo modelo econômico neoliberal que foi consolidado por
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), marcado por privatizações de empresas
estatais, e o nível de iniqüidade cresceu ainda mais, tanto no campo como na
cidade.
A esperança mais recente era o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, retirante
nordestino, que sentira na carne as agruras da fome, da exclusão e da incerteza; a
expectativa era de que ele, assumindo a presidência da República (2003-2006) se
identificasse plenamente com as causas dos excluídos, em especial a dos
trabalhadores rurais.
Porém, as idéias do neoliberalismo estavam profundamente enraizadas na
sociedade brasileira e o presidente Lula teve que submeter-se às forças das
transnacionais e do sistema financeiro internacional, em nome da governabilidade.
O conhecido jargão de que governar não é a arte do ideal, mas a arte do
possível, é a justificativa para que o governo de propostas transformadoras se ajuste
a uma política que privilegia as elites econômicas e se limite a políticas
compensatórias aos brasileiros vítimas da exclusão.
A falta de uma política econômica voltada prioritariamente para a população,
historicamente tem levado o Brasil a uma dependência cada vez maior da economia
externa e das pressões do mercado internacional, agravadas com as novas
configurações que o capitalismo assumiu nos últimos anos com a globalização e a
formão da sociedade de redes, como explica Castells. Segundo Castells, (2002, p.
21),
a revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da informação es
remodelando a base material da sociedade em ritmo acelerado
[promovendo mudanças nas relações entre as pessoas e instituições, de
forma que] economias por todo mundo passaram a manter interdependência
mesmo alguns que o apoiavam votaram a favor do seu afastamento. Fonte: História da República do Brasil.
Disponível em, http://www.sampa.art.br/biografias/collor/ Acessado em 19 de outubro de 2007.
global, apresentando uma nova forma de relação entre a economia, o
Estado e a sociedade... [...]. O próprio capitalismo passa por um processo
de profunda reestruturação, caracterizado por maior flexibilidade de
gerenciamento; descentralização das empresas e sua organização em
redes tanto internamente quanto em suas relações com outras empresas;
considerável fortalecimento do papel do capital vis-à-vis o trabalho, com o
declínio concomitante da influência dos movimentos dos trabalhadores...
A sociedade de redes, segundo Castells, se a partir das crises da
economia capitalista e da economia estatizada, que obrigaram os dois modelos a se
reestruturarem em uma nova economia global e informacional. Outro fator diz
respeito à revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da informação e
finalmente a formão de uma cultura virtual. Uma nova estrutura social dominante
acabou surgindo a partir desses três processos.
A flexibilizão do capital, da organização empresarial e das relações de
produção, provocaram o enfraquecimento da mão-de-obra sindicalizada e a geração
de riquezas passou a depender principalmente da capacidade tecnológica da
sociedade e dos indivíduos.
O capitalismo no campo acompanhou essa revolução tecnológica, tornando
uma cena cada vez mais comum, o fazendeiro, diante do computador, analisar as
tendências do mercado agrícola internacional e outras tendências da economia
especulativa, para tomar decisões de investimentos, que impliquem em menores
riscos, uma vez que não encontra estímulos e segurança para produzir
exclusivamente para o mercado interno.
A expansão dos agronegócios e o capitalismo no campo, na atualidade, têm
dificultado cada vez mais a viabilização da pequena e média propriedade e o que
depende da agricultura para viver não tem estrutura para acompanhar as pressões e
tendências do próprio mercado interno, cada vez mais exigente e sofisticado.
Sem condições de permanecer no campo, o agricultor despossuído de terra e
de recursos materiais, vê-se obrigado a migrar com a falia para as cidades, em
busca de um meio de sobrevivência, e acaba ficando à margem da sociedade,
engrossando os bolsões de miséria das periferias urbanas.
Alguns desses marginalizados acabam caindo na marginalidade
11
, outros que
recebem alguma doutrinação, passam a integrar movimentos sociais como o MST, o
Movimento dos Sem Teto e outros. Os marginais fazem uso das armas contra a
população e as instituições, enquanto que os movimentos sociais de resistência
apresentam propostas para que as instituições se ajustem às necessidades da
população e reconheçam seus direitos de cidadãos, embora em alguns momentos
também se utilizem de formas até certo ponto agressivas para adquirirem
visibilidade.
Além desses, existem ainda os excluídos das condições básicas do exercício
de cidadania como educação, moradia, emprego, acesso à saúde etc., mas que não
caem necessariamente na marginalidade, e
esses excluídos, sob quaisquer indicadores, formam uma massa
(estatística, psicológica, sociológica) que o Estado não sabe como regular e
que vem sendo usada por forças conservadoras, por políticos demagogos,
pelos meios de comunicação social, por pregadores religiosos, entre outros.
(Wanderley, 1992, p. 152).
Uma massa que não é capaz de compreender que a sociedade poderia ter
sido organizada de outra maneira e que tudo poderia ser diferente do que é;
alimenta-se de ilusões e vive à espera de milagres e de soluções gicas para sua
vida e, por tal motivo, torna-se indiferente e às vezes hostil aos movimentos sociais
que defendem projetos de mudança, a exemplo do MST.
Movimentos que regra geral se vêem colocados à margem da sociedade por
força do próprio modelo excludente que, além de excluir pelas relações de produção,
também exclui por preconceitos fomentados no imaginário popular pela ideologia
11
Aqui, foi dado à marginalidade o significado atribuído aos que se envolvem em ações criminosas, diferente do
sentido que Durand atribui em seguida, quando se refere aos que são vítimas das iniqüidades geradoras da
exclusão social.
dominante, induzida nas massas por instrumentos ideológicos, dos quais as elites se
utilizam com grande eficácia. São marginalizados e não marginais como afirma
Durand (1996, p. 176):
Claro que é preciso fazer a distinção entre ‘marginais’ e marginalizados’.
Poder-se-ia dizer, com um certo cinismo, que os marginais são uma espécie
de marginalizados profissionais, que se auto-excluem das normas (códigos,
hábitos, costumes, regras etc.) da sociedade. Os marginalizados, embora
vivam <<como a gente>> na sociedade dominante, são, em contrapartida,
excluídos por esta. Os primeiros fabricam a exclusão, os segundos sofrem a
exclusão.
Os integrantes do MST são considerados anacrônicos, até mesmo por
segmentos expressivos da intelectualidade, que assistiram ao esvaziamento das
ideologias revolucionárias, provocado pelos ajustes muito bem elaborados da
sociedade de consumo, da economia de mercado, que se estendeu pelo mundo
todo, no processo atual de globalização. Muitos deles ainda acreditam na
possibilidade de transformão ideologicamente planejada do modelo vigente e na
construção de uma sociedade menos injusta e inclusiva.
O planejamento ideológico dessa sociedade, não apenas a partir dos
interesses da classe dominante, faz parte do sonho de muitos integrantes do MST,
tendo como inspiração os princípios de fraternidade e partilha cristãs e o
igualitarismo humano marxista (fundamentos da Teologia da Libertação), orientados
por um novo tipo de conhecimento, construído em uma nova concepção pedagógica,
partindo da visão do oprimido, do explorado, do excluído. Segundo Gramsci (1986,
p.100),
[...] a partir do momento que um grupo subalterno torna-se realmente
autônomo e hegemônico, criando um novo tipo de Estado, nasce
concretamente exigência de construir uma nova ordem intelectual e moral,
isto é, um novo tipo de sociedade e, conseqüentemente, a exigência de
elaborar conceitos mais universais, as mais refinadas e decisivas armas
ideológicas.
Pode-se dizer que o MST tem sua origem no resgate das Ligas Camponesas,
sufocadas pelo Regime Militar que, além de garantir a manutenção do monopólio da
terra às oligarquias dominantes, ainda foi responsável pela intensificação do êxodo
rural, através de projetos como a construção da Usina bi-nacional de Itaipu, a
erradicação do café e o próprio Estatuto da Terra.
Mister se faz lembrar que o cultivo do café absorvia grande quantidade de
mão-de-obra, possibilitando trabalho, lucro e sustento para duas ou mais famílias em
uma propriedade de dez alqueires somente. A cultura da soja, por sua vez, além de
ser mecanizada, exige uma extensão muito maior de terra para se tornar
compensadora. Esta é uma das situações em que o pequeno produtor rural só teve
como alternativa vender sua propriedade e migrar para os centros urbanos maiores.
Houve grande êxodo rural na ocasião e pequenas cidades tiveram sua
população reduzida para um terço ou menos, principalmente no Norte Novo do
Paraná, uma vez que pequenos proprietários de terras e meeiros
12
acabaram
vendendo ou abandonando suas propriedades e buscando alternativas de
sobrevivência nos centros industriais.
A região denominada Norte Novo do Paraná, que se localiza entre os rios
Paranapanema, Tibagi e Ivai, corresponde a uma extensão de terras de mais de
quinhentos e quinze mil alqueires, que foi adquirida por um grupo de capitalistas
ingleses, representado pelo Lord Lovat, através de uma escritura pública junto ao
governo do Paraná, entre 1925 e 1927, sendo assim criada a Companhia de Terras
Norte do Paraná, que, após a deflagração da 2ª Guerra Mundial, foi adquirida por um
grupo de brasileiros e passou a ser chamada Cia. Melhoramentos Norte do Paraná.
12
O meeiro é um agricultor sem terras que firma um contrato temporário com o proprietário da terra, para
produzir um determinado tipo de cultura, dividindo com o proprietário as responsabilidades e o lucro, de
acordo com o que for estabelecido no contrato.
Inicialmente foi traçado um projeto de povoamento, criando a cidade de
Londrina em 1931, posteriormente as cidades de Maringá, Paranavaí, Marialva,
Cianorte e Umuarama, além de dezenas de pequenas cidades e patrimônios.
13
A região atraiu imigrantes de várias regiões do Brasil, principalmente dos
estados de São Paulo e Minas Gerais, que adquiriram terras para o plantio do café,
intercaladas com culturas de subsistência, motivados pela qualidade da terra.
Um dos traços característicos do Norte Novo do Paraná é que, até a década
de 1980, havia a predominância de pequenas propriedades agrícolas, entre cinco e
quinze alqueires, voltadas para a produção do café, mas que foram vendidas em
virtude das diversas crises pelas quais passou a referida produção, como geadas,
queimadas, preços pouco compensarios etc.
diversos estudos, realizados na Universidade Estadual de Maringá-UEM e
Universidade Estadual de Londrina-UEL, que procuram resgatar momentos
importantes da história dessa região, permeados de conflitos.
A agricultura de exportação, principalmente da soja, ganhou um impulso
considerável com a mecanização, que expulsou um enorme contingente de
trabalhadores rurais para a periferia das cidades.
Pessoas de melhor posse foram adquirindo as pequenas propriedades e
transformando-as em fazendas, para cultivar a soja ou transformá-las em pastagens.
Mais do que a política de produção em escala para exportação, a soja
transformou os proprietários agrícolas em investidores e consumidores de produtos
multinacionais, como, colheitadeiras, tratores e seus implementos, adubos,
fungicidas, inseticidas, herbicidas etc.
Ao ser construída a usina de Itaipu, 12 mil famílias foram desapropriadas,
somente nesse projeto, e o próprio Estatuto da Terra, que pretendia dar garantias ao
13
Fonte: http://www.odiariomaringa.com.br/pref-japura.php
agricultor, acabou produzindo efeito contrário, pois, “não saiu do papel”. Resumindo,
no Paraná, mais de 100 mil famílias foram expulsas de suas terras no prazo de dez
anos, na década de 70.
As poucas famílias que receberam indenizações pelas suas terras,
desapropriadas para a construção da usina de Itaipu, não conseguiram comprar
outras terras semelhantes, pelo valor irrisório da indenização; parte dos posseiros foi
transferida para o Acre e abandonada sem assistência.
Diante desse quadro, em 1980, as Igrejas Católica e Luterana, com a
Comissão Pastoral da Terra (CPT) e alguns sindicatos de trabalhadores rurais,
fundaram o Movimento de Justiça e Terra que mobilizou um acampamento de cerca
de dois mil trabalhadores sem terra no trevo de acesso à referida hidrelétrica, os
quais, após dois meses, conseguiram Assentamento nos municípios de Arapoti e
Toledo.
Em 1981, a CPT organizou perto de 500 famílias que tamm tinham perdido
suas terras, no oeste paranaense, e passou a cadastrar outras famílias interessadas
em Assentamento formando uma espécie de regional de um movimento que adotou
a sigla de MASTRO (Movimentos dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná).
Em seguida, nos anos de
1982 e 1983 surgiram outros quatro movimentos semelhantes: o Mastes
(Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste do Paraná), o Masten
(Movimento dos Agricultores Sem Terra do Norte do Paraná) e o Mastel
(Movimento dos Agricultores Sem Terra do Litoral do Paraná). (Morissawa,
2001, p. 121).
A semente do MST, no entanto, foi plantada em 7 de setembro de 1979 com a
ocupação da Fazenda Macali, no Rio Grande do Sul, que inspirou a organização do
Movimento na região Oeste do Paraná.
O Movimento foi crescendo a assumiu dimeno nacional, sempre amparado
pela Comissão Pastoral da Terra que era orientada por padres e pastores,
instrumentalizados na Teologia da Libertação, que se constituía numa vertente
teológica, surgida na década de 1960, na América Latina, voltada para a libertação
do povo oprimido.
Tendo como principal meta a Reforma Agrária, através de suas mobilizações,
ocupações de propriedades e outras ações reivindicatórias, O MST tem obtido
algumas conquistas de terras para assentar milhares de famílias em todo país,
dando a elas um pouco de dignidade e amesmo de esperança. O Assentamento
Dorcelina Folador foi uma dessas conquistas do Movimento que selecionou entre as
famílias militantes, aquelas que fariam parte da comunidade.
Entre os agentes pesquisados do Assentamento, encontram-se os que foram
embasados ideologicamente nos princípios da Teologia da Libertação e
realimentados constantemente nos encontros promovidos pelo referido Movimento, e
que estão em busca de uma estabilidade e segurança de vida dentro da
comunidade, praticando a agricultura familiar em pequenos lotes de terra.
Suas idéias e expectativas são assentadas em um sistema de crenças
sustentado em princípios religiosos e profanos, que transitam entre a num Cristo
libertador, que atende aos seus impulsos psicoespirituais, e a ação mobilizadora de
inspiração marxista, que o Cristo libertador permite legitimar.
Alimentam a esperança de concretizarem seus sonhos de realização pessoal
e familiar, ao mesmo tempo em que acreditam na possibilidade de edificação de um
novo modelo econômico que altere as condições de vida, pelo menos do pequeno
proprietário agrícola que luta para sobreviver com dignidade.
Os sujeitos alvos da presente pesquisa fazem parte de um segmento de
brasileiros que foram e o vítimas da exclusão, mas o abrem mão da esperança
de que, um dia, suas condições de vida possam melhorar.
2.1 Algumas características do Assentamento
O Assentamento Dorcelina Folador tem esse nome em homenagem a uma
militante do Movimento, que foi eleita prefeita da cidade de Novo Mundo, no Mato
Grosso do Sul.
Dorcelina de Oliveira Folador nasceu em Guaporema, Estado do Paraná, em
27 de julho de 1963 e com 11 anos mudou-se para Mundo Novo, em Mato Grosso
do Sul. Poeta, professora e artista plástica, em 1989 começou a contribuir com o
MST, chegando a fazer parte da direção estadual do Movimento. Foi candidata a
vereadora, a Deputada Estadual e foi eleita prefeita de Mundo Novo para o mandato
de 1997 a 2000. Acabou sendo assassinada na varanda de sua casa, diante dos
seus filhos, a mando de Jusmar Martins da Silva, pois, segundo informações de
Renato Reinehr, ela passou a sofrer ameaças de morte desde que começou a
denunciar quadrilhas de traficantes e ladrões de carros, ligadas a políticos de Mato
Grosso do Sul, tendo Jusmar Martins da Silva, ex secretário de Finanças do
município, confessado ser o mandante do crime.
De acordo com Camila Acosta, do Portal de Notícias Regional de Mato
Grosso do Sul Unifolha
14
, de 19 de junho de 2003, Jusmar Martins da Silva foi a
julgamento e condenado, após terem sido condenados Theófilo Stocker, Valdenir
Machado, Esmael Meureur Silveira a 13 anos de prisão, Roldão Teixeira de
Carvalho a 10 anos e Getúlio Machado, autor dos disparos, a 18 anos.
Com pouco mais de 300 alqueires, o Assentamento que leva seu nome foi
uma conquista do MST que não apresentou conflitos no episódio de sua ocupação;
14
Fonte: Campo Grande News - http://www.unifolha.com.br/Materia/?id=5640
foi fruto de negociações e articulações políticas por parte de lideranças do
Movimento.
A primeira ocupação foi feita em fins de 1998, quando a Fazenda foi posta a
leilão. Foi uma ocupação pacífica em virtude da propriedade ter sido entregue ao
Banco do Brasil em troca de suas dívidas. Era a Fazenda São Carlos, que produzia
sementes que levavam a marca Balu.
Feita a ocupação, com objetivo de impedir que fosse a leilão, e o INCRA
assumindo o compromisso de pagar o Banco, em fevereiro de 1999 a área foi
ocupada definitivamente por algumas famílias e aos poucos foram chegando outros
grupos, até completar o número mínimo de 100 (cem) famílias exigido pelo INCRA,
porém somente 93 famílias acabaram se instalando, com a concordância do referido
Instituto.
As famílias foram escolhidas por coordenadores do MST os quais tinham
como proposta assentar agricultores que sempre dependeram da terra para viver.
Dessa forma, o “lance”, segundo os deres do Assentamento, foi a ocupação,
a cobertura real do lance foi feita pelo INCRA que negociou com o Banco do Brasil o
valor e a forma de pagamento e, com o MST, os critérios de povoamento.
Foi uma escolha de famílias dispostas a produzir sem o uso de agroxicos,
em lotes pequenos, de apenas dois alqueires e meio, porém, de terra plana e de boa
qualidade, formando o que chamam de linhas de produção que consiste em
organizar grupos de famílias que produzem o mesmo tipo de produto, para
buscarem barateamento dos custos e facilidade na comercialização. Para tanto os
assentados foram motivados e treinados por agrônomos do MST.
Segundo alguns relatos, as famílias foram submetidas a um processo de
treinamento por mais de um ano, tanto no sentido de produzir, quanto no sentido de
comercializar em grupo sem, no entanto, produzirem coletivamente.
De acordo com Renato Reinehr, o motivo de serem lotes pequenos foi em
virtude da conjuntura na época estar desfavorável, pela política do governador Jaime
Lerner, que exigia do INCRA o Assentamento do maior número de famílias possível,
sem levar em consideração a viabilidade dos Assentamentos, de forma que o MST
foi forçado a assentar nos 300 alqueires, pelo menos 93 famílias, mantendo ainda
reserva de mata e um espaço para o centro comunitário.
Orientados a organizar as linhas de produção, desde o início e até o presente,
cada família decide a qual ou quais linhas de produção pretende integrar-se, pois,
apesar dos lotes serem pequenos, é possível ser desenvolvido mais de um tipo de
produção. Existe também a possibilidade de abandonarem uma das linhas de
produção e integrarem-se a outra.
É possível, por exemplo, produzir bicho-da-seda, leite, uva e ca, numa
mesma propriedade de dois alqueires e meio. O que impossibilita o desenvolvimento
de várias produções diferentes é a sobrecarga de trabalho que isto acarreta,
principalmente por o poderem contar com o auxílio dos agrotóxicos, que poupam
bastante mão-de-obra.
O MST o proíbe a utilização de agrotóxicos, mas orienta os assentados a
evitar a utilizão desse recurso, porém o projeto do Assentamento Dorcelina
Folador é de produção somente de orgânicos, muito embora nem todos obedeçam
rigorosamente às orientações.
Milhares de árvores foram plantadas para recuperar a mata nativa que fora
devastada pelo antigo proprietário da fazenda, com mudas fornecidas pela Prefeitura
de Arapongas. A partir de então iniciaram o cultivo e construíram suas moradias.
No decorrer de sete anos, algumas famílias foram substituídas. De acordo
com as lideranças, umas trocaram de Assentamento com outras, por razões
pessoais, sendo principalmente para ficarem mais próximas de familiares. No
entanto, as novas famílias que passaram a integrar a comunidade o seguem, em
sua maioria, as orientações iniciais, fugindo das regras e se negando a plantar
somente produtos orgânicos.
No que se refere ao aspecto educacional, o Assentamento não conta com
uma Escola própria, porém é colocado um ônibus à disposição das crianças que
freqüentam um estabelecimento escolar de 1ª a 4ª séries, numa fazenda próxima, e
para transporte até o distrito de Aricanduva do município de Arapongas, de crianças
e adolescentes que estão cursando da 5ª à 8ª séries e o Colegial.
A Sanepar não havia instalado ainda a rede de fornecimento, porém,
conforme depoimento de Alencar Hermes, em sua entrevista, trinta e cinco famílias
contam com água encanada, graças a um projeto da “linha d’água, criado por
iniciativa dos próprios assentados, que consiste em captar a água de uma nascente
e bombear para as residências.
Em 2006, no mês de fevereiro, foram anunciados recursos da Companhia
Habitacional do Paraná-COHAPAR, para a construção de moradias e uma estrutura
para encontros, com alojamentos e local para reuniões.
É importante esclarecer que faz parte da política do Assentamento atribuir
papéis ou funções para cada membro da comunidade, como forma de fazê-lo sentir-
se participante e incluído, apesar de sempre haver os que se recusam a participar ou
se afastam dos compromissos.
A substituição ocorrida, de várias famílias, comprometeu, em parte, o projeto
inicial do Assentamento, pois, as famílias que vieram substituir as que abandonaram
os lotes, em virtude de não terem participado das decisões e treinamentos no início
da ocupação, demoram a assimilar a idéia de produzirem somente produtos
orgânicos e de se integrarem nas linhas de produção.
A linha de produção que se apresenta mais compensadora, ao presente, é
a do bicho-da-seda, embora fique na dependência de cooperativas externas, o que
não condiz plenamente com as propostas do projeto.
As linhas de produção do leite e da horticultura são de resultados mais
rápidos, porém mais instáveis, enquanto que a expectativa maior está na linha de
produção do café que, apesar da demora na produção, pode tornar-se mais
compensadora, de acordo com a atual tendência do mercado.
O açúcar mascavo foi uma das primeiras linhas de produção a ser
implantada, porém enfrenta as dificuldades de conquistar o mercado, a mesmo por
ser um produto que tem muitos concorrentes.
As principais lideranças do Assentamento não escondem a dificuldade de
motivar as famílias a se integrarem em projetos coletivos ou semicoletivos, por
esbarrarem em interesses individualistas, principalmente com as famílias que vieram
substituir as outras que deixaram o Assentamento.
Os interesses individuais muitas vezes se sobrepõem aos projetos coletivos, a
despeito de toda uma doutrinação exercida pelo Movimento, mas que não consegue
suplantar a força da ideologia dominante na sociedade de modo geral, reforçada
diariamente pela mídia.
Tais informações foram colhidas nos vários contatos com as lideranças e
coordenadores de setores daquela comunidade, revelando uma contradição ainda
muito presente entre integrantes do Movimento.
Viver em comunidade no Assentamento, a partir dos valores que orientam sua
constituição, é um processo em construção, como eles mesmos relatam, que
depende de uma mudança cultural e, para isto, afirmam as lideranças, o MST tem
envidado todos os esfoos possíveis para proporcionar, principalmente à juventude,
oportunidade de se educar nas escolas e cursos organizados pelo próprio
Movimento.
Alguns jovens do Assentamento freqüentam cursos técnicos, voltados para
a agroecologia, desenvolvidos na Escola Milton Santos, de Maringá, em convênio
com a Universidade Federal do Paraná.
A preocupação com a educação fica muito evidente nos depoimentos e nas
conversas informais mantidas com os agentes daquela comunidade, pois, é a partir
da educação que acreditam ser possível elevar o nível de emancipação dos
integrantes do Movimento. Procuram incentivar a juventude a buscar os cursos
promovidos pelo MST, como uma forma de evitar a dispersão e o êxodo dos jovens
para os centros urbanos.
É bastante comum, jovens abandonarem suas famílias e migrarem para os
centros urbanos que exercem maiores atrativos do que a vida no campo, até porque
a mídia se encarrega de estimular cada vez mais as ilusões produzidas pelas luzes
das cidades.
Uma característica das famílias do Assentamento Dorcelina Folador é a faixa
etária dos casais que está na média de trinta e cinco a quarenta anos. Por tal motivo,
o poucos os jovens na faixa de dezoito a trinta anos, predominando um mero
maior de crianças e adolescentes, em razão do perfil de famílias que foram
escolhidas por lideranças do MST para povoarem a comunidade.
A falta de alternativas, no âmbito do Assentamento, para os poucos que
completam o grau, acaba por motivá-los a irem morar nas cidades, onde possam
freqüentar Universidades.
Muitos dos homens e mulheres assentados procuram, na medida do possível,
participar de encontros e outros eventos promovidos pelo MST, para manterem
acesa a chama da ideologia do Movimento que é um dos fortes componentes que os
motivam a permanecer na terra.
A preocupação em viabilizar o projeto do Assentamento é um dos maiores
desafios para as lideranças daquela comunidade, que não deixam de expressar
alguma preocupação com o seu futuro.
O impulso natural do ser humano, em buscar crescer e progredir em todas as
dimensões, nem sempre encontra os mesmos estímulos no campo como nas
cidades e, sendo os jovens mais suscetíveis aos estímulos da vida urbana, a
preocupação em tornar o Assentamento um lugar agradável para viver é constante,
a fim de que os filhos dos assentados sintam-se motivados a permanecer na
comunidade.
Embora os agentes do Assentamento questionem e critiquem o modelo
vigente, as agroindústrias e a economia de mercado, as leis de mercado são
implacáveis e de uma forma ou de outra eles têm que se submeter a elas.
É por tal motivo que as lideranças se preocupam em desenvolver, quando
obtiverem recursos e outras condições suficientes, a agroindústria no Assentamento,
como forma de garantir a permanência dos jovens dentro da comunidade, agregar
valores aos seus produtos e enfrentar o mercado externo visando a proporcionar
maior viabilidade econômica para as suas linhas de produção.
É indiscutível que a necessidade de sobrevivência de cada um e de
sobrevivência da comunidade está acima de qualquer radicalismo ideológico, e
qualquer ideologia, para se manter, precisa ajustar-se à realidade, ter a flexibilidade
suficiente para adaptar-se à situação que o momento apresente, sem o que corre o
risco de tornar-se anacrônica e sucumbir.
Para eles é necessária a mudança no modelo econômico e na estrutura
agrária do país, porém que caminhos tomar para que ocorra essa mudança é um
que ninguém ainda conseguiu desatar, em virtude de forças que impõem sua
vontade nas diversas esferas de governo e na orientação da opinião pública através
da mídia.
O único caminho possível a ser tomado é aproveitar os recursos gerados pelo
modelo econômico vigente, com a tecnologia que os estímulos da iniciativa privada
o capazes de criar e produzir e utilizá-los na consolidação de uma agricultura
sustentável.
Tais avaliações o feitas por agentes do MST e a expectativa de poderem
produzir transformões no modelo econômico não implica desconsiderar todas as
conquistas e avanços que a tecnologia capitalista produziu, mas aproveitá-las e
aprimorá-las, para a construção de uma sociedade mais justa, com avanços sociais
mais consistentes.
3 Apresentando os sujeitos: o perfil dos entrevistados, suas vidas antes de
ingressarem no MST e os motivos que os levaram a ingressar no Movimento
As histórias orais de vida, contidas neste estudo, constituem-se numa forma
de escrever história, a partir da visão dos oprimidos, que são também sujeitos que
fazem história.
O registro da história de cada um é uma forma de apropriação, não somente
da sua síntese existencial, mas de elementos constitutivos dessa síntese que nos
remete a uma melhor compreensão dos aspectos socioculturais que a construíram e
fatores que mais determinaram sua construção.
São histórias de quem faz história, unidos por uma mesma causa, motivo pelo
qual muitas semelhanças em determinados temas, captando, “[...] o que sucede
na encruzilhada da vida individual com o social”. (Queiroz, 1987, p. 283).
São oprimidos, perseguidos, combatidos que passam a enxergar e perceber
um outro ângulo da realidade que o era percebido quando, antes de ingressarem
no MST, sofriam passivos o processo de massificação e alienação exercido pelos
instrumentos ideológicos da sociedade liberal burguesa, como ocorre com a maioria
dos cidadãos.
Mesmo oprimidos pelo sistema e pela economia de mercado, eles parecem
não se considerar vítimas de opressão; pelo contrário, apresentam-se como agentes
construtores de uma nova história, deixando transparecer, em seus depoimentos e
atitudes, sentimentos de autoconfiança e intrepidez.
Narram os momentos de aparente derrotacomo um avanço em direção às
conquistas maiores, uma vez que são os momentos em que as forças opressoras -
ou que na conjuntura de determinados momentos são entendidas como tal -
revelam sua superioridade: ... tivemos que sair com as famílias, na carroceria
de caminhão, debaixo de chuva”, revela Hermes (28-03-2006).
São hisrias narradas sem apelos de autocomiseração, lamentações ou
lamúrias, uma vez que as vítimas, para eles, são todos os que vivem das ilusões da
sociedade de consumo, sem perceber as formas de manipulação a que estão
submetidos.
A preocupação com o coletivo, que fica expressa em depoimentos diversos,
parece revelar a consciência da totalidade maior, em que o Movimento está inserido.
Nos relatos colhidos das seis pessoas, incluindo as esposas de dois assentados,
que fizeram questão de se expressar e dar seus depoimentos de vida, enquanto
agentes do processo de luta e permanência no Movimento, pode-se observar essa
preocupação, uma vez que não lhes escapa a percepção do poder irresistível que a
ideologia dominante exerce sobre todos e a que nem os próprios assentados podem
se considerar imunes.
Os entrevistados são jovens; todos são casados e têm filhos e a maioria é
nascida no sul do país.
Com relação ao que faziam antes de ingressar no MST, todos trabalhavam na
agricultura. Alguns em terras próprias ou da família, outros como empregados.
Um traço comum nos que exercem funções de liderança dentro do
Assentamento é a participação em atividades pastorais da Igreja Católica, onde
foram doutrinados e motivados a ingressar no Movimento.
As entrevistas foram realizadas, após contatos anteriores, entre os dias vinte
e oito de março e doze de abril de 2006, ocasião em que os sujeitos pesquisados,
bem como seus familiares, contavam com as idades que foram registradas neste
documento. Os entrevistados atenderam em suas casas, interrompendo suas
atividades para, expressando a maior boa vontade, contribuírem com a pesquisa,
demonstrando grande interesse em poderem divulgar suas idéias e sua concepção
da realidade.
3.1 Alencar Hermes
Assentado na comunidade Dorcelina Folador, Alencar Hermes nasceu em 10
de abril de 1968, na cidade de Tenente Portela, no Rio Grande do Sul, e quando
tinha 17 anos sua família migrou para Pérola do Oeste, no Sudoeste do Paraná. É
casado com Dona Helena e tem quatro filhos: Fernanda com 17 anos, Franciele com
14, Natam com 13 e Cristiane com 2 anos e meio.
No Rio Grande do Sul, relata Hermes, tinham apenas sete hectares de terra
e, como ele tinha mais quatro irmãos, seu pai entendeu que deveria migrar para o
Paraná, em busca de uma propriedade maior, para dar mais segurança aos seus
filhos.
No Assentamento Dorcelina Folador, Alencar Hermes desempenha o papel
de um dos coordenadores políticos da comunidade e na sua história de vida o que
fica acentuada é a sua atuação política dentro do MST, que ele chama de política
organizativa.
Alencar Hermes, as ordenhar suas vacas, concedeu a entrevista na
varanda de sua residência, desculpando-se por se fazer esperar, justificando que
estava realizando o trabalho que seria feito por sua esposa, se ela o estivesse
participando da COP8 - Conferência das Partes
15
, em Curitiba, juntamente com
outras mulheres do Assentamento e do MST.
15
A COP8 foi realizada em Curitiba, de 20 a 31 de março de 2006. A Conferência das Partes-COP- é o órgão
decisório supremo no âmbito da Convenção sobre a Diversidade Biológica-CDB.
Explicado a ele que a pesquisa consistia em registrar parte da sua trajetória
de vida e sua participação no MST, iniciou sua narrativa:
“Naquele tempo, meus pais, descendentes de europeus, não se
preocupavam tanto em dar estudo aos filhos, mas sim em dar terras.
As terras no Rio Grande do Sul eram bastante férteis e a gente
plantava soja e a cultura de resistência, que a gente fala hoje: milho,
mandioca, feijão, [e criava] frango caipira, vaca de leite e porco, que meu pai
criava em escala comercial também.
