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A IDENTIDADE DE UM NOVO CORPO E O
CORPO MUTANTE DA ARQUITETURA:
AS PRÓTESES COMO MEDIAÇÃO SENSÓRIO-ESPACIAL NA
EXPERIÊNCIA CONTEMPORÂNEA
Flávia Nacif da Costa
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Flávia Nacif da Costa
A IDENTIDADE DE UM NOVO CORPO E O
CORPO MUTANTE DA ARQUITETURA:
AS PRÓTESES COMO MEDIAÇÃO SENSÓRIO-ESPACIAL NA
EXPERIÊNCIA ARQUITETÔNICA
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de
Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura da Faculdade de
Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em
Teoria, História e Crítica da Arquitetura.
Área de concentração: Ciências Sociais Aplicadas
Orientador: Prof. Dr. Fernando Freitas Fuão
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre
Faculdade de Arquitetura da UFRGS
2007
Apesar do corpo; apesar, o corpo.
(Márcia Tiburi)
Ao meu sobrinho Hugo, paz a que sempre pude voltar.
Agradecimentos
À CAPES, pela bolsa concedida, ao PROPAR, por aceitar-me em seu
programa de pesquisa, e à Secretaria deste programa (especialmente à
Rosita), pela atenção e presteza constantes nos momentos de auxílio.
Ao meu orientador Fernando Fuão, por me ajudar a encontrar os recortes que
norteariam minha pesquisa, e pela vasta produção bibliográfica de referência.
Aos meus pais, às minhas irmãs, ao meu cunhado, à vovó e à Quitita, a todos
os meus familiares pelo apoio de cada um, a seu modo e a seu tempo.
Aos meus alunos especialmente dedicados à disciplina de Teoria e Arquitetura
Contemporânea, meu incentivo semanal à arte de ensinar e aprender. Aos
queridos do PET, pelo respeito e pelas trocas constantes de conhecimento,
alegrias e dúvidas, especialmente a Ligia, Suellen, Helena, Clarinha e Luiza,
pelo apoio especialíssimo e incondicional num momento em que se revelam os
grandes amigos. Gostaria de dizer de minha alegria em conviver com vocês,
pessoas tão competentes e cuidadosas...
À Márcia e à Celina, fadas na minha odisséia, pela delicadeza, pelo respeito e
atenção que me dispensaram, e ainda pelos ensinamentos infinitos que tanto
iluminam minhas buscas. À Mara Bia, minha amiga “duplo eu”, pela certeza de
que sempre é possível transpor todos os obstáculos com amor.
À Dra. Marisa Decat, cuja ajuda tem sido indispensável e primorosa, pelo apoio
carinhoso.
À Leila, que me sinalizou com sua eficiência e seu esmero num momento
decisivo, organizando o mini-caos.
Aos amigos distantes em presença física, mas sempre perto em conversas e
pensamentos, pela paciência e pelo incentivo constantes em momentos
preciosos, especialmente ao Allon, à Evelin e à Débora.
LISTA DE FIGURAS
FOTO CAPA: “Corpo-máquina” – Elizabeth Diller & Ricardo Scofidio, A
Armadura da Noiva, em The Rotary Notary and His Hot Plate or Delay in Glass.
Fonte: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p.124
FOTOS FINAIS: “Sorria! Você está sendo condicionado” – A Testemunha
Ocular em The Rotary Notary and His Hot Plate or Delay in Glass/pichação em
banheiro público à Rua Paraíba, Bairro Funcionários, Belo Horizonte; “Vacation
Time” – ilustração dos Homebodies, ou Caseiros, de Elizabeth Diller & Ricardo
Scofidio
Fontes: foto da autora; DILLER & SCOFIDIO, 1994, p. 135 e 221
FIGURA 1 – Leonardo da Vinci, O Homem vitruviano, 1492........................42
FIGURA 2 – Piranesi, série de gravuras intitulada Carceri d'Invenzione,
desenvolvida entre 1749 e........................................................................44
FIGURA 3 – Claude-Nicholas Ledoux, Vista da Cidade de Chaux, 1804 –
Ledoux ampliou seu projeto da fábrica de sal, transformando-o no
núcleo representativo de sua cidade ideal de Chaux. A fábrica
semicircular pode ser vista como um dos primeiros experimentos de
arquitetura industrial, uma vez que integrou conscientemente
unidades produtivas e alojamentos operários (Cf. FRAMPTON, 2000)
.....................................................................................................................45
FIGURA 4 – Etienne-Louis Boulée, Cenotáfio a Newton, 1784....................46
FIGURA 5 – Le Corbusier, Modulor................................................................ 47
FIGURA 6 – Le Corbusier, Villa Savoye, Poissy, 1929-1931........................ 48
FIGURA 7 – Le Corbusier, Villa Savoye – circulação com escada e rampa,
sala e banheiro...........................................................................................49
FIGURA 8 – O olho e a objetiva ......................................................................65
FIGURA 9 – Hélio Oiticica e Lygia Clark – à esquerda um dos Parangolés
de Oiticica; à direita,.................................................................................67
FIGURA 10 – Provocações protéticas de Stelarc: third hand project
(terceiro braço, 1976-1981), extra ear (ouvido extra) e movatar (2000)
.....................................................................................................................68
FIGURA 11 – Stelarc, Walking head (em desenvolvimento)........................ 69
FIGURA 12 – Internacional Situacionista – as investigações sobre o
labirinto por Constant: Ode à l’Odeon, 1969; mapa afetivo,
correspondente a uma leitura apaixonada da cidade, como New
Babylon Paris, 1963, Acampamento, 1957............................................. 73
FIGURA 13 – Internacional Situacionista, Constant, Spatiovore, 1959;
Setor Oriental, 1963...................................................................................74
FIGURA 14 – Archigram, Living Pod, 1966.................................................... 75
FIGURA 15 – Archigram, casa inflável/Cushicle...........................................77
FIGURA 16 – Archigram, Eletronic Tomato, 1969; Walking City in New
York, 1964...................................................................................................78
FIGURA 17 – Rem Koolhaas, Delirious New York.........................................94
FIGURA 18 – Rem Koolhaas, Cidade do Globo Cativo.................................95
FIGURA 19 – Rem Koolhaas, Nova Ilha de Bem-estar e piscina flutuante.95
FIGURA 20 – Lebbeus Woods, Centricity, 1987 – o conceito de ‘centricity’
remete a uma interação entre diferentes freezones que, unidas,
formam freespaces. Cada freezone gera um anel de ação centrado em
si mesmo, que interage com outros anéis e centros, formando uma
comunidade, uma cidade de centros ou centricity................................99
FIGURA 21 – Lebbeus Woods, Centricity ...................................................100
FIGURA 22 – Lebbeus Woods, Zagreb Free Zone, 1991 – uma estrutura de
freespace foi encomendada pelo Museu de Artes e Ofícios de Zagreb,
em 1991, e refletiu um contexto de guerra civil, violência e sofrimento
humano na Croácia; refere-se uma série de unidades de habitação
móveis, apoiadas sobre edifícios existentes, ocupando as ruas da
cidade como máquinas de guerra.........................................................101
FIGURA 23 – Lebbeus Woods, Zagreb Free Zone.......................................102
FIGURA 24 – Lebbeus Woods, Aerial Paris, 1989 – ligado a proposições
de movimento, animação e luta contra a gravidade, como uma
metáfora do esforço do ser humano que com ela deve lidar; expande-
se a fronteira para um território aéreo, onde ficam para trás ss idéias
de segurança e do controle e abre-se espaço pra a fluidez e o
transitório.................................................................................................103
FIGURA 25 – Steven Holl, Galeria Storefront, ............................................ 105
FIGURA 26 – Steven Holl, Galeria Storefront.............................................. 106
FIGURA 27 – Steven Holl, Casa Y, 1997 - croquis em aquarela, nascimento
da idéia.....................................................................................................107
FIGURA 28 – Steven Holl, Casa Y, croquis em aquarela, especulando o
partido ......................................................................................................108
FIGURA 29 – Steven Holl, Casa Y, fachadas compostas em madeira
pintada e vidro, e pilares metálicos.......................................................109
FIGURA 30 – Steven Holl, Casa Y, foto do interior..................................... 110
FIGURA 31 – Steven Holl, Casa Y, interiores...............................................111
FIGURA 32 – Tadao Ando, Casa Azuma, 1975-1976 – fachada com porta de
acesso.......................................................................................................114
FIGURA 33 – Tadao Ando, Casa Azuma, localização no terreno e
axonométrica...........................................................................................115
FIGURA 34 – Tadao Ando, Casa Azuma, plantas e corte..........................116
FIGURA 35 – Tadao Ando, Casa Azuma, interior, piso superior...............116
FIGURA 36 – Tadao Ando, Casa Azuma, vistas da cobertura, da escada,
da passarela e da entrada.......................................................................117
FIGURA 37 – Tadao Ando, Casa Azuma, Foto do pátio interno................ 118
FIGURA 38 – Elizabeth Diller & Ricardo Scofidio, Slow House,................121
FIGURA 39 – Diller & Scofidio, Slow House - desenhos ressaltando a
representação e a explicação do ..........................................................122
FIGURA 40 – Diller & Scofidio, Slow House, foto da construção e desenho
em planta explodida................................................................................122
FIGURA 41 – D & S, Slow House, representações da ................................123
FIGURA 42 – Diller & Scofidio, Blur Building, 2002....................................125
FIGURA 43 – Diller & Scofidio, Blur Building.............................................. 126
FIGURA 44 – Michelangelo, Pietà Rondanini, 1564; André Vesálio, Sétima
Gravura dos Músculos............................................................................129
FIGURA 45 – Donna Haraway em versão animada, no filme Ghost in the
Shell..........................................................................................................149
FIGURA 46 – John M. Johansen, The Web, 1989........................................179
FIGURA 47 – John M. Johansen, The web...................................................180
FIGURA 48 – John M. Johansen, The Floating House, 1996-1997 – fotos,
corte e planta; A estrutura da casa, esculpida em material plástico
luminescente, contém em suas formas a maior parte do mobiliário;
ela flutua como uma gigante flor aquática de pétalas translúcidas..181
FIGURA 49 – John M. Johansen, Molecular-engineered House (for the year
2200), 2000; com construção prevista para nove dias, a arquitetura
molecular brotaria como um sistema vascular, oriundo de um material
químico em forma líquida.......................................................................181
FIGURA 50 – J John M. Johansen, Molecular-engineered House (for the
year 2200), ...............................................................................................183
FIGURA 51 - Zaha Hadid, Vitra Fire Station, 1990-1994 – representação da
obra...........................................................................................................186
FIGURA 52 – Zaha Hadid, Vitra Fire Station, 1990-1994 - plantas............. 187
FIGURA 53 – Zaha Hadid, Vitra Fire Station, 1990-1994 – pinturas
especulativas...........................................................................................188
FIGURA 54 - Zaha Hadid, Vitra Fire Station, 1990-1994, foto.....................188
FIGURA 55 - Zaha Hadid, Vitra Fire Station, 1990-1994, fotos internas e
externa......................................................................................................189
FIGURA 56 - Zaha Hadid, Car Park and Terminus Hoenheim-Nord, 1998-
2001...........................................................................................................192
FIGURA 57 - Zaha Hadid, Car Park and Terminus Hoenheim-Nord, 1998-
2001, representação em pintura e vista do objeto construído...........193
FIGURA 58 - Zaha Hadid, Car Park and Terminus Hoenheim-Nord, 1998-
2001...........................................................................................................194
FIGURA 59 - Zaha Hadid, Lois and Richard Rosenthal Center For
Contemporary Art, 1997-2003................................................................197
FIGURA 60 – Zaha Hadid, Lois and Richard Rosenthal Center For
Contemporary Art, 1997-2003................................................................198
FIGURA 61 - Zaha Hadid, Lois and Richard Rosenthal Center .................199
FIGURA 62 – Zaha Hadid, Lois and Richard Rosenthal Center For
Contemporary Art, ..................................................................................200
FIGURA 63 – Lebbeus Woods, Underground Berlin (1988) e Berlin Free
Zone (1990)...............................................................................................203
FIGURA 64 – Lebbeus Woods, Underground Berlin, desenhos dos
interiores..................................................................................................204
FIGURA 65 – Lebbeus Woods, Underground Berlin – representação de um
corte..........................................................................................................205
FIGURA 66 – Lebbeus Woods, Solo House (1989), maquete e desenho..206
FIGURA 67 – Lebbeus Woods, Solo House, representação em corte...... 207
FIGURA 68 – Lebbeus Woods, Solo House, desenho do interior............. 208
FIGURA 69 – Lebbeus Woods, no livro Radical Reconstruction, 1997.... 209
FIGURA 70 – Diller & Scofidio, The Rotary Notary and His Hot Plate or
Delay in Glass, 1986 – a Noiva, o Noivo e a Testemunha Ocular.......212
FIGURA 71 – Cena do espetáculo The Rotary Notary and His Hot Plate or
Delay in Glass, 1986................................................................................212
FIGURA 72 - Diller & Scofidio, Para-site, 1989, Museu de Arte Moderna de
NY..............................................................................................................214
FIGURA 73 – Diller & Scofidio, Para-site, 1989, Museu de Arte Moderna de
NY..............................................................................................................215
FIGURA 74 – Diller & Scofidio, Eyebeam Museum of Art and Technology -
The 2002 Charles and Ray Eames Lecture, Nova York, 2001.............221
FIGURA 75 – Diller & Scofidio, Eyebeam – incursões tecnológicas.........222
FIGURA 76 – Diller & Scofidio, The Highline, Nova York, 2008-9..............223
FIGURA 77 – Diller & Scofidio, projeto Bad Press: Dissident Ironing, 1993-
1998...........................................................................................................226
FIGURA 78 - Diller & Scofidio, withDrawing room, 1987............................228
FIGURA 79 – Diller & Scofidio, withDrawing room..................................... 229
FIGURA 80 – Diller & Scofidio, withDrawing room, com a Vanity chair ou
cadeira da vaidade..................................................................................230
RESUMO
O trabalho trata das modificações sofridas pelo corpo desde que a ele se
somaram próteses aparatos tecnológicos —, especialmente a partir do
advento da Revolução Industrial, mudanças essas que reverberaram na
produção de espaço da arquitetura. Tem-se como hipótese que tais
transformações do corpo, ao interferirem no modo como o mundo é percebido
e experimentado pelo homem, trazem questões a serem refletidas no âmbito
da arquitetura, uma vez que o cenário atual em que ela se produz aponta para
novas vivências do espaço urbano. Analisa-se que arquitetura é possível diante
de um meio ciborgue, em que as contaminações do corpo pela máquina
mobilizam novas formas de aproximação entre usuário e obra.
ABSTRACT
The research deals with the transformations suffered by the body since they
added prothesis technological instruments —, especially from the advent of
Industrial Revolution, changes that reverberated in architecture’s space. The
hypothesis is that such transformations, when intervening with the way men
perceive the world, bring questions to be reflected by the discipline, once the
current scene where architecture is produced leads to new experiences of
urban space. It is analyzed what architectural production is made possible in a
cyborg ambience, where the contaminations of body by machine mobilize new
forms of approach between habitants and buildings.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 16
2 A CHEGADA DE UM NOVO CONTRUCTO ESPAÇO-TEMPO: O SER E O
VIVER NA CONDIÇÃO CONTEMPORÂNEA ............................................ 29
2.1 De volta ao passado — as relações primordiais entre corpo, espaço e
arquitetura ............................................................................................ 29
2.2 O emblema das próteses e as sensibilidades num olhar modificado ... 52
2.3 Sobre um novo constructo espaço-tempo e suas reverberações
corporais ............................................................................................... 79
2.4 Diálogos possíveis entre arquitetura, corpo e tecnologia na terceira era
da máquina — decalques contemporâneos ........................................ 98
3 PRÓTESES, EM QUE CORPO? .................................................................. 127
3.1 Investigações sobre a origem do processo de negação do corpo e sua
influência maquínica ........................................................................... 127
3.2 De possíveis identidades de um corpo tecnológico contemporâneo .. 146
4 O CORPO NA CULTURA MIDIÁTICA — LINGUAGEM E
REPRESENTAÇÃO EM XEQUE .............................................................. 156
4.1 Da experiência do espaço urbano mediado pelas próteses e das redes
sensoriais que a contextualizam ........................................................ 156
4.2 Análise do mapa — desvelamentos e desorientações ....................... 183
5 CONCLUSÃO ............................................................................................... 231
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 234
1 INTRODUÇÃO
Diante de uma sociedade marcada pela realidade do consumismo exacerbado,
da obsolescência prevista de objetos, da alta velocidade de circulação das
informações e do culto ao valor aparente das imagens, a arquitetura
contemporânea encontra-se em situação de impasse. Constata-se hoje a
apatia dos habitantes da cidade no que diz respeito ao seu processo de
envolvimento com o lugar, uma supervalorização dos sentidos perceptivos que
leva ao desgaste e aniquilamento do envolvimento afetivo. Essa incessante
solicitação que não abre lugar para mais nada conduz o homem à repetição
alienada de um certo modo de vida e o faz deixar de lado a própria experiência,
a apropriação do espaço. O condicionamento a que estão submetidos os
habitantes das cidades e seus espaços provocam uma dificuldade em reagir à
sua arquitetura que, por sua vez, insere-se num processo cultural de fascínio
imagético empobrecido que não pode recusar. Mas embasar a produção de
arquitetura no culto à representação que esconda em suas imagens nada além
de uma visualidade sem significação equivaleria a esquecer a dimensão
corpórea da qual ela deve partir e à qual deve sempre voltar. Como agir frente
a esse contexto e propiciar a retomada da experiência do mundo, estar
sensível a ele?
É certo que a atual sociedade vive num fluxo de velocidade cada vez maior, no
modo como se apresentam para ela as informações e também na maneira
como são a partir daí vivenciadas. Mas as dificuldades que tal situação provoca
remetem seu habitante a uma mitologia de um paraíso perdido que seria a
volta ao campo, certamente uma grande ilusão. A cidade e seus
acontecimentos cercam-no e abrem seus olhos, mas o olhar está modificado a
ponto de, muitas vezes, dissociar o binômio olhar-conhecer. E não a visão
passa por um processo de transformação, embora um dos emblemas da crise
da sensibilidade corpórea esteja no predomínio desse sentido em detrimento
dos outros. Provavelmente não seja mais possível lidar com o que hoje
significaria tédio e marasmo. As mudanças foram feitas irreversivelmente, e
16
cabe ao homem conseguir fragmentos de pausas no cotidiano, modos de
atentar-se de quando em quando para experimentar o corpo no espaço, a fim
de re-sensibilizar o primeiro em relação ao segundo.
A experiência espacial pode ocorrer em diferentes níveis e instâncias, e tal
processo se faz revelar como um sintoma das relações do corpo com o mundo.
E o que se é um corpo atrofiado com o tempo, desde a chegada dos
controles remotos, telefones sem fio, automóveis e computadores, que
autonomearam os meios de experimentação dos fenômenos do mundo
1
. À
medida que não se conhece mais o corpo nas suas referências tradicionais,
não se reconhece o espaço, que é o próprio corpo em relação. Para se
investigar como conceitos e experimentações de espaço apresentam-se ao
universo arquitetônico contemporâneo, é preciso inverter o sentido da busca,
questionando antes qual a relação possível entre corpo e espaço. Mas este
constructo deve ser analisado a partir da inserção de novos objetos,
tecnologias e virtualidadespróteses — nesse meio para, enfim, refletir sobre
a produção de arquitetura propriamente dita.
Necessita-se rever de que corpo está-se falando e, com base nessa nova
realidade, refletir sobre a relação entre esse corpo e o espaço que a arquitetura
pretende gerar. Por outro lado, a arquitetura que o corpo contemporâneo pode
experimentar localiza-se num tempo de sensibilidade modificada, o que exige
que se detenha ainda sobre os moldes representativos sob os quais ela se
manifesta. A representação na era tecnológica é colocada em xeque, assim
como também os próprios valores arquitetônicos. Esta, por sinal, interfere nas
possibilidades e não-possibilidades de que o corpo se inclua nesse discurso. A
significação da imagem e o papel por ela exercido transformaram-se bastante
desde a propagação, reprodução e manipulação permitidas pela fotografia. É
prática comum no âmbito da arquitetura a supervalorização do papel da
1
Como será constatado adiante, a tecnologia como mediadora da relação corpo-mundo é vista
por alguns com pessimismo, enquanto para outros é uma forma de experimentação profícua. O
que se destaca aqui é a condição inevitável dessa relação na contemporaneidade, e o
automatismo e condicionamento de que em geral é acompanhada.
17
figura representada graficamente e não do objeto arquitetônico que se
apresenta na imagem impressa. Tais condições resultam na mistura inequívoca
do modo de representação e o objeto representado, provocando o afastamento
do corpo da experiência de suas obras. Embora a arquitetura sempre tenha
sido mediada pelo corpo, ou melhor, tenha necessariamente como referência
um modelo de corpo, o que está em jogo na atualidade é que o resultado das
alterações sofridas nesses modelos permaneceu até que a idéia de máquina se
fixasse e estabelecesse novos parâmetros de sensibilidade. A profunda
alteração do corpo que hoje acopla próteses traz à tona um processo paulatino
de negação do corpo, que se afasta da experiência do espaço como este se
configurava em grande parte do século XX. De todo modo, a onipresença
tecnológica na formação dos hábitos cotidianos pode tanto ser fator alienante
como promotor de novas experiências.
Numa análise que parte da reflexão sobre o papel das fotografias e das
revistas especializadas em arquitetura, Fernando Fuão (2001) acaba por
revelar algumas das conseqüências de uma sociedade pós-industrial fundada
no consumo da imagem, onde está em jogo a transformação do processo de
representação na arquitetura. A representação deixou de exercer somente uma
função de veículo para tomar o lugar do objeto ou sujeito que ela representa, e
faz servil o indivíduo que vive na sociedade contemporânea acreditando poder
repetir-se em imagens, consumindo-se com capas e deixando de lado a
experiência do real. A capacidade ilusionística das imagens que con(figuram)
sua representatividade passa a ser utilizada como impulso para a passividade,
tanto do arquiteto que produz a arquitetura fotografada e impressa em revistas
especializadas como do leitor/receptor dessas obras. Esta passividade, no
entanto, é camuflada pela rapidez com que se consomem imagens em
proliferação contínua, gerando a falsa sensação de que se experimentou dessa
arquitetura. mesmo um reflexo da reprodução em série que a Revolução
Industrial inaugurou, pois as revistas de arquitetura passaram a ser
depositários de imagens repetidas quase ao infinito e sem qualquer
diferenciação real de uma obra para outra. É a padronização e modelização do
18
espaço, que se esconde no modo de representação propiciado pelas
fotografias cujo meio de transmissão está nas folhas das revistas. um duplo
sintoma por trás da arquitetura como pura visualização de imagens: a negação
do corpo no processo de cognição dessa arquitetura e o atrofiamento da
movimentação desse corpo no espaço. Assim, as fotografias afetam não a
visão como todos os movimentos do corpo.
Que arquitetura se desenha nesse cenário, que soma às conseqüências do
pensamento baseado na imagem através da lógica fotográfica inúmeros outros
instrumentos que interferem ainda mais na relação entre corpo e espaço? O
entendimento da passividade do olho mediante simulacros platônicos,
apresentados justamente por uma propagação da visão como sentido
supervalorizado a partir de então, é crucial para a identificação do contexto em
que hoje se produzem suas obras, em que o corpo subjugado como totalidade
sensória tende a se perder como referência dessa prática arquitetônica. Está
em pauta a produção de uma arquitetura sedutora e superficial, disseminada
pela proliferação e vulgarização das suas imagens técnicas. Estas enganam o
olho desviando-o em direção a uma arquitetura virtual, projetada no espaço das
inexistências físicas, longe da experiência real de mundo, da interação entre
corpos. A racionalidade do espaço caminha junto à passividade do olho, que
parece ser utilizado em termos amplos quando esconde a restrição de ter seu
foco, objeto e ângulo escolhidos pela lógica da máquina, não do corpo.
2
Uma das metáforas possíveis é a de uma cidade fantasma, em que as pessoas
são recolhidas para o interior de suas casas e engolidas pela grande rede
comunicativa formada na era do computador, da internet, da televisão, do
telefone. Vazia de habitantes nas ruas, a cidade se faz em outros moldes e
relações sociais, e tal esvaziamento se reflete no modo como ela é retratada
(FUÃO, 2002). A exclusão da figura humana da representação do espaço
reflete a rigor a exclusão dos homens das atividades públicas da cidade e a
2
Em sua tese intitulada Arquitectura como collage, Fuão expõe a fragilidade do uso das
imagens a partir da manipulação permitida pela fotografia e, antes disso, da mudança de
representação formatada pela história da câmera escura e da perspectiva.
19
própria ausência do corpo como mote para a criação da arquitetura. À medida
que o meio tradicional está desaparecendo, como mostra o fenômeno de
dispersão urbana que cria centros múltiplos, Fuão (2002) atenta para o fato de
que a arquitetura como meio está sendo posta novamente em questão,
enquanto seu valor de comunicação se perde na revolução da informação. Este
seria então o momento propício para o seu resgate como prótese do corpo e
como prótese da existência, como meio, extensão do homem como a
vestimenta.
Hoje, a noção de espaço e seus usos tende à idéia de diluição e de
efemeridade, e com isso estabelece novos parâmetros para a produção e
recepção arquitetônicas. Fuão (2004a, 2004b, 2004c) lembra que o espaço não
é uma realidade rígida nem válida para todos, e é em si tão plástico e imaterial
como o próprio tempo. Nesse sentido, o espaço é sempre mutável. Contudo ele
está, como nunca, em plena mutação, devido à alta velocidade de consumo
das informações e à quase suspensão do tempo cronológico como
interferência em nosso modo de experimentação da realidade. A percepção
sobre o espaço se modifica instantaneamente, enquanto o corpo atrofia suas
funções as rodas dos automóveis substituindo os pés, como lembra
McLuhan (2003), as máquinas fotográficas enxergando pelos olhos, o
computador virando extensão do cérebro.
São emergentes novas relações entre sujeito e espaço, que devem ser
pontuadas se se quer refletir sobre a prática e a teoria de projeto arquitetônico
na sociedade atual. Nesse âmbito, a discussão a respeito dos espaços virtuais
e as potencialidades que se abrem a partir das experimentações são apenas
possíveis com a engenhosidade da produção via computação gráfica. Tal
condição significa rever a noção de representação e imagem de que se utiliza o
meio da arquitetura, onde a sobrevivência do espaço depende da experiência
em torno dele. Quando constatada a dificuldade de se garantir essa
experimentação, há necessidade de analisar com profundidade todo o
processo de relação entre eles.
20
Fuão (2004a) pontua que pensar um espaço como existente significa pensar
em si próprio. Por isso buscar um sentido para o espaço só é verificável a partir
da promoção do próprio corpo como referência. Entender os rumos que a
experiência arquitetônica pode tomar reside na mutabilidade cada vez maior
que ela assume, coadunada com os resultantes de um corpo submetido a
inúmeras multiplicações de suas próteses. Nesse sentido, seria equivocado
elaborar uma trajetória de experimentações possíveis como uma lista de itens a
serem cumpridos. Cabe aqui, por outro lado, verificar o que a teoria da
arquitetura engendrou historicamente, definindo-se como uma avaliação dos
processos de sua criação, bem como nas argumentações pautadas na visão da
experiência do espaço atrelada ao corpo.
Tem-se como princípio que a própria experiência constitui-se a grande reflexão
sobre o espaço, e que se deve subentender de entrada que toda experiência é
única, singular e irrepetível. Portanto, não pode ser transmitida como saber
institucionalizado, mas seu conhecimento pode ser veiculado por outras vias,
diferentes do até então freqüentemente concebido. Busca-se, assim, a
experiência como desvelador, como reflexão sobre o espaço. Sob este
aspecto, a experiência torna-se conhecimento do espaço que ela assume.
Esse conhecimento (experiência) é aqui proposto através da relação corpóreo-
espacial. A questão é entender como se esse desvelamento, e acredita-se
que uma das vias seja a da desorientação, que é a própria experimentação,
posto que o que toca o indivíduo é o que o tira do lugar e o reposiciona diante
do comum
3
.
Como o espaço deve ser apreciado e experimentado hoje, quando um dos
seus modos de aparição se dá, por exemplo, através do “evento”, do que nem
sempre é feito para durar? Paradigmáticas, algumas noções de experiência ao
longo da história da filosofia, da arte e da arquitetura indicam um caminho de
reflexão acerca da mediação entre sujeito, espaço e objeto, e a experiência
3
A argumentação em torno das significações que a desorientação adquire encontra-se em
FUÃO (2004a, 2004b, 2004c), e servirá de apoio à análise aqui proposta.
21
espaço-corporal que se dá. O espaço, desde o Humanismo, tem como
fundamento o corpo matemático, mas é a partir do século XVIII que o corpo
vai ser considerado por suas medidas, seus pesos, suas experiências
estéticas, onde, chegando ao século XX, todo o invisível do corpo desaparece
também com seus discursos. Não se trata mais do corpo com braço estendido
como uma expressão reduzida a uma dimensão de 2,10 m, o homem-tipo do
Modulor de Le Corbusier, mas de um corpo que muda paralelamente às novas
invenções tecnológicas que a ele se anexam e que se refletem num outro, cada
vez mais mutante: o da arquitetura
4
.
Toda experimentação do corpo é uma categoria que envolve espaço e tempo.
À medida que a compreensão do mundo é fruto desse casamento, a
desorientação espacial aniquilaria o tempo, e tal ruptura sincrônica traria
consigo a possibilidade de uma outra visão, uma outra possibilidade de
experimentação (FUÃO, 2004a) que aqui se reivindica. Revisitar os principais
estudos sobre a relação de tempo, espaço e experiência é condição para essa
desarticulação. Do mesmo modo que não se nega uma interdependência entre
as duas noções, e que também se reconhece uma mudança no tempo de
usufruição dos fenômenos sensíveis, é justamente na atitude de desatrelá-los
que reside o esclarecimento de que espacialidade é possível e quais
características da experimentação do espaço sobrevivem ou não na vivência
do tempo hoje. Através do corpo protético, num meio ciborgue, o espaço da
arquitetura se desvela.
A principal hipótese deste trabalho é a de que o corpo como mediação do
próprio espaço deve ser tomado como estudo, sendo ele a fundamentação
para o projeto e o conhecimento do espaço. A partir desse ponto, vários
detalhamentos são possíveis na investigação das potencialidades do espaço e
da experiência em torno da obra de arquitetura. O corpo abre, então, a questão
mediática de suas extensões, suas próteses. O foco estabelecido é o próprio
4
aqui uma clara e intencional referência ao título de uma das obras de Elizabeth Diller &
Ricardo Scofidio, Flesh cujo livro contém um artigo de Georges Teyssot chamado The
mutant body of architecture —, que será motivo de extensa análise nesta tese.
22
corpo, nas transformações por que passou desde que a idéia de máquina se
acoplou a ele, e a reflexão sobre qual a experiência de espaço possível a partir
da contaminação do corpo pela idéia de máquina. O corpo não é mais
universal e matematizável: ele tende, ao contrário, ao incalculável daí o
problema de definir esse novo corpo mesmo a partir dos enxertos protéticos.
Uma vez promovido o entendimento sobre o ele, que advém desse processo
que gera a indiferenciação entre corpos, arquiteturas e experiências, propõe-se
restabelecê-lo como a diferença possível na mediação entre homem e espaço.
O corpo-máquina contribui para a produção de uma arquitetura-máquina? O
que se verá é que, curiosamente, nem sempre a materialidade da arquitetura é
o que estará em jogo nessa questão. A discussão sobre o corpo transformado
pela idéia da máquina perpassa várias teorias e simbolismos e por diversos fios
condutores. As influências da artificialização produzem vertentes por vezes
opostas quanto às conseqüências geradas pela constituição de um homem-
máquina. Admitindo-se a máquina como condição de construção do corpo
humano contemporâneo, estaria sua salvação na tentativa de libertar-se dela
— se assim for possível — ou admiti-la como um anexo saudável — ou apenas
inegável? É preciso lembrar que é possível forjar uma reestruturação da
experiência tendo como via o abandono do projeto moderno do corpo-máquina,
acionando a noção de homocyborg
5
. O que se afirma de antemão é a
impossibilidade de definir uma noção de corpo sem vinculá-lo à inclusão da
máquina em seus domínios, seja como conceito ou como objeto real. Por sua
vez, essas noções ampliam-se para outras: as invenções tecnológicas e a
cultura midiática.
Objetiva-se achar sentidos de contramão ao processo de repetição de modelos
estagnadores do hábito de formação do cotidiano do homem, onde as coisas
5
A noção de corpo-máquina tem diversas aplicações, e várias delas serão retradadas a
contento; particularmente o termo homocyborg é utilizado por Charles Jencks (1996). Além
disso, a expressão corpo-máquina, neste ponto referente ao projeto moderno, abordará
diferentes interpretações ao longo da tese, de acordo com o contexto histórico a que se
recorre.
23
podem até permanecerem iguais, mas a percepção sobre elas deverá ser
alterada — um processo típico da experiência.
É ainda objetivo desta tese assumir as influências de uma cultura midiática e
todo o contexto que a cria, identificando diferentes propostas de reaproximação
entre corpo e espaço. Este contato ocorrerá pela inclusão da máquina e seus
desdobramentos no próprio corpo, super-utilizando as próteses para realçar
outras vivências corporais e espaciais, e pela tentativa de “devolver o corpo a
ele mesmo”, reaguçando seus sentidos numa espécie de oposição à
automatização. Estabelece-se uma via de mão dupla: buscar estratégias de
sensibilização em duas instâncias: a do corpo sufocado pelas próteses e a do
corpo nu, suprimido delas. Algumas experiências e experimentações serão
destacadas como meios de investigação, dentre elas a produção dos arquitetos
Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio, que tratam justamente da idéia de uma
arquitetura que se transforma através do tempo e da influência tecnológica
sobre o corpo — tanto o humano como o da arquitetura, ambos mutantes.
A realidade que compreende a produção de arquitetura contemporânea revela-
se, mais que nunca, múltipla, passível de um sem número de distorções, (re)
programações e percepções ora automatizadas, ora adormecidas. Quem
estabelece esse cenário complexo é o próprio corpo, à medida que se
transforma e se redireciona constantemente no meio que é maquínico. A
complexidade de abordagens que isso gera exige um formato de pesquisa que
não se faz por um encadeamento tradicional de pensamentos, mas, sim, que
permita várias portas de aproximação do tema que é, por si só, multifacetado.
A lógica do texto não é linear, mas uma sucessão de acontecimentos que se
remetem um ao outro descontinuamente, em entrelaçamentos que se repetem
e se renovam para promover sua reflexão. Por tal razão, o método utilizado
para o desenvolvimento da pesquisa é também o método de escrita do texto:
rizomático, não-hierarquizado um aprendizado que retoma o de Deleuze &
Guattari em seus Mil Platôs.
6
6
Refere-se à obra de Gilles Deleuze & Felix Guattari englobada na série Mil Platôs: capitalismo
e esquizofrenia, volumes 1 a 5.
24
Como mostram os autores, a teoria das multiciplicidades que resulta numa
teoria do acontecimento é a saída escolhida naturalmente para a compreensão
da realidade como múltipla, diversa e mutante, como o corpo e a arquitetura de
que trata este trabalho. A própria experiência de leitura e escritura é o
articulador dos conceitos e noções destacados como auxiliadores na tentativa
de elucidar ou propor uma lógica de aproximação dos objetos: arquitetura (de
um texto) como evento. Deleuze & Guattari
7
explicam que o tempo do
acontecimento não é compreendido como linear, hierarquizado e anacrônico. O
tempo evenencial, ou seja, da ordem do evento, é compreendido como aiônico,
um tempo em linha reta que não comporta a idéia de sucessão. Entende-se
que é exatamente desse tempo que se trata agora, e é a rearticulação do
constructo espaço-tempo que está em jogo para a experiência de mundo hoje,
rearticulação essa que modifica as sensibilidades e formas de percepção. E
este tempo do acontecimento é também o tempo e o modo de organização
desta pesquisa: uma sucessão não-linear, a conformação de possibilidades de
conexões múltiplas e desierarquizadas. O plano de imanência implica uma
espécie de experimentação tateante, e seu traçado recorre em meios pouco
confessáveis, pouco racionais e pouco razoáveis... (DELEUZE & GUATTARI,
1997:58).
O Rizoma como fio condutor dos platôs que se interconectam em vaivém é o
método aqui presente: o meio, e não o começo ou o fim, é o ponto de partida.
Para Deleuze & Guattari (1995, v. 1), não existe um modelo ou guia, somente
um referente, um cruzamento de acontecimentos a ser operado sem cessar,
sincronicamente. A idéia de processo está sempre presente na feitura do texto
e, portanto, alguns conceitos, autores e obras serão enunciados e
reapresentados ao longo do desenvolvimento da tese, na tentativa de aplacar
uma rigidez que se revelaria paradoxal para o próprio tema e suas condições.
Assim, um pensamento nômade para tratar de uma experiência espacial
nomádica. E a Nomadologia
8
contrário da história apresentada em
7
Cf. PELBART, 1998.
8
Outro conceito de Deleuze & Guattari (1995, v. 1 e 5).
25
seqüência linear aproxima a lógica do cenário atual com a lógica de
encadeamento da pesquisa e do texto, que se constrói em palimpsestos,
sobreposições, platôs que se interpõem e se recolocam sem necessariamente
se prender à ordem histórica cronológica.
E não são os mapas deleuzianos palimpsestos acumulados pelas
experiências? Os conceitos de mapa e decalque também são caros a esta
metodologia, uma vez que é sob o nexo de suas contraposições e
complementaridades que a estrutura da tese se revelará. Deleuze & Guattari
(1995, v.1:16) conectam o mapa à própria ordem do rizoma, uma vez que
aquele acomoda uma das principais características deste: ter múltiplas
entradas, possibilidades variadas de leitura. “Um método tipo rizoma é obrigado
a analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre outras dimensões
e outros registros”, dizem os autores. O que existem são planos de
consistência de multiplicidades, conjugações de fluxos desterritorializados,
rearranjos. É dos teoremas 5 e 6 (DELEUZE & GUATTARI, 1995, v. 1) que
definem as características rizomáticas que partem o princípio de cartografia e
de decalcomania, onde se define que um rizoma não pode ser justificado por
nenhum modelo estrutural ou gerativo, pois deve poder se transformar
continuamente. Desse modo, o eixo genético ou estrutura profunda seriam
princípios de decalque, reprodutíveis ao infinito, e toda lógica da árvore é uma
lógica do decalque e da reprodução. Ao que se segue que o mapa opõe-se ao
decalque por estar inteiramente voltado para uma experimentação: ele não
reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, mas o constrói, fazendo
parte do rizoma. Reside na possibilidade de reversão, desmontagem e
rearticulação a relação de referências que aqui se propõe ou a construção e
reconstrução de mapas através de decalques, ressituando-os.
Falamos exclusivamente disto: multiplicidade, linhas, estratos e
segmentaridades, linhas de fuga e intensidades,
agenciamentos maquínicos e seus diferentes tipos, os corpos
sem órgãos e sua construção, sua seleção, o plano de
consistência, as unidades de medida em cada caso (DELEUZE
& GUATTARI, 1995:12).
26
A introdução do tema estabelece as linhas gerais da pesquisa, seu contexto e
os recortes cronológicos escolhidos, seguidos da justificativa, dos objetivos e
da metodologia em questão. O segundo capítulo, ou marco teórico, apresenta
as mudanças no constructo espaço-tempo que tecem o fio da análise
contemporânea que envolve o corpo e a produção arquitetônica. Procede-se
também a uma revisão bibliográfica que introduz o tema, nas relações
traçadas pela teoria da arquitetura entre ela mesma, o corpo e o espaço; essa
história do corpo na arquitetura resulta num princípio de sucessões de
decalque, que servirá de aparato para a elaboração de um mapa (ao final do
processo de escritura, no capítulo quatro). Tal decalque é desenhado na
terceira parte deste capítulo, destacando exemplos esclarecedores quanto às
reflexões propostas, presentes em alguns fragmentos da história da
arquitetura, que podem ser verificados ao longo da era moderna. O terceiro
capítulo conforma a organização de um diálogo de algumas teorias do âmbito
das Ciências Humanas com as arquiteturas destacadas como paradigmáticas
na interconexão com o corpo midiático e o espaço, tendo como mediação a
categoria da experiência. Nesse âmbito delineia-se um perfil mutante do corpo
e da arquitetura, que servirá de escopo para as discussões antecedentes e
precedentes, num ir-e-vir em platôs rizomáticos. O quarto capítulo faz a
articulação das empirias com as teorias, encontrando fragmentos de um
discurso arquitetônico, em nome da deriva/desorientação mapa tendo
como reflexo arquitetura e corpo como acontecimento, ou a própria experiência
de espaço. Nele se relacionam as condições das próteses tecnológicas à
experiência do espaço urbano, delimitando as redes sensoriais que norteiam o
cenário maquínico em que se faz presente a arquitetura.
Alguns pontos de apoio principal foram definidos como tentativa de detalhar as
noções de experiência e suas potencialidades, tendo como base a relação do
corpo com o espaço. Esses pontos serão em parte enunciados e retornarão
circunstancialmente, promovendo uma interlocução necessária ao
desenvolvimento de uma reflexão crítica. Parte-se do reconhecimento da
equivalência entre experiência do corpo no mundo e experiência do espaço, e
27
busca-se o embasamento desta relação no âmbito das Ciências Humanas. A
filosofia contribuirá especialmente através da linha de pensamento pós-
estruturalista, iniciada pelas obras de Michel Foucault e seguida posteriormente
pelos filósofos Deleuze & Guattari.
28
2 A CHEGADA DE UM NOVO CONTRUCTO ESPAÇO-TEMPO: O
SER E O VIVER NA CONDIÇÃO CONTEMPORÂNEA
2.1 De volta ao passado — as relações primordiais entre corpo, espaço e
arquitetura
Já não é do corpo humano como Leonardo Da Vinci o representou que se trata
agora, o novo corpo não cabe em limites geométricos, explode segundo um
novo sujeito, um sujeito que, para muitos, não mais existe, mas que sempre
vaza por todos os lados
9
. O corpo expande-se contínua e irreversivelmente.
Nesbitt (2006:15-87) lembra que, mediante a projeção das formas corporais
humanas como símbolo da perfeição da natureza, a arquitetura alcança uma
harmonia de proporções que remete à questão da escala e do indivíduo o
que se vê tanto na teoria renascentista como no modulor moderno. Mas indaga
se tais sistemas de proporções, fornecidos como medidas comparativas da
inter-relação entre corpo e experiência arquitetônica (tomada como significativa
em função disso), são de fato perceptíveis pelo usuário ou meras abstrações.
Na vasta análise por ela promovida e organizada (NESBITT, 2006), lança o
prognóstico de negligência na relação entre corpo e arquitetura especialmente
identificável no funcionalismo, exceto no que se referia à acomodação
pragmática da forma humana no abrigo. Tal atitude induziu a rota pós-moderna
em direção a uma discussão da revitalização da disciplina convergindo para o
corpo do homem como seu terreno de investigação. Atualmente, o interesse
pelo corpo aparece, segundo a autora, sob diferentes formas e orientações,
quais sejam a fenomenológica, a pós-estruturalista e a feminista.
As mudanças que se identificam no modo como o corpo se apresenta e age
(ou não) nos dias atuais devem-se especialmente a alguns fatores: a
9
Veja-se comentário de Tomaz Tadeu da Silva (2000:11) em Nós, ciborgues: o corpo elétrico e
a dissolução do humano, onde ele lembra que, desde Marx, passando por Freud e chegando
aos pós-estruturalistas, questiona-se a subjetividade humana como apresentada pelo cogito
cartesiano. “A questão não é mais, agora, “quem é o sujeito”, mas “queremos, ainda, ser
sujeitos?”, “quem precisa do sujeito?” (GUZZONI, 1996), “quem tem nostalgia do sujeito?” e,
mais radicalmente, talvez, “quem vem depois do sujeito?” (CADAVA, CONNOR e NANCY,
1991). Ou ainda, como Maurice Blanchot (1991), e essa última pergunta podemos, talvez
cinicamente, nos limitar a retrucar: “quem mesmo?”.
29
transformação no ritmo de vida e na maneira como se vivencia o tempo, cada
vez mais acelerados; a influência que tem sofrido da tecnologia
destacadamente a partir dos anos 1960; a mudança de percepção e de
sensibilidade que decorrem dos dois pontos anteriores.
