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J
ONAS DE OLIVEIRA BERTUCCI
A
ECONOMIA SOLIDÁRIA DO PENSAMENTO UTÓPICO AO CONTEXTO ATUAL:
U
M ESTUDO SOBRE EXPERIÊNCIAS EM BELO HORIZONTE
B
ELO HORIZONTE, MG
U
FMG/CEDEPLAR
2005
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J
ONAS DE OLIVEIRA BERTUCCI
A
ECONOMIA SOLIDÁRIA DO PENSAMENTO UTÓPICO AO CONTEXTO ATUAL:
U
M ESTUDO SOBRE EXPERIÊNCIAS EM BELO HORIZONTE
Dissertação apresentada ao curso de mestrado do
Centro de Desenvolvimento e Planejamento
Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em
Ciências Econômicas.
Orientador: Prof. Dr. João Antônio de Paula
Co-orientador: Prof. Dr. Cândido Guerra Ferreira
B
ELO HORIZONTE, MG
C
ENTRO DE DESENVOLVIMENTO E PLANEJAMENTO REGIONAL - CEDEPLAR
F
ACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS - UFMG
2005
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Para Bia
A
GRADECIMENTOS
Se algum dia, por uma razão qualquer, eu tivesse que fazer uma autobiografia, uma parte
considerável dela seria facilmente resumida nos agradecimentos abaixo (ao menos no que
poderia se referir às “bases filosóficas” do pensamento de Jonas de Oliveira Bertucci em
sua juventude):
Agradeço ao meu pai, influência inevitável no meu pensamento político-ideológico, a
quem devo a descoberta da economia solidária;
Agradeço a minha mãe, de quem sempre tive toda a proteção e cujo cuidado, apesar de
algumas vezes excessivo, não posso deixar de reconhecer;
Agradeço ao meu irmão, Davi, meu primeiro exemplo e companheiro eterno;
Agradeço a minha irmã mais nova, Adriana, que desafiava minha paciência inquebrantável
e a quem eu quis ser sempre o exemplo;
Agradeço a minha irmã mais velha, Bia, quem primeiro me fez enxergar que eu havia
crescido, progresso fundamental na minha nova fase de desenvolvimento; assim como meu
cunhado, Klaus e minhas sobrinhas, Rebecca e Gabriella, que me acolheram com todo
amor; Agradeço a Bia e ao Klaus também pelas revisões de tradução do resumo;
Agradeço aos meus colegas de curso, entre os quais encontrei tanto diversos ‘rivais’
intelectuais, que me permitiam cada vez mais fortalecer minha crítica, como aqueles com
quem pude compartilhar a mesma convicção e os mesmos ideais, percebendo que não era o
soldado de um exército de um homem só; em especial a Tharsila, quem primeiro me fez
acreditar que esse projeto era possível;
Agradeço aos amigos com quem compartilhei o mesmo teto durante esses anos, Ana
Cláudia, Fabrícia, Rafael, Rômulo e Bruno;
Agradeço aos meus amigos de Brasília, que me acompanharam à distância durante esses
dois anos, talvez nem sempre pacientemente, o que me fazia pensar que eu era de algum
modo importante para eles;
Agradeço aos técnicos e trabalhadores participantes do Fórum Mineiro de Economia
Solidária, com quem pude compartilhar diversas experiências e que contribuíram direta ou
indiretamente para esta dissertação;
Agradeço aos meus orientadores, Cândido Guerra e João Antônio, por todo o apoio e
acompanhamento ao meu trabalho, com quem pude ter importantes discussões e que,
mesmo não concordando com todas as minhas interpretações, me deram toda a liberdade
para criar e, naturalmente, arriscar;
Agradeço a todos os mestres e funcionários do Cedeplar com os quais pude aprender e que
colaboraram com esse trabalho; em especial os professores Roberto Monte-Mór pela
participação na banca de defesa e com quem desde o início pude trocar boas idéias e
Rodrigo Simões, pelos importantes apontamentos no questionário da pesquisa de campo.
E, finalmente, agradeço ao professor Paul Singer, pelas críticas, elogios e apontamentos
sobre este trabalho durante a banca de defesa.
A todos vocês, que ajudaram a formar o que hoje sou, agradeço, de todo o coração!
A
PRESENTAÇÃO
Esta dissertação é fruto de um conjunto de estudos, reflexões pessoais e atividades que
desenvolvi durante o período do mestrado realizado no CEDEPLAR/UFMG. No decorrer
desses dois anos, aprendi muito com grandes professores, participei de encontros por todo
o Brasil, pude conhecer de perto diversas experiências e até mesmo, posso dizer, contribuir
para a divulgação e compreensão de alguns desses projetos. Meu desenvolvimento, tanto
no que se refere a uma maior maturidade acadêmica quanto como indivíduo foi imenso.
Quando aqui cheguei, minhas convicções e minhas idéias, que não passavam de
conjecturas abstratas com pouca base sobre a realidade concreta, não eram tão claras (e,
talvez, ainda não sejam muito). O fato é que havia milhões de questões que fervilhavam
em minha cabeça, sobre as quais pude refletir a ponto de agora ao menos entender que
poucas delas serão respondidas de forma satisfatória, sendo que, a maior parte não possui
respostas simples, diretas e únicas.
Destarte, este foi um trabalho gerado continuamente, desenvolvido, melhorado e
modificado ao longo do caminho, que ia sendo descoberto na medida em que diferentes
respostas possíveis se apresentavam para explicar diferentes e novas questões. Minha
motivação e interrogação primária, que acompanha o andamento de todo o meu trabalho, é
a constatação de uma contradição por muitos ignorada e para mim, ainda inexplicável. Ou
seja, me preocupa e me incomoda profundamente – talvez ainda mais porque nunca tenha
sido tão visível – que a busca por um desenvolvimento sustentável com respeito à natureza
e, fundamentalmente, centrado no homem, esteja muito além do que tem sido colocado
como foco nos estudos da ciência econômica durante grande parte de sua história.
No primeiro mês em Belo Horizonte eu era ainda um jovem tímido, que nunca havia
enfrentado e convivido com todos os problemas de uma cidade grande comum. Afinal,
tendo crescido em Brasília, uma cidade planejada, organizada, limpa (cujos principais
problemas não estão tão abertamente expostos), não tinha idéia de como viviam a maioria
dos brasileiros nas grandes cidades do Brasil. O que para mim era um caos completo, o
trânsito infernal, as ruas amontoadas de gente, a pobreza ao lado da abundância e pessoas
jogadas pelas ruas, não era mais do que um reflexo do que acaba se tornando quase natural
nas grandes cidades. Mas, minha maior aflição era que entre tudo o que havia estudado,
muito pouco me parecia ter utilidade para compreender e, menos ainda, para transformar
uma série de perversidades, para mim, inaceitáveis e desnecessárias.
Nesses primeiros meses, eu me perguntava e conversava com colegas sobre porque, afinal,
um político, um engenheiro ou mesmo eu, recebemos um salário (ou uma bolsa de estudos)
maior do que um motorista de ônibus ou um gari. Afinal, estes não dedicam sua vida toda
num trabalho penoso e socialmente necessário, no qual os primeiros com muita dificuldade
se submeteriam? A teoria econômica tradicional nos dá respostas em termos de
produtividade marginal do trabalho ou retornos ao investimento pessoal em “capital
humano” bastante plausíveis à primeira vista. Entretanto, deixa de lado toda a substância
subjetiva do ser humano, irredutível a esse tipo de simplificação, fazendo com que nos
esqueçamos que a forma com que as relações humanas (no caso de trabalho) se
desenvolvem não obedece a leis econômicas (ou matemáticas) pré-definidas. Tais “leis”
resultam, no fundo, de uma opção social. De uma escolha sobre a forma de organização do
trabalho, aceita de forma geral, por toda a sociedade, conscientemente ou não.
Parece-me oportuno compartilhar uma situação, que presenciei justamente no último mês
do meu trabalho e que me espantou ao me fazer recordar essas discussões que já tinham
quase sido esquecidas. Voltando para casa, tarde da noite, num ônibus lotado, eu me
posiciono próximo à cabine do motorista. No meio do caminho, um jovem trava com o
motorista um diálogo que descrevo aqui da forma que consigo me recordar: “Quando eu
era criança eu sonhava em ser motorista...” e este lhe respondeu: “Sonho? Meu filho, estou
há trinta e quatro anos atrás desse volante tentando levar a vida e o que foi que ganhei?
Nada! Isso aqui não é sonho, é um pesadelo...”. Episódios como este me fazem ver que
nossa sociedade ainda está distante de poder ser considerada justa, seja o que for que nós,
filósofos, consideremos justiça.
Embora seja crucial não cair na armadilha da idealização do objeto de estudo e ter todo o
cuidado em não se delinear soluções fantasiosas para todos os problemas sociais, é
plenamente razoável afirmar que o desenvolvimento e o fortalecimento de novas formas de
reprodução social, com base em valores opostos aos reproduzidos pela sociedade atual, é
imperativo. Isso obviamente não é simples e uma mudança de tal magnitude deve requerer
um longo tempo – o que não diminui sua urgência. Foi esse pensamento que me instigou e
direcionou minha curiosidade sobre a economia solidária. Esta proposta, ainda em fase
embrionária, mas que se multiplica por todo o globo, se apresenta como a busca por um
novo projeto de sociedade, com um virtuoso potencial para trazer grandes mudanças na
prática e na teoria econômica e social.
S
UMÁRIO
R
ESUMO.................................................................................................................................3
ABSTRACT..............................................................................................................................4
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................5
PARTE I DO SOCIALISMO UTÓPICO À ECONOMIA SOLIDÁRIA...........................................9
I.1 UM (BREVE) RESGATE AO SOCIALISMO UTÓPICO E SUA CRÍTICA ......................................10
I.2 DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E MUTAÇÕES NAS RELAÇÕES DE TRABALHO...............20
I.2.1 O DOMÍNIO DA MERCADORIA....................................................................................20
I.2.2 O DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA NO SÉCULO XX................................................23
I.3 A REPRODUÇÃO DA PRODUÇÃO NÃO-CAPITALISTA .........................................................32
I.4 SOCIALISMO CIENTÍFICO E ECONOMIA SOLIDÁRIA........................................................45
I.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PARTE I................................................................................49
PARTE II SOLIDARIEDADE E REALIDADE: SOBREVIVÊNCIA OU CONVICÇÃO? ...............55
II.1 DELIMITANDO A QUESTÃO .............................................................................................56
II.1.1 MANIFESTAÇÕES CONCRETAS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA ........................................ 56
II.1.2 A CRÍTICA À RACIONALIDADE - DISCUTINDO NOVAS FORMAS DE ANÁLISE ..............60
II.2 UM OLHAR SOBRE A ECONOMIA SOLIDÁRIA EM BELO HORIZONTE.................................67
II.2.1 COLETA DE DADOS..................................................................................................70
II.2.2 ANÁLISE DESCRITIVA DAS VARIÁVEIS.....................................................................73
II.2.2.1 ASPECTOS GERAIS............................................................................................74
II.2.2.2 ASPECTOS ECONÔMICOS...................................................................................78
II.2.2.3 ASPECTOS POLÍTICOS .......................................................................................80
II.3 ESTUDOS DE CASO - COOPERSOLI, COONARTE E COUROSIN...........................................84
II.3.1 RECICLANDO PARA (SOBRE)VIVER ..........................................................................85
II.3.1 COSTURANDO PARA (SOBRE)VIVER.........................................................................88
II.3.2 CAMINHANDO PARA (SOBRE)VIVER.........................................................................91
II.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PARTE II .............................................................................95
CONSIDERAÇÕES FINAIS CAMINHOS PARA UMA (MACRO)ECONOMIA SOLIDÁRIA .........98
R
EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................................106
A
NEXO I - FORMULÁRIO DE CARACTERIZAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS DE ES..................111
A
NEXO II ROTEIRO DE ENTREVISTAS SOBRE O EMPREENDIMENTO (A)............................113
ANEXO II (CONTINUAÇÃO) ROTEIRO DE ENTREVISTAS COM TRABALHADORES (B)........118
L
ISTA DE ILUSTRAÇÕES
F
IGURA 1 GRUPOS SEGUNDO FORMA DE ORGANIZAÇÃO.....................................................75
F
IGURA 2 DIVISÃO DE GÊNERO NO GRUPO..........................................................................76
F
IGURA 3 VARIAÇÃO DO NÚMERO DE PARTICIPANTES NOS ÚLTIMOS 12 MESES..................76
F
IGURA 4 GRUPOS SEGUNDO REALIZAÇÃO DE INVESTIMENTOS..........................................79
F
IGURA 5 GRUPOS SEGUNDO ACESSO A CRÉDITO................................................................79
F
IGURA 6 RENDA EM SALÁRIOS MÍNIMOS POSSIBILITADA PELO EMPREENDIMENTO............80
F
IGURA 7 GRUPOS SEGUNDO FORMAS DE ARTICULAÇÃO....................................................81
F
IGURA 8 GRUPOS SEGUNDO APOIO RECEBIDO...................................................................82
FIGURA 9 TIPO DE APOIO RECEBIDO PELOS GRUPOS............................................................82
G
RÁFICO 1 NÚMERO DE GRUPOS SEGUNDO ANO DE FORMAÇÃO.........................................77
G
RÁFICO 2 DESENVOLVIMENTO DE AÇÕES SOCIAIS............................................................83
T
ABELA 1 GRUPOS SEGUNDO MUNICÍPIO DE ORIGEM.........................................................75
T
ABELA 2 NÍVEL DE RENDA MÉDIA SEGUNDO FORMA DE ORGANIZAÇÃO...........................80
R
ESUMO
A economia solidária, um movimento recente que tem se estendido em diferentes
configurações por todo mundo nas últimas décadas, é freqüentemente tida como um
suspiro do pensamento “romântico” dos socialistas utópicos. De fato, não se tem clareza
sobre o que seria o próprio socialismo utópico, sendo que dentro desse estigma são
incluídos diversos pensadores socialistas que escreveram antes de Marx e Engels, ou seja,
antes do chamado “socialismo científico”. Se por um lado a economia solidária distancia-
se da radicalidade revolucionária inspirada na prática marxista, tampouco pode ser taxada
de socialismo utópico. Ela surge em um novo contexto histórico de evolução do
capitalismo contemporâneo e deve ser compreendida dentro desse quadro, bastante
distinto. A economia solidária, ao associar a autogestão e a “dádiva”, traz uma proposta
que nada tem do racionalismo que para Weber resulta no completo “desencantamento do
mundo”. Assim, procuramos discutir nesta dissertação como a economia solidária pode
trazer novos elementos para a construção de uma sociedade mais democrática e
participativa fundada na solidariedade, com diferenças significativas em relação às outras
formas de socialismo sugeridas, estudadas e praticadas até então. Tomamos como base de
análise empírica para este estudo um conjunto de experiências desenvolvidas na Região
Metropolitana de Belo Horizonte. Após o debate teórico, apresentamos uma pesquisa
ampla e geral, efetuada sobre 84 grupos dessa região, seguida de estudos de casos
focalizando três cooperativas de economia solidária – Coopersoli, Conarte e Courosin.
Procurou-se investigar essas experiências sobre aspectos políticos, econômicos e sociais.
Palavras-chave: Economia Solidária; Autogestão; Capitalismo; Socialismo Utópico;
Dádiva.
A
BSTRACT
The solidarity economics, a recent movement that has emerged in different ways all around
the world during the last decades, is frequently seen as a last sigh of the “romantic” utopian
socialism thought. In fact, it is not well defined what would be the so called utopian
socialism. On this stigma, different socialist thinkers who have written before Marx and
Engels (or either, before the so called “scientific socialism”) are included. If on the one
hand the solidarity economics moves away from the revolutionary radicalism inspired on
the Marxist practices, on the other hand it cannot be stigmatized as utopian socialism. It
emerges in a new historical context of evolution of the contemporary capitalism and must
be understood within this very distinct portrait. The solidarity economics, associating self-
management and “gift”, brings a proposal that has nothing of the rationalism that for
Weber would result in the complete “disenchantment of the world”. Hence, we look to
discuss in this dissertation, how the solidarity economics can introduce new elements to the
construction of a more democratic and participative society, based on solidarity and with
significant differences from the other suggested, studied and practiced forms of socialism
until now. We take as an empirical base for the study, a set of experiences developed on
the Metropolitan Region of Belo Horizonte. After the theoretical debate we present an
ample and general research, accomplished over 84 groups from this region followed by the
specific cases of tree solidarity economics cooperatives – Coopersoli, Conarte and
Courosin. We have attempted to investigate these experiences on political, economical and
social aspects.
Key-words: Solidarity Economics; Self-management; Capitalism; Utopian Socialism; Gift.
I
NTRODUÇÃO
A economia solidária, um movimento recente que tem se estendido em diferentes
configurações por todo mundo nas últimas décadas, é freqüentemente tida como um
suspiro do pensamento “romântico” dos socialistas utópicos. De fato, não se sabe
exatamente o que seria o próprio socialismo utópico, sendo que como utópicos são
incluídos diversos pensadores socialistas que escreveram antes (e contemporaneamente) a
Marx e Engels, ou seja, antes da formulação do chamado “socialismo científico”. Os
pensadores da economia solidária afirmam que esta poderia ser uma via para superação
não apenas das deficiências que se apresentam na atual fase do capitalismo, inerentes ao
próprio sistema, mas, no limite, de todo o capitalismo.
Sua proposta, ousada e louvável, não teria sustentação nem se manteria por muito tempo se
estivesse baseada apenas em idéias e experiências ultrapassadas e superadas, como se
afirma a respeito do socialismo utópico. Com efeito, em meio ao processo de
reorganização e mutação da ordem social e econômica desde a segunda metade do século
XX, percebe-se por todo o globo a multiplicação dessas experiências alternativas – antes
na prática do que na teoria.
O que se passa então? Seria a economia solidária um ressurgimento ou uma revitalização
do antigo socialismo utópico, mais um devaneio reformista fadado ao fracasso? Ou seria
uma proposta realmente nova, com diferenças significativas em relação a outras formas de
socialismo sugeridas, estudadas e praticadas? Suas bases certamente foram forjadas nos
mesmos ideais socialistas de justiça e igualdade de oportunidades sociais, porém algo nos
faz crer que, se não representam ainda uma alternativa completa e bem definida, ao menos
questões importantes são (re)colocadas nesse contexto.
Esta dissertação foi, assim, dividida em duas partes, além desta introdução e das
considerações finais. Na primeira parte se buscou levantar uma discussão mais ampla e
geral a respeito da economia solidária enquanto experiência e movimento em expansão
dentro da conjuntura do capitalismo global. Apresentamos suas origens históricas,
procurando mostrar o aprendizado que as experiências dos chamados socialistas utópicos
possibilitaram para a compreensão das formas não-capitalistas de produção, assim como os
elementos que ela resgata do pensamento marxista, injustamente distorcido pela
experiência fracassada do “socialismo real”, que na prática surgiu apenas como um sistema
5
autoritário e antidemocrático, afastando-se totalmente do pensamento idealizado por Marx
e por todos que lutavam por uma sociedade mais justa. Desse modo, defendemos que a
economia solidária, que não pode ser reduzida a uma categoria de socialismo utópico,
surge em um novo contexto histórico de evolução do capitalismo e precisa ser
compreendida dentro desse quadro, bastante diferente.
Como a história demonstra, após dois séculos de evolução o capitalismo tem apresentado
uma intensa e vigorosa capacidade de expansão e de reprodução de suas relações de
produção. Entretanto, a partir da segunda metade do século XX, quando começam a se
multiplicar dentro do próprio sistema – e de forma contraditória – uma série de propostas
alternativas de organização das atividades econômicas, sua capacidade de reprodução é
colocada em questão. Nesse período, o capitalismo passou por profundas mudanças
econômicas, políticas e culturais, em particular no que tange à estrutura do emprego e às
relações de trabalho. O que se vê a partir da década de 70 nos países desenvolvidos, entre
diversos outros aspectos que marcam o “pós-fordismo”, é a afirmação da dominância dos
serviços na estrutura ocupacional e o crescimento do trabalho autônomo (com variações
significativas de país para país).
O trabalho não mais se apresenta como uma condição de estabilidade, antes viabilizada
pelo sistema denominado nos trabalhos dos autores da escola francesa da regulação de
“regime de acumulação fordista”. Inicia-se a partir de então um movimento de
desestabilização dessa condição social estável do emprego que antes permitia certas
garantias e direitos de proteção ao trabalhador assalariado. A crise do fordismo engendra
assim, uma série de mudanças e uma reestruturação produtiva que incide sobre as relações
de trabalho e emprego a nível mundial. O estado, nas décadas de 80 e 90, nos países do
centro, incorpora as políticas neoliberais e coloca em questão sua condição de “estado do
bem-estar-social”, sendo que nos países periféricos, essa situação se mostra ainda mais
perversa em decorrência da precariedade – ou até mesmo da ausência – das estruturas de
proteção social aí implantadas.
Ressurge com mais força a ideologia liberal, onde a retirada do estado do bem-estar é
considerada, junto às políticas de redução dos gastos do governo, da austeridade monetária
e fiscal e da contenção de salários reais, como necessária, como um passo virtuoso, como o
único caminho para o desenvolvimento das nações. Entretanto, a exclusão, ampliada com a
crise do trabalho, dá novo impulso ao desenvolvimento de formas alternativas diversas de
6
organização da economia que podem ir desde o tráfico de drogas às formas baseadas na
solidariedade, que privilegiam a cooperação e a ajuda mútua, com vistas à reprodução
ampliada da vida em oposição à lógica da reprodução do capital.
A percepção de que formas de produção alternativas como tais “escapam” ao domínio do
capitalismo, se multiplicando em diferentes formas pelo mundo inteiro, nos desafia a
estudar a sociedade e a economia por uma ótica díspar à abordagem tradicional a qual
estamos acostumados e na qual nossa sociedade está fundada. Nesse sentido, uma breve
passagem sobre os estudos de Karl Polanyi a respeito das comunidades primitivas, onde a
economia poderia ser organizada por princípios como o da reciprocidade e da
redistribuição, pode oferecer a ligação entre a economia solidária e a abordagem da dádiva,
desenvolvida por Marcell Mauss e resgatada atualmente nos trabalhos de Allain Caillé
como elemento essencial para o desenvolvimento de uma sociedade que não seja
controlada pelo mercado e, portanto, onde a “lei do valor” não oculte os indivíduos por trás
dos produtos do seu trabalho.
Todo trabalho de leitura, estudo e reflexão, aqui apresentado, foi formado com base em
uma certa visão pessoal de mundo. Esta espécie de ontologia, que se modificou e se
fortaleceu ao longo desse processo de aprendizado, expressa ao fim, numa dinâmica que se
apresenta dialeticamente, um conjunto de convicções que não se sabe bem se já estavam
pré-definidas ou se consolidaram apenas após a conclusão dos processos vividos. Com
efeito, talvez também devido à nossa limitação (ou vício) de se repartir o objeto para
melhor compreendê-lo, surge a necessidade da vivência de uma experiência mais próxima
do trabalho desenvolvido pelos atores da economia solidária no Brasil e da apresentação de
uma imagem mais concreta e real desta
1
.
Este é o sentido que se buscou dar à segunda parte desta dissertação, onde é dado um
passo maior em direção à realidade concreta da economia solidária. Tomamos como base
1
Claramente este estudo apresenta um caráter alternativo, estando exposto a críticas e mesmo classificações
como a seguinte: “(...) incluindo a maioria das referências acadêmicas até aqui produzidas, encontram-se os
estudos norteados pelo “encantamento ingênuo” (...) derivados de análise que é antecedida de pressupostos
falsos, qual seja, uma idealização do objeto de estudo (...) Seus autores são, quase sempre, membros das
classes médias urbanas e tal enfeitiçamento pode, muitas vezes, assumir feições patéticas, inclusive
inesperadas aberrações antropológicas.” (N
AVARRO 2002, p. 263, tratando, no caso, dos inúmeros estudos
recentes de jovens sobre assentamentos rurais). Certamente, este trabalho não poderia ser neutro e não está
livre de considerações ideológicas, porém, é importante esclarecer que o estudo (inclusive de campo) foi
realizado com conhecimento desta crítica e cuidado para se evitar o “encantamento ingênuo” e as
considerações antropológicas aberrantes.
7
de estudo algumas experiências da Economia Popular Solidária na Região Metropolitana
de Belo Horizonte que possui um importante acúmulo de práticas ao longo dos últimos 10
anos. Após uma discussão não extensiva para a delimitação e descrição dos diferentes tipos
de expressão da economia solidária e sobre a necessidade de formas apropriadas de
avaliação dos ganhos do desenvolvimento de atividades autogestionadas, foi realizada
nessa segunda parte uma análise da economia solidária em Belo Horizonte, dividida em
dois momentos.
Primeiramente, é apresentada uma pesquisa ampla e geral, efetuada sobre 84 grupos de
economia popular solidária pertencentes à Região Metropolitana de Belo Horizonte. Em
seguida, esta análise é complementada por estudos de caso mais detalhados, sobre três
cooperativas de economia solidária dessa região – Coopersoli (reciclagem), Conarte
(bolsas e acessórios) e Courosin (calçados e mochilas). As três experiências estudadas
desenvolvem atividades diferentes, com pouca ou nenhuma relação no que se refere aos
seus produtos finais, contudo apresentam diversas semelhanças na sua forma de articulação
prática e gestão, mostrando muitas vezes os mesmos problemas e soluções estratégicas de
fortalecimento econômico e inserção no mercado.
Na conclusão, se discute a aparente fragilidade dos empreendimentos e da situação dos
trabalhadores que participam desse tipo de atividade, observando-se os aspectos políticos,
econômicos e sociais compreendidos na pesquisa. Embora os espaços e caminhos
alternativos para seu desenvolvimento ainda estejam sendo construídos, é possível levantar
uma série de propostas já colocadas por diversos autores para a formulação de políticas
nacionais de fortalecimento da economia solidária e para sua ampla articulação.
A dissertação é finalizada com uma discussão das amplas possibilidades de transformação
e dos diversos novos problemas que um projeto de sociedade baseado na sua autogestão
pode vir a trazer, destacando-se que os resultados intrínsecos à disseminação de princípios
e valores como confiança e envolvimento político e participativo dos trabalhadores em
uma organização autogestionada – que contrastam fortemente com a racionalidade
econômica tradicional – ainda não são bem compreendidos. Se a economia solidária não se
restringe à dimensão econômica, mas abrange efetivamente outras dimensões do
desenvolvimento, seja cultural, política ou institucional, fica no ar a questão de como ela
poderá gerar a semente de uma ‘nova ordem social’ permitindo uma sociedade mais
democrática e participativa.
8
PARTE I
D
O SOCIALISMO UTÓPICO À ECONOMIA SOLIDÁRIA
“A população trabalhadora não pode comprar nem os estofados que tece,
nem os móveis que fabrica, nem os metais que forja, nem as pedrarias que
talha, nem as estampas que grava; não pode consumir nem o trigo que
semeia, nem o vinho que produz, nem a carne dos animais que cria: não
lhes é permitido morar nas casas que constrói, assistir aos espetáculos de
que gostaria, gozar o repouso que seu corpo reclama: e por quê? Porque,
para usufruir de tudo isso, seria preciso comprá-lo ao preço de custo, o que
o direito de albana [propriedade] não permite. Na tabuleta das suntuosas
lojas que sua indigência admira, o trabalhador lê em letras maiúsculas:
ESSA OBRA É TUA, MAS NÃO A TERÁS: Sic vos non vobis!”
Pierre-Joseph Proudhon, 1840.
I.1
UM (BREVE) RESGATE AO SOCIALISMO UTÓPICO E SUA CRÍTICA
Antes de tudo, o trabalho engajado desses personagens da história do pensamento e da
prática socialista deve ser reconhecido. Surgindo no início do século XIX, eles foram os
primeiros pensadores a demonstrar que a principal fonte de todos os males sociais estava
na estrutura do sistema econômico baseado na propriedade privada e é, ao mesmo tempo,
lamentável e surpreendente como várias de suas idéias ainda permanecem válidas no
mundo moderno. Apesar de muitas vezes de forma distinta, e cada um à sua maneira
original, todos faziam uma alusão às questões morais por meio da fé, mas buscavam
comprovar suas propostas para um sistema ideal por meio da ciência. Talvez o grande
problema para a consolidação de seu pensamento tenha sido a falta de uma base
metodológica bem definida que os possibilitasse compreender corretamente o sistema
capitalista, crítica que Marx só fará após seu ‘acerto de contas’ com a filosofia de Hegel e
Feuerbach ao começar a escrever intensamente sobre Economia Política.
Como aponta E
NGELS (1985 [1880]), os socialistas utópicos não atuavam em defesa de
uma classe (do proletariado), mas em prol de toda a humanidade. Pretendiam “instaurar o
império da razão e da justiça eterna”, e essa razão imutável não seria resultado do
desenvolvimento histórico da humanidade, mas o lugar da perfeição que bastaria ao
homem (de qualquer época) revelar. Tendo marcado o século XVIII, o Iluminismo
apontava que a sociedade estava para atingir a era da razão, influenciando o pensamento de
importantes filósofos como Voltaire e Rousseau, numa racionalização do mundo vinda
desde as leis de Newton e do plano cartesiano de Descartes. Na verdade, o movimento de
libertação do homem e a Revolução Francesa possibilitaram a ascensão da burguesia e o
desenvolvimento da indústria capitalista, o que culminou, em seu extremo, na
mercantilização das relações sociais e do homem. Ao mesmo tempo em que a propriedade
oferecia uma nova “liberdade”, cresciam nos países onde nascia o capitalismo, novas
formas de violência como a prostituição e uma série de vícios (burgueses). “A opressão
violenta cedeu lugar à corrupção, e a espada, como principal alavanca do poder social, foi
substituída pelo dinheiro”. Foram homens como Owen, Fourier e Saint-Simon os primeiros
a apontar o absurdo engano cometido.
“Numa palavra, comparadas com as brilhantes promessas dos pensadores, as instituições
sociais e políticas instauradas pelo “triunfo da razão” redundaram em tristes e decepcionantes
caricaturas. Faltavam apenas os homens que pusessem em relevo o desengano, e esses
homens surgiram nos primeiros anos do século XIX”. (E
NGELS, 1985 [1880], pg. 34).
10
O primeiro deles, que aqui apresentamos, é Saint-Simon, que pode ser qualificado como
um autêntico tecnocrata. Acreditava, sobretudo, que a sociedade deveria ser regida por
uma elite de técnicos e que o poder deveria ser exercido por um grupo de homens sábios,
filósofos conhecedores das ciências naturais
2
. Assim, para ele, a sociedade (de sua época)
estava invertida, pois não eram os homens moralmente e tecnicamente corretos que a
dirigiam. Ao contrário, estes estavam dominados, como se viu historicamente, pelos
homens, senão mais corruptos e imorais, menos produtivos
3
.
Para notar isso bastaria supor, num momento, que um país como a França perdesse por um
desastre seus três mil melhores sábios e técnicos de diversas áreas da ciência, e em outro
momento, que conservasse esses homens de gênio e que os expurgados fossem parte da
família real, duques, condes, conselheiros de estado, políticos, homens da igreja e os mais
ricos proprietários que vivem aristocraticamente, enfim, os 30 mil homens mais reputados.
Ora, a resposta para a questão de qual seria a pior perda para a nação lhe parecia obvia.
Como responde S
AINT-SIMON (2002 [1803], pg. 59):
“Esse acidente afligiria certamente os franceses, que são generosos, que não saberiam ver com
indiferença o súbito desaparecimento de um número tão grande de seus compatriotas. Mas
essa perda dos trinta mil indivíduos reputados os mais importantes do Estado não lhes
causaria tristeza senão de um ponto de vista puramente sentimental, porque daí não resultaria
nenhum mal para o Estado”.
Enquanto no primeiro caso “a nação se tornaria um corpo sem alma no momento em que
os perdesse; cairia imediatamente em um estado de inferioridade perante as nações das
quais é atualmente rival e permaneceria subalterna em relação a elas enquanto não
reparasse sua perda”. (S
AINT-SIMON, 2002 [1803], pg. 58).
Outra figura interessante é Fourier, talvez o personagem mais atípico na estória do
Socialismo Utópico. Muitas vezes pode até ser difícil entendê-lo como socialista. Sua
proposta era a construção de um “Novo Mundo Industrial”, perfeito e completo, o estágio
final de organização da sociedade que substituiria naturalmente, assim que descoberta sua
2
No relato de “Um Sonho” SAINT-SIMON (2002 [1803]) afirma que a reunião dos 21 sábios (três
matemáticos, três físicos, três fisiologistas, três químicos, três literatos, três pintores, três músicos), eleitos
pela humanidade, deveria ser chamada de “Conselho de Newton”.
3
Segundo John FRIEDMANN (1987), Saint-Simon teria sido o pai do planejamento científico. Suas idéias
inspiraram a corrente do planejamento social tida como Policy Analyses, que dá ênfase à matematização da
sociedade e defende a formação dos chamados engenheiros sociais – as decisões ‘afilosóficas’ desses
indivíduos naturalmente levariam às ações sociais mais eficientes.
11
teoria, a sociedade civilizada (capitalista). “Seu sonho era que algum capitalista se
interessasse pelo seu sistema e se dispusesse a experimentá-lo” (SINGER, 2002a, p. 35).
“Nesse regime, a prática da verdade e da justiça torna-se um meio de enriquecimento, e a
maior parte dos vícios degradantes, segundo nossos costumes, como a gula, torna-se um meio
da emulação industrial, de modo que os refinamentos gastronômicos são encarados como
demonstrações de sabedoria. Segundo esse contraste, o estado civilizado, onde reina a mentira
e a indústria repugnante, será chamado de mundo às avessas, e o estado societário, de mundo
direito, fundado sobre o uso da verdade e da indústria atraente.” (F
OURIER, 2002[1829], pg.
68).
Fourier pode chegar a esse projeto (divino) através da “descoberta” do Princípio da
Atração Universal, onde o mundo material e social se assemelham, como reflexo da
unidade no sistema do universo, ou seja, a economia e a mecânica são uma coisa só,
regidas por leis físicas e matemáticas semelhantes. Desse modo, todas as paixões humanas
poderiam ter livre curso para gerar uma harmonia universal (S
INGER, 2002a).