No Paraná, meu pai adquiriu quase 50 hectares. Eram 20 alqueires, 48
hectares ponto alguma coisa. era mais do dobro da quantidade de terra.
As terras também eram férteis, mas não eram planas como lá no Rio Grande
do Sul.
Seu projeto era aproveitar a o-de-obra dos filhos. Aqui tamm a
gente produzia a cultura de resistência, produzindo feijão tamm em escala
comercial. Hoje a gente fala cultura de resistência, porque falar de
subsistência é como se dissesse abaixo da linha da existência.
16
Trabalhava na propriedade do pai e na propriedade do sogro. Faltava
espaço. Não tinha como a gente se desenvolver. Cheguei a ir trabalhar na
cidade, numa indústria de pré-moldados. Foi até pra sentir. Uma coisa é a
gente ouvir falar, outra coisa é sentir. O impacto na cidade foi muito grande,
pela questão da cultura.
16
Uma forma que Alencar foi orientado a interpretar subsistência.
O espaço que sobra pra nós sem estudo é muito restrito... A questão
econômica que não permite sonhar, não permite vislumbrar alguma coisa
pela frente.
estava casado e tinha três filhos, na época. Ouvia falar do
Movimento dos Sem Terra, que foi divulgado muito no ano de 1997”.
Alencar Hermes era ministro da palavra e da Eucaristia e, nos encontros,
participava com pessoas de diversos segmentos da sociedade, inclusive com
representantes do MST e da Pastoral da Terra e, nesses contatos, passou a se
interessar pelo Movimento:
“No início foi bem interessante: quando eu percebi que estava surgindo
uma oportunidade de encontrar uma saída pra minha vida; comentei com
minha esposa e ela teve uma apatia muito grande e eu não comentei mais,
nem debati, pela rejeição que ela demonstrou ao MST. E assim passou
aproximadamente um ano, quando tivemos uma frustração de safra, depois
de termos trabalhado muito nas terras do meu pai e aí ela falou: vamos lutar
pela nossa terra agora. (Alencar não esclarece se seu pai perdeu a terra).
Procurei me informar e dali a dois meses nós estávamos acampados
em Alvorada do Sul”.
3.2 Renato Reinehr
Após a entrevista com Alencar Hermes, foi entrevistado Renato Reinehr, o
qual, durante todas as visitas, se comportou como o anfitrião da comunidade.
Após uma trajetória em diversas esferas do MST, Renato é um dos líderes do
Assentamento Dorcelina Folador. Contava com 40 anos de idade, na ocasião da
pesquisa. É casado com Regina e pai de dois filhos pequenos, Luther com 7 anos
de idade e freqüentando Escola e Gandhi com 4 anos.
Embora consciente da importância do seu papel no processo de
consolidação de projetos na comunidade de assentados, não esconde sua
preocupação com a política agrícola do país que, para ajustar-se ao modelo
neoliberal globalizante, privilegia a agroindústria capitalista, relegando a plano
secundário a agricultura auto sustentável.
Nasceu em Nova Londrina, e é formado em Administração pela Faculdade de
Palmas, no oeste do Paraná. Engajado na Igreja desde 1985, no município de
Missal, fez parte da Pastoral da Juventude Rural de Foz do Iguaçu, no oeste do
Paraná. O acampamento dos Sem Terra, na Região da Prainha de São Miguel,
localizado na Usina Hidrelétrica de Itaipu, em 1985 deu origem ao Assentamento
vio, entre os municípios de Medianeira e Missal. Tal fato fez com que Renato
tomasse conhecimento do Movimento, e se integrasse nele, passando, inicialmente,
a atuar na Comissão Pastoral da Terra.
Em agosto de 1989 participou da ocupação da Fazenda Formiga no município
de Ibema, sendo esse momento o marco decisivo de seu ingresso no MST.
Atualmente, Reinehr é diretor do setor de Comunicação e Cultura do
Assentamento Dorcelina Folador, juntamente com seu companheiro Antônio. Cada
um é responsável por 50 (cinqüenta) famílias, porém, essa divisão é apenas uma
formalidade, pois, na prática nem sempre existe esse tipo de divisão, uma vez que
ambos fazem o que for possível e necessário, para toda a comunidade.
Renato diz:
“Sou filho de pequenos agricultores. Meu pai era sem terra. Trabalhava
de empregado. Meu pai saiu do Rio Grande do Sul, casou-se com minha mãe
em Santa Catarina, em seguida migrou para o Paraná, para a cidade de
Maringá.
Somos em sete irmãos, quatro homens e três mulheres. Meu pai faleceu
quando eu tinha treze anos. Morreu novo, com quarenta e sete anos. A gente
nunca teve terra.
Trabalho na terra desde criança. A terra em que a gente comou a
trabalhar era do meu a materno. Depois que meu pai morreu a gente
continuou trabalhando nas terras do meu avô.
Como minha mãe também tinha direito à terra, fizemos um acordo
com seus irmãos e fomos pagando com produção, de forma que hoje essa terra
é nossa. Mas é muito pouca terra pra tantos irmãos, de forma que todos estão
vivendo com dificuldades, embora a maioria esteja melhor de vida do que
eu.
17
Estamos pensando em vender a terra para dividir a herança.
Com quatorze anos eu fui para um Seminário de Jesuítas e fiquei
quatro anos, mas sempre tendo contato com a terra, pois, lá no Seminário a
gente trabalhava...
No Seminário eu cursei a 6ª, a 7ª, a 8ª séries e a série do Colegial.
Com dezoito anos eu meu alistei no Exército, fui voluntário e servi em
Curitiba.
17
Renato, apesar de estar assentado na comunidade Dorcelina Folador, divide com seus irmãos uma outra
pequena propriedade de terra, porém não trabalha nela e nem desfruta da sua produção.
Servi bem no período de transição da Ditadura para o período civil.
Participei daqueles movimentos de sair para a rua com batalhões como uma
forma de dizer à população: ainda estamos aqui.
Eu tinha certo senso crítico naquela época, mas era um tanto
ingênuo ainda. Eu tive, até aquela época, uma formação religiosa muito
alienada, por assim dizer. De Seminário para Quartel a disciplina não muda
muito.
Sai do quartel e voltei pra casa, para trabalhar na terra e comecei
minha militância na Pastoral da Juventude, onde comou a minha
formação mais crítica e de militância para ajudar a formar a oposição
sindical, motivado pela Teologia da Libertação.
Desde 1985 eu tinha contato com o MST e procurava dar apoio,
levar doações e, em agosto de 1989, entrei de vez para o Movimento, no
Assentamento da Fazenda Ibema, que para mim foi a melhor coisa que eu
fiz na vida. Passei a fazer alguma coisa de concreto.
Foi desde essa época de acampamento que fiquei até junho de 1993,
num período de trabalho mais intenso. Foi um dos melhores acampamentos
na época, em que se promoviam discussões e a formação do pessoal, tanto que
desse Acampamento existem hoje lideranças espalhadas pelo Paraná inteiro
e por todo Brasil”.
3.3 Regina Sonia Borges dos Santos
Para que Regina pudesse ter oportunidade de expor a respeito da sua vida
dentro do MST, ficou marcada uma entrevista com ela para o dia seguinte ao da
entrevista com Renato, em virtude do adiantado da hora, pois ela tinha que ir para
Arapongas, onde fazia cursinho preparatório para prestar vestibular na Universidade
Estadual de Londrina.
Das seis pessoas entrevistadas, apenas Regina Sonia Borges dos Santos,
esposa de Renato, cresceu dentro do MST, tendo nele ingressado com seu pai, aos
doze anos de idade. As demais vivenciaram as dificuldades normais que enfrenta a
grande massa da população que luta pela sobrevivência, angustiadas pela incerteza
do amanhã.
Regina, com 29 anos, é a segunda mulher de Renato, com quem teve os dois
filhos, Luther e Ghandi. Contou que seu pai deixou a família e ingressou no MST e
ela decidiu ir morar com ele no Assentamento, deixando a mãe e os irmãos.
A maior parte de sua vida, portanto, foi dentro do Movimento, não revelando
influência da Igreja no seu ingresso.
Diz Regina:
“Quando entrei para o MST era ainda criança, pré-adolescente, tinha
apenas doze anos. Fui para acompanhar meu pai. Deixei minha mãe e fui
morar com ele. Entrei um ano depois que o Renato entrou.
Primeiro o meu pai foi participar da ocupação da Fazenda Formiga e
depois de um ano que ele estava eu fui morar com ele. Foi por volta de
1986.
Eu era criança e me lembro que era muito gostoso. Tinha muito
mato, uma diversidade muito grande de culturas, modo de falar, em virtude
das origens diferentes dos assentados.
Havia pessoas de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, mas o que
predominava era o pessoal da região de Cascavel.
Era interessante a maneira gostosa que falavam e se comportavam. E
eu gostava muito da natureza, além dos amigos que eram todos mais ou
menos da minha idade. A gente estudava numa Escolinha que tinha no
acampamento. A Prefeitura fez uma Escolinha no Acampamento.
Havia pessoas [que não faziam parte do acampamento] e também faziam
cursos pelo Movimento”.
3.4 Pedrinho (Pedro Antonio Cardoso Carvalho)
No dia em que foi possível fazer a entrevista com Pedrinho, sua esposa
havia retornado de Curitiba, onde também participara da COP8 e o marido fez
questão de dar a entrevista quando ela estivesse junto, que fora uma das
escolhidas para participar do projeto.
Pedro Antonio Cardoso de Carvalho, com 42 anos, é casado com Rosilda
Nogueira de Carvalho, com quem tem dois filhos, Fernando de 18 anos e Lucas de
14.
O primeiro contato com Pedrinho foi na primeira visita realizada no
Assentamento, quando foi solicitada a autorização para realizar a pesquisa.
Era uma manhã de sábado e havia a “mística”
18
, que é realizada de quinze
em quinze dias, para se realimentarem dos princípios orientadores do MST, anunciar
eventos, prestar contas, relatar ações empreendidas, distribuir tarefas, apresentar
propostas etc.
A mística, no entanto, é muito mais que isto, para os participantes do MST.
Ela se constitui numa celebração coletiva que busca reforçar a crença na
possibilidade de transformar a sociedade. Ela atua na emão e desperta a paixão
pela luta em prol da igualdade, justiça, dignidade e sentido de viver, incentivando a
subverter o que consideram a desordem consolidada em nome da ordem. Ela
desperta e materializa valores, sentimentos, convicções e princípios nos sujeitos
sociais que engrossam as fileiras do Movimento.
A mística tem uma função pedagógica de alimentar o companheirismo, o
sentimento de união, fraternidade e comunhão, não no sentido sacramental, mas no
sentido essencialmente humano, que tira o sujeito da sensação de solidão e o faz
romper os grilhões da subservncia e da humilhação, transmitindo, a cada um uma
sensação de segurança, a exemplo do que ocorre nas exaltações coletivas de
religiosidade, que a Igreja Católica define como graça comunicante.
É um misto de mística cristã e marxista, dicil de ser definida, mas que atua
nos veis psicossocial e psicoespiritual” dos militantes, através de sicas,
mensagens, poemas, representações, que fazem parte de um conjunto de técnicas
e procedimentos que os alimentam ideologicamente, e tem origem nas práticas da
CPT, constituindo-se em uma espécie de liturgia do MST, de acordo com Renato
18
Existe a coordenação de vários setores no Assentamento, como o de educação, cultura, saúde, política
organizativa etc. Na mística, que se realiza a cada quinze dias, além dos momentos de reflexão e
realimentação das metas e propostas da comunidade e do Movimento, concitando para a participação, união e
companheirismo, é feita a prestação de contas dos coordenadores dos setores, a distribuição de tarefas, as
informações sobre eventos e atividades a serem desenvolvidas, entre outras coisas. É comum a apresentação
de quadros com músicas, teatro e outras expressões culturais, tendo, regra geral, como foco, realimentar
princípios doutrinários e ideológicos do MST.
Reinehr, mas que deve representar uma vivência diária, em busca da união e do
companheirismo.
Na ocasião, Pedrinho, ao se apresentar, disse brincando que seu apelido
antes era Pedrão, mas depois que se envolveu no MST passou a ser Pedrinho,
comentário carregado de sutileza dando a entender que no Movimento mingúem é
tratado com expressões de grandeza.
Sua função dentro do Assentamento é no setor de educação.
Concedeu sua entrevista em sua casa ainda provisória, que é construída com
uma parte de madeira e uma parte ainda revestida de lona. Ao lado dessa casa
provisória, está em fase adiantada de construção uma residência de alvenaria.
A despeito da simplicidade, pôde-se notar muito asseio nos móveis e nas
louças existentes. Na mesa uma toalha muito limpa e, no canto da sala, uma
televisão nova.
Seus filhos causaram a impressão de serem muito educados e disciplinados,
pois, quando teve início a entrevista eles pararam de brincar com uma bola, no
quintal da casa, provavelmente para não fazerem barulho, sem que seus pais
precisassem solicitar.
A história de Pedrinho
“Nasci em Guaraci, região de Maringá, e, quando me entendi por
gente, morava na região de Nova Esperança. Entre Nova Esperança e Alto
Paraná.
Meu pai era agricultor, trabalhando como meeiro numa fazenda de
café.
Com nove ou dez anos comecei a estudar numa Escolinha rural.
Meu pai chegou a mudar de alguns sítios entre Nova Esperança e Alto
Paraná, mas tudo ali por perto, entre os dois municípios. Ficamos por ali até
o ano de 1982.
Nessa época o fazendeiro vendeu a fazenda; tinham acabado os
cafezais e nós já trabalhávamos com amora, com o bicho da seda, desde 1977.
Numa colheita anterior à geada de 1985, meu pai colheu uma boa
margem de café, se despertou e comprou um terreno [urbano] em Sarandi.
Quando em 1982 a fazenda em que meu pai trabalhava foi vendida, ele
decidiu, por pressão dos meus doze irmãos, vir morar na cidade. meu pai
construiu uma casa e nós viemos para Sarandi.
Houve algumas tentativas de ficar por ali mesmo, na região de Nova
Esperança, mas no embalo da época em que houve um intenso êxodo rural,
acabamos vindo para a cidade. Chegando na cidade comamos a ter
problemas.
Eu tinha, na época, de dezenove pra vinte anos, documentos cheirando
ainda a novos... Consegui arrumar emprego na empresa Germani, uma
fábrica de óleo de milho.
Minhas irmãs foram trabalhar de domésticas e toda aquela
dificuldade...! Meu pai, em um ano, entrou em depressão.
Camponês, homem da roça mesmo, até aquela época, era ele que
dominava a família, administrava a casa. Toda renda que entrava era ele
que administrava.
A partir do momento que nos empregamos, ele perdeu o controle, pois,
a gente levava pra casa aquilo que achava que devia. Primeiro s
comprávamos nossos objetos pessoais e o resto a gente levava pra casa.
Meu pai ficou dois anos na cidade. Saiu pra procurar serviço no
sítio e achou em Marialva. Ele veio, mas minhas irmãs ficaram trabalhando
de empregadas domésticas e eu fiquei por um período ainda, porque estava
empregado na empresa.
Por ter vindo pouco da roça o chefe da empresa gostava de mim,
porque tudo o que mandava fazer eu obedecia... Era caipira! Os da cidade
sabiam driblar o chefe.
Ficando sozinho e pagando pensão, comecei a sentir falta da família e
eles também sentindo falta de mim.
Fui pedir demissão, mas o chefe não queria que eu saísse, dizendo que
estava abrindo algumas vagas e que eu podia subir de posição, melhorar o
salário, mas eu estava decidido e vim para Marialva. Isto foi de 1983 para
1984.
Foi quando viemos trabalhar com o bicho-da-seda em Marialva. E foi
andando por ali, fazendo amizades, que conheci a Rosilda. Ela se apresentou
como catequista e estava sendo montado um Grupo de Jovens.
Eu e outros colegas combinamos: vamos lá! tem um monte de moças.
E fomos mais com o interesse nas moças. E assim comecei a participar do
Grupo de Jovens.
Eu na verdade tinha alguma relação com religião, apesar de ser
mais no sentido de superstição, de crendices populares. Crenças naquele Deus
opressor, crenças em lobisomem... Eu já temia a Deus.
Vendo a dificuldade para se organizar aquele Grupo de Jovens,
comecei a contribuir, a dar uma força, no sentido de ajudar. O que
aconteceu, pra resumir a história, dois anos depois eu estava casado. Fui
pra ‘azarar’ a catequista e ela é que me catou”.
Pedrinho e Rosilda, depois de casados, passaram a participar da Igreja em
outro nível. Participaram de Cursilho e da Comissão Pastoral da Terra. A influência
da CPT na vida do casal será tratada mais adiante, quando se feita uma
abordagem sobre a Igreja como determinante do ingresso no MST.
Pedrinho continua:
“No período em que fui trabalhar com a uva, ainda em Mandaguaçu,
me afastei um pouco da Comissão Pastoral da Terra. Fiquei uns três anos
afastado. Mas, quando voltei para Marialva, um dia estava colhendo uvas e
apareceu o padre Zenildo Mediato, que é um dos fundadores da CPT aqui na
região que vai de Apucarana a Maringá.
Admiro muito ele pela capacidade e coragem que ele tem e que outros
padres não têm.
Ele chegou ali de carro já nos convocando para um Encontro das
Comunidades Eclesiais de Base que ia acontecer em Londrina. Foi um
Encontro que reuniu o Paraná inteiro. Estavam presentes todos os
Movimentos Sociais, inclusive o MST e nós dois, eu e Rosilda, fomos para o
Encontro e gostamos. Dali por diante não escapamos mais. Voltamos a
participar”.
3.5 Rosilda Nogueira Carvalho
Rosilda, esposa de Pedrinho, desde muito jovem é atuante dentro da Igreja
Católica e, juntamente com seu marido, passou pelo processo de doutrinação dentro
das orientações da Teologia da Libertação que, segundo eles, representou uma
evolução na forma de interpretar as Escrituras Sagradas.
Uma interpretação que apela para um compromisso com o coletivo,
contrapondo-se à preocupação essencialmente individualista de “salvação da
própria alma”.
No município de Marialva, atuava, inicialmente, como catequista e, mais
tarde, passou a participar de outros serviços e pastorais da Igreja.
Atuante no MST, Rosilda havia retornado recentemente de Curitiba, onde
havia participado da COP8- Conferência das Partes, porém restringiu-se a falar de
sua vida e de sua participação no MST.
O depoimento de Rosilda:
“Sinto-me em casa dentro do MST. Nasci na Bahia e vim pra Marialva
com uns quatro ou cinco anos.
Eu e meus irmãos crescemos ali em Marialva e ali fiquei até me casar,
com meus 23 anos.
Como o Pedro disse, eu era catequista. Catequizava adultos, jovens e
crianças e o Pedro entrou para o grupo de jovens para animar [o animador é
um elemento bastante comum nas reuniões de grupos] e ele me ajudou muito.
A gente cantava na missa e participava bastante da Igreja.
nos casamos, quando eu tinha vinte e três anos, e logo tivemos o
Fernando, e continuamos no mesmo tio onde eu cresci, perto da casa da
minha mãe. Depois fomos pra Mandaguaçu, vivemos uns tempos lá,
trabalhando com o bicho-da-seda, na lavoura do senhor José Pedro, e depois
voltamos para Marialva e fomos trabalhar com a uva. Eu também trabalho
na terra, graças a Deus”.
3.6 Odete Rosilei Kliemaun
Quando foi realizada a entrevista com Odete, havia uma certa curiosidade por
parte de algumas lideranças em saber como seria o seu comportamento, uma vez
que ela era uma coordenadora do setor de saúde e estava uma tanto afastada das
atividades de coordenação, restringindo-se a desenvolver somente sua função de
agente de saúde, dentro do Assentamento, para o que é contratada pela Prefeitura
do município de Arapongas.
Acreditavam que ela faria muitas críticas à política do Assentamento e que
estava em dissonância com as propostas e projetos do mesmo o que acabou por
não se confirmar.
Odete, no momento da entrevista contava com 29 anos. É casada e tem cinco
filhos, três nascidos no Paraguai e dois nascidos no Brasil.
Nasceram, no Paraguai, Gisleide Terezita, que havia completado doze
anos, Gisele Luzia, onze anos, Jeison André, oito anos, e, no Brasil, nasceram Luan
Carlos que estava com seis anos e Alexandre Miguel que contava com três meses
de vida.
Quando Odete foi procurada para a entrevista, estava amamentando
Alexandre no peito e foi necessário aguardar por uns minutos para que ela
terminasse sua atividade materna.
Seus filhos, de muito boa aparência, como os filhos de Pedro, o pareciam
filhos de camponeses. Passaram mais a impressão de estar desfrutando de uma
chácara de lazer.
Odete atendeu na varanda, mas foi possível perceber que sua casa era
bastante limpa e organizada. A seguir, seu depoimento:
“Nasci no Paraná, na cidade de Marechal Cândido Rondon, e fui para
o Paraguai com três meses de idade, onde estudei, cresci e me casei. Meu
marido também é brasileiro de Santa Catarina.
Depois de quatro anos de casados, entramos numa crise ria: a soja
começou a baixar de preço e a gente vivia da roça, trabalhando a meia na
propriedade do meu cunhado. A propriedade do meu cunhado ficava na
região de Laranjal, lá no Paraguai.
Meu marido tinha dois caminhões, tinha carro, tinha motocicleta,
tinha terreno numa cidade pertinho. A gente estava estabilizado lá, mas daí
a soja começou a cair e ele ´fez rolo´ [troca] nos dois caminhões e no carro,
com um caminhão grande; o caminhão começou a quebrar, o preço da soja
não reagia e a gente não conseguiu dar a volta por cima. Temos uma casa lá
até hoje ainda, que está pra vender.
viemos pra São Miguel do Iguaçu, ingressar no MST, em 03 de julho
de 1998. A propaganda por Rádio pirata era grande. Fiquei no
7
2
Acampamento de Santa Rosa do Cuí, em São Miguel do Iguaçu, a30 de
Setembro daquele mesmo ano. Daí a gente se integrou de vez no Movimento”.
De lá voltei para a
casa da minha mãe, no Paraguai, com as crianças,
e meu marido foi para uma ocupação em Terra Rica, na região noroeste.
Fiquei até dezembro na casa de minha mãe e fui com ele para o
Acampamento. Foi assim: Eu estava me preparando para ir para o
Acampamento, onde ele estava. estava de malas prontas e daí ele chegou
um dia antes para me buscar.
Chegamos em Terra Rica no dia seis de janeiro. tinha cento e dez
famílias. Como estava muito quieto
19
, eu disse pro meu marido: vamos sair
daqui porque aqui não vai dar. Então viemos para no dia sete de março
de 1999.
19 O muito quieto de Odete foi no sentido de: sem ação ou expectativas.
4 O ingresso no MST e a influência da Igreja
De qualquer forma que se interpretar a Bíblia, haverá sempre uma ideologia
subjacente mediando sua interpretação. Enquanto um entende a libertação como
uma luta contra a escravidão do pecado, outro entende a libertação como uma
forma de arrebentar os grilhões da escravidão imposta pelas relações de produção e
possibilitar a emancipação do ser humano enquanto cidadão.
Nem sempre, entretanto, o fiel se radicaliza em uma ou outra interpretação,
transitando em suas reflexões de um extremo a outro, em busca de uma conclusão
pessoal, muitas vezes formando uma verdadeira confusão mental. Lutar contra o
meu pecado ou lutar contra o pecado do mundo?
20
É como se existisse um Deus diferente para cada pessoa, pois, cada um
concebe Deus à sua forma, a partir dos seus referenciais de vida e da sua
capacidade de compreensão.
No entanto, os teólogos procuram dar a Deus uma forma e um conteúdo
genérico, passível de ser compreendido pelos demais e, com base em sua
concepção teológica, procuram via de regra orientar os fiéis a partir daquele modelo
concebido por eles.
Assim, os fiéis, seguidores dessa ou daquela concepção de Deus ou de
Cristo, constroem sua identidade a partir de suas convicções que normalmente são
induzidas por outros e se apegam a elas, tornando-se muitas vezes delas
dependentes, como observam Marx e Engels no prefácio da obra A Ideologia Alemã:
Até agora, os homens sempre formaram idéias falsas sobre si mesmos,
sobre aquilo que são ou deveriam ser. Organizaram suas relações mútuas
em função das representações de Deus, do homem normal etc., que
aceitavam. Estes produtos do seu cérebro acabaram por os dominar; apesar
de criadores, inclinaram-se perante as suas próprias criações. (Marx e
Engels, 2005, p. 1).
20
Esta frase faz parte do jogral “Justiça no mundo” deste pesquisador, escrita em 1972. Expressa um momento
de mudança de concepção religiosa: de uma religiosidade contemplativa para uma que apela para o
compromisso com o social, como ocorreu com muitos jovens na época.
As Igrejas e líderes religiosos possuem e se valem de diferentes formas de
sensibilização e motivação das pessoas, e estas de modo geral são mais sensíveis a
essas abordagens em momentos em que estão vivenciando sentimentos de
insegurança, medo, incertezas, solidão, desespero.
As orientações para a busca da salvação pessoal, ou para a libertação
coletiva, não são promovidas de improviso, mas em geral derivam de conceitos
incorporados através de gerações e não se pode descartar que muitas vezes são
frutos de técnicas muito bem estudadas para surtir os efeitos desejados.
Na Igreja Católica, as contradições internas existentes, principalmente na
América Latina, têm sido motivo de muitas análises, por parte de observadores de
diversos segmentos religiosos e da intelectualidade e muito material produzido
sobre o assunto, que revela a presença de diversas tendências ideológicas que se
manifestam explicitamente em seu seio, como observa Machado:
Michael wy identificou quatro tendências na Igreja na América Latina: a
primeira integrista e ultra-reacionária, semifascista, identificada com grupos
como a TFP (Tradição, Família e Propriedade); a segunda, tradicionalista e
conservadora, hostil à Teologia da Libertação, ligada organicamente às
classes dominantes e à Cúria Romana, como a direção do CELAM
(Conferência dos Bispos da América Latina); a terceira, reformista e
modernista, tendo certa autonomia intelectual com relação a Roma, defende
os direitos dos homens e certas reivindicações dos pobres, ligada à
Conferência de Puebla; e a quarta, radicais próximos à Teologia da
Libertação, capazes de solidariedade ativa com os movimentos populares,
trabalhadores e camponeses, identificando-se a atuação de vários padres e
bispos, como Dom Pedro Casaldáglia e Dom Paulo Evaristo Arns, aqui no
Brasil. (Machado, 2002, p.19-20).
Dos seis sujeitos entrevistados nesta pesquisa, somente Odete e Regina não
sofreram influência da Igreja na sua doutrinação político-ideológica. Os demais
deixam clara a sua participação na Igreja e revelam sua transformação em termos
de concepção de fé.
Alencar Hermes, Renato, Pedrinho e Rosilda entraram no MST movidos não
apenas pelas necessidades de sobrevivência e segurança, mas principalmente por
inspiração ideológica, orientada pela Comissão Pastoral da Terra-CPT.
4.1 A Teologia da Libertação: perspectiva crítica da relação religião-realidade
Um traço característico de Alencar, Renato, Pedrinho e Rosilda é a identidade
construída a partir de um sistema de crenças, orientado pela CPT, que se
fundamenta em orientações de fé e razão.
É uma construída por uma mística cristã e marxista, que teve origem na
América Latina em 1965 com o teólogo peruano Gutiérrez e que foi propagada no
Brasil inicialmente por Frei Leonardo Boff e pelo teólogo protestante Rubem Alves,
sob o nome de Teologia da Libertação. É oportuno destacar que o teólogo
americano Cornell West tamm foi um defensor dessa vertente teológica.
A teologia da Libertação foi desenvolvida na América Latina
21
, que estava
vivendo um período de Regime Militar em vários pses, e sofria uma acentuada
concentração de renda que provocou aumento do vel de pobreza no continente.
Com a abertura promovida pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, realizado de 1962 a
1965,
o termo libertação foi cunhado a partir da realidade cultural, social,
econômica e política, a partir das décadas de 60/70 do último século. Os
teólogos deste período, católicos e protestantes, assumiram a libertação
como paradigma de todo fazer teológico. (Cabral, 2002, p. 2).
A essência dessa Teologia é que Deus se revela não apenas nas Escrituras
Sagradas, mas também na história contemporânea; que a Bíblia é um modelo
histórico de salvação e que a salvação também abrange a libertação da opressão
21
A Teologia da Libertação foi difundida em todos os países da América Latina, tendo surgido em quatro
Conferências Gerais do Episcopado Latino Americano: 1955, no Rio de Janeiro, 1968 em Medellín,
Colômbia, 1979, em Puebla, México, e em 1992 em Santo Domingo, República Dominicana. Se algum
político-religiosa e da injustiça social. O cristão deve exercitar o desapego aos bens
materiais e desenvolver o senso de partilha, vivendo em comum união com seu
próximo.
Embora pareça contraditório, a Teologia da Libertação, enquanto prega a
partilha e a comunhão entre as pessoas, defende que cada um tem o direito de
garantir seu meio de sobrevivência. O desapego aos bens materiais não significa a
privação deles, mas a libertação do apego excessivo, pois, a ambição de um por
excesso de bens acaba gerando a privação de muitos.
Outros clérigos, entre eles, Frei Beto, Dom Pedro Casaldaliga, Monsenhor
Arnaldo Beltrani, Dom Romeu Alberti, Dom Hélder Câmara, passaram a difundi-la
em suas comunidades e dioceses.
A Igreja Luterana também aderiu, em parte, a essa nova concepção teológica,
porém foi na Igreja Católica que ela teve maior expressão.
A principal forma de divulgação dessa teologia acontecia nas Comunidades
Eclesiais de Base-CEBs que, a partir de encontros diocesanos, em que eram
utilizadas técnicas de trabalho em grupo, preparavam os leigos para difundir uma
nova forma de interpretação das Escrituras Sagradas.
O depoimento de Alencar Hermes, a seguir, é ilustrativo disso.
“Eu era ministro da palavra e da Eucaristia e a paróquia fazia
preparações intensas para os ministros da Eucaristia. Realizava os encontros
em que eu participava com pessoas de diversos segmentos da sociedade, e
entre elas, representantes do MST e da Pastoral da Terra, com quem passei a
manter contato.
país da Arica Latina em que o foi difundida essa vertente teológica, não é do conhecimento deste
pesquisador.
em Pérola do Oeste ainda havia alguns focos da Teologia da
Libertação e os trabalhos com as comunidades foram me despertando a
necessidade de fazer alguma coisa para transformação da sociedade, unindo
o útil ao agradável.
Eu sou muito crítico em relação à Igreja Católica. Sou católico atuante,
mas sou muito crítico.
Veja o que está acontecendo na África. Sessenta por cento da
população da África está contaminada pela AIDS e a Igreja proíbe o uso da
camisinha. A meu ver ela será culpada pelo maior genocídio da humanidade,
se é que a gente pode usar essa expressão... Mas nas nossas favelas a
juventude está se matando".
Alencar Hermes faz questão de repetir: “Sou católico atuante, mas sou
muito crítico... Não da Igreja, mas a Igreja é a maior concentração de
rendas do mundo. A Igreja Católica tem maior riqueza do mundo com um
cristianismo, entre aspas, que faria Jesus Cristo passar vergonha. Uma Igreja
que não faz nada e desenvolve um tipo como Marcelo Rossi que é outra
droga social, que faz a mesma coisa que as Igrejas Evangélicas fazem. Que
temos que nos conformar com a pobreza, que só os pobres vão para o céu”.
22
A atuação de padre Marcelo Rossi se enquadra na linha da Renovação
Carismática Católica, que é uma forma de expressão religiosa mais contemplativa e
de exaltação, semelhante aos movimentos neopentencostais, em que os fiéis
22
Essa é a interpretação que Alencar Hermes faz do Padre Marcelo Rossi. Padre Marcelo Rossi exerce um
apostolado na linha da Renovação Católica Carismática, atuando como um show man, mobilizando
multidões e através da Televisão. Procura tocar a sensibilidade dos católicos, motivando uma relação íntima
com Jesus Cristo. A Renovação Católica Carismática é bastante questionada pelos católicos que buscam a
construção de uma nova sociedade inspirada nas lutas contra a exclusão social, gerada pelo modelo vigente.
buscam estabelecer, através dos cantos e louvores, contato com o Espírito Santo e
gozarem do estado de graça, vivendo numa comunhão íntima e pessoal com Cristo,
sem um compromisso maior com as causas sociais, a não ser em eventuais
campanhas de cunho assistencialista.