Bloomer & Moore (1982), ao reexaminar o significado do corpo humano para a
arquitetura ao longo de sua história, partiram do pressuposto que existia uma
excessiva confiança depositada nos diagramas bidimensionais, nos aspectos
quantificáveis e organizadores da edificação, em detrimento das qualidades
policromáticas e tridimensionais da experiência arquitetônica, desconsiderando
o corpo em sua totalidade. Para os autores, a capacidade perceptiva e
emocional do ser humano tem sido negligenciada desde que a técnica passou
a ser uma questão cotidiana forte. Eles destacam alguns acontecimentos da
história do Ocidente que mostram como, durante muito tempo, o corpo foi algo
importante para o pensamento arquitetônico, apontando a existência de uma
crença equivocada de que a importância do corpo para a arquitetura é recente
desde o aparecimento das academias modernas. Por isso eles analisam
algumas controvérsias surgidas desde o pensamento filosófico e psicológico
pós-cartesiano no que se interpõem com as mudanças produzidas no
entendimento da arquitetura, destacando alguns dos modelos perceptivos
desenvolvidos ao longo do século XX e os examinando em suas implicações
na teoria da imagem corporal
10
e na identificação do sentido háptico.
Eles partem então de um paralelo entre a tridimensionalidade na arquitetura e a
experiência corporal, entendendo que o sentido da primeira origina-se na
última, e que é este o sentido que pode servir de base para a compreensão do
sentimento espacial que se experimenta nas edificações. Em seguida,
apresentam a dialética entre espaço cartesiano e espaço referido ao
corpo/espaço vivido destacando que, no começo de sua vida como indivíduo, o
10
O princípio organizativo que rege a formação de nossa imagem corporal consiste em que
toda pessoa situa seu corpo inconscientemente dentro de uma envoltura tridimensional
(BLOOMER & MOORE, 1982:50).
30
homem mede e ordena o mundo partindo de seu próprio corpo, com o mundo
se desvelando a ele segundo as noções do que está à frente, atrás, à direita ou
à esquerda, acima ou abaixo. Tal ordenação muda com tempo e com a
educação que ensina um novo sistema, o cartesiano, e as relações espaciais
entre os objetos adquirem mais precisão e complexidade, ainda sem ter em
conta as qualidades de sua localização o que distancia o homem de uma
relação maior entre o corpo e o espaço e realça as qualidades mecânicas
deste.
Uma das exemplificações mostradas por Bloomer & Moore (1982) diz respeito
a um fenômeno freqüente, ocorrido nos anos 1970 e 1980 especialmente na
América do Norte, nos jardins europeus ou do Próximo Oriente, que era o
terreno em volta da casa aberto e cercado com grama. O não-cercamento e a
área deixada como respiro em torno da casa constituiriam, segundo os autores,
uma preparação e aproximação do homem em relação a ela, realçando-a,
colocando-a em escala sua autonomia e tamanho e chamando atenção sobre
sua existência. Além disso, haveria um certo ar de envoltura e privacidade que
se compararia à distância que uma pessoa mantém ao redor de seu corpo,
promovendo uma espécie de conscientização de si, da edificação e de seu
entorno. Nesse sentido, um ponto paradigmático que reflete uma mudança
nesse cenário estaria no desenvolvimento das cidades modernas, que
produziram uma grave deterioração da consciência de quem é o habitante e
onde ele está, à medida que a padronização das tipologias negligencia os
problemas da existência e experiência humanas. Se a arquitetura costumava
nascer de um sentido de espaço e de lugar que tinha o corpo humano como
centro, eles apontam também a relação da estrutura de um edifício
desenvolvida a partir de colunas, muros e coberturas com as próprias partes do
corpo o desenho da coluna refletindo a verticalidade do corpo em seu
tronco, por exemplo —, ou erguida por questões como efeito de multiplicação,
de poder onde o repertório formal do triunfo revelava-se em pórticos, arcos,
colunas, torres, cúpulas; a planta de uma igreja com eixos que se entrecruzam
aludindo a um Cristo crucificado; a representação do Capitólio americano como
31
corpo político; a correlação entre o Palácio de Versalhes e Luís XIV, onde os
caminhos dos jardins convergem ao rei e o prolongamento do corpo do
soberano com as árvores, nos efeitos maravilhosos da perspectiva.
Explicam que, a partir do século XVII, com o início do processo de
industrialização da Europa Ocidental, a criação na arquitetura refletiu a
mudança de pensamento da época, passando a ignorar e excluir de seus
objetivos a função geral de prolongar o ser e a ordem humanos um
momento em que as questões divinas e humanas encarnadas pela aristocracia
e a Igreja se viram desafiadas pelos traçados dos engenheiros industriais e
militares. As argumentações de Galileu impulsionaram essa tendência da
arquitetura de substituir a presença do corpo humano como seu princípio
organizador “divino” por um tipo de organização mecânico. Era a idéia do
mundo regido por leis mecânicas, as medições, as experimentações
matemáticas como critérios para estabelecer as verdades físicas. Se antes de
Galileu a tendência natural era considerar a arquitetura como reflexo das
qualidades do corpo humano e também uma autoridade sagrada do corpo,
depois dele o reconhecimento de leis mecânicas que regem o universo
incluíram-na nessa mesma lógica. Fundam-se as academias científicas e
pedagógicas européias e surgem os edifícios concebidos como máquinas: os
critérios funcionais ditam a nova ordem. ainda nesse processo a separação
entre as escolas de Engenharia e Arquitetura, a partir de 1740, e entre as
academias de medicina e as sociedades científicas, ao longo do século XVIII. E
os espíritos da industrialização, da especialização, da divisão do trabalho
influenciaram diretamente a arquitetura:
Pelos mesmos anos em que a Real Academia de Arquitetura
da França promovia os enfoques científicos da arquitetura, a
Escola de Belas Artes, fundada pouco depois da Revolução
Francesa, ocupava-se da arquitetura como arte. Começou com
um grande interesse pela experiência humana, a identidade
pessoal, e prestando especial atenção aos aspectos relativos à
ordem compositiva e à beleza. Tais aspectos desafiavam
(como todavia o fazem hoje) as possibilidades de uma
quantificação exata, ainda quando pudera reconhecer-se em
muitos esplêndidos edifícios existentes a presença de algo que
32
proporcionava um inequívoco prazer sensível. A partir de
então, logicamente, começaram a desenvolverem-se técnicas
cada vez mais sofisticadas que tendiam a elaborar um modelo
que fosse capaz de incluir alguns (senão todos) os aspectos do
edifício (BLOOMER & MOORE, 1982:30).
Os mesmos autores mostram também que a tradução da existência humana
através da forma construída tendia a desconsiderar os ocupantes do edifício
como o fato de os arquitetos formados na Beaux-Arts ignorarem as condições
térmicas dos edifícios. Por outro lado, as conquistas tecnológicas acarretavam
um status diferente à arquitetura e promoviam a mistura de aspectos
monumentais e tecnológicos como era o caso das estações e das centrais
de produção de energia:
No primeiro caso, por exemplo, construíam-se enormes
coberturas futuristas sobre as plataformas e a parte de trás do
edifício da própria estação que poderia ser mais romântica,
histórica e relacionada com o corpo humano. Na realidade, o
que se sucedia era que cada uma das metades destas
organizações fragmentadas estava respondendo a um tipo
distinto de “ocupantes”, e de muito distinto tamanho. Mas de
que maneira poderiam os interesses acadêmicos
comprometidos com a sensualidade e a memória do homem
coexistir com os enfoques mais tecnológicos quando a
natureza estava sendo tão assombrosamente modificada?
(BLOOMER & MOORE, 1982:33).
Havia então duas atitudes: uma que considerava a arquitetura como uma
ciência aplicada e outra que a entendia como uma disciplina artística mais
global, onde a primeira via a identidade humana ligada a seu eficiente
funcionamento, transferindo o conceito de identidade à própria função.
Desconsideravam-se os aspectos emocionais do ser humano em detrimento de
normas para a realização objetiva das ações físicas.
Nesse momento destaca-se a Teoria da Empatia, que prima pela aproximação
entre corpo e objeto, pois acredita em características psicofísicas objetuais que
promovem uma ligação entre ambos. Vischer, Lipps e Geoffrey Scott são
alguns dos teóricos, e as colocações deste último são relembradas por
33
Bloomer & Moore (1982). Scott refere-se à existência de uma distinção entre as
medidas mecânica, visual e corporal no que diz respeito à escala e ao
ornamento dos edifícios, e que promovem certa confusão entre a aparência de
um edifício e a sensação que este provoca no observador. Isto para os autores
significa o próprio dilema dos debates do século XX que foram herdados da
Ilustração, em que o sentido da visão foi tão supervalorizado ao longo dos
séculos que qualquer outro meio sensível se considerou inferior e menos
importante como base para o conhecimento dos objetos, incluindo os edifícios.
Assim, desde o fim do século XIX os problemas estéticos relativos às formas
tridimensionais quase sempre têm sido tratados como problemas visuais,
reduzindo o sentido do tato a uma atividade manual.
Entre o fim do século XIX e início do XX o corpo converteu-se em apêndice do
cérebro, até o ponto de tornar-se difícil introduzir o tema do corpo nos estudos
racionais de arquitetura
11
. O corpo físico tornava-se máquina: “ainda que se
reconhecesse a existência no ser humano de uma psique (ou alma), a ‘parte
física’ seguia sendo considerada submetida a leis de natureza mecânica”
(BLOOMER & MOORE, 1982:41). A palavra “corpo” servia para denominar o
corpo físico, não-racional e não-psíquico, carente de inteligência, ou seja, o que
interessava era o corpo como máquina. Reforça-se assim a separação entre
corpo e mente, restando ao corpo o papel de ser uma carga necessária ao
serviço da inteligência, que era o que interessava. Mas nesse panorama os
autores diferenciam duas visões de máquina para a arquitetura e para o corpo,
a do século XIX e a do século XX :
Ficou muito difícil no século XIX imaginar o próprio corpo como
uma máquina se eram tomadas como modelos as expostas no
Salão de Maquinaria da Exposição Centenária da Filadélfia,
que aconteceu em 1876. Aqueles enormes insetos mecânicos
acéfalos produziam espanto, mas ao mesmo tempo
despertavam certa admiração tida de assombro. Não tinham
nada a ver com essas outras máquinas de habitar de meados
do séc. XX, menores e mais engenhosas, que estão a meio
11
Márcia Tiburi tem colocações importantes nesse sentido, que serão apontadas
especialmente no terceiro capítulo desta tese.
34
caminho entre o estranho e o enfadonho (BLOOMER &
MOORE, 1982:43).
Ainda ressaltam que a envoltura corporal pode se modificar tanto pelo próprio
vestuário como por insígnias, armas ou qualquer outro objeto que, como um
par de esquis, um automóvel ou um avião, estejam diretamente relacionados
com o corpo e submetidos a suas ações. Esta extensão de toda uma parte do
corpo, como se pudesse contrair-se ou estirar-se, demonstra o funcionamento
do sentido háptico. uma relação de diálogo constante entre o universo
corporal e os lugares que ele habita, ou seja, entre corpo e arquitetura como
objeto construído: os lugares são construídos como expressão de nossas
experiências hápticas e vice-versa.
Concluem que o universo interno do homem é formado por marcos,
coordenadas, hierarquias e, sobretudo, limites próprios, sendo este o único
ponto de partida humano para a organização do espaço que o rodeia e que é
percebido e habitado inclusive a experiência na desatenção de que fala
Walter Benjamin (1994)
12
tem campo se isso ocorre. Nesse sentido eles
defendem a necessidade de voltar a atenção aos edifícios que ocupam o
espaço existencial que envolve os habitantes da cidade, referenciando-se
principalmente às idéias de Norberg-Schulz e Heidegger, e de confrontá-los
com o corpo pessoal, a casa e a comunidade, numa troca que é a construção
do mundo. Se antes fazia sentido para a humanidade uma série de elementos
dotados de significado como as colunas, os muros, os pórticos, os arcos, as
torres —, hoje esse sentido tende a se anular. Por serem formas que
respondiam à ação humana primária de construir um alojamento, o primeiro
limite tangível depois do corpo, eram uma resposta ao ato de habitar e
referência às fontes de energia humana e ao lugar que o homem ocupava entre
o céu e a terra. Atualmente, contudo, a noção de habitar distanciou-se dessas
significações. Donde eles perguntam: a ação humana deu lugar a quê? Que
dizer agora do tempo em que a casa (o palácio ou a catedral) era dedicada ao
corpo humano (ou divino)?
12
Ver esta noção de experiência em Benjamin no capítulo 4.
35
Por sua vez, Muntañola (1979) parte do entendimento de arquitetura como
lugar para realizar certos usos com maior ou menor facilidade e também
receptáculo para co-habitar, coexistir e intercambiar corpos humanos
diferentes. Ela estaria assim entre a selva e o paraíso, nutrida por essa
diferença, e importa descobrir o que entre ambos a partir do corpo do
homem como arquiteto e projetista de lugares para viver. Nesse sentido, o
autor considera a perspectiva corporal em sua parcialidade como qualquer
outra, de modo que seria impossível e contraproducente uma visão “total” da
arquitetura para isso seria necessário (e indesejável, segundo ele) admitir o
universo como unicêntrico. A leitura que propõe passa por uma discussão de
natureza da psicogenética, onde a idéia fundamental para compreender o
desenvolvimento do corpo como arquiteto de lugares para viver é a da natureza
da reflexão que origina a arquitetura. Esta vista, por sua vez, como parte
integrante de uma reflexão sociofísica e humana em nível universal, como
modo específico de refletir próprio do corpo quando atua como arquiteto. Trata-
se de descrever o desenvolvimento das habilidades arquitetônicas do corpo
humano como um processo paralelo ao desenvolvimento de sua capacidade de
refletir e ser refletida sociofisicamente.
Ao promover uma reflexão crítica interessada no pós-triunfalismo e totalitarismo
da euforia tecno-industrial, cujos rastros culturais trouxeram novas formas de
descobrir outras significações humanas através do corpo e de redefinições da
ética, estética e lógica, Muntañola (1979) mostra-se interessado na
possibilidade de o corpo e com ele a arquitetura redefinir-se segundo
novas significações. Desse modo, analisar as relações entre corpo e
arquitetura para identificar um saber-fazer arquitetura equivaleria a entender a
herança cultural do corpo humano. Numa primeira etapa, este autor resume e
amplia uma descrição do desenvolvimento do corpo como arquiteto, ou de uma
psicogênese da arquitetura; em seguida, elabora uma síntese do que é uma
reflexão arquitetônica dentro dos limites de uma topogênese corporal, que é um
estudo do lugar arquitetônico centrado no desenvolvimento das habilidades
36
arquitetônicas do corpo humano. E aqui se destaca o foco principal sobre o
que se organiza seu pensamento: o corpo constrói a arquitetura. Identifica três
fases consecutivas que podem se distinguir entre o nascimento e a morte do
ser humano, e que têm ligação direta com as habilidades arquitetônicas do
corpo humano em relação ao desenvolvimento de seu nível de reflexão
sociofísica: a fase apresentativa (P), a fase representativa (PR) e a fase formal
(PRF)
13
, com características variáveis entre cada corpo e também entre cada
cultura.
Sobre a fase apresentativa ou sensório-emotivo-motora, o que se destaca é
que as habilidades arquitetônicas confundem-se com as habilidades do corpo
do bebê para consigo mesmo e o ambiente não uma diferença
consciente entre o sujeito e os objetos, hoje e amanhã, eu e outro, ação e
contemplação, etc. Não desenvolvimento de uma reflexão sociofísica
simbólica e representativa através de sistemas de símbolos como ocorre na
fase seguinte. Revela-se na importância do equilíbrio motor, do domínio
progressivo e da coordenação de movimentos como contraponto a um confuso
desenvolvimento da percepção, da emoção, da sensibilidade, do
conhecimento. Muntañola (1979) acredita que um corpo “apresentativo” está na
origem das habilidades do corpo como arquiteto tanto em intenção como em
estímulo, e, por isso, não se trata de um corpo condenado a aceitar a estrutura
sensório-motor-emotiva do meio ambiente exterior a ele. Trata-se sim da
mistura entre uma defesa e uma condição para seu desenvolvimento em
interação com seu meio, não como puro reflexo desse o que equivaleria a
dizer que o corpo é cenário, ator e espectador misturadamente. Nesta fase não
é possível compreender como o corpo humano converte-se em arquiteto, mas
é onde nascem as condições para isso.
13
A Fase P vai do nascimento até aproximadamente 16 meses (prolongamento do
nascimento); a Fase PR estende-se dos 16 meses até o nível máximo de desenvolvimento das
capacidades representativas do corpo humano, que geralmente não ocorre antes dos 14 anos,
mas pode ocorrer aos 30 ou mais (elaboração da simbologia humana, transição e
transformação entre a vida e a morte no eixo espaço-temporal de simetria entre ambas); a
Fase PRF: a partir do limite da fase anterior e até que as faculdades corporais não diminuam
sob limiares mínimos (antecipação da morte).
37
Na fase representativa, existe uma situação corporal na qual se pode
dialogar com maior precisão, entre outras coisas, porque é simbólica. Surge
a consciência entre tu e eu, agora e depois, um jogo de imitações; nasce o sim
e o não, a ficção, a verdade e a mentira, a ética, a estética, a lógica. Assim,
antes dos três anos de idade a capacidade de realizar arquitetura está imersa
em um nível de vazio e em um tipo de reflexão sociofísica tal que os edifícios
que se representam são maciços e dependentes das qualidades físicas da
matéria com que são construídos (peças de madeira convertem-se em trens,
por exemplo). A partir dos três o panorama muda completamente ao ser gerado
um primeiro nível de vazio sociofísico e, com ele, uma nova concepção de
tempo, das relações causais, da interação social, etc. Todas as polaridades
anunciadas entre o corpo como ator e o corpo como espectador, a razão e a
sensibilidade, o real e o ideal sofrem uma transformação profunda. Esta fase
caracteriza um mecanismo de “auto-vazio” do simbolismo arquitetônico: o
corpo como ator, como espectador e como cenário desenvolve-se
solidariamente e conforma, através de suas inter-relações, a topogênese
lógica, ética e estética da arquitetura.
Tal topogênese divide-se em três polaridades. A primeira refere-se à dialética
entre acomodação e assimilação: a assimilação é uma acessibilidade
conceitual entre o corpo como sujeito e os objetos através da qual os
esquemas conceituais do corpo que dependem de seu nível reflexivo
impõem-se ao objeto neste caso a arquitetura. a acomodação é uma
envoltura, condicionantes físicos e sociais que os objetos impõem ao corpo ou
sujeito. A partir dessa dialética entre a acessibilidade conceitual e a envoltura
figurativa, descreve-se a gênese do vazio sociofísico. A segunda é a dialética
entre interiorização e exteriorização inter-relação entre psicogenética e
sociogenética. A terceira forma-se entre corpo como ator e corpo como
espectador. Ao longo de todos os níveis de vazio do desenvolvimento do corpo
como arquiteto descobre-se que a distinção entre eu/tu/ele traz consigo o
desenvolvimento da noção de lugar:
38
Muntañola (1979) defende que se deve buscar o valor cultural da arquitetura no
cruzamento entre o processo construtivo que descreve ao homem sobretudo
uma topogênese corporal, ou psicogênese, e o processo comunicativo que
carrega uma topogênese do lugar social, ou sociogênese. De toda forma, o
corpo humano é o ponto de partida, a origem. Quando, ao fim da fase
representativa, o símbolo transforma-se em forma ou sistema de formas
através das quais o corpo pretende salvar o abismo entre o processo
construtivo ou gerador de significados e o processo comunicativo ou de
intercâmbio social de significados, a partir deste momento não se simboliza
ou representa, mas formaliza, ou seja, projeta-se uma axiologia ou conjunto de
normas arquitetônicas através do processo de construção ou de invenção de
um lugar para viver. se inicia a fase de construção, onde se inventam e se
misturam as habilidades corporais individuais e a história coletiva cultural,
delimita-se o que separa o lugar ideal do real, a selva do paraíso, o sensível do
racional e não se representa necessariamente a realidade existente. A intenção
de delimitar as características de um processo de desenho nas três fases se
faz na intenção de analisar a gênese de algumas noções muito utilizadas nas
teorias da arquitetura para tentar delimitar seu significado e sua implicação na
prática do desenho e projeto: medida, escala, distância, modelo e arquétipo,
tipo e identidade.
Em suma, lança a hipótese de que a arquitetura é uma ciência, e que sua
estrutura lógica é a dos mitos a do inconsciente coletivo –, que sua
linguagem é a do subconsciente a dos símbolos –, e que sua função é a
função simbólica a de curar o homem doente. Desse modo, o usuário
poderá apropriar-se da experiência arquitetônica se esta lhe proporcionar uma
forma de viver ou de expressar sua forma de viver, e a obra arquitetônica deve
se estruturar de modo a resolver a contradição: inércia da não-mudança,
permanência do entorno arquitetônico/intensa solicitação de mudança, de
movimento que promova a própria obra. Onde se que arquitetura =
existência = experiência do corpo no espaço = existência. Revela que o
desenvolvimento das habilidades arquitetônicas do corpo humano é um
39
processo paralelo ao desenvolvimento de sua capacidade de refletir e ser
refletido sociofisicamente. Em outras palavras, a idéia fundamental para
compreender o desenvolvimento do corpo como arquiteto de lugares para viver
está na natureza da reflexão que origina a arquitetura. Assim, a redefinição da
arquitetura segundo novas significações está na possibilidade de fazê-lo em
consonância com o corpo, ao ponto em que reavaliar a produção arquitetônica
é reavaliar o corpo.
Para Merleau-Ponty (1999), a qualidade sensível, as determinações do espaço
percebido e até a presença ou ausência de uma percepção não são efeitos da
situação de fato fora do organismo, sim representam a maneira pela qual ele
vai ao encontro dos estímulos e pela qual se refere a eles: o corpo contém o
espaço. É no conjunto corporal que se delimitam regiões de silêncio, e é
quando se dirige ao mundo que se esmaga as intenções perceptivas e práticas
em objetos que existem em relação, quando suscitam pensamentos e
vontades no corpo. Ser uma consciência ou uma experiência é comunicar-se
interiormente com o mundo, com o corpo e com os outros. A percepção
espacial se pela percepção do objeto, quando a experiência do corpo
próprio ensina ao homem a enraizar o espaço na existência.
A experiência revela sob o espaço objetivo, no qual finalmente o corpo
toma lugar, uma espacialidade primordial da qual a primeira é apenas o
invólucro e que se confunde com o próprio ser do corpo. Ser corpo [...]
é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente
no espaço: ele é no espaço (MERLEAU-PONTY, 1999:205).
Do mesmo modo, o espaço é na experiência do corpo no mundo. O corpo é a
existência imobilizada ou generalizada, e a existência uma encarnação
completa, diz o filósofo. Ele ainda esclarece que, a priori, todos os sentidos são
espaciais, e tem-se a experiência de um mundo não em termos de um sistema
de relações que determinam inteiramente cada acontecimento, mas na direção
de uma totalidade aberta cuja síntese não pode ser acabada.
40
A abordagem do norueguês Norberg-Schulz (1975) é pautada em torno do
conceito de ‘espaço existencial’, que remete ao fato de que o ambiente é algo
mais que uma trama geométrica. A construção de seu pensamento baseia-se
nas reflexões propostas pelo filósofo Martin Heidegger em torno do conceito de
habitar. Segundo Schulz, existem elementos qualificativos do espaço, ou seja,
de natureza topológica, reconhecíveis através de noções como percurso, lugar
ou praça. É possível uma espécie de abstração matemática espacial que
quantifica a experiência total do homem, definindo seus espaços habitados
como apropriação dos espaços construídos. Como esclarece Velloso (2002)
14
,
a formulação do conceito de habitar comparece ao longo da história da
arquitetura em vários autores, mas a difusão do tema entre os arquitetos se
deu através de Schulz. Ao passo que sua teoria explicita uma ordem formal
resultante da conjugação entre lingüística e psicologia da percepção, e propõe
que se identifique e interprete os lugares por meio das estruturas que
organizam o espaço existencial, uma aporia é identificada pela autora. Se a
configuração plena de tal espaço realizou-se apenas na arquitetura do
passado, a concordar com esse raciocínio a produção arquitetônica atual
precisaria reproduzir tais estruturas. A contradição encontra-se no fato de que,
à medida que a existência desenrola-se em condições de dispersão,
movimento e volatilidade, ao se produzir uma arquitetura que celebre a fixidez
e a imutabilidade do símbolo ela é feita para a existência passada, excluindo a
possibilidade no novo.
Uma releitura da evolução da idéia de corpo na arquitetura mostra como foi
possível chegar aos tempos atuais em sua aproximação do corpo-máquina, de
um homem ciborgue. O Renascimento trouxe a perspectiva e, com ela, a
centralização do corpo, este representado em regras e medidas como se
no desenho do Homem vitruviano (1492) de Leonardo da Vinci (FIG. 1),
convertido em modelo da beleza física do ser humano. No desenho, escreveu:
Vitrúvio, o arquiteto, diz em sua obra sobre arquitetura que a natureza
se encarrega de distribuir as medidas do corpo humano: [...] ao separar
14
Cf. nota de fim do documento.
41
as pernas o suficiente para que a altura diminua 1/14, esticar os braços
para o lado e elevar a linha dos ombros até que os dedos médios
estejam no nível da borda superior da cabeça, será possível descobrir
que o centro geométrico das extremidades separadas estará situado no
umbigo e que o espaço entre as pernas formará um triângulo eqüilátero.
O comprimento dos braços esticados de um homem é igual a sua
altura. A medida da raiz do cabelo até a ponta do queixo equivale à
décima parte da altura de um homem” (COLEÇÃO FOLHA...,
2007:70)
O próprio artista encarregou-se de calcular as medidas do corpo de um homem
jovem, anotando oportunamente as correções baseadas no conhecimento das
proporções divinas. Para os renascentistas, o homem era o centro e o modelo
do universo, e o conhecimento de tais proporções um caminho de aproximação
com as leis do cosmos e da natureza. Conhecer o corpo humano era conhecer
o próprio mundo.
FIGURA 1 – Leonardo da Vinci, O Homem vitruviano, 1492
Desenho com pena e tinta
FONTE: COLEÇÃO FOLHA, 2007, P.71
42
Em contrapartida
15
, o maneirismo inaugura a noção de um corpo descentrado:
ele não possui mais frente, verso, lateral, é uma estrutura. A idéia da ilusão
amplia-se de acordo com a movimentação do corpo pela obra, onde esse
começa a perder sua referência real, sua materialidade. Na aproximação do
Barroco, cresce a sensibilidade do observador, exigindo de seu corpo maior
percurso de verificação para conferir o espaço. A ilusão definitiva e a busca por
um infinito através da imagem do espaço tiram do corpo o chão, fazendo-o
flutuar e, aos poucos, se moldar às formas do edifício. A partir do Classicismo
do século XVIII, as sensações perceptivo-corpóreas são ativadas por
composições imaginárias, como em Piranesi
16
e seus cárceres (FIG. 2), onde
interiores cheios de dramaticidade conseguida através de um jogo de escala,
luz e sombra, pervertem a lógica da percepção do espaço e abrem caminho
para um novo percurso criativo sem deixar de lado, contudo, as referências
a um vocabulário somente desvendável em sua especificidade arquitetônica.
No tocante a este arquiteto, Alberto Pérez-Gómez (1988) pontua que boa parte
da crítica arquitetônica contemporânea tem reconhecido a importância vital de
seus projetos teóricos, na intencionalidade simbólica que se incorporou depois
da Revolução Industrial e o frio pensamento modernista. Para ele, essas
experimentações tornaram-se uma crítica do projeto e da construção
tecnológicos ou reducionistas, questionando implicitamente a possibilidade de
realização da poesia num mundo prosaico.
15
Esta breve análise histórica apóia-se em anotações sobre palestra proferida pela Prof. Dra.
Celina Borges Lemos, em seminário realizado na EAUFMG dentro do Programa de Ensino
Turorial (PET), em novembro de 2006, e em estudos pessoais para ministrar a disciplina de
Teoria e Arquitetura Contemporânea. Ver especialmente WATKIN, 1996 e FRAMPTON, 2000.
16
Giovani Battista Piranesi (1720-1778), arquiteto, gravador, arqueólogo, engenheiro,
cenógrafo, pintor, nascido em Veneza. Desenvolveu uma série de gravuras intituladas Carceri
d’Invenzione de 1749 a 1750, revendo-as em 1761.
43
FIGURA 2 – Piranesi, série de gravuras intitulada Carceri d'Invenzione, desenvolvida entre 1749 e
1750, e retrabalhada em 1761
FONTE: BLOOMER, 1993, p.113 e 125
Amplas construções surgem com as investigações de Ledoux, Boulée e Le-
Duc
17
(FIG. 3-4), ocasionando o constrangimento, a pequenez do corpo diante
da experiência do espaço. A técnica passa a ser desafiada pelos arquitetos,
antevendo o que anos depois seria assunto das vanguardas artísticas e seu
fascínio pelas novas máquinas caso do Futurismo em relação aos
automóveis e locomotivas e também uma busca pela racional dialética entre
forma e função do Movimento Moderno, no início do século XX.
17
Etienne-Louis Boulée (1728-1799), Claude-Nicholas Ledoux (1735-1806), Eugène Viollet-le-
Duc, (1814-1879), arquitetos visionários do século XVIII, considerados por muitos críticos como
uma espécie de geração cujas experimentações e projetos utópicos permitiram o advento da
arquitetura racionalista.
44
FIGURA 3 – Claude-Nicholas Ledoux, Vista da Cidade de Chaux, 1804 – Ledoux ampliou seu projeto da
fábrica de sal, transformando-o no núcleo representativo de sua cidade ideal de Chaux. A fábrica
semicircular pode ser vista como um dos primeiros experimentos de arquitetura industrial, uma vez que
integrou conscientemente unidades produtivas e alojamentos operários (Cf. FRAMPTON, 2000)
FONTE: KRUFT, 1994, apêndice de fotos, s/n
45
FIGURA 4 – Etienne-Louis Boulée, Cenotáfio a Newton, 1784
Foto geral, versão diurna e versão noturna
FONTE: GÖSSEL & LEUTHÄUSER, 1996, p.12-13
46
A Modernidade traz a representação de um corpo vazio que se preenche nas
extremidades, fragmentariamente. A espiral e a forma centrípeta são os motes
para o desenho desse corpo. E Le Corbusier cria seu modulor (FIG. 5) na
tentativa de estabelecer um modelo de arquitetura com referência nas
proporções do corpo humano quando, contudo, evidencia a rigidez e a
limitação desse corpo baseado num homem padronizado. Contudo, a idéia de
promenade arquitetural por ele desenvolvida é a sugestão de um passeio do
corpo pela obra, o que se vê com clareza na Villa Savoye (FIG. 6-7).
FIGURA 5 – Le Corbusier, Modulor
FONTE: GÖSSEL & LEUTHÄUSER, 1996, p.261
47
FIGURA 6 – Le Corbusier, Villa Savoye, Poissy, 1929-1931
FONTE: http://architypes.net/image/villa-savoye-
48
FIGURA 7 – Le Corbusier, Villa Savoye – circulação com escada e rampa, sala e banheiro
FONTE: http://architypes.net/image/villa-savoye-
49
Assim, a Pós-modernidade inaugura uma espécie tentativa de libertação do
corpo violado como a arquitetura, e a idéia de máquina floresce e se modifica
junto a um meio ciborgue. Pérez-Gómez (1988) auxilia a busca pelo
entendimento da condição pós-moderna, que mistura a influência racionalista e
tecnológica a tentativas de retomar a dimensão simbólica e perceptiva do corpo
para a arquitetura. Destaca os escritos de Nicolas-Louis Durand (1760-1834),
um dos mais importantes discípulos de Boulée, cujas idéias representaram
uma rejeição à tradicional explicação vitruviana sobre uma origem
antropomórfica das ordens clássicas da arquitetura. À luz de uma razão
positivista, não havia correspondência entre o corpo humano e o cilindro de
uma coluna: as proporções do homem não poderiam ser a base das
proporções do sistema das referidas ordens clássicas. Para Durand, o que
definia os tipos de formas e proporções arquitetônicas eram as derivadas da
natureza dos materiais e do uso dos objetos em cuja construção eram
empregados, as ditadas pelo costume, como as encontradas nas edificações
antigas, e as escolhidas por sua fácil apreensão. Apenas o primeiro tipo era
essencial e determinado pelas leis da mecânica e da utilidade, portanto,
despidas de valor simbólico. Diferentemente de seus predecessores, sua teoria
acreditava que o valor da arquitetura deveria deixar de se apoiar numa imagem
metafórica da ordem cósmica, passando a ser regulada por uma estrutura
lógica. Ao perder suas conotações simbólicas, os projetos arquitetônicos
anunciaram novos valores, inspirados pela “linguagem formal” da tecnologia.
Acomodada pela razão matemática, não pela lógica da vida cotidiana (PÉREZ-
GÓMEZ, 1988), a arquitetura se abre, como também o corpo, para a decisiva
contaminação pela idéia e presença da máquina.
Pérez-Gómez (1988) explica que, a partir da divisão entre arte e ciência, razão
e poesia, arquitetura e engenharia, na transposição dos séculos XVIII ao XIX,
os arquitetos optaram pelos extremos: expressões de racionalismo ou
romantismo, positivismo ou intuição. Somente com o pós-modernismo, em
fins do século XX, essas contradições entre as esferas do logos e do mythos
50
podem ser creditadas ao resultado de uma visão tecnológica de mundo, na
própria separação entre corpo e mente.
Duzentos anos após Galileu e Descartes, a arquitetura perdeu sua
dimensão metafísica, e sua relação entre teoria e prática atingiu um
estado crítico. Depois de Durand e Viel, a arquitetura não poderia mais
ser uma forma privilegiada de reconciliação entre o homem e seu
mundo, entre a fluidez e a evanescência da vida cotidiana e da
dimensão imutável e eterna das idéias. Uma arquitetura sujeitada a
idéias utópicas, a um processo tecnológico cujos objetivos têm sido
desenraizados da realidade da vida cotidiana, necessariamente
perderia sua dimensão simbólica essencial; tornaria-se mera
construção prosaica (PÉREZ-GÓMEZ, 1988:323, tradução da
autora)
É nesse cenário mediado pela tecnologia que o Grupo Archigram e a
Internacional Situacionista promovem sua crítica e tentam fornecer respostas a
esse corpo e a essa arquitetura que herdaram uma história de negação e
negligência de suas experimentações. A partir dessas críticas, a arquitetura
atual mostra a produção de alguns arquitetos que, em consonância com a
lógica de um corpo protético que inaugura um outro tempo de sensibilidades,
fogem do senso comum, do status quo conformado pela alienação, pelo
anestesiamento e pela acomodação, estabelecem caminhos reflexivos para a
disciplina. Lebbeus Woods expande a temática, o cenário da arquitetura e sua
cartela de clientes que assumem a violência, a guerra e a destruição e
reivindica o papel de agente social do arquiteto para a transformação da
produção arquitetônica em moldes não-hierárquicos. Instrumentalizando-se
para essa batalha através de uma radicalização das formas de representação
gráfica de seus projetos, mostra o quanto estão em jogo na perpetuação de
uma prática atrelada à supervalorização da aparência das imagens. Também
formando seu escopo crítico-reflexivo através de transformações dos moldes
de representação gráfica de seus projetos, Zaha Hadid investe os usuários de
suas obras da oportunidade de especular sobre a experiência corpóreo-
espacial, através de formas instigantes e volumes quase sempre distorcidos.
Mas a arquitetura também encontra em formas menos incisivas modos de
ativar o corpo em suas sensações e vivências espaciais. É o que se vê, por
51
exemplo, nas obras de Steven Holl e Tadao Ando. Incorporando a tecnologia e
seus multimeios de abordagem a seu processo de criação arquitetônica, a
dupla Diller & Scofidio promove uma constante reavaliação dos temas que a
envolvem e delineiam, uma vez que consideram corpo e arquitetura igualmente
mutantes. Em torno da noção de um corpo-máquina, produzem um escopo
teórico de peso, usando, para isso, manifestações diferenciadas que têm como
fim a reflexão sobre a experiência espacial na arquitetura.
2.2 O emblema das próteses e as sensibilidades num olhar modificado
O contexto em que se insere a busca de uma análise de corpo e espaço na
contemporaneidade ou seja, a noção de experiência que se constrói é
especialmente o da era tecnológica que se instaurou definitivamente com a
Revolução Industrial. A produção em série, a reprodutibilidade e a invasão da
máquina no cotidiano impulsionaram uma mudança de sensibilidade que
aumenta velozmente. Ainda que se saiba que toda nova grande onda de
descobertas, principalmente técnicas, sempre modifica a ordem vigente, o caso
da revolução eletrônica deve ser pontuado com mais sutileza. uma crise na
representação e na imagem deflagrada pelos novos instrumentos e
mecanismos desse contexto, que se iniciou com os meios técnicos de
impressão e a invenção da máquina fotográfica
18
. As imagens não são
recebidas da mesma forma devido à transformação perceptiva da sociedade
atual. uma modificação que leva a um novo modo de experimentar. Pierre
Lèvy (1995) aponta a existência de um questionamento sobre a temporalidade
social e os modos de conhecimento inéditos, emergentes do uso das novas
tecnologias intelectuais baseadas na informática, e destaca, para teorizar sobre
isso, três tempos do espírito: a oralidade primária, a escrita e a informática.
Explica que, nas sociedades sem escrita, a produção de espaço-tempo está
quase totalmente baseada na memória humana associada ao manejo da
linguagem, o que induz à pergunta do quê e como pode ser inscrito na mente a
partir do acréscimo rápido e freqüente de tecnologias ao cotidiano. Quando a
escrita intercala um intervalo de tempo entre a emissão e a recepção da
18
Refere-se à impressão inaugurada por Gutenberg em 1450 e ao advento da fotografia no
século XIX (NOVA..., 1996:477-478).
52
mensagem, instaura a comunicação diferida, com riscos de mal-entendidos,
perdas e erros. Desse modo, a atribuição do sentido passa a ocupar um lugar
central no processo de significação. À medida que se passa da ideografia ao
alfabeto e da caligrafia à impressão, o termo torna-se cada vez mais linear, e o
aumento potencialmente infinito do corpus transmissível distende o círculo da
oralidade até quebrá-lo. A invenção de Gutenberg permitiu que um novo estilo
cognitivo se instalasse, levando ao paulatino predomínio da demonstração
visual em relação à discussão verbal, à narratividade
19
. Com a informática, não
identidade estável, pois, as redes de interface estão sempre abertas a
novas e imprevisíveis conexões, transformando radicalmente os usos e
significados de tudo o conhecimento torna-se metamorfose permanente.
Nesse sentido, a imaginação torna-se a condição da escolha ou da decisão
deliberada.
Fuão explica em “Máquina de fragmentos” (1992:42–53) que um dos fatores
determinantes para tal transformação parte de uma mudança no pensamento
ocidental depois do Renascimento, que fica impregnado de uma moral visual
que se dirige para a superfície e exteriorização dos corpos em todos os
campos da representação e das ciências. inicialmente uma mudança do
olhar e pelo olhar. O autor esclarece que os instrumentos ópticos usados na
construção da representação em perspectiva provocaram um distanciamento
dos corpos no espaço e outro psicofísico entre homem e arquitetura. A história
da câmara escura que se cruza com a história da perspectiva é responsável
pela formação da visão moderna e da extensão da capacidade de visualização
humana. Através do orifício da câmara, os artistas e arquitetos passavam a
projetar horizontes desobstaculizados e o olhar voltava-se para a exterioridade
das coisas e do mundo. O que se no quattrocento é a fragmentação da
representação que depois atingirá os corpos e a arquitetura — o que equivale a
dizer que a noção de experiência de mundo sofre um salto ou estabelece um
novo paradigma. Acrescentam-se assim os instrumentos à experiência, e estes
a alteram e determinam.
19
um paralelo possível desta discussão com a noção de experiência apresentada por
Walter Benjamin, cujo pensamento se verá no capítulo 4.
53
de início Fuão (1992) esclarece a influência da fotografia sobre a forma
como se experimenta o mundo, instituindo um modo de vê-lo e pensá-lo
manipulado pelas imagens. uma transformação do espaço arquitetônico,
levando a arquitetura a um prolongamento da máquina fotográfica e
convertendo o fazer arquitetônico em pura visualização de imagens. A
fotografia lança uma lógica da idolatria da imagem, imagem essa que se torna
um biombo entre a arquitetura e seu habitante, através da redução da
apreensão da realidade (e da arquitetura) ao olho, ao sentido da visão. Daí o
consumo passivo das imagens e o atrofiamento do corpo, que
conseqüentemente significa uma prejudicial simplificação da experiência do
espaço arquitetônico.
A construção das figuras arquitetônicas através dos primeiros instrumentos
ópticos é reveladora quanto à mudança sofrida pela arquitetura em sua
representação e na ordenação de seus espaços
20
. Por trás das diferenças dos
métodos construtivos da perspectiva e seus instrumentos, tudo passa a se
assentar sobre o mesmo plano de base que regula, ordena, reparte e projeta
os corpos no espaço, compondo a escritura da imagem amputada do próprio
corpo. A perspectiva enquanto instrumento de interpretação e controle da
realidade pela razão causou, em alguns termos, um prejuízo à representação,
que se pretendia realista e significou a fragmentação do mundo e a promoção
de uma arquitetura do distanciamento. A formação da visão moderna produzida
segundo a utilização sistemática e imperativa dos instrumentos ópticos permitiu
que a capacidade de visualização se estendesse, voltando-se para o exterior e
provocando o distanciamento dos corpos no espaço. A lógica dessa dominação
do olho ampara-se no binômio luz e distância, onde a luminosidade é sinônimo
de higiene e expressão da verdade e a imagem limpa-se de todo subjetivismo
do narrador. Esse distanciamento ordenou e construiu as cidades a partir do
século XVI, promovidas segundo uma estética da imagem higiênica. A
20
uma extensa bibliografia sobre essa relação, como se pode verificar, por exemplo, nos
estudos de Alberto Pérez-Gómez (cf. PÉREZ-GÓMEZ, 1988 e 1997) e Erwin Panofsky (La
perspectiva como forma simbólica. Barcelona: Tusquets editores, 1985).
54
impossibilidade da cidade medieval se fazer representar sob as leis
operacionais da câmara escura e da perspectiva, devido às deformações
produzidas pela proximidade física entre arquitetura e sujeito e à falta de
rigorismo na ortogonalidade das construções em sua trama, provocou sua
redenção às exigências de distanciamento e ordenação do novo modo de
representação. O urbanismo do Renascimento assimila a idéia de simetria e
regulação e impele o olho do artista e do arquiteto à superficialidade da
fachada que oculta o interior dos corpos, alçando de vez a visão como sentido
privilegiado do corpo (FUÃO, 1992).
O que se pode identificar como crise da imagem também diz respeito a uma
separação, ocorrida especialmente a partir do advento da industrialização, na
essência de seu conceito: a imagem, enquanto a soma de aparência e uso,
sendo vista apenas em seu valor aparente. Refere-se ao conceito de imagem
segundo as definições de Régis Debray (1994), para quem a imagem é
simbólica e pode ser considerada significativa quando ativa, carregada de
possibilidades de fruição que se tornam, num segundo momento, usufruto da
idéia por ela anunciada e do próprio objeto por ela envolvido. Define-se,
portanto, na condição operativa, e não estruturada na pura contemplação. O
autor remonta as origens do termo à etimologia advinda, sobretudo, do latim
Imago, que é um hipercorpo, ativo e irradiante. Fuão (1992) explica que, com
referência à perspectiva do Renascimento, a distinção de Kepler ajuda a
distinguir alguns pontos essenciais sobre a verossimilhança da perspectiva
Albertiana e a produção das imagens nas câmaras escuras com relação à
arquitetura. Para isso, ele põe em relevo a importância do imago no discurso
atual, promovendo a dialética entre pintura e imago como imagem real e virtual
respectivamente, sendo a segunda assim chamada por sua não-realidade, em
seu sentido físico. Ressalta que, para Kepler, imago era o ponto onde se
formava a imagem no orifício da câmara, ligando-se ao efêmero e contrapondo-
se à tangibilidade da pintura, mas ambos pertencentes ao mesmo fenômeno
visual.
21
21
Cf. FUÃO, 1992, p. 44, nota de rodapé n.1.
55
A imagem significativa recorre fundamentalmente ao uso, ou seja, requer uma
compreensão espacial, não unidimensional e estática. A constante atitude de
conceber obras que desvinculam a imagem do uso implica na perda de
qualidade dos objetos. A supervalorização imagética dos produtos desmune de
sentido o objeto criado, visto que a imagem pela imagem, considerada em puro
viés aparente, não suporta o processo de apropriação, da experiência, da
construção. Uma vez anestesiados os indivíduos são atropelados por um sem
número de “falsas imagens” diariamente, através de propagandas, “outdoors”,
“flashes” televisivos e todo tipo de estímulo visual, e eles deixam de vê-las. As
imagens não passam de aparência, pois não remetem a nada, nenhuma
significação, nenhum vínculo de memória, nenhuma relação com o que venha
a sensibilizar o indivíduo, estando despidas de seu valor de uso que possibilita
realizar conexões, experiências
22
.