Assim, propunha a formação de pequenos núcleos de associação praticamente auto-
suficientes, os falanstérios, cada qual com cerca de mil e oitocentas pessoas, que reuniriam
as sete funções industriais
4
, permitindo a eficiência plena do trabalho humano ao extinguir
os vícios como a fragmentação da agricultura e a falsidade do comércio. Nessa sociedade o
trabalho seria atraente e haveria uma ampla gama de atividades, não haveria incentivo ao
ócio, e a implantação desse sistema não comprometeria os interesses de nenhuma classe.
Todos sairiam ganhando, sem a necessidade de um estado coercitivo autoritário (o que o
leva a ser visto algumas vezes como um precursor do movimento anarquista). Ressalve-se
que Fourier não defendia a supressão da propriedade privada nem acreditava na igualdade
plena entre os homens, sendo que seu sistema pode ser entendido como “uma variedade de
socialismo de mercado, centrado na liberdade individual, na livre escolha de trabalhos,
organizados em equipes e na propriedade por ações dos meios de produção”. Na prática, a
maioria das comunidades fundadas sobre os princípios do fourierismo nos Estados Unidos
e na França se desfez em cerca de cinco anos (S
INGER, 2002a, p. 37).
Em sua ilusão, Fourier chega a afirmar: “(...) é a mim que as gerações presentes e futuras
deverão a iniciativa de sua imensa felicidade”
5
. Apresentando um sistema utópico e
estático passou a anos luz de distância da compreensão de que o desenvolvimento das
4
A saber: atividades domésticas, agrícolas, manufatureiras, comerciais, de ensino, estudo e artes.
5
Fourier, C. Teoria dos quatro movimentos. Apud: TEIXEIRA (2002, p. 63).
12
sociedades e do homem é um processo histórico e contínuo. Suas afirmações ousadas não
são mais que preceitos dogmáticos. Seu critério científico é tão preciso quanto de um
sacerdote, quando quer revelar que conhece os planos de Deus.
Por outro lado, com seu trabalho dedicado e original, temos Robert Owen como o
personagem mais reconhecido entre os socialistas utópicos, primeiro a questionar, mais do
que a máquina em si, a motivação pelo lucro. É o precursor do movimento cooperativista e
importante ator político nos movimentos sociais na Inglaterra do início século XIX
6
. Ainda
jovem Owen fundou uma grande fábrica têxtil (New Lanark) com cerca de 500
trabalhadores, que cresceu e se tornou muito lucrativa. A diferença era que ele não
explorava os trabalhadores conforme os padrões vigentes no início do capitalismo
industrial. Limitava a jornada de trabalho e ao invés de empregar crianças, construía
escolas. Foi considerado um filantropo de renome.
Porém, mais tarde se deu conta de que “esse novo poder”, possibilitado pelo
desenvolvimento das técnicas produtivas, era “obra da classe operária” e de que, ao final,
esses trabalhadores não eram muito diferentes de escravos. A partir daí sua forma de ver e
de atuar no mundo foi transformada, tanto em relação às normas burguesas como à
religião, cuja crítica parece fazer de Owen um agnóstico. Isso não impede que seja
considerado um dos maiores exemplos do que se poderia considerar um “homem de bem”.
Repudiava a guerra e defendia que fatores como a caridade, a verdade absoluta em todos os
momentos nas relações entre os homens, a estima e o amor incondicional ao próximo e
perante toda a raça humana seriam fundamentais para se manter a organização de uma
sociedade “perfeita”. Sua crítica à religião pairava justamente sobre sua incapacidade de
unir os homens e seu fundamento falso, historicamente causador de discórdia, guerra e
hipocrisia. Afirmava que o mais importante estudo do homem, como disseram os antigos,
“consiste em conhecer a si mesmo” (O
WEN, 2002[1836-1844], p. 123).
Passou assim, a atuar na elaboração de projetos detalhados de formação de pequenas
colônias comunistas com experiências na Irlanda e na América do Norte, as “Aldeias
Cooperativas”, onde o produto do trabalho seria repartido de forma eqüitativa de acordo
com o tempo gasto na produção, a princípio um plano para acabar com a pobreza, que cada
vez mais se mostrava como uma proposta de reformulação de toda a sociedade. Essa
6
“Todos os movimentos sociais, todos os progressos reais registrados na Inglaterra no interesse da classe
operária, estão ligados ao nome de Owen” (E
NGELS, 1985 [1880], p. 43).
13
postura crítica à igreja e aos mais fortes paradigmas burgueses da sua sociedade lhe rendeu
descrédito frente à imprensa e a perda de sua posição social, antes de prestígio (ENGELS,
1985, p. 41/2). As suas experiências, onde gastou grande parte de sua fortuna, fracassaram,
dedicando seus últimos 30 anos de vida trabalhando no interesse dos trabalhadores na
formação de cooperativas de consumo, de produção e mercados de troca, entre eles, a
Labour Exchange, uma bolsa de trocas, onde os adeptos do movimento cooperativista
trocavam os produtos entre si, sem moeda, ainda com base no critério do tempo de trabalho
necessário para a produção.
7
Uma visão da base filosófica de seu trabalho pode ser vista no “Livro do Novo Mundo
Moral”, onde afirma ter descoberto as leis básicas que regem o desejo humano, pelas quais
se poderia constituir uma verdadeira “ciência moral”. Afirmava que nossos sentimentos e
convicções se dão independentemente de nossa vontade, que os homens sentem amor ou
ódio por pessoas ou coisas independentemente de sua escolha, e não podem por vontade e
decisão própria, sentir. Ao contrário, são os sentimentos e convicções humanas que criam a
vontade e a motivação para agir
8
. Desse modo, seria possível dar direção na formação dos
sentimentos e convicções das crianças da geração seguinte, pois o homem de caráter
superior se forma “quando as leis, instituições e costumes sob os quais vive estão de
acordo com as leis da natureza”.
Fundamentado nisso Owen elaborou seus projetos de comunidades, sob nova organização
social e política. Dava importância fundamental à educação, que até o seu tempo só teria
servido para deformar e não para formar. Nessas comunidades, a educação – guiada pelos
sábios – seria diversificada e estimularia o interesse pelo saber, a fim de formar o caráter e
tornar a criança o “ser mais racional possível”. Um novo governo seria regido pelos sábios,
eleitos democraticamente no início, e com o tempo a eleição não seria mais necessária. É
interessante verificar como Owen afirmou serem utópicos uma série de sistemas sociais
desde Platão, porque seus autores não conheciam “os princípios indispensáveis para se
fundar uma sociedade unida” que agora ele revelava. Com efeito, como afirma O
WEN
(2002[1836-1844], p. 129):
“Torna-se cada dia mais evidente que é muito mais fácil produzir e distribuir riquezas
7
Segundo Engels, foi Owen quem presidiu “o primeiro congresso em que as trade unions de toda a Inglaterra
se fundiram numa grande organização sindical única”. (E
NGELS, 1985 [1880], p. 43).
8
“Esses efeitos são tão involuntários e merecem tão pouco elogio ou censura como a forma do rosto ou o
peso do corpo”. O
WEN (2002 [1836-1844]), p. 115.
14
abundantes e bem educar e governar a população pela união dos homens, habituados a
cooperar e a ajudar-se mutuamente em um único interesse definido e bem compreendido que
pela divisão e oposição de interesses”.
Apesar do fracasso de suas experiências, sua afirmativa acima continua válida, porém não
parece que a maioria dos homens do nosso tempo a tenha compreendido. Talvez o
principal erro de Owen tenham sido suas conclusões falsas sobre a natureza humana, que o
levavam a acreditar que seria possível atingir essa sociedade perfeita, ou mesmo, que não
estaríamos tão distantes dela. Possivelmente caiu na mesma armadilha lógica da qual
acusava os filósofos anteriores, ao afirmar ter descoberto “um sistema capaz de assegurar o
bem-estar universal permanente” e não compreender o caráter dinâmico da história do
homem. Diversas experiências com base no owenismo surgiram posteriormente, mas ou se
mostravam insustentáveis financeiramente ou acabavam após o afastamento ou o
falecimento de seus idealizadores
9
.
Provavelmente o mais importante ensaio de Pierre-Joseph Proudhon, o último dentre os
utópicos que apresentamos, tenha sido o texto “O que é a propriedade?”. Neste trabalho,
ele procura demonstrar matematicamente, agrupando a moral e a álgebra de forma
admirável, a impossibilidade lógica da propriedade. Sendo contemporâneo de Marx, os
dois travaram longos debates e, apesar de Marx ter escrito “A Miséria da Filosofia (1847)”
em resposta agressiva à “Filosofia da Miséria (1846)” de Poudhon, é inegável a influência
de seu trabalho sobre a propriedade no futuro desenvolvimento da teoria da mais-valia
10
.
Na verdade, esses fatos o colocam em uma posição diferente dos socialistas antes de Marx,
sendo considerado por muitos como o precursor do socialismo científico.
Em seu trabalho, Proudhon aponta, com uma argumentação baseada em preceitos da
economia política clássica e se valendo de uma linguagem carregada de metáforas
religiosas
11
, o fato de que a propriedade dá o poder de produzir sem trabalhar, é o roubo
9
Segundo SINGER (1998, p. 93), os assentamentos coletivos na antiga Palestina e atual Israel são as
experiências de maior êxito na formação de uma sociedade constituída por “aldeias cooperativas”, tendo
atravessado todo o século XX até hoje.
10
Antes de escrever “A Filosofia da Miséria”, Marx havia considerado a crítica de Proudhon à propriedade
privada como sendo o “primeiro exame crítico, e este o primeiro exame resoluto, sem escrúpulos e ao mesmo
tempo científico”. E afirma que “este é o grande progresso científico que ele (Proudhon) efetuou, um
progresso que constitui uma revolução da Economia Política e que somente tornou possível uma verdadeira
ciência da Economia Política. A obra de Proudhon Qu’est-ce que la propriété? tem a mesma significação
para a Economia Política moderna que a obra de Sieyès Qu’est-ce que le tiers Etat? tem para a política
moderna” (M
ARX, A Santa Família, citado por MANDEL, 1968, p. 38).
11
Nesse sentido são interessantes algumas passagens como: “(...) perseguiremos a velha serpente (a
propriedade) em seu caminho sinuoso; comprovaremos os enrodilhamentos homicidas desse medonho réptil,
15
legitimado, causa a morte, é contrária à natureza e à razão. Aponta que a propriedade é
desumana e “faz com que a sociedade se devore”, pois um capitalista luta para superar o
outro e nenhum deles tem compromisso com o trabalhador
12
. Critica Say, Ricardo e
Malthus, entre outros, declarando sua indignação:
“Buscar uma origem racional e legítima ao que não é nem pode ser senão roubo, peculato e
rapina constitui o cúmulo da loucura proprietária, o mais alto grau de encantamento com que
a perversidade do egoísmo pode enganar as pessoas, aliás, esclarecidas.” (P
ROUDHON,
2002[1840], p. 241).
O que Proudhon quer mostrar é que cobrando um produto imaginário, o proprietário dos
meios de produção, seja terra ou capital, está recebendo, literalmente, algo em troca de
nada. Para ele a propriedade fere o equilíbrio entre produção e consumo e contradiz os
axiomas da Economia Política. “Ou os aforismos da economia política são falsos, ou a
propriedade, que os contradiz, é impossível” (I
DEM, p. 253). Entre as proposições
decorrentes da propriedade está a impossibilidade da igualdade de direitos eleitorais e a
tirania imposta por um estado controlado pelos interesses de uma minoria.
Em um momento do texto, Proudhon faz uma descrição do processo que hoje é conhecido
como dumpping, quando pelo fato de possuir um grande capital, um produtor pode fazer
falir os outros, que, menores e desprovidos de capital, não sobrevivem à concorrência. Ora,
tal processo permite chegar à conclusão lógica de que a propriedade dá o direito a um
grande produtor de “forçar seu vizinho a fechar sua loja e abandonar seu negócio”. A
legislação atual, em muitos países, contra a formação de cartéis, de monopólios ou contra a
atividade de dumpping nada mais é, dentro da mesma lógica de Proudhon, do que a
negação da propriedade, ou melhor, mais uma demonstração de que ela é impossível. A
tentativa de remediar os males causados por ela só pode ser eficaz estruturalmente se
caminhar para sua eliminação. Esse direito pode ser percebido por diversas formas, seja
como o direito de forçar o salário para baixo, o direito de exploração, e ainda, o direito ao
roubo e ao assassinato, já que a propriedade causa a miséria e a morte. Ora, segundo
cuja cabeça, com suas mil bocas, vem sempre se escapando da espada de seus mais ardentes inimigos,
deixando-lhes imensos destroços de seu cadáver (...) estava escrito que ele não seria destruído, antes que um
proletário, armado com uma varinha mágica, o enfrentasse” (P
ROUDHON, 2002 [1840], p. 237/8).
12
“(...) os inconvenientes das estações, a própria mortalidade, não lhe dizem respeito (ao proprietário)” já que
não trabalha, apenas arrenda a terra (I
DEM, p. 258).
16
Proudhon, a concorrência não é senão um duelo decidido pelo dinheiro
13
.
É com essa condenação da propriedade que Proudhon concebe um sistema de crédito e de
trocas que pode ser comparado aos atuais Bancos Populares e aos Clubes de Trocas.
Propôs o que seria o sistema perfeito, que asseguraria o crédito gratuito para os
trabalhadores, e sem juros, onde a transferência eficiente de recursos e necessidades dentro
da sociedade entre diferentes pessoas seria possível, sem favorecer o ganho sem trabalho.
Todavia, apesar de sua atuação em projetos práticos e objetivos, de ser um dos primeiros
autores a escrever consistentemente sobre o capitalismo e da tentativa constante de colocar
os produtores à frente da economia, fundando o pensamento que daria origem às idéias de
autogestão, o projeto de Proudhon também fracassou. Sendo um precursor, incorreu
também em falhas. Contudo, as críticas mais constantes aos seus trabalhos visam seu
caráter reformista, na medida em que seus projetos seriam apenas uma tentativa de tornar o
sistema mais humano e justo e não de superá-lo, não eliminando a propriedade, mas apenas
realizando sua redistribuição.
Como se pode perceber, o que é chamado de “socialismo utópico” não constitui uma linha
bem definida do pensamento socialista, consiste, antes, em um primeiro aglomerado de
trabalhos e experiências exploratórias, reflexos da inquietação e da indignação desses
personagens face à realidade que presenciavam. Em relação a importantes questões,
autores como Fourier e Proudhon se diferenciavam muito entre si. De forma alguma
Proudhon aceitava o preceito, que originalmente vem de Saint-Simon: a cada um segundo
suas capacidades
14
. Não que se esperasse que concordassem em tudo, mas as divergências
eram claras. Eis como P
ROUDHON (2002[1840], p. 274) se refere a Fourier:
“A quem se quer reformar a indústria e a agricultura, se a propriedade é mantida, se o trabalho
não pode jamais cobrir a despesa? Sem a abolição da propriedade, a organização do trabalho é
apenas mais uma decepção. (...) A parcela de charlatanismo é muito grande nesse homem e a
de boa fé, muito pequena”.
Do mesmo modo, é preciso ter cuidado ao afirmar que os falanstérios de Fourier têm
13
“Quem mente, o acusado ou a testemunha? – diziam nossos bárbaros ancestrais. Faça-os lutarem,
respondia o juiz, ainda mais bárbaro; o mais forte terá razão. (...) Qual de nós dois venderá especiarias ao
vizinho? Ponham-nas na loja, responde o economista: o mais esperto ou o mais patife será o homem mais
honesto ou o melhor comerciante” (P
ROUDHON, 2002[1840], p. 296).
14
Tal idéia foi aproveitada e modificada por Marx tomando a seguinte forma: “de cada um, de acordo com
suas capacidades; a cada um de acordo com suas necessidades!”, o que vai bem além da simples divisão do
produto pelo tempo ou qualidade do trabalho (MARX, 2002 [1875], p. 108).
17
grande semelhança com as comunidades fundadas por Owen. Basta notar como F
OURIER
(2002[1829], p. 71) se distancia de Owen:
“Uma seita criada pelo Senhor Owen pretende ter criado o estado societário; mas é
exatamente o contrário: ela contribui para desacreditar a idéia de associação, pela falsidade de
seu método, contrário em todos os sentidos à natureza ou à atração”.
Se por um lado, Owen e Proudhon rejeitavam categoricamente a propriedade, Fourier e
Saint-Simon a defendiam. E se Fourier imaginava uma sociedade plenamente anti-
autoritária, com certa descentralização de poder, e Proudhon se declarava adepto do
anarquismo filosófico, para Saint-Simon a autogestão da sociedade certamente seria
impossível – já que o poder deveria ser exercido pelos técnicos, e não por cidadãos
comuns. Ao mesmo tempo, os estabelecimentos de troca fundados por Owen, onde a hora
de trabalho era a unidade de medida do valor do produto, se assemelham muito aos bancos
de troca de Proudhon, entretanto, enquanto estes pretendiam ser a resposta para todos os
males sociais, aqueles visavam antes uma transformação muito mais radical da sociedade.
Ou seja, Owen propunha não apenas uma transformação na estrutura e organização
econômica, mas antes em todos os aspectos da educação, da cultura e da vida social.
O que há de comum entre esses pensadores, além da forma árdua e direta com que
apontam os problemas sociais de sua época, mostrando que as soluções aplicadas até então
estavam longe de sua verdadeira causa e essência, é que as aplicações de seus projetos,
expressão da “verdade absoluta”, não causaram a revolução que eles acreditavam que
causaria. Seu fracasso acabou por marcar neles o título de utópicos. Se para alguns o
socialismo utópico foi visto como um movimento reformista, que não colocava em questão
a perspectiva de ruptura desse sistema contaminado em sua estrutura, para outros batia de
frente com o estado e com os grupos mais poderosos do capitalismo crescente. De fato,
encontra-se nesse socialismo uma forte abertura contra a ordem vigente, contra todos os
grupos que detinham o poder, além da burguesia, contra a nobreza e a igreja. Sua crítica é
direta, dura, porém arriscada, numa fé exacerbada na razão, muitas vezes paradoxal. O fato
é que não é possível classificá-lo nem de uma forma nem de outra.
Com efeito, o socialismo até então, mostrava-se limitado e a reformulação desse
movimento se iniciaria com os trabalhos de Marx e Engels. A superação desses limites,
segundo E
NGELS (1985[1880]), viria com o desenvolvimento do método dialético, com a
introdução de elementos da dinâmica dos processos históricos em contraposição à estática
18
positiva da metafísica, com a concepção materialista da história. Isso permitiria um avanço
fundamental na compreensão sobre a dinâmica do sistema capitalista, até então insuficiente
(ou equivocada). Em Marx, não há rastro de utopismo, pois não cria uma ‘nova sociedade’,
mas estuda o processo histórico de como uma nova sociedade pode nascer a partir da
velha.
“Desse modo, o socialismo já não aparecia como a descoberta casual dum ou outro intelecto
genial, mas como o produto necessário da luta entre as duas classes formadas historicamente
(...). A sua missão já não era elaborar um sistema o mais perfeito possível de sociedade, mas
investigar o processo histórico econômico de que, forçosamente, tinham que resultar essas
classes e o seu conflito, descobrindo os meios para a solução na situação econômica assim
criada (...). Com efeito, o socialismo anterior criticava o modo de produção capitalista e as
suas conseqüências, mas não conseguia explicá-lo nem podia, portanto, destruí-lo
ideologicamente; nada mais lhe restava senão repudiá-lo, pura e simplesmente, como mau.”
(E
NGELS, 1985[1880], p. 53).
Portanto, a construção de bases mais sólidas para uma teoria e uma práxis do socialismo só
seria possível com a descoberta (que deveríamos a Marx) do segredo da produção
capitalista – o capitalista compra a força de trabalho do trabalhador e dela retira mais valor
do que lhe custa, se apropria de trabalho não pago e essa mais-valia permite a acumulação
cada vez maior por esse capitalista. Estava assim fundado o socialismo científico, que
representa a conscientização dos conflitos gerados no modo de produção capitalista,
conflitos estes que “tem suas origens independente da atividade ou da vontade dos próprios
homens que o provocaram” e que a concepção materialista possibilita compreender.
(E
NGELS, 1985[1880], p. 56).
É possível discutir hoje sobre um novo prisma o que coloca Engels. A missão do
socialismo científico seria, segundo ele, fornecer a explicação e o entendimento do
capitalismo e de suas contradições. E a teoria proveniente deste movimento se apresentaria
intimamente ligada à práxis, numa dialética constante, onde o pesquisador ao mesmo
tempo em que transforma, é transformado pela realidade. Com esse entendimento, estaria
dada a chave para a superação do capitalismo. Ora, a história depois de Marx e Engels nos
apresentou fatos controversos. Se Marx revelou de fato o segredo para a superação do
capitalismo, porque ainda nos sentimos tão distantes desse acontecimento histórico? Seria
a compreensão histórica dos sistemas sociais condição necessária, mas não suficiente para
tal transformação? Teria essa compreensão de fato extrapolado o restrito circuito
19
intelectual e sido absorvida pela massa da população excluída? Tais questões nos levam a
crer que é preciso ainda entender como novas relações de produção e reprodução social
poderão ser desenvolvidas pelos trabalhadores e se expandir por toda a sociedade, pois,
afinal, sem o desenvolvimento de novas relações – baseadas em princípios como
reciprocidade, união, cooperação e solidariedade – não parece haver caminhos para nos
aproximarmos de algo que mereça ser chamado socialismo.
I.2
DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E MUTAÇÕES NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
I.2.1
O DOMÍNIO DA MERCADORIA
A forma com que o capitalismo se apresenta hoje não deixa dúvidas de sua força e
hegemonia e de que este modo de regular a vida social, econômica e até cultural está longe
de ser superado. Ao mesmo tempo, continuamos a verificar velhas e novas contradições
que surgem no seio desse processo histórico. Ao discutir as novas relações que surgem
hoje e os caminhos possíveis que estas podem seguir para a conformação de uma
alternativa concreta ao capitalismo, é necessário antes compreender alguns aspectos da
formação histórico-econômica do sistema capitalista, assim como suas implicações sociais
e políticas em nossa sociedade.
Nesse sentido, o trabalho de diversos autores importantes desde os clássicos dos séculos
XVIII e XIX representados por Smith, passando pelo auge da Economia Política em David
Ricardo, pela crítica da Economia Política de Karl Marx e pelos estudos sociológicos mais
amplos de Max Weber, até os cientistas políticos e historiadores como Karl Polanyi e
autores ativos ainda no século XXI como Eric Hobsbawn, entre muitos outros, se
debruçaram e construíram e (e ainda reconstroem) diferentes análises sobre este tema. Há
uma ampla e abrangente gama de teses sobre os diversos aspectos da sociedade capitalista
atual, as quais não poderemos abordar aqui senão de forma tópica.
Como se sabe, após o declínio da sociedade feudal com a disseminação das políticas
mercantilistas pelos recém formados Estados-Nações da Europa Ocidental, o avanço das
técnicas agrícolas entre os séculos XI e XIII e a progressiva transição do poder eclesiástico
para o estado, com a queda da ética cristã, que representava um entrave ao espírito
capitalista, que Max Weber bem demonstrou estar intimamente em sintonia com a ética
20
protestante, vai se consolidando o mundo capitalista. Esse processo não foi repentino, mas
se deu continuamente desde o século XV em meio às reformas da igreja, à luta camponesa
contra os efeitos deletérios dos cercamentos e ao renascimento intelectual ocorrido no
século XVI, tendo como marco fundamental a primeira revolução industrial no século
XIX. É interessante assim, notar que “a revolução industrial só poderia ter nascido em
atividades que – por serem novas, marginais, pouco importantes – não estavam dominadas
pelos interesses estabelecidos” (S
INGER, 1998, p. 39). O capitalismo pode prosperar nas
brechas do feudalismo e da produção simples de mercadoria, que acabou sendo dominada
pelo capital mercantil. À medida que se conformava à monetarização das atividades
econômicas, ao crescimento das atividades urbanas e à intensificação do comércio, as
instituições com base no estado foram sendo moldadas de forma a defender o interesse do
capital mercantil, favorecendo o nascimento da indústria e a concentração de capitais, de
forma que a acumulação se torna a forma universal de organização social da economia.
“A partir do abandono das regras que protegiam o antigo regime de produção, o
capitalismo teve o caminho livre para se tornar o modo hegemônico de produção”. Novas
regras, hoje bem conhecidas, com base no laissez-faire e na ideologia do individualismo e
da relação monetária, foram formuladas, deixando “a solidariedade social relegada ao
âmbito privado e íntimo da religião” (S
INGER, 1998, p. 62). O trabalho de POLANYI
(1980[1944]) apresentou uma abordagem nova ao propor uma revisão tanto da história
como da forma como se compreendeu a organização das sociedades até então. Pode ser
considerado um marco na análise do que ele apresenta como o desmoronamento do século
XIX e da “Grande Transformação” daí decorrente, oferecendo um novo ângulo para se
perceber a consolidação da hegemonia capitalista na sociedade moderna. Polanyi mostra
que a organização do comércio, que antes fora militar e guerreira, que abusava da força
para escravizar ou do temor a Deus para impor uma ideologia, tomará outra forma no
século XIX. Ao invés da necessidade de conquista, da pilhagem desenfreada ou da
exploração do novo mundo, a organização do comércio será dependente agora das
instituições políticas e financeiras que se consolidavam, tanto no âmbito nacional quanto
(ainda que timidamente) no plano internacional.
Tais instituições, entre elas o sistema de equilíbrio-de-poder que tinha vigência global
entre os países dominantes, o padrão-ouro, o mercado auto-regulável e o estado liberal,
foram de tal importância que possibilitaram um período de cem anos de paz mundial (entre
1815-1914, salvo pequenos conflitos localizados que rapidamente eram contidos), já que a
21
manutenção de um sistema de comércio mundial de crescente importância para as grandes
potências não poderia se manter em meio à guerra generalizada. Porém, a manutenção da
‘Paz dos Cem Anos’ e da harmonia não foi produzida senão por pura conveniência, para
permitir a acumulação capitalista. Era preciso manter o sistema de comércio, que estava
internacionalmente articulado, funcionando para garantir o lucro que resume a lógica de
funcionamento do sistema. Não por acaso, a primeira guerra no século XX se dará poucos
anos após a dissolução da organização econômica do século XIX, que aguçou as disputas
entre as grandes potências imperialistas.
Com efeito, o século XIX podia ser considerado naquele momento histórico como o auge
do liberalismo econômico, onde as contradições e conseqüências da ideologia dos
mercados auto-reguláveis teriam sido levadas ao limite
15
. Apesar do imenso avanço
científico e tecnológico possibilitado pela Revolução Industrial, “todos se referiam às
condições sociais desse período como um verdadeiro abismo de degradação humana”
(P
OLANYI, 1980[1944], p. 56). Seja pelos baixos salários e pelo crescimento da miséria nas
grandes cidades, seja pela exploração explícita do trabalho infantil, do trabalho feminino e
das jornadas intermináveis. Segundo Polanyi, é preciso compreender o impacto que a
introdução da máquina causou numa sociedade que se tornava essencialmente comercial e
como esses elementos que “foram apenas incidentais em relação a uma mudança básica, o
estabelecimento da economia de mercado” (I
DEM, p. 57), começaram a refletir a idéia do
mercado auto-regulável. À medida que o lucro passa a ser a motivação para a ação da
sociedade e a principal parte do produto é voltada para a venda em um mercado, que deve
ser regulado por transações monetárias em um sistema livre de preços, a repentina
introdução da máquina provoca uma intensa desarticulação e desorganização nos
mecanismos de reprodução das relações humanas. Apesar de gradual, essa transformação
não é pouco surpreendente. Ela segue acompanhada de uma forte ideologia que Polanyi
classifica como a perigosíssima utopia ultraliberal da economia auto-regulada pelo
mercado.
Essa agonizante “transformação da substância natural e humana da sociedade em
mercadorias” (I
BIDEM) se reflete não apenas na economia, mas também na sua expressão
artística e cultural. O Romantismo da contestação ao Racionalismo, do domínio da razão
pelo coração, da pureza e da beleza subjetiva da alma e do amor (muitas vezes até
15
Contudo, afirma-se que o momento atual, marcado pela hegemonia do neoliberalismo, pode estar
representando hoje uma força ainda maior dessa ideologia.
22
demasiadamente choroso), é sobreposto por uma nova visão (menos) emocional do mundo,
pelo Realismo duro e cru, pelo Naturalismo positivista, onde inclusive a literatura se torna
ciência natural. Em meio ao contexto de conformação dessa nova visão e situação
econômica, política e social do mundo surge, nesse período, a primeira alternativa ao modo
de produção vigente – o desafio socialista. E certamente curioso é perceber como este
movimento também atravessa estranhas mutações ao longo do século XIX até hoje. O
antigo socialismo do final do século XVII e início do século XIX, também chamado de
“Socialismo Romântico” (além de utópico), idealista e que poderia existir somente em
sonho, é sobreposto pelo novo socialismo, o “Socialismo Científico”, que viria desvendar o
segredo da produção capitalista e possibilitar a decisiva vitória da razão. No entanto, sua
expressão mais concreta, o “Socialismo Real”, ou burocrático, se transformou mais tarde
numa quimera (ou, antes, num pesadelo) que dificilmente pode ser chamada de socialismo,
inteiramente oposta, propositadamente ou não, a todos os ideais tanto “românticos” como
“científicos”.
I.2.2
O DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA NO SÉCULO XX
O quadro de estagnação econômica mundial gerado com a Grande Depressão de 1929 – a
crise mais violenta conhecida na história do capitalismo – seguido pelas duas grandes
guerras mundiais, significou um novo rumo para o capitalismo, abalado por um forte golpe
na ideologia liberal
16
. Este acontecimento serviu inclusive como justificativa para a
formação dos governos autoritários na primeira metade do século XX – não apenas os
comunistas, mas também os fascistas. Contudo, as revoluções que tomaram o poder nas
nações do socialismo burocrático de estado não resistiram muito tempo ao poder político e
ideológico do capitalismo, após a retomada de sua expansão. Já na segunda metade do
século, após a vitória dos aliados, sobreveio uma forte contra-resposta capitalista (e o
enfraquecimento dos movimentos socialistas) com o advento do chamado fordismo, num
momento em que o capitalismo entra em uma nova etapa, que alguns autores denominam
16
As revoluções que tomaram o poder na Alemanha e na Rússia, por exemplo, apesar de possuírem
concepções filosóficas e políticas opostas, acabaram apresentando características bastante semelhantes
(principalmente ao que tange o imperativo do planejamento econômico). A União Soviética, por exemplo,
que se mostrou aparentemente imune à crise, passou por uma rápida industrialização e desenvolveu a
concepção dos planos qüinqüenais, não sofrendo com o desemprego. Para uma discussão mais aprofundada
sobre a história e a teoria do planejamento no mundo, ver M
ANNHEIM (1972), FRIEDMANN (1987), entre
outros.
23
também como capitalismo dirigido.
“Pela primeira vez na história do capitalismo, a economia foi resgatada da crise não pela
reação espontânea dos mercados, mas por uma ação deliberada do estado” (S
INGER, 1998,
p.156). Como se pode ver e sentir, na segunda metade do século XX o capitalismo passou
por claras modificações econômicas, políticas e culturais. O crescimento econômico
estável foi retomado nas décadas de 1945 a 1973, período que se consolidou nos países
centrais como os “trinta gloriosos anos”, a “Era de Ouro” do capitalismo
17
. A ordem
econômica internacional do pós-guerra não foi simplesmente espontânea. Ela foi
conduzida cuidadosamente pelos EUA e pela Inglaterra por meio de diversas ações que
foram estratégicas para a dinâmica que se daria no período seguinte, como a organização
da estabilidade nas trocas e nos investimentos internacionais (definidos pelas duas
principais organizações monetárias recém-fundadas, FMI e BIRD); o acordo internacional
no controle de preços de bens primários; as medidas de diminuição das barreiras ao
comércio externo; a organização para a reconstrução e as medidas internacionais de
manutenção do pleno emprego. Visivelmente o plano Marshall, por exemplo, atacava as
forças que poderiam afastar os países da Europa ocidental da ordem capitalista liberal.
Ao mesmo tempo, a estrutura desse período possui diferentes momentos e diferentes
caminhos, correspondendo a taxas de expansão e formas particulares nos vários países
capitalistas avançados. A denominação fordismo deve, assim, ser vista como uma forma de
compreender as principais tendências e inter-relações desse processo, mais do que uma
descrição particular do desenvolvimento de cada um desses países. Contudo, G
LYN e AL.
(1990) sugerem que tanto condições domésticas (que seguiam certo padrão, apesar das
peculiaridades de cada região) como internacionais foram necessárias para sustentar o
período dos ‘anos dourados’, que entrou em crise justamente quando essas forças saíram de
sincronia, deixando de se reforçar reciprocamente, num processo de destruição mútua.
Assim, nesses primeiros 25 anos do pós-guerra o que se observou nos países do
capitalismo avançado foi um crescimento sem precedentes, uma fase considerada de
prosperidade acompanhada de baixo desemprego e alta estabilidade, com imenso
17
Estas interpretações podem ser vistas nos trabalhos dos economistas da chamada “Escola Francesa da
Regulação”. Segundo Harvey, “a virtude no pensamento da ‘escola da regulação’ está no fato de insistir que
levemos em conta o conjunto total de relações e arranjos que contribuem para a estabilização do crescimento
do produto e da distribuição agregada de renda e de consumo num período histórico e num lugar
particulares” (H
ARVEY, 1993, p. 118).
24
crescimento no volume de trocas mundiais e de investimentos diretos estrangeiros. O
rápido crescimento da produtividade e do estoque de capital, paralelamente ao crescimento
dos salários reais e da produtividade por trabalhador foi acompanhado da generalização do
sistema de produção em massa. Como afirma G
LYN e AL. (1990, p. 49), “o equilíbrio entre
o crescimento dos salários reais e da produtividade não garante somente que a taxa de
lucro seja mantida; ele também permite que o consumo cresça diretamente junto com a
produção”. Essas características davam um certo caráter inclusivo ao sistema, permitindo
ao mesmo tempo uma estabilidade no movimento do ciclo virtuoso que se dava da forma:
[lucros – investimentos – produtividade – salários – lucros]
O crescimento do mercado interno dos países avançados oferecia, em conjunto, a demanda
necessária para justificar o investimento e se somava a uma espécie de pacto social entre
mercado, estado e sociedade, que reafirmava a democracia de modo a garantir condições
aceitáveis de vida e de trabalho.