Na Renovação Carismática Católica, subjaz uma ideologia conservadora que
predomina na classe média urbana, como é observado por diversos estudiosos.
Fundamenta-se numa mudança interior baseada na piedade, na busca do cultivo de
virtudes que possam resgatar os valores da família, da vida profissional para, dessa
forma, melhorar a vida em sociedade, de acordo com seus cririos de moralidade.
Alencar Hermes continua: Cantar músicas, dar glórias e aleluias é o
inverso da Teologia da Libertação.
A Bíblia é clara quando diz que quem quiser ganhar a sua vida vai
perdê-la, e quem perder a sua vida pela causa do outro é que vai ganhar a
verdadeira vida, mas parece que o padre Marcelo Rossi nunca fez uma
análise dessa passagem da Bíblia...”.
Observe-se, no entanto, que Alencar Hermes não percebeu que caiu em
contradição quando questiona a pregação da Igreja pelo conformismo e ao mesmo
tempo defende o desprendimento em função do próximo. Da mesma forma, atribui
ao padre Marcelo e a Igrejas Evangélicas uma visão teológica oposta ao que
pregam, pois, a teologia da prosperidade, que predomina nas Igrejas Evangélicas,
prega justamente a conquista dos bens terrenos como sinal das bênçãos divinas,
assim como o intimismo místico do padre Marcelo não defende a pobreza como
cririo de salvação.
As considerações tecidas por Alencar Hermes refletem a situação conflitiva
que enfrenta a Igreja Católica e que afeta a convivência interna nas paróquias e
dioceses. Entre vários trabalhos que tratam desse assunto o artigo de Edênio Valle
registra que
o problema mais abordado é o da tensão existente entre as duas tendências
que lutam pela hegemonia na condução do processo de mudança global da
Igreja Católica. São estudos que contrapõem a corrente carismática às
CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) , às pastorais sociais e ao estilo
da Igreja que surgiu na fase áurea das teologias inspiradas na Libertação.
(Ceris, 1995 e Comblin, 1983, apud Valle, 2004, p. 2).
Na história de Renato também aparecem as Comunidades Eclesiais de Base,
embora, pelo fato de ele ter sido seminarista, pode-se dizer que seu contato com a
Igreja teve uma outra dimensão e um outro nível de envolvimento, o que o levou a
ter uma outra forma de comprometimento com as ações pastorais.
Diz Renato: “Quem teve uma influência muito marcante na minha vida
foi um padre italiano, padre Arturo Paoli, que peregrinou por países da
América Latina. Morou na Venezuela, na Argentina e no Brasil, vindo para
o Rio Grande do Sul e mais tarde para Foz do Iguaçu.
Em 1987 fui morar em Foz do Iguaçu e ele tinha uma proposta de
formar uma comunidade mista para morar no meio do povo das favelas e
desenvolver trabalhos naquelas comunidades. Cheguei a me candidatar a
vereador, mas nem fiz campanha pra mim. Entrei mais para colaborar com
os companheiros e o partido.
Meu trabalho, quando morei na favela, foi dentro das Comunidades
Eclesiais de Base-CEBs, fazendo estudos da Bíblia dentro daquela proposta de
libertação.
Como militava na Pastoral da Juventude, minha atividade era mais
em nível de Diocese. Era uma comunidade de onde eu buscava forças para
fazer um trabalho mais concreto”.
É indiscutível que as técnicas de atividades em grupo, o conteúdo dos
materiais de estudos fornecidos pelos difusores da Teologia da Libertação, de raízes
latino-americanas, promoveram grandes mudanças na vida dos jovens que tinham
alguma participação nas atividades da Igreja.
Convidados a se comprometerem com as causas sociais e a escreverem uma
página na história da libertação do povo oprimido pelas injustiças, geradas pelo
modelo capitalista, saiam do imobilismo contemplativo para se tornarem agentes de
transformação.
Era forjado um cristão que se transmutava de homem massa” para se tornar
fermento na massa, como por muitas vezes afirmava monsenhor Arnaldo Beltrani
em suas palestras e homilias.
Essa “conversão” se fazia, o dentro dos muros dos seminários, mas entre
os jovens leigos que buscavam sua auto-afirmação pela afirmação na fé. Pedrinho é
um exemplo desses jovens que passaram por esse processo de transformação,
redescobrindo a fé a partir de uma nova forma de interpretar as Escrituras Sagradas
e a figura de Cristo.
Segundo Pedrinho, “Havia na comunidade de Marialva um professor de
grau, chamado Devanir Rossio e estava se formando na época a Pastoral
Rural. Isto foi por volta de 1984 e 1985. Como ele começou a participar da
Pastoral Rural e vendo a gente trabalhando no Grupo de Jovens, nos
procurou, nos convidou a participar da Pastoral e começou a nos levar para
os Encontros. Encontros em Maringá, outras cidades e até em Curitiba.
Fomos a vários encontros.
Até então eu conhecia uma religião baseada em superstições. Quando
conheci Rosilda passei a conhecer a Igreja Católica do Padre Zezinho, e logo
em seguida me foi apresentada a tal da Igreja Católica Progressista, baseada
na Teologia da Libertação.
Aquilo foi uma revolução para mim, porque aquele Deus, em que eu
acreditava e que temia, passou a ter outra característica.
O Deus que durante a tempestade falou: ‘seu bando de covardes, até
quando Eu vou ter que fazer as coisas pra vocês?
Na multiplicação dos es, Ele disse: ‘vocês mesmos podem dar comida
para esse povo. ’”.
Sem dúvida, a Teologia da Libertação tem um conteúdo mais racional na
interpretação das Escrituras Sagradas. Afirma, por exemplo, que, em ambos
episódios da multiplicação dos pães, Cristo, na verdade, não operou nenhuma
mágica, mas simplesmente induziu os que o seguiam a partilhar o que tinham, o que
possibilitou que todos ficassem saciados.
O senso de partilha é muito enfatizado pela Teologia da Libertação e o
comportamento dos primeiros cristãos que repartiam tudo entre si é o paradigma em
que se apóiam, pois, na linha da prática de Jesus, o que caracterizou as primeiras
comunidades cristãs foi justamente a socialização dos bens”. (Frei Betto, 1985, p. 4).
E Pedrinho continua: “Foi apresentado a mim um Deus que me chamava
para a ação, para deixar de ter medo, a deixar de ser bonzinho, de ter medo
de pecar e agir. E me identifiquei muito com esse Deus, desde 1986”.
Fica evidenciado que Pedrinho assimila uma nova concepção da relação do
homem com Deus que não está preocupado com o pecado de cada um, mas que
chama ao compromisso de lutar contra o pecado social, a partir da orientação da
Teologia da Libertação de ver, julgar e agir.
E Pedrinho é o único que reconhece e destaca a participação da Igreja
Luterana e sua influência no MST, como poderá ser observado a seguir.
Embora seja a Igreja Luterana a que se faz mais presente nas questões da
terra, é importante destacar que outras Igrejas Evangélicas, como a Anglicana e a
Metodista, por exemplo, tamm se debruçam sobre as questões sociais, sobre os
problemas estruturais geradores das diversas formas de exclusão e, a partir de uma
concepção mais imanente da essência divina, proporcionam orientações para a
libertação do homem nas diferentes expressões de sua vida.
Segundo Pedrinho, “A igreja Luterana também se envolve com o MST.
Não se envolve tanto como a Igreja Católica, mas desde a CPT e em vários
encontros que eu ia, sempre havia pastores da Igreja Luterana.
Não sei como está a participação da Igreja Luterana, atualmente,
porque a partir do momento que fomos assentados e a tarefa ficou muito
pesada para nós e eu acabei me afastando da CPT.
Ainda pouco eu estava lendo um folhetim sobre a Romaria da
Terra que vai ser realizada em Tamarana, Paraná, mas eu não tenho
podido mais participar, porém até o ano de 2000, quando participava mais
assiduamente, sempre havia pastores da Igreja Luterana. Dois ou três
pastores ajudando a coordenar, a dar palestras. Tinha até um pastor que eu
gostava muito dele, o pastor Fux.
Para mim foi fundamental muitas orientações que esses pastores
passavam pra gente. A participação deles sempre foi muito importante. É
importante saber que não a Igreja Católica apóia o Movimento, mas que
outras Igrejas também se envolvem. Eu sempre ouvia falar de outras Igrejas
Evangélicas que apoiavam o Movimento, mas que eu tive contato mesmo foi
com pessoas da Igreja Luterana, que se envolviam pessoalmente e estiveram
presentes inclusive nos primeiros momentos da organização do MST, na
região de Cascavel.
O MST é filho da Igreja Católica, mas com a participação da Igreja
Luterana, que foi fundamental. Em todos os eventos importantes do MST, é
convidado esse pessoal que fez parte da história do Movimento, desde 1984,
na região de Cascavel, pertencentes à Igreja Luterana. Até o momento que
acompanhei mais de perto os eventos do MST, presenciei a participação de
membros dessa Igreja”.
Referindo-se à participação de sua esposa no Movimento, bem como, ainda,
à relação Igreja-MST, Pedrinho observa:
“Algumas vezes eu levava Rosilda para os encontros. O Fernando
tinha uns três ou quatro meses quando o levamos para o primeiro Encontro,
de umas três mil pessoas e ficaram abismados de ver a gente levando um
bebezinho para o Encontro...”.
4.2 A Teologia da Libertação: divergências e reações
A Doutrina Social da Igreja, inaugurada pelo papa Leão XIII, com a Encíclica
Rerum Novarum, editada em maio de 1891, e demais Encíclicas como a
Quadragésimo Ano, Mater et Magistra e outras, a despeito de suas orientações e
clamores por justiça social, respeito à dignidade humana e direito de cada um
conquistar seu lugar ao sol, mantinha uma postura conservadora em relão à
Teologia da Libertação.
A Encíclica de Paulo VI, Populorum Progressio, publicada em março de 1967,
suscitou grande debate sobre as questões sociais da época, porém ainda dentro dos
princípios da Doutrina Social da Igreja; entretanto, começou a abrir espaços para a
Teologia da Libertação que passou a denunciar, com mais clareza, as causas
geradoras das desigualdades entre as classes sociais.
Era comum serem levados a reflexão temas das Escrituras Sagradas
juntamente com trechos das obras de Karl Marx. O Vaticano esteve aberto, por pelo
menos duas décadas, a essa vertente teológica, chegando a declarar sua opção
preferencial pelos pobres na III Conferência Episcopal Latino-americana realizada
em Puebla, no México, em 1979, porém, no começo dos anos 80, o Papa João
Paulo II apoiou-se no Cardeal Ratzinger, atual papa Bento XVI, para frear o que
considerava um movimento perigoso de inspiração marxista.
Entretanto, mesmo naquele período, de relativa abertura, uma boa parte do
clero continuou mantendo uma postura mais conservadora, mas não demorou para
que houvesse uma radicalização e antagonismo entre os dois segmentos clericais,
até porque o segmento da Teologia da Libertação dava mais espaço e valor para o
leigo, reduzindo a autoridade e o poder do clérigo.
Pedrinho fala sobre a dificuldade de conciliar sua atuação na Igreja e no
Movimento, a partir dos princípios que defendia:
Em Marialva havia uma dificuldade de se atuar no Movimento,
porque na região não havia conflitos, nem ocupações de latifúndios, pelo fato
de ter poucos latifúndios. (as terras da região, na maioria, são legalizadas e
produtivas, cumprindo sua função social).
Passamos (Pedrinho e Rosilda) a participar ativamente e defender o
MST, os sem terra, coordenar a comunidade onde morávamos, grupos de
famílias por termos feito o Cursilho de número 104 da Diocese de Maringá.
Tínhamos, como já disse, uma certa influência na Igreja, mas o fato de
defendermos a Reforma Agrária e os sem terra, criava um atrito um tanto
rio dentro da comunidade.”
O Movimento de Cursilhos surgiu na Espanha nas décadas de 1930 e 1940,
com o objetivo de conquistar o mundo para Cristo, sendo que no Brasil foi
introduzido em 1962.
Uma análise relacional dos Cursilhos com a Renovação Carismática Católica
é feita por Edênio Valle (2004, p. 3) que fala sobre a participação de um grupo de
universitários católicos dos Estados Unidos, entre os quais havia cursilhistas, que
após o Concílio Vaticano II, passaram a buscar alternativas de recuperação da fé,
encontrando subsídios no pentecostalismo e no catolicismo norte-americanos.
O autor ainda afirma que “o Cursilho introduziu na Igreja Católica o uso de
técnicas fortes que mexem com o emocional do grupo e desestabilizam os arranjos
psicorreligiosos das pessoas”. (Valle, 2004, p. 3), que de certa forma consiste em
quebrar paradigmas cristalizados e fornecer novos paradigmas de relação do
homem com Deus.
Os Cursilhos de Cristandade adotam a cnica de imersão, em que cada
participante é conduzido a se desligar de todas as preocupações e compromissos do
dia-a-dia e mergulhar com exclusividade nas atividades do encontro que,
envolvendo e apelando para as emoções, acabam produzindo uma forma de
compenetração, mas que consegue também provocar a alienação.
O cursilhista de modo geral sente-se uma pessoa escolhida e privilegiada aos
olhos de Deus, dentro da Igreja e na própria sociedade, a ponto dos primeiros
Cursilhos serem destinados a uma classe mais elitizada. mais tarde a Igreja
passou a disponibilizar vagas em Cursilhos para católicos mais humildes e de menos
posse econômica.
O fato de Pedrinho e Rosilda terem feito o Cursilho pode a prinpio parecer
contraditório, uma vez que a ideologia subjacente nos Cursilhos diverge da ideologia
da Teologia da Libertação. A realidade, no entanto, é que, apesar de sua natureza
elitista e até potencialmente alienante, os Cursilhos permitiram uma maior
aproximação dos leigos com o clero, o que possibilitou, no caso de Rosilda e
Pedrinho, um aprofundamento nas questões religiosas e uma evolução para a nova
concepção teológica, na linha da libertação. E as falas, a seguir, de Rosilda e de
Pedrinho são indicativos dessa contradição, mas, ao mesmo tempo, do o abalo
dos valores de resistência pregados pela Teologia da Libertação.
Rosilda, com uma atuação limitada, num momento da sua vida em que seus
filhos eram crianças que precisavam muito de sua atenção de mãe, destaca a
preocupação com um trabalho que não implica necessariamente significativo
envolvimento político:“Sempre estivemos ligados à Igreja, como dirigentes de
Comunidade de Base, que são grupos de reflexão. Depois fizemos o Cursilho e
ajudávamos nos grupos de noivos, nos cursos de preparação para o
casamento.
nasceu o Lucas e a gente continuou em Marialva. O Lucas tinha
cinco anos quando viemos para cá. Eu ainda carregava ele no colo.
A gente deixou uma etapa muito grande pra trás, do tipo: festas,
aniversários... Meus meninos sempre iam a festas de aniversários de
parentes, avôs..., festas de Natal. Aqui também temos, mas diferente do que
era lá”.
Por outro lado, Pedrinho revela um indiscutível envolvimento com valores
sócio-políticos. Diz ele: ”Nessa época eu levei o apelido de Rainha. Mas
graças a Deus os cursos que eu fazia me alimentavam, me davam todo o gás
necessário para voltar para a comunidade e ir insistindo...
Às vezes debatia até com vereadores e era motivo de chacotas, mas eu
não desanimava porque estava bem nutrido pelos conteúdos da CPT.
Mesmo não tendo participado de nenhum acampamento, acabei
percebendo que longe dele é mais amargo. No acampamento, apesar das
dificuldades o grupo está junto.
E lá, onde eu morava, eu era praticamente sozinho dentro de uma
comunidade, defendendo uma causa. Todas as críticas vinham pra cima de
mim.
A Teologia da Libertação quase gerou um cisma dentro da Igreja Católica,
levando muitos clérigos que adotaram essa vertente a abandonarem o ministério
sacerdotal, como o próprio Frei Leonardo Boff, a quem o Vaticano impôs o silêncio
obsequioso
23
, restando alguns remanescentes dentro do clero que atuam
discretamente até os dias atuais, tendo que enfrentar, muitas vezes, oposições
ferrenhas de clérigos e leigos conservadores.
Leonardo Boff é catarinense, descendente de italianos, nascido em 14 de
dezembro de 1938, estudou Filosofia em Curitiba-PR, Teologia em Petrópolis-RJ e
doutorou-se em Teologia e Filosofia na Universidade de Munique na Alemanha. É
doutor honoris causa em Política pela Universidade de Turim, na Itália e em Teologia
pela Universidade de Lund, na Suécia.
23
Silêncio obsequioso é uma punição imposta pela Santa Sé, usada para proibir religiosos de falar ou escrever
sobre um determinado assunto. Em termos mais simples significa: “fique quieto” ou “cale a boca”.
Em razão de sua luta em prol dos direitos humanos, foi agraciado com vários
prêmios no Brasil e no exterior, entre eles com o prêmio nobel alternativo em
Estocolmo (Right Livelihood Award). Em 1959 tornou-se franciscano e em 1984 foi
submetido a um processo pela Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, ex
Santo Ofício no Vaticano, julgado na cadeira em foi o julgamento de Galileu Galilei.
Em 1985 foi condenado a um ano de “silêncio obsequioso” e deposto de todas as
suas funções editoriais e de magisrio no campo religioso.
Em 1992, sendo novamente ameaçado pelas autoridades de Roma,
abandonou suas funções sacerdotais se auto-promovendo ao estado leigo, para
continuar sua luta pela causa dos oprimidos. Em 1993 tornou-se professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor de mais de 60 livros nas
áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística e a maioria da
suas obras é traduzida nos principais idiomas modernos.
24
Os que sustentam os princípios da Teologia da Libertação, atualmente, são
na maioria os leigos, que durante as cadas de 70 e 80 foram doutrinados dentro
das Comunidades Eclesiais de Base e nos Encontros diocesanos de algumas ações
pastorais.
Em contraposição à Teologia da Libertação surgiu a Teologia da
Prosperidade, postulada por segmentos de igrejas evangélicas.
A Teologia da Prosperidade e a Renovação Carismática Católica começaram
a surgir nos Estados Unidos no início dos anos 70 e logo foram exportadas para a
América Latina.
A Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977, pelo bispo Edir
Macedo, bem como a Igreja Internacional da Graça de Deus, fundada em 1980, pelo
24
Fonte: http://www.leonardoboff.com/# acessado em 21/08/2007.
missionário R.R.Soares, são expressões da Teologia da Prosperidade, considerada
oposta à Teologia da Libertação.
A Renovação Carismática Católica foi idealizada durante o II Concílio do
Vaticano, realizado de 1962 a 1965 e, de acordo com algumas análises feitas por
teólogos e por estudiosos, foi desenvolvida pelos americanos como uma arma contra
a expansão ideológica da Teologia da Libertação, dentro da própria Igreja Católica.
A Renovação Carismática Católica e outras da mesma linha dentro da Igreja
Católica, as Igrejas Protestantes Neopentencostais e as que pregam a Teologia da
Prosperidade, são consideradas, por seguidores da Teologia da Libertação que
lutam contra o “pecado social”, como alienadas e alienantes, uma vez que, segundo
os referidos seguidores, reafirmam o individualismo, enquanto formalmente
combatem o pecado individual e a salvação da própria alma.
José Maria Baamonde, professor da Facultad de Humanidades y Ciência de
la Comunicación de la Universidad San Pablo-CEU, em Madrid, foi presidente e
diretor da Fundação SPES (primeira instituição Argentina dedicada aos estudos das
seitas e movimentos religiosos), fala de Documentos como Santa I e Santa
II
25
, que fazem referência ao papel estratégico das Igrejas e expressam a
preocupação em especial com a Teologia da Libertação:
[...] tais documentos não falam da Igreja Católica em geral, mas de certos
setores da mesma. Concretamente aos mais radicalizados dentro da
Teologia da Libertação, e são precisamente estes setores dos quais mais
têm esgrimido o argumento de uma ‘suposta penetração imperialista’ na
América Latina. Sua objetividade a respeito é discutível, em razão de que
esta corrente encontra-se também presa a uma ideologia. (Baamonde,
2002)
De acordo com informações do Renato Reinehr, o MST possui esses e outros
documentos em seu acervo, para análises e questionamentos das estratégias
25
Os Documentos Santa Fé I e Santa Fé II foram elaborados pela CIA na cidade de Santa Fé, no Novo México,
USA, inspirados pelo temor da expansão dos movimentos de esquerda, na América Latina, e como forma de
assegurar a hegemonia norte americana no continente, bem como a implantação da política neoliberal.
elaboradas extra-oficialmente por instituições norte-americanas, com o objetivo de
dominação do povo latino-americano.
O bispo da Diocese Anglicana do Recife, Dom Robinson Cavalcanti, numa
análise sobre as relações da Igreja e a situação política do Brasil, aborda a questão
do pentecostalismo que chegou com uma ascese extramundana e uma escatologia
pessimista. Segundo ele,
com o passar do tempo, permaneceu apenas o conceito de pecado
individual e de uma ética individual da santidade negativa (não fazer o mal) -
e não da santidade positiva (fazer o bem) - legalista, moralista, sem conceito
de pecado social e pecado estrutural, e ética social. A Teologia da
Libertação, racionalista, enfatizaria esses últimos às custas dos primeiros, e,
por fim, a teologia liberal pós-moderna, relativista e amoral, negaria ambos.
A ‘batalha espiritual’ reforçaria a alienação e a teologia da prosperidade
seria a face religiosa do neoliberalismo capitalista. (Cavalcanti, 2006, p. 1)
Não deixa de ser um assunto delicado e complexo a questão das ideologias
subjacentes nas diversas expressões religiosas, pois sempre o risco de cair num
reducionismo comprometedor, porém é difícil negar o papel das religiões na
composição do sistema de crenças que dá sustentação ao poder em todas as
épocas da história.
Pode-se dizer que, atualmente, a vertente da Teologia da Libertação não tem
mais condições de disputar a hegemonia na condução do processo de influência
global da Igreja Católica, em virtude da reação do Vaticano, que assumiu uma
postura mais conservadora e reprimiu sua expansão, mas o ranço do conflito entre
as duas tendências ainda permanece.
4.3 A Comissão Pastoral da Terra – CPT e os resultados da relação entre
marxismo e religião
A Comissão Pastoral da Terra-CPT
26
, que surgiu em 1975, é, ainda hoje,
assentada nas bases da Teologia da Libertação que, a despeito de estar um tanto à
margem das orientações oficiais da Igreja Católica, é uma teologia muitas vezes
suportada em seu seio até mesmo como possível estratégia de assegurar, à Igreja,
sua preservação institucional, e estar presente em todos os segmentos sociais, para
garantir seu princípio de universalidade, de forma que é comum, mesmo nas
dioceses mais conservadoras, a presença de um ou mais padres defensores dessa
vertente teológica.
A interpretação do marxismo à luz do Evangelho, e de outros livros da
Escritura Sagrada, gerou um marxista com olhos no céu e um cristão com os olhos
na terra, mostrando um Cristo preocupado com a vida humana em sua plenitude.
Surge um Cristianismo que se preocupa com a salvação não apenas da alma, mas
do homem em sua totalidade, liberto da miséria material, das injustiças e da
iniqüidade e que não se constrange na exortação de que
... o marxismo e os marxistas não podem ignorar o novo papel do
Cristianismo como fermento de libertação das massas oprimidas da América
Latina. Contudo, para apreender esse potencial revolucionário do
Cristianismo, o marxismo deverá romper a camisa de força de sua ótica
objetivista e reconhecer o papel da subjetividade humana na história. (Frei
Betto, 1985, p. 16).
27
Como um retorno às origens do cristianismo, onde estão presentes a
preocupação com a partilha e com o bem estar coletivo, a Teologia da Libertação foi
difundida nas manifestações litúrgicas, nas músicas religiosas, de forma discreta e
na pastoral da terra, de forma mais direta e explícita.
26
A Comissão Pastoral da Terra-CPT, da Igreja Católica, criada em 1975 ... juntamente com as paróquias das
periferias das cidades e das comunidades rurais, passou a dar assistência aos camponeses durante o regime
militar” (Morisawa, 2001 p.105).
27
Frei Betto questiona a ótica objetivista do marxismo em razão da tendência economicista que o marxismo por
vezes assume e a um tipo de “metafísica do Estadonos regimes socialistas da época, mas não vê contradição
Marx, que por tantos anos foi condenado pela Igreja, agora é "perdoado" por
um segmento dela e passa a ser um dos seus grandes inspiradores, pelo conteúdo
humanístico de suas obras. A Teologia da Libertação entende que
marxistas e cristãos têm mais arquétipos em comum do que supõe a nossa
filosofia. Um deles é a utopia da felicidade humana no futuro histórico.
Esperança que se faz stica de inúmeros militantes que não temem o
sacrifício da própria vida. Marx chama esta plenitude de reino da liberdade
e, os cristãos, de reino de Deus. (Frei Betto, 1985, p. 21).
Com o processo de abertura da Igreja, após o Concílio Ecumênico Vaticano
II
28
, Frei Betto (1985, p.19) observa que “nos últimos vinte anos (referindo-se ao
período de 1965 a 1985), nos países do Terceiro Mundo, especialmente a América
Latina, o Cristianismo passa a revelar seu caráter libertador como expressão de
resistência e luta dos oprimidos.
A grande maioria dos novos cristãos marxistas que militam no MST, de modo
geral, traz consigo uma proposta de emancipação, ostentando a bandeira da
Reforma Agrária, mas com propostas muito mais amplas de construção de um novo
modelo econômico, especialmente pela mobilização e disseminão das suas idéias.
Esses militantes afirmam que se preocupam com os excluídos de todos os
guetos sociais, com a biodiversidade e o futuro do planeta, com a política econômica
global e nacional, com a educação, com a cultura, com direitos da mulher, enfim,
com o desenvolvimento do ser humano e da humanidade em todas as dimensões.
entre o papel determinante da subjetividade humana e o materialismo histórico, como ele próprio afirma
posteriormente.
28
O Concílio Ecumênico Vaticano II foi convocado pelo Papa João XXIII e realizado de 1962 a 1965.
5 Emancipação e sentimento de dignidade: consciência política e de direitos
de cidadania- a importância da educação
Ter uma vida compatível com a dignidade humana, em princípio, nos remete
à necessidade de possuir certo nível de conforto material, como casa, comida,
assistência médica, segurança, educação, roupas etc., dentro dos padrões que a
mídia sugere, porém nem sempre é necessária uma disponibilidade de coisas
materiais dentro desses padrões para que a pessoa humana se sinta incluída no
contexto social em que vive.
Os assentados de Dorcelina Folador, ouvidos nesta pesquisa, vivem, como
afirmou Alencar Hermes, no limite da existência
29
, porém expressando respeito por
si mesmos, tanto em palavras quanto em atitudes.
O que ficou muito claro nos depoimentos é que o cidadão excluído em todas
as formas de guetos, por exemplo, geográficos, institucionais, pode ter aspectos da
sua vida resgatada dentro do MST, onde lhe são atribuídas responsabilidades e ele
assume papéis, desenvolve ações e se afirma enquanto ser humano.
O impacto da modernidade, com todas suas contradições e seus efeitos
excludentes é, de certa forma, atenuado nos acampamentos e Assentamentos,
conforme observa José de Souza Martins (2000, p. 47):
Nos acampamentos, na fase da luta pela terra, acabam se ressocializando
por força do convívio e dos enfrentamentos conjuntos com estranhos. Há aí,
pois, um alargamento de horizontes de convivência. Nos Assentamentos, o
horizonte alargado pelo período de sociabilidade instável dos
acampamentos se enriquece com a abertura para o de fora, o recente. Mas,
ao mesmo tempo, retorna às estruturas fundamentais do familismo e da
vizinhança rurais. [...] Em decorrência, nos Assentamentos, a sociedade é
literalmente reinventada, abrindo-se para concepções mais largas de
sociabilidade e, ao mesmo tempo, fortalecendo as concepções ordenadoras
da vida social provenientes do familismo antigo.
No caso dos entrevistados, eles não se consideram reduzidos ao papel de
mais uma vítima da exclusão, condenados ao isolamento e à mercê do destino.
29
No limite da existência de uma vida digna, como deixam transparecer.
Agora eles pertencem a um grupo, fazem parte de um Movimento que orienta e
objetiva suas ações, oferecendo a eles uma meta a ser atingida, uma causa a ser
defendida, uma razão para viver. Enfim, eles o se sentem tão sozinhos como
antes, mas incluídos em um grupo com idéias semelhantes.
Alencar manifesta seu sentimento de sentir-se incluído entre os companheiros
de luta: ”Na verdade eu me sinto em casa em qualquer Assentamento do
Paraná ou do Brasil. A gente chega em um Assentamento e sente-se em casa.
Na cidade a gente sente um individualismo muito grande e tudo é
dividido em espaços. Aqui é o espaço da loja, ali é o espaço do mercado, lá é o
espaço de não sei o quê.
Quando eu chego num Assentamento eu sinto que é um território nosso.
Pra mim não faz diferença se eu estou aqui, ou se estou em Curitiba. Estando
no meio da luta é o que importa”.
De uma forma simples, Alencar Hermes expressa sua avaliação da sociedade
urbana que, enquanto cria a ilusão de aproximar as pessoas pela aglomeração
humana, na verdade distancia e isola o cidadão.
Manifesta a consciência de um novo conceito de territorialidade, constituído
pelas relações de afinidade e integração com os demais sujeitos que compõem
aquele segmento social e deixa evidenciado o que afirma Martins (2000, p.47)
quando se refere à “reinvenção da sociedade” pelos agentes do MST.
O sentido de inclusão dentro da comunidade e do Movimento pode ter pouca
importância para quem olha de fora, mas para eles é de grande significação.
A maneira com que se organizam em setores de atividade, nos quais não
existe a figura do chefe, mas do coordenador, acaba envolvendo toda a comunidade
e todos se sentem participantes das decisões e consequentemente incluídos.
Sabem que o Movimento tem objetivos maiores, além da conquista da terra e
da Reforma Agrária. Há um modelo de sociedade e de economia que, segundo eles,
precisa ser questionado, combatido e transformado, para se assegurar o futuro não
apenas dos camponeses, mas de toda a sociedade.
A preocupação com o desenvolvimento cultural e educacional dos integrantes
do MST é bastante evidenciada nos relatos.
Para eles o MST incentiva e motiva o aperfeiçoamento cultural e educacional
dos integrantes, com o objetivo de maior inclusão social de cada um [embora ainda
seja uma inclusão dentro dos paradigmas do modelo vigente] e maior
instrumentalização para a luta: a luta pela causa e pela sobrevivência dentro dos
Assentamentos e acampamentos.
Muito embora não se preocupem com o mesmo ritmo de aprendizado dos
moradores dos centros urbanos, que estão sob uma pressão maior do mercado
competitivo, elegem a educação como fator primordial, o só para seus filhos,
como para si próprios.
Consideram a “educação, em seu sentido mais amplo como elemento
mediador de acesso e de desenvolvimento das potencialidades humanas”. (Vaz,
2002, p. 106).
Vêem o MST como um gerador de oportunidades para os que se destacam
com bom aproveitamento escolar, o que não deixa de caracterizar uma forma de
competição, porém com objetivos pretensamente diversos da sociedade de
consumo. Pelo menos é o que deixam transparecer.
A educação representa, de acordo com os agentes entrevistados, a
possibilidade de melhor capacitação para um projeto de transformão da
sociedade, a partir do desenvolvimento do espírito de cooperação.
Adorno (1995, p.130) nas suas considerações, em relação à educação como
processo de emancipação, que seria para ele uma forma de impedir o retorno à
barbárie, se refere à presença de uma consciência “coisificada”, pelo mundo
administrado, fruto do modo de produção capitalista que é competitivo por
excelência.
A mudança das condições objetivas que compõem o cenário político,
econômico e social, que produzem a consciência coisificada, é limitada, de acordo
com Adorno e, por tal motivo, a educação emancipatória deveria se voltar para o
lado subjetivo, para produzir um indivíduo autônomo, preparado para o esrito de
cooperação.
A educação que, no entanto, de modo geral se pratica na sociedade,
reproduz, através de seus currículos e educadores, o modelo de sociedade
repressora e competitiva, de consciência “coisificada” e, segundo Adorno (1995, p.
172),
o que é peculiar no problema da emancipação, na medida em que esteja
efetivamente centrado no complexo pedagógico, é que mesmo na literatura
pedagógica não se encontre esta tomada de posição decisiva pela
educação para a emancipação, como seria de se pressupor. Mas no lugar
de emancipação, encontramos um conceito guarnecido nos termos de uma
ontologia existencial de autoridade, de compromisso, ou outras
abominações que sabotam o conceito de emancipação armando assim não
de modo implícito, mas explicitamente contra os pressupostos de uma
democracia.