Pesavento (2004) explica que as sensibilidades correspondem a uma relação
originária dos homens com a realidade e expressa por sensações e pela
percepção, implicando na tradução da experiência humana no mundo, de
forma individual e partilhada. É um processo subjetivo, brotado do íntimo de
cada um, como uma experiência única porém transferível. Busca-se aqui a
experiência como desvelador. Para entender de que formas a experiência pode
se dar como processo de desvelamento é preciso antes voltar à questão do
olhar, cuja mudança de sentido, a partir especialmente do tempo em que as
máquinas tornaram-se extensões dos olhos, deve ser analisada. É facilmente
constatável a supremacia da visão sobre os outros sentidos perceptivos na
formação da sociedade contemporânea daí o grande número de
conseqüências que envolvem o modo de olhar. O processo de desvelamento
do mundo para a sensibilidade humana está fatalmente envolvido por uma
22
Ainda que se questione que toda imagem tem seu uso, até mesmo a inquestionabilidade do
seu uso enquanto mimese/animação (no sentido da magia, do magos, a ilusão da imagem), ou
ainda seu papel de pura contemplação, o que está em pauta é a perda do caráter operativo da
imagem que interessa à experiência além da aparência, a experiência estética em sua
totalidade.
56
percepção modificada, sendo uma das razões o acréscimo de “próteses” aos
corpos que vivem no cotidiano da cidade contemporânea.
Proceda-se a uma breve leitura histórica da evolução do olhar em algumas de
suas várias conotações e sentidos. Bornheim (1988:89-93) lembra que uma
das peculiaridades da língua grega é a vinculação do verbo ver com o ato do
conhecimento, um entendimento de que a visão humana não se deixa elucidar
apenas em nível fisiológico ou psicológico, tal processo estando ligado à
própria gênese da percepção. E perceber é ser tocado por, é experimentar o
objeto da sensibilidade humana. “A ação de ver concentra-se em si própria, na
ação de olhar em si mesma; assim, de meramente exterior, ela passa a educar-
se nas dimensões de seu próprio exercício” (BORNHEIM, 1988:89). Pesavento
(2004:2) lembra que o conhecimento sensível funciona como uma forma de
reconhecimento e de tradução da realidade que brota dos sentidos e das
sensações do íntimo de cada indivíduo e não do racional:
Há, pois, uma dimensão primeira que é a do corpo em contato
com o real. uma relação que se estabelece de presença ou
doação do real sobre os indivíduos, que não ficam indiferentes
aos estímulos sensoriais. Os sentidos são afetados e provocam
sensações, ou seja, são dotados desta capacidade reativa,
anterior à capacidade reflexiva, e que marca uma modificação
no equilíbrio entre o ser e o mundo. [...] Uma segunda etapa
deste processo de apreensão e reconhecimento do mundo se
através da percepção, ato pelo qual o indivíduo organiza as
sensações que se apresentam [...].
Certamente essa capacidade reativa que independe da capacidade reflexiva
não se afeta pelo modo como o olho vê em tempos recentes. Em contrapartida,
as conexões necessárias para que o objeto percebido faça sentido para o
indivíduo que o percebe ficam fatalmente comprometidas. Muda o processo
perceptivo. Como o mundo pode se desvelar ao homem se sua experiência de
olhar não faz ver? Se existe uma educação do olhar, um possível olhar atento
que nos permite produzir conhecimento vejo e conheço –, instaura-se um
problema no momento em que a desatenção é a tônica dos hábitos cotidianos.
Como mostra Fuão (1992), o olhar é um processo de recorte do mundo,
57
evidenciando que ver é tocar, escutar, etc... Numa condição de olhar
surrealista, tal procedimento se traduz numa ação de domar e preservar o olho
ainda em seu estado selvagem.
Com Platão e Aristóteles o olhar orienta-se de maneira metafísica, e o olhar
deve ser arrancado de seu estatuto “natural” e ser educado (BORNHEIM,
1988:89-90). Se antes a questão cultural da transubstanciação do olhar
prendia-se à vontade de divinização da realidade humana, hoje a essência do
questionamento diz respeito à perda do poder sensível que o olhar desatento
impõe. Como se pode produzir conhecimento através da experiência de mundo
se o indivíduo não se apropria de fato do mundo, se não se detém diante dos
objetos de seu olhar? Desse modo, o próprio processo de percepção do
homem atrofia-se aceleradamente. Muda assim como se percebe e,
conseqüentemente, até o que se percebe.
A novidade maior do platonismo está neste ponto: a verdade
passa a depender de um certo cultivo da visão, o que se
deve ser bem ordenado [...]. E abre-se, por aí, o caminho para
uma nova etapa de evolução do olhar: sua vinculação com a
interioridade.
Se em Platão a vida filosófica consistia no abandono da práxis simplesmente
mundana e utilitária em direção a uma práxis contemplativa, este era o
caminho para chegar à verdade, e a verdade passava a vincular-se à justeza
do olhar. Dois pontos devem ser destacados: a noção de contemplação e a
vinculação entre olhar e interioridade. Bornheim (1988) aponta que é no século
XIV que a conversão do olhar à interioridade alça-se à sua máxima pureza de
expressão, como no pensamento cristão de Santo Agostinho. uma
mudança significativa não no sentido, mas na prática da contemplação na
sociedade contemporânea. O ato contemplativo requer atenção, o ajustamento
do olhar às coisas vistas para se adquirir sabedoria e conhecimento. Ele deve
conectar pensamento e ação. A transformação ocorrida está justamente nessa
desconexão, cuja base reside na desatenção aos fenômenos e na falta do
cultivo da visão. Quanto à ligação entre olhar e interioridade, se encontra a
58
essência do “ver” como “ato de conhecer”, é o processo de experimentação, da
relação entre os corpos e o espaço que os rodeia. Tanto as imagens como se
apresentam ao homem contemporâneo quanto a mudança de percepção em
seu olhar colocam em xeque a tradução sensível do mundo para ele.
de fato uma mudança nos sistemas de representação, com várias
implicações no meio das sensibilidades, principalmente a partir da revolução
do niilismo do século XIX, como esclarece Virilio (2002:23):
[...] o antigo ato de olhar seria substituído por um estado
perceptivo regressivo, uma espécie de sincretismo, caricatura
lamentável da quase-imobilidade dos primeiros dias de vida,
com o substrato sensível existindo como um conjunto
confuso de onde surgiriam acidentalmente algumas formas,
odores e sons... percebidos mais nitidamente. Mas [...] a
aquisição da imagem mental jamais é instantânea, ela é uma
percepção consolidada. Ora, é precisamente este processo de
aquisição que é rejeitado atualmente [...]
O tempo de consolidação da imagem que envolve os vínculos de memória e
localizam as experiências sensíveis no corpo e no espaço evapora-se. À
medida que a imagem é uma representação do que sensibiliza o ser humano,
uma transformação no modo de lidar com a imagem ou na maneira como ela
se apresenta ou introduz outras formas de sensibilidade, ou as impede de
acontecer. Mas se não tempo para o acontecimento do próprio fenômeno
sensível por completo, a segunda hipótese é possível. Virilio (2002:41)
discorre sobre a questão do advento da fotografia e suas implicações sobre o
ato de olhar:
Com a fotografia, a visão de mundo torna-se não somente uma
questão de distância espacial mas também de distância de
tempo a abolir, questão de velocidade, de aceleração ou
desaceleração. Comparando o que não é comparável, estes
promotores foram imediatamente convencidos de que a grande
superioridade da fotografia sobre as potencialidades do olho
humano era, exatamente, esta velocidade específica [...] ora,
ao multiplicar as ‘provas’ da realidade, a fotografia a esgotava.
[...] Mas, ao contrário, uma vez que os progressos técnicos
desta mesma fotografia nos forneciam provas todos os dias,
por que não chegar gradualmente à conclusão de que cada
59
objeto é para nós nada mais do que a soma das qualidades
que lhes atribuímos, o conjunto das informações que obtemos
em um momento ou outro, este mundo objetivo existiria tal
como o re-presentamos e como uma construção mais ou
menos persistente de nosso espírito (grifos da autora).
Muda o tempo da experiência. A falta de espessura do olhar liga-se
intimamente ao tempo insuficiente de usufruição dos objetos sensíveis que o
olho alcança, o que, por sua vez, elimina o papel do sujeito no processo de
intermediação entre os objetos e o espaço. Eliminar o papel do sujeito significa
atrofiar seu corpo. Virilio (2002) discorre sobre o advento da câmera de cinema
e sobre as máquinas fotográficas e mostra como o olho se congela e perde sua
velocidade e sensibilidade naturais no caso da primeira. E na segunda
possibilidade, como se dá a redução das escolhas mnésicas criada pelo estado
de dependência em relação à objetiva que modelizou a visão e tornou
possíveis todas as formas de padronização do olhar. Referindo-se a Jacques-
Henri Lartigue, para quem sua objetiva era o olho de sua memória, Virilio
(2002:31) comenta que o fotógrafo não precisava nem mesmo ver para
fotografar, “ele sabia ver o que sua Leica enquadraria se ele a colocasse
debaixo do braço, a máquina tomando o lugar, de uma só vez, dos movimentos
dos olhos e dos deslocamentos do corpo”. Ele ainda lembra que o processo de
visão sem olhar das câmeras de vídeo é a própria automação da percepção, a
inovação de uma visão artificial que produz imagens virtuais que representam
um enigma para o interlocutor, excluindo-o.
Automatizando a percepção, ocorre então um duplo movimento de exclusão: o
do sujeito, que deixa de se apropriar dos objetos de seu olhar (incluindo-se os
objetos materiais e não materiais), e o dos objetos, que deixam de ser
sensivelmente explorados. Mais que a manipulação do objeto, uma
deturpação da capacidade natural de prever do ato de olhar, a previsão
tornando-se uma espécie de indústria autônoma. Como atesta o autor
supracitado, o progresso da simulação profissional e a antecipação
organizacional levaram ao surgimento de “máquinas de visão” destinadas a
ver-prever em nosso lugar. Onde fica o direito de escolha do objeto de olhar
60
quando as próteses o fazem pelo homem automática e artificialmente? Iludido,
este homem pensa determinar os ângulos e objetos de visão quando as
imagens percebidas são escolhidas pela máquina.
A importância da visão ao longo das civilizações
23
ainda pode ser identificada
nos dias de hoje, e favorece uma espécie de culto à imagem como forma de
representação. Esta constatação é notável na arquitetura o que pode ser
checado na relação do arquiteto com as revistas e livros de arquitetura e
deve ser repensada. Bloomer & Moore (1982) alegam que é importante
identificar na história da arquitetura o privilégio do olhar, o sentido da visão
como atividade sensorial, que afasta o homem de uma consideração totalizante
de seu corpo. Segundo os autores, identifica-se na contemporaneidade o
resultado de uma configuração de modelo arquitetônico pautado no
desequilíbrio, porque restringe a experiência do objeto construído tanto em sua
concepção como em sua recepção. Enfatizar a visão é enfatizar a relação com
os fenômenos exteriores ao corpo em detrimento de todo o mundo sensível
interior que produz as reações corporais. Se toda atividade sensível é
acompanhada de uma reação corporal, e se o universo pessoal do corpo é
uma espécie de lugar a que sempre se volta, restringir a experiência
arquitetônica significa restringir o uso do corpo. Privar esse lugar do corpo de
significado e memória arquitetônica significa impedir o corpo de reagir de forma
completa aos estímulos externos, diminuir as possibilidades de explorar o
ambiente, restringir o próprio habitar. O corpo é o lugar do confronto. O corpo
empresta sua experiência sensível ao mundo que, por sua vez, devolve-a
modificada. A arquitetura que remonta ao corpo, que volta sua atenção a ele,
não priva da experiência de mundo que é habitar. Como anunciado
anteriormente, Fuão (2001) trata desse tema em Folhas da arquitetura, e
mais a ser dito. Uma faceta à primeira vista contraditória estampa-se no fato de
que as fotografias são colocadas nas revistas quase desacompanhadas de
textos. A força da imagem, seu valor de moeda como pura representação é tão
23
“Voltemo-nos, então, para os gregos, essa cultura do sol apaixonada pela vida e pela visão a
ponto de confundi-las: para um antigo grego, viver não é respirar, como para nós, mas ver; e
morrer é perder a vista” (DEBRAY, 1994:23).
61
forte que dispensaria as palavras. Mas a ausência do texto reflete a própria
ausência da experiência do objeto retratado: à medida que o objeto de
arquitetura se a ver, não a ler, isso significa que ele não pode ser
experimentado em sua totalidade. O caráter de exibição e de exposição
inerente às fotografias se sobrepõe de tal forma que trabalha contra a
capacidade de imaginação que a imagem pode ter e que permite o acesso à
experiência do espaço, como o vienense Adolf Loos soube aproveitar.
24
O que ocorre é a substituição do objeto pela sua representação: o que se
consome é o estereótipo de uma arquitetura em sua visualidade, e não a
própria arquitetura que está por trás da foto. Ele explora as possíveis
interações entre a palavra “revista” e vários termos, como “review”, “magazine”,
“rever” e “revestir”. No caso desses dois últimos, a relação revela-se tanto
como pista quanto diagnóstico dessa relação de substituição. Se revistar
implica rever com atenção, Fuão analisa que o leitor aproxima-se mais do
revistado que aquela que seria o objeto para tal a revista –, de modo que as
pessoas são constantemente comparadas às suas próprias fotografias para
atestar suas identidades. Elas são revestidas, envelopadas, e consomem a si
mesmas com uma capa, afastando seu próprio corpo da experiência real de
mundo, passando-se como as folhas de arquitetura numa revista: papel, não
arquitetura.
Em última análise, nada ilumina melhor a idéia de revistas que
o sinônimo magazine (palavra comum à língua inglesa e latina),
que serve para designar tanto uma publicação periódica,
geralmente ilustrada e de caráter recreativo, como também a
um lugar onde se expõem e se vendem artigos de moda.
Modismos. Neste discurso, o magazine está para a roupa,
assim como a revista para a arquitetura exibida na vitrine de
celulose (FUÃO, 2001, não paginado).
Mas as fotografias afetam não a visão como todos os movimentos do corpo,
substituindo o ritmo antes lento e complexo do caminhar, ver, tocar e sentir os
24
Aqui Fuão (2001) refere-se a Adolf Loos e sua habilidade de explorar a capacidade
ilusionística do espaço mesmo mediante jogos de espelhos e janelas em sua arquitetura.
62
cheiros que banham a cidade por uma onividência artificial criada pelos meios
de comunicação. Assim, a preocupação com uma arquitetura fotogênica, que
muitas vezes suprime as pessoas para “limpar” o espaço da foto, esconde a
supressão mesma do corpo e seus sentidos como usufruidor do espaço e
como ponto de partida para a sua criação (o arquiteto parte de imagens, não do
corpo que experimenta e a arquitetura a experimentar-se). A máquina
suprime o corpo, e lugar à escolha feita por si: não é o olho que escolhe o
ângulo ou a posição, mas a própria câmera fotográfica.
A discussão que parte das artimanhas da sensibilidade fotográfica inaugura
então uma nova, que abrange outras próteses tecnológicas que se acoplam ao
corpo e modificam sua atuação e sua sensibilidade. É desse modo que os pés
são substituídos pelas rodas dos automóveis e não se precisa mais que
movimentar os braços para acionar a televisão pelo controle remoto, que o
layout de uma agência bancária se simplifica num inóspito e limitado espaço
onde precisam caber algumas máquinas de caixa-eletrônico. A máquina
adere-se ao corpo e, desavisadamente, passa a controlar seus movimentos e
atrofiá-lo não fisicamente. Ao não exigir dele uma experiência sensória para
se relacionar com o mundo, preso no anestesiamento de funções que se
tornam automáticas, ele empurra a arquitetura para longe da experiência
estética que ela deve pressupor. Ainda que uma nova lógica instaurada
decisivamente por uma era tecnológica imponha um ritmo acelerado de
experimentação, não se deve ignorar o distanciamento que ocorre entre o
corpo e o espaço ou entre arquitetura e observador. Fuão (2001) lembra que o
negativo da fotografia é fazer-nos tomar suas imagens como láudanos para as
próprias carências e esquecer que a imagem instantânea é carente de
narrativa e do transcurso do tempo. Porquanto a imagem instantânea pode
suportar uma experiência instantânea de mundo.
Remonta a uma exposição fotográfica que percorreu algumas cidades da
Europa entre os anos de 1985 e 1986, que mostrava fotografias de vários
autores, cujo tema era a cidade sem pessoas, e que tinha como suporte o texto
63
Phantom city de Vilém Flusser
25
. Retoma a questão da fotogenia das imagens
fotográficas da arquitetura, que excluem a figura humana da representação do
espaço. Essa prática revela, a rigor, a exclusão do homem das atividades
públicas da cidade e a idéia equivocada de que arquitetura e cidade devem
falar por si mesmas, sem a interferência de seus moradores, e são parte de um
processo mais amplo, identificado pelo autor, de uma ausência de imagens
em revistas e livros de história da arquitetura. Essa ausência da figura humana
na representação como prática perpetuada pelos arquitetos na
contemporaneidade também pode ser dita responsável pelo empobrecimento
de seu imaginário, onde a reprodução viciada de um sem número de imagens
técnicas se constrói na visualização das representações da realidade. A
capacidade de “fazer imaginar” da imagem é de tal forma sobreposta pela
visualidade de sua representação que o imaginário é cada vez mais dificilmente
ativado. Mas retirar a figura humana da fotografia de arquitetura não é apenas
retirar a alma da cidade e da própria arquitetura, e ver nelas somente a beleza
e o caráter objetivo, é um sintoma da própria ausência do corpo como mote
para a criação da arquitetura. Como se a cidade fosse independente do
observador, a arquitetura independente do corpo, a fotografia sem pessoas é
uma manipulação de uma cidade ideal e fantasmagórica. Novamente entra em
cena a substituição do objeto por sua imagem quando a fotografia tenta tomar
o lugar da arquitetura que ela registra e, por isso, Fuão relembra que a
fotografia em si não é o documento principal: o verdadeiro documento da
arquitetura continua sendo ela mesma.
Sendo a experiência de espaço e aqui se inclui a própria arquitetura a
relação mesma entre corpo e mundo, o que se supõe é que, havendo uma
mudança no corpo, há uma transformação na experiência espacial. No entanto,
o campo arquitetônico pouco tem se preocupado com a produção e recepção
de suas obras diante de tão forte constatação. Dito de outro modo, os
arquitetos, via de regra, continuam produzindo um tipo de espaço ainda para as
normas, medidas e lógicas do século XIX ou, no máximo, do início do século
25
Citado em Cidades fantasmas (FUÃO, 2002).
64
XX. Questões como a rápida obsolescência dos produtos e a urgente
impermanência dos fatos são negligenciadas no que dizem respeito às suas
influências para a arquitetura. Há quanto tempo se deve pensar em
arquiteturas temporárias? Como fica o espaço de um banco quando o que
predomina é a quantidade de caixas eletrônicos, o o atendimento pessoal?
Onde é a sala, o quarto, a cozinha quando o notebook está ligado? De que
cenário se pode falar? Em que contexto estão os habitantes da
contemporaneidade das grandes metrópoles? Qual é o homem que vive nesse
tempo, e em que tipo de corpo?
Trata-se de um tempo de supervalorização dos sentidos perceptivos, de
desgaste e aniquilamento do envolvimento afetivo, de apatia e anestesiamento.
A imagem é tratada como um hipercorpo desativado, e o que se avista é um
corpo somado a próteses e uma experiência de mundo necessariamente
contaminada pela idéia de máquina. Afinal, todos são ciborgues, como afirmam
Donna Haraway
26
e Stelarc
27
. Este é um momento onde a lente da câmera
fotográfica substitui o olho, e faz para ele a escolha de ângulos e proporções,
de objetos de desejo e conhecimento.
FIGURA 8 – O olho e a objetiva
26
Com doutorado em Biologia Celular, é professora do Departamento de História da
Consciência da Universidade da Califórnia, onde ensina Teoria Feminista, Estudos Históricos e
Culturais e Estudos da Ciência e da Tecnologia, tem sido referência nos estudos sobre as
relações entre homens e máquinas, suscitando muitos debates e polêmicas nas áreas de
Primatologia, Filosofia e Biologia do Desenvolvimento, dentre outras tantas. Suas idéias sobre
o homem-ciborgue são de extrema importância para a reflexão sobre os rumos da arquitetura
através de tal homem, corpo atado à máquina.
27
Artista nascido em Chipre em 1947, radicou-se na Austrália e desenvolve extensões para o
corpo humano desde os anos 60.
65
FONTE: fotos da autora
O que muda para a arquitetura? Como a arquitetura refletiu historicamente
essa relação corpo-mundo que é a própria experiência do espaço e o que
mudou para ela a partir das próteses trazidas pela idéia de máquina e o poder
tecnológico?
Discussões sobre a espacialidade possível na arquitetura podem ser vistas
muito, como em Piranesi e seus cárceres. Na esfera da arte, grandes
propostas de exercício espacial e reconhecimento do corpo frente ao corpo do
outro e ao mundo se reconhecem nos parangolés de Hélio Oiticica
28
ou nas
máscaras de Lygia Clark
29
(FIG. 9), que mostram trabalhar a questão relacional
entre corpo e mundo de maneira muitas vezes mais pungente que os próprios
arquitetos.
28
Hélio Oiticica (1937-1980), pintor e escultor brasileiro. Formou o movimento neo-concretista,
voltado para as pesquisas de ruptura do espaço da representação bidimensional do quadro, de
redução do campo cromático a monocromias com variação de textura e intensidade ou de
trabalhos com outros materiais móveis, que propunham, de forma pioneira no país, a
participação do espectador na feitura nunca acabada da obra. Na década de 60, criou os
“Parangolés”, tipos de estandarte associados à música e à dança.
29
Lygia Clark (1920-1988), artista plástica nascida em Belo Horizonte, iniciou seus estudos em
arte com Burle Marx em 1947, no Rio de Janeiro. Foi uma das fundadoras do Grupo
Neoconcreto, do qual participava Hélio Oiticica. Partiu da realização de pinturas e esculturas
até abandonar as formas tradicionais de expressão artística e produzir objetos tridimensionais
com possibilidades de interação com o público. Destacam-se em sua obra os objetos
relacionais, que exploravam as possibilidades sensoriais de suas obras. Especialmente a partir
de 1970, em Paris, Lygia assume definitivamente o exercício das experiências corporais,
desenvolvendo, inclusive, uma atividade terapêutica através da arte, com aproximação da
psicanálise. Ver “O Eu e o Tu: série corpo-roupa”, 1967, em PRATES & SANT’ANNA, 2006:31.
66
FIGURA 9 – Hélio Oiticica e Lygia Clark – à esquerda um dos Parangolés de Oiticica; à direita,
O Eu o Tu, da série corpo-roupa, 1967
FONTE: www.artemercosur.org.uy/artistas/oiticica/index.html; PRATES & SANT’ANNA, 2006, p. 31
Entretanto, o interesse recai sobre os anos 1960, que assistiram o profeta das
comunicações Marshall McLuhan
30
antecipar a noção de aldeia global que hoje
a sociedade experimenta através da internet e da globalização. Segundo ele,
em qualquer tipo de comunicação a mensagem transmitida é influenciada pelo
meio empregado para transmiti-la daí a famosa frase “o meio é a
mensagem”. Pouco passados os meados do século XX, McLuhan (2003)
discutia o fato de que as rodas dos automóveis substituíram os pés, o que dizia
respeito a uma transformação do corpo por meios de extensão — próteses. Em
uma síntese final de sua teoria, disse que tinha começado a olhar todos os
artefatos humanos, desde os primeiros instrumentos até os da mídia eletrônica,
como extensões do corpo humano e do seu sistema nervoso e como
componentes da evolução humana. Uma reflexão em torno desse ponto revela,
por outro lado, a extrema modificação do contexto em que se vive agora.
Stelarc (1997) provém, de certo modo, uma resposta aos anseios e
constatações de McLuhan, apresentando seus primeiros espetáculos
multimídia em torno do tema da obsolescência do corpo humano e das
extensões do corpo. Seu entendimento de corpo como meio, da existência de
30
Marshall McLuhan (1911-1980), teórico canadense da literatura e da comunicação que se
auto-intitulava “filósofo das comunicações”, que se celebrizou por suas teorias sobre os meios
de comunicação de massa.
67
um corpo protético desde sempre, delineava-se em experimentações como
seus Exoesqueletos, como um terceiro braço e um terceiro ouvido, e
experiências com máquinas andantes comandadas por movimentos do braço
(FIG. 10-11). Acredita que o corpo humano está obsoleto e pode e deve ser
ampliado com próteses inteligentes, ligando-se à web e transformando-se em
um novo meio; para ele, o corpo humano é uma arquitetura evolutiva que se
redesenha com a tecnologia. A noção de ciborgue surge desde que o homem
aprendeu a se locomover sobre dois pés, tornando o corpo naturalmente
“protético”, pronto para receber a influência da máquina.
FIGURA 10 – Provocações protéticas de Stelarc: third hand project (terceiro braço, 1976-1981), extra
ear (ouvido extra) e movatar (2000)
FONTE: www.stelarc.va.com.au
68
FIGURA 11 – Stelarc, Walking head (em desenvolvimento)
FONTE: www.stelarc.va.com.au
“O meio é a mensagem”, explica McLuhan (2003), significa que a era eletrônica
criou um meio totalmente novo, onde o ‘conteúdo’ é o velho ambiente
mecanizado da era industrial. Os instrumentos tecnológicos mediadores da
experiência humana são, a um tempo, a mensagem e seu meio de
transmissão. O que ele não previa era que a aceleração da vivência dos
fenômenos, causada em grande parte pelo aumento da presença da tecnologia
no cotidiano, seria tal que impediria o que ele supunha: à medida que estas e
seus ambientes conseqüentes se sucedessem, se estaria preparado para a
próxima mudança.
Durante as idades mecânicas projetamos nossos corpos no espaço.
Hoje, depois de mais de um século de tecnologia elétrica, projetamos
nosso próprio sistema nervoso central num abraço global, abolindo
tempo e espaço (pelo menos naquilo que concerne ao nosso planeta).
Estamos nos aproximando rapidamente da fase final das extensões do
69
homem: a simulação tecnológica da consciência, pela qual o processo
criativo do conhecimento se estenderá coletiva e corporativamente a
toda a sociedade humana, tal como fez com nossos sentidos e
nossos nervos através dos diversos meios e veículos. Se a projeção da
consciência antiga aspiração dos anunciantes para produtos
específicos será ou não uma “boa coisa”, é uma questão aberta às
mais variadas soluções. (McLUHAN, 2003:17)
Continua-se sem uma resposta definitiva, e cada vez mais aberta. O fato é que
as colocações do teórico levam a refletir sobre o dilema do homem ocidental
diante das intervenções que as próteses fazem em seu corpo e em sua
experiência de mundo: o dilema de um homem de ação que parece não estar
envolvido na ação (os meios ou extensões do homem são agentes “produtores
de conhecimento”, mas não “produtores de consciência”). É como se o
indivíduo fosse obrigado ao compromisso e à participação, mas, ao ser
submetido a um excesso de informação e interferências, sucumbe e se aliena
frente aos fatos. As extensões tendem a causar entorpecimento e anestesia na
sociedade. Assim a cultura tipográfica nela insere hábitos uniformes e
contínuos, eliminando o homem-ouvido e o homem-tato, ou seja, atrofiando o
corpo como totalidade sensória. Para McLuhan (2003), o conforto consistiria
em abandonar uma disposição visual em favor de uma que permita a
participação informal dos sentidos, estado que não se obtém quando apenas
um dos sentidos é aquecido especialmente o visual —, a ponto de torná-lo
dominante. Mas enquanto o aquecimento de um dos sentidos tende a produzir
hipnose, o esfriamento de todos eles redunda em alucinação, pois se início
a um processo de preenchimento furioso.
A atrofia pela hipertrofia é justamente o comprometimento dos sentidos que, à
primeira vista, são extremamente exigidos por múltiplas exigências e, por conta
do excesso de estímulo e da escassez de tempo para usufruir de toda a oferta,
suspende o corpo ou atrofia algumas de suas partes, reduzindo sua
capacidade perceptiva e reativa. Uma questão se instala quando instrumentos
da tecnologia são incorporados ao corpo, o que pode ser um problema ou uma
constatação da existência de outras possibilidades sensório-espaciais. O
teórico das comunicações argumenta que contemplar, utilizar ou perceber uma
70
extensão de si mesmo sob forma tecnológica implica necessariamente em
adotá-la, pois, sua contínua aplicação no uso diário coloca o homem num papel
narcísico da consciência, levando a um adormecimento subliminar em relação
à sua auto-imagem e à subserviência em relação às próteses.
A linguagem é para a inteligência o que a roda é para os pés, pois lhes
permite deslocar-se de uma coisa a outra com desenvoltura e rapidez,
envolvendo-se cada vez menos. (McLUHAN, 2003:97)
Assim as mudanças perceptivo-sensórias levam a transformações da forma em
que as cidades se delineiam e da experiência dos habitantes em relação a ela.
A modificação de escala, cadência ou padrão que as extensões tecnológicas
introduzem na vida do homem, continua ele, é vista no desenho das novas
cidades. A estrada de ferro acelerou e ampliou a escala das funções humanas
anteriores, criando tipos de cidades, trabalho e lazer totalmente novos. Quando
a rodovia ultrapassa seu limite de ruptura, transforma as cidades em auto-
estradas, enquanto estas adquirem um contínuo caráter urbano; uma
inversão entre os papéis do campo e da cidade, onde o primeiro deixa de ser o
centro do trabalho e a segunda o do lazer. “Os carros podem viajar toda a
noite, as partidas noturnas de beisebol, e os edifícios podem dispensar as
janelas” a partir da invenção da luz elétrica que, segundo McLuhan (2003:71),
além de ser meio é mensagem. O ponto-chave da aceleração por meios
tecnológicos é a extensão do poder num espaço sempre mais homogêneo e
uniforme, e, no caso do contexto urbano, deixa de ser uma lenta explosão
centrífuga do centro para as margens para se tornar uma implosão imediata e
uma interfusão do espaço e das funções. Também o automóvel e o avião
contribuíram para o novo cenário da arquitetura: o primeiro aglutinou a forma
abstrata da cidade industrial, e o segundo aumentou a mobilidade do cidadão a
ponto de tornar o espaço urbano irrelevante. As extensões mudam as formas
de organização e o envolvimento dos habitantes.
71
São também originados nesses anos os questionamentos da Internacional
Situacionista
31
(FIG. 12-13) e do Grupo Archigram
32
(FIG. 14-16), ambos
preocupados com a vida nas cidades e proponentes de uma reversão da lógica
de apropriação do espaço urbano. No caso do primeiro, um dos pontos que
interessam fortemente à discussão da arquitetura atual é a constante
renovação do modo de olhar e experimentar a cidade, considerando a
flexibilidade, a diversão e a participação como questões fundamentais para tal
prática. Assim seus integrantes partiam numa deriva psicogeográfica pela
cidade, no intuito de descobrir novas formas de experimentá-la. Não
interessava conhecer o espaço urbano através de indicações de pontos
turísticos excessivamente explorados, mas vivenciar o inesperado, o inusitado.
O que estava em questão e que se retoma é a construção mental
padronizada do observador, ou, dito de outra forma, o fato de que existe uma
percepção padrão na sociedade de consumo a sociedade do espetáculo de
que trata Debord (1997) que faz a subestimação da experiência sensível do
habitante da metrópole. Ao pintar em muros de igrejas ou exibir em panfletos o
slogan “construa pra você mesmo uma situaçãozinha sem futuro”, esperavam
transformar o mundo cotidiano através da fusão entre vida comum e arte. Os
situacionistas alçavam a cultura à esfera primordial do mundo da vida,
entendendo-a como o próprio modus operandi das atitudes frente ao cotidiano.
A cultura como ato político formador desse cotidiano era a própria inclusão da
arte no dia-a-dia da cidade a arte não poderia se restringir a museus ou
livros, deveria ser disponibilizada a todos —, no intuito de sempre potencializar
novas formas de pensamento de expressão, a reinvenção da cotidianidade.
Ora, a “construção de situações” a partir de experimentações, com o objetivo
31
Grupo de jovens que surge na Europa dos anos 50, da convergência da Internationale
Lettriste com o COBRA, da Holanda, o MIBI, fundado pelo arquiteto holandês Asger Jorn, e o
Comitê Psico-geográfico de Londres, movimento inglês para reforma da geografia urbana
(VELLOSO, 2002). O pensamento de Debord e seu grupo erigiu-se a partir do conceito-chave
dos letristas de “construção de situações”. Os situacionistas buscam tal construção a partir de
experimentações, que têm como objetivo “a construção consciente de novos estados afetivos”,
o que não pode ser realizado pela afirmação de dogmas, mas pela busca e experimentação
(JAPPE, 1999).
32
Grupo formado pelos arquitetos Peter Cook, David Green, Dennis Crompton, Michael Webb,
Warren Chalk e Ron Herron, com duração de 1961 a 1974, com sua base principal na
Inglaterra. O nome partiu de revista homônima, lançada por Peter Cook e David Green, e se
formou na junção das palavras architecture e telegram.
72
da construção consciente de novos estados afetivos, muito interessa a uma
prática de arquitetura fundada no mutável, no permeável, no que não necessita
dogmas ou regras que não as temos por muito tempo nesse tempo de
rápidas substituições de tudo. Ambos tratavam de uma modificação da
experiência da arquitetura e da cidade, embora os situacionistas não tivessem
a tecnologia como mola propulsora; a máquina desempenhava uma relação de
produção, de substituição da mão-de-obra, libertando o homem para a vida
lúdica. Portanto, os situacionistas reivindicavam o direito às percepções,
experiências e sensações de cada um, o traçado de mapas afetivos individuais
que significavam diferentes leituras e vivências dos lugares. residiria o
verdadeiro sentido da experiência de espaço da cidade: o desvelamento não-
programado de cada um. Os membros do Archigram compartilhavam dessa
questão aberta pela inserção tecnológica no cotidiano do homem, mas
propunham uma tecnologia que o envolvesse, ou a que ele se subordinasse.
FIGURA 12 – Internacional Situacionista – as investigações sobre o labirinto por Constant: Ode à
l’Odeon, 1969; mapa afetivo, correspondente a uma leitura apaixonada da cidade, como New Babylon
Paris, 1963, Acampamento, 1957
FONTE: ANDREOTTI et al., 1996a
73
FIGURA 13 – Internacional Situacionista, Constant, Spatiovore, 1959; Setor Oriental, 1963
FONTE: ANDREOTTI, 1996a
74
No caso do segundo, uma preocupação diretamente ligada à produção de
arquitetura possível em meio a tantas intervenções tecnológicas. Por que não
usar a tecnologia a favor da criação de uma nova arquitetura? A revista
produzida por Peter Cook e David Green deu também o nome ao grupo, e
trazia a discussão de idéias como: perfilar uma maneira de ver e entender a
cidade, através de uma leitura própria que englobava arquitetura, arte e
sociologia, ou o problema da obsolescência do entorno urbano e da
possibilidade de uma arquitetura descartável no contexto de uma sociedade de
produção e consumo massivos. Essa discussão levaria a uma série de projetos
envolvidos com o tema do consumo e da substituição, que recorriam ao
imaginário dos quadrinhos de ficção científica e à corrida espacial, incluindo a
ironia e a diversão como formas de expressão. Nada mais atual que o
pensamento do Archigram, que já entendia o corpo como ponto de partida para
a criação de uma arquitetura condizente com a nova lógica tecnológica. A
relação entre corpo, arquitetura e máquina é por vezes literal, e faz perguntar:
um corpo-máquina pode produzir uma arquitetura-máquina? Ou é está na
resistência da pele a resposta?
FIGURA 14 – Archigram, Living Pod, 1966
FONTE: www.canadianarchitect.com/issues/ISarticle.asp
75
76
FIGURA 15 – Archigram, casa inflável/Cushicle
FONTE: www.canadianarchitect.com/issues/ISarticle.asp;
www.olats.org/space/13avril/2004/te_tAlmeida.html
77
FIGURA 16 – Archigram, Eletronic Tomato, 1969; Walking City in New York, 1964
FONTE: www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp231.asp;
www.olats.org/space/13avril/2004/te_tAlmeida.html
78
2.3 Sobre um novo constructo espaço-tempo e suas reverberações
corporais
As considerações da vasta pesquisa de Tonino Bettanini (1982) auxiliam no
esclarecimento da noção de espaço que aqui se fará delinear para que se
proceda, em seguida, a uma análise da transformação do constructo espaço-
tempo. O autor propõe uma investigação sobre a percepção do espaço
partindo da geografia e se expandindo para as diferentes áreas das ciências
humanas, entendendo que uma sociedade espacializa o próprio mundo ou
tende a se representar. A noção de espaço como representação de uma
sensibilidade e de um modo de viver e usar o mundo amplia sua análise; de
início, ele estabelece a ligação entre espaço e vivência sensível e revela que a
“experiência de espaço” teria sido precedida por um conceito psicologicamente
mais simples, o de “lugar”, por sua vez entendido como Einstein definira:
uma pequena porção de superfície terrestre identificada por um nome. Haveria,
portanto, uma primeira noção que o define como algo material a que, em
seguida, é acrescentado valor emotivo. Bettanini mostra que o que está em
questão é justamente entender a complexidade das atribuições sensíveis que o
espaço suscita, e que mesmo o que define a espacialidade em torno de
características palpáveis é dependente de uma experiência, de uma apreensão
o que torna mais importante a relação estabelecida que o próprio invólucro
ou os seus materiais físicos componentes.
As atribuições de expressão formal da arquitetura ou, dito de outro modo,
sua capacidade comunicativa como linguagem que estabelece sentidos
identificam a complexidade que envolve seu exercício: é através de algo
concreto, ainda que um desenho ou projeto e não obra construída, que ela
reivindica o subjetivo. A contradição está assim lançada: a concretude de suas
formas se realiza pelo não-concreto, pela própria experiência sensível das
mesmas. A obra de arquitetura é sempre aberta e dependente de uma
usufruição, e a sua dificuldade como disciplina e profissão na atualidade reside
justamente no fato de que o estabelecimento dessas relações entre obra e
usuário tende a se enfraquecer. Tal fato se justifica visto que a instabilidade do
79
tempo de assimilação e experimentação da vida cotidiana a disjunção entre
espaço e tempo provoca a dissolução da noção de espaço e o afastamento
entre corpo e mundo.
Quando Bettanini (1982) explica que a proxêmica confere à linguagem
articulada o papel de mediação entre organismo e experiência do mundo,
pode-se entender como a arquitetura enquanto linguagem, poder comunicativo,
manipula ou modifica o modo de experimentação do espaço e, assim, a
relação entre corpo/indivíduo e mundo. Destaca-se, então, o molde de
representação da arquitetura, de sua “linguagem silenciosa”, dos significados
ocultos em seus signos, que podem modificar a hermenêutica que o
sujeito/usuário arquitetônico exerce. Concluindo, não se pode falar de uma
única experiência objetiva ou de um único espaço, “mas somente de uma rede
de mundos sensoriais subjetivos, cada um dos quais é função do aparato
perceptivo.”
33
Embora a arquitetura deva, a priori, promover a realização de uma obra
construída, ou seja, é através dessa manifestação formal que ela expressa
seus valores e usos, a experiência espacial remete ao que está além do
constructo, e é na imaterialidade que ela manipula a relação entre corpo e
espaço. E Bettanini (1982) também revela que o corpo como referência do
sentido humano no espaço foi detalhada por vários pensadores, como
Merleau-Ponty (1999:328), que revela que o espaço não é o ambiente real ou
lógico em que as coisas estão dispostas, mas o meio pelo qual a posição das
coisas torna-se possível. Isso faz com que, em lugar de imaginá-lo como uma
espécie de éter onde elas se mergulham ou concebê-lo abstratamente com um
caráter que lhes seja comum, deva-se pensá-lo como a potência universal de
suas conexões.
Diante das reflexões até então colocadas, pergunta-se: que produção de
espaço e que constructo de espaço-tempo é possível hoje? É certo que a
33
G. Usberti citado por Bettanini (1982:34).
80
Revolução Industrial teve um papel decisivo nesta relação, pois, a partir da
proletarização e da nova condição do processo produtivo dela decorrentes, o
ritmo de vida acelerou demasiadamente e os produtos, dos eletrodomésticos
aos edifícios, adquiriram a qualidade da obsolescência quase imediata. A
produção de bens de consumo e a veloz proliferação de imagens passaram a
afetar de modo decisivo e incongruente tanto o cenário como a capacidade
perceptiva. A busca de uma nova linguagem estilística anunciada por uma
transformação política e social situada na era industrial, na intenção de conferir
status de modernidade aos processos de criação de bens reproduzíveis em
série, produz uma substituição: tende-se a consumir a imagem e não o objeto
que ela representa, tamanha a rapidez com que as coisas se apresentam e se
auto-descartam. Quase não tempo de perceber os fenômenos e os objetos,
que se tornam ou invisíveis à sensibilidade ou se deturpam, especialmente se
sua percepção está mediada por instrumentos tecnológicos, o corpo mediado
por próteses.
A modificação do constructo espaço-tempo que se promoveu diante das
transformações perceptivas, especialmente a partir do século XIX, está na
gênese da forma possível de experimentar esse novo mundo, protético,
ciborgue e quase sempre alienado. David Harvey (1992) realizou um estudo
profundo que serve de escopo para a discussão da relação do binômio tempo-
espaço a partir da modernidade. Organizando as idéias de pensadores como
Marshall Berman, Daniel Bell, Frederic Jameson, Henri Lefèbvre, Gaston
Bachelard, entre tantos, ele traça um panorama a partir especialmente das
teorias sociais e estéticas que mostra a contundência do fato: uma crise,
chamada de “compressão do espaço-tempo”, que gera um novo constructo e
altera as experiências espaciais e temporais. Um entrecruzamento de distintos
sentidos de tempo na sociedade moderna, em que movimentos cíclicos e
repetitivos cedem lugar à ordem evenencial de um tempo ligado à realidade
industrial, faz nascer outros sentidos de espaço.
81
O tempo cíclico, que provém sensação de segurança através da sucessão de
ações que se repetem ao longo do dia, da semana, do ano como acordar, ir
ao trabalho, festejar um aniversário tende a ser substituído por uma noção
temporal não cadenciada, onde a acumulação do capital faz vigorar um ritmo
de mudança tecnológica permanente que, por sua vez, imprime valores
mutáveis de percepção e experiência da vida cotidiana. Até o ponto em que
Harvey (1992) contesta a idéia de um sentido único e objetivo de tempo e
espaço para basear uma medida das diversidades de concepções e
percepções humanas, mesmo reconhecendo que cada modo de produção ou
formação social incorpora um agregado particular de práticas e conceitos
relativos ao binômio.
[...] se o avanço do conhecimento (científico, técnico,
administrativo, burocrático e racional) é vital para o progresso
da produção e do consumo capitalistas, as mudanças do nosso
aparato conceitual (incluindo representações do espaço e do
tempo) podem ter conseqüências materiais para a organização
da vida diária (HARVEY, 1992:189-190).
Do âmbito das teorias sociais destaca Michel Foucault e a relação, por este
traçada, entre espaço e representações sociais. Para Foucault (1979, 1983)
34
,
o espaço do corpo é o elemento irredutível do esquema de coisas social, sobre
o qual se exercem a repressão, a socialização, a disciplina e a punição.
35
Assim, a irredutibilidade do corpo humano significaria justamente a forma de
resistência possível, a ser mobilizada para libertar o desejo humano — de onde
vem sua noção de espaço: metáfora para um local ou continente de poder que
ora restringe, ora libera, processos de vir-a-ser.
34
Este autor também será abordado no terceiro capítulo.
35
“O corpo existe no espaço e deve ou submeter-se à autoridade (por meio de, por exemplo,
encarceração ou vigilância num espaço organizado) ou criar espaços particulares de
resistência e liberdade ‘heterotopias’ diante de um mundo de outra maneira repressor.
Essa luta, peça de resistência da história social ao ver de Foucault, não tem uma lógica
temporal necessária” (HARVEY, 1992:196).
82
Harvey (1992) entende que as posições de Certeau e Bourdieu se manifestam
a partir de tal pensamento, trazendo, contudo, mais elementos para a
elaboração sobre o constructo espaço-tempo como o entendimento dos
espaços sociais como instâncias abertas à criação e ação humanas e o
conhecimento das relações sociais decorrentes das ordenações simbólicas de
tal constructo. E se o espaço poético de Bachelard também é lembrado,
reforça-se a crença de que o espaço contém o tempo comprimido. O que dizer,
então, da experiência de espaço possível na vivência do tempo acelerado
típico da contemporaneidade que Gurvitch (apud, 1992:205) nomeia? Se a
noção de espaço se faz na conjugação de vários suportes, dentre eles o corpo
e a experiência perceptivo-sensória, a noção de tempo se definiu: um tempo
de descontinuidade, onde o futuro se torna presente, e em que o capitalismo
exerce o poder de fluxo dos acontecimentos. As abrangências do corpo
contemporâneo, do ciborgue ao social, e as percepções que esse corpo traz à
baila, são as questões a serem decifradas na busca do sentido do espaço
nesse tempo.