Não menos importante foi a generalização dos “métodos mais eficientes de produção”,
pela consolidação dos princípios tayloristas e fordistas, segundo uma padronização
rigorosa das práticas de trabalho e a separação entre, de um lado sua concepção e
planejamento e, de outro, sua execução; assim como a incorporação desses princípios no
próprio sistema de máquinas, como o clássico exemplo da indústria automobilística
demonstra. “A mecanização não era, é claro, um fenômeno novo, mas a taxa sem
precedentes em que se deu no período do pós-guerra justifica apontar o sistema de
produção dos anos dourados como uma combinação qualitativamente distinta de
taylorismo e mecanização” (G
LYN e AL p. 56). É importante compreender o fordismo,
como reforça H
ARVEY (1993, p. 121), não simplesmente como um sistema caracterizado
por uma forma específica de divisão do trabalho, mas como “um novo sistema de
reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma
nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática,
racionalizada, modernista e populista”.
Esse sistema era, assim, garantido também pela aceitação social dessas instituições e de
suas condições, onde o papel do estado na formulação de políticas macro e micro-
econômicas se mostra decisivo, seja pela legislação do salário mínimo, pelo
desenvolvimento da seguridade social ou pelo amplo suporte ao desempregado, benefícios
25
e transferências que, indexados aos preços, mantinham o ciclo de expansão. Há, assim,
uma certa harmonização e “compatibilização entre a esfera econômica e a esfera social”
nesse período, onde os gastos públicos em relação ao produto nacional com saúde,
educação, etc. crescem enormemente (F
ERREIRA, 1997).
A experiência de países pequenos com um “corporativismo social” bem sucedido, como
Áustria, Suécia e Noruega, reforça o argumento de que a capacidade de um país em manter
altos níveis de emprego depende da existência de instituições sociais, econômicas e
políticas apropriadas, ao mesmo tempo junto com a habilidade de mobilizar articulações
efetivas entre essas instituições. G
LYN e AL (1990, p. 60) afirmam que a implementação de
políticas intensas do estado parecem ter tido duas raízes. Em alguns países emergia uma
espécie de consenso social e democrático sobre o pleno emprego, a modernização, o
keynesianismo e o próprio papel do estado do bem-estar-social. Em outros, por outro lado,
a atuação do estado era bem vinda mesmo por correntes liberais, na medida em que
suprimia os elementos radicais dos movimentos trabalhistas.
O desenvolvimento de um sistema de crédito a nível nacional se ajustava à emergência do
padrão-ouro, no plano internacional. A habilidade de criar crédito, com o surgimento dos
bancos centrais e de um sistema bancário comercial foi um elemento importante para
permitir o crescimento sustentável. Mas no início dos anos 60 as fraquezas do sistema
econômico internacional começaram a se manifestar, tendo na sua raiz, a deterioração do
balanço de pagamentos dos EUA, que extrapolava seus poderes como banco central do
mundo. A estabilidade irá durar até cerca de 1965, quando se inicia a (inevitável?)
desarticulação do sistema.
Os dois mais marcantes eventos do fim dos anos dourados a nível internacional foram o
colapso do padrão-ouro, quando em 1971, o presidente Nixon suspendeu a convertibilidade
do dólar em ouro após o movimento iniciado pela França em que os países da Europa
começaram a converter suas reservas de dólares em ouro (o que marca também o fim do
sistema de Bretton Woods); e o choque do petróleo de 1973, com seus efeitos sentidos por
todo o mundo. Junto a esses eventos, a crescente internacionalização financeira contribuiu
para pressionar os salários, enfraquecendo a capacidade individual dos países em regular
sua macroeconomia pela administração de sua demanda e de suas taxas de câmbio, já que o
desenvolvimento desigual da economia mundial significava um inevitável problema de
ajustamento num sistema de paridade fixa. Com a adoção posterior do câmbio flexível, que
26
liberava a política econômica dos EUA das restrições internacionais, não há mais um
controle centralizado do sistema econômico global. O sistema flutuante de regulação
internacional é pouco coerente, não sendo capaz de assegurar um nível global de demanda
agregada e sua distribuição entre os países de forma compatível com o pleno emprego.
Fica “cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as
contradições inerentes ao capitalismo” (H
ARVEY, 1993, p. 135).
Contudo, resta ainda a questão de saber se o desgaste do sistema se deu principalmente por
fatores exógenos, ou se, mesmo sem essas crises, ainda assim estaria condenado. G
LYN e
AL (1990, p. 99) apontam que existem evidências, antes mesmo de 1973, de problemas de
desaceleração dos ganhos de produtividade e das taxas de acumulação nos principais países
capitalistas (como é notório, em termos setoriais, na indústria automobilística). Com a
difusão nos principais países centrais da indexação dos salários nominais ao custo de vida e
à produtividade, o lucro (combinado também com os erros sucessivos de previsão da
inflação nos anos 70) era esmagado frente ao ainda elevado poder de barganha dos
trabalhadores. Ou seja, o aumento dos salários não mais era combinado com ganhos
crescentes de produtividade, variável chave para o funcionamento do fordismo.
O círculo virtuoso começava se romper enquanto o estado elevava seus gastos executando
as políticas de proteção à renda, o que levou a crescentes déficits públicos, e
posteriormente ao aumento de impostos, inflação e maior queda de produtividade. A
situação foi se agravando, já que as regras de coordenação se mantinham inalteradas e o
mainstream no campo econômico, político e acadêmico conservava sua confiança nos
mecanismos keynesianos para deter a crise. Mas o mundo havia mudado e as medidas anti-
cíclicas tradicionais não ofereciam mais respostas satisfatórias.
“Assim, a estrutura institucional e comportamental estavam brigando nas beiradas. Os
problemas como a inflação, o financiamento do aumento do déficit e dos gastos do setor
público, e o desemprego persistente foram sobrepostos por problemas menores na
organização do sistema de produção, e na estrutura macroeconômica.” (G
LYN e AL, 1990, p.
97. Tradução nossa).
Isso leva os autores a afirmarem que as dificuldades em se manter o crescimento da
produtividade poderiam estar mais atreladas a limites sociais do que técnicos. O segundo
choque do petróleo foi o derradeiro golpe para dar fim às regras de coordenação social e de
regulação macroeconômica nas quais os anos dourados estavam baseados. A idéia de que
27
estabilidade e pleno emprego eram incompatíveis se tornara quase consensual, enquanto a
opinião pública era convencida pela ideologia neoliberal de que o principal culpado pelo
desemprego era o excessivo poder sindical.
A dificuldade de controle da força de trabalho e as deficiências do mercado se tornam cada
vez mais evidentes. Em meio ao processo de crise ocorrera em quase todos os países
afetados pela queda do fordismo uma série de mudanças que se reforçavam mutuamente
como: o enfraquecimento dos sindicatos, com a perda do poder de barganha dos
trabalhadores; o rompimento da legislação de proteção ao emprego, com a transferência
(por parte dos empregadores) da luta pela flexibilidade salarial para a luta pela
flexibilidade no direito de empregar e demitir; as tentativas diversas de reduzir
generalizadamente a cobertura, o valor e os benefícios do estado do bem-estar; o abandono
das políticas de pleno emprego; e a privatização de industrias nacionais. Estávamos, talvez,
no limiar de uma nova fase do capitalismo.
Assim, em meio à queda das taxas de lucro e à forte deflação de 1973-1975 nos EUA, a
estratégia das grandes corporações passou a ser de reestruturação e intensificação no
controle do trabalho. “A mudança tecnológica, a dispersão geográfica para zonas de
controle do trabalho mais fácil, as fusões e medidas para acelerar o tempo de giro do
capital passaram ao primeiro plano das estratégias corporativas de sobrevivência (...)”
(H
ARVEY, p. 137). Surge um conflito direto com a rigidez fordista, apoiado na flexibilidade
dos processos e dos mercados de trabalho, da produção e dos padrões de consumo, que,
como Harvey defende, daria caráter ao sistema de regulação denominado acumulação
flexível, caracterizado pela reorganização do sistema financeiro global e por altas taxas de
inovação em que o desenvolvimento capitalista passa por uma nova estruturação política e
geográfica
18
.
A idéia do surgimento de um novo regime de acumulação que poderia resolver as atuais
contradições do capitalismo é discutível, sendo que não há comprovação clara de tal
transição. Contudo, não se pode negar que há uma mudança efetiva – principalmente no
que concerne ao sistema financeiro e à forma temporal e espacial da crise do fordismo – no
18
Na Economia Regional, os fenômenos aglomerativos (clusters) conhecidos como os Arranjos Produtivos
Locais (APL) têm sido bastante estudados recentemente, onde emerge uma nova estrutura de
desenvolvimento local baseado num novo paradigma tecnológico e em formas alternativas de cooperação
entre empreendimentos concorrentes. Nesse sentido, sempre são citadas as novas formações econômicas no
mundo como o Vale do Silício, nos EUA, a Terceira Itália ou os aglomerados de Nova Serrana e Ubá, no
Brasil, entre outros. Sobre este tema, ver S
ANTOS e al. (2003).
28
quadro político-econômico do capitalismo em relação ao padrão dominante nas últimas
décadas do século XX.
A reestruturação econômica e o reajustamento social advindo da flexibilização do mercado
e dos processos de trabalho nas décadas de 70 e 80 confluem para uma gradual
desmontagem do estado do bem-estar e para um crescente aumento do desemprego
estrutural, do trabalho informal e precário, da subcontratação e dos contratos temporários.
Enquanto, na década de 70 os países em desenvolvimento clamavam por uma nova ordem
econômica internacional, buscando para si uma fatia desse bolo, dada a abertura dos
mercados das economias capitalistas, de 80 até agora suas economias estão reprimidas
(com exceção das economias asiáticas, que escaparam da crise). Apresentam dificuldades
em seu balanço de pagamentos e encontram-se em uma situação de dependência frente à
retomada da voga neoliberal comandada pelo FMI e pelo Banco Mundial, que exigem a
retirada do estado na economia e as chamadas reformas estruturais (como as reformas na
previdência social, no sistema de saúde e de ensino), segundo o padrão de
desnacionalização, desregulamentação e liberalização interna e externa dos mercados,
consideradas como um passo virtuoso, como o único caminho para o desenvolvimento das
nações.
A responsabilidade pela manutenção do vínculo e da estabilidade do emprego é agora toda
jogada sobre o trabalhador, que, segundo essa ideologia, deve constantemente adquirir
novas habilidades frente à volatilidade de informações e de inovações para se manter no
mercado. Contudo, isso se mostra como mais uma falácia gritante, já que, além de não ter
sido resolvido, nem mesmo atenuado, pela flexibilização do trabalho, o problema do
desemprego se tornou estrutural. Primeiro, os trabalhadores desempregados não mais têm
acesso imediato a novos postos de trabalho, aumentando consideravelmente o tempo de
duração do desemprego; segundo, uma grande parte do desemprego, dentro da nova
reestruturação produtiva, é tecnológico; e terceiro, a nova configuração do mercado de
trabalho não mais suporta taxas próximas ao pleno emprego. O resultado é o aumento da
exclusão social e da precarização do trabalho, na medida em que uma grande parte dos
desempregados, para não morrer de fome, começa a desenvolver atividades por conta
própria e sob formas que renunciam às garantias e direitos trabalhistas anteriormente
conquistados (S
INGER, 1999).
O que se vê a partir da década de 70 é, pois, uma estrutura ocupacional fundamentalmente
29
diferente, baseada no setor de serviços, no trabalho autônomo, e não mais numa condição
estável do trabalho. Um mercado baseado no conhecimento e na informação, assim como
em novas formas de propaganda e publicidade, onde a ampla desregulamentação dos
sistemas financeiros nacionais permite uma movimentação quase instantânea do capital
financeiro das atividades menos lucrativas para as mais lucrativas – ou seja, a criação de
ativos e a transferência de valores monetários não estão diretamente ligados à produção
física de bens ou serviços, mas podem ser realizados simplesmente pelo movimento de
números na tela de um computador conectado à Internet. “A acumulação flexível
evidentemente procura o capital financeiro como poder coordenador mais do que o
fordismo fazia” (H
ARVEY, 1993, p. 155). E a transição do fordismo à acumulação flexível
não demonstra necessariamente uma maior desorganização do capitalismo, mas
possivelmente sua maior capacidade de organização temporal e espacial, com uma maior
capacidade de adaptação a novos mercados de consumo, novos produtos e processos,
mesmo que isso evidencie novas contradições. Ou seja, o quadro pós-fordista certamente
demonstra menor estabilidade e maior vulnerabilidade, produzindo maiores flutuações e
crises cada vez mais constantes e de caráter crescentemente global (“crises sistêmicas”).
Dentro da perspectiva da organização espacial no meio urbano, as grandes metrópoles
mundiais enfrentam e refletem, em maior ou menor escala, os problemas decorrentes
dessas mudanças que se verificam na economia mundial. Com efeito, o processo de
formação e integração do sistema de produção e de consolidação de um mercado global,
liderado pelas empresas transnacionais está intimamente ligado à emergência das cidades
mundiais, de centros financeiros globais, dominantes política e ideologicamente. Assim
como há uma marcante polarização no espaço global, percebe-se que a estrutura urbana das
grandes cidades, como apontam F
RIEDMANN e WOLF (1988), reflete as características do
seu modo de integração na economia capitalista mundial. A cidade reproduz internamente
a polarização do espaço globalmente dividido. Numa perspectiva global, o processo
promove a concentração de riqueza e poder com a subordinação dos países periféricos e
semiperiféricos pelos centrais, enquanto que internamente é marcado pela exclusão das
classes sociais marginalizadas perante uma minoria privilegiada
19
. Milton Santos aponta
que o desenvolvimento histórico capitalista nos países desenvolvidos teve sérias
repercussões nos países subdesenvolvidos, na medida em que as novas variáveis (ou as
19
Para uma discussão sobre a relação entre o processo de “urbanização extensiva” e a Economia Popular, ver
também C
ORAGGIO (1994), MONTE-MÓR (2004), entre outros.
30
renovações das antigas), geradas pelas transformações nos subsistemas econômico, social,
político, cultura e moral, são projetadas sobre os espaços dependentes sob formas
diferentes e, possivelmente, ainda mais perversas.
As forças nascidas do período do grande corcio diferem daquelas das fases seguintes da
manufatura, dos inícios da industrialização e da grande indústria, e do atual período
tecnológico. Suas repercussões nos países periféricos são igualmente diferentes.” (SANTOS,
1979, p. 26).
Em sua abordagem, SANTOS (1979) apontava, já na década de 70, que o processo de
precarização das relações de trabalho sob a crise capitalista começava a engendrar, na
perspectiva da cidade, a constituição de duas formações econômicas distintas e
complementares, de um “circuito superior”, originado diretamente da modernização
tecnológica e cujos elementos mais representativos são os monopólios, e de um “circuito
inferior”, “formado de atividades de pequena dimensão e interessado principalmente as
populações pobres”. Enquanto o primeiro reproduz um conjunto de relações
essencialmente “fora da cidade e da região” e tem por cenário o país ou o exterior, o
segundo, ao contrário, mantém relações enraizadas e “privilegiadas com sua região”
(S
ANTOS, 1979, p. 16):
“(...) A existência de uma massa de pessoas com salários muito baixos ou vivendo de
atividades ocasionais, ao lado de uma minoria com rendas muito elevadas, cria na sociedade
urbana uma divisão entre aqueles que podem ter acesso de maneira permanente aos bens e
serviços oferecidos e aqueles que, tendo as mesmas necessidades, não têm condições de
satisfazê-las. Isso cria, ao mesmo tempo, diferenças quantitativas e qualitativas no consumo.
Essas diferenças são a causa e o efeito da existência, ou seja, da criação ou da manutenção,
nessas cidades, de dois circuitos de produção, distribuição e consumo dos bens e serviços.”
(I
DEM, p. 29).
O desenvolvimento de uma nova fase do capitalismo, marcada por um processo de
crescimento do desemprego e de precarização das relações de trabalho, gera uma massa de
trabalhadores despreparada, desprotegida pelo estado e excluída do mercado de trabalho
formal, engendrando o desenvolvimento de alternativas diversas de sobrevivência por uma
parte relevante da população excluída. Como demonstra S
ANTOS (1979), nesse processo
são formados dois circuitos complementares e contraditórios. Se por um lado, essa
estrutura permite certa coesão e equilíbrio – por mais que perverso – ao sistema, por outro
aponta a sua iniqüidade e a necessidade de sua superação, que só é possível pela
31
construção de alternativas conscientes e planejadas, que promovam inclusão, igualdade de
oportunidades e possibilitem a participação efetiva da sociedade para a geração de
mudanças.
Enquanto, dentro das camadas populares, diversos grupos encontram apenas o crime como
resposta e outros disputam, pelas formas mais bárbaras de competição, os restos deixados
pelo mercado, alguns escolhem se unir pela solidariedade
20
. Se os reformistas
conservadores buscam medidas paliativas que não atingem o fundo da questão (como o
aumento dos recursos policiais para a redução da criminalidade), alguns autores têm
defendido que os caminhos para uma solução estrutural encontram-se no próprio seio da
sociedade – nas novas formas de organização econômica e social que se baseiam em
relações de produção e trabalho fundadas na solidariedade. É nesse contexto que se retoma
a discussão socialista, em uma nova perspectiva. Antes de entrar propriamente nessa
questão, iremos discutir de que forma foi visto, nas sociedades conhecidas, a reprodução de
sistemas econômicos baseados em relações de produção não-capitalistas, não guiadas pelo
lucro e não baseadas no mecanismo de acumulação.
I.3 A REPRODUÇÃO DA PRODUÇÃO NÃO-CAPITALISTA
O termo “capitalismo”, que temos empregado bastante até aqui, é utilizado para definir o
sistema econômico consolidado no mundo ocidental a partir do século XIX, e que se
tornou a forma hegemônica de organização da atividade econômica e social até os dias
atuais. Não é incomum encontrar autores que definem o capitalismo simplesmente como
“economia de mercado” e outros que, de forma ainda mais equivocada, parecem considerar
que a forma de organização capitalista sempre existiu, que tratam as “leis” capitalistas
como leis gerais de socialização humana, eternizando o que é histórico
21
. De fato, os
mercados começam a crescer a partir do século XVI, mas só passam a controlar toda a
sociedade humana depois do século XIX. Para se ter uma idéia do conflito ideológico
impregnado nessa discussão é interessante verificar como, no período da guerra fria, mal se
utilizava o termo “capitalismo”. O senso comum do cidadão norte-americano há poucas
20
Não cabe neste texto discutir as influências e motivações psicológicas e antropológicas para a escolha
individual pela violência ou pela solidariedade, mas apenas verificar que elas surgem com a exclusão.
21
Essa é uma das principais críticas de Marx à Economia Política Clássica de Smith e Ricardo, cujo método
ele considerava incompleto e insuficiente para apreender as categorias do mundo econômico. Porém, na
Ciência Econômica que se consolidou no último século (não por acaso chamada de Economia Neoclássica),
esse problema ainda parece estar fortemente enraizado.
32
décadas atrás (e talvez até hoje) dizia simplesmente que era preciso lutar contra o
“comunismo” (repressor, ateísta e diabólico) em nome da liberdade (do mercado e da
propriedade privada)
22
. Com efeito, ainda hoje não se percebe que o capitalismo não é nada
além do que uma outra opção, socialmente construída, e não única e inevitável.
Para se entender o capitalismo, segundo a visão marxista, é preciso refletir sobre a noção
de mercadoria e capital, e por conseqüência, sobre as relações capitalistas de produção.
Nas sociedades pré-capitalistas, o produto do trabalho humano, forjado para satisfazer suas
necessidades (estômago) e desejos (paixões) não era necessariamente mercadoria. O
produto do trabalho só passa a ser mercadoria quando, além de assumir um valor de uso, é
voltado para a venda para terceiros (e não para o próprio produtor), dentro de um mercado
(não necessariamente capitalista). Nesse processo, a mercadoria apresenta-se como capital
a medida em que o trabalho e os meios de produção começam a ser comprados e vendidos
por um preço regulado pelo mercado capitalista e a sociedade é dividida entre capitalistas,
possuidores dos meios de produção, e trabalhadores, desprovidos de capital, que só têm
como opção a venda da sua força de trabalho. Por isso, Marx define capital como uma
relação social de produção, uma relação histórica, gerada a partir da relação de propriedade
privada e da relação de controle deste sobre o trabalho (assalariamento). Em conseqüência
disso as possibilidades humanas se limitam e o homem tem sua essência fragmentada, não
sendo mais possuidor do produto do seu trabalho e não mais dominando o processo de
produção. Isso caracteriza a alienação do trabalho no âmbito das condições capitalistas de
produção, revelando o “feitiço” que oculta a essência da vida humana sob um véu
nebuloso, pois impede que o produto seja percebido como resultado do trabalho de outro
homem, e faz com que as relações sociais de troca se tornem relações entre coisas e não
entre pessoas (fenômeno que Marx denominou de “fetichismo da mercadoria”).
Colocada essa questão, e sem querer prolongar muito o que já foi extensamente discutido
por diversos autores, podemos passar para o ponto que nos interessa aqui, qual seja, a
produção não-capitalista. Vários autores mostraram que a produção capitalista, com base
no mercado e na lei do valor, não foi (e não será) a única forma de regulação do produto
22
Carla Rodeghero, apresenta uma interessante discussão sobre o anticomunismo católico nos EUA e no
Brasil durante a guerra fria, mostrando que mais do que uma manifestação religiosa a ideologia que mediava
a sociedade norte-americana poderia ser considerada uma “religião civil” baseada em questões políticas,
econômicas e sociais. “Assim, a pertença a uma igreja e uma atitude abertamente favorável em relação à
religião se tornaram formas de afirmar o American Way of Life, especialmente porque a União Soviética e
seus aliados assumiram oficialmente o ateísmo” (R
ODEGHERO, 2002, p.473).
33
social que se teve no mundo
23
. Ao contrário, historicamente existiram (e ainda sobrevivem)
diversas formas capazes de permitir a existência da coletividade que não são baseadas na
relação capitalista, ou ao menos, onde essa relação não está plenamente configurada.
Novamente nos referimos ao trabalho de P
OLANYI (1980[1944]) quando este afirma que “a
economia de mercado é uma estrutura institucional, e sempre nos esquecemos disto, que
nunca esteve presente a não ser em nosso tempo” (P
OLANYI, 1980[1944], p. 55). O fato de
que a introdução da máquina na Revolução Industrial se deu em meio a uma economia de
mercado certamente tem íntima relação com os devastadores efeitos provocados na
sociedade naquela época. Não há melhor exemplo histórico que mostre, ao menos em
termos de recursos disponíveis e desenvolvimento das forças produtivas, a contradição
quando se quer defender que a existência e reprodução da sociedade necessitem das
categorias como mercadoria e produção mercantil. Segundo P
OLANYI (1980[1944], p. 55),
a questão é de que até o início do século XX, a economia nunca havia sido controlada pelo
mercado. O mercado era comum, mas seu papel não tinha tamanha relevância. Assim,
define uma economia de mercado como “um sistema auto-regulável de mercados; (...) uma
economia dirigida pelos preços do mercado e nada além dos preços do mercado. Um
sistema capaz de organizar a totalidade da vida econômica sem qualquer ajuda ou
interferência externa”.
O erro vem desde a geração de economistas após Adam Smith, que, com o conceito de
divisão do trabalho e da ação pelo auto-interesse que tenderia a levar o homem a um estado
natural de troca, desviaram todo o interesse histórico da economia e marcaram as (ou a
falta de) análises sobre o homem primitivo, que poderiam ser altamente relevantes para os
problemas de nossa época. Com efeito, a maioria das sociedades primitivas não possuía um
sistema de mercado estabelecido. Para se entender sua formação seria necessário ligar
história econômica e antropologia social, algo nunca feito consistentemente (e que alguns
poderiam dizer, por longo tempo evitado). Ou seja, a economia de mercado não existiu
sempre e não existe um “estado natural” do homem que leve a uma lei de mercado
ahistórica. “A Economia do homem está submersa em suas relações sociais” (I
DEM, p. 61),
suas ações não são movidas pelo interesse individual de acumulação material, mas por sua
situação social.
23
Nesse sentido, os trabalhos de A. Chayanov, M. Mauss, K. Polanyi, M. Sahlins e P. Clastres, entre outros,
são exemplos de estudos que apresentam formações sociais dotadas de certa estabilidade estrutural, onde, a
existência da coletividade não dependia absolutamente de relações capitalistas de produção. Contudo, vale
lembrar que a simples existência do mercado por si só não configura uma economia capitalista.
34
Essa conclusão é reforçada por Polanyi, ao apresentar pesquisas sobre as comunidades na
Melanésia, onde inexiste a motivação pelo lucro, o trabalho assalariado e qualquer
instituição baseada em motivações econômicas, mostrando que estas motivações “se
originam no contexto da vida social” (I
DEM, p. 62). Nessa comunidade, a ordem na
produção e na distribuição é garantida por outros princípios, quais sejam, o da
reciprocidade e da redistribuição, onde o indivíduo é beneficiado segundo seus atos de
virtude cívica, de modo que sua reputação (segundo o cumprimento do trabalho e da oferta
dos melhores produtos da colheita para a família de sua esposa, no caso da Melanésia) é de
extrema importância para manter o equilíbrio de subsistência familiar. De modo
complementar, parte da produção é entregue e armazenada pelo chefe da ilha, sendo
utilizada nas atividades festivas e públicas da comunidade. Nesse sentido, os padrões
institucionais e os princípios de comportamento se ajustam mutuamente e o sistema
econômico é dirigido, fundamentalmente, por motivações não-econômicas.
“Numa tal comunidade, é vedada a idéia do lucro; as disputas e os regateios são
desacreditados; o dar graciosamente é considerado como virtude; não aparece a suposta
propensão ‘a barganha, permuta e troca’ [como sugeria Adam Smith]. Na verdade, o sistema
econômico é mera função da organização social.” (P
OLANYI, 1980[1944], p. 64).
Para além da reciprocidade e da redistribuição, o trabalho clássico de Marcel Mauss sobre
a dádiva, também como crítica à generalização da concepção utilitarista nas ciências
sociais, é atualmente retomado por Allan Caillé e Jacques Godbout, entre diversos
autores
24
. Esses estudos têm apontado que existem, dentro de qualquer sociedade, situações
em que os homens tomam ações econômicas em favor do outro sem esperar nada em troca,
movidos pelo dom ou pela dádiva. Como afirmam L
ECHAT e SCHIOCHET (2003), essas
relações não se restringem a grupos familiares ou de amigos, mas se dão também (e talvez
mais hoje do que antes) entre desconhecidos, sem que nem mesmo se veja o resultado da
ação. Isso ocorre, por exemplo, quando a doação de sangue, as ações humanitárias ou o
trabalho voluntário são realizados como dádiva, o que reforça a não linearidade que ocorre
na relação entre meios e fins
25
. Nesse processo, podem ser formadas redes de confiança
regidas pelo dever de dar, receber e retribuir, nas quais, quando algo é oferecido, não se
24
Os dois autores se destacam, tendo fundado o Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais (em francês,
MAUSS).
25
O exemplo atual mais vigoroso de dádiva, em escala mundial, pode ser sentido na massiva corrente de
solidariedade frente à tragédia asiática do final de 2004, onde milhares de toneladas de alimentos e
mantimentos foram enviados para o auxílio às vítimas dos tsunamis. Ainda assim, é importante tomar
atenção para a influência massiva da mídia diante de acontecimentos como esse.
35
sabe como nem de que forma poderá retornar. Daí a dialética de que ao mesmo tempo a
dádiva pode ser interessada e desinteressada.
A dádiva pode ser assim, definida como “toda ação ou prestação realizada sem espera,
garantia ou certeza de retribuição, e comportando unicamente por este fato uma dimensão
de ‘gratuidade’”
26
. Seja numa sociedade primitiva não-capitalista, onde a dádiva pode ser
mais relevante para regular a economia juntamente à reciprocidade, ou na sociedade atual,
esse tipo de ação faz parte de um outro circuito de produção e reprodução social onde não
há mercado, não há fixação de preços nem moeda.
“Na sociedade atual, ao lado da circulação dos bens e serviços no mercado, e da circulação
assegurada pelo Estado sob forma de redistribuição, existe um enorme contingente
socioeconômico mal percebido, no qual os bens e serviços transitam em primeira instância
através dos mecanismos do dom e do contradom. É esse conjunto de fenômenos que
agrupamos sob o conceito de economia da dádiva.” (L
ECHAT e SCHIOCHET, 2003, p. 86).
Isso reforça a idéia de que o processo de superação do capitalismo requer a formulação de
um modelo fundado FORA da base da lei do valor, onde o trabalho e a força de trabalho
não mais são determinados pelo mercado, como mercadoria, mas resultam de uma lógica
completamente diferente de interação e compromisso social. É importante afirmar que não
se está procurando argumentar aqui que o mercado deva ser extinto, mas sim que este não
pode ser auto-regulado e não pode determinar todos os aspectos da vida social. Nos parece
que é com isso em mente que Paul Singer analisa as diversas experiências que têm se
multiplicado no Brasil e no mundo sob o título de economia solidária, que reproduzem
claramente relações de dádiva nos interstícios do capitalismo.
Para S
INGER (1998; 2003), a sociedade brasileira, ou o sistema sócio-econômico aqui
formado, é constituído por diferentes modos de produção que competem entre si. Além do
sistema capitalista hegemônico, caracterizado pelo conflito entre capital e trabalho, pelas
relações de propriedade e de assalariamento, e cuja lógica é o lucro, há uma série de
formas não-capitalistas de produção. Entre elas, têm-se, por exemplo, a pequena produção
familiar ou a produção simples de mercadorias, onde não há distinção entre a remuneração
do capital e a remuneração do trabalho, apesar de produzirem mercadorias para o mercado
capitalista; a produção sem fins de lucro pelos estabelecimentos do estado como escolas e
26
CAILLÉ, A. Nem holismo nem individualismo metodológicos: Marcell Mauss e o paradigma da dádiva.
(1998, p. 75), citado por
LECHAT e SCHIOCHET (2003).
36
hospitais (que empregam assalariados); e, finalmente, os empreendimentos formados por
trabalhadores associados em cooperativas e empreendimentos autogestionários ligados a
redes de produção e consumo, que formam a economia solidária. Todos estes modos
distintos de produção estão inseridos e, de alguma maneira, subordinados à economia
capitalista, embora sua lógica não seja a lógica capitalista. Assim, na maioria das vezes,
será o ‘mercado capitalista’ que informará a respeito de variáveis como, por exemplo,
níveis de preços e remuneração que serão praticados dentro desses empreendimentos.
Podemos lembrar ainda, da natureza e dos serviços não produtivos
27
, além das formas não-
capitalistas e do estado, como categorias que não são totalmente compreendidas pelas
relações capitalistas. Enquanto a natureza fornece as condições materiais primárias da vida,
que são agora voltadas para a reprodução do capital, o estado cria as instituições que
permitem a reprodução das relações capitalistas e, paradoxalmente, as formas não-
capitalistas muitas vezes surgem da camada da sociedade que não pode ser absorvida pela
relação capitalista. Entretanto, o trabalho social realizado aí não contribui diretamente para
a produção de mais-valia.
A obra de Marx tomou como ponto de partida, como referência metodológica
28
, a
percepção da economia, do fundamento material da sociedade, como a base e ordem da
vida social. A “descoberta” da economia como central nesse processo histórico-social o
permitiu formular sua crítica à sociedade burguesa. Porém, embora Marx tenha visto a
economia como eixo estruturante da anatomia da sociedade civil, sua teoria não quer dar
conta de tudo o que abrange a economia. Sua teoria (e a maior parte dos estudos socialistas
até aqui) trata fundamentalmente da economia capitalista e não de outra coisa. Mais
adiante retomaremos esse ponto para sustentar a importância da economia solidária.
Uma melhor compreensão dessas experiências e das comunidades primitivas permite
perceber que, mesmo com o capitalismo tendo se tornado hegemônico, formas alternativas
de produção escapam a ele. Diversos estudos se voltam para a compreensão da relação
capital-trabalho/lucro-salário dentro dessas pequenas experiências, assim como sobre sua
27
Os serviços não produtivos (ou trabalho improdutivo) são caracterizados pelas formas de trabalho
assalariado que não aumentam o volume total de mais-valia produzida pelo trabalho social, mas que
permitem que grupos específicos de capitalistas se apropriem de uma parte dessa mais-valia, ou que
indiretamente aumentem a mais-valia. Os exemplos comuns são o trabalho no comércio e na administração
de negócios.
28
Essa questão pode ser vista no famoso prefácio de Para a crítica da economia política. Porém, é bom
lembrar que é um das questões mais controversas do pensamento de Marx.
37
articulação dentro do sistema. De forma, mais ampla, buscando uma totalidade no sentido
marxista, Lefébvre, no livro A sobrevivência do capitalismo aposta todas as suas fichas na
autogestão.
Como aponta L
EFÉBVRE (1978), o que sustentaria, ou o que permitiria a reprodução de um
modo de produção seria sua capacidade de reprodução de suas relações de produção. Ora,
se a sociedade atual se encontra diante de um processo de difusão e aceleração do
crescimento de atividades baseadas em relações de produção não capitalistas (como na
economia solidária, que iremos discutir a seguir), não se pode excluir a possibilidade de
ruptura do processo de reprodução do sistema – já que a reprodução de suas relações de
produção está ameaçada. Diversas sociedades primitivas e a sociedade feudal, antes
hegemônica, não conseguiram manter condições de reprodução de suas relações de
produção, sendo sobrepujadas pelas relações capitalistas (de forma impositiva ou não).
Assim, é fundamental estudar até que ponto a multiplicação das novas relações de
produção que têm sido observadas indicam – seja de forma gradual, seja de forma
revolucionária – uma possibilidade de transformação radical da sociedade.
O elevado grau de desenvolvimento das forças produtivas proporcionado pelo capitalismo
e o aumento do controle do homem sobre a natureza são freqüentemente vistos como um
dos possíveis caminhos para essa transformação
29
. Num exercício técnico simples, é fácil
perceber como o problema da escassez poderia ser reduzido quando uma sociedade adquire
uma nova base tecnológica, reduzindo de forma brutal os custos de produção. Em uma
sociedade onde houvesse abundância da produção material pareceria cada vez mais
possível a propagação de princípios como a reciprocidade e redistribuição. Contudo, os
critérios para responder às clássicas questões econômicas (o quê, quanto, como, para quem
produzir) colocadas para qualquer sociedade dependem de fatores complexos que
governam seu modo de produção. Enquanto no capitalismo, estas questões são
respondidas, em última instância, pelo capital, em um outro modo de organização seriam
solucionáveis, por exemplo, pela livre associação dos produtores, como Marx defendia.