Diante do poder da indústria cultural que reflete a irracionalidade objetiva da
sociedade capitalista tardia...” (Leo Maar in Adorno 1995, p. 21), o MST tem diante
de si um desafio que é o de, ao tempo em que busca a educação emancipatória
voltada para o espírito de cooperação, preparar os jovens e demais integrantes para
conviver com o conjunto da sociedade, enfrentando suas contradições e impondo a
elas resistências.
Por tal motivo, aos jovens mais dedicados ao estudo são oferecidas
oportunidades de se aperfeiçoarem em cursos técnicos, realizados em convênios
com as Universidades, tanto do Paraná como de outros Estados, e o Movimento
também proporciona bolsas de estudo até para Faculdades particulares, como
alguns casos existentes dentro do Assentamento.
Na realidade, o MST, segundo os agentes pesquisados, pensa na educação
como um todo e, nesse sentido, procura envolver seus integrantes em eventos
freqüentes, onde são discutidos temas atuais e feitas análises da conjuntura do
momento, como forma de atualizá-los no contexto político, econômico e social.
Além desses eventos como os encontros, congressos, reuniões, místicas etc.,
uma riqueza de material didático muito grande, para o estudo e atualização dos
que integram suas fileiras, de forma que estão sempre a par dos acontecimentos e
das principais ações do Movimento em todo país.
5.1 A consciência política e de direitos de cidadania
Ficou evidenciado, em conversas informais mantidas com os sujeitos
pesquisados, que a educação promovida, no contexto do MST, vai à busca da
formão de uma consciência crítica, objetivando orientar seus integrantes a não se
deixarem enganar pelas falsas ilusões que a mídia oferece para o mundo inteiro,
procurando, dessa forma, “orientar toda sua energia para que a educação seja uma
educação para a contradição e para a resistência” (Adorno, 1995, p. 183).
Até que ponto o Movimento tem conseguido isto é difícil de avaliar, no
entanto, pelo que se pode observar nos sujeitos mais envolvidos com a causa, é que
se faz um esforço nessa direção.
Alencar Hermes reconhece sua evolução nesse sentido, as ter ingressado
no MST e declara: Se tivesse que destacar alguma coisa que mais me marcou
nesses anos de luta e de trabalho, foi o salto de qualidade que eu dei, do que
eu era para o que eu sou. Compreendi que me tornei cidadão e passei a
entender o que é cidadania depois que comecei a entender como funciona a
sociedade.
A Organizão (MST) tem materiais que explica como funciona a
sociedade. Eu acho que todo brasileiro deveria saber como a sociedade
funciona. Cidadania passa por aí.
De que adianta eu querer dizer que sou cidadão se nem sei como as
coisas funcionam. Se não entendo o que é o Estado, se não tenho opinião,
posso até engrossar um movimento aqui, outro ali, mas sem saber o que estou
fazendo eu sou apenas mais um: viro massa”.
O senso crítico de Alencar, no entanto, não é direcionado apenas para as
esferas de organização superior. Ele não se intimida em questionar as pessoas que,
a seu ver, deveriam se comprometer mais com os projetos do MST.
“Eu questionei um político petista de Arapongas que no dia que
tivemos que ocupar o pedágio entre Arapongas e Rolândia, ele ficou de levar
um fogão para nós...
A gente precisava de um fogão pra cozinhar. A gente leva pra
cozinhar o que pode. Se por exemplo a gente vai pra Curitiba, para ficar
uma semana lá, a gente questiona: o que você ia comer se fosse ficar em casa?
Então vamos levar feijão com mandioca pra cozinhar onde a gente tiver que
ir.
Nós fomos para Arapongas para ocupar o pedágio, chegamos lá por
volta das dez horas, sem comer nada, e nada do vereador. Na verdade ele
nem era vereador. Parece que foi candidato até a Deputado. Tentei falar
com ele por telefone, por diversas vezes, e nada!
pelas cinco horas da tarde ele apareceu todo engravatado dizendo
que não tinha conseguido o fogão, que estava com dificuldades. Isto pra s
não interessa. Quer dizer que o nosso povo pode passar fome porque ele não
conseguiu o fogão? Ele assumiu aquilo como tarefa!
Essas são questões administrativas do Movimento que quem assume
tem que desenvolver, senão prejudica os outros.
ele se desculpou que não pode vir antes porque sua mulher tinha
tido filho quinze dias, que estava com dificuldades, que tinha trabalho
então eu o questionei... Ele tinha um compromisso! Dizer que tinha trabalho
não justifica... Fui uma vez na casa dele e nunca mais voltei lá.
Outro dia ele me convidou para almoçar e eu me recusei. A gente
estava em oito pessoas e ele disse que tinha lugar no almo para três e eu
pedi que outro companheiro fosse.
Se alguém chegar em minha casa em horário de trabalho, que a gente
desenvolve desde que amanhece o dia a pelas onze horas, e depois da
uma hora até o anoitecer, e não me achar em casa, é porque eu estou doente
ou atendendo alguém. A gente sempre tem o que fazer... A gente prioriza.
Nós somos vagabundos, por acaso?
100
A questão da mulher dele ter ganhado nem, o justifica. Ele mora
numa mansão com piscina e tudo, a gente até se perde no meio das árvores
da casa dele, que a gente tem que pedir informação pra sair.
Todos os dias, nossas mulheres da luta ganham neném debaixo das
barracas. Duas ou três por dia estão ganhando neném debaixo de barracas
de lona.
Havia mulher de dieta ali, passando dois dias debaixo da guarda do
pedágio. Então isso não justifica ele não ter levado o fogão pra gente!”.
Então Alencar se dirige ao pesquisador: “Essas pessoas, que têm
entendimento como o senhor, teriam que se colocar mais perante a nossa
luta. Eu não gosto de falar das dificuldades e não me acho inferior ao senhor,
porque tenho minha roupa rasgada e uso a camisa do Vasco que nem é meu
time do coração. Eu não me sinto inferior ao senhor. O mínimo necessário
para sobreviver para mim já está bom.
Para compreender realmente a dimensão do MST as pessoas deveriam
participar de um encontro. Participar uma semana de um encontro para
compreender um pouco mais da Organização. Cada assentado daqui está
coligado com o Brasil inteiro e, pela Via Campesina
30
, coligado com o mundo.
Eu, por exemplo, fiz o segundo grau pouco tempo e não acho que
perdi tempo na minha vida.
Quando fiz o Supletivo, depois de vir aqui para o Assentamento, tive
ótimo aproveitamento. Para mim o importante é que tenho conhecimento da
30
Movimento campesino presente em diversos países representa os rios Movimentos que lutam por direitos
do homem do campo.
101
realidade e sei como funciona a sociedade. o me sinto inferior a ninguém,
pois ninguém é melhor que eu”.
Ao que tudo indica o MST se preocupa em instrumentalizar seus integrantes
para uma análise da realidade, com o objetivo de arran-los do que Adorno chama
de “menoridade”, promovendo a “desbarbarização do campo” que ele considera “um
dos objetivos educacionais mais importantes”. (Adorno, 1995, p. 126).
Uma das práticas comuns nos Congressos e Encontros do MST é a
orientação para uma análise de conjuntura que, segundo os entrevistados, é feita
por pessoas de elevado grau de conhecimento sobre o assunto. Normalmente são
pessoas alinhadas com as propostas do Movimento, que atendem aos convites dos
organizadores.
A visão de conjuntura que é passada aos integrantes do Movimento, a partir
de palestras e dinâmicas de grupo, dá a eles informões que, em geral, a maioria
da população não possui.
A despeito da simplicidade de Alencar Hermes, percebe-se que ele tem idéias
relativamente claras das relações que a classe política mantém com as elites
econômicas, com as oligarquias da terra e a respeito dos aspectos mais gerais do
neoliberalismo, que transfere para o setor privado grande parte de suas
responsabilidades, quer no investimento em setores vitais e estratégicos da
economia, quer na prestação de serviços essenciais à sociedade, como educação,
segurança, saúde, seguridade etc.
Um Estado paquidérmico, burocratizado e fechado em si mesmo não se
concebe mais, porém os países do hemisfério sul adotaram a política do Estado
Mínimo, antes mesmo de atingirem o Estado do Bem-Estar-Social, como argumenta
Wanderley (1992, p. 151):
102
Ora, a tendência neoconservadora do Ocidente prega o desmantelamento
do Estado do Bem-Estar-Social e a desestatização das nossas economias.
Para os que lutam por uma democracia das maiorias, é preciso eliminar as
gorduras e ineficiências do Estado, mas assegurar as suas funções
imperativas em determinados setores e na condução do
desenvolvimento/planejamento social.
Para o mundo, hoje, sem as ameaças do Socialismo, só o que tem valor de
mercado é que conta. O mercado, que tem compromisso basicamente com o lucro,
dita as formas de viver, os valores a serem interiorizados, a forma de sentir, de se
vestir, de se divertir, de trabalhar, para a grande massa da população.
Tudo que é possível ser transformado em valor de mercado acaba adquirindo
uma avaliação positiva dentro da sociedade de massas. Os dons, os talentos, a
beleza as religiões etc., são transformados em mercadoria e materializados em
vantagens econômicas, quando aceitos pelo público.
Da mesma forma, recursos que a natureza disponibiliza gratuitamente para o
ser humano, como, por exemplo, a água, a terra, acabam caindo na malhas da
exploração capitalista e tornando-se inacessíveis à grande massa de excluídos.
Essa realidade não escapa da avaliação dos mais humildes integrantes do
Movimento, que, em conversas informais, manifestam essa compreensão, e, a
despeito das agruras que enfrentam para garantir a sobrevivência, alimentam o
sonho de uma sociedade justa e inclusiva, dentro do cenário da contraditória
modernidade do país.
Modernidade que, como afirma Martins (2000, p. 21), “é uma espécie de
mistificação desmistificadora das imensas possibilidades de transformação humana
e social que o capitalismo foi capaz de criar, mas não é capaz de realizar”.
O atrelamento do Estado brasileiro, nas diferentes esferas do poder, com as
elites econômicas, principalmente com as oligarquias rurais, é denunciado por
historiadores, sociólogos, cientistas políticos, enfim, por representantes de todos os
103
segmentos da intelectualidade do país, mas principalmente no Executivo o pacto é
mais expcito, como observa Martins (2000, p. 192): “O Executivo no Brasil, desde a
Revolução de 1930, pelo menos, reflete e expressa o pacto político entre o capital e
a propriedade da terra...” Martins, continuando suas reflexões observa que esse
pacto independe necessariamente da ideologia dos governantes: “E continuaria
sendo assim se o presidente da República fosse do Partido dos Trabalhadores ou de
qualquer outro partido de oposição ao governo atual”, referindo-se ao governo de
Fernando Henrique Cardoso.
A consciência disso não escapa à avaliação de Alencar Hermes que não se
ilude com a classe política. Alencar então faz a sua análise de conjuntura a partir das
informações que possui, mas que são suficientes para compreender as principais
causas determinantes da sua condição de vida.
Eis a sua análise:“A Sociedade Rural do Paraná é hoje uma das
instituições mais bem organizadas contra os avanços do nosso Movimento.
Os massacres de camponeses, feitos pelo governador Lupion, são
conhecidos até hoje. Massacrou camponeses pra ficar com terras pra família
dele aqui no norte do Paraná. Foi assim que conseguiram tudo o que eles têm
hoje...
Agora, é tudo organizado. A direita sabe se organizar para enfrentar
o MST. Temos relatório de um monte de deputados direitistas. Sabemos quem
vota a favor disso, quem vota a favor daquilo.
Numa análise de conjuntura, que um dos nossos colegas fez, ele
comentou que o único partido político inteligente
31
que nós temos no Brasil é
31
Alencar Hermes ao referir-se a partido inteligente leva em conta a postura ideológica do partido que se
assenta em bases teóricas bem elaboradas, com idéias claras do que pretende realizar e quais as suas
104
o PSDB, assim como os partidos de esquerda que lutam por uma ideologia em
busca de mudanças.
O de direita é o PSDB. O único partido que estuda e é inteligente. Eles
sabem o que estão fazendo. Quando o FHC, que é do PSDB, tomou o poder, fez
alianças com os países imperialistas como os Estados Unidos e outros países e
foi entregando para esses países imperialistas tudo o que eles queriam, fez
isto em nome do neoliberalismo, privatizando aquilo que era patrimônio do
povo brasileiro.
O PFL, por exemplo, é um partido antiquado. É um partido de
coronéis da bota suja que ainda querem ter escravos na fazenda. Não é
difícil identificar esses políticos que, se depender deles, voltamos à
escravidão. É uma extrema direita arcaica, atrasada. Não são inteligentes
porque não pensam num projeto maior. [Mas] políticos de direita inteligentes
pra nós não é bom.
O PMDB é aquela coisa morna que nunca vai sair disso. É um partido
de meio que por si só vai se acabando. E as esquerdas estão do outro lado. São
inteligentes também, nesse estudo de desenvolvimento contra toda essa força
de direita que o PSDB coordena, ditando o que fazer e como fazer, como essa
globalização que está aí”.
Alencar não dirige nenhuma crítica ao presidente Lula, muito embora ele
tenha dado continuidade ao projeto neoliberal de seus antecessores e, até o
conseqüências. Compara o PSDB, explicitamente neoliberal, com os partidos de esquerda que, embora de
ideologias opostas, também se fundamentam em teorias, reflexões e estratégias de ão, voltadas para as
metas que se pretende atingir.
105
presente, o tenha tomado nenhuma medida efetiva para a realiação da Reforma
Agrária.
Tendo como objetivo a formão de uma nova estrutura social, o MST é
caracterizado como um movimento proativo, quando se empenha em lutar por
mudanças na estrutura da sociedade; por outro lado luta pela inclusão dentro dos
paradigmas vigentes e não radicaliza a crítica ao governo com o qual se alinha
ideologicamente, como é o caso do governo atual, do presidente Lula, que até agora
tem se limitado a realizar políticas paliativas, sem dar passos decisivos em direção
da reforma agrária, que é a principal meta do Movimento.
Alencar Hermes tem consciência que o capitalismo invadiu o campo e alterou
a estrutura da propriedade agrícola brasileira, provocando sensíveis alterações no
cenário político do país, ou, em outras palavras, conforme Martins,
o capital transformou-se em proprietário de terra e inverteu o modelo teórico
e político clássico. Agora e aqui estamos diante de um modelo
antidemocrático de desenvolvimento capitalista, apoiado num pacto político,
gestado durante a ditadura militar, que casou numa figura única
latifundiários e capitalistas. (Martins, 1989. p. 15).
E Alencar continua:“Até uns cinco anos atrás não se falava em
agronegócios. Falava-se em revolução verde e não sei mais o que. Hoje se fala
em agronegócios, hidronegócios e até em grupos econômicos de outros países
que estão plantando florestas pra seqüestrar o gás carbônico e cobrar
Royalty pelo oxigênio que respiramos.
A gente costumava debater que quem tinha um apartamento, quem
tinha um mercado, um comércio, ou um outro meio de vida na sociedade,
não precisava de terra pra sobreviver e agora falam de agronegócios, para
justificar o avanço dos negócios na agricultura. O capitalismo no campo é
uma forma de desqualificar o agricultor de resistência.
106
Começou a se falar agora em hidronegócios. Não falar... Uma
garrafa d’água hoje custa um real. Custa mais que um litro de leite. E a gente
vai se acostumando com isto e daqui a poucos anos tudo isto se torna
natural. E vender água é um pecado!
Quando fomos analisando como a UDR se organiza para impedir que a
gente atinja as metas da Reforma Agrária, para que a prodão agrícola
tenha que entrar nas regras do capitalismo, fomos vendo como funciona esse
negócio de globalização e neoliberalismo, fomos perdendo a ingenuidade”.
Renato, que dos entrevistados é o que mais tempo milita no Movimento,
fazendo parte dele desde os primeiros momentos de sua organização, limitou-se a
dizer : “A maior parte da minha vida foi dentro do MST e conquista da
terra, representa uma forma de emancipação com dignidade. Há muito
tenho lutado pelos outros, dentro do Movimento, até que chegou o momento
que senti necessidade de ter o meu quinhão de terra, principalmente para
dar um pouco de segurança pra minha família.
Continuo militando, porém numa esfera menor, na medida do
possível.
Conversando com Regina, ela demonstra sentir-se alijada da militância, em
virtude dos seus compromissos de esposa e e, mas revela sua paixão pelo
Movimento. Sua personalidade e identidade foram, segundo ela, construídas dentro
do MST.
Ela incorporou as idéias e os ideais do Movimento que são muito presentes
em suas narrativas, o que o a inibe de apontar as falhas que ela identifica e as
dificuldades que enfrentam todos aqueles que se doam pela causa. Regina deixa
107
estampada sua emão ao falar sobre o MST como se nele ela tivesse renascido, a
despeito de ter ingressado no Movimento ainda na pré-adolescência.
Regina diz o que o Movimento representa para ela: O objetivo do
Movimento é esse: inserir na sociedade aquele que está excluído, resgatando o
ser humano e a sua dignidade. A gente até se anula porque a gente se
apaixona.
O MST pra mim foi um beo acolhedor, quentinho e aconchegante, que
me acolheu, que me nutriu, que me ensinou a ser gente, a amar, a ter
dignidade, a me valorizar e a respeitar o ser humano”.
No MST ela sentiu-se integrada, respeitada e ressocializada, corroborando o
que afirma Martins (1989, p.47): “Na ressocialização modernizadora dos
acampamentos, na verdade, as concepções tradicionais a respeito de parentesco e
outros relacionamentos se revigoram, ganham um dinamismo inexistente antes
dessa experiência”.
E Regina continua: “A maior conquista que o MST representa para a
minha vida é ter desenvolvido em mim a capacidade de me indignar perante
as injustiças, e de respeitar os outros. O Movimento resgata a pessoa
humana, investe na pessoa.
O modelo capitalista tira das pessoas a capacidade de indignação e o
Movimento resgata a capacidade de se indignar com qualquer injustiça que
qualquer ser humano sofra.
O MST é como um berço que acolhe, que incentiva, que resgata o ser
humano. No acampamento a pessoa recebe respeito, companheirismo, sentido
108
de união, fazendo as coisas juntos. Desenvolve o sentido de compromisso em
lutar pelas causas também do povo da cidade.
Lutar pelas causas dos professores, da juventude, do pedágio... O
movimento resgata no ser humano tudo aquilo que ele tinha perdido em
comunidades conflituosas, em lugares inóspitos.
O Movimento traz esperança pra viver, pra lutar, que é o que o ser
humano precisa, na minha concepção. E pensando no coletivo a gente não
esquece da gente, pois, a gente também é parte do coletivo”.
É no participar do Movimento, é no atuar em função do coletivo, que Regina
se sente participante da categoria dos sujeitos constituídos, como expõe Wanderley
(1992, p. 154): Exercem um papel importante na sociedade civil, na interlocução
com o Estado e, em aliança com outras forças sociais, na direção do
desenvolvimento”.
Pessoas como Regina, no Movimento, redefinem os significados de suas
vidas, redimensionam suas expectativas e se identificam como atores sociais que
buscam a “reconstrução de identidades defensivas em torno de princípios
comunais”. (Castells, 2003, p. 9).
Regina fala do espírito de solidariedade dos militantes:“Eu sou uma filha do
Movimento. Fui para o Movimento muito nova e aprendi a amar o
Movimento. O Movimento me acolheu.
Eu gosto de ser assim e recebi essa identidade do meu pai. O meu pai
me ensinou a amar o próximo e o Movimento reafirmou isso e ajudou a me
conduzir, me instruindo com cursos, com palestras, dentro de barracos, na
109
convivência com vizinhos, com calor humano... Essa convivência foi muito
rica em minha vida. Calor humano!
Eu tinha vizinha que era minha defensora, era a minha mãe, porque
eu não tinha a minha mãe por perto. Era minha mãe, era minha irmã. As
minhas amiguinhas da Escola eram minhas irmãs. Eu nunca me senti
sozinha.
Do movimento eu fui morar na cidade com o Renato. Aí eu me senti
desamparada, porque eu não estava junto do meu povo, dentro da minha
comunidade. Estava num momento muito importante que era o de gestar o
filho... Queria continuar tendo participação, com calor humano, com a
capacidade de me indignar. Foi um choque térmico em minha vida. Senti-me
muito isolada”.
Regina estava grávida de Gandhi, seu segundo filho, quando teve que ir para
Brasília com Renato, que foi atuar como relações públicas do MST, em nível
nacional afastando-se do seu meio, no qual se sentia incluída e integrada.
“Quando eu estava grávida do Luther [seu primeiro filho] e eu ficava com
enjôo, todas as vizinhas cuidavam de mim. Cada dia uma delas pegava o
único ovo da galinha e ia levar pra mim.
Diziam: a galinha cantou e eu fui e peguei o ovo pra trazer para você.
Era ovo que ia ser dado para os filhos delas. Isto era dentro do Movimento.
Tinha esse atendimento por pessoas que tinham muito pouco e mesmo assim
elas doavam pra mim. Isto é o que é a convivência dentro do Movimento.
É assim a convivência do Acampamento... que é um momento difícil...
A partir do momento que você doa uma camisa para outro de dentro do
110
Movimento, que você tem a mais no seu guarda-roupa, você doa de dentro de
você.
Eu sou muito apaixonada pelo Movimento, pelo que ele faz com as
pessoas. Ele resgata e transforma as pessoas.
É difícil? É... É muito difícil!
O brasileiro que é objeto de manobra, dentro do MST ele se transforma.
O Movimento faz isso, ou se aventurou a fazer isso.
As considerações feitas na narrativa de Pedrinho são mais pontuais e
específicas, no que diz respeito à questão da emancipação. Ele aponta aspectos
que envolvem a mudança de conceito de vida, a disciplina, a atribuição de papéis e
responsabilidades para os que integram as fileiras do Movimento, proporcionando
uma maior consciência de autonomia pessoal e um sentimento de compromisso com
o projeto de construção de uma sociedade mais justa.
A conquista da terra restringe-se a apenas uma etapa do projeto maior, no
qual a emancipação se apresenta tamm como um processo que se constrói a
cada dia, na medida em que cada um se compromete e se envolve nas ações quer
do Movimento, quer da comunidade a que pertence.
Pedrinho fala do seu crescimento pessoal depois que ingressou no
Movimento:“A conclusão que tiramos é que o MST não proporcionou para nós
somente a terra. A terra serviu como um suporte através do qual adquirimos
muitas outras coisas.
Se não tivéssemos vindo pra cá estaríamos trabalhando feito loucos pra
comprar um Fusquinha, mais tarde comprar um Gol e assim por diante...
111
Aqui não. A gente desenvolveu muitos outros conceitos de vida. Tanto
que brincam comigo, porque antes de vir pra me chamavam de Pedrão, e,
depois que vim pra cá, me chamam de Pedrinho, porque vi que a coisa aqui
tinha uma dimensão bem maior.
O MST, diante do contexto que es aí, é como uma luz no final do
túnel, é uma porta que se abre para o futuro. Não é nenhuma promessa de
enriquecimento, como o é fácil enriquecer em outros setores, mas o
enriquecimento que a gente adquire pelo conhecimento e pela convivência é o
que conta”.
O resgate da pessoa humana a partir de uma práxis emancipatória se faz a
partir do despertar da consciência do ser em si e ser para si, quando “se realiza a
abertura do homem para a realidade em geral” (Kosik, 1976, p. 205).
Pedrinho revela um novo nível de emancipação depois que passou a
participar da Comissão Pastoral da Terra: Em Marialva, agora casado, eu
estava trabalhando com café, como parceiro, e me entendia bem com o
patrão. A gente dividia a renda, mas não era suficiente.
Então fomos para Mandaguaçu trabalhar com o bicho-da-seda
novamente. Desta vez levei o sogro e meus cunhados junto e fomos trabalhar
com dez alqueires de amora.
O proprietário era um médico de São Paulo que se encarregou de
providenciar a correção do solo e nós cuidamos da produção. Funcionou bem
durante um ano...
Aconteceu um fato interessante nessa ocasião porque, pelo fato de eu
ter adquirido um pouco de conhecimento e orientação na CPT, eu não
112
tratava o proprietário como senhor que nem os outros e sim como você. De
igual para igual. Então um dia ele me intimou: ‘olha Pedro, eu tenho uma
clínica em São Paulo com 35 funcionários e todos me chamam de senhor.
Então eu quero que daqui para frente você pare de me chamar de você e
passe a me chamar de senhor!’
Eu quase disse pra ele na hora: ‘por que você quer isto? Voé mais
homem do que eu? Tem dois sacos por acaso?’ Mas achei que não valeria a
pena, que não ia lucrar nada com aquilo, porém aquilo me deixou indignado.
Só pelo fato de ser o proprietário eu ter que chamá-lo de senhor”.
Essa atitude de Pedrinho, embora não exteriorizada, revela o despertar de
uma nova consciência de si mesmo em relação ao seu meio e à realidade em que se
insere, o que muito bem analisa Jo de Souza Martins em sua obra, Caminhada no
Chão da Noite:
Está terminado o tempo da inocência e começando o tempo da política. Os
pobres da terra durante séculos excluídos, marginalizados e dominados,
têm caminhado em silêncio e depressa no chão dessa longa noite de
humilhação e proclamam, no gesto da luta, da resistência, da ruptura, da
desobediência, sua nova condição, seu caminho sem volta, sua presença
maltrapilha, mas digna, na cena da História. (Martins, 1989, p. 12).
Por outro lado, analisando o acontecido sob a ótica da influência do caldo
cultural na construção das representações existentes na sociedade sobre
valorizão e status de papéis e profissões, se Pedrinho mudou o tratamento com o
proprietário de um dia para o outro, sem uma justificativa discutida e apenas por ter
se dado conta de seu valor (igual ao do proprietário) como cidadão, a possível forma
abrupta de mudança pode explicar a reação do dono da terra.
Pedrinho continua sua narrativa: “Por meados de 1993, a amora começou a
enfraquecer e ele não cumpriu também a parte dele do acordo e eu e meus
113
cunhados resolvemos trabalhar com a uva. Eles continuaram a trabalhar
com o bicho-da-seda, mas o casulo começou a baixar de preço e eles também
passaram a lidar com a uva e permanecem até hoje.
Passamos a participar ativamente e defender o MST, os sem terra,
coordenar a comunidade onde morávamos, grupos de famílias e fizemos na
ocasião o Cursilho de número 104 da Diocese de Maringá.
Tínhamos uma certa influência na Igreja, mas o fato de defendermos a
Reforma Agrária e os sem terra, criava um atrito um tanto rio dentro da
comunidade.
Eu tinha que enfrentar, às vezes, em uma reunião de dirigentes, no
Conselho Paroquial, todos os dirigentes das outras comunidades de outras
pastorais, divulgar as Romarias da Terra e todas as críticas vinham pra
cima de mim”.
Pedrinho enfatiza o senso de responsabilidade que é assimilado pelos
militantes do MST, desde a juventude: Em cada evento que participo, cada
pequena tarefa que faço permite que eu volte pra casa realizado.
Aqui no Assentamento eu abri os olhos para a questão da
biodiversidade, de maneira prática, pondo a mão na massa e fazendo, e não
apenas de forma vaga como se faz nos sermões.
O importante no MST é que todos assumem responsabilidade por
alguma coisa; ninguém fica sem fazer nada. Todos têm um compromisso.
Outra coisa que é importante lembrar é que nos encontros, nas
mobilizações, é levada muita a sério a disciplina. Você já imaginou na última
114
Marcha a Brasília em que participaram doze mil pessoas, se não houvesse
disciplina?
Alguns estudantes, quando m aqui, costumam perguntar se existe
promiscuidade nos acampamentos. Eu costumo explicar que nos
acampamentos existem os setores de educação, de saúde, de finanças, o setor
de disciplina. A questão da promiscuidade é resolvida pela própria
organicidade. Todo mundo está envolvido numa tarefa.
Em virtude da responsabilidade e do compromisso que cada um tem, eu
acredito que dentro dos acampamentos os adolescentes estão muito mais
protegidos do problema das drogas e da promiscuidade do que os adolescentes
da sociedade comum.
Esta é a minha avaliação. Eles têm mais acompanhamento e
vigilância, mais conteúdo e poucos momentos para ficarem disponíveis.
Levantam às cinco ou seis horas da manhã e param às sete horas da
noite. Tomam um banho, comem alguma coisa e retornam para as atividades
que normalmente estão programadas. Às onze da noite é a hora do silêncio,
de forma que sobra pouco tempo pra outras coisas.
A participação e o envolvimento de todos dispensa até a figura do
chefe. Se alguém pergunta: quem é o chefe aqui, a resposta é que não existe
nenhum chefe...”.
O desempenho de papéis e atribuição de tarefas o técnicas assimiladas
nos encontros destinados à formação de lideranças religiosas leigas, principalmente
na Comissão Pastoral da Terra-CPT e utilizadas nas Comunidades Eclesiais de
Base-CEBs, como observa Machado (2002, p. 32):
115
Convém lembrar que a sistemática da atuação das CEBs, principalmente
quando voltadas para o processo de conquista da terra, prega um tipo de
trabalho no qual os agentes religiosos funcionam como mediadores,
procurando deixar todas as decisões para o grupo, o enfatizando o
desenvolvimento de uma liderança tomadora de decisões, mas de um grupo
integrado, organizado através de diversos coordenadores escolhidos por
todos, de modo que não houvesse um distanciamento entre aquilo que os
agentes desejavam e o que era o verdadeiro desejo das pessoas envolvidas
no processo. Esta prática foi adotada pelo MST no seu período de
formação, como forma de evitar a desarticulação dos grupos com a prisão
estratégica de determinados membros. Se todos assumem a postura de que
são responsáveis pelas tomadas de decisões e seu sucesso, elimina a
necessidade de uma liderança responsável por tudo.
De acordo com as declarações de Pedrinho, tal prática não se restringiu ao
período de formação do MST, mas ainda se manm dentro do Movimento, onde não
prevalece a dominão carismática, a que se refere Max Weber, centralizada na
liderança de um indivíduo.
Semelhante ao seu marido, Rosilda reafirma seu entendimento de
emancipação como um processo e reconhece o enriquecimento que o Movimento
proporciona para si e para sua família.
Ela valoriza as oportunidades que o MST proporciona para si e para seus
filhos: “Cada experiência, cada mobilização que a gente vai é um aprendizado
que a gente vai acumulando. O conhecimento que a gente acumulou nesses
seis anos que estamos aqui, através dos encontros, das mobilizações, de
eventos que a gente participa, foi um enriquecimento enorme para a vida.
E na medida que a gente aprende, a gente ensina. A gente se enriquece
com as discussões, os debates. Se continuássemos em Marialva, certamente
estaríamos trabalhando como trabalhamos aqui, mas sem o conhecimento
que adquirimos durante esses anos aqui no Assentamento.
Cada Encontro é uma escola. Se o encontro é de três dias, você fica três
dias estudando. Se for de uma semana, você fica uma semana estudando.
116
O Fernando, por exemplo, [seu filho de 18 anos na ocasião] já fez curso de
teatro, já tivemos oficina para Rádio...
Existem as tarefas para aprender a lidar com as crianças e fazemos
festa no dia 12 de outubro com conteúdo educativo e não de comes e bebes e o
Pedro é responsável pela orientação das crianças sobre as questões do meio
ambiente, de como cuidar e preservar.
O importante é que o Movimento envolve a nossa família: eu, o Pedro e
os dois filhos.
O Lucas está com onze anos e daqui a pouco vai ter quinze e vai
entrar na luta. Tudo o que foi passado pra nós, os filhos vão aos poucos
assimilando. É a nossa herança pra eles”.
A capacidade reintegradora da família é bastante evidenciada dentro do MST,
confirmando o que afirma Martins (2000, p. 47) sobre o fortalecimento das
“concepções ordenadoras da vida social provenientes do familismo antigo”, como
mencionado anteriormente.
Odete também enfatiza o crescimento que obteve após ingressar nas fileiras
do Movimento: Eu posso afirmar que gosto demais do MST. Quando lembro do
tempo que estava no Paraguai e comparo com hoje... o pensamento que eu
tinha na época não dá para comparar com o de hoje.
Minha mãe às vezes fala: o que aconteceu com vocês? Seu marido não
conversava e agora conversa?
Meu marido era meio tímido. E eu então respondo: mãe, essa é a parte
boa do MST. Todo mundo aprende que não tem ninguém maior que ninguém.
117
Todo mundo tem vez. Até o coitadinho que não abria a boca nem pra mãe e
nem pro pai, acaba sendo um coordenador, assumindo trabalhos, setores...
A pessoa que vive discriminada num grupo social, dentro do MST ele
se torna alguém. -se a ele a oportunidade de expor seu pensamento, sua
posição. Mesmo que os outros não concordem, ele tem o direito e liberdade de
se expressar” .