O incentivo à criação do mercado mundial, para a redução de
barreiras sociais e para a aniquilação do espaço através do
tempo, é onipresente, tal como o é o incentivo para racionalizar
a organização espacial em configurações de produção
eficientes (organização serial da divisão detalhada do trabalho,
sistemas de fábrica e de linha de montagem, divisão territorial
do trabalho e aglomeração em grandes cidades), redes de
circulação (sistemas de transportes e comunicação) e de
consumo (formas de uso e de manutenção das residências,
organização comunitária, diferenciação residencial, consumo
coletivo nas cidades). As inovações voltadas para a remoção
de barreiras espaciais em todos esses aspectos têm tido
imensa significação na história do capitalismo, transformando-a
numa questão deveras geográfica as estradas de ferro e o
telégrafo, o automóvel, o rádio e o telefone, o avião a jato e a
televisão, e a recente revolução das telecomunicações são os
casos em tela (HARVEY, 1992:212).
À parte o fato de tal noção de espaço ligar-se mais a uma noção de território
e de não ser esta o foco essencial da presente pesquisa —, ficam claras as
novas bases que cerceiam o constructo espaço-tempo moderno que esbarra
na atualidade: de uma cidade formalizada por uma relação social advinda do
83
poder do consumo e da tecnologia, de um tempo acelerado e não-cronológico
que engole a experiência da vida cotidiana do habitante da cidade e usuário de
sua arquitetura, e de um ambiente ciborgue que contém corpos cada vez mais
protéticos.
Voltando ao conceito de “compressão do espaço-tempo”, Harvey (1992:219) o
define como uma expressão que indica processos que revolucionam as
qualidades objetivas do espaço e do tempo e que promovem, muitas vezes, o
modo como o homem representa o mundo para si mesmo. O uso da palavra
“compressão” é por ele escolhido devido à palpável aceleração do ritmo da vida
que tem caracterizado a história do capitalismo, “ao mesmo tempo em que
venceu as barreiras espaciais em tal grau que por vezes o mundo parece
encolher sobre nós”. As mudanças apontadas se destacam desde o feudalismo
europeu, onde o lugar assumiu um sentido legal, político e social definido,
indicando uma relativa autonomia das relações sociais e da comunidade dentro
da fixação aproximada de fronteiras territoriaiso que gerava uma apreensão
confusa e misteriosa do espaço exterior, ainda organizado por alguma
autoridade mitológica ou imaginativa. Desse modo, as qualidades finitas de um
determinado lugar equivaliam a rotinas de vida cotidiana “honradas pelo tempo”
e estabelecidas na “infinidade e inapreensibilidade” do “tempo permanente”. Ali
a representação espacial equivalia a uma abordagem “psicologicamente fácil e
hedonista”, o que poderia ser verificado na arte e na cartografia do período.
Contudo, dentre as forças destrutivas em ação no mundo feudal, uma se
destacou a ponto de sugerir uma nova concepção de tempo e espaço: o
progresso da monetização e da troca de mercadorias. Coube então à
Renascença tratar dos efeitos de tal progresso e reconstruir radical mas
lentamente as visões do espaço e do tempo no mundo ocidental. Passava-se
então a conhecer um novo mundo finito e potencialmente apreensível, através
das viagens marítimas de descobertas
36
. E “o saber geográfico se tornou uma
mercadoria valiosa numa sociedade que assumia uma consciência cada vez
36
A história dos mapas renascentistas é reveladora, onde novas qualidades como objetividade,
praticidade e funcionalidade foram assumidas em seus desenhos (HARVEY, 1992).
84
maior do lucro” (HARVEY, 1992:221). Muitos autores, como foi ressaltado,
apontam as mudanças em termos representacionais que a recém-criada
perspectiva renascentista inaugurou, e que possibilitaram, dentre outras coisas,
a supressão do corpo pela máquina de fragmentos a câmara escura, a
máquina fotográfica —, estabelecendo um a priori de representação do homem
superficializado e egocêntrico. A representação na arquitetura foi, desde então,
colocada em xeque, e os novos modos de produção dela decorrentes tem sido
explorados ainda quase somente pelos arquitetos de vanguarda
37
.
Acionando Bourdieu, Harvey (1992:225) destaca que, se as experiências
espaciais e temporais são vínculos primários da codificação e reprodução de
relações sociais, uma mudança no modo de representação daquelas tende a
gerar, quase sempre, algum tipo de modificação nestas. “Esse princípio ajuda a
explicar o apoio que os mapas da Inglaterra renascentista deram ao
individualismo, ao nacionalismo e à democracia parlamentar [...].” E aqui o
tempo assume a qualidade de infinitude e o espaço, a organização, na
construção de suas paisagens rurais e urbanas, segundo princípios do cenário
teatral. Explica que a revolução renascentista dos conceitos de espaço e de
tempo assentou os alicerces conceituais, em muitos aspectos, para o
Iluminismo. Daí questões importantes como o necessário domínio da natureza
pelo homem, para garantir sua emancipação e individualidade, produziram uma
noção de espaço como “fato” da natureza, e cuja conquista e organização
racional seriam parte do projeto modernizador que seguiu rumo até o início do
século XX. Mapas e cronômetros tornam-se instrumentos essenciais no
processo de planejamento racional e institucionalização de sistemas racionais
de regulação e controle social, numa tentativa de organização factual dos
37
É o caso de Zaha Hadid, cuja produção será analisada mais adiante nesta pesquisa.
Iraquiana nascida em Bagdá, 1950, formou-se inicialmente em Matemática pela Universidade
Americana de Beirute e, em seguida, foi para Londres estudar arquitetura na Architectural
Association. Depois de graduar-se como arquiteta trabalhou com Rem Koolhaas no Office for
Metropolitan Architecture OMA. Desde 1979 estabeleceu-se definitivamente em Londres.
Tornou-se a primeira mulher a receber o Pritker Architecture Prize, no ano de 2004.
Denominada por muitos como um dos ícones da Arquitetura Deconstrutivista, seu trabalho
sofre influências das vanguardas do início do século XX, especialmente o Suprematismo e o
Construtivismo Russo. A expressão representacional em pinturas e desenhos exerce uma
importante função em seu processo de projeto em arquitetura.
85
fenômenos do espaço. “Era no âmbito de uma visão totalizante do globo que o
determinismo ambiental e uma certa concepção de “alteridade” poderiam ser
admitidos e até florescer” (HARVEY, 1992:227). Dessa possível alteridade, o
autor atenta para um problema que se tornará ponto de partida emblemático
para as relações humanas e para a construção da experiência da vida
cotidiana na cidade contemporânea, mas ali delineado: o fato de o pensamento
iluminista basear-se na percepção do “outro” como tendo, necessariamente,
um lugar específico numa ordem espacial concebida com qualidades
homogêneas e absolutas. Dito em outros termos, originava-se assim a
possibilidade de entendimento do homem-tipo moderno e a atitude que se
estende perigosamente até os dias de hoje, mesmo considerando os
movimentos de resistência que se formaram de criar espaços às expensas
da experiência do usuário, que tende a ser negligenciado.
Ao fim e ao cabo, ainda se sofre conseqüências do fenômeno de modelização
do homem e de seu corpo no processo de produção de obras de arquitetura, o
que as direciona para resultados pouco criativos, que impelem a uma
percepção e usufruição automatizada de seus espaços e à exclusão do corpo
como medida de sensibilidade para sua experiência. Esta é uma das razões
para que se afirme que o colapso de conceitos absolutos e homogêneos de
tempo e espaço, sob o peso da compressão do constructo que os relacionam,
limitou o pensamento e a ação do homem até a contemporaneidade, bem
como constitui sua possível chave de libertação: a desorientação possível a
partir de tal fragmentação de lógicas e sentidos espaço-temporais. Nesbitt
(2006) reconhece uma nova prática, por parte de alguns arquitetos
contemporâneos (especialmente os que tomam como modelo a psicanálise e o
desconstrucionismo), em torno de uma reavaliação dos moldes em que se
pode dar a experiência espacial, muitas delas refletindo sobre o papel do corpo
nesse processo caso de Anthony Vidler e Peter Eisenman. Partem de um
questionamento dos fundamentos arraigados na disciplina, da ordem
estabelecida, agindo nas margens para revelar e desmontar suas oposições e
seus pressupostos vulneráveis; tratam da manifestação da incerteza como
86
desorientação desejada para produzir uma abertura, uma liberdade nos modos
de criar a arquitetura e lidar com suas obras. Vidler (2006:617-622) propõe uma
teoria sobre o “estranhamente familiar”, remontando aos estudos de Freud
sobre o reprimido, evocando uma estratégia de inversão das normas estéticas
como armas formais para lidar com a alienação. Na busca pelos aspectos do
recalque está o reconhecimento da necessidade do retorno do corpo à
arquitetura, que reprimiu a consciência de sua presença e o levou a uma noção
de despedaçamento, de fragmentação. O autor fala sobre a perda do corpo
como fundamento de autoridade para a arquitetura e de um constante
distanciamento deste em relação ao edifício, desde o fim da tradição clássica.
Por isso a ferramenta crítica pautada no “estranhamento familiar”, na
supressão entre as fronteiras do real e do irreal e na provocação de
ambigüidades, colocaria em foco a corporificação antropomórfica — o
reconhecimento do próprio corpo e do corpo do outro. que se direcionar a
um corpo inteiro para lidar com toda a complexidade de sua inserção no
processo de experimentação do espaço arquitetônico. Nesse sentido, a
libertação do corpo de sua negação significaria também uma aproximação à
experiência estética de um espaço aberto e liberador.
Uma nova vivência é emergente e dependente de um reajuste no uso da
representação na arquitetura. As verificações críticas sobre o significado da
experiência da fotografia propostas por Fuão
38
e Virilio
39
podem ser estendidas
aos meios de representação e manipulação da experiência do espaço gerado
pelas tecnologias, especialmente as mais recentes. Reivindicando a mudança
do status quo, contrapondo-se ao uso tradicional da fotografia nesses termos,
seria preciso colocar em suspensão essa proliferação de imagens ou reinventá-
las, fragmentando-as e estabelecendo um novo sentido. Uma experiência
estética de fato, em torno da arquitetura e seus espaços, tende a se viabilizar a
partir da conscientização, por parte de seus produtores, de que o novo cenário
entremeado pelas próteses pode se dispor à criação e renovação. É de um
38
Fuão discute essa idéia em vários textos, dentre eles, Folhas da arquitetura (2001).
39
Especialmente em A máquina de visão (2002).
87
tempo de anestesiamento, entorpecimento e apatia que se parte, onde as
próprias relações espaciais na estrutura físico-urbana estão transformadas
pelos meios de comunicação de massa. Pode-se chegar a um tempo de
ativação perceptivo-sensória, de alta experimentação dos lugares, se o resgate
da imaginação e do envolvimento do usuário se incluir (ou se alterar) no
discurso arquitetônico atual — posto que a arquitetura não só comunica como é
um dos meios de comunicação, e hoje está relacionada com os meios e
extensões do homem. Revendo as projeções de McLuhan (2003), para quem
as tecnologias são extensões do sistema físico e nervoso, uma ampliação do
corpo que venha a criar novas relações entre si e o espaço deve ser
investigada. Este seria então o pilar para o resgate da arquitetura como prótese
do corpo.
Fuão (2004a) discorre sobre as possíveis lógicas em torno da noção de um
sentido para o espaço produzido pela arquitetura e, de início, destaca que é
comum o entendimento de que uma forma é pré-determinada por outra anterior
o que se poderia chamar de determinismo arquitetônico. Tal pensamento
inaugurou a trajetória de um sentido do espaço remetente a uma origem, uma
referência, divina ou humana e sob um processo evolutivo natural. Mas o
sentido do espaço existe a partir da experiência individual, o que coloca por
terra uma medida de significação através do interior da arquitetura, de suas
paredes ou de sua suposta autonomia: está dentro de quem o vivencia, nas
pessoas que nele se deslocam constantemente. Desse modo, ele explica que
não existe um espaço objetivo e autônomo do ser humano, mas diferentes
maneiras de perceber e compreender um espaço que é “bruto”, pois está à
espera da chegada de seu experimentador. Destaca que a fenomenologia trata
a questão do espaço a partir do eu, do corpo que o experimenta, em contramão
a um sentido de espaço cartesiano regulador, homogêneo e indiferenciado. O
que o leva a crer que ver o espaço arquitetônico como um estado de situação
em constante mudança, dependente da construção de significação pela
experiência corpórea de um contato entre corpo e mundo, eu e espaço
seja uma noção mais pertinente que a de um suposto determinismo histórico.
88
Se os espaços deixam de ser usados, vivenciados, voltam ao estado
“esvaziado” e de nada valeria a referência a um alhures sem que se
promova sentido, significação. “Mas seus múltiplos significados, seus sentidos,
nós transportamos” (FUÃO, 2004a:3). Por isso um sentido de espaço faz
sentido através do corpo: a experiência espacial se dá na relação entre corpo e
mundo. A questão do sentido do espaço passa então a girar em torno do
corpo-máquina, homem-ciborgue que carrega em si uma experiência espacial
sempre mutante, por vezes inoperante. E é na dicotomia entre sentido e não-
sentido que essa operação pode se tornar possível, ou, dito de outro modo,
reside na desorientação, no estabelecimento de um sentido não-único, a
experiência (lógica, sentido) do espaço na contemporaneidade
40
.
A desorientação é a perda do sentido, do significado [...]. É a
experiência na qual não sabemos mais exatamente o que está
diante de nós e o que não está. A desorientação devolve o
indivíduo ao espaço existencial, bruto, indiferenciado. É o
estado no ser que desconjuga a relação espaço-tempo,
jogando-o no abismo dos sentidos (FUÃO, 2004a:4).
Embora esse autor acione o termo “desorientação” menos no sentido de
provocar o aparecimento do imprevisível que em sua característica de
estranhamento que brota de coisas familiares, ambas as noções são
consideradas aqui como importantes para a lógica espacial condizente com o
cenário da arquitetura contemporânea. Atrelada a uma experiência estética do
choque ou a algo que tire apenas temporariamente do lugar comum uma
condição preestabelecida, a desorientação significa uma oposição ao caráter
orientador por que passa a prática arquitetônica ao longo da história e um
momento de perder-se para se encontrar em novas leituras. Causando um
lapso da razão e uma confusão nas sensibilidades, esta é uma possibilidade
quase naturalmente escolhida pela condição social da contemporaneidade: na
superexposição dos sentidos a imagens e informações, uma das únicas
40
Fuão apoia-se especialmente nas idéias desenvolvidas por Deleuze em A Lógica dos
Sentidos e por Freud nas idéias em torno da unheimlich, traduzida como inquietante
estranheza –, como pode ser verificado em O sentido do espaço em que sentido, em que
sentido?, nas três partes de seu texto (2004a, 2004b, 2004c).
89
vivências que cabe ao homem é extraviar-se no abismo sensual para se
reencontrar — ou recuperar a relação entre seu corpo e o mundo.
Reside então na desorientação uma das chaves de restabelecimento de uma
nova experiência espacial, ressignificação do corpo e reativação da
esteticidade que deve pressupor a obra de arquitetura. Porque a desorientação
ou a falta de sentido (FUÃO, 2004a) representam um não-sentido da realidade,
um questionamento dentro da lógica social que é introduzido na realidade para
afirmar a própria debilidade da mesma uma vez que, para dar sentido à
sociedade e à cidade foi necessário organizá-la de uma maneira “lógica” ou
orientada, como fez a arquitetura diante das técnicas da perspectiva, criando
cidades formalmente reguladas para torná-las facilmente representáveis.
Lembra que a palavra “desorientação” é geralmente associada a uma
indisposição espacial, uma desorganização, pois se acredita que orientar é
organizar e dar um “sentido” às coisas daí a importância da geometria
ocidental, que acabou privilegiando a visão e a regularidade dos espaços e a
rigidez de suas formas.
Choque ou simples despertar, Fuão (2004b: 2-3) pontua que a desorientação é
um deslize do espaço-tempo, posto que sentido do espaço e sentido do tempo
são noções articuladas. A desorientação do espaço traz o aniquilamento do
tempo, “tempo zero, onde tudo se move mas o tempo não passa. Onde o
próprio tempo se contradiz”, mas também traz uma outra compreensão do
mundo e a chance de reorientar-se pelo interior, pois se está fora de si, do
mundo organizado:
O não-sentido equivale ao esquecimento e tem seu lado
positivo e negativo. Faz parte de um mesmo fenômeno, a
busca da renovação do sentido. O esquecimento está
diretamente associado ao esgotamento mental, aos
traumatismos e à alienação. Apóia-se no esgotamento e nas
extensões humanas. O esquecimento é uma coisa
absolutamente humana e é visto por nós na maioria das vezes
como algo negativo. Talvez seja por isso que os computadores
têm memória, mas não esquecem. Curiosamente com a
delegação da memória ao computador, como prótese mesmo,
90
acabamos por dar-nos ao luxo e relaxamento de esquecermos
mais e mais e mais, porque, como disse McLuhan, no lugar do
corpo onde as próteses, as extensões atuam, acaba
provocando uma espécie de anestesia, uma atrofia da parte
metaforicamente amputada.
O autor em questão também pontua que existe um outro sentido não
diretamente vinculado ao espaço, mas associado à proliferação repetitiva das
coisas, à produção excessiva de objetos, às grandes megalópoles, onde tudo
parece igual e desperta no habitante a baunasia, a falta de sentido espacial,
das cidades e da própria existência. É da aceleração promovida pela
acumulação do capital na sociedade do espetáculo — a sociedade de consumo
que emergiu com a reprodução em série da Revolução Industrial que se
trata. É na negação do corpo pela arquitetura devido ao não-usufruto de sua
obra, à produção de uma não-experiência estética, que a sensibilidade espacial
se esconde. Para ele, a noção de prótese na atualidade refere-se àquilo que se
coloca no entremeio, como ponte, na reflexão do desejo de se completar no
outro, no faltante, e transbordar. A prótese seria, assim, o que permite o
transbordamento
41
.
Após a dialética entre a introspecção do corpo e as novas formas assumidas
pela vida pública (ora valorizada, ora adormecida), expressa na arquitetura sob
vários movimentos dentre eles o desenvolvimento de estruturas móveis,
células de morar e vivendas mínimas —, a revolução tecnológica encapsulou o
corpo e o atrelou à máquina. Outro corpo surgiu desse ambiente de rede, e
outra arquitetura também, em que a vivência real e a virtual de seus espaços
foi colocada em atrito. Num recorte dos anos 1970 para o presente, percebe-se
claramente a transformação do modo de apreensão da cidade. Se Kevin
Lynch
42
apontava a compreensão da forma de uma cidade, de sua imagem
pública, através da orientação e identificação do habitante por elementos
específicos que compunham o tecido urbano por ele divididos nas
categorias de percursos, margens, bairros, nós e referenciais —, Rem
41
Cf. FUÃO (2006a, 2006b) em As bordas do tempo e Viagem ao fim do mundo.
42
Ver o clássico A imagem da cidade. LYNCH, 1997.
91
Koolhaas
43
mostra que, na grande metrópole contemporânea, tal base de
percepção não é mais tão clara, tamanha a pressa e alienação com que se
circula pelo ambiente urbano. Através de uma análise-ficção da cidade de
Manhattan e do relato de suas experiências em torno do desenvolvimento das
cidades asiáticas, ele se aproxima da realidade atual: rápida, desconexa,
obsoleta, manipulada.
No “Manifesto retroativo do empreendimento arquitetônico de Manhattan”
(KOOLHAAS et al., 1995) promove uma crítica evidente ao Movimento
Moderno, um intervalo em que se encontram passado, presente e futuro e em
que um visionário entrevê o invisível, o que não tem contornos a cidade
contemporânea, “cidade genérica”
44
pensando o excesso e a presença que
43
Rem Koolhaas nasceu em 1944, em Rotterdam; mudou-se para Londres para estudar
arquitetura na Architectural Association; deste período datam dois projetos teóricos: The Berlin
wall as architecture (1970) e Exodus, or the voluntary prisoners of architecture (1972). Em 1972
obteve uma bolsa que o permitiu viajar aos Estados Unidos onde, fascinado pela cidade de
Nova York, começou a analisar o impacto da cultura metropolitana sobre a arquitetura,
publicando Delirious New York, a retroactive manifesto for Manhattan. A partir deste momento,
Koolhaas decidou passar da teoria à prática e voltou para a Europa fundando, em 1975, o OMA
Office for Metropolitan Architecture —, junto a Elia e Zoe Zenghelis e Madelon Vriesendorp;
seus objetivos eram a definição de novos tipos de relações, tanto teóricas como práticas, entre
a arquitetura e a situação cultural contemporânea.
44
Koolhaas cria o termo para identificar o conceito de cidade contemporânea que ele acredita
corresponder à realidade atual. Nas palavras do autor, alguns trechos que resumem suas
idéias: “A Cidade Genérica é a cidade liberada da capacidade de centro, do invólucro estreito
de identidade. A Cidade Genérica quebra este ciclo destrutivo de dependência: é nada mais
que uma reflexão da presente necessidade e da presente habilidade. É a cidade sem história.
É grande o suficiente para todo mundo. É fácil. Não precisa de manutenção. Se ficar muito
pequena, simplesmente se expande. Se ficar velha, simplesmente se auto-destrói e se renova.
É igualmente excitante — ou não-excitante — em todo lugar. É “superficial” — como um lote de
estúdio de Hollywood, pode produzir uma nova identidade toda manhã de segunda-feira. [...] A
Cidade Genérica é o que é deixado depois de grandes seções de vida urbana atravessadas
pelo ciberespaço. É um lugar de sensações fracas e distendidas, poucas e afastadas entre
emoções, discretas e misteriosas como um grande espaço iluminado por uma luminária de
cama. Comparada à cidade clássica, a Cidade Genérica é sedada, usualmente percebida
através de uma posição sedentária. Ao invés de concentração presença simultânea na
Cidade Genérica “momentos” individuais acontecem bem longe para criar um transe de quase
não noticiáveis experiências estéticas: as variações de cor na iluminação fluorescente de um
prédio de escritórios logo antes do pôr-do-sol, as sutilezas dos brancos levemente diferentes de
um sinal iluminado à noite. Como a comida japonesa, as sensações podem ser reconstituídas e
intensificadas na mente, ou nãoelas podem simplesmente ser ignoradas. (Há uma escolha).
Esta falta de urgência e insistência pervasivas age como uma droga potente; ela induz uma
alucinação do normal. [...] Num reverso drástico do que é supostamente a principal
característica da cidade “negócio” a sensação dominante da Cidade Genérica é uma
estranha clama: quanto mais calma ela é, mais ela se aproxima do estado puro. A Cidade
Genérica endereça as “maldades” que foram imputadas à cidade tradicional antes de nosso
amor por ela tornar-se incondicional. A serenidade da Cidade Genérica é atingida pela
92
excede a formalização (embora haja um projeto formalmente representado,
desenhado, em sua proposta). Nas palavras de Koolhaas:
A permanência até mesmo do mais frívolo item de arquitetura e
a instabilidade da metrópole são incompatíveis. Neste conflito a
metrópole é, por definição, o vencedor; em sua realidade
pervasiva a arquitetura é reduzida ao status de um joguete,
tolerada como decoração para as ilusões da história e da
memória. Em Manhattan este paradoxo é resolvido de um
modo brilhante: através do desenvolvimento de uma arquitetura
mutante que combina a aura da monumentalidade com a
performance da instabilidade. Seus interiores acomodam
composições de programa e atividade que mudam
constantemente e independentemente um do outro sem afetar
o que é chamado, com profundidade acidental, o envelope. O
talento de Manhattan é a simplicidade do seu divórcio entre
aparência e performance: isso mantém a ilusão da arquitetura
intacta, enquanto rende o todo corajosamente às necessidades
da metrópole. Esta arquitetura relaciona-se às forças do
Groszstadt como um surfista às ondas (KOOLHAAS, 1995: 22-
43).
Definindo Manhattan como uma empiria ou um laboratório mítico de invenções
e teste de um estilo de vida revolucionário, numa mescla de explosão
demográfica e invasão de novas tecnologias, desde 1850, um lugar da “cultura
da congestão”, desenvolve seu manifesto. Sua crítica parte de uma suposta
consistência e coerência dos episódios do urbanismo da cidade. Nesse
sentido, Delirious New York (FIG. 17) seria uma forma de desarmar as teorias,
táticas e dissimulações que permitiram os arquitetos de Nova York estabelecer
os desejos do inconsciente coletivo de Manhattan como realidades na grelha
urbana.
A estratégia do arquiteto definiu-se através do argumento de que a metrópole
precisa e merece sua própria arquitetura especializada, que possa justificar a
promessa original de uma condição metropolitana para então desenvolver as
tradições de uma Cultura da Congestão. Cria-se uma leitura ficcional que
interpreta tal condição através de uma série de projetos de arquitetura que
evacuação da esfera pública, como num treino de emergência de incêndio” (KOOLHAAS,
1995:1249-1251, tradução da autora).
93
proveriam um produto do modo de viver de Manhattan como uma doutrina
consciente e não mais restrita aos limites da ilha. Desde a Cidade do Globo
Cativo (FIG. 18), passando pelo desenho de uma Nova Ilha de Bem-estar até a
piscina flutuante (FIG. 19) em que arquitetos de Moscou decidem escapar rumo
à liberdade, e atravessam o Atlântico por 40 anos, a intenção é a de rever em
que bases estão sendo construídas as cidades. Segundo a análise de
Koolhaas, as edificações em Manhattan permitiram-se funcionar, a um
tempo, como arquitetura e máquinas super-eficientes, modernas e eternas, e
os projetos que ele desenvolve pretendem ser interpretação e modificação
alternativas às condições de geração da cidade. Toda uma Nova York
imaginária é criada e chama a atenção para o que tem sido a intervenção
urbana e a produção arquitetônica da era da modernidade em diante:
publicitária e falsamente imbuída de um sentido coletivo e de uma vivência
social harmoniosa. Evidentemente a ironia é uma das ferramentas para a
expressão dessas idéias, o que não suspende o caráter contundentemente
elucidativo de suas análises.
FIGURA 17 – Rem Koolhaas, Delirious New York
FONTE: KOOLHAAS, 1994, s/n
94
FIGURA 18 – Rem Koolhaas, Cidade do Globo Cativo
FONTE: KOOLHAAS, 1995, p. 295
FIGURA 19 – Rem Koolhaas, Nova Ilha de Bem-estar e piscina flutuante
FONTE: KOOLHAAS, 1995, p. 302 e 309
95
Em “Mutaciones” (KOOLHAAS et al., 2000) analisa as situações urbanas
asiáticas nos dias de hoje, por vezes comparando com as cidades européias e
norte-americanas, sempre revisitando certos dogmas e teorias da arquitetura e
do urbanismo e as mudanças que têm ocorrido nesse âmbito desde fins do
século XX. Mesmo considerando que a modernização atingiu diferentes
intensidades em diversas culturas, as mutações por que passaram e ainda
passam têm-na afetado e as suas representações. Localizando sua análise no
processo de desenvolvimento da Ásia, especialmente no Delta do Rio das
Pérolas, argumenta que a essência dos acontecimentos no local devem servir
para renovar a profissão do arquiteto e manter seu espírito crítico. Mostra como
a incrível aceleração de crescimento de ocupação territorial exige uma lógica
distinta
45
de produção de edificações e de intervenção nas áreas construídas. É
interessante notar que mesmo os edifícios que são desenhados em apenas
dois dias para começarem a ser construídos imediatamente (e com a
probabilidade quase certeira de ter todo o seu programa modificado ao longo
da construção), eles são interpretados como uma “ousada amálgama de arte e
arquitetura”, onde, apesar dos elementos repetitivos utilizados, as obras
mostram ambição e vontade de originalidade definidas (KOOLHAAS et al.,
2000:316). Essencialmente importa perceber como tais cidades asiáticas
refletem as contradições e a mutabilidade das metrópoles contemporâneas. O
autor revela que as novas obras combinam as sensações de beleza e patologia
com a intensidade com que se apresentam os edifícios futuros.
Mostrando o desenvolvimento de quatro cidades desse complexo — Shenzhen,
Hong Kong, Dongghuan e Zhuhai —, evidencia-se que somente na relação
entre elas é possível a sobrevivência do sistema urbano como um todo, o que
ele define no conceito de Cidade de Diferença Exacerbada. As cidades seriam
definidas por suas diferenças umas em relação às outras, porém de modo a
formar um único organismo urbano. Nesse sistema, a estratégia para manter a
45
Na verdade, em várias ocasiões Koolhaas prova que não tanta distinção entre os
fenômenos nas diferentes cidades do mundo, seria diferente somente o modo como se
apresentam e a consciência ou não do processo. É o que se vê, por exemplo, no caso das
mudanças de preços dos imóveis e da especulação imobiliária relativos à taxa de ocupação do
local. Cf. KOOLHAAS et al., 2000.
96
vitalidade é a renovação dessas diferenças e a constante adaptabilidade às
mudanças, o que define um modelo muito instável. Ora, mas não é a cidade
contemporânea marcada pela instabilidade? Não estaria esse conceito mais
aproximado das condições de desenvolvimento quase descontrolado das
metrópoles, das cidades de hoje?
97
2.4 Diálogos possíveis entre arquitetura, corpo e tecnologia na terceira
era da máquina — decalques contemporâneos
Traga-se a arquitetura para o olho do furacão. Lebbeus Woods
46
é um exemplo
de indagação sobre os moldes da representação e da participação do arquiteto
e do habitante da cidade (usuário de sua arquitetura). Sua obra, na maior parte
produção teórica e especulações projetuais não construídas, baseia-se nos
conceitos de “anarquitetura”, “heterarquia”, freespace” e “centricity”, e traz para
o campo da análise crítica muitas pistas sobre o valor da representação e da
imagem no cenário contemporâneo. Por meio de uma atitude experimental, de
formas violentas e estranhas, ele reivindica a constante renovação das formas
sociais e de comunicação. Em seus projetos, a arquitetura como ideologia e
como expressão formal é um instrumento do tato. Ao buscar os extremos da
plástica e a variação, estabelece um diálogo social, pessoal e político com a
tecnologia. Entende que a maneira de pensar a arquitetura e construir obras
estão em contínua mudança, e, nesse sentido, vai ao extremo ao incluir no rol
dos contextos a serem considerados cenários de guerra e destruição, fazendo
da arquitetura um ato político mas anti-ideológico. Um dos principais destaques
de suas idéias é a crença de que é preciso que o indivíduo tenha poder de
escolha daí sua definição de ‘heterarquia’: ao invés de promover uma
arquitetura que privilegie a hierarquia de espaços e públicos-alvos, reivindicá-la
igualmente para todos, visto que estão num mesmo nível e possuem
necessidades específicas. A junção de vários espaços diferentes e
heterárquicos substituem a idéia de diferenciação hierárquica. Todos os tipos
de habitante são possíveis clientes para a arquitetura, e também todo tema é
passível de intervenção por ela: cada indivíduo deve poder exercer sua própria
crítica e ter direito à arquitetura; um cenário de um bairro destruído pela guerra
deve ser seu assunto tanto quanto outros.
46
Nasceu em Lansing, Michigan, EUA; formou-se arquiteto na Escola de Arquitetura de Illinois.
Até 1976 viveu em Nova York, onde desenvolveu sua teoria da arquitetura, realizou projetos
experimentais e dedicou-se a ensiná-la. É diretor do Instituto de Investigação para Arquitetura
Experimental, uma organização sem fins lucrativos fundada em 1988 com Olive Brown,
dedicada ao desenvolvimento da arquitetura através da experimentação e investigação.
98
Seu trabalho propõe uma reavaliação da arquitetura como disciplina e profissão
baseada nos termos da anarquia, onde as regras e modelos dão lugar à livre
experimentação. Parte-se do pressuposto que vivências culturais mutantes
exigem espaços maleáveis e zonas livres freespaces e freezones onde
indivíduos conscientes de seu poder de escolha podem se manifestar. Esses
espaços devem ser construídos em meio à cidade existente, têm propósito e
significados por vezes desconhecidos e correspondem ao que Lebbeus chama
de “padrões inconsistentes”, que apresentam forma e substância
desconhecidas, acontecendo e se atualizando no tempo, como um evento
(ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992).
FIGURA 20 – Lebbeus Woods, Centricity, 1987 – o conceito de ‘centricity’ remete a uma interação entre
diferentes freezones que, unidas, formam freespaces. Cada freezone gera um anel de ação centrado em si
mesmo, que interage com outros anéis e centros, formando uma comunidade, uma cidade de centros ou
centricity.
FONTE: ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992, p. 24
99
FIGURA 21 – Lebbeus Woods, Centricity
FONTE: ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992, p. 26 e 28
100
FIGURA 22 Lebbeus Woods, Zagreb Free Zone, 1991 uma estrutura de freespace foi encomendada
pelo Museu de Artes e Ofícios de Zagreb, em 1991, e refletiu um contexto de guerra civil, violência e
sofrimento humano na Croácia; refere-se uma série de unidades de habitação móveis, apoiadas sobre
edifícios existentes, ocupando as ruas da cidade como máquinas de guerra.
FONTE: ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992, p. 114
101
FIGURA 23 – Lebbeus Woods, Zagreb Free Zone
FONTE: ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992, p. 115-116
102
FIGURA 24 – Lebbeus Woods, Aerial Paris, 1989 – ligado a proposições de movimento, animação e luta
contra a gravidade, como uma metáfora do esforço do ser humano que com ela deve lidar; expande-se a
fronteira para um território aéreo, onde ficam para trás ss idéias de segurança e do controle e abre-se
espaço pra a fluidez e o transitório.
FONTE: ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992, p. 69, 71 e 73
103
Não é preciso um espaço construído com formas mirabolantes, fantasiosas ou
fantasmáticas para que aconteça uma produção complexa de obras que trazem
consigo uma experiência de espaço diferenciada e calcada nos principais
pontos de interesse aqui levantados. O americano Steven Holl
47
, através de um
processo de criação pautado na visão fenomenológica de mundo, apresenta à
cidade obras como a Galeria Storefront e a Casa Y
48
. O projeto da Galeria
Storefront (FIG. 26-27) é um exemplo de intervenção em um edifício
existente, na confluência de três bairros bem diferentes de Nova York:
Chinatown, Little Italy e Soho. Dedicada a expor a obra de jovens arquitetos da
cidade, a galeria tem sua história marcada pela diversidade dos trabalhos
apresentados e por mostras que se caracterizavam por aproveitar o espaço
através de superposições de camadas de tintas, promovendo um caráter de
mutabilidade. O arquiteto reforça tal caráter produzindo um espaço de
mobilidade imagética e espacial, quase uma instalação de arte. Evita um
tratamento de permanência dos moldes da fachada e também um interior
estático. A estratégia utilizada foi a de perfurar a extensa fachada da rua
formando uma espécie de quebra-cabeça; foram cortados painéis num material
composto de concreto e fibras recicladas que, ao serem abertos, “desmontam”
a fachada e projetam o interior da galeria sobre a rua. Como resultado tem-se a
criação de uma idéia de fachada que não serve como uma simples divisão
entre interior e exterior, comportando-se como algo sem pré-definição e
dissolvendo os limites e possibilitando uma experiência diferenciada do espaço.
uma mutabilidade iminente nas partes que geram o todo, no objeto que se
decompõe em aberturas e fechamentos que ora são portas e janelas, ora
painéis, ora balcões. A obra depende da intervenção do usuário para tomar
47
Arquiteto americano nascido em Bremerton, Washington, em 1947; diplomou-se pela
Universidade de Washington em 1971. Realizou estudos de Arquitetura em Roma,1971, e
curso de pós- graduação em Londres, 1976, na Architectural Association. Estabeleceu a
Steven Holl Architects em Nova York, ainda em 1976. Participa de atividades acadêmicas,
sendo professor desde 1981. São especialmente destacáveis em seu processo de criação na
arquitetura a ligação com a Fenomenologia o que se reflete na busca pela essência das
percepções, sensações e materiais relativos à obra e o uso da aquarela como forma de
representação gráfica de seus projetos o que, segundo ele, promovem um estudo eficaz de
efeitos de luz e sombra.
48
Estas e outras obras de Steven Holl foram objeto de pesquisa de minha dissertação,
intitulada O design como reativador da experiência, no mestrado pela Escola de Arquitetura da
UFMG, defendido em 2002.
104
suas diferentes formas e imagens. O princípio de reabilitação de um espaço
empregado por Holl é uma maneira de revitalizar o espaço a partir das próprias
bases que formaram a história do lugar. Ainda assim, embora a intenção de
uso do edifício tenha permanecido a mesma, a via escolhida não foi a de
conservar a aparência do que estava edificado. Ao contrário, o arquiteto
modifica o modo de percepção do lugar e renova o uso do espaço,
privilegiando seu potencial de habitabilidade. E o faz através de uma fachada
que não lança mão da linguagem estilística existente, mas mantém a coerência
estética do contexto.
FIGURA 25 – Steven Holl, Galeria Storefront,
1992-1993, Nova York
FONTE: EL CROQUIS, 1996
105
FIGURA 26 – Steven Holl, Galeria Storefront
FONTE: EL CROQUIS, 1996
106
Para o projeto da Casa Y (FIG. 28-32), a inspiração do arquiteto veio de um
pedaço de pau aforquilhado encontrado no terreno, que se tornou o próprio
nome da obra. A partir da forma em y desse objeto ele desenvolve a geometria
da casa, criando um movimento de torção entre as zonas públicas e privadas,
alternando-as nas sobreposições das plantas do primeiro e segundo pavimento
como atividades diurnas e noturnas. Uma rampa central liga as disposições dos
ambientes aparentemente separados por funções mas que, na verdade, se
conjugam e se revelam de maneiras múltiplas, com angulações, vistas e
texturas que acionam a capacidade perceptiva dos usuários. Parte-se da
metáfora de objetos a partir de um pedaço de madeira bifurcado um divã,
uma mesa e chega-se a outro objeto metafórico: a casa. Identifica-se que o
que origina a concepção do edifício é também o que cria quaisquer objetos.
Holl constata a impossibilidade de dissociar a idéia de objeto da idéia de
espaço, pois as pessoas apropriam-se do mundo através dos objetos que as
relacionam, por sua vez, às conformações espaciais que as contêm e aos
objetos.
FIGURA 27 – Steven Holl, Casa Y, 1997 - croquis em aquarela, nascimento da idéia
FONTE: EL CROQUIS, 1999
107
FIGURA 28 – Steven Holl, Casa Y, croquis em aquarela, especulando o partido
que divide a casa em zonas diurna e noturna
FONTE: EL CROQUIS, 1999
108
FIGURA 29 – Steven Holl, Casa Y, fachadas compostas em madeira pintada e vidro, e pilares metálicos
FONTE: EL CROQUIS, 1999
109
FIGURA 30 – Steven Holl, Casa Y, foto do interior
FONTE: EL CROQUIS, 1999
110
FIGURA 31 – Steven Holl, Casa Y, interiores
FONTE: EL CROQUIS, 1999
111
A arquitetura promovida por Tadao Ando
49
mostra como é possível uma estreita
relação entre corpo e experiência da arquitetura sem a mediação direta da
tecnologia. O que a diferencia de muitas obras arquitetônicas produzidas a
partir do século XX diz respeito a uma sensibilidade atenta à transformação do
cenário da cidade contemporânea este, envolvido por um ritmo acelerado e
automatizado no modo de percepção do ambiente pelo homem,
freqüentemente nega o corpo como totalidade sensória em tal processo
perceptivo de formação do cotidiano. Daí a visão deste arquiteto japonês, que
entende a necessidade de produzir uma obra que faça com que seu habitante
sempre se volte ao próprio corpo como referência na usufruição de seu espaço
(DAL CO, 1996; SOUZA, 2001). A Casa Azuma (FIG. 33-38) é um emblema da
busca pessoal pelas origens da arquitetura japonesa e, ao mesmo tempo, da
reflexão sobre uma noção universal da disciplina. Usa o concreto em forma
bruta e cúbica em sua neutralidade e abstração — possibilitando a coexistência
dos ecos do passado e das reverberações da contemporaneidade no cultivo
de uma espécie de microcosmo único, diferenciado. Esta casa transcende as
imposições temporais para se fixar num tempo particular. O aspecto tátil
prevalece sobre o ótico em sua face externa, pois quase não nada para se
ver além de uma porta que separa o dentro e o fora, inserida num muro cego
de concreto como fachada única. Em sua mais completa materialidade e
elementaridade, ela não se entrega aos olhos, mas ao pensamento e aos
sentidos como totalidade: o olhar não é suficiente para a apreensão daquele
espaço, que se apresenta em tal crueza que faz seu usuário experimentar
muito mais que fruir. Azuma é composta inteiramente por materiais frios e
duros como o concreto das paredes, a ardósia do piso e o vidro das aberturas;
não nela nada que contraste com estes materiais, por isso a sensação de
frieza é generalizada. As formas são extremamente simples e rígidas, com as
exceções possíveis do movimento transversal da escada e da suspensão da
passarela, ficando a textura por conta exclusivamente de pequenas marcas dos
49
Arquiteto japonês de Osaka, foi o primeiro dos gêmeos a nascer, em 1941. Autodidata, abriu
seu escritório em 1969, aos 28 anos (a Tadao Andi Architect & Associates), depois de ter-se
dedicado ao boxe. Recebeu a Medalha Alvar Aalto da Associação de Arquitetos Finlandeses,
em 1985; a Medalha de Ouro da Academia Francesa de Arquitetura, em 1989; o Prêmio
Carlsberg de 1992; e o Prêmio Pritzker de Arquitetura em 1995.
112
parafusos das fôrmas de concreto, que se espalham ritmicamente por todas as
superfícies.
Tanta simplicidade revela-se numa configuração labiríntica à medida que a
interação entre o corpo e o objeto arquitetônico é chamada a acontecer.
Segundo o próprio Tadao Ando, esta obra é também um produto de
associações: da caixa como lugar da memória, do vazio repleto de
ressonâncias, da ausência de cor como suspeição da presença de um mundo
negado e receptáculo para outro com o qual se deseja conectar. Resta ao
usuário experimentá-la, acionando todos os sentidos de seu corpo. As
mudanças climáticas das quais o morador não pode escapar ao cruzar os
ambientes é um dos artifícios utilizados para evocar sensações e promover
uma constante conexão com a natureza, numa atitude típica do pensamento
oriental. A casa funciona como um pequeno mosteiro zen, respiro possível na
era dos sofrimentos gerados pela exacerbação dos sentidos presente na
experiência contemporânea da vida nas grandes cidades (FURUYAMA, 1994;
SOUZA, 2001).
Tadao Ando destaca a importância do corpo na fruição do espaço tornado lugar
através de um termo por ele criado: shintai (DAL CO, 1996)
50
. Traduzido como
corpo, o conceito abrange tanto a parte física como o espírito que a habita. Ele
explica que, ainda que a arquitetura seja a arte de articular o mundo por meio
da geometria, essa articulação não se através de espaços homogêneos,
mas concretos, relacionados com a totalidade da história, da cultura, do clima,
da topografia e da urbanidade. Esse espaço nasce do shintai, que é a
experiência do corpo no espaço. É o total envolvimento corporal na
experimentação espacial que lhe interessa, a única potencialidade capaz de
dar sentido ao mundo por ser o veículo pelo qual o homem vivencia o mundo.
Em contrapartida, o mundo encontra no corpo humano um receptáculo para
ressonar seus fenômenos, e é neste que ele se organiza e encontra apoio,
condição fundamental na construção de seu sentido. Em sua subjetividade, o
50
Cf. também FRAMPTON, 2002.
113
corpo humano é o lugar da diversidade e do estranhamento, tanto por sua
qualidade sensível quanto pela sua capacidade de deslocamento, de carregar
consigo sua própria bagagem de referências e de inquietações. Nesse sentido
o labirinto surge como a mais perfeita configuração possível capaz de
potencializar o corpo humano como corpo-em-resposta. Essa caixa labiríntica
põe o corpo humano em estado de alerta total, solicitando-lhe o despertar dos
sentidos entorpecidos, enquanto a ultra-solicitação da visão sofre uma redução,
a fim de permitir o nivelamento dos potenciais sensoriais.
FIGURA 32 – Tadao Ando, Casa Azuma, 1975-1976 – fachada com porta de acesso
FONTE: FURUYAMA, 1994, p. 37
114
FIGURA 33 – Tadao Ando, Casa Azuma, localização no terreno e axonométrica
FONTE: FURUYAMA, 1994, p. 36
115
FIGURA 34 – Tadao Ando, Casa Azuma, plantas e corte
FONTE: FURUYAMA, 1994, p. 36
FIGURA 35 – Tadao Ando, Casa Azuma, interior, piso superior
FONTE: FURUYAMA, 1994, p. 35
116
FIGURA 36 – Tadao Ando, Casa Azuma, vistas da cobertura, da escada, da passarela e da entrada
FONTE: EL CROQUIS, 1995
117
FIGURA 37 – Tadao Ando, Casa Azuma, Foto do pátio interno
FONTE: EL CROQUIS, 1995
Tanto em propostas teóricas como experimentais, Elizabeth Diller e Ricardo
Scofidio
51
promovem e propiciam a experiência de espaço da arquitetura
considerando a influência de um novo corpo tecnológico como a própria
característica de mutabilidade contida na produção e recepção arquitetônicas.