Ainda assim, para sairmos da análise simplista é preciso perceber que não se pode avaliar a
aplicação técnica fora da política, o que faz com que, em termos concretos, esse caminho
29
Não há razões concretas para as afirmações comuns de que um sistema socialista não forneceria incentivos
ao desenvolvimento de inovações como o capitalismo. Para uma discussão das deficiências do sistema
capitalista no que toca o desenvolvimento tecnológico e uma apresentação inicial das possibilidades desse
desenvolvimento em uma economia solidária (por meio dos benefícios advindos do desenvolvimento de
fatores como confiança, envolvimento e cooperação) ver B
ERTUCCI, 2004b.
38
seja incerto.
A proposta que discutimos aqui e que se apresenta como um desses possíveis caminhos é a
economia solidária. Frente à crise do emprego e à formação de um exército pós-industrial
de reserva, como aponta S
INGER (2002b; 2002c), essas alternativas de organização da
produção ganham crescente importância na forma de movimentos de organização social
com uma característica comum: suas ações partem de uma perspectiva emancipatória
dentro da própria população excluída e se articulam entre diversas camadas da sociedade,
tendo apoio de organizações não governamentais e de governos comprometidos com as
causas populares. Necessariamente, esses empreendimentos se fundamentam, seja por um
planejamento consciente ou não, em atividades não-capitalistas
30
de produção e
reprodução. (F
ERREIRA e BERTUCCI, 2004).
Segundo C
ORAGGIO (1994), a reprodução da força de trabalho tem sido caracterizada como
condição necessária para viabilizar a acumulação capitalista e não como finalidade
principal do sistema econômico. Nessa visão, que se apresenta hoje sobre a ideologia
neoliberal, o equilíbrio do mercado traria o bem estar social, considerado como um
subproduto e um resultado natural da acumulação capitalista. Essa perspectiva, que
mercantiliza todas as relações sociais, é hoje claramente refutada na prática pela exclusão
massiva de trabalhadores e pela geração de velhas formas de subordinação do trabalho ao
capital. Não se trata de uma situação nova, gerada pela relativamente recente abertura
econômica mundial, mas toda a história do capitalismo é acompanhada pela exclusão
social. Apesar disso, a ‘acumulação de capital’ é ainda apresentada pela teoria dominante
como motivação central que deve reger as atividades econômicas.
Ora, “En la sociedad moderna, una contraposición efectiva al motor histórico de la
acumulação infinita parece posible sólo si se plantea, teórica y prácticamente, un sentido
alternativo capaz de encarnarse de manera masiva en mentes y recursos” (C
ORRAGIO,
1994, p. 53). Esse sentido alternativo é a reprodução ampliada da vida humana. O termo
que surge nos trabalhos de José Luiz Coraggio
31
reflete a lógica primária que diferencia as
atividades aqui estudadas das atividades capitalistas. A proposta de Coraggio não é apenas
de que a satisfação das necessidades básicas de todos seja colocada como sentido
30
Isto é, atividades nas quais a relação capital-trabalho não se encontra plena e claramente configurada.
31
Ver CORAGGIO (1994, 1996) entre outros. É interessante notar como o conceito de Reprodução Ampliada
da Vida é cada vez mais difundido e discutido entre os trabalhadores e dentro das ONG’s, governos
populares e instituições sociais de diversos tipos que apóiam de alguma forma a economia solidária.
39
sistêmico, mas a melhoria generalizada e contínua da qualidade de vida. Isso não nega a
necessidade da “acumulação”, mas a mantém subordinada à reprodução da vida,
estabelecendo outro tipo de unidade entre produção e reprodução.
O termo “acumulação” é utilizado aqui, evidentemente, não no sentido de acumulação de
capital, mas sim significando ampliação da capacidade de geração de riquezas pelo sistema
econômico. Aliás, Karl Marx em O Capital já assinalava a possibilidade de “reprodução
ampliada” (crescimento) sem acumulação capitalista:
“Nas mais diversas formações econômicas encontra-se não só a reprodução simples, mas
também a reprodução ampliada. Produz-se mais e consome-se mais progressivamente, e
quantidade maior da produção se converte em meios de produção. Contudo, esse processo não
se apresenta como acumulação de capital nem tampouco como função do capitalista, enquanto
os meios de produção do trabalhador e, em conseqüência, seu produto e seus meios de
subsistência não assumem perante ele a forma de capital.” (M
ARX, 1980, Cap. XXII, p. 695).
Nos últimos anos, inicia-se um debate teórico importante para a definição e classificação
dessas novas propostas. Além do termo Economia Solidária, no Brasil destacado pelos
trabalhos de Paul Singer, diversos novos conceitos aparecem, como Sócioeconomia
Solidária, Economia Popular, Economia Popular Solidária, Economia de Comunhão,
Economia Social, Terceiro Setor, etc
32
.
A Economia Solidária (ES), em primeiro lugar, é uma proposta de organização da
produção alternativa ao modo de produção capitalista. Formada por diversas unidades que
desenvolvem atividades econômicas e criam redes em expansão
33
, é constituída, segundo
Singer, por empreendimentos formais e informais, caracterizados pela autogestão e pela
socialização dos meios de produção e distribuição. Sua unidade básica são cooperativas de
produção, consumo, comercialização, crédito, etc., onde não há separação entre capital e
trabalho, sendo que tais empreendimentos se diferenciam tanto na sua forma de
organização interna quanto no seu modo de articulação com a sociedade, ou com a
comunidade em que atuam. Seguindo os princípios de autogestão e de cooperação, o
“capital” da empresa, em especial os meios de produção, são propriedade dos próprios
32
Trataremos aqui de alguns desses conceitos, porém para uma discussão sobre o marco conceitual na
América latina, é interessante ver L
ISBOA (2004) (tomando ciência da crítica que faremos mais a baixo sobre
o termo sócioeconomia).
33
Devido ao seu crescimento recente, informações mais completas a respeito da economia solidária no Brasil
ainda estão sendo trabalhadas, reunidas e centralizadas. O presente estudo (mais precisamente, a segunda
parte deste trabalho) pode ser situado no contexto deste esforço de pesquisa sobre a questão.
40
trabalhadores, que gerenciam e administram o empreendimento
34
. Valores como
democracia e igualdade de direitos na tomada de decisões são fortalecidos quando, cada
trabalhador, independente da parcela do capital que assume, tem direito a um voto. Uma
unidade econômica que se classifica como economia solidária não desenvolve
necessariamente atividades da esfera da produção, mas pode e deve estar presente em todas
as esferas da economia como a circulação, o consumo e o crédito. É importante destacar
assim, três características fundamentais:
1) Um empreendimento de ES é uma associação coletiva (formal ou informal) onde há
socialização dos meios de produção; ou seja, não há hierarquia entre patrão e
empregado, nem exploração do trabalho, pois todos são donos do negócio;
2) Há autogestão, quando as decisões técnicas e gerenciais são tomadas de forma
coletiva, por meio de reuniões e assembléias. Deve haver participação ativa dos
atores envolvidos e;
3) A ES não é uma associação a serviço somente de seus sócios, mas de toda a
comunidade. Há um engajamento sobre questões políticas como o meio ambiente, o
consumo ético, e a reprodução de novos valores sociais e culturais.
Note que essas são características que podem ser consideradas como um ‘tipo ideal’, no
sentido weberiano, realmente difíceis de se ver conjuntamente na prática. Entretanto, esse
‘tipo ideal’ é também construído, dialeticamente, pela compreensão de um fenômeno que
se dá antes no mundo concreto, onde surge inicialmente esse conjunto de novos valores e
sob diferentes formas de organização, que se disseminam cada vez mais no Brasil e no
mundo.
É nesse sentido que se pode notar a Economia Popular Solidária (EPS) surgindo no
contexto de exclusão social com a perspectiva de trabalho solidário protagonizada pelas
classes populares, antes mesmo de se pensar um projeto de economia solidária para toda a
sociedade, que transcenda a questão de classes e de grupos sociais. De início, as
34
Na definição clássica de Marx, como vimos, o capital é entendido como um conceito histórico e uma
relação social que surge com o capitalismo quando uma classe pode obter lucros por meio da posse dos meios
de produção. Em um empreendimento solidário não há separação entre trabalhadores e proprietários dos
meios de produção, logo, não há lucros (pois estes representam a remuneração pela posse do capital) e nem
mesmo capital, na forma definida acima. Quando se emprega comumente na economia e no cotidiano o
termo capital, mesmo para um empreendimento não capitalista, normalmente está se referindo aos recursos
financeiros e ao aporte físico de uma empresa.
41
experiências de EPS baseavam-se em projetos de ONG’s de apoio às camadas excluídas,
que passaram a adotar uma visão libertadora e emancipatória. Esses projetos evoluem e se
ampliam na medida em que seus atores aprendem e desenvolvem novas relações de
trabalho na prática diária e na reflexão pessoal e coletiva tanto no meio urbano quanto
rural. Um exemplo disso é a evolução do trabalho da Cáritas Brasileira, que pode ser
percebida no gradual desenvolvimento dos PAC’s (Projetos Alternativos Comunitários) à
EPS
35
. Para BERTUCCI e ALVES (2003), a EPS representa a busca por um “outro projeto de
sociedade, que rompa com a lógica da competição monopolizadora excludente” ao mesmo
tempo em que se diferencia claramente da filantropia e do terceiro setor na medida em que
seus principais empreendimentos surgem da organização coletiva de trabalhadores
excluídos do mercado e da formação de empresas autogestionadas (estas, geralmente, após
a falência de uma unidade antes capitalista).
Ainda assim, há visões conceituais um pouco contrastantes, afirmando que o termo EPS,
apesar de surgir do suor desses atores, pode também impedir a percepção de articulações
que se formam num projeto de ES mais amplo. Nesse sentido, Armando Lisboa (2004),
afirma que “o termo EPS tem uma abrangência menor, designando apenas as expressões
populares da ES, empobrecendo o fenômeno em tela, pois não dá conta de toda a
amplitude envolvida”. Defende que a ES, “enquanto conceito, permite apreender mais
adequadamente o heterogêneo conjunto de experiências que constroem uma outra
economia com base no apoio mútuo e na democracia” (L
ISBOA, 2004, p. 13). Acredito
realmente que o termo ES é mais amplo e adequado, entretanto, é fundamental perceber a
necessidade e o peso que, historicamente, a expressão popular carrega, designando um
claro posicionamento em favor de um grupo social específico – a população excluída.
Dada essa questão, não pareceria justo afirmar que há um empobrecimento do fenômeno,
mas essa é de fato uma característica do andamento do processo de construção.
Nessa discussão conceitual, L
ISBOA (2004), em sua conclusão, advoga que a ES seria mais
bem definida como sócioeconomia solidária. Nesse sentido, critica a tentativa de definição
de solidariedade em termos meramente econômicos, afirmando que há um certo bloqueio
na compreensão desse novo ethos, ao se querer manter a centralidade da economia, onde a
solidariedade é somente um adjetivo que a qualifica. Assim, defende que o termo
“sócioeconomia explicita tanto o amálgama da economia na sociedade, quanto sua
35
Para um estudo e relato sobre os PAC’s e a EPS da Cáritas Brasileira, ver BERTUCCI e ALVES (2003).
42
subordinação à mesma, expressando a compreensão de que ‘a economia não é o fim
supremo’ mas apenas um instrumento que tem por finalidade o sustento da vida e a
melhoria da condição humana” (I
DEM, p. 22).
A falha em tal argumentação parece se ocultar justamente na interpretação do próprio
conceito de economia, que na verdade não é apenas um instrumento, mas sim o próprio
“sustento da vida e a melhoria da condição humana” realizados. Ora, em seu sentido
filosófico inicial, já colocado por Aristóteles, a Economia teria como objetivo maior,
dentro do processo de produção e procura de bens, nada mais que a busca da felicidade. De
fato, a compreensão popularizada sobre o que é economia, assim como o que o próprio
estudo da economia nas universidades se tornou, passa ao largo do significado original do
termo e não facilita em nada a resolver o embate. É preciso haver um resgate conceitual
para “limpar” a imagem da economia, para reconstruir a compreensão do sentido do
cuidado da casa, como uma mãe cuida dos filhos, e da satisfação das necessidades
humanas, sejam elas objetivas ou subjetivas, materiais ou afetivas. Sem assumir um
utilitarismo simplista, podemos compreender que os novos acúmulos da ES, que permitem
uma valorização diferente das coisas da vida, configuram o surgimento de novas
necessidades humanas (ou a transformação das velhas), quando fatores como cidadania e
igualdade de oportunidades ganham prioridade nessa lista de necessidades. Isso nos faz
crer que o termo sócioeconomia consiste em nada mais do que uma tautologia. De fato, a
economia, hoje, reflete o individualismo impregnado na nossa sociedade, porém nada nos
impede de construir uma outra economia. Para isso, é preciso superar a visão ideológica de
que economia e solidariedade são incompatíveis. A revisão dos conceitos é sempre
importante, porém não parece ser necessária aqui a criação de um novo conceito, mas sim
a correção na interpretação de um conceito antigo.
Partindo da questão urbana e estudando esse processo de reconfiguração da sociedade
capitalista dentro da crise do emprego sobre uma outra ótica C
ORAGGIO (1994), citado
anteriormente, sugere o conceito de Economia Popular (EP) para melhor compreender o
crescimento do que seria um novo subsistema que se configura e se fortalece. Regida pela
lógica da reprodução ampliada da vida e partindo das Unidades Domésticas (UD’s), esse
subsistema poderia se articular e ganhar espaço, em meio aos outros dois subsistemas da
organização econômica atual: a Economia Empresarial Capitalista e a Economia Pública.
Nessa linha, a EP não seria definida simplesmente como ‘as atividades das classes mais
pobres’, mas se caracterizaria pela formação de um Fundo de Trabalho voltado para a
43
ampliação das capacidades (“capital humano”) e da qualidade de vida dos membros das
UD’s.
A abordagem de C
ORRAGIO (1994) pode ser articulada como a configuração do espaço da
cidade proposta em S
ANTOS (1979), discutido anteriormente
36
como os subsistemas do
“circuito superior” ou “moderno” e do “circuito inferior”. É importante notar que para
Milton Santos, o esforço inovador de teorização é a inclusão do circuito inferior na
compreensão de uma totalidade estruturada e hierarquizada e não sua interpretação a partir
do circuito superior, como o fazem a maioria dos autores. Segundo ele, a interpretação
viesada de que a economia popular (ou o circuito inferior) “não faz parte da cidade” tem
feito com que se estude apenas uma fração da cidade e não toda ela, pois, como ele procura
demonstrar, o circuito inferior, embora subordinado, também é parte da cidade.
Essas diversas abordagens, faz-se necessário reforçar, apesar de se apoiarem em conceitos
comuns, possuem algumas divergências. A Economia Popular diferencia-se da Economia
Solidária principalmente na sua forma de compreensão e de articulação dentro do sistema
capitalista. Enquanto a primeira se propõe a formar um subsistema (embora em algum
momento possa ter um peso tão importante quanto o subsistema da economia capitalista), a
segunda defende uma forma de organização não intersticial ao capitalismo, muitas vezes
colocada como uma alternativa (utópica?) de sua possível superação
37
, ao menos no longo
prazo. Outra questão que se percebe aqui é a de que as abordagens de S
ANTOS (1979) e de
C
ORAGGIO (1994) sobre a formação da economia urbana constituem propostas de
explicação para a atual configuração do espaço na cidade, que é certamente de grande
utilidade para a construção (ou não) de uma nova configuração, de um novo projeto,
enquanto a ES, bem ou mal, é a construção de um novo projeto de sociedade consciente,
planejada e com base na autogestão.
36
Ver tópico I.2.2 deste trabalho.
37
Embora se tenha uma visão de uma reorganização estrutural da sociedade (por outros meios que não a
revolução radical), a proposta ainda é uma semente sendo regada. De qualquer modo, possibilita se pensar
novas formas macroeconômicas de planejamento a partir da mobilização e do aprendizado social.
44
I.4
SOCIALISMO CIENTÍFICO E ECONOMIA SOLIDÁRIA
Até que ponto o pensamento marxista, que um dia marcou a superação crítica das
primeiras formulações socialistas, pode ainda oferecer condições de análise das novas
configurações do capitalismo? Se por um lado, o “socialismo científico” representava uma
nova etapa, um novo movimento de ação em relação ao “socialismo utópico”, por outro
lado ainda tem muito que avançar para a compreensão e a ação sobre o novo contexto do
capitalismo atual. O “socialismo real”, que na prática surgiu apenas como um sistema
autoritário e antidemocrático, foi uma falácia que se afastou totalmente do pensamento
idealizado por Marx e por todos que lutavam por uma sociedade mais justa.
É preciso ainda lembrar que uma série de movimentos socialistas (e anti-stalinistas) de
reorganização e gestão política alternativa, localizados em períodos históricos específicos,
como a experiência iugoslava, a primavera de praga, o caso chileno e de Portugal, etc.,
foram relegados à margem da história e da ciência social, havendo uma grande carência de
estudos aprofundados e uma visão unilateral do que foi a realidade do socialismo. O fato é
que com a ruptura do sistema soviético, a idéia de que o socialismo (não apenas o de Owen
e Proudhon, mas também o de Marx e Engels!) seria um sistema utópico se tornou cada
vez mais presente. Como afirma João Antônio de P
AULA (1994), “o preço demasiadamente
elevado que o marxismo pagou ao stalinismo precisa ser definitivamente superado, e suas
lições apreendidas”. De alguma forma, a ES traz novas reflexões para esse debate.
Nesse sentido, é preciso esclarecer duas questões. Primeiro, o pensamento marxista da
maior parte do século XX manteve marginalizado, talvez injustamente, um importante
debate a respeito do movimento cooperativista. As experiências dos trade unions, das
primeiras cooperativas de consumo e produção, do Labor Exchange criado por Owen, e em
seguida a Sociedade dos Pioneiros de Rochdale, com a primeira reunião clara das regras
político-sociais do cooperativismo (que garantiam sua autenticidade e sua viabilidade
econômica, já sem a pretensão de tornar autônoma a cooperativa) significaram importante
movimento, inclusive reconhecido por Marx. A outra questão se refere ao fato de que a
temática de transição socialista no campo das discussões marxistas é um assunto deveras
controverso, com diferentes interpretações, problemas e ambigüidades tanto de ordem
teórica como filosófica. Com efeito, a análise de uma possível transição do capitalismo ao
45
socialismo não chegou a ser objeto específico de investigação para Marx
38
.
Desse modo, uma compreensão superficial, muitas vezes distorcida, por parte de marxistas
ortodoxos, sobre os projetos dos primeiros socialistas, seja pelos aparentes fracassos de
Owen, Fourier ou Proudhon ou mesmo pelo desvio de diversas cooperativas, provocou,
junto aos acontecimentos históricos deste século, um certo “vazio teórico” a respeito da
importância política desse movimento, considerado muitas vezes reacionário e limitado.
De fato, como aponta, C
ONSTANTINO (2004, p. 2), o próprio Marx não desprezava o
cooperativismo enquanto um movimento socialista de mobilização político-social,
enquanto um instrumento prático-teórico que se colocava claramente em oposição ao
trabalho assalariado e rompia com a propriedade privada dos meios de produção. “Em
projeto, ela [a cooperativa] supera positivamente a contradição entre capital e trabalho,
constituindo um elemento do modo de produção socialista, que se desenvolve a partir do
modo de produção capitalista” (S
INGER, 1998, p. 129).
No próprio Manifesto Comunista já é exaltado o caráter crítico e revolucionário de Owen e
dos primeiros socialistas a proporem sistemas alternativos
39
. Mas, apesar de em 1848
tomá-los como fadados ao fracasso, dado seu caráter utópico e a forma embrionária em que
se encontrava a luta de classes, mais tarde Marx vem apresentar uma visão mais otimista
sobre o movimento cooperativista que se organizava, como se vê no “Manifesto de
Lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores”, onde se refere ao futuro
promissor possibilitado pelo movimento cooperativista que, tendo sua semente plantada
por Owen na Inglaterra, demonstra “pela ação, ao invés de por palavras, (...) que a
produção em larga escala e de acordo com os preceitos da ciência moderna pode ser
realizada sem a existência de uma classe de patrões que utiliza o trabalho da classe dos
assalariados”, que não é preciso haver monopólio dos meios de produção e que o trabalho
assalariado, assim como o trabalho escravo é uma fase transitória que dará lugar ao
38
De forma mais consistente e estruturada, a análise marxiana com base na concepção materialista é
elaborada em primeiro lugar para explicar a queda do feudalismo e o surgimento da formação capitalista. A
partir daí, alguns autores admitem a constituição dos primeiros fundamentos para se desvendar, de forma
mais geral, as leis “científicas” que regulariam o surgimento, a evolução e o desaparecimento de dado
organismo social, assim como a passagem para um sistema superior (o que L
EFEBVRE (1978) aponta como
uma certa teoria da obsolescência das sociedades, contida em Marx). Sobre a temática da transição no
pensamento marxiano, é interessante ver o texto de Maurice G
ODELIER (1986).
39
“Essa descrição mirabolante de sociedade futura (...) nasce da primeira aspiração instintiva dos fundadores
desses sistemas a uma transformação geral da sociedade”, atacando “todos os fundamentos da sociedade
estabelecida” e apelando “constantemente para o conjunto da sociedade sem distinção” para “melhorar a
situação de todos os membros da sociedade, mesmo a dos mais favorecidos”. (M
ARX e ENGELS, 2001 [1848],
p. 78).
46
trabalho associado.
40
Porém, por estar inserido numa estrutura capitalista intensamente flexível e não se afirmar
como um movimento revolucionário, no sentido da tomada de poder, o cooperativismo se
viu acusado de reacionário por pensadores mais ortodoxos. O isolamento do resto da
sociedade das experiências fundadas por aqueles chamados de utópicos, a tentativa de se
manterem ilhadas num mar capitalista foi claramente um ponto crucial para o seu fracasso,
do mesmo modo que o autoritarismo e a repressão do socialismo burocrático de estado
representou, mais tarde, uma dura derrota para o movimento socialista. Mas no contexto do
século XIX, na Inglaterra, mais do que por se apresentar como uma alternativa
supostamente reacionária, o movimento cooperativista foi derrotado pela ação conjunta do
estado e do capital, pela intolerância dos governos e pela demonstração, naquele momento,
da superioridade da “intersolidariedade entre os capitalistas”, como aponta S
INGER (1998,
p. 97/98), “que venciam os trabalhadores pela fome”. E a luta política entre capitalistas e
trabalhadores durante o século XX acabou se desenvolvendo por outros caminhos, pela via
do movimento sindicalista, apoiando o sufrágio universal, a democratização e se adaptando
ao avanço da ciência e da tecnologia (em cooperação com as técnicas fordistas de aumento
da produtividade), de forma pouco semelhante à proposta que esses dois movimentos
possuíam no início do século XIX.
Como discutimos anteriormente, por algumas décadas, nos “anos dourados” do pós-guerra,
as conseqüências deletérias da exploração do trabalho foram amenizadas, pela via do
estado do bem-estar e das políticas keynesianas anticíclicas, conferindo inclusive grande
proteção social para o trabalhador assalariado nos países do capitalismo avançado. Dentro
desse quadro de estabilidade do emprego, o movimento sindical dava grande força aos
movimentos trabalhistas, e às reivindicações por melhores salários, mas não se pode
afirmar que este mesmo movimento se colocava como alternativa política frente ao
capitalismo. Ao contrário, estava todo construído para a defesa do trabalho assalariado
(alienado?) ainda sob um regime voltado para a acumulação de capital, que ficou
conhecido como fordismo.
Enquanto de algum modo o movimento cooperativista se coloca como alternativa de
totalidade para superação prático-teórica do capitalismo, não se pode querer dar caráter
40
Citado por HADDAD, Fernando et al. Sindicatos, cooperativas e socialismo, São Paulo, Fundação Perseu
Abramo, 2003, p. 31. Ver também C
ONSTANTINO (2004).
47
alternativo ao sindicalismo (ao menos no século XX), muito embora, como afirma S
INGER
(1998, p. 75/6), a luta da classe operária pela regulamentação do trabalho tivesse “– e
continua tendo – uma clara orientação ideológica anticapitalista”, na medida em que “eleva
a barganha entre capital e trabalho do plano individual ao plano coletivo” e desemboca no
alargamento dos direitos políticos dos trabalhadores. De fato, o sindicalismo funcionou
como um instrumento de defesa do trabalhador, mas sem transformar, nem mesmo propor,
uma mudança concreta na base do modo de produção capitalista. Não contesta a
propriedade privada nem mesmo o trabalho assalariado. Aliás, está todo construído na
defesa deste, em cooperação com o Capital. Como afirma H
ARVEY (1993):
“Nos EUA, por exemplo, os sindicatos ganharam considerável poder na esfera da negociação
coletiva nas indústrias de produção do meio Oeste e do Nordeste (...) e conquistaram
importante poder político (embora nunca determinante) sobre questões como benefício de
seguridade social, salário mínimo, (etc...). Mas adquiriram e mantiveram esses direitos em
troca da adoção de uma atitude cooperativa no tocante às técnicas fordistas de produção e às
estratégias corporativas cognatas para aumentar a produtividade”.
Obviamente, ainda assim, não podemos deixar de reconhecer sua importância e seu papel
histórico para a melhoria das condições dos trabalhadores (inclusive é provável que as
cooperativas tenham sido um desdobramento das primeiras centrais sindicais, ainda no
século XIX, quando sua interconexão era muito forte). É isso o que leva S
INGER (1998) a
afirmar que as conquistas políticas da classe trabalhadora pela democracia desde o
Cartismo, como o sufrágio universal até a revolução feminista, a seguridade social
representam implantes socialistas adaptados ao capitalismo, originalmente propostas
revolucionárias de contestação a este sistema em defesa de uma nova ordem social com
base na fraternidade humana. Segundo S
INGER (1998, p. 113):
“(...) o capitalismo suscita reações por parte da classe trabalhadora em três planos: ideológico,
político e socioeconômico. Essas reações têm por lógica a resistência às tendências destrutivas
e concentradoras da dinâmica capitalista. Os resultados são transformações institucionais que
acompanham a revolução capitalista e, ao mesmo tempo, se contrapõem a ela, sem anulá-la”.
Não é de todo estranho o fato de que é justamente nesse período que a proposta socialista
(de transformação radical) perde espaço. Contudo, após o colapso do regime fordista de
acumulação, a emergência da crise recente e a retomada da voga neoliberal, o sindicalismo
perdeu sua força política e a seguridade social sofreu forte retrocesso – junto a uma clara
mudança de ênfase da proteção ao trabalhador não mais sobre a defesa de seu salário, mas
48
sobre a defesa do emprego. Nos países do terceiro mundo, chega-se a afirmar que ter um
emprego formal simplesmente – por mais precário que seja – é um privilégio de poucos.
É nesse momento histórico que a proposta do novo cooperativismo é retomada, como
alternativa política frente ao capitalismo, talvez abrindo caminho hoje para a semente de
uma nova proposta socialista, que Singer apresenta como a ES, baseada na prática da
autogestão. Com efeito, a ES têm suas raízes ideológicas no cooperativismo e em Owen,
guardando elementos das diversas propostas socialistas que se viu no mundo, entretanto,
sua formação atual está ligada a um contexto histórico, econômico e social de configuração
do capitalismo amplamente diferente.
“Por isso, particularmente nesse momento histórico, em que o movimento sindical e o estado
de bem-estar estão em crise, o problema científico da revolução socialista não está em
determinar o modo como ela irá culminar, mas sim em fazer um balanço histórico-crítico do
que foi conseguido face às tendências do capitalismo no futuro próximo” (S
INGER, 1998, p.
133).
Além disso, as derrotas das experiências alternativas anteriores, que não foram ignoradas,
possibilitaram ao menos um significativo aprendizado para o desenvolvimento de novas
propostas de ação.
I.5
CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PARTE I
Se por um lado, a contestação da atual estrutura social começa a retomar seu vigor, por
outro há uma grande lacuna, falta uma teoria, ou uma proposta coerente e melhor elaborada
para a compreensão de um possível processo de transição. De forma geral, além de Marx,
muitos afirmaram que a sociedade caminha para um processo de desenvolvimento
superior, para além do sentido estritamente econômico, numa tendência de redução das
desigualdades sociais, da discriminação de todos os tipos, da violência, da corrupção, da
depredação do meio ambiente, etc., ou seja, que o capitalismo se transformaria, mesmo que
não por uma revolução, numa ordem de coisas que pode ou não ser chamada de
socialismo
41
.
Uma importante contribuição a essa discussão é oferecida por L
EFEBVRE (1978) no livro A
sobrevivência do capitalismo. De forma ampla, buscando uma totalidade no sentido
41
Essa visão é percebida com clareza em SCHUMPETER (1984[1928]), por exemplo.
49
marxista, em sua abordagem sobre a reprodução das relações sociais de produção, propõem
as primeiras linhas para uma resposta, que dois anos mais tarde vai ecoar no que pode ser
seu trabalho mais importante, A produção do espaço. Segundo o autor, existe uma questão
sobre a reprodução das relações sociais de produção (capitalistas) que Marx não preencheu
e que pode ser crucial para a compreensão de como, apesar das diversas crises que o
capitalismo atravessou no último século, este conseguiu resolver (ou ao menos atenuar)
suas contradições internas, e se reproduzir. Segundo Lefebvre, o capitalismo tem obtido
relativo sucesso em reproduzir a si próprio e as suas relações de produção no último século
porque tem sido capaz de ocupar o espaço ao seu redor e, ainda, produzir novos espaços.
Nesse sentido, analisa uma série de elementos sociais e institucionais que se formam no
nível do cotidiano, no qual o capitalismo hoje se estabeleceu, e não mais o econômico em
geral, construindo espaços objetivos e subjetivos que formariam as idéias e ideologias que
permitem a sua sobrevivência.
Desse modo, Lefebvre faz uma instigante análise crítica do pensamento atual, discutindo
como a “ciência”, em todas as suas áreas respeitadas na academia, tem reprimido e deixado
de lado o importante problema da reprodução das relações sociais de produção. Isto porque
talvez este próprio conhecimento, transmitido por meio de um discurso e de uma
linguagem supostamente livres de ideologias, sirva à reprodução das relações de produção
do modo de produção no qual está subsumido, seja na psicologia ou na pedagogia, seja nas
ciências sociais em geral, impregnadas pelo vício da modelagem.
Nesse sentido, à guisa de alternativas, Lefébvre entra em sintonia direta com a proposta
que tem sido apresentada pelos atores da economia solidária, apostando todas as suas
fichas na autogestão como caminho de desenvolvimento de novas formas de ocupação do
espaço. Para ele, a autogestão representa uma solução original para o problema da
socialização dos meios de produção, primeiramente posto por Marx, dado que tem
potencial conceitual e prático para evitar as dificuldades que surgiram após Marx nas
experiências autoritárias do planejamento centralizado. Segundo L
EFEBVRE (1978, p. 91),
uma possível transição não segue a revolução política, como se daria na prescrição de
Marx. Ela a precede, o que demanda urgentemente um projeto concreto, global por uma
sociedade nova e qualitativamente diferente, que vai além das demandas comuns por
trabalho ou pela melhoria da qualidade de vida. Tal projeto tem significado somente pela
50
virtualidade da impossibilidade da reprodução indefinida das atuais relações de produção
42
.
Paul Singer, repensando o socialismo em Uma utopia militante, coloca questões
importantes para a discussão de uma possível transição, em uma linha diferente de
Lefebvre, mas com a mesma ênfase sobre o papel da superestrutura na sustentação (ou para
a superação) da ideologia capitalista. Afirma que a teoria de Marx, pautada nas inter-
relações entre a infra e a supra-estrutura, revela com muita acuidade a dinâmica da
revolução capitalista, na medida em que explica a longa passagem do feudalismo ao
capitalismo. Entretanto, a mesma teoria não dá conta de explicar a (potencial) revolução
em curso. Com efeito, esta revolução social, marcada por diversas conquistas de cunho
evidentemente socialista, como a legalização dos sindicatos, a regularização das
cooperativas, a previdência pública até o sufrágio universal, assim como os recentes
movimentos de autogestão operária, a generalização da educação, as mudanças nos hábitos
de consumo, a preocupação ambiental, o desenvolvimento de atividades criativas, da
ciência, das artes, os projetos de reinserção social dos egressos do sistema prisional por
cooperativas sociais, etc. representa uma transformação supra-estrutural muito clara e que
não foi condicionada pelo desenvolvimento das forças produtivas (como imaginava Marx).
Em diversas fases da história se produziram diferentes formas alternativas ao capitalismo
de organização social e econômica. Segundo S
INGER (1998, p. 9), “O fracasso do
‘socialismo realmente existente’ revelou que o socialismo sem aspas terá de ser construído
pela livre iniciativa dos trabalhadores em competição e contraposição ao modo de
produção capitalista dentro da mesma formação social”. Uma possível transferência dos
meios de produção aos trabalhadores, “não pode ser decretada de cima para baixo, mas tem
que ser conquistada de baixo para cima, e dentro do capitalismo. E essa conquista não
pode deixar de levar muito tempo, pois implica em uma verdadeira revolução cultural
protagonizada pelos trabalhadores que se transformam, por sua própria iniciativa, de
dependentes assalariados – ou ex-assalariados desempregados – em empreendedores
coletivos” (I
DEM, p. 11). Daí a necessidade de se separar os conceitos de revolução social e
revolução política.
As revoluções políticas, tanto as burguesas como as proletárias, são episódios bem
42
O termo virtualidade, empregado aqui no sentido lefebriano, indica que um futuro possível (virtual) se
torna real na medida em que a própria ponderação de que ele possa ocorrer influencia de modo real as ações
práticas do presente.