Cabe aqui mais uma vez outra observação de Martins, agora sobre a
capacidade de ressocialização dos acampamentos e o alargamento da sociabilidade
que ocorre nos Assentamentos. Os camponeses “nos acampamentos, na fase de
luta pela terra, acabam ressocializando por força do convívio e dos enfrentamentos
conjuntos com estranhos”. (Martins, 2000, p. 47).
Odete lembra seu tempo de adolescente no Paraguai e porque ela se casou
cedo:“Na época, onde eu morava, ou você se casava com quinze anos, ou era
prostituta ou ia pro internato. o tinha opção. Eu queria ir para o
internato, mas meu pai não deixou. Ele tinha medo, eu só tinha treze anos;
então eu falei pra ele: então eu vou me casar!
Meu pai também não teve opção para dizer: não, você não vai se
casar. Graças a Deus deu tudo certo, meu marido é uma ótima pessoa, nós
nos damos muito bem.
Aqui no Brasil é muito diferente de lá. No MST é mais diferente ainda.
As meninas têm outro pensamento. As meninas falam de política. Quando é
que nós falávamos de política? Quando que alguém ali no Paraguai falava de
política, entre as mulheres, ou entre as meninas?! Não falam!
118
Aqui os meninos de oito anos falam de política, discutem. Aqui
dentro as coisas mudam muito. Começam a pensar em cultura, falam muito
em dignidade...”
A idéia que os entrevistados passam, de se sentirem emancipados, depois
que ingressaram no MST e principalmente após a conquista da terra, reproduz, ao
que parece, o conceito de emancipação que lhes é transmitido pelo Movimento, que
se aproxima do pensamento de Adorno, ao se referir a Kant, quando este afirmou
que vivemos em uma época de esclarecimento, “determinou a emancipação de um
modo inteiramente conseqüente, não como uma categoria estática, mas como uma
categoria dinâmica, como um vir-a-ser e não um ser”. (Adorno, 1995, p. 180).
5.2 A importância da educação promovida pela escola
Embora a escola, em todos os níveis, esteja sob o controle de diretrizes
oficiais, a maior parte do conhecimento que se consti, dentro dos seus
paradigmas, é de grande utilidade para a compreensão da realidade.
Se a escola pode servir como instrumento de reprodução da ideologia das
elites dominantes, pode também contribuir para desenvolver potencialidades. A
forma com que essas potencialidades são desenvolvidas depende dos referenciais
de ancoragem que cada um possui e que são construídos no dia-a-dia pelas
influências do meio e da convivência social.
O MST proporciona muitas informações, além das que são oferecidas nas
escolas, o que pode contribuir para que os conteúdos curriculares sejam apropriados
de uma perspectiva mais crítica e questionadora, para contradição e resistência,
como afirma Adorno, a partir de uma melhor percepção da conjuntura em que se
inserem esses conteúdos e os sujeitos a quem são disponibilizados.
119
A convicção dos agentes pesquisados de que atingiram sua “maioridade” via
esclarecimento lhes dá a sensação de se sentirem emancipados como cidadãos, e a
necessidade de se manterem informados da conjuntura torna-se fundamental para
cidadãos como Alencar. Sua preocupação com o esclarecimento é bastante
evidente.“Eu, particularmente, estudo bastante. Participo de encontros em
média de quatro semanas por ano em Foz do Iguaçu. Quatro vezes por ano
participo de encontro de dirigentes; são as reuniões de brigadas, fora as
reuniões de coordenação...
Nós temos encontros o tempo todo. Se nós tivéssemos condições,
estaríamos formando lideranças sempre. Lideranças da saúde, da produção,
financeira, de política organizativa.
A gente poderia mandar o pessoal direto para Foz do Iguaçu, Curitiba,
São Paulo. Em São Paulo houve um curso sobre linhas de produção que era
para eu estar e eu não fui porque estava sem condições.
A questão da globalização, por exemplo, para a gente conseguir
entender esse processo, como ele acontece e como entender a questão da
cultura de resistência, depende de uma formação ideológica".
Falando de sua família, em relação à sua preocupação com educação,
Alencar Hermes não esconde seu orgulho e dedicação pela família:“Minha filha
Fernanda tem dezessete anos e sempre foi muito boa aluna. Ela gosta de
estudar e se interessa pelos assuntos que a gente discute sobre política, sobre o
MST e qualquer outro assunto a respeito da conjuntura. Houve ano que
tivemos que mudar várias vezes e ela, mesmo trocando de escolas várias
vezes, conseguiu passar de ano.
120
Ela escursando o ano do grau e nunca reprovou nenhum ano,
não tem uma nota vermelha.
em casa todo mundo trabalha, mas o Natan e a Franciele, quando
terminam o trabalho querem brincar, assistir televisão: a Fernanda não. Ela
sacrifica novela, sacrifica diversão... Levanta às cinco horas da madrugada
pra ir à Escola, estuda meio período, na parte da tarde trabalha e de noite
vai estudar e fazer os trabalhos da Escola. Às vezes vara madrugada
adentro, estudando.
Ela é muito disciplinada e o que me deixa contente, como pai, é o
interesse dela pelas questões políticas.
Num encontro em que participamos em Foz do Iguaçu, havia mil
pessoas e, após as discussões que fizemos nos grupos, que a gente chama de
brigadas, ela foi apresentar os relatos na plenária sem gaguejar nem
tropeçar, diante de palestrantes de várias partes do Brasil.
Ela tem todas as condições de ir para uma Escola da Organização
(MST), mas seria prejudicial a ela, porque teria que fazer um curso técnico
em agricultura, agropecuária, em saúde, enquanto que fazendo o grau ela
pode disputar uma vaga em uma Universidade.
Sou um matuto, mas sonho ver minha filha cursando Universidade.
Ela pode até sair do Assentamento, mas ela vai levar o MST com ela para o
resto da vida, onde ela estiver.
121
Deveria haver mais vagas nas universidades públicas. O que me deixa
indignado é a Igreja Católica que tem a PUC nas os e nunca deu uma
vaga para um assentado”.
Tais considerações de Alencar Hermes nos remetem a Carlos Rodrigues
Brandão que tece considerações sobre a educação desigual dentro de uma
sociedade desigual, quando questiona:
Se na sociedade desigual ela reproduz e consagra a desigualdade social,
deixando no limite inferior de seu mundo os que o para ficar no limite
inferior do mundo do trabalho (os operários e filhos de operários), e
permitindo que minorias reduzidas cheguem ao seu limite superior, por que
acreditar ainda na educação? (Brandão, 1984, p. 98).
Em seguida, o mesmo autor justifica, dentro de uma visão de Paulo Freire,
que a educação que reproduz as desigualdades poderia ser reinventada para
promover a igualdade e conduzir os homens à liberdade.
Alencar, tendo consciência de que a educação deve ter uma dimensão
libertária, contesta o autoritarismo da professora de seus filhos, quando percebe que
ela, talvez inconscientemente, reproduz a ideologia da dominação, a partir de uma
atitude pouco refletida: “Meus filhos que estão em idade escolar; o Natan e a
Franciele, são ainda um tanto infantis. Houve um episódio com o Natan que,
por ser brincalhão e distraído na aula, sua professora disse um dia para ele
que não precisava mais aparecer na Escola. No dia seguinte, quando chegou
a hora de ir pra Escola ele sumiu para o mato.
Seus colegas começaram a procu-lo e a chamar por ele e finalmente
descobriram que ele fugiu pro mato.
Veja o que acontece nessas Escolas pelo Brasil afora!
Procurei a professora para tirar satisfações e ela negou que tinha dito
aquilo. Eu respondi a ela que conhecia muito bem meu filho e que a coisa que
122
ele nunca faz é mentir. Eu disse à professora que a obrigação dela era educar
e que o índice de reprovação naquela escola era muito alto e quando os
alunos não aprendem pode não ser problema apenas dos alunos...
Conclui que o que ele ouviu na Escola foi muito grave, para que ele
tivesse adotado aquele comportamento.
O professor tem que gostar da profissão, estar aberto para tomar
iniciativas para aproximar e motivar os alunos.
Não me preocupo se meus filhos reprovam um ou outro ano. Eu sei que
na cidade existe outra lógica. O capitalismo obriga que concluam os estudos o
quanto mais cedo possível, para enfrentar a competição”.
O questionamento que Alencar Hermes faz da professora e da Escola
brasileira revela que ele tem consciência da educação que se pratica para reforçar a
autoridade do mestre, enquanto reproduz a ideologia da dominação “legitima a
opressão”. (Brandão, 1984, p. 99).
Adorno (1995, p. 112) questiona a educação autoritária praticada na escola e
afirma que para o desenvolvimento individual dos homens a escola constitui quase
o protótipo da própria alienação social” e acrescenta que o agente dessa alienação
é a autoridade do professor”, pois, segundo ele, pelo fato do cidadão ser educado de
maneira repressiva, submetendo-se à autoridade, acaba por se tornar imaturo e
suscevel a influências autocráticas.
A informação que foi dada pelos agentes pesquisados é que nas fileiras do
MST as práticas educativaso voltadas para reforçar a igualdade, de conformidade
com a metodologia assimilada da CPT e é determinada dentro do “controle
comunitário dos seus praticantes”. (Brandão, 1984, p. 98).
123
Importante é observar que, mesmo questionando a forma com que é
praticada a educação, Alencar Hermes insiste em proporcionar a seus filhos toda
educação possível, sem preocupar-se com o tempo que será necessário para
consegui-lo.
Com relação a Renato que é, dos entrevistados, o único que tem curso
superior, ele sente necessidade de continuar estudando. Ele é uma das lideranças
destacadas dentro do MST do Paraná e do Brasil, e sua preocupação em continuar,
estudando, assim como sua esposa Regina, está relacionada ao um projeto de
melhor atuação dentro do Movimento que tem como meta a edificação de uma nova
sociedade, a partir de umaorganização comunitária autogestionada”, como observa
Roberto Leher(2004, p. 6) com base nas considerações de Boaventura Souza
Santos.
32
Renato relata parte de sua trajetória como líder no Movimento e porque
sacrificou provisoriamente seu sonho de continuar estudando: “Em 1993 recebi a
proposta de fazer um trabalho de Relações Públicas do Movimento em
Brasília. Foi bem na época em que eu acabara de assumir um
relacionamento com uma companheira chamada Marina, de quem me
separei mais tarde, e tinha iniciado a Faculdade.
Marina também queria estudar, mas tivemos que ir para Brasília.
[Renato refere-se à primeira vez que foi trabalhar em Brasília]. fiquei por um
ano e meio. Tive que trancar os estudos porque a atividade de exigia
demais.
32
Boaventura Souza Santos. Los nuevos movimientos sociales. Revista do OSAL., 5,BS.AS.: CLACSO, 2001.
124
Quando voltei para o Paraná, tentei retomar os estudos em Palmas,
porém tinha sido extinto o curso de Economia que eu estava fazendo e eu
tive que terminar no curso de Administração, que acabei fazendo por fazer,
sem ter muito aproveitamento. Não fiz o curso como deveria fazer. Isto foi
em 1994.
Hoje a minha maior vontade é a de voltar a estudar. Minha
companheira também. Ela está se preparando para prestar vestibular, e
eu quero fazer especialização em Agroecologia.”
Leher (2004, p. 3), comentando sobre a necessidade de ampliar a frente
cultural para a hegemonia dos subalternos, acrescenta:
Por isso, o trabalho político de formação requer obrigatoriamente uma
pedagogia libertária que seja, ao mesmo tempo, uma autopedagogia capaz
de unir teoria e prática e de levar adiante a reforma intelectual e moral em
diálogo com a classe que vive do próprio trabalho. Em suma, a
transformação cultural deve minar as trincheiras e casamatas em que se
abrigam os dominantes e o Estado. E esse processo somente pode pulsar
nas lutas do povo.
Regina sente necessidade de estudar para colocar seus conhecimentos a
serviço do Movimento: Para mim o curso superior é fundamental. Não quero
fazer curso superior pra ter um diploma ou ganhar dinheiro. Não tenho
pretensões capitalistas. É claro que a gente precisa disso, precisa daquilo, a
gente tem inúmeras necessidades.
Mas o que eu quero é poder contribuir com a sociedade, com o que eu
aprender na Universidade. Porque na prática eu tenho procurado
contribuir, mas a teoria é fundamental, porque através dela você reflete
melhor, sobre a realidade.
Eu quero contribuir com as outras companheiras, porque a gente quer
preparar os filhos para a sociedade, e é muito difícil educar os filhos. Eu
125
quero fazer o curso de Psicologia para isto e porque tenho aptidão e gosto
desse assunto. Quero ser mais útil para o Movimento. Não pra clinicar,
mas para procurar unir homem e mulher com outro incremento. É meu
sonho desde criança.
Aqui no Assentamento, como eu já disse antes, muitas mulheres que
sonham com a Universidade e eu estou entre elas”.
A formação escolar tamm se apresenta como algo importante para
Pedrinho:”Nós não tínhamos terminado o grau quando viemos pra cá. Eu,
por exemplo, se continuasse em Marialva teria até hoje somente a série.
Aqui a gente se motivou a estudar. Veio um professor de Apucarana e,
através dele, conseguimos trazer o CEEBEJA
33
; fizemos ao grau. Se nós
não tivéssemos vindo para o Assentamento, possivelmente não teríamos
continuado a estudar.
É importante que o Movimento exija da gente que se prepare para
atuar em setores diferentes.
Dezoito de nós fizemos o grau pelo CEEBEJA de Apucarana, e no
dia da formatura foi a maior festa na Catedral daquela cidade, sob os olhares
condenatórios de muitos” .
muitos que não conseguem dissimular a rejeição e o preconceito que
alimentam pelos integrantes do MST, outros se opõem claramente ao Movimento
e a seus integrantes. A própria simplicidade no se vestir, os rostos queimados de sol,
as mãos calejadas pelo trabalho duro no campo, a bandeira do Movimento que
33
CEEBEJA- Centro Estadual de Educação Básica de Jovens e Adultos.
126
exibem em todos os eventos, acabaram contrastando com o ambiente de certa
forma sofisticado da catedral.
Rosilda, falando de educação, enfatiza as oportunidades que o MST tem
oferecido ao seu filho Fernando: O Fernando começou aqui na quinta série e
estudou até a oitava rie. Em seguida ele foi para São Miguel do Iguaçu,
cumprir uma etapa prolongada de estudos, pelo próprio Movimento.
Ele é um menino muito estudioso. Nunca reprovou. Desde Marialva
ele nunca repetiu de ano, foi pra Mandaguaçu, não repetiu... Fez todo o
grau e nunca repetiu.
Agora ele está em Maringá. Esses dias ele está aqui em casa, mas está
estudando em Maringá. Está fazendo um curso Pós Médio de Agropecuária
com Agroecologia, também pelo MST, que firmou um convênio com a
Universidade Federal do Paraná.
Quando a Prefeitura de Maringá estava sob o governo do PT, foi
montada uma Escola num terreno abandonado, Escola Milton Santos, e
firmado um convênio com a Universidade Federal do Paraná.
O curso é feito em módulos de dois em dois meses e depois a pessoa
retorna para casa. Agora mesmo ele es num período de retorno à
comunidade”.
O MST tem firmado convênios com várias universidades do Brasil, criado
vários cursos técnicos, em diferentes regiões do país, e a Escola Florestan
Fernandes construída em São Paulo, com cursos para diversas áreas, voltados para
o MST e outros movimentos sociais e, segundo Leher, “interage com cerca de 1,5
mil escolas em seus acampamentos e Assentamentos, [...] tomando em suas mãos
127
a educação e a formação de seus dirigentes, com critérios pedagógicos
próprios.”(Leher, 2004, p. 7).
Segundo Leher (2004, p.8), quando analisa a conjuntura brasileira e o papel
de resistência dos movimentos sociais, “os fundamentos em que esassentado o
pensamento neoliberal hegemônico somente poderão ser radicalmente criticados a
partir de uma nova episteme, de novas formas de produzir o conhecimentopara se
desvencilhar do modelo eurocêntrico e, nas suas considerações a esse respeito,
ainda afirma:
São traços marcantes desses movimentos: a sua territorialidade, negando,
no concreto, a crença pós-moderna na supressão do espaço; a autonomia
frente aos governos e partidos; a revalorização da cultura e a afirmação da
identidade de seus povos e setores sociais, inclusive fortalecendo a
participação das mulheres; e, em consonância com a autonomia, a
capacidade de formação de seus próprios intelectuais. (Leher, 2004, p. 7).
. Odete fala com entusiasmo por ter conseguido estudar, depois que foi morar
no acampamento e demonstrou estar motivada em continuar estudando, para
ganhar mais eficiência na sua função de agente de saúde e de coordenadora do
setor de saúde da comunidade.“Aqui eu terminei o e o graus Supletivo,
mas queria estudar mais. Queria fazer o curso de Auxiliar de Enfermagem
em Apucarana. Só que, quando comecei a correr atrás, fiquei grávida.
O curso ia começar em maio, mas em abril comecei a ficar doente.
Minha mãe veio pra me ajudar, porque eu vivia de casa para o hospital,
do hospital para casa, problemas na bexiga, rins, garganta. Fiz três testes de
gravidez e dava sempre negativo. No quarto deu positivo. Quase perdi o bebê
de tanta medicação”.
128
6 A questão de gênero
A questão de gênero tem sido tema bastante avaliado e discutido dentro do
MST, de acordo com informação, principalmente das mulheres.
É notório um vel de emancipação da mulher mais acentuado dentro do
Movimento, pois, a ela são atribuídos papéis e responsabilidades que em geral
seriam exclusivamente para os homens; no entanto não se pode generalizar, uma
vez que varia de comunidade para comunidade, de acampamento para
acampamento, de Assentamento para Assentamento.
Considerando que os camponeses têm uma cultura um tanto machista,
quando acontece a emancipação da mulher dentro do Movimento, isso chama mais
a atenção, pois, a mulher do campo particularmente sempre foi reduzida a papéis
tradicionais de procriadora, esposa e mãe.
O fato das mulheres de origem camponesa deixarem seus maridos e
participarem de Encontros e outros eventos do MST pode parecer natural para as
mulheres da cidade, que conquistaram certo grau de emancipação, mas para o
homem e a mulher do campo isto representa um avanço considerável nas questões
de gênero, principalmente para elas.
O que se observa, no entanto, é que os homens no MST começam a assumir
uma nova postura em relação às mulheres, reconhecendo nelas a capacidade de
desempenharem novos papéis, além daqueles que tradicionalmente lhes são
atribuídos. Nesse sentido são ilustrativas as considerações de Pedrinho, referindo-se
à época que passaram a integrar a CPT na cidade de Marialva: “Já na ocasião, o
pessoal cobrava a importância da participação da companheira, da esposa,
da mulher... Era a orientação da Comissão Pastoral da Terra-CPT, para
evitar aqueles problemas: da mulher fazer cenas de ciúmes quando o homem
129
voltava dos Encontros, ou do homem ficar com ciúmes quando a mulher é
que participava.
Mas mesmo assim eu acabei participando mais do que ela, por ter
mais facilidade, porque tinha as crianças e os parentes criticavam...”.
Pedrinho fez questão de destacar a preocupação da CPT com a questão de
gênero e que seu relacionamento conjugal amadureceu e melhorou depois que
ingressaram no MST: “Nos acampamentos e enfrentamentos, a Rosilda não me
acompanhava, mas participava sempre das Romarias da Terra, dos cursos
da CPT relacionados à terra, ao camponês, ao êxodo rural e suas causas...
Antes, a gente vivia agarrado na barra da batina do padre e eu e
Rosilda tínhamos mais problemas com relação à questão de gênero e de
afetividade. Depois que nos envolvemos no Movimento, melhorou muito a
nossa relação. Passamos a nos entender muito mais. Aumentou a nossa
união, a confiança um no outro, o entendimento.
A luta, a causa, justifica o porquê que um ou outro tem que ir, e o
outro não pode...”.
Alencar Hermes tamm destaca o envolvimento de sua esposa: “Minha
mulher, certa ocasião, foi pra Curitiba com minha filha pequena, com
problema de infecção no sangue, meu filho estava pra marcar, naquele dia,
duas cirurgias de úlcera na barriga e ela foi pra Curitiba.
Ela foi pra Curitiba e eu tive que tirar leite no lugar dela... A luta na
família tem que ser equilibrada”.
No dia em que foi feita a entrevista com Alencar, sua mulher tinha ido
novamente para Curitiba participar da COP8-Conferência das Partes, que foi
130
realizada de 20 a 31 de março de 2006, no Centro de Convenções Expotrade, na
qual o tema central foi a questão da biodiversidade. Alencar, mais uma vez, teve que
acumular as tarefas dele e da esposa para que ela pudesse se fazer presente no
evento. E assim ele desabafa: Eu tenho um entendimento razoável e a minha
mulher tem que ter um mínimo de entendimento, senão ela não vai entender
porque esse desprendimento todo meu e porque eu estou sacrificando tanto
ela.
Ela tem que ter entendimento porque, como diz o ditado, por trás de
um grande homem tem que ter uma grande mulher”.
Quando Alencar Hermes se expressa que por trás de um grande homem
tem que ter uma grande mulher”, embora essa expressão coloque a mulher num
plano de obscuridade, na prática ele coloca sua mulher num nível de igualdade,
incentivando-a a participar de eventos do Movimento.
A luta pela causa possibilita redefinir as relações de companheirismo entre
homem e mulher, pois,
no contexto interno desta luta, encontramos o homem, a mulher e a criança
[...] lutando lado a lado, desfrutando dos mesmos ideais e objetivos. Desde
o primeiro passo da luta, que é a ocupação, a figura da mulher está
presente, a qual se destaca ao lado dos homens, muito embora a cultura e
os preceitos que rondam a organização patriarcal familiar tenham na mulher
apenas uma ‘dona de casa, a senhora do lar, a mãe, a esposa’. (Valenciano
e Thomaz Junior, 2002, p. 5).
Fica evidenciado que as relações de gênero passam por uma evolução
cultural que se processa dentro do Movimento e que envolve tanto a mulher como o
homem.
Conforme avaliam Valenciano e Thomaz Junior (2002, p. 3),
algo que nos parece muito claro é que, quando a mulher se insere na luta
política passa a possuir uma consciência de classe e assume uma
identidade’, ou seja, a idéia de pertencimento a um grupo, que compartilha
dos mesmos valores, símbolos, discursos etc. Essa nova conformação traz
ao estudo dessas mulheres novos elementos, visto que em face da
131
subjetividade intrínseca nessas relações, teremos uma série de
transformações que buscam, em certa medida, superar a concepção arcaica
do que é ser mulher, e aquilo que a ela é atribuído.
Vários estudos têm sido feitos a respeito das relações de nero dentro do
MST, entre eles, uma pesquisa feita pela doutora Cristiani Bereta da Silva, da
Universidade Federal de Santa Catarina. Em sua tese, “As fissuras na construção do
‘novo homem’ e da ‘nova mulher’: relações de gênero e subjetividades no devir
MST”, ela analisa a evolução que se nas relações de nero dentro das fileiras
do Movimento.
A despeito de um avanço considerável que a pesquisa revelou nessas
relações, constatou-se a permanência e a reprodução de “sistemas e valores sociais
e culturais vividos muito tempo, tanto pelas mulheres quanto pelos homens”.
(Silva, 2004, p. 283).
Há, entre as próprias mulheres, algumas que resistem a mudanças, como
bem ilustra Odete: “Aqui, a mulher passa a valorizar mais a cultura e levanta
a cabeça. Só tem uma ou duas que não mudam a cabeça mesmo. Nascem
tortas e morrem tortas. Não tem jeito de mudá-las, mas a gente tem que
compreender, não é? Às vezes o é porque elas querem.
As observações de Odete sobre a dificuldade que muitas mulheres têm de
assumir novas representações sobre o gênero feminino se explica, pois, na família e
mesmo no MST,
o fato de ser mulher coloca desde cedo muitas condições, cercadas por
valores, símbolos, discursos e uma série de elementos que podemos
destacar como sendo pertinentes para a construção desses sujeitos e o seu
respectivo papel na sociedade. (Valenciano e Thomaz Junior, 2002 p. 12).
Nem todas, portanto, vão conseguir romper as barreiras da submissão e
subserviência ao homem, mas algumas mudanças com certeza sofrerão com o
decorrer do tempo.
132
É sabido que a questão de gênero não se restringe ao homem do campo,
nem aos segmentos mais humildes da sociedade, uma vez que a mulher é
explorada pela mídia como objeto e indutora de consumo, para as diversas camadas
sociais. Porém, novos valores éticos são incorporados no novo homem que se
constrói nas fileiras do Movimento, como revela Alencar Hermes: “O pior de tudo é
a forma com que as músicas desmoralizam a mulher e a juventude. Isto
também é droga. Para isto eu acho que deveria haver censura, porque o
mercado o censura nada. Deveria haver uma censura não no sentido
político, mas censura contra a baixaria”.
Isto não implica, entretanto na eliminação de contradições nas diretrizes do
MST, pois, muitas vezes o envolvimento intenso na militância acaba por afetar as
relações entre os casais. Renato expressa sua preocupação com Regina de uma
forma contrita, como se sentindo culpado por não estar ao lado dela, quando ela
mais precisava.
Renato desabafa:“A Regina sofreu muito, em virtude da minha
militância e em virtude das conseqüências que eu sofri por causa da minha
militância intensa, porque na verdade ela ficou de lado, por assim dizer.
Cuidar do filho, viver a gestação sozinha, cuidar da casa e eu no mundo...
Desculpe-me, mas nós estamos abrindo a nossa alma”.
O desabafo de Regina, na mesma linha do desabafo de Renato, analisa a
questão de nero, revelando a condição da mulher que, para desempenhar seu
papel de esposa e e, é obrigada a renunciar a outros projetos de vida e limitar-se
a compreender e apoiar seu companheiro.
133
Embora reconheça a evolução da mulher camponesa dentro do MST, admite
que há ainda um longo percurso para que ela possa atingir o mesmo nível de
emancipação do homem.
Regina então relata:A partir do momento que fui morar com o Renato
eu me anulei, porque ele tinha que militar e eu tinha que gestar e cuidar do
Luther, tive que abandonar a militância mais ativa. Isto porém não me traz
dores ou mágoas, por eu ter me anulado para ele militar."
As características fisiológicas da mulher, ao que parece, foram as principais
responsáveis pela construção de uma sociedade machista desde os primórdios, uma
vez que o longo período de gestação, somado ao período que as crianças
dependem dos cuidados maternos, deram aos homens a liberdade de se
agruparem, longe das mulheres, para a busca de alimentos, lutar contra os inimigos
e estabelecer as regras de conduta para a vida em comum, dentro de paradigmas
exclusivamente masculinos.
E Regina prossegue: "O mais complicado é que ele militava tanto e não
se virava nem um momento em minha direção. Também ele militava tanto!...
a luta precisava tanto dele!... mas isto afetou muito nossa relação até pouco
tempo, porque eu também preciso estudar, precisava militar e eu ficava
somente cuidando dos filhos. Senti-me alijada e sem marido, sem ter uma
vida de casal.
Quando o marido esna luta, ele se envolve de tal maneira, na luta,
nos cursos, que quando chega em casa não tem como conversar com a gente.
Então o que eu disse para ele foi: vamos andar juntos, pega na minha mão,
vamos fazer juntos, vamos viver juntos”.
134
Então Regina sugere uma reflexão a ser aprofundada no MST: Esse tipo de
situação acontece com muitas outras mulheres de líderes. Eu sou apenas uma
entre muitas. Tanto por parte do homem como por parte da mulher.
casos em que a mulher é militante ativa e gera conflitos com o marido, mas é
raro.
O Movimento precisa se voltar mais para a base. A base do
Movimento é a família” .
Regina confirma a afirmação de Martins (2000, p. 47) que “os militantes do
MST m uma visão familística do mundo e a partir dessa visão se ressocializam
quando passam a integrar o Movimento”.
Regina continua seu desabafo:“Quando o Renato estava na militância, a
base dele era ele mesmo. Ele não tirou tempo pra conviver e cuidar dos filhos.
Ele precisava se voltar para a família dele, para os filhos. muitas
mulheres que passam por situações muito difíceis, muito doloridas dentro do
MST.
A questão de gênero dentro do Movimento ainda é muito complicada e
precisa ser muito discutida. Já está se procurando dar papéis de coordenação
não somente para os homens.
Acredito que seria de grande valia pesquisar o papel da mulher
dentro do MST. Procurar saber como pensam e se comportam as mulheres,
porque as mulheres têm uma maneira diferente de ver as coisas e de colocar
as coisas. Há situações muito sutis que somente as mulheres percebem.
Eu me interesso muito pela forma com que Marx analisa as
contradições e gostaria muito de ler mais sobre Marx.
135
A questão de gênero dentro do Movimento tem sido uma
preocupação de muito tempo, mas é uma coisa muito complicada ainda.
Dentro do Movimento eu sou uma integrante e gosto de ser assim.
Onde quer que eu esteja, eu contribuo.
Eu queria ver homem e mulher caminhando juntos. O que acontece é
que as mulheres ficam na retaguarda enquanto os homens estão tendo cursos.
Elas também fizeram curso pra cuidar das crianças, mas o MST investe
mais no homem que está mais livre.
Ainda existem problemas de machismo dentro do Movimento, mas as
mulheres do Movimento são diferentes. Elas são mais independentes, mas
homens que as consideram rebeldes. As mulheres do Movimento são mais
independentes que as mulheres da cidade. Elas não se sentem propriedade do
marido, mas companheiras.
34
homens que não pensam que a gente é politizada. Eles não pensam
que a gente entende da sociedade, do companheirismo sem perder a nossa
sensibilidade de mulher. Eles acham que a gente nunca sonha com a
Universidade. Aqui no Acampamento tem muitas mulheres que sonham com
a Universidade. Eu mesmo sou uma e têm mais cinco que querem fazer
Universidade, outras já estão fazendo.
A gente quer que o homem não se sinta como o dono da mulher. Eu falo
isto por mim. Esposar é como uma maneira de dizer: eu sou dono dela, ela é
minha esposa, ou eu sou dona dele. Mas não se trata disso. Homem e mulher,
34
Nesse momento Regina generaliza. Na verdade Regina compara a mulher que está integrada no Movimento
com outras camponesas, pelo que deixou transparecer em suas representações.
136
no Movimento, são da luta em prol dos outros. Mesmo que a mulher tenha
que ficar na retaguarda”.
Regina reconhece que há ainda limites impostos à condição da mulher dentro
do MST, reflexos de paradigmas cristalizados no processo civilizatório da maioria
dos povos, que ainda são componentes de uma cultura anacrônica que a própria
mulher assimilou como natural, mas que aos poucos vai despertando e reivindicando
seu lugar de sujeito dentro da sociedade.
Envolvidas na luta em defesa de uma causa elas ainda m que enfrentar
uma luta dentro da luta”, como entendem Valenciano e Tomaz Junior (2002, p. 3)
que argumentam:
Quando da inserção da mulher no MST, e conseqüentemente da sua
participação nas ações promovidas por essa organização, entendemos ser
através desses embates a forma que se apresenta a busca pela
emancipação do gênero humano, ou seja, a emancipação dos
trabalhadores. Paralelamente, ou por dentro desse processo, as mulheres
criaram espaços de socialização e manifestação que possuem como
objetivo a busca pela emancipação da mulher, ou seja, a transformação
almejada pelo MST, na qual a emancipação da classe trabalhadora é o
objetivo central. E como extensão desse objetivo, comparece por dentro
desse processo a transformação das relações sociais de gênero.
E Regina finaliza, manifestando sua disposição:“Eu sofri, por me decidir
em ficar na retaguarda, mas não me arrependo disso. Em nenhum momento
eu vou dizer que me arrependi disso. Eu ainda estou na luta, mas quando
puder vou me integrar mais”.
Regina entende que vai poder integrar-se mais no Movimento quando
conseguir graduar-se em psicologia e puder oferecer assistência aos assentados e
demais integrantes do MST, prestando, acima de tudo, orientação às mulheres, para
a solução dos seus conflitos.
Como Regina havia relatado, há casos em que é a mulher que assume papéis
de liderança dentro do Movimento. É o caso de Odete, que ao invés de ser seu
137
marido, é ela que desempenha papel de liderança dentro do Assentamento,
coordenando o setor de saúde. Odete reconhece os avanços da mulher camponesa
dentro do Movimento:“Principalmente no lado feminino, no MST muda muito.
A mulher que entra no MST muda muito, fica muito diferente. Geralmente
do lado masculino não muda tanto. Mudam os conceitos das pessoas, mas não
muda tanto porque eles, na sociedade, são os que mais se mexem. Mas aqui
não.