Daí que se fale sobre o corpo-máquina e o corpo mutante da arquitetura. Seu
escritório envolve-se na produção de trabalhos experimentais sob a forma de
instalações temporárias e permanentes para lugares específicos, teatro
multimídia, mídia eletrônica e impressão, bem como de projetos de arquitetura
de âmbito geral. Um dos inúmeros fatores que os levam a um lugar de
destaque é a elaboração de uma produção teórica instigante. Contudo, o que
poderia ser apenas uma ótima especulação sobre os caminhos arquitetônicos e
51
Elizabeth Diller nasceu em Lodz, Polônia, em 1954; Ricardo Scofidio nasceu em Nova York
em 1935. Formaram a Diller + Sofidio em 1979, um escritório que cria uma nova forma de
praticar arquitetura que une design, performance e mídia eletrônica à cultura e teoria crítica da
arquitetura.
118
uma crítica acirrada aos seus meios de produção e recepção, onde reina a
tecnologia, também se mostra em projetos de arquitetura. Sua Slow House
(FIG. 39-42), casa de praia em North Haven Point (Long Island, Nova York),
encomenda de um investidor de arte japonês, foi iniciada mas não terminada.
O projeto foi realizado entre 1988 e 1990, exibido na exposição Unprivate
House (MoMa), e a construção levada até 1991. A sugestão do cliente de que a
vista fosse bem explorada instigou o casal de arquitetos a explorar o conceito
de “vista” para a arquitetura. A associação entre o pára-brisa do automóvel e a
janela, interpostos pela tela de vídeo, é a base do projeto. Embora a casa
inclua a satisfação de um programa básico de necessidades como cozinha e
quartos de hóspedes, a essência de seu desenvolvimento diz respeito à
transposição gradual de várias vistas-obstáculos-desvelamentos. Acessa-se a
residência por uma porta localizada numa fachada de pequena dimensão e
estende-se o percurso em forma de banana por toda ela, com
obstaculizações como um monitor de tv que mostra vistas do oceano. Teyssot
(1994) esclarece: a velocidade é congelada, decomposta e recomposta na
sucessão de imagens evocadas pelos múltiplos cortes no desenho da seção,
levadas em direção à janela (a vista) que também fica sujeita à decomposição
e recomposição. Propicia-se tanto um momento de questionamento do papel
da realidade diante da virtualidade como o aumento das possibilidades de
experimentação: cinestesia, contraste entre vertigens da aceleração e da
desaceleração.
A Slow House é uma casa de férias e explora as liberdades de ser um lar
substituto, e é regulada conceitualmente por três aparelhos ópticos de “fuga” da
e para a cultura: o pára-brisas fuga reversível para o espaço veicular entre a
cidade e a casa de férias; a tela da televisão fuga solitária para o espaço
midiático; e a janela fuga para um espaço cênico medido pelo valor de
mercado (DILLER & SCOFIDIO, 1994). A fachada frontal resume-se à porta de
entrada, com um metro e vinte de largura e seis metros de altura;
imediatamente após adentrar-se, uma aresta-faca vertical divide a passagem
recuada em duas metades: uma que se desvia para a direita e sobe para a
119
cozinha, sala de jantar e de estar, e outra que permanece no mesmo nível e se
desvia para a esquerda, atendendo os quartos e banheiros. Ambas as opções
de bifurcação levam à janela de onde se vê a beira do mar.
A casa deforma o modelo da perspectiva clássica. Ao contrário, a
passagem dividida é decididamente anti-perspectívica, sem eixos de
acesso visual diretos, mas apenas tangentes ópticas em constante
mutação, estilhaçando-se a partir da curva. À medida que o eixo de
visão é curvado, o sujeito unificado, anteriormente centrado e em
controle de seu mundo, é afastado do centro, do equilíbrio. A casa é um
mecanismo de provocação, incitando um desejo óptico e o alimentando
lentamente. A única vista direta está no final da parede de mais de trinta
metros de comprimento, através da janela de imagem, em direção ao
horizonte. (DILLER & SCOFIDIO, 1994:225, tradução da autora)
Uma alta coluna, situada ao lado oposto da chaminé, sustenta uma câmera de
vídeo em seu topo, quinze metros acima do solo, que se direciona para a vista
da água e transmite sua imagem ao vivo para o monitor de TV. Antecipando a
vista “real”, a câmera pode ainda ser programada por controle remoto para
visão panorâmica ou focada e para gravação, possibilitando a geração de uma
imagem reprisável a tecnologia estendendo a noção de tempo e carregando
consigo o oceano. A “vista” é, dessa forma, enxertada em dois modos de
representação, e o olhar vago contido nos momentos de lazer é aprisionado
sobre a superfície da janela, podendo o observador escolher construir a
imagem direcionando-se à abertura que se abre ao mar ou recebê-la
midiaticamente, mediada pela janela da câmera de vídeo.
120
FIGURA 38 – Elizabeth Diller & Ricardo Scofidio, Slow House,
1988-1991 – maquetes
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p. 227 e 233
121
FIGURA 39 – Diller & Scofidio, Slow House - desenhos ressaltando a representação e a explicação do
projeto, onde aparece o contexto da sociedade mediada por aparatos tecnológicos
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p. 230-231.
FIGURA 40 – Diller & Scofidio, Slow House, foto da construção e desenho em planta explodida
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p. 229 e 232
122
FIGURA 41 – D & S, Slow House, representações da
idéia de mediação da vista pelo monitor de tv, antes mesmo
que a janela localizada no extremo da planta seja alcançada
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p. 239, 242-243
123
Blur (mancha, sombra, nuvem), estrutura desenhada para a Suiss National
Expo 2002 (Yverdon-les-Bains, Lake Neuchatel), tratava-se de uma arquitetura
volátil, arquitetura-nuvem suspensa sobre o oceano, acessada por uma longa
passarela-deck. Uma plataforma suspensa envolta numa perpétua nuvem
homem-neblina pousava sobre o oceano, numa estrutura de metal de
60x100x20m que “espreiava” incontáveis gotículas de água doce através de
31.400 jatos. A alta pressão da tecnologia dos sprays garantia que a escultura
flutuante fosse visível em qualquer clima. Os visitantes caminhavam pela longa
rampa para atingir a massa de neblina onde o único som ouvido era o puro
barulho pulsante dos esguichos de água uma vez dentro da nuvem, as
referências visuais e acústicas eram anuladas. A Blur Building (FIG. 43-44)
expandia e produzia longos traços de neblina com ventos fortes, ou movia-se
para cima ou para baixo dependendo da temperatura do ar. Essa instalação
evidencia uma preocupação da dupla que tem mais ligação com a investigação
da natureza do espaço que com a sua materialidade, mostrando ao espectador
como a arquitetura pode interferir nas relações com o corpo e como a
experiência espacial pode se dar.
124
FIGURA 42 – Diller & Scofidio, Blur Building, 2002
FONTE: www.dillerscofidio.com/blur.html
125
FIGURA 43 – Diller & Scofidio, Blur Building
FONTE: www.designboom.com/eng/funclub/dillerscofidio.html
126
3 PRÓTESES, EM QUE CORPO?
Não é o olho que vê. Não é a alma. É o corpo como totalidade
aberta.
52
A aparição do corpo na história o coloca como rastro, uma
marca de passagem, uma mancha, um resquício. Indelével,
todavia, sua marca pode não ser vista: o corpo torna-se
dependente do olhar e da linguagem. Constituído no olhar, o
corpo aparece como imagem (TIBURI, 2004:75).
3.1 Investigações sobre a origem do processo de negação do corpo e
sua influência maquínica
É consenso que a experiência do olhar constitui o universo mais vulnerável às
modificações que ocorrem no processo de percepção do mundo na
contemporaneidade. Se não o mais vulnerável, o mais palpável. É na relação
do homem com a imagem que reside talvez a metáfora mais consistente do
aprisionamento dos sentidos dentro de um corpo anestesiado. Olhar é ver com
todo o corpo, e é nele o corpo como totalidade que se deve deter para
continuar investigando a respeito da sensibilidade que se pode experimentar.
Mas que corpo é esse que se relaciona com o mundo hoje? Que corpo era que
não é mais? Trata-se agora de um corpo-máquina, em que sentidos? Qual é a
forma do corpo?
Novaes (2003a:10) eficazmente coloca que o corpo humano só é corpo quando
traz em si o inacabado, quando é promessa permanente de autocriação. Mas
será esse corpo capaz de reinventar-se em movimentos, desejos e interações
à medida que se confunde com suas próteses? “Pensar o homem como
máquina ou, no limite, sua substituição por ‘máquinas inteligentes’ é o
mesmo que ver sem perceber”, responde o autor, pois a máquina funciona e
o homem vive. Mas tempos não é somente esta a questão. É preciso olhar
para o corpo e então acrescentar-lhe próteses.
52
Merleau-Ponty citado por Novaes (2003a).
127
Alguns pontos sobre a evolução do corpo na história devem ser destacados,
para que seja possível estender a discussão para a experiência do corpo nos
dias atuais
53
. Muitas rotas escolhidas acabarão por mostrar desde quando e
por que a idéia de máquina junta-se à noção de corpo. Se o período clássico
baseava-se na dualidade alma-corpo, ou espírito-sensibilidade, colocando o
acento no primeiro pólo, a ilustração o deslocou para o segundo (ROUANET,
2003). A ênfase no poder humano de influenciar a construção de seus corpos,
tanto intelectual como físico, em detrimento de um poder divino, não mais
mudou. Um dos meios de maior eficácia para entender a noção de corpo
vigente a partir do século XVII é através dos diferentes modos com que ele era
representado, senão pelos conceitos e visão de mundo que o simbolismo
esconde, porque reside na representação um paradigma a ser discutido.
começa a se desvelar uma pista sobre a relação entre corpo e máquina. Para
tanto a contribuição de Brandão (2003) é precisa ao explicar o emblema do
corpo na transição da Idade Média para o Renascimento. Segundo ele, as
diferentes maneiras com que Alberti, Leonardo, Michelangelo e Donatello
54
representavam o corpo humano revelavam os modos e conotações pelos quais
o homem viu a si e ao mundo que o cercava, bem como serviram de alicerce
para a noção de corpo para os séculos subseqüentes. Brandão esclarece que
a representação do corpo na Idade Média era marcada pela adoção prévia de
elementos esquemáticos e abstratos para se constituir a figura, e era a
acomodação dentro das proporções figurativas e simbólicas e não a realidade
o objetivo da representação. O corpo servia como índice da imutável e
universal ordem celeste, e não havia propriamente a representação do corpo
individual e humano nem a expressão da individualidade do artista, cientista ou
53
Não no intuito de cobrir toda a produção realizada nem de realizar uma pesquisa
exclusivamente histórica, mas de recuperar algumas questões e autores de modo a balizar o
presente estudo, visando destacar pontos de vista que sirvam como gancho crítico para uma
discussão atual dos temas “corpo” e “experiência”.
54
Artistas italianos emblemáticos do Quattrocento e do Cinquecento. Michelangelo Buonarroti
(1475-1564), escultor, pintor, arquiteto, desenhista e poeta, foi um dos grandes representantes
das artes plásticas do Renascimento Italiano; Leonardo da Vinci (1452-1515), um dos mais
importantes pintores renascentistas, possuía formação extensa em várias áreas do
conhecimento: era arquiteto, escultor, cientista, escritor, anatomista, matemático, engenheiro,
naturalista, músico, filósofo; Leon Battista Alberti (1404-1472), um dos mais destacados
arquitetos de sua época, era também pintor, escultor e escritor; Donato di Niccolo, o Donatello
(1386-1466), foi um dos maiores escultores europeus do século XV.
128
filósofo em suas obras. Enquanto o corpo medieval era habitado por uma alma
divina, o corpo renascentista a substituiu pela alma do éthos, da natura e do
páthos (BRANDÃO, 2003).
Esse mesmo autor destaca uma passagem na obra de Michelangelo que
identifica uma transformação significativa na visão sobre o corpo e sua
representação. É na escultura Pietà Rondanini (FIG. 45) que o espírito se
liberta do corpo e some o heróico, grandioso e monumental da representação
do corpo humano, a matéria dissolvendo-se até o recolhimento da alma no
divino. Este é um marco da própria passagem do espírito do humanismo e
chegada do maneirismo, do artista moderno e do exame do corpo sem alma,
do corpo-máquina. Mudanças de ordem teórica motivaram as transformações
artísticas e a prática científica, de modo que a pintura e a escultura do
Renascimento as refletissem e mostrassem o corpo a partir de novas visões do
homem sobre si mesmo, sobre a natureza que o cercava e sobre o absoluto.
Hoje se percebe que a elaboração do corpo pela arte, correlata à imagem
moderna do corpo para a medicina, significou um salto em direção à idéia do
corpo em construção. À medida que a alma liberta-se, que o corpo
dessacraliza-se, interessa o funcionamento, a compreensão do corpo-artefato
de Vesálio
55
(FIG. 45).
FIGURA 44 – Michelangelo, Pietà Rondanini, 1564; André Vesálio, Sétima Gravura dos Músculos
FONTE: BRANDÃO, 2003, anexo de fotos s/n
55
Andrea Vesálio, anatomista que revolucionou o conhecimento da medicina no século XVI,
desbravando e descrevendo com minúcia a máquina de carne e músculos que é o corpo.
129
que se debruçar mais sobre o que Brandão chama de cisão para o corpo
moderno que é resíduo constituído ao se subtrair o éthos e o páthos do corpo
complexo e relacional gerado pelos renascentistas. Paralela às mudanças na
elaboração do corpo pela arte estava a imagem moderna do corpo para a
medicina, e o fato de o Renascimento ter inaugurado uma visão de corpo,
tempo, espaço e natureza dessacralizados mudou a perspectiva do corpo na
área médica. Tentando não dissertar sobre o corpo como observá-lo para
dissecá-lo, a nova prática contaria com as ilustrações que permitiriam à
medicina desligar-se do corpo real para refletir sobre ele à distância. “A
representação do corpo serve, a um tempo, para dessacralizá-lo e para
aumentar nossas possibilidades de compreendê-lo e operá-lo, como constructo
intelectual, tanto na arte como na cirurgia” (BRANDÃO, 2003:292).
Uma das grandes questões que daí surgem para o entendimento do corpo hoje
é a preparação de uma visão e compreensão desse atrelada a processos
mecânicos, físicos e químicos objetivos, sua transformação em artefato, e a
partir de então a extensão para o mesmo como máquina — ou como atrelado a
ela. Embora para Alberti os corpos e o funcionamento dos organismos e da
natureza fossem admirados por seu caráter mecânico na medida em que eram
regidos por uma economia funcional, destaca-se a diferença de seus
pensamentos para os de Descartes. No pensamento albertiano, o mecanicismo
que se aplica é metafórico, e os instrumentos são como extensão das
capacidades do organismo humano de pôr-se em relação com o mundo e
utilizá-lo. Em Descartes, a máquina se constrói não metaforicamente, mas
como dedução e aplicação de princípios e leis mecânicos fora da história e das
necessidades humanas
56
.
56
“Para Alberti a máquina é produto da história humana e metáfora que multiplica as
possibilidades de todo o nosso ser. Para Descartes a máquina, o mundo e o corpo são aquilo
que se subtrai ao nosso ser e não se relaciona com ele, opondo-se à essência do cogito. O
corpo cartesiano é uma máquina sem alma, incapaz de servir, nem mesmo como metáfora,
para a compreensão de nossa constituição. [...] Alberti humaniza a máquina e a coloca em
função dos fins humanos. Descartes, inversamente, mecaniza o homem e o mundo”
(BRANDÃO, 2003:279).
130
Tiburi (2004:50-51) destaca que a separação entre alma e corpo sustenta um
paradoxo histórico que acompanha a sociedade desde a passagem da Idade
Média para o Renascimento, pois, se por um lado estão unidos, por outro estão
separados na vida eterna, embora a promessa de redenção final do
cristianismo seja uma promessa de ressurreição da carne.
No período medieval o corpo ainda é morte, mas como a nova
modalidade marcada na rejeição do prazer desenvolvida num
quadro ideológico em que o domínio do corpo é domínio do
sujeito [...]. O aparecimento do dualismo cartesiano e todo o
processo de aceitação do heliocentrismo na Renascença
acabam por dar sustentação a um lugar desencantado para o
corpo. Em Descartes, num primeiro momento, ela não será
muito mais do que um cadáver, uma sobra de alma. Numa
sucessão crescente de graus ele se configura como mera res
extensa, como objeto de análise científica até chegar a ser
máquina, a negação do organismo. Como conjunto de
engrenagens, o corpo pode ser analisado matemática e
geometricamente, pode ser dissecado e repartido, pesado e
medido.
Para ela, o sujeito de fato é o corpo gestado na modernidade, numa aparição
marcada definitivamente por sua ausência, onde o sujeito existe não apenas
como construído, mas como algo negativo, existindo pelo esquecimento, pelo
recalque ou negação da realidade insuportável do corpo. O corpo é visto como
algo mudo, como coisa e como tal indesejável pelo desconhecido que traz à
presença ou como destino inescapável. A liberdade estaria atrelada ao domínio
sobre as demandas e os limites impostos pelo corpo e, por isso, será sua
negação.
57
Daí o argumento de Tiburi de que o homem inventou a analogia
com a máquina para permitir ao espírito conviver com o corpo da
representação” e efetivar o “insaciável e moderno afã de domínio e
artificialização”. Começa-se a forjar com Vesálio o projeto de um corpo biônico,
em que ele é transfigurado em linguagem, desenho e representação e a
analogia com a máquina ajuda o indivíduo a representar o novo corpo
destituído de identidade própria
58
. Pode-se identificar um grande paradoxo a
57
Ver TIBURI, 2004:51.
58
Ver BRANDÃO, 2003:291-294.
131
partir da visão do corpo sob as premissas destacadas. O homem tem a chance
de, em essência, tornar-se senhor do seu destino; contudo, não usa seu poder
para impor sua identidade ou um caráter particular. Ao passo que seu corpo é
mecanizado, o que se abre é o campo para o corpo banalizado e pronto para
receber a apatia de um tempo de acelerações, serialidade, excesso de
informações e colapso dos sentidos.
O que resta do corpo é o resíduo sobre o qual a ciência
moderna se erguerá: um corpo sem alma e reduzido à mera
facticidade. Esse corpo se expressa tanto na res extensa de
Descartes como na representação que lhe o médico
holandês nas suas lições em Pádua e nas figuras de seus
livros (BRANDÃO, 2003:291).
A discussão sobre o corpo transformado pela idéia de máquina perpassa várias
teorias e simbolismos desde então e por diversos fios condutores. As
influências da artificialização produzem vertentes por vezes opostas quanto às
conseqüências geradas pela constituição de um homem-máquina. Rouanet
(2003:40) relembra La Mettrie
59
e seu homem-máquina para evocar a origem
do “materialismo biologizante que ocupa o centro do debate contemporâneo”.
Está na ordem do dia das discussões sobre diferentes correntes e idéias que
absolvem ou condenam, acoplam ou separam a máquina, as próteses e as
tecnologias do corpo humano. É fundamental entender a razão de Rouanet em
recuperar a linha de pensamento de La Mettrie, independentemente do teor
libertino das idéias deste e das muitas ressalvas que se pode considerar: a
corrente oposta que produziu em relação a outros nomes
60
quanto às possíveis
influências na formação do homem, e que serve à pauta de reflexões atuais.
Enquanto uma linhagem que diz respeito à determinação do homem pelo
meio, pela legislação e pela educação, outra de que comunga La Mettrie
59
La Mettrie nasceu em 1709 na Bretanha. Estudou filosofia, ciências naturais e medicina em
Paris, a partir de 1725. Dentre muitas obras publicou, em 1748, a mais famosa: O Homem-
máquina, onde radicalizava Descartes, para quem os animais eram como máquinas, por não
terem alma. Ele então aproxima o homem do animal e por conseqüência da máquina,
enxergando-o como conjunto de engrenagens puramente materiais, sem nenhuma substância
espiritual.
60
Refere-se a uma corrente de pensadores como Diderot, Helvétius, Holbach e, mais à frente,
Bentham e Stuart Mill, dentre outros. Ver ROUANET, 2003:40.
132
que acredita no determinismo do organismo como fator definidor do homem.
Num tempo em que é mister compreender como funciona o corpo atrofiado por
hipertrofias, faz sentido voltar a discutir em que ponto se encontraria a mescla
desses dois fatores determinantes (o meio social e o organismo), como retoma
o autor.
Outros termos da relação entre corpo e máquina são evidenciados por Foucault
(1983), essa remetendo à idéia de disciplina que se estabeleceu na segunda
metade do século XVIII. A figura do soldado é uma ilustração desse modo
disciplinar e controlador que o corpo adquire, podendo ser fabricado, corrigido,
calculado, automatizado. Ele também relembra La Mettrie e seu Homem-
máquina que, segundo sua leitura, foi escrito simultaneamente em dois
registros: no átomo-metafísico e no técnico político. Seria, a um tempo, uma
redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, tendo como
entrecruzamento a noção de “docilidade”, que une os corpos analisável e
manipulável. A noção de disciplina remete aos métodos que permitem o
controle minucioso das operações do corpo, realizando a constante sujeição de
suas forças, impondo-lhes uma relação de docilidade-utilidade de onde
surge a noção de corpo dócil.
O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o
desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também
igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como
se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para
que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as
técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina
fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”
(FOUCAULT, 1983:127)
Uma das repercussões passíveis de análise é a de que encarar o corpo como
uma máquina que pode ser produzida em laboratório tende a tirar a
responsabilidade desse homem de atuar. Afinal de contas, “O sr. Máquina foi
um pobre-diabo, bastante doido, mas afinal era uma máquina, e uma máquina
não faz o que quer, mas o que tem que fazer” (ROUANET, 2003:43). Se o
homem é uma máquina programada pela natureza para o exercício da
133
liberdade, ele pode justificar porque cede ao prazer ou ao desejo. É fácil
enxergar como essa visão, independente de se constatar ser possível
desplugar corpo e máquina, acomoda-se numa sociedade apática que não
domina, como crê, nem o prazer nem o desejo. Se à época das idéias de La
Mettrie essas articulações significavam resistência à opressão do meio social,
de instituições ou regras “superiores”, hoje passariam como uma boa desculpa
para não refletir sobre as ações do homem na formação de seu próprio
cotidiano. Mas mesmo a dimensão do prazer deve vir à tona em outros moldes
de entendimento. Que tipo de prazer experimenta o corpo hoje? O que o
homem deseja?
Conrado Ramos
61
ressalta a intensa correlação entre prazer e mundo
administrado, o mundo da “era do capital”, no que tange à negação do corpo.
Na verdade, localiza-se na imposição do gozo e na falta de autonomia
presentes na sociedade de consumo a realidade de um corpo que não
experimenta. A utilização das paixões sob a forma de gozo para servir à lógica
da repetição da sociedade administrada produz uma espécie de ausência de
felicidade, ou presença de uma “felicidade na apatia”
62
. Ao definir uma das
questões centrais postas pelo autor, José Leon Crochík
63
diz: “A vida se torna
regulamentada, meio para a reprodução da dominação social. A satisfação as
associa à repetição, ao êxito da manutenção do sempre igual. A sensibilidade
se esvai no corpo endurecido.” Considerando o gozo como um fenômeno
sócio-histórico cujo sentido é necessário conhecimento para tentativas de
transformação social e emancipação do indivíduo, Ramos (2004) explica que o
indivíduo burguês e a sociedade capitalista a princípio precisaram excluir o
gozo e as paixões, e passaram a criar para eles espaços e a dominá-los a seu
serviço. Por tais relações, sustenta a retomada dos pontos de tensão entre
61
RAMOS (2004). No livro em questão, ele traça paralelos entre a escola de Frankfurt
especialmente em Adorno e a psicanálise em Freud e Lacan para teorizar a respeito da
desumanização dos homens. Discutindo a negação do corpo no mundo administrado, através
do conceito de gozo e suas implicações, o autor mostra que os instrumentos de controle desse
corpo refletem um homem que sacrifica a paixão e mergulha na apatia.
62
Ver RAMOS, 2004:18.
63
Ver o prefácio de RAMOS (2004) por Crochík, p.12.
134
indivíduo e sociedade nelas presentes: o preço é a dominação social do corpo,
na qual se originam o sofrimento físico e psíquico, dominação essa que,
juntamente ao próprio corpo, é negada. Aí estaria a essência do gozo, baseada
na satisfação obtida com a superação do corpo, com a transcendência em
relação ao sentimento de bem-estar e a obtenção do prazer vinculado ao
sacrifício. Entra em cena a questão da fetichização do meio na sociedade da
indústria. Quando os objetivos perdem o caráter da necessidade e objetividade
depois da formalização da razão, a magia transfere-se para o mero fazer, para
o meio (a indústria) que absorve o prazer. É preciso destacar os problemas
decorrentes do “fazer por fazer” ou “fazer cego” aqui levantados, posto que é
desse anestesiamento social que se parte para a anestesia do corpo. No
momento em que essa articulação alcança o domínio das dimensões do
privado na sociedade administrada, esta passa a fazer uso deste gozo, que cai
sob o domínio das forças sociais e se sutiliza nas vias do consumo. “Gozo” e
“controle social” opõem-se cada vez menos e o primeiro não atrapalha os
objetivos do segundo. O consumo passa ser uma “condição adequada” ao
gozo, de modo que não seria mais possível o gozo fora do consumo, que se
torna um princípio que transcende os limites das trocas comerciais e se
estende às relações amorosas, às opções ideológicas e políticas, às modas
identitárias e culturais. Seu caráter compulsivo consegue ligá-lo ao psiquismo
como excitação prazerosa, mas a compulsão trai a pulsão, princípio do prazer.
E ainda que a compulsão gere prazer, ela também significa tentativa de
elaboração de perda, o que, no consumismo, reflete-se na perda do objeto e na
tentativa de recuperação pela repetição do gesto.
64
É o próprio corpo que se
perde. É a relação do mesmo com o mundo a experiência espacial, que é a
própria experiência do corpo que se deforma. Esse é o lugar da prototípica
experiência que o sujeito faz de si (TIBURI, 2004), e do espaço. O corpo
deforma-se.
A repressão do desejo como conseqüência desse fazer alienado é ponto-chave
e um enorme problema a ser pensado.
64
Ver RAMOS, 2004:37, 53-54.
135
É desta forma que Horkheimer e Adorno (1991) analisam a
troca, tal como é hoje compreendida economicamente, como a
secularização dos rituais de sacrifícios a divindades. É desta
forma que devemos compreender o sentido da venda da força
de trabalho, do trabalho alienado e da exploração da mais-
valia, ou seja, trata-se muito mais de um sacrifício para a
autoconservação uma vez que visa a sobrevivência e a
satisfação das necessidades do que de uma troca real ou
idealmente justa. No entanto, saber disso não basta para
escapar de tal sina. O indivíduo deve, para sobreviver,
renunciar a si próprio, sacrificar-se e, por que não, internalizar
e transformar este sacrifício e esta renúncia numa forma
absurda mas a única possível nas atuais condições de
satisfação (RAMOS, 2004:41).
Retomando Rouanet (2003), ele lembra que em La Mettrie o efeito positivo
de valorização do corpo com seu determinismo organicista, mas também
sua profanação, à medida que deixou de ser visto como sacrário da alma, e a
conseqüente abertura para sua banalização, instrumentalização e
mercantilização. É a depreciação do corpo, que passa a valer apenas como
valor de troca. É agora desse corpo endurecido, dominado, dessacralizado que
se fala.
Maia (2003:78) baseia-se na genealogia do poder de Michel Foucault para
esclarecer vários pontos sobre a ligação entre corpo e tecnologia e os aspectos
desumanizadores que daí decorrem. As duas dimensões do biopoder
identificado por Foucault incluiriam, “por um lado, a administração
parcelarizada dos corpos, revelada por uma anatomia política em que o corpo
humano é tratado como máquina” e, por outro, “a gestão global da vida, posta
em funcionamento mediante uma biopolítica da população, na qual o corpo
humano é considerado elemento de uma espécie”. Mas as teorias
desenvolvidas revelam mais que uma tecnologia do corpo a partir da lógica
capitalista: fornecem pistas sobre um nascente e crescente corpo político e
social do qual não se pode escapar e que constitui um dos corpos possíveis na
atualidade. Antes porém de tocar neste aspecto, deve-se acrescentar a noção
de ‘corpo e poder’ que Foucault (1979) articula à base histórico-reflexiva
136
proposta. Trata-se do entendimento de que entre os séculos XVII e XIX uma
nova tecnologia de aproveitamento/ utilização da força dos corpos foi
desenvolvida, estruturada e organizada, principalmente, em torno da disciplina.
O processo técnico pelo qual a força do corpo viesse a se erigir, com o mínimo
de ônus, reduzida como força política e maximizada como força útil
possibilitaria uma análise das técnicas de poder centradas sobre o corpo.
Tratando-o como máquina, adestrando-o, amplificando sua utilização e
aperfeiçoando a extração do trabalho ele se integrou ao novo circuito de
produção instaurado no século XVIII.
Mergulhando o corpo no campo político, Foucault (1979,1983) o insere nas
relações de poder, reflete sobre sua utilização econômica e sua força de
produção de trabalho, apontando que esta está sempre ligada a uma parcela
de submissão. Ensina que, a partir do século XIX, o corpo da sociedade torna-
se o novo princípio, e é ele que deve ser protegido. O problema está no fato
que não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade do
poder que se exerce sobre o próprio corpo individual. O efeito do investimento
do corpo pelo poder provocou o domínio e a consciência corporal; contudo, a
partir do momento que o poder produziu tal efeito, emergiu consigo a
reivindicação do próprio corpo controlado. Mas o autor explica que, ao contrário
do que em geral se pensa, o poder nas sociedades burguesas e capitalistas
não negou a realidade do corpo em proveito da alma, da consciência e da
idealidade. “Na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais
corporal que o exercício do poder”, diz (FOUCAULT, 1979:147). Completa que,
do século XVII ao início do século XX, acreditou-se que o investimento do
corpo deveria ser denso, rígido, constante e meticuloso, o que gerou terríveis
regimes disciplinares nas escolas, nos hospitais, nas cidades, nos edifícios,
etc. A partir dos anos 1960, percebeu-se que a sociedade industrial podia se
contentar com um poder bem mais tênue sobre o mesmo, de onde se deve
perguntar de que corpo a sociedade atual necessita. Longe de tratar o poder
como algo somente repressivo e negativo, entende que também produz
resultados afirmativos, como no nível do desejo e do saber. Defende que é
137
preciso construir a arqueologia das ciências humanas através do estudo dos
mecanismos que penetram nos corpos, nos gestos e comportamentos
cotidianos.
Continuando suas reflexões, agora em torno do desenvolvimento que Deleuze
promoveu sobre a idéia de biopoder de Foucault, Maia (2003) aponta sua
interpretação como um dos principais focos a serem repensados: o ‘controle’
na atual sociedade. Seria este o novo monstro, de modo que novas malhas de
sujeição, potencializadas pela tecnologia cibernética, estariam sobrepondo-se
aos mecanismos de poder postos no tempo das disciplinas e dos espaços de
enclausuramento típicos da Modernidade. Disso depende hoje a manutenção
da estabilidade social, justificada por um exercício de autoridade da dinâmica
política contemporânea. Disso decorre a preocupação lícita de Foucault com a
confirmação dos laços entre corpo e poder e a consolidação de um biopoder
em excesso quando dado técnica e politicamente ao homem para fabricar a
vida.
Voltando a Ramos (2004) para continuar a esclarecer de que repercussões
para o corpo se pode dizer a partir da sociedade burguesa, deve-se lembrar
das transformações éticas que ela pautou sobretudo na moral protestante, no
progresso tecnológico e científico e na ilusória liberdade refletida pela
consolidação da ideologia igualitária das leis de mercado. A probabilidade de
tais características sociais terem imputado ao indivíduo a fonte dos desvios tem
suas pistas em seu papel de submissão à religião, à crença na razão como
guia infalível e à vocação como responsabilidade individual pelo crescimento
econômico, somados ao próprio método científico que garantia o progresso
material e social e expunha a psicologia do indivíduo como um resto de cálculo
a ser negado. Esse autor diz da lógica do capital em que distribuição e acúmulo
são contraditórios no que tange à saciedade das necessidades humanas,
contradição essa cuja superação exige da sociedade e dos homens um espírito
ainda acorrentado às condições materiais da existência. O resultado é que a
saciedade própria da sociedade de consumo burguesa recobre o vazio material
138
com um espírito esvaziado e põe no imperativo do gozo consumista a missão
de falsificar a superação dessa contradição.
Donde conclui que a vitória do capitalismo sobre o corpo se pelo controle
obscuro das satisfações inconscientes e particulares e ainda tendo tais
satisfações como efeito, o que leva a crer que não seja possível o gozo fora do
sistema. O consumismo desenfreado que gera uma espécie de falso prazer
esvazia de sentido a experiência, porque, como apontado anteriormente, a
noção de consumo espalhou-se para outras instâncias de formação do
cotidiano, fazendo como refém a própria arquitetura. Uma das conseqüências
dessa contaminação pela lógica consumista é o consumo banalizado da
arquitetura, através dos efeitos de sua representação como imagens que se
vendem apenas por sua visualidade, e ignoram a experiência dos sentidos e
até mesmo do corpo físico (a não ser os olhos, mesmo assim com parcialidade)
em torno da obra. Deve-se deter nesse esvaziamento, então.
Devemos pensar se a idéia de vazio também não é ideológica,
pois retira o corpo e sua mutilação da esfera da experiência. O
sofrimento caracterizado pelo vazio existencial é uma forma de
angústia que recalca a presença do corpo. [...] O vazio,
entretanto, aponta para a fragilidade do ego, mas a “ausência”
que o caracteriza é considerada em uma dimensão imaginária
distante, muitas vezes, de suas relações corporais e concretas,
sempre presentes. Entretanto, embora ideológica é também
verdadeira, não por apontar para a experiência mais
imediata do auto-sacrifício exigido para a sobrevivência, como
também por revelar [...] a ausência de sentido nas
possibilidades de existência hoje presentes.
65
ao apresentar os motivos que a despertaram para a escritura de sua
Filosofia Cinza, Tiburi (2004) vai ao encontro das discussões supracitadas, cuja
visão sobre o corpo destaca a tradição filosófica de tecer sobre ele uma história
de negação. Sua relação traçada entre corpo e escrita desvela uma noção
recortada na história e que, por muitas vezes, tangenciará o novo corpo que se
pode experimentar. “Arrancar o corpo para fora do corpo num gesto de
salvação da morte e fazer desse gesto a produção das coisas criadas e
65
Ramos (2004:66), nota de rodapé.
139
descobertas, eis o que seria próprio a essa filosofia que nesse gesto violento,
devolveria o corpo ao corpo” (TIBURI, 2004:14). A autora conta que a história
da filosofia revela a morbidez da ação marcada na abstração da idéia contida
na palavra soma
66
: é o corpo concebido como túmulo, é sua aparição na
história já como resto, vestígio, que o forja como objeto natural-cultural.
Nesse exercício, a melancolia não acompanha o corpo por acaso, é sintoma
que ajuda a desenhá-lo
67
. À medida que a melancolia é transformada em
teoria, ela mostra que o sujeito, em sua história, prescinde do corpo e deseja a
verdade, bem como prescinde da retórica e funda a linguagem dita científica.
Ela é o caráter moderno da dúvida, da insatisfação, da tragédia do saber.
Nietzsche, no século XIX, mostra que seu registro funda-se na ordem retórica e
que o recalque da retórica como recalque do corpo da linguagem é recalque do
próprio corpo.
Se a história da filosofia, em muitos de seus momentos, parece
ser o recalque do elemento corpóreo em favor da alma ou do
espírito, o lugar das teorias sobre a melancolia ou, mesmo,
melancólicas, desde os primórdios da discussão por elas
instaurada, coloca a primazia do corpóreo na definição do
humano, o que terá conseqüências importantes na definição do
sujeito, quando não se toma a evidente importância da
definição do humano. Se a história da modernidade é a história
de um sujeito que forja um método, a história da melancolia é a
história de um método que forja o sujeito. Se o método
cartesiano inventa a intencionalidade e define que o sujeito
basta ao mundo, o método melancólico, baseado na anatomia
e na dissecação tão próximas também ao método cartesiano
no seu propósito de conhecer por partes, produz-se no desvio
66
“A palavra soma significa originalmente cadáver e apenas gradativamente passa a significar
os corpos vivos em geral e os corpos inanimados”. TIBURI (2004:.50), em referência a
Giovanni Reale, História da Filosofia Antiga.
67
“O paradigma da melancolia define um avesso. Demócrito e Nietzsche são os guardiões
dessa filosofia da morte que tem no corpo a sustentação do ser, Sócrates é o seu algoz, talvez
o fundador do pensar como uma patologia do corpo. O paradigma melancólico se encontra no
mesmo lugar da defesa da construção do corpo, a filosofia tradicional comporá a sua patologia
declarada em todos os dualismos que sobrepõem uma alma ao corpo e fazem desse a miséria
sublunar de um mundo sempre destituído da verdade. O paradigma melancólico é o de uma
filosofia que começa com o corpo morto atento ao lugar que lhe foi dado na tradição, mas
recolhendo seus restos, ao encontrar seu cadáver, propõe-se a fazer sua experiência. O
paradigma melancólico define um método como caminho seguido e a seguir, o mais típico
posicionamento filosófico, o do sujeito que se pensa a si mesmo e descobre-se estranho,
diverso, outro, e, no extremo, nada.” TIBURI, 2004:41-42.
140
da intenção, na procura da verdade guardada no objeto, de um
saber presente na coisa e não no sujeito (TIBURI, 2004:52).
Se dizer de um sujeito melancólico é falar de um não sujeito, de sua
impossibilidade, o corpo hoje é o próprio corpo melancólico. O sujeito
melancólico tem consciência de seu vazio, da falta de si, de uma interioridade
esfacelada. Por isso o sujeito contemporâneo é o sujeito melancólico sem se
dar conta da melancolia que não se desgruda de seu corpo. O esvaziamento
de sentido que o corpo experimenta é tanto o vazio de si, que não encontra seu
lugar no mundo a não ser provisoriamente, como o vazio da experiência
automática e automatizada de mundo. Mas a história da melancolia é uma
história do lugar e do poder do corpo em sua relação com o pensamento, um
pensamento que sofre a ação da carne (TIBURI, 2004). É preciso falar da
influência do corpo como do organismo sobre a máquina, ainda que os órgãos
nela estejam transfigurados. É preciso aprender com a própria melancolia que,
em sua atitude de esmiuçamento do pensar, cria e recria o corpo. “O corpo, a
corporeidade, a espacialidade, não são, como em Descartes, a garantia da
certeza” (TIBURI, 2004:234)
A abordagem do corpo a partir de uma era sensivelmente tecnológica traz
vários diagnósticos, dentre eles correntes que vislumbram um aspecto da
negação do corpo culminando em sua extinção. Le Breton (2003) destaca uma
dessas correntes, ligada ao modo como as pessoas se comportam diante da
internet, onde o corpo é visto como um fardo tão pesado que deve desaparecer
no espaço, ser assumido enquanto pura carne perecível em detrimento de um
espírito sobrevivente que basta ao novo mundo do ciberespaço. Segundo os
entusiastas dessas idéias identificadas pelo autor, a livre troca de informações
não dependeria mais do corpo, que passa a ser um membro excedente. A
liberdade seria a libertação do corpo, um desenraizamento, pois, sob esta
lógica, o corpo físico tornar-se-ia desnecessário. O corpo eletrônico atinge a
perfeição, estando imune à doença, à morte, à deficiência física. A net torna-se
a carne e o sistema nervoso dos que não podem mais passar sem ela e que
141
sentem desdém por seu antigo corpo, ao qual, no entanto, sua pele permanece
colada (LE BRETON, 2003).
Justamente na resistência da pele está o ponto de tangência entre quem
considera o corpo objeto obsoleto e os que acreditam numa espécie de
redenção desse apesar da máquina. Parece que se delineia a constatação de
uma quase impossibilidade de separar homem e máquina e que, por isso
mesmo, urge separá-los. Uma nova sensibilidade está em jogo desde que a
noção de corpo contaminou-se pela idéia da máquina. É de uma mudança de
percepção causada pelo acréscimo de próteses ao corpo que se trata. A
discussão passa a girar em torno de um corpo que se hipertrofiou em meio à
exagerada exposição de seus sentidos, em grande parte pela automatização
que o envolveu, e que, deixando de ser estimulado, atrofiou-se. Essa lógica da
internet estende-se à potencialidade de uma arquitetura que tem a virtualidade
do computador como ferramenta projetiva. um perigo a ser evitado pelo
arquiteto: o de deixar de lado o corpo físico como ponto de partida, como
medida de seu processo de criação.
Remontando à Minima Moralia de Adorno (1992) quando este discute a
inadequação entre o corpo e as máquinas bélicas, Tiburi (2004) ressalta a
visão da experiência de guerra onde o indivíduo é parte de um mecanismo que
inclui a destruição de sua experiência como resultado do movimento da
máquina esmagadora do corpo. A filósofa lembra que a concepção do corpo
como máquina depende de uma visão mecanicista do século XVII, o corpo-
máquina pronto para substituir o corpo orgânico. Nesse ponto a máquina
poderia ser um sintoma do espírito que comanda o corpo. Mas “a eliminação da
experiência é a eliminação do corpo, não no sentido de sua destruição
absoluta, mas de sua transformação em mera matéria através do que se
poderia chamar uma despotencialização da sua sensibilidade” (TIBURI,
2004:237). E a ausência do corpo é a eliminação da experiência. Libertar o
corpo, usá-lo é abri-lo para uma série de experiências sem fim, inclusive
através de um processo de desorientação que o permita colocar em dúvida
142
suas certezas e ressignificá-las. Neste ponto se entende que o corpo não é
máquina, mas é a ela submetido. Por isso para Adorno
68
a danificação da
experiência passa pelo trauma gravado no corpo como oposição à máquina, e
por isso persiste o duplo rumo: a cura da experiência pela aceitação da
semelhança com a máquina ou a intensificação da necessidade de autonomia
entre eles.
A experiência do corpo não é tocada pela máquina na qual ele
mesmo se torna: com a transformação do corpo em máquina
perde-se algo do corpo e constitui-se uma interdição do falar
sobre o corpo que, em última instância é uma interdição ao
falar em geral (TIBURI, 2004:249).
O corpo é interdição com o espaço da arquitetura: na expressão do corpo
“interdito”, o ‘inter’ é a própria arquitetura. Por isso negar o corpo é também
negar a experiência do espaço o corpo carrega o espaço, e não espaço
sem corpo. Por isso um sério problema quando a arquitetura desprioriza o
corpo físico e suas sensibilidades perceptivas como referência primordial para
o processo de criação da obra. E se não espaço sem corpo, o que via de
regra se apresenta hoje é um não-espaço no sentido de resultado da
experiência que nasce da relação entre corpo e mundo ou um mero espaço
enquanto dimensão física esvaziado de qualquer experiência significativa. De
fato os progressos técnicos apontam para um desprendimento entre corpo e
informação que, para o pensamento de Stelarc, Timothy Leary ou Hans
Moravec
69
, significam radicalmente o abandono do corpo tradicional, puro em
68
Ver TIBURI, 2004:238 e ADORNO, 1992.
69
Ver Le Breton, 2003:125-126. Timothy Leary (1920-1996) foi um psicólogo e escritor norte-
americano que causou polêmica nos anos 1960 ao defender a eficácia da administração de
substâncias alucinógenas, como o LSD, no tratamento de pacientes alcoólicos e
esquizofrênicos; influenciou a geração beatnik e hippie e dedicou-se, mais tarde, ao estudo dos
problemas de desenvolvimento da inteligência, das possibilidades de prolongar a vida e das
migrações espaciais: nos anos 80, fascinado pelas novas tecnologias como o computador,
chegou a criar softwares de design. Hans Moravec (1948- ), cientista austríaco diretor do
Instituto de Robótica da Universidade Carnegie Mellon, trabalha, desde os anos 1950, com
pesquisas em torno das possíveis modificações apoiadas na tecnologia pensava em
máquinas capazes de raciocinar e construía robôs desde criança; mais tarde graduou-se em
Engenharia e Matemática e fez mestrado em Ciência da Computação, e pôde desenvolver,
dentre outras coisas, um computador para controlar robôs sofisticados e realizar experimentos
sobre aprendizagem e programação automática em máquinas comerciais; vem publicando
artigos e livros em torno dos temas da inteligência artificial, robótica, computação gráfica,
143
sua humanidade. O novo corpo pode ser desde uma estrutura biônica
indiferente às antigas formas humanas como pode imergir dentro da máquina;
o computador pode ser promovido a corpo glorioso que abriga o espírito. Este é
um entendimento que leva ao cabo a indissociação entre corpo e máquina,
onde ela o engole. Mas a resistência da pele ainda é possível. O homem que
se senta em frente ao computador fica por algum tempo imune à própria
presença física no espaço, contudo há o momento do choque, quando ele volta
da viagem virtual e sente seu desconforto na cadeira ou as dores nas mãos
provenientes do exercício de teclar. Na existência confusa entre o real e o
imaginário, um mundo sensorial funciona em pleno vapor, e outro está
adormecido. O corpo não depende dele mesmo como totalidade sensória, a
não ser de seu cérebro, e se apaga em seu resto. Mas o homem ainda volta do
universo sintético (LE BRETON, 2003) ao universo tradicional, e esse despertar
pode ser tão automático quanto a vida que ele leva como um confronto entre
realidades em que só o corpo como carne se faz palpável e possível.