51
delimitados no tempo, quase sempre marcadas por um processo violento, mas que, ao final,
implementam não apenas uma mudança de governo, mas de sua gestão e das relações de
poder entre o estado e a sociedade civil, introduzindo inovações institucionais que
difundiram novos padrões de estado e perduraram por longo tempo
43
. São
fundamentalmente diferentes, diz S
INGER (p. 18-19), das duas grandes revoluções sociais
em curso: a revolução capitalista e a revolução socialista. Estas “constituem processos de
mudança entre formações sociais, cada uma das quais é caracterizada pela hegemonia de
um modo de produção, que lhe empresta o nome”. Desse modo, a revolução social
capitalista não é um fato delimitado no tempo, mas se deu desde o surgimento do
capitalismo nas brechas do modo de produção feudal e subordinado a este, até, com a
revolução industrial, o capitalismo se tornar dominante. É este mesmo sentido que nos
oferece Marx no prefácio de Para a crítica da economia política, ao afirmar que o
capitalismo haverá de ser superado historicamente. Entretanto é muito difícil prever ou
julgar até que ponto as diversas atividades não capitalistas que se reproduzem nos
interstícios do capitalismo, poderão se mostrar, futuramente, como um modo de produção
superior, completando uma nova revolução social (socialista).
Ora, para isso é preciso investigar como se dá a organização interna e externa do trabalho
nos empreendimentos de ES. Internamente percebe-se a possibilidade de superação parcial
do problema advindo da divisão do trabalho no momento em que cada trabalhador de um
empreendimento autogestionado passa a ter consciência da totalidade do processo
produtivo, tanto das funções de produção como das de decisão, quando desaparece a figura
do patrão e rompe-se a dualidade capital-trabalho. Externamente, entretanto, a anarquia da
divisão social do trabalho continua. Contudo, o projeto da ES que se coloca à nossa frente,
que se multiplica em diversas atividades construídas na prática no Brasil e em todo o
mundo, tem sua base na autogestão. Ele defende o estabelecimento de uma rede complexa
a partir das bases da sociedade, não se limitando (e não pode se limitar) a um projeto de
administração das questões econômicas. Daí o reforço do caráter eminentemente político
da ES, que, no movimento de conscientização e de prática da solidariedade, no movimento
43
Nesse sentido se deram tanto as revoluções burguesas (entre as principais, a Revolução Inglesa, a
Revolução Americana e a Revolução Francesa) quanto as revoluções proletárias (a Comuna de Paris, a
Revolução Russa e a Revolução Chinesa). O que parece contraditório é que enquanto as primeiras (de certo
modo, representantes da virtuosidade do capitalismo) foram as que possibilitaram a difusão de ganhos sociais
inegáveis como a declaração universal dos direitos do homem, as segundas (com exceção da Comuna de
Paris) acabaram representando novos sistemas políticos baseados na autoridade e na repressão ditatorial (o
que sem dúvida alguma desfez qualquer traço que poderiam conter do pensamento socialista original).
52
de oposição às relações capitalistas e suas contradições, deve representar uma força
impeditiva a esse processo. A percepção e a construção prática e teórica da economia
solidária como um movimento de caráter não apenas econômico, mas fundamentalmente
político, além de conferir originalidade ao movimento, não se distancia, mas pelo
contrário, entra em sintonia com o pensamento marxista. Trata-se também de se pensar a
sociedade contemporânea com o mesmo espírito crítico, no sentido de compreensão e
superação, aí vinculado.
Sem dúvida nos deparamos com uma interessante tentativa de resgate de um aspecto talvez
pouco explorado do pensamento marxista, que João Antônio de P
AULA (1994) apresenta
como “a incorporação da subjetividade do indivíduo e da política como realidades
irredutíveis a qualquer simplificação”. O desdobramento desse processo histórico resultará,
assim, em uma série de lutas de classes de forma alguma pré-determinadas. Trata-se,
portanto, de uma revolução social em potencial, cuja culminação ou ‘vitória’ é uma
possibilidade futura” (S
INGER, 1998, p. 12). Por isso, torna-se mais forte ainda a promessa
de transformação da sociedade pela ação política permanente, e não apenas nos períodos de
crise, quando o desequilíbrio acentua a miséria e a desigualdade. Para que a práxis seja
transformadora, ela deve ser, sobretudo, espontânea, deve partir de um sentimento de
comprometimento, interno a cada um, que se resume no desenvolvimento da solidariedade.
Entretanto, não é totalmente adequado pensar a economia solidária literalmente como um
“implante” socialista dentro do capitalismo, pois, de fato, as experiências que se perpetuam
não raramente são apropriadas pelo sistema, sucumbindo à lógica dominante e perdendo
seu caráter, como mostra o exemplo da Cooperativa de Rochdale, que após grande
prosperidade acabou sendo transformada numa empresa capitalista, dando novo duro golpe
no movimento cooperativista e socialista. Isso ocorre no momento em que se separa o
caráter político da proposta, ou quando este não é intimamente assimilado. “O desafio
ideológico é formular um projeto de sociedade que respeite as liberdades individuais,
políticas e econômicas, conquistadas pelos trabalhadores no capitalismo hodierno”, que
ofereça inserção no processo produtivo, participação nas decisões e um padrão de vida
adequado (S
INGER, 1998, p. 110). Assim, é somente da união desses empreendimentos,
pela sua articulação em redes e cadeias de produção e decisões que tal mudança é possível.
Contudo, algo que vá além da busca por maior competitividade no mercado também é
necessário. Ganhos conquistados por fatores como o aumento da escala de produção e uma
maior capacidade de absorção de inovações devem vir acompanhados de uma mudança
53
institucional, cultural e comportamental em toda a sociedade, de acordo com um plano
nacional comum.
É importante compreender, portanto, que a expansão desse movimento para o
enfrentamento concreto à lógica presente deve ser baseada em novos critérios – os quais
não podem ser comandados pela lei do valor em um mercado auto-regulado – e, ao mesmo
tempo, com consciência de que sua inserção está subordinada a esse mercado capitalista.
Embora resgate a utopia, a ES não pode, nem deve ser igualada ao socialismo utópico. As
práticas que surgem hoje devem ser estudadas, compreendidas e apoiadas à luz da nova
configuração na qual a sociedade se encontra. Temos, pois, que demonstrar que tal
mudança é uma possibilidade efetiva e que vale a pena a aposta.
54
P
ARTE II
S
OLIDARIEDADE E REALIDADE: SOBREVIVÊNCIA OU CONVICÇÃO?
“Como aliviar a dor do que não foi vivido?
A resposta é simples como um verso: Se iludindo menos e
vivendo mais! A cada dia que vivo, mais me convenço de que
o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças
que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que,
esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade.
A dor é inevitável. O sofrimento é opcional."
Carlos Drummond de Andrade
II.1
DELIMITANDO A QUESTÃO
44
Em todo o mundo, tanto em países desenvolvidos como subdesenvolvidos, novas formas
de organização das atividades econômicas emergem erguendo a bandeira da economia
solidária. Sejam as cooperativas de crédito, como o Banco do Povo de M. Yunus, o banco
de Palmas no Brasil, os clubes de troca iniciados no Canadá com o Lets (Sistemas Locais
de Trocas e Comércio) e multiplicados na Argentina, o cooperativismo Irlandês, o
complexo cooperativo de Mondragón na Espanha e em outras regiões da Europa, a
economia social na França, o comércio justo ou as cooperativas agrícolas do MST
espalhadas por todo o Brasil, o sistema Cresol em Porto Alegre, a Teia Esperança em Santa
Maria, entre diversos outros
45
.
Na primeira parte dessa dissertação, discutimos os fundamentos da economia solidária,
sem, entretanto, tratar diretamente das suas diversas formas de manifestação. Apontamos o
que seriam os pressupostos, ou a base ideológica que incentiva o desenvolvimento dessas
atividades, que pode ser resumida por uma afirmação que se vê em diversos trabalhos e
que resume a economia solidária como a “busca por um desenvolvimento socialmente
justo, economicamente viável e ambientalmente sustentável”, possível somente pela via da
radicalização da democracia e do empoderamento popular, que convergem na idéia da
autogestão e do autogoverno, expandidos para todos os sentidos da vida social e
econômica.
Com efeito, a economia solidária abrange, como já comentado, uma grande diversidade de
atividades, que, ao final, entram em confluência segundo os pressupostos reafirmados
anteriormente. Para além do debate puramente conceitual, procuramos agora discutir e
analisar quais as formas concretas com que ela se manifesta, assim, dialeticamente,
permitindo o surgimento desse pensamento como proposta teórica.
44
Uma parte considerável deste tópico foi retirada do trabalho BERTUCCI (2004b), modificada e melhorada.
45
Apesar de ainda não se conhecer a totalidade da ES no Brasil, há um grande levantamento de experiências
já realizado por diversos pesquisadores e instituições. Sobre esse esforço, é importante verificar alguns
trabalhos como SINGER e SOUZA (2000), GAIGER (2004) e BERTUCCI E ALVES (2003).
56
II.1.1
MANIFESTAÇÕES CONCRETAS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA
A nível internacional, podemos relembrar o exemplo já citado da Corporação Cooperativa
de Mondragón como o caso de maior sucesso em autogestão e cooperação que segue os
princípios da economia solidária. Um complexo empresarial que envolve pesquisas e
desenvolvimento de alta tecnologia. S
INGER (2002a, p. 98) destaca sua dimensão:
“Trata-se provavelmente do maior complexo cooperativo do mundo, que combina
cooperativas de produção industrial e de serviços comerciais com um banco cooperativo, uma
cooperativa de seguro social, uma universidade e diversas cooperativas dedicadas à realização
de investigações tecnológicas”.
A cooperativa surgiu pelo ‘empreendedorismo’ do padre José Maria de Arizmendiarreta,
em 1956 que, após criar uma escola técnica na qual lecionava os princípios da Economia
Solidária, conseguiu o patrocínio para transformar uma empresa de fogões falida em uma
empresa autogestionada. Em meio à concorrência capitalista, a cooperativa fortaleceu os
princípios de cooperação e expandiu sua estrutura entre vários grupos cooperativos,
promovendo fusões com outras cooperativas e desenvolvendo trabalhos de assistência
social.
Desde o início, a cooperativa se destacou pela preocupação e pelo incentivo do padre José
Maria com o desenvolvimento do progresso técnico, da educação e da pesquisa. Na década
de 70 foi criada uma escola, que hoje forma a Universidade de Mondragón, dividida em
um centro de mecatrônica e um centro de energia, onde se desenvolve pesquisa industrial e
se formam profissionais, em meio aos princípios solidários. Desse modo, Mondragón “se
tornou paradigma para cooperadores e estudiosos do mundo inteiro” (S
INGER, 2002a, p.
105).
No Brasil, com o apoio de políticas públicas de um governo popular, o estado do Rio
Grande do Sul apresentou as primeiras experiências de economia solidária, ligadas aos
movimentos rurais. Lá se desenvolveu o Cresol, maior sistema de crédito voltado para o
apoio de cooperativas solidárias do Brasil e a Teia Esperança, em Santa Maria. Outro
exemplo de importância, na outra ponta do Brasil, é a Usina Catente no Nordeste, com oito
anos de experiência inovadora em autogestão, destacando-se como um dos maiores
empreendimentos em economia solidária, gerando trabalho e renda e promovendo por
meio de um movimento de reforma agrária, uma mudança brutal nas condições de vida de
57
cerca de 3 mil trabalhadores e mais de 12 mil pessoas residentes nessas terras. As safra de
2002/03 possibilitaram a produção (com a prática de diversificação agrícola e industrial,
em oposição à monocultura) de 110.000 toneladas, gerando um rendimento de R$
4.000.000,00, resultando em uma renda média de R$ 1.200,00 por trabalhador.
A empresa agroaçucareira, que tem sua história marcada pelo domínio de grandes
produtores latifundiários, teve seu auge nos anos 80, com os incentivos do Proálcool.
Chegando a possuir 70.000 hectares de terras, ela entra em processo de falência na década
de 90 devido à reestruturação produtiva regional. Vários anos e diversas disputas políticas
se passaram até a aquisição efetiva da empresa pelos trabalhadores. Dentro do projeto de
trabalho destaca-se a reorientação produtiva e a absorção de novas tecnologias com
constante preocupação ambiental (L
IMA, 2003).
Para se ter uma noção da autogestão no Brasil, ainda em 1999, segundo a ANTEAG, eram
“65 empresas com faturamento de R$ 320 milhões(...) Os projetos reconstruíram das
cinzas 20 mil postos de trabalho e 80 mil empregos indiretos, a custo zero para o poder
público” (A
NTEAG, 2000, p. 7). Não se tem muita idéia hoje de qual o crescimento dessas
empresas, entretanto, os dados apresentados já indicam o peso do movimento das empresas
autogestionadas no Brasil. Empresas de diversos setores, antes à beira da falência, e que
foram transformadas em cooperativas de produção controladas pelos trabalhadores. Note-
se que esses valores representam apenas as empresas formalizadas e diretamente ligadas à
Anteag. Além desses projetos, existe toda a atividade de pequenos produtores familiares,
cooperativas não formalizadas com diferentes origens, redes e fóruns que buscam ligar
outras esferas da economia além da produção que seguem o movimento da economia
solidária apoiados por diferentes organizações.
A partir do trabalho de Euclides M
ANCE (2003), que lista uma série de programas e
instrumentos de articulação já realizados no Brasil, podemos construir, de forma adaptada,
uma tipologia inicial das atividades de ES. Podemos apresentar assim, entre as diferentes
práticas encontradas no Brasil, as seguintes atividades:
Cooperativas de Consumo e Grupos de Aquisição Solidária – que possibilitam, por
meio da associação entre os consumidores, o acesso a produtos de qualidade, social e
ambientalmente corretos a “preços justos”;
Empreendimentos Solidários de Produção e Serviço – compreendem tanto os
58
denominados (a) empreendimentos autogestionados, nascidos de empresas falidas
que foram assumidas pelos trabalhadores como as (b) cooperativas urbanas autênticas
de diversos ramos e as (c) cooperativas de produção agropecuária, como as criadas
em assentamentos rurais pelo MST
46
;
Banco do Povo – visa possibilitar acesso a microcrédito para pequenos
empreendimentos e prestadores de serviços, muitas vezes utilizando o instrumento de
aval solidário. Geralmente atende as demandas de determinada localidade (bairro ou
vila), como se pode destacar no caso do Banco Comunitário, um tipo de Banco do
Povo, que se diferencia por ser administrado pela própria comunidade. No Brasil,
temos alguns exemplos como o Banco de Palmas no Ceará ou de forma ainda pouco
articulada com a ES, o Banco Popular de Belo Horizonte
47
;
Cooperativas de Crédito – alternativa de emprego de finanças que possibilita que a
poupança local seja reaplicada e favoreça o investimento produtivo da mesma
localidade;
Clubes de Troca com Moeda Social – instrumento suplementar, utilizado como forma
de ativar fluxos de comercialização local, onde, devido à falta de dinheiro (mas não de
trabalho e bens a serem cambiados), a atividade econômica se encontra estagnada;
Feiras de Economia Solidária – funcionam, como espaços de comercialização,
divulgação, educação e manifestação cultural da economia solidária. Os fóruns de ES
pelo Brasil já realizaram feiras por quase todos os estados;
Lojas de Comércio Solidária – locais permanentes de comercialização de produtos da
ES;
Complexos Cooperativos – buscam a integração de empreendimentos solidários em
determinado setor, para estreita cooperação entre si;
Redes de Economia Solidária – integram entidades de apoio e empreendimentos
solidários de todos os tipos (produção, comércio, serviços, crédito e consumo),
46
Para um estudo de caso identificando a relação entre as cooperativas agropecuárias formadas em
assentamentos do MST e a Economia Solidária, ver B
ERTUCCI e AL (2004a). De forma geral, ver SINGER
(2002b).
47
Para uma discussão sobre a democratização do crédito no Brasil e o papel dos bancos populares (com um
estudo do caso do banco popular de Ipatinga/MG), ver P
EREIRA (2004).
59
fortalecendo e criando novos empreendimentos. Podem ser também Redes de
Comércio, viabilizando o escoamento da produção e oferecendo suporte operacional
entre cooperativas de produção e de consumo. A Teia Esperança, em Santa Maria, RS,
é uma das experiências pioneiras no desenvolvimento de redes de ES no Brasil;
Fundo Solidário de Desenvolvimento – proposta ainda a ser efetivada, para a
manutenção de recursos, a nível nacional, de apoio às diversas atividades de ES;
Incubadoras de Empreendimentos Solidários – incluem as incubadoras tecnológicas
de cooperativas populares (ITCP’s), ligadas às universidades ou à entidades de apoio,
que contribuem para o nascimento de empreendimentos e fornecem capacitação e
acompanhamento especializado;
Centros de Apoio à Economia Popular Solidária (CAEPS) – espaços de referência,
informação e articulação entre grupos de ES, sociedade civil e estado;
Portal de Economia Solidária – prática de utilização da tecnologia da informação e
adaptação de softwares livre a serviço do desenvolvimento sustentável e da ES.
M
ANCE (2003) destaca ainda que desde o final da década de noventa surgiram inúmeras
redes e organizações como a Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária, a Rede de
Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares e a Agência de Desenvolvimento
Solidário da CUT. Nesse período, surge ainda o Fórum Social Mundial e o Fórum
Brasileiro de Economia Solidária, o que começa a dar visibilidade a articulação
internacional das várias práticas de economia solidária que vêem se integrando a partir
desses movimentos.
II.1.2
A CRÍTICA À RACIONALIDADE - DISCUTINDO NOVAS FORMAS DE ANÁLISE
Afirmamos em momento anterior, que o termo ‘economia solidária’ manifesta forte
aspecto crítico em relação à abordagem econômica tradicional, baseada no conceito da
racionalidade do homem econômico, egoísta por natureza. Embora já tenhamos abordado
esse tema, pareceu necessário apresentar aqui uma discussão, mesmo que inicial, das novas
e alternativas formas de análise que surgem. Na medida em que a abordagem da economia
tradicional é baseada no mundo capitalista e dificilmente abre espaço para a percepção de
60
relações de produção não capitalistas, ela não dá conta de responder às novas questões que
surgem sobre este tipo de relação social. No máximo, é tratada como um subproduto da
relação capitalista hegemônica.
A visão de que uma economia solidária seria em si uma contradição, apesar de ainda ser
muito forte na ciência econômica, tem sofrido sérias críticas, e diversos trabalhos têm
sugerido diferentes formas de abordagem sobre a questão comportamental do indivíduo de
modo a superar os limitados modelos da teoria neoclássica. Tanto a racionalidade limitada,
que contrasta a racionalidade substantiva com a racionalidade procedimental, utilizada na
psicologia, ou mesmo a economia behaviorista, são formas distintas e novas de se abordar
essa questão.
Essas abordagens alternativas fortalecem a idéia de que o homem pode atuar motivado por
incentivos não-pecuniários e interesses diferentes da simples maximização de ganhos
pessoais. Não é o foco desse trabalho entrar em maiores detalhes quanto a esses estudos,
mas apenas mostrar que eles se tornam cada vez mais presentes. Como afirma S
EN (1979,
p. 102), “a teoria tradicional tem muito pouca estrutura”. Para oferecer um exemplo, S
EN
(1979), em contraposição à teoria utilitarista,
atesta que existe a possibilidade de que um
indivíduo adote ações baseadas no ‘envolvimento’ (commitment), o que pode levá-lo a um
nível menor de satisfação (utilidade, ou bem-estar) ao tomar uma escolha que influencia o
bem-estar de outros indivíduos, ou seja, o escolhido não será sempre o preferido, o que
rompe com todos os pressupostos da teoria tradicional. Em suas palavras:
“Envolvimento implica, de maneira muito real, em escolhas contra-preferenciais, destruindo o
pressuposto crucial em que uma alternativa escolhida deve ser melhor do que (ou ao menos
tão boa quanto) as outras para o indivíduo que a escolhe, e isso certamente deve demandar
que os modelos sejam formulados de modo essencialmente diferente.” (S
EN, 1979, p. 96,
tradução nossa).
O texto de Amartya SEN (1979) sugere que as questões em torno da ética e da moral
individual variam em cada sociedade, sendo uma questão que envolve sua formação
cultural. Segundo esta análise, pode-se defender a idéia de que o homem pode desenvolver,
desde o interior da sociedade, uma cultura com valores diferentes dos que são hoje
difundidos. Sen apresenta o exemplo extremo da ‘revolução cultural’ chinesa, como um
processo de mudança de valores, onde um dos principais objetivos era o aumento do senso
de envolvimento social, sem perder de vista os resultados econômicos.
61
O caso japonês, apesar de suscetível a diversas críticas, é o melhor exemplo de organização
social da produção em ordem nacional que desafia o capitalismo contemporâneo. Segundo
T
AUILLE (2001, p. 9), seu sucesso se deu em meio a “experiências mais cooperativas de
relacionamento, às quais implicam, freqüentemente, formas particulares de autogestão”
que “apoiaram-se na lealdade e na credibilidade mútuas entre os agentes econômicos(...)”.
T
AUILLE (2001, p. 10) destaca a questão do envolvimento dos trabalhadores, desde os de
chão de fábrica, na eficiência econômica dos empreendimentos e seu efeito em termos de
eficiência e qualidade de produtos:
“(...) a economia japonesa conseguiu beneficiar-se extremamente do engajamento dos
trabalhadores em busca do sucesso dos respectivos empreendimentos. Houve ao menos um
rompimento de qualidade em relação às tendências prévias, presentes no capitalismo
moderno, qual seja de, através das sugestões dos trabalhadores para melhoria de produtos e
processos, os trabalhadores voltarem a participar ativamente dos processos de concepção e de
tomada de decisões ao longo da cadeia produtiva, especialmente no chão de fábrica”.
E acrescenta que uma espécie de “eficiência coletiva” pode gerar “economias de redes”
(solidárias) baseada na confiança e na credibilidade dos agentes, que desenvolvam e se
apóiem na capacidade tecnológica, na transmissão de conhecimentos e no trabalho
coletivo. Em uma palavra: a eficiência dos empreendimentos solidários dependerá
diretamente do nível de envolvimento dos atores que deles participam.
Não se espera que a aplicação de estruturas de cooperação e de autogestão por si só resolva
os problemas que a economia solidária se propõe a combater. Para isso, e essa é uma
questão chave nesse tema, deve-se desenvolver conjuntamente a essas estruturas, o senso
de compromisso e de participação consciente dos indivíduos seja no ato do trabalho
produtivo, de modo a reduzir o ‘risco moral’ (que cresce como um reflexo dos valores
instituídos hoje na sociedade), no ato da venda, evitando a aplicação de preços abusivos, e
mesmo no próprio ato de consumo, que deve ser entendido como um ato político. Nesse
sentido, M
ANCE (2000, p. 6) levanta uma importante discussão sobre consumo como ato
político, defendendo o que classifica como consumo solidário:
“O consumo solidário significa selecionar os bens de consumo ou serviços que atendam
nossas necessidades e desejos visando tanto realizar o nosso livre bem viver pessoal, quanto
promover o bem viver dos trabalhadores que elaboram aquele produto ou serviço, como
também manter o equilíbrio dos ecossistemas. De fato, quando consumimos um produto em
cuja elaboração seres humanos foram explorados e o ecossistema prejudicado, nós próprios
62
somos co-responsáveis pela exploração daquelas pessoas e pelo prejuízo ao equilíbrio
ecológico, pois com nosso ato de compra contribuímos para que os responsáveis por essa
opressão possam converter as mercadorias em capital a ser reinvestido do mesmo modo,
reproduzindo as mesmas práticas injustas socialmente e danosas ecologicamente. O ato de
consumo, portanto, não é apenas econômico, mas é também ético e político. Trata-se de um
exercício de poder pelo qual efetivamente podemos apoiar a exploração de seres humanos, a
destruição progressiva do planeta, a concentração de riquezas e a exclusão social ou nos
contrapor a esse modo lesivo de produção, promovendo, pela prática do consumo solidário, a
ampliação das liberdades públicas e privadas, a desconcentração da riqueza e o
desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável”.
Assim, a viabilidade da economia solidária, da forma mais ampla em que pode ser
pensada, dependerá do envolvimento de toda a sociedade. O envolvimento, começando
pelos trabalhadores, pode assim ser o caminho tanto para seu êxito como para sua ruína.
É o que se percebe no estudo das propostas de trabalho dos agentes pioneiros
48
no
desenvolvimento e no apoio a projetos de autogestão no Brasil. Estes destacam, em sua
totalidade, antes do conhecimento propriamente técnico, a importância da educação dos
trabalhadores para a autogestão e para um projeto coletivo, característica pela qual essa
forma de trabalho se diferencia e sem a qual não tem sentido. O envolvimento coletivo em
uma empresa se reflete em ganhos quanto à inexistência (em um nível ideal) de “risco
moral” (moral hazard) e talvez no desenvolvimento de um conceito oposto que poderia ser
pensado como “confiança moral”. A citação a seguir, retirada de um texto coletivo da
equipe da A
NTEAG (2000, p. 20), expressa bem a idéia:
“Há um forte sentimento de solidariedade e de orgulho quando esse processo começa a dar
frutos nas fábricas, quando os trabalhadores, gradativamente, começam a entender a nova
realidade e, em vez de dizer que está fazendo um trabalho de autogestão, diz: sou trabalhador
de uma empresa autogestionada; ou ainda, quando está no processo de produção e decide ficar
até mais tarde, porque as peças têm que estar prontas no dia seguinte porque seus
companheiros estão mais cansados”.
É possível observar-se essa atitude ou essa idéia em praticamente todos os trabalhos
envolvidos na economia solidária. G
AIGER (2000, p. 185) define esse resultado como um
“círculo virtuoso do trabalho cooperativo” onde há um “estímulo moral, além do próprio
48
O primeiro empreendimento de autogestão organizado no Brasil, A Makerly, do setor calçadista em
Franca, interior de São Paulo, começou a operar em 1992, apoiado pelos técnicos da futura ANTEAG –
Associação Nacional dos Trabalhadores de Empresas de Autogestão e Participação Acionária, que nasceu em
1994 (A
NTEAG, 2000).
63
estímulo material, que redunda de uma série de atitudes positivas”. Essa forma de redução
do risco em um empreendimento autogestionado não diminui sua eficiência técnica, como
ocorre com a utilização de mecanismos para evitar a incerteza
49
. Como exemplifica Singer
(2002), em relação às cooperativas de crédito:
“A democracia econômica não é um luxo para a cooperativa de crédito, mas condição de seu
êxito, que substitui a administração profissional especializada, de alto custo, e seu sistema
dispendioso de coleta de informações. Nos bancos comerciais, é a qualidade profissional da
gerência, somada à riqueza de informações coletadas sobre candidatos a créditos que deve
minimizar o riso de fazer empréstimos a pessoas que não merecem confiança. Ora, esse
sistema só se paga mediante operações de grande valor e por isso não se aplica a gente pobre.
Como os membros da cooperativa se conhecem, são vizinhos e operam no mesmo ramo, o seu
endosso vale mais do que pareceres técnicos baseados em um conjunto padronizado de
informações” (SINGER, 2002, p. 68 e 69).
É importante destacar que essa redução de risco não se enquadra apenas em um
empreendimento individual. Quando se desenvolvem redes solidárias que envolvem a
produção, a comercialização, o consumo e/ou mesmo o crédito, as possibilidades de
estabilidade e segurança frente a situações de crise se multiplicam. A socialização dos
riscos é colocada por S
INGER (2002a, p. 69) ao destacar a formação de sistemas de
cooperativas que se federam, constituindo bancos cooperativos.
“O banco cooperativo transfere o excedente às cooperativas que mais precisam dele, o que
reduz o risco de todas as cooperativas e de seus membros. O princípio da socialização dos
riscos é aplicado num âmbito maior, regional ou nacional”.
Tudo isso pode levar a se discutir vários conceitos tradicionais em um contexto diferente,
como os custos de monitoramento e leniência, os custos de transação (como custos para
descobrir os preços relevantes, custos para negociar e fechar contratos, e fatores não
previstos) – para citar alguns. Em todos esses casos a confiança é um ponto fundamental e,
em uma economia baseada em valores éticos e morais, tais custos certamente seriam
reduzidos.
Tendo em vista essa mudança de conceitos é quase automática a conclusão de que a
‘eficiência’ de um empreendimento solidário não pode ser medida pelos padrões habituais
exigidos na lógica de valorização do capital. Essa mudança de perspectiva de trabalho, que
49
Como é o caso dos seguros contra o “risco moral” destacado por ARROW (1974).
64
se envolve em todos os aspectos da vida, não pode ser reduzida a uma questão meramente
quantitativa, simplesmente em termos de ‘aumento da produtividade marginal’, apesar de
não desconsiderá-la. As mudanças aqui se dão em termos do fortalecimento das
capacidades individuais, para utilizar a proposta de S
EN (1999), que abre espaço para o
avanço de políticas ou mesmo para uma melhor mensuração da atividade social com base
em fatores mais amplos que o nível de renda – pelo nível de capacitações ou pelas várias
formas de ampliação da liberdade individual. No caso da economia solidária, acredita-se
que isso pode ocorrer por meio da ação comprometida com a coletividade.
50
Nesse sentido, o quadro abaixo, proposto por GAIGER (2000, p. 184), resume os principais
pontos indicados até aqui, tanto em relação aos ganhos de eficiência, quanto à distribuição
dos rendimentos e à melhoria da qualidade de vida que se supõem – não apenas por
hipótese, mas pela experiência concreta – que a economia solidária pode oferecer.
A força do trabalho cooperativo
Estímulo moral, além de material;
Co-responsabilidade com metas, diretrizes e formulação de propostas;
Identificação e correção, por todos, dos fatores de ineficiência;
Troca e aprendizado mútuo de saberes e habilidades;
Incentivo à iniciativa e à criatividade;
Flexibilidade de ritmo e de função;
Fator de promoção da justiça e da equidade;
Fonte: GAIGER (2000, p. 189).
Logo, para o aperfeiçoamento da análise, se faz necessário, de forma ampla, o
desenvolvimento de indicadores próprios para a economia solidária, ou melhor, de
indicadores que apontem para as questões que se quer entender e avaliar, para os novos
fatores que são considerados mais relevantes nessa outra economia. Por exemplo, mais do
que renda, parece mais adequado avaliar os diferentes fatores como educação, saúde,
saneamento básico ou mesmo cultura e arte, que se refletem na qualidade de vida da
população, que é a finalidade. Essa questão, que deveria ser óbvia, é fortemente
obscurecida pela análise econômica tradicional que observa apenas o crescimento
50
Vale atentar-se para o fato de que essa interpretação não necessariamente reflete a visão de Sen.
65
econômico e não o desenvolvimento, o que se reflete nos indicadores utilizados hoje. E
assim, os próprios indicadores contribuem para que essa cultura se perpetue. É o que
coloca W
AUTIEZ e AL. (2003, p. 178), ao explicitar que ainda hoje o principal indicador de
desenvolvimento econômico utilizado no mundo é o produto interno bruto (PIB):
“a hegemonia do PIB como medida de bem-estar contribuiu para o empobrecimento da
própria compreensão do econômico e para a deformação dos valores. O processo moderno de
desenvolvimento capitalista degrada e coisifica a condição humana, dilapidando a teia da
vida. Os tradicionais indicadores quantitativos e monetários de avaliação do progresso
encobrem a maioria das vítimas que são produzidas, desumanizando e corroendo a vital
responsabilidade solidária de toda ação humana”.
Recentemente isso começa a mudar com o desenvolvimento de trabalhos como o índice de
desenvolvimento humano (IDH), que insere novos elementos na pauta das análises
econômicas, contrapondo qualidade de vida e crescimento da produção. Ainda assim, ao
destacar que um indicador reflete os valores de seus idealizadores, não sendo um debate
puramente técnico, os autores defendem que um novo indicador numa sociedade mais
democrática, e que pode se seguir a exemplo da economia solidária e das propostas da
Agenda 21 de desenvolvimento de indicadores locais de sustentabilidade, requer um debate
de toda a sociedade, acerca da forma de avaliação dos valores que refletem todo o seu
conjunto.
Como afirmam, “não resta dúvida de que é anacrônica a postura arrogante e paternalista
por parte das instituições estatais de trazer soluções prontas para uma sociedade passiva. A
sociedade contemporânea é cada vez mais inteligente, capaz de se autoconduzir”. Ou seja,
“acompanhar o desempenho da economia solidária significa assumir como padrão de
medida os valores dessa outra economia (...) permitindo dar conta de sua dinâmica,
evolução e estrutura, possibilitando comparações internas, com outros sistemas
econômicos e com supostas situações ideais”, refletindo a preocupação social e
ambientalmente responsável “que as práticas de economia solidária pretendem reproduzir”
(W
AUTIEZ e AL., 2003, p. 183). Este trabalho já começou, contudo, necessitará de uma
grande participação de todos os personagens aqui envolvidos para ser bem sucedido.
66
II.2
UM OLHAR SOBRE A ECONOMIA SOLIDÁRIA EM BELO HORIZONTE
No Brasil, foi criada em 2003 a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES),
vinculada ao Ministério do Trabalho e que tem como secretário o economista Paul Singer.
Contudo, para se analisar e executar políticas eficientes para o desenvolvimento desse tipo
de atividade no mundo, no Brasil ou em Belo Horizonte é preciso, além da reflexão teórica,
se ter acesso a um amplo conjunto de informações a respeito dos empreendimentos, de sua
forma de articulação interna e externa, do trabalho das entidades de apoio e das políticas de
governo voltadas para a ES, etc.
De forma conjunta com os fóruns estaduais
51
, a SENAES iniciou em 2004 o projeto de
mapeamento da ES no Brasil para a implementação, em 2004-5, do Sistema Nacional de
Informações em Economia Solidária - SIES. Essa base de dados dinâmica e que deverá ser
alimentada pelos fóruns locais de economia solidária, possibilitará uma compreensão
maior da ES no Brasil, assim como abrirá caminhos para a melhor formulação de novas
políticas públicas de apoio e fomento a esse tipo de atividade, que reforcem seus valores e
que sejam acompanhadas por seus atores.
Para por em prática o programa para o mapeamento, foi preciso que a equipe da secretaria
elaborasse referenciais técnicos e conceituais para a melhor definição dos
empreendimentos e das atividades da economia solidária. Desse modo, foram definidos
quatro pontos conceituais principais, sobre os quais deve haver constante reflexão e debate
por parte dos grupos já formados e em processo de organização. Estes pontos são:
autogestão, cooperação, dimensão econômica e solidariedade. Os grupos que poderão ser
classificados como empreendimentos de ES e inseridos no Sistema de Informações devem
seguir essa primeira definição conceitual, que permite uma definição mais técnica e prática
e menos política, apesar da impossibilidade de dissociação completa desses dois critérios.