Tem mulher que, quando chegou aqui, nem cumprimentava as pessoas.
Não olhava pra cara de ninguém. Agora a gente nem reconhece.
Eu participo das Assembléias a cada quinze dias, mas o último
encontro que eu fui deve fazer uns dois anos, mais ou menos. Vai fazer dois
anos em agosto que fui no encontro de Tamarana, em Florestópolis.(município
do norte do Paraná).
O encontro que teve em Curitiba, das mulheres, eu fiquei com vontade
de ir, mas como não sabia como iam ser os alojamentos e eu com o neném
novinho, acabei não me arriscando. Não é fácil! Optei por ficar em casa.
Mas eu já participei muito. Em Canta Galo, Curitiba, Brasília, no
Congresso. participei muito de vários encontros. fui pra Querência, pra
Paranacity.
Quando a gente esparticipando de uma coordenação, coordenando
um setor, como é que você vai discutir se você não está atualizado. Você tem
que ir aos encontros. Não tem outra opção”.
138
7 As Lutas, a ocupação do Assentamento e a organizão das linhas de
produção
Ele tem lutado há muito tempo!
Suas mãos cheias de calo e seu rosto de cansaço,
sua mulher cheia de dores e seus filhos de fome,
seu barraco cheio de buracos e seu coração de amarguras.
É noite. A chuva cai implacável trazendo consigo um vento frio em forma de açoite.
E a cidade dorme porque é noite.
Enquanto seus filhos dormem em um único canto sem goteira do barraco, sua mulher
caminha de um lado para outro, enrolada em um pedaço de cobertor velho, tentando
dissimular a angústia que lhe aperta o coração.
Sentado na taipa do fogão, ele acende um cigarro com um tição tirado do meio das
cinzas e aproveita o ardor da fumaça para deixar cair uma gota de lágrima dos seus
olhos que estão proibidos de chorar.
Não muito longe dali, rompendo o silêncio da noite, homens e mulheres cantam e
dançam, esvaziando taças de bebidas e enchendo as almas de vazios.
Responsáveis, mas indiferentes à dor dos que sobrevivem na miséria, eles ajudam a
crucificar mais uma vez o Cristo que se tornou escravo de um sistema, em que a
justiça é uma mera utopia. Parece até que Deus está dormindo!
(trecho do jogral Justiça no Mundo, 1970), de autoria deste pesquisador.
As lutas, as mobilizações, os enfrentamentos dos militantes, ao invés de
enfraquecê-los, parece torná-los mais fortes, pois, desencadeiam um sentimento de
indignação, como foi relatado em mais de uma das entrevistas. São movidos por
uma ideologia, são alimentados por uma crença, o impulsionados por uma causa
que nem sempre é compreendida pela população que é vítima de manipulação da
mídia.
Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2001) destaca cinco estratégias no período
do governo de Fernando Henrique Cardoso planejadas com o objetivo de
desqualificar as lutas do MST por Reforma Agrária.
A primeira estratégia, segundo Oliveira, foi a “criminalização das lideranças do
MST”; a segunda, foram as medidas legais adotadas pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrio, como ITR
35
progressivo, Projeto Cédula da Terra e o
35
ITR- Imposto Territorial Rural.
139
Banco da Terra
36
, visando a implantar uma reforma agrária de mercado; a terceira,
foi o estímulo à criação de novos movimentos sociais com apoio de várias centrais
sindicais, movimentos esses que ao invés da tática de ocupação adotam a de
negociação, para enfraquecer a base do MST; a quarta estratégia foi a realizão de
reuniões e seminários com intelectuais estudiosos da questão agrária formando uma
frente intelectual de crítica aos movimentos e seus intelectuais orgânicos e
a quinta ão é aquela que tem sido marcada por lances espetaculares, de
acordo com a chamada sociedade do espetáculo. A ação, na mídia, vem
mobilizando o governo, os movimentos e a opinião pública. Reportagens
procurando impingir caráter satânico às lideranças do MST,
contrapropaganda organizada a partir de grandes órgãos de imprensa,
denúncias nunca provadas, formação de equipes de jornalistas, realização
de pesquisas de opinião pública sobre o MST, produção de material virtual
via internet etc. estas ações geram na mídia um conjunto significativo de
notícias que objetivam principalmente desmontar a imagem de apoio que a
população tinha formado sobre o MST e a Reforma Agrária após a Marcha a
Brasília. (Oliveira, 2001, p. 15).
Fato mais recente como a destruição do laboratório da Aracruz Celulose,
ocorrido no dia 08 de março de 2006, pelas mulheres do movimento campesino, no
Rio Grande do Sul, ocasião em que foi destruído um trabalho de vinte anos de
pesquisa, foi apresentado para a população como vandalismo, porém indagando a
respeito do ocorrido, algumas lideranças explicaram que aquela empresa estava
desenvolvendo plantas com alterações genéticas que comprometeriam a
biodiversidade e o futuro do planeta.
Eram, segundo eles, árvores sem vida, nas quais nem as abelhas
encontrariam ambiente para viver, e a intenção do MST foi, além de impedir que
fosse levado a termo o projeto daquela empresa de capital estrangeiro, que só tinha
como intenção a geração de lucros, alertar a população para a questão da
36
O projeto Cédula da Terra e do Banco da Terra, criados com recursos do Banco Mundial, em parceria com o
governo Federal, tinham como objetivo financiar a compra da terra com um prazo de carência de dez anos
para pagar.
140
biodiversidade e para o descaso com o qual a questão é tratada pela iniciativa
privada, e por grupos econômicos internacionais.
A mídia, no entanto, apresentou o fato de uma forma que gerou indignação na
população que desconhecia os motivos do Movimento Campesino.
Algumas semanas depois, a Aracruz Celulose passou a utilizar a mídia para
fazer propagandas de sua importância e de sua preocupação com as futuras
gerações, e até o Pelé
37
foi utilizado para vender uma imagem positiva da empresa.
Sem entrar no mérito dessa questão, o fato é que o Brasil está séculos
atrasado em sua Reforma Agrária, mas nem todos vêem com bons olhos as ações
empreendidas pelo MST. Por outro lado, convivendo com seus integrantes, os
motivos que os impulsionam o esclarecidos, ficando a critério de quem ouve
aceitar ou não suas justificativas.
Eles afirmam que não estão preocupados apenas com a Reforma Agrária ou
com a conquista da terra, mas com questões mais amplas que envolvem o modelo
econômico, causador da exclusão social e da iniqüidade, que nega o exercício dos
direitos de vida digna a índios, minorias raciais, sem terra, sem teto e, numa
dimensão mais ampla, estão preocupados com a biodiversidade, que é um direito
das futuras gerações.
Um paper escrito por Cândice Lisboa Brandão e José Xavier Magalhães
Brandão, ambos de Caratinga (MG), ela, advogada e mestra em extensão rural pela
Universidade Federal de Viçosa e ele, juiz de Direito da 1ª Vara vel da Comarca
de Caratinga, no qual abordam a questão do pluralismo jurídico, a partir de uma
análise sobre a atitude das mulheres que destruíram o laboratório da Aracruz
Celulose, destaca que o MST tem pautado suas ações, regra geral, dentro da
37
Pelé ou Edson Arantes do Nascimento, considerado um dos maiores craques do futebol brasileiro de todos os
tempos.
141
legalidade, porém, naquela ocasião, havia um motivo para uma ão mais
contundente. Eis o tom em que conduzem a análise do evento:
Com relação à invasão e destruição do laboratório da Aracruz Celulose no
dia 08 de março de 2006, a ação das mulheres do movimento campesino foi
uma rechaça a uma ação anterior perpetrada pela empresa contra um grupo
indígena na cidade de Aracruz, Espírito Santo, ocorrida em 20 de janeiro
deste ano. Foi um manifesto simbólico de repúdio, não só ao deserto verde,
mas à violência que uma empresa de grande porte econômico causa a um
grupo de minoria étnica, e que não é noticiado, tampouco punido. Na
verdade, poucas pessoas tomaram conhecimento da violência contra os
indígenas. Poucos também sabem que a região de Aracruz, ES, é um
reduto de conflitos relativos ao uso e posse da terra [em] que, nesse
contexto, o MST e a população indígena lutam contra um adversário
politicamente mais forte. (BRANDÃO & BRANDÃO, 2006).
Os sem terra têm consciência da distinção entre o uso político da força e o
uso da força política, porém, a despeito de certas atitudes por vezes ousadas, e até
mesmo aparentemente agressivas, primam por ações pacíficas, por saberem que
sempre estarão em desvantagem se optarem por ações violentas, pois serão timas
tanto do uso da força política, quanto do uso político da força, ambas concentradas
nas mãos dos detentores do poder econômico que gozam de vantagens, em ambos
os casos.
Num cenário de violências praticadas contra os camponeses ao longo da
história, que ocasionaram e continuam ocasionando muitas mortes em todo território
nacional, o MST se apresenta como uma forma racional de luta pelos direitos da
terra, “pensada, articulada e executada a partir da cidade, com a presença de
retirantes a quem a cidade/sociedade insiste em negar o direito à cidadania”.
(Oliveira, 2001, p. 6).
Ariovaldo Umbelino de Oliveira afirma, em um dos seus artigos, que “os
acampamentos e Assentamentos são novas formas de luta de quem lutou ou de
quem resolveu lutar pelo direito à terra livre e ao trabalho liberto”. (Oliveira, 2001, p.
6).
142
7.1 A militância e a luta pela terra
As dificuldades pelas quais passou Alencar Hermes e sua família são
exemplos do que ocorre nos acampamentos e são sintomas do pacto que o governo
mantém com as elites, como afirma Martins (2000, p. 193): o executivo no Brasil,
desde a Revolução de 1930, pelo menos, reflete e expressa o pacto político entre o
capital e a propriedade da terra”.
O fato de ter conquistado a terra não distanciou Alencar da luta. Ele continua
lutando pelas causas do MST que vão além do direito à terra, mas que representam
“a face moderna do Brasil, a parte deste país que está em luta”. (Oliveira, 2001, p.
15).
Alencar relata:
“Ficamos quatro meses em Alvorada do Sul e de saímos ocupando
terras. Ocupamos a Fazenda Santa Rosa de um vereador de Londrina, que é
também conhecido por Santa Rosa, e de lá fomos despejados várias vezes.
Foi no ano de 1997. Na época era mais fácil a gente ocupar terras. A
gente ocupava as terras e o INCRA era forçado a fazer a vistoria, para
saber se a propriedade estava cumprindo a função social, como prevê a
Constituição, até que o presidente Fernando Henrique Cardoso, com uma
medida provisória decidiu que a propriedade não podia ser vistoriada com
pessoas nela.
38
38
A medida provisória de FHC, 2109 - editada em 2000, foi uma medida coercitiva, com o objetivo de
reduzir o número de ocupações de terras no país; o imóvel ocupado podia ser vistoriado após dois anos
que fosse desocupado.
143
E tivemos que desocupar por duas vezes para que o INCRA pudesse
fazer a vistoria. Uma coisa bem sem justificativa nenhuma. Nós nunca
oferecemos perigo ou risco nenhum para o pessoal do INCRA.
Até nos causava muita alegria saber que o processo estava andando.
A gente era obrigado a sair sem nada. A seiscentos quilômetros longe dos
parentes, não havia ninguém conhecido, a não ser os colegas que também não
tinham nada, a não ser a família e uma barraquinha de lona. O mínimo do
mínimo pra sobreviver.
A gente saía para beira de BRs, pra debaixo da ponte... pra eles não
interessava. A gente tinha que sair, ficar de dois a três meses fora, para o
INCRA fazer a vistoria.
Embora a conjuntura no governo do Lerner fosse ruim, havia umas
pessoas muito boas no INCRA. As pessoas boas do INCRA, a que se refere
Alencar, eram os que, segundo ele, procuravam ser justos na avaliação da terra, em
relação ao cumprimento de sua função social: Eles analisavam que a terra era
improdutiva, mas a UDR estava se fortalecendo, se articulando e
contratando advogados... Para os fazendeiros representados pela UDR não
interessava se conseguiam a reintegração de posse ou não...
39
Faziam de
tudo para impedir o andamento do processo de desapropriação. Eles quase
sempre conseguiam fazer com que o processo retornasse e as terras voltassem
para eles.
39
Alencar deu a entender que, mesmo sem a reintegração de posse, os fazendeiros conseguiam apoio do
governo para expulsar os sem terra.
144
Alencar continua:
O processo da Fazenda Jacutinga, em Porecatu, estava bastante
adiantado. Eu e minha esposa, no dia 17 de dezembro, estávamos arrancando
feijão... arrancamos feijão até à noite e, quando chegamos em casa à
noitinha, um professor, amigo nosso, veio nos avisar que um amigo dele que
tinha um caminhão, foi intimado pelo juiz a ir retirar nossa mudança no dia
seguinte. Nossas tralhas velhas.
Uma notícia que arrasou com a gente. Ficamos à noite sem dormir e
na madrugada mesmo chegou o caminhão. Nós estávamos em trinta e três
famílias que somavam umas cem pessoas, contando com as crianças. Eram
seiscentos soldados pra despejar nós.
Ainda estava escuro, quando vimos chegando aquele monte de
soldados varrendo tudo... Era pra intimidar mesmo. Com escudos e todo um
arsenal... era uma operação de guerra!
Parece-me que, na época, tinha sido desenvolvido pelo governo do
Jaime Lerner o treinamento militar em Israel para nos combater. Foram uns
comandantes pra Israel fazer treinamento para implantar as táticas aqui no
Paraná. Faziam de tudo pra nos intimidar, mas ao invés disso o que eles
conseguiam era nossa indignação.
Um soldado com uma arma é apenas um soldado, mas um soldado que
sabe o que vai fazer, conhecendo a razão pela qual ele luta e lutando por
uma causa representa muitos soldados... Ele luta por dez ou vinte que têm
apenas um fuzil”.
145
Os conflitos de terra, que normalmente existem entre latifundiários e
camponeses, são coordenados pelos que se consideram proprietários e formam sua
própria milícia para defender seus interesses.
O governo de Fernando Henrique Cardoso, no entanto, foi marcado pelo
aumento da repressão policial como tentativa de conter os conflitos de terra,
conforme afirma Ariovaldo Umbelino de Oliveira, em artigo escrito quando FHC era
presidente da República: “Este governo entra para a História marcado por um tipo de
violência que não ocorrera ainda de forma explícita no Brasil: quem passou a matar
os camponeses em luta pela terra foram as forças policiais dos Estados.”(Oliveira,
2001, p. 9).
Mas, mesmo diante de tal cenário, Alencar diz:
“A gente não sente medo... mulheres, crianças, todo mundo sente uma
força muito grande numa situação dessa. A gente sabe que eles não podem ir
matando a gente assim tão fácil. É a resistência...Eles não têm autoridade
para saírem matando, embora demonstrem isso.
Uma passagem que foi uma das mais marcantes em minha vida, foi
quando eu coordenava várias famílias e eles chegaram chamando pelo meu
nome. Aí, como meus companheiros me defenderam, inclusive as mulheres!..
Tomaram a frente e disseram que ali não tinham nenhum coordenador.
Nos travamos luta pela questão da hidronegócio, de forma isolada:
um foco aqui, um foco ali... Travamos uma luta contra a privatização da
Copel aqui em Arapongas, pois, entendemos que privatizando a Copel estaria
sendo também privatizada a água que move as turbinas das usinas
hidrelétricas. Estaria privatizando toda a água do Paraná. o se justifica
146
privatizar a energia privatizando a água como um todo. Foi no governo do
Lerner, no seu segundo mandato que foi de 1998 a 2002, que ele quis
privatizar a Copel.
40
O MST esteve presente em Curitiba, cercando a Assembléia
Legislativa. Eu não pude estar presente porque, em virtude de uns incidentes,
estava sendo ameaçado de prisão, mas minha mulher foi.
Eu sei que o ‘pau comeu’ a toda, ali em frente o Palácio. Havia
estudantes, e várias outras categorias organizadas, e o MST também estava
presente.
Se não me engano, arrebentaram a cerca que tinham feito em torno
da Assembléia, na hora da votação. Só sei que adiaram a votação".
No mês de julho de 2001 foi realizada uma marcha com 40 mil pessoas
contrárias à venda da Copel, no dia 11, manifestantes cercaram a Assembléia
Legislativa durante ato de entrega de 140 mil assinaturas do projeto de iniciativa
popular que impedia a privatização da estatal e no dia 15 de agosto cerca de três mil
estudantes invadiram o Plenário da Assembléia Legislativa, durante votação do
referido projeto. A sessão foi transferida para o dia 20 de agosto, ocasião em que os
manifestantes foram reprimidos pela força policial, ao forçarem a entrada na
Assembléia Legislativa que acabou rejeitando, por 27 a 26, o projeto de iniciativa
popular. No entanto, o projeto de privatização, mais tarde, acabou sendo arquivado.
(Revista do Confea, 2002).
40
COPEL- Companhia Paranaense de Energia Elétrica.
147
Alencar observa que:
“Quando o Lerner privatizou o Banestado, já privatizou uma boa parte
da Copel e da Sanepar. Eu não entendo muito bem como funciona e acredito
que pouca gente entende esse negócio de ões que o Banestado tinha da
Copel e da Sanepar. Mas estava no projeto dele privatizar de vez a Copel,
quando ficamos sabendo que ele viria em Arapongas.
Ele veio aqui em Arapongas pra fazer o lançamento do Programa
Bolsa Escola, reunindo todos os municípios que abrangem a AMEPAR -
Associação dos Municípios do Médio Paranapanema. Havia vários prefeitos
presentes. Era um ato político entre os prefeitos e lideranças da cidade e
região.
Nós ficamos sabendo que ele viria porque nossos dirigentes
descobriram, vazou informação, e na mesma hora nos avisaram e passaram
a responsabilidade pra gente. Em pouco tempo nos articulamos e em vinte
minutos lotamos um ônibus de pessoas, colocamos o ônibus na estrada e fomos
para Arapongas.
Ninguém sabia que a gente iria, mas o Batalhão de Choque estava na
entrada de Arapongas e já proibiu a entrada do ônibus, então nós descemos e
fomos a pé. A pé eles não podiam nos impedir. Temos o direito de ir e vir.
Chegando lá fomos nos colocando em torno da Prefeitura e foram
juntando uns professores pra nos apoiar, o pessoal da esquerda de
Arapongas, os petistas, o Hermes,meu chará do Sindicato dos Bancários e foi
aquele auê. Juntamos ovos... e o Lerner dentro da Prefeitura, conversando
148
com os prefeitos lá dentro. Estava tudo preparado para fazerem um ato
público de lançamento do Programa Bolsa Escola. Se nós o estivéssemos
sabendo, talvez o evento pudesse até acontecer. Então cercamos a Prefeitura.
Havia até então pouco policiamento, como se estivessem subestimando a
nossa ousadia.
Passou umas duas horas e o governador estava encurralado dentro da
Prefeitura. Uma hora ele teria que sair. Uma hora ele tentou sair pelos
fundos e o pessoal viu que ele estava saindo.
Entrou na caminhonete e nós fomos com pedras, paus e ovos atrás da
caminhonete...Coisa de louco mesmo. Fazer isto para o governador!!! Aquela
fila de gente; além de nós, professores, estudantes correndo atrás da
caminhonete e atirando pedras, paus e ovos. Se você quiser eu tenho recorte
do jornal até hoje lá em casa.
O governador se encurralou no Clube Comercial, onde ia ter um
almoço. Ele estava sem saída e se enfiou ali dentro. E aí já tinha chegado o
Batalhão de Choque de Rolândia pra reforçar. Passava de cem policiais
armados, com cachorros, mas por pouco nós não entramos no Clube
Comercial.
Nós ficamos ali, medindo forças. E vai daqui, vai dali... E do Clube
Comercial o Lerner tratou de ‘vazar’ embora. Não havia clima para ele ficar
mesmo. ‘Vazou’ embora.
E nós ali, medindo força com a polícia, aque eles partiram para a
ignorância. Calcaram tiros de borracha. Foi difícil um que não levou tiro de
149
borracha. soltaram gás lacrimogêneo e s tivemos que nos dispersar.
Não tinha como continuar.
Quando nos dispersamos notamos logo o jato do governador
passando por cima de nós. tinha ido para o aeroporto pra dar um jeito de
ir embora. Pusemos o governador pra correr. Arapongas nunca viu coisa
igual!
Com esse movimento todo, nós fizemos com que não houvesse clima
para a privatização da Copel. Queríamos deixar registrada a nossa
indignação contra a privatização da Copel. Era esse nosso objetivo. Com
isso nós estávamos também demonstrando que não íamos aceitar a
privatização da Sanepar. estávamos lutando, nesse momento, contra a
privatização da Sanepar...”.
Os avanços e conquistas, por pequenos que sejam, acabam por afetar a
totalidade, produzindo rupturas de maior ou menor extensão que podem contribuir
para mudanças e transformações no decorrer do tempo, uma vez que todos os
movimentos sociais “causam impacto nas estruturas sociais em diferentes graus de
intensidade e com resultados distintos...” (Castells, 2003, p. 86).
Por terem consciência de que suas condições de vida e segurança são
determinadas por uma totalidade maior, não restringem suas lutas à conquista da
terra para si, mas lutam por mudanças estruturais, projetando suas expectativas
para o futuro do país e de segmentos marginalizados da sociedade, combatendo o
capitalismo no campo, caracterizado pelos agronegócios, e o neoliberalismo que traz
em seu conteúdo uma proposta de Estado que dificilmente poderá garantir direitos
de emancipação e de cidadania à grande massa da população, uma vez “que o
150
capital trabalha com o movimento contraditório da desigualdade no processo de seu
desenvolvimento”. (Oliveira, 2001, p.1).
Um capitalismo de natureza global sem maiores compromissos com as
causas sociais internas de qualquer país, orientado essencialmente pela ditadura do
mercado, torna o próprio Estado refém das forças que operam no mercado mundial.
Alencar demonstra que assimilou uma nova conscncia da realidade após
ingressar no MST e afirma:
“Quando eu e minha família entramos no
Movimento, pensávamos em ter mais segurança conquistando uma terra pra
gente. Acreditávamos que podíamos viver com mais dignidade como
pequenos agricultores, mas depois a gente foi vendo que a coisa não é tão
simples assim.
Hoje a gente sabe que está prestando um serviço maior para a
sociedade. No princípio a gente acreditava que a luta pela terra bastaria.
Que era possível dar uma vida digna para a família como pequeno
agricultor, mas as dificuldades que o modelo foi colocando na frente da gente
foram abrindo nossos olhos e a gente passou a perceber que a luta tem uma
dimensão muito maior. A gente entra na luta pra se sentir útil para a
sociedade.
Estava em Porecatu, onde a gente tinha sido despejado, e estávamos
num acampamento, esperando que regularizasse a situação, mas precisou de
reforço aqui e eu vim para ajudar. O Bisca, prefeito de Arapongas, queria
esta fazenda para fazer Vila Rural, ou curral eleitoral; então a gente veio
reforçar a luta aqui.
151
Eu e mais uns vinte companheiros, que estavam na luta em Porecatu,
viemos pra cá. Aqui o interessa quem veio primeiro ou veio depois. Quem
veio primeiro não é mais importante do que quem veio de outra frente de
luta.
Nós temos companheiro aqui que tem bala atrás do couro até hoje. Tem
chumbo atrás do couro, de outras lutas... A polícia diz que atira bala de
borracha, mas isso não é verdade. Gente que quebrou a perna em outros
combates, também tem aqui entre nós. Foram os que estiveram na região
noroeste, onde, em 1997, a repressão foi muito violenta”.
Renato revela a influência marcante que a doutrinação religiosa e marxista
exerceu em sua vida. Em ambas as místicas, cristã e marxista, o militante via de
regra sente-se motivado a dar sua vida pela causa.
Dar sua vida, no entanto, não significa morrer pela causa ou pela fé, mas
viver por elas, entregar-se sem reservas, doar-se plenamente, esquecendo-se de si
mesmo, sufocando os apelos do ego e dedicando-se ao amor sem limites pelo
próximo.
Nem sempre, no entanto, é possível perseverar indefinidamente nesses
propósitos, pois, a natureza humana apela para outras necessidades que são
também fundamentais e atender aos impulsos dessa natureza passa, sem vida,
pela questão do direito de viver em plenitude que, pela ótica cristã, é a vontade de
Deus.
Segundo Renato,
"A formação religiosa que a gente recebe na linha da Teologia da
Libertação é a de total doação, de renúncia de si próprio que tem seus
152
valores, porém eu acabei me anulando na minha militância, além de
sacrificar os meus, a minha família.
Vem daí a necessidade da gente voltar a investir na gente também,
pra poder ter condições de ajudar os outros. Demorou muito para eu
descobrir isto. Foram necessárias muitas horas de terapia para eu entender
que precisava me preocupar comigo primeiro.
Nesse sentido o MST precisa avançar bastante, apesar de hoje
existirem profissionais dentro do Movimento trabalhando nesse sentido.
[Renato não explicitou como esse assunto tem sido abordado dentro do MST]
Ele continua:
Os que vivem na militância não encontram espaço para discutir suas
queses existenciais. Ainda há uma carência bastante grande nesse aspecto.
Quando a gente está na luta, às vezes o se conta das enormes
dificuldades que vão se criando ao nosso redor. Quanto mais cresce o
Movimento, de mais gente ele precisa e a gente às vezes não se conta de
que temos limitações. Que não podemos dar conta de tudo.
Se a gente não souber dizer que estamos no limite, o Movimento vai
absorvendo a gente cada vez mais e a gente vai assumindo cada vez mais
atividades, cada vez mais tarefas e quando vê a gente se arrebenta.
O que aconteceu comigo, aconteceu com muitos militantes.
Hoje estou enfrentando dificuldades financeiras em conseqüência da
minha doação total durante a militância. Em virtude disso, Renato reduziu seu
ritmo de militância:
153
Eu acho necessário a gente pôr os s no chão e fazer as coisas de
acordo com as possibilidades, respeitando nossos limites”.
Renato não destaca momentos de enfrentamento com forças policiais e nem
despejos, pois, sua atuação sempre foi mais de apoio aos acampamentos e ao
Movimento em dimensão regional, estadual e nacional. Só relatou que quando
acampou pela primeira vez, dali a alguns dias os acampados foram surpreendidos
por tiros, por cima do acampamento, nas proximidades do Natal.
Regina, porém, relata que Renato se machucou num enfrentamento com
policiais no acampamento de Ibema, quando tentaram fazer um despejo.
Os depoimentos de Regina demonstram mais do que um conteúdo de
consciência política e ideológica, mas a transformação de perfil do camponês que,
ao ser expulso da terra, liberta-se da dominação do fazendeiro e assimila uma nova
postura de enfrentamento e desobediência.
O depoimento de Regina:Quando fui morar com meu pai, o
Acampamento ia completar um ano... Dali a duas semanas que eu estava
no Acampamento chegou a polícia, mas eu não senti medo. Mesmo
fazendo duas semanas que estava lá, estava preparada para esse tipo de
coisa. Havia sempre um fazendo guarda num morro bem alto e soltava
foguete quando via aproximação de policiais.
Quando ouvimos o foguete a gente se levantou e fomos eu e meu pai nos
juntarmos aos outros. Teve gente que apanhou bastante. O Renato mesmo
ficou machucado. Tem até uma foto ainda... aquela tentativa de despejo de
Ibema.
154
Os policiais vieram pra tirar a gente da área. Eram muitos policiais
armados e com cachorros. O que me marcou foi a quantidade de policiais.
Não fomos despejados porque o pessoal resistiu. A gente estava muito
bem organizados. Todo mundo fazia guarda e todo mundo ficava acordado.
Eu me lembro que a gente ficava acordado das quatro horas da manhã em
diante.
Ninguém dormia mais. Meu pai mesmo fez muitas guardas. Muitas,
muitas guardas. O pessoal estava muito organizado. Se fosse para fazer hoje
o que a gente fazia naquela época, Nossa Senhora...! Naquela época a polícia
chegava batendo. Não faziam essa negociação que estão fazendo agora.
negociavam depois que a gente resistia.
Naquela época eu o conseguia entender muita coisa, porque tinha
apenas treze anos. Depois é que a gente vai começando entender. Eu sabia
que a gente tinha que resistir e se eles quisessem entrar a gente tinha que
descer o cacete neles.
Aquele foi um confronto bem quente: chute nas canelas, cacetetes,
pauladas... a gente reagia com paus, taquaras, foice, facão. Não era um
confronto de brincadeirinha. Era coisa séria. A gente não tinha arma de
fogo, porque o risco ia ser maior pra gente.
Isto foi um momento marcante na minha vida, porque a gente resistiu
naquela terra, que pra gente era a esperança. Era a esperança de toda a
comunidade que estava lá.
155
Muitas pessoas deixaram tudo, venderam o que tinham, muito embora
não tivessem quase nada. A esperança que eles tinham era de continuar
naquelas terras.
O modelo capitalista tira das pessoas a capacidade de indignação e o
Movimento resgata a capacidade de se indignar com qualquer injustiça que
qualquer ser humano sofra”.
Na postura da indignação, do enfrentamento e da desobediência às forças
opressoras e da proclamação dos direitos, que desmoraliza o mando de quem tem
sobre quem carece, os pobres definem uma nova moral, que desvenda e denuncia o
grande mundo de seus iguais e o de seus contrários- e revela o mistério do poder e
a importância do querer”. (Martins, 1989, p. 13).
Uma moral assentada em bases de solidariedade, cooperação, partilha, união
e novos critérios de avaliação humana, nos quais o sentido de ser útil para o grupo
social a que pertencem é mais importante do que a posse de bens, revela o
surgimento de uma nova identidade, construída a partir de novos parâmetros.
Perguntada se o Movimento anula a vida pessoal das lideranças, Regina
responde:“O movimento não anula, mas absorve demais, como todos os que
lutam por uma causa. Quem luta por uma causa automaticamente se doa,
como qualquer um, que trabalha com idealismo, se doa por uma profissão.
Há, porém uma linha muito tênue entre o limite de se doar e de ser um ser
humano, pessoa... e ter outras necessidades.
Na verdade, a pessoa que entra no MST tem que aprender a se
conduzir, como militante, como pai de família, como ser humano no mundo.
156
Aprender a conciliar os projetos individuais com os coletivos. Esse conflito,
todo militante acaba tendo em algum momento.
Muitos não vêem o lado do Movimento, o lado da luta social. É uma
luta muito importante. Se a gente for pensar no lado pessoal, a gente acaba
se sentindo lesado, mas a luta é muito maior, pois você esta contribuindo
para inserir muito mais pessoas na sociedade.
Eu também fui militante. Entrei no MST por causa do meu pai, com
doze anos de idade, e participei de lutas, de mobilizações e sempre estudando.
Eu era um ser mais inserido no Movimento”.
Pedrinho, embora não buscasse lutar pela posse da terra para si, uma vez
que, mesmo trabalhando como empregado na terra, estava, de certa forma,
satisfeito; se une, na medida do possível, às lutas para apoiar aqueles que ainda
não conseguiram seu pedaço de chão. Como os demais agentes pesquisados, ele
faz parte daqueles militantes que lutam pelo direito dos que ainda vivem na
esperança de conquistar seu meio de sobrevivência e sua emancipação como
cidadãos.
A militância de Pedrinho: “Fui apoiar acampamentos, ajudei a fazer
ocupações, estive no enfrentamento do dia 02 de Maio de 2000, em Curitiba,
onde morreu o José Tavares, sendo um dos momentos mais fortes que vivi.
Mas a agonia que eu passava dentro da comunidade de Marialva, tendo que
defender a bandeira do MST, mesmo tendo a Rosilda ao meu lado, não foi
pequena. Fiquei de certa forma marginalizado, enfrentei preconceitos,
discriminações...
157
Mas depois que vim para o Assentamento continuei participando.
Participei do acampamento em Curitiba em frente ao Palácio Iguaçu, por
vinte dias, fiquei varias semanas em acampamentos morando debaixo da
lona...
Na verdade, no acampamento você se sente protegido. Você está
participando de um grupo que tem trezentas ou quatrocentas famílias que
m a mesma idéia, o mesmo pensamento e se você vai para um confronto
você vai com um grupão contra o adversário que está lá fora. Lá em
Marialva todo o meu tempo de luta foi sozinho...
Nos acampamentos e enfrentamentos a Rosilda não me acompanhava,
mas participava sempre das Romarias da Terra, dos cursos da CPT
relacionados à terra, ao camponês, ao êxodo rural e suas causas...”.
Odete diz que não foi “batizada”, de acordo com a linguagem do MST, pois
nunca sofreu nenhuma ão de despejo, mas relata de forma bem humorada a sua
participação na mobilização junto à Assembléia Legislativa do Paraná, para impedir
que fosse aprovado o projeto de privatização da Copel.