Apesar da reduzida mobilidade, o indivíduo vive uma plenitude
sensorial que a sociedade não lhe proporcionaria com tanta
generosidade. Ele se desloca concretamente em um universo
reconstituído. Ao dissociar corpo e experiência, ao tornar irreal
a relação com o mundo e transformá-la em relação com dados,
o virtual legitima, aos olhos de muitos internautas (ou
defensores radicais da inteligência artificial), a oposição
essencial entre espírito e corpo, levando ao fantasma de uma
onipotência do espírito. A realidade virtual está aquém e além
do corpo, este é passivo mesmo se ecoa inumeráveis efeitos
de sensações e de emoções provocadas por imagens (LE
BRETON, 2003:127-128).
Certamente uma troca alheia ao corpo. O autor imediatamente citado utiliza
de forma brilhante a definição de ciberespaço como uma prótese da existência,
um instrumento da multiplicação de si. Destaca que muito se pode dizer sobre
esse mundo virtual, como o espanto sentido pelo corpo que se livra da noção
de gravidade e abandona as impressões corporais ordinárias no que elas
implicam de imprevisibilidade. Contudo, não se chegaria a uma situação
inversa pela mesma via, quando imprevisíveis serão as sensações comuns, à
multiprocessadores e até mesmo viagens espaciais.
144
medida que o homem se deparar com seu corpo ao voltar da viagem virtual?
Não seria desejável, nesse sentido, que a desorientação viesse ratificar a
imprevisibilidade dos sentidos a fim de desautomatizá-los?
A questão do virtual é tratada por Ramos (2004) de maneira elucidativa. Ele
ensina que, no mundo administrado, o imediatismo, o pragmatismo e a
eficiência são hipervalorizados, esvaziando os meios e fetichizando os fins. É
nesse lugar da mediação que ocorrem mudanças significativas, pois são
introduzidos novos elementos que correspondem a um novo princípio de
realidade. A imposição externa do prazer ao indivíduo é que faz com que o
princípio de realidade se converta em princípio do prazer, e as funções de
mediação apropriadas ao ego organizado são progressivamente abandonadas
ou expropriadas. A razão, o juízo, a atenção, a memória, a decisão, elementos
de consolidação do princípio do prazer, dão lugar à fantasia e ao onirismo,
seus elementos mentais, estabelecendo uma prioridade que transforma a
realidade na virtualidade. O mundo administrado aceita então um mundo virtual
para dar conta da satisfação do desejo, pois nele pode agir sem ser
“realmente” responsável. Mas,
Ao se oferecer como “nova” realidade, o virtualismo impõe à
própria realidade o caráter de mercadoria e, em vez de se
afastar dela pelo recurso da falsa percepção substitutiva a
alucinação, o virtual, o simulacro torna sua presença, na
forma do fetiche da mercadoria, esmagadora: o fetiche não é
sua nova condição, mas sua essência (RAMOS, 2004:96).
A cultura midiática em que se mergulha é fatal para a emergência de um novo
corpo. Muito impressiona identificar lampejos certeiros sobre a comunicação e
a cultura das mídias desde as teorias de McLuhan, passando pela visão crítica
da inclusão da máquina no cotidiano do homem pelos conceitos embutidos nas
propostas arquitetônicas como as do Grupo Archigram, nos anos 1960. O que
então eram previsões longínquas agora se tornam realidades das quais ainda
não se conta, em termos, por completo. De alguma maneira óbvia, e
portanto subjugada, constata-se que as novas tecnologias transformam
145
radicalmente a estética ao inaugurar um nova linguagem. Muda a essência da
comunicação e a escala, que deixa de ser puramente humana
70
e por isso
mesmo transforma a sensibilidade e a maneira como se percebe o mundo.
Tiburi (2004), ao filosofar sobre Beckett, Descartes e Giger, coloca uma
pergunta que se recorta de seu contexto sem deixar de servir para iluminar
esta discussão: “Como confiar na realidade se ela é o sustentáculo da dor?
Não podendo declinar dela, todavia, a linguagem passa a ser o campo de sua
reconstrução, o lugar onde o sujeito pode sobreviver.” E mais adiante outra
pergunta: “Seria o sem fim da dor o sem fim da representação?” (TIBURI,
2004:225).
3.2 De possíveis identidades de um corpo tecnológico contemporâneo
Que corpo habita o cenário contemporâneo? Como se define o homocyborg
que processa sua experiência de mundo através de aparatos tecnológicos? O
teórico português Gonçalo Furtado (2004a) ressalta que esse homem vive no
que se pode denominar sociedade tecno-biológica ou sociedade da
informação, cujo contexto é conformado pela onipresença da tecnologia no
cotidiano, numa nova cultura movida pelo imperativo da comunicabilidade
instantânea. Defende uma prática de arquitetura e design voltada a uma obra
aberta e participativa, em que a estética da interatividade seja estendida ao
nível da experiência de uma relação mais humana aplicada à técnica o que
pode se tornar possível mediante uma reflexão profunda acerca da
especificidade de tal caráter interativo e de suas potenciais perversões.
Entendendo a técnica como uma prótese ou extensão da capacidade humana
e interessado em pensar a interferência que as novas tecnologias digitais
operam no corpo e na cultura urbana, Furtado reivindica o desenvolvimento de
um programa especial chamado “Design de Interface”. Esse programa parte da
constatação da aceleração com que se transforma o contato entre homem e
máquina, levando à necessidade de, também rapidamente, investigar, idealizar
e implementar dispositivos ideológicos e físicos que respondam a essa
70
Sobre isso ver Santaella, 1996:15.
146
condição. É interessante notar que o prognóstico para o desenvolvimento
desse projeto sugere o desaparecimento do instrumento, ou seja, ambiciona o
desenvolvimento da tecnologia cada vez menos pautado na presença física
dos objetos intermediadores do corpo. O que particularmente se busca são as
novas contingências de uma Realidade Virtual que permita ao homem sua
entrada num ambiente sempre mais interativo, que ative sua capacidade
sensória e minimize os efeitos maléficos causados pela interface. Um exemplo
é o desenvolvimento de uma comunicação de instrução verbal entre o usuário
e o computador, de modo que diminuam as lesões por esforço repetitivo ou as
dores nos olhos, nas costas e na cabeça devido ao uso prolongado do
aparelho. Embora se possa dizer que o relacionamento humano com o
computador venha sendo predominantemente tátil, como através do uso do
teclado, os estudos apontam para um protagonismo de 83% no tocante à visão,
11% à audição e 1,5% ao tato
71
o que equivale a dizer que o corpo como
totalidade sensória seja constantemente negligenciado ou atrofiado.
Voltando à referida Realidade Virtual, Furtado (2004a) explica que muitos sub-
tipos de interface tem sido potencializadas, como o video-maping que
introduz representações de partes do corpo —, sistemas imersivosonde a
percepção real é aumentada ao ter preenchidos seus campos sensoriais com
aparelhos —, telepresença — uma extensão das ações humanas por
dispositivos eletrônicos ou mecânicos à distância. Mas numa experiência de
total imersão na realidade virtual, supera-se a estaticidade visual da
perspectiva em ambientes tridimensionais, que reagem e se auto-atualizam em
tempo real e em multisensorialidades, em inputs visuais, auditivos,
estereoscópicos e táteis. Experiência real ou virtual, o que guia tais
investigações é a tentativa de devolver ao corpo o que a máquina um dia lhe
tirou: a capacidade de reagir e interagir com o meio, de se voltar a ele mesmo.
Charles Jencks (1995) utiliza-se da noção de homocyborg para tratar da
condição do habitante da sociedade atual, onde o animal e o tecnológico
71
Cf. nota dew rodapé em FURTADO, 2004a.
147
encontram-se nele totalmente integrados. Ele alega que o conceito de que a
natureza mecânica engoliria a natureza biológica e criativa do homem exposto
à influência da tecnologia não vingou, uma vez que a expectativa em torno da
máquina uma necessária submissão à automatização e à rotina o se
concretizou: a realidade mutante e inventiva se impôs como lógica. A leitura de
Jencks aproxima-se à de Furtado, no sentido de que o que se verifica como
tendência é a re-sensibilização do corpo, mesmo inevitavelmente associado à
máquina.
Corpos-máquinas, mortos-vivos inspiram a crítica sobre a proporção da
interferência exercida pela tecnologia no cotidiano da comunicação de massa,
no atual contexto urbano que é multimidiático e instável. Em Antropologia do
ciborgue: as vertigens do pós-humano, destacam-se os caros pontos de vista
de Tomaz Tadeu da Silva, Hari Kunzru e Donna Haraway, sempre em torno do
termo “ciborgue” e suas implicações a partir das análises de Haraway. Como
pontuado anteriormente, Silva (2000) introduz a questão dos novos significados
e questionamentos em torno da subjetividade humana e afirma que, embora
hoje se pergunte até mesmo se ainda existe o sujeito cartesiano, ele sempre
vaza por todos os lados. É possível falar então de duas vias: a da resistência
do eu e do corpo da percepção e da pele —, e da irreversibilidade da
condição do sujeito contemporâneo homem-ciborgue, plugado em
maquinicidades. “Onde termina o humano e onde começa a máquina?”,
perguntam todos eles. Assim a ontologia do humano é colocada em xeque,
uma vez que é na realidade do ciborgue que se vive: o meio é um meio
ciborgue. Se antes a subjetividade humana foi legada pelo cogito cartesiano,
onde um sujeito pensante, racional e reflexivo era considerado a origem e o
centro do pensamento e da ação, o que dizer diante de uma criatura tecno-
humana, que simula as próprias ações humanas mas não pode ter seus
pensamentos, ações ou comportamentos como retroagidos a nenhuma
essencialidade humana (porque feita de fluxos e circuitos, fios e silício, e não
de tecidos)? Uma vez que a exclusividade do humano se dissolve e o corpo se
interpenetra por próteses, o próprio pensar, agir e perceber o mundo se
148
desloca num meio ciborguiano, onde a realidade é perpassada, muitas vezes
invisivelmente, por contaminações de ordem tecnológica.
FIGURA 45 – Donna Haraway em versão animada, no filme Ghost in the Shell
FONTE: foto da autora
Silva traz a taxonomia proposta por Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera
72
, que
permite um delineamento da temática do ciborgue, onde as tecnologias
ciborguianas podem ser restauradoras: permitem restaurar funções e substituir
órgãos e membros perdidos; normalizadoras: retornam as criaturas a uma
indiferente normalidade; reconfiguradoras: criam criaturas pós-humanas que
são iguais aos seres humanos e, ao mesmo tempo, diferentes deles;
melhoradoras: criam criaturas melhoradas, relativamente ao ser humano.
Hari Kunzru (2000) aponta que o primeiro ciborgue do mundo foi um rato de
laboratório que, no final da década de 1950, teve implantado no corpo uma
pequena bomba osmótica que injetava doses precisamente controladas de
substâncias químicas que alteravam vários de seus parâmetros fisiológicos.
Manfred Clynes, um engenheiro, e Nathan Kline, um psiquiatra, teriam
inventado, em 1960, o termo “ciborgue” cyborg, abreviação de cybernetic
organism para descrever o conceito de um “homem ampliado” ou melhor
adaptado aos rigores da viagem espacial, e imaginaram um astronauta do
72
GRAY, Chris H.; MENTOR, Steven e FIGUEROA-SARRIERA, citados por SILVA, 2000:14.
149
futuro cujo coração seria controlado por injeções e anfetaminas e cujos
pulmões seriam substituídos por uma “célula energética inversa”, alimentada
por energia nuclear.
Em meados da década de 1960, os ciborgues representavam um grande
negócio, com milhões de dólares da Força Aérea estadunidense sendo
canalizados para projetos de construção de exoesqueletos, braços robóticos do
tipo mestre-escravo, dispositivos de biofeedback e sistemas especializados
(KUNZRU, 2000). Rondando a literatura, os quadrinhos, as manifestações
artísticas como em Stelarc os militares e a imaginação científica, o
ciborgue chega ao século XXI não apenas como uma idéia ou uma realização
isolada. Todos são mais que ciborgues. Se o homem-máquina partia do sonho
de melhorar as capacidades humanas, a realidade mostra que este híbrido
está, hoje, independente das intenções originais. Ainda que robôs, autômatos e
pessoas artificiais tenham feito parte da imaginação ocidental desde pelo
menos o Iluminismo, Kunzru aponta que o ciborgue de agora se torna
fundamentalmente diferente de seus ancestrais mecânicos devido à
informação daí que a própria Haraway defina os ciborgues como “máquinas
de informação”.
O ciborgue dos anos noventa é uma criatura mais sofisticada
do que seu ancestral dos anos cinqüenta e, ao mesmo tempo,
uma criatura mais doméstica. Juntas pélvicas artificiais,
implantes de tímpanos para os surdos, implantes de retina para
os cegos [...]. Sistemas de recuperação de informação on-line
são utilizados como próteses para memórias humanas
ilimitadas. No mundo fechado da sofisticada indústria da
guerra, combinações ciborguianas de humanos e máquinas
são utilizadas para pilotar aeronaves militares os tempos de
resposta e os aparelhos sensórios de simples e “puros
humanos são inadequados para as demandas do combate
aéreo supersônico.
73
73
KUNZRU (2000:139) faz referência ao começo da Guerra Fria e às experiências científicas
de Norbert Wiener que escreveu, em 1948, Cybernetics, or control and communication in the
animal and machine. Ele e seus seguidores viram a cibernética como uma ciência que
explicaria o mundo através de um conjunto de sistemas de feedback, permitindo o controle
racional de corpos, máquinas, fábricas, comunidades e praticamente qualquer outra coisa.
150
É precisamente nesse ponto que a lógica de Donna Haraway se insere,
ampliando a noção do termo: o meio em que se vive hoje é ciborgue. Ou: a
maior parte dos hábitos cotidianos do homem depende da máquina. O corpo
puramente humano é cada vez menos utilizado para as tarefas diárias. Ela diz
a Kunzru (2000:25), em entrevista a ele concedida:
Estamos falando, neste caso, de formas inteiramente novas de
subjetividade. Estamos falando seriamente sobre mundos em
mutação que nunca existiram, antes, neste planeta. E não se
trata simplesmente de idéias. Trata-se de uma nova carne.
De onde o autor lembra que ela não está falando de um suposto futuro ou lugar
tecnologicamente avançado, mas do presente: a era ciborguiana é aqui e
agora, “onde quer que haja um carro, um telefone ou um gravador de vídeo.
Ser um ciborgue não tem a ver com quantos bits de silício se tem sob nossa
pele ou com quantas próteses o corpo contém.” Ser um ciborgue é estar
condicionado a um meio ciborgue. Mas que arquitetura sensibiliza este
ciborgue e toca as mentalidades de quem habita o mundo ciborgue?
Tais colocações associadas às discussões realizadas mostram como a
definição da relação entre corpo e máquina absorve múltiplas interpretações
quando analisadas sob a ótica de diferentes fenômenos históricos. Pode-se
afirmar, a partir das reflexões de Pérez-Gómez, que o homem ciborgue nasceu
nas transformações promovidas pelo Iluminismo. Mas a visão de Haraway
parece abordar com mais precisão e acuidade a noção que se pode aplicar à
dimensão que a experiência do corpo no mundo atual atinge: o homem é
ciborgue, no sentido que a maior parte das atividades que envolvem a
formação de sua vida cotidiana depende da máquina. O homem é ciborgue
porque o meio que ele habita o é.
Santaella (2004) reflete sobre as novas formas de socialização na cultura
digital à luz do hibridismo que carrega as relações entre o corpo e o mundo
através de sua comunicabilidade. A autora fala de um corpo biocibernético e do
advento do pós-humano, resultantes da atual relação entre a máquina e o
151
corpo, relação essa constantemente atualizável. Para isso, remete à condição
de um corpo múltiplo: remodelado, protético, esquadrinhado, plugado,
simulado, digitalizado e molecular. Enquanto no corpo remodelado as
transformações operam-se visando à sua superfície como ginástica,
cirurgias plásticas ou implantes —, no protéticohíbrido, ciborgue, corrigido e
expandido através de construções artificiais visam intensificar o
funcionamento especializado de seu interior. O esquadrinhado é o corpo
colocado sob a vigilância das máquinas para diagnóstico médico, e o plugado é
o ciborgue interfaceado no ciberespaço. Remontando ao corpo feito de
algoritmos, o simulado é o desencarnado, ainda não inteiramente possível, mas
em estudo. O digitalizado reporta-se ao projeto The visible human, da
americana National Library of Medicine, que intenciona criar representações
tridimensionais, completas e anatomicamente detalhadas dos corpos humanos
normais de um homem e uma mulher. Por fim, o corpo molecular refere-se às
experiências da bioengenharia e da engenharia genética, da transgenia à
clonagem.
Tantas conceitualizações dizem respeito, em primeira instância, à
transformação do meio pela tecnologia, na era de uma formação comunicativa
guiada pela informação, num processo acumulativo de complexificação. Em
segunda, a uma eloqüente indicação da profunda crise da subjetividade que se
atravessa, gerando a instabilidade do conceito e da própria experiência
corporal. Reajustamentos e refuncionalizações são as marcas dessa cultura
digital e informacional. O corpo biocibernético, híbrido entre o orgânico e o
maquínico, está imerso numa era pós-biológica ou pós-humana. Nesse sentido,
esclarece, o pós-humano deve ser traduzido por transumano ou mais que
humano. A autora deixa claro que a noção de corpo encontra-se num campo
volátil, em permanente devir, uma vez que sua exposição às transformações
tecnológicas é acelerada e freqüente, mudando seus estatutos.
152
Assim como Virilio (2002)
74
estabeleceu três momentos paradigmáticos de
mudanças nas representações, Norbert Wiener
75
apresentou uma história dos
autômatos no ocidente dividida em quatro estágios, a saber: a era mítica, a era
dos relógios situadas entre os séculos XVII e XVIII —, a era da máquina a
vapor fim do século XVIII e século XIX e a era da comunicação e do
controle esta marcada pela mudança da engenharia de forças para a da
comunicação, ou de uma economia da energia para uma baseada na
reprodução acurada de sinais. A cada uma dessas eras correspondeu um tipo
de modelo ou reimaginação do corpo humano: como figura de barro maleável e
mágica, como um mecanismo de relojoaria, como um glorioso motor de
aquecimento queimando algum combustível (em vez do glicogênio do músculo)
e, finalmente, como um sistema eletrônico. Este equivaleria ao corpo
cibernético, concebido como uma rede comunicacional. A influência desse
modelo, aponta Santaella (2004), foi tão influente que muito dele permaneceu
no que lhe sucedeu, e continua como uma noção forte disseminada pelo termo
e a imagem do ciborgue
76
.
Numa análise sintética de vários prognósticos, esta autora ressalta uma das
pesquisas proeminentes mais avançadas da atualidade: a que diz respeito à
nanotecnologia. Explica que esta é uma técnica para o design de máquinas
muito pequenas que podem ser programadas para operar em ambientes como
o corpo humano; criadas a partir de moléculas, as nanotecnologias podem
combater doenças, aumentar a performance física, evitar o envelhecimento,
estando assim voltadas para o interior corporal do homem. Tal tecnologia
intervém no nível do carbono, mudando os fundamentos da matéria na sua
essência atômica e molecular, trazendo ainda desconhecidas conseqüências
éticas. A arquitetura trata dessa hibridização nos escritos e experimentações
74
Explicitado mais adiante no capítulo 4.
75
Citado em SANTAELLA, 2004, p.182.
76
Santaella (2004:185-190) expõe uma análise cuidadosa sobre a aplicação do termo ciborgue
em diferentes áreas, como o cinema. Para a análise da tese, como fim basta o entendimento
apontado por Donna Haraway.
153
projetuais de John MacLean Johansen
77
(JOHANSEN, 2002). Espécie de
profeta de um novo milênio arquitetônico baseado nas últimas revoluções
científicas e tecnológicas, ao aposentar da prática de escritório, dedicou-se a
investigar um novo tipo de design baseado na nanotecnologia, na
bioengenharia, na levitação magnética, em estruturas auto-reguladoras e
materiais compostos.
Santaella (2004) reporta ao pensamento de Heim para retratar como a
avaliação das reações provocadas pela ciber-realidade caminha em diversas
direções. Segundo o autor, os críticos da condição social atual em torno da
mediação corpo-tecnologia-mundo dividem-se em três tipos básicos: os
realistas ingênuos que acreditam na possibilidade de uma experiência pura
de realidade, não mediatizada —, os idealistas das redes que consideram o
esse o melhor dos mundos e apontam para os ganhos evolutivos da espécie
e os céticos os convictos de que são inócuas as tentativas de entender o
processo de nascimento do ciberespaço, ainda considerado muito nebuloso.
De onde Santaella conclui que qualquer resposta para os tempos inaugurados
pelas transformações midiáticas recentes deve sempre passar por uma
discussão do corpo. Menos importa defini-lo categoricamente, mais importa
repensá-lo constantemente, uma vez que os meios de comunicação, seja nos
tipos de signos que por eles circulam ou pelos tipos de mensagens que
engendram, são capazes não somente de moldar o pensamento e a
sensibilidade dos seres humanos, como também de propiciar o surgimento de
novos ambientes socioculturais. Remontando a Pierre Lèvy (1998), uma nova
antropologia própria do ciberespaço está nascendo, e ela levará a um ambiente
hipermidiático. Voltando à questão da mudança no papel da imagem para a
sociedade contemporânea, André Parente (1993:7-33) aciona a presença das
77
Nascido em 1916, filho de dois pintores nova-iorquinos de sucesso, titulou-se arquiteto na
Bauhaus-in-Boston Harvard Graduate School of Design de Walter Gropius. Iniciou sua carreira
no apogeu do modernismo americano, mostrando-se desde cedo mais experimentalista que
seus colegas, e suas influências foram muitas e variadas. Sempre envolvido pelas correntes
tecnológicas e interessado mais nos processos e ações das estruturas que na linguagem em si,
pareceu antever as mudanças prementes nos anos 1960 para o futuro da arquitetura, ligando-
se às experimentações do Grupo Archigram e atentando-se ao pensamento de McLuhan e
Norbert Wiener.
154
máquinas de visão e outras tantas para diagnosticar a contaminação do
cotidiano por elas, o que faz desvelar um novo universo sensório e cultural.
As novas tecnologias de produção, captação, transmissão, reprodução,
processamento e armazenagem da imagem estão aí, como uma
realidade incontornável: o telescópio, o microscópio, a radiografia, a
fotografia, o cinema, a televisão, o radar, o vídeo, o satélite, a
fotocopiadora, o ultrasom, a ressonância magnética, o raio laser, a
holografia, o telefax, a câmera de pósitrons, a infografia. São as
máquinas de visão, que à primeira vista funcionam seja como meios de
comunicação, seja como extensões da visão do homem, permitindo-o
ver e conhecer um universo jamais visto porque invisível a olho nu. Do
infinitamente pequeno ao infinitamente grande, um novo universo se
“descobre”, se “desvela”, se “cria”, em seus movimentos regulares e
caóticos, em suas miríades de dobras, em outras faixas do espectro
luminoso para além daquelas capturadas pelo olho humano, em outros
espaços e em outros tempos também. (PARENTE, 1993b:13-14)
Não é possível delinear a imagem do novo corpo, a não ser fragmentando-a
em várias. Todavia, é clara a sua lógica de atuação: necessariamente imbuída
da interlocução com a máquina, anexado a próteses físicas ou metafóricas. O
ciborgue é talvez ainda a melhor definição do corpo atual, não afeito à
aparência de um robô (embora o possa ser), mas feito e refeito numa
androgenia difícil de capturar. Resta devolver a ele seu lugar enquanto
referência primordial da experiência de mundo, mediada ou não por aparatos
tecnológicos afinal, a relação entre sujeito e mundo, corpo e espaço, é feita
de mediações: a percepção é instrumental. Na relação entre homens e objetos,
entre homens e homens, entre homens e máquinas, entre o homem e seu
corpo se a experiência espacial, que é a própria vivência cotidiana. Às
expensas de uma experimentação anestesiada, automatizada e alienada de
mundo e da arquitetura deve-se interromper o processo de negação do
corpo, aceitando sua melancolia e sua capacidade de autoreinventar.
155
4 O CORPO NA CULTURA MIDIÁTICA — LINGUAGEM E
REPRESENTAÇÃO EM XEQUE
O corpo é experimentado de modo negativo, não como objeto
de gozo, mas de terror, não como o que nostalgicamente se
desejaria alcançar, mas o que é novamente experimentado
após a interdição da linguagem. Um corpo que retorna ou que,
antes, é expulso como vômito pela cultura nas faces do sujeito.
Neste caso, o que se chama empobrecimento da experiência
ou sua eliminação, é na verdade o encontro negativo com o
corpo, um retorno ao aquém da linguagem [...]. O retorno ao
corpo, nestes termos, seria a aniquilação da linguagem e a
questão que se impõe na avaliação da possibilidade da
narrativa seria a da reconstituição da linguagem, sua recriação
após a morte. Neste caminho o conceito de experiência atrela-
se ao de linguagem. O conceito de experiência coloca o corpo
e a linguagem no mesmo lugar, num entrelaçamento por vezes
mediado, por vezes não mediado (TIBURI, 2004:248-249).
4.1 Da experiência do espaço urbano mediado pelas próteses e das
redes sensoriais que a contextualizam
Volte-se aos meios de comunicação de massa e ao papel exercido pelas
tecnologias que invadem diariamente o sistema perceptivo humano. Lúcia
Santaella
78
lembra que a maior razão para o aumento de informação não
controlada nesses processos está no fato de que as mídias inauguraram a
mistura de códigos e de processos sígnicos numa mesma mensagem, ou a
simultaneidade semiótica das mensagens. As mensagens se organizam no
entrecruzamento e na inter-relação bastante densa entre esses códigos e
signos, compondo estruturas de natureza altamente híbrida, exigindo a
concorrência de diversos sentidos receptores para sua decodificação e fruição
e produzindo efeitos psicofísicos e cognitivos também variados no receptor, de
maneira nunca antes vista. Isso levanta a discussão não mais apenas sobre o
conteúdo das mensagens, mas sobre as interações entre as linguagens e os
efeitos diferenciados na percepção do receptor dessas mensagens. A
Revolução Eletrônica abriu, dessa forma, um novo campo relacional nos níveis
sintático, semântico e pragmático da comunicação que se realiza através dos
78
Ver Santaella, 1996:33-49.
156
signos, níveis que são radicalmente mais complexos e baseados em interações
mutáveis e de difícil sistematização.
A freqüente mudança no âmbito da linguagem afeta o corpo, que deve se
redesenhar com rapidez
79
. Houve uma transformação da consciência
80
à
medida que as telecomunicações ligaram-se ao computador e afetaram o
cérebro, estendendo a noção de mente, que passou a ter o tamanho do mundo
e a fazer com que os corpos desenvolvam a capacidade da “cibercepção”: a
ampliação e o enriquecimento tecnológico dos poderes de cognição e
percepção. Desse modo, as neotecnologias da inteligência nas mídias
interativas fazem com que o ser humano mova-se na direção de uma
rematerialização e reconfiguração das estruturas moleculares do mundo, pois
impulsionam o pensamento (associativo, hipermediado e hiperconectado) de
um cérebro global que Roy Ascott (1997) chama de hipercortex.
Com o aparecimento de cada nova técnica ou meio de
produção de linguagem, desde o alfabeto fonético, no mundo
grego, até os mecanismos informáticos hoje, é alguma
habilidade ou poder humano em nível individual que se desloca
e se expande, sendo transposto para o nível coletivo da
espécie. Nesse deslocamento, o homem transitoriamente
perde uma parte de si, a imagem que tem de si e do mundo.
Nessa imagem estão consubstanciados os “valores humanos”,
que são tão relativos quanto a própria imagem. Se a imagem
se fragmenta, os valores escorregam entre as fendas
(SANTAELLA,1996:87).
79
“Toda linguagem representa o mundo, serve como mapa de orientação para o mundo, mas
simultaneamente encobre o mundo. [...] Quando as linguagens começaram a crescer e se
multiplicar (fenômeno que está se tornando cada vez mais evidente da Revolução Industrial
para cá) a função de representação foi cedendo passo à emergência (também cada vez mais
evidente) de um quarto reino (reino dos signos) na biosfera. Quanto mais as linguagens
crescem, mais a biosfera vai se povoando de signos e se transmutando em “noosfera”. [...] Ora,
esse universo noosférico é ainda demasiadamente novo para que nele nos sintamos em casa.
O homem se sente estranho no próprio ninho que criou, além de que as linguagens parecem
estar crescendo muito mais velozmente do que a capacidade humana de adaptação a esse
crescimento na readequação de seus valores éticos e estéticos” (SANTAELLA, 1996:92). Note-
se que o texto foi originalmente escrito em 1986, republicado em 1996 e, passados quase dez
anos, as conclusões se mantêm.
80
Roy Ascott citado por Santaella, 1996:13.
157
Mas hoje essas características deixam de ser normais para, depois de
colocadas sob potentes lentes de aumento, serem alçadas a um nível extremo
de transformações no corpo, na linguagem e na imagem. Santaella (1996)
ensina que é no corpo humano, o próprio corpo como suporte, que a evolução
biológica instalou o primeiro aparelho complexo de produção de linguagem que
são o cérebro e seus meios de transmissão (aparelho fonador, gestualidade,
sutilezas do rosto, do ouvido e do olhar, entre outros). Lembra ainda que cada
nova técnica de produção, troca e armazenamento de linguagem é sempre
recebida, a princípio, como uma ameaça à integridade do corpo, da sua
imagem e da imagem do mundo. um deslocamento dessa produção do
corpo que se estende em linguagem para um suporte. Cada vez mais o cérebro
e os sentidos humanos
81
crescem e se expandem para fora do corpo em
prolongamentos múltiplos, o que faz com que as faculdades humanas, “nos
seus modos de ver, sentir, querer, agir, compreender, desejar, sonhar e
enlouquecer”, passem “por transformações num ritmo tão veloz que não deixa
atrás de si senão cacos da auto-imagem do homem, sobre o pano de fundo de
um modelo de mundo, da prévia idade moderna, que se estilhaçou”
(SANTAELLA, 1996:88). Então qual é a auto-imagem de um corpo que vive
num tempo de transformação do virtual em real? Mais que isso, qual é a
imagem possível quando a representação do objeto toma seu lugar?
A imagem não é a realidade
82
, é uma representação, e o registro dessa
imagem, bem como sua experimentação, dependem de uma série de fatores,
que vão desde os códigos de visualidade utilizados até a leitura possível de
cada receptor segundo sua carga de conhecimento e sensibilidade. vários
perigos no tempo da reprodução em série das imagens. O reino pulsante dos
signos em que se vive é território em trânsito, onde aqueles transitam e se
atravessam ininterruptamente por instantes evanescentes e levam de roldão a
noção de tempo como duração e da história como progressão linear. Enquanto
são reencenadas indefinidamente, os objetos da representação capturados e
81
Como já dizia Santaella em 1996, e que se confirma com mais intensidade hoje, em 2007.
82
Ver Santaella, 1996:62.
158
registrados como a suposta realidade são o contrário delas e ficaram para
trás. Existe assim a ilusão de que se consumiu a realidade quando, na
verdade, nada se consumiu, nem mesmo a imagem em sua totalidade. Mas a
apreensão do mundo se através da linguagem, e no momento em que essa
sofre modificações substanciais, a mediação entre corpo e mundo adquire
novas feições. Neste caso, estão em cena um corpo atrofiado pela
superexposição imagética e o consumo automático e parcial do objeto
representado sendo tomado como o próprio objeto.
Além da questão da inauguração de uma nova sensibilidade, a inclusão de
uma característica de provisoriedade nos meios de comunicação que tem papel
crucial na formação do corpo e da linguagem. Santaella
83
aponta a cultura das
mídias como a cultura do efêmero, do passageiro, do fugaz, e que por isso
produz nostalgia em relação ao tempo em que, a partir do jornal, deixa de se
basear na durabilidade e na permanência próprias das formas tradicionais de
cultura. Além disso, a mobilidade que a acompanha na passagem das
informações de mídia a mídia revela o tempo dos eventos em oposição aos
processos, o tempo do descontínuo, do esquecimento, da volatilidade que
torna essas informações precocemente obsoletas e altamente provisórias.
Essa efemeridade também modifica a sensibilidade, pois o tempo em que as
coisas acontecem muda a maneira como elas são sentidas. O corpo que sente
em meio à cultura da era eletrônica
84
é um outro, que precisa se (re)descobrir
em suas novas formas. Mas é preciso lidar com a provisoriedade e não tentar,
em vão, combatê-la.
83
SANTAELLA, 1996:35-36. Destaco o seguinte trecho da página 35: “Embora o livro impresso
tenha sido o primeiro veículo de massa, foi o jornal que deu início às características da cultura
das mídias que, embora não esteja separada das outras formas de cultura que coexistem nas
sociedades modernas, apresenta características singulares e uma especificidade que lhe é
própria. Dentre esses caracteres, cumpre pôr em evidência o fator de provisoriedade que
parece ser a mola-mestra da cultura das mídias em oposição à durabilidade e permanência
que caracterizam as formas mais tradiconais de cultura. Um jornal, por exemplo, é feito para
ser lido num dia e jogado fora no dia seguinte.”
84
Em 2003, Santaella amplia suas definições de cultura midiática, à qual se junta a cultura
digital e, a esta, a cibercultura, revelando um tempo de experimentação de uma espécie de
hipermídia. Segundo a autora, poderia-se falar em seis tipos de formações culturais: a oral, a
escrita, a impressa, a de massas, a das mídias e a digital. Hoje, uma das aplicações possíveis
é a de um tempo onde se acumulam a midiática e a digital. O que predomina é, ao fim e ao
cado, uma era da informação. Cf. SANTAELLA, 2004.
159
Se o corpo torna-se dependente do olhar e da linguagem e se o corpo
constituído no olhar aparece como imagem, como apontou Tiburi, a
linguagem que hoje se faz na rapidez e na fugacidade influencia o corpo de
modo quase espetacular, exigindo dele uma resposta que não acompanha a
totalidade do tempo de suas sensibilidades. O acréscimo da máquina, das
tecnologias, das próteses ao corpo contribui para a continuação de seu
recalque e negação. Mas não se trata de uma situação irreversível no sentido
de aceitar impassível essa condição, ou não se poderiam apontar exemplos de
quem disso se serviu para produzir sua crítica e mostrar que obras
arquitetônicas são possíveis nesta realidade intensamente mediada pela
tecnologia. É por tal razão que a metáfora do aprisionamento dos sentidos
dentro de um corpo anestesiado baseia-se na relação entre homem e imagem,
imagem diáfana e descontínua que exige novas funções do corpo para que a
possa experimentar.
Santaella (1996) refere-se a Lacan e ao mito de Narciso para explicar a
fascinação que o sentimento de amor exerce sobre os homens e a confusão
possível entre imagem e objeto. É preciso imaginar dois olhares que se cruzam
e sintonizam na troca, pois o amor pressupõe a reciprocidade. Nesse ponto de
cruzamento, a imagem do outro que seu olhar projeta se cruza na imagem do
seu eu projetada pelo olhar do outro. Com Narciso não há tal cruzamento, e ele
se esquece de si ao confundir sua imagem com o próprio eu, alienando-se do
signo que é a imagem, tomando-a por realidade e desvanecendo como objeto.
Esta é uma metáfora condizente à relação entre homem e imagem na
contemporaneidade, onde mudam os valores das imagens e também sua
tentativa de apropriação. “Perde-se de si por não perceber a fenda, a brecha da
diferença entre o próprio eu, este que avança no fluxo da vida, e a imagem
(representação) do eu” (SANTAELLA, 1996:68). Talvez o indivíduo seja hoje o
resultado da alternância entre um comportamento narcísico e outro apático,
sem saber direito que realidade experimentar, experimentando, mesmo que
essa experiência não seja real.
160
Tiburi (2004:142) também recorre ao espelho. Ele, um instrumento da razão
contra a força do que está por trás da representação e, ao mesmo tempo,
apontando “para o terrível da representação, ela mesma vazia, ela mesma
morte”, fazendo com que, neste caso, a representação apareça como “a
verdade em si mesma terrível que o espelho nos a conhecer e em cuja
crença sucumbiu Narciso.”
Da realidade inscrita na idéia de que a vida é o sonho de um
sonho que nos faz chegar ao significado do mise em abîme, no
posicionamento de um espelho frente ao outro [...], quando a
realidade deixa de ser a medida da representação e nos vemos
mergulhados na construção das aparências: o mundo real
apenas é dito real, real é o que nunca tocamos, a verdade é
tanto o que nunca teremos quanto o que dispomos, ela é,
portanto, o verossímil tanto quanto enganadora: aquilo que nos
o espelho. Mas também o que ele nos promete se o
atravessarmos. Não saída, a verdade está dentro do jogo
das linguagens e das representações, ela é abismo entre os
espelhos e se ao sujeito na camuflagem da anamorfose
(TIBURI, 2004:118).
Seria o fim da representação a volta possível ao corpo? Parece que o maior
grau de experimentação depende de um certo grau de desaparecimento da
representação, no sentido de que se voltaria ao objeto representado,
abandonar-se-ia sua imagem. E o extremo oposto, a “super-representação”, ou
a representação hiper sofisticada, talvez também faça sentido: utilizar modos
representativos não tradicionais, em perversões da lógica e do sentido, pode
provocar um deslocamento do corpo de seu lugar de isolamento e sua
reinserção no processo da experiência de fato. Não representar para ser,
desorientar para orientar.
Se o parâmetro da visualidade se sobrepõe aos outros sentidos que envolvem
a experiência de mundo, o terreno é cada vez mais fértil para o crescimento do
apelo das imagens, sobretudo nas intervenções trazidas pela tecnologia digital.
Fuão (2004) traz o pensamento de Flusser de que hoje todo ato ou evento
almeja ser perpetuado e petrificado em imagem técnica, tornando a experiência
161
do ser no mundo dependente do poder das imagens técnicas, do mundo digital
e suas intermediações. A arquitetura sofre conseqüências funestas com todo
esse apelo, que se junta ao próprio fato de que suas características visuais
são um forte chamado ao uso do espaço que ela envolve, o que pode
facilmente induzir ao erro de reduzir a recepção da obra à sua aparência. Se
antes a função da representação arquitetônica enquanto projeto era viabilizar a
construção do que seu criador imaginou, era intermediação entre idéia e objeto,
agora ela ultrapassa essas fronteiras e confunde formas de representação e
objeto representado. Impulsionados pela moral visual e pelo distanciamento
dos corpos no espaço que a perspectiva criou, a criação arquitetônica
impregnou-se de uma prática viciada na imagem, na representação do objeto,
esquecendo-se da obra criada em si, do objeto representado, porque abandona
o corpo como medida e motivo para que a experiência estética da arquitetura
aconteça. Nesse sentido, a história da representação do corpo através da
imagem técnica significa a própria negação do corpo e o empobrecimento da
experiência da arquitetura. Prova disso é a constatação dessa negação no
universo digital da representação arquitetônica, onde o corpo aparece
raramente e representado por blocos e carimbos generalizados que nada
dizem respeito à experiência real do corpo no espaço.
Pensar o atual modo de representação de que o arquiteto se utiliza o
computador — significa refletir sobre o lugar do corpo na arquitetura
contemporânea. Mais ainda, esbarra na tentativa de entender que corpo vive,
ou não, a arquitetura produzida por essa espécie de prancheta eletrônica e,
portanto, que imagens geradas por essa arquitetura são consumidas por quem
pretende habitá-las. O modo de habitar o espaço gerado pela arquitetura
diferencia-se entre a vivência alienada e a experiência intensa que envolve o
corpo. Nesse sentido, a forma como a arquitetura elabora seu processo de
representação (nas imagens daí decorrentes) incide diretamente em tal
diferenciação, ou seja, na maneira com que a obra é recebida. Admite-se que a
arquitetura também sofreu o processo de negação do corpo ao longo da
história, que se tornou atrofiado pela hipertrofia dos exagerados estímulos a
162
que se expôs freneticamente especialmente a partir da serialidade trazida
pela Revolução Industrial —, além de um sistema de produção de imagens
muitas vezes equivocado e esvaziado de significação.
A lógica da internet estende-se à potencialidade de uma arquitetura que tem a
virtualidade do computador como ferramenta projetiva. Num recente e vigoroso
artigo, Rubem Alves (2005:11) evoca a força da sensibilidade e da imaginação
contidos no que ele enumera como seis sentidos. Chamando os cinco sentidos
tradicionais de “caixas de ferramentas” ou “caixas de brinquedos” que
possibilitam ao homem conhecer o mundo, destaca o fato de que, para que
esses instrumentos de poder e prazer funcionem como tal, exigem a presença
do objeto a ser conhecido ou amado (“o som da buzina chama minha atenção
para um carro que se aproxima”, por exemplo). Mas o autor inclui o
‘pensamento’ como o sexto dos sentidos, encarregado de fazer as coisas que
não existem, o importantes como as que existem, existirem (como a Nona
Sinfonia que Beethoven fez surgir em seu pensamento quando era surdo).
Ora, a sensibilidade se na presença do corpo, em sua invocação para que
experimente o mundo. O objeto deve estar presente, e o objeto é tanto o que
aciona o sensível como o corpo que sente. Mesmo as coisas trazidas à
existência pelo pensamento o são por construírem o objeto ao saber exigir a
presença do corpo. Por isso faz sentido tratar a virtualidade se para ativar o
imaginário junto ao corpo em sua totalidade. Produzir imagens que negam o
corpo é produzir arquiteturas por ele inabitáveis, a não ser de modo automático
e alienado.
Não se trata de negar o poder que as imagens impõem ao mundo tecnológico e
midiático em que se produz arquitetura, mas de entender a imagem como
imagem, não como o próprio objeto a ser usufruído. Para isso, é necessário
colocar em suspensão a proliferação de imagens. O problema também reside
na inversão de papéis, ou seja: substitui-se a experiência do objeto
arquitetônico pela não-experiência da imagem oca de sentido. Preocupa muito
a prática comum de uma arquitetura plugada na máquina, alienada do mundo e
163
do corpo, repetindo funções e espaços, colando e cortando como numa collage
sem sentido. Se o arquiteto, sentando-se diante do computador, elimina as
pessoas de sua representação ou acredita na inserção de blocos prontos “com
homenzinhos sentados lendo jornais” como solução para a inclusão do homem
no espaço, ele prescinde do corpo para projetar e elimina de antemão a
experiência em torno da obra criada. Freqüentemente se o aluno de
arquitetura pretensamente elaborando espaços, mas repetindo modelos
anteriores, seus ou de outros, desenhando diretamente no computador sem
noção de escala nem do espaço que está sendo gerado, à medida que ele
desconhece seu próprio corpo.
Sob essa ótica, a função das máquinas é tornar tudo quina: arquiteto,
cliente, corpo e espaço que somem. Corpo ausente, ausente a experiência
do espaço. Mas não se trata mais de tomar o corpo pelo desenho em medidas
preestabelecidas. O corpo na contemporaneidade é mutante, vive na era das
possibilidades sem limites prontamente delineados, de espaços efêmeros
mesclados a tradicionais, da rápida sucção de informações e do ritmo de vida
acelerado. A experiência precisa ser revista a todo momento. Resta também
redefinir o próprio corpo, que se enche de próteses e, muitas vezes, se exime
de explorar suas potencialidades e totalidade ao deixar que elas substituam
seus membros e transformem seu sistema perceptivo. Esquecer do corpo em
detrimento de estímulos gerados na virtualidade da prancheta é esquecer da
experiência do espaço. Revisitar a experiência espacial produzida pela
arquitetura, considerando a realidade de um corpo e de um meio ciborgues, no
sentido da busca de desvelamentos e releituras é lembrar-se do corpo e
acioná-lo para viver esse espaço.
Como escapar dessa lógica, desconstruí-la e obter um novo sentido numa
vivência de projeto em que o corpo vira representação de mercadoria, de
objeto de consumo? É preciso rever os vários significados e facetas que a
representação adquire nos dias atuais, especialmente enquanto operação
mediada pelos instrumentos tecnológicos. Sede de perpetuação, compreensão
164
da existência mediante sua negação, falsa reafirmação de identidade através
de imagens, representar também significa reconhecer a organização do corpo,
a ação do corpo no espaço, a corporação, a disposição espacial e mental. Por
tudo isso se compartilha da crença na necessidade de um desaceleramento da
representação e, em contrapartida, o fortalecimento das representações de
todos os excluídos, a começar pelo próprio corpo.