A definição técnica prevê a inclusão de organizações (a) coletivas (associações,
51
Os fóruns de ES no Brasil se formam como espaço civil para a discussão e integração de informações e
ações de apoio à ES. Atualmente há um fórum de ES em cada estado do Brasil sendo que, a nível nacional,
foi constituído em 2003 o Fórum Brasileiro. Além dos próprios empreendimentos, diversas ONG’s e
representantes do estado participam dos fóruns. No caso de Minas Gerais, há o Fórum Mineiro de EPS (vale
notar que se adota neste estado, em geral, o termo economia popular solidária), constituído há cerca de oito
anos, do qual participam entidades como a Cáritas Mineira, a Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS),
o Instituto Marista de Solidariedade (IMS), a Ação Social Arquidiocesana (ASA), entre outras, além da
Delegacia Regional do Trabalho de MG e da prefeitura municipal. Porém, é importante destacar que os atores
que devem guiar as ações são os próprios representantes dos empreendimentos.
67
cooperativas, empresas autogestionárias, grupos de produção, clubes de trocas, etc),
suprafamiliares, cujos sócios/as são trabalhadores/as urbanos/as e rurais; (b) permanentes
(não são práticas eventuais); (c) que podem dispor ou não de registro legal, prevalecendo a
existência real ou a vida regular da organização; (d) que realizam atividades econômicas de
produção de bens, de prestação de serviços, de fundos de crédito e; (e) organizações
econômicas singulares (empreendimentos tomados individualmente) ou complexas
(centrais de associações ou de cooperativas, complexos cooperativos, redes de
empreendimentos)
52
. No presente estudo procurou-se seguir o referencial teórico-
conceitual definido no Termo de Referência lançado pela SENAES e formulado pelo
Grupo de Trabalho composto por participantes de diversas entidades do Fórum Brasileiro
de ES.
Na realidade, de início esperava-se poder utilizar as informações obtidas no mapeamento
para se analisar a ES em Belo Horizonte, porém esta proposta se mostrou impraticável já
que logo se percebeu que dificilmente o mapeamento seria concluído em 2004. Assim
como em diversos outros estados, ocorreram dificuldades em Minas Gerais que levaram ao
adiamento dos prazos do projeto inicial. Entre estas dificuldades pode-se citar a escassez
de recursos, a burocracia para sua transferência, assim como a possível falta de know-how
em alguns locais para a execução de uma pesquisa dessa abrangência. No caso de MG,
devido à grande dimensão territorial e populacional do estado, este é subdividido em
diversos fóruns regionais. Nesse sentido, os fóruns regionais conjuntamente com o fórum
estadual articulam a execução do mapeamento (o Vale do Mucuri e do Vale do Rio Doce,
regiões que estão entre as mais pobres do estado, são as que têm alcançado maiores
avanços).
Na região metropolitana de Belo Horizonte, que temos como objeto de estudo, não havia,
até a conclusão desse trabalho, nenhuma base de informações sistematizadas a respeito das
atividades de economia solidária desenvolvidas
53
nem tampouco um trabalho para
centralização de informações. O fórum da Região Metropolitana de Belo Horizonte ainda
se encontrava em processo inicial de formação, porém, já tendo promovido algumas
reuniões e participado da organização da 2ª Feira Mineira de Economia Solidária.
52
Para um maior detalhamento dos referenciais técnicos e conceituais ver SENAES (2004).
53
Neste sentido, o estudo de FERREIRA e BERTUCCI (2004) serviu como o primeiro esforço de sistematização
de informações sobre a ES em Belo Horizonte, tendo sido de grande importância para esta dissertação,
principalmente no que se refere à percepção destas dificuldades.
68
Desse modo, era necessário buscar uma forma de levantar e organizar informações para o
estudo, sem que se fizesse um trabalho repetido (já que em breve o mapeamento deve ser
concluído) e, ao mesmo tempo, com uma preocupação em contribuir para uma melhor
articulação do fórum regional, possivelmente na organização do processo do próprio
mapeamento. A solução para o problema foi possibilitada pela ocorrência, no início de
dezembro de 2004, da 2ª Feira Mineira de Economia Solidária, citada acima. O evento, que
reuniu aproximadamente 250 empreendimentos, dos quais cerca da metade pertenciam à
Região Metropolitana de Belo Horizonte, serviu (além, é claro, dos principais objetivos
que são próprios à feira) como um espaço de coleta de informações gerais e abrangentes
sobre estes empreendimentos.
É importante notar que a inscrição para a feira era livre, aberta para grupos que se
reconheciam como participantes da EPS, requerendo apenas ser um grupo coletivo. De
fato, é possível que exista uma grande quantidade de grupos em Belo Horizonte que podem
ser consideradas como ES. Muitos não participaram da feira por ter pouco acesso à
informação, alguns por questões práticas, outros por questões políticas
54
. Para incluir essas
experiências, a SENAES, no plano do mapeamento, por meio de algumas bases de dados
do Ministério do Trabalho como RAIS e CAGED, fez uma listagem de organizações (no
caso de MG, de cerca de 2000 entre associações, cooperativas, ONGs, etc.) que
potencialmente poderiam se agregar à ES. A equipe gestora de cada estado está sendo
responsável por contatar essas organizações e verificar as possibilidades de agregá-las ao
movimento. Por esses motivos, não podemos tratar os resultados aqui encontrados como
abrangendo todo o universo da ES em Belo Horizonte, mas apenas entendê-los como uma
amostragem desse universo
55
.
54
Este parece ser o caso da ASMARE (Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reciclável),
projeto formado pelos trabalhadores de rua do centro de BH no início da década de 90 e que tem reputação
internacional como uma experiência bem sucedida de inclusão social e articulação com o governo e entidades
da sociedade civil, mas que apesar de claramente desenvolver uma atividade na mesma direção da ES, não se
reconhece efetivamente como tal. Em vista ao seu relativo sucesso e grande crescimento, diversos trabalhos
mais detalhados foram realizados sobre essa experiência e sobre o movimento dos trabalhadores de rua em
geral, entre eles, ver C
ARDOSO (2003); SCHIMIDT (2002) e SEABRA (2003). Ver também o site
www.asmare.org.br.
55
No caso de MG, o projeto de mapeamento organizado pelo FMEPS prevê a divisão do estado em 8 regiões
de ação, com uma meta inicial de cerca de 150 empreendimentos a serem mapeados por região, em um total
de 1200 empreendimentos de economia solidária esperados no estado.
69
II.2.1
COLETA DE DADOS
Para a coleta dos dados, foi desenvolvido um questionário simples e objetivo, que se
encontra no ANEXO I. A formulação das questões se deu, em grande medida, com base no
questionário (mais extenso e completo) formulado para o projeto do mapeamento
encabeçado pela SENAES. Apesar do questionário aqui desenvolvido ser relativamente
simples, as questões colocadas podem oferecer uma percepção interessante sobre três
dimensões:
Primeiro, buscou-se obter as informações mais gerais (além da identificação do
empreendimento) sobre a forma de organização, a quantidade de participantes e o
tipo de atividades desenvolvidas;
Em seguida foram formuladas questões aos grupos sobre a dimensão econômica,
como as formas de captação de recursos, os investimentos realizados, o nível de
renda possibilitado e as formas de comercialização e inserção no mercado;
Por fim, o último grupo de questões aborda o aspecto da (auto)gestão e da
articulação sócio-política do empreendimento, verificando por exemplo, como se
dá o processo de tomada de decisões e de que forma o empreendimento atua em
benefício da comunidade em que se localiza.
Paralelamente à construção do questionário, foi feito contato com a coordenação do Fórum
Mineiro de EPS para se analisar a viabilidade de sua aplicação na feira, assim como para a
troca de idéias sobre que tipo de informação poderia ser relevante de acordo com a visão
de quem trabalha diretamente com a ES, e de que forma o trabalho poderia trazer uma
contribuição efetiva para o FMEPS. A pesquisa somou-se, ao final, a um trabalho inicial
relativo ao programa de avaliação de feiras (PAF). Este é um projeto mais amplo que a
SENAES pretende executar de modo coordenado nas feiras estaduais em todo o Brasil em
2005. Foi formada, assim, uma equipe com membros do FMEPS, um professor e alunos
voluntários de uma faculdade localizada em BH.
Desse modo, além do questionário apresentado em anexo (que foi definido como um pré-
mapeamento) foi feita a aplicação de dois outros questionários referentes à avaliação da
feira. Deve-se lembrar que os questionários foram aplicados para todos os
empreendimentos na feira, de diversas regiões do estado, não apenas os da RMBH, apesar
70
de trabalharmos aqui apenas com os grupos desta região
56
.
Uma feira de ES é um evento não apenas de comercialização, mas principalmente de
divulgação e diálogo com toda a sociedade e também de formação, conscientização e
intercâmbio de experiências entre os trabalhadores. Nesse sentido, isso facilitava o
processo de aplicação dos questionários. Foram montadas cerca de cem barracas, onde dois
ou três grupos dividiam o espaço em cada uma. A feira foi realizada em três dias, de nove
horas da manhã às oito horas da noite, havendo, nos dois dias anteriores, um encontro de
sensibilização, e diversas oficinas para discussão sobre a economia solidária, com uma
grande assembléia geral, para decisões de constituição do FMEPS ao final. Durante a feira,
ocorreram apresentações culturais e haveria alguns momentos para a atividade de “clubes
de troca”.
Antes do início da feira foi estabelecido um certo número de grupos a serem entrevistados
por cada membro da equipe a cada dia. Essa divisão foi simples, pois as barracas estavam
numeradas e havia uma separação inicial entre tipos de atividades. A proposta era fazer as
entrevistas nos horários de menor movimento (de manhã ou no horário de almoço) para
não prejudicar o trabalho dos grupos, o atendimento ao público e não coincidir com o
horário das apresentações culturais. Como no primeiro dia o movimento foi fraco, foi
possível adiantar as entrevistas, que no final do segundo dia estavam quase todas
realizadas. No último dia, o trabalho foi voltado quase inteiramente para a outra parte da
pesquisa (de avaliação da feira, comentada anteriormente) que, é claro, só poderia ser
realizada ao final desta.
Com as 250 cópias dos questionários em mãos, ficou claro que a distância entre esses dois
momentos do trabalho (de formulação técnica do questionário até a sua aplicação) era
imensa. Ou seja, sem os erros, acertos e as dificuldades, que necessariamente se
apresentariam nesse caminho de aprendizagem, não seria possível compreender essa
dinâmica. Que problemas surgiram? Primeiramente, houve pouco tempo para fazer um
pré-teste no questionário, já que este até o último dia sofreu alterações. Outro problema
também devido ao tempo reduzido, foi o fato de não ter sido possível uma discussão mais
detalhada com os estudantes estagiários que foram responsáveis pela maior parte da
56
A análise completa do PAF e do pré-mapeamento do restante do estado ainda se encontra em execução e
deve ser lançada em 2005 como um projeto do FMEPS.
71
aplicação das entrevistas
57
. Percebeu-se, durante o processo, que era necessário fazer uma
apresentação, não apenas dos questionários, mas de toda discussão conceitual aos
estudantes para que o questionário, apesar da relativa simplicidade das questões, pudesse
ser preenchido da melhor maneira possível, para que eles pudessem dar um retorno a
respeito dos problemas surgidos e enfim, para que pudessem também absorver melhor a
experiência.
Outros problemas, menos relevantes, foram percebidos posteriormente como, por exemplo,
equívocos em relação à diferença entre as atividades de reciclagem e de reaproveitamento
58
ou a questão sobre o acesso ao crédito onde alguns responderam que não tiveram acesso a
crédito, quando na verdade a resposta seria que não procuraram crédito. Por fim, percebeu-
se que as questões sobre a forma de participação não poderiam nos fornecer informação
para uma análise adequada, já que esse aspecto se diferencia muito, por exemplo, entre
uma cooperativa formal com vinte trabalhadores de um lado e um grupo familiar com três
trabalhadores de outro. Essa questão pode ser tratada de forma mais adequada nos estudos
de caso.
Essas são as principais observações a serem feitas até aqui. Apesar destas deficiências, a
aplicação dos questionários foi relativamente bem sucedida, oferecendo acesso a um
conjunto de informações que não estavam disponíveis anteriormente. A seguir, daremos
andamento a essa discussão qualitativa.
57
A aplicação dos questionários foi realizada na maior parte por cerca de 10 estudantes voluntários, cabendo
ao autor deste trabalho, a coordenação, bem como a realização de algumas entrevistas. Além desses, um
professor, um representante do FMEPS e alguns trabalhadores que participavam de um curso de formação
durante a feira (e que não estavam expondo produtos) também contribuíram para o trabalho.
58
Enquanto o processo de reciclagem pode ser entendido como uma atividade onde há uma transformação
químico-física do material utilizado (por exemplo, a transformação de garrafas de PET em tecido para roupas
ou mesmo a reciclagem de papel), no processo de reaproveitamento, há apenas uma nova utilização de um
objeto, sem alteração de suas propriedades químico-físicas (como a utilização de PET para a produção de
arranjos decorativos, ou a utilização de calças jeans para a confecção de bolsas).
72
II.2.2
ANÁLISE DESCRITIVA DAS VARIÁVEIS
Foram recolhidos ao final, 85 questionários preenchidos relativos aos grupos da RMBH.
No que se refere à passagem posterior desses dados para o computador, outras dificuldades
que devem ser citadas surgiram:
- Houve seis grupos com nomes repetidos, porém, as respostas não foram idênticas. Em
alguns as respostas eram muitos semelhantes, em outros muito diferentes. Não se sabe se
esta foi uma falha na coleta ou mesmo se existem grupos com o mesmo nome. Em dois
casos percebeu-se que o grupo era o mesmo, mas pessoas diferentes haviam respondido ao
questionário. Como estes grupos seguiam o padrão de respostas característico da maior
parte dos questionários, exceto um deles, optou-se por mantê-los, já que não há risco de
distorção do resultado final. Apenas um foi retirado, pois apresentava um valor que poderia
distorcer a análise (ver nota 62), resultando, portanto, uma amostra de 84 grupos.
- No espaço de nome do empreendimento, em dez dos grupos, fora anotado o nome da
pessoa entrevistada e não do grupo. Foi percebido que alguns grupos pareciam ter se
organizado pouco tempo antes da feira (com pouco ou nenhum conhecimento sobre EPS
59
)
e que a pessoa entrevistada não lembrava ou não sabia o nome do grupo preenchido na
inscrição.
- Na questão sobre a quantidade de participantes, em cinco grupos a resposta era de um
participante. Não é necessário dizer que este fato descaracterizaria, nesses cinco
questionários, o primeiro aspecto de um empreendimento de ES, que é a coletividade.
Entretanto, estes foram mantidos pela possibilidade de serem grupos familiares (onde o
chefe da família assume a atividade) e pela possibilidade de se inserirem em outro tipo de
atividade associativa. Como no primeiro ponto, estes seguiram o mesmo padrão e este
número não é significante para alterar os resultados finais (já que também se tem ciência
deles).
Fatos como esses trouxeram alguma preocupação, porém, confirmou-se a suspeita da
ampla heterogeneidade do objeto de estudo. Notou-se a existência de grupos mais e menos
59
Durante algumas entrevistas isso ficou claro, por exemplo, quando uma senhora entrevistada não soube
quantas pessoas havia em seu grupo, nem conhecia os outros membros (e não era uma grande cooperativa
trabalhadores, mas um grupo informal de 3 ou 4 trabalhadores). Em um outro questionário, a resposta à
questão 17, sobre a função do entrevistado no empreendimento foi de “dona”. E sobre a forma de
organização, na primeira questão, havia uma resposta em “outros”, especificada como “particular”.
73
organizados e de trabalhadores com maior ou menor clareza e consciência do movimento.
Em todo caso, a percepção desses problemas foi importante para compreensão da
complexidade do espaço da economia solidária e para a reflexão, no FMEPS, sobre sua
forma de ação e organização.
Desse modo, tentaremos verificar de que forma ou sobre que aspectos, os
empreendimentos respondem ao tipo ideal esperado e se o mesmo tipo ideal constitui uma
categoria de análise, ou de construção prático-teórica adequada. Nessa discussão, os
diversos aspectos observados terão sempre como pano de fundo esses três pontos: a
socialização dos meios de produção, a autogestão e o engajamento político (como
discutimos teoricamente no tópico I.3 deste trabalho).
Apresentaremos agora os principais resultados observados sobre estes grupos. Não iremos
listar detalhadamente todos os números obtidos, nem as perguntas do questionário serão
exploradas na ordenação exata, embora haja uma lógica nessa ordenação. Se isso fosse
feito, provavelmente o leitor se perderia entre dezenas de gráficos e percentuais, gastar-se-
ia muito tempo com informações menos relevantes e a centralidade da questão poderia se
perder. Pareceu mais adequado apresentar os resultados da forma mais dinâmica possível,
ora subdividindo a análise, ora voltando à visão geral, mas mantendo-se a coerência (como
apresentado no início do tópico anterior) do que se procurou captar, ou seja, aspectos
gerais, econômicos e políticos.
II.2.2.1
ASPECTOS GERAIS
Como já colocado anteriormente, a amostra obtida correspondente a RMBH foi de 84
grupos. Segundo os dados na T
AB. 1, percebe-se que a maior parte dos grupos, 84%, é
proveniente do município de BH
60
. Vindos dos demais municípios somados, tem-se apenas
13 grupos, ou seja, 16% do total. Entre todos, a grande maioria, 81, atuam no meio urbano
enquanto 5, no meio rural
61
.
60
Cabe aqui colocar que a RMBH é composta pela grande BH (dividida entre nove regiões administrativas:
Regional Venda Nova, Norte, Pampulha, Nordeste, Noroeste, Leste, Centro Sul, Oeste e Barreiro) e por mais
27 municípios (dos quais os vizinhos diretos são: Nova Lima, Sabará, Santa Luzia, Vespasiano, Ribeirão das
Neves, Contagem, Ibirité e Brumadinho).
61
A soma é superior a 84, pois 2 grupos marcaram área de atuação como urbano e rural.
74
Tabela 1 – Grupos segundo município de origem
Município N
o
de Grupos %
Belo Horizonte 71 84
Sabará 4 5
Contagem 4 5
Ribeirão das Neves 3 4
Nova Lima 1 1
Betim 1 1
Total
84 100
No que se refere à forma de organização e a quantidade de participantes, a
FIG. 1 mostra
que parcela significativa dos grupos que se identificam como EPS são grupos informais
(71%), ou seja, grupos sem registro legal, em geral, com menos de 5 participantes. A
parcela restante divide-se entre 10 cooperativas e 8 associações, sendo que nos 6 ‘outros’
se incluem 3 grupos que especificaram a forma de organização como ‘Instituições Sociais’,
uma ONG, uma como ‘Parceria com a PBH’ e um como ‘Particular’.
Figura 1 - Grupos segundo forma de organização
71%
12%
10%
7%
Grupo Informal
Cooperativa
Associação
Outros
Pela observação da média de indivíduos por grupo de acordo com a forma de organização,
é revelado que a média de participantes entre os grupos informais é inferior a 5 indivíduos
por grupo. Entre as cooperativas e associações essa média cresce significativamente para
20,5 e 32,9 indivíduos por grupo respectivamente. No total respondido, somam-se 849
trabalhadores em todos os grupos, fornecendo uma média geral superior a 10 indivíduos
por grupo. Em relação à divisão de gênero do grupo, a
FIG. 2 mostra a expressiva
dominância do sexo feminino. O resultado que aponta o gênero do entrevistado confirma
75
de forma mais forte essa tendência, mostrando que 77% dos questionários foram
respondidos por mulheres e apenas 23% por homens.
Figura 2 - Divisão de Gênero no Grupo
32%
68%
Homens
Mulheres
Quando se pergunta sobre a variação no número de participantes (
FIG. 3), verifica-se que
para a maior parte dos grupos, este número manteve-se. A quantidade de grupos em que
este número cresceu supera o número de grupos que teve o número de participantes
reduzidos. Por outro lado, é preciso notar que, enquanto o total de novos membros
verificado foi de 82, o total de indivíduos que se desligaram dos grupos foi de 106
62
.
Figura 3 - Variação do número de participantes
nos últimos 12 meses
23%
12%
65%
Aumentou
Diminuiu
Se manteve
Entre as dez cooperativas, quatro tiveram seu número de participantes reduzido, quatro
mantiveram seu quadro e duas expandiram. Percebe-se que, em valor absoluto, a redução
62
Este valor pode estar distorcido, já que grande peso para esta redução se encontra em um único grupo que
afirmou sofrer uma redução de 35 membros. Este era um dos questionários repetidos. A distorção seria ainda
maior se um deles não tivesse sido excluído.
76
supera muito o aumento (quarenta e seis contra dezesseis). Entre as associações,
praticamente não houve redução de participantes, sendo que em quatro delas que tiveram
seu quadro aumentado o crescimento total foi de 46 novos membros. Entre os grupos
informais, doze apresentaram expansão, cinco redução e quarenta e três se mantiveram,
sendo que houve maior redução do que aumento em termos absolutos.
Como a maior parte dos grupos é muito recente, é esperado que o número de participantes
não tenha se alterado. Nesse sentido faz-se necessário observar o
GRAF. 1, sobre a idade
dos grupos. Observou-se que a grande maioria dos grupos possuía menos de um ano de
existência
63
. Enquanto há um maior equilíbrio na dispersão entre cooperativas e
associações, os grupos informais mostram grande crescimento nos últimos 5 anos. Isso não
representa necessariamente um crescimento de grupos desse tipo nos últimos anos, pois
pode ser um resultado apenas da alta volatilidade dos grupos informais, que têm grande
facilidade para se formar e se desfazer (alta taxa de mortalidade).
0
5
10
15
20
25
30
o
responderam
1985 1994 2000 2004
Gfico 1 - Número de grupos segundo ano de formação
associações cooperativas Informais total
63
Não se sabe ao certo quantos foram criados com o objetivo de participar da feira, porém, pode-se observar,
para uma melhor percepção, a dispersão dos grupos até 2003, excluindo-se aqueles criados em 2004.
77
II.2.2.2
ASPECTOS ECONÔMICOS
Claramente percebe-se que os grupos observados são caracterizados por atividades pouco
orgânicas, não se inserindo em uma rede variada de ramos produtivos. Suas atividades, em
geral, não necessitam um nível de qualificação elevado da mão-de-obra nem o uso de
equipamentos complexos, sendo de baixo nível tecnológico e com produtos de reduzido
valor agregado (como discutimos pela abordagem de Milton Santos no final do tópico I.2.2
e em seguida no tópico I.3). Quanto às atividades econômicas desenvolvidas, quase a
totalidade é de produção artesanal de diversos produtos elaborados manualmente como
vestuários (44%), bijuterias (31%), cama, mesa e banho (18%), bolsas (13%), etc. Como
nesse item poderia-se marcar diversas opções, o resultado é maior do que 100%. Muitos
grupos marcaram reciclagem paralelamente a outras atividades (17%), quando
possivelmente o correto seria reaproveitamento de materiais. Uma pequena parte trabalha
com produtos alimentícios (12%) e há apenas um grupo que assinalou agricultura e uma
cooperativa que respondeu setor industrial. Não foi encontrado, na feira, um único grupo
que desenvolvesse atividades de crédito
64
.
A forma de comercialização da produção, como seria possível imaginar, ocorre
principalmente por meio de feiras regulares ou eventuais (64%), em casa (38%), pela
venda de porta em porta ou por encomendas (35%). Apenas 5% dos grupos afirmaram
comercializar em loja mantida pelo grupo, outros 5% por intermediários ou atravessadores
e 6% através de lojas comerciais. É interessante que 7% afirmou haver comercialização
com consumidores solidários
65
. Apenas um grupo respondeu fornecer para empresas do
setor industrial (uma cooperativa) e dois grupos informais para órgãos públicos. Esse
mesmo padrão se verifica para os grupos informais, associações ou cooperativas.
Quanto ao investimento e crédito, a informação resumida nas F
IGS. 4 e 5 abaixo revela uma
situação perversa quando se quer analisar a sustentabilidade e a capacidade de
competitividade dos grupos dentro da economia capitalista. Não apenas a maioria dos
grupos não fez qualquer tipo de investimentos (61%), como também se constata que entre
os grupos que afirmaram ter realizado investimentos (23 grupos informais, 5 cooperativas,
64
Embora exista um Banco Popular de Belo Horizonte, que apóia diversos grupos da região, não havia uma
representação deste na feira.
65
Até onde se tem conhecimento, não há nenhuma rede de consumo e comércio solidário em BH. As
afirmações nesse sentido provavelmente estão relacionadas ao consumo devido às relações familiares ou de
amizade desenvolvidas em pequenos grupos seja da comunidade ou da família (que também fazem algum
tipo de produção artesanal semelhante).
78
3 associações e 2 instituições), estes geralmente são quase insignificantes para o aumento
da produtividade e da capacidade produtiva do grupo
66
. Uma parte desses investimentos
não vem de recurso próprio (já que o grupo não tem condições nem de investir, nem de
fazer um financiamento), são doações de instituições de apoio. Outra parte são peças
simples como ferramentas de trabalho. Cinco grupos afirmaram ter investido em
maquinário, dois abriram novos espaços para comercialização, um afirmou ter investido
em capacitação dos trabalhadores e um em informatização.
A falta de controle sobre os meios de produção, refletida na carência ao acesso e uso
efetivo de um conjunto de conhecimentos técnicos, financeiros e gerenciais mais
sofisticados é verificada diretamente na dificuldade do acesso a um sistema de crédito.
Mais de 40% dos grupos nem ao menos procurou crédito. Somando-se aos que procuraram
e não tiveram acesso, têm-se cerca de 85% dos grupos sem utilização desse recurso. Entre
os 15% que tiveram acesso a crédito (ou seja, 13 grupos, sendo 10 grupos informais, 2
cooperativas e 1 instituição) verificou-se que em 7 o crédito foi utilizado para capital de
giro, em 5 para investimentos
67
e em 1 para ambos. Dentre as fontes de financiamento, se
tem 1 resposta como crédito concedido por familiares, 7 de Banco Popular, e 5 em outros
(onde se incluem ONG’s e instituições de apoio).
Figuira 4 - Grupos segundo realização de
Investimentos
39%
61%
Realizou
Não realizou
Figura 5 - Grupos segundo acesso a
Crédito
15%
40%
45%
Teve acesso
Não teve acesso
Não procurou
A FIG. 6 e a TAB. 2 mostram que em mais da metade dos grupos a renda média é de até um
salário mínimo por trabalhador e apenas em 6 grupos (7%) essa renda supera 3 salários
66
Dez dos questionários onde a resposta para a questão sobre investimentos é afirmativa estavam com a
resposta ‘investimento pessoal’ no que se refere à especificação do tipo de investimento. Possivelmente um
erro do entrevistador quanto ao conceito de investimento, o que dificulta a análise. Em relação ao crédito e
outras questões, a análise no nível individual (e não em termos de grupo) seria mais precisa (pois, p. ex., uma
cooperativa que teve acesso à crédito atinge mais trabalhadores que um grupo informal).
67
A resposta das questões 6 e 7 em dois questionários apresentou uma contradição. Dois dos grupos que
afirmaram não ter realizado investimentos, afirmaram ao mesmo tempo ter recebido crédito, e que este teria
sido captado para investimento.
79
mínimos. É importante lembrar que esta é uma pergunta delicada. Como poderia se
esperar, um número elevado de grupos (18) não respondeu a questão. É provável assim,
que o resultado possa estar subestimado. Outra informação importante (referente à questão
9 do questionário) é de que para 64% dos participantes a atividade exposta na feira é a
única ou a principal fonte de renda, enquanto 29% possui outra fonte de renda (7% não
soube responder em nome do grupo). Entre as atividades ou fontes de renda obtidas fora do
que seria a organização no grupo de EPS foi citado em cerca de 10 questionários
‘aposentadoria’ ou ‘renda do marido’, em cerca de 6 casos atividades de autônomos, em
outros 6 ‘assalariados’ e em um caso ‘aluguel’.
Figura 6 - Renda em salários mínimos (SM) possibilitada pelo empreendimento
33%
25%
14%
7%
21%
< 1 SM 1 SM 2 SM > 3 SM NS / NR
Tabela 2 – Nível de renda média segundo forma de organização
Nível de renda média
Forma de organização
< 1 SM 1 SM 2 SM > 3 SM NS / NR Total
Associação 5 1 0 0 2
8
Cooperativa 1 3 2 0 4
10
Grupo Informal 18 16 10 4 12
60
II.2.2.3
ASPECTOS POLÍTICOS
Entre os aspectos a se analisar este talvez seja o mais complexo e, para a ES,
possivelmente o mais importante. É certo que um questionário genérico e simples como o
que foi utilizado nessa parte da pesquisa não poderá nos fornecer informações muito
significativas para isso, o que poderá ser mais bem desenvolvido na parte seguinte, onde
será apresentado o resultado das entrevistas realizadas durante as visitas aos
empreendimentos. Ainda assim, de forma objetiva, podemos apresentar as questões,
lembrando sempre dessa restrição.
80
Primeiramente, verificamos que as respostas sobre questões como formas de participação
(questão 10 do questionário) devem ser observadas de forma subjetiva, de acordo com o
tipo de atividade e com a franqueza que entrevistador consegue perceber no entrevistado.
A forma de se entender este tipo de proposição para uma cooperativa é perceptivelmente
diferente de um pequeno grupo informal. E no caso de uma associação, o estudo fica mais
complexo, já que esta pode tanto representar toda uma comunidade quanto pode ser apenas
um canal de comercialização de grupos isolados. Ao final, essa questão não teve grande
utilidade para se entender as especificidades de cada grupo, sendo que na maioria dos
questionários ao menos 4 dos 7 itens estavam marcados (ver questionário). O que se pode
depreender nos grupos informais foi uma alta freqüência dos itens ‘decisão sobre o destino
das sobras’, ‘plano de trabalho / divisão de tarefas’, ‘participação nas decisões cotidianas’
e ‘decisões sobre investimentos e administração do negócio’. Entre as cooperativas, se
reduz o primeiro item e entra ‘eleição de diretoria’ e ‘assembléias’ (este em outros). Nas
associações há uma combinação dos dois. Vale citar que 5 grupos (6%) afirmaram não
haver participação. Entre esses, 3 são grupos informais e 2 estão entre outros (uma
instituição social e um definido como particular).
Figura 7 - Grupos segundo formas de articulação
60
1
2
5
22
Fórum de EPS
Central de
comercialização
Federação de
Cooperativas
Outros
Não participa
Para melhor percebermos a questão político-social podemos observar os tipos de
articulação das quais os grupos participam (questão 11). A FIG. 7 apresenta o resultado
obtido
68
. Como já se poderia esperar, a maior parte dos grupos afirmou participar do
Fórum Mineiro de Economia Solidária. Ainda assim, a quantidade de grupos que não
68
Na FIG. 7, assim como na FIG. 8, note-se que os números apresentados na figura referem-se ao número de
grupos e não ao percentual. Este é superior a 84, já que alguns (poucos) grupos participam de mais de uma
forma de articulação (FIG. 7) ou recebem mais de um tipo de apoio (FIG. 8).
81
participa de nenhuma articulação é elevada. Duas cooperativas afirmaram participar de
federação de cooperativas, um grupo afirmou participar de uma central de comercialização
e em outros se inseriram articulações como associações de bairro e programas de governo.
Para reforçar, mais da metade dos grupos afirmou não receber qualquer tipo de apoio. Na
FIG. 8, se vê que entre os grupos que recebem apoio, as entidades de apoio estão à frente do
governo e a Igreja foi selecionada por apenas um grupo. Eis um resultado que parece
contraditório, visto o grande trabalho que se sabe ser realizado pelas instituições religiosas.
Possivelmente, isso se deu porque geralmente a Igreja não fornece apoio diretamente aos
grupos, mas por meio de instituições que fazem parte da Igreja, como por exemplo, a
Cáritas. Em “outros”, uma cooperativa afirmou receber apoio de contribuintes, 2 grupos
informais de ONG’s, 3 do Banco Popular e 1 do Banco do Brasil. Observando-se o tipo de
apoio técnico, gerencial ou financeiro, percebe-se uma distribuição equilibrada na
FIG. 9.
Figura 8 - Grupos segundo apoio recebido
47
22
9
1
8
Não recebe
Entidade de Apoio
Governo
Igreja
Outros
Figura 9 - Tipo de apoio recebido pelos grupos
30%
28%
14%
28%
Técnico ou gerencial
Financeiro
Ambos
Outros (transporte,
informações)
82
Por fim, procurou-se saber se, objetivamente, os grupos desenvolvem ações voltadas para o
desenvolvimento da comunidade, mais do que apenas para seus trabalhadores. Nesse
sentido, apenas 32% dos grupos afirmaram desenvolver alguma ação social ou
comunitária. No
GRAF. 2 esse resultado é verificado de acordo com a forma de organização
dos grupos, o que revela que o elevado número de grupos informais destorce o resultado
total. Entre estes, apenas 20% afirmou participar de algum tipo de ação social. Se
observarmos os demais grupos, com exceção dos informais, teríamos 62,5% de grupos
desenvolvendo atividades sociais. Entre as cooperativas, metade forneceu uma resposta
positiva. Entre as associações, mais de 60% afirmaram desenvolver atividades sociais. Nos
grupos classificados como ‘outros’ apenas um entre os seis, afirmou não desenvolver
atividades sociais (justamente o que se afirmou como ‘particular’). Para o restante, a
própria instituição era a ação social desenvolvida, já que não se constituíam em
empreendimentos strito sensu.
Diversas foram as formas citadas de participação na comunidade. Além dos grupos que por
si próprios já representam uma ação social, como os centros de reforma da juventude ou de
auxílio a deficientes e idosos, alguns grupos afirmaram oferecer cursos e oficinas
voluntariamente para a comunidade, em associações ou escolas. Alguns declararam ainda
fornecer auxílio para os filhos dos trabalhadores freqüentarem a escola ou ainda outros
afirmaram contribuir para o resgate cultural da comunidade, entre outras atividades
69
.
0
10
20
30
40
50
60
Número de grupos
Cooperativa Associão Grupo
Informal
Outros
Gráfico 2 - Desenvolvimento de ações sociais
Não
Sim
69
De fato, algumas manifestações de solidariedade e de assistência comunitária não podem ser computadas
diretamente aqui, como no caso de um assentamento rural, onde uma senhora relatou que o caminhão da
associação é muitas vezes utilizado para o transporte de membros da comunidade que necessitam de
tratamento médico na cidade (independentemente de pertencerem à associação).