Odete relata com bom humor o seu “batismo”: Na linguagem dos sem
terra nós não fomosbatizados’, porque nunca fomos despejados. A única vez
que posso dizer que fui batizada’ foi em Curitiba, quando fomos brigar para
não privatizarem a Copel. Lá eu tive que correr. Lá era bater ou correr.
Não tinha outra saída. Eu ainda estava com o menino que agora
está na Escola. O negócio foi: sair correndo”!
158
7.2 A luta na terra
Por ser um dos coordenadores da política organizativa do Assentamento,
Alencar Hermes sente uma responsabilidade muito grande pelo projeto de
desenvolvimento das linhas de produção. Percebe-se nele certa ansiedade para que
as linhas de produção sejam viabilizadas, o que pode ser observado em sua
narrativa.
A organização produtiva do Assentamento, segundo ele, passa por uma
questão ideológica, pois, as lideranças pretendem fazer daquela comunidade uma
referência para outros assentamentos e para a sociedade, buscando contrapô-la à
produção agrícola orientada pelas imposições de regras dos agronegócios.
É a cultura de resistência, como se expressam, com o objetivo de demonstrar
para a sociedade que é possível viver com mais dignidade no campo do que nas
favelas urbanas, corroborando o que afirma Martins referindo-se ao processo de
ressocialização nos Assentamentos: Seus participantes aprendem a reordenar, na
nova prática, a estrutura produtiva da agricultura familiar”.(Martins, 2000, p. 47).
Segundo Alencar,
“O problema das linhas de produção passa pela questão do
entendimento, da formação ideológica.
Eu e uma outra pessoa conseguimos implementar o grupo de água,
aqui no Assentamento. Conseguimos integrar trinta e cinco famílias nesse
grupo de água. Todo mundo foi convidado, mas os que conseguiram acreditar
foram trinta e cinco pessoas.
A gente tinha que mostrar fazendo. Hoje esse grupo d’água possui
água encanada em casa, que é captada de uma nascente e bombeada para
uma caixa e distribuída para essas famílias.
159
Imagine mais de trezentos alqueires de terra sem água e sem luz...
Todo mundo queria morar perto da antiga sede da Fazenda que tinha água
encanada e luz elétrica, mas a gente precisava fazer com que o
Assentamento desenvolvesse. Então propusemos a captação da água da
nascente, porém muita gente achou que o investimento era muito grande e
que a água não chegaria até suas casas.
As trinta e cinco famílias que acreditaram hoje têm água encanada
em casa”. As demais famílias, em mero de 63, não contam com este benefício,
por acharem que seria um investimento muito alto para as suas condições e
preferiram esperar que a Sanepar instalasse a água. Assim como o caso da linha
d’água, as linhas de produção são alternativas de produzirem em caráter semi-
coletivo, mas nenhuma família é obrigada a adotar qualquer linha produção e pode
produzir da forma que achar mais conveniente. “Isto abrange aproximadamente
uns cento e cinqüenta alqueires de terra. . O grupo da água não é uma linha
de produção, mas demonstra a realização de um projeto coletivo.
O Estado se responsabiliza pela instalação de água e luz elétrica nos
Assentamentos, porém até agora ele instalou a luz elétrica. A água ainda
é a que nós providenciamos.
Organizei a linha de produção do leite que hoje perde para a linha
de produção do bicho da seda, que é uma linha de produção motivada por
uma cooperativa de fora e não do acampamento.
É um pouco complicada essa questão, porque fica muito na
dependência do mercado, da empresa de fora que dita as regras, com o
agravante de depender do mercado internacional.
160
E Alencar continua:
Quanto à linha de produção das galinhas caipiras poedeiras, o Renato
está tentando desenvolver, mas por enquanto está encontrando dificuldades
até para buscar os pintinhos na BR. Faltaram mais adesões pra diminuir as
despesas.
Nós tínhamos um agrônomo que nos dava assistência e ele apresentou
as alternativas que poderiam dar certo pela viabilidade econômica, de
acordo com as necessidades do mercado. Ele tinha um lote e morava aqui no
Assentamento, mas acabou indo embora, atendendo ao convite de uma
cooperativa central da Reforma Agrária em Curitiba e está trabalhando
atualmente. Além de ser um bom profissional ele era ideologicamente muito
afinado com as nossas propostas. Fazendo um estudo de mercado ele não
apontava o leite e a seda como uma boa solução, pela instabilidade do
mercado, mas sim o café, frutas, hortaliças...
A linha de produção do café es se expandindo. Cada vez mais as
pessoas estão aderindo ao plantio do café. Alguns ainda não estão
produzindo o café totalmente orgânico, mas o Pedrinho, por exemplo, está
plantando o café totalmente orgânico.
Nós estamos nos preocupando com a questão ecológica no mundo
inteiro. Fazemos parte da Via Campesina, que é um Movimento
internacional dos sem terra, e discutimos a questão da ecologia nas mais
variadas instâncias”.
Alencar Hermes sente-se dividido entre a luta do Movimento e a luta pela
manutenção da família.
161
“Temos um tipo de vida assim: nós andamos no limiar do posvel. No
limite do possível, nós andamos. É possível até aonde? A luta é importante,
mas não vou deixar minha família passar fome, mas... está no limite do
possível.
Alencar Hermes chama para si parte da responsabilidade pela maior
integração da comunidade, atribuindo às suas limitações a dificuldade de transmitir o
que sabe e o que pensa.
Percebe-se nele uma grande ansiedade em viabilizar o Assentamento dentro
das expectativas do Movimento e do projeto inicial, de organização das linhas de
produção e do plantio de orgânicos.
“Não gosto de pôr a culpa nos outros. Sinto-me sem argumentos
suficientes para fazer as pessoas entenderem. Eu tenho dificuldade de
transmitir tudo aquilo que eu entendo. Uma coisa é entender, outra coisa é
transmitir”.
Renato, por sua vez, desabafa, falando sobre os conflitos que vive. Embora
não tenha vocação exclusivamente para a agricultura, acostumado com uma
militância em dimensão nacional, passou a integrar a comunidade do Assentamento
não especificamente pelo desejo de ser um camponês, mas por outros motivos de
ordem pessoal e familiar.
Depois de participar, por vários anos, de inúmeras frentes de luta, Renato se
propõe a uma nova tarefa: a de contribuir para a viabilização de um projeto de
Assentamento que sirva de ‘espelho’ para os demais, como ele próprio afirma em
uma conversa informal.
“Não participei diretamente da ocupação deste Assentamento, porque,
na época, eu estava fazendo a coordenação do MST da região e como
162
coordenador dei apoio à ocupação, mas como estava me sentido cansado de
viver na militância e sentindo a necessidade de dar um pouco de
segurança à família, decidi vir morar na comunidade.
Na época, ainda era acampamento, porque a Fazenda ainda era de
propriedade do Banco do Brasil.
Vim pra com a família e no começo estava me sentindo muito bem,
pois, comecei a mexer com a terra, construí minha casa... um lugar pra
gente... fazer parte de uma comunidade...
No início foi bom, como disse. O cabo da enxada serviu de terapia,
porém quando comecei a deixar as atividades em nível de Estado e em nível
regional cai em depressão. Passei a fazer terapia, em razão de umas seqüelas
do meu estresse e de uma crise de identidade, por não saber que rumo dar à
vida”.
Quando Renato se expressa dizendo que não sabia que rumo dar à vida,
revela estar passando por um momento de crise existencial que, ao que parece, é
comum à maioria das pessoas em certos momentos da vida, principalmente aos que
se doam sem cobrar nada para si, aperceberem que, por mais que façam pelos
outros, o estão sentindo, por parte dos outros, preocupação com eles ou com
suas necessidades.
Renato Reinehr revelou estar passando por um conflito existencial bastante
acentuado, como líder do MST, que a partir de um momento da vida se tornou um
assentado.
A luta pela terra tem uma dimensão diferente da luta na terra como, em certo
momento, afirma Pedrinho.
163
O sonho e a expectativa da conquista da terra trazem consigo uma motivação
para o envolvimento e para a luta que de certa forma desaparece quando esse
objetivo é alcançado.
O trabalho na terra representa desafios maiores que carecem de grandes
doses de perseverança, dedicação, e paciência. A economia de mercado não poupa
nem os grandes proprietários rurais, quanto mais os que possuem um pequeno lote
de terras de dois alqueires e meio.
A busca da sobrevivência em si é permeada de desafios e obstáculos,
quanto mais a luta pela sobrevivência de uma comunidade que aceitou o desafio de
se tornar uma referência para outros Assentamentos.
Os entrevistados não tentaram, por um momento sequer, esconder suas
dificuldades, suas preocupações e seus conflitos; pelo contrário, abriram a alma,
como afirma Reinehr.
O grande conflito pelo qual passa Renato Reinehr nos remete a uma
avaliação de que, dentro de um soldado que se doa a uma causa, existe um ser
humano de carne, osso, sentimentos, emoções, incertezas, inseguranças, temores.
Os conflitos que afloram dentro da práxis humana social dos assentados, são
por vezes determinados pela doutrinação exercida pelo Movimento, que está
inserido em uma totalidade maior -a sociedade em geral-, por vezes diametralmente
oposta às propostas e propósitos do MST, mas que influencia, consciente ou
inconscientemente, as idéias e expectativas daquela comunidade, evidenciando
mais o pensamento individualista do que o coletivista.
Não podem fugir dos avanços e dos encantos da modernidade nem se incluir
plenamente nela, transitando continuamente, com lembra Martins, do mundo real
164
para o da fantasia, “entre as relações sociais reais e o imaginário. (Martins, 2000, p.
49).
Sentem-se emancipados enquanto sujeitos coletivos, conforme se refere
Wanderley (1992, p. 145), mas ao mesmo tempo sentem-se excluídos pela
acentuação das desigualdades, conforme analisa o mesmo autor. (p. 152).
Os conflitos, portanto, estão circunscritos mais a questões de caráter
subjetivo, assim como as contradições apontadas, pois, as contradições e os
conflitos de natureza estrutural e conjuntural foram mais bem explicitados em
outros momentos e estão implícitos nas narrativas que seguem.
Uma das contradições que chama a atenção é o fato do Movimento ter como
base a família e absorver de tal forma alguns de seus militantes, que a família acaba
sendo relegada a plano secundário.
O impulso em lutar para promover mudanças na estrutura fundiária projeta o
olhar de muitos líderes para conquistas futuras, desviando-os do aqui e agora,
envolvendo-os excessivamente em projetos coletivos, sem se darem conta de suas
questões e compromissos individuais, até que em determinados momentos aflorem
como conflitos existenciais ou familiares. Karel Kosik (1976, p. 204), em “A dialética
do concreto”, assim argumenta:
a práxis compreende, além do momento laborativo, também o momento
existencial: ela se manifesta tanto na atividade objetiva do homem, que
transforma a natureza e marca com sentido humano os materiais naturais,
como na formação da subjetividade humana, na qual os momentos
existenciais como a angústia, a náusea, o medo, a alegria, o riso, a
esperança etc., não se apresentam como experiência’ passiva, mas como
parte da luta pelo reconhecimento, isto é, do processo da realização da
liberdade humana. Sem o momento existencial o trabalho deixaria de ser
parte da práxis.
A busca do equilíbrio e do ajustamento pessoal é tarefa na qual cada ser
humano se empenha, individual ou coletivamente, tendo consciência ou não dessa
busca.
165
No fundo, cada um esem busca de seus interesses, porém os estímulos
externos ou motivos internos são determinantes nessa tarefa.
No entanto, ações que não conduzem a resultados palpáveis, mas
angariam o reconhecimento do grupo ao qual o indivíduo pertence, porém a partir do
momento que a pessoa humana alcança o objetivo pelo qual lutou, passa a
perseguir outras metas e estabelecer novos objetivos.
Em sua práxis humana social, o ser humano está sujeito a enfrentar
obstáculos que geram conflitos e incertezas, principalmente quando se sente movido
por impulsos diferentes que exigem dele uma decisão, ou uma tomada de posição.
Até que ponto um projeto coletivo, movido por uma ideologia, pode interferir
nos projetos individuais de seus militantes, comprometendo a sua realização integral
e harmônica?
Neste sentido pode-se compreender os conflitos dos entrevistados que, em
alguns momentos se abrem em desabafos.
Renato Reinehr manifesta um conflito de ordem existencial que não afeta
somente a ele, mas a muitos outros militantes do MST, como ele.
"Caí em depressão e a crise acabou afetando a minha vida conjugal.
Tive que fazer terapia, a Regina também... foi difícil eu sair.
Uma das causas do meu conflito era a vontade de continuar na
militância em nível estadual e regional e a necessidade de ficar na terra”.
Renato é um militante do Movimento, comorios outros, que luta pelo direito
da terra aos camponeses sem terra, porém, sem vocação para a vida e o trabalho
exclusivamente no campo.
Deixa-se absorver de tal forma pelas idéias e ideologia do Movimento que
não encontra tempo para dedicar-se ao cultivo da terra. A terra passa a representar
166
um elemento simbólico e a posse da mesma como uma forma de concretizar os
resultados da luta.
A necessidade de ficar na terra, considerando-a como o próprio fruto sem,
contudo, ter condições físicas e psíquicas para colher os frutos dela, não poderia
deixar de gerar conflitos de naturezas diversas.
É fácil de observar, em líderes como Renato, o esrito de doação e de
entrega de si mesmo pela causa, que até num certo momento da vida consegue
preencher suas necessidades existenciais, porém, quando o apelo das
necessidades de sobrevivência e segurança da família se acentuam, o peso da
responsabilidade, não por si mesmo, mas por aqueles que dele dependem se
sobrepõe a quaisquer outros apelos.
O momento pelo qual passa Renato faz parte de um processo natural de
reestruturação de sua identidade, como militante e como chefe de família.
Sua expectativa é de que, ao conseguir administrar seus conflitos, readquirirá
seu equilíbrio e consegui ajustar-se e contribuir melhor para o MST, quer no
Assentamento, quer em outras esferas do Movimento e da sociedade.
É normal que, ao se pensar no coletivo, o militante também se inclua nele,
uma vez que lutando pelo direito de todos tamm luta pelos seus próprios direitos;
no entanto, o limite de doar-se pelos outros não pode extrapolar os limites da vida
pessoal, sem o risco de comprometer o próprio sentido da luta.
Renato confessa:
“Na verdade eu não queria ser camponês, mas acabei pegando um lote
até pra dar exemplo aos companheiros realizando o plantio orgânico,
evitando a utilização de agrotóxicos. De alguma forma o cabo da enxada me
ajudou a superar em parte a depressão. Terapia do cabo da enxada”.
167
Regina fala especificamente de sua preocupação com Renato:
O que me
preocupa no momento é o Renato. Ele se encontra num momento difícil da
vida, porque ele teve muito mais tempo de participação intensa do que eu.
Participou muito mais e muito mais intensamente e em vários níveis. Agora
ele quer e precisa estudar mais.
Ele está sofrendo, porque sua vida sempre foi de militância muito ativa
e agora faltam até recursos para que ele possa se deslocar e voltar a
participar como antes. Por outro lado ele precisa fazer dar certo as linhas de
produção, precisa garantir o sustento da família e ficar mais perto dos
filhos”.
Pedrinho, por sua vez, nunca fez parte de acampamentos ou sofreu despejos.
Estava empregado quando foi convidado a se integrar na comunidade do
Assentamento Dorcelina Folador.
O convite foi feito mais por sua militância dentro da Igreja e na CPT. Pelo que
tudo indica, foi oferecida a ele a oportunidade de possuir seu pedaço de terra pela
confiança que o Movimento deposita nele e pelo fato dele trabalhar em terra alheia,
sem ter seu pedaço de chão.
Pedrinho conta como ganhou a terra: “Em 1999 apareceu o Chicão que era
da cidade de Floresta e membro da CPT, junto com outros companheiros que
também participavam e que conheci nos Encontros em Curitiba, e me disse:
‘Pedro, foi ocupada uma área em Arapongas, uma área muito boa, com terra
de excelente qualidade, área nobre e es se montando uma proposta para
assentar famílias que tenham conhecimento da causa, da luta e que tenham
experiências com frutas, produção de café e hortaliças e os coordenadores do
168
MST passaram a mim a função de arrumar quinze famílias desta região. E
você é um deles. Pode se preparar’.
Foi um choque na hora. Eu estava me preparando para colheita da
uva... Vamos ou não vamos?! Mas eu vim pra ver se era verdade.
Quando cheguei aqui, olhei essa área e pelas outras que eu conhecia
quando ia apoiar acampamentos, nem acreditei, mas o pessoal me assegurou
que a área estava garantida. Que era do Banco do Brasil e não tinha mais
retorno. O Chicão e os demais companheiros que estavam com ele me
garantiram que o INCRA tinha assinado acordo com o Governo que ia
assumir a dívida do antigo proprietário, junto ao Banco do Brasil, e passar a
propriedade para o MST. Então eu acreditei”.
Pedrinho optou pela linha de produção de bicho-da-seda com outros
assentados e fez tentativa com produção da uva, juntamente com Renato. Fala das
principais dificuldades que enfrenta, principalmente no que diz respeito a outros
assentados e suas atitudes. “E eu tenho um outro desafio maior ainda, que eu
encarei e assumi, que é o de produzir dentro dos princípios da agroecologia,
da produção orgânica. E daí é pior ainda, porque a mão-de-obra dobra,
porque não posso usar as facilidades que existem: venenos, adubos químicos...
É tudo mais lento ainda.
Eu fui muito questionado por plantar amoreiras, pelo fato de não ser
alimento. Não era bem vindo aqui, pelo fato de o ser alimento e ter que
trabalhar integrado com uma cooperativa, porém a amoreira é por
natureza semi-orgânica, a gente usa química se quiser e o veneno usado é
somente o formol que é o desinfetante passado no barracão.
169
É mais fácil trabalhar a produção orgânica com o bicho-da-seda;
com a uva é mais difícil. Tem que acompanhar muito de perto para
controlar, assim como o café que exige muito mais mão-de-obra.
A produção orgânica que escolhi o é fácil, mas está bonita. Tive que
parar com a construção da casa...
Meus filhos não são muito exigentes. Não exigem muito as roupas de
marca, roupas da moda, mas gostam e querem. Foram criados com
austeridade, junto com a gente, mas a gente sabe que eles querem andar na
moda e a gente vai procurando convencê-los a esperarem mais um pouco.
Nosso planejamento é a longo prazo”.
A relação e o compromisso com os objetivos a serem atingidos em nível
coletivo são por vezes enriquecedores e motivadores para a vida pessoal,
principalmente quando o ideal a ser atingido o se circunscreve apenas às
conquistas pessoais, mas inclui o sucesso do grupo como meta.
Pedrinho, porém, desabafa quando fala de sua luta para manter coesa a
comunidade do Assentamento:Eu costumo dizer para os companheiros o que
eu aprendi na época, com os padres, bispos e pastores da Igreja Luterana: que
uma coisa é a luta pela terra e outra coisa é a luta na terra.
Quando você luta pela terra o objetivo é um só. Todo mundo tem um
adversário que é o latifúndio, o latifundiário... e todo mundo se une pra lutar
contra ele.
A partir do momento que conquistamos a terra esse adversário sai de
cena. entram os interesses pessoais e as disputas internas na comunidade.
E daí o desafio maior é o de estar convencendo os companheiros que nós
170
precisamos permanecer juntos, trabalhar coletivamente. Se não for possível
participar coletivamente na produção, pelo menos politicamente precisamos
estar unidos, estudando e tomando decisões juntos”.
Ainda dentro da categoria da totalidade, enquanto o MST preconiza a
organização de um novo modelo econômico, principalmente para o setor primário,
no qual a agricultura deveria cumprir o seu papel de desenvolvimento sustentável,
de forma a garantir a produção de alimentos para a população, sem depredação
excessiva da natureza, a economia de mercado invadiu o campo e os agronegócios
passaram a ser a grande força motivadora para o investimento agrícola.
Qualquer investimento só passa a ser compensador se for possível produzir
para o mercado e, sem investimento, nem é possível produzir para a própria
subsistência.
As linhas de produção têm como objetivo garantir alguma compensação, em
forma de lucro, para os que aderiram a qualquer uma delas e os investimentos,
feitos em cada uma delas, têm como objetivo o mercado.
Analisando o depoimento de Pedrinho, pode-se observar uma expectativa que
é comum a todos os integrantes da comunidade. O sonho de riqueza, a expectativa
de ter acesso a bens de consumo que o mercado disponibiliza, reflete a ideologia
subjacente do liberalismo econômico que acena para a possibilidade de que todos
têm a oportunidade de crescer.
Na medida em que reivindicam para si os privilégios que no passado só
pertenciam às elites estão, na verdade, “ampliando o território da modernidade e do
capitalismo que a sustenta e justifica”. (Martins, 2000, p. 49).
171
Pedrinho fala dos desafios: “Quando você vai plantar, cadê os recursos
pra plantar? O clima o contribui, falta chuva, frustra a safra. Três safras
frustradas é um tombo violento. E daí? O que é o nosso inimigo agora?
Não outra maneira, a gente tem que levantar, sacudir a poeira e
achar outra saída. E as pessoas cansam! Não tendo mais que lutar pela
terra a gente começa a olhar para os quatro cantos do lote. E acontece muito
disso. O desafio maior é enfrentar isto. É fazer as pessoas entenderem...
Eu tento convencer as pessoas que nós não vamos ficar ricos em um,
dois ou três anos, que temos que andar com o no chão, fincar o pé no chão,
estudar muito, planejar muito pra sair da miséria e gradativamente ir
melhorando a nossa situação”.
Pedrinho não se prende a conflitos de ordem exclusivamente pessoal, mas
remete aos conflitos da comunidade, sua maior preocupação, e é no seu
compromisso com a comunidade da qual faz parte, que ele se realimenta para a luta
e para busca do sucesso pessoal, dedicando-se a viabilizar seu projeto familiar, para
servir de exemplo aos demais. O seu sucesso, segundo ele, pode servir de
referência para o sucesso de seus companheiros.
Sua preocupação em procurar soluções para os conflitos e problemas da
comunidade, a fim de que o projeto do Assentamento se viabilize, não se limita
apenas ao sucesso do Assentamento, mas transpõe seus limites projetando-se para
as expectativas do Movimento. “Provar para a sociedade que a Reforma
Agrária é viável... Eu estou convencido disso. A produção dentro do nosso
lotezinho que eu achava que era um desafio está tendo um resultado
importante.
172
Mas é muito lento... Por exemplo, nós não estamos na casa ainda,
porque optamos por investir mais na produção. Vou ver se começo a
terminar a casa agora. Mas por termos feito o planejamento de investir na
produção não estamos arrependidos. Estamos muito satisfeitos.
Eu gosto muito daquele trecho da música de Almir Sater: eu ando
devagar porque já tive pressa e levo um sorriso porque já chorei demais’”.
41
Um mesmo projeto, uma mesma ideologia, o apropriados de maneira
diferente, a partir dos referenciais individuais de cada um, de forma que dois
indivíduos se apropriam da mesma informação ou idéia de maneira diversa, por
conta de seus equipamentos de personalidade e das influências do meio, ou seja,
das suas subjetividades.
Participar de um Movimento social que luta pela justiça no campo não se
limita apenas à conquista da terra, mas envolve muitos desafios e obstáculos que
o reflexos das influências da sociedade, da cultura, do modelo econômico que
afetam os integrantes do MST.
E as contradições afloram nos discursos e nas práticas, no interior do próprio
Movimento, que, enquanto procura construir uma identidade central de resistência,
enfrenta a multiplicidade de identidades e subjetividades que se confrontam e geram
tensões tanto internas quanto externas. As tensões e contradições provocam
mudanças e transformações que se operam na identidade de cada um e na
identidade do próprio Movimento que está em processo de permanente construção.
Os conflitos gerados pela pluralidade de interesses e diversidade cultural não
escapam da análise e preocupação das lideranças do Assentamento.
41
Trecho da música “Tocando em frente”, de Almir Sater e Renato Teixeira.
173
E Pedrinho, a partir de sua função como coordenador do setor de educação,
não deixa de avaliar tal situação e demonstrar sua preocupação diante dos conflitos
que são gerados na comunidade, especificando alguns tipos de conflitos e de
dificuldades que enfrenta nesse sentido.
“A necessidade, a ansiedade e a angústia pela conquista da terra não
tem mais. Conquistando a terra as pessoas acham que resolveram todos os
seus problemas, mas é ai que os problemas começam.
Considerando que aqui somos provenientes de várias regiões, como da
região noroeste, sudoeste e até brasiguaios, com costumes e interesses
diversos, os conflitos surgiram e a gente deixou de dar passos importantes,
tendo que dar tempo para que as pessoas se entendam.
O desafio maior é enfrentar isto. É fazer as pessoas entenderem... Os
maiores desafios aqui na comunidade são estes e entrosar as pessoas de etnias
diferentes. Pessoas vindas de várias regiões.
Apesar da formação que o Movimento dá para o pessoal, a maioria
tem muita pressa em melhorar de situação. Querem sair das dificuldades em
curto prazo.
Para quem tem toda uma estrutura ainda é arriscado. Tem muitos
fazendeiros que estão perdendo tudo!...Nós temos que ser mais do que artistas
para nos garantir.
Manter a formação, a cultura e os valores e aceitar que s vamos
melhorar, mas devagarinho. Pé no chão, planejando muito, porque o caminho
a ser percorrido é muito difícil, para o camponês de agricultura familiar.
174
Deus me livre se daqui a alguns anos a gente tiver que admitir que esse
Assentamento não deu certo! É por isto que eu insisto muito e meus
companheiros reconhecem que sou um militante incondicional.
Deixei tudo pela luta e quando vem a dúvida eu pego a Bíblia e vejo
que ela me ensina isto, pego os ensinamentos da Organização que também
ensinam isto...
Não é questão de ser masoquista e querer sofrer, mas é a questão de dar
tudo pela causa. É uma questão de convicção”.
Por sua vez, Odete, relatando sua vinda para o Assentamento, diz:
"Saímos de Terra Rica no dia seis de março de 1999 e no dia sete
estávamos aqui. Já faz sete anos que estamos aqui. Aqui foi ocupado em nove
de fevereiro.
O pessoal do nosso acampamento veio antes. Eu não vim porque tinha
meu menino pequeno e as lideranças não deixaram, porque não sabiam o que
estava acontecendo por aqui.
Eu me encantei com essa região. Todo mundo falava que era plano,
terra vermelha, bem o contrário da região noroeste.
Aqui é mais ou menos o que a gente tinha no Paraguai, onde a gente
produzia soja. Eu ainda tinha um pouco daquilo na cabeça... Ao contrário do
que a gente pensa hoje.
Viemos pra no “escuro”. Chegamos aqui: tinha bastante gente, em
torno de cento e cinqüenta pessoas. Chegamos de madrugada e ficamos em
onze famílias. Nós e o pessoal que ocupou a área um mês antes.
175
Ficamos aqui do dia sete de março até mais ou menos o dia das mães,
segundo domingo de maio, só em onze famílias segurando a barra aqui. Se
viesse polícia tínhamos que agüentar. Eram as onze famílias e não tinha
mais ninguém, pra segurar...
no mês de maio começou a vir mais famílias. O Pedrinho e mais
famílias da região de Floresta, Marialva... Aí em agosto e setembro veio mais
gente e em novembro acabou de preencher, com o número exigido pelo
INCRA, o Assentamento com as famílias.
Antes de acontecer o despejo no noroeste nós viemos pra cá. Viemos em
seis famílias do acampamento. Ninguém queria que a gente saísse de jeito
nenhum, quando resolvemos vir pra cá. Escapamos de um confronto feio! A
turma sofreu bonito lá!
Aqui, graças a Deus, foi tudo bem, não teve problema nenhum, a área
era do Banco do Brasil. Foi fácil pra nós aqui. Foi uma conquista fácil.
Não foi sofrida. Foi de bandeja”.
Odete que igualmente optou pela linha de produção do bicho-da-seda,
também considerou as dificuldades de integração dos assentados que chegaram
posteriormente e não querem submeter-se ao projeto inicial do Assentamento.
Disse que ela e seu marido decidiram deixar essa linha de produção e partir
para a produção de leite e café, devido ao excesso de trabalho que o bicho-da-seda
exige.“Atualmente estamos mexendo com o bicho-da-seda e estamos iniciando
o projeto de vaca leiteira e o café orgânico. Vamos parar com o bicho-da-seda
176
logo. estamos esgualetados
42
, como se diz no Paraguai, quando a gente
não agüenta mais. Aas crianças têm que trabalhar muito. Essa vai ser
nossa última safra do bicho-da-seda e vamos transformar tudo em pasto, a
área em que está plantada a amora.
Antes a gente tinha dificuldade para conseguir a terra, mas a partir
de 1999 a gente já ficou mais tranqüilos. Agora vamos trabalhar sabendo que
é aqui mesmo que nós vamos ficar e cavar o nosso futuro.
Várias famílias foram embora e algumas voltaram, mas a nossa
intenção não é de sair, não. O lugar aqui é bom. É de ótima localização. Eu
gostei muito daqui.
O café está começando a produzir. Vamos ver a safra do ano que vem.
Este ano vamos tirar uns grãozinhos para o consumo, pra provar o sabor.
O café é orgânico. Até agora não tem nem uma gota de veneno. Não deu pra
pôr produto químico também... A gente planta milho tamm.
O que nos ajudou muito aqui foi o bicho-da-seda. uma área grande
de produção de bicho-da-seda. É o bicho-da-seda que está garantindo a gente
aqui”.
Odete também destaca as divergências culturais e de interesses como
dificuldades para avanços mais rápidos e significativos do projeto do Assentamento.
O julgamento que as lideranças entrevistadas anteriormente faziam de Odete
era infundado, uma vez que suspeitavam que ela estava desconectada das
propostas e objetivos do Assentamento, pelo fato de ter se afastado nos últimos
42
Ao que parece esgualetados ou esgualepados é uma gíria ou expressão regional, também usada no Rio Grande
do Sul e Santa Catarina, que significa estar no limite da resistência, e não consta em nenhum dos dicionários
pesquisados.
177
meses das atividades de coordenação de sua responsabilidade, muito embora
continuasse atendendo a comunidade do Assentamento como agente de saúde.
Odete coordena o setor de saúde do Assentamento, porém sua atuação,
segundo alguns líderes, ultimamente estava deixando muito a desejar, o que fez
com que concluíssem que ela estava em dissonância com os propósitos da
comunidade e do Movimento.
Um julgamento temerário e infundado a respeito de Odete, o que não deixa
de representar uma contradição entre a disposição de valorizar o papel da mulher
dentro do Movimento e, ao mesmo tempo, exigir dela dedicação além daquilo que
sua condição permite. É por tal motivo que a questão de gênero é um assunto que
exige sérias reflexões, não apenas dentro do MST, mas em todos os segmentos da
sociedade.
Observando sua condição de mulher com crianças pequenas, uma ainda em
fase de aleitamento no peito, e ouvindo seu depoimento, foi possível constatar os
motivos do seu afastamento temporário das atividades de coordenação, pois, em
todos os momentos, ela ressaltou a importância do Movimento, do projeto do
Assentamento e expressou sua preocupação com os conflitos existentes dentro da
comunidade.
Conflitos esses que podem ser compreendidos, uma vez que não é possível
imaginar uma uniformidade de pensamento, de entendimento e de interesses em
qualquer comunidade, pois, é necessário que se leve em conta as múltiplas
subjetividades que existem em cada grupo social.
Por mais que o MST se preocupe em construir uma identidade de resistência
em seus integrantes, esses são oriundos de locais, realidades e culturas diferentes;
suas identidades o são unificadas”, o que contribui no sentido de haver
178
discrepâncias entre o vel coletivo e o nível individual” (Woodward, 2000, p.14-15),
pois, a mesma matéria prima que o Movimento proporciona é elaborada de maneira
diferente na construção da identidade de cada indivíduo.
Todo o material e conteúdo de informações que o MST proporciona para seus
militantes são absorvidos de conformidade com a subjetividade de cada um, de
maneira que os sujeitos são assim, sujeitados ao discurso e devem, eles próprios,
assumi-los como indivíduos que, dessa forma, se posicionam a si próprios”.
(Woodward, 2000, p. 55).
Odete, no entanto não radicaliza em seu julgamento, embora expresse sua
preocupação: "Uma das divergências que deu aqui no Assentamento foi com
relação ao orgânico, porque o projeto do Assentamento era pra ser produção
cem por cento orgânica.