Retorna-se à questão do fim da representação como uma utilização do corpo
como seu suporte, agora entendido também como uma das possibilidades
reais de avanço em direção a uma nova experiência de espaço, onde tal
representação deixa de lado sua calculabilidade e se abre à imprecisão e à
surpresa que cria um embate com a ordem vigente. As saídas do
entorpecimento social estariam ou no fim da representação ou na hiper-
representação, a representação levada ao extremo, como numa lógica
deconstrutivista que, mesmo esbarrando em questões representacionais, parte
da desarticulação da expressão gráfica para produzir uma desorientação do
senso comum e uma nova experiência espacial. Para esse fim seria preciso
abolir o obstáculo representacional que também é epistemológico e ideológico,
revertendo as regras dos programas arquitetônicos padronizados e fazendo
com que o arquiteto volte a emprestar seu corpo ao mundo. Simplificar até
voltar ao antes da representação, em que está o lugar do corpo.
Virilio (2002) tenta definir a nova lógica da imagem ao lado das diferentes
tecnologias. Segundo ele, existem três eras de propagação da imagem na
história recente: a era da lógica formal, da pintura, da gravura e da arquitetura,
que se conclui com o século XVIII; a era da lógica dialética, da fotografia, da
cinematografia ou do fotograma, no século XIX; e finalmente a era da lógica
paradoxal, com a videografia, a holografia e a infografia, no final do século XX,
esta apresentando uma espécie de conclusão de uma lógica da representação
pública. Ele busca esclarecer o sentido de uma mutação das representações
em que o “espaço público” da cidade cede à “imagem pública”, essa última
165
uma imagem paradoxal de uma presença em tempo real que suplanta o
espaço real.
O paradoxo lógico é finalmente o desta imagem em tempo real
que domina a coisa representada, este tempo que a partir de
então se impõe ao espaço real. Esta virtualidade que domina a
atualidade, subvertendo a própria noção de realidade. Daí esta
crise das representações públicas tradicionais (gráficas,
fotográficas, cinematográficas...) em benefício de uma
apresentação, de uma presença paradoxal, telepresença à
distância do objeto ou do ser que supre sua própria existência,
aqui e agora (VIRILIO, 2002:91).
Este paradoxo do tempo sobre o espaço modifica, como mostrou este autor, a
própria noção do que é real. Essa noção confusa interfere tanto no tempo de
assimilação dos fenômenos do mundo quanto na percepção e apropriação dos
objetos percebidos. Além disso, se o conceito das sensibilidades insere-se sob
o signo da alteridade e de uma diferença no tempo, como define Pesavento
(2004), o passado existindo no presente como sensibilidades de um outro
tempo e de um outro no tempo, uma dupla demanda envolvida em tal
processo: o tempo do acontecido e o tempo exigido para o entendimento da
operação sensível, para a experiência. Como ainda coloca Paul Ricoeur (1998)
ao explicar a cidade e a arquitetura como narrativas que se conjugam no
passado, presente e futuro, existe um vínculo entre memória e narratividade
que se apóia na definição aristotélica de memória e nos escritos de Platão
sobre a imagem: “tornar presente a ausência”. É como re-apresentar uma
experiência antiga re-experimentando-a, de forma nova, no presente. O
testemunho da memória é justamente coligar a anterioridade que foi ao
presente e operar uma narrativa que ele identifica como “configuração”. Ora, o
tempo de consolidação da imagem envolve os vínculos de memória e daí o
problema instaurado com a transformação da noção de tempo na atualidade,
misturando real e virtual e impedindo o comprometimento do indivíduo com a
percepção do que o cerca.
Virilio (2002) fala de um fenômeno de aceleração que abole o conhecimento
das distâncias e das dimensões pelo indivíduo, ou seja, muda a noção de
166
espaço e de tempo, além de interferir no processo de conhecimento dos
fenômenos do mundo. A antecipação do movimento humano imprime
velocidade ao deslocamento do corpo em um espaço aniquilado. O corpo
atrofia-se à medida que muitas de suas funções tornam-se dispensáveis devido
às substituições de usos e tarefas que as próteses impõem.
Ricoeur (1998) estabelece um paralelo entre arquitetura e narratividade que
traz algumas noções para a compreensão da experiência do habitante da
cidade. Ele defende que as narrativas ganham sentido no intercâmbio das
memórias, das vivências e projetos. Esse contato do viver-juntos, das
narrativas de vida que se trocam, relaciona-se aos processos de habitar e
construir, que se mesclam. Deve-se partir, portanto, do complexo habitar-
construir dando-se, mais tarde, prioridade ao construir, ao plano da
“configuração”, e talvez voltar ao plano da “refiguração”. A idéia dessa
construção liga-se a uma noção de espaço-tempo, pois, à medida que o
espaço construído consiste em um sistema de gestos e ritos para as interações
maiores da vida, os lugares são também locais onde as mudanças temporais
seguem trajetos afetivos que separam e ligam esses mesmos lugares. Por
outro lado, o autor destaca que a narrativa fornece sua temporalidade exemplar
ao ato de construir e configurar o espaço. Nesse sentido, cada prédio novo
apresenta em sua construção (ao mesmo tempo ato e resultado do ato) a
memória petrificada do edifício se construindo o espaço construído como
tempo condensado. A noção de construção da cidade, e da construção do
próprio habitar, sai do plano da configuração para o da refiguração quando o
habitante entra em cena para colocar no objeto a sua experiência pessoal, uma
dialética em que o leitor/habitante vem ao texto/espaço da cidade com suas
expectativas que o, por sua vez, afrontadas e confrontadas às proposições
de sentido do texto/espaço da cidade. Dessa forma encontra-se, a um
tempo, a possibilidade de ler e reler os lugares de vida a partir da maneira de
habitar, com relação ao construído. Compara a recepção do texto literário, que
inaugura o experimento de uma leitura plural em intertextualidade, ao habitar
receptivo e ativo, que implica uma releitura atenta ao ambiente urbano e uma
167
reaprendizagem contínua da sobreposição dos estilos e portanto também
das histórias de vida das quais todos os edifícios e monumentos carregam
traços.
Quando a cidade contemporânea é feita de edifícios feitos para não durar,
esperando sua rápida substituição por outra construção, o tempo de
consolidação das imagens projetadas pelo objeto construído é insuficiente para
produzir conexões de memória, de tempo e espaço vividos. O “lugar de
memória” de que fala Ricoeur não se forma, a experiência da cidade fica
comprometida com um sem número de imagens sem sentido. Não tempo
sequer para que o espaço seja usado, para que se aproprie dele. O que
comumente se é passividade e indiferença diante de espaços que não
dizem nada a seu usuário. Nisso a tecnologia aliada às próteses que se
anexaram aos corpos tem particular atuação:
Da cidade, teatro das atividades humanas, com seu átrio, sua
praça do mercado ocupada tanto por atores quanto por
espectadores presentes, à CINECITTA e depois à TELECITTA
povoada de telespectadores ausentes, não mais do que
uma etapa a superar desde a distante invenção da janela
urbana, a vitrine, esta colocação atrás do vidro de objetos,
pessoas, execução de uma transparência adquirida ao longo
das últimas décadas que levaria, através da óptica
fotocinematográfica, a esta óptica eletrônica dos meios de
teletransmissão capazes de realizar não somente os imóveis-
vitrines, mas as cidades, as nações-vitrines, megalópoles
midiáticas tendo o poder paradoxal de reunir à distância os
indivíduos em torno de opiniões ou comportamentos (VIRILIO,
2002:93).
Cabe então ao habitante da cidade, sujeito do olhar, promover fragmentos de
pausas em seu cotidiano para voltar a perceber seu objeto olhado e ser enfim
por ele tocado. E cabe ao produtor de imagens e objetos explorar a capacidade
de convocar o corpo a reagir diante deles em sua experiência espacial. Hillman
(1993) explica que notitia refere-se à capacidade de formar noções verdadeiras
das coisas a partir da observação atenta — notar, e que desse notar depende o
conhecimento. Nesse sentido, a psicoterapia, a arquitetura, o planejamento
168
urbano, o design e outras ciências humanas são atingidas pela percepção da
alma do mundo, da cidade como realidade psíquica. Ele convoca o habitante a
trazer de volta a anima mundi, a alma do mundo, que apontaria sua
apresentação sensorial como um rosto que revela sua imagem interior, sua
disponibilidade para a imaginação. Reside na disponibilidade para a
imaginação uma das chaves de saída para um caminho mais desafiador que
envolva o habitante no conhecimento da cidade que ele habita, a chance de
notá-la, estar de novo atento aos acontecimentos urbanos e renovar sua
percepção sobre os mesmos. Mas é preciso aproximar-se da percepção
espacial possível na atualidade e entender que cidade é habitada.
Os conceitos de Erlebnis e Erfahrung de Benjamin (1994), como oposição entre
uma experiência superficial e uma experiência genuinamente profunda, uma
individual e outra coletiva, são esclarecedores do modo como se a
experiência do espaço para a arquitetura. Para a discussão proposta admite-se
a perda da experiência, decorrente de uma crescente falta de envolvimento
afetivo e comunicacional entre o homem e o mundo. A essência do conceito
para este autor fundamenta-se basicamente na noção de experiência como a
vida que se comunica; em alguma medida, o ato da experiência confunde-se
com o ato de comunicá-la, assim ela se realiza. Desse modo, a crise da
experiência por ele apontada origina-se quando a transmissão de
conhecimento de uma geração a outra ou mesmo entre pessoas que convivem
num mesmo tempo perde seu valor, especialmente após a Primeira Guerra.
Localiza esta crise também como uma crise do processo de narratividade, pois,
o cerne do problema estaria no estabelecimento de um outro nível
comunicativo, ou na falta de interesse pelos temas cotidianos que a guerra, as
mudanças econômicas e políticas e a própria transformação social daí
decorrentes passavam a propiciar. De fato que se instaurar um novo tipo de
experiência, pois os moldes antigos de transmissão do saber da experiência
de mundo, de vida — já não mais funcionam. Gagnebin
85
explica:
85
Jeanne Marie Gagnebin no prefácio de Benjamin, 1994:9-10.
169
O que nos interessa aqui, em primeiro lugar, é o laço que
Benjamin estabelece entre o fracasso daErfahrunge o fim da
arte de contar, ou, dito de maneira inversa (mas não explicitada
em Benjamin), a idéia de que uma reconstrução daErfahrung
deveria ser acompanhada de uma nova forma de narratividade.
A uma experiência e uma narratividade espontâneas, oriundas
de uma organização social comunitária centrada no artesanato,
opor-se-iam, assim, formas “sintéticas” de experiência e de
narratividade, como diz Benjamin referindo-se a Proust, frutos
de um trabalho de construção empreendido justamente por
aqueles que reconheceram a impossibilidade da experiência
tradicional na sociedade moderna e que se recusam a se
contentar com a privaticidade da experiência vivida individual
(“Erlebnis”).
Um dos pontos cruciais levantados por Benjamin (1994) é que o
desenvolvimento da técnica gerou uma forma de miséria da experiência e uma
sobreposição ao homem. Se uma experiência no sentido pleno não é mais
possível na sociedade capitalista moderna devido à falta de muitas condições
para sua transmissão e para a própria arte de contar, o novo ritmo de vida
acelerado pela técnica é fator preponderante. A transmissão da experiência
pelo relato apoia-se na organização pré-capitalista do trabalho e na atividade
artesanal, cujos moldes de existência necessitavam de um ritmo lento e um
caráter totalizante, em oposição à rapidez do processo industrial e ao caráter
fragmentário do trabalho em série. Além disso, o isolamento de uma
experiência individual vivida com freqüência a partir da sociedade industrial
contribui para a perda da tradição e da memória coletiva, e assim da
experiência comum. Está em jogo a privatização da experiência que tanto se
reforçará com o desenvolvimento da era eletrônica, as horas a fio passadas na
internet ou em frente à televisão. A falta de um fluxo narrativo comum a
degradação da Erfahrung corresponde ao processo de “perda da aura” da
obra de arte que o autor destaca na era da reprodutibilidade técnica
86
.
Ele destaca a necessidade de novas formas de narratividade, ou o
estabelecimento de uma outra forma de experiência, à medida que não é mais
possível estabelecer uma base segura e comum de comunicação e
86
Ver Benjamin, 1994:165-196.
170
transmissão daquela. uma mudança de sensibilidade refletida pelo novo
contexto social que suspende a narração e traz à tona o romance e a
informação jornalística, pois lidam com a busca de ordem e de sentido para o
tempo de assimilação imposto pelo desenvolvimento da sociedade da técnica.
Mas a pobreza da experiência traz junto a si uma espécie de barbárie que
impele o homem a ir para frente, a começar de novo, a contentar-se com
pouco, a construir com pouco. Constata-se também o surgimento de uma nova
linguagem que contrasta com a dimensão orgânica de outros tempos. O que
ele talvez não pudesse prever é que o ritmo de vida ainda se acelerasse
radicalmente a ponto de transformar o que poderia ser uma impulsão à
criatividade em um estado anestésico de quem não consegue acompanhar o
desencadeamento do tempo nem o ritmo de transmissão das informações que
alicerça a vida cotidiana. Isso equivaleria ainda a uma experiência quase
sempre empobrecida por não conseguir reter o mínimo da essência dos
acontecimentos. Certamente é inaugurado um tipo de experiência efêmera e
por vezes descontraída que suporta um tipo de percepção superestimulada e
pulsante, mas não aguçada o suficiente para provocar o conhecimento sensível
de que a experiência totalizante necessita. A vivência do corpo no espaço se
deteriora, e as conseqüências disso para a arquitetura são visivelmente
prejudiciais. Por isso a proposta de refletir, a partir desses dados, sobre o
esquecimento do corpo nas novas formas de tecnologia e linguagem na
sociedade das próteses, sobre experimentações possíveis a partir de um novo
corpo e sobre arquiteturas que possam ser produzidas sob este aspecto.
Bloomer & Moore (1982) trazem uma questão que se insere nessa discussão: a
mudança de movimento e locomoção desde os pés até os automóveis (e que
certamente pode-se estender ao avião e outras formas de locomoção
baseadas na evolução técnica). Explicam que, no movimento a pé, percorrem-
se os caminhos de maneira flexível quanto aos aspectos da direção e da
velocidade, enquanto as bicicletas e os veículos de tração animal aumentam as
possibilidades de velocidade, mas restringem a flexibilidade direcional. o
automóvel permite maiores velocidades e maior prazer cinético, contudo exige
171
uma envoltura protetora e reduz o contato do indivíduo com o mundo
circundante. O início do século XX, no entusiasmo de novas idéias de atuação
provenientes de novas tecnologias e do sonho da velocidade, escondia o
próprio corpo por trás de um suposto comportamento humano cheio de ação
87
.
As imagens dos edifícios expressavam vivamente esse comportamento de
descobertas e rapidez, nos dirigíveis que rasgavam o céu dos altos edifícios,
nos inúmeros veículos desenhados nas ruas que chamavam o sentimento de
ação. E indagam: onde estava o homem desenhado nos cartazes? Onde
estava o corpo humano? Esse é um sintoma do esquecimento do corpo em
detrimento da máquina, das próteses, da tecnologia. Os cartazes políticos da
Rússia, que os autores destacam como imagens vibrantes e enérgicas do
corpo imerso no espaço, representam o espírito dominante do homem em
ação. Ressaltam que a diagramação constante, em meio à mistura de corpos
saltitantes e voadores entre formas arquitetônicas, era feita em diagonais,
mostrando um desequilíbrio, uma desorientação, a alteração de uma ordem.
Os autores fazem uma comparação entre as figuras do pirata e do astronauta
para mostrar justamente essa comparação de movimentos, e nisso está toda a
questão das próteses. Quem se move? Quem usa o corpo? A imagem do
homem/corpo encapsulado é uma ótima metáfora e novamente uma
crítica ao Movimento Moderno nesse processo de encapsulamento. Assim
como o corpo pode estar imóvel e encapsulado no espaço, também pode ser
vítima do extremo oposto, que é estar desconectado, flutuando livremente e
perdidamente no espaço arquitetônico. De fato, é fácil pensar um espaço
neutro, cartesiano e estruturado por uma retícula; difícil é fazer o corpo se
movimentar no espaço e apreendê-lo quando diante de uma planta
hipoteticamente flexível que, na verdade, é marcada pela rigidez. Nesse
sentido, Bloomer & Moore (1982) falam em espacialidade da alienação, onde
uma certa satisfação derivada da elegância da construção e dos materiais,
mas que se revela uma ameaça à identidade do indivíduo nesse espaço.
87
Cf. Blommer & Moore, 1979:74-77.
172
Velloso (2004) afirma, ressaltando o que se mostrou até aqui, que
transformações significativas na vivência do ambiente urbano se operaram,
se não exatamente na configuração material do espaço arquitetônico, no que
diz respeito a um re-arranjo de elementos que o estruturam conceitualmente.
Essas mudanças devem-se ao uso dos lugares conformados pela cidade
mediados por aparatos tecnológicos, como telas de televisão em estações de
metrô, internet sem fio, tocadores de mp3. Admitindo a tecnologia como força
intermediadora presente na vida cotidiana, e também que esta afeta a
realidade espacial corporificada, a autora analisa tal condição e suas
conseqüências para o conceito de participação dos habitantes da arquitetura,
que chega numa posição de limite. Descrevendo o uso público de alguns
espaços mediante a interferência de aparatos tecnológicos, intenciona verificar
como se dá a influência destes sobre a percepção contemporânea dos espaços
e lugares habitados pelo homem, além de discutir até que ponto a
materialidade da arquitetura é uma variável componente dessa transformação
de experiência em curso.
Remonta à noção de experiência em Walter Benjamin no tocante à
singularidade da percepção espacial da metrópole, posto que ela se dualiza
entre uma apropriação tátil das coisas e o olhar distraído, misturar-se a elas ou
vê-las de relance. Esse duplo engajamento corpóreo envolve a comunicação
com o outro, além da experiência individual. O que está em questão é como
ocorre tal experiência num cenário de modificações perceptivas devido à
inserção maciça da tecnologia na relação entre corpo e espaço. A dimensão
comunicativa da vida urbana é necessariamente mediada pelas próteses e,
com isso, as trocas sociais que ocorrem no uso dos seus espaços também se
transformam. Velloso (2004:4) esclarece:
É especificamente na interseção entre táticas individuais e
coletivas dos moradores e o uso de tecnologia de comunicação
que se pode verificar quão profundamente se alterou a cultura
material novecentista, passando a refletir nossas percepções
modificadas sobretudo em relação ao espaço e aos aparatos
que a esse estão atados. Na década de 1960 a arquitetura
acusou de modo bastante enfático esta inervação das cidades
173
pelo par comunicação/informação, tornando-o tema de muitos
experimentos projetuais. [...] Sobraram metáforas e alegorias,
enquanto a vida ordinária das pessoas nas cidades avançava
exatamente à revelia ou apesar do conservadorismo
arquitetônico e urbano, e o cotidiano ia se modificando em
função de eletrodomésticos, dispositivos eletrônicos e outros
tantos gadgets campeões de audiência do consumo mais
popular.
A autora defende uma definição de arquitetura a partir do seu efeito, ou seja,
realizada quando seu espaço é habitado, como uma situação da vida cotidiana
nas interseções de seu uso individual e particular. É, portanto, da experiência
do espaço em ato que se trata, experiência essa dependente da capacidade do
corpo humano em situar-se em tal processo. Velloso (2004:5) compartilha da
noção de espacialidade feita por Dalibor Vesely, definida na constituição de um
espaço coerente que é permitida pela capacidade do corpo humano em situar-
se, por meio de níveis sucessivos de experiência movimentos corporais,
envolvimento corpóreo, experiência perceptiva, imagens conceituais e
pensamentos —, configurando o “horizonte de todas as experiências” (ou
espacialidade). De onde se que a compreensão das partes constitutivas de
um objeto arquitetônico é alcançada por meio da movimentação do corpo
explorando o espaço físico e estruturando a experiência subjetiva. “São os
gestos e os percursos de um indivíduo que delineiam (e em boa medida
definem) a experiência humana do espaço”; invariavelmente experencial, a
arquitetura se faz somente enquanto experiência do lugar (VELLOSO, 2004:5-
6).
À medida que a experiência dos lugares conformados na cidade se define de
antemão em sua relação com o corpo, duas questões principais são dignas de
análise: uma, sob que moldes ele atualmente se representa, e outra, como as
mudanças perceptivo-sensórias dele advindas resvalam nos modos como se
experiencia o mundo urbano. Como se a experiência espacial arquitetônica
e urbana mediada pelas próteses anexadas ao corpo? Admitindo então que as
tecnologias de comunicação e informação que passam pelo corpo
contribuem para reconfigurar a percepção do espaço e do tempo, a autora
174
destaca alguns exemplos de objetos tecnológicos mediadores, quais sejam os
telefones móveis e os tocadores de mp3. Utensílios digitais móveis e
personalizados, ambos funcionam como interfaces através das quais muitos
moradores urbanos “delineiam, configuram e praticam suas atividades urbanas”
e conformam uma experiência individual e peculiar de construção de uma
atmosfera, em certa medida, suspensiva da cidade:
É notável observar uma calçada no centro da cidade, repleta
de gente, cada qual munido com seus minúsculos fones de
ouvido, movendo-se no interior de uma bolha virtual. O iPod
materializa o isolamento consentido, mantendo à distância as
outras pessoas, os sons indistintos da cidade, o ruído das ruas
e explicitando algo que desde sempre sabíamos, mas que
agora se assume socialmente de maneira silenciosa, por todo o
conjunto de pessoas à sua volta. Cada ser humano, se
compreendia o mundo a partir de seus filtros particulares,
agora evidencia o procedimento dessa compreensão, que não
é outro senão o de apartar-se da possibilidade de comunicar a
experiência, e sem que isso cause mais nenhuma estranheza
nos transeuntes urbanos. Mas, o que chama a atenção é que
essa maneira individual de experimentar o mundo esteja
exacerbada no hábito de portar um aparato que explicite ao
outro o quanto você se separa dele (VELLOSO, 2004:6).
Dito de outro modo, num alto grau a experiência urbana na atualidade é
dependente da mediação feita entre mundo e tecnologia, e ela se localiza,
muitas vezes, acoplada ao próprio corpo. Corpo ciborgue, meio ambiente
ciborgue. Delineia-se, através dessa exemplificada nova forma de interação
social, o cenário passível de interlocução pela arquitetura que, para se redefinir
em experiências espaciais constantes por seu habitante, deve estar atenta para
as exigências e demandas que daí advém. Não cabe, se para o fim de
promover interlocução entre obra e usuário, projetar uma arquitetura calcada
nas referências espaciais que a definiam na cidade do século XIX ou mesmo
XX. As transformações referentes a um meio maquínico ao qual pertence o
século XXI aceleram-se e se redesenham a todo instante, mediante uma
percepção que leva em conta não mais as vivências espaço-temporais da era
não nomeada pela mídia, mas as interferências tecnológicas carregadas pelo
corpo que experimenta os lugares.
175
Velloso (2004) salienta que essa condição de vivência da cidade matizada na
experiência individual do espaço tende a desmaterializá-lo. É importante notar
que, numa era da exacerbação da imagem e da sobreposição do olhar sobre
outras formas de apreensão dos fenômenos do mundo, a visualidade se perde
como valor aproximativo entre obra arquitetônica e usuário. Se o corpo passa
por um processo de negação pela arquitetura, agora é ele quem se nega à
experiência do espaço, filtrando seu uso por meio de próteses. As máquinas
como os destacados iPods e telefones celulares dão nova forma à interação
do corpo com o ambiente e confirmam a experiência distraída de que falou
Benjamin; contudo, a ela se soma a solicitação de outros sentidos, mediados
pelos aparatos tecnológicos que isolam, protegem e inscrevem esse corpo de
uma nova maneira no ambiente.
88
Daqui parte o questionamento da autora
sobre o quanto a materialidade da arquitetura interfere nesse processo:
Nesta oscilação entre ouvir sozinho suas próprias músicas e
reportar-se pela fala a outro lugar estabelece-se um jogo entre
envolvência/recusa no qual a cidade experimentada condensa-
se e satura-se. Se é incontestável que nestas condições,
quanto ao comportamento das pessoas em relação à sua
própria espacialidade (definida pelo movimento), a vida
cotidiana fica revigorada, não é suficientemente nítido se daí
decorre qualquer transformação na produção do ambiente
urbano. Devemos perguntar, afinal, até que ponto a
materialidade da arquitetura é um componente necessário à
transformação da experiência que está em curso (VELLOSO,
2004: 8).
Indaga se a arquitetura acatou, em suas premissas de desenho, este novo
engajamento das pessoas com seus lugares, uma vez que estas vêm de pronto
estabelecendo seus próprios modos para lidar com a materialidade dos
ambientes. Segundo Velloso (2004), a tarefa talvez tenha mais ligação com o
engajamento do habitante na produção do espaço onde o conceito de
participação deste na experiência da obra arquitetônica chega a uma posição
limítrofe que com transformações materiais formais da construção que
88
Cf. Velloso, 2004:7.
176
abriga essa possível espacialidade. De todo modo, mesmo priorizando a
recepção ativa da obra pelo espectador, esta depende de uma mudança de
premissa de projeto, baseada numa atitude de aproximação entre corpo
arquitetura, reapresentando-o como referência para sua experiência.
A resistência dos habitantes através de táticas que redesenhariam as relações
individuais e coletivas dos lugares tem sido apontada por alguns pensadores
89
.
Velloso (2004) acredita que a sensação de pertencimento do habitante a um
lugar, gerando um envolvimento com os espaços habitados, é a base de tal
resistência e ponto de partida possível para o estabelecimento de uma prática
urbana condizente com as constantes renovações e transformações
apresentadas pelos aparatos tecnológicos, próteses do corpo ciborgue atual.
Para ela, isso diz respeito especialmente a um exercício de práticas de
apropriação do contexto urbano consolidado, de onde se estende esse
pensamento a um novo processo de criação na arquitetura e seus espaços,
construídos ou não. Certo é que uma extensão do espaço físico a um
ciberespaço, mediado pelas redes sem fio, onde a vida acontece prolongando
a experiência nas dependências da tecnologia.
Furtado (2004b) lembra que, durante séculos, o homem encontrou-se
confinado num espaço limitado, chamado cidade, onde ocorria um tipo de
mobilidade circunscrita em seus domínios, e um modo de comunicação e
pensamento lineares e hierárquicos. Historicamente, a cidade abarcou várias
caracterizações, e do assentamento pré-industrial, passando pelo industrial e
pela metrópole moderna e seus subúrbios, chegou-se à grande metápolis, cuja
formação é policêntrica, dinâmica e fragmentada. Muito da cidade atual é
dependente das transformações constantemente potencializadas pelas
recentes tecnologias que, se antes se referiam à televisão ou ao rádio, agora
dizem respeito à rede de comunicações, especialmente a mídia digital, como o
computador e a internet. Nesse âmbito, o fator da mobilidade, completa o autor,
tem sido fundamental para o estabelecimento de uma nova lógica distributiva
89
Rita Velloso destaca as prospecções de Lieven de Cauter. Cf. VELLOSO, 2004.
177
de espaços urbanos e edifícios, bem como de um novo corpo, que tem sua
sensibilidade mediada pelas próteses. A partir da não necessidade de um
deslocamento físico para se encontrar com alguém, caso das conversas on line
ou das teleconferências, o modo de apropriação e circulação na chamada
metápolis inaugura uma nova demanda, cada vez menos baseada na fixidez e
na fisicidade, tendente ao desaparecimento. Os recentes meios de
deslocamento direcionam o habitante a um estilo nomádico, que experimenta
cartografias múltiplas e realidades (ou virtualidades?) simultâneas.
O impasse da materialidade da arquitetura, que acrescenta a seus domínios o
ciberespaço, poderá se resolver em duas vias: a adaptação dos lugares
comuns à realidade de um meio tecnológico, ou a reinvenção de seus espaços
em novas potencialidadesfuncionais, lingüísticas, estéticas. O que não mais
está em questão é o esquecimento do corpo como referência primordial, sob
pena de reproduzir um modo automático de experimentar o mundo.
Em 1966, Johansen (2002) escreveu An Architecture for the Eletronic Age, em
que identificava inúmeras influências da eletrônica na arquitetura, desde a
imitação de equipamentos em suas formas, a adoção de princípios de
organização de seus sistemas, o uso da computação gráfica em seu processo
imagético, até as conseqüências da explosão da comunicação para seus
ambientes e para a percepção humana. Nesse sentido, como o novo sistema
comunicativo levaria à produção de padrões organizativos e distributivos das
edificações de um modo mais disperso, o crescimento do uso da televisão, dos
computadores e jogos eletrônicos causaria o “treinamento dos hábitos
perceptivos” dos jovens arquitetos. Quase vinte anos depois, continuou a crer
num imperativo tecnológico para a arquitetura, mas agora fundada não
somente numa função prática ou mimética da tecnologia e, sim, de um modo
mais poético e ficcional. Em artigo publicado em 1989, defendia uma Nova
Modernidade para a disciplina, baseada numa leitura mais holística e ecológica
da ciência e da tecnologia que promovesse um novo sistema de vida. A
máquina tornava-se, para ele, um paradigma do organismo: a função não se
178
determinaria pela estrutura, a estrutura seria agora determinada pelo processo;
a casa não seria mais uma máquina de morar, existiria por si mesma, num
sistema auto-organizativo, auto-regulador, vivo. Johnansen passa a imaginar
materiais compostos de plástico e carbono, bolhas estruturais e peles de
membranas infláveis, aplicáveis numa permeabilidade ajustável à luz,
temperatura e ar, controlados cineticamente por um sistema nervoso central.
Cabos suportariam edifícios de modo a adaptá-los em tempo real para
acomodar cargas mutantes como se no projeto The Web (FIG. 46-47),
um centro de conferência que deveria ser suspendido entre as torres gêmeas
nova-iorquinas, feito em 1989. Sua moldura estrutural triangular poderia ser
elevada do chão com facilidade, num sistema auto-balanceável, em que novas
partes poderiam ser adicionadas aos nós. Os fechamentos eram previstos em
plásticos especialmente moldados, numa técnica parecida à da indústria naval,
como eram produzidos os cascos dos iates em resina de vidro reforçada.Tubos
parecidos a serpentinas moveriam as pessoas, “levitando-as”, até um lugar
central de onde os acessos se distribuiriam: ao auditório, a uma câmara de
simulação, espaços de encontro, um restaurante e um centro de computação
circundado por “cachos” de estações de trabalho.
FIGURA 46 – John M. Johansen, The Web, 1989
FONTE: JOHANSEN, 2002, p.48
179
FIGURA 47 – John M. Johansen, The web
FONTE: JOHANSEN, 2002, p.49 e 51
Segundo o pensamento de Johansen, uma nova espécie de arquitetura
começaria em analogia aos sistemas auto-organizativos da natureza, esta e
seus organismos como inspiração para os espaços a serem construídos.
Novamente é interessante notar que o ajuste da disciplina arquitetônica a um
meio tecnológico remonta a algo além das características físicas da máquina,
mais concatenados com as estruturações em que se definem, numa inspiração
mais biológica que robotizada. Embora utópicos, seus projetos fazem
referência a materiais já existentes e disponíveis no mercado, e suas
prospecções caminham juntas às pesquisas da engenharia molecular. De
modo que a arquitetura pode avançar a passos pequenos ou largos,
tradicionais ou totalmente novos, pela resistência da carne ou pela inserção
definitiva nos moldes maquínicos, em busca de uma experiência corporal plena
de sentidos.
180
FIGURA 48 John M. Johansen, The Floating House, 1996-1997 fotos, corte e planta; A estrutura da
casa, esculpida em material plástico luminescente, contém em suas formas a maior parte do mobiliário;
ela flutua como uma gigante flor aquática de pétalas translúcidas
FONTE: JOHANSEN, 2002, p. 117, 119, 122 e 123
FIGURA 49 John M. Johansen, Molecular-engineered House (for the year 2200), 2000; com
construção prevista para nove dias, a arquitetura molecular brotaria como um sistema vascular, oriundo
de um material químico em forma líquida
FONTE: JOHANSEN, 2002, p.138-139
181
182
FIGURA 50 – J John M. Johansen, Molecular-engineered House (for the year 2200),
fotos que prevêem as etapas do crescimento da estrutura da casa; corte e planta
FONTE: JOHANSEN, 2002, p.132, 134-135
4.2 Análise do mapa — desvelamentos e desorientações
O espaço da desconstrução promovido por Zaha Hadid, através de uma
intervenção paradigmática no modo de representar suas obras de arquitetura,
aproxima-se da revisão gráfica proposta por Lebbeus Woods em seus projetos.
Porém, mesmo que apoiados em transformações representacionais da forma
de seus projetos, ambos trazem tal condição ancorada a uma discussão sobre
os significados desta abordagem na transformação da experiência em torno do
espaço gerado, do uso da obra. Trata-se mesmo do fim da representação
como algo externo ao corpo, o que faz com que a reflexão esteja não no meio
representacional que a obra utiliza e, sim, na espacialidade que ela cria. Ao
analisar sua produção arquitetônica, percebe-se que é possível transformar os
modos de representação gráfica em experiências do espaço. Mesmo assim, as
formas de discurso e desenho de que se apropriam não é equivalente às
tradicionais, e usam de maneira inteligente o apelo visual presente na prática
da vida cotidiana para atentar o usuário para o que se encontra além das
aparências.
No caso de Zaha, o Vitra Fire Station na Alemanha, o Car Park and Terminus,
em Strasbourg, e o Lois and Richard Rosenthal Center for Contemporary Art,
em Cincinnati, são apontados como paradigmas de uma produção de
arquitetura contemporânea que se renova através de um processo peculiar e
indagativo da experiência espacial da obra. A iraquiana sempre se mostrou
disposta a inovar, desde sua formação: antes de graduar-se como arquiteta
formou-se em Matemática. Apreciadora das vanguardas artísticas do início do
século XX, o tratamento formal construtivista da tridimensionalidade muito a
influenciou enquanto estudante. Considerada uma integrante do movimento
deconstrutivista na arquiteturaque se utiliza de uma deformação lingüística
na composição dos volumes e formas para transformar a experiência do
usuário em relação ao espaço —, problematizou suas reflexões numa
183
produção igualmente vanguardista, através de um processo de criação peculiar
que utiliza modos de representação instigantes, muitas vezes expressados
inicialmente através de pinturas. Desafiando a malha cartesiana e a
perspectiva única, exaltando o potencial de fragmentação e distorção, liga-se
às proposições cubistas, usando a arte a serviço da investigação na
arquitetura. Acreditando que os métodos tradicionais de representação
arquitetônica não são apropriados para o pretendido envolvimento dos usuários
e a (re) integração dos espaços públicos com a cidade, passou a usar a pintura
como técnica de pesquisa para atingir seus objetivos. Parece perceber a
cidade em câmera lenta, planos, recortes e closes, e transportar essa visão
para suas propostas projetuais, promovendo uma dialética de aceleração e
desaceleração do ritmo cotidiano de experimentação dos fenômenos e objetos.
Suas pinturas parecem libertar o discurso formal da arquitetura e abri-lo a
novas oportunidades de criação e usufruição, tornando a leitura espacial que
delas decorre instável e sujeita a múltiplas interpretações, a descobertas
constantes por seu usuário. A suspensão da clareza de limites, a supressão do
modo rápido de vivenciar a obra e a tentativa de despertar todos os sentidos do
corpo para a realidade da existência humana são condições essenciais de sua
produção de textos, projetos ou instalações. Acredita que o principal papel da
arquitetura não é evocar sentimentos de familiaridade ou reconhecimento, mas
de propiciar espacialidades que abarquem o imprevisível.
O primeiro projeto destacado é o Vitra Fire Station Weil Am Rhein (FIG. 51-55)
na Alemanha, 1990-1994, referente a uma sede do Corpo de Bombeiros
inserida no vasto complexo da fábrica da Vitra. O ponto de partida foi a
intenção de bem localizar os poucos elementos presentes, de modo que não se
perdessem entre os enormes galpões da fábrica e estruturassem todo o lugar.
Para tal estruturação, a idéia foi prover identidade e ritmo à rua principal que
atravessa o conjunto, imaginando-a como uma extensão linear dos campos de
agricultura adjacentes ao terreno. Dessa maneira, além do projeto da estação
do corpo de bombeiros tratada não como um objeto isolado e, sim,
desenvolvido como a borda mais externa do local —, incluíram-se no programa
184
o design dos muros fronteiriços, um galpão de bicicletas e um piso de
exercícios para a brigada de incêndio. A arquiteta concebeu o projeto
esticando-o numa edificação comprida e estreita, ao longo da rua principal,
permitindo-o funcionar como um ‘dispositivo protetor’ contra as construções
limítrofes (HADID, 2004). A estação foi localizada onde anteriormente a rua
fazia uma abrupta mudança de direção, e implantada de modo a realçar essa
característica, como que a cortando e dobrando.
A geometria da construção deriva da coalizão das duas principais geometrias
organizadoras desta área, com a direção dos campos circundantes e do
complexo da fábrica sendo atravessada por um segundo movimento direcional,
que subtrai a esquina da área retilínea situada ao lado oposto. As funções
protetoras e definidoras do espaço do edifício, explica Zaha (HADID, 2004),
foram o leitmotiv para o desenvolvimento do conceito arquitetônico: uma série
linear de paredes sobrepostas; a estação habita os espaços entre estes muros-
paredes, que “perfuram, inclinam e quebram” de acordo com seus
requerimentos funcionais. A construção revela seu interior somente por uma
visada perpendicular, capturada em relances; as linhas de movimento dos
pedestres que cruzam esse espaço são inscritas no asfalto, em anotações
coreográficas. “Toda a edificação é movimento, congelado. Ela expressa a
tensão de estar em alerta, e o potencial de explodir a qualquer momento”
(HADID, 2004:63). As paredes aparecem como formas que deslizam umas
sobre as outras, e até as portas deslizantes formam uma parede, movediça. A
obra foi construída com concreto exposto e reforçado no próprio local; a
arquiteta aponta para o fato de que foi dada especial atenção à precisão e
agudeza de todas as quinas e bordas, e que revestimentos ou acessórios
foram evitados a fim de não interferir na pureza da volumetria de formas
prismáticas. Peter Cook (2004c) aponta que esta obra marca a chegada de
uma voz no meio visível da arquitetura, como um sonho tornado realidade. Diz
ainda que a sugestão do objeto previsto em seus desenhos transforma-se
intrigantemente em algo mais sólido do que se imagina, embora sua linguagem
especial não retroceda a um tipo de espaço comprimido ou rijo.
185
FIGURA 51 - Zaha Hadid, Vitra Fire Station, 1990-1994 – representação da obra
em pinturas processuais e expressivas
FONTE: HADID, 2004, p. 62-63 e 68-69
186
FIGURA 52 – Zaha Hadid, Vitra Fire Station, 1990-1994 - plantas
FONTE: HADID, 2004, p. 67
187
FIGURA 53 – Zaha Hadid, Vitra Fire Station, 1990-1994 – pinturas especulativas
FONTE: HADID, 2004, p. 74-75
FIGURA 54 - Zaha Hadid, Vitra Fire Station, 1990-1994, foto
FONTE: HADID, 2004, p. 70-71
188
FIGURA 55 - Zaha Hadid, Vitra Fire Station, 1990-1994, fotos internas e externa
FONTE: HADID, 2004, p. 72, 73 e 78-79
189
Em seguida apresenta-se o Car Park and Terminus Hoenheim-Nord (FIG. 56-
58), obra realizada em Strasbourg, França, entre 1998 e 2001. Com o objetivo
de combater o aumento do congestionamento e da poluição causados pelo
trânsito no centro urbano, a cidade de Strasbourg tem desenvolvido estratégias
como a lançada neste projeto, parte da chamada Linha B. Ministradas em duas
partes, as iniciativas propuseram inicialmente a Linha A, estendida no sentido
leste-oeste, englobando melhorias no sistema de transportes e a inclusão de
um algumas instalações de arte de nomes como Barbara Kruger e Mario
Merz em seus pontos-chave. Como parte das intervenções dos artistas para
a Linha B, no sentido norte-sul, Zaha foi convidada a projetar a estação de
tram, uma espécie de transporte urbano intermodal, e um estacionamento para
setecentos carros situado no vértice norte do percurso (HADID, 2004).
O conceito global utilizado para a criação do estacionamento com a estação foi
o de superposição de ‘campos’ e ‘linhas’, que se unem para formar um
conjunto em constante mudança; os campos funcionam como padrões de
movimento engendrados pela combinação carros-intermodal-bicicletas-
pedestres, cada um com uma trajetória e um traço. A idéia era fazer com que a
transição entre os diferentes tipos de meio de transporte se traduzisse nas
mudanças materiais e espaciais da estação, da paisagem e do contexto. O
programa da edificação é formado por um espaço de espera, um armazém
para bicicletas, banheiros e uma loja. O estacionamento foi dividido em duas
partes, e a noção dos carros como elementos efêmeros e em constante
mudança de lugar é manifestada na forma de um ‘campo magnético’ de linhas
brancas no piso de concreto preto; estas delineiam o espaço de cada vaga,
num desenho que se inicia em alinhamento no sentido norte-sul e se rotaciona
paulatinamente, de acordo com a curva suave dos limites do local. Cada um
desses espaços de estacionamento é acompanhado de um poste de luz,
formando ‘campos’ que mantêm uma constante referência de altura combinada
ao gradiente de declive do chão. A interlocução entre as partes e elementos do
complexo como um todo se revela na intenção de criar relações recíprocas
entre elementos estáticos e dinâmicos, em todas as escalas. Espécie de
190
síntese entre piso, luz e espacialidade, esse conjunto articula os momentos de
transição entre áreas públicas de vistas abertas e as interiores, na expectativa
do estabelecimento de uma nova noção de ‘natureza artificial’ uma que
manche, embace, borre as fronteiras entre desenvolvimento natural e
construído e melhore a vida urbana (HADID, 2004).
A representação gráfica do projeto antevê o jogo de vetores tridimensionais
desenhado, cujos sentidos são realçados no tratamento do espaço: linhas da
iluminação do teto que continuam como linhas de luz no piso, nas peças de
mobiliário, nos postes. Vistas em plano, todas as ‘linhas’ coligam-se para criar
uma unidade sincrônica, onde a idéia é criar um espaço energético e criativo
que seja claramente definido em termos de função e circulação resultado
tornado possível por meio dos gráficos tridimensionais de luz e aberturas que
se criam. Andreas Ruby (2004c) acredita que a produção da arquiteta divide-se
especialmente em dois de tipos de projeto: um relacionado a fragmentos
flutuantes, explosões e satélites, como vistas aéreas de objetos
aerotransportados, revelando a percepção de um mundo pronto para voar e
tomar posse de uma posição específica; outra relacionada a percepções
territoriais e planetárias e o poder dos campos magnéticos e da pulverização,
caso do Car Park and Terminus. Para Ruby, algumas dessas características
presentes nos projetos da arquiteta, particularmente a pulverização, referem-se
à influência do trabalho suprematista de Kasimir Malevich.
191
FIGURA 56 - Zaha Hadid, Car Park and Terminus Hoenheim-Nord, 1998-2001
Croquis que mostram o nascimento da idéia, planta do complexo
FONTE: HADID, 2004, p. 44-45 e 47
192
FIGURA 57 - Zaha Hadid, Car Park and Terminus Hoenheim-Nord, 1998-2001, representação em
pintura e vista do objeto construído
FONTE: HADID, 2004, p. 48-51
193
FIGURA 58 - Zaha Hadid, Car Park and Terminus Hoenheim-Nord, 1998-2001
FONTE: HADID, 2004, p. 52-57
O Lois and Richard Rosenthal Center for Contemporary Art (FIG. 59-62),
Cincinatti, Ohio (1997-2003) é a nova instalação do centro fundado em 1939,
194
uma das primeiras instituições dos Estados Unidos dedicada às artes visuais
contemporâneas. A edificação mais recente provê espaços para exibições
temporárias, instalações para lugares específicos e performances, mas não
para uma coleção permanente; o programa inclui também um centro de apoio
educacional, escritórios, áreas de preparação de arte, uma loja do museu, um
café e áreas públicas. A entrada e o lobby conduzem ao sistema de circulação,
esta organizada como um ‘carpete urbano’, que se inicia na esquina da Rua
Sixth com a Walnut. À medida que entra no edifício, o chão inclina-se
lentamente para cima, crescendo até se tornar a parede posterior. Ao se
levantar e virar, guia os visitantes à rampa do mezanino, suspenso por toda a
extensão do lobby que durante o dia funciona como uma vista iluminada
pela luz natural. Por sua vez, a rampa do mezanino levanta-se e penetra a
parede preta, transformando-se num patamar à entrada das galerias. Quanto a
elas, se expressam em contraste ao carpete urbano, numa série de superfícies
onduladas polidas, como se tivessem sido esculpidas num único bloco de
concreto, flutuando sobre o espaço do lobby; ligam-se como um quebra-
cabeças tridimensional feito de sólidos e vazios. Os espaços de exibição
variam em tamanho e forma para acomodar a grande diversidade de escalas e
materiais da arte contemporânea.