83
II.3
ESTUDOS DE CASO - COOPERSOLI, COONARTE E COUROSIN
Os estudos de caso foram realizados por meio de entrevistas gravadas com os
trabalhadores no próprio local de cada um dos empreendimentos, em geral, durante uma
tarde, procurando-se observar também como se dava o processo de trabalho. Para auxiliar
as entrevistas, foi utilizado um roteiro desenvolvido pelo autor que se encontra no A
NEXO
II. A primeira parte do roteiro (A), serviu para captar informações mais específicas sobre o
empreendimento, seu histórico, forma de organização do trabalho, investimentos realizados
e crédito captado nos últimos anos, dimensão tecnológica da produção e relações político-
sociais. A segunda parte (B) se voltou para a condução das entrevistas a respeito da
situação dos trabalhadores, sobre sua compreensão e autopercepção no empreendimento. O
roteiro foi utilizado, é importante colocar, apenas como um fio condutor das entrevistas,
tornando flexível a inclusão de novas questões que pareciam mais relevantes no momento
de cada entrevista ou mesmo a supressão de questões inadequadas. Foi possível entrevistar
pelo menos dois trabalhadores em cada empreendimento (um respondendo às questões da
parte A, outro da parte B do roteiro), sendo que na Courosin foi realizada uma ‘coletiva’
com vários trabalhadores juntos, cada um dando sua contribuição e complementando a
resposta dos outros.
A escolha dos empreendimentos a serem visitados se deu por serem as experiências que
pareceriam mais interessantes em relação aos objetivos da pesquisa e que possuíam uma
trajetória mais diretamente voltada e articulada ao movimento da economia solidária em
Belo Horizonte. Não há qualquer relação direta entre a escolha desses grupos e o fato dos
três pertencerem à região do Barreiro, bairro da RMBH. Como foi visto no levantamento
realizado na feira, a maior parte dos empreendimentos são grupos informais, muitos com
dois a três integrantes apenas. Entretanto, pareceu-nos que a escolha dessas três
cooperativas, com um número mais elevado de associados, das quais o autor inclusive já
possuía previamente algum conhecimento, poderia fornecer informações mais relevantes
para a compreensão da realidade da economia solidária nessa capital. Embora as três
experiências desenvolvam atividades e produtos diferentes, elas apresentam fortes
semelhanças na sua forma de articulação prática, gestão, forma de investimentos na
produção e inserção no mercado, como veremos agora.
84
II.3.1
RECICLANDO PARA (SOBRE)VIVER
A COOPERSOLI (Cooperativa Solidária dos Recicladores e Grupos Produtivos do
Barreiro e Região) surgiu no segundo semestre de 2003, fruto de um projeto de geração de
renda realizado pela prefeitura regional do Barreiro que visava reunir e organizar os
catadores dispersos pelos bairros da região. Foram abertas inscrições para um curso sobre
cooperativismo que no início contou com a participação de 42 trabalhadores selecionados
pela prefeitura, que não se conheciam anteriormente. Esta ofereceu um galpão e o material
inicial para que os trabalhadores pudessem se organizar por conta própria e a Secretaria
Municipal de Limpeza Urbana (SMLU), disponibilizou caminhões de lixo para depositar o
material recolhido no galpão, onde este seria adequadamente preparado para reciclagem. A
proposta era formar uma cooperativa de catadores (a exemplo da experiência da
experiência bem sucedida da ASMARE
70
em Belo Horizonte) que pudesse contribuir com
a limpeza urbana e gerar renda para grupos em situação de risco.
Por falta de uma legislação adequada para este tipo de projeto, foi preciso, num processo
burocrático, criar uma associação de trabalhadores (à qual pertence a cooperativa) para que
pudessem receber de forma legal o apoio da prefeitura. Dos 42 trabalhadores que
participaram do curso inicialmente, 21 permaneceram e decidiram tocar o projeto adiante,
sendo que houve várias mudanças desde então. Segundo o relato de uma das
entrevistadas
71
, “no início eram mais de quarenta pessoas. Aí, depois, quando a gente veio
pro galpão para trabalhar as pessoas viram com o que era pra mexer [lixo] e muitos
desistiram”. Mais tarde, a Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS/CUT) passou a
apoiar o grupo – ofereceu um curso de gestão dentro dos princípios da economia solidária.
A participação e o envolvimento, como é comum inicialmente entre os que decidem
continuar, foi grande e acompanhada de muito entusiasmo
72
. É interessante nesta
experiência que, desde o início, estes trabalhadores assimilaram e passaram a empregar a
autogestão em todos os processos de direção e gestão da cooperativa, desenvolvendo
70
Sobre a ASMARE, veja nota 54.
71
Foram entrevistadas duas trabalhadores desse empreendimento. No primeiro momento de contato, nos foi
relatado que todos trabalhadores teriam o mesmo nível de conhecimentos e informações a respeito de todo o
processo de organização econômica e administrativa da cooperativa.
72
RUFINO (2003) aponta que as especificidades de um processo de implementação da autogestão em uma
cooperativa podem ser mais bem compreendidas se divididas em três momentos de adaptação da força
produtiva, que não se dão de forma linear e podem ser contraditórios. Esses momentos podem ser
denominados como: rejeição (quando o trabalhador se nega a participar do novo processo de gestão),
compreensão (quando este passa a perceber as possibilidades e as vantagens do projeto) e inovação (quando
o trabalhador se envolve com o novo projeto e participa ativamente, sugerindo e desenvolvendo melhorias no
processo de trabalho).
85
fortemente a participação de quase a totalidade do grupo de forma muito positiva.
O trabalho desenvolvido na cooperativa se divide entre a coleta do material (além do que é
recebido do SMLU, trabalham como catadores), triagem, prensagem e pesagem
73
. O
trabalho não requer grande experiência anterior, mas habilidade manual, sendo que são
atividades relativamente simples, cujo aprendizado e resultado satisfatório depende,
segundo os próprios trabalhadores, em primeiro lugar da motivação pessoal do indivíduo.
Funcionam em um espaço único, sem divisão de setores e sem atividades especializadas,
ou seja, todos fazem de tudo (segundo as entrevistas, os homens ficam mais tempo na
prensa, que requer maior força física, enquanto as mulheres se dedicam mais ao trabalho de
triagem). Tais características serão constatadas nas três experiências estudadas. Os fardos
são vendidos, principalmente, para duas fábricas de reciclagem que beneficiam o material:
uma indústria de papel, com a qual há um contrato de exclusividade, e outra de plástico.
Desde o início das atividades a produção tem aumentado constantemente, passando de 20
toneladas mensais em 2003 para 35 a 40 toneladas mensais em 2004, algumas vezes
chegando na capacidade máxima de armazenamento no galpão, de 50 toneladas. Os fardos
produzidos são bem aprovados no controle de qualidade das indústrias para as quais são
vendidos. Entretanto, no que se refere aos investimentos já realizados e planejados para os
próximos anos, no sentido de ampliação da capacidade produtiva, melhoria na qualidade
do trabalho ou beneficiamento do produto, a situação do empreendimento ainda é frágil.
No ano de 2004, os principais equipamentos adquiridos (computador, prensa, balança,
equipamentos de segurança) foram resultantes de doações de entidades que apóiam o
grupo, sendo que uma pequena parte apenas desses recursos teve origem diretamente do
faturamento da cooperativa, já que este era suficiente apenas para remunerar os
cooperados. Existe um projeto ainda não definitivo para aquisição de outra prensa e de
uma esteira rolante em 2005, equipamentos que podem também vir a ser doados por
instituições. Além disso, a cooperativa nunca realizou uma operação de crédito nem
participou de um programa de financiamento, seja com um banco popular, um banco
tradicional ou por um fundo de uma instituição.
Em relação à gestão administrativa da cooperativa, esta possui uma presidente, uma vice-
presidente e uma tesoureira, eleitos a cada dois anos, responsáveis pela atividade contábil e
73
São cerca de dez tipos de materiais utilizados para formar os fardos, entre papelão, jornal, papel branco,
revista e cinco tipos de plásticos.
86
por questões como o recebimento de doações ou atendimento de clientes. São realizadas
reuniões mensais regularmente e eventualmente são convocadas reuniões extraordinárias
para resolução de assuntos mais importantes. As entrevistadas afirmam que a mudança
para a forma de autogestão foi importante no aumento da participação dos trabalhadores na
resolução de problemas e na oferta de sugestões para a melhoria dos produtos e processos,
assim como no relacionamento entre os trabalhadores. Contudo, não foi dada a mesma
importância para o aumento da auto-estima do trabalhador e da produtividade do trabalho
diretamente. Ela ressalta a relevância da capacidade de comunicação e a motivação
pessoal, mais do que um elevado nível de escolaridade, curso técnico ou experiência
anterior para o bom andamento das atividades. Por exemplo, não se conseguiu até agora
desenvolver uma conscientização ampla sobre a necessidade do uso dos equipamentos de
segurança, que muitas vezes ficam guardados sem uso.
O trabalho é realizado em dois turnos, sendo que foi proposto e decidido em assembléia
que, devido ao espaço reduzido e equipamentos insuficientes, o que gerava conflitos no
grupo, este foi dividido em duas equipes que trabalhariam em dias alternados, com exceção
da presidente e da tesoureira, que trabalham todos os dias úteis. Da mesma forma, foi
decidido que sua retirada seria 10% superior à dos demais trabalhadores, cuja retirada é
igual para todos, pouco superior a um salário mínimo (exceto para dois trabalhadores que,
por motivo de baixa produtividade e por trabalharem um tempo reduzido, recebem menos).
Existe a possibilidade de que o grupo implante, em 2005, um sistema de remuneração
proporcional à produção individual, mensurada pelo peso dos fardos, entretanto nem toda a
atividade pode ser assim dimensionada, não havendo uma solução definitiva para isso. A
cooperativa não emprega trabalhadores assalariados, sendo o único caso, um novo
trabalhador em período de experiência que acabou se tornando cooperado seis meses
depois. Quando se trata de direitos básicos dos trabalhadores nos deparamos com novos
nós do problema à nossa frente ao verificar que a cooperativa não possui condições de
assegurar direitos essenciais como décimo terceiro salário, licença maternidade,
regularização do pagamento ao INSS, etc.
A Coopersoli, além da sua própria atividade produtiva, que serve à conservação ambiental,
participa de algumas atividades comunitárias de forma ainda pouco sistematizada. Este é
um aspecto importante de um empreendimento de economia solidária – talvez sua principal
característica – que consiste em sua atuação na comunidade. Em 2004 alguns membros
contribuíram em uma campanha de conscientização em escolas do bairro e para 2005
87
planejam realizar um plano de coleta seletiva em alguns condomínios da região, sendo que
a coleta comum já é realizada em um condomínio de outro bairro de Belo Horizonte.
Procurando se inserir e iniciar uma articulação solidária com outros empreendimentos
semelhantes, a cooperativa ainda não conseguiu iniciar um plano prático, que “saia do
papel”, seja com os programas como o Lixo Cidadania, do movimento nacional dos
catadores de papel, seja com movimentos de mulheres ou até com o movimento dos sem-
teto (dos quais algumas cooperadas participam), entretanto, há uma boa expectativa de
desenvolvimento esse ano.
II.3.1
COSTURANDO PARA (SOBRE)VIVER
A COONARTE (Confecções e Arte Cooperativa) surgiu em 1999 por iniciativa de uma
senhora costureira, Dona Francisca, que, ao participar de um grupo de mães apoiado pela
AMAS (associação que também apóia outros grupos em BH, entre eles a Courosin, como
será visto) teve a idéia de organizar uma cooperativa com as mães que participavam da
associação
74
. Ela declara que no início não tinha idéia do que significava uma cooperativa,
também não sabia onde e com o que trabalhar (já era uma senhora idosa, que nunca havia
tido oportunidades profissionais na vida), mas acreditava que poderia dar certo. Ninguém a
acompanhou, mas ficou com a idéia na cabeça. Em 1998 a AMAS ofereceu um curso sobre
cooperativismo, que ela conseguiu que fosse realizado na própria comunidade, mas a
adesão foi pequena, sendo que dona Francisca teve de chamar treze pessoas da sua família
(das quais apenas duas continuam na cooperativa) para que o curso pudesse ser realizado.
Em 1999, após o curso, a administração regional da prefeitura disponibilizou um pequeno
galpão que passou a ser sede da cooperativa de costura, registrada inicialmente com 20
associadas. Em 2003, passaram a receber apoio também da ADS. Ao final de 2004
participam ativamente 17 mulheres, tendo havido de lá para cá muitas desistências e novas
adesões. Por decisão do grupo, apenas mulheres são aceitas, o que é justificado por um
forte aspecto cultural, pois afirmam que a presença de homens impediria as conversas
corriqueiras típicas de grupos femininos que elas levavam durante o trabalho. “Porque não
pode ter homem? Ah... até pode ter, mais tira a liberdade da gente... e quando tem homem
é meio complicado... homem aqui só pra visitar, né (risos)”.
74
Além da própria dona Francisca, foram entrevistadas duas trabalhadoras deste empreendimento.
88
O principal item fabricado são bolsas, seguidas de tapetes, almofadas, colchas e diferentes
peças de vestuário, produzidos com retalhos de tecidos doados de diferentes fontes e
materiais adquiridos pela cooperativa no mercado. A confecção desses itens não requer
grande experiência e, segundo as entrevistadas, o mais importante é o gosto pelo trabalho,
a motivação e a participação. Contudo, a troca de conhecimentos e experiência e a
instrução solidária não estão tão fortemente presentes na cultura do grupo, como se vê por
declarações como a seguinte: “porque ensinar, a gente não ensina não... a pessoa aprende
no olhar... você dá uma força, mas não pára seu serviço para ensinar não”. Isso não impede
que se destaque também, assim como no caso da Coopersoli, a necessidade de boa
capacidade de comunicação no trabalho, sendo que o nível de escolaridade, que no grupo
se concentra entre analfabetos e nível fundamental incompleto, não foi apontado como
prioritário.
A comercialização dos produtos é feita principalmente por meio da venda em uma barraca
conquistada em uma feira tradicional de final de semana no centro de Belo Horizonte. Há
também pedidos individuais ou por representantes variados que são feitos diretamente na
cooperativa (já foram realizadas em 2003 vendas de produtos para lojas em São Paulo,
Porto Rico e Itália) e um espaço cedido na loja do Reciclo
75
para exposição de produtos.
Havia uma loja, cedida por um programa da prefeitura em um shopping popular, que não
durou muito, tendo sido fechada em 2004.
A produção e as vendas, que estão diretamente ligadas às variações na demanda, foram
bastante reduzidas em 2004 em relação a 2003, não havendo sido feito nenhum novo
investimento nem nenhum tipo de financiamento ou captação de crédito nos últimos anos.
As trabalhadoras afirmam que não podem pegar empréstimos porque não terão condições
de pagar depois. Desse modo, as três máquinas de costura são as mesmas que foram
doadas no início, algumas vezes tendo que se fazer turnos para sua utilização. Ainda assim,
a maior parte do trabalho é realizada manualmente. Como único item de investimento
previsto para 2005 poderá ser adquirido um computador através de um projeto do Banco
do Brasil para facilitar o trabalho administrativo e possibilitar o uso de Internet. No que se
refere à gestão da cooperativa, como se pode perceber e como foi relatado, a participação
75
O Reciclo é um bar pertencente aos trabalhadores da ASMARE que possui um pequeno espaço de
exposição de produtos reciclados. Há uma articulação positiva entre a ASMARE e a Coonart, seja pelo
oferecimento deste espaço de comercialização e divulgação, pelo envio de materiais (como retalhos de
tecidos a serem reaproveitados) ou pela possibilidade de participação da feira no movimento Lixo e
Cidadania.
89
tem diminuído muito, não apenas no dia a dia, mas inclusive nas reuniões organizadas –
ficou claro que há uma cobrança grande sobre o papel da diretora na tomada de decisões e
de ações e articulações comerciais, sendo que pouco se discute autogestão.
No início havia grande entusiasmo e participação, talvez por não haver cobrança de
horários e rigidez de produção e foi possível criar regras de trabalho e convivência sem
divisões hierárquicas. Todas trabalhavam coletivamente e ao final o produto era dividido
igualmente, 20% sendo destinado aos custos e investimentos da estrutura da cooperativa.
Entretanto, como é comum, logo começaram a aparecer críticas sobre algumas cooperadas
que não chegavam no horário, não trabalhavam todos os dias e produziam menos, obtendo
ganhos em cima do trabalho de todo o grupo (o que a teoria neoclássica chamaria de risco
moral)
76
. A fim de resolver tais conflitos, chegaram à decisão consensual, que acharam
mais justa, de alterar a forma de organização e repartição dos ganhos, de forma que cada
uma receberia de acordo com o que produzisse e fosse efetivamente vendido. Ou seja,
começaram a registrar o produto fabricado por cada uma. Todavia, muito ainda é feito de
forma coletiva, sendo que algumas vezes até três mulheres dividem a produção de
determinada peça. Em média, é possibilitado um retorno mensal de cerca de um salário
mínimo a cada uma.
Como a cooperativa não dispõe de recursos satisfatórios e o material utilizado por cada
uma pode ser de tipo e quantidades semelhantes, costuma-se utilizar um cheque da
cooperativa para as compras e cada uma paga a parte que irá utilizar, desse modo
conseguindo melhores descontos e prazos, como uma compra coletiva. A cooperativa
contratou um contador para poder auxiliar o grupo em questões legais e para que as
próprias trabalhadoras pudessem ser instruídas para desenvolver esses procedimentos. Na
época em que a cooperativa foi criada, segundo as entrevistadas, o contador era muito
ausente. Em 2003, foi contratado outro profissional, com maior experiência em
cooperativismo, que acabou por descobrir que a cooperativa estava com uma multa
acumulada de treze mil reais na justiça, por não ter feito, em todo esse período, uma
declaração que deveria ser trimestral e que a isentaria de impostos (obrigações sobre as
quais nenhuma das cooperadas tinha conhecimento). Isso gerou grande apatia no grupo e
algumas cooperadas, com medo, chegaram a se afastar. Passado algum tempo, ficando
76
Como relata a trabalhadora, olhando para as amigas, “antes era assim: muitas pessoas trabalhavam e as
outras ficavam de dondoquisse... quando era dia de pagar, as pessoas recebiam a mesma coisa... e isso criava
problemas”. E todas concordam, com um semblante de resignação: “o povo aqui é difícil!”.
90
claro que a impossibilidade do pagamento não traria maiores prejuízos e com a visita de
um advogado para auxiliar o grupo, este se reorganizou e o trabalho prossegue
normalmente. Atualmente, um novo regimento está sendo feito com a participação de todas
as trabalhadoras.
Frente a esses fatos, é importante lutar para que a cooperativa não perca seu caráter, se
tornando apenas um espaço que cada integrante freqüenta quando deseja, produz o que
acha necessário e não mantém grandes compromissos coletivos. É preciso ainda
desenvolver novos projetos como as oficinas realizadas com adolescentes da comunidade,
assim como as articulações com os órgãos públicos, as entidades de apoio e todo o
movimento da economia solidária.
II.3.2
CAMINHANDO PARA (SOBRE)VIVER
A COUROSIN (Cooperativa Solidária de Produção de Artefatos de Couro e Material
Sintético) surgiu no segundo semestre de 2003, fruto de um projeto de formação de líderes
comunitários realizado em uma articulação entre a Secretaria Municipal de Assistência
Social (SMAS) e a Secretaria de Estado e Assistência Social (SEAS), que haviam
constituído, em 2002, o Centro Nacional de Formação Comunitária (CENAFOCO). Desde
o início duas organizações não governamentais, a Escola Sindical 7 de outubro (ligada à
CUT) e a Associação Municipal de Assistência Social (AMAS), também ofereceram apoio
para a execução do projeto. Projetos semelhantes de educação de jovens e adultos foram
implementados em diversas capitais do país com alto índice de violência com uma
proposta inicial de realização de cursos de capacitação e formação, incluindo noções de
cidadania, meio ambiente e participação comunitária de membros da comunidade (não
especificamente para a criação de organizações produtivas). Após o curso, os participantes
receberiam um financiamento para desenvolver um projeto social de forma que o grupo
apoiou a proposta de um dos participantes, que possuía dez anos de experiência na
produção de artefatos de couro e material sintético, de criar uma cooperativa, na qual
poderiam trabalhar de forma coletiva e oferecer cursos para jovens da comunidade
77
. Este
77
Algumas informações a respeito das atividades desenvolvidas na cooperativa foram extraídas do trabalho
de Giovanni Fonseca (2004), doutorando de Engenharia da Produção, que acompanha a cooperativa desde
sua criação e faz uma interessante análise das dificuldades ergonômicas do processo de trabalho e
aprendizagem em um empreendimento de autogestão.
91
trabalhador se propôs voluntariamente a capacitar os demais e, mais tarde, ofereceria o
espaço no qual funciona a cooperativa hoje.
A SMAS solicitou, assim, o apoio técnico da UFMG, e um núcleo de estudos que iniciava
um programa para formação de uma incubadora universitária de cooperativas populares
assumiu o projeto. Este núcleo apoiaria também a constituição de mais três cooperativas a
serem cridas, também egressas do CENAFOCO, das quais não temos informações sobre a
situação atual. Nesse momento houve um sério problema, comum quando o acadêmico se
distancia do mundo real, mas que jamais poderia ocorrer em uma incubadora de
empreendimentos populares e que deve ser citado aqui. A equipe de pesquisadores que
assumiu o projeto não compreendeu as necessidades objetivas dos trabalhadores ao se
absterem de ouvir e de interagir de forma participativa com esses. Trouxeram um grupo de
estudantes que visitaram algumas vezes a cooperativa e ofereceram uma apostila com
textos teóricos sobre cooperativismo e economia solidária (que os trabalhadores nunca
leram!).
Tendo decorrido três meses, os trabalhadores perceberam que mais da metade do dinheiro
do programa havia sido gasto com treinamento dos estagiários (alunos da universidade!) e
com o xerox das cerca de 20 apostilas. Nada havia sido feito, embora houvesse uma grande
equipe de pesquisadores da incubadora. Os trabalhadores resolveram então, iniciar o
trabalho por conta própria. Dos dezenove, que após o curso se propuseram a participar da
cooperativa
78
em agosto de 2003, restaram cerca de doze trabalhadores que permaneceram
durante o ano de 2004. No início de 2005 este número caiu para sete. Depois que os
trabalhadores se manifestaram contra o gasto inadequado dos recursos e tomaram a frente
do empreendimento, apenas um pesquisador permaneceu (por conta própria) apoiando o
grupo e, recentemente, a incubadora voltou a oferecer assistência com uma nova proposta
metodológica ao que tudo indica, com mais seriedade e de forma bem diferente do que foi
feito anteriormente.
Voltando a questão da organização do trabalho na cooperativa, constatamos, de modo
muito semelhante às experiências relatadas acima, que – embora esta pareça ser a atividade
que possui o processo mais complexo entre as três experiências – aqui também não há
divisão de grandes setores, tanto no processo produtivo como na administração do
78
De fato, a Courosin ainda não é uma cooperativa formalizada, embora seus integrantes afirmem que
trabalham em uma cooperativa. Pretendem, em 2005, regularizar sua situação e criar um estatuto legal.
92
empreendimento, sendo que todos os trabalhadores estão desenvolvendo capacidades para
o processo completo – embora possa haver alguma divisão de trabalho. Como citado
anteriormente, um dos trabalhadores é o instrutor dos demais e já que este está disposto a
transmitir sua experiência aos novos integrantes, os fatores mais relevantes para participar
deste trabalho acabam sendo também a motivação pessoal e a participação, seguidos da
capacidade de comunicação e habilidade manual.
Os principais itens da produção se dividem entre calçados femininos e mochilas escolares,
cuja quantidade e os modelos variam de acordo com a época do ano e com as tendências de
moda, conhecimento que os cooperados afirmam ser fundamental para poder vender com
facilidade (atualmente, a capacidade de produção pode chegar a 1000 mochilas ou 500
pares de calçados por mês). Há ainda uma produção complementar de bolsas femininas,
cintos, bolsas para eventos
79
e porta-cd’s. A produção, que tem aumentado no último ano, é
comercializada, na maior parte, em um supermercado (mochilas) e em uma loja de
calçados do bairro, sendo que para o próximo ano se espera poder incluir novos
cooperados para aumentar a produção, pois os trabalhadores atuais têm permanecido no
local de trabalho algumas vezes por cerca de dez horas por dia, devido à grande demanda.
Dos cerca de dez mil reais, que, segundo os entrevistados, representam o custo das
máquinas e equipamentos adquiridos em 2004, apenas uma pequena parte foi resultado de
recursos diretos da cooperativa, sendo o restante doações (prensa e lixadeira) ou objetos
que já eram de propriedade dos próprios cooperados antes de iniciar o empreendimento
(máquinas de costura e geladeira). Pretende-se adquirir em 2005 duas máquinas especiais
para melhorar a produção de calçados e bolsas e abrir uma loja própria a partir de um novo
projeto com apoio do Instituto Marista de Solidariedade, ligado aos Maristas, e talvez mais
adiante iniciar uma produção de tênis masculinos.
Fato contraditório ocorreu em 2003 quando o grupo foi ao Banco Popular de Belo
Horizonte em busca de crédito para capital de giro a fim de responder a um pedido de
produção. Segundo os entrevistados, não houve burocracia, sendo necessária apenas uma
visita de um agente do banco popular para que sua solicitação fosse aceita. Conseguiram
um financiamento de três mil reais, entretanto, não foram inseridos em uma categoria
especial de crédito, sendo que os juros cobrados estavam nos níveis normais do banco, de
3,9% ao mês com pouco tempo de carência. O resultado foi que, embora naquele momento
79
O grupo já chegou, inclusive, a produzir bolsas para um encontro de EPS.
93
o financiamento tenha sido interessante, pois viabilizou o início da produção, até hoje não
conseguiram pagar a dívida (atualmente em processo de negociação) sem prejudicar a
retirada de cada cooperado, que é de cerca de um salário mínimo.
A gestão do empreendimento se dá de forma coletiva com um bom nível de participação de
todos, já que se trata de um grupo reduzido que pode desenvolver um ambiente de
confiança satisfatório. As decisões são tomadas em reuniões mensais ou mesmo
cotidianamente. Assim como foi percebido nas outras experiências, há uma grande
semelhança na forma de remuneração. No momento, a divisão é igual para todos, com
exceção do instrutor, que recebe 5% a mais que os outros, pelo trabalho de ensino e por
ceder o espaço em que funciona a cooperativa, o que foi decidido pelo grupo. Entretanto, a
retirada poderá passar a ser por serviço realizado, nesse caso menos pelo risco moral do
que pelas diferenças de produtividade (volume de produção por trabalhador)
80
.
Em parceria com o Núcleo de Apoio a Família (NAF), órgão da prefeitura municipal, a
Courosin começará um projeto em 2005 de treinamento de jovens da comunidade. Poderão
ensinar um ofício ao jovem, que receberá o curso gratuitamente e, em contrapartida, esta
produção permanece na cooperativa. É importante frisar que esta não é uma estratégia para
conseguir mão-de-obra barata, já que os ganhos econômicos não são atraentes, sendo
comum o desperdício de material e a perda de produtos de qualidade inferior no processo
de aprendizagem. Após o curso, o grupo pretende convidar os jovens mais interessados a
se tornarem cooperados regulares. Para que esse processo seja espontâneo e para não haver
competição entre os jovens, estes não ficarão sabendo da possibilidade de entrar na
cooperativa no início do curso.
Como se viu, o grupo tem uma gama considerável de articulações políticas tanto com o
governo como com entidades da sociedade civil. Participam também do Fórum Mineiro de
Economia Solidária, o que possibilitou a ida de um dos trabalhadores para o V Fórum
Social Mundial em Porto Alegre, onde este pode ter contato com cooperativas semelhantes
que exportam regularmente parte da sua produção. Entretanto, foi perceptível que as
expectativas dos trabalhadores não são tão otimistas. Suas críticas são diversas (como será
visto nas considerações abaixo) e seu ânimo está em constante desafio.
80
Até o momento, aqueles que quiseram permanecer trabalhando se mantiveram na cooperativa, tendo
havido apenas um caso de conflito em que, por unanimidade, o grupo decidiu pela saída de um participante.
94
II.4
CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PARTE II
No Brasil, os pesquisadores e formuladores de políticas públicas há tempos parecem não
viver no país em que habitam. Formulam teorias e projetos desvinculados de uma realidade
histórica que não deve e não pode deixar de ser levada em consideração e não trabalham
para que um novo projeto possa ser construído em parceria com os trabalhadores e toda a
sociedade, os mais capacitados para entender suas próprias necessidades. Isso pode ser
percebido na afirmação de um trabalhador que diz: “Seria de bom senso de empresas
públicas e privadas, ao invés de elaborarem questionários que em nada darão, ir ao local
dos empreendimentos e ver de fato o que realmente acontece com quem trabalha dentro da
ES”.
81
Do mesmo modo, demonstrando um nível elevado de participação política, um trabalhador
aponta que é “necessário compreender que o sistema capitalista reprime e segrega o
trabalhador”. Após um trabalho coletivo, continua, é possível verificar na prática que
“juntos estão mais fortes e os resultados podem ser melhores”. Além dessas, várias são as
demandas, críticas e apontamentos levantados pelos próprios trabalhadores nas entrevistas
que realizamos durante este trabalho. Entre elas, a falta de acesso à informação para a
organização formal de um empreendimento de ES; a falta uma legislação específica
voltada para a ES, junto com uma discussão de viabilização de espaços de
comercialização; sua divulgação para a sociedade e mesmo sua aceitação, como no caso de
instituições sociais de reformação de jovens detentos ou de deficientes.
Nos estudos de caso, pudemos retirar depoimentos importantes para uma melhor
compreensão das questões e dificuldades apontadas pelos trabalhadores. Isso nos levou
inclusive à necessidade de uma crítica da própria forma de ação de algumas entidades de
apoio, que, na prática, inevitavelmente acabam demonstrando maior influência e controle
nos fóruns de ES. Como se viu, uma das principais críticas apresentadas pelos
trabalhadores envolvidos no movimento refere-se ao destino dos recursos e à dificuldade
em se fazer com que estes cheguem diretamente aos grupos:
“O que eu acho realmente disso aí é que eu quero ver esse fórum mineiro funcionar! Porque
até hoje ficou só na idéia. Os projetos tão aí, mas desse jeito informal que tá aí não consegue
81
O presente depoimento e as colocações abaixo foram observações feitas por trabalhadores, retiradas dos
questionários aplicados na feira de economia solidária, como tratamos no tópico II.2 deste trabalho. Os
demais depoimentos citados em seguida (e mais extensos) foram retirados da entrevista coletiva realizada
com os cooperados da Courosin.
95
quase nada... O ano passado teve muita empolgação, muitas caras novas, mas quando o povo
viu que passou o ano inteiro e ninguém ganhou nada desanimam. Agora estão montando uma
sala com equipamentos para isso, cem mil reais, mas e os grupos que precisam realmente de
apoio? A estrutura toda, montada bonitinha é importante, mas as pessoas não têm nem o
dinheiro para pagar um vale transporte para ir à reunião! Se ficar assim, o espaço se torna
ocioso de novo e tudo continua por conta deles. Porque se realmente não chegar o recurso
para os que precisam, e somos nós que precisamos, tende a acabar. Porque vamos a uma
reunião, uma vez, duas vezes, dez vezes e se não consegue o equipamento para trabalhar,
matéria prima inicial para os grupos, se não consegue isso, não tem como, a pessoa tende a
desanimar. Isso aconteceu com muitos dos casos que eu vi ano passado”.
Ao mesmo tempo, eles denunciam os entraves à participação, gerados pelo interesse
individualista de alguns dos próprios trabalhadores que, esperando algum benefício
pessoal, acabam chegando de forma alienada a uma reunião do movimento de EPS, com
pouca clareza a respeito dos princípios básicos defendidos:
“Na verdade se falou muito em economia solidária, mas ninguém entendeu a fundo. Cadê os
nossos direitos, cadê os direitos que o povo tem? Ninguém cobra, ninguém sabe. Poucas
pessoas sabem o direito que têm... E o que é economia solidária? Chega lá, na reunião, que tá
cheia de gente... tem um ou dois... e se você perguntar o que é economia solidária vai ouvir:
‘ah! O que eu vou ganhar com isso?’. É mais ou menos por aí... então tem que se educar as
pessoas, que realmente é pra valer a economia tão falada solidária que tá aí, porque ainda está
muito por cima”.
Daí a importância da educação cooperativa para o desenvolvimento de uma cultura de
solidariedade, participação e confiança. As cooperativas solidárias, apesar das dificuldades
enfrentadas, passam por essa experiência na prática, demonstrando ao menos um
significativo aprendizado, como a crítica abaixo revela:
“Mas a pessoa acaba se deixando levar... o ser humano tem muito disso de encostar... deixou
uma vez, depois outra... daí a pouco, nossa... mas quando o trabalho está bom e se começa a
elogiar, daí a energia dobra (...) a gente conversa muito aqui sobre a solidariedade e
cooperativismo, a gente bate muito nessa tecla... essa é uma experiência que eu nunca tinha
vivido antes não... eu paro pra pensar e se fosse hoje acho que eu não tinha pegado essa cria
nunca [risos]. É meio complicado porque é uma caminhada muito longa... eu tenho visto as
pessoas que têm começado a participar esse ano e se não houver uma orientação realmente de
verdade sobre o que é a cooperativa, porque as dificuldades que a gente enfrenta são muitas, o
grupo tende a acabar antes de começar. Por isso, a pessoa que entra num trabalho desses tem
que ser uma pessoa séria, que tem que estar sempre conversando, procurando entender, para
não passar uma visão errada para as pessoas”.
96
Os problemas observados e as necessidades apontadas nas três experiências que
focalizamos nos estudos de caso foram praticamente os mesmos. Embora essas
cooperativas desenvolvam suas atividades em setores bem diferentes, com pouca ou
nenhuma relação no que se refere aos seus produtos finais, elas apresentam semelhanças
muito fortes – tanto na sua forma de articulação prática e gestão, apresentando muitas
vezes os mesmos problemas e soluções (como a forma de remuneração) como no seu modo
de fortalecimento econômico e inserção no mercado, com quase nenhum investimento na
produção e uma limitada capacidade de acesso e gerenciamento de crédito. Torna-se,
assim, evidente a necessidade de um apoio massivo a esses empreendimentos, seja em
termos de qualificação, desenvolvimento técnico e gerencial, articulação e educação sócio-
política, para que possam se constituir em uma alternativa efetiva e não-marginal.