É por isto que eu falo que a gente perdeu muito, quando houve as
trocas de famílias, porque nós discutimos praticamente um ano e meio, até
pegar os investimentos, os recursos. Aí começam a trocar as famílias! Eu vou
trabalhar com uma família que veio de Tamarana, por exemplo, que não tem
a cultura que a gente introduziu no Assentamento, o tem o conhecimento
que a gente adquiriu aqui, durante todo aquele tempo.
Não sabem que aqui não é para se trabalhar com agrotóxicos.
Acostumados a trabalhar com gado, aqui não vão querer trabalhar muito.
Não vão querer carpir muito, não. A gente acaba perdendo muito quando
tem trocas de famílias.
179
Não tem como você ir contra, mas isto acabou trazendo um pouco de
problemas pra nós. Muitas pessoas que vêm de fora não têm aquele
entendimento.
E daí? A gente tem que compreender! Fazer o que? Temos que ter
paciência que aos poucos elas vão aprendendo. Depois de um tempo que estão
aqui elas vêem que não adianta manter o ritmo que tinham antes. Acabam
entrando no nosso ritmo”.
Odete demonstrou ter conhecimento de que havia comentários, entre
lideranças do Assentamento, sobre sua atuação que estaria deixando a desejar
naqueles últimos tempos, porém não manifestou qualquer sinal de revolta ou
reprovação a esse fato.
Reconheceu suas falhas e demonstrou compreensão pelas criticas sofridas
de parte de alguns integrantes, sem se fazer de vítima ou de mãe heroína.
Ao este pesquisador relatar a postura de Odete aos líderes que sugeriram
que ela fosse entrevistada, esses ficaram surpresos, pois esperavam que ela
“debulhasse um rosáriode críticas às lideranças e ao Movimento, quando ocorreu
exatamente o contrário.
Sua postura serviu para que os líderes refletissem sobre a sua condição e
fossem menos exigentes com ela, que ainda gozava da licença maternidade e
mesmo assim, prestava atendimento aos moradores como agente de saúde que é,
contratada pela Prefeitura do município de Arapongas, para atender exclusivamente
o Assentamento, o que ela faz diariamente, de bicicleta.
Odete não demonstra qualquer mágoa: O pessoal até me critica, querendo
que eu me envolva mais, mas eu acho que estão certos. Têm que estar
puxando a orelha da gente pra gente não perder a rédea, não é?
180
O que a gente discute em reunião, pra mim começa ali e termina
ali...Sem mágoas... Eu penso assim: temos que brigar, vamos brigar, mas
nossa amizade continua lá fora. Não levo nada para o lado pessoal. Isto não
me afeta. Tenho muito isto dentro de mim. Meu pai era assim, sempre
trabalhou como liderança de comunidade e a gente cresceu com isto e
acostumou-se com isto. Sempre vivi assim!...
O pessoal anda me cobrando mais atuação dentro do MST no setor de
saúde, mas no momento não está sendo fácil. Até tentei, mas pense bem,
com cinco filhos dentro de casa, não é brincadeira, não.
De manhã mando uns pra Escola, de tarde mando mais um, agora
mais um pequenininho... Dentro do MST posso dizer que no momento estou
sossegada. Tem um ano e meio, mais ou menos que estou um pouco sossegada.
Vira e mexe um puxa minha orelha e eu falo: pode puxar. Eu sei que já
contribui bastante”. ..
Um traço marcante de Odete é sua espontaneidade, disposição e
expansividade. Enquanto relatava suas desventuras, dava risadas bem humoradas,
como se os problemas e dificuldades que enfrenta fizessem parte da sua rotina de
vida.
Demonstrou uma confiança muito grande em si mesma e o perfil de uma
mulher que não se deixa intimidar por qualquer coisa, mas acolhe as dificuldades
com boa disposição e bom humor, sem demonstrar nenhuma atitude condenatória a
quem quer que seja.
Odete fala dos preconceitos que teve de enfrentar:“Chegando aqui em
Arapongas, num lugar onde ninguém queria ver a gente nem pintado!
181
Sitiante muito menos ainda... não queria ouvir nem falar, quanto mais, ver!
Aqui ninguém dava carona pra gente não. A gente ia até a pista a e
ninguém oferecia carona pra gente.
Foi muito difícil, porque assim que cheguei aqui engravidei do Luan.
Precisava fazer a consulta de pré-natal e não consegui fazer em Arapongas.
Fiz três consultas, mas não consegui fazer nenhum teste de gravidez...
Fui a pé até o ponto e lá levei sorte porque duas irmãs de Apucarana
[do Hospital da Providência] me deram carona. Viram eu no ponto e pararam
pra pedir informação sobre o Assentamento. elas falaram: ‘mas você é de
lá! Por que você está aqui?’ Então eu respondi: ‘porque eu estou procurando
médico e não consegui em Arapongas’. Não quero voltar pra casa sem
consultar. Então vou voltar pra Apucarana. Não conheço nada lá, mas vou.
elas me levaram, fizeram o pré-natal e fiz tudo depois em
Apucarana.
Depois tive muita ajuda das irmãs do Hospital da Providência de
Apucarana, do Sindicato, da Pastoral da Criança de Apucarana. O apoio
maior que recebemos foi de Apucarana, quando chegamos aqui. Arapongas
aos poucos a gente foi conquistando, mas foi difícil. Foi muito complicado.
Depois foi melhorando. A gente começou a plantar e a colher”.
Um aspecto que deve ser levado em consideração é o de que não
imposições ou exigências que obriguem as famílias dos assentados a fazerem isto
ou aquilo. As liberdades são respeitadas.
As propostas são feitas e todos são livres para adotá-las ou não, tanto que os
que ainda sentem necessidade de utilizar agrotóxicos o fazem.
182
É sabido que há várias tentativas fracassadas de produção coletiva ou
cooperativa em Assentamentos. Por tal motivo o Assentamento Dorcelina Folador
optou pela proposta de linhas de produção e participar delas é opção de cada
família.
Pelo fato de ter sido definida para o Assentamento Dorcelina Folador a opção
por plantio orgânico, sem a utilização de agrotóxicos, os assentados acolheram a
proposta e passaram por um período de mais de um ano de orientações,
aprendizado e experiências.
Foram definidas as linhas de produção de horticultura, bicho-da-seda, leite,
úcar mascavo, café e galinhas caipiras, porém nem todas conseguiram ser
operacionalizadas ou consolidadas, como o caso das galinhas caipiras e do açúcar
mascavo.
A grande dificuldade, além da produção orgânica, é a da comercializão, de
acordo com depoimentos de alguns assentados, pois, apesar do Assentamento não
ser muito distante de centros urbanos, carece de recursos para viabilizar o comércio
de seus produtos, principalmente recursos de transporte.
A luta em defesa de uma causa em geral é motivada por interesses dos
próprios sujeitos que se vêem incluídos nela, mas possibilita que esses sujeitos
adquiram novas identidades, novas perspectivas de vida, senso de cooperação e de
consciência coletiva.
Foi observado que as conquistas pessoais, fruto de suas lutas, têm a
capacidade de desenvolver, em muitos desses sujeitos, a consciência de continuar
lutando pelos demais em forma de solidariedade, para manter viva a esperança de
uma libertação que só se concretiza no coletivo. Sujeitos que, de acordo com
(Comblin, 1985, apud Wanderley 1992, p.147), passam a constituir o povo que surge
183
em torno de um projeto de “existir socialmente e criar uma alternativa à situação
existente”.
Os agentes entrevistados consideram-se como guerreiros que têm como
armas a consciência de seus direitos, de seu senso de dignidade e suas ferramentas
de trabalho. Como motivação para as lutas, o sonho de justiça e a esperança de que
um dia sejam compreendidos. Como meta, o desejo de ver o povo e o país
emancipados e libertos de todo tipo de dominação estranha aos interesses da
nação.
Demonstram comportar-se como guardiões de uma utopia, sufocada pelos
avanços da modernidade, modernidade essa que envolve com sua tecnologia
sedutora e com a diversidade de atrativos dos bens de consumo, elegendo o
mercado como fim último de sua razão de ser, gerando, a cada dia que passa, novas
formas de exclusão.
A conquista da terra representa, para os sujeitos pesquisados, garantia de
sobrevivência, inclusão social, emancipação e dignidade..
Dos entrevistados nenhum participou da primeira ocupação do Assentamento.
Vieram a se integrar nele num segundo momento, para completar o número de
famílias que foi exigido pelo INCRA.
Renato Reinehr esteve apoiando os ocupantes iniciais, as negociações com o
INCRA e o Banco do Brasil, mas só veio com a família posteriormente.
A área da antiga Fazenda São Carlos possuía uma estrutura relativamente
funcional. Contava com uma sede, com algumas casas e um abrigo para as
máquinas e equipamentos agrícolas.
As poucas famílias que ocuparam a Fazenda inicialmente se abrigaram na
antiga sede.
184
O fato da Fazenda São Carlos não passar pelo processo de desapropriação
por ser improdutiva, deixar de cumprir sua função social ou estar irregular, evitou
que houvesse conflitos na sua ocupação, dando a impressão que fora uma escie
de presente que ganharam do MST, que lutou pela posse da terra e a destinou às
suas famílias.
A posse da Fazenda pelo MST e a escolha de famílias mais envolvidas com a
ideologia do Movimento teve um significado de possibilitar um mínimo de segurança
para os que lutam pela ruptura “do pacto de classes que domina o Brasil desde a
Revolução de 1930”. (Martins, 2000, p. 189); pacto este que inviabiliza uma reforma
estrutural no país.
Segundo Martins, “a reforma agrária tópica e preventiva” que vem sendo feita
acaba por reforçar “a aliança histórica entre o capital e a propriedade da terra e que
leva a sociedade inteira para bem longe dos ideais que o MST cultiva”. (Martins,
2000, p. 188).
De certa forma isto explica o nível de envolvimento dos sujeitos entrevistados
com as propostas do Movimento, sujeitos esses que, além de lutarem na terra
conquistada, lutam pela terra, para aqueles que ainda não a conquistaram, numa
perspectiva de reforma estrutural que promova a libertação do povo oprimido pela
iniqüidade do modelo capitalista, conscientes de que “a libertação dos pobres
marginalizados não coma nem acaba na propriedade”. (Martins, 1989, p. 15), mas
é um processo muito mais amplo.
185
8 Considerações Finais
A sensação que se tem quando é concluído um projeto de pesquisa é de que,
na verdade, está se reiniciando a investigação do problema que a motivou.
A pesquisa se propôs a retratar um momento da realidade presente em que
se inserem aqueles agentes eleitos do Assentamento Dorcelina Folador, porém, o
que virá no decorrer dos anos depende de inúmeros fatores que não podem ser
previstos. Nesses diversos fatores se incluem as políticas que poderão ser adotadas
em relação à agricultura, as tendências do mercado, as intempéries da natureza, a
relação do Movimento com os detentores do poder político e do poder econômico, o
comportamento da mídia em relação ao MST, as ões e tendências que o
Movimento possa vir a assumir, o volume de recursos e de investimentos que serão
disponibilizados, enfim, de múltiplas determinações que escapam a qualquer
previsão.
Dentre os assentados, a maioria de casais ainda jovens, apresentam-se como
cheios de ideais e de esperanças, porém nem sempre com bases sólidas para se
sentirem seguros, apesar de terem conquistado a terra tão sonhada.
A conquista da terra trouxe consigo o desafio, o apenas da sobrevivência,
mas o desafio de progredirem e conquistarem um melhor padrão de vida que
garanta um mínimo de segurança, para que possam se fixar nela.
A pesquisa revela que a idéia de emancipação, no entendimento dos agentes
do MST entrevistados, consiste na libertação do ser humano, não apenas da miséria
material, mas do processo de massificação a que está submetido pela mídia, pelas
religiões e outros instrumentos de alienação da realidade, integrando-o dentro de
uma comunidade em que ele tenha consciência do seu papel. Para os referidos
186
agentes, a emancipação compreende o reconhecimento de uma identidade e o
resgate da dignidade, no sentido de proporcionar aos integrantes do Movimento
oportunidades de expor suas idéias, suas propostas, seus pontos de vista.
A educação e a cultura aparecem, na fala dos entrevistados, como prioritárias
para o Movimento, que motiva seus integrantes a buscá-las de todas as formas
possíveis, além das informações que proporciona em seus Encontros, Congressos e
mobilizações diversas. A preocupação com a educação é um aspecto marcante no
perfil dos entrevistados.
A emancipação e a libertação são entendidas como a possibilidade de tornar
o cidadão agente de transformação de seu meio, senhor da própria história e
construtor do pprio destino, decifrando e interpretando a realidade para poder
transformá-la.
Sem entrar mais a fundo no mérito das contradições, que afloram nas
narrativas, mesmo porque em nenhuma instituição ou movimento social é possível
apostar num purismo inconteste, tendo o foco de análise atores sociais que se
propõem ao desafio de acionar mecanismos de coesão dentro de uma comunidade
de assentados, lutando pela sobrevivência da família, pela sobrevivência do projeto
da comunidade do Assentamento e por projetos de mudança na sociedade, não será
temerário considerá-los emancipados.
Emancipados enquanto sujeitos providos de consciência crítica e de
esclarecimentos, incluídos enquanto agentes de um projeto de resistência e
conscientes das contradições que enfrentam em todos os níveis, dentro e fora do
Assentamento e dentro do próprio Movimento.
Enfrentam os desafios de conciliar as múltiplas subjetividades, uma vez que
os sujeitos que recebem a mesma doutrinação e vivenciam experiências comuns,
187
constroem suas identidades de conformidade com as concepções pessoais, que
marcam a sua subjetividade e, segundo Woodward (p.55), “a subjetividade inclui as
dimensões inconscientes do eu, o que implica a existência de contradições”.
Apesar de tudo, a idéia que passou muito clara durante as entrevistas e nos
contatos informais é de que, apesar das dificuldades do presente e incertezas do
amanhã, os entrevistados carregam consigo um sentimento de terem conquistado
emancipação e dignidade de cidadãos.
A oportunidade de participar de um projeto coletivo, que visa à mudança do
modelo econômico nacional, a partir das ações pontuais executadas dentro do
Assentamento e dos eventos organizados pelo Movimento, no Estado e no país,
representa, para os agentes, o sentido de inclusão e emancipação.
Numa comunidade de vida, orientada para projetos comuns, os cidadãos
parecem encontrar condições para a construção de uma identidade segundo
Bauman (2004, p.55), ou seja, guiada pela lógica da racionalidade e do objetivo
(descobrir o quão atraentes são os objetivos que podem ser atingidos com os meios
que possui)”. Assim se incluem como sujeitos que pertencem a uma mesma classe,
a uma mesma comunidade, que servem de ancoragem ideológica para se incluírem
no projeto transformação da sociedade a que se propõe o MST.
Não representa uma inclusão dentro dos paradigmas vigentes no restante da
sociedade, mas a idéia de pertencimento a um grupo, a um segmento social que
visa, acima de tudo, a quebra de muitos paradigmas historicamente cristalizados.
A lembrança de suas lutas e suas conquistas e a expectativa de poderem
deixar, para seus filhos, não apenas a herança da terra, mas o legado dessa
consciência de cidadania, foi uma das maiores motivações para que contribuíssem,
188
não apenas em relatar suas trajetórias anteriores, mas, acima de tudo, reafirmar
seus propósitos e disposições atuais, com vistas no futuro.
A terra possui um caráter simbólico de segurança e de riqueza, o que não
significa que a posse dela seja perene e garanta essas condições, mas a
oportunidade de dar aos seus filhos uma melhor preparação para os desafios que a
vida apresenta é, ao que parece, a melhor herança que acreditam estar deixando
para eles.
Todos os entrevistados enfatizaram o crescimento que adquiriram dentro do
Movimento em termos de consciência política, de direitos de cidadania.
A capacidade de analisar a conjuntura do país esteve presente de forma
implícita ou explícita nos depoimentos, assim como a relação entre o antes da
conquista da terra e a luta pela sobrevivência após assumirem a posse da mesma.
O MST procura resgatar, ao camponês despossuído, parte da dignidade que
é solapada pelo modelo econômico do país e proporcionar a ele possibilidade de
fazê-lo sentir-se participante e incluído num Movimento de resistência, em que toda
e qualquer conquista lhe proporciona uma sensação de vitória; no entanto as
condições de exclusão e de iniqüidade permanecem, mesmo após a conquista da
terra.
Exclusão e iniqüidade determinada por uma conjuntura nacional e
internacional que a sobredetermina; e impor resistências às “redes de riqueza
tecnologia e poder” (Castells, 2003), o deixa de ser um desafio ousado e de certa
forma pretensioso e ao mesmo tempo estimulante e motivador, para os que
acreditam na possibilidade de escrever pelo menos uma linha na história do país e
da humanidade.
189
O projeto do Assentamento que estabeleceu a organização de linhas de
produção orgânica, sem, no entanto, condicioná-la a uma produção coletiva, não
interferindo na liberdade de decisão de nenhuma família, demonstrou respeito à
liberdade das famílias para se integrarem ou não nas propostas do Assentamento,
sendo um dos aspectos que chamou a atenção, por caracterizar o sentido
democrático das relações de convivência e de conveniência da comunidade.
Tamm ficou evidenciada a questão que envolve as relações de gênero
tanto no Assentamento como no Movimento, passando clara a idéia de que o nível
de emancipação da mulher do MST é bastante acentuado em relação a mulheres de
camponeses que estão fora do Movimento e de mulheres das cidades que vivem em
condições semelhantes, considerando, no entanto, que ainda muito que se
avançar neste sentido.
Os sujeitos pesquisados manifestaram nas narrativas e em suas
representações sociais o vivo interesse de que parte de suas vidas e de seus
sonhos fosse apropriada, registrada e seu registro disponibilizado aos interesses do
Movimento e da sociedade, na expectativa de que pudessem contribuir para a
consolidação do projeto de construção de uma sociedade mais justa e inclusiva;
inclusão é a palavra de ordem dos segmentos progressistas da atualidade.
Promover uma mudança cultural, a partir da educação e de atividades que
estimulem a reflexão e o senso crítico dos agentes que integram o Movimento, para
que possam impor alguma resistência à cultura de massa é, segundo as lideranças
do MST, fundamental para se construir uma nova hegemonia.
A proposta que os agentes do MST apresentam, de edificação da hegemonia
popular, passa pela necessidade de uma práxis emancipatória, construída no
190
enfrentamento ao modelo existente que exclui, marginaliza e oprime a grande massa
da população, da maioria dos países do planeta.
Essa preocupação é constante entre as lideranças do Assentamento,
entretanto, após conquistarem a terra, a tendência de muitos integrantes do
Movimento é a de se acomodarem e buscarem apenas assegurar sua sobrevivência,
distanciando-se das frentes de luta, sendo que, mesmo nos assentamentos, o
desafio da construção de um projeto de vida precisa ser permanente.
A conciliação entre os interesses individuais e coletivos nem sempre é muito
simples, uma vez que a produção e a comercialização dos produtos da terra
absorvem todo o tempo das famílias; os obstáculos causados pela própria natureza,
o somados à exigüidade de recursos e às dificuldades de colocar os produtos no
mercado.
A tecnologia no campo permitiu uma maior produtividade da terra, e a
utilizão de agrotóxicos é um reflexo da tecnologia desenvolvida com esse objetivo;
no entanto, a opção por produzir orgânicos, dispensando os produtos
tecnologicamente desenvolvidos para combater pragas e fertilizar melhor o solo, tem
representado, no Assentamento, um limitador da produtividade.
A alternativa seria um aumento do preço dos produtos, como forma de
compensar a maneira mais natural de produzir, porém seria necessário, para isto,
organizar toda uma estratégia de mercado, o que demandaria recursos dos quais o
Assentamento não dispõe.
ainda resistências, por parte das lideranças, em se submeterem às
complexas leis de mercado, buscando, ao invés disto, uma aproximação do mercado
consumidor a partir do estabelecimento de relações de confiança tua, o que se
191
apresenta como uma dificuldade ainda maior para a consolidação de relações mais
esveis para o comércio de seus produtos.
Diante desses desafios, a participação dos assentados nas atividades do
MST em nível estadual e nacional fica um tanto prejudicada, limitando-se a algumas
lideranças mais comprometidas com o Movimento e com sua ideologia, que se
submetem a grandes sacrifícios para se fazerem presentes nos encontros mais
importantes.
A mística que se realiza a cada quinze dias, no centro comunitário, é um dos
poucos momentos de que algumas famílias dispõem para se dedicarem a reflexão e
reafirmação dos propósitos de solidariedade, união e companheirismo.
Um outro desafio que as lideranças do Assentamento têm pela frente,
segundo alguns depoimentos colhidos, é o poder massificador da mídia que se faz
presente dentro da comunidade, através dos principais veículos de comunicação de
massa que são o rádio e a televisão.
O poder irresistível desses vculos de comunicação, indutores do
consumismo, além de criar necessidades artificiais, produz o mesmo fenômeno de
massificação, exercido sobre a sociedade em geral, principalmente nos jovens da
comunidade de assentados, podendo interferir, em parte, no processo de
desenvolvimento de uma consciência crítica orientada pelo Movimento.
Os cursos feitos através de convênios, a criação de Escolas específicas para
os integrantes do MST, os encontros, congressos, seminários e outras atividades de
natureza semelhante, são formas de manter acesa a chama da ideologia do
Movimento, porém a maior fidelidade aos princípios e orientações do mesmo é
encontrada, regra geral, naqueles que receberam uma orientação religiosa dentro
dos princípios da Teologia da Libertação.
192
O MST, como um Movimento ideologizado, por vezes, é vítima de escárnio da
mídia e da sociedade, visto ora como o que afronta as instituições democráticas, ora
como o que se empenha numa luta quixotesca, tentando combater "moinhos de
vento”; mas, apesar de tudo, desenvolve muitas ações pontuais e conseqüentes
que, como afirmam as lideranças, eso em processo de construção.
E, tendo em vista que o MST conta com a colaboração de inúmeros doutores
e grandes expressões intelectuais que a ele se integram com a proposta de informar
e orientar as lideranças e os demais participantes, o Movimento é dotado de
informações que muitas vezes não chegam aas massas e, muitas vezes, nem à
academia.
Uma das expectativas do Assentamento Dorcelina Folador é o de criar um
centro de encontros para o MST, com uma infra-estrutura de alojamentos, refeitório,
salão de reuniões etc., a fim de proporcionar uma presença mais efetiva do
Movimento dentro daquela comunidade.
Assim, pode-se dizer que, em síntese, a concepção de emancipação, que
defendem os agentes do Assentamento entrevistados, consiste na capacidade de os
assentados conhecerem melhor a realidade e interpretarem com mais lucidez os
acontecimentos, bem como na possibilidade de poderem participar de discussões e
de decisões a serem tomadas. Entendem eles que o fato de todos poderem
participar da tomada de decisões, independentemente de idade, sexo, condição
cultural ou qualquer outra condição, tem o potencial de fazer com que se sintam,
enquanto emancipados, incluídos e capacitados para o exercício dos direitos de
cidadania.
193
Uma bandeira, uma causa, uma utopia a ser perseguida não elimina, no
entanto, os conflitos pessoais que sofrem aqueles agentes e que afloraram
espontaneamente no decorrer da pesquisa.
O desafio de garantir a sobrevivência e de viabilizar o projeto do
Assentamento não apresenta os mesmo estímulos do enfrentamento para a
conquista da terra, pois, a rotina do trabalho e o distanciamento da luta acabam por
produzir uma certa desolação e uma sensação de isolamento, principalmente nos
que exercem uma militância de líderes do Movimento
A necessidade de buscar um mínimo de segurança para a família e de
construir um projeto individual acaba absorvendo muitos dos integrantes do
Assentamento e, consequentemente, reprimindo e frustrando os que estavam
acostumados a uma militância mais intensa.
Longe do calor e do companheirismo dos acampamentos, em que o
adversário é o “dono” da terra, seus jagunços
43
ou a milícia do governo, o calor do
sol causticante de cada dia, a longa espera pelo fruto da semente, a incerteza da
colheita e da compensação pelo trabalho exigem paciência, perseverança e uma
nova forma de disciplina que nem todosm a capacidade de assimilar.
Assim, os entrevistados, ao mesmo tempo em que afirmam terem conquistado
a emancipação com dignidade, o escondem suas frustrações e até a urgência de
uma assistência na área psicológica, como afirmou o líder Renato Reinehr numa
conversa informal. Reinehr deixou transparecer a preocupação com o
acompanhamento do pessoal da comunidade que é um povo muito sofrido,
muito limitado e com histórias muito tristes”.
43
Jagunço ou capanga é o nome que se dá, em várias regiões do Brasil, ao indivíduo que, usando de armas,
presta uma espécie de serviço paramilitar de proteção e segurança aos líderes políticos, fazendeiros ou
homens de posse.
194
A premência de capacitação profissional e a geração de empregos, dentro do
próprio Assentamento, com o desenvolvimento de agroindústrias que agreguem
valores aos produtos da terra, ajustando-se - conscientemente ou não - aos
paradigmas vigentes no sistema, seria, segundo eles, uma forma de fixarem as
famílias e principalmente os jovens dentro da comunidade.
O Assentamento Dorcelina Folador oferece condições para ser uma
referência para os demais, desde que possa contar com investimentos no sentido de
viabilizar as linhas de produção e de comercialização dos seus produtos, o que seria
uma forma de eliminar uma série de conflitos existenciais, segundo os entrevistados,
pois, traria uma nova expectativa de vida para cada família, bem como uma forma de
motivar outros Assentamentos a seguir seu exemplo.
A despeito de ser um povo sofrido e limitado, como afirmou Renato, o contato
com os integrantes entrevistados daquela comunidade revela um camponês bem
mais emancipado do que aquele de quarenta ou cinqüenta anos atrás, conforme
observa José de Souza Martins (l989, p. 47), e revela alterações ocorridas nas
últimas décadas no aspecto econômico, político e religioso que provocaram
mudanças no homem do campo.
No aspecto econômico, Martins destaca, em síntese, mudanças nas relações
de propriedade que passaram a dispensar a presença do camponês nas terras como
garantia de posse, a partir da segurança jurídica do direito de propriedade de
grandes latifúndios.
No aspecto político, o esvaziamento dos currais eleitorais que mantinham os
camponeses na dependência dos fazendeiros, comprometeu o clientelismo político
e a subjugação da consciência dos trabalhadores rurais” (Martins, 1989, p. 47).
Expulsos do campo os camponeses ganham liberdade.
195
Tais mudanças produziram um camponês diferente daquele acanhado e
resignado com sua sorte, esperando a justiça de Deus depois da morte; deram
origem a um camponês que tem consciência de seus direitos, que denuncia as
injustiças, que é capaz de se indignar contra a opressão do sistema, o privilégio das
elites e a arrogância dos poderosos.
Camponeses instrumentalizados ideologicamente para propor mudanças no
modelo econômico e construir uma nova hegemonia e que deram permissão para
que suas vidas fossem invadidas, sem medo nem receio de expor suas idéias, seus
pontos de vista, sua visão de mundo, seus julgamentos sobre os que detêm o poder
em suas diversas formas de manifestação. Camponeses que não vêem a foice e o
martelo como um símbolo do demônio, mas como a esperança de uma sociedade
mais justa.
O registro da trajetória de vida de cada um dos entrevistados, até o momento
da entrevista, a captura de quadros marcantes de suas vidas, não deixa de
proporcionar elementos para a compreensão de uma nova realidade em que elas se
inserem. Vidas não menos sofridas, mas que revelam um momento da história do
Brasil e da hisria daquele grupo social.
Narrativas que refletem as mudanças e evoluções ocorridas nas instituições,
como a própria Igreja Católica que abriu espaço para uma nova forma de
interpretação das propostas socialistas, através da Teologia da Libertação, condição
essencial para o surgimento do MST e para que conseqüentemente fosse
proporcionado a muitas famílias o direito à terra que historicamente lhes fora
negado.
O retrato de um agora que representa parte de uma síntese histórica do país
e desse segmento da sociedade, na qual é possível estabelecer a relação da
196
estrutura nacional com a realidade atual daqueles sujeitos que se propuseram a
contribuir com a pesquisa.
Toda essa experiência possibilitou reafirmar a natureza e a importância de
uma pesquisa participativa, na qual tanto o pesquisador como o agente pesquisado
se colocam como espectadores, o primeiro, da hisria do outro e o segundo da
própria história, pois, nas lembranças que trazemos do passado, nos vemos como
um outro eu e nos fazemos espectadores de nós mesmos.
Muito embora sejamos resultado de tudo o que vivenciamos até o presente, o
que constitui a síntese da nossa personalidade, nossas experncias passadas são
reconstruídas a partir da nossa síntese presente. No momento em que cada um
fazia suas narrativas, buscava na memória os fatos mais importantes de sua vida e
os relatava, evocava o passado na perspectiva do presente, como afirma Lang:
Qualquer que seja a forma assumida pela fonte oral, baseia-se ela na
memória e a memória é sempre uma reconstrução, evocando um passado
visto pela perspectiva do presente e marcado pelo social, presente a
questão da memória individual e da memória coletiva. (Lang, 1996, p. 35).
A contextualização de alguns momentos do processo histórico, tanto do país
quanto do Movimento, bem como da conjuntura que se descortina no cenário
internacional, teve como objetivo facilitar a compreensão das causas geradoras das
condições em que se encontram os sujeitos pesquisados.
A história de vida de cada cidadão reflete parte de uma realidade que se
pretende conhecer melhor, uma vez que, da mesma forma que cada um constrói sua
história e contribui para a construção da história de um povo, a história de um povo
contribui para a construção da história de cada um.
O público e o privado, o individual e o coletivo se inter-relacionam no tempo e
no espaço e mantêm uma interdependência tal, que não é possível ter a
197
compreensão de qualquer realidade se não for levada em consideração essa
interdependência.
Esse aspecto dialético é observado por Portelli (2001, p. 14), quando afirma:
A questão sobre quão histórica é a vida privada e quão pessoal é a história
pode ser posta pelo narrador, pelo historiador ou por ambos; na verdade,
sempre a questão do que é privado e do que é blico na narrativa de
alguém é incerta, especialmente se estamos em busca do enganoso tema
da história da vida privada [...] De qualquer maneira que possa ser, a
história oral expressa a consciência da historicidade da experiência pessoal
e do papel do indivíduo na história da sociedade em eventos públicos:
guerras, revoluções, greves...
As histórias de vida de assentados são sempre carregadas de significados
mais acentuados de sua inter-relação com o coletivo, tanto dentro do grupo social a
que pertencem, como no próprio contexto nacional.
Suas vidas se inserem em um todo de uma forma mais efetiva e intensa, na
medida em que agem de forma consciente, para mudar a sua realidade pessoal e a
de toda a sociedade.
Apesar de ainda jovens, os assentados que foram alvos da pesquisa
podem contar com um acervo de memórias acima da média dos cidadãos comuns
de sua época, porque mais intensamente investiram suas vidas em um sonho.
Quiseram ser mais do que massa, quiseram ser fermento na massa.
O conformismo e o imobilismo foram vencidos e substituídos pela crença de
que tudo está sujeito a mudanças e que as mudanças dependem de ações e
atitudes que, por vezes, exigem grande dose de coragem e determinação.
Saíram da atitude de espectadores da história para agirem como fazedores
de hisria, buscando construir uma nova hegemonia, baseada na capacidade de se
instrumentalizarem para uma nova interpretação da realidade e de lutarem para a
sua transformação.
198
Como alento, carregam o sentimento de estarem integrados em um segmento
da sociedade em que se sentem unidos na luta por uma mesma causa, mesmo que
entre os militantes existam aqueles que procuram outros objetivos não revelados, o
que não implica na perda da dos que verdadeiramente acreditam nas propostas
do Movimento.
Tal condição permite que se sintam incluídos, emancipados, resgatados em
sua dignidade humana, como muito claramente alguns se expressaram; que se
sentem em casa em qualquer lugar em que o MST se faça presente, seja nos
Assentamentos, seja nos acampamentos, nos encontros ou nos confrontos por
conquistas de seus objetivos.
Constituem “comunidades de vida” em que compartilham significados, e de
destino” nas quais reorientam seus propósitos e se reorganizam em torno de idéias
e princípios(Bauman, 2005, p.17), embora sem estarem isentos da instabilidade
provocada por outras influências da “sociedade em rede”, como bem analisa
Castells.
Por mais dura que se lhes apresente a luta pela sobrevivência dentro do
Assentamento, é preferível à condição dos que vivem nas favelas, sem perspectivas
ou expectativas.
De modo geral não parecem alimentar o sonho do enriquecimento material,
mas melhorar sua condição de vida é a meta de todos os assentados que de uma
certa forma já conseguiram um tipo de enriquecimento.
Conseguiram enriquecer suas vidas com o conhecimento e a experncia de
lutas e, em maior ou menor expressão, deixarão sua marca na história e um legado
para as futuras gerações.
199
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