Visadas dentro das galerias a partir do sistema de circulação são imprevisíveis,
e isso é desejável pela arquiteta. Uma escada-rampa zigzagueia através de
uma fenda na parte posterior do prédio. Ela explica que o propósito da nova
construção é o de tornar ativa a participação dos pedestres das áreas
circundantes, criando um sentido de espaço público e dinâmico (HADID, 2004).
A situação da esquina da edificação levou ao desenvolvimento de duas
fachadas diferentes mas complementares: a sul forma uma pele ondulada
translúcida, através da qual os passantes podem olhar para dentro da vida do
centro; a leste se expressa “como um ‘alívio escultural’, uma impressão
negativa dos interiores da galeria”.
195
Andreas Rugby (2004c) mostra que os projetos de Zaha para o contexto
urbano americano mostram sua capacidade quase sismográfica de identificar a
de existência de movimentos num lugar, e de coreografá-los de acordo com
suas intenções projetuais. Nesse sentido, a estratégia de produzir um carpete
urbano que se inicia no nível da rua e cresce ao penetrar no edifício,
articulando-se em diferentes formas e funções, aponta para uma reação ao
problema clássico das áreas centrais das grandes metrópoles. Embora as
aglomerações de arranha-céus criem espaços excitantes na cidade, eles
geralmente permitem o acesso público em apenas um nível, nomeado como
lobby do andar térreo. Segundo Rugby, os pioneiros da vanguarda criaram
projetos visionários com a intenção de ligar em rede tais arranha-céus acima
dos pisos térreos, ao que Zaha respondeu criando um direcionamento dos
espaços interiores do edifício como uma espécie de rua verticalizada. Isso faz
com que os limites entre onde termina a rua e começa o edifício se
interponham e se confundam, através de lobbies externos e praças internas.
196
FIGURA 59 - Zaha Hadid, Lois and Richard Rosenthal Center For Contemporary Art, 1997-2003
Croquis e especulação das idéias em pintura
FONTE: HADID, 2004, p. 104-107
197
FIGURA 60 – Zaha Hadid, Lois and Richard Rosenthal Center For Contemporary Art, 1997-2003
Plantas
FONTE: HADID, 2004, p. 102
198
FIGURA 61 - Zaha Hadid, Lois and Richard Rosenthal Center
For Contemporary Art, vista externa do volume
FONTE: HADID, 2004, p. 103
199
FIGURA 62 – Zaha Hadid, Lois and Richard Rosenthal Center For Contemporary Art,
vistas externa e interna
FONTE: HADID, 2004, p. 110-111 e 117
Por sua vez, Patrik Schumacher (2004c) fala da produção de Zaha como um
mecanismo de inovação radical dos meios de representação e projeto na
arquitetura contemporânea, levando a uma séria reflexão teórica dessa
disciplina. Ele comenta que os desenhos e pinturas apresentados no início da
década de 1980 pela arquiteta causaram suspeição por parte de muitos
críticos, que imaginaram se tratar de mera especulação gráfica o que logo
foi desmistificado. Tendo a arquitetura o desenho como ferramenta projetual,
nem sempre a transposição entre projeto e obra construída se sem
problemas, especialmente quando propostas de inovação nesse campo. Se
a arquitetura da Grécia antiga parecia dispor da representação do projeto para
aumentar a capacidade de estandardização, precisão e da reprodução regular,
a romana compartilhou dessas características sem deixar de a elas somar a
exploração da capacidade de invenção que a ferramenta provinha. A
Renascença inaugurou mudanças com o surgimento da perspectiva e, com ela,
200
outro tipo de especulação dos moldes representativos. Contudo, o autor
entende que o modernismo dos anos 1920 pôde utilizar-se de forma mais
completa da força e do potencial do desenho como um mecanismo de tentativa
e erro, o que o imbuiu de certa economia e falta de esforço no plano da
invenção. Nesse sentido, a arquitetura moderna dependeu de uma
contaminação inovadora vinda da revolução das artes visuais para, finalmente,
livrar-se do fardo da representação e ultrapassar seus limites, abrindo-se para
novas experimentações e para a criação em detrimento da reprodução.
À parte todas as não-realizações do pensamento utópico modernista e todo o
paradoxo vivido por sua arquiteturaque se desenvolveu entre a libertação
pela forma nova e a rigidez como efeito do predomínio da estrutura e da função
—, o pensamento de Schumacher revela a mudança de paradigma que a
industrialização e a pós-industrialização introduziram no âmbito arquitetônico,
uma vez que a exaltação da máquina e das novas tecnologias instituiu uma
outra ordem de abordagem, discurso e linguagem.
A tese desse autor é a de que a abertura possível em relação à superfície
bidimensional, ou a recusa da interpretação imediata de tudo como
representação espacial, foi a condição para uma completa exploração do
desenho (ou representação) como ferramenta investigativa na busca da
invenção. Nessa direção encontra-se o pensamento de Zaha Hadid, cuja
audácia em traduzir o dinamismo e a fluidez de sua habilidade caligráfica em
igualmente fluidos sistemas tectônicos se dá através da mudança da
representação, da projeção em perspectiva isométrica para literais distorções
espaciais, explodidas em fragmentos e abertas a outras interpretações. Assim,
as técnicas da arquiteta levam a um novo conceito de espaço — campo
magnético, partícula, contínua distorção? —, sugestiva de novos métodos de
orientação, navegação e habitação. É na desorientação que reside seu maior
trunfo.
201
Lebbeus Woods também propõe uma reflexão crítica em torno dos moldes
representativos das formas arquitetônicas no sentido de reavaliar a própria
disciplina e a sociedade em que está inserida na atualidade. Propõe chegar ao
limite do que é espacial e humanamente possível em termos de manifestações
corporais e identitárias, de interação entre habitante-obra-cidade e de
recolocação do arquiteto como atuante politicamente, reivindicando seu
posicionamento também fora das regras econômico-culturais que regem o
mercado mundial. Tenta estabelecer essa abertura de envolvimento e de
percepção de entrada, através de seus desenhos incisivos que causam
estranheza e curiosidade, antecipando o caráter inventivo do ato de habitar que
lhe é caro.
O pensamento arquitetônico pautado em questões como impermanência x
fixidez, instigando modificações e investigações constantes, transformações de
pontos-de-vistas e novas experimentações permite o desenvolvimento de
traços reprimidos e a expressão de identidades e sensibilidades em mutação
como a própria arquitetura contemporânea, que deve isso refletir. Indaga
sobre o domínio de quem desenha, de quem constrói, de quem possui e de
quem habita, colocando em pauta assuntos que, muitas vezes, se contrapõem
à ordem vigente da profissão. Fazendo desaparecer as bordas entre o real, o
virtual e o ficcional, propõe espaços livres e anômalos, comanda a
reconstrução de cidades destruídas e chama ao palco os clientes
marginalizados pela lógica institucionalizada, como os habitantes de cidades
que sobreviveram à guerra, mas têm que reconstruir suas cidades. Para isso, o
outro não pode equivaler ao sujeito cartesiano de tempos anteriores; é de um
indivíduo, em suas especificidades e desejos e em suas relações sociais, que
se trata. Esse homem deve poder habitar de modo autônomo seus espaços,
estes suscetíveis de organizações e reorganizações. Por isso, seu trabalho
está inserido em discussões que demonstram interesse pela autoridade de
ação por parte do usuário, em ambientes e contextos que se modificam
constantemente a partir de condições efêmeras. Desprezando o caráter
impositivo do desenho arquitetônico tradicional, impõe sua própria lógica
202
expressiva, que vai de encontro à imaginação e à intervenção em via de mão
dupla: pelo arquiteto e pelo usuário.
FIGURA 63 – Lebbeus Woods, Underground Berlin (1988) e Berlin Free Zone (1990)
FONTE: ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992, p. 56 e 100
203
FIGURA 64 – Lebbeus Woods, Underground Berlin, desenhos dos interiores
FONTE: ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992, p. 52-53
204
FIGURA 65 – Lebbeus Woods, Underground Berlin – representação de um corte
FONTE: ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992, p. 59
205
A tecnologia como referência e influência presentes no cotidiano do habitante
da cidade contemporânea também é assunto tratado por Woods, como se
no projeto para a Solo House, de 1989 (FIG. 66-68). Feita para proporcionar
um espaço de habitação para um único morador, localizado num lugar remoto
e isolado, tem como essência conceitual a auto-referenciabilidade das
condições de vida experimental, da razão de existir. Pontuando que a solidão é
a última prova verdadeira da capacidade do indivíduo de elevar seus
pensamentos e emoções mais difíceis e profundos, e ressaltando uma
condição recorrente na sociedade atual, produz um espaço que se modula
mediante plataformas. Essas não diminuem o vazio, mas estão prontas para
abarcar o instrumental próprio de uma freezone — como telescópios e redes de
informação —, todo o necessário para situar o habitante e conectá-lo ao
universo, mantendo a relação entre microcosmos. A tecnologia é a ponte para
a relação entre o eu-corpo e o mundo, a prótese que os interliga.
FIGURA 66 – Lebbeus Woods, Solo House (1989), maquete e desenho
FONTE: ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992, p. 88 e 92
206
FIGURA 67 – Lebbeus Woods, Solo House, representação em corte
FONTE: ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992, p.92
207
FIGURA 68 – Lebbeus Woods, Solo House, desenho do interior
FONTE: ARCHITECTURAL MONOGRAPHS, 1992, p. 89
208
FIGURA 69 – Lebbeus Woods, no livro Radical Reconstruction, 1997
FONTE: www.archweb.cooper.edu/faculty/woods/woods07.html
Reconstrução Radical
(Radical Reconstruction)
Arquitetura e guerra não são incompatíveis.
Arquitetura é guerra. Guerra é arquitetura. Estou em guerra com meu tempo, com a
história, com toda a autoridade que reside em formas fixas e assustadoras.
Sou um dos milhares que não se encaixam, que não têm casa, nenhuma família,
nenhuma doutrina, nenhum lugar firme para chamar de meu, nenhum conhecimento
do começo ou do fim, nenhum “lugar sagrado e primordial.”
Declaro guerra a todos os ícones e finalidades, a todas as histórias que poderiam me
acorrentar à minha própria falsidade, meus próprios medos dignos de pena.
Conheço apenas momentos, e os tempos de vida que são estes momentos, e formas
que aparecem com força infinita, depois “dissolvem no ar.”
Sou um arquiteto, um construtor de mundos, um sensualista que venera a carne, a
melodia, a silhueta contra o céu que escurece.
Não posso saber meu nome. Nem você pode saber o meu.
Amanhã, começaremos a construção de uma cidade.
(FONTE: www.archweb.cooper.edu/faculty/woods/woods07.html, tradução da autora)
209
Mas Lebbeus esclarece que tentar restaurar a base das velhas cidades de
acordo com suas condições originais significa não apenas negar as condições
pós-guerra, como impedir que outra vivência urbana emerja. É crucial que o
momento de reconstrução, mesmo na legitimidade da busca da ressignificação
e recuperação dos sentidos simbólicos do lugar, se faça no sentido da
articulação de novas direções e novas escolhas. Também não deve se dar em
torno da celebração da destruição de uma ordem estabelecida, nem de
simbolizá-la, sim na evidenciação da força do novo, na reinvenção que carrega
em si vulnerabilidades e falhas. Essencialmente, o assunto das guerras, da
destruição, da violência lhe é caro por revelar as fragilidades de uma parcela
da sociedade que é deixada à margem pela dinâmica da economia mundial
capitalista. Se outros negam a existência desse cliente marginal, ele, ao
contrário, se dispõe a encarar a feiúra do mundo e suas mazelas, e a perseguir
a transformação da vida cotidiana e da experiência arquitetônica por meio da
denúncia de seus textos e projetos experimentais. E o faz desmistificando o
processo de representação da arquitetura, seja em sua grafia, em sua
aparência ou em seus modos de incorporação político-social.
Por sua vez, a arquitetura mutante de Diller & Scofidio desenha um cenário de
transformação no modo de lidar com a produção arquitetônica contemporânea,
calcada nas múltiplas formas de expressão das idéias e na identificação das
constantes mudanças sofridas pelo corpo, que interferem na vivência espacial
arquitetônica. Exploram constantemente o modo como a tecnologia interfere e
informa o cotidiano das pessoas. Deve-se notar o duplo interesse em investigar
novas possibilidades de experimentação tanto pelo usuário receptor da obra
como por eles mesmos como arquitetos, renovando sua carga processual de
criação. Georges Teyssot
90
aponta que a crítica arquitetônica oficial interpreta
erroneamente suas preocupações baseadas em problemáticas variadas
arte, sociedade, identidades sexuais, política corporal, hábitos diários, táticas
de controle e observação, códigos implícitos impostos por instituições (como
museus e meios de comunicação) e por modos de representação (como moda
90
No texto de introdução de Flesh: architectural probes, DILLER & SCOFIDIO, 1994.
210
e design de bens de consumo) como simples e equivocadas incursões no
âmbito da arquitetura, quando o alvo central dos projetos é examinar a sua
prática corrente. A não-autonomia dessa disciplina, o questionamento dos
valores aceitos pela sociedade e o constante reexame dos processos de
produção e recepção das obras, sejam elas instalações, teorias, edificações ou
projeções, são tônicas de suas discussões.
91
Seu trabalho trata com freqüência
da reflexão em torno do corpo e seu papel social na atualidade, através de
projetos que relêem as várias “dobras” que ele tece com o mundo corpo, no
pensamento grego, carne na tradição cristã —, em operações teorizadas onde
nenhum discurso permanece (TEYSSOT, 1994). Ao fim e ao cabo, o interesse
da dupla parte do reconhecimento de que a existência das reconfigurações
tecnológicas e políticas do corpo contemporâneo induz ao questionamento das
convenções espaciais pela arquitetura. Partilham com outros arquitetos a
abordagem de uma existência desincorporada provocada pelo crescente uso
das máquinas, de tecnologias de transporte e comunicação.
A Armadura da Noiva consiste de escudos metálicos moldados sobre os
órgãos, protegendo e armando as partes mais frágeis e desejáveis do corpo
feminino, partes essas que recortadas, reforçadas e fetichizadas tornam-se
inacessíveis. É uma das personagens da peça The Rotary Notary and His Hot
Plate or Delay in Glass (FIG. 70-71), de 1986, que trata de identidades fictícias
de homens e mulheres como constructos sociais e da sua construção como
casal, jogando com as estruturas da lógica, da matemática e da linguagem em
Duchamp.
92
“Como imitações de aparelhos ortopédicos, pertencentes à estética
91
Diz Teyssot: “É estranho, para dizer o mínimo, que D& S tenham sido censurados por não
trabalharem como profissionais, por “não construir”, quando todo o corpo de seu trabalho
incluindo “projetos”, um termo que, ele mesmo, exige observação mais cuidadosa é
admiravelmente “construído”, até os mínimos detalhes, de’talhes (em sentido etimológico, isto é
dé+tailler = cortar, em francês), cortando e talhando na própria carne da arquitetura, revelando
as muitas encarnações e incorporações que constituem sua matéria e espírito ao longo dos
séculos.” TEYSSOT, Georges. The mutant body of architecture. In: DILLER & SCOFIDIO,
1994, p.8. (tradução da autora). Isso não significa que a dupla de arquitetos não possua obras
arquitetônicas construídas ou em vias de construção, como se verá adiante.
92
Este trabalho teatral foi realizado em comemoração do centenário de Duchamp, em
colaboração com a Creation Production Company, e patrocinado pelo Philadelphia Museum of
Art. Flutuou entre a fidelidade e a irreverência em relação ao ponto de partida: a obra de
Duchamp intitulada Bride Stripped Bare by Her Bachelors, Even (the Large Glass), com
múltiplas interpretações, como explicam D&S. Cf. DILLER & SCOFIDIO, 1994, p.103-135.
211
da higiene, essa armadura cruel condiciona o olhar enquanto proíbe qualquer
aproximação” (TEYSSOT, 1994:14).
FIGURA 70 – Diller & Scofidio, The Rotary Notary and His Hot Plate or Delay in Glass, 1986 – a
Noiva, o Noivo e a Testemunha Ocular
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p. 124, 126 e 135
FIGURA 71 – Cena do espetáculo The Rotary Notary and His Hot Plate or Delay in Glass, 1986
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p. 133
212
Em Para-site (FIG. 72-73), aplicaram citações de Jeremy Bentham e Michel
Serres, em letras de baixo relevo, aos assentos de duas cadeiras penduradas
no teto, na intenção de se imprimirem na carne de um ocupante imaginário.
Nessa instalação, assim como em Jump-Cuts, os indivíduos eram enquadrados
e observados por outros como sujeitos desejantes, escondidos por todo tipo de
autoridade de uma rede de câmeras de circuito fechado (MITNICK et al., 2004).
As câmeras e monitores capturavam e divulgavam as imagens dos
observadores para além dos constrangimentos de tempo e movimento,
privando os espectadores da liberdade de produzir e controlar suas próprias
auto-imagens. Para-site
93
foi uma instalação que habitou o Museu de Arte
Moderna de Nova York em 1989, adotando o tema da visão filtrada no museu,
“depositário de um século XX especial, altamente editado” determinado pelas
rígidas categorias da estética modernista (DILLER & SCOFIDIO, 1994:163). Ã
medida que foi criado na era da supremacia da visão, onde o olhar teve que ser
purificado, retirado do domínio do social e do histórico e isolado no presente
contínuo, sua edificação não poderia ser nada além de uma construção óptica
altamente codificada. No sentido de aumentar as possibilidades de outras
visualidades, a instalação se entre o olhar institucionalizado do visitante do
museu e o olho deste para aquele, numa troca constante mediada pela
tecnologia. Ela interpreta as três definições de “parasita” elaboradas por Michel
Serres, quais sejam o biológico, o social e o tecnológico. Rejeitando as
superfícies convencionais de ocupação em um museu, o projeto considera
todas as superfícies como topografia potencial, estendendo-se para além da
galeria determinada a três outras locações dentro do espaço de circulação do
museu; em cada um deles, câmeras de vídeo transmitem imagens em tempo
real de volta para monitores dentro da galeria, nos quais as imagens são re-
contextualizadas em episódios real-ficcionais. Uma das três instâncias, a
entrada principal é a primeira moldura de legitimação da instituição,
substituindo a original (e nobre) do museu histórico, onde se encontram quatro
portas giratórias “válvulas de troca ininterrupta entre a rua e o museu”
(DILLER & SCOFIDIO, 1994:165). Além disso, câmeras de vídeo, fixadas ao
93
Como se verá adiante, essa instalação ilustra a narrativa dos Guardiães, um dos conceitos-
personagens retratados por Diller & Scofidio em Flesh.
213
teto sobre cada porta, transmitem imagens ao vivo para os monitores
correspondentes, encaixados diagonalmente em um canto da galeria do
primeiro andar. Juntos, os quatro monitores oferecem uma visada
artificialmente criada de observação da parede de entrada, de modo que
ninguém que entra ou sai do museu pode fugir a esse “olhar onipotente”.
Dentro da galeria, um observador fictício, representado por uma cadeira
comum, é girado 180 graus ao redor do “eixo óptico” dos monitores; para ele a
visão direta é obstruída pela interferência de palavras vazadas sobre telas
metálicas os slogans de Jeremy Bentham, que exaltam os poderes da visão
e da mesma usada a serviço do poder (“indústria revigorada”, “educação
desarticulada”, “moral reformada”, “saúde preservada”). A palavra,
potencialmente impressa nas nádegas de outro personagem fictício o
ocupante da cadeira é feita de carne, onde se lê: “O observador está na
posição de parasita. Não porque ele leva observação que não retorna, mas
também porque ele joga a última cartada. O observador é o último na cadeia de
observáveis, até que seja suplantado”.
FIGURA 72 - Diller & Scofidio, Para-site, 1989, Museu de Arte Moderna de NY
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p.182
214
FIGURA 73 – Diller & Scofidio, Para-site, 1989, Museu de Arte Moderna de NY
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p.170-171, 174 e 176
215
O processo investigativo de Diller & Scofidio chega à web em Refresh, evento
baseado na evidenciação dos movimentos cotidianos e na idéia de liveness’,
aproximando-se a um entendimento de autenticidade ou ‘realidade acreditável’,
na intenção de examinar o papel das videotecnologias no cotidiano. Como
ponto de partida, webcams foram instaladas em seu escritório, capturando e
transmitindo as imagens que alternavam durações de exibição diversas ao
longo do dia instantaneamente na internet. Em seguida, milhares de
pequenas câmeras foram espalhadas, acionadas para reproduzir as cenas da
vida diária de tanques de peixes, condições de trânsito, máquinas-de-vender,
quartos privados, escritórios, dentre tantos. Para cada um dos doze locais
escolhidos para o projeto nos Estados Unidos, Europa e Austrália, a dupla
construiu narrativas ficcionais através de textos e imagens fabricadas, que
giram em torno de histórias de mudanças de comportamento devido à
presença da câmera no escritório, como o ritual de cortar papéis ou pedir
insistentemente refeições por telefone. Para cada lugar um grid de doze
imagens onde uma delas é atualizável a um clic, ao vivo, enquanto as outras
onze comungam da ajuda de atores escondidos e recursos de photoshop.
Nenhuma das pessoas presentes ali se encontra também nas imagens
fabricadas, e o que estabelece uma provocativa confusão é a justaposição de
correspondências entre o real e o fictício. Serviço público, publicidade passiva,
entretenimento, controle, desejo de conectar-se ao outro, todas essas e outras
são possibilidades diante de tal experimentação. Embora não haja imagens
dramáticas ou chocantes, as convenções da vida cotidiana são sutilmente
modificadas em função da presença do olho da câmera, colocando em questão
tanto o incômodo quanto o exibicionismo causados pela invasão dessa
tecnologia.
Quando não por esses motivos, ao colocar em evidência a vida real ordinária
mediada pelo instrumento, pela máquina, propicia-se uma espécie de despertar
da anestesia das atividades automatizadas reflexão que pode e deve ser
levada a cabo pelo processo arquitetônico de criação de suas teorias e
projetos, construíveis ou não. A arquitetura lida com uma experiência em torno
216
de suas espacializações, das edificações aos espaços públicos, que
necessariamente conjuga real e simulação do real, como em Refresh, baseada
numa relação corpo-tecnologia-espaço que por vezes é literal (o corpo
carregando consigo a prótese tecnológica, como uma máquina fotográfica ou
um IPod), por vezes simplesmente obedece a essa lógica de mediação.
Grande parte do trabalho da dupla questiona a dinâmica dos códigos
institucionalizados de uso e comportamento e as reverberações dos diferentes
tipos de tecnologia na vida social e psicológica das pessoas na atualidade
(MITNICK et al., 2004). Demarcando as manifestações disfuncionais e
aberrantes das coisas, e deslocando as conexões esperadas entre os efeitos
familiares e os meios que os produzem, seu trabalho muda as expectativas em
torno da tecnologia e dos padrões da visão. Ao desmembrá-las e seus
contextos convencionais, revelam algumas tramas e pressuposições que
delineiam os suportes das vidas diárias dos homens e mudam as leis em que
esses códigos se mantiveram.
No projeto para o Eyebeam Museum of Art and Technology (FIG. 74-75), Nova
York, 2001 (selecionado numa competição internacional em duas etapas, ainda
não construído), Diller & Scofidio surpreendem até mesmo no processo de
feitura do livro sobre a obra. Keith Mitnick (et al., 2004) a apresenta ressaltando
as características incomuns do próprio livro, dos arquitetos, do museu e da
edificação, que fogem dos moldes tradicionais de representação, interpretação
de formas e programas e abordagens gerais. Compra-se o material impresso,
mas não destacado, de forma que o livro se forma através da atuação do
leitor, que deve partir de uma única folha imensa e abri-la, nos locais
apropriados com marcas de picote, transformando-a em várias. Duas opções
são passíveis de escolha: tirar o bloco dobrado da espiral, esticá-la como um
mapa, dividir em folhas e reagrupá-las na espiral; ou manter o bloco na espiral
e abri-lo, descontinuamente, por meio dos passos indicados na impressão, até
que todas as partes se soltem e se tornem folhas individuais. Assim, o
envolvimento em torno do desvelamento do material impresso e,
posteriormente, da própria obra, se faz no questionamento de atos ordinários
217
cotidianos, numa espécie de despertar que possibilita abertura e interação, a
saída de uma experiência automatizada para a vivência do espaço desde seus
propósitos. Transportado para o ambiente da arquitetura, o próprio corpo é
ativado como totalidade sensória, pronto para receber a obra. Entre folhas
abertas pelo leitor-receptor dobra-se a fita-folha que conforma o volume do
museu que presta homenagem a Charles e Ray Eames, importantes
designers do século XX , volume esse que se dissolve a cada
interpenetração de seções e usos dos vários patamares, escondendo a
experimentação simultânea das diversas atividades por diferentes públicos,
dissolvendo-se e reinventando-se em planos e curvas quase impalpáveis. A
idéia gira em torno da busca de uma orientação cultural mais inclusiva, que
considera o não-resolvido, o indeterminado, o desviante, pretendendo a
promoção de uma maior consciência das forças que a produzem (MITNICK et
al., 2004). Sua arquitetura questiona a impermanência das formas e das
funções, a mutabilidade dos desejos e das necessidades, a conjunção de
efeitos e propósitos, onde um museu não é um museu, mas um centro de
aprendizagem de arte e design onde os recursos tecnológicos são altamente
explorados, de modo a aceitar a rápida obsolescência dos mesmos. Enquanto
a instituição museológica tem historicamente estado em função de fazer claras
distinções entre sua arquitetura, sua coleção e seus métodos de exibição e
interpretação, neste caso os visitantes são incluídos no tema e na produção da
experiência do museu, dentro do mundo que ele expõe, e alertados através de
criativos processos de quadros perceptivos.
A divisão conceitual do projeto em produção e apresentação
94
parte do
entendimento de que a arquitetura não somente emoldura vistas como também
as produz, e é no sentido de estabelecer a dialética entre estar passível e agir
94
Diller & Scofidio explicam que a natureza híbrida do Eyebeam, a um tempo museu e
facilitação de produção e educação, evoca uma arquitetura de programa que se cruza e se
inter-relacione espacialmente. Assim nasce o conceito, com uma fita dobrável que parte o
programa em dois: produz espaços de um lado e apresenta espaços de outro. Enquanto os
funcionários usam o centro leste e os visitantes o oeste, cada um deve passar através os
espaços do outro quando circulam entre os níveis sucessíveis. Em alguns momentos a fita é
cortada e deslizada em alinhamento com o nível superior ou inferior, juntando os espaços de
produção e representação. Cf. MITNICK et al., 2004.
218
que ela, junto a outras manifestações como a arte, pode estimular novos
modos de ver e sentir. Na preferência pelo instável e pelo indefinido,
características geralmente inerentes à condição contemporânea, Diller &
Scofidio acreditam no que tira do lugar e mostra o poder de escolha do usuário
ao experimentar de fato uma obra. Como um dos meios de resistência possível
quanto às limitações inerentes às construções em grande escala, estes
arquitetos incorporam, como explica Mitnick (et al., 2004), muitos instrumentos
de mediação tecnológica como parte da experiência do edifício. Esses
elementos levantam uma série de questões sobre a mutante natureza das
relações espaço-temporais e também introduzem uma moldura perceptual e
simbólica de referência externa à lógica formal da edificação em si, provocando
uma espécie de auto-inspeção constante. No caso do Eyebeam, uma câmera
robótica acoplada a um sistema semelhante a uma aranha rasteja horizontal e
verticalmente ao longo dos limites do edifício, capturando e transpondo
imagens de um momento e lugar a outros. A câmera perambulante faz com
que o prédio seja escaneado como um olho voltado para si mesmo,
coreografando sua própria divisa perceptiva num auto-exame minucioso. Ele é
objeto que se investiga e sea investigar. Mas a estabelecida dinâmica entre
voyerismo e tecnologia que se relaciona às manipulações e identidades
pessoais não privilegia, como pode parecer a princípio, um ponto de vista fixo
ou autoritário. Ao contrário, o projeto promove uma estrutura transparente e
maleável como as próprias fachadas translúcidas e a forma sinuosa que se
dobra e volumetriza de diversos limiares e camadas, e é focado mais na
experiência de seus usuários que em suas próprias questões materiais e
construtivas (MITNICK et al., 2004).
A conjunção programática dos espaços do museu, teatro, escola e estúdios de
produção com um bar, midiateca e laboratório de computação redefine estas
entidades tanto no âmbito individual como no coletivo. Isso se dá numa relação
não-convencional de circulação, espacialização e distribuição funcional: as
fronteiras são as mais tênues possíveis. O Eyebeam pode ser visto como um
lugar aberto para a produção e apresentação de eventos e instalações
219
vagamente organizadas em torno de requerimentos sempre mutáveis de mídia
tecnológica experimental. O volume se delineia numa fita dobrada, em
estruturas auto-portantes que se revelam nas fachadas transparentes, numa
luminosidade que tanto exibe como esconde devido à possibilidade de ativar ou
não paredes-telas em cristal líquido, placares eletrônicos, aberturas e
fechamentos. Além de flexibilizar o contato entre atividades e públicos
diferentes que habitam o museu, a transparência promove a inclusão da cidade
que circula o edifício, dissolvendo as fronteiras entre interior e exterior, público
e privado. Inúmeras interfaces tecnológicas utilizadas física ou virtualmente no
edifício, como nos sistemas de som, condicionamento de ar, comunicação e
informação, estender-se-ão ao corpo do funcionário e do visitante, que também
receberão sua interferência, carregando consigo um cartão eletrônico de
identidade conectado a uma rede de comunicações, uniformemente instalada
ao longo do museu. Isso permitirá o acesso ou a negação aos andares,
oferecer direções e informações, estabelecer uma lista de preferências, dentre
várias especulações. Sinalizações eletrônicas também se integrarão ao
edifício, através de um sistema potencial formado por cabos de fibra ótica
iluminados por LEDs, onde informações poderão ser projetadas no piso.
220
FIGURA 74 – Diller & Scofidio, Eyebeam Museum of Art and Technology - The 2002 Charles and Ray
Eames Lecture, Nova York, 2001.
FONTE: www.dillerscofidio.com/eyebeam.html
221
FIGURA 75 – Diller & Scofidio, Eyebeam – incursões tecnológicas
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 2004, p. 17, 21, 28 e 47
222
O projeto The Highline (FIG. 76), a ser construído em Nova York entre 2008 e
2009, consiste numa linha ferroviária elevada que se estenderá ao longo do
Westside de Manhattan, explorando as mudanças das categorias da natureza e
da cultura no século XXI. Os arquitetos explicam que é inspirado na beleza
melancólica e sem regras da ruína presente nas grandes metrópoles, onde a
natureza reclamaria um pedaço de infra-estrutura urbana vital. Mudando as
regras de comprometimento entre pedestres e vegetação, a estratégia de criar
uma agri-tecture combinará materiais orgânicos e construídos, numa mistura
de proporções modificáveis que acomodarão o selvagem, o cultivado, o íntimo
e o social. O parque, continuam eles, será marcado pela lentidão e pela
distração.
FIGURA 76 – Diller & Scofidio, The Highline, Nova York, 2008-9
FONTE: www.dillerscofidio.com/highline.html
223
Na interconexão entre teoria e prática, o livro Flesh (DILLER & SCOFIDIO,
1994) apresenta suas idéias especialmente através de alguns conceitos-perfis
de usuários da cidade contemporânea: desviantes, neuróticos, vizinhos,
pecadores, guardiões, turistas, caseiros e insones. Tais narrativas equivalem a
reflexões sobre o papel do arquiteto na sociedade atual e sobre o desenho do
corpo e suas constantes mutações, e se ilustram por algumas de suas
performances, exposições, instalações e projetos, como os vistos The
Rotary Notary and His Hot Plate or Delay in Glass, Slow House, e Para-site.
Em Desviantes, discute-se o papel assumido pelo corpo na sociedade
contemporânea, desde sua anexação às próteses até o que se cria e se
dociliza na lógica do poder. Ali a dupla chama atenção para a proliferação da
literatura a respeito do corpo, numa vasta gama de disciplinas, o que indica a
extensão da consideração deste como um terreno ideológico no qual forças
políticas, econômicas e tecnológicas são constantemente exercidas. Mas nota-
se a quase ausência do corpo no discurso da arquitetura, que aponta para a
indisposição desta de pensar corpos em quaisquer outros termos que não
humanísticos.
Presa entre as constrições morais da autonomia entre o modernismo e
o domínio social por um lado, e a ansiedade pós-moderna (eufórica
distópica) sobre a potencial perda do corpo para as forças dominantes
da tecnologia por outro, a arquitetura repetidamente falha em
reconhecer o corpo como uma construção política / econômica o qual
a arquitetura tacitamente ajuda a produzir (DILLER & SCOFIDIO,
1994:39, tradução da autora).
Entendem que uma arquitetura crítica pode usar a familiaridade
freqüentemente perdida para conquistar suas boas-vindas ao status quo e
então se tornar insidiosa. Nesse sentido, acreditam que uma arquitetura
dissidente possa ser pensada hoje como uma arquitetura do aprisionamento,
caracterizada pela furtividade, agindo sobre corpos e espaços construídos de
forma similar e deformando as regras bem estabelecidas. Curiosamente
lembram o fato de que, nas casas sem serventes da primeira metade do século
XX, o projeto de manutenção do corpo feminino idealizado, que não exibia
224
evidência de decadência, foi abordado com a mesma devoção dedicada à
manutenção de um espaço doméstico idealizado. Tais projetos paralelos foram
dedicados à prevenção de corrosões de idade e à restauração diária de uma
ordem ideal, cujos padrões e valores foram produzidos e sustentados por
pesados meios de comunicação populares. Ao que acrescentam que hoje a
manutenção do corpo e do lar encontrou uma nova conjunção: os trabalhos
domésticos podem ser incorporados a um regime aeróbico habitual e
desempenhados sob a orientação de um instrutor de ginástica de televisão. O
corpo divisível e dócil é trabalhado em grupos musculares distintos com cada
movimento articulado e numerado um taylorismo do lazer, no qual o ganho
de eficiência é trocado por perda de gordura (DILLER & SCOFIDIO, 1994).
Assim umas das atividades diárias do lar, o ato de passar roupas, é retomado
como exemplo de controle e eficiência que pode se libertar. O trabalho de
passar é governado por mínimos. Ao passar uma camisa, por exemplo, um
mínimo de esforço é usado para re-formatar uma camisa com o mínimo de
faces planas em uma unidade repetitiva bi-dimensional, que ocupa o mínimo de
espaço. “Mas e se a prática de passar pudesse se libertar da estética da
eficiência completamente?”, perguntam. O projeto Bad Press: Dissident
Ironing, 1993-1998 (FIG. 77) trata desta questão.
Talvez passar pudesse mais competentemente representar o corpo
pós-industrial ao substituir a imagem do funcional pelo disfuncional.
Uma prática de passar dissidente, liberada dos fardos da propriedade
pudesse talvez produzir novos códigos. Tome, por exemplo, a
linguagem velada desenvolvida recentemente por residentes de cela
em prisões estaduais designados para o trabalho de lavanderia.
Aparentemente supérfluos, vincos decorativos criados no vestuário de
outros residentes são agora compreendidos como investidos de valor
representativo um sistema de cifras reconhecível somente pelos
participantes. Como a tatuagem da prisão, o vinco tornou-se marca da
resistência a ser marginalizada. Mas onde as tatuagens agem
diretamente sobre a pele, a única posse permitida a um residente, o
vinco age na pele institucional o uniforme da prisão uma
deformação muito mais subversiva em sua camuflagem. (DILLER &
SCOFIDIO, 1994:44, tradução da autora)
225
FIGURA 77 – Diller & Scofidio, projeto Bad Press: Dissident Ironing, 1993-1998
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p. 43-57
Em Neuróticos, a dupla reflete sobre as relações de propriedade da terra, dos
objetos e dos corpos mediante a dominação econômica e cultural dos hábitos
cotidianos. Utilizam-se ora da perversão ou deslocamento de formas e usos
como suspender ao teto mesas e cadeiras ou serrar uma cadeira ao meio —,
ora da exacerbação de determinada atividade, ressituando-a e despertando o
usuário quanto a ela, aos objetos que envolve e à posição de seus corpos no
espaço. O withDrawing room (FIG. 78-80), de 1987, é uma instalação que
reflete essas discussões, onde coisas e pessoas se colocam e recolocam. Uma
casa de quase um século de vida, em estrutura de madeira, situada em San
Francisco, Estados Unidos, foi ao mesmo tempo locação e meta do projeto
(DILLER & SCOFIDIO, 1994). Seu programa duplo de residência e galeria
atuava reflexivamente sobre o tema da instalação: os códigos públicos do lar
privado. As “domesticidades” factual e ficcional estavam disponíveis aos
espectadores, convidando-os a se movimentar livremente pela instalação e
recebendo acesso visual restrito aos aposentos do artista, por meio de buracos
226
de observação. Com o tempo, os domínios do público e privado sobrepostos
começam a se confundir, pois, a instalação é espacialmente indiferente a
convenções de privacidade. Duas paredes a um tempo se interceptam e
secionam em quadrantes o volume de pé-direito duplo; o elemento do piso
original do sótão subdivide os quadrantes horizontalmente com um segundo
andar fantasma. Pretendia-se que o projeto invertesse o desejo padrão dos
desenhos ilustrativos na arquitetura para simular o real e o irreal, fazendo com
que o assunto familiar “lar” se oferecesse em modos imagéticos diferentes e
incitasse o olhar flutuante do espectador da galeria também observador
científico e voyeur.
Por todo o projeto, cortes são usados como uma forma de remover os sinais,
que ao mesmo tempo são ressaltados
95
, antes que lhe sejam atribuídos novos
significados. Inicialmente são cortadas as cadeiras, mesas, e a cama que,
desabilitados, são então reprogramados com aparelhos protéticos.
Na escala mais irredutível, uma cadeira de duas pernas é equipada
com uma terceira perna que passa entre as coxas do ocupante para
posicionar um espelho em confronto direto com a face, o espaço entre a
face e espelho constituindo o mais privado de todos os lugares. Para
essa simples máquina celibatária, o espelho fornece a eliminação da
separação; o espaço é expulso. (DILLER & SCOFIDIO, 1994:99,
tradução da autora).
A cama conjugal é cortada pela metade ao longo do eixo de contato sexual e
presa por articulações na cabeceira no ponto central da interseção das
paredes. O centro simbólico da casa, que na história da arquitetura pregressa
era destacado pela lareira e hoje é substituído pela televisão, é tratado no
projeto através de uma presilha mecânica que se metaforiza numa
ambivalência: quando na posição do armário, o casal encontra-se separado por
uma parede, espacialmente divorciados; se uma metade da cama permanece
95
Cf. DILLER & SCOFIDIO, 1994:99, onde a autora traduz: “Os vestígios inconscientes do dia a dia
pontuam as superfícies do piso e parede: os anéis que se interceptam deixados por copos de café sobre
a mesa, a poeira sob a cama que se torna um análogo de sua planta quando a cama é movida, o giro
riscado no piso pela porta empenada. Outras marcas são feitas por objetos concebidos como
equipamento de desenho: o arco traçado no piso pela cama rotatória, ou os rastros deixados na parede e
piso pelo trinco da porta.”
227
estacionária, a outra metade fica livre para girar pelos quadrantes adjacentes e,
no limite de 180º, o que está partido pode se reunir. A cama é negociada na
liberdade de escolher local e posição, preferência de parceiro ou propriedade.
Finalmente, a questão da propriedade no que diz respeito ao território é
discutida quando, entre a casa de esquina na Rua Capp e a casa adjacente,
uma fenda anômala de espaço é produzida“uma materialização (negativa)
da linha de propriedade ou, ao contrário, plano de propriedade” (DILLER &
SCOFIDIO, 1994:100). Essa fenda dilata-se em determinado ponto formando
um poço de luz; um espelho com uma inclinação de quarenta e cinco graus em
relação ao eixo é colocado nesse poço, e se rotaciona de modo que a fresta
entre as propriedades parece lacerar a parede do vizinho ainda se
projetando no interior da instalação como uma incisão, que corta o piso e tudo
em seu caminho para revelar o espaço rasteiro, a camada arqueológica de
encarnações prévias da casa.
FIGURA 78 - Diller & Scofidio, withDrawing room, 1987
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p.65, 68
228
FIGURA 79 – Diller & Scofidio, withDrawing room
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p.75
229
FIGURA 80 – Diller & Scofidio, withDrawing room, com a Vanity chair ou cadeira da vaidade
FONTE: DILLER & SCOFIDIO, 1994, p.82, 88-89
230
5 CONCLUSÃO
Embora o homem esteja cercado de um ambiente mediado pela tecnologia, as
transformações que esse cenário ciborgue, hipermidiático acarretam na
arquitetura nem sempre dependem de uma outra materialidade, de formas
novas ou da inserção literal da máquina em seus domínios. O que está
necessariamente em jogo é entender para que corpo, que usuário, a
arquitetura está sendo produzida. A lógica mudou, e ela demanda outras
distribuições de funções, mudanças de áreas e escalas, reprogramações do
existente, mais que robotizar as obras arquitetônicas embora a
nanoarquitetura de Johansen ou o Eyebeam de Diller & Scofidio mostrem a
existência de um caminho que segue o rastro de Archigram e suas
arquiteturas-máquinas. É possível estabelecer uma arquitetura consciente e
mais complexa dentro dessa nova lógica biocibernética tanto pela intervenção
direta da tecnologia como sem sua presença, mas baseando-se no corpo atual
e atualizável, acionando-o como totalidade perceptivo-sensória. De fato o corpo
como mediação do próprio espaço deve ser tomado como avaliação constante,
uma vez que aquele se define na impermanência de seus estatutos. A reflexão
sobre qual a experiência espacial possível na contemporaneidade é
dependente desse freqüente reexame, se o que interessa à disciplina é a
criação, não a reprodução de práticas, linguagens e sensibilidades. Se o corpo
é cada vez mais mutante, e reside na relação entre ele e o mundo a própria
experimentação do espaço, mutante também é sua produção e sua recepção.
A máquina é a condição de construção do corpo humano atual, mas a noção
de ciborgue, que pode ser adotada para defini-lo, não implica na mistura literal
do humano com o instrumental. Cada vez mais, a máquina se aproxima do
orgânico ou tende a “desaparecer”, realçando mais a fisicidade do corpo que
dela se apropria que sua objetividade. No entanto, embora a interferência dos
aparatos tecnológicos na vida cotidiana seja inegável, e construtora do
pensamento, da sociedade e da cultura, pode ser fator alienante ou promotor
de outras experiências: o limite está em oferecer poder de escolha. Isso se
na instância do processo de projeto para, num segundo momento, reverberar
231
na recepção da obra. A imaginação, esclarece Lèvy, torna-se a condição da
escolha ou da decisão deliberada.
O fenômeno de compressão do espaço-tempo, a fragmentação de lógicas e
sentidos espaço-temporais é, a um tempo, aprisionamento e chave de
libertação, desorientação desejada. Desconstruir, questionar a ordem
estabelecida, renovar, trazer a ambigüidade, a dúvida, o “estranhamente
familiar” é uma das saídas possíveis para o impasse do entorpecimento de
arquitetos e habitantes da metápolis protética. Re-sensibilizar o corpo em torno
do aparentemente comum também, como mostram Steven Holl e Tadao Ando.
Libertar o corpo de sua negação significa uma aproximação à experiência
estética de um espaço aberto e igualmente liberadoe libertador: essa tende
a se viabilizar a partir da conscientização por parte do homem ciborgue. E, se
uma nova vivência é emergente e dependente de um reajuste no uso da
representação na arquitetura, desse processo pode decorrer uma nova
espacialidade, bem como uma renovação da sensibilidade do corpo em torno
dela. Ao fim e ao cabo, o que se deve buscar é a arquitetura como prótese do
corpo, como sua extensão, sua amplificação, seu reconhecimento: arquitetura
transbordando do corpo, e corpo transbordando na arquitetura. No
reconhecimento mútuo dessas duas partes pode acontecer a experiência real e
a renovação de ambos, tornando-os agentes de suas próprias existências.
232
Projetado, na ausência de pontos de ancoragem,
exclusivamente pela atitude de meu corpo, [...] determinado,
quando o corpo está entorpecido, exclusivamente pelas
exigências do espetáculo, [...] normalmente ele aparece na
junção de minhas intenções motoras e de meu campo
perceptivo, quando meu corpo efetivo vem coincidir com o corpo
virtual que é exigido pelo espetáculo efetivo, e o espetáculo
efetivo com o ambiente que meu corpo projeta em torno de si.
Ele se instala quando, entre meu corpo enquanto potência de
certos gestos, enquanto exigência de certos níveis privilegiados,
e o espetáculo percebido enquanto convite aos mesmos gestos
e teatro das mesmas ações, se estabelece um pacto que me
usufruto do espaço assim como às coisas potência direta
sobre meu corpo. A constituição de um nível espacial é apenas
um dos meios da constituição de um mundo pleno: meu corpo
tem poder sobre o mundo quando minha percepção me oferece
um espetáculo tão variado e tão claramente articulado quanto
possível, e quando minhas intenções motoras, desdobrando-se,
recebem do mundo as respostas que esperam. (Merleau-Ponty)
233
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