Os estudos apresentados possibilitaram uma melhor percepção das dificuldades e desafios
para o desenvolvimento da economia solidária em Belo Horizonte. Claramente percebe-se
que a camada da população que participa desse tipo de atividade se mantém em uma
situação de muita fragilidade, com ainda poucos espaços e caminhos alternativos para
desenvolver formas de trabalho que lhes possibilitem uma melhoria significativa de
qualidade de vida, assim como a oportunidade de contribuir produtivamente e de forma
ampla para a sociedade.
A chamada economia popular solidária constituída em Belo Horizonte, e da qual foi
possível examinar apenas uma pequena parte, parece se encontrar, portanto, em um campo
de interseção entre duas configurações. Por um lado, possui diversas características da
economia popular (informal), que não visa um projeto alternativo ao capitalismo, mas se
desenvolve apenas como uma forma precária de sobrevivência, muitas vezes selvagem. Por
outro lado, também engendra relações do que seria uma economia solidária concreta, mais
bem articulada, fortalecida e próxima da lógica sócio-econômica aí imaginada, com o
apoio do terceiro setor. Com isso em mente, o enfrentamento desses desafios pelo
desenvolvimento da “intersolidariedade” entre esses grupos parece ser uma das
possibilidades mais virtuosas desse movimento, para que, antes de ser um caminho tomado
pela falta de opção frente à presente realidade, seja uma escolha livre, fruto de uma
convicção em seu potencial transformador.
97
C
ONSIDERAÇÕES FINAIS CAMINHOS PARA UMA (MACRO)ECONOMIA SOLIDÁRIA
A realização desta dissertação nos possibilitou um importante aprendizado sobre diversos
aspectos da economia solidária, tanto no seu sentido histórico e conceitual como na sua
formação atual. Na primeira parte foi possível apreender que a economia solidária se difere
por diversas razões do chamado “socialismo utópico”. Primeiramente, antes de uma
criação intelectual – como eram os diferentes sistemas dos socialistas utópicos –, a
economia solidária é uma proposta ativa de mudança e construção contínua dos
trabalhadores contra o capitalismo. Segundo, ela se apresenta hoje dentro de um contexto
histórico particular de evolução do capitalismo e precisa ser compreendida de acordo com
as especificidades desse novo quadro, onde a reestruturação produtiva a nível mundial
incide diretamente sobre as relações de trabalho e emprego.
Portanto, é possível afirmar que a economia solidária não se desvia do pensamento
marxista (ou o “socialismo científico”), na medida em que este busca demonstrar que a
superação do pensamento utópico se dá pela investigação histórica e econômica da
sociedade capitalista. E se o marxismo, ao mostrar a verdadeira face do capitalismo foi e
continua sendo um chamamento à ação, a ES é a ação em movimento, é o aprendizado na
prática de erros e acertos na construção de uma forma alternativa e solidária de
organização das atividades econômicas, que se contrapõem aos valores presentemente
colocados. O propósito teórico socialista original é resgatado, marcado não somente pelo
estudo do capitalismo, mas fundamentalmente voltado para o desenvolvimento de meios
para transformá-lo, antes pela ação humana consciente, do que por um eventual processo
“espontâneo” de incapacidade de reprodução do sistema.
Embora tenhamos afirmado que este é um movimento recente, vê-se que quase toda a
história do capitalismo foi marcada pela resistência de trabalhadores sob formas de
organização cooperativa, formando a raiz do que se entende como a economia solidária,
que atualmente abrange as novas e diversas formas que se apresentam no contexto do
capitalismo na sua fase “pós-fordista”. Entretanto, na maioria das vezes, essas experiências
sucumbiram, quando não sobrevivem resistindo precariamente à pressão das relações
capitalistas de produção. Por isso, esse trabalho foi importante para compreender melhor o
desdobramento histórico que estas experiências tiveram e de que forma serviram como um
aprendizado para esse novo movimento dentro do contexto atual.
98
De forma complementar, a parte II nos permitiu compreender melhor uma série de
experiências que se desenvolvem em Belo Horizonte. Como ficou claro, os grupos
estudados se apresentam em uma situação de grande fragilidade social e econômica,
desenvolvendo atividades de baixo nível técnico, com limitada capacidade de realização de
investimentos e captação de crédito. Esses resultados apontam no mesmo sentido que
diversos autores têm reafirmado. Como afirma, por exemplo, P
OCHMANN (2004, p. 23),
esse movimento que se vê hoje no interior do segmento não-organizado do mercado de
trabalho, dentro da crise capitalista, é sinal do “desenvolvimento de uma fase embrionária
da economia solidária, para além dos estágios da economia doméstica, popular e pré-
capitalista”.
Como vimos, as dificuldades que se têm enfrentado são muitas, seja pelo número reduzido
de políticas públicas realmente articuladas a uma estratégia de emancipação, seja pelo
fraco desempenho dos empreendimentos, que têm sua inserção ainda subordinada à
economia capitalista. Com isso, como também sugere
GAIGER (2002), a economia solidária
parece se constituir no que seria uma “forma social de produção, contrária à forma social
de produção assalariada, e não um modo de produção distinto. Caso o desempenho desta
nova forma social de produção venha a se mostrar superior, ela engendrará um novo
desenvolvimento da base material e, portanto, um novo modo de produção”. Pode
continuar, porém, como uma simples reação aos ciclos da crise capitalista, que volta e meia
reaparece. Assim, os grupos estudados nessa capital parecem se encontrar, na prática, em
um estágio intermediário entre a economia solidária propriamente constituída (ou o modo
solidário de produção e distribuição) e uma economia popular informal (que também
desenvolve relações capitalistas). Isso pode nos levar a ver essas atividades ainda como
uma forma de intersecção entre o capitalismo e a pequena produção de mercadorias,
embora haja um evidente potencial de superação dessas duas formações.
Com efeito, é inegável que os empreendimentos de ES (ao menos enquanto permanecerem
marginalizados) são condicionados pela lei do valor, que regula as economias de mercado.
Todavia, isso não se dá em toda a sua extensão, de forma que o capital não apresenta
domínio completo sobre o trabalho. Para além da ideologia do crescimento econômico e da
mera geração de empregos, esses trabalhadores iniciam um processo de superação do
fetichismo que permeia as relações capitalistas, oferecendo, pela dádiva, uma nova ética
nas relações de trabalho, e em todos os aspectos da vida. Convém deixar claro que não se
pretendeu argumentar que a ES, ao menos no curto prazo, possa se constituir no presente
99
numa solução geral e definitiva para o grave problema verificado na atualidade do
desemprego no país. Parece evidente que a contribuição da ES só será efetiva e
transformadora com a implementação de políticas adequadas a esse novo paradigma em
todos os níveis (micro, meso e macroeconômico).
Os estudos empíricos apresentados nessa dissertação permitiram compreender e corroborar
essas interpretações, reforçando a afirmação de M
ANCE (2003, p. 2), de que “as
organizações de economia solidária (...) ainda não são compreendidas em seu potencial
caráter estratégico por boa parte dos atores políticos integrantes deste mesmo bloco em
formação, sendo vistas apenas como formas marginais de atender demandas de consumo e
produção”. Com efeito, os empreendimentos solidários (estudados em Belo Horizonte) se
mostram ainda em uma situação de fragilidade e com muitas dificuldades à frente. Além
disso, seu crescimento simplesmente quantitativo não significa necessariamente que o
sistema esteja demonstrando uma incapacidade de reprodução.
Verifica-se, assim, que simultaneamente duas forças contraditórias, que se apresentam
dialeticamente, fortalecem e enfraquecem o movimento de transformação. Se por um lado
a economia solidária pode ser capaz de reproduzir relações de produção não-capitalistas, o
que possibilitaria a (re)produção de todo um sistema não-capitalista (ou pós-capitalista),
por outro lado, uma visão mais cética e pessimista preocupa os “socialistas solidários”
estudiosos das novas configurações do mundo atual. Uma das críticas nesse sentido é de
que o desenvolvimento dessas atividades não enfraquece em nada as bases do sistema, mas
sim tem o efeito contrário. A economia solidária seria plenamente funcional ao sistema, já
que estaria “tomando conta” das camadas da sociedade das quais o sistema não é capaz de
dar conta. Isso permitiria manter uma coesão social mínima, necessária à reprodução do
capitalismo, por meio do apaziguamento dos conflitos gerados pelos efeitos sociais
deletérios de sua crise. A barreira entre os circuitos superior e inferior da economia (como
vimos na abordagem de S
ANTOS (1979), no tópico I.2.2) não se romperia, mantendo-se em
um extremo a grande atividade capitalista, orgânica e de alto nível tecnológico, e em outro
as atividades dos setores populares (pobres) produzindo numa lógica precária de
reprodução da vida (lê-se para subsistência).
Essa crítica é essencialmente diferente do dilema (vale frisar, equivocado) de Webb-
100
Bernstein-Luxemburg
82
, já que admite a coexistência da economia solidária no contexto do
capitalismo. No entanto, vista como um “implante” adaptado cirurgicamente para reformar
suas estruturas decadentes, a ES poderia acabar por servir apenas para dar funcionalidade
ao sistema, sem de fato transformá-lo. Afinal, um implante só é bem sucedido (mantendo a
analogia com a saúde) quando é capaz de ser absorvido pelo organismo, sem rejeição. Do
contrário, deve ser removido para se evitar maiores prejuízos.
Mas se a ES não pode seguir essa direção, tampouco pretende infiltrar um “espião” para
detonar uma bomba no centro do “edifício” do sistema capitalista. Talvez a melhor
analogia seja mesmo a da velha idéia de Marx, em sua conhecida concepção da
transformação social movida dominantemente por forças endógenas, onde as sementes do
novo sistema já se encontrariam “dentro do velho, geradas pelas suas contradições
internas". A ES pode vir a se tornar um enclave ao desenvolvimento do capitalismo,
resultado de uma reação contra suas próprias contradições, entretanto, a proposta de
desenvolvimento de relações de confiança e solidariedade, mesmo dentro do meio
capitalista adverso, parece ainda uma tentativa de polinização de flores num campo de terra
seca e sem vento. O que resultará dessa polinização, é que o campo “invadido” pode se
adaptar e utilizar apenas o que lhe convém dessas novas formas de organização, ou pode
não conseguir conter a reprodução de uma nova vida. Ou seja, há uma grande
indeterminação frente aos caminhos futuros da ES. No entanto, não nos parece que essas
pequenas flores que floresceram nos últimos anos (que se beneficiaram por um momento
de vento mais forte), e que sempre estiveram presentes, possam desaparecer tão facilmente.
A questão é de como e quando poderão vir a se fortalecer a ponto de gerar um verdadeiro
jardim.
A articulação entre a teoria e a prática, como vimos ao longo das discussões levantadas em
cada uma das partes deste trabalho, nos permitiu ver que o debate sobre essa questão ainda
está se iniciando. Nesse sentido, a possibilidade de que a reprodução de relações de
produção não-capitalistas possa se tornar um enclave, demonstrando a incapacidade da
reprodução das relações capitalistas (como sugere Lefébvre), ainda é apenas uma
82
Segundo a crítica desses autores ao cooperativismo no início do século XX, essas iniciativas, por se
construírem dentro do capitalismo, teriam apenas dois caminhos: sucumbir completamente à avalanche
mercantil, degenerando-se ao abandonar seus valores ou falir diante da implacável lógica da concorrência da
grande produção (como também se pode ver em uma dura crítica de B
ARROSO (2003) à economia solidária
hoje). A conclusão é falsa, pois não leva em conta o fato de que a autogestão só será efetiva, quando os
trabalhadores estiverem aptos e dispostos a praticá-la, o que só pode ser proporcionado por um aprendizado
na prática. Para essa discussão, ver L
IMA (2004) e SINGER (2000).
101
conjectura teórica. Para que a economia solidária se fortaleça na prática é importante criar
condições de projetá-la numa perspectiva macroeconômica. O futuro quanto a isso ainda é
incerto e as definições quanto à macroeconomia de forma alguma estão dadas. Certamente,
as diversas experiências desenvolvidas no âmbito local iniciam esse processo, porém, para
se articular a passagem de ações locais para o nível global, a construção de um sistema
institucional voltado para o desenvolvimento pleno da economia solidária se mostra
necessária. Isso pode ser iniciado não apenas por decisão política de um governo
comprometido em apoiar o desenvolvimento de atividades não-capitalistas, mas também
pela mobilização dos trabalhadores e de diversos grupos sociais.
Como apresentamos ao longo desse trabalho, já existe um movimento em processo de
formação e fortalecimento contínuo que apresenta traços iniciais de tal sistema. No Brasil,
um importante resultado desse movimento foi a constituição da Secretaria Nacional de
Economia Solidária (SENAES)
83
. Porém, seus recursos são ainda limitados e o trabalho se
encontra em fase inicial de conhecimento e mapeamento amplo da economia solidária no
Brasil (além do fato de que a equipe econômica do atual governo não demonstra grande
abertura para uma discussão realmente crítica sobre essa questão).
De qualquer modo, é evidente que um apoio massivo do estado pode dar forte impulso à
ES, em termos das necessidades que foram vistas e apontadas recorrentemente neste
trabalho como qualificação, desenvolvimento técnico e gerencial, articulação e educação
sócio-política. É possível apontar cinco grandes lacunas determinantes a serem preenchidas
em relação às políticas públicas para o seu fortalecimento, como coloca
POCHMANN
(2004). 1) É preciso uma definição de uma regulação pública para a economia solidária,
com um estatuto e um código próprio para a regulamentação do trabalho na ES; 2) é
necessário o desenvolvimento de uma rede de financiamento apropriado, pois o sistema de
crédito tradicional está baseado nos princípios capitalistas; 3) um terceiro ponto é a
constituição de uma rede de produção, difusão de tecnologia e extensão técnica nos moldes
da ES, com instituições análogas às que já existem para a economia capitalista (como o
Sebrae); 4) em quarto, há a necessidade de uma ampla reformulação das políticas públicas
83
“Essa iniciativa do governo federal foi considerada por Jean-Louis Laville como uma inovação importante
no campo das políticas sociais: ‘face à pobreza massificada e diante das dificuldades para implementar de
forma eficaz políticas sociais clássicas, trata-se de apostar na organização coletiva das atividades socialmente
úteis. Colocando com outras palavras, trata-se de dar apoio à formalização de um setor da economia que
ficou por um tempo demasiadamente longo relegado à informalidade, o que significa organizar a passagem
de uma Economia Popular auto-organizada a uma economia solidária com direito à cidadania’ (
Alternatives
Économiques, n
o
220, dez./2003, p. 91)”. Citado em FERREIRA e BERTUCCI (2004).
102
para a indústria e o comércio exterior no âmbito da ES, desenvolvendo novos paradigmas
éticos de produção e exportação; e 5) um tema de grande peso, engloba uma revisão no
processo de compras e na legislação das licitações do setor público de modo a favorecer
esse tipo de atividade, que não segue a mesma lógica de concorrência
84
.
Como se pode perceber, existe um longo caminho para o desenvolvimento de uma
dinâmica concreta para a economia solidária. Novas propostas e soluções para as
dificuldades recorrentes nos empreendimentos isolados, como o incentivo à participação
política dos trabalhadores, a mudança efetiva de paradigma cultual e o equilíbrio entre
eficiência e desenvolvimento sustentável estão sendo trabalhadas e repensadas a cada dia,
assim como a necessidade de formação e articulação de redes e complexos solidários de
articulação entre os empreendimentos.
À guisa de conclusões e sem perder o foco do trabalho, é fundamental reafirmar que um
novo projeto de sociedade dependerá, mais do que tudo, da autodeterminação da classe
trabalhadora, de seu desprendimento plenamente consciente da ideologia produtivista,
presente tanto no estado capitalista quanto no estado socialista. E falar em
autodeterminação, como afirma Lefébvre, é falar em autogestão, com a meta de orientar o
crescimento e conduzir o desenvolvimento para as necessidades sociais. Porém, a
autogestão de empreendimentos, unidades de produção no âmbito local, nacional e até
mundial não será fácil, já que ela implica no controle sobre o mercado e a eliminação de
sua dominação. Tal proposta necessitará de uma nova pedagogia social
85
, uma nova prática
social em todos os espaços da vida, das relações entre os homens e destes com a natureza.
Embora ela traga à tona a questão da participação (e sem autogestão, a participação não
tem significado real), ela traz também diversos (e novos) problemas. “O que ela determina
não é um estado, mas um processo, no qual novos problemas são colocados e devem ser
resolvidos na prática social” (Lefébvre, 1978, p. 40, tradução nossa). E é um projeto que
deve estar em constante revisão e que tem grandes chances de falhar, já que os novos
“valores” não são impostos, são propostos.
Muitos autores têm demonstrado grande anseio por mudanças pela via do desenvolvimento
84
No estado de Minas Gerais já foi aprovado o projeto que sanciona a lei de economia solidária, que prevê a
formação de fundos, a criação de um selo que identifique os produtos dos empreendimentos e a constituição
de um Conselho Estadual de ES.
85
Sobre a relação entre economia solidária e pedagogia é interessante ver a coleção recentemente lançada
com o título Economia solidária e educação de jovens e adultos por Sônia Kruppa (2005).
103
da solidariedade como um fator social e político de fundamental importância. Durkheim,
por exemplo, a seu modo, já discutia a emergência da solidariedade como fator intrínseco à
divisão do trabalho social, como aponta O
LIVEIRA (2003). Mas certamente, não podemos
incluir todos como defensores da ES. Muitos são fortemente céticos, embora possamos
descortinar uma direção clara quando, apenas para citar alguns, percebemos o que dizem
sobre a solidariedade ou a autogestão. Tom Bottomore, no prefácio de Capitalismo
Socialismo e Democracia, de Schumpeter, afirma que “a idéia de autogestão vem tendo
crescente influência nos últimos anos (...) e parece provável que o debate sobre socialismo
e democracia, ou democracia socialista, venha a ser formulado cada vez mais nesses
termos (...)”.
86
Em nosso país, Bresser P
EREIRA (1988) coloca na penúltima página de seu livro que
“existe, entretanto, um caminho socialista para o Brasil com base não apenas nos
trabalhadores, mas também nos intelectuais e estudantes”. Afirma que “apesar da
hegemonia ideológica da burguesia é possível prever que muitos que lutam hoje pela
democracia lutarão amanhã pelo socialismo. Mas por um socialismo democrático,
autogestionário, implantado aos poucos (...)” e que “não tem sentido socialismo
democrático sem autogestão. E a autogestão é inviável sem um povo culturalmente
preparado e politicamente mobilizado” (P
EREIRA, 1988, p. 185). Porém, como adverte
M
ANNHEIM (1972, p. 33), “um dos grandes problemas da democracia moderna consiste em
projetar padrões para estabelecer o consenso e repartir o poder comum em grandes
comunidades”, apesar de concordar que “a alternativa da cooperação representa um
princípio criador” e que “este método de controle compartilhado constitui um dos inventos
mais significativos do campo das técnicas sociais”.
Como se vê, vários foram os que tocaram indiretamente no tema, mas sem aprofundar a
questão. O fato é que tanto a proposição ultrapassada do controle social por um grupo de
técnicos qualificados quanto a tradicional proposta de “tomada de poder pelo proletariado”
começam a ser hoje substituídas pela concepção do “empoderamento popular”, por meio do
controle dos rumos da sociedade por toda a população, sua afirmação política tanto local
quanto globalmente e isso sem desligar a prática da técnica e do conhecimento, que
somente bem articulados possibilitam um resultado eficiente para a democracia.
86
Tom Bottomore, no prefácio de SCHUMPETER (1984[1942]), p. 14.
104
Esta é a principal questão vinda seja da economia solidária ou de outras formas de
mobilização político-social autogestionadas, que em maior escala, culminam no
autogoverno de toda a sociedade. Vimos neste trabalho somente uma pequena parcela da
complexidade do tema estudado, assim como uma idéia ínfima das dificuldades que se
apresentam pela frente. Muito foi feito desde que Tomás Morus cunhou o termo ‘utopia’
no século XVI, desde que os primeiros socialistas expuseram as brutais feridas do
capitalismo dos séculos XVIII e XIX com seus sistemas mirabolantes, e desde que Marx e
Engels reconstruíram criticamente o socialismo. Com efeito, muito ainda há de ser feito,
pois se surge hoje uma percepção de que a economia solidária não clama pela revolução
(no sentido que ficou marcado pelo marxismo), tampouco significa a desilusão de Max
Weber.
M
ANNHEIM (1972) afirma que o radicalismo da proposta comunista menosprezou as
dificuldades da fase de transição, numa fé fanática na perfectibilidade humana. A
disposição de se jogar tudo no lixo para começar de novo impossibilitou a proposição de
reformas socialistas graduais. Gabriel C
OHN (1979) concluiu que a única saída para a
racionalização do mundo, que encarcera a criatividade humana numa jaula de aço era para
Max Weber a resignação, a escolha por um caminho ético e heróico, porém, ainda assim, o
futuro da humanidade estaria fadado à tristeza e ao “desencantamento do mundo”, pois
mesmo a proposta socialista imporia uma racionalização não menos extremada.
Em oposição a isso, a proposta da economia solidária de forma alguma é resignação, ela
incorpora e reproduz a dádiva, que pouco tem de racionalismo. Ela se apresenta como a
retomada de uma longa caminhada, desesperançada no passado e por longo tempo tida
como um sonho. Recupera a crítica marxiana e retoma a busca por um mundo melhor,
mais ético e essencialmente solidário como uma aposta cujo resultado ainda é
indeterminado, mas que nos coloca diante de uma escolha entre a passividade da descrença
e a mobilização motivada pelo otimismo e pela esperança na humanidade.
105
R
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110
A
NEXO I - FORMULÁRIO DE CARACTERIZAÇÃO DE
EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Nome do empreendimento: ________________________________________
Município: ________________ Região: _________________
Telefone:______________________
Ano de início do empreendimento: ____________ Pessoa de contato: _______________
Área de atuação: ( ) Urbana ( ) Rural
1. Qual a forma de organização (resposta única):
1.( ) Grupo informal
2.( ) Associação
3.( ) Cooperativa
4.( ) Empresa autogestionária
5.( ) Empresa Ltda
6.( ) Outra: _______________________________________________________________
2. Qual o número de participantes (assinale a alternativa mais conveniente):
Pessoas físicas associadas: ________ (Homens _______ Mulheres ______)
Famílias associadas: _____________
Pessoas jurídicas associadas: ______
3. Nos últimos 12 meses o número de participantes:
1.( ) aumentou 2.( ) diminuiu 3.( ) se manteve
3A) Quantos novos membros entraram (ou saíram): _______
4. Quais as atividades econômicas do empreendimento (marcar a ou as principais):
1.( ) Alimentação 2.( ) Reciclagem
3.( ) Vestuário 4.( ) Saúde
5.( ) Cama, mesa e banho 6.( ) Joalheria/Bijouteria
7.( ) Decoração 8.( ) Produtos de higiene pessoal e limpeza
9.( ) Movelaria 10.( ) Cultura e lazer
11.( ) Crédito / fundo rotativo 12.( ) Outra(s):___________________________
5. Como é feita a comercialização de produtos ou serviços (marcar as principais):
1.( ) Em feiras de final de semana existentes nos municípios de atuação do grupo
2.( ) Em feiras de abrangência regional, estadual ou nacional
3.( ) Fornecimento para intermediários ou atravessadores
4.( ) Fornecimento para lojas de varejo em geral
5.( ) Em estabelecimento comercial (loja) mantido pelo grupo
6.( ) Através de visitas domiciliares (porta em porta)
7.( ) Fornecimento para órgãos públicos (merenda escolar, restaurantes, creches....)
8.( ) Grupos de consumidores solidários
9.( ) Fornecimento para setor industrial
10. ( ) Outro(s). Qual(is)? ________________________
6. Foram realizados investimentos no empreendimento nos últimos 12 meses?
1.( ) sim 2.( ) não de que tipo? ___________________________
111
7. Teve acesso a crédito nos últimos 12 meses?
1.( ) sim 2.( ) não teve acesso 3.( ) não procurou crédito
7A. Se recebeu crédito, para qual(is) finalidade(s)?
1.( ) custeio ou capital de giro 2.( ) investimento 3.( ) outros: __________
7B. Se recebeu crédito, qual a fonte do crédito ou financiamento?
1.( ) banco público 2.( ) banco privado 3.( ) agência financeira
4.( ) familiar 5.( ) banco popular 6.( )outros: ________________
Nome da(s) organização/organizações que forneceu(ram) crédito: __________
8. O empreendimento possibilita uma renda por trabalhador de:
1.( ) menos de 1 salário mínimo 3.( ) cerca de 2 salários mínimos 5.( ) não sabe
2.( ) cerca de 1 salário mínimo 4.( ) 3 ou mais salários mínimos
9. Esta é a principal fonte de renda dos participantes? 1( ) sim 2( ) não 3( ) não sabe
10. Quais as formas de participação dos membros na tomada de decisões do
empreendimento?
1.( ) decisão sobre o destino das sobras
2.( ) eleição da diretoria
3.( ) plano de trabalho / divisão de tarefas
4.( ) participação nas decisões cotidianas
5.( ) decisões sobre investimentos e administração do negócio
6.( ) outra(s). Qual(is)?_______________________________
7.( ) não há participação
11. O empreendimento participa de algum tipo de articulação como:
1.( ) rede de produção/comercialização 2.( ) Fórum de Economia Solidária
3.( ) federação de cooperativas 4.( ) Outro tipo de articulação
5.( ) centrais de comercialização 6.( ) Não participa
Especifique qual: ______________________
12. O empreendimento recebe algum tipo de apoio, assessoria, capacitação?
1.( ) Do governo 2.( ) Da igreja 3.( ) De uma entidade de apoio 4.( ) outro.________
5.( ) Não recebe apoio.
Nome da(s) instituição/instituições que apóia(m): ______________________________
12A) Se recebe, de que tipo: 1.( ) financeiro 2.( ) técnico ou gerencial 3.( ) outro. __
13. O empreendimento desenvolve alguma ação social ou comunitária?
1.( ) Sim Qual? ________________________ 2.( ) Não
14. Sexo do Entrevistado(a): 1.( ) Masculino 2.( ) Feminino
15. Idade do Entrevistado(a): 1.( ) 18 a 22 2. ( ) 23 a 26 3.( ) 27 a 30 anos
4.( ) 31 a 34 anos 5. ( ) mais de 35 anos
16. Escolaridade do Entrevistado(a):
1.( ) ensino básico fundamental - 1a Etapa 2. ( ) ensino básico fundamental – 2a Etapa
3.( ) ensino médio incompleto 4.( ) ensino médio completo 5.( ) outros. ___________
17. Função do entrevistado no empreendimento: _____________________________
112
A
NEXO II ROTEIRO DE ENTREVISTAS SOBRE O EMPREENDIMENTO (A)
1- Caracterização do Empreendimento
a) Nome: __________________________________________________
b) Contato: _________________________________________________
c) Endereço: _______________________________________________
d) Tel/Fax/E-mail: ___________________________________________
e) Forma de organização / registro legal: __________________________
f) Idade do empreendimento: _______
2- Histórico e Produção
a) Histórico:
b) Controle Acionário / Patrimonial: ___________________________________________
c) Número de trabalhadores / sócios:
Setor 2002 2003 2004
Total de trabalhadores
d) Principais produtos:
1) _____________ 2) ________________ 3) ______________ 4) ______________
e) Principais Clientes:
1) ___________________________ 2) _________________________________
3) ____________________________ 4) ________________________________
f) Produz majoritariamente para um único cliente? _____ Qual? _____________________
g) É subcontratada de uma única empresa? _____ Qual? ___________________________
h) O empreendimento terceiriza atividades da produção ou de distribuição? De que tipo?
i) Em relação ao ano anterior (2003), a produção:
( ) aumentou ( ) manteve-se ( ) reduziu
j) Em relação ao ano anterior (2003), o investimento:
( ) aumentou ( ) manteve-se ( ) reduziu
113
3- Investimento e crédito adquiridos nos últimos anos
a) Investimentos realizados nos últimos 3 anos (R$):
2002: ________ 2003: ________ 2004: ________
b) Proporção dos investimentos em relação ao faturamento total do empreendimento (%):
2002: ________ 2003: ________ 2004: ________
c) Principais itens do investimento realizado (R$):
Ítens 2002 2003 2004
Novos equipamentos
Informática
Instalações
Desenvolvimento de produto
Outros (detalhar)
d) Investimentos programados para 2005 (R$):
Ítens 2005
Novos equipamentos
Informática
Instalações
Desenvolvimento de produto
Outros (detalhar)
e) Expansão? Modernizações? Mudanças de produtos? Quais?
f) Crédito captado nos últimos 3 anos (R$):
2002: ________ 2003: ________ 2004: ________
g) Proporção do crédito captado em relação ao faturamento total do empreendimento (%):
2002: ________ 2003: ________ 2004: ________
h) Se recebeu crédito, para qual(is) finalidade(s)? Qual(is) a(s) fonte(s) de crédito? Se não
recebeu crédito, porque? Não procurou ou não teve acesso?
114
4- Dimensão tecnológica da produção
Indicadores 2002 2003 2004
Capacidade de produção
Capacidade utilizada %
Em quantos turnos operava
Índice de perdas
a) Existem possibilidades de utilização de máquinas modernas no processo produtivo?
O aumento de produtividade compensa o investimento?
Há dificuldades de financiamento?
Faltam trabalhadores capazes de operar os equipamentos?
Outros (quais?)
b) A adoção de novos equipamentos teve como principais objetivos (numerar em ordem de
importância):
Redução de custos de produção
Aumento da produção
Aumento de produtividade
Melhoria de qualidade
Regulação do fluxo de produção
Mudança de produtos
Redução de mão-de-obra
Melhoria da qualidade e segurança do trabalho
Outros
c) Esses objetivos estão sendo alcançados? Quais as principais dificuldades surgidas pela
adoção de novas máquinas?
d) A adoção destas máquinas teve efeitos sobre o número de trabalhadores? Em que
setores? O que foi feito para minimizar o problema?
e) O empreendimento realiza algum tipo de controle de qualidade? Se sim, este é feito:
( ) no final da produção ( ) em cada fase da produção.
115
5- Organização e relações do trabalho autogestionado
a) A adoção de modernizações tecnológicas ou de gestão enfrenta resistência por parte dos
trabalhadores?
b) A adoção de equipamentos modernos aumenta a flexibilidade dos postos de trabalho?
c) As mudanças na forma de gestão favoreceram o ambiente produtivo da empresa no
sentido de (numerar em ordem de importância):
Aumento da participação dos trabalhadores na resolução de problemas
Aumento da sugestão dos trabalhadores na melhoria dos produtos e processos
Aumento de produtividade
Melhoria no relacionamento entre os trabalhadores
Aumento da auto-estima dos trabalhadores
Outros
d) Qual a importância das qualificações abaixo para o trabalho realizado? (numerar em
ordem de importância):
Escolaridade
Curso técnico-profissionalizante
Capacidade de comunicação
Habilidade manual
Experiência anterior
Motivação e participação
Outros
e) O empreendimento desenvolve ou participa de algum programa específico de
qualificação profissional? Se não, porque?
Custo elevado
alta rotatividade
só admite trabalhadores com experiência
não há necessidade
Outros
116
f) Como o empreendimento define os postos de trabalho? Há possibilidade ou incentivo de
rodízio de postos?
g) Quais as principais mudanças na organização do trabalho num empreendimento de
autogestão? Qual a periodicidade das assembléias e reuniões? Qual o papel da diretoria?
h) Quais as medidas adotadas para estimular a participação e a cooperação entre os
trabalhadores? A participação tem se dado de forma satisfatória?
i) Qual a forma de remuneração? (salário, participação no faturamento, por peça, etc) Qual
o ganho médio proporcionado por trabalhador? (em salários mínimos) Há uma tendência
de aumento?
j) Quais os critérios para se admitir novos sócios?
k) Há contratação de trabalhadores assalariados pelo empreendimento? Se sim, como é a
relação entre estes trabalhadores com os que são sócios.
6- Relações políticas e articulação sócio-econômica
a) Qual a estratégia do empreendimento para enfrentar os atuais desafios colocados, como
globalização, ISSO 9000, desemprego, etc.
b) O empreendimento realiza ou participa de algum tipo de ação social dentro da
comunidade ou em relação à família dos trabalhadores?
c) Existem planos de melhoria das condições e de segurança de trabalho?
d) O empreendimento participa ou está buscando formar algum tipo de rede de produção e
comercialização com outros empreendimentos do mesmo setor? Participa de algum outro
tipo de articulação dentro do movimento da Economia Solidária?
e) O que entende por Economia Solidária? Quais as mudanças necessárias dentro e fora do
empreendimento para se fortalecer esse tipo de iniciativa?
f) Quais as perspectivas para o futuro do empreendimento? E do movimento da Economia
Solidária? Comentários finais.
117
A
NEXO II (CONTINUAÇÃO) ROTEIRO DE ENTREVISTAS COM TRABALHADORES (B)
a) Nome: _________________________________ Cargo/função: ___________________
b) Idade: ____________ Tempo de trabalho no empreendimento _____________________
c) Escolaridade e cursos profissionalizantes: _____________________________________
d) Cursos realizados com o apoio do empreendimento: _____________________________
e) Descrição do seu trabalho atual.
f) Quais as habilidades mais importantes para sua função? Quando entrou no
empreendimento, já possuía essas habilidades?
g) Em que outras funções já trabalhou? A mudança de postos é estimulada pelo
empreendimento? Você considera positiva?
h) Foram introduzidos novos equipamentos recentemente? O que mudou? Foi necessário
algum curso de treinamento? A manutenção do equipamento é realizada por vocês?
i) Já apareceram mudanças que possibilitaram a melhoria do seu trabalho? O que falta
ainda para melhorar o seu trabalho?
j) Ocorre participação efetiva dos trabalhadores no processo de tomada de decisões? De
que forma?
k) O trabalho atual é mais cooperativo que antes? A relação entre os trabalhadores
melhorou?
l) Qual a sua remuneração (em salários mínimos)? Tem melhorado?
m) Você se sente mais estimulado ao trabalho atualmente? Porque?
n) Comentários finais.
118